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arte
Erstveröffentlichung: 1969
lourival gomes machado
BARROCO MINEIRO ~\\II~
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~ EDITORA PERSPECTIVA
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Próximo lançumento Kafka: Prô e Contra Günther Anders
A primeira grande cristnlização artísticôl de uma autêntica cultura brasileira encontrou em Lourival Gomes l\lôlchado um de seus melhores intérpretes modernos. Crítico em hUSC3 da razão estética e da C3usa social subjôlcentcs :1 manifcstôl~~ão estilística, mas também apreciador encantado com as sugestões sensh'cis d:l obra de arte, soube dimensionar no Barroco Mineiro:l especialidade original, procedendo a uma verdadcira "reconquista" de sua atualidade artísticn e poder de atuação cultural.
debates
Coleção Debates Dirigida por J. Guinsburg
Equipe de Realização - Revisào: Geraldo Gerson de Souza; Lay-out: Lúcio Gomes Machado; Produção: Ricardo W. Neves. Hcda Maria Lopes e Raquel Fernandes Abranchcs.
lourival gomes machado BARROCO MINEIRO A presc!1wçâo RODRIGO
M.
J/ltradução
I!
F. DE ANDRADE.
orgLlllização
FRANCISCO lGLÉSIAS
F%Rrafias BENEDITO LIMA DE TOLELIO
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~ EDITORA PERSPECTIVA
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4" ediçfto - I" reimpressão
ISBN - 85-273-0359-0 Direitos reservados il EDITORA. PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401-000 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: (0-- 11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2003
SUMARIO Nota do Editor Apresentação Lourival Gomes Machado e o Barroco Mineiro
9 13 17
ENSAIOS Teorias do Barroco ... _. _. . . . . . . . . . . . . O Barroco e o Absolutismo O Barroco em Minas Gerais Viagem a Ouro Preto Os Púlpitos de São Frarlcisco de Ouro - Influência de Lorenzo Ghiberti na obra de Antônio Francisco Lisboa . . . . . . . . . . . . .. O Medalhão das Mercês
29 79 151
177
223 257 7
A Arte do Salltuário de COl/gonhas - A Igreja, o Adro, os Passos ........ Reconquista de Congonhas _.. __ . . . . . . . . . .. Arquitetura e Artes Plásticas
285 301 361
ARTIGOS
o que o A leijadinho não fez "Muito Longe da Perfeição"
..•......•..•.
387 397
"Alguma Imperfeição" .. _. . . . . . Um livro f! doze profetas Anatomia e crítica _. _. . . . . . Nova e exata crônica do Santuário de Cal/ganhas
403 409 417 429
Cronologia do Autor Bibliografia do Autor
435 437
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NOTA DO EDITOR A primeira grande cristalização artística de uma autêntica cultura brasileira encontrou em. Lourival Gomes Machado um de seus melhores int~rpretes modernos. Crítico em busca da razão estética e da causa social subjacentes à manifestação estilística, mas também apreciador encantado com as sugestões sensíveis da obra de arte, soube dimensionar no Barroco Mineiro a sua especificidade original, procedendo a uma verdadeira "reconquista" de sua atualidade artística e poder de atuação cultural. Por isso vemos na presente edição de ensaios e artigos que escreveu sobre o assunto, menos uma homenagem que se presta a uma figura 9
de homem que certamente merece o nosso preito, do que um. 'serviço que· se rende ao leitor interessado nos problemas e na história da expressão intelectual e artística do Brasil. PÓ! outro lado, pondo a seu alcance, no contexto de "Debates", o universo de significações e valores do Barroco Mineiro céIticamente repensado por um espírito aberto e moderno, reabre-se, em outro nível é verdade, a discussão de Lourival Gomes Machado com o seu tempo. E justamente por saber que nada o sensibilizaria mais do· que este diálogo "contemporâneo" é que Maria de Lourdes Santos Machado aceitou a sugestão de Haroldo de Campos, confiando a publicação a uma coleção como esta, dirigida à inteligência brasileira. Só temos a agradecer-lhe por isto e pela cooperação que nos deu no curso dos trabalhos editoriais, assim como devemos estender nosso reconhecimento à Editora da Universidade de São Paulo pelo amparo que nos concedeu. Graças a um tal conjunção de fatores, pudemos realizar um lançamento que muito nos honra também por um motivo pessoal, pois expressa a admiração que dedicamos à largueza de vistas e à compreensão dcspreconcebida e verdadeiramente democrática de Lourival Gomes Machado.
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Todos os que colaboraram para a edição deste livro prestam sua sentida homenagem
a RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE
APRESENTAÇÃO A gravidade da perda que o País sofreu com a morte de Lourival Gomes Machado reclamava. para atenuá-la, a iniciativa da seleção e publicação, em forma duradoura de livro, dos trabalhos de sua autoria impressos em periódiCos, ao longo de vários anos. Homem de ação, dotado de notável espírito público, ele escreveu quase sempre com obje.tivo de exercer influência imediata no meio a que se destinava sua produção. Mas como possuía muito mais aptidões de historiador de idéias e crítico da evolução das artes, do que de jornalista·, tem-se a impressão de que a obra deixada por ele, esparsa, se prestará espontaneamente à orde13
nação adequada, como se fora composlçao genuína nesse sentido, com a unidade desejável num livro. Entretanto, ainda mesmo com a feição jornalística e fragmentária que adotara para a publicação de seus trabalhos, Lourival não tinha podido abordar diversas questões que pretendia investigar de perto, nem desenvolver as que haviam sido já por ele consideradas, pois passou os últimos anos da vida absorvido por encargos administrativos. Com efeito, principiara por aceitar a direção executiva do Museu de Arte Moderna de São Paulo, assim como a de exposições exaustivas como a Bienal e a do Barroco brasileiro. Em seguida, foi diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Por fim, dirigia o Departamento de Assuntos Culturais da UNESCO, alta função em cujo exercício sucumbiu. Sacrificou, portanto, em proveito desses encargos, a produção que, durante extenso período, poderia ter realizado no setor dos estudos de sua predileção. Sem a labuta agitada e as preocupações decorrentes de tais tarefas administrativas, ele teria certamente compatibilizado, como compatibilizava dantes, os deveres da cátedra universitária, que obtivera mediante concurso, com o prosseguimento dos trabalhos sobre· as matérias a que vinha dedicando maior atenção. Talvez, no decurso desse tempo, tivesse elaborado rpais de um livro acerca de problemas capitais de arte brasileira. Sem embargo do que sucedeu e embora tenhamos sido frustrados, por força das circunstâncias infaustas, dos trabalhos de âmbito mais largo que Lourival Gomes Machado deveria realizar, a profusão e a qualidade dos que ele produziu e ficaram impressos em periódicos por certo nos proporcionarão coletâneas preciosas das observações e conceitos do emérito professor paulista. O interesse especial com que ele estudou as ocorrências da cultura em Minas Gerais e a admirável acuidade com que escreveu a seu respeito justificam sem a mínima dúvida a publicação de um volume à parte, contendo os trabalhos de Lourival nesse domínio. Favorecido pela solicitude do concurso da Exma. Viúva do autor, Senhora Maria de Lourdes Santos Machado, o Professor Francisco Iglésias estava habilitado melhor que ning.uém a assumir semelhante incumbência. O 14
o
valor da produção de Lourival Gomes Machado sobre temas mineiros poderá, portanto. ser agora devidamente apreciada em seu conjunto. Conjunto que não é, certamente, por motivo da perda do escritor na plenitude de sua pujança intelectual, o que ele teria desejado deixar como fruto de seus estudos e reflexões relacionados com as coisas de Minas. Mas que representa, não obstante, subsídio de qualidade excepcional. Entre os textos apresentados, um há que parece merecer menção particular. Trata-se do ensaio intitulado Os púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto - Influé/lcia de Lorenzo Ghiberti /la obra de Antonio Francisco Lisboa. Estudo que, juntamente com o de Lúcio Costa a propósito da ornamentação do frontispício da igreja de São Francisco de Assis em São João dei Rei, constitui uma das únicas contribuições consistentes e importantes publicadas até agora, visando à exegese das composições de escultura do Aleijadinho. A vasta erudição de Lourival não lhe bastaria, ela apenas, para habilitá-lo a proceder à elucidação capital feita no referido estudo. Muito mais que a erudição, foram sua sensibilidade e sua aptidão extraordinária de crítico de arte que o puseram no rumo certo. Em verdade, como acentua o Professor W. G. Constable, no ensaio Art History and Connoisseurslzip. "A work of arl is not merely Qn assemblage of paris; its essellce lies in tlle ordered relation of tllose parts. Tlze first impact of a work of art on lhe specralor, before he has become occupied with detail. is Df the greatest value for enabling this relation or system of relations to be grasped. How much this first impression will yield depends OI! the experience, the knowledge and sellsibility of lhe spectator; and fi may be profoundly modified. Rut received as it is wllen mind and eye are comparalfvely inn.ocenl, it lias a unique value, and often yields information and enlightenmenl of a kind IJO! easily lo be acquired Iater."
Não sei se o caro amigo Lourival Gomes Machado terá üdo ocasião de ler esse texto, extraído de um pe-
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queno volume publicado em Cambridge, em J 938. Suponho, no entanto, que ele concordaria com a lembrança de serem citadas as considerações feitas naqueles termos
pelo professor britânico, a propósito do ensaio dedicado aos púlpitos da igreja franciscana de Ouro Preto. RODRtGO
