C.B.Macp Macphe hers rson on Professor d e C i ê n c i a Política na Universidade d e Toronto
nm L O rigens rigens e Evolução Tradução de NATHANAEL C. CAIXEIRO
Professor de História das Idéias Contemporâneas na Universidade Gama Filho
FACULDADE DE SERVIÇ VIÇO SOCIAL IAL BIBLIOTECA 16 4 0 0
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ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO
BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Ciência Política
BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Ciência Política
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A DEMOCRACIA LIBERAL:
ORIGENS E EVOLUÇÃO
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Título original: The Life and Times of Liberal Democracy
Traduzido da primeira edição inglesa, publicada em 1977 pela OXFORD UNIVERSITY PRESS, j ] i ... N de Oxford, Inglaterra.
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Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados (mimeografia, xerox, datilografia, gravação, reprodução em disco ou em fita), sem a permissão por escrito da editora. Aos infratores se aplicam as sanções previstas nos artigos 122 e 130 da Lei n9 5.988 de 14 de dezembro de 1973.
1978 Direitos para a língua ZAHAR Caixa Postal que se reservam a
portuguesa adquiridos por EDITORES 207, ZC-00, Rio propriedade desta versão
Impresso no Brasil
Indice
Prefácio ; 7 I Modelos e Precursores .....% — 9 A Natureza da Investigação 9 O emprego de modelos : 10 (i) Por que modelos?........................................................... 10 (ii) Por que modelos historicamente sucessivos?............. 14 (iii) Por que esses modelos? 15 Precursores da Democracia Liberal 16 (i) Democracia e cla sse...................................................... 16 (ii) Teorias anteriores ao século XIX como precursoras 19 .................................
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II
Modelo 1: Democracia Protetora................................ 29 A Ruptura na Tradição Democrática 29 A Base Utilitarista............................................................... 31 Os Fins da Legislação Segundo Bentham.............................32 A Exigência Política 39 A Gangorra de James M ili........................................................42 A Democracia Protetora para oHomem do Mercado 47II ..........
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III
Modelo 2: Democracia Desenvolvim entista 49 O Surgimento do Modelo 2 ...................................... 49 Modelo 2A: A Democracia Desenvolvimentista de J. S. M ili . . . . . ...........................55 A Domesticação da Franquia Democrática 68 Modelo 2B: A Democracia Desenvolvimentista do Século X X ............................................................................. 72 .........................
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IV Modelo 3: Democracia de Equilíbrio........................................81 A Analogia com o Mercado Empresarial 81 Adequação do Modelo 3 .............................................................. 86 (i) Adequação expositiva .....................................................86 (ii) Adequação explicativa.....................................................87 (iii) Adequação justificativa 88 As Hesitações do Modelo 3 94 ..............................
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V Modelo 4: Democracia Participativa 97 O Surgimento da Idéia................................................................97 É Possível Agora Mais Participação? 98 (i) O problema da dimensão 98 (ii) Um círculo vicioso e possíveis abertpras 101 Modelos de Democracia Participativa 110 (i) Modelo 4A: um primeiro enfoque abstra to 110 (ii) Modelo 4B: um segundo enfoque 114 Democracia Participativa como Democracia Liberal? 115 .........................................
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Leituras adicionais
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Prefácio
Ao leitor poderá causar admiração a pequenez deste livro. “Origens e Evolução”, num título, em geral é indício de um livro dez vezes maior que este. Para os propósitos do autor, contudo, não é necessá rio um trabalho tão extenso. Nosso objetivo consiste tão-somente em destacar a essência da democracia liberal tal como é agora concebi da, como tem sido e como pode ser concebida. Para esse fim, a brevi dade é preferível ao pormenor exaustivo. Espero, contudo, que mi nha análise seja suficiente para fixar os padrões que descobri, e para justificar a crítica e apreciação para as quais não vejo qualquer razão em contrário. Sucessivas versões anteriores deste trabalho foram apresentadas para crítica em diversas universidades: a primeira delas, de caráter experimental, foi apresentada à Universidade da Columbia Britâni ca, e as versões subseqüentes, cada qual valendo-se das críticas feitas às anteriores, foram apresentadas ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade Nacional Australiana, ao Instituto de Filosofia da Universidade Aarhus, e à Universidade de Toronto. Algumas partes do trabalho foram submetidas a crítica em várias universidades nor te-americanas, e outras a universidades canadenses. Os colegas e alu nos que participaram dessas discussões perceberão o quanto me be neficiei de suas críticas. Alguns gostariam de que me aproveitasse mais. A todos eles, meus agradecimentos. Universidade de Toronto 4 de outubro de 1976 C. B. Macpherson
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Modelos e Precursores •A NATUREZA DA INVESTIGAÇÃO É incomum
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tratar de “origens e evolução” sem que se tenha esgotado a biografia. Devemos pois considerar a democracia liberal tão perto do fim a ponto de esboçarmos desde já suas origens e evolução? A breve resposta, prejulgando as razões que apresentaremos, é “sim”, se tomarmos a democracia liberal como significando, o que de um modo geral ela ainda significa, a democracia de^ uma sociedade de mercado capitalista (não obstante as modificações que essa socieda de aparenta com o advento do estado de bem-estar); mas a resposta seria “não necessariamente”, se por democracia liberal entendermos, como John Stuart Mill e os liberal-demócratas éticos que o acompa nharam em fins do século XIX e inícios do século XX, uma socieda de empenhada em garantir que todos os seus membros sejam igualmente livres para concretizar suas capacidades. Infelizmente, a de mocracia liberal pode significar ambas as coisas. Pois “liberal” pode | significar a liberdade do mais forte para derrubar o mais fraco de V acordo com as regras do mercado; ou pode significar de fato igual li- j berdade para todos empregarem e desenvolverem suas capacidades, j Esta última definição é contraditória em relação à primeira. J A dificuldade consiste em que a democracia liberal, durante a , maior parte de sua vida até agora (vida que, como demonstrarei, teve início há apenas cento e cinquenta anos como conceito, e mais tarde \ como instituição concreta), tudo fez para combinar os dois significa- / dos. Sua vida começou nas sociedades capitalistas de mercado, e des de o início admitiu sua pressuposição básica inconsciente, que pode ría ser parafraseada como “o mercado marca o homem”. Contudo, logo depois, já com John Stuart Mill, em meados do século, reivindi- j cava insistentemente direitos iguais para o indivíduo desenvolver-se, e por sua vez se justificava amplamente em vista dessa reivindicação.
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As duas noções de democracia liberal estiveram desde então incomodamente interligadas, cada qual com seus altos e baixos. ' Até aqui, a perspectiva do mercado tem prevalecido: consciente ; ou incoimientemerUev,‘‘.iifierar’ tem sido tomada,çqjaiq significando ' / ‘capitalista” . Isso é certo, muito embora éticos liberais, de Mill em f diante, se tenham esforçado por combinar liberdade de mercado com liberdade de autodesenvolvimento, e se tenham empenhado em su bordinar a primeira à última. Falharam nesse intento, por motivos que examinaremos no Capítulo III. No caso presente, estou apenas sugerindo que uma posição libe ral não precisa ser tomada como dependente para sempre de uma aceitação dos pressupostos capitalistas, embora do ponto de vista histórico tenha sido assim. O fato de que os valores liberais tenham ? germinado nas sociedades capitalistas de mercado não é em si razão ) pela qual o princípio ético central do liberalismo - a liberdade do in divíduo para concretizar suas capacidades humanas - tenha de confif nar-se sempre necessariamente a essas sociedades. Pelo contrário, pode-se argumentar que o princípio ético, ou, se preferirmos, o an seio de liberdade individual, transbordou de seu invólucro capitalista de mercado e pode viver agora tão bem ou melhor sem ele, assim como as forças produtivas do homem, que cresceram consideravel mente no capitalismo concorrencial, não se perderam quando o capi talismo abandona a concorrência livre ou é substituído por alguma forma de socialismo. Minha sugestão será de que a continuidade de alguma coisa que ( j possa adequadamente ser chamada de democracia liberal depende de / uma diminuição gradual dos pressupostos do mercado e uma ascen são gradual do direito igual de desenvolvimento do indivíduo. Acho que há algum indício de que isso aconteça. Mas longe está a certeza de que venha a acontecer. Por isso achei válido manter o melancólico /título “Vida e fases”. Meu principal interesse neste pequeno livro é examinar os limi tes e possibilidades da democracia liberal. Passo a explicar agora por que fiz isso em termos de modelos e por que preferi certos modelos como adequados e suficientes. Isso leva a considerar certos modelos anteriores que releguei à posição de precursores da democracia libe ral.
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O EMPREGO DE.MODELOS
(i) Por que modelos? Estou empregando o termo “modelo” num sentido amplo, para sigriíficar uma efaboraçãp teórica com vistas a exibir e explicar as rela- Çtfés reais^ subjacentes às aparências, entre os fenômenos ou no seio n \ ' dos fenômenos em estudo. Nas ciências naturais, que em geral se p u .
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ocupam de fenômenos que não variam pela vontade humana ou com a mudança social, modelos sucessivos (como os de Ptolomeu, Copérnico, Newton, Einstein) são cada vez mais plenos e explicações mais suficientes de relações reais e invariantes. Nas ciências sociais, ocu padas com fenômenos que, dentro de limites historicamente transitorios, são variáveis pela vontade humana, os modelos (ou teorias, como também podemos chamá-los) podem ter duas dimensões a mais. . Em primeiro lugar, eles podem ter em vista explicar não apenas a realidade subjacente às relações vigentes ou passadas entre seres humanos dotados de vontade e influenciados historicamente, mas tajmbém a probabilidade ou possibilidade de futuras mudanças mp //, quelas felaçoes Pe 1a escolha de linhas principais de mudança, e ca* racterísticas aparentemente imutáveis, do homem e da sociedade até o presente, podem tentar discernir forças de mudança, e limites de mudança, que devem operar no futuro. Nem todos os teóricos que formularam leis da mudança as consideraram corpo atuando numa linha reta: Maquiavel, por exemplo, pensava em termos de um movi mento cíclico como o padrão histórico de mudança social e política que deveria prevalecer indefinidamente no futuro. Mas já a partir do iluminismo do século XVIII, com sua idéia de prógresso, tem sido mais comum pensar em termos de uma linha reta. Dos teóricos que enxergaram uma única linha principal de mudança passada, nem to*—> dos a projetaram além, caso a enxergassem, no futuro: por exemplo, autores do século XVIII como Montesquieu, Turgot, Millar, Fergu son e Adam Smith, que vislumbraram ou formularam a lei dos quatro estágios da sociedade - caça, pastoreio, agricultura, comércio estiveram em condições de admitir que o estágio comercial era o final. Mas no século XIX, autores outros, diferentes nos seus enfoques _i como Comte, Marx e Mill, com maior ou menor rigidez projetaram uma linha principal do desenvolvimento passado no futuro. Explícita ou implicitamente, qualquer dessas teorias, evidentemente, baseavase em modelos. A segunda dimensão a mais dos modelos em teorização política é a ética, isto é, uma preocupação quanto ao que seja desejável, bom ou correto. Os modelos mais proeminentes em ciência política, pelo menos de Hobbes em diante, têm sido tanto explanatórios como jus- , tificativos ou reivindicativos. Em diferentes proporções, consistem de enunciados quanto ao que seja um sistema político ou uma socie dade política, como ele ou ela opera ou poderia operar, e enunciados quanto a porque sejam bons, porque deveriam ser bons, ou porque seria desejável tê-los ou ainda mais que eles. Alguns teóricos demo cráticos enxergaram bem claramente que suas teorias são um misto de tudo isso. Já outros não, e até mesmo negaram esse aspecto. Os que
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partem da pressuposição tácita de que tudo o que existe está certo, estão em condições de negar que estejam fazendo juízos de valor. Os que partem da pressuposição tácita de que o que existe está errado dão grande peso aos seus argumentos éticos (ao mesmo tempo ten tando mostrar que eles são plausíveis). Entre os dois extremos, há en sejo para considerável matiz de ênfase. Seja como for, para mostrar que um modelo de sistema político ou de sociedade, existente ou ainda não existente mas desejado, é praticável, isto é, que se possa esperar que atue bem por longo prazo, deve-se adfpitir alguns pressupostos sobre os seres humanos pelos quais e c o m os quais se há de contar. De que tipo^de conduta política são eles capazes? Trata-se, evidentemente, de uma questão funda mental. Um sistema político que exigisse, por exemplo, que os cida dãos tenham mais racionalidade ou mais zelo político do que têm os tensivamente agora, e mais do que se podería esperar em qualquer cir cunstância social a que se chegue, não merecería muita defesa. O re quisito qiie acabei de ressaltar é importante. Não estamos necessaria mente limitados ao modo pelo qual as pessoas agem politicamente agora. Não estamos limitados a isso se pudermos mostrar razões para esperar que esse estado pode mudar no caso de mudanças, por exemplo, nas possibilidades tecnológicas e nas relações econômicas de sua sociedade. Em sua maioria, embora nem todos, os teóricos políticos de to das as convicções - conservadores, tradicionalistas, individualistas li berais, reformadores radicais e revolucionários - compreenderam muito bem que a plausibilidade de qualquer sistema político depende amplamente de como todas as demais instituições, sociais e econômi cas, modelaram ou poderiam modelar as pessoas com quem e pelas quais o sistema político deve operar. Quanto a isso, estão em acordo autores dos mais diversos pontos de vista, tais como Burke, Mill e Marx, muito embora a maioria dos teóricos anteriores, de Locke a Bentham, por exemplo, prestasse pouca atenção a isso. E em geral se tem visto, pelo menos nos séculos XIX e XX, que o modo mais im portante pelo qual todo o feixe de instituições sociais e relações so ciais modela as pessoas como atores políticos é pela maneira como modelam a consciência delas mesmas. Por exemplo, quando, na Ida de Média e por algum tempo depois, a organização social vigente in duzia virtualmente a todos a aceitarem uma imagem do ser humano como humano em virtude de sua aceiíação das obrigações de sua ca tegoria ou sua “condição na vida”, atuará um sistema político hie rárquico tradicional. Quando uma revolução comercial e industrial tiver alterado de tal modo as coisas que essa imagem não mais seja aceita, outra imagem será necessária. Se for a imagem de um hor em como essencialmente consumidor e apropriador, obteremos
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que perm itirá e exigirá um sistema político inteira- ) mente diverso. Se, mais tarde, em oposição a esses resultados, as pes- ? soas vierem a pensar de si mesmas de algum outro modo, virá a ser j possível e mesmo necessário outro sistema político. Assim sendo, ao contemplar modelos de democracia - passados, presentes ou futuros - devemos ter claramente em consideração duas coisas: os pressupostos sobre os quais toda a sociedade em que o sis tema político democrático deve operar, e seus pressupostos quanto à natureza essencial das pessoas que deverão fazer funcionar o sistema , (o que, evidentemente, para um sistema democrático, significa of povo em geral, e não uma classe governante ou^dominante). j> Falar, como o fizemos até agora, de uma “sociedade em que um sistema político democrático deve operar” pode dar a entender que apenas um sistema político tem condições de ser chamado democrá tico, que a democracia é tão-somente um mecanismo para escolher e autorizar governos ou de algum outro modo obter leis e que sejam tomadas decisões políticas. Mas devemos ter em mente que a demo cracia tem sido no mais da¿ vezes, eé, tida como. muito mais que isso. Desde Mill, passando por L. T. Hobhouse, A. D. Lindsay, Woodrow Wilson e John Dewey, até os que atualmente propõem uma demo cracia participativa, ela tem sido encarada como uma qualidade que penetra toda a vida e atividades de uma comunidade nacional ou me nor, ou se entendermos como um tipo de sociedade um conjunto inteirojdejrelações recíprocas entre as pessoas que constituem a nação ou outra unidade. Alguns teóricos, em sua maioria do século XX, in sistem em manter os dois sentidos distintos. Alguns até mesmo ex cluiríam o segundo sentido inteiramente, definindo democracia tãosomente como um sistema de governo. Em qualquer análise realista, contudo, os dois sentidos mesclam-se um no outro. Pois diferentes modelos de democracia, no sentido estrito, são congruentes com di ferentes espécies de sociedade e exigem mesmo diferentes tipos de so ciedade. Já se disse o suficiente sobre modelos em geral para indicar por que uma análise da democracia liberal pode ser adequadamente em- \ preendida em termos de modelos. Examinar modelos de democracia liberal é examinar o que se deseja dela, ou se crê que ela seja, o que | i mais se quer dela ou de alguma variante da atual forma delà, é tam- 1 | bém o que sé acredita que ela põderia ou deveria ser. Isso é mais do J qpje^se^õderTa fazer pela simples análise das operações e instituições de qualquer dos estados liberais democráticos existentes. E esse co nhecimento extra é importante. Porque as crenças quanto ao que seja um sistema pplíJtjy^Qji^^ constituem parte de- , f le. Essas crenças, conquanto formadas pu determinadas, realmente / f d^fefrmTísnrrrTyK^ ites^^possíveTdesenvolvimento do'sistema*/deter- I nova consciência,
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minam o que as pessoas toleram, e o que exigirão. Em resumo, ope rar em termos de modelos facilita ter em mente que a democracia li beral (como qualquer outro sistema político) tem dois ingredientes necessários que podem não aparecer na superfície: (a) para ser plausível, não deve estar muito além das necessidades e capacidades doTseres humanos destinados a pô-lo em execução; daí, o modelo de democracia deve có'rrter(òu admitir) um modeló de homem; e (b), dado c[ue precisa de consenso geral e apoio pàra-que seja plausível, o modelo deve conter, explícita ou implicitamente, uma teoria eticanfiente justificativa. (ii) Por que modelos historicamente sucessivos ? ^ Se nosso objetivo é examinar os limites e possiblidades da democra cia liberal contemporânea, por que falarmos de “Vida e fases”? Por que não nos limitarmos a uma análise atual? Não seria acaso mais simples elaborar um único modelo da atual democracia liberal, rela cionando as características observáveis da prática e teoria comuns aos estados do século XX e que todos concordam em chamar de de mocracias liberais, isto é, os sistemas em curso na maioria dos países de fala inglesa e maioria da Europa ocidental? Modelo como esse poderia ser elaborado facilmente. As principais estipulações são clara' l mente evidentes. Governos e legislaturas são escolhidos direta ou in? diretamente mediante eleições periódicas com privilégio igual univer sal, sendo a escolha dos votantes normalmente uma preferência entre \ partidos políticos. Há um grau suficiente de liberdades civis (liberda de de fala, de imprensa, de associação, e garantia quanto a detenção ou prisão arbitrárias) de modo a tornar eficaz o direito de escolha. Há igualdade formal perante a lei. Há certa proteção das minorias. E há uma aceitação geral de um princípio de máxima liberdade indivi dual compatível com igual liberdade para outros. Muitos autores políticos contemporâneos estabelecem um modelo como esse. Ele pode servir como arcabouço para investigar e expor as concretas, as necessárias e possíveis atuações da democracia libe ral contemporânea. Pode também ser utilizado para indagar da supe rioridade ética da democracia liberal em relação a outros sistemas. Por que então não empregarmos um único modelo elaborado a par tir da prática atual e da teoria atual? Pof que examinar sucessivos modelos que prevaleceram alternadamente desde há pouco mais de um século até agora? A razão mais elementar é que o emprego de modelos sucessivos diminui o perigo de miopia ao olharmos para frente. É demasiado fá cil, ao empregar um único modelo, bloquear vias futuras; corre-se fa cilmente o risco de pensar que a democracia liberal, agora que chegamos até ela, seja por quais estágios forem, está fixa em seu molde
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atual. De fato, o emprego de um único modelo contemporâneo quase nos força a essa posição. Isso porque um único modelo da democra cia liberal em curso, para que seja modelo realista e explicativo, deve estipular certos mecanismos atuais, tais como o sistema partidário em concorrência e governo inteiramente indireto (isto é, representati vo). Mas fazer isso é excluir opções que podem tornar-se possíveis mediante relações econômicas e sociais modificadas. Pode haver acentuadas diferenças de opinião quanto a se algumas formas con cebíveis de democracia podem ser adequadamente chamadas de de mocracia liberal, mas isso é algo que precisa ser demonstrado me diante argumentos, e não julgado por definição. U ma das coisas que \ precisa ser considerada é se a democracia liberal num grande estado è \ capaz de tender a um misto de democracia indireta ou direta: isto é,( j se será capaz de tender no sentido de uma participação mais ampla,*Y que possa exigir outros mecanimos que não sejam o sistema partidá-^' rio. Há outra razão ainda para preferir modelos sucessivos: seu em-\ prego tem mais probabilidade de revelar o pleno conteúdo do mode-1 lo contemporâneo, a plena natureza do atual sistema. Pois o modelo vigente no momento é em si um amálgama, produzido pela rejeição parcial e absorção parcial de modelos anteriores. Cada um dos três primeiros modelos que eu escolhi foi por certo tempo o modelo vi gente, isto é, foi o modelo em geral aceito por aqueles que eram intei ramente favoráveis à democracia, como um enunciado do que é a de mocracia, para que existe e que instituições exige. E cada modelo su cessivo, após o primeiro, foi elaborado como um ataque a um ou mais dos modelos anteriores. Cada qual foi oferecido como um cor retivo ou substituição de seu predecessor: o ponto de partida foi sem pre um ataque contra pelo menos alguma parte do modelo anterior, mesmo quando, como foi não raro o caso, o novo modelo encarnasse consideráveis elementos de um modelo anterior, por vezes sem que os formuladores aparentemente se dessem conta disso. Assim, cada um dos modelos deve ser, até certo ponto, uma sobreposição aos an teriores. Assim, temos muito mais probabilidade de enxergar a plena natureza da democracia liberal contemporânea, e sua possível dire ção e limites, examinando modelos sucessivos, bem como as razões para a sua elaboração e suas falhas. (iii) Por que esses modelos? Mesmo que estivéssemos persuadidos dos méritos da elaboração de modelos, e do valor de analisar-se a democracia liberal pelo exame de modelos vigentes sucessivos, pode-se indagar das razões pelas quais teria eu preferido, como o fiz, recuar não além do século XIX. Por que não recuar pelo menos até Rousseau ou Jefferson, ou às idéias
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democráticas associadas com o puritanismo do século XVII, como em geral é feito pelos que desejam historiar as raízes da moderna democracia liberal? Essa questão não pode ser solucionada sem um raciocínio circu lar. Poderiamos facilmente formular uma definição de democracia li beral pela qual algumas teorias e visões da democracia de antes do século XIX tivessem condições de nela se enquadrar. Assim, como parece não descabido, se reduzíssemos a essência da democracia libe ral a três ou quatro características - digamos, um ideal de direitos in dividuais ig'ùaïS de autodesenvolvimento, igualdade perante a lei, li berdades civis básicas e soberania popular com voto político igual para todos os cidadãos - deixando de lado características quanto a representação, sistemas partidários e assim por diante, então algu mas idéias de democracia poderiam ser incluídas como democráticoliberais. Também a propósito, ao enunciar os requisitos sobre repre sentação, etc., podemos excluir vários outros conceitos anteriores. A definição do modelo depende de juízos de valor sobre o que são os as pectos essenciais, e juízos desse tipo não podem ser defendidos sim plesmente recorrendo-se a definições. Acaso significa isso que ficamos sem base alguma para escolher entre possíveis pontos de partida para a democracia liberal? Acho que não. Porque, se nosso interesse é quanto ao possível futuro da democracia liberal, devemos prestar atenção à relação entre institui ções democráticas.e. a estrutura subjacente* cia sociedade. E existe uTrmTHãçãóTiéssa espécie, em geral desprezada pelos teóricos atuais da democracia liberal, relação essa que pode ser considerada decisi va. Trata-se da relação entre democracia e classe social. Passo agora a HpoF"as razões pelas quais os problemas mais I graves e menos examinados do presente e do futuro da democracia lip jberal surgem^fofatp^de que a democracia liberal tem sido projetada ,; : ¡tipicamente para ajustar-se a um esqárémaTHe^óverno democrático y numa sociedade dividida em classes; mostraremos que esse ajuste nao ~ i fot t^fit o The rrî na Teor ia nem na prática, até o século XIX e que, portanto, os modelos e visões da democracia não devem ser tomados como modelos de democracia liberal.
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PRECURSORES DA DEMOCRACIA LIBERAL (i) Democracia e classe
Na medida em que a atenção é focalizada sobre a relação entire de mocracia e classes sociais, o registro histórico recai em novo padrão. Não é novidade absolutamente alguma observar que no principal do pensamento político tradicional do Ocidente, de Platão e Aristóteles até os séculos XVIII e XIX, a democracia, caso se pense nela alguma vez, era definida como norma para os pobres, ignorantes e incompe-
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Icnles, à custa das classes possidentes instruídas e ociosas. A demo cracia, no modo de ver das camadas mais elevadas das sociedades di vididas em classes, significava governo de classe, governo pela classe errada. Era uma ameaça de classe, tão incompatível com uma socie dade liberal como com uma sociedade hierárquica. Isso significa que a principal tradição ocidental até os séculos XVIII e XIX era nãodemocrática ou antidemocrática. Houve, ceftamente, em todo esse amplo espectro de dois mil anos, esta ou aquela visão democrática, defensores da democracia, e inclusive exemplos.de democracia na prática (embora esses exemplos nunca abrangessem toda uma comunidade política). Se ojharmos para essas teorias e visões democráticas, iremos verificar que elas têm uma coisa em comum, que as distancia fundamentalmente da demo cracia liberal dos séculos XIX e XX. Essa característica em comum é que todas elas dependiam de uma sociedade não dividida em classes ou eram concebidas para ajustar-se a uma sociedade desse tipo. É fácil perceberjcjue para esses modos de conceber, em sua maioriar a de^ " mocracia era uma sociedade serffclasses ou de classejúnicave não me- ^ ^ rãmente um mecanismo político para ajustar-seTÍ essa sociedade. Es' - . ses antigos modelos e visões da democracia eram reações contra as . 3 sociedades divididas em classes de seus tempos. Nessas condições, podem adequadamente ser chamadas de utópicas, nome honroso de^ I rívado do título da impressionante obra de Thomas More, Utopia, escrita no século XVI. i isso as coloca em marcante contraste com a tradição liberaldemocrática a partir do século XIX em diante, a qual aceitava e reco nhecia desde o início - e mais claramente no início do que depois - a sociedade dividida em classes, e propunha-se ajustar uma estrutura democrática a ela. O conceito de democracia liberal só se tornou possível quando os teóricos - a princípio uns poucos, e depois a maioria dos teóricos liberais - descobriram razões para acreditar que “cada homem um *oto" não sena arriscando para a propriedade, ou.para a çontiuuidar de das sociedades divididas em classes. Os primeiros pensadores sisI temáticos a pensarem assim foram Bentham e James Mill, em princí pios do século XIX. Como veremos (no Capítulo II), eles baseavam aquela conclusão numa mistura de duas coisas: em primeiro lugar, a dcduçàoji .partir de seu modelo de homem (que reduzia todos os ho^ n s^ ¿ m o d ej¿ J e homem burguês maximizanteT.do que se seguia que todos tinham interesse em manter a santidade da propriedade) e, cm segundo lugar, sua observaçao^JaThabitual deferência dasTTasses inferiores para com as classes superiores. Assim* vejo o divisor de águas entre a democracia utópica e a demo cracia liberal aparecer em inícios do século XIX. Essa é minha razão
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para tratar as teorias de antes do século XIX como precursoras da democracia liberal, mais do que tratar qualquer delas, digamos, de Rousseau ou Jefferson ou de qualquer dos teóricos puritanos do século XVII, como parte da tradição liberal-democrática “clássica”. Isso não quer dizer que os conceitos anteriores ao século XIX te nham sido negligenciados ou esquecidos pelos teóricos do século XX. Pelo contrário, os primitivos conceitos são freqüentemente tra zidos à baila, e não raro se recorre a eles, sobretudo por parte dos ex poentes do século XX do que estou designando por Modelo 2. Mas isso não foi de muito valor para esses expoentes, devido a que em ge ral deixaram de observar que as pressuposições de classes dos teóri cos anteriores eram incongruentes com as suas. j Como declarei há pouco, os que apresentaram modelos favorá I veis ou visões da democracia antes do século XIX tinham em vista ajustar ou ser sociedades sem classes ou predominantemente de clas se única. Antes de historiar as idéias anteriores ao século XIX, valerá a pena enunciar mais especificamente o que entendemos por classe no presente contexto. Classe é compreendida aqui em termos de propriedade: toma mos classe como consistindo daqueles que se situam nas mesmas re lações de propriedade ou não propriedade de terra produtiva e capi tal ou uma e outra coisa separadamente. Um conceito mais ou menos ,livre de classe, definida do modo mais simples em termos de ricos e pobres, ou ricos e medianamente pobres, esteve em evidência na teo ria política por muito tempo, embora nas primeiras teorizações (co mo na de Aristóteles) o critério de classe fosse implicitamente apenas a posse de propriedade produtiva. Contudo, o modo de ver de que a classe, definida pelo menos implicitamente em lermos de proprieda de produtiva, era um importante critério de diferentes formas de go verno, e mesmo um importante determinante de que formas de go verno podiam vir a existir e operar, era o modo de ver de Aristóteles, Maquiavel, republicanos do século XVII e federalistas norteamericanos, muito antes que Marx descobrisse na luta de classes o motor da história. Alguns dos teóricos não democráticos que em suas análises atri buíram lugar central à classe (por exemplo. Harrington), muito se ocuparam das distinções entre classes, baseados não na propriedade e não propriedade, mas em diferente^ tipos de relações de proprieda) de, tais como feudais e não feudais. Mas os teóricos democráticos em ) geral mantêm os olhos numa distinção mais simples: entre sociedades I com duas classes; sociedades com apenas uma classe e sociedades ^ sem classe alguma. Assim é que alguns dos antigos utópicos (como os comunistas de hoje) vislumbraram uma sociedade com nenhuma pro priedade individual de terra ou capital produtivos, donde nenhuma
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classe proprietária: a isso pode chamar-se uma sociedade destituida de classes. Diferente desse modo de ver é a idéia de sociedade em que há propriedade individual de terra e capital e em que todos possuem, ou estão em condições de possuir, propriedade: a esse tipo podemos chamar sociedade de classe única. Finalmente, a sociedade em que há propriedade individual de terra e capital produtivos e em que nem to dos, mas apenas segmento da população, possui tal propriedade: trata-se da sociedade dividida em classes. A distinção aqui feita entre sociedade “sem classes” e de “classe única” pode parecer um tanto arbitrária: as sociedades, ou visões da sociedade que estou descrevendo poderíam ambas ser adequadamen te designadas por qualquer um dos termos. No entanto, dado que as duas sociedades são consideravelmente diferentes, dois termos dife rentes são necessários para designá-las, e é mais em harmonia com o uso moderno manter o termo “sem classes” para uma sociedade que não tenha propriedade privada de terra e capital produtivos, e “clas se única” para uma sociedade em que todos possuam ou tenham con dições de possuir esses recursos produtivos. (ii) Teorias anteriores ao século XIX como precursoras Passemos agora em revista a teoria democrática antes do século XIX. No mundo antigo houve* evidentemente, algumas democracias notá veis, concretas e em atuação. A mais expressiva foi a de Atenas ce lebrizada por Péricles. Mas não há registro de qualquer teoria de vul to que tenha sustentado ou analisado a democracia. Daquela época, nada sobreviveu nesse sentido. 1 Podemos conjecturar que qualquer teoria dessas assumisse, como base necessária para a democracia, um corpo de cidadãos constituído sobretudo de pessoas não dependentes de emprego por outros: isso, pelo menos, correspondería muito bem aos fatos, tanto quanto os conhecemos, sobre a cidade-estado ate niense em seu período democrático, que foi muito bem descrita como uma democracia com base na posse de propriedade. Não sabemos se esse requisito, que equivale à exigência de um corpo de cidadãos em classe única , erguia-se sobre um modelo teórico, visto que nenhum modelo teórico chegou até nós: podemos no máximo supor razoavel mente que assim fosse.
Î Aristóteles analisou sumariamente vários tipos de “democracia” , sob cujo rótulo in cluía sistemas com moderada propriedade como título para votar. Ele se opunha vigo rosamente à plena democracia: a única espécie em que ele encontrava algum mérito era aquela em que “o agricultor e os de moderada fortuna” tinham poder supremo {Política, IV c. ó, 1292 b; cf. VI c.4, 1318 b).