Rio de Janeiro, 1968
J6
M. F.
DE ANDRADE
LOURIVAL GOMES MACHADO E O BARROCO MINEIRO Publica-se em volume, pela primeira vez, o principal que Lourival Gomes Machado produziu em tomo de assuntos ligados à arte de Minas Gerais. Encontram-se aqui livros que foram editados
em
pequenas
tiragens, de difícil divulgação; estudos aparecidos em revistas, dos quais às vezes se tiraram separatas, de mais difícil acesso; ensaios que eram capítulos de obras de vários autores e que não haviam ainda aparecido ao lado de outros trabalhos do próprio autor; artigos de jornais, nunca editados em livro, de modo que estavam perdidos para o leitor de hoje Escritos sobre diversos 17
assuntos, em diferentes momentos e lugares, conservam, no entanto, a unidade, que é dada pelo fato de que todos se referem às artes plásticas produzidas em certa área. A atividade intelectual de Lourival Gomes Machado estendeu-se por longos anos e dividiu-se por muitos temas. Cientista social, produziu obras importantes, notadamente no campo da política e no da história das idéias; crítico de arte. teve colunas permanentes em jornais, fez conferências, organizou exposições,.. f~z apresentação de artistas, foi professor, ~undou e dlTl1?1U museus, foi o principal realizador da Bienal que pr~Je. tou São Paulo no campo das artes em escala mundial, ocupou cargo de relevo na UNESCO, ligado à tarefa artística que o preocupava. Nesse ângulo de interesse, parece-nos legítimo dizer que sua paixão particular mais constante e profunda foi a arte que se produziu em Minas, principalmente a que se ligou ao chamado ciclo do ouro. A ela dedicou atenções especiais, escrevendo artigos, ensaios e livros, fazendo conferências, despertando as atenções. do público e do mundo oficial. Como todo esse esforço não teve uma organização pelo próprio autor - por modéstia, solicitação de outras tarefas ou pela morte prematura - , era preciso que alguém se incumbisse de reunir o que fêz, para mais segura conservação de tal atividade que se incorpora, em lugar de relêvo e. definitivo, à preservação do patrimônio artístico nacional. f: possível que o estudioso, que estava empolgado em importantes trabalhos no exterior, momentaneamente desligado do cultivo da arte de Minas, voltasse a seu tema preferido, quando de regresso ao Brasil e às atividades normais. Retomando contato com o assunto, com a perspectiva enriquecida pelo labor de alguns anos na Europa, seguramente poderia organizar melhor os seus estudos anteriores, ou mesmo refazê-los, com amadurecimento maior. A morte impediu essa realização e privou o país de um de seus valores mais destacados. Professor de Ciência Política da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo e crítico de artes plásticas, Lourival Gomes Machado deixou obras im· portantes nesses campos. Sua sólida formação em ciênci.3 social valeu-lhe a conquista de uma cátedra, mas acredItamos não estivesse aí seu maior interesse, tanto 18
que se dedicou bem mais a outro trabalho. Muito terá significado, nessa atividade de crítico e historiador de arte, ou de professor de curso de urbanismo. a formação de cientista social, que lhe permitiu mais largueza de vistas, capacidade interpretativa, poder de captar O sentido das obras no quadro amplo em que se inseriam. Sua superioridade estava exatamente nesse domínio de instrumentos analíticos e modelos de compreensão, que lhe permitiam ultrapassar o simples plano descritivo em que quase sempre permanecem os que se dedicam a tais estudos no Brasil. Dividido entre as duas preocupações, na ebboração de artigos de crítica de jornal e de livros, bem como no ensino, nas Faculdades de Filosofia e de Arquitetura, não realizou a obra de síntese que tinha qualificação para realizar e pela qual todos esperavam. Demais, indo ocupar há alguns anos posto de relevo na Europa, teve que suspender a atividade no plano nacional: se é certo que passou a realizá-Ia em meio mais amplo, as ~esponsabilidades que tinha e as tarefas do cargo não lhe deram tempo para prosseguir os estudos na perspectiva brasileira. E a morte corta uma carreira fecullJa e de nível raro entre nós. S~ não realizou o que podia e o que se desejava, o qlle fez jú é suficiente para que tenha lugar significativo. Não e nosso propósito nesta Introdução dar balanço de sua obra, mas tratar de aspecto particular de quanto fez, que é exatamente o que se encontra no presen(e volume. Queremos assinalar a contribuição de Lourival Gomes Machado aos estudos mineiros e a dívida que Minas .(em relativamente a ele. Parece-nos possível afirmar que seus trabalhos - artigos, ensaios, recolocaram Minas e confert'ncias, cursos, livros SU~lS produções como problema de exame constante. Lúcido e inquieto, conheceu quanto se havia escrito sobre a questão; visitou as cidades históricas inúmeras vezes, aí detendo-se por muito tempo; não era- o viajante apressado ou o que buscava a nota exótica para o sensacionalismo jornalístico, mas o estudioso que amava os seus assuntos e se detinha na análise, tentando devassar-lhe os segredos. A extensa erudição em artes plústicas, o muito que havia estudado nos livros, bem como o que havia visto, tudo o capacitava para or.servador excepcional. Sabia ver o que escapava mesmo aos observadores argutos. Demais, a ciência social, que 19
conhecia bem e que em geral os críticos de arte não co· nhecem, era mais um elemento a enriquecer-lhe a vis"ão. Daí a superioridade de quanto escre~eu, sem ficar no arrolamento ou na de!lcrição ou busca do pormenor: podia traçar quadros amplos, em que a obra de arte aparece como parte do contexto maior, que ela exprime e que ele em parte explica; não via a unidade em um ou outro aspecto, mas captava-lhe o sentido pleno. Como além da metodologia adequada era homem de inteligência superior~ podia discutir as várias interpretações .apresentadas e dar a própria, verdadeiro mestre no levantamento de hipóteses e na apresentação da· problemática da matéria considerada. Deu assim aos estudos mineiros não só contribuições importantes como abriu caminhos, sugeriu trabalhos a serem feitos, com hipóteses e questões a serem investigadas ou testadas, no exercício de atividade em que se distinguia pelo labor, lucidez, sensibilidade, imaginação criadora. Lourival Gomes Machado. da geração posterior ao 1l1odernismo, compreendeu bem a renovação intelectual I)perada pelo movimento, herdando-lhe os problemas e ~sclarecendo muitos deles. Ilustra de maneira admirável aquele am!;eio renovador da inteligência brasileira, que, mais do que polêmico ou destruidor, foi eminentemente construtivo. Os modernistas e os seus herdeiros é. que detiveram, senão o monopólio, pelo menos o pioneirismo da defesa do que é típico da nadonalidade, "descobrindo valores pouco sabidos; fizeram um redescobrimento do Brasil, em seus produtos eruditos ou populares, muitos dos quais apontaram pela primeira vez. Entre eles, por exemplo, está o passado artístico do país; um"a pintura, uma escultura, uma arquitetura, sem falar na música. A Semana de Arte Moderna, realizada no primeiro centenário da Independência, como que colocava o Brasil diante de si mesmo, impondo-se como tema de análise e crítica. Desse exame de consciência resultou a busca da autenticidade própria e o encontro de um passado precioso que se desconhecia. E curioso observar que o crítico, de uma geração que sucedeu o grupo que dirigiu o modernismo, ao qual ela se ligou com carinho, mas com independência e características próprias, começasse com o livro Retrato da ~rte Moderna do Brasil, só depois passando a in· vestlgar as (armas antigas. Mário de Andrade já tinha
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as mesmas preocup açôes, dedican do-lhes ensaios , artIgos c campanha~. como se sabe. A ativida de de Lourival Gomes l'vlachado inscrc-sc', pois, na melhor tradição. ainda que reccnte. Scu trabalh o pôde ter mais êxito. prepara do que foi por alguns anteces sores e pela nova mcntalidl3uc. que leva ,à organiz ação da Diretor ia tio Patrimú nio Históri co C Artístic o Nacion al, que sempre realizou conscie nte esforço de pesquis a e ordena mento de c~tudos, ao lado do aspecto prático de conservaçã o c rcstaura ç;io de obras. Seu grupo contava com o auxílio desses anteced cr.tcs, com a mental idade de pesquis a e teorizaç ão quc as Faculd ades de Filosof ia constru íram. de mouo qu(,' tinha mais recurso s e também mais :Jevercs. Era () I.:nflquecimento da inteligê ncia naciona l, mais aparelh ada c objetiv a, sem as improv isações e o impress ionismo anterior es. Acredit amos que nesse quadro renovad or, que poderíam os datar da década dos quaren ta, o nome que mais se distingu iu, na crítica e história das artes plásticas, tenha sido o de Louriva l Gomes Machad o. Como suas atençõe s se voltara m prefere ntemen te para Minas, ele veio a ser o princip al renovad or e incenti vador dos estudos nessa área. Paulista , sempre foi atraído pelas Gerais. Já no livro RelralO da Arle Modern a do Brasil, escrito em J 945 e publica do em 1948, anterio r ao cultivo de temas mineiro s, falava "dessa Provínc ia misteriosa" (p. 44) I, em linguag em que traía seduçã o e amor. E Minas passa a ser o seu interess e domina nte. Em 1948 reaiJzaria a primeir a explora ção do assunto , em viagem de algum tempo a Ouro Preto) quando se ia de trem, em expediç ão de muitas horas (quem escreve esta nota introdu tória teve a ventura de acompa nhá-lo e é emocio nado que o recorda ). De volta, escreve u alguns arligos em O Estado de S. Paulo, em agosto, setemb ro e outubro , reunido s depois em edição de revista, da qual se fez separat a (Viagem a Ouro Preto. São Paulo, Revista do Arquiv o, N° ex XIV, 1949). Aprese ntou quanto vira como "simple s registro de observa ções pessoais como foram aprovei tadas à guisa de materia l prepara tório num trabalh o teórico sobre o absolut ismo e o barroco " Cp. 7). Embor a obra eminen tement e descritiva, há aí muita observa ção interess ante, como o I.
A numeraçã o das pâginas aqui E, a da primeira edição
d3.~ ('Ihr:l~.
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capítulo .sobre a feição da terra, "verdadeira introdução ao caráter geral do barroco mineiro" Cp. 9), o que é repetido além com a observação de que, "na verdade, a topografia da zona do ouro ofereceu-se monumental e barroca" (p. 16) ou de que, quanto a Ouro Preto, "a cidade já nasceu barroca" (p. 17), além de capítulos sobre matrizes e altares, problemas da sociedade da mineração, o Aleijadinho. Pouco depois, série de onze artigos é publicada no mesmo jornal, sob o título de O barroco e o absolutismo, de 13 de abril a 30 de junho de 1949. Procurava-se reali-zar o plano anunciado na nota introdutória, já citada. Uniam-se aí seus dois interesses - o cientista político c o crítico de artes. Parece-nos que a matéria não foi publicada em conjunto, em revista ou livro, o que é lástima, pois é alto o seu interesse. Um dos artigos mais curiosos da série é o sexto, publicado em 20 de maio de 1949, com o título Originalidade da arte mineira. Escreve-se aí: "por enquanto, bastar-nas-emas com anotar a originalidade da versão mineira do barroco, relembrando seus dois grandes traços característicos: ainda é o barroco, sobretudo se atentarmos para a formalística decorativa, onde encontraremos as mesmas linhas, ritmos e princípios de composição europeus, mas já é um barroco difer~nte, sobretudo em contraposição aos padrões italianos de onde promana a estilística que inspirou toda a Europa e, também, a América. A mutação faz-se, sobretudo, no espírito geral das realizações, nas quais, inegavelmente, observamos uma inteira coerência entre os elementos utilitários e os puramente ornamentais, o que faz desaparecer um dos traços apontados como centrais do barroco europeu, qual seja o império despótico do decorativo, único elemento artístico capaz de levar à plena gratuidade, ao virtuosismo, e às principais formas de esplendor". Ainda sobre o estudo: o autor, que leu muitas obras teóricas e investigou uma situação concreta - a arte e a sociedade em Minas no século XVIII, ou o barroco brasileiro e o absolutismo português - , em nota do livro Teorias do Barroco (nota nO 15), defende-se contra possível alegação de pesquisa para comprovar certa teoria: a da ligação entre um estilo artístico e o absolutismo, que supõe haver encontrado aqui, em uma situação histórica que coincide com a que é tratada 22
por autores europeus, que sumaria naquele livro. A pesquisa não foi feita para comprovar uma teoria, pois esta é que surgiu do estudo de determinada realidade: "preferimos considerar essas primeiras tentativas antes como nos ajudando a chegar a um ponto de vista teórico, do que como deles decorrente. ( ... ) Não seria legítimo alegar que a preocupação metodológica tenha antecedido à curiosidade da investigação" (p. 52). Teorias do Barroco (Rio, Ministério da Educação, é pequeno livro em que são expostas as principais formulações do problema, sem pretender originalidade e sem exemplificar com estudo de determinada obra ou área. Se não é sobre Minas. foi escrito, sem dúvida. peJa reflexão que fazia, de maneira absorvente, sobre a arte do século do ouro no Brasil. J 953)
Puder-se-ia sugerir também, sem forçar a nota, que foi dessas reflexões que surgiu a idéia de estudar o escrito de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga, objeto de tese de concurso para a cátedra de Política, em 1949 - O Tratado de Direito Natural de Tomás A I1tôni(l GOllzaga (Rio, Ministério da Educação, 1953). É certo que o texto de Gonzaga foi escrito em Portugal, antes de sua vinda ao Brasil, que nada tem a ver com ele. O jovem jurista e filósofo com essa obra é um tradicionalista, que aceita a realeza como de origem divina; expressão do pensamento da época, tem muita ambigüidade, voltando-se mais para idéias que pertenciam ao passado que para as novidades dos ideóIogas da Revolução. Vindo para o Brasil, acaba por ficar envolvidü em movimento de caráter liberal e republicano. Não há muita harmonia entre o conspirador e o estudioso de Direito Natural de alguns anos antes. Lourival Gomes Machado debruçava-se sobre a conjuração mineira de 1789, preocupado com a sua ideologia - assunto de alguns de seus cursos na Faculdade de FilClsofia - , sendo explicável que aparecesse assim a sugestão do tema para o trabalho universitário. Gonzaga era personagem de seus cuidados, daí o aproveitamento dessa obra anterior do poeta, ainda pouco conhecida. Foi o barroco mineiro que o levou ao tratadista e depois poeta, na sua preocupação de bem entender e explicar o que foi o fim do século XVIIl na Capitania central.
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Em círculo de conferências organizado pela Reitoria da Universidade de Minas, entre 3 e 12 de abril de 1956, foi ele o autor de O Barroco em Minas Gerais,
tentativa de visão global do problema (Primeiro seminário de estudos mineiros, Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, 1957, p. 45/57). Outra expressão do mesmo culto é Reconquista de Congonhas (Rio, Instituto Nacional do Livro, 1960). A propósito dos importantes trabalhos realizados pelos técnicos da Diretoria do Patrimônio, de restauração das figuras dos Passos da Paixão, o crítico realiza um dos melhores estudos sobre a obra de Aleijadinho. Trata-se de excelente texto, em bela apresentação gráfica, pelas admiráveis fotografias de Eduardo Ayrosa. A matéria é reproduzida neste volume, contando, inclusive, com ilustrações da primeira edição. Do mesmo ano é Arquitetura e artes plásticas. capítulo da História Geral da Civilização Brasileira (Tomo I, A época colonial, 29 volume - S. Paulo,
Difusão Européia do Livro, 1960, pp. 106/120). Embora esboço das artes no Brasil, é Minas a região mais extensa e carinhosamente tratada. No mesmo volume o autor comparece com outro capítulo - Política e
administração sob os últimos vice-reis (pp. 355-379), em que problemas mineiros ocupam lugar considerável, como não podia deixar de ser, pela época: acreditamos mesmo que foi a preocupação com o quadro histórico
da área mineratória que o levou ao estudo da política e da administração brasileira do período. Em artigos de imprensa, notadamente em O Estado de S. Paulo, como em conferências, Minas foi cuidado constante. No suplemento desse jornal, durante vários anos, esteve sob sua responsabilidade a seção de artes plásticas: entre as centenas de estudos que aí escreveu, boa parte seria referente a Minas. Muitos representam pesquisas originais ou reflexões eruditas e não era razoável que ficassem esquecidos. Daí a edição
de alguns deles no presente livro. Entre esses artigos, queremos destacar o que escreveu sobre os púlpitos do Aleijadinho em São Francisco, nos quais o autor denuncia a influência de Ghiberti, que teria dado ao artista mineiro não só o tema como a forma de tratamento.