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Na Idade Média não seria de esperar, nem encontramos qual quer teoria de democracia, nem qualquer reivindicação de privilé gio democrático: movimentos populares surgidos vez por outra não cuidavam de privilégios eleitorais, porque naquela época o poder não consistia em corpos eleitorais. Onde prevalecesse o feudalismo, o po der dependia do^status social, herdado ou adquirido pela força das armas. Nenhum movimento popular, por violento que fosse, poderia pensar que seus objetivos seriam atingidos pela obtenção do voto. E nas nações e cidades-estados independentes da Idade Média supe rior, também o poder não devia ser procurado desse modo. No caso que se erguessem vozes e rebeliões contra a ordem social medieval, como na Jacquerie em Paris (1358), no motim dos Cimpi em Florença (1378), na Revolta dos Camponeses na Inglaterra (1381), as reivin dicações eram por igualação de categorias, e às vezes por igualação da propriedade, mais do que por uma estrutura política democrática. Eles desejavam ou uma sociedade sem classes do tipo comunista, como dá a entender o que se atribui a John Bali, da famosa Revolta dos Camponeses: “As coisas não podem ir bem na Inglaterra, nem jamais irão, até que os bens sejam propriedade comum, e até que não haja nem servos nem senhores, e que todos sejamos iguais,” 2ou uma sociedade nivelada onde todos possam ter propriedade. Não há notí cia de que qualquer desses movimentos tenha produzido uma teoria sistemática, nem tenha esboçado uma estrutura política democrática. ! Se passamos para os séculos XVI e XVII encontramos teorias democráticas explícitas. Duas correntes democráticas aparecem en tão na Inglaterra. Uma delas tem como base uma sociedade sem clas ses e a outra uma sociedade de classe única. As utopias democráticas daqueles séculos, as mais conhecidas das quais são a Utopia de More (1516) e The Law o f Freedom de Winstanley (1652), eram sociedades sem classes. Foram vislumbradas como substituição das sociedades divididas em classes: seus autores as elaboraram para denunciar to dos os sistemas classistas de poder. Verificando a base da opressão de classe e a exploração de uma por outra na instituição da propriedade privada, substituíram-na pela propriedade comunal e trabalho co munal. Essas primeiras visões modernas da democracia foram vis lumbres de uma sociedade fundamentalmente igual, sem opressão, bem como prescrições para um esquema de governo. Uma sociedade como essa tinha de ser destituída de classes, e para ser uma sociedade sem classes não podia ter propriedade privada. A outra corrente democrática do século XVII, na medida em que fluía por canais políticos e não simplesmente religiosos, também 2 Citado em M. Beer: A History o f British Socialism, Londres, 1929, i, 28.
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se relaciona com classes. O puritanismo inglês, naquele século, era abundante em idéias democráticas. Embora essas idéias decorressem das controvérsias sobre o governo da Igreja, e só fossem postas em prática naquela esfera (e, durante brevíssimo tempo, na marinha), disseminaram-se em idéias sobre o governo civil, sobretudo no perío do das Guerras Civis e da República. Mas, com exceção de utópicos radicais extremos como Winstanley, os grupos e movimentos cujo pensamento político se poderia dizer surgido do puritanismo não eram politicamente democráticos. Não foram tão longe ao ponto de reivindicar plena soberania popular, ou plenos privilégios democráti cos. Os presbiterianos e independentes insistiam em títulos de pro priedade para aquele privilégio. Sobre a posição dos demais movi mentos políticos, os niveladores, que foram muito fortes nuns pou cos anos durante as Guerras Civis, existe uma polêmica. Mostrei em outro trabalho 3 que os niveladores, como movimento organizado, falando em manifestos harmonizados, pretendiam excluir todos os assalariados e esmoleres (mais de metade dos adultos de sexo masculi no) dos privilégios. Alguns historiadores,4contudo, argumentaram, em réplica, que os niveladores, em seus escritos e discursos indivis duais, não eram unânimes quanto a isso, e que alguns deles eram de mocratas integrais. Se admitirmos isso como uma possível interpret tação dos enunciados de alguns dos niveladores, temos que indagar em que estrutura de classe pensavam alguns niveladores democráti cos, em harmonia com a democracia que eles desejavam ou exigida por ela. A resposta é clara. Todos os niveladores eram vigorosamente contra as diferenças de classes que viam em torno deles, que permi tiam a uma classe de latinfundiários e endinheirados dominar e ex plorar os homens de pequena propriedade (e inclusive reduzir estes últimos a homens destituídos de qualquer propriedade). Um dos mais veementes panfletos dos niveladores 5 via uma conspiração de classe dos homens de riqueza e posição, e tinha em mente pô-la abai xo. O ideal de todos os niveladores era uma sociedade em que todos os homens tivessem propriedade suficiente para trabalhar como pro-
3 The Political Theory of Possessive Individualism, Oxford, 1962, cap. 3; e Democratic Theory, Essays in Retrieval, Oxford, 1973, Ensaio 12. 4 Keith Thomas: ‘The Levellers and the Franchise”, em G. E. Aylmer (org.) The In terregnum: the Quest fo r Settlement, 1640-1860, Londres, 1972; e M. A. Barg, confor me citado em Christopher Hill: The World Turned Upside Down, Londres, 1972, pp. 94, 97. 5 Por exemplo, todos citados em The Political Theory of Possessive Individualism, pp. 154, 156.
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dutores independentes, e em que ninguém tivesse o tipo ou volume de propriedade que lhe permitisse ser uma classe exploradora. Em suma, os niveladores, mesmo que nem todos deles abraças sem uma democracia plena, todos acariciavam o ideal de uma socie dade de classe única. Os niveladores tinham o mesmo ponto de vista J histórico quanto à sociedade que Rousseau teria um século depois. 1 Eles achavam que a deterioração se estabelecera com a propriedade I privada exploradora. A propriedade privada pequena do produtor independente era um direito natural. A propriedade privada degrandes dimensões que capacitava seu possuidor explorar os demais era uma contradição do direito natural. Quando chegamos ao século XVIII verificamos algumas teorias de vulto - não muitas - que em geral e muito propriamente são chaj I madas de democráticas. Podemos tomar como exemplos marcantes f de democracia no século XVIII Rousseau e Jefferson: suas idéias de j mocráticas foram muito mais influentes e mais postas em prática em nosso tempo do que quaisquer outras daquele sé cu lo .6 Por muito dij j ferentes que sejam as posições de Rousseau e Jefferson, em outros assuntos, am bos reivindicavam uma socied ade em que tod os tivessem f ou pudessem ter propriedade sufic iente para nela trabalhar ou trabaf lhar com ela, uma sociedade de produtores indepentes (camponeses ou agricultores e artesãos), e não uma sociedade dividida em assalanados dependentes, por um lado, e por outro proprietários de terra e capital de quem eles fossem dependentes. | A posição de Rousse au é nítida. A propriedade privada é um diI reito individual sagrado. 7 Mas só a propriedade moderada do pe|
b Sem dúvida, James Madison foi tão influente quanto Jefferson, se não mais ainda, no pensamento americano: Robert Dahl, por exemplo, elabora seu modelo de democracia do século XX amplamente sobre Madison. E Madison parece constituir exceção à minha gener aliza ção, porque de fato, em 1780 ele reconheceu uma soc ieda de dividida em class es, e tentou ajustar um sistema de govern o a ela. Mas ele não é exce ção absolutamente, porque o sistema que ele propôs dificilmente pode ser considerado democrático: basta atentar para a sua preocupação em proteger “a minoria dos opulentos contra a maioria” (Max Ferrand (org.): The Records o f the Federal Convention /787 , ediç ão revista. New Haven e Londres, 1937, i, 431); suas estipulaçõ es contra a dominância da “ facção ” , que ele definia com o “certo número de cidad ãos, maioria ou minoria do lo do , unidos e motivados por certo impulso comum de paixão ou interesse" (Federalist Papers, n’ 10); e sua insistência sobre o direito natural à propriedade desigual, que deve ser protegida contra as tendências niveladoras democráticas (ibid), Ele não pode, portanto, ser arrolado como liberal-democrata de antes do século XIX. 7 ” ... o direito de propriedade é o mais sagrado de todos os direitos do cidadão , e até mesmo mais importante sob certos a spectos que a própria liberdade... a propriedade é o verdadeiro alicerce da sociedade civil”. Discurso sobre Economia Política (1758) em The Social Contract and Discourses (trad. G .D .H. Cole), Ever yman’s Library, 1927, p. 271.
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queno proprietário trabalhador é sagrada. Argumentava vigorosa mente Rousseau em seu Discurso sobre as Origens da Desigualdade (1755) que o direito de propriedade ilimitada era a fonte e o meio continuado de exploração e sujeição: só um direito limitado seria moralmente defensável. Ele reafirmou sua posição em O Contrato Social (1762). A primeira propriedade, propriedade no sentido origi nal de produzir meios de vida, era propriedade numa porção de ter ra. O direito original à terra, o direito do primeiro ocupante, era limi tado de dois modos: “um homem deve ocupar apenas a quantidade que necessitar para a sua subsistência; e... a posse deve ser tomada, não por uma cerimônia vazia, mas por trabalho e cultivo” . 8Era as sim que Rousseau encontrava base no direito natural para sua insis tência quanto à propriedade limitada. Ele precisava desse direito de propriedade limitada por uma ou tra razão, que ele também tornou explícita: só esse direito limitado era consistente com a soberania da vontade geral. Uma sociedade verdadeiramente democrática, uma sociedade governada pela vonta de geral, exige essa igualdade de propriedade em que “nenhum cida dão será jamais bastante rico para comprar outro, e ninguém será bastante pobre de modo a ser obrigado a vender-se” . 9A referência a comprar e vender pessoas manifestamente não diz respeito à escravi dão, porque esse princípio é enunciado como norma permanente para os cidadãos, isto é, homens livres: presumivelmente, então, tra ta-se de uma proibição de compra e venda de mão-de-obra assalaria da livre. E também, “as leis são sempre úteis àquele que possui e da nosas àqueles que nada têm: do que se segue que o estado social é vantajoso aos homens apenas quando todos eles tenham alguma coi sa e ninguém tenha demasiado”. 10 O argumento de Rousseau para reivindicar essa igualdade era bem claro. Decorria diretamente de sua insistência na soberania da vontade geral. Porque onde diferenças de propriedade dividem OS) homens em classes com interesses antagônicos, os homens serãor orientados por interesses de classes, que são interesses particulares \ em relação a.toda a sociedade; assim sendo, não terão condições dej exprimir uma vontade geral pelo bem comum. O surgimento e atua ção constante da vontade geral exigia uma sociedade de classe única de proprietários trabalhadores. Esse tipo de sociedade devia ser con seguido por meio de ação governamental: “É portanto uma das mais
8 Livro I, Cap. 9, em ibid., p. 20. 9 Livro II, Cap. II, em ibid., p. 45. 10 Livro I, Cap. 9, em ibid., p. 22, n.l
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importantes funções do governo impedir a extrema desigualdade de 1 fortunas; não pelo banimento da riqueza de seus possuidores, mas j impedindo a todos os homens os meios de acumulá-la; não pela cons- j trução de asilos para os pobres, mas garantindo que os cidadãos não ! se tornem pobres”. 11 j Quando nos voltamos ao teórico que é freqüentemente tido como o primeiro grande proponente americano de democracia, veri ficamos argumento semelhante, embora menos sistemático. Thomas Jefferson tratava o povo em geral como digno de confiança em grau fora do comum na maioria dos subseqüentes presidentes dos Estados Unidos. Seria inadequado pensar que isso fosse devido a que ele não tivesse as tentações proporcionadas pel§s técnicas modernas de rela ções públicas presidenciais. Seja como for, ele deixou claro, tanto em pronunciamentos públicos como em cartas privadas, que sua con fiança no povo era confiança no proprietário trabalhador indepen dente, que ele via como a espinha dorsal, e esperava que permaneces se a espinha dorsal da sociedade americana. Na obra mais volumosa que publicou, as Notes on Virginia (1791), ficou claro em que sua estimativa favorável da natureza hu mana limitava-se àqueles que tivessem considerável independência econômica: A dependência gera a subserviência e a venalidade, sufoca o ger me da virtude, e prepara os instrumentos adequados para os propósito da ambição... falando de modo geral, a proporção que o conjunto das outras classes de cidadãos encerra em qualquer Estado para com a de seus agricultores é a proporção das suas partes não sadias para com as saudáveis, e é um barômetro bas tante bom pelo qual medir seu grau de corrupção... As multi dões das grandes cidades acrescentam tanto para apoio do go verno puro quanto as feridas o fazem para a robustez do corpo humano. 12 O mesmo princípio é expresso numa carta a John Adams, em 1813: Aqui qualquer um pode ter terra para trabalhar independente, se assim o quiser; ou, se preferir o trabalho em qualquer outra atividade, pode exigir por ele uma compensação não apenas para garantir cômoda subsistência, mas com a qual garantir o ócio em idade avançada. Todos, por sua propriedade ou por sua situação satisfatória, estão interessados no apoio da lei e da or dem. E esses homens podem segura e vantajosamente reservar 11 Discurso sobre Economia Política, cm ibid., p. 267 12 Notes on Virginia, Query XIX, cm Saul K. Padover: The Complete Jefferson, Nova York, 1943, pp. 678-9.
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para si mesmos salutar controle dos seus negocios públicos, e um grau de liberdade que, nas mãos da canaille das cidades da Europa, imediatamente se pervertería para a demolição e des truição de tudo o que é público e privado. 13 A democracia, para Jefferson, exigia uma sociedade em que todos fossem economicamente independentes. Raciocinando em termos da situação norte-americana, Jefferson não reivindicava que todos fos sem proprietários trabalhadores, mas apenas que todos pudessem ser o que desejassem. Ele não objetava quanto ao trabalho assalariado, , mas apenas porque, com terra livre disponível, os assalariados eram tão independentes quanto os agricultores. Nem objetava quanto a certos homens, como ele próprio, que tivessem muitas propriedades em terras, desde que todos também tivessem, ou pudessem ter, uma propriedade suficiente para torná-los independentes. Nas circunstân cias que Jefferson via prevalecendo na América, e que ele considera va requisito para a democracia em qualquer parte do mundo, não ha via, portanto, uma divisão fundamental em classes sociais. Ele admi tia a existência de uma relação salarial apenas porque, naquelas cir cunstâncias, ela não implicava uma sociedade dividida em classes so ciais. O requisito para uma democracia segundo Jefferson era, cofno Rousseau, uma sociedade de classe única. Pode-se objetar que o tipo de sociedade vislumbrado por esses autores democráticos de antes do século XIX como requisito de de mocracia não era afinal uma sociedade de classp única, dado que dei xava ainda as mulheres como classe subordinada, incapazes de pos suir propriedade produtiva. Além do mais, como vimos, a questão ressaltada pelos adversários democráticos da sociedade dividida em classes era que qualquer classe sem propriedade produtiva era depen dente da classe que a possuísse, e explorada por ela. Pode-se argu mentar que as mulheres estavam precisamente nessa situação', e cer tamente os primeiros escritores democráticos não se notabilizaram por assumir uma posição contra isso: na verdade, Rousseau pensava que as mulheres deviam continuar dependentes. Não estariam esses autores admitindo o que pode ser chamado de sociedade divida em classes? Acho que não. Pois até o século XIX as mulheres eram em geral consideradas como não sendo plenos membros da sociedade. Esta vam na sociedade civil, mas não eram dela. Dificilmente ocorrerja a. um teóricq, ao expor ou estabelecer a característica classista de
13 ibid., pp. 285-6.
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uma sociedade, tratar as mulheres como uma classe. Um democrata do século XVIII podia pensar numa sociedade de classe única ex cluindo as mulheres tão facilmente quanto um antigo democrata ate niense podia pensar sobre uma sociedade de classe única, excluindo os escravos. Nem se pode dizer que as mulheres fossem uma classe, no sentido pleno. Realmente, na medida em que as mulheres não podiam possuir propriedade, elas satisfazem nossa definição mínima de ciasse. E na medida em que eram mantidas dependentes e exploradas elas se ajustam ao conceito subjacente de classe como uma relação entre explorados e exploradores, Mas há grande diferença entre o modo pelo qual elas eram exploradas e o modo pelo qual a classe trabalhadora não possidente (que nos séculos XVII e XVIII não eram também considerados como plenos membros da sociedade14) era explora da. A diferença é tão grande a meu modo de ver que se torna inade quado descrever as mulheres como uma classe social. Porque a partir do século XVII, à medida que as relações de mer cado capitalista substituíam as relações feudais e outras relações de ca tegoria social como meio pelo qual os possuidores se beneficiavam do trabalho dos não possidentes, compreendia-se que a única organi zação lícita para essa vantagem era a relação entre assalariados livres e proprietários do capital que os empregavam. A relação salarial, rela ção estritamente de mercado, tornou-se o critério da distinção de classes. E no século XVIII, quando Rousseau e Jefferson estipula vam uma sociedade de classe única, e por certo tempo após, as mu lheres não constituíram classe de acordo com aquele critério. Elas eram de fato exploradas pela sociedade dominada pelo homem, que fez com que a maioria delas desempenhasse a função de reproduzir a força de trabalho por uma recompensa não maior que a sua subsis tência. Mas as mulheres foram levadas a essa posição por dispositi vos legais mais afins com as relações feudais (ou mesmo escravistas) do que por relações de mercado. Na medida em que classe, e assim considerada, determinada pelas relações de mercado capitalista, as mulheres não eram, e não seriam tidas como classe. Assim sendo, os escritores que invectivavam contra a sociedade dividida em classes embora não tratando as mulheres como classe, estavam verdadeira mente estipulando uma sociedade de classe única. Acho pois que es tamos ainda em condições de Incluir os teóricos democráticos de an tes do século XIX como defensores de-uma sociedade de classe única (ou sem classes). Espero que esse breve exame dos modelos de democracia de an tes do século XIX seja suficiente para amparar minha generalização de que todos eles se ajustavam a uma sociedade sem classes ou a uma sociedade de classe única. É essa a razão pela qual penso que todas as
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teorias democráticas anteriores ao século XIX se enquadrem melhor fora da tradição liberal-democrática. Para incluir-se naquela tradi ção uma teoria deveria certamente ser ao mesmo tempo democrática e liberal. Mas o que é em geral, e a meu ver, corretamente, considera do como tradição liberal, estendendo-se de Locke e os enciclopedis tas até o presente, implicou desde o início uma aceitação das liberda des do mercado de uma sociedade capitalista. O padrão é bastante claro. Os liberais dos séculos XVII e XVIII, que não eram absolutamente democratas (a partir de, digamos, Loc ke a Burke), admitiam plenamente as relações capitalistas de merca do. O mesmo se pode dizer dos democratas-liberais de inícios do sé culo XIX, e veremos no Capítulo II até que ponto fsso se aplica aos casos de Bentham e James Mill. Depois, a partir de meados do século XIX a meados do século XX, como veremos no Capítulo III, os pen sadores democratas-liberais tentaram combinar a aceitação da socie dade capitalista de mercado com uma posição ética humanista. Isso ensejou um modelo de democracia consideravelmente diferente do de Bentham, mas ainda implicando aceitação da sociedade de mercado. Uma vez que o componente liberal da democracia liberal tem incluí do sempre aceitação das relações capitalistas e portanto de uma so ciedade dividida em classes, parece adequado que as teorias demo cráticas de antes do século XIX, todas as quais rejeitavam uma socie dade dividida em classes, devam ser colocadas fora da categoria de democráticas-liberais. Elas eram, por assim dizer modelos artesanais de democracia, e nessas condições são consideradas de modo mais* apropriado como precursoras da democracia liberal. Se isso for considerado uma divisão um tanto arbitrária, não in sistirei. O importante não é a classificação, mas o reconhecimento de quão profundamente os pressupostos do mercado sobre a natureza do homem e da sociedade penetraram a teoria da democracia liberal. . O leitor pode imaginar se as bases oferecidas para essa classifica ção não obrigariam o autor à proposição de que a democracia liberal deve sempre abranger a sociedade capitalista de mercado com sua di visão de classes. Se “liberar sempre significou isso, ou pelo menos sempre implicou isso, deve continuar sendo empregado apenas com esse significado? Não é pois incoerente prosseguir a análise, como o faço no Capítulo V, do futuro da teoria democrática que reduz ou abandona os pressupostos do mercado, e tratar do assunto como uma pesquisa sobre um possível modelo futuro da democracia libe rai? Acho que nenhuma dessas questões deve ter resposta afirmativa. Acho que a razão pela qual “ libe rar ’ significava aceitação da socie dade capitalista de mercado, durante o século formativo da democra cia liberal, não mais se aplica. O liberalismo sempre significou isen-
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ção do indivíduo das constrições obsoletas de instituições antigas. ¡Quando o liberalismo surgiu como democracia liberal isso se tornou
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1: Democracia Protetora
A RUPTURA NA TRADIÇÃO DEMOCRÁTICA
Seja o que se pense dos escritos de Tennyson sobre a liberdade expandindo-se paulatinamente, é claro que esse não é o modo pelo qual chegamos às atuais democracias liberais. É verdade que, nas atuais democracias liberais, o privilégio universal veio por estágios, inician do-se com um requisito restritivo de propriedade, movendo-se em ve locidades diferentes em países diferentes até o sufrágio masculino, e finalmente incluindo o voto feminino. Muito antes, porém, que tives se começado a expansão dessas garantias, as instituições e ideologia do individualismo liberal já estavam firmemente estabelecidas. As tí nicas exceções aparentes a essa regra não eram de fato exceções. Al guns países europeus, sobretudo a França, tinham já privilégios mascu linos antes que a sociedade liberal de mercado estivesse plenamente estabelecida lá. Mas uma vez que as assembléias eleitas por aquele voto não tinham o poder de fazer ou desfazer governos, a organiza ção não pode ser tida como democrática: o grau das franquias só é medida do governo democrático na medida em que o exercício do di reito pode fazer ou desfazer governos. Assim sendo podemos dizer que na época que o movimento por franquias plenamente democráti cas tenha ganho ímpeto em algum lugar, o conceito de democracia que aquele privilégio devia encarnar era muito diferente de qualquer das visões anteriores de democracia. Assim, verifica-se uma profunda ruptura no caminho que vai da democracia pré-liberal à democracia liberal. Nova arrancada ocor reu no século XIX, a partir de base muito diferente. Os conceitos an teriores de democracia, como vimos, rejeitavam a divisão em classes sociais, acreditando ou esperando que ela pudesse ser superada, ou mesmo admitindo que em alguns lugares - a Genebra de Rousseau ou os Estados Unidos de Jefferson - ela pudesse ser superada. A demo-
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cracia liberal, pelo contrário, aceitava a divisão de classes, e elabora- j j\a-se sobre ela. Os primeiros formuladores da democracia liberal vie^ ram a defendê-la mediante uma cadeia de raciocínios que partia do ( pressuposto de uma sociedade capitalista de mercado e as leis da eco nomia política clássica. Esses postulados deram-lhes um modelo do homem (como maximizador de utilidades) e um modelo de sociedade (como um conjunto de indivíduos com interesses conflitantes). A partir desses modelos, e um princípio ético, deduziram a necessidade de governo, as desejáveis funções do governo e daí o sistema desejá vel de escolher e autorizar governos. Para perceber o quão profunda mente seus modelos de homem e sociedades penetravam sua teoria ' geral, e daí aparecer em seu modelo de democracia liberal como a ; melhor forma de governo, será bom examinar mais detidamente do que comumente se faz as teorias dos primeiros expoentes.sistemáti cos da democracia liberal, a saber, Jeremias Bentham e James Mill. 1 Podemos começar com Bentham, que foi o sistematizador ori ginal da teoria que veio a ser conhecida como utilitarismo, e passar a James Mili que, como às vezes acontece, enunciou o utilitarismo mais claramente que Bentham, ou pelo fato de que suas reservas e ambiguidades eram diferentes das de Bentham. James Mill foi um discípulo completo de Bentham, e escritor muito mais disciplinado, de modo que expôs os argumentos de Bentham de maneira muito mais convincente que o próprio mestre. E na época que Bentham emitiu seu parecer sobre a melhor forma de governo, suas idéias cor riam em paralelo, e eles estavam em íntimo contato um com o outro. De modo que não estaremos sendo injustos tratando-os quase como uma unidade. Podemos dizer que com Bentham e James Mili a democracia li beral teve fraco ponto de partida. Não que eles fossem teóricos in competentes. Pelo contrário, Bentham tornou-se merecidamente fa1 Pode datar-se o modelo de James Mili precisamente de 1820, em seu célebre artigo sobre Governo. O de Bentham pode ser datado de 1820 (veja-se nota 22 deste capítulo) ou 1818, quando ele apresentou as vinte e seis Resoluções sobre a Reforma Parlamen tar , que admitiam direitos a “todas as pessoas que, sendo do sexo masculino, adultas, e lúcidas... tenham sido residentes, como chefes de família ou inquilinos, no distrito ou localidade em que sejam convocados a votar”. (Works, org. por Bowring, Edim burgo e Londres, Í843, x. 497). Outros, de fato, defenderam o sufrágio masculino igualitário um pouco antes, sobretudo John Cartwright, já em 1776, em seu Take Your Choice!, e Cobbet em seu Political Register. Mas não se pode dizer que qualquer deles tivesse apresentado um modelo plenamente lógico, e as bases teóricas que eles ofereciam eram nostálgicas: seu apelo era para os direitos naturais do inglês nascido livre; e não havia consciência da estrutura de classe modificada ou do significado da nova classe trabalhadora industrial.
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moso como pensador, e a doutrina mais influente do século XIX in glês decorre do seu nome: o benthamismo. E James Mill, embora não se conte entre os de primeira categoria, era um escritor claro e vigo roso. 1: a teoria geral do utilitarismo, da qual ambos deduziram a necessidade de uma franquia democrática, parecia tanto basicamente igualitária como inteiramente voltada aos negócios. De fato assim era, e nisso consistia a dificuldade. Acho que foi a combinação do princípio ético de igualdade com o modelo de mercado em concor rência que logicamente exigiu dos dois pensadores a conclusão em fa vor de uma franquia democrática, mas que fez sua doutrina tão plena de reservas e ambigüidades. A BASE UTILITARISTA
A teoria geral era bastante clara. O único critério defensável de bem social era a maior felicidade do maior número, tomando-sè feli cidade como sendo a quantidade de prazer individual menos sofri mento. No cálculo da felicidade líquida total da sociedade, cada in divíduo devia ser contado como um. Que poderia ser mais igualitário que isto como princípio ético fundamental? Mas a isso eram acrescentados certos postulados factuais. Todo indivíduo, por sua própria natureza, procura maximizar seu próprio prazer sem limite. E embora Bentham expusesse uma longa lista de tipos de prazer, inclusive muitos de natureza não material, ele deixa va claro que a posse de bens materiais era tão básicá para a obtenção de todas as demais satisfações que ela por si podia ser tomada como a medida de todas as demais. “Cada parcela de riqueza tem a sua correspondente parcela de felicidade” . 2 Ou então: “O dinheiro é o instrumento para medir a quantidade de desgosto ou prazer. Quem não estiver satisfeito com a precisão desse instrumento deve achar outro que seja mais rigoroso, ou então dizer adeus à política e à moral”. 3 Assim é que cada um procura maximizar sua própria riqueza in definidamente. Um dos modos de conseguir isso é adquirir poder sobre outros. “Entre a riqueza e o poder, a conexão é a mais estreita e íntima; tão íntima, de fato, que a separação de ambas, mesmo em imaginação é questão de não pequena dificuldade. Elas são, cada uma delas, respectivamente um instrumento de produção com rela
2 Principles o f the Civil Code, Parte I, cap. 6, em Bentham: The Theory o f Legislation, org. por C.K. Ogden, Londres, 1931, p. ¡03. (Preferi essa edição à versão contida nos Works de Bentham, organizados por Bowring, vol. I). Sobre a abstração da realidade necessária para afirmar essa proposição, ver adiante, nota 12. 3 W. Stark (org.): Jeremy Benthms Economic Writings, i, 117.
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ção uma à outra.” 4 E, em outro lugar, “os seres humanos são os mais poderosos instrumentos de produção, e portanto cada qual se torna ávido de empregar os serviços de seus semelhantes para multi plicar seus recursos. Daí a intensa e universal sede de poder; e daí também o respectivo odio pela sujeição.” 5 James Mili foi ainda mais incisivo. Em seu artigo de 1820 intitu lado Governo, escreveu ele: É base do governo que um ser humano deseje submeter a pessoa e a propriedade alheia para seus prazeres, não obstante o des gosto e perda de prazer que isso pode ocasionar a outro indiví duo. O desejo do objeto implica o desejo do poder necessário para conseguir o objeto. O desejo, portanto, daquele poder que é necessário para tornar as pessoas e propriedades de seres hu manos submissos aos nossos prazeres é uma importante lei que rege a natureza humana... O grande instrumento para conse guir o que um homem cobiça são as ações de outros homens. O poder... portanto, significa penhor para o acordo entre a vonta de de um homem e os atos de outros homens. Isto, presumimos, é uma afirmação indiscutível6. Com essa grande lei reguladora da natureza humana, a socieda de é um conjunto de indivíduos que incessantemente procuram poder sobre outros e em detrimento de outros. Percebeu-se a necessidade de uma estrutura legal, tanto civil como criminal para impedir que uma sociedade como essa se desintegre. Várias estruturas legais poderiam ser capazes de proporcionar a necessária ordem, mas, evidentemente, de acordo com o princípio ético utilitarista, o melhor conjunto de leis, a melhor distribuição dos direitos e deveres, era a que produzisse a maior felicidade do maior número de indivíduos. Esse fim mais ge ral das leis podia, segundo afirmava Bentham, ser dividido em qua tro fins subordinados: “garantir a subsistência; ensejar abundância; favorecer a igualdade; manter a segurança”. 7 OS FINS DA LEGISLAÇÃO SEGUNDO BENTHAM
São esclarecedores os argumentos de Bentham quanto a como atingir (ou não) esses fins. Em conjunto eles equivalem a um sistema de pro priedade privada sem limite e empresa capitalista, e tudo isso mani festamente deduzido de postulados factuais sobre a natureza humana e
4 Constitutional Code, Livro I, Cap. 9, em Works, org. por Bowring, ix. 48. 5 Stark (org.): iii, 430. 6 Seção IV (p. 17 da edição Barker, Cambridge, 1937). 7 Principles o f the Civil Code, Parte I, Cap. 2; Ogden (org.): op. cit., p. 96.
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uns poucos outros. Examinemos alternadamente esses argumentos sob cada rubrica. Em primeiro lugar, a subsistência. A lei nada precisa fazer para garantir que seja produzido o suficiente para a subsistência de todos. Que pode fazer a lei em favor da subsistência? Nada, diretamen te. Tudo o que ela pode fazer é criar motivos , isto é, castigos ou recompensas, por força dos quais os homens possam ser levados a prover subsistência para si mesmos. Mas a própria nafureza criou esses motivos, e deu aos homens a necessária energia. An tes que existisse a idéia de leis, as necessidades e as fruições fize ram quanto a isso tudo o que a melhor legislação poderia fazer. A necessidade, armada com sofrimentos de todos os tipos, inclu sive a própria morte, exigiu o trabalho, espicaçou a coragem, inspirou a previsão, desenvolveu todas as faculdades do homem. A fruição, companheira inseparável de toda necessidade satisfei ta, constituía um inesgotável fundo de recompensas para aque les que superassem obstáculos e satisfizessem o objetivo da natu reza. Sendo suficiente a força da sanção natural, o emprego de sanção política seria supérfluo.8 O que as leis podem fazer é “garantir a subsistência de modo indire to, protegendo os homens enquanto eles trabalham, e dando-lhes certeza dos frutos de seu trabalho. Segurança para o trabalhador, se gurança para os frutos do trabalho - eis o benefício das leis; e se trata de um benefício inestimável.” 9 Questão curiosa a esta altura é que Bentham, ao invocar o medo da morte pela fome como incentivo natural ao trabalho produtivo que proporcione subsistência para todos, equivocou-se ao pensar na sociedade primitiva (“antes que a idéia de leis existisse”) em que o medo da morte pela fome teria aquele efeito sobre todos, saltando para uma sociedade industrial avançada do século XIX, em que esse medo não se aplica sem que se faça uma reserva. Numa sociedade primitiva com nível tão baixo de técnica produtiva de modo que seja necessário o trabalho incessante de todos (e que é percebido por to dos como necessário) para evitar a morte generalizada pela fome, o medo da fome seria um incentivo suficiente para o trabalho produti vo que produzisse subsistência para todos. Porém, numa sociedade em que as técnicas produtivas sejam bastantes para produzir subsis tência para todos sem o tipo de trabalho incessante por parte de to dos, como a Inglaterra do tempo de Bentham, o medo da morte pela
8 Ibid., Farte I, Cap. 4; Ogden, p. 100. 9 Ibid.
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fome não consiste em si um incentivo suficiente. Em tal sociedade, o medo da morte pela fome só será incentivo a um trabalho incessante onde as instituições da propriedade privada criaram uma classe que não tem propriedade absolutamente alguma em terra ou capital ati vo, e nenhum direito de reivindicar amparo pela sociedade, e por conseguinte tendo que vender seu trabalho ou morrer à míngua. Um pensador tão arguto quanto Bentham dificilmente deixaria de perceber isso, caso não estivesse tomando por evidente a existên cia de tal classe como inevitável em qualquer sociedade economica mente avançada. E sabemos que de fato ele presumia isso: “No mais elevado estado de prosperidade social, a grande massa de cidadãos não terá absolutamente recurso a não ser a sua atividade diária; e em conseqüência estará sempre próxima à indigência.” 10Podemos desde já perceber os ensinos da economia política clássica a subverter o princípio igualitário. Salto semelhante ocorre no argumento sobre a “abundância”. No caso, ele dá a impressão de esquecer de pensar numa sociedade de produtores independentes para pensar em sua própria sociedade avançada, aplicando à última a generalização sobre incentivos apa rentemente deduzidos da primeira. Nenhuma legislação, afirma ele, é necessária para estimular indivíduos a produzir abundância de bens materiais. Bastam os incentivos naturais, pois o desejo de todos é in findável. Cada necessidade satisfeita produz uma nova necessidade. De modo que há um forte e permanente incentivo a produzir mais. Bentham não se dá conta de que esse incentivo, que pode bastante adequadamente ser postulado do empresário capitalista e talvez do produtor autônomo independente, não pode aplicar-se muito bem aos assalariados, que estão “sempre próximos à inligência”. Ele não percebe isso, porque ele criou seu modelo do homem à imagem do empresário ou do produtor independente. Isso aconteceu porque ele não tinha absolutamente qualquer senso histórico. Só quando passamos aos seus argumentos sob a rubrica de igualdade e segurança é que podemos perceber plenamente que acei tação do capitalismo prejudicava o princípio ético igualitário. Os ar gumentos em favor da “igualdade”, isto é, para que todos tivessem igual quantidade de riqueza ou renda, é exposto com clareza. Repou sam no que veio a ser conhecido como lei da utilidade decrescente, a qual estabelece que aumentos sucessivos de riqueza (ou de quaisquer bens materiais) acarreta sucessivamenté menos satisfação a seu pos suidor, ou, que uma pessoa com dez ou cem vezes mais que outra tem
10 I b i d . , Parte I, Cap. 14; Ogden, p. 127.
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proporcionalmente dez ou cem vezes menos prazei . U&do que todos os indivíduos tenham a mesma capacidade para o prazer, e que “ca da parcela de riqueza tenha uma correspondente parcela de felicida de”, segue-se que “quem tenha o máximo de riqueza terá o máximo de felicidade”, mas também que “o excesso de felicidade do mais rico não será tão grande quanto o excesso em sua riqueza” 11. Segue-se disso que a felicidade conjunta será maior tanto mais a distribuição da riqueza se aproxime da igualdade: a felicidade máxima conjunta exige que todos os indivíduos tenham riqueza igual. A razão para igualdade exige, como observamos, a hipótese de capacidades iguais para o prazer. Porque se admitíssemos que alguns têm maior capacidade para o prazer, isto é, maior sensibilidade ou maior discernimento do prazer, poder-se-ia argumentar que a felici dade do conjunto seria maximizada pelo fato dessas pessoas terem mais riquezas do que outras. Bentham não foi muito coerente quanto a isso. Ele prefaciou o argumento dos “ganhos decrescentes” em favor da igualdade deixando de lado “a sensibilidade peculiar de certos in divíduos, e... as circunstâncias externas em que eles podem estar si tuados” . Essas cais as devem ser postas de lado, dizia ele, pois “nunca são as mesmas para dois indivíduos”, de modo que, sem deixar essas diferenças de lado, “será impossível enunciar qualquer proposição geral” 12Contudo, em outra parte observava ele que, além de diferen ças peculiares individuais, havia diferenças entre categorias inteiras de indivíduos. Entre os sexos havia uma diferença de sensibilidade: “No que respeita à quantidade, a sensibilidade do sexo feminino pa rece em geral maior que a do sexo masculino.” 13 E, de importância mais imediata, num argumento que depende de uma relação entre prazer e riqueza, Bentham via uma diferença de sensibilidade entre pessoas de “diferente posição ou categoria na vida”: “Coeteris pari bus, o quantum de sensibilidade parece ser maior nas categorias mais elevadas de homens do que nas mais baixas.” 14Se Bentham houvesse reconhecido esse diferencial quando de sua argumentação pela igual dade da riqueza, o argumento teria sido destroçado: ele estaria en dossando a posição de Edmund Burke. Talvez estivesse. Talvez ele não visse a necessidade de mencionar aquele diferencial quando ar gumentando em favor da igualdade porque já houvesse concluído
11 Ihid., Parte 1, Cap. 6, Ogden, p. 103. 12 ¡hid. 13 Introduction to t h e Principles of Morals and Legislation, Cap. 6, em Collected Works, Londres, 1970, p. 64. 14 ¡hid., p. 63.
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que as razões para a igualdade estavam inteiramente subordinadas às í' ái m par» à ‘ segurança:
Seja como for, tendo dito isso sob a rubrica de “igualdade*’, Bentham passou à “segurança”, isto é, segurança de propriedade e expectativa de vantagem do emprego do trabalho e propriedade de cada um. A civilização é impossível, diz Bentham, sem a segurança da propriedade dos frutos do próprio trabalho. Ninguém faria um plano de vida ou empreendería qualquer tarefa cujo produto não pu desse ¡mediatamente tomar e utilizar. Nem mesmo o simples cultivo da terra seria empreendido se alguém não estivesse seguro de que a colheita seria sua. As leis, portanto, devem garantir a propriedade in dividual. E dado que os homens diferem entre si em capacidade e energia, alguns obterão mais propriedade que outros. Qualquer pre tensão da lei de reduzi-las à igualdade destruiría o incentivo à produ tividade. Daí, na alternativa entre igualdade e segurança, a lei não pode ter hesitação absolutamente alguma: “A igualdade deve ce der.” 15 O argumento é persuasivo, embora inválido. De fato, se aceitar mos as premissas de Bentham de que todo indivíduo por sua própria natureza procura maximizar seu prazer, e daí seus bens materiais; sem limite, e em detrimento de outros, segue-se de fato que a segu rança para os frutos do próprio trabalho é necessária para converter a procura de ganho em incentivo a produzir. Mas não se segue, como argumentava Bentham, que nenhuma sociedade acima do nível da selvageria seja possível sem tal segurança, a mbnos que a garantia para os frutos do trabalho se estenda para incluir a garantia da sub sistência desfrutada pelos escravos nas altas civilizações antigas. O trabalho obrigado, seja sob forma de escravidão ou qualquer outra modalidade, é muito apto a manter alto nível de civilização; e de acordo com a própria premissa de Bentham de que cada um procura o poder sobre outros devido a que “os seres humanos são os mais po derosos instrumentos de produção”, dificilmente ele poderia excluir isso como não natural. De fato, como veremos logo a seguir, em vez de excluir isso, ele o endossa. Todavia, se ele se contentasse em limitar sua argumentação em favor da segurança da propriedade ao argumento em favor da garan tia dos frutos do trabalho de cada um, teria deixado uma sólida argu mentação. Mas não se contentou com isso. Fez outras extrapolações inconscientes. Prosseguiu ele com uma proposição bem diferente: deve ser garantida aquela segurança de qualquer espécie de proprie-
15 P r i n c i p l e s o f t h e
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Code, Parte I, Cap. II; Ogden, p. 120.
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dade existente, inclusive aquela que talvez não seja dos frutos do tra balho de cada um. Consultando o grande princípio da segurança, que deve o legis lador decretar com respeito à massa de propriedade já existente? Ele deve manter a distribuição tal como se acha na realida de estabelecida. ... Nada há de mais diverso que o estado da pro priedade na América, na Inglaterra, na Hungria e na Rússia. De um modo geral, no primeiro desses países, o lavrador é proprie tário; no segundo, arrendatário; no terceiro, prese à gleba; no quarto, um escravo. Contudo, o supremo princípio da seguran ça exige a preservação de todas essas distribuições, embora sua natureza seja tão diferente, e embora elas não ensejem a mesma soma de felicidade. 16 O argumento de Bentham em apoio disso, ainda uma vez, demonstra sua falta de senso histórico. Sua alegação é que transformar qualquer sistema de propriedade existente é tornar impossível qualquer outro sistema de propriedade. Não é preciso um profundo conhecimento de história para perceber que não é assim. Por eAemplo, a destruição do sistema feudal de propriedade levou ao estabelecimento de um igualmente firme sistema capitalista de propriedade; e o mesmo se podería dizer de muitas outras transformações anteriores dos siste mas existentes. Se fosse verdadeiro o postulado não histórico de Bentham, ele estaria logicamente em condições de concluir que todo sistema esta belecido deve ser mantido, mesmo no caso em que não “produza a mesma soma de felicidade”; porque a transformação de qualquer sis tema seria então pior, segundo o critério da maior felicidade, do que qualquer vantagem possível obtida de outro sistema. Mas o postula do não é válido. Assim sendo, sua “demonstração” de que a seguran ça tem prioridade absoluta sobre a igualdade também não é válida. Poder-se-ia pensar que Bentham podia ter estabelecido sua ar gumentação em favor da segurança de qualquer sistema estabelecido de propriedade, inclusive aqueles que mantinham uma distribuição extremamente desigual de riqueza, sem apelar para seu postulado não historio mas simplesmente invocando outro princípio que ele enunciou no capítulo sobre a igualdade. O princípio é que os homens parecem ser mais sensíveis à dor que ao prazer, mes mo quando a causa é igual. De fato, a tal grau isso vai que uma perda que diminua a fortuna de um homem em um quarto afas-
16 I h i d . . Parte I. Cap. 11; Ogden, p. 119.
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tará mais felicidade do que a obtida caso ele duplicasse sua pro priedade. 17 Mas Bentham percebia que isso por si só não justificava a manuten ção de grande desigualdade. Tudo o que ele concluía disso era que, entre duas pessoas de igual riqueza, uma redistribuição significaria nítida perda de felicidade. Ele podia ter mostrado ainda que, entre duas pessoas, uma das quais começasse com quatro vezes a riqueza da outra, uma redistribuição de unt quarto da riqueza de A com B, que dobrasse a riqueza de B, ainda significaria certa nítica perda de felicidade. Mas se A começasse com, digamos, doze vezes a riqueza de B, uma redistribuição de um quarto da riqueza de A quadruplica ria a riqueza de B, o que presumivelmente significaria um nítido ganho em felicidade. Bentham reconhecia isso. Seu modo de exprimi-lo consistiu em afirmar que no caso “o mal causado por um atentado contra a segurança será compensado em parte pelo bem que será grande em proporção com o progresso no sentido da igualdade’'. 18 Assim é que ele precisou de um argumento independente para expor as razões em favor da prioridade absoluta da segurança sobre a igualdade. E o argumento independente foi, como vimos, baseado no postulado histórico que não convence. Fica então claro, a partir de todo o tratamento de Bentham dos quatro fins subordinados da legislação, e de seus postulados factuais precedentes, o quanto sua teoria geral estava profundamente pene trada de pressupostos burgueses. Em primeiro lugar, temos os postu lados gerais: que toda pessoa sempre age para garantir seu próprio interesse, para maximizar seu próprio prazer ou utilidade, sem limite; e que isso entra em antagonismo com os interesses de todos os de mais. Daí a procura do prazer máximo reduzir-se à procura de um máximo de bens materiais e poder sobre outros, ou ambas as coisas alternadamente. Daí também os postulados tirados de sua sociedade capitalista serem apresentados como válidos universalmente: que a grande massa de homens jamais se elevará acima do mero nível de subsistência; que para eles o medo de morte pela fome mais do que a esperança de ganho seja o incentivo atuante ao trabalho; que, para os mais afortunados, a esperança de ganho seja incentivo suficiente para a produtividade máxima; que, a fim de que essa esperança atue como incentivo, deva haver absoluta garantia de propriedade. E fi nalmente, temos a garantia da propriedade elevada a ‘'supremo princípio”, superando de modo absoluto o princípio da igualdade.
17 ¡bid.. Parte I, Cap. 6; Ogden, p. 108. 18 Ibid.
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A razão decisiva pela qual Bentham não via contradição alguma no caso, a razão subjacente ao seu postulado não histórico é, acho eu, que ele estava de fato interessado apenas na argumentação da so ciedade de mercado capitalista. Naquela sociedade, de fato, pelo me nos de acordo com sua versão da economia política clássica, parecia não haver essa contradição: a garantia de apropriação individual ili mitada era a própria coisa que, jutamente com o desejo ilimitado, in duziría à máxima produtividade de todo o sistema. Mas dizer que a garantia da propriedade, na medida em que perpetuando a desigual dade, maximiza a produtividade, não equivale a dizer que ela maxi miza o prazer ou a utilidade gerais. Bentham de novo extrapolou sua base, agora da utilidade de todos para a riqueza geral. Trata-se, po rém, de coisas diferentes. A extrapolação é ilegítima porque, dado o ; seu próprio princípio da utilidade decrescente, uma riqueza nacional menor, igualmente distribuída, poderia ensejar uma utilidade geral maior do que uma riqueza nacional maior mas desigualmente distri buída. Mas Bentham estava tão impregnado do ethos do capitalismo, que é para a maximização da riqueza e a percebe como equivalente da maximização da utilidade, que não percebeu a diferença entre am bas. A EXIGÊNCIA POÍTTICA
Para esse tipo de sociedade, que tipo de Estado se tornava necessá rio? O problema político consistia em vislumbrar um sistema de esco lher e autorizar governos, isto é, conjuntos de legisladores e de execu tivos, que fizessem e impusessem o tipo de leis necessitados por essa sociedade. Tratava-se de um duplo problema: o sistema político de via produzir governos que tanto estabelecessem e fomentassem uma sociedade de mercado livre e quanto protegessem os cidadãos contra governos rapaces (dado que, pelo princípio geral que governa a natu reza humana, todo governo deveria ser voraz, a menos que fosse de seu próprio interesse não o ser, ou impossível para ele que o fosse). A questão crucial na solução desse duplo problema vinha a ser o grau das franquias, juntamente com certos dispositivos tais como o voto secreto, eleições periódicas e freqüentes, e liberdade de impren sa, o que tornaria livre o voto e expressão eficaz dos desejos do vo tante. O grau e autenticidade das franquias tornava-se a questão cen tral, dado que, na Inglaterra de inícios do século XIX, os teóricos es tavam em condições de tomar por evidente e sem mais discussão o restante do arcabouço do governo representativo: os dispositivos constitucionais pelos quais as legislaturas e executivos eram periodi camente escolhidos, e portanto periodicamente substituíveis, pelos votantes em eleições gerais, e pelos quais o serviço público (e militar) estavam subordinados a um governo desse modo responsável para
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com o eleitorado. Assim é que o modelo do qual partiam os pensadores do século XIX era um sistema de governo representativo e responsável desse tipo. A questão que lhes incumbia resolver era sobre que dispositivos quanto ao grau e autenticidade das franquias produziriam tanto governos que fomentassem uma sociedade de mercado livre como também protegesse os cidadãos contra o governo. Se apenas a primeira dessas exigências tivesse sido vista como problema, algo muito longe de uma franquia democrática teria sido suficiente. De fato, pouco mais que isso satisfez a Bentham por duas décadas depois que ele começou a pensar sobre sistemas políticos. Numa obra escrita entre 1791 e 1802 ele era a favor de uma franquia limitada, excluindo os trabalhadores, os não instruídos, os depen dentes e as mulheres. 19Em 1809 ele defendia uma franquia para che fes de família que tivessem casa própria, limitada aos que pagassem im posto direto sobre propriedade.20 Em 1817 ele falava de uma fran quia “virtualmente universal”, excluindo apenas os de menor idade e os analfabetos, e possivelmente as mulheres (para dar uma decisiva opinião sobre o que “seria inteiramente prematuro neste lugar”); mas naquela mesma obra ele declarava que embora se tivesse con vencido da segurança do princípio do sufrágio universal, estava tam bém convencido “das razões e consistência com as quais, para o bem da união e concórdia, muitas exclusões deviam ser feitas, pelo menos por certo tempo e para fins de uma experiência tranqüila e paulati na”. 21 Em 1820 ele era a favor da franquia para adultos do sexo mas culino; mas mesmo nessa ocasião declarava que com prazer apoiaria a franquia mais limitada para o chefe de família, exceto que não po dia ver como isso satisfaria os excluídos, que “talvez constituam uma maioria de adultos do sexo masculino” . 22 Assim é que Bentham não se mostrava entusiasmado quanto a uma franquia democrática: foi levado a ela, em parte por sua avaliação do que o povo na época exi giría, e em parte pelas agudas exigências da lógica tão logo dedicou seu espírito às questões constitucionais. “Todo conjunto de homens [ inclusive qualquer grupo que te nha o poder de legislar e governar] é governado inteiramente por sua concepção do que é o seu interesse, no sentido mais estrito e mais egoísta da palavra interesse: nunca por qualquer consideração do in teresse alheio.” 23O único meio de evitar que o governo espolie o res19 Principles o f Legislation, Cap. 13, Seção 9; em Ogden (org.): The Theory of Legisla tion. p.81. 20 Plan of Parliamentary Reform, 1818, pp. 40 e 127. 21 Ibid., pp. 35-7 e 41. 22 Radicalism Not Dangerous, em Works, org. por Bowring, iii, 599. 23 Constitucional Code, em Works, org. por Bowring, ix, 102.
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tante do povo é tornar os governadores freqüentemente removíveis pela maioria de todo o povo. Os poderes dò governo nas mãos de qualquer segmento do povo que não seja escolhido e substituível pe los votos do maior número “seriam necessariamente orientados para um aumento máximo possível de sua própria felicidade, à custa do que quer que viesse a ser a felicidade dos demais. E na proporção que sua felicidade aumentasse, diminuida a felicidade geral de todos os governados” . 24 A felicidade é um jogo de soma zero: quanto mais os governantes têm, menos têm os governados. As razões em favor de um sistema democrático são de natureza puramente protetora: “com a única exceção de uma democracia efi cazmente organizada, os poucos que mandem e sejam influentes são inimigos dos muitos que lhes estão sujeitos:... e pela própria natureza do homem... inimigos perpétuos e imutáveis” . 25 Uma democracia, pois, tem por seu objeto e efeito característi cos, o garantir seus membros contra a opressão e a depredação nas mãos daqueles funcionários que ela emprega para sua defe sa... Qualquer outra espécie de governo tem necessariamente, por objeto e efeito característicos e primordiais, o manter o povo ou não funcionários num estado inteiramente indefeso, contra os funcionários que os governam; os que forem, quanto a seu poder e emprego de que disponham e capacitados a fazer de le, os adversários naturais do povo, têm por seu objeto o dar fa cilidade, garantia, grau ilimitado e impunidade, à depredação e opressão exercidos sobre os governados por seus governantes.26 Mas conquanto a dedução lógica a partir da natureza dos seres hu manos desse irrefutável argumentação para uma constituição demo crática, Bentham estava pronto a conciliar sempre que oportuno. Sua decisão final quanto ao voto feminino é claro exemplo disso. A lógica para a franquia universal exigia que as mulheres, em igualdade de condições com os homens, devessem votar. Na verdade, Bentham argumentava que, para compensar suas desvantagens naturais, as mulheres deviam ter mais votos que os homens. Contudo, sustentava ele que há agora tão generalizada pressuposição contra o sufrágio fe minino que ele não o recomendaria: “a luta e confusão produzida pela proposta dessa melhoria absorveríam inteiramente o espírito público, e lançaria a melhoria, em todos os outros aspectos, à distân cia” . 27 24 Ibidem, p. 25 Ibidem, p. 26 Ibidem, p. 27 Ibidem, p.
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Temos assim toda a posição de Bentham quanto às franquias democráticas. Ele ficaria feliz com uma franquia limitada mas dese^java conceder franquia. Em princípio chegou a argumentar em favor da franquia universal, mas sustentava que a época não estava madu ra para isso: defender o voto das mulheres agora seria pôr em risco as possibilidades de qualquer reforma parlamentar. E devemos notar que ele só se passou ao princípio da franquia democrática quando se convenceu de que os pobres não utilizariam seus votos para nivelar ou destruir a propriedade. Os pobres, argumentava ele, têm niais a ganhar com a manutenção da instituição da propriedade do que destruindo-a, e como prova ele mencionava o fato de que nos Estados Unidos, os “sem propriedade suficiente para sua manutenção” tive ram, por mais de cinquenta anos, “a propriedade da riqueza dentro do escopo de seu poder legal” e jamais infrigiram a propriedade.28 A GANGORRA DE JAMES MILL
Foi James Mili que, em 1820, apresentou a mais sólida argumenta ção em prol da franquia universal, e mesmo assim era tão reservada e vasada em termos tão hipotéticos que pode ser lida, e não raro tem sido interpretada, como argumentação para muito menos que fran quia universal. 29 Mas não obstante ele disfarce suas conclusões, seus argumentos levam irresistivelmente à franquia universal. O principal argumento é mais arrojado que o de Bentham, mas semelhante em essência. Ele começa com a afirmação do que é certamente o postula do mais extremo jamais feito sobre o auto-interesse, antes dele ou des de ele - a grande lei qhe governa a natureza humana já examinada por nós. Disso se seguia que quem não tivesse poder político algum seria oprimido por aqueles que o tivessem. O voto era um poder polí tico, ou pelo menos a falta de voto era uma falta de poder político. Portanto, todos precisavam de voto, para autoproteção. Nada, a não ser “uma pessoa, um voto”, podia em princípio proteger todos os ci dadãos contra o governo. Mas não se pode afirmar que James Mill fosse um entusiasta da democracia, tanto quanto o fora Bentham. Pois no mesmo artigo sobre Governo em que defendeu a franquia universal, James Mill va leu-se de considerável habilidade ao indagar se qualquer franquia
28 Ibidem, p. 143 29 As várias interpretações são analisadas por Joseph Hamburger: “James Mill on Universal Sufrage and the Midle Class”, Journal of Politics (1962), vol. 24, pp. 167-90; e em Hamburger: Intellectuals in Politics, John Stuart Mill and the Philosophic Radi cals, New Haven e Londres, 1965, pp. 48-53.
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mais estreita poderia dar a mesma segurança para o interesse de cada cidadão como o daria a franquia universal, e argumentava que seria prudente excluir todas as mulheres, todos os homens menores de 40 anos, e os mais pobres, que constituíam um terço dos homens de mais de 40. O argumento é quase inacreditavelmente duro. Seu princípio ge ral era de que “todos os indivíduos cujos interesses estão indiscutivel mente incluídos nos dos demais indivíduos podem ser excluídos sem inconveniência”. 30 Isso parecia bastante correto, mas suas aplicações do principio eram bruscas e insolentes. Em primeiro lugar, sustenta va Mill, isso dizia respeito às mulheres, pois ”o interesse de quase to das implicava ou o de seus pais ou o de seus maridos” . 31 Permitia a exclusão de todos os do sexo masculino abaixo de certa idade, sobre a qual “considerável latitude pode ser tomada sem inconveniência. Admitamos que fosse prescrita a idade de quarenta anos... dificil mente quaisquer leis poderíam ser feitas em benefício de todos os ho mens de quarenta anos que não fossem vantajosas para todo o resto da comunidade”. E a grande maioria dos idosos tem filhos, cujo inte resse consideram como parte do seu próprio interesse. É uma lei da natureza humana. Não há, pois, grande perigo em que, numa organi zação como essa, o interesse dos jovens seja grandemente prejudica do em benefício dos mais velhos” 32 (Mill tinha 47 anos em 1820). Quando passa à questão da propriedade permitida ou qualifica ção pela renda, Mill nem mesmo tenta aplicar seu princípio do inte resse incluído. A questão que ele levantava era quanto uma região in termediária entre uma qualificação tão baixa a ponto de ser inútil e uma tão alta de modo a constituir uma aristocracia da riqueza. Ha verá um intermediário “que afaste o direito de sufrágio das pessoas de pequena ou nenhuma propriedade, e no entanto constituam um corpo eletivo, cujo interesse seja idêntico ao da comunidade?”. 33 Não obstante isso seja levantado como uma questão de identidade de interesses, a resposta é em termos de cálculo de interesses antagôni cos. A resposta de Mill é que a qualificação pela propriedade sufi cientemente alta para excluir até um terço do povo (presumivelmente um terço dos de sexo masculino acima de 40 anos) seria segura, por que cada um entre os mais altamente qualificados dos demais dois terços que tivessem voto, e que teria evidentemente interesse em opri mir o um terço excluído, “teriam apenas metade da vantagem de
30 An Essay on Government, 31 Ibidem, p. 45 32 Ibidem, pp. 46-7. 33 Ibidem, p. 49.
org.
por É. Barker, Cambridge, 1937, p. 45.
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oprimir um único homem. Nesse caso, as vantagens do bom gover no, aumentando para todos, devia ser de contrabalançar para os di versos membros desse corpo eletivo as vantagens do mau governo peculiar a eles mesmos. O bom governo teria, pois, uma tolerável se gurança”. 34 Por isso mesmo, uma qualificação pela propriedade que excluísse mais de metade do povo era indesejável, pois significaria que cada votante “teria uma vantagem igual àquela decorrente da opressão de mais de um homem” . 35 Essa vantagem seria irresistível, de modo que o mau governo seria garantido. tJ Não podemos deixar de indagar por que James Mill, após argu mentar tão vigorosa e positivamente em favor do sufrágio úniversal, teria suscitado a questão das exclusões, arrolando exclusões a um grau tão considerável como o fez: da população adulta, cerca de um doze avos estavam excluídos (metade por sexo; pelo menos metade do restante por idade; do quarto restante, um terço por pobreza). O mínimo que se pode dizer é que isso fundamenta a opinião de que Mill não era um democrata convicto. Por que fazia essas exclusões, e sobretudo por que admitia a qualificação por propriedade? E por que, tendo feito isso, concluía seu argumento voltando à sua argu mentação pela franquia universal, e afirmava que não seria perigoso devido a que a vasta maioria da classe inferior seria sempre guiada pela classe média? O fato de Mill admitir essas exclusões pode dever-se a que ele, como Bentham, estivesse interessado primordialmente na reforma eleitoral que prejudicaria o sinistro interesse dominante da pequena classe proprietária de terra e endinheirada que tinha pleno controle antes da Lei da Reforma de 1832. Quanto a isso ele era muito mais ativista que Bentham: ele tentava, com algum êxito, assustar a oligar quia para que concedesse a Reforma de 1832, anunciando a probabi lidade de uma revolução popular se a reforma não fosse concedida, embora seja duvidoso que ele acreditasse na probabilidade dessa ação revolucionária. 36 Mas ele estava muito cônscio da importância de obter apoio da classe trabalhadora e da classe média para aquela reforma: estava persuadido da importância da opinião pública, in clusive da opinião de ambas aquelas classes. Ao instar pela reforma, portanto, devia evitar uma ofensa a ambas. Ora, Mill não estaria ofendendo ambas as classes permitindo a exclusão das mulheres: como Bentham pelo menos acreditava, talvez
34 Ibidem, p. 50. 35 Ibidem, p. 50. 36 Cf. Joseph Hamburger: James Mill and the Arts o f Revolution, New Haven, 1963, sobretudo cap. 3.
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muito corretamente, a opinião pública longe estava de admitir as mulheres na franquia. A noção de excluir todos os homens abaixo de 40 anos de idade era tão palpavelmente absurda que a ninguém ofen dería. Poder-se-ia alegar que uma exclusão como essa reduziria o nú mero dos votantes das classes trabalhadoras em proporção maior que a dos abastados, em vista da proporção menor dos pobres que atingem a idade dos 40, mas essa questão parece não ter sido considerada na crítica de Mill: Macaulay, um dos seus críticos mais exausti vos, chamou a atenção para as fracas razões de Mill para a exclusão das mulheres, 37 mas não faz referêocia às razões para excluir os de menos de 40 anos: é de presumir que ele não achasse a questão digna de nota. A única decisão difícil para Mill era quanto ao que declarar sobre a qualificação por propriedade. Defender o pleno sufrágio masculino acima de 40 anos, incluindo os sem propriedade, abalaria muitíssimo a opinião da classe média; defender a qualificação pela propriedade que excluísse considerável parte da classe trabalhadora seria perder seu apoio. Assim é que Mili se viu numa situação bastan te estranha, semelhante à que ele atribuía ao porta-voz do que ele chamava partido da oposição da classe governamental, e tomou a mesma saída. Num artigo publicado no primeiro número da radical West minster Review (janeiro de 1824), sobre “Literatura Periódica” , Mill lançou um ataque avassalador contra a Edinburgh Review, que ele di zia falar em nome da ala antiministerial da classe governante. O dile ma do partido, dizia ele, era que, a fim de desacreditar o Ministério para nele entrarem, eles precisavam de recrutar a opinião da classe não governante, dado que essa opinião operava sobre a classe domi nante “em parte por contágio, em parte por convicção, e em parte por intimidação”; contudo, não podiam tomar uma posição contra os privilégios vigentes da classe governante, cujo apoio lhes era ne cessário ao máximo possível para introduzir-se nela e da qual eles eram naturalmente parte integrante. “Em seus discursos e escritos, portanto, em geral vêmo-los brincando de gangorra ." Ora eles reco mendam os interesses da classe governante, ora os interesses do po vo. “Tendo escrito umas poucas páginas a favor de um lado, devem escrever outras tantas em favor do outro. Pouco importa o quanto os princípios realmente variem entre si, desde que a inconsistência não
37 Macaulay: “Mill’s Essay on Government”, Edimburgh Review, março de 1829, reim presso em The Miscellaneous Writings and Speeches of Lord Macaulay, Londres, Longmans, Green, 1889 (Edição Popular), p. 174.
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
seja muito visível, ou talvez não claramente vista pelo partido a que se desejasse iludir.” 38 A gangorra de Mill no artigo intitulado Governo é muito seme lhante: a discordância entre os seus dois conjuntos de princípios, um reivindicando franquia universal, e o outro permitindo consideráveis exclusões, mantém-se “não muito visível” por sua recomendação de uma franquia restrita apenas hipoteticamente. Mais tarde ele negou que estivesse defendendo a exclusão das mulheres, e muito menos a dos homens de menos de 40 anos; seu filho informa ter ele dito que apenas indagava quanto ao limite ótimo permissível de restrição, ad mitindo que a franquia devesse ser restringida;39 mas a redação do artigo sugere não que ele considerasse as restrições como infelizmen te necessárias concessões ao realismo político, mas antes que ele as considerava proveitosas no sentido de que os eleitores fizessem uma boa escolha.40 A gangorra no artigo sobre Governo fica completa com a garan tia de Mili a seus leitores, bem no final do artigo, de que não se devia prever qualquer risco da inclusão nas franquias da classe inferior, porque a grande maioria daquela classe seria sempre orientada pela classe média. Mill julgou prudente essa tranqüilização dos leitores de classe média, visto que mesmo a exclusão de um terço dos mais pobres, adultos e do sexo masculino, poderia ser calculada para dei xar a classe trabalhadora em maioria. Dez anos depois do artigo Governo, e seis anos após sua análise da gangorra, ele se sentiu em condições de tornar um pouco mais cla ra a sua posição. Em artigo destinado a defender o voto secreto, es creveu ele: “Nossa opinião, portanto, é que a questão do governo é adequadamente assunto dos ricos, e que eles sempre o obterão, ou por meios condenáveis ou bons. Tudo depende disso. Se o obtiverem por meios condenáveis, o governo será mau. Se o obtiverem por meios bons, certamente o governo será bom. O único meio bom de obter o governo é pelo livre sufrágio do povo”. 41 Isso apreende de modo excelente o melhor espírito do Modelo 1, o ponto alto do seu otimismo: a franquia democrática não apenas protegeria os cida-
,38 Westminster Review, i, 218. 39 J.S. Mill: Autobiography, org. por Laski, Oxford World’s Classics, 1924, pp. 87-88. 40 Por exemplo, sua declaração de que “uma pequeníssima qualificação [ quanto à propriedade] de nada vale, visto que não garante absolutamente uma boa escolha além daquela que existiria se não se exigisse qualquer qualificação pecuniária’’ (Bar ker, org., p. 49). 41 “On The Ballot” (“ Sobre o Voto” ), Westminster Review , julho de 1830.
MODELO 1: DEMO CRAC IA PROTETORA
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daos, mas inclusive melhoraria o desempenho dos ricos como gover nantes. Difícilmente poderia ser considerado um espírito de igualda de. A DEMOCRACIA PROTETORA PARA O HOMEM DO MERCADO
Essa foi a gênese do primeiro modelo moderno de democracia. Nem é inspirador nem inspirado. Os dispositivos de franquia democrática só tardiamente foram incluídos no modelo. É difícil dizer o queleve maior efeito em animar os fundadores desse modelo a transformar sua franquia democrática em princípio: se o terem compreendido que nada menos que “cada homem um voto” apaziguaria uma classe tra balhadora que mostrava indícios de tornar-se seriamente articulada politicamente (como sugerido pela observação de Bentham em 1820 segundo a qual supunha ele que a classe trabalhadora não se conten taria com menos), ou se era a límpida lógica de sua própria argumen tação em favor da reforma, que repousava de fato na hipótese de in divíduos maximizando auto-interesses antagônicos. Seja como for, é claro que eles se permitiam uma conclusão democrática apenas por que se persuadiram de que uma vasta maioria d^ classe trabalhadora certamente seguiría o conselho e exemplo “daquela categoria inteli gente e virtuosa”, a classe média. Naquela observação é que Jaméis Mill encerrou sua argumentação um tanto ambígua em favor de uma franquia democrática. Nesse modelo básico de democracia para uma sociedade indus trial moderna, pois, não há entusiasmo algum pela democracia, ne nhuma noção de que ela podia ser uma força transformadora do ponto de vista moral; ela nada mais é que uma exigência lógica para o governo de indivíduos inerentemente conflitando nos próprios in teresses e que por hipótese são infinitamente cobiçosos de seus pró prios interesses privados. A defesa dessa democracia repousa no pressuposto de que o homem é um consumidor ao infinito, que sua motivação preponderante é a maximização de suas satisfações ou uti lidades, obtendo-as da sociedade para si mesmo, e que uma socieda de nacional nada mais é que um conjunto desses indivíduos. Um go-| verno responsável, inclusive com grau de responsabilidade para com um eleitorado democrático, era necessário para a proteção dos in divíduos e fomento do Produto Nacional Bruto, e nada mais. Desenhamos um retrato áspero, mas justo, segundo penso, do modelo básico da democracia ocidental moderna. Ele nada tem em comum com qualquer outro anterior, ou com qualquer das visões de uma sociedade democrática da era pré-industrial. As visões anterio res exigiam um novo tipo de homem. O modelo básico da democra cia liberal tomava o homem como ele era, o homem tal como o havia modelado a sociedade de mercado, e admitia que ele fosse inalterá-
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A DEMOCRACIA
LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
vel. Foi sobretudo quanto a essa questão que John Stuart Mill e seus seguidores humanistas liberais do século XX atacaram o modelo benthamista. Mas, como veremos no capítulo seguinte, não estive ram em condições de desfazer-se inteiramente dele. Porque aquele modelo ajustava-se, notavelmente bem, à sociedade capitalista de mercado em concorrência e aos indivíduos modelados por ela. E aquela sociedade e aqueles indivíduos estavam ainda bem entrinchei rados, não obstante a repulsa humanista contra eles, em fins do sé culo XIX e no século XX. À reação humanista contra aquela socie dade e aqueles homens permitiu que fosse vislumbrado o Modelo 2, primeiramente por John Stuart Mill; mas a sólida posição da socie dade de mercado e o homem de mercado abalaram a solidez do Mo delo 2 desde o início.