Não ficou nessas publicações seu interesse pela região. Em sua cadeira de Política, eram freqüentes os
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cursos de História das idéias ou das instituições políticas brasileiras: sabemos que Minas ocupava aí papel de primeiro plano. Na orientação de teses ou trabalhos dos aJunos, muitas sugestões deu para pesquisas nesse sentido, notadamente a da ideologia da Conjuração de I 789, como se poderia demonstrar com alguns exemplos. Pode-se dizer, pois. que Minas foi a sua paixão. E pena que a vida no exterior não lhe permitisse prosseguir nos estudos, de modo a poder chegar às "sínteses compendiadoras" a que se referiu (O Barroco em Minas Gerais, p. 45). Ante essa impossibilidade, preferiu buscar "desenvolver a pesquisa das significações" (p. 45), como era aliás bem do seu gosto. Não é exagero a afirmativa sobre essa predileção. Poderia demonstrá-lo com palavras do autor, em que proclama a peculiaridade e mesmo a superioridade da área central. Em O Barroco em Minas Gerais, em 1956: "deste fenômeno (o barroco mineiro) que, sem dúvida, é dos mais significativos, e, a meu ver, o mais belo de toda a história cultural do Bra,il" (p. 45). Em Arquitetura e artes plásticas, em 1960: " ... nasceria, em Minas, a mais forte, mais farta e mais bela expressão de uma arte verdadeiramente brasileira" (p. 110); ou, "nesse panorama geral, avulta ainda mais a arte e a arQuitetura de Minas" (p. 116); em conclusão, "em Minas, no século XVIII, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez. uma autêntica cultura brasileira" (P. 120). E assinale-se o que escreveu no artigo Originalidade da arte mineira, já referido. Aí estão, em linhas muito gerai!\, as provas de que Lourival Gomes Machado ·compreendeu e amou a realidade de Minas, transformando-a em culto e objeto de trabalho. São constantes os temas mineiros em sua obra: a bibliografia mineiriana deve~lhe muito. como contribuição definitiva ou colocação de problemas, encaminhamento de h:póteses para a pesquisa de outros. Ele vem a ser mesmo um dos autores que mais contribuíram para o conhecimento da área. em momento importante na história desses estudos. O crítico paulista foi mineiro por. adoção. E editando parte ponderável dessa obra que se transmite o fruto dessa dedicação. de labor e lucidez, de alguem que muito amou e entendeu a Província central o paulista-mineiro Lourival Gomes Machado. E é essa edição que a EDITOR.-\
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PERSPECTIVA
entrega ao público.
Deve-se consignar que o presente volume não poderia ser elaborado sem a preciosa colaboração da Sra. Maria de Lourdes Santos Machado, que forneceu indiçações que nortearam o trabalho de seleção e organização c, ainda, parte da matéria aqui reproduzida. Prestaram também auxílio: o DI. Jcão Gomes Teixeira, Diretor do Arquivo Público Mineiro, colocando à nossa disposição, para consulta e cópia, as coleções que guarda~ o Dr. Renato Saeira, da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que nos forneceu algumas fotografias, pertencentes ao seu arquivo; o Sr. Eduardo Ayrosa, que cedeu, gentilmente, fotografias de sua autoria. A eles, pois, o agradecimento do Organizador.
Belo Horizonte, 1967. FRANCISCO IGLÉSIAS
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TEORIAS DO BARROCO I
Nada mais natural do que tcr o barroco permanecido mal avaliado. senão mesmo desconhecido, até recentemente. As clássicas referências ao caso de um Burckhardt, interessado em passar a arte pelo crivo da ordem e, pois, desprezando o barroco, mas rendendo-se à composição densa de Rubens, ou, então, o registro da estranha atitude de um eroee, simplesmente lançando o barroco à conta do feio, representam, em verdade, resultantes lógicas do retardamento havido na evolução de uma estética autônoma e de uma crítica livre de subordinações.
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Na- história ocidental, sempre a crítica acompanha' a produção artística, mas, por igual, sempre se cobre de uma escusa literária ou histórica, como se não se atribuísse importância e validade às reações pessoais do crítico que, em conseqüência, prefere aparecer como cronista, viajante, historiógrafo meticuloso ou filósofo à cata de exemplificações amenas para facilitar a exposição de suas próprias afirmações ou a discussão dos princípios de um mestre. Mesmo a idade moderna apresenta-nos a crítica como mera variante da biografia, enquanto os tratados sobre arte, quando começam a aparecer, preferem revestir a forma de compêndio técnico destinado aos do ofício. Só há dois séculos, pouco mais ou menos, o pensamento crítico permitiu-se atribuir um interesse em si mesmo. Já então esboçava-se, também, um movimento destinado a levar a estética a superar a função auxiliar e secundária de mera extensão aplicativa da psicologia, que lhe reservara a tradição platônica, ou o conceito estritamente normativo, que lhe tolhia a plena expansão nos quadros da linguagem aristotélica, tanto na descendência direta quanto nas múltiplas e variadas colaterais. Submetida às solicitações de outras disciplinas, a estética não chegara a enunciar-se em seus termos próprios c, com freqüência, mal se distinguia das anotações da crítica, justificando-as plenamente a indicação de Lionello Venturi, para quem a história do pensamento sobre arte pode reduzir-se ao título simplificador de história da crítica 1, igualmente válido para a fase posterior em que, passado o período vestibular que anotamos, a crítica novamente veio a entrosar-se com a estética. Mas, para o objetivo que nos ocupa, importa antes sublinhar que, com tal retardamento, o pensamento crítico se tornou diretamente responsável pela incompreensão ou pela má compreensão de períodos inteiros da história da arte, cuja importância hoje não podemos ignorar. Voltado para objetivos apenas paralelos àquele que, substancialmente, devera interessá-lo e, principalmente, lidando com um equipamento teórico decorrente de ideais cujas eventuais implicações históricas não os 1. Lionello VENTURI. Historio de la Crítica de Ârle seguido de la Crítica de Arte en la AClUalidad, vcrsión castellana de Julio E. Payré. Buenos Aires. Editorial Poseidon, 1949. V. especialmente eap. I.
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tornavam menos indiferentes a outras culturas ou outros valores alheios à fase ou ao conceito que, com exclusivismo, considerava superior, o crítico não realizaria plenamente sua missão. Faltava-lhe uma compreensão
ampla e relativista da História e, mesmO quando desejasse superar essa limitação, esbarrava com as preferências que, fixadas em seu subjetivismo por uma formação ainda submissa aos exclusivismos anteriores, reapareciam indebitamente transformadas em pretensos
critérios objetivos. É o que sentimos tanto sob o falso conceito de ordem de Burckhardt, quanto sob o julgamento de gosto de que Croce se utilizou como se fora seguro critério de avaliação estética. Eis como, até há pouco, as insuficiências ou os desvios da crítica e da própria teoria estética proibiam que se alcançasse a riqueza de expressão fonnal de uma fase significativa e decisiva da história da cultura moderna - fase que, por sinal, seria a única, antes da arte contemporânea, a desenvolver todas as possibilidades de tratamento tectônico e de organização primária de cada arte, sabendo harmonizá-las, melhor do que a arte moderna, Duma mesma e única tendência, delas servindo-~e simultaneamente, ao invés de opô-las em tendêncüis contrastantes. Se atentarmos menos para a arqueologia do que para a análise cultural, verificamos que o barroco, cronológica e espiritualmente mais próximo de nós, sofreu tanto quanto o gótico nas sucessivas avaliações da história da arte. Seria contudo inútil lastimar o acontecido, que aqui só relembramos para explicar o porquê de certos conceitos errôneos~ mas, também e principalmente, para justificar a variedade e as pretensões ambiciosas das atuais teorias sobre o barroco. Contrastando com o anterior retardamento de seu estudo, o barroco hoje constitui objeto da atenção de especialistas que, ansiosos por recuperar o tempo perdido, insensivelmente cedem ao risco das visões globais, das interpretações exclusivistas e, portanto, tomam-se capazes de protestarem certezas comprovadas, quando não se entregam mesmo à tentação de traçar uma teoria definitiva. Assim, o barroco, de problema inexistente, passou à categoria de questão polêmica, pois desde logo se deu o choque entre interpretações irreconciliáveis, ao menos em aparência. Daí, conseqüentemente. justificar-se essa espécie de "crítica da crítica" que, no preâm-' 31
Antônio Francisco Lisboa. Pai, figura do grupo da Santíssima Trindade do retábulo da Capela Mor de São Francisco de Assis, Ouro Preto.
bulo dos estudos sobre o barroco, se tornou imprescindível e para cuja compreensão anotamos as observações que se seguem. Não se trata de alcançar a erudição pela acumulação de citações e pelo confronto de textos, nem de deitar sentença final numa causa em que as atitudes definitivas .sempre acabam por trair os que as encarnam, mas apenas de tentar descobrir, pela referência às várias linhas de orientação geral, se há, no tumulto da polêmica, alguns pontos pacíficos capazes de nos oferecer base para uma compreensão, talvez ainda muito elementar e limitada, porém menos insegura e mais praticável, do problema apaixonante. Não poderemos, portanto, interessar-nos predominantemente pela posição enciclopédica ou pela inspiração específica de cada teoria do barroco, que assim só faríamos retornar às conjunturas históricas que as orientaram inicialmente, ou às disciplinas filosóficas que ainda condicionam funcionalmente tantas delas. Insistindo numa interpretação singular da arte no conjunto da história da cultura, ou rcgressandç:> aos campos especiais da teoria do conhecimento, da moral, da política etc., mais não faríamos do que resistir numa posição particular e, provavelmente, facciosa, contribuindo para agravar aquilo que até os manuais não temem chamar de "o conflito do barroco". Tampouco haveremos de descer à minúcia de cada teoria, pois estamos interessados numa harmonização geral e não nas peculiaridades de cada sistema interpretativo. Nem, afinal, faremos revista completa de todas as teorias que, aliás, não aparecerão como mais importantes ou mais meritórias, quando citadas. Repitamos, simplesmente, que nos interessa chegar a uma visão global, firmar um ponto de vista genérico. E nada mais.
Logo ao primeiro exame, as teorias sobre o barroco revelam-se como orientadas segundo três centros principais de interesse: enquanto alguns críticos se voltam preferentemente para a análise direta das realizações artísticas, visando conseguir uma definição formal do complexo artístico, outros se mostram interessados principalmente na pesquisa dos limites históricos (e, por implicação natural, também dos limites geográficos) da 33
evolução do fenômeno, enquanto um último grupo parece desejoso, espedalmente, de tentar a sua interpretação· sociológica, quando não passa à própria filosofia da história. Como a positivação morfológica conduz sempr~ a conceitos gerais capazes de englobar as múltiplas variantes de um mesmo complexo formal, ao passo que a análise social, servindo-se das definições espaciais e temporais, leva à especificação dos casos singulares,parece que essa verificação preliminar haveria de simplificar-nos o problema, pois, em tais termos, logo reconheceríamos uma controvérsia entre as tendências à generalização e à individualização, tão freqüente no desenvolvimento teórico dos mais variados problemas. 'Antes, porém, de aceitannos essa oposição simples, não custa lembrar que,' até certo ponto, ela já se apresentou ao espírito dos próprios autores das teorias que, mesmo dominados por üm dos três interesses principais, nunca deixam de referir-se, com maior ou menor pertinência, aos outros dois. Na verdade, mais do que ressaltar com exclusividade um dos aspectos do barroco, buscam os teóricos atribuir a um deles o caráter de fundamental ou predominante, mas, já assim, concedem que o traço em questão se encontra em conexão com os demais. Dessa forma, o qU3;dro será menos simples e talvez ·menos nítido e, em seu exame crítico, 'não se deverá exagerar no rigor formál, deixando mesmo de atender à clássica ordenação cronológica, a fim de dar completo predomínio às conexões de pensamento que encadeiam as várias posições doutrinárias.
Comecemos, pois, anotando que o mais simples esforço de definição do barroco é aquele que, partindo da reabilitação histórica do interesse e importância dum complexo artístico quase esquecido, cuidou de diferenciá-lo temporalmente dos demais, reservando-lhe um campo cronológico próprio. Essa concepção estabelece uma primeira posição, empírico-histórica. Não se trata, a rigor, de uma teoria, senão duma simples proposição teórica do problema, logo desfigurada pelo vezo das simplificações didáticas, que estendem ao fenômeno barroco o conhecido e perigoso esquema das ações e reações, tão do gosto dos velhos críticos e historiadores 34
da arte, sempre dispostos a transformar a história numa cadeia de têrmos que, reagindo ao precedente, O destrói, para logo ser, por sua vez, destruído - o que já insinua, aliás, o desmora1izadíssimo es-quema Hpendular" da evolução artística. Teríamos, segundo essa visão simplista, um barroco que nasceu por reação ao renascente, mas que, a seguir, haveria de morrer, ao desafio duma nova reação: o neoclássico. Acontece que o barroco resiste a solução tão fácil, não só pelo seu caráter especialíssimo, senão também porque as fases históricas confinantes apresentam características igualmente específicas, irredutíveis ao simples arranjo sucessivo e rebeldes à recorrência pendular. No período anterior ao barroco, a arte do renascimento é muito fértil e poderosa, muito variada e rica, muito potente e versátil para ser dáda como mera posição firmada e estabelecida que o barroco enfrentaria para destruir, num simples movimento de contradição. O período subseqüente, pelo contrário, tão débil e precário se mostra nas manifestações artísticas, que não podemos atribuir-lhe força bastante para por termo ao barroco, nem sequer capacidade de equivaler a um retorno ao renascimento:l. A imprecisa definição das barreiras temporais serviu apenas para sublinhar que o processo do barroco (como, aliás, todo processo histórico, especialmente no campo da cultura espiritual) é, por natureza, mais dialético do que sucessório. Não cabem, pois, os compartimentos estanques devidos à esquemati.zação didática, quando o problema se enuncia sobretudo como um feixe de nexos conflituais entre etapas que, além de interpenetrantes, são complexas, polívocas e possuem traços comuns às fases confinantes. A ingênua colocação empírica do problema histórico do barroco não merecia, pois, maior atenção se não soubéssemos do papel de ponto de partida que, mesmo 2. Sem duvida, o problem3 do neoclãssico não se resolverá por um3 simples negativa, em que pêse ao débil valor artlstico de suas expressões. Não obstante, se um dia se flur a cuidadosa an~lise das repercussões das descobertas arqueológicas na cullUra européia, talve:.t se venh:t a positivar que a acumulação de todos os dados e sugestões d3S pesquisas, iniciadas já no Renascimento, mas tornadas puramente desinteresudas e científicas pelo dominio interveniente do barroco. cuja esp;uuosa vitalidade dispensava "moddos" inspira.do~s, haveria de constituir uma espfcie de reservatório de antiguidades modelares e inspiradoras a aguardar apenas um momento de paralisia criadora para espr:Uar·sc. Assim explicar·se·á, talvez o fenômeno do neoclássico. Contudo, a hipótese _de nada v3ler~ sem a correspondente comprovação e, aqui, a hipótese surge ainda como simples sugestão ...
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quando negado, desempenha nas cogitações que levam às demais teorias. Acrescentemos apenas que ao seu simplismo se deve um bom número de noções errôneas e de difícil erradicação, entre as quais citaremos a que, registrando a existência de uma variante rococó nos últimos tempos do barroco, interpretou-a como fenômeno de decadência, pôsto que figura nos momentos finais duma etapa a ser contrariada e extinta.
Não há, portanto, oposição forçosa entre a concepção global histórica, atenta à complexidade e relatividade dos fenômenos culturais, e as teorias que se detêm, especialmente. na evolução da forma barroca "em si mesma, pois que estas apenas buscam um elemento morfológico, nitidamente caractcrizável, que oferece base para retraçar-se o processo histórico de que resulta todo o complexo artístico. Max Dvorak, cujas idéias entre nós mereceram a exemplar vulgarização de Hannah L evy 3, pode ser dado como exemplo típico dessa tendência, que, se de fato estamos obrigados a distinguir com um rótulo, chamaríamos de posição genético-formal, buscando assim sublinhar a atenção que dispensa às formas compreendidas como obedecendo a uma evolução própria no interior de determinado complexo histórico. Dvorak, aliás, segue a Burckhardt, interessando-se por manter-se fiel à metodologia histórica múltipla e versátil do mestre, mas, por igual, não deixou de atentar para Riegl, para quem a visualidade pura, com suas leis estritas e seus conceitos rigorosos, deveria basear toda e qualquer construção crítica. Buscando verificar até que ponto se compadecem mutuamente pontos de vista tão
distantes, Dvorak logo chega. à compreensão de que, se por um lado as formas artísticas, os dogmas religiosos e os sistemas filosóficos se assemelham, exteriormente, como expoentes significativos de uma mesma cultura; não é menos certo que interiormente, isto é, em sua vida própria, cada uma de tais manifestações solicita a descrição exata da evolução a que devem sua formulação final. São, ao mesmo tempo, documentos de uma civilização e possuem uma história particular - qualificaçõf:";-: que, de fato, não se excluem. In:
• tfannah LEVY. "A propósito de três teorias sobre o Barroco". Rl:visla SP'1AN, n9 5, pp 259-284.
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Fiel a tal concep ção teórica, Dvorak enfrent a o problema do barroco para tentar explica r o apareci mento da nova morfologia, o que o coloca, sem dúvida, em pleno campo da pura história das formas, mas, como na forma estudad a não pode deixar de ver a manifestação ou, pelo. menos, uma das manifestações duma cultura em processo, acaba por buscar as origens genéticas do barroco na forma que o anteced eu imediatamente, isto é, na arte dos "manei ristas", sem jamais esquecer-se de que maneiristas e barroco s exprimiram necessida:.des espirituais profund amente enraiza das no ·complexo civilizado em que viviam. Assim, desde logo se estabelece cQm clareza que o maneir ismo corresp ondia a um esgotamento das possibilidades expressivas alcança das na culmin ância renascente, não porque como, em seu desprezo por esses artistas menore s que sucederam a mestres geniais, insinuavam os velhos historiadores - se tivesse esgotado o gênio inventiva europeu, mas porque se abrira um fosso entre a expressão plástica e o conteúd o expressivo, dada a desade quação entre uma arte cuja força e apuram ento parecia m destiná-la a perman ecer pelos séculos afora, e uma cultura espiritual, que, progred indo incessantemente, assumi a sempre novas feições e envered ava sempre por novos caminhos. Ora, os traços "absolu tos" do Renasc imento , Dvorak antes os vê como "máxim os" (Rafae l: beleza formal; Michelangelo: forma humana; Ticiano: perfeição cromát ica) que, não permiti ndo novos avanços no mesmo sentido, haveriam de provoc ar uma mudan ça de orientação. Cede o científico ao poético, abrindo -se campo para um subjetivismo que, restasse entregu e a si mesmo, haveria de abalar a Igreja no século XVI, cuja reação se exprime na subord inação do subjetivismo dos meios expressivos a um conteúd o esplritu al objetlv o - é o barroco. Apoiando-se nos dados formais, Ovorak não se esquecia, contud o, de fazer '"história da arte como história do espírito". Esse será o melhor sentido da sua interpre tação, que nos interessa menos pelas falhas que sua construção apresenta quando confron tada com aspectos particu lares da evoluçã o históric a·, do que como uma posição metodo lógica bem marcad a e fru4. . .. "Dvorak coloca num mesmo plano a religiosid artista da Idade Mf:dia e a de um artista barroco. Escapa-lhade de um e o car1ter criador da religiâo medieval, e também o caráter politico·s ocial da Contra· reforma" ... etc. VENTUR I. cit., p. 201.
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tuoS3, podendo, 3 qualquer tempo, ser retomada com proveito. Basta lembrar que o maneirismo, uma dessas fases que se julgara de bom ayiso lançar ao rol das decadências insignificantes, reaparece hoje como cumprindo uma função importante, pois permite compreen~ der o trânsito, formal e cultural, entre duas expressões artísticas antes tidas por simplesmente contraditórias e antagônicas. Não obstante, a valorização do barroco que, implicitamente, se continha na teoria de Dvorak, já interessara, embora por vias doutrinárias diversas, a outros estudiosos do problema. Heinrich Wolfflin, por exemplo,. compreendera a importância do barroco e, discípulo fiel de Riegl, pressentiu a possibilidade de ampliar teoricamente o conceito visual que, historicamente, começava a delimitar-se com bastante segurança. Estamos agora à frente de uma posição wziversalizadora do conceito genético-formal na qual, sem dúvida, sempre restará mesmo quando repelida - a referência à simples descrição histórica do fenômeno artístico particular, mas exprimindo-se preferencialmente numa nova concepção estrilamente formal, segundo a qual o morfológico dispõe de vitalidade própria. Não obstante fundar-se nas contribuições dos mestres, W'Úlfflin haveria de encaminhar-se por um rumo ainda inexplorado que lhe deu projeção intelectual superior à de seu antecessor, pois não apenas caracteriza, com o máximo· de precisão, os aspectos formais do barroco, senão ainda e principaJ~ mente afinoa que, assim caracterizado, isto é, reduzido à sua morfologia genérica, o barroco não pode limitar-se ao período que se deseja reservar-lhe na história, tornando-se uma verdadeira recorrente no curso da evolução da cultura. Ainda aqui, encontramos a ligação fundamental entre a vida das formas e a vida do espírito, mas já a encaramos de um ângulo oposto ao de Dvorak, pois ao invés da vitalidade formal traduzir-se no fluxo irrefreável da história, temo-Ia presa a "constantes" humanas que devem ressurgir em todos os tempos e todas as situações, Permanecemos. numa posição genéti-. co-formal, mas se tínhamos, com Dvorak. um elemento formal explicável pela sua gênese; agora, pelo contrário, a natureza intrínseca da forma é que vai ditar a evolução artística, nãÇ) obstante as contingências e o momento.
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A edição espanhola:'> e, sobretudo, o divulgadíssimo artigo de Hannah Levy. tornaram as idéias de Wõlfflin muito conhecidas e, por igual, muito prezadas entre nós. Por isso, podemos resumir-lhe a exposição, limitando-nos ao registro dos cinco símbolos de visualidade pura codificados em antinomias: 1) o conflito e, pois, a passagem do linear ao pictórico, que sobrevém quando a linha, guia ocular e elemento táctil de contorno, cede lugar ao conceito visual puro, expressamente pictórico, capaz de captar opticarnente o objeto, sem isolá-lo pela linha de contorno (uma barreira entre o ser e o espaço .circundante) mas, pelo contrário, integrando-o no conjunto de entes visuais que compõem um mesmo todo ambiental e existencial apreensível pela visão e tradutÍvel na criação artística; 2) a passagem da superfície à profundidade, imediatamente decorrente da relação anterior, posto que, enquanto a visão linear impõe a organização numa mesma superfície em que o objeto se delimita e se separa do espaço ambiente figurado pelo restante da superfície, a visão pictórica, superando essa concepção puramente táctil, exige a superposição dos entes visuais para defini-los por avanço e recuo uns em relação com outros, cabendo acrescentar que \Volfflin se recusava a identificar a organização superficial com a visão do primitivo, desde que naquela poderão estar presentes elementos de escorço e de perspectiva rebatida; 3) oposição entre a forma fechada e a forma aberta, pois, se tanto na visão linear quanto na visão pictórica, toda obra de arte tende a fechar-se num todo íntegro c completo, não é menos certo que as formas podem "soltar-se", escapando a regras fixas e a construções rígidas; 4) passagem da multiplicidade à unidade, denotadora de uma arte em plena evolução, pois que, se, perante a visão primitiva, fragmentária c incapaz de estabelecer conexão entre os entes visuais sempre definidos pelo isolamento individual, o clássico surge como a consecução de uma harmonia geral, em tal harmonia cada parte, mesmo em relação com as demais, mantém-se em si mesma autônoma c só o barroco cumprirá a tarefa de concentrar e organizar todas as partes segundo um modo único, em cuja falta não restará sigS. Heinricb WOLFFLIN. COllUptos jlmdamcntalcs de la };fJlori!J df."l A"~. traducido dei 3Jeman por 1. Moreno Vill:l Madri. Espa5;l-Calfl!:. 1936.
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Manoel da Costa Ataíde. Forro da Igreja de São Francisco de Assis. Ouro Preto.
nificação para os componentes; 5) antinomia c1areza-absoluta!clareza-relativa, pois os eQ.tes visuais, que se tomavam separadamente mesmo na harmonia clássica, surgem em sua totalidade quando defrontamos a organização barrôca. Essa simbologia, em verdade, não passa de cinco faces de um mesmo fenômeno - a passagem do táctil ao óptico, de Alois Riegl - , que Wõlfmn desejou anotar com a maior minúcia para estabelecer como necessária a passagem do clássico ao barroco. Clássica, segundo Wõlfflin, será a arte que s~ sirva, simultâneamente, dos cinco conceitos de linearidade, organização em superfície, forma fechada, unidade múltipla e absoluta clareza, enquanto o barroco se definirá como pictórico, exprimindo-se em profundidade, por meio de formas abertas, alcançando unidade indi· visível e clareza relativa. Uma concepção de tal amplitude não pode adaptar-se à realidade histórica enunciada em termos de sucessão, nem, tampouco, ser tida (à semelhança de tantas esquematizações da evolução cultural) como desenvolvimento, único e inexorável. Daí adquirirem os têrmos "clássico" e "barroco" uma acepção que transcende às manifestações concretas que rotulavam, agora definindo grandes constantes, "conceitos fundamentais da história da arte". Desde logo, Wijlfflin está obrigado a corresponder às solicitações teóricas que sua concepção trazia implícitas e, em sucessivas revi. sões, busca retocar o primeiro esquema. Convém ~m que o processo é reversível, pois a evolução da arte contemporânea o levara a compreender que da forma fechada se poderia eventualmente voltar à forma aberta, mas, sem dúvida, importa-nos mais verificar se a sua teoria exclui análises do tipo da de Dvorak, por mais que teoricamente delas se distancie. t. o problema da importância do conteúdo que Wõlfflin não poderá negar, posto que, quando se vê diferentemente, em verdade se vêem coisas diferentes, convindo pois conceituar a nova expressão visual como correspondendo a uma nova visão do mundo. Não obstante, a teoria de Wõlfflin lornar-se-ia conhecida sobretudo pelas novas dimensões do termo barroco, como termo final de antinomia recorrente na história. O barroco não será, portanto, um estilo, mas um dos dois estádios sucessivos de todos os estilos, e a concep41
ção de Focillon não passará, afinal, de uma simplificação retificadora e de uma complementação da teoria de WOlfflin, que volta a ser mergulhada na História. Dando por assentado que a "vida das formas" conhece apenas e obrigatoriamente três etapas - a pré-clássica, a clássica e a barroca - Focillon G aplica-as, como esquema inevitável, a todas as formas historicamente registradas, deixando bem clara a plena universalização dos três termos quando os faz rebater nos próprios períodos que, historicamente, têm mais denominações. Assim, o próprio barroco será barroco-pré-clássico (jesuítico), barroco-clássico (Maderna-Bernini), barroco-barroco (Borromini-Churriguera). . Mesmo submetido a tão ampla generaJização, o barroco é mantido, por essas teorias, como uma constante formal, um termo sem dúvida universal porém sempre definido morfologicamente. Por isso, temos de admitir uma nova bifurcação teórica para passarmos à conceituação do barroco como uma constante espiritual, enunciada, senão apenas sugerida, pelo correspondente complexo formal. E o que tentou firmar Eugênio D'Ors'.