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Modelo 2: Democracia Desenvolvimentista
O SURGIMENTO DO MODELO 2
Já vimos que nem Bentham nem James Mill tiveram vislumbre ne nhum de um novo tipo de sociedade ou novo tipo de homem. Não precisavam de uma visão como essa, de vez que não questionaram o fato de que seu modelo de sociedade - a sociedade de mercado em ár dua concorrência com toda a sua divisão em classes - era justificado por seu alto nível de, produtividade material, e que a desigualdade era inevitável. De qualquer modo, era lei da natureza humana que todo indivíduo estaria sempre empenhado em explorar todos os demais, de modo que nada se podia fazer quanto à sociedade. Tudo que se poderia fazer era impedir que os governos oprimissem os governa dos, e para isso bastava uma franquia democrática protetora auto mática. Em meados do sécalo XIX, duas mudanças naquela sociedade impunham-se a atenção dos pensadores liberais, mudanças que exii giam um modelo muito diferente de democracia. Uma dessas mu) danças era que a classe trabalhadora (que Bentham e James Mill não I consideraram perigosa) começava a parecer perigosa à propriedade. A outra é que as condições da classe trabalhadora se tornavam tão ostensivamente desumanas que os liberais mais sensíveis nem a po diam aceitar como moralmente defensável ou economicamente inevi tável. Ambas essas mudanças suscitavam novas dificuldades para a teoria liberal-democrática - dificuldades que, como veremos, jamais foram plenamente superadas. Tais mudanças, contudo, deixavam evidente que era necessário novo modelo de democracia. O primeiro deles foi elaborado por John Stuart Mill. Torna-se evidente pelos próprios textos do jovem Mili que ele chegou ao seu Modelo 2 em face daquelas mudanças concretas. Ele estava perfeitamente cônscio da militância crescente da classe traba-
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
lhadora: as revoluções de 1848 na Europa, e o fenômeno do movi mento cartista na Inglaterra, causaram-lhe forte impressão. Idêntica impressão lhe causou a instrução da classe trabalhadora, a difusão de jornais das classes trabalhadoras, e a capacidade cada vez maior des sa classe em organizar-se mediante o aumento de sindicatos das vá rias categorias profissionais e das sociedades de benefícios mútuos. Mill estava convencido de que “os trabalhadores”* não podiam ser calados ou detidos por muito mais tempo. Assim é que em Political Economy escreveu ele, ert^J848: , Quanto aos trabalhadores, pelo menos nos países mais I avançados da Europa, pode-se considerar certo que o* sistema \ patriarcal ou paternal de governo é do tipo a que não se subme1 terão de novo. Isso ficou claro quando se lhes ensinou a 1er e se lhes permitiu acesso aos jornais e assuntos políticos; quando se ' consentiu a presença entre eles de pregadores dissidentes, e apeii lo a suas faculdades e sentimentos em oposição aos credos pro. fessados e apoiados por seus superiores; quando se reuniram em números, para trabalhar socialmente sob um mesmo teto; quan! do as ferrovias permitiram-lhes deslocar-se de lugar a lugar, e \ mudar de patrões e empregadores tão facilmente quanto mudam de roupa; quando foram estimulados a procurar participação no governo, por meio de franquias eleitorais. As classes trabalha doras assumiram seus interesses nas próprias mãos, e estão sem pre mostrando pensar que os interesses de seus empregadores não são idênticos aos seus, mas antagônicos. Alguns entre as classes superiores gabam-se de que essas tendências podem ser contidas por educação moral e religiosa: mas deixaram passar o tempo para dar uma educação que possa atender a seus objeti vos. Os princípios da Reforma atingiram as camadas mais bai xas da sociedade como o 1er e escrever, e os pobres não aceitarão por muito tempo a moral e religião como prescrita por outros... Os pobres escaparam dos cordéis e não mais podem ser governa dos ou tratados como crianças. ...Qualquer conselho, exortação ou orientação que sejam apresentados às classes trabalhadoras, deve daqui por diante ser oferecido a eles como iguais, e aceito por eles com os olhos aber tos. A perspectiva do futuro depende do grau em que eles pos sam ser transformados em seres racionais. 1
* "The poor" (os pobres), como eram tambérn chamados na época (N. do T.) I Principles o f Political Economy, Livro IV, Cap. 7, Seções 1 e 2; em Collected Works, org. por JJ. Robson, Toronto e Londres, 1965, iii, 761-3.
MODELO 2: DEMOCRACIA DESENVOLVIMENTIST A
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A conclusão de que alguma coisa tinha de ser feita tornou-se explíci ta em 1845 na lição que ele obteve do movimento cartista. O movimento democrático entre as classes trabalhadoras, em geral conhecido como cartismo, foi a primeira distinção aberta de interesse, sentimento e opinião entre o segmento tra balhador da nação e todos acima deíe. Foi a revolta de quase todos os talentos dinâmicos, e uma grande parte da força física, das classes trabalhadoras, contra a sua relação inteira com a so ciedade. Espíritos conscienciosos e solidários entre as classes go vernantes só podiam impressionar-se profundamente com esse protesto. Só podiam indagar, com temor, o que se devia respon der a ele; como os dispositivos sociais existentes podiam ser mais bem justificados aos que se julgam prejudicados por eles. Pare cia altamente desejável que os benefícios decorrentes daqueles dispositivos pelos pobres devessem ficar menos discutíveis - de vessem ser tais de modo a que não pudessem ser facilmente des considerados. Se os pobres tivessem razão em suas queixas, é que as classes superiores não cumpriram seu§ deveres como go vernantes; se não tivessem razão alguma, também não teriam aquelas classes cumprido seus deveres ao permitir que eles cres cessem tão ignorantes e incultos de modo a estarem suscetíveis a essas perniciosas ilusões. Enquanto uma espécie de mentes entre as classes mais afortunadas estivesse assim sob a influência das reivindicações políticas feitas pelos trabalhadores, havia outra explicação segundo a qual aquele fenômeno atuava de maneira diferente, levando, contudo, ao mesmo resultado. Enquanto al guns, pelas circunstâncias físicas e morais que percebiam em tor no de si, eram levados a sentir que a condição das classes traba lhadoras devia ser considerada, outros eram levados a perceber que ela deveria ser considerada, caso fechassem os olhos a ela ou não. A vitória de 1832, devida à manifestação, embora sem em prego real, de força física ensinara uma lição àqueles que, em vis ta da natureza do caso, têm sempre a força física do seu lado; e aos que apenas desejavam a organização, que eles estavam rapi damente adquirindo, para converter sua força física em força moral e social. Não mais se discutia que alguma coisa tinha de ser feita para tornar a multidão mais contente com o estado de coisas existente. 2
2 “The Claims of Labour" (1845), reimpresso em Dissertations and Discussions ( 1867), ii, 188-90: Collected Works, org. por Robson, 1967, iv. 369-70.
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
Uma das coisas a serem feitas “para tornar a multidão mais satis feita com o estado de coisas existente” era abandonar ou transfor mar os modelos benthamistas de homem e sociedade. Embora John Stuart Mill tivesse esperança de que a classe trabalhadora pudesse no futuro tornar-se bastante racional de molde a aceitar as leis da eco nomia política (tal como ele as entendia), não podia esperar que ela >aceitasse o modo de ver de Bentham para quem a classe trabalhadora estava inevitavelmente condenada à quase indigência. Nem pretendia ele que a classe trabalhadora aceitasse aquele modo de ver, que ele acreditava scr falso. Ele pensava que os trabalhadores podiam reagir e sair de sua miserável condição. E ele estava ansioso de que ela o fi zesse, pois ele estava moralmente revoltado com a vida a que eles es tavam compelidos a levar. O grau de afastamento ou transformação por parte de Mili dos modelos benthamistas de homem, sociedade e democracia aparecerá melhor quando examinarmos mais de perto (na próxima seção) a teoria de Mill, mas algumas dessas diferenças essenciais podem ser delineadas desde já. A contundente diferença nos modelos de democracia consiste no proposito que se supunha dever ter um sistema político democrático. Mill não deixou desapercebida a função nitidamente protetora de uma franquia democrática - função já ressaltada por James Mill e ( Bentham. O povo precisava ser protegido contra o governo: “os seres i humanos só estão livres do mal nas mãos de outros, na medida em tque tenham poder de ser, e sejam, protetores de si mesmos” . 3 Mas ele via alguma coisa ainda mais importante a ser protegida, isto é, as probabilidades de melhoria da humanidade. De modo que sua ênfa se era não somente na operação de manter, mas naquilo em que a de mocracia podia contribuir para o desenvolvimento humano. O mo delo de democracia para Mill é um modelo moral. O que mais nitida mente o distingue do Modelo I é que ele tem uma visão moral da pos1sibilidade de aperfeiçoamento da humanidade, e de uma sociedade liI vre e igual ainda não conseguida. Um sistema político democrático é ! avaliado como meio para aquele aperfeiçoamento - meio necessário conquanto não suficiente; e uma sociedade democrática é vista como resultado daquele aperfeiçoamento e ao mesmo tempo como meio de mais aperfeiçoamento. O aperfeiçoamento esperado é um aumento do autodesen volvi mento pessoal de todos os membros da sociedade, ou, na expressão delohn Stuart Mill, o “avanço da comunidade... em intelecto, em virtude, em atividade prática e eficiência” . Os argu-
3 Considerations on Representada Government, Cap. 3, em Collected Works, org. por J.M. Robson, vol. xix, Toronto e Londres, 1977, p. 404.
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mentos em favor de um sistema político democrático devem-se a que ele promove esse avanço melhor que qualquer outro sistema político e porque faz o melhor emprego do valor moral, intelectual já existen te, de modo a atuar com o maior efeito nos assuntos públicos” . 4O valor de um indivíduo é julgado pelo grau a que ele revela suas capa cidades humanas: “o fim do homem... é o mais alto e mais harmonio so desenvolvimento de suas forças num completo e consistente to do”. 5 Isso leva-nos à raiz do modelo de democracia de Mili. A .raiz é um modelo de homem muito diferente daquele em que o Modelo 1se baseava. O homem é um ser capaz de desenvolver suas forças ou ca pacidades. A essência humana é exercê-las e desenvolvê-las. O ho mem não é em essência um consumidor e apropriador (como o era no Modelo 1) mas aquele que exerce, desenvolve exiesfruta suas ca l'" pacidades. A boa sociedade é aquela que permite e incentiva todos a \ agirem como exercedores, desenvolvedores e desfrutadores do exerci tei o e desenvolvimento de suas capacidades. Assim é que o modelo da sociedade desejável de Mill diferia em muito do modelo de sociedade a que o Modelo 1 de democracia se ajustava. Ao oferecer esse modelo de homem e da sociedade desejável Mill dava a tônica que viria a prevalecer na teoria liberal democráti ca, e que dominou pelo menos o conceito anglo-americano de demo cracia até meados do século XX. Os poucos preceitos incluídos por John Stuart Mill em seu modelo foram respigados mais tarde por de fensores da democracia desenvolvimentista, mas a visão central e os argumentos em seu a]3oio permaneceram praticamente os mesmos. É a democracia de L.T. Hobhouse e A.D. Lindsay, Ernest Barker, Woodrow Wilson, John Dewey e R.M. Maclver: é a democracia que a I Guerra Mundial procurou preservar para o mundo. Ela encontra adeptos ainda, sobretudo quando as sociedades liberais se defrontam com as totalitárias, embora, como veremos, tenha sido prontamente rejeitada em favor do que se declara ser um modelo mais realista, o Modelo 3 que examinaremos no proximo capítulo. Mas o Modelo 2 \ merece considerável atenção, quando menos porque os empenhos ! agora feitos para ir além do Modelo 3, no sentido de remoralizar a democracia sob o estandarte da democracia participava (nosso Mo- 7 delo 4), depararam algumas das mesmas dificuldades com que depa rou o Modelo 2, e serão de proveito as lições do seu fracasso.
4 Ibidem, Cap. 2, p. 392 5 On Liberty, Cap. 3; em Collected Works,
xviii, 261, citando Humboldt.
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
As dificuldades encontradas pelo Modelo 2 em sua primeira for mulação eram um tanto diferentes daquelas que obstacularam a ver são posterior. Será pois de proveito examinar as duas versões alter nadamente, como Modelos 2A e 2B. Podemos desde já estabelecer em resumo uma diferença entre elas. Mill encontrou séria dificuldade em contornar a incompatibilidade que ele via entre as reivindicações de desenvolvimento igual e as existentes desigualdades de poder e ri queza. Embora ele não identificasse o problema de modo apurado, e portanto não tivesse condições de resolvê-lo mesmo em teoria, ele percebeu que havia um problema e tentou tratar dele, pelo menos na medida em que se preocupou com os requisitos sociais e econômicos necessários da democracia. Seus seguidores do século XX escassa mente viram isso como um problema, ou pelo menos como problema central: se virtualmente não o perdiam de vista, tratavam-no c o m o algo que deveria ou poderia ser resolvido de um modo ou outro - por exemplo, mediante o reavivamento da moralidade idealista, ou atra vés de novo nível de conhecimento e comunicação social. De fato, pode ver-se um declínio crescente em realismo desde o Modelo 1 até os Modelos 2A e 2B. Bentham e James Mill, ao formularem o Modelo 1, reconheceram que o capitalismo acarretava grandes desigualdades de classe em poder e riqueza: eles foram realis tas quanto à estrutura necessária da sociedade capitalista, embora não se perturbassem com ela dado que não conflitava com sua demo cracia meramente protetora. John Stuart Mill, em seu Modelo 2A, foi menos realista quanto à estrutura necessária da sociedade capitalista: ele enxergava a desigualdade de classes existente, e percebia que ela era incompatível com sua democracia desenvolvimentista, mas acha va isso acidental e remediável. Os expoentes da democracia desenvol vimentista no século XX (nosso Modelo 2B) foram ainda menos realistas que Mill quanto a isso: de modo geral, eles escreveram como se os problemas de classes se houvessem dissipado, ou estivessem de saparecendo, cedendo lugar a diferenças pluralistas que eram não apenas mais controláveis como também positivamente benéficas. E acima de tudo isso havia um novo irrealismo no Modelo 2B, um irrealismo descritivo. Importa pouco se os dois modelos anteriores (1 e 2A) foram realistas como exposições de um sistema democrático existente, por que em nenhum país no século XIX houve governos escolhidõs pelo sufrágio masculino adulto, muito menos sufrágio universal.6Os dois
6 Embora a maioria dos estados nos Estados Unidos tivessem franquias para brancos do sexo masculino em meados do século XIX, dificilmente se poderá dizer que existis-
MODELO 2: DEMO CRAC IA DESENVOLVIMENTISTA
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modelos precedentes eram enunciados do que seria necessário para conseguir pelo menos proteção e quando muito autodesenvolvimento para tocios. Mas na metade do século XX, com pelo menos pleno sufrágio masculino adulto como regra geral em países ocidentais avançados, podia esperar-se um modelo realista como enunciado descritivo. O Modelo 2B oferecia-se como enunciado do que o sistema existente era em essência (o que não raro significava, pelo contrário, o que o presente sistema imperfeito era capaz de tornarse), bem como declaração de sua desejabilidade. Mas como descrição de como o sistema democrático de fato atuava o Modelo 2B era gravemente inexato, como foi demonstrado pelos expoentes do Mo delo 3. Pode dizer-se pois que o Modelo 2Bera duplamente irrealista: i ele tanto deixava de captar as necessárias implicações da sociedade \ capitalista como falhava na descrição do verdadero sistema demo crático liberal do século XX. ^ Para antecipar um pouco nosso argumento, pode-se dizer agora que o modelo em geral vigente, o Modelo 3, que se gaba de seu realis mo tanto como modelo descritivo como explaaatório e como de monstração dos limites necessários do princípio democrático de efe tiva participação do cidadão, se mostrará inferior em ambas as coi sas. MODELO 2A: A DEMOCRACIA DESENVOLVIMENTISTA DE J. S. MILL
Ressaltei a diferença entre o modelo de J. S. Mili para uma sociedade desejável e os modelos de Bentham e James Mill. Podemos aclarar ainda mais a diferença. Bentham e James Mill aceitavam a sociedade ) capitalista existente sem reservas; John Stuart Mill não. A diferença éJ claramente expressa na posição do jovem Mill sobre a desejabilidade do "estado estacionário” que ele, como eles, achava ser a culminação do capitalismo: eles o consideravanp com pesar, e ele o saudava com boas-vindas. Como o declarou em 1848:
Confesso que não estou encantado com o ideal de vida procla mado por aqueles que pensam ser o estado normal dos seres hu manos a luta para progredir; que o atropelo, as colisões, acotovelamentos e correrías que constituem o tipo de vida social exis
se franquia de fato nos Estados Unidos até o século XX. Poucos países europeus no século XIX (França em 1848, Alemanha em 1871) tinham franquia para adultos mas culinos par a a assemblé ia nacional, mas a assembléia não tinha escolha ou controle do governo. No Rchv I'nido, em fins de 1911, só 59°,', dos adultos do sexo masculino ti nham a, franquia, isto é, tinham seus nomes no registro eleitoral parlamentar. Veja-se Neal Bieweít: “The Franchise in lhe United Kingdom 1885-1918", Past and Present, n9 32 dezembro de 1965.
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
tente sejam o mais desejável quinhão da espécie humana ou qualquer outra coisa senão sintomas desagradáveis de uma das fases do progresso industrial. Pode ser necessário um estágio no progresso da civilização... Mas não é uma espécie de perfeição social que filantropos do futuro desejem ansiosamente ver reali zada... Por enquanto, aqueles que não aceitam o atual estágio prematuro do aperfeiçoamento humano como derradeiro tipo, podem ser desculpados por serem relativamente indiferentes à espécie de progresso econômico que estimula as congratulações dos políticos comuns; o mero aumento da produção e acumula ção. 7
A sociedade, na visão do Modelo 2, não precisa ser, não deve ser, o que o Modelo 1 presumia que ela sempre fosse; Não precisa ser nem deve ser um conjunto de consumidores e apropriadores em concorrência nos seus interesses próprios antagônicos. Ela podia e devia ser uma comunidade de pessoas que exercem e desenvolvem suas ca pacidades humanas. Mas não era isso no momento. O problema era fazer com que ela avançasse em direção a essa meta. As razões em fa vor da democracia eram que ela dava a todos os cidadãos um interes se direto nas ações do governo, e um incentivo para participar ativa mente, pelo menos ao ponto de votar a favor ou contra o governo, e, como se esperava, também de informar-se e construir seus modos de ver em discussões uns com outros. Em comparação com qualquer sistema oligárquico, por mais benevolente que fosse, a democracia trazia o povo para as atuações do governo dando a todos um interes se prático, um interesse que podia ser concreto dado a que o voto po pular podia derrubar um governo. A democracia tornaria assim o povo mais atuante, mais dinâmico; faria o povo progredir “em inte lecto, virtude, atividade prática e eficiência”. Trata-se de uma exigência um tanto grande a um sistema de go verno representativo em que a atividade política normal de uma pes soa limita-se a votar ao fim de certo período de anos para um membro do Parlamento, talvez mais freqüentemente para vereadores locais, e talvez de fato detendo algum cargo eletivo local. Mesmo as sim, a reivindicação podia ser lícita por contraste com algum sistema oligárquico, que positivamente desestimula interesse e participação gerais. Mediante aquele contraste, a democracia poderia parecer conduzir ao sustentado e crescente progresso moral dos cidadãos,
7 Principles o f Political Economy , Livro pp. 754-5.
P T .
Cap. 6, Seção 2, em
Collected
Works, iii,
MODELO 2: DEMOCRACI A DESENVOLVIMENTISTA
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seu progresso intelectual e valor ativo, sendo que cada parcela de participação daria capacidade e desejo de mais participação. Mas a essa altura Mill depara-se com uma dificuldade que veio a ser insuperável. Para ver em que ela consiste devemos examinar uma outra diferença básica entre John Stuart Mill e Bentham. Subjacente à diferença em suas estimativas morais da sociedade existente estava uma diferença em suas definições de felicidade ou prazer, coisa que ambos sustentavam devia ser elevada ao máximo. Bentham havia sustentado que ao avaliar a maior felicidade tem-se que tomar em consideração apenas as quantidades de prazer (e sofrimento) indiferenciados concretamente sentidos pelos indiví duos. Não havia quaisquer diferenças qualitativas entre prazeres: a utilidade do prego era tão boa quanto a poesia. E daí, como vimos, ele avaliava prazer e utilidade em termos de riqupza material, e a soma de toda a maior felicidade da sociedade devia ser obtida pela maximização da produtividade (embora mesmo essa conclusão fosse falaciosa, como já observamos). Por sua vez, J. S. Mill insistia em que havia diferenças qualitati vas entre os prazeres, e recusava-se a igualar a maior felicidade total com o máximo de produtividade. A maior felicidade de todos devia ser obtida permitindo-se e incentivando-se os indivíduos a que se de senvolvessem. Isso os tornaria capazes de prazeres superiores, e as sim aumentaria a felicidade de todos estimada em termos de quanti dade e qualidade. Ao mesmo tempo, porém, - e essa era a dificuldade fundamental - Mill reconhecia que a distribuição existente da riqueza e do poder econômico impossibilitava à maioria dos membros da classe traba lhadora o desenvolver-se, ou sequer viver humanamente. Ele denun ciava como inteiramente injusto que o produto do trabalho seja distribuído como agora o vemos, quase na razão inversa do trabalho - dando-se as maiores por ções a quem jamais trabalhou de modo algum, em seguida àque les cujo trabalho é quase nominal, e assim por diante em escala decrescente, minguando a remuneração à medida que o trabalho fica mais duro e mais desagradável, até que o mais cansativo e exaustivo trabalho corporal não possa ter como certo que o tra balhador ganhe inclusive o indispensável para a vida...8 isso, dizia ele, era exatamente o oposto do único “princípio equânime" de propriedade, o princípio da “proporção entre remuneração e
K Ihidem, Livro II, Cap. I, Seção 3, p. 207.
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o esforço”. Esse era o princípio de eqüidade, porque a única justifica ção da instituição da propriedade privada era que ela assegurava aos indivíduos “os frutos de seu próprio trabalho e abstinência”, e não “os frutos do trabalho e abstinência de outros.” 9 Poucas páginas adiante, Mill dava uma extensa definição de propriedade: A instituição da propriedade, quando limitada a seus elementos essenciais, consiste no reconhecimento, em cada pessoa, de um direito a dispor com exclusividade do que ele ou ela tenha pro duzido por seu próprio esforço, ou recebido seja por dádiva ou justo justo acordo, sem violência ou fraude fraude,, daqueles daqueles que que o produzi ram. A base do todo é o direito dos produtores àquilo que eles mesmos mesmos prod produz uzir iram am.. 101 Isso parece uma sensata extensão do princípio antes proclamado, pelo menos no que se refere a “justo acordo”, embora “dádiva” sus cite um problema. Sem um direito de propriedade no que se trocou por acordo pelos frutos do próprio trabalho, nem mesmo a mais sim ples economia de troca seria possível. Mas Mili está falando sobre uma economia de troça capitalista, onde o produto é resultado de uma combinação de trabalho com o capital fornecido por outrem, e em que o trabalhador só obtém sua parcela mediante um salário, e a capitalista obtém o restante, ambas as parcelas sendo determinadas pela concorrência no mercado. Mill sustentava que essa relação tam bém se justificava. Ao falar da aquisição do capitalista mediante o contrato salarial, escreveu ele: O direito de propriedade inclui, pois, a liberdade de adquirir mediante contrato. O direito de cada um ao que tenha produ zido implica um direito ao que foi produzido por outros, se obti do por seu livre consentimento; uma vez que os produtores de vem ou ter dado por boa-vontade ou trocado pelo que conside ram seu equivalente, e impedir que o façam desse modo seria in fringir seu direito de propriedade sobre o produto de sua pró pria ativ ativid idad ade. e. 11 Mill percebia que o possuidor do capital devia ter uma partici pação no produto, e sustentava ele que isso era coerente com o princípio de eqüidade, dado que o capital é simplesmente produto de trabalho e abstinência anteriores. Isso justificava a distribuição do produto entre os assalariados e os possuidores de capital: dada a con corrência entre capitalistas por trabalhadores, e entre trabalhadores 9 Ibidem Ibidem, p. 208. 10 Ibidem Ibidem, Livro II, Cap. 2, Seção I, p. 215. 11 Ibidem Ibidem, p. 217.
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por emprego, havia uma justa divisão entre aqueles que contribuíam com o trabalho atual e aqueles que contribuíram com os frutos de trabalho e abstinência passadas. Mill reconhecia que o capital não era em geral criado pelo trabalho e abstinência do atual possuidor, mas pensava ter argumentado suficientemente em favor da distribui ção de trabalho e capital ao dizer que o presente possuidor de capital “muito provavelmente” o obteve por doação ou contrato voluntário do que por desapropriação desonesta daqueles que o criaram por seu trabalho pass pa ssad ado. o. 12 O fato de que os atuais possuidores possam ter obtido algum do seu capital por doação, isto é, por herança, deu a Mill certa intranqüilidade: parecia-lhe claramente em dissonância com o seu princí pio de justiça da propriedade. Mas sustentava ele que o direito de dispor da própria posse por doação era parte esseñcial do direito de propriedade. O mais longe que ele estava disposto a ir era quanto a recomendar um limite da soma que alguém pudesse herdar, mas ele fixou fixou o limite tão alto a lto - cada um podia herdar o suficiente “para “ para ter ter meios meios de de tranquila tranquila independência” independência ” 13- que isso n |o desfazia desfazia a incon inc on sistência. Mill escorou-se no argumento de que “embora seja verdade que os trabalhadores estejam em desvantagem em comparação com aqueles cujos predecessores pouparam, também é certo que os traba lhadores estão em muito melhor situação do que se seus predecesso res não tivessem poup po upad ado” o” . 14 Assim é que Mill estava satisfeito de que não houvesse incoerên cia cia entr entree seu princípio princí pio de justiça justi ça da propriedade - recompensa recompen sa em proporção proporção ao esforço e sforço - e o princípio de de recompensa em proporção proporç ão com o valor de mercado tanto do capital como do trabalho atual exi gido para a produção capitalista. Todavia, como vimos, ele achava inteiramente injusta a distri buição do produto do trabalho vigente. Ele baseava a explicação des sa distribuição injusta num acaso histórico, não no princípio capita lista em si. O princípio da propriedade privada privada jamais passou por um julga julg a mento justo em qualquer país; e menos ainda, talvez, neste país que em alguns outros. As organizações sociais da Europa mo derna começaram a partir de uma distribuição da propriedade que era o resultado, não de justa partilha, ou aquisição pelo tra balho, mas da conquista e violência: e não obstante aquele tra
12 Ibidem, pp. 215-16. 13 Ibidem, Ibidem, livro II, Cap. 2, Seção 4, p. 225. 14 Ibidem, Ibidem, livro II, Cap. 2, Seção 1, p. 216.
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balho balh o tenha ten ha sido feito por muitos séculos para modificar a obra da força, o sistema encerra ainda muitos e amplos vestígios de sua ori o rige gem. m. 15 Era essa distribuição violenta da propriedade, e não algo no princí pio da propriedade privada e empresa capitalista como tal, que levou à miserável situação atual do grosso da classe trabalhadora, sobre cuja injustiça Mill era tão eloqüente: “A generalidade dos trabalha dores neste e na maioria dos demais países, tem tão pouca alternativa de ocupação ou liberdade de locomoção, são praticamente tão de pendentes de normas fixas e da vontade de outros, quanto poderiam ser em qualquer qual quer sistema s istema a não ser a verdadeira escravid escra vidão. ão.” ” 16 Culpando desse modo a original distribuição feudal da proprie dade pela força, e o fracasso do direito de propriedade subsequente para retificá-la, Mill estava em condições de pensar que o capitalista não era de modo algum responsável pela injusta distribuição existen te da riqueza, da renda, do poder, e mesmo pensar que ele estivesse Ipaulatinamente diminuindo essa injustiça. O que ele não percebeu é -que as relações de mercado capitalistas fortalecem ou substituem qualquer distribuição injusta original, naquilo em que dão ao capital parte do valor acrescentado pelo trabalho atual, aumentando assim incessantemente o volume de capital. Se Mill tivesse percebido isso, não teria julgado o princípio capitalista consistente com seu princí pio de equidade. Deixando de enxergar isso, não achou qualquer in consistência fundamental, e não se ocupou do assunto. Contudo, a atual situação aviltante do grosso da classe trabalha dora apresentava um problema grave e urgente a Mili, e ele o enfren tou sem rodeios. A dificuldade era que em sua atual situação os tra balhadores estavam sem condições de utilizar o poder político sabia mente. Mill de fato acreditava que o povo fosse capaz de tornar-se di ferente de egoísta adquirente de vantagem para si mesmo, mas pensa va que a maioria das pessoas não havia chegado ainda além disso. Seria tolice, dizia ele, esperar que o homem mediano, caso se lhe des se o poder de votar, se valesse dele com “desprendimento em relação a outros, e sobretudo pelos que vêm depois dele, pela idéia de poste ridade, ridade, de seu país ou da humanidade” humani dade” . Os governos devem constituir-se para seres humanos tais como eles são, ou como são capazes de rapidamente se tornarem: e em qualquer estado de cultura que a humanidade, ou qualquer clas-
15 Ibidem, Livro II, Cap. I, Seção 3, p. 207. Ibidem,, p. 209. 16 Ibidem
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se dela, tenha atingido, ou esteja prestes a atingir, os interesses pelos quais serão motivados, quando estiverem pensando ape nas no interesse próprio, serão quase exclusivamente aqueles que são evidentes à primeira vista, e que atuam em sua atual condição. 17
Assim sendo, que aconteceria se todos tivessem voto? Presumivel mente a sociedade egoísta iria continuar. Mas havia algo mais grave a temer que isso. Porque Mill reco nhecia que as sociedades modernas estavam divididas em duas clas ses com interesses que acreditavam ser antagônicos, e que sob impor tantes aspectos Mill admitia serem antagônicos. As classes eram, fa jando de modo tosco, a classe trabalhadora (na qual ele incluía pe'quenos comerciantes) e a classe empregadora, inclusive aqueles que vivessem de rendimentos sem trabalhar e aqueles “cuja educação e jmodo de vida os assimilassem aos ricos” . 18 A classe trabalhadora / era, evidentemente, a mais numerosa. “Uma pessoa, um voto” signi ficaria, portanto, uma legislação classista no suposto interesse ime diato de uma classe, que deveria “seguir suas próprias inclinações Iegoístas e estreitas noções quanto a seu própriò bem, em oposição à "justiça, às custas de todas as demais classes e da posteridade” . 19Algo portanto devia ser feito para impedir a classe mais numerosa de ser capaz de “orientar o curso da legislação e administração por seu ex clusivo interesse de classe” (muito embora isso fosse um mal menor do que o atual domínio de classe por uma classe pequena com base simplesmente numa riqueza estabelecida).20 O dilema de Mill era real, porque seu principal argumento em favor da franquia universal era que ela era essencial como meio de fa zer com que o povo se desenvolvesse mediante participação. A solu ção de Mill foi recomendar um sistema de voto plural para os membros da classe menor, de tal modo que nenhuma das duas clas ses superasse a outra, e nenhuma portanto estivesse em condições de impor uma “ legislação classista” . 21 Todos deviam ter um voto, mas alguns deviam ter vários votos. Ou antes, todos, com certas exceções, deviam ter um voto, e alguns deviam ter vários votos. Em seu Thoughts on Parliamentary Reform,
17 Representative Government, Cap. 6; em Collected 18 Ibidem, p. 447. 19 Ibidem, p. 446. 20 Ibidem, Cap. 8, p. 467. 21 Ibidem , Cap. 8, p. 476.