Muito sedutora e espirituosa, realmente, deverá ser a teoria de D'OIS para justificar sua difusão e aceitação, pois, buscando situá-la em sua posição doutrinária exata e não a prejulgando por isso, pouco ou nada nela encontramos que a qualifique para figurar com vantagem entre as investigações que contribuíram para a melhor compreensão do problema do barroco. Pretende Eugênio D'Ors, inicialmente, continuar a Wolfflin e a outros pesquisadores da constante formal barroca, mas não só os coloca descabidament ena posição de precursores de suas próprias idéias, senão ainda acaba por contraditá-los frontalmente. De fato, D'Ors, que se exprime na linguagem vagamente poética e inutilmente exaltada de um "amoroso" do assunto, parece tender antes para uma estética metafísica ao atacar o caso do barroco, ruas, se tentássemos segui-lo pelas regiões da filosofia, desde logo verificaríamos que, onde. parecem surgir con6. 7
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Henri FOCILLON. La Vie d~s Form~s. Paris, 1936. Eugenio D'ORS. EI Barroco. Madri, s/do
ceitos transcendentes, em verdade abundam esboços imprecisos e indicações a meio, o que, positivamente, é coisa bem diferente da filosofia, mesmo em suas expressões mais abstratas. Isso acontece, por exemplo, com o conceito central da teoria de Eugênio D'Ors. O barroco é definido como um "eon", no sentido da escola alexandrina, isto é, como "uma categoria que, apesar de seu caráter metafísico, ou seja, apesar de constituir estritamente uma categoria, tem um desenvolvimento inscrito no tempo, um modo histórico". Sabendo, porém, que a sua noção de "eon" muito se afasta da acepção original dos gregos (como anota Lalande), procura suprir a ausência do conteúdo teológico (o "eon" grego é potência eterna emanada do ser supremo) por uma generalização lógica, firmando-se num paralelo com o "eterno feminino" de Gocthe que, não sendo uma mulher, nem uma série de mulheres, seria um "eon'~ ... Aplicando a noção à matéria histórica, D'Ors apressa-se em dizer que não se trata de um ente "histórico"; mas de um ente "de cultura" e, mais uma vez afastando-se da acepção firmada dos termos, assim alude a uma constante do espírito humano que pode adquirir substância histórica, desde que condições especiais possibilitem o aparecimento de um panteísmo, indeciso entre os extremos da inquietude e do dinamismo, razão pela qual "franciscanismo, luteranismo, contra-reforma coincidem, em certa medida, no morfológico", sendo também necessário que se firme uma concordância com a natureza pela aceitação de uma "naturalidade do sobrenatural", enquanto o classicismo, que implicitamente figura uma constante oposta ao' barroco, tende ao naturalismo, afastando-se do cósmico. Apesar da imprecisãO do enunciado, percebemos que D'Ors demonstra grande sensibilidade para reagir à inquietação resultante dos aspectos dialeticamente antinômicos das expressões espirituais do barroco, mas não o teremos mais preciso e objetivo ao registrar as expressões formais: morfologicamente o barroco é multipolaridade, continuidade, "fonnas que voam" em contraposição às "que pesam", movimentos contraditórios que indicam uma ruptura espiritual. Sente-se, não obstante o esfumado das definições e caracterizações, que, até· então, D'Ors toma para ponto de referência o barroco tal como historicamente se exprimiu, exprimindo o conteúdo espiritual de 43
seu tempo, mas logo a teoria retoma à noção inicial de "eoo" para afirmar que, na história, o barroco está presente em todas as épocas, podendo nelas coexistir com o clássico. Chegamos, assim, aos maxlmos, formais e espiri~ tuais, da universalização do conceito de barroco. Par~ tindo da primeira posição, simplista porém necessária, mesmo na sua anônima modéstia, que nos indicava a necessidade de uma caracterização histórico-formal do fenômeno, inicialmente objeto duma definição apenas empírico-histórica, logo vimos que essa intenção, desde que se servisse dos recursos da pesquisa objetiva, haveria de levar~nos a uma investigação de ordem genético~formal. na qual a evolução morfológica, meticulosamente descrita, não dispensava, contudo, o apoio da interpretação cultural. A seguir, porém, reconhecemos a existência e a fertilidade das interpretações visando a universalização do conceito do barroco, que nos levou à universalização do conceito formal em termos que. se não exigem, ao menos toleram a referência ao conteúdo histórico e cultural, em que pese ao caráter intemporal das tendências fundamentais simbolizadas nas passagens antinômicas, coisa semelhante acontecendo também à oposta tentativa de universalização do conceito espiritual do barroco, embora eventualmente se exprimisse ela à custa do sacrifício, tanto da caracterização morfológica, quanto da interpretação cultural do fenômeno. Assim, graças à exemplificação das posições típicas, traçamos o quadro geral de uma das duas grandes tendências que inicialmente assinalamos. Cabe-nos agora um torna-caminho que. reconduzind~nos à posição básica inicial, nos permita passar em exame algumas amostras de teorias sobre o barroco que, ao invés de buscarem a universalização de um conceito geral, encaram o problema por um. de seus aspectos particulares.
As novas teorias que examinaremos - vale repetir - não diferem das já passadas em revista apenas por tenderem à particularização analítica, senão por muitos outros aspectos que lhes dão fisionomia especial, mas', se quisermos anotar mais um traço comum que as marca, podemos registrar, desde logo, que correspondem 44,
todas a uma mesma e comum poslçao genético-social. A análise de casos· específicos da evolução do barroco, dentro dessa orientação, sempre nos conduz a uma ligação com determinados fatores sociais e, por isso, obedecendo ao desejo de simplificar, poderíamos compor dois grupos especiais: o das teorias que tentam explicar o barroco pela referência a fatores religiosos, e o das teorias que buscam positivar os fatores de ordem política responsáveis pelo estabelecimento de uma determinada expressão artística. No primeiro caso, está o muito citado trabalho de Werner Weisbach, cabendo referir a edição espanhola que o tomou conhecido em nosso meio e chamou a atenção para o seu prefaciador, Henrique Ferrari Lafuente 8 , A tese de \Veisbach, interessante sobretudo para os povos ibéricos e seus descendentes, em cuja história o jesuitismo desempenha notável papel, desenvolve anteriores interpretações (a de Raymond é lembrada por Lavedan)!l e ultrapassa a análise purameme "funcional" de Male, buscando uma ligação direta e necessária entre o barroco e a contra-reforma. Não apenas \Veisbach, mas todo um grupo de historiadores, concebe O Concilio de Trento como um conclave para a revisão dos dogmas e para a consolidação da organização eclesiástica, mas 'também como um congresso destinado, sobretudo, a uma ampla revisão cultural, do· qual resultaram, como . se conclui historicamente, diretrizes que orientaram significativa parcela da criação e da expansão cultural dos tempos seguintes. Normalmente, esse programa de cultura haveria de exprimir-se no campo artístico e, pois, não há surpresa em verificarmos que uma nova arte, tendo seu primeiro impulso nos empreendimentos jesuíticos, se estabeleceu de fonna consciente, Verificando tal conceito à luz da história, não tardou que a crítica apontasse a demasiada extensão temporal que Weisbach atribuíra à ligação entre a contra-refonna ~ o barroco, pois, em verdade, não é difícil discernir dois tipos na arte da contra-reforma, que conheceu uma primeira etapa austera e simples e, depois, voltou-se para manifestações ansiosas de magnificência 8. Werner WEISBACH. El BaTToco, ort~ d~ la Contrarre/orma. Madri, Espasa.Calpe, 1942. 9. Pierre LAVEDAN, Histoire de "Art. Paris, Pres5es Universi_ t:l.ires, 1950. V. \'01. 2, pp. 411420.
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e esplendor, o que leva, aliás, os tratados a diferenciá-los com os termos particulares de "jesuítico" e "barroco propriamente dito". Não obstante o critério de exatidão que inspira tais objeções, ficou·nos dos trabalhos à maneira de Weisbach um residual que não saberemos desprezar, pois patentearam uma ligação entre o espírito da contra·reforma desejosa de arrebatar as consciências desgarradas· por um ímpeto de fé e, de outro lado, a forma expressiva de que se serviu e na qual, embora 'com alguma tardança, se espelharam caracteres morfológicos capazes de comunicar expansões espirituais igualmente impetuosas e arrebatadoras. No~ mesmo sentido de objetivar os elementos expressivos das formas e de sua ligação com traços culturais de igual substância subjetiva, desenvolve-se a teoria de Leo Ballet - o terceiro dos teóricos vulgarizados por Hannah Levy - que, por sua vez, prefere colocar o barroco em equação com o absolutismo. Essa posição é, aliás, asswnida por grande número de autores e, de um modo geral, ressurge na maioria dos manuais de história da arte que .se interessam pelas relações com as etapas políticas da história geral, inclusive pelos manuais de origem francesa, em que pese às restrições levantadas contra o barroco do grand siecle e, por igual, a caracterização do bloco cultural franco-britânico como refratário à tendência barroca. Asseguram, contudp, os defensores da conexão entre o barroco e o absolutismo que a identidade de traços entre a forma política e a expressão artística é de tal forma patente que pode ser dada como a grande constante do desenvolvimento cultural dessa fase que, em sua generalidade, poderia definir-se como inspirada pelo padrão ideal de poder ilimitado. Se, na estruturação do poder estatal (ou pré-estatal), que então se fixa, tais caracteres são essenciais, integrando-se na própria pessoa do governante, as formas barrocas compõem-se em movimento contínuo para significar a aspiração ao infinito, que se contém na noção de ilimitação do mando soberano, enquanto o esplendor formal do barroco traduziria, de forma explícita e direta, a expansão do poder na existência humana, onde se projeta com força incontrastada, criando uma beleza impositiva e superior. J á a contradição do natural, oferecida pelo barroco tanto no domínio material dos elementos artísticos inteiramente rendidos ao vir46
tuosismo, quanto na proposlçao de uma estética que se choca frontalmente com o naturalismo, não apenas para contrariar a natureza, mas principalmente para comunicar aparência de naturalidade e concepções antinaturais - , a essa contradição Batlet atribui a função de refletir próprio espírito do absolutismo em ação que, a seu ver, é sempre um poder de dominação e violação, um consciente superador de fronteiras. Inegavelmente, se atentássemos apenas para a expressão formal do barroco, nela sempre encontraríamos essa transgressão das barreiras naturais e sociais ou, pelo menos, da expressão lógica de tais limites e, ao mesmo tempo, uma criação dinâmica sem termo aparente, tal como, pela vaga intuição e pelo impressionismo semipoético, procurou esboçar Eugêoio D'ürs. Contudo, para Ballet a relação fundamental, o nexo principal a ressaltar-se na época barroca será sempre o liame entre o artístico e o político. Nessa linha de pensamento, depois de anotar a interpretação da arte pelos seus liames com a política e com a religião, não podemos deixar de registrar as observações de Arnold Hauscr 10 , embora enunciadas nas mooestas dimensões de um capítulo de um trabalho geral de história social da arte. mas dignas, sem dúvida, de serem consideradas como um prolongamento e uma ampliação, justos e necessários, da corrente de Weisbach e Ballet. Revendo os conceitos anteriores à luz da evolução social, Hauser, que sem dúvida adota a interpretação dos seus antecessores. sente-se ol;>rigado a praticar algumas distinções essenciais e, assim, acaba por distinguir dois barrçx;os, não tanto pelas diferenciações forInais que os poderiam separar, senão pelas diferentes descrições genético-sociais que, efetivamente, merecem l1 • Se Wolfflin, prolongando seus conceitos fundamentais da evolução formal, esboçara uma interpretação
o
10. Arnold HAUSER. The Roullegde d; Kegan Paul. 1951.
Social
Histor,.
o/
Arl.
Londres
11. "If, therdare, the production of art was not entirely llniJorm cven in thcsc ages of llndivided c1:t.Ss rule, how much less wiIJ il bave been in a cenlUry like lhe sevenleenlh, when Ihere were a1ready several cullured str:i1a, each wilh ils own absolutely individual oUllook on social, economic, polítical and religious mauers, and each confronling art with orten quile differcnt problems. The lIrtistic 3.ims of the curia in Roma were fundarnentally diffcrent from those of lhe royal court in VersailJes, and what thcy had ill common could certainly not be reconcilcd with lhe arlistic purpose of lhe Calvinist, bourgcois Holland".. etc.
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Manoel da Costa Ataíde. Forro da Matriz de Santo Antônio. Santa Bárbara.
geográfica das expansões concretas das grandes tendências morfológicas, se, Dum livrinho de vulgarização, um crítico'menos amigo das teorias, Eric Newton 12 , sente-se obrigado a aludir· a um barroco do Norte e a um barroco do Sul, Hauser prefere aprofundar o problema e, corrigindo e desdobrando a distribuição meramente espacial, atribui-lhes maior flexibilidade, riqueza de conteúdo e pertinácia histárico'social. Sem dúvida, continua basicamente válido ci clássico mapa da expansão barroca que na carta do Velho Mundo traça um eixo simétrico, inclinado de sudoeste a nordeste e ligando Portugal à Rússia, para deixar à esquerda a resistência franco-britânica e, à direita, a impermeável frente turco-bizantin3:? mas êsse esquema tange fenômencs sociais e políticos que estão longe de ser indiferentes à compreensão do problema. Como, analisados mais de perto, nos indicam realidades diversas, justifica-se plenam~ntc a diferenciação, praticada por Bauser, entre um barroco das cores católicas e um barroco da burguesia protestante. Não só, urna vez enunciada a diversidade das conexões entre a arte e o meio social, mais fácil se torna a compreensão pc certas variações menores, porém notórias, como no próprio enunciado teórico de duas condições sociais de. uma mesma forma geral poderemos encontrar indicação de que, pela caracterização particular de cada núcleo de aclimatação do barroco, poderemos atingir à melhor captação dos impulsos, inibições e modificações que ali acompanharam· o desenvolvimento da forma genérica - o caso de França, fríngia de uma região resistente ao barroco, corte católica que ocupava posição especial em relação ao papado, expressão máxima de absolutismo, foco de cultura em que mesmo o pensamento protestante não deixava de agir, poderá, considerado na totalidade de suas facetas peculiar~. explicar muito do caráter singular de seu barroquismo contido e estudado, que .DOS leva da igreja de S. Luís, à feição da Gesu e financiada pelo próprio Luís XIII, ao problema complexo e especial de Versalhes. Multipliquem-se os exemplos, isto é, os casos particulares estudados em sua própria configuração e idiossincrasia.,. e chegaremos à conclusão de que nos;· defrqntamos com o máximo da ·12. Eric NE\VfON. Penguin, 3' ed.• J94S.
Eu?o.p~G" PointinK ond St:lllplIlU.
Londres,
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tendência particularizadora que, ao mesmo tempo. é a estrema expressão da análise 1:enético-socia/. II
Dispostas as teorias do barroco num quadro geral em que se representem as principais posições críticas por elas enunciadas, predomina, sem dúvida, a impressão de irreconciliação, de irredutibilidade dos conceitos básicos. Tende uma família de teóricos à universalização, e outra, à particularização. Os pesquisadores de aspectos particulares recorrem à análise histórico-social, enquanto os adeptos do conceito universal preferem a pesquisa visual, como se diferentes objetos de estudo exigissem métodos diversos. Aparentemente, só caberia a escolha de uma dessas tendências, com exclusão da restante. Não obstante, já ao enumerar e ordenar os elementos teóricos, advertimos que não se deveria, em caso algum, reduzil" qualquer das teorias apenas à sua diretriz geral, sob pena de desfigurá-la, cerceando e inutilizando a crítica. E, mais, sublinhávamos as conexões entre o histórico e o formal que continuavam operantes mesmo no interior de sistemas aparentemente exclusivistas. Nos· so primeiro cuidado, portanto, será o de agora examinar essas tendências principalmente para notar que, focalizando tão só a morfologia do barroco ou, pelo contrário, preferindo estudar o complexo social que se exprimiu por seu intermédio, sempre o teórico dá por subentendido, isto é, por existente,' o elemento a que empresta menor importância ou função secundária, pois só assim poderemos colher as sugestões capazes de levar-DOS a uma síntese metodológica mais adequada ao objeto de estudo.
Dir-se-ia que o caso mais resistente a tal revisão seria o de Wõlfflin, culminação sempre citada do visualismo, porém, mesmo desprezando todas as sugestões de ordem sociológica que tentou recobr~ com a sua pretensa diferenciação geográfica (em verdade, quando pesquisamos fenômenos culturais, "norte" e "sul" re50
presentam menos dois quadrantes do que duas histórias humanas), não podemos esquecer-nos que, na base da sua construção teórica, resta - conhecida, e o bastante poderosa para ser generalizada - uma noção de barroco que só poderia ser colhida nas expressões concretas com que surgiu, em determinado tempo e no seio de uma certa cultura. A partir dessa aceitação tácita, torna-se possível abstrair certos traços morfológicos e, por oposição a outros traços igualmente inferidos de uqla realidade histórica anterior, enunciar a antinomia que, só então e não antes, se terá por válida, mesmo depois de excluídas as noções históricas. Ademais, a extrema abstração com que hoje se enunciam as categorias wolfflinianas pode ser, sem dúvida, atribuída em grande parte a certos comentaristas do mestre, que este, nas conclusões dos "Conceitos Fundamentais", continua a servir-se com muita liberalidade das referências históricas e das análises concretas. A recorrente visual clássico-barroco, a rigor, poderia ser tomada apenas como a medida da evolução interna de cada estilo, permanecendo este condicionado pelas circunstâncias históricas que estabeleceram sua necessidade e precisaram sua adequação. O mesmo, por igual, poder-se-á dizer de Focillon. Assim, teríamos um esquema dialético, em perpétuo retorno c, pois, marcando a história pela regularidade, mas restaria sempre por saber se, como chega a insinuar Wólfflin. não se trataria antes de uma constante da natureza humana ("psicológica", como diz ele próprio), reaparecendo em cada passo principal da história da arte que, de tal maneira, apenas teria confirmada a importância da especialidade das etapas que diferencia e descreve. De qualquer forma, os adeptos da análise visual jamais se opuseram frontalmente à análise expressiva, senão tão só ao caráter "irremediavelmente unilateral" duma história da arte que então parecia exclusivamente baseada no estudo do elemento de expressão, e que, hoje, sabemos firmada sobretudo no conteúdo contingendal exprimido. Claro está que os acusadores duma unilateralidade - e só lhes sobrava razão em suas incriminações - não haveriam de corrigi-la pelo excesso oposto. Por isso, não tememos deixar próximas, ao esboçar nosso primeiro panorama, as teorias de Dvorak e de Wõlfflin, certos de que, tanto quanto as evidentes 51
oposições entre as. duas interpretações, também haveriam de contar as influências, em dosagem diversa e provocando reações variadas, de Riegl e Burckhardt. Sempre o elemento visual haverá de desempenhar um papel importante na história da cultura que Dvorak deseja traçar (seus críticos acusam-no de menos precisão exatamente na classificação dos fenômenos qualitativos e subjetivos ... ), enquanto será impossível desprezar toda a simbologia que uma época incute nas suas manifestações artísticas, apenas porque nelas se exprimem, com maior vigor, certos caracteres visuais reconhecíveis na arte de outras fases. Reconhecemos, contudo, que essa tentativa de aproximar pontos-de-vista de qualquer forma discordantes pode merecer uma contradita certeira, que nos lembrará a escolha consciente de caminhos especiais pelos teóricos que desejamos generosamente avizinhar. O argumento tem procedência, mas serve também para confirmar, ainda mais; nossa tendência a encarar a distância entre o ponto-de-vista puramente genético-formal e o ponto-de-vista histórico-social como resultante de um modo específico de colocar-se o problema, de uma escolha de aproach. como se diz habitualmente, mas nunca de uma concepção unilateral da natureza do objeto de estudo. Nesse objeto, um aspecto é escolhido como principal, fundamental, essencial, mas daí não decorre, necessariamente, a negação dos demais aspectos. Dessa forma, as oposições não mais parecerão irredutíveis, pois que estaremos antes diante de um caso de preferência metodológica especial do que, propriamente, de concepções excludentes. Se, provisoriamente, dermos por aceitável essa interpretação e voltarmos ao nosso quadro de posições teóricas, verificaremos que estas se estendem por cinco ou seis ângulos adjacentes, senão mesmo interpenetranteso De fato, aqueles que atribuem urna vida própria e autônoma às formas, colocando-se, pois, na pesquisa das constantes da arte, são responsáveis, também, pelo conceito de que tais constantes constituem, por igual, estágios da evolução dos estilos, o que já é meio caminho andado para indicarem-se as cau~as do aparecimento e enraizamento de determinada forma (seja pelos seus caracteres próprios, seja por significar a recorrência de um dos elementos constantes) dentro dos 52
mesmos quadros· de sua evolução específica e individual. Se, pelo estudo dessa evolução, vai-se ter às conexões sociais que possibilitaram o aparecimento de uma forma individualizável e específica, não haverá, realmente, por que preferir a investigação histórico-social à pesquisa formal, ou vice-versa, senão apenas porque se julga tal ou qual aparelhamento de pesquisa mais abundante, mais manejável ou mais penetrante. Se, pelo contrário, todo o inquérito se resumisse apenas ao reconhecimento da recorrência de um dos termos da constante, o muito que pudesse interessar o resultado de tal verificação e longe de. nós o intuito de diminuí-lo - não nos impediria de reconhecer que a positivação da presença do elemento recorrente não basta, em caso algum, para esgotar o conhecimento do objeto de estudo. Teríamos reafinnado a existência e a pennanência de uma díade, uma tríade etc., cujo enunciado dialético recebe, de tal forma, a confirmação dos dados da história vivida, mas restaria por fazer o estudo em profundidade de uma etapa dessa mesma história. ' Suponhamos, mais, que, como desejava Wõlfflin, assim consigamos firmar a lei fundamental, "psicoló-· gica". da natureza humana. Mas, ainda concedendo que tal descoberta nos leve a dominar inteiramente as reações do homem, que se processariam numa cadeia de elos monotonamente ordenados, não resta dúvida que até mesmo nessa simples sucessão haverá outros aspectos a determinar: a maior ou menor rapidez com que reaparecem os passos da série e o porquê desse apressamento ou retardamento relativo, o tipo de conjuntura histórica que parece possibilitar o estabelecimento (ou - se assim se preferir - que decorre do estabelecimento) de cada fase e, pois, a transição de uma fase a outra etc. Em outras palavras, uma constância fundamental jamais conseguirá esgotar o interesse e a necessidade do exame da conjuntura circunstancial. Essa primeira objeção que se levanta ao ponto-de-vista genético-formal, sobretudo nos extremos da universaliza:ção dos conceitos formais, representa sério desafio ao culto ortodoxo dessa posição, mas não interessa. em nosso caso, tal esperança de refutação teorética, pois, abandonando qualquer veleidade polêmica, desejamos examinar as teorias com o intuito de colher um conceito de barroco que nos possibilite maior segu53
rança metodológica. Ora, reconhecida a possibilidade de universalização do conceito, transferiu-se o tcrmo barroco para o plano das constantes dialéticas, mas restar-nos-á, ainda em aberto, o problema do próprio barroco em sua individualidade histórica, acrescendo ainda a possibilidade de ser esse o ponto menos cuidado das análises que nele apenas esperam encontrar o já estabelecido teoricamente. Que valerá dizer, com Fo~ eillan, que há um barroco-pré-clássico, um barroco-clássico e um barroco-barroco, se, tendo-se também dito que há um helenismo-pré-clássico, um helenismo-clássico e um helenismo-barroco, o maior interesse estará em perscrutar a natureza dos dois primeiros termos destas séries ternárias e não, efetivamente, em admirarmos a regularidade com que se repetem os três qualificativos finais? A objeção deverá ser válida mesmo para os adeptos da concepção visualista. Chegamos, afinal, a um grau de desenvolvimento dos estudos de história da arte em que, aceitemos ou não os conceitos fundamentais wolfflinianos, devemos, afinal, estudar a conereção histórica do barroco. Se tivermos por falsa a noção da recorrência, o estudo é de óbvia necessidade, mas, ainda para os mais ortodoxos seguidores de Woolfflin, é certo que duas fases históricas devem interessálos especialmente - a clássica e a barroca - , pois foram os instantes em que, de maneira completa, se exprimiram ao máximo as constantes que, em outras fases, apenas perpassam a realidade histórica transmutadas em ritmo evolutivo. Em outras palavras, para o seguidor de WOlfflin oferece-se, hoje, passada a fase áurea da conquista doutrinária,. uma questão substanciosa e instigadora: como e por que se tornou viável um estilo barroco? Na avaliação das possibilidades metodológicas das teorias do barroco, impõe-se afastar da concepção visualista - que aqui, como sempre,. acabou por girar em torno do nome de Wolfflin - uma confusão perniciosa, que se diria mera ambigüidade léxica, mas que sempre se estabelece quando se toma o barroco por medida· do barroco. Fora daí, as sugestões da teoria visualista não podem prejudicar sobretudo aos que as recebem, cautelosamente, como simples sugestões. Sempre, ao lado do reconhecimento da "forma em si", poder-se-á atentar para a expressão permitida por essa mesma forma, bem como o.s que buscam determinar
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qual a "forma necessária" à expressão de determinada cultura não haverão de recusar-se à análise dos caracteres dessa mesma forma. Em face da metodologia do barroco, a posição genético-formal só pode sofrer restrições e críticas· negativas no que tange às suas exageracões. Toda a resistência que parece oferecer 'às visões m~is particulares do complexo artístico, como se realizou na cultura histórica, provém, afinal, de procurar atender a um duplo fim, pois, se é possível firmar-se e comprovar-se a generalização pela análise do particular, quando se transcende, aprioristicamente, ao problema concreto, só se pode perturbar ambas as conceituações. Assim se explica, aliás, a vacuidade das elucubrações de Eugênio D'Ors.