Works,
xix, p. 445.
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publicado em 1859, Mill sustentava que um sistema eleitoral perfeito exigia que cada pessoa tivesse um voto e que alguns deviam ter mais de um voto, e afirmava que nenhuma dessas cláusulas era admissível sem a outra. Mas em Representative Government (1861) apresentava razões para votos plurais para alguns juntamente com a exclusão de 1outros de qualquer voto. As exclusões refletem a aceitação por Mill \d os padrões da sociedade de mercado. Quem recebesse renda baixa édevia ser excluído: é que fracassaram no mercado. O mesmo se aplircava aos falidos irrecuperáveis. A mesma recomendação se estendia (também a quem não pagasse impostos diretos. Mill sabia que os pobres pagavam impostos indiretos, mas, afirmava ele, eles não os sentiam, e portanto seriam incansáveis no emprego de seus votos para exigir generosas doações governamentais. A exigência de im postos diretos não tinha a intenção de privar os pobres de voto: a so lução era substituir alguns dos impostos diretos por uma tributação per capita direta que mesmo os mais pobres pudessem pagar. Uma vez mais, quem não soubesse 1er, escrever e contar devia ser excluído. Isso não pretendia esquivamente "excluir grande quantidade dos pobres, pois Mill afirmava que a sociedade tinha o dever de propor; cionar escolaridade ao alcance de todos que a desejassem. Mas essa 'l medida de fato teria excluído os pobres, pois, segundo ele, quando a sociedade deixava de cumprir esse dever (como acontecia realmente \v na época de Mill), excluir da franquia todas as vítimas dessa falha era x“um ônus que tinha de ser suportado” . 22 Se essas recomendações teriam ou não excluído significativo nú mero de votantes entre a classe trabalhadora, o fato era que a vota ção plural continuava ainda aconselhada, e com base num argumen / to a mais. O sistema de voto plural não apenas evitaria a legislação [j classista: seria positivamente benéfico ao proporcionar mais votos à4;queles “cuja opinião estiver qualificada para um maior peso”, 23 em •virtude de sua inteligência superior, ou desenvolvimento superior de suas capacidades intelectuais ou práticas. O rude teste disso era a na tureza da ocupação da pessoa: empregadores, homens de negócios e profissionais liberais são, pela natureza de suas funções, em geral mais inteligentes ou mais instruídos que os trabalhadores assalaria dos comuns, de modo que deviam ter mais votos. Os chefes de turma, na medida em que mais inteligentes que seus chefiados, e trabalhado res qualificados na medida em que mais inteligentes qije os operários comuns, também deveriam ter mais de um voto cada um. Para satis-
22 Ibidem., Cap. 8, p. 470. 23 Ibidem, Cap. 8., p. 474.
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fazer a recomendação de Mili de que toda a classe trabalhadora não tivesse mais votos que a classe empregadora e proprietária, os membros desta última deviam ter consideravelmente mais que dois votos cada, mas Mill escusou-se de elaborar os pormenores. O mais perto que chegou de dar minúcias foi sua sugestão em Thoughts on Parliamentary Reform, quando afirmou que se um trabalhador não )qualificado tivesse um voto, um trabalhador qualificado devia ter ! dois; um chefe de turma, talvez três; um agricultor, fabricante ou co merciante, três ou quatro; um profissional liberal ou literato, artista ou funcionário público, graduado por universidade e membro de so ciedade culta, deviam ter cinco ou seis vo tos.24A escala de votos de Mili é reveladora: o empresário (“agricultor, fabricante ou comer ciante”), com três ou quatro votos não está em situação privilegiada em relação ao chefe de turma, ao passo que os intelectuais, artistas e profissionais liberais, com cinco ou seis votos, constituem uma cate goria altamente privilegiada. É curioso notar, de passagem, tendo em vista o interesse de Mill quanto aos direitos das mulheres, que ele não sugerisse o modo de qualificação para o voto das mulheres que nem fossem empregadas nem empregadoras, nera profissionais liberais nem proprietárias. A importante questão de princípio em tudo isso é que Mill argu mentava explicitamente que votação plural com base em realizações superiores era positivamente desejável, e não meramente desejável como meio de impedir legislação classista: Não proponho a pluralidade como uma coisa em si indesejável, que, como a exclusão de parte da comunidade do sufrágio, pode ser temporariamente tolerada enquanto necessária para impedir males maiores. Não considero a votação igualitária entre as coi sas que sejam boas em si mesmas, desde que possam ser resguar-. dadas contra inconveniências. Considero-a apenas como relati vamente boa; menos criticável do que a desigualdade de privilé gio baseado em circunstâncias irrelevantes ou ocasionais, mas em princípio errada, porque reconhecendo um padrão errado, e exercendo má influência sobre a mente do votante. Não é vanta joso, mas prejudicial, que a constituição do país declare a igno rância tão qualificada para o poder político quanto o conheci mento. 25 I Assim é que John Stuart Mill não pode ser classificado como um pleno ) igualitário. Alguns indivíduos eram não apenas melhores que outros,
24 Collected Works, xix, pp. 324-25. 25 Representative Government* Cap. 8, p. 478 (grifos nossos).
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mas melhores de modos diretamente relevantes ao proces pro cesso so político, melhores de maneira e os qualificar a terem mais peso político. Certamente, parte da razão pela qual deviam ter maior peso era que isso contribuiría para uma sociedade melhor, pelo menos negativa mente mente:: reduzir reduziría ía a probabilidade probabili dade de predominarem na legislação legislaç ão e no governo os interesses imediatistas e estreitamente egoístas, que seria o resultado da votação igualitária. Peso desigual com mais probabili dade levaria a uma sociedade democrática no melhor sentido, uma sociedade em que todos pudessem desenvolver suas capacidades hu manas ao máximo, sendo homens oq mulheres. Contudo, pesos desi guais para os cidadãos em política foram introduzidos no modelo de Mill em bases que parecem permanentes: enquanto o povo fosse desi gual em conhecimento (e quando não seria?) peso igual seria errado em princípio. O peso atribuído por Mill ao conhecimento e qualificação pro fissional levou-o também a recomendar que o Parlamento não tivesse iniciativa quanto à legislação mas se limitasse a aprovar ou rejeitar, ou devolver para reconsideração, e não cuidando de fazer emendas, as propostas legislativas de todos que as enviassem por uma Comis são especializada não eleita. É compreensível a insatisfação de Mill com os métodos parlamentares e ministeriais, mas o remédio que ele apresentava reduziria o poder da legislatura eleita, e também contri buiría para o desestimulo de votantes democráticos a participarem no processo eleitoral. Se ele compreendesse isso, não teria cuidado do assunto, tal o valor que ele atribuía à qualificação. Desse modo, o modelo de Mili, a versão original do Modelo 2, é /’ / ’ aritméticam aritméticamente ente um.pa um .passo sso atrá atráss do Modelo 1, que. estipulara, em / princípio princípio pelo menos, “cada pessoa um voto” vo to” . Mas em sua sua dimensão moral o Modelo 2 é mais democrático que o Modelo 1. O Modelo 2 não se satisfaz com os indivíduos tal como eles são, com o homem como indefinido consumidor e apropriador. Ele quer avançar para uma sociedade de indivíduos mais humanamente desenvolvidos e também de modo mais igual. Ele não quer impor uma utopia ao povo, mas fazer com que as pessoas atinjam a meta por si mesmas, aperfeiçoando cada um mediante participação dinâmica no processo político, sendo que toda parcela de participação leve a um aperfei çoamento em sua capacidade política, assim como seu desenvolvi mento integral, e tornando as pessoas capazes de mais participação e mais desenvolvimento pessoal. Agora é fácil notar defeitos e contradições no modelo de Mill. Defeito evidente é a questão da participação e autodesenvolvimento. A participação no processo político era necessária para aperfeiçoar a f qualidade do povo, e a aperfeiçoaria. Mas a participação com peso /Jgual então reforçaria a baixa qualidade. Portanto, aqueles que já titi-
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vessem atingido qualidade superior, julgada por sua instrução ou po sição na vida, não teriam direito de impor seu poder ao restante. Em nome do autodesenvolvimento igual, um veto é atribuído àqueles ) que que já estão estã o mais desenvo dese nvolvid lvidos. os. Mas os indivíduo indi víduoss menos desenvoidese nvoimod elo de Mili, se permanecessem permanecess em dentro dele (isto I vidos dentro do modelo \ é, se aceitassem o peso eleitoral inferior inferior que Mill lhes atribuía), atribuía), sabesabe / ria riam que que suas vontades vontade s não prevalecería prevaleceríam, m, de modo que não teriam teriam 1 muito muito estímulo a participa participar, r, e assi assim m não se tornaria tornariam m mais desenvol' vidos. Dificuldade ainda mais grave, que está na raiz da outra, é o mo delo de Mili de homem e sociedade. Os homens tais como modelados pela sociedade de mercado em concorrência existente não eram sufi cientemente bons para tornarem-se melhores. Mill deplorava os efei tos, sobre o caráter humano, da sociedade de mefcado existente, que tornava todos competidores agressivos em procura de vantagens pes soais. Ele lamentava ainda mais veementemente a relação existente entre o capital e o trabalho, que aviltava tanto o capitalista como o trabalhador. Acreditava não poder existir uma sociedade decente mente humana até que essa relação fosse transformada. Deposita va suas esperanças numa enorme difusão de cooperativas de produ tores, pelas quais os trabalhadores se tornassem seus próprios capita listas e trabalhassem para si mesmos conjuntamente. Alimentava a esperança de que os trabalhadores em cooperativas próprias desen volveríam melhores meios de trabalho, tornando-se assim unidades de produção mais eficientes, e que com isso baniriam a organização capitalista de produção. 1
Cont Contudo udo,, ele ele acei aceita tava va e apo apoiav iava as as inst instit itui uiçõ ções es da pro proprie prieda dade de capitalista herdadas, pelo menos até que elas se modificassem ou transformassem pelos trabalhadores em cooperativas; e mesmo en tão o sistema concorrencial de mercado atuaria, porque empresas cooperativas distintas deviam competir no mercado, e seriam moti vadas pelo incentivo do desejo de ganho individual. Em outras pala vras, Mill aceitava e apoiava um sistema que exigisse dos indivíduos jagir jagir como c omo máximos consumidores consum idores e apropriadores, procurando acuacu! mular os meios de garantir seu futuro fluxo de satisfações como cony&umidores, o que significava adquirir propriedade. Um sistema que /e x i j a dos homens considerarem-se e ag agir ir como c omo consumidores e apro j priadores priadores dá pouco pou co âmbito a que a maioria deles se veja veja e atue como com o [ exercendo e desenvolven dese nvolvendo do suas capacidades. Mili de de fato proclama va a perspectiva de que a generalização das cooperativas ensejaria uma “revolução moral na sociedade”: a cessação da rixa existente entre o capital e o trabalho; a trans formação da vida humana, de um conflito de classes em luta por
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interesses antagônicos, em rivalidade amistosa na busca de uma meta comum a todos; a elevação da dignidade do trabalho; um novo senso de segurança e independência na classe trabalha dora; e a conversão da ocupação diária de cada ser humano numa numa escola da solidariedade solidariedad e social e da da inteligência prá p ráti tica ca.2 .26 J Essas elevadas esperanças permaneceram insatisfeitas. O antagonis j mo de classes contin con tinuou uou,, e na medida em em que que não era era compensa comp ensado do de
( outros modos ainda exigiría de Mili a suavização da democracia. Porque o procedimento racional de cada uma daquelas classes é em pe nh -se -se por superar a classe class e opos op osta ta,, daí o perigo que Mill via no governo classista, daí a necessidade de negar o máximo de poder político a cada membro da classe mais numerosa em relação a cada membro da classe menos numerosa, e daí o círculo vicioso da partici pação desigual justificando participação desigual permanente. O fracasso da solução cooperativista deixava assim sem solução a H contradição que John Stuart Stuart Mill via numa franquia igual universal universal e j a maior felicidade felicidade da sociedade. Não Nã o havia solução, dada dada a sua sua hipó hi pó tese de que a classe trabalhadora usaria sua franquia igual para ence tar legislação classista não consistente com a maior felicidade quali tativa e a longo prazo de toda a sociedade. E, subjacente a essa contradição contra dição,, estava a outra, a contradição contr adição i \ entr entree as relaçõe relaçõess capitalistas de produção como tais tais e o ideal ideal demo crático de igual possibilidade de autodesenvolvimento individual. Mill jamais enxergou essa contradição plenamente. Chegou perto de entrevê-la em suas censuras às relações existentes entre o capitai e o trabalho (sobretudo quando as contrastava do ponto de vista moral com as relações cooperativistas); mas, como observamos, em sua análise das relações capitalistas de mercado, ele justificava a proprie / dade dade priva privada da de capital, e o contrato salarial salarial como em harmo h armonia nia em princípio com um sistema equânime. Poder-se-ia pensar que a existência de falhas tão graves na teorização liberal democrática de Mili teriam sido suficientes para impe dir que continuasse sendo defendida em fins do século XIX e no sé culo XX, posição que havia conseguido em meados do século XIX como o modelo de democracia liberal. Mas não foi bem isso o que aconteceu. E é fácil perceber por quê.
26 P o li ti ca l E c o n o m y , Livro IV, Cap. 7; em C o l l e ct c t e d W o r k s , iii, pp. 792. Isso contrasta es tranhamente com a declara dec laração ção de Mill em 1838: 1838: “A maioria mai oria numérica de qualquer so ciedade que seja seja deve consistir de pessoas que estejam todas toda s na mesma condição so cial, e tendo tendo no principal principal os mesmos objetivos, objeti vos, isto é, trabalhadores trabal hadores manuais não qua lificados../' (Bentham, em E s s a y s o n E t h i c s , R e l i g i o n a n d S o c i e t y , C o l l e c t e d W o r k s , x, p. 107).
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Em primeiro lugar, a contradição subjacente só devia levar ao abandono da teoria se os seguidores de Mili a tivessem enxergado como falha na teoria. Mas, de fato, como veremos na última seção deste capítulo, os posteriores teóricos democrático-liberais reconhe-, ceram menos que Mili a incompatibilidade fundamental entre as re-^ lações capitalistas de mercado com a possibilidade igual de autode-y senvolvimento individual. Assim é que podiam, e de fato continua ram a manter os argumentos de Mill em favor de uma democracia desenvolvimentista. Em segundo lugar, a incompatibilidade que Mill enxergara entre uma franquia universal igualitária com a oposição existente entre as classes parecia, ao início do século XX, ter desaparecido. O receio de Mili de um governo classista se houvesse franquia universal igualitá ria veio a mostrar-se infundado, pelo menos naqueJa época. Bentham e James tinham razão quanto a que a classe trabalhadora imitasse a classe média, embora, como veremos, estivessem certos por motivos equivocados. Seja como for, quando a primeira parcela de sufrágio masculino igualitário foi introduzida na Inglaterra em 1884, onze anos após a morte de Mill, e mais parcelas posteriormente, não ense jaram o governo classista pela classe trabalhadora. Assim é que os se guidores de Mill podiam e de fato de bom grado abandonaram as cláusulas igualitárias de seu modelo - a votação plural e o escalona mento da legislatura eleita em favor de uma comissão legislativa es pecializada - embora mantendo sua argumentação principal em fa vor do desenvolvimento. Não diremos, pois, que o Modelo 2A tenha sido um fracasso. Suas principais linhas continuaram em geral a ser aceitas pelos libe ral democratas, tanto mais facilmente quanto suas cláusulas em fa vor da desigualdade podiam ser eliminadas. Elas foram banidas, em parte porque pareciam desnecessárias, e em parte devido a que se tor nou claro que qualquer coisa daquele tipo seria inaceitável para im pedir fortes movimentos populares.27 Mas isso permitiu que o res tante do Modelo 2A continuasse vivo como 2B, já bem no século XX. O êxito consistente dos políticos dominantes no século XIX, e
27 A força desses movimentos ficou evidente na agitação pela Lei de Reforma de 1867, da qual Mili era observador e interessado de perto. Ele retirou sua iniciativa de endos sar a radical Liga de Reforma quando verificou que ela estava apelando para a força física para obter reivindicações inconciliáveis de franquias. (Mill a W. R. Cremer, 1’ de março de 1867, Later Letters; em Collected Works, xvi, pp. 1247-8). Ver também Royden Harrison: Before lhe Socialists, Studies in Labour and Politics 1861-1881, Lon dres e Toronto, 1965, Cap. 3.
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do próprio sistema no século XX em desviar as implicações ameaça doras da franquia democrática, adiou o fracasso do Modelo 2 até meados do século XX. Foi então que ele falhou, mas não por causa das críticas de meados do século XX pelos expoentes do Modelo 3 que haviam compreendido ou exposto as contradições internas do Modelo 2, porque isso eles não Fizeram. Falhou por diferentes ra zões, as quais passaremos auora a examinar. A DOMESTICAÇÃO DA ERANQUIA DEMOCRÁTICA
Antes que passemos ao exame dos êxitos do modelo desenvolvimentista posterior, devemos considerar a razão pela qual a franquia mas culina igualitária não ensejou o governo classista temido por Mili, de modo a deixar aberto o caminho para que os liberai-democratas reapresentassem os argumentos de Mill. Isso nos ajudará a compreender o declínio do modelo desenvolvimentista posterior bem como seu fracasso final. O que aconteceu foi algo que Mill não previu, e talvez dificil mente pudesse prever. Mas o interessante é que os teóricos desenvol ví men list as posteriores, os fomentadores do Modelo 2B, parece não l e r e m percebido ou compreendido, embora estivessem em condições de perceber naquela altura. Aventarei a hipótese de que sua falha em não percebê-la foi o que levou ao fracasso do modelo 2B e sua su pressão pelo Modelo 3 A razão pela qual a franquia igualitária para adultos masculinos não ensejou o governo classista que Mill receava foi o extraordinário êxito com o qual o sistema partidário teve condições de domesticar a democracia. Isso é importante porque, embora desse ao Modelo 2 novo trem de vida, foi, afinal a destruição do Modelo 2. Porque dei xava o processo político democrático amplamente incapaz de ofere cer o efetivo grau de participação que seus defensores reivindicavam ou pelo qual esperavam, e incapaz de fomentar aquele desenvolvi mento pessoal e comunidade moral que era a principal razão ofereci da pela democracia liberal. Isso foi o que arruinou de tal forma o Modelo 2 que ele acabou sendo banido em meados do século XX pelo Modelo 3, aparentemente mais realista e que examinaremos no próximo capítulo. Como o sistema partidário socorreu o modelo desenvolvimen tista e permitiu que se mantivesse em campo, em sua forma revista de j franquia igualitária, por outro meio século ou mais? Como foi capaz q o sistema partidário de impedir o revezamento de classe que Mill te I mia, permitindo assim que a imagem desenvolvimentista da demov erada se mantivesse pelos defensores liberais depois de introduzida a franquia igualitária? Uma franquia igualitária universal fogosamen te daria voz predominante à classe trabalhadora assalariada nos paí.
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ses mais industrializados, bem como aos agricultures e outros peque nos trabalhadores independentes (ou a uma mistura deles com assa lariados) nos países menos industrializados, e em ambos os casos era de se esperar um conflito de interesses com a propriedade capitalista estabelecida. Como poderia uma coisa tão mecânica e neutra como( um sistema de partidos em competição impedir a alternação no po- > der pela ciasse ou peías ciasses inferiores porém mais numerosas? _ Um sistema partidário acaso não ensejaria essa alternação de man do, em vez de impedi-la, na medida em que eficazmente representasse o peso numérico de interesses diferentes? Contudo, o revezamentos das classes foi impedido, e pela atuação do sistema partidário, em to-' új.5 as c em o cru crus ocruerrtuís. O modo como isso se deu foi um tanto diferente em diversos países, dependendo em parte da composição das classes no país, e em parte de haver ou* não um sistema partidário não democrático responsável antes da chegada da franquia democrática, e em parte também devi do a diferenças de tradições nacionais. Não me cabe empreender aqui uma análise de todas as complexas diferenças entre os modos pelos quais os sistemas partidários desempenharam a mesma função básica em países tão diferentes como Inglaterra, Estados Unidos, Ca nadá e as várias nações européias do Ocidente. Contudo, não é difícil ver, se mudarmos o foco ligeiramente das exposições usuais da fun ção do sistema partidário, que sua principal função não é meramente ensejar um equilíbrio político estável, mas determinada espécie de equilíbrio. Acho que não é exagero dizer que a principal função do sistema par tidário concretamente desempenhada nas democracias ocidentais! desde o advento da franquia democrática tem sido a de amenizar o conflito de classes ou, se preferirmos, moderar e conciliar um confli- \ to de interesses de classe de modo a salvar as instituições da proprie- ) dade existentes e o sistema de mercado de um ataque eficaz. Isso é menos evidente nos Estados Unidos do que na Europa, onde a rela ção entre o partido e a classe é em geral mais óbvia. E é menos evi dente do que poderia ser a observadores de qualquer país no século XX, devido ao próprio sucesso do sistema partidário em afastar problemas de classe que no século XX se haviam avolumado dema siadamente. A função de apagar as linhas de classe e assim desempenhar pa pel mediador entre interesses antagônicos de classe pode ser vista igualmente bem desempenhada por qualquer das três variedades de sistema partidário: (1) um sistema bipartidário (ou dois partidos do minantes), mesmo onde os partidos sejam destinados a representar dois interesses de classes antagônicas, como na Inglaterra, com os partidos Trabalhista e Conservador; (2) um sistema bipartidário (ou
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dois partidos dominantes) em que cada partido principal é uma orga nização frouxa de muitos interesses regionais ou setoriais, como nos Estados Unidos e Canadá; ou (3) um sistema multipartidário com tantos partidos que o governo em geral tem de ser uma coalizão, como na maioria dos países da Europa ocidental. No primeiro caso, cada partido tende a orientar-se a uma posição média, o que exige evitar uma posição de classe manifesta. Deve ser assim a fim de ter condições de projetar uma imagem -de si mesmo como partido nacio nal em prol do bem comum, sem cuja imagem não terá probabilidade de manter o apoio majoritário por muito tempo. No segundo caso, cada um dos principais partidos é compelido a agir de modo seme lhante apenas em parte - cada um deve oferecer uma plataforma que englobe tudo para todos e que seja por isso mesmo muito indetermi nada. Na verdade, em tal sistema, um terceiro ou quarto partido pode começar com uma posição que tenha específico conteúdo de classe, mas se esse partido aumentar em tamanho a ponto de atingir o lugar de segundo ou primeiro partido, terá de fazer a mesma coisa. No terceiro caso, um sistema realmente multipartidário, em que ne nhum partido possa em geral esperar ser majoritário, nenhum parti do pode oferecer um objetivo inequívoco ao eleitorado dado que tan to o partido como o eleitorado sabem que o partido terá que conci liar continuamente no governo de coalizão. Ora, é certo que nenhum desses sistemas indiferenciadores pode ría ter atuado como o fizeram, se uma divisão bipolar de classes no país todo tivesse suplantado tanto o senso de identidade nacional como todas as correntes setoriais, étnicas e outras. Nenhum desses três sistemas podia operar tal como o fazem, se a classe numericamen te maior fosse uma classe de -pontos de vista unilaterais, cujos membros não fossem impelidos a outras direções por compromissos tradicionais ou correntes cruzadas de idéias. Mas à medida que isso acontecia, em todos esses países, ao mesmo tempo a franquia demo crática tornava-se operante, e houve fatores que enfraqueceram a es perada divisão bipolar entre os que apoiavam e os que aparentemen te rejeitavam o sistema existente de propriedade e de concorrência do mercado. Na América do Norte do século XIX, a expansão conti nental e a terra livre transformaram a classe maior, fazendeiros inde pendentes e outros pequenos proprietários trabalhadores, em esboço da pequena burguesia: eles queriam capitalismo privado e economia de mercado, desde apenas que isso não fosse arquitetado em favor dos capitalistas das metrópoles comerciais. No mesmo período, em fins do século XIX e inícios do século XX, a expansão imperial que a Inglaterra e a maioria dos países europeus empreendiam permitia a seus governos fazer concessões a seus eleitorados que reduziam as pressões da classe trabalhadora por reformas fundamentais. Não fos-
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se por esses fatores, o sistema partidário aparentemente neutro não teria desempenhado sua função. Mas, dados esses fatores, sem o sis tema partidário é pouco provável que a função tivesse sido cumpri da. O sistema partidário, em qualquer de suas variantes, foi o meio pelo qual a função de desfazer as subjacentes diferenças de classe foi cumprida. O sistema partidário tem uma capacidade inerente de fazer isso devido a outro aspecto. Com cada expansão da franquia, o sistema partidário torna-se necessariamente menos responsável para com o eleitorado. Tomemos o caso clássico do sistema partidário inglês. Ele foi o meio eficaz de fazer e desfazer governos por meio século ou mais, antes que houvesse algo parecido com franquia democrática. Na medida em que a franquia se limitava à classe proprietária, o nú mero relativamente pequeno de eleitores em cada eleitorado possibi litava aos eleitores exercerem considerável influência, e mesmo con trole, sobre o membro eleito. E dado que os partidos podiam assim ser responsabilizados para com seus constituintes, ou pelo menos com segmento ativo do eleitorado, isto é, com o partido constituinte, por mais frouxamente organizado que fosse, eles'hâo podiam ser do minados pelo governo, isto é, pelos principais homens no partido parlamentar. Tudo isso mudou com a democratização da franquia. O apelo ao eleitorado de massa exigia a formação de partidos nacionais bem organizados fora dos partidos parlamentares. A organização eficaz exigia máquinas partidárias controladas do centro. O endosso pela máquina partidária tornou-se virtualmente o único meio de eleição para o Parlamento. A liderança partidária central estava portanto em condições de controlar seus membros. O poder principal cabia aos líderes partidários no Parlamento, porque eles, isto é, o Primeiro Ministro e os principais ministros do gabinete, comandavam a amea ça de expurgo do partido e a ameaça de dissolução do Parlamento prematuramente, compelindo assim a novas eleições. O gabinete es tava assim em condições de dominar o Parlamento em alto grau. E ainda domina. Não apenas ele tem condições de dominar: ele agora é forçado a fazê-lo. Pois a franquia universal trouxe uma mudança na função bá sica que o sistema político tinha a desempenhar, mudança que exigia controle governamental mais que eleitorado ou controle partidário de fora, do partido parlamentar. Antes que a franquia se tornasse de mocrática, a função do sistema era de reagir às necessidades de com binações transitórias de vários elementos da classç possidente, o que podia ser feito de modo melhor por governos que fossem responsá veis, através dos partidos de massa, para com os principais eleitora dos. Mas com a franquia democrática, o sistema teve que conciliar as
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I exigências das duas classes, as que possuem e as que I considerável propriedade. Isso significou que o sistema
não possuem teve que con ciliar permanentemente, ou pelo menos dar a impressão de conciliar. A conciliação permanente exigia campo para manobra. O governo é que deve ter esse campo. Num sistema multipartidário, em que todo governo é uma coalizão, compreende-se isso. Nem sempre é com preendido que espaço para manobra é também necessário no sistema bipartidário (ou de dois partidos principais) em que o governo em ge ral decorre todo de um único partido. Mas espaço para manobra é 1 também necessário nesse caso, pois o que exige permanente concilia I ção é o antagonismo de interesses no país, seja ou não esse antagonisí mo representado dentro do governo. Um governo, sobretudo um go verno majoritário, não pode ter esse espaço para manobra se for mantido intimamente responsável inclusive com o partido parlamen tar, para não falar do partido de fora como um todo através de uma convenção partidária anual, ou com os partidos eleitorais. Falharam todas as tentativas, pelos partidos reformistas democráticos e movi mentos em países parlamentares, para tornar o governo e os membros do Parlamento estritamente responsáveis para com organi zações populares de fora. Uma razão suficiente para o fracasso é que tal responsabilidade estrita não dá campo para manobra e concilia ção que um governo constituído inteiramente por um partido deve ter a fim de exercer suas funções de mediador entre interesses de clas se antagônicos da sociedade toda. A conclusão geral'desse rápido exame do sistema partidário é que o sistema partidário tem sido o meio de conciliar a franquia uni versal com a manutenção de uma sociedade desigual. Assim tem sido pela dissimulação das questões e pela redução da responsabilidade do governo para com os eleitorados. O sistema tem de fazer ambas essas coisas a fim de desempenhar as funções exigidas dele por uma sociedade desigual. Tem pois necessariamente falhado em induzir à participação popular generalizada no processo político que o Mode lo 2 exigia, e em conseqüência tem fracassado em desenvolver o in divíduo ativo como cidadão, e em fomentar a comunidade moral, como o Modelo 2 esperava. MODELO 2B: A DEMOCRACIA DES EN VOL VIM EN Tl STA DO SÉCULO XX
Enquanto tudo isso estava acontecendo, as razões expostas pelos li beral-demócratas continuavam de tipo desenvolvimentista - em essên cia, a argumentação de Mill exceto a proposta de voto pluralista. Não me alongarei examinando pormenorizadamente as teorias democráticas dos autores de início do século XX. Mas com certeza
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pode-se afirmar que a tónica, o ideal e as justificações básicas são quase as mesmas de Mill em todo$ os teóricos principais ingleses e norte-americanos da primeira metade do século XX,, seja na tradição filosófica idealista (Barker, Lindsay, MacIver), ou na pragmática (De wey), ou no utilitarismo modificado (Hobhouse). As únicas exceções * foram os primeiros teóricos que expncitamente tentaram combinar os valores liberais com certo tipo de socialismo (Cole, Laski), mas eles não se desviaram significativamente da tradição liberal. E na principal tradição liberal daquela época houve, em comparação in clusive com Mill, um declínio constante no realismo das análises da democracia liberal. Mill havia percebido a contradição entre seu ideal desenvolvimentista e a sociedade dividida em classes e exploradora de seu pró prio tempo. Falhou em resolvê-la, mesmo em teoria, devido a que não a identificou rigorosamente: ele não percebeu que se tratava de uma contradição entre as relações capitalistas de produção como tais e o ideal de desenvolvimento. Mas pelo menos não presumiu que o processo político democrático podia por si superar a divisão e explo ração de classe. Ele depositava suas esperanças em outras coisas cooperativas de produtores, educação da classe trabalhadora, etc. ¡ Essas esperanças não foram realizadas, mas pelo menos ele pôs todo ' o encargo no próprio processo democrático. Os teóricos da primeira metade do século XX cada vez menos se ocu param de classes e exploração. Em geral, escreveram como se a pró pria democracia, pelo menos uma democracia que abrangesse o Estado regulador e do bem-estar, pudesse fazer o máximo possível, e o máximo que era necessário fazer, para ensejar uma sociedade boa. Na verdade, eles não foram insensíveis aos problemas da concentra ção do poder econômico privado; e não foram amistosos para com a ideologia individualista que eles percebiam subjacente à ordem vi gente. Lindsay, por exemplo, era francamente contra “o individualis mo atômico que tem aviltado a democracia desde o início”, a qual, estranhamente, ele identificava não apenas com Bentham mas tam bém com Marx. E ele não aceitava completamente o controle exis tente da produção pelo capital: “a aplicação ao governo da indústria de... princípios democráticos” seria “a realização” da democracia. Mas o que ele julgava suficiente para o controle dos negócios era cer to controle dos negócios monopolistas. A soberania dos consumido res de uma economia de mercado plenamente concorrencial era perfeitamente aceitável. Nada havia de errado nas relações capitalistas de produção como tais. No final de contas, sua esperança para a de mocracia reduzia-se a um mais vivido florescimento de associações
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democráticas pluralistas não políticas “como igrejas e universida des" 2\ Esse pluralismo neo-idealista era urna corrente extraviada na teoría liberal-democrática de inícios do século XX. E havia certa ex cusa, ou pelo menos certa razão, para o descuido dos teóricos quanto à divisão de classes. O sistema partidário democrático aparentemente havia solucionado a questão: ele havia superado o risco do governo classista. Mas eles não perceberam como ele o havia feito, isto é, re duzindo a conformidade democrática dos governos aos eleitorados, e assim impedindo que a divisão de classe atuasse politicamente de al gum modo eficaz. Assim é que podiam escrever, e de fato o fizeram, como se o processo democrático fosse um arranjo pelo qual cidadãos sensatos c bem-intencionados, que tivessem evidentemente toda uma gama de diferentes interesses, pudessem adequadamente ajustar suas diferenças mediante permutas pacíficas e racionais de partidos, gru pos de pressão e imprensa livre. Eles se permitiram ter esperança de que o problema das classes desaparecesse: ou que ele já estivesse sen do substituído por grupos sociais pluralísticos, ou que ele fosse assim reduzido pelo Estado regulador ou do bem-estar a ponto de que uma sociedade democrática fosse consistente com uma sociedade capita lista de mercado. Assim é que Barker, embora vendo certo volume de “debate de classes" que exigia alguma atenção para “calcular ganhos e perdas entre diferentes classes e seções", e embora reconhecendo que certa redistribuição de direitos entre classes poderia ser necessária se é que “o maior número deve desfrutar o maior desenvolvimento possível das capacidades e da personalidade", considerava essa redistribuição como “questão para constante ajuste e reajuste, à medida que o pen samento sobre justiça progrida e à medida que a interpretação dos princípios de liberdade e igualdade se amplie com o seu progres so" 2\ E pensava ele que os ajustes agora exigidos “ podem já come çar, e mesmo às vezes continuar, ao nível do acordo voluntário entre associações voluntárias (as dos trabalhadores e dos empregadores), acordo esse baseado em consulta voluntária e solução em coopera ção voluntária". Quando desse modo algo tiver sido feito que seja “tão obviamente melhor" a ponto de merecer transformar-se em re gra geral, a atuação do Estado seria apropriada. “Nesse caso, o Esta do, que não é o inimigo da Sociedade, mas está para ela mais ou me-2 9 2 8
28 A. D. Lindsay: The Essentials of Democracy, 2V ed., Londres, 1935, pp. 6, 5, 64, 7374. 29 Ernest Barker: Principles o f Social & Political Theory, Oxford, 1951, pp. 271-2.
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nos como o procurador está para a familia, tomará em consideração e endossará esse melhor como norma para aplicação e execução ge ral” . 30 A noção de que as diferenças de classe podiam ser ajustadas “à medida que progrida o pensamento sobre a justiça”, e que isso podia ser feito pela cooperação voluntária das classes, ajudada por um Esta do procurador da família, é de certo modo um recuo em relação à apreciação de Mill quanto ao problema das classes. Faz também a análise utilitarista de Mill parecer intransigente e realista em compa ração com a confiança na boa-vontade dos idealistas posteriores. Em idêntica linha de pensamento, Maclver definia os estados democráticos como aqueles “em que a vontade geral é inclusiva de toda a comunidade ou pelo menos da maior parcela da comunidade,, e é apoio consciente, ativo e direto da forma desgoverno” . 31 Ele dis- ) tinguia de modo específico estados democráticos e estados controla-' dos por classes, e achava que nas modernas civilizações as classes matizavam-se umas nas outras e não tinham “qualquer solidariedade ) de interesse definido” . 32 Ele chamava atenção para a enorme ga m ade grupos e associações de interesse, constituindo um universo social em que há “incessante movimento e sentimento, luta e acordo”.33 E via o sistema partidário como meio eficaz de reduzir “as numerosas diferenças de opinião quanto a alternativas relativamente simples” . 34 A tarefa do Estado democrático, tarefa que ele desempenhava, em bora de modo imperfeito, era exprimir e pôr em execução a vontade geral ao representar os homens como cidadãos mais do que como de tentores de interesses particulares. O perigo consiste não em que interesses particulares não sejam considerados e satisfeitos, mas antes que o interesse geral possa ficar em segundo plano pela urgência deles. Contra esse perigo o principal baluarte é o Estado, porque sua organização pressu põe e em certo grau concretiza a atividade da vontade geral. Além disso, devemos admitir que mediante o imperfeito método de representação política os “mais e menos” de objetivos parti cularistas e antagônicos irão, como dizia Rousseau, até certo ponto anular-se”. ... “os homens não estão contentes em ser re-
30 Ibidem, pp. 275-6. 31 R. M. Mac! ver: The Mod em State , Oxford, 1926,p. 32. 32 Ibidem, p. 403. 33 Mactver; The Web o f Government, Nova York, 1947, p. 435; cf. Modem State, p, 461. 34 Web of ‘Government, p. 214.
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
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presentados apenas como agricultores ou como mecânicos, ou como anglicanos ou como amantes da música ou qualquer outra arte ou recreação: querem também ser representados como cidaI dãos. Do contrário, a unidade de suas vidas individuais não será \ expressa, tanto quanto a unidade da sociedade. Essa represen tação é conseguida, não importa o quão imperfeitamente, atra vés do desenvolvimento do sistema partidário. Vimos que embo! ra os partidos sejam dominados por fortes interesses particula| res, eles são em idéia e em princípio as formulações das atitudes \ mais amplas da cidadania. Se não fossem, o Estado cairia em pe daços. 356 3 Com isso Maclver oferecia sua visão da função essencial do “Estado" como uma exposição da função de fato desempenhada, embora im perfeitamente, pelos Estados liberal-democráticos através de seus sis temas partidários. Quando passamos do modo de ver neo-idealista ao modo de ver / pragmático de John Devvey, verificamos que sua liberal-democracia é ^ menos indulgente quanto à sua atuação concreta. Contudo, ele pro / clamava como possibilidade e esperança o que os pluralistas idealis / tas tratavam como uma realização. Ele mantinha poucas ilusões \ quanto ao sistema democrático na prática, ou quanto à qualidade de uma sociedade dominada por motivos de vantagens individuais ou ; de empresas. A dificuldade original jaz não em defeitos no aparelho "í do governo, mas no fato de que o público democrático era “ainda / amplamente rudimentar e desorganizado" e incapaz de saber contra / que forças da organização econômica e tecnológica ele tinha de se le^ vantar. 'h De nada vale consertar a máquina política: o problema prioritá rio é “o de descobrir os meios pelos quais um público disperso, móvel e multifacetado pudesse reconhecer-se de tal modo a definir e exprimir seus interesses” . 37 A incompetência do público atual em / fazer isso era atribuída à sua incapacidade de compreender as forças ; tecnológicas e científicas que o tornaram tão inerme. O remédio con \ sistia em procurar mais, e mais generalizado conhecimento social: “a ' democracia é um nome para uma vida de comunhão livre e enriquecedora, Ela teve o seu vidente em Walt Whitman. Terá sua reali-
35 Modern State, pp. 465-6. 36 John Dewey: The Public and Its Problems (1927), Denver, 1954, p. 109. 37 Ibidem, p. 146.
MODELO 2: DEMOCRACIA DESENVQLVfMENTISTA
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zaçâo quando a pesquisa social livre estiver indissoluvelmente mes clada com a arte da plena e móvel comunicação” . 38 O necessário não era precisamente mais educação - remédio a que muitos liberais anteriores recorreram - mas aperfeiçoamento das ciências sociais pela aplicação do método experimental e “método da inteligência cooperativa” . 39 “A necessidade essencial... é a melhoria dos métodos e condições de debate, discussão e persuasão. Esse é o problema do público... essa melhoria depende essencialmente da li bertação e aperfeiçoamento dos processos de pesquisa e dissemina ção de suas conslusões.” 40 Necessário também era um elevado grau de controle social das forças econômicas. Escrevendo sob o impacto da grande depressão, Dewey argumentava em favor de “uma coordenação planejada do desenvolvimento industrial”, de preferência porvconsentimento vo luntário, talvez por meio de um “conselho coordenador e diretor em que os capitães da indústria e das finanças se reunissem com repre sentantes trabalhistas e funcionários do governo para planejar a re gulamentação da atividade industrial...”; seja como for, “a introdu ção da responsabilidade social em nosso sistema financeiro a tal pon to que se siga a ruína de uma indústria exclusivamente voltada ao lu cro pecuniário”. 41 Poucos anos mais tarde, denunciando “ o controle por poucos do acesso aos meios de trabalho produtivo por parte de muitos”, e notando “a existência de antagonismos de classes, che gando, por vezes, à guerra civil velada”, argumentava ele que o libe ralismo devia ir além de proporcionar serviços sociais “e socializar as forças da produção, agora à mão, de modo que a liberdade dos in divíduos seja amparada pela própria organização da estrutura eco> nômica” . 42 Mas “as forças da produção” que deviam ser socializa das eram a ciência e a tecnologia, que estavam agora desvirtuadas de seus fins adequados. Isso não podia ser feito por remendos ou por ; uma revolução socialista, mas apenas pelo método “de inteligência cooperativa” . 43 Embora ele se referisse mais de uma vez à excelência de uma “economia socializada” , 44 não é absolutamente claro o que ele tinha em mente. Ele não estava interessado em qualquer análise do capitalismo. Ocupava-se inteiramente das perspectivas de um li-
38 Ibidem, p. 184. 39 Liberalism and Social Action (1935), Nova York, 1963, p. 81; Cf. Public and Its Problems, p. 202. 40 Public and Its Problems, p. 208. 41 Individualism Old and New (1929), Nova York, 1962, pp. 117-18. 42^Liberalism and Social'Action, pp. 38, 80, 88. 43 Ibidem, p. 81. 44 Ibidem, pp. 90, 91.
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A DEMOCRACI A LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
beralismo democrático. Reconhecendo que “nossas instituições, democráticas na forma, tendem em substância em favor de uma pluto cracia privilegiada”, prosseguia ele dizendo:43 Contudo, é puro derrotismo admitir de antemão do julgamento concreto que as instituições políticas democráticas sejam inca pazes de mais desenvolvimento ou aplicação social construtiva. Mesmo como existem agora, as formas de governo representati vo são potencialmente capazes de exprimir a vontade pública quando essa admite algo como unificação. O que era preciso acima de tudo era que os liberais aplicassem “às re lações sociais e direção social” o método da “inteligência experimen tal e cooperativa” que já havia feito tanto “em submeter ao emprego do poder humano as energias da natureza física” . 4 56 Dewey, pois, enquanto longe de confiar no maquinismo político democrático existente para ensejar a desejada transformação da so ciedade, apelava do mecanismo democrático para o humanismo de mocrático. A democracia “é um modo de vida”: ela “não pode depen der só de instituições políticas nem ser expressa só por elas” . 47 O modo de ver humanista que ele percebia como o essencial da demo cracia deve ser inculcado em “toda fase de nossa cultura - ciência, ar te, educação, moral e religião, assim como na economia e na políti ca” . 48Isso devia ser feito sobretudo através da disseminação do espí rito científico: “o futuro da democracia está aliado à difusão da ati tude científica”. E isso tudo deve ser feito por “métodos múltiplos, parciais e experimentais” . 49 Não é grande a distância entre o pragmatismo de Dewey, com sua forte inftuência nos Estados Unidos em inícios do século XX, e o idealismo pluralista que prevalecia no pensamento liberal de mocrático inglês na mesma época. Ambos enxergavam uma necessi dade de “métodos múltiplos, parciais e experimentais”. Os teóricos ingleses estavam mais inclinados a voltar aos valores da antiga Ate nas, e os norte-americanos à domesticação da tecnologia; mas uns e outros acreditavam profundamente na eficácia do pluralismo. Talvez não seja injusto afirmar que todos eles aceitaram incons cientemente a imagem do processo político democrático como um mercado, um mercado livre em que tudo operava para a vantagem maior de todos (ou para a mínima desvantagem de todos). Não fize-
45 Ibidem, pp. 85-86. 46 Ibidem, p. 92. 47 Freedom and Culture , Nova York, 1939, pp. 130, 125. 48 Ibidem, p. 125. Í9\I bifam, pp. 148, 176.
MODELO
2:
DEMOCRACIA
DESENVOLVIMENTISTA
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ram explicitamente a analogia com o mercado, porque era demasia do grosseira, demasiado materialista: eles sustentavam ainda o ideal democrático de desenvolvimento do indivíduo, ao passo que a analo gia com o mercado implicava a estreita procura do interesse imedia- \ to. Eles não desejavam imputar ao cidadão a racionalidade tacanha / do homem de mercado. Mas podiam e de fato imputaram ao cidadão í uma racionalidade própria capaz de superar as imperfeições do siste- \ ma democrático real. Foram incentivados a isso porque o sistema J real havia sobrevivido: Maclver, por exemplo, citava o fato de sua sobrevivência como evidência de que os cidadãos tinham, além de sua vontade particular, uma vontade racional geral como cidadãos, e que o sistema permitia aquela vontade ser expressa.50O que os teóri-; cos do desenvolvimento do século XX não viram, como notamos, foi ,% J o grau a que o sistema sobrevivera pela redução da conformidade dos 1 governos com os eleitorados. Foi a falha dos teóricos em ver isso o / que lhes permitiu postular uma racionalidade esmagadora do cida dão e incluí-la em seu modelo expositivo. E foi essa inclusão em seu modelo expositivo que os expôs ao ataque destruidor dos cientistas políticos empíricos de meados do século XX. Por fim., foi o erro dos teóricos desenvolvimentistas em ver essa diferença entre o sistema democrático atual que se parecia muito mais com um mercado (embora longe de ser um mercado plenamente concorrencial), e suas esperan ças desenvolvimentistas idealistas, o que levou ao fracasso do Mode lo 2B e sua supressão pelo Modelo 3, que era um modelo de mercado inteiramente rígido, e aparentemente realista.
50 Conforme citado acima, nota 35.
IV
Modelo 3 :
Democracia de Equilibrio
A ANALOGIA
COM
O
MERCADO EMPRESARIAL
0 Modelo 3, que veio a prevalecer no mundo ocidental nos meados do século XX, foi oferecido como substituição ao falido Modelo 2. Ele é, em grau nem sempre compreendido, umajeversão ao Modelo 1 e uma melhoria dele. Essa é a medida ao mesmo tempo de sua congruência com a sociedade de mercado e o homem burguês, e de sua impropriedade cada vez mais manifesta. {
Chamei o Modelo 3 de modelo de equilíbrio. Pode também ser chamado, e às vezes o é, de modelo elitista pluralista. Talvez o único nome adequadamente descritivo fosse o que combinasse os três ter mos, “modelo de equilíbrio elitista e pluralista”, porque essas três ca racterísticas são igualmente fundamentais nele. É pluralista porque? parte da pressuposição de que a sociedade a que se deve ajustar um sistema político democrático é uma sociedade plural, isto é, uma so- ( ciedade consistindo de indivíduos, cada um dos quais é impelido a muitas direções por seus muitos interesses, ora associado com um grupo He companheiros, ora com outro. É elitista naquilo que atribui j a principal função no processo político a grupos auto-escolhidos de / dirigentes. É um modelo de equilíbrio no que apresenta o processo democrático como um sistema que mantém certo equilíbrio entre a procura e a oferta de bens políticos. O Modelo 3 foi pela primeira vez formulado, conquanto resumi damente, em 1942, por Joseph Schumpeter, nuns poucos capítulos de seu conhecido livro Capitalism, Socialism, and Democracy. Desde en tão ele tem sido edificado e aparentemente robustecido pelo trabalho de muitos cientistas políticos que o ampliaram e ampararam median te considerável volume de investigação empírica de quantos votantes
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A DEMOCRACIA LIBERAL: ORIGENS E EVOLUÇÃO
nas democracias ocidentais realmente se conduzem e o quanto os sis temas políticos ocidentais de fato reagem ao seu comportamento *. Os principais conceitos desse modelo são: primeiro, que a demo jcracia ê simplesmente um mecanismo para escolher e autorizar go!vernos, e não uma espécie de sociedade nem um conjunto de fins mo¡rais; segundo, que o mecanismo consiste de uma competição entre \dois ou mais grupos escolhidos por si mesroos de políticos (elites), grupados em partidos políticos, para os votos que os qualificarão a / governar até as eleições seguintes. A função dos votantes não é resol ver problemas políticos e depois escolher representantes que execu tem as suas decisões; é, isto sim, escolher os homens que farão as de cisões. Assim é que Schumpeter escreve: “0 papel do povo é produzir um governo... o método democrático é aquela organização institu cional para chegar a decisões políticas em que os indivíduos adqui rem o poder de decidir por meio de uma luta competitiva pelo voto do povo” 1 2. Os indivíduos que assim competem são, evidentemente, ) os políticos. O papel dos cidadãos é simplesmente escolher conjuntos de políticos periodicamente em épocas eleitorais. A capacidade dos ícidadãos para substituir assim um governo por outro protege-os ida tirania. E, na medida em que há diferença nas plataformas dos partidos, ou nas linhas gerais da política que se espera de cada parti do como um governo (na base de seu histórico), os votantes ao esco lherem entre partidos manifestam seu desejo por um punhado de / bens políticos de preferência a outros. Os fornecedores desses bens A que obtenham mais votos tornam-se os dirigentes autorizados até a j eleição seguinte: não poderão ser tirânicos porque haverá próxima ^eleição. O Modelo 3 deliberadamente esvazia o conteúdo moral que o Modelo 2 introduzia na idéia de democracia. Não há insensatez quanto à democracia como veículo para aperfeiçoamento da huma nidade. A participação não é um valor em si mesmo, nem mesmo um valor instrumental para a realização de um mais elevado, mais social mente consciente conjunto de seres humanos. O propósito da demo cracia é registrar os desejos do povo tais como são, e não contribuir para o que ele poderia ser ou desejaria ser. A democracia é tão-
1 As principais obras são: Bernard R. Berelson, Paul F. Lazarsfeld e William N. McPhee: Voting, Chicago, 1954; Robert A. Dahl; A Preface to Democratic Theory, Chicago, 1956; Dahl: Who Governs?, New Haven, 1961: Dahl: Modern Political Analy sis, Englewood Cliffs, N. J., 1963; Gabriel A. Alm ond e Sidney Verba: The Civic Cul ture. Princeton, 1963. 2 Joseph Schumpeter: Capitalism, Socialism, and Democracy, 2*. ed. Nova York e Londres, 1947, p. 269.
MODELO 3:
DEMOCRACIA DE
EQUILÍBRIO
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somente um mecanismo de mercado; os votantes são os consumido res; os políticos são os empresários. Não surpreende que o homem que primeiramente propôs esse modelo fosse um economista que passou toda a sua vida profissional elaborando modelos de mercado. Nem surpreende que os teóricos (e depois os publicistas e o público) tomassem esse modelo como realista, porque também eles viveram e trabalharam numa sociedade impregnada de conduta mercantil. Não apenas o modelo do mercado parece corresponder, e portanto expli car, ao verdadeiro comportamento político das principais partes componentes do sistema político - os votantes e os partidos; ele pare cia também justificar aquela conduta, e daí todo o sistema. Pois em meados do século XX, quando ainda não parecia dema siado ingênuo falar de soberania do consumidor no mercado econô mico, era fácil ver um paralelo no mercado político* os consumidores políticos eram soberanos porque tinham uma escolha entre os fornecedores do cesto de bens políticos. Era fácil para os teóricos políticos fazer a mesma pressuposição que os teóricos econômicos. No modelo econômico, admitia-se empresários e consumidores serem maximizadores racionais do seu próprio bem, e estarem agindo em condições de concorrência livre em que todas as energias e recur sos eram trazidos ao mercado, resultando disso que o mercado produ zia a distribuição ótima de trabalho e capital, e bens de consumo. Também no modelo político, políticos e votantes deviam ser maximi zadores racionais, e estarem agindo em condições de livre concorrên cia, resultando que o sistema político do tipo mercado produzia a distribuição ótima das energias políticas e dos bens políticos. O mer cado político democrático produzia um equilíbrio de insumos e pro dutos: das energias e recursos que o povo aplicasse nele e as recom pensas que obtivesse dele. Observei em outro trabalho 3 que, na época que os cientistas políticos receberam esse modelo econômico, ele já estava sendo descartado ou muito modificado pelos economistas em favor de um modelo econômico oligopólico maciço de força. Mas a noção de soberania do consumidor é ainda aceita no modelo político pluralista, e serve como uma justificação implícita dele. Esse modelo faz outra pressuposição por analogia ao mercado. Ele presume não só que, de fato, o homem político, como o homem econômico, é essencialmente um consumidor e apropriador: presume também que as coisas que as diferentes pessoas desejam do governo a demanda de bens políticos - são tão diversas e cambiantes que o único meio de torná-las efetivas, o único meio de obter as decisões do
3 Democratic Theory: Essays in Retrieval, Oxford, 1973, Ensaio X.
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governo para satisfazê-las, o único meio de obter o necessário forne cimento de bens políticos, e distribuídos na proporção das milhares de demandas, é um sistema empresarial como o que opera no modelo padrão de uma economia de mercado concorrencial. Dado que as de mandas políticas são tão diversas que não se deva esperar que ne nhum grupamento natural ou espontâneo delas possa produzir uma clara posição majoritária, e dado que numa democracia o governo deve exprimir a vontade da maioria, segue-se que é necessário um aparelho que produza uma vontade majoritária dentre as diversas demandas, ou produza um conjunto de decisões que sejam as mais satisfatórias a todos, ou as menos desagradáveis possíveis, para todo j o conjunto de demandas individuais diferentes. Um sistema político ; empresarial em que os partidos como produtores ofereçam cestos di) ferentemente proporcionados de bens políticos, dos quais os votantes / por voto majoritário escolham um, é oferecido como o melhor, ou o i único, dispositivo para esse fim: ele produz um governo estável que equilibra a procura e a oferta. Esse pluralismo do Modelo 3 evidentemente tem algo em co mum com o pluralismo que examinamos no Modelo 2B. Mas há uma diferença qualitativa considerável. O pluralismo do Modelo 3 elimi na o ingrediente ético que era tão marcante no Modelo 2B. Ele trata Jos cidadãos como simples consumidores políticos, e a sociedade polí tica simplesmente como uma relação do tipo mercado entre eles e os fornecedores de mercadorias políticas. Dessa exposição sumária do Modelo 3 e as pressuposições em que ele se baseia, podemos perceber que ele se oferece como um enunciado do que o sistema vigente realmente é e como uma explica ção, em termos dos princípios do mercado, do por que ele atua como faz. Observamos também que a explicação facilmente confunde-se com justificação. Antes que examinemos mais detidamente a perti nência do Modelo 3, como exposição e justificação, devemos notar que há diferenças de ênfase, se não de substância, entre alguns dos seus principais expoentes. As diferenças não são tanto quanto às descrições que dão, mas quanto ao grau das reivindicações feitas para o sistema. Todos eles vêem os cidadãos como consumidores políticos, com as mais diversas necessidades e exigências. Eles vêem também concorrência entre políticos pelos votos dos cidadãos como o motor do sistema. Todos eles acham que esse mecanismo produz de fato um equilíbrio estável. Diferem um pouco em suas opiniões sobre o grau em que ele também proporciona certa medida de soberania política ao consumidor. Schumpeter atribui ao sistema baixa cotação quanto a isso. Acha ele
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que os votantes têm a maior parte de suas opções feitas para eles,4e que as pressões que eles podem fazer ao governo entre épocas eleito rais não são muito eficazes. Outros analistas são mais otimistas quanto à eficácia das prefe rências dos consumidores. Dahl acha “um tanto falha” na análise de Schumppeter, “afora isso excelente”, a opinião de “que eleições e ati vidade intereleitoral são de trivial importância na determinação da política”. Mas o máximo que Dahl reivindica para essas atividades é que “elas são processos decisivos para garantir que os dirigentes polí ticos venham a estar pelo menos um pouco em conformidade com as preferências de alguns cidadãos comuns” 5, ou que “com todos os seus defeitos [o sistema político norte-americano) apesar disso pro porciona alta probabilidade de que um grupo dinâmico e legítimo se faça ouvido de fato em certo estágio do processo decisorio... parece ser um sistema relativamente eficaz para reforçar o acordo, estimu lando a moderação, e mantendo a paz social num povo incansável e ¡moderado atuando numa sociedade gigantesca, poderosa, diversifi cada e incrivelmente complexa” 6. Em obra posterior, Dahl avalia com mais aprovação a funcionalidade do sistema: “os cidadãos, em maioria... possuem um grau moderado de influência direta, porque os funcionários eleitos mantêm as preferências reais ou imaginárias dos eleitorados em mente ao decidir que política adotar ou rejei tar” 7. Às vezes, reivindicações ainda maiores são feitas. Por exemplo, o prestigioso estudo Voting, de Berelson, Lazarsfeld e MacPhee, após demonstrar que no sistema político norte-americano os cidadãos não são absolutamente como os cidadãos racionais do Modelo 2, e de pois de demonstrar que o sistema de fato funciona (isto é, não se de sintegrou nem em ditadura nem em guerra civil), e “não raro opera com distinção” 8, concluía que ele deve ter méritos ocultos. Algo como a mão invisível celebrada por Adam Smith deve estar em atua ção: Se o sistema democrático dependesse exclusivamente das quali ficações do votante individual, então parece notável que a de mocracia tenha sobrevivido por séculos. Após examinar os da dos pormenorizados quanto a como os indivíduos percebem en-
4 Vejam-se, a seguir, notas 23 e 24. 5 Preface to Democratic Theory, p. 131. 6 Ibidem, pp. 150 1 7 Who Governs?, p. 164. 8 Berelson, Lazarsfeld, e McPhee: Voting, p. 312. -
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ganosamente a realidade política, ou reagem a influências so ciais irrelevantes, fica-se admirado de como a democracia sem pre resolve seus problemas políticos. Mas quando consideramos os dados numa perspectiva mais ampla - como imensos segmen tos da sociedade se adaptam às condições políticas que os afe tam ou como os sistemas políticos se ajustam às condições cam biantes por longos períodos de tempo - ele não pode deixar de se impressionar com os resultados totais. Onde cidadãos racionais parecem abdicar, todavia anjos parecem assumir9. Essa ressonância de Adam Smith não é de surpreender, porque Berelson e outros, de fato, tendem a atribuir o êxito do Modelo 3 à sua natureza de mercado: nada menos que a magia do mercado pode ex plicar o sucesso do sistema, e nada mais é necessário para justificá-lo. ADEQUAÇÃO DO MODELO 3
observamos que o Modelo 3 se apresenta como exposição, como explicação e, por vezes como justificação, do sistema político vigente nas democracias ocidentais. Ao indagar agora como o modelo é ade quado em cada aspecto devemos reconhecer que há certa dificuldade em tratar os três aspectos separadamente, dado que eles freqüentemente se misturam uns nos outros. Podemos dispensar a exposição, dado que a estrutura explicativa já adotada trata-os como de pouca ou nenhuma importância. Ou as conclusões descritivas e empíricas sobre, por exemplo, “apatia dos cidadãos ou dos votantes” e sua de sinformação, podem exigir que os teóricos procurem um princípio de explicação para elucidar como o sistema realmente funciona. E os princípios de explicação, como vimos, facilmente se convertem em justificação. Podemos ainda com vantagem distinguir aspecto descri tivo e aspecto justificativo, sem esperar tratar do aspecto explanativo de modo inteiramente distinto. (i) Adequação expositiva Como exposição do sistema concreto vigente hoje nas nações liberais democráticas ocidentais, o Modelo 3 deve ser julgado notavelmente rigoroso. É claramente uma descrição muito mais rigorosa que a dada pelo Modelo 2. Foi elaborado com base em estudos cuidadosos e completos por eruditos altamente capazes. Não há razão para pôr em dúvida suas conclusões, que se afastam tão drasticamente do Mo delo 2. Pode ser que as investigações deixem de lado algumas coisas, por exemplo, a capacidade das elites para decidir que assuntos devem Já
9 Ibidem, p. 311.
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ser submetidos aos votantes e o que não sejam questõ es,101mas omis sões como essas afetarão o rigor explicativo ou justificativo mais que a adequação expositiva. Podem ser necessários alguns ajustes para que essas conclusões, que se baseiam sobretudo em pesquisas no sistema nos Estados Uni dos, se apliquem à Europa ocidental: a força atual do Partido Comu nista Francês e do Italiano, por exemplo, insinua que naqueles países as divisões partidárias estão mais polarizadas em consonância com linhas classistas do que o permite o modelo pluralista norteamericano. Mas esse fato pode ser provavelmente acomodado sem muita dificuldade. O notável rigor do Modelo 3 como exposição deve ser atribuído ao notável rigor de suas pressuposições sobre o homem e a sociedade ocidentais do momento: na medida em que temos um homem de mercado e uma sociedade de mercado, elfes devem operar como descrito no Modelo 3. (ii) Adequação explicativa Os princípios explicativos, que têm em vista mostrar por que o siste ma funciona ou porque funciona bem como o faz, decorrem dos re sultados descritivos (e fazem parte deles). Mas confundem-se tam bém tão freqüentemente com as justificações do sistema que será conveniente considerar em conjunto a adequação explicativa e justi ficativa. De fato, a maioria dos escritores críticos do Modelo 3 pare ce ter-se originado da insatisfação com suas pretensões justificativas, tendo prosseguido na crítica ao seu rigor explanatório ou mesmo descritivo. Não pretendo resumir todas as análises críticas do Mode lo 3 feitas na última década e depois por cientistas políticos que po dem ser considerados como de convicções liberais-democráticas radi cais, 11 mas tão-somente citar o trabalho deles como prova da cres cente insatisfação com o modelo na comunidade dos cientistas da política. Prosseguirei investigando, à luz da análise jáífeita do fracas so dos Modelos 1 e 2, por que o Modelo 3 começou a parecer insatis fatório. .
10 Conforme argumentação de Peter Bachrach e Morton S. Baratz: “Two Faces of Power", American Political Science Review, LVI, 4 (dezembro de 1962); reimpresso em Charles A. McCoy e John Playford (orgs.): Apolitical Politics, a Critique o f Behavio rism, Nova York, 1967. 11 Por exemplo, Peter Bachrach: The Theory o f Democratic Elitism, a Critique, Boston e Toronto, 1967; McCoy e Playford, op. dit.; William Connolly (org.): The Bias o f Plu ralism, Nova York, 1969; Henry Kariel (org.): Frontiers o f Democratic Theory, Nova York, 1970; Carole Pateman: Participation and Democratic Theory, Cambridge, 1970.
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(iii) Adequação justificativa Talvez seja bom começar pelo exame da alegação em geral feita pelos expoentes do Modelo 3, ou implicada em seus escritos, de que seu modelo não é absolutamente justificatório, mas apenas expositivo e explicativo. A alegação não pode realmente ser aceita, embora Schumpeter, que pouco se incomodou em dar essa explicação, talvez tivesse razão se a fizesse. Mas os posteriores expoentes do Modelo 3, todos eles implicam, ou mesmo declaram, uma justificação em um ou em ambos os níveis. Eles afirmam, pelo menos, que o sistema é, com todas as suas reconhecidas imperfeições, o único que pode desempe nhar a função, ou o único que a pode desempenhar melhor. São os realistas. Ele é como o povo é, de modo que é o melhor de que o / povo é capaz. Em geral, alega-se ainda mais - que o sistema produz L ótimo equilíbrio e certo grau de soberania do cidadão consumidor. Essas alegações são tomadas como evidentemente corretas, de modo que o sistema que as ensejam deve ser tomado como justificável pela própria demonstração de que permite serem elas declaradas. Todas as alegações dos realistas são, pois, pelo menos implicitamente, justificatórias. Até que ponto serão adequadas? A primeira alegação equivale a dizer que o Modelo 3 é melhor porque algo mais suave não funcionaria. Os defensores do Modelo 3 contrastam-no com o que em geral chamam de modelo “clássico” de democracia, que de modo geral vem a ser uma confina mistura de um modelo pré-industrial (de Rousseau ou Jefferspn) e nossos Mo delos 1 e 2. Teríamos que fazer longa digressão para tentar desfazer essas confusões, 12sobretudo na medida em que os diferentes propo nentes do Modelo 3 estabelecem o seu testa-de-ferro “clássico” um tanto diferentemente. Schumpeter, por exemplo, toma como seu alvo principal as pressuposições supra-racionalistas que encontra no Mo delo 1 de Rousseau e Bentham: o homem mediano, sustenta ele, não é capaz de fazer os juízos racionais que ele acha necessários por aque les modelos; portanto, aqueles são desesperançados 13. Outros ocupa ram-se mais em esvaziar as pretensões do Modelo 2, embora aceitan do o modo de ver do homem do Modelo 1 como essencialmente um calculador maximizante racional: é devido a que os homens em geral sejam calculadores maximizantes que a maioria deles pode muito
12 O grau de confusão foi agudamente observado por Carole Pateman: “a noção de uma teoria clássica da democracia é um mito” (Participation and Democratic Theory, p. 17). 13 Posição semelhante embora menos extravagante foi assumida por Berelson (Bcrclson, Lazarsfeld, c McPhec: Voting, p. 322).
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bem decidir não gastar tempo ou energia na participação política, in validando assim o Modelo 2. H Ambas as opiniões tendentes a ver o Modelo 3 como mais realis ta, mais funcional, e portanto “melhor” do que qualquer modelo an terior, repousam em última análise na hipótese inverificável de que as capacidades políticas da pessoa mediana numa moderna sociedade de mercado são um dado fixo, ou pelo menos com pouca probabili dade de mudar em nossa época. Poder-se-ia argumentar, contra a validade dessa pressuposição, , que ela depende de um modelo de homem que só veio a prevalecer i com o surgimento ou predominância da sociedade capitalista de mer-j cado ,5. Mas mesmo tomando como certo que esse modelo de ho mem é tão ligado ao tempo e à cultura, não sabeqjos se ou quando ele pode ser superado. Assim, embora a hipótese não possa ser com provada, também não pode ser falseada. Daí a adequação justificatória da primeira alegação permanecer indecisa: só podemos voltar ao veredicto escocês: “Não provado”. Que dizer da segunda alegação, segundo a qual, por analogia com o sistema econômico de mercado, o sistema concorrencial de partidos elitistas enseja um equilíbrio ótimo da oferta e da procura de bens políticos e dá certa medida da soberania do cidadão consu midor? A primeira vista, equilíbrio ótimo e soberania do cidadão consumidor são coisas boas em si mesmas. Para a maioria das pes soas que vivem em sociedades avançadas e relativamente estáveis, “equilíbrio” soa melhor que “desequilíbrio”; e “ótimo” é por definição melhor; sendo assim, que seria melhor que “equilíbrio ótimo”? E “soberania do cidadão consumidor” é uma expressão plena de belas palavras. De modo que, se o Modelo 3 proporciona essas coisas, cer tamente poderiamos concluir que que ele é uma excelente espécie de 5 1 4
14 Cf. o argumento de Roberto Dahl (After the Revolution? Authority in a good Socie tv, New Haven e Londres, 1970, pp. 40-56) de que “um homem sensato aplicará” e “na vida real todos aplicam”, a qualquer sistema de autoridade, o “critério da Econo mia”, que é equilibrar o custo da participação política com o lucro esperado, sendo, o custo, o emprego passado de seu tempo e sua energia. Essa noção de participação como nada mais que um “custo” (o que é, se todos forem apenas considerados como consumidores maximizantes) esquece o possível valor da participação no fortaleci mento da compreensão do participante da posição que ele ocupa, dando-lhe maior senso de propósito e maior consciência da comunidade. Cf. Bachrach: “Interest, Parti cipation, and Democratic Theory”, em J. R. Pennock e J. W. Cahpman (orgs.): Parti cipation in Politics (Nomos XVI), Nova York, 1973, pp. 49-52. 15 Cf. Karl Polony: The Great Transformation, Nova York, 1944, e meu Democratic Theory, ensaio I.