Tão pressuroso em colocar entre seus antecessores o mestre, a que evidentemente desejava superar, D'Ors esqueceu-se, contudo, de considerar mais rigorosamente suas conceituações formais. Assim, onde W'olfflin desdobrou o conceito básico de Riegl em cinco símbolos, D'Ors contentou-se com umas largas pinceladas impressionistas: o barroco é feito de continuidade, multipolaridade, "formas que' voam". Esqueceu-se, contudo, de que tais qualificativos nem recobrem todo o barroco, nem recobrem só o barroco. Continuidade é termo muito amplo, que se aplica a vários elementos óptico-artísticos c, se aplicado à linha, por exemplo, vai convir maravilhosamente ao contorno fechado do classicismo, sempre disposto, pela continuidade de uma linha de silhueta, a isolar o ente visual do espaço ambiente. Também a multipolaridade do barroco é específica e não se confundirá com a simples anotação de muitos pólos que, podendo ser desconexos e apenas justapostos, serão encontráveis até nos desenvolvimentos em sucessão desordenada da arte primitiva. Afinal, "formas que voam" quando muito valerão por um conceito eXpressivo de ordem subjetiva, mas nunca para definir-se opticamente a um complexo visual ... Afora esses toques pseudovisuais, Eugênio D'Ors contentou-se com um derramamento de vaguidades filosofantes que não se saberá enquadrar nem nos rigores da dialética, nem nos quadros vivos da história. Quando
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Pormenor Bárbara.
da
pintura do
forro
da Matriz. Santa
acentua o contraste entre o clássico e o barroco, não consegue criar propriamente uma oposição, c quando se refugia na hipótese da coexistência dos dois estilos acaba por perder, de todo, o domínio da conceituação mínima que parecera deixar assente. Por isso, D'OIS pode até acertar quando propositadamente exagera sente-se o que, de sugestivo, há na aproximaçao entre a descoberta do sistema da circulação sangüínea de Harvcy e o barroquismo, à condição de raciocinarmos em termos de uma avançada sociologia do conhecimento que já conseguisse definir instantes gnóseo-formais na evolução da cultura - mas quase sempre erra quando procura ser preciso - toda a ligação que consegue entre os dois fatos é de ordem sentimental c faz-nos pensar numa época barroca como numa espécie de extravagância coletiva e coercitiva, dando, contudo, frutos de grande rigor científico ... Não há, pois, por que tomarmos a sério a sua classificação das espécies barrocas senão para anotar que, registrando um palladianus e um malliera, bem como um tridentinus, sive jesuiticus, daí salta ao "rococó", temeroso de enunciar um "barroc1ws barroclws", seu principal assunto, afinal de con~ tas 13 .
Eugênio D'Ors, salvo melhor juízo, valerá apenas para indicar os perigos da exageração universalizadora, levada por ele aos máximos da ousadia e da gratuidade.
Em síntese, o ponto-de-vista genético-formal representa, em que pese a todas as reservas e todas as cautelas que nos inspiram suas freqüentes exagerações, uma apreciável contribuição para a metodologia do barroco. Se nos alongamos em considerações sobre seu caráter não-exclusivista, a tanto fomos levados, pela insistência com que, de comum, a crítica se refere à concepção visualista que lhe dá base. De outra parte, voltamos freqüentemente à ambigüidade que atingiu o lermo barroco depois que, continuando a denominar um determinado complexo formal, passou a rotular também 13. Eugenio D'Ors classifica. no gênero BaTTOchl.ls. as seguintes espécies: priSlinllS; archaicus; macedonills; alc:umdrinus; roma,ms; buddhicus; p<'1IJ/:icwIIS; golhiclls; jranciscallus; monllclinlls (Portugal); orijicencis (Espanha) Ilordiclls; palladia/lllS (Itâlia-Ingl:J.terr:J.); rl/pestris; maniera; Irid"n/imIS, si\"(: jcslIi/iclts; "racocú" (França-Áustri:J.); romall/iclls; jinise"lllaris; pos/abelJicus; ojjicinalis.
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uma constante em perpétua recorrência, mas aqui cabIa, por igual, a repetição, desde que se tornava necessário distinguir. entre a contribuição de uma teoria para a mais justa conceituação do barroco e a pretensão de universalização que nessa mesma teoria se 'contém. Por isso, deixamos de parte todas as manifestações do vi."Suali5mo enquanto aspira a ser a única doutrina válida na inJerpretação da arte em evolução, limItando-nos a cuidar da contribuição de Wülfflin e sua escola, como uma compreensão, apreciável embora parcial, do fenômeno barroco, sem preocupar-nos com a validade ou a insubsistência dos seus alegados princípios fundamentais. Por isso, em conclusão, parece-nos impossível ao investigador do barroco deixar de utilizar-se do enunciado formal - aquela forma pictórica desenvolvida em profundidade, graças à organização de formas abertas que, tendendo à unidade do todo, dá-nos a clareza relativa - deixado por Wolíflin, pouco importando, ao menos provisoriamente, que possa ou não ser reencontrado em outras fases da história da arte.
Quando passarmos às teorias que tendem à análise histórico-social, sentiremos tornar-se mais fácil o esforço de aproximação com as demais posições teóricas. Aqui, em verdade, não encontramos um enunciado interpretativo genérico comparável à simbologia visual de Riegl-Wolfflin, pois o conceito fundamental dessas interpretações individualizadoras já é, em si mesmo, apenas metodológico. Se um fundamento comum pode ser encontrado em todas essas pesquisas, inspiradas por diversas visões históricas e diferentes valorizações dos vários fatores sociais, será, por certo, a certeza que as levou a buscarem a ligação substancial entre determinada forma artística e o ambiente histórico em que' floresceu. Como nenhuma antevisão de como se processa a conexão é enunciada ab initio pelos autores de tais interpretações, sua crítica se fará, de comum, à preferência que, no decorrer do estudo, vem favorecer a tal ou qual componente do complexo social. Esse, o caso de Weisbach, mas quando vemos que à acusação de seu exclusivismo causal e de sua simplificação de objeto de estudo segue-se a afinnação de que "Weisbach chega 58
aliás à mesma conclusão, mas incidentemente e apesar do título de seu livro"'\ compreendemos que, agora, já não lidamos com esquemas preestabelecidos (ou generalizados a partir da observação particular, mas, desde então, tidos por imutáveis), senão nos defrontamos com aquele tipo de investigação em constante progresso no sentidp da objetividade. Isolar uma causa entre muitas, em tais casos, representa menos uma tendência à interpretação exclusiva do que à investigação monográfica, tão necessária à formulação científica dos problemas, Ademab a positivação da influência dos dogmas tridentinos na formulação barroca, influência inegável mas cuja justa avaliação se impunha fazer, representava o ponto-de-vista moral dum investigador que, por certo, iniciou seu trabalho ao tempo em que, de comum, se identificavam jesuítico c barroco. E da importância de tal contribuição, diz bem claramente quanto resulta de seu cotejo com a interpretação de Ballet, igualmente particularizadora, embora de âmbito mais largo, pois o alertamento do interesse, simultâneo e equivalente, pelos fatores políticos e religiosos, só poderia, por certo, iniCiar-se pela verificação da função de uma ou de outra dessas forças sociais. Por isso mesmo, impunha-se a revisão de Hauser, encaminhando-nos para a compreensão de um fenômeno artístico tão amplo que, identi· ficando-se e ao mesmo tempo traduzindo o espírito de uma época, foi capaz de atender às solicitações de diferentes grupos locais, estruturas econômicas, formulações jurídico-políticas e até ideologias éticas e religiosas. E, como Rauser não rejeita nem refuta as conclusões de seus antecessores, mas, pelo contrário, explícita ou tacitamente as integra na sua interpretação, mais ampla e mais justa. compreendemos como os pesquisadores de tendência histórico·social. desligados de compromissos conceituais apriorísticos e deixando-se levar antes pelas sugestões implícitas no próprio objeto de estudo, não oferecem resistência a uma formulação geral do problema do barroco. Suas contribuições, a rigor, não constituem "teorias", senão, mas precisamente, estudos, interpretações. Há, contudo, nas conclusões de Ballet, sobretudo se as confrontarmos com a tendência r-epresentada por Dvorak entre os genético-formalistas, um. elemento '4.
L\.VEDAN. cil.
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que não pode passar em silêncio. De fato, para deixar patentes as ligações entre o "espírito" do absolutismo e o "espírito" do barroco, Ballet lança mão de uma série de símbolos que devem mais à análise formal do que, propriamente, ao enunciado do conteúdo subjetivo das formas analisadas. Sem dúvida, Ballet parte dos elementos ético-politicos decorrentes de uma definição bastante geral do absolutismo: decompondo o binõmio "poder-ilimitado'\ é-lhe possível chegar a expressões, no âmbito vital, desses dois termos que. pelos intermediários "existência", "ação" e "aspiração ao infinito", nos dão as características do "esplendor", da "dominação", da "violação" e do "movimento sem fim", muito adequadas às expressões formais do barroco. Porém, malgrado essa ordenação expositiva, que parte do absolutismo para chegar ao barroco, sentimos que o barroco, em verdade, inspirou, com sua morfologia, o sentido da
análise. Em outras palavras: Ballet já partiu do absolutismo com os olhos postos nas· características formais do barroco e, conseqüentemente, no objeto político, só atentou para o que pudesse encaminhá-lo ao objeto estético. Fosse outra a conexão pesquisada - entre o absolutismo e o sistema econômiCo internaCional seu contemporâneo, por exemplo - e outros seriam, por certo, os traços do poder ilimitado que o interessariam. Em verdade, estamos diante da contrapartida daquele conteúdo histórico e cultural que os formalistas não conseguiram dispensar c, lembrando-nos do quase-equilíbrio a que, entre as duas posições, atingiu Dvorak, somos levados a crer que BaBet dele não se afasta muito - senão pelo ponto de partida ou pelo conteúdo das conclusões, ao menos pelo sentido destas. Firme-se, deste modo e mais uma vez, a impossibilidade de dissociar forma e conteúdo nas análises de história da arte que aspirem a uma compreensão global dos fenômenos.
Essas observações que nos inspiraram as análises lcvam·nos a compreender que, aqui, não cabe aludir a exagerações, como o fizemos ao sumariar o caso das interpretações genético-formais. Agora, en.::ontramos limitações, cabendo ·acrescentar que não são limitações de origem conceitual, mas, pelo contrárioj históric~sociais
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decorrentes do desejo de conter-se a pesquisa no campo específico de um objeto bem determinado.· Assim sendo. considerá-Ia-emas como conseqüências naturais de um método de investigação objetivo, que não é preciso submeter a uma grande depuração crítica para integrar no conjunto das contribuições ao estudo do barroco. Basta anotar, como já o fizemos, que a compreensão do fenômeno, recusando-se a estabelecer-se pela indicação de um só fator ou determinante, acabou por exigir uma conexão causal caracterizada pela multiplicidade, variedade e relatividade, que já nos coloca no caminho da concepção de um complexo social enunciado em súa globabilidade. Mais ainda, esse complexo social, recusando-se a identificar-se exclusivamente com determinado grupo local, salvo enquanto expressão particular de uma realidade mais geral, a tendência das pesquisas histórico-sociais haveria de infletir, como se revelou, no sentido duma formação ocidental, ou pejo menos européia do fenômeno do barroco. Sem dúvida, essa medida espacial e temporal já se continha em estudos que buscavam ligar o barroco ao jesuitismo ou ao absolutismo - fenômenos que transcendem às fronteiras de qualquer nacionalidade - , mas, não só agora progredimos pela extensão do âmbito da pesquisa e pelo enunciado dQ complexo causal que deverá substituir a primitiva noção unilateral, senão avançamos mais ainda quando, estendendo os limites da investigação, terminamos _por incluir na análise expressões contraditórias e mesmo conflituais dos mesmos fenômenos que, conseqüentemente, devem ser avaliados em sua generalidade. Tomando o absolutismo .não só nos aspectos particulares observáveis no monarquismo suprafeudal e no esplendor de Vcrsalhes ou no expansionismo político e mercantil das cortes ibéricas, mas, pelo contrário, colocando esse mesmo absolutismo em tal posição que possa recobrir a máxima etapa de expansão do poder real. a índole envolvente e dominadora da própria contra-reforma e, ainda, as expressões duma soberania absoluta, monárquica ou não, que se esboça no seio do internacionalismo nascente, estamos obrigados a colocar-nos num plano da história da cultura que, considerada em si mesma, revela diretas conexões e, mesmo, determina todas as variantes particulares, mas recusa-se a exprimir-se totalmente numa delas. Daí, pois, o valor
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duma análise que atenda a tal solicitação do própno objeto de pesquisa, como o insinua Hauser com muita pertinácia, mas impõe-se, então, nos limitar não a uma espécie de quadro geral das conuadiçõcs em que, contrastando-se as situações e conjunturas discordantes que se exprimiram por intermédio de uma mesma formalística geral barroca, estaríamos. afinal, apenas insistindo na significação das variantes específicas. Estas, sem dúvida, têm um valor e uma importância indisfarçáveis. Para bem compreendê-las, teremos, contudo, de mantê.-Ias em equação com a generalidade barroca, que não" apenas flS determinou hisroricamentc, mas ainda possibilitou as largas inflexões que se poderiam, mesmo a priori, conceber como caracterizando um "espírito", isto é, uma expressão supra-estrutural responsi:lvel, portanto, pelas atitudes espirituais fundamentais comuns aos homens de uma determinada cultura universalista, mas também pelo atendimento das necessidades culturais peculiares a cada um deles. Dentro de uma tal compreensão, sim, poderíamos aproximar o esquema circulatório de Harvey, a composição multipolar em agitações sem fim de um Rubens, a integração dos espaços numa igreja de Neumann ....