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democracia. Mas não é isso o que acontece. Tudo o que se segue des sas premissas é que ele é ótima coisa para o mercado. Mas um merca do não é necessariamente democrático. Pretendo agora mostrar que o sistema encarnado pelo Modelo 3 como mercado político não é tão democrático como se fez crer: o equilibrio que ele produz é um equilíbrio na desigualdade; a sobera nia do consumidor que ele proclama oferecer é em grande grau urna ilusão; e que, na medida em que a soberania do consumidor for real, é uma contradição do dogma democrático central da qualificação do individuo para uso e desfrute de suas capacidades. As afirmações de equilíbrio ótimo e soberanía do consumidor são virtualmente a mes ma coisa - dois lados de uma mesma moeda - e portanto podemos considerá-las como um só assunto. Essa alegação falha em dois aspectos. Primeiro, na medida em que o sistema político de mercado, por analogia com o mercado eco nômico, é concorrencial bastante para produzir a oferta e distribui ção ótimas de bens políticos, ótimas em relação à procura, o que ele faz é registrar o que os economistas chamam de demanda efetiva e reagir a ela, isto é, as demandas que têm poder aquisitivo para espaldá-las. No mercado econômicofisso significa simplesmente dinheiro, não importa se o dinheiro tenha sido adquirido por um dispêndio da energia do seu possuidor ou de qualquer outro modo. No mercado político, o poder de compra é em grande grau, embora não inteira mente, o dinheiro - o dinheiro para financiar um partido ou um can didato numa campanha eleitoral, para organizar um grupo de pres são,ou comprar espaço ou tempo nos meios de comunicação de mas sa (ou mesmo para possuir os meios de massa). Mas o poder aquisiti vo político abrange também gasto direto de energia em campanhas, organização e participação de outros modos no processo político. Na medida em que o poder aquisitivo político é dinheiro, dificil)mente poderemos dizer que o processo equilibrador é democrático / numa sociedade, como a nossa, em que há considerável desigualdade m e riqueza e chances de adquirir riqueza. Podemos continuar cha mando de soberania do consumidor se assim o quisermos. Mas a so berania de um conjunto de consumidores em condições tão desi guais, evidentemente não pode ser considerada democrática. Na medida em que o poder aquisitivo político é um gasto direto de energia, a coisa parece melhor. Que poderia ser mais justo que um lucro proporcional ao insumo de energia política? Cidadãos que se jam apáticos naturalmente não devem esperar muito lucro como os que são mais dinâmicos. Isso seria um princípio justo, coerente com a igualdade democrática, se a apatia fosse um dado independente, isto é, se a apatia fosse em cada caso o resultado de uma decisão ma* ximizante pelo indivíduo, equilibrando os usos mais vantajosos de
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seu tempo entre a participação política e outras coisas, e se todo in dividuo que cada hora por ele dedicada à política tivesse o mesmo valor, o mesmo poder aquisitivo no mercado político, como o de qualquer outra pessoa. Mas isso precisamente é o que não acontece.^ Aqueles cuja instrução e ocupação tornam mais difícil para si do que} para outros o adquirir, dominar e pesar a informação necessária para ¡ a efetiva participação, estão claramente em desvantagem: uma hora^ de seu tempo dedicada à participação política não terá tanto efeito / quanto uma hora de outros em condições mais vantajosas. Essas pes-J soas sabem disso, e daí ficarem apáticas. A desigualdade social criaf assim apatia política. A apatia não é uma variável independente.1 AÍém disso, o sistema político do Modelo 3 contribui diretamen- . te para a apatia. Como vimos no capítulo precedente, as funções que deve desempenhar um sistema partidário numa sociedade onde reina a desigualdade, mas com franquia de massa, exigem um disfarce das questões e uma diminuição da responsabilidade dos governos para j com os eleitorados, coisas que reduzem o incentivo dos votantes para 1 impor-se fazendo uma opção. Uma das freqüentes razões para não/ ^ votar é o sentimento de que não há escolha real. Os proponentes do Modelo 3 levam em muita consideração o fe nômeno da apatia do votante, embora em geral não o atribuam às causas que acabei de mencionar. Contudo, com freqüência observam de fato que a atuação bem sucedida do Modelo 3 exige algo como os atuais níveis de apatia: participação maior poria em risco a estabili dade do sistema 16. O rigor dessa proposição geral jamais é demons trado, mas o fato de que ela é afirmada é bem revelador: no realismo do Modelo 3, deve-se encontrar algum bem mesmo em algo tão pou co promissor como a generalizada apatia. Podemos preferir pensar que um sistema político que exija e estimule a apatia não está fazen do um papel muito esperto de otimização, sobretudo em vista dos di ferenciais de classe em apatia 17. Em suma, quanto ao primeiro aspecto, verificamos que na medi da em que o sistema político de tipo mercado é bastante concorren cial para perfazer a função equilibradora da oferta e procura de bens
16 Por exemplo, Berelson et al.: Voting, Cap. 14; W. H. Morris-Jones: “In Defence of Apathy", Political Studies, II (1954), pp. 25-37; Seymour Martin Lipset: Political Man, Nova York, I960, pp. 14-16 ^publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título O Homem Político ]; Lester W. Milbrath: Po litica l Participation, Chicago, 1965, Cap. 6. 17 A vigorosa conclusão dós estudos sobre o voto é de que há um diferencial de classe em participação política. Para um estudo completo dessas c outras dimensões da apa tia, ver Sidney Verba e Norman H. Nie: Participation in America, Political Demo cracy and Social Equality, Nova York, 1972.
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políticos - ou seja, na medida em que de fat o ele corresponde à de manda do consumidor - mede e reage às demandas que são muito desigualmente efetivas. Algumas demandas são mais efetivas do que outras porque, onde a demanda é expressa em insumo de energia hu mana, o insumo energético de uma pessoa não pode obter o mesmo lucro por unidade quanto o de outra pessoa. E a classe de demandas políticas que têm o máximo de dinheiro para espaldá-las é em geral a mesma daqueles que têm maior saldo por insumo de energia huma na. Em ambos os casos são as demandas das classes socio económicas mais elevadas que são as mais efetivas. Por isso é que as classes inferiores são apáticas. Em suma, o equilíbrio e a soberania do consumidor, na medida em que o Modelo 3 proporciona essas coisas, longe estão de ser democráticos,8. O segundo aspecto em que falha o Modelo 3 em proporcionar soberania ao consumidor é que simplesmente o Modelo 3 não oferece significativo volume de soberania ao consumidor. O mercado político do Modelo 3 longe está de ser plenamente concorrencial. Isso porque ele é, na expressão dos economistas, um mercado oligopólico. Quer dizer, há apenas uns poucos vendedores, uns poucos fornecedores de bens políticos, em outras palavras, apenas uns pou cos partidos políticos: na mais aprimorada variante do Modelo 3 há apenas dois partidos efetivos, com a possibilidade de um ou dois [ mais. Onde há tão poucos vendedores, eles não precisam e de fato ^não correspondem às demandas dos compradores como deveriam fa zer num sistema plenamente concorrencial. Eles podem estabelecer os preços e a gama de mercadorias que serão oferecidas. Mais que is so, eles podem, em considerável grau, criar a demanda. Num merca do oligopólico, a demanda não é autônoma, não é uma variável inde pendente. Esse efeito do oligopólio, que é um lugar-comum da teoria eco nômica, Foi surpreendentemente pouco observado pelos teóricos políticos do Modelo 3. Mesmo Schumpeter, que de todos os formuladores do Modelo 3, tem mais semelhanças em mente com a econo mia, e argumenta que o oligopólio e a competição imperfeita a seu ver exigem uma considerável revisão da teoria clássica e neoclássica do equilíbrio, não vê sua importância em seu modelo político. Ele men ciona o paralelo entre a concorrência econômica e política, 18 19mas é a imperfeição da concorrência de todos os graus, e não a forma alta-
18 Dahl, que investigou as implicações do Modelo 3 mais plenamente que a maioria dos seus expoentes, sobretudo em seu After the Revolution (1970), é explícito quanto ao efeito destorcivo da desigualdade de classes e vê sua redução como um requisito da autêntica democracia. 19 Capitalism, Socialism, and Democracy, p. 271.
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mente imperfeita representada pelo oligopólio, o que ele tem em mente: em vez de tratar do fato crucial do oligopólio partidário, ele define “partido e políticos máquinas” como “empenho para regular a concorrência política exatamente semelhante às práticas correspon dentes de uma associação comercial” 20. Por que devia ser tão desprezada a capacidade dos partidos oligopolistas para criar as demandas de bens políticos? A meu ver, tal se deve a que os teóricos já haviam postulado que, à parte o grau de concorrência partidária, as demandas dos votantes não são e não po dem ser dados independentes decisivos do sistema político.21Isso de corre de seu postulado prévio de que o sistema partidário democráti co é essencialmente uma concorrência entre elites. Sendo as elites a força orientadora, elas é que formulam as questões. É o que pensa Schumpeter: “aquilo com que nos defrontamos na análise do proces so político, em geral não é uma vontade autênticà, mas manufatura da”, manufaturada de modo “exatamente análogo ao modo de pro paganda comercial” 22, o povo “nem suscita nem decide questões mas... as questões que modelam o seu destino são normalmente sus citadas e decididas por ela”, 23 os desejos do eleitorado “não são o dado decisivo”, a escolha do eleitorado “não decorre de sua iniciati va, mas está sendo modelada, e a modelagem dela é uma parte essen cial do processo democrático” 24. Àssim, o Modelo 3 afirma que, independente do grau de oligo pólio na competição dos partidos, mas devido simplesmente ao fato de que a iniciativa é sempre das elites, a unidade básica e irredutível do processo democrático não ê o indivíduo com um conjunto autô nomo e independente de demandas, ou como o diriam os economis tas, uma tabela autônoma de demanda. Pelo contrário, o Modelo 3 afirma que a tabela de demanda de bens políticos é em si amplamente ditada pelos fornecedores. A afirmativa é bastante precisa. Mas, cu riosamente, afirma-se que esse fato não invalida a reivindicação do Modelo 3 de ser democrático, mas que, pelo contrário, reforça essa pretensão. O argumento é que, desde que as demandas individuais não são dados básicos independentes do sistema, então o processo democrático não pode ter esperança de realizar as expectativas ou ideal dos Modelos 1 e 2; não pode ter a esperança de desempenhar as funções atribuídas a ele pelos Modelos 1e 2 ou por qualquer variante
20 Ibidem, p. 21 Ibidem, p. 22 Ibidem, p. 23 Ibidem, p. 24 Ibidem, p.
283. 254; cf. as três notas seguintes. 263. 264. 282.
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do modelo “clássico", todos os quais dependiam de indivíduos autô nomos: portanto, o Modelo 3 é melhor que os Modelos 1 e 2. Ora, essa percepção, pelos elaboradores do Modelo 3, das rela ções concretas que prevalecem em nossa sociedade, reforça a reivin dicação do Modelo 3 de ser realista - realista, isto é, para uma socie dade considerada incapaz de ir além do mercado econômico oligopolista, da desigualdade de classes, e da visão do povo de enxerga.r-se essencialmente como consumidor. Mas dá ênfase à alegação do Mo) delo 3 de ser democrático. Uma vez que o Modelo 3 permite, ou mesmo exige, que a elite fornecedora de bens políticos tenha grande pa pel na criação das demandas (como o faz, e deve fazer, num mercado / oligopolista), desliga-se o botão do equilíbrio ótimo e da soberania / do consumidor que o maquinismo racional do Modelo 3 pretendia ( produzir. Pouco resta da argumentação do Modelo 3, a não ser a função de proteger contra a tirania. Ora, nenhum liberal, nenhum indivíduo maximizante, certa mente subestimaria a importância da proteção céntra a tirania. Se o Modelo 3 fosse a única alternativa para uma ditadura ou um conjun to irremovível de governantes, a argumentação para o Modelo 3, com toda a sua desigualdade, oligopólio e apatia, ainda seria compelidora. Mas que o Modelo 3 seja a única alternativa jamais foi de monstrado; de fato, nem mesmo se argumentou explícitamente quan to a isso. Impõe-se agora uma investigação quanto à possibilidade de um sistema não ditatorial que não tenha todas as falhas do Modelo 3. AS HESITAÇÕES DO MODELO 3
! O Modelo 3 continuará sendo o modelo descritivo mais preciso, e continuará sendo aceito como modelo justificativo adequado, en quanto nós nas sociedades ocidentais continuarmos preferindo pros peridade para a comunidade (e acreditando que a sociedade de mer cado pode proporcionar riqueza indefinidamente), e enquanto conti nuarmos aceitando a opinião de que a única alternativa para o Mo delo 3 é um Estado não liberal inteiramente totalitário. Dito de • modo ligeiramente diferente, poderiamos afirmar que um sistema de ^elites em competição com um baixo nível dç participação pelos cida } dãos é uma exigência de uma sociedade enuque há desigualdade, a / maioria de cujos membros se julga como consumidores maximizanV tes. -Jt Essa exigência ficou patente durante a catastrófica depressão econômica de inícios da década de 30 em todas as nações ocidentais. A necessidade de intervenção do Estado na Economia de acordo com orientações keynesianas, a fim de manter a ordem capitalista, signifi-
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cava uma necessidade cada vez maior de afastar decisões políticas de qualquer conformidade democrática: só os especialistas, cuja argu mentação se acreditava além da compreensão dos votantes, podia salvar o sistema. O conselho dos especialistas foi seguido, e salvou o sistema nas três ou quatro décadas seguintes. O Modelo 3 estava, portanto, desde os seus próprios inícios na década de 40, compreensivelmente alinhado contra a participação democrática. Mas com as desilusões crescentes com os resultados desse capitalismo regulado pelo Estado nas décadas de 60 e 70, a adequação do Modelo 3 está sendo cada vez mais discutida. O fato de que as dúvidas aumentam cada vez mais quanto à efi cácia desse sistema não pode, infelizmente, ser tomado como prova de que nos afastamos muito da desigualdade, e da consciência de nós mesmos como essencialmente consumidores, para tornar possível um novo modelo. O máximo que podemos fazer é cònsiderar os proble-\ mas de mudar para um novo modelo, e examinar soluções possíveis.
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O SURGIMENTO DA IDÉIA
A democracia participativa não é certamente um modelo tão sólido ou tão específico quanto os modelos que até agora examinamos. Ela começou como lema dos movimentos estudantis da Nova Esquerda, ocorridos na década de 60. Difundiu-se pela classe trabalhadora na quela mesma década e na seguinte, sem dúvida em conseqüência da crescente insatisfação entre trabalhadores fabris e de escritório e dos sentimentos mais generalizados de alienação que então entraram em moda nos temas de sociólogos, técnicos em administração, comissões de inquérito governamentais e jornalistas populares. Uma das mani festações desse novo espírito foi o surgimento do controle das in dústrias pelos trabalhadores. Nas mesmas décadas, a idéia de que de via haver considerável participação pelos cidadãos nas decisões go vernamentais difundiu-se tão amplamente que os governos nacionais começaram a alistar-se, pelo menos verbalmente, sob o estandarte da participação, e alguns chegaram mesmo a encetar programas com ampla participação popular *. Parece que a esperança de uma socie dade e um sistema de governo mais participativos veio para ficar. Não precisamos passar em revista a volumosa bibliografia re cente sobre a participação nas várias esferas da sociedade. Nosso in-\ teresse no caso é só quanto ao futuro de um sistema de governo com mais participação para as nações liberal-democráticas do Ocidente.1
1 Por exemplo. Os Programas de Ação Comunitária inaugurados pelo Governo Fede ral dos Estados Unidos em 1964, que falavam de “participação máxir olausível dos re sidentes de regiões e membros dos grupos atendidos”. Para uma exposição crítica dis so, veja-se “Citizen Participation in Emerging Social Institutions”, de Howard I. Ka îodner, em Participation in Politics, conforme citado na nota 3 a seguir.
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Pode um governo liberal-democrático tornar-se mais participante, e em caso positivo, como? Essa questão ainda não teve a merecida atenção. O debate entre teóricos políticos teve de ser no início sobre tudo relacionado com a questão prévia: uma participação maior pelo cidadão será desejável? 23Os principais elaboradores do Modelo 3, como vimos, responderam negativamente. Mas aquele debate ainda não terminou. • Para os nossos fins, contudo, podemos dar aquele debate como encerrado. Basta dizer que em vista do indiscutível diferencial de classe na participação política no sistema atual, e admitindo que aquele diferencial é ao mesmo tempo efeito e causa contínua da inca pacidade dos que estão nos estratos inferiores da sociedade para arti cular suas vontades ou tornar suas exigências efetivas, então nada tão não-participativo quanto o equilíbrio apático do Modelo 3 avalia as exigências éticas da democracia. Isso não quer dizer que um siste ma com mais participação por si afastaria todas as iniquidades de )nossa sociedade. Quer apenas dizer que a baixa participação e a ini jqüidade social estão de tal modo interligadas que uma sociedade / mais equânime e mais humana exige um sistema de mais participação Lpolítica. A difícil questão quanto a se ou uma mudança no sistema polí tico ou uma mudança na sociedade são requisitos uma da outra, irá ocupar-nos amplamente na próxima seção deste capítulo. Por en quanto, admito que algo de mais participativo que o nosso sistema atual é desejável. A questão restante é quanto a se isso é possível. É POSSÍVEL AGORA MAIS PARTICIPAÇÃO? O problema da dimensão
(i) Não é vantagem simplesmente celebrar a qualidade democrática de vida e dc processo decisorio (isto é, de governo) que pode ter existido em comunidades contemporâneas, assembléias da Nova Inglaterra ou que existiram em antigas cidades-estado. Pode haver muito o que aprender sobre a qualidade de vida da democracia examinando-se es sas sociedades de contato interpessoal direto, mas isso não nos mos trará como uma democracia de participação poderia atuar numa so ciedade moderna de vinte milhões ou duzentos milhões de pessoas. 2 Esse foi o principal interesse dos criticos liberais radicais do Modelo 3 (conforme ci tado no Cap. IV, nota 11, c nota 3, adiante). 3 Ver Participation in Politics (Nomos XVI) (org. por J. R. Pennock e J. W. Chap man), Nova York, 1975. A maioria dos colaboradores desse volume, que se bàseia em ensaios apresentados cm 1971 na reunião anual da American Society for Political and Legal Philosophy, coloca-se em favor dc mais participação, mas há uma ardorosa de fesa, por M.B.E. Smith, da posição contrária.
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Parece claro que, em nível nacional, deve haver certo tipo de sistema representativo, e não democracia completamente direta. A idéia de que os recentes e os esperados avanços na tecnologia do computador e telecomunicações possibilitarão conseguir uma de mocracia direta apropriada para as comunidades muito populosas é atraente não apenas para os teóricos da tecnologia como também para os teóricos da sociedade e filósofos p olíticos .4 Mas essa idéia não presta atenção a uma exigência irrecusável de qualquer processo decisorio: alguém deve formular as questões. Sem dúvida, alguma coisa poderia ser feita com uma televisão com retorno para atrair mais pessoas a discussões políticas mais di nâmicas. E sem dúvida é tecnicamente plausível instalar em cada sala de estar - ou para abranger toda uma população* em cima de toda cama - um computador dotado de botões Sim e Não, ou botões para De acordo, Não concordo, Não Sei, ou para Apóio Enfaticamente/A pó io/N ão interessa/ Desaprovo em parte/Desaprovo inteira mente, ou para múltiplas escolhas preferenciais. Parece inevitável, porém, que o organismo governamental teria que decidir sobre as questões a serem feitas: dificilmente isso poderia incumbir a organis mos privados. Poderia de fato haver uma cláusula de que certo número defini do de cidadãos tenham o direito de propor questões que sejam depois apresentadas eletronicamente a todo o eleitorado. Mesmo com essa cláusula, contudo, a maioria das questões necessárias em nossas complexas sociedades atuais dificilmente poderia ser formulada por grupos de cidadãos, suficientemente específicas para proporcionarem respostas que deem clara diretriz ao governo. Nem se pode esperar que o cidadão comum responda ao tipo de questões que sejam neces sárias para uma diretriz clara. As questões teriam de ser tão intrinca das como, por exemplo, “quantos por cento de desemprego você ad mitiría a fim de reduzir a taxa de inflação a x por cento?”, ou “que aumento da taxa do (a) imposto de renda, (b) vendas e consignações, (c) outras taxas (devidamente especificadas), você admitiría a fim de aumentar (espaço em branco para resposta) (preencha o espaço em branco), o nível de (1) salário dos inativos, (2) serviços de saúde, (3) outros serviços sociais (devidamente especificados), (4) outros be nefícios (devidamente especificados)? Assim, mesmo que houvesse normas para um esquema de iniciativa popular como esse, os gover nos ainda teriam que fazer muitas decisões.
4 Ver Michael Rossman: On Learning and Social Change, Nova York, 1972, pp. 257-8; c Robert Pauf Wolf: in Defense of Anarchism, Nova York, 1970, pp. 34-7.
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Além do mais, a menos que houvesse, em algum lugar do siste ma, um organismo cujo dever fosse conciliar exigências inconsistentes apresentadas pelos botões, o sistema logo fracassaria. Se um siste• ma como esse fosse tentado em algo como a nossa atual sociedade, 1 havería quase com certeza exigências inconsistentes. As pessoas - as mesmas pessoas - pediriam muito provavelmente uma redução do desemprego ao mesmo tempo que redução da inflação, ou um au gmento dos gastos governamentais com serviços públicos juntamente com uma diminuição dos impostos. E naturalmente pessoas diferen tes - pessoas com interesses antagônicos, tais como atualmente os privilegiados e os não privilegiados - também apresentariam exigên cias incompatíveis. O computador poderia cuidar facilmente dessas últimas incompatibilidades verificando a posição majoritária, mas não poderia discriminar as primeiras. Para evitar a necessidade de um órgão para ajustar essas exigências incompatíveis umas com as outras, as questões teriam de ser arquitetadas de um modo que exigi ría dé cada votante um grau de requinte impossível de prever. A situação não seria melhor numa possível sociedade futura. Ê certo que o tipo de questões há pouco mencionadas, que são sobre a distribuição dos custos e vantagens econômicas entre diferentes seg mentos da população, deverão ser menos agudas à medida que a es cassez material se torne menos premente. Mas mesmo que essas questões desaparecessem como problemas internos nas sociedades economicamente mais avançadas, elas reapareceríam como proble mas externos: por exemplo, até que ponto e que tipo de ajuda devem os países avançados proporcionar aos países subdesenvolvidos? Além do mais, outra gama de questões surgiría internamente, tendo a ver não com a distribuição, mas com a produção no sentido mais amplo, isto é, com o emprego a ser feito de todo o estoque de energia e recursos da sociedade, e o estímulo ou desestímulo a maior cresci mento econômico ou demográfico. E além disso haveria questões quanto a que grau a sociedade deve fomentar ou deixar correr livre a iniciativa cultural e educacional do povo. Questões como essas, mesmo nas circunstâncias mais favoráveis ' possíveis, exigirão reiteradas reformulações. E questões dessa ordem não se prestam prontamente a formulação pela iniciativa popular, Sua formulação teria de ser confiada a um órgão governamental. Poder-se-ia argumentar ainda que mesmo sendo impossível dei xar a formulação de todas as questões políticas à iniciativa popular, pelo menos o tipo de política mais ampla poderia ficar a seu cargo. Admitindo que as centenas de decisões hoje feitas pelos governos e ! legislaturas teriam ainda de ser tomadas por eles, poder-se-ia insistir I em que essas decisões devem ser tomadas para harmonizar-se com os \ resultados das consultas sobre as questões mais amplas. Mas é difícil FACULDADE DE SERVIÇO SOCIiU
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ver como a maioria das questões mais amplas podería ser entregue à iniciativa popular para a respectiva formulação. A iniciativa popular J poderia certamente formular claras questões sobre certos assuntos simples, por exemplo, pena de morte ou legislação sobre tóxicos, sobre aborto - questões que exigem respostas simples, sim ou não. Mas, pelas razões acima apresentadas, a iniciativa popular não pode-^ ria formular adequadas questões sobre os grandes problemas inter- | relacionados de política social ou econômica em geral. Isso teria dei ficar a cargo de algum órgão governamental. E a menos que esse òi-v gão fosse ou eleito ou responsável para como o eleitorado, tal siste-\ ma de contínuas consultas não seria realmente democrático: pior ain- ^ da, dando a aparência de ser democrático, o sistema escondería a real posição do governo e permitiría assim que governos “democráticos” \ fossem mais autocráticos do que o são agora. Ñada podemos sem^ políticos eleitos. Devemos confiar, embora não devamos confiar ex- , elusivamente, na democracia jndiretg. O problema é tornar responsá veis os políticos. O aparelho eletrônico doméstico em cima de cada cama não pode fazer isso. A tecnologia eletrônica, pois, não nos pode dar a democracia direta. Assim, o problema da democracia participativa em grande escala parece insolúvel. É insolúvel se nós simplesmente tentarmos tirar có pias heliográficas do sistema político proposto sem prestar atenção às mudanças na sociedade, e na consciência que as pessoas têm de si mesmas, o que com um pouco de reflexão veremos deve preceder ou acompanhar a consecução de alguma coisa como democracia parti cipativa. Quero sugerir agora que o problema central não é de como uma democracia participativa deve atuar, mas de como podemos nos chegar a ela. (ii) Um círculo vicioso e possíveis aberturas Começo com uma proposição geral: o principal problema quanto à democracia participativa não é quanto a fazê-la funcionar, mas como atingi-la. Pois parece provável que, se pudermos atingi-la, ou atingir alguma parcela considerável dela, nosso caminhar ao longo da via que a ela conduz nos tornará capazes de fazê-la operar, ou pelo menos há de nos tornar menos incapazes do que somos no mo mento. Tendo enunciado essa proposição, devo ¡mediatamente demons trá-la e prová-la. As falhas até agora verificadas em conseguir uma democracia realmente participativa em países onde tem havido uma meta consciente, por exemplo, a Tchecoslováquia até 1968 e muitos países do Terceiro Mundo, exigem algumas reservas quanto a essa proposição. Porque em ambos os casos, longo percurso do caminho já foi percorrido: refiro-me ao afastamento desde a ideologia burgue-
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sa e divisão de classes capitalista em direção, num caso, ao humanis mo marxista e, no outro caso, a um conceito rousseauísta de socieda de abarcando uma vontade geral, e em ambos os casos um senso de comunidade mais forte do que temos. E, naturalmente, nos casos ci tados, todo o caminho foi percorrido distanciando-se da imagem in vertida do sistema de mercado capitalistà oligopolista: quero dizer, a concorrência oligopolista de partidos políticos que vige entre nós, a qual é não apenas nâo-participativa, mas denunciada, pela maior par te da corrente de teóricos liberal-democráticos, como supraessencialmente não-participativa. De modo que há ainda dificuldade para conseguir-se a democra cia participativa, mesmo quando muito do caminho« tenha sido per corrido, isto é, quando algumas das mudanças sociais como requisi tos óbvios tenham ocorrido, bem como a respectiva ideologia. Con tudo, os caminhos que elas percorreram em países como os citados são significativamente diferentes do caminho que teríamos de percorrer para chegar perto da democracia participativa. Porque presumo que nosso caminho nas democracias liberais do Ocidente não será provavelmente a via da revolução comunista; nem, obviamente, será a via de revoluções de independência nacional cercadas de todos os problemas de subdesenvolvimento e baixa produtividade com que se defrontam os países do Terceiro Mundo. Por conseguinte, vale a pena indagar sobre que caminho será possível quaisquer das democracias liberais do Ocidente viajar, e se, ou em que grau, o caminhar ao longo da estrada poderia tornar-nos capazes de fazer funcionar um sistema consideravelmente mais parti cipativo que o nosso atualmente. Podemos resumir isso numa ques tão: que obstáculos têm de ser removidos, isto é, que mudanças em nossa atual sociedade e na atual ideologia serão requisitos ou co-requisitos para chegarmos a uma democracia participativa? Se minha análise anterior tiver algum valor, o atual sistema de não participação ou de escassa participação encarnado no Modelo 3 ajusta-se a uma sociedade em que reine desigualdade e antagonismos de consumidores e apropriadores: de fato, nada, a. não ser esse siste ma, com suas elites políticas em competição e apatia dos votantes, parece em condições de manter uma sociedade coesa. Se assim for, dois requisitos para o surgimento do Modelo 4 insinuam-se clara mente. Um deles é a mudança da consciência do povo (ou da sua inconsciência), do ver-se e agir como essencialmente consumidor, ao ver-se e agir como executor e desfrutador da execução e desenvolvi mento de sua capacidade. Isso é requisito não apenas para o surgi mento, mas também para atuação de uma democracia participati-
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va. Para esta, a auto-imagem traz consigo um sentido de comunida de que a primeira não traz. Pode-se adquirir e consumir por si mes- ^ I mo, para a própria satisfação ou para mostrar a própria superiorida-f V de em relação a outros: isto não exige nem alimenta um senso de co• y munídade; ao passo que o desfrute e desenvolvimento da própria ca- ¡ pacidade deve ser feito na maior parte em conjunto com outros, em J certa relação de comunidade. E não será de duvidar que a atuação de uma democracia de participação exija um sentido mais forte de co munidade do que agora existe. O outro pré-requisito é uma grande diminuição da atual desi- ¡ gualdade social e économisa, visto que a desigualdade, como argu- \ ^ mentei, exige um sistema partidário não-participativo para manter coesa a sociedade. E na medida em que a desigualdade é aceita, o sis-’ \ tema político de não-pa rticipa ção provavelmente s^rá também admi- J tido por todos aqueles em todas as classes que prefiram estabilidade J em vez da perspectiva de completo fracasso social. Ora, se essas duas mudanças na sociedade - a substituição da imagem do homem como consumidor, e uma grande redução da de sigualdade social e econômica - são pré-requisitos da democracia participativa, parece termos caído num círculo vicioso. Porque é im-\ prováyel que qualquer desses dois requisitos sejam satisfeitos sem ! uma participação democrática muita maior do que agora. A redução ] da desigualdade social e econômica é improvável sem forte ação] democrática. E tudo indica, se acompanharmos Marx ou Mili, que só mediante envolvimento completo na ação política conjunta pode o povo ultrapassar sua consciência de si mesmo como consumidor e apropriador. Daí o círculo vicioso: não podemos conseguir mais par ticipação democrática sem uma mudança prévia da desigualdade so cial e sua consciência, mas não podemos conseguir as mudanças da * desigualdade social e na consciência sem um aumento antes da parti cipação democrática. Haverá uma saída para esse círculo vicioso? Acho que deve exis tir, embora em nossas sociedades prósperas capitalistas seja impro vável seguir o padrão proposto ou esperado no século XIX ou por Marx ou por Mili. Marx esperava que o desenvolvimento do capita lismo levasse ao aguçamento da consciência de classe, o que levaria a vários tipos de ação política pela classe trabalhadora, o que aumen taria ainda mais a consciência de classe da classe trabalhadora e a converteria em consciência revolucionária e em organização revolu cionária. Isso seria seguido de uma tomada revolucionária do poder pela classe operária, poder esse que seria consolidado por um perío do de “ditadura do proletariado”, que rompería a desigualdade so cial e econômica e substituiría o homem como consumidor maximizante pelo hçmem atuante e capaz de desenvolver suas capacidades
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humanas. Seja o que for que pensemos sobre a probabilidade dessa seqüência desde que ele tenha começado, o fato é que ela exige uma crescente consciência de classe para a arrancada, e há pouca evidên cia dessa perspectiva nas sociedades ocidentais de hoje, onde ela tem declinado desde a época de Marx.5 A solução apresentada por John Stuart Mill também não parece plausível. Ele confiava em duas coisas: primeiramente, a ampliação da franquia levaria a uma participação política mais generalizada que por sua vez tornaria o povo capaz de ainda mais participação política e contribuiría para uma mudança da consciência. Em segun do lugar, a relação proprietário/trabalhador mudaria com a difusão das cooperativas de trabalho: na medida em que elas substituíssem o padrão capitalista, tanto a consciência como a desigualdade passa riam por uma mudança. Mas o alargamento da franquia não teve o resultado que Mill esperava, nem mudou a relação capitalista entre o proprietário e o trabalhador do modo exigido. Assim sendo, nem a saída de Marx nem a de Mill parecem solu ções para o nosso círculo vicioso. Mas há um enfoque comum a ambos que poderiamos muito bem acompanhar. Ambos presumiam que as mudanças nos dois fatores que abstratamente parecem requisitos um do outro - a quantidade de participação política, de um lado, a desi;gualdade vigente e a imagem do homem como consumidor e apro^priador, de outro - viriam paulatina e reciprocamente, uma mudança incompleta em um levando a certa mudança no outro, levando a mais mudança no primeiro, e assim por diante. O próprio cenário de Marx, incluindo como fez a mudança revolucionária num ponto, exi gia essa mudança incrementai recíproca tanto antes como depois da revolução. Podemos também presumir com certeza, examinando nosso círculo vicioso, não devermos esperar que uma das mudanças se complete antes que a outra comece. Desse modo, devemos procurar saídas em outra parte do círcu lo, isto é, procurar mudanças já visíveis ou em perspectiva seja na quantidade de participação democrática ou na desigualdade social ou na consciência do consumidor. Se verificarmos mudanças que se jam não só já perceptíveis mas que sejam atribuíveis a forças ou cir cunstâncias que tenham probabilidade de operar com efeito cumula tivo, então podemos ter alguma esperança de uma ruptura. E se as mudanças forem de natureza a incentivar mudanças recíprocas nos demais fatores, tanto melhor. Haverá aberturas que surjam correspondendo a essas especifica ções? Comecemos da hipótese menos favorável à nossa pesquisa, a 5 Há certos indícios de que a consciência de classe esteja ressurgindo, mas não que se esteja tornando uma consciência revolucionária.
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hipótese de que nós, em maiorm, sejamos, queiramos ou não, calcu listas maximizadores do nosso lucro, fazendo uma análise de custos e ganhos de tudo, embora o façamos de maneira vaga; e que nós, em maioria, consciente ou inconscientemente nos vejamos como infini tos consumidores. Dessas hipóteses o círculo vicioso parece fluir di retamente: a maioria das pessoaá apoiará, ou não fara' muito paraf mudar, um sistema que produza prosperidade, que continuamenter aumente o Produto Nacional Bruto, e que também produza apatia política. Isso constitui um fortíssimo círculo vicioso. Mas no caso há agora aberturas visíveis. Chamarei a atenção para três delas. U) Cada vez mais pessoas, na situação que lhes atribuímos, isto é, calculistas de custos e lucros, estão reconsiderando a relação entre custo e lucro da adoração da sociedade da expansão do PNB. Elas ainda vêem os benefícios do crescimento econômico, mas estão, agora começando a ver certos custos com os quais não contavam an tes. Os mais óbvios desses são os custos da poluição do ar, da água e ^ da terra. Trata-se de custos em geral referentes à qualidade de vida. É demasiado sugerir que essa consciência da qualidade constitui um primeiro passo no afastamento da satisfação quanto à quantidade, e portanto um primeiro passo para deixarmos de nos enxergar como consumidores, no sentido de valorizar nossa capacidade para exercer nossas energias e capacidades num meio ambiente próprio? Talvez seja pedir muito. Mas seja como for, a consciência crescente desses custos enfraquece a aceitação insensata do PNB como o critério de bem social. Outros custos do crescimento econômico, sobretudo o esgota mento extravagante dos recursos naturais e da probabilidade de dano irreversível ao meio ambiente, estão sendo também cada vez mais notados. A consciência dos custos do crescimento econômico leva as pessoas muito além de se considerarem puros consumidores. Pode-se esperar o surgimento de certa consciência do interesse públi co que não seja tratada nem pelo interesse privado de cada consumi dor nem pelas elites políticas em competição. (2) Há uma consciência cada vez maior dos custos da apatia política, e, intimamente relacionada com ela, uma consciência eres- ¡ cente, dentro da classe trabalhadora industrial, da impropriedade da; atividade industrial tradicional e rotineira. Já se percebe que a não participaçao de cidadãos e trabalhadores, ou baixa participação, ou participação apenas em canais rotineiros, permite a concentração do * poder empresarial para dominar nossa comunidade, nossas funções, ! nossa segurança, e a qualidade de vida no trabalho e na intimidade do lar. Podemos dar dois exemplos dessa nova consciência.
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(a) Uma das mais evidentes, pelo menos nas cidades norte americanas, que tem sido até aqui notoriamente carente de valores humanos, é o surgimento de movimentos comunitários ou de vizi nhanças, bem como de associações constituídas para exercer pressão no sentido de manter ou fortalecer aqueles valores contra as opera ções do que se podem chamar os complexos político-comerciáis ur banos. Tais movimentos se têm difundido, com efeito considerável, contra as vias expressas, contra a expansão da propriedade, contra a predação ecológica, etc. É verdade que em geral esses movimentos começaram como questões isoladas, e às vezes assim permaneceram. E em geral não procuram mudar, mas apenas introduzir novas pres sões sobre a estrutura política municipal.6A maioria deles, portanto, não constitui por si uma ruptura significativa com o sistema de elites em competição. Mas eles atraem muitos, sobretudo dos estratos eco nômicos inferiores, à participação política, que estiveram por muito tempo politicamente apáticos. (b) Menos visíveis, mas talvez a longo prazo mais importantes, são os movimentos em favor de participação democrática no proces so decisorio do trabalho. Esses movimentos ainda não abriram bre chas consideráveis em qualquer das democracias capitalistas, mas a pressão por alguns graus de controle pelos trabalhadores nas oficinas e mesmo em nível executivo está aumentando, e exemplos concretos dessa pressão atuante são promissores.7 Ê dupla a importância quanto a se as decisões sejam apenas quanto a condições de trabalho e planejamento do modo de trabalho em nível de oficina, ou se deve estender-se até à participação em decisões políticas em nível de ge rência empresarial. Em primeiro lugar, os que nela estiverem implicados estarão ad quirindo experiência de participação no processo decisorio no aspse-
6 Às vezes têm em vista rever a estrutura formal, como nas exigências de controle das escolas e da polícia pela comunidade ou por maior participação da comunidade no planejamento urbano e operações de inteligência, como mencionado por John Ladd: “The Ethics of Participation", em J.R. Pennock e J.W. Chapman, op. cit.%pp. 99-102. 7 Excelente análise é feita por Carole Pateman: Participation and Democratic Theory, Cambridge, 1970, Caps. 3 e 4. Outros analistas, escrevendo como ativistas políticos que querem controle pelos trabalhadores como via para uma sociedade plenamente socialista, acham menos incentivadora a atual conquista dos movimentos pelo con trole por parte dos trabalhadores, por exemplo, Gerry Hunnius, G.D. Garson e John Case (orgs.): Workers' Control, a Reader on Labor and Social Change, Nova York, 1973; e Ken Coates e Tony Tophan (orgs.): Workers’ Control, a book o f readings and witnesses for workers’ control, Londres*, 1970. É provável que aumente a pressão pelo controle dos trabalhadores, visto que decorre da crescente degradação do trabalho que parece inerente à produçr i capitalista: Cf. Harry Braverman: Trabalho e Capital Monopolista (publicado no Brasil por Zahar Editores).
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to de suas vidas - suas vidas no trabalho - em que seu interesse é maior, ou pelo menos mais imediata e diretamente sentido, do que em qualquer outro. Eles podem perceber em primeira mão até que ponto sua participação é efetiva. Estão ausentes as forças que ocasio nam a apatia da pessoa comum no processo político formal de toda a nação. Desinteresse quanto ao resultado de questões políticas apa rentemente inacessíveis; distância dos resultados, se os houver, da participação; incerteza sobre a descrença na eficácia de sua participa ção; falta de confiança em sua própria capacidade de participar nada disso se aplica à participação nas decisões no trabalho. E o de sejo de participação, baseado na própria experiência dela, pode mui to bem transferir-se do local de trabalho para áreas políticas mais amplas. Os que demonstraram sua competência num dos tipos de participação, e obtiveram confiança de que podem ser eficazes, serão * menos deslocados pelas forças que os têm mantido apáticos, mais ca pazes de raciocinar a maior distância política dos resultados, e mais aptos a perceber a importância das decisões a distâncias maiores de seus interesses mais imediatos. Em segundo lugar, os que estiverem envolvidos no controle pe los trabalhadores estão participando como produtores , e não como consumidores ou apropriadores. Estão no controle, não para obter salário mais alto ou maior parcela do produto, mas para tornar seu trabalho produtivo mais significativo para eles. Se o controle pelos trabalhadores fosse meramente outro movimento na luta por mais remuneração líquida, ou no contihuado empenho para manter salários reais pela obtenção de salários mais altos e van tagens extras, o que constitui objetivo de não poucos sindicatos, ele nada faria, assim como os sindicatos trabalhistas nada fazem, para afastar os homens da imagem que fazem de si mesmos como consu midores e apropriadores. Mas o controle pelos trabalhadores não é principalmente para distribuição da renda: ele trata das condições da * produção, e nesse sentido pode-se esperar que venha a ter considerá vel efeito de ruptura. (3) Há uma dúvida crescente sobre a capacidade do capitalismo empresarial, embora muito ajudado e administrado pelo Estado libe ral, para satisfazer as expectativas do consumidor à maneira antiga, isto é, com o atual grau de desigualdade. Há um fundamento concre to para essa dúvida: o fundamento é a existência de uma contradição no seio do capitalismo, cujos resultados não podem ser indefinida mente evitados. O capitalismo reproduz a desigualdade e a consciência de consu midor, e deve fazer isso para continuar operando. Mas sua capacida-^ de crescente para produzir bens e lazer tem seu inverso que é a cres cente necessidade de expandir essas coisas incessantemente. Se as
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pessoas não puderem comprar bens, não pode haver lucro na compra deles. Esse dilema pode ser protelado por certo tempo mantendo-se a guerra fria e as guerras coloniais: na medida em que o público ampa re essas coisas, então o público estará, como consumidor, compran do por procuração tudo o que pode ser lucrativamente produzido, e o estará gastando satisfatoriamente. Isso tem prosseguido por muito tempo agora, mas há uma perspectiva de que não será indefinida mente tolerado como normal. Se assim acontecer, então o sistema te rá ou que expandir os bens reais mais amplamente, o que diminuirá a desigualdade social, ou fracassará, e então não terá condições de continuar reproduzindo a desigualdade e a consciência de consumi dor. Esse dilema do capitalismo é muito mais intenso agora do que o era no século XIX, quando o capitalismo tinha enormes válvulas de escape da expansão continental e colonial. O dilema, juntamente com a mudança da consciência do público quanto à proporção dos cus tos e lucros do sistema, coloca o capitalismo numa posição bem dife rente da que desfrutava ao tempo de Marx e Mill. O capitalismo, em cada uma das nações ocidentais, na presente década, está passando por dificuldades econômicas de proporções quase catastróficas. Não se pode prever o fim dessas crises. A tera pêutica keynesiana, bem sucedida por três décadas dos anos 30 em diante, falharam agora evidentemente em contornar as contradições. O mais óbvio sintoma desse fracasso é a vigência, simultaneamente,, de altos índices de inflação e desemprego - duas coisas que era costu me pensar-se como alternativas. Para os assalariados, é grave a ques-_ tão da desvalorização dos salários juntamente com a insegurança dos! empregos. O problema já levou os trabalhadores à militância sob vá-j rias formas: em alguns países, a atividade política aumentou tanto $ força dos comunistas como dos partidos socialistas; em outros, a participação cada vez maior é visível nos sindicatos e na atividade in-1 dustrial. Os sindicatos serão sempre mais impelidos não a se interes sar pela parcela do trabalho na renda nacional mas a reconhecer a in competência estrutural do capitalismo dirigido. Não se pode afirmar que os dirigentes sindicais tenham sempre enxergado isso, mas eles estão cada vez mais sendo pressionados pela atividade dos comissá rios das fábricas e pela atuação das greves. É de se esperar que au mente a participação da classe trabalhadora na ação política e indus trial e que a consciência de classe recrudesça. A probabilidade é que a atuação industrial, que já é grande, venha a ser encarada como fun damentalmente política, e assim, quer assuma ou não a forma de par ticipação no processo político formal, significará participação políti ca aumentada.
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Temos, portanto, três pontos fracos no círculo vicioso: a cons!ciência cada vez maior dos ônus do crescimento econômico; as dúvi das crescentes quanto à capacidade do capitalismo financeiro de sa^ tisfazer as expectativas do consumidor enquanto reproduzindo a de-j I siguaidade; a crescente consciência dos custos da apatia política. E se j pode dizer que cada um desses pontos vulneráveis está contribuindo(, j dos modos como vimos, para possivelmente atingir as condições in dispensáveis para a democracia de participação: juntos, eles condu- «, zem a um declínio da consciência de consumidor, a uma diminuição I da desigualdade de classes, e ao aumento na participação política/ atual. Ás perspectivas para uma sociedade mais democrática não! são, portanto, inteiramente infundadas. O movimento nesse sentidol \ exigirá e estimulará um grau crescente de participação. E isso agora! parece pertencer ao reino do possível. Antes de deixar essa análise da possibilidade do trânsito a uma democracia participativa, devo ressaltar que procurei só o possível, mesmo escassamente possível, para o futuro. Não tive em mente afir mar que essas chances de passagem de um sistema a outro são melho res ou piores que meio a meio. E quando se pensa nas forças antagô nicas a tal mudança, poder-se-ia hesitar em elevar essas chances a meio a meio. Basta pensar no poder das empresas multinacionais; na probabilidade da penetração cada vez maior nos negócios internos das agências secretas de informação como a CIA norte-americana, que permitiram ou exigiram que seus governos incluíssem na “infor mação” atividades tais como invasões organizadas de certos países menores e apoio ou deposição de governos indesejados; no crescente recurso ao terrorismo político pelas minorias oprimidas de esquerda e de direita, com a escusa que dão aos governos de passar a práticas de Estado policial e mesmo obtendo apoio popular para o Estado de força. Contra tais forças só se pode apresentar o fato de os governos liberal-democráticos estarem relutantes em utilizar a força aberta em larga escala, exceto por curtos períodos, contra quaisquer movimen tos populares amplamente apoiados no país: compreensivelmente, pois, quando o governo sente necessidade de agir assim, é que ele pode não estar em condições de contar com o exército e a polícia. Em nível menos alarmante em termos imediatos há outros fato res que podem impedir a diminuição da desigualdade de classes. As economias avançadas do ocidente podem declinar paulatinamente a uma condição estacionária (em que não haja crescimento econômico por não haver incentivo a nova formação de capital) antes que près-, sões populares tenham sido eficazes para as atuais desigualdades de classes diminuírem: isso dificultará mais redução. E a manutenção mesmo dos atuais níveis ocidentais de prosperidade seriam impossí veis se alguns dos países subdesenvolvidos fossem capazes, pela
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chantagem nuclear ou qualquer outro meio, de impor uma redistribuição da renda entre as nações ricas e as pobres. Essa redistribuição global tornaria ainda mais difícil uma significativa redução da desigualdede de classes no seio das nações ricas. Não conheço prova empírica suficiente para capacitar alguém a julgar a força relativa dos fatores em nossa sociedade atual em favor, e das forças contra, uma transição à democracia de mais participa ção. Assim, minha investigação das possíveis forças em seu favor não deve ser tomada como profecia, mas apenas como um vislumbre de possibilidades. MODELOS DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Volto finalmente à questão de como uma democracia participativa poderia funcionar se conseguíssemos os requisitos para chegar a ela. Até que ponto haveria participação, dado que para além de qualquer nível de comunidade ela teria de ser indireta ou um sistema represen tativo em vez de democracia direta de contato face a face? (i)
M o d e l o 4 A : u m p r i m e i r o
enfoque
a b s t r a i o
Se examinarmos as questões primeiramente em termos gerais, dei xando de lado por ora tanto o peso da tradição como as circunstân cias concretas que pudessem prevalecer numa economia quando os requisitos fossem plenamente satisfeitos, o modelo mais simples que mais adequadamente pudesse ser chamado de democracia de partici pação seria um sistema piramidal com democracia direta na base e democracia por delegação em cada nível depois dessa base. Assim, começaríamos com a democracia direta ao nível de fábrica ou vizi nhança - discussão concreta face a face e decisão por consenso majo ritário, e eleição de delegados que formariam uma comissão no nível mais próximo seguinte, digamos, um bairro urbano ou subúrbio ou redondezas. Os delegados teriam de ser suficientemente instruídos pelos que os elegessem, e responsáveis para com eles de modo a to mar decisões em nível de conselho em caráter razoavelmente demo crático. Assim prosseguiría até o vértice da pirâmide, que seria um conselho nacional para assuntos de interesse nacional, e conselhos locais e regionais para questões próprias desses segmentos territo riais. Seja em que nível for além do primeiro em que as decisões finais sobre diferentes assuntos fossem tomadas, as questões teriam certa-
8 Cf. Robert L. Heilbroner: An Inquiry into the Human Prospect[ Publicado no Brasil por Zahar Editores sob o título O Futuro como História^, espec. Capítulo 3, onde ele argumenta que, por idênticas razões, as nações ocidentais provavelmente nào terão condições de manter inclusive o atual grau de democracia liberal.
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mente de ser formuladas por uma comissão do conselho. Assim, se em qualquer nível a referência cessasse, cessaria de fato com uma pe quena comissão daquele conselho. Isso pode dar a impressão de dife rir muito do controle democrático. Mas acho que é o melhor a nosso/ alcance. O que é necessário, em cada estágio, para tornar democráti-l^ co o sistema, é que os encarregados das decisões e formulação dos \ problemas, eleitos desde os níveis inferiores, sejam responsabilizados em relação àqueles que os elegeram sob pena de não reeleição. ^
Ora, um sistema como esse, por mais claras que sejam as respon sabilidades determinadas em papel, mesmo que o papel seja uma constituição nacional formal, não é absolutamente garantia de efeti va participação democrática ou de controle democrático: o “centra lismo democrático” da União Soviética, que era precisamente um es quema como esse, não pode ser considerado coifio tendo dado o con trole democrático pretendido. A questão é se essa falha é inerente à natureza de um sistema piramidal de conselhos. Acho que não. Sou de parecer que podemos identificar os conjuntos de circunstâncias em que o sistema não atuará como pretendidojsto é, não dará a res-. ponsabilidade apropriada aos de nível inferior, não será dinamica mente democrático. Três conjuntos de circunstâncias são evidentes. (1) Um sistema em forma de pirâmide não dará real responsabi lidade do governo a todos os níveis inferiores numa situação ¡media tamente pós-revolucionária; pelo menos não o fará se houver ameaça de contra-revolução, com ou sem intervenção estrangeira. Pois nesse caso o controle democrático, com todas as suas demoras, tem de en sejar autoridade central. Essa foi a lição dos anos ¡mediatamente posteriores à Revolução Bolchevique de 1917. Outra lição, a ser tira da da subseqüente experiência soviética, é que, se uma revolução morde mais do que pode mastigar democraticamente, ela mastigará o bocado de modo não-democrático. Ora, como não parece provável, nas democracias liberais oci dentais, passar para uma democracia plena por meio de uma revolu ção do tipo bolchevique, isso não se nos apresenta como uma dificul dade. Mas devemos notar que a ameaça de contra-revolução está presente não apenas após uma revolução do tipo bolchevique, mas também após uma revolução parlamentar, isto é, uma tomada do po der por via constitucional, eleitoral, por um partido de frente popu lar depositário de uma reforma radical que leve à substituição do ca pitalismo. O fato de que essa ameaça pode ser real, e fatal para um regime revolucionário constitucional que tente proceder democrati camente, é evidente no exemplo da deposição contra-revolucionária do regime Allende no Chile, em 1973, depois de três anos no poder. Temos de indagar, portanto, se a sequência chilena poderia ser repe-
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tida
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em qualquer dos países mais avançados gorem democracias participativas.
do Ocidente
em que
vi
Não há certeza de que isso não possa acontecer nesses países. Não podemos contar com a existência de um hábito mais longo de
constitucionalismo na Europa Ocidental do que na América Latina: de fato, nas democracias liberais européias que estarão mais provavel mente nessa situação em futuro previsível (por exemplo, Itália e França), não se pode dizer que a tradição de constitucionalismo seja mais velha ou mais firme que no Chile. Contudo, devemos notar que a frente de coalizão popular de Allende controlava apenas parte do Poder Executivo (a presidência, mas não a contraloria, que tinha po der para legislar sobre a legalidade de qualquer ato executivo), e não controlava absolutamente o Poder Legislativo (inclusive com o po der de tributar). Se um governo semelhante chegasse ao poder em ou tro lugar qualquer com uma base mais forte, ele poderia proceder de mocraticamente sem o mesmo risco de deposição pela contrarevolução. (2) Outra circunstância em que o sistema de conselhos pirami* dais responsáveis não atuaria seria o reaparecimento de uma subja cente divisão e oposição de classes. Pois, como vimos, essa divisão exige que o sistema político, a Fim de manter a sociedade unificada, seja capaz de preencher a função de contínua conciliação entre os in teresses de classes, e essa função impossibilita ter claras e fortes li nhas de responsabilidade desde os níveis superiores eleitos aos níveis .inferiores. Mais isso também não é para nós um grande proble ma, como poderia parecer. Se minha análise anterior estiver correta, Inão teremos atingido a possibilidade de instalar esse sistema respon jsável até que tenhamos grandemente diminuído as atuais desigualda•des sociais e econômicas. É certo que isso só será possível na medida !em que a relação entre capital e trabalho que prevalece em nossa so j ciedade tenha sido fundamentalmente mudada, porque as relações capitalistas produzem e reproduzem classes antagônicas. Nenhuma !quantidade de redistribuição da renda pelo estado do bem-estar por si mesma mudará essa relação; nem qualquer quantidade de partici pação ou controle pelos trabalhadores em nível de fábrica ou de es critório o conseguirá: trata-se de um promissor ponto de ruptura, mas não fará a função toda. Uma sociedade plenamente democrática t exige controle político democrático sobre os empregos daquilo a que * são postos o capital acumulado e os restantes recursos naturais da s sociedade. Provavelmente, não tem importância se isso assume a for ma de propriedade social de todo o capital, ou um controle social 1 dele tão completo a ponto de ser o mesmo que propriedade. Porém, mais redistribuição do estado de bem-estar da renda nacional não é
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bastante: seja o quanto for que ele diminua as desigualdades de clas-^ ses quanto à renda não atingirá as desigualdades do poder de classes. (3) Uma terceira circunstância em que o sistema de conselho pi ramidal não funcionara, evidentemente, é se o povo na base for apá tico. Esse sistema não seria atingido a não ser por um povo que ba nisse sua apatia política. Mas acaso não surgiría apatia de novo? Não há garantia de que isso não aconteça. Mas pelo menos o principal fa tor que aventei e que cria e sustenta apatia em nosso atual sistema es taria por hipótese ausente ou no mínimo grandemente modificado quero dizer, a estrutura de classes que desestimula a participação dos que se situam nos estratos inferiores, tornando-õs relativamente ino \ perantes, e que de um modo mais geral desestimula a participação ao disfarçar os problemas que não podem responsabilizar os governos para com o eleitorado. Para resumir a análise até aqui feita das perspectivas de um sis tema de conselhos piramidais como modelo de democracia de parti cipação, podemos afirmar que na medida em que as condições para transição a um sistema de participação forem conseguidas em qual quer país ocidental, os mais óbvios impedimentos a um esquema de conselhos piramidais autenticamente democráticos não estarão pre sentes. Um sistema piramidal poderia operar. Ou outros obstáculos poderiam surgir para impedir que fossem plenamente democráticos. Não vale a pena procurá-los, porque esse singelo modelo é por de mais irrealista. Ele não pode ir além de uma primeira aproximação no sentido de um modelo plausível, porque foi atingido por se deixar deliberadamente de lado o que devemos agora trazer à consideração - o peso da tradição e as circunstâncias concretas que provavelmente vigorarão em qualquer nação ocidental na época em que for possível a transição. I O fator mais importante, no caso, é a existência de partidos políI* ticos. O modelo simples não tem lugar para eles. Ele tem em vista um.. sistema apartidário ou de partido único. Isso era bastante adequado quando tal modelo foi apresentado em circunstâncias revolucioná rias da Inglaterra de meados do século XVII e início do século XX na Rússia. Mas não é apropriado para nações ocidentais de fins do sécu lo XX, porque parece improvável que qualquer delas transite para o emaranhado da democracia participativa por meio da tomada do po der revolucionário por um partido único. É muito mais provável que ! qualquer dessas transições seja feita sob liderança de uma frente po- \ pular ou uma coalizão de partidos socialistas social-democratas. Es- j ses partidos não desaparecerão, pelo menos durante alguns anos. A menos que todos eles menos um sejam derrubados pela força, muitos ainda existirão. A questão concreta é, pois, se haverá algum meio de
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combinar uma estrutura de conselho piramidal com um sistema par tidário em competição. (ii) Modelo 4B: um segundo enfoque A combinação de um aparelho democrático piramidal direto e indi reto com a continuação de um sistema partidário parece essencial. Nada, a não ser um sistema piramidal, incorporará qualquer demo cracia direta numa estrutura de âmbito nacional de governo, e exigese certa significativa quantidade de democracia direta para o que quer que se possa chamar de democracia de participação. Ao mesmo tempo, partidos políticos em concorrência devem ser presumidos, e partidos cujas reivindicações não casem coerentemente com o que sé possa chamar de democracia liberal deverão ser repelidos. Não apenas é, provavelmente, inevitável a combinação da pirâ mide e dos partidos: ela pode ser positivamente desejável. Pois mes mo numa sociedade não dividida em classes haverá ainda problemas que os partidos constituiriam, ou mesmo que fossem de sua alçada propor e debater: problemas tais como a dotação geral de recursos, planejamento ambiental e urbano, política demográfica e de imigra ção, política militar. " Ora, supondo que um sistema partidário em competição fosse ou inevitável ou realmente desejável, numa socie dade não exploradora e não dividida em classes, poderia isso combi nar com qualquer tipo de democracia direta ou indireta de modelo piramidal? Acho que poderia. Porque as principais funções que um sistema , partidário emcompetição teria de executar, e tem executado, nas so-/ ciedades de classe até agora, isto é, disfarçar o antagonismo de clas ses e a composição permanente de conciliações ou aparentes concilia ções entre as exigências das classes em conflito, não mais seriam ne cessárias. E esses são os aspectos do sistema partidário concorrencial que o tornaram até agora incompatível com qualquer democracia operante de participação. Não mais sendo necessária aquela função, desaparece a incompatibilidade.
9 Vale notar que na Tchecoslováquia, na primavera e verão de 1968, pouco antes da derrubada do regime reformista pela intervenção militar da URSS, uma das propostas mais solicitadas para fortalecimento da qualidade democrática do sistema político foi a introdução de um sistema partidário em competição, e que isso teve considerável apoio público, e mesmo no interior do Partido Comunista dominante. Numa pesquisa de opinião pública em julho, 25",, dos membros do Partido Comunista consultados, e 58",, das pessoas não partidárias consultadas, desejavam um ou mais novos partidos; em agosto, a questão foi apresentada à consulta de modo ambíguo, e as cifras foram de 16 a 35°,,. (H. Gordon Skilling: Czechoslovakia’s Interrupted Revolution, Princeton University Press, 1976, pp.550-1, 356-72).
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Há, em teoria abstrata, duas possibilidades de combinar a orga nização piramidal com partidos em concorrência. Uma delas, a mais difícil, e tão improvável para que mereça atenção aqui, seria substi tuir a existente estrutura presidencial ou parlamentar de governo por uma estrutura soviética (que é concebível mesmo com dois ou mais partidos). A outra, muito menos difícil, seria manter a atual estrutu ra de governo, e confiar nos próprios partidos para operar pela parti cipação piramidal. É certo, como disse anteriormente, que todas as diversas tentativas feitas pelos movimentos reformistas democráticos para tornar seus líderes responsáveis perante as massas quando se tornam governo têm falhado. Mas a razão para esses fracassos não mais existiría nas circunstâncias que estamos considerando, ou pelo menos não existiría no mesmo gráu. 'A razão para esses falhas era que a responsabilidade estrita da liderança partidária para com os membros do partido não dava ensejo à política de manobras e conciliação que o governo, numa sociedade de classes, deve ter a fim de desempenhar sua função necessária de mediador entre interesses antagônicos de classes em toda a sociedade^ Sem dúvida, mesmo numa sociedade sem classes, haveria ainda algum ensejo de concilia ção. Mas a quantidade de espaço necessário para conciliação com a espécie de problemas que pudesse então dividir os partidos não seria da mesma ordem de magnitude como o agora necessário, e o elemen to de ilusão e disfarçamento para desfazer as linhas das classes não estaria presente. Assim é que parece haver real possibilidade de existirem parti dos autenticamente participantes, e que eles possam operar mediante uma estrutura parlamentar ou de congresso para dar uma considerá vel medida de democracia participativa. Acho que isso é tão plausível quanto tirar uma cópia heliográfica. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO DEMOCRACIA LIBERAL?
Î
Resta uma questão: poderá esse modelo de democracia participativa ser chamado de democracia liberal? Acho que pode. Evidentemente, não é ditatorial ou totalitário. A certeza disso não é a existência de partidos alternativos, pois é concebível que após algumas décadas eles desapareçam, em condições de grande prosperidade e generaliza da oportunidade à participação pelo cidadão por outros meios que não os partidos políticos. Nesse caso, teríamos passado para o Mo delo 4A. A garantia está mais na presunção de que nenhuma versão do Modelo 4A poderia existir ou permanecer existente sem um forte e generalizado senso do valor do princípio ético da democracia libe,! ral que era o núcleo do Modelo 2 - os direitos iguais de todo homem ! e toda mulher ao pleno desenvolvimento e ao emprego de suas capa
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cidades. E evidentemente a própria possibilidade do Modelo 4 tam bém exige, como demonstramos na segunda seção deste capítulo, um paulatino desaparecimento ou abandono das pressuposições de mer cado quanto à natureza do homem e da sociedade, um afastamento da imagem do homem como consumidor maximizante, e grande re dução da atual desigualdade econômica e social. Essas mudanças possibilitariam a restauração, e mesmo uma concretização, do princípio ético central do Modelo 2; e pelas razões anteriormente apresentadas, 10elas não negariam ao Modelo 4 o título de “liberal” . Na medida em que prevalecesse um forte senso do alto valor dos di reitos iguais ao autodesenvolvimento, o Modelo 4 estaria na melhor tradição da democracia liberal.
10 No final do Cap.
I.
Leituras Adicionais
Aqueles que quiserem aprofundar um assunto como este, que e ao mesmo tempo analítico e histórico, em geral acharão mais compen sador consultar primeiramente algumas das obras dos principais au tores originais em vez de confiar mesmo em suasrmelhores recensões, sobretudo quando, como frequentemente acontece, aquelas são mais breves do que estas. Para apreciar o estilo consideravelmente confiante dos teóricos da democracia liberal de inícios do século XIX, nada melhor do que examinar o famoso artigo “Government” de James Mill (escrito pri meiramente para o suplemento da quinta edição da Enciclopédia Bri tânica, em 1820 e reimpresso muitas vezes, em geral sob título An Es say on Government), ou umas poucas páginas de Bentham - os curtos capítulos do seu Principles o f the Civil Code, citado neste livro no Cap. II, notas 2, 7 a 12, e 15 a 18, ou alguns dos primeiros capítulos do seu Introduction to the Principles o f Morals and Legislation. O enunciado clássico do Modelo 2A é Considerations on Repre sentative Government de John Stuart Mill. A mais elegante apresenta ção abreviada do Modelo 2B é The Essentials o f Democracy, de A.D. Lindsay. Há um proveitoso resumo de alguns teóricos do Modelo 2B no capítulo 1 de The Democratic Citizen, de Dennis F. Thompson, Londres, Cambridge University Press, 1970. As principais exposições do Modelo 3 são as obras arroladas nas notas 1 e 2 do Cap. IV: as melhores são ainda o Cap. 22 de Schumpe ter e o curto Preface to Democratic Theory, de Dahl. As principais críticas ao Modelo 3 são as obras mencionadas na nota 11 do Cap. IV: cada um dos três conjuntos de ensaios ali mencionados propor ciona excelente enunciado da argumentação contra o Modelo 3. O breve Real World o f Democracy e o ensaio 10 em Democratic Theory: Essays in Retrieval, ambos de minha autoria, colocam o Modelo 3 numa perspectiva global objetiva. ’
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Obras realistas sobre a democracia participativa são raras. Seus defensores tendem simplesmente a proclamar as excelências da de mocracia direta, não raro como meio de atingir uma sociedade ana r quista ideal (por exemplo, em muitos dos ensaios em C. George Benello e Dimitrios Roussopoulos [organizadores]: The Case fo r Parti cipatory Democracy: Some Prospects for a Radical Society, Nova York, Grossman, 1971). Mas há estudos proveitosos em Participa tion and Democratic Theory de Carole Patman e em Nomos, volume Participation in Politics, citado na nota 3 do Cap. V. Outro volume, também intitulado Participation in Politics, organizado por Geraint Parry (Manchester University Press, 1972) contém interessantes en saios sobre a possibilidade e desiderabilidade de mais participação, o lugar da participação na teoria marxista, e o histórico de alguns paí ses ocidentais, comunistas e do Terceiro Mundo.