De um lado, verificamos a resistência do conteúdo cultural nas teorias que pretendiam ater-se a um formalismo auto-suficiente e rigidamente constante. De outra parte, vimos a rápida evolução que levou as interpretações particularizadoras a uma concepção universal e dialética do fenómeno. A pretensa oposição entre duas tendências lógica e teoricamente opostas resulta, de tal forma, numa perceptível confluência de esforços que, partindo de conceitos metodológicos extremos e _ estes, sim opostos, acabaram por aproximar-se, muito mais do que confessam, de um mesmo ponto de convergência que, se não desmerece os pontos de partida originais, já os torna, hoje, meramente incidentais, processuais quando muito, e capazes de inspirar uma técnica especial de pesqu"isa, mas cuja significação metodológica propriamente dita se diminuiu bastante, se'não mesmo desapareceu, desde que uma visão nova do fenômeno estudado proíbe que continuemos conside-
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rando uma concep ção purame nte visual du uma interpretaçã o unívoca do barroco compat íveis com a riqueza
expressiva e a variedade morfológica do complexo artís-
tico em' questão . Interes sados na crítica das posições teóricas dos que tentara m· enuncia r um sistema doutrin ário ou uma
interpretação histórica do barroco, podemos pcrguntar-nos por que inicialm ente tanto se separar am os teórico s e investig adores se, afinal, acabara m por tender a um' mesmo ponto de convergência. E a resposta - quando a fundo fôr estudada a questão - muito provavelmente dará por respons áveis pelas discrep âncias iniciais tanto as inevitáveis carênci as do equipam ento de pesquisa, que em verdad e se desenvo lveu paralel amente às clássicas teorias do barroco , Quanto as vicissitudes conceituais decorre ntes do insuficiente desenvo lviment o das ciências culturais, cuja evolução, nos últimos trinta anos, foi de molde a rever e precisa r muitas das noções anteriorm ente domina ntes, bem como a traçar novos avanços que determ inaram importa ntes correçõ es no campo das noções básicas sobre a realida de social e, correla tamente, no domíni o da interpr etação histórica. Em verdade, é-nos hoje permitido lembrar que, com muita probab ilidade , as hesitações, as contrad ições e, em conseqüênc ia, as aberraç ões e os pretens os conflitos entre as teorias do barroco poderia m represe ntar, in COllcreto, o traçado do progres so, irregula r e por vezes até hesitante, que nos trouxe a um enuncia do teórico ~ filosófico sobre a naturez a histórico-social dos fenôme nos artísticos. Assim, quando estudam os as afirmaç ões dos visualistas, por vezes sentimo s que possive lmente terá influído em sua tendênc ia à univers alizaçã o (seja do conceit o formal, muito mais preciso , mas seja também do conceit o espiritual, em que pese às frustras pretensões de D'Ors) a inusual expans ão geográf ica da formalística barroca . Espalh ando-se em espaço de vastas proporç ões, estende ndo-se .de Portug al à Rússia numa área de desenv olvime nto que compre endia os povos mais diversos, as socieda des mais variada s, as mais diferen tes crenças filosóficas e religiosas, as mais discord antes estrutur as políticas e econôm icas, o barroco , pelo menos para os que encarec iam essas inegáveis, porém não tão importa ntes, distânc ias entre os princip ais núcleos da 63
Igreja do Colégio de São Paulo.
cultura européia, haveria de configurar-se como algo mais forte do que as formulações temporárias e especiais de cada sociedade que o cultivou. A constância do fenômeno, está claro, ainda mais impressionaria o historiador na medida em que o barroco vinha substituir outro complexo artístico de desenvolvimento bem menos regular e de mais evidente subordinação às conjunturas espaciais e temporais - a Renascença. Assim, enquanto se buscava, para atribuir maior unidade à compreensão do renascente, a medida algo abstrata do classicismo, o barroco era posto como uma irrecusável permanência, um "conceito fundamental", uma fatal recorrência "psicológica". Assim, entre outras, a teoria de um Wolfflin, muito embora destinada a estabelecer um sistema dialético binário, na qual teoricamente seria inútil atribuir maior valor a um dos termos da díade, transformou-se, na compreensão dos continuadores e dos refutadores, numa teoria principalmente do barroco. O desvio não se deve, contudo, a" uma falha de intérpretes benévolos ou adversários, senão às insinuações tácitas contidas nesse sistema que transfigura um caso singular de. homogeneidade cultural numa cons-
tante humana. Voluntária ou inconsciente, firma-se uma oposição historicista cuja primeira preocupação haveria de estar na restauração do valor dos casos particulares. Toda a ênfase, então, é posta na demonstração de como certas solicitações especiais foram satisfeitas pela formalística barroca. A atenção para o caso da contra-reforma seria fatalmente o primeiro passo: os'dispositivos tridentinos representavam, documentadamente, a expressão das necessidades do movimento de restauração eclesiástica e o planejamento dos meios de satisfazê-las. Recoberta essa face da história do barroco, verifica-se o vulto e a importância do residual não interpretado. Cabem então as interpretações político-estéticas, nas quais se contam, aliás, a pretensão de recobrir, por igual, o campo religioso, desde que se admitisse a contra-reforma como uma tentativa consciente de restaurar a plenitude do pOder, isto é, o absolutismo específico da Igreja Romana. Mas, em todos os casos, sempre se reduziu um caso incomum de adequação versátil da mesma forma artÍStica a múltiplas solicitações expres65
sivas a um problema de adequação imediata e exclusiva a uma única solicitação. Fundamentalmente, porém, em que pese às convicções dos teóricos, desenrolava~se um processo bem diferente do conflito entre o visual e o histórico, entre a universalização e a particularização. A pouco e pouco,' sem consideração de conceituações básicas e de posições índividuais, firmavam-se no campo das teorias do barroco duas noções essenciais à compreensão não s6 desta, mas de todas as grandes fases da história da arte. Primeiro, evoluía-se para uma concepção dos fenômenos culturais e, pois. dos fenômenos artísticos que não os vià como a resultante da justaposição mecânica dos elementos componentes num mosaico de relativa e ocasional harmonia, nem como a conseqüência da impo· sição de um padrão que, estabelecido como fundamental ou superior às concreções particulares. por isso mesmo escapava à sua natureza específica; um complexo artístico surge, agora, como a integração dos vários elemen· tos particulares num mesmo todo orgãnico pela participação dos mesmos valores que, em si mesmos, poderiam considerar como comuns ao todo global e, pois, válidos e funcionais para cada parte integrada, sem prejuízo da especificidade dos processos particulares de integração. Segundo a mesma aceitação desse conceito fundamental, impunha compreender t.ais valores - .legítimos produtos sociais supra-estruturais, "ideológicos" - como possuindo, uma vez criados, uma vitalidade própria, o que os capacitava a participarem, como elementos ativos, do processo de integração e adequação, tanto nos grandes passos da evolução global, quanto nas peculiaridades de cada caso especial. Dessa maneira, não deverá o produto ideológico ser compreendido como se confinando ao plano das "deformações ideológicas", tão caro a alguns neomarxistas, senão como projetando-se Desse plano de especificidade a partir de um nível superior a que, ao menos hipoteticamente, devemos referir-nos, se admitirmos que, mesmo para "deformar", o grupo está obrigado a valer-se da referência fundamental ao "mesmo" valor ao qual, pois. se passará a atribuir uma força especial de permanência. pressentida, aliás, pelo próprio Marx, apesar da deplorável informação que sobre a Grécia em seu tempo dispunha quando estranhou a continuidade de certos valores he66
lênicos fora de suas coordenadas de tempo. espaço c cultura. Nesta visão, não há mais oposição entre universal e particular, mas, pelo contrário, entrosamento harmônico dos dois termos, ambos reduzidos às proporções que lhes atribui, de fato, a realidade histórica social.
e
1II Queremos ser os primeiros a reconhecer que, embora legítimas tanto do ponto-de-vista lógico, quanto do ponto-de-vista crítico, bem pouco alcance teriam as aproximações que deixamos esboçadas ao examinar as teorias do barroco, se permanecessem como meras sínleses teóricas. Nossa análise, afinal, fez-se em vista de uma melhor compreensão metodológica do problema. Desde que essa compreensão se firmasse apenas no plano teorético, ao qual inicialmente se p....-ende por sua origem puramente crítica, restaria sem nenhuma validade concreta enquanto lhe faltasse a comprovação de fato que só lhe poderia vir de um estudo sobre o barroco, desenvolvido no novo sentido indicado. Na falta de aplicação direta do novo ponto de vista - e não há por que iludi-Ia 1:; - felizmente socorrem-nos alguns exemplos de estudos que, embora visando a objetivos diversos da exclusiva interpretação do complexo barroco e sem atentar para a redução teórica que principalmente nos interessou, deixam evidentes a presença c a· fecundidade duma mais larga compreensão do fenômeno. São, sem dúvida, observações que, a rigor, se deveriam considerar meras incidências analíticas subsidiárias do estudo de maior amplitude, porém, n;tais do que 15. Em anterior esbeço de análises das relaçõcs entre o bnrroco e o absolutismo no Brasil (O Estado de Süo Pau/o: abril, m:l.io e junho de 1949), escrito .sem maiores preocupaçõcs mc,odoló~ica~ e apenas tentando uma interpretação mais sistemática. de dados colhidos com intenções puramente descritivas (série de artigos em () E.~tado tle Süo Pau/o depois reimpressos, conjuntamente, em ViaJ:em a Ouru Preto - separat:1 (b RCI·üto do Arqllil"O Municipal. São Paulo, nl;' cxxrv, 1~9), chq:amos a conclusões capazes de confirmnr a hipótese metodol6{!ica aqui re· gistrada. Preferimos, eontudo, eonsidernr es~as primeiras tent~ltivas antes ·como nos ajudando a che~ar a um ponto de vista teórico, do que como dcles decorrentes. Muito provavelmente, a e1:J.boração de dados teóricos e fatos concretos processou-se a um só tempo, como se verifica em algumas passagens de O Ah.l"Oiuri.fIIl(} e o Barroco. mas não ~eria legitimo alegar que a preocupação metodologista tenha antecedido à cUrio~idaJ(' d.a investlgaç:io.
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essa restrição acadêmica, interessa-nos. sublinhar que, tratando muito ou pouco do barroco, o fato é que esses estudos apresentam interpretações (sejam ou não incidentais) daquele complexo artístico com o propósito de integrá-lo em visões gerais da história da arte considerada em sua evolução global e sua cqerência própria. Ademais, como se trata de autores cuja inspiração doutrinária varia muito pelo simples fato de poder-se entre as interpretações notar fortes semelhanças de orientação geral, poder-se-ia afirmar que, mesmo comprometida com diversas concepções "doutrinárias, uma nova visão do barroco vai-se impondo; em sentido muito próx.imo daquele que tentamos traçar' a partir de dados críticos. Novamente, interessa-nos apenas indicar ex.emplos, entre os quais poderíamos começar pelo caso de v.,'orringer. cuja interpretação do barroco (se merece tal nome sua sugestiva referência) aparece em certa passagem de seu trabalho sobre a arte egípcia 1 ';. Ao cuidar do problema das definições espaciais na arquitetura religiosa egípcia, Worringer retorna à clássica polêmica havida, nos primeiros anos do século, entre Alois Riegl e August Schmarsow, definindo-se claramente pelo primeiro desses historiadores, cujas noções aceita e busca ampliar. Trata-se de saber se o arquiteto egípcio possuía um conceito próprio de espaço ou se, pelo contrário, O problema espacial, no Egito, permaneceu no campo das questões puramente práticas e alheias a qualquer elaboração artística. Acompanhando a Riegl e insistindo na análise dos grandes templos, Worringer perfaz uma análise não apenas formal, senão também cultural, para concluir que é verdadeiro aquele "horror ao espaço" a que o mestre aludira, embora fertilize a noção com dados de nova ordem e diverso conteúdo. entre os quais a análise da sala hipostila já levara W. H. Dammann a exclamar: "Porém faltava a idéia de espaço livre". Nesse ponto surgem considerações sobre a modernidade do conceito de espaço - a oposição entre uma concepção spengleriana e a constante absoluta c a priori de Kant sendo anotada e glosada - , que Guillermo WORRINGER. El ar/f' ~g;pciQ -- probl~mas d~ .f11 aleman por Emilio Rodrigues Sadía. Buenos Aires. ReVIsta de Oçcidente Aricntina, 1947. 16.
l"CI.'oraciân,. traducido deI
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encaminham à conclusão de que a expressão artística do espaço só foi alcançada pelo barroco. Cabe lembrar que Worringer se funda sempre na teoria do Einjühlung - a cuja exposição dedicou, aliás, os capítulos iniciais de sua obra sobre o gótico, onde desenvolve as idéias de Lipps, como nota Herbert Read no seu esplêndido prefácio à edição inglesa l" - c, pois, que O fenômeno estético se liga, em sua conceituação, à vontade de expressão, noção que transcende à mera investigação dos "arranjos de certas· categorias artísticas a priori, ou melhor, de uma sensibilidade psíquica geral", pois que "a variabilidade destas categorias psíquicas, que encontram sua expressão formal no desenvolvimento do estilo, progridem por mutações, cuja ordenação é regulada pelo processo fundamental que governa todo o desenvolvimento da história humana: o ajuste cambiante, aleatório, do homem ao meio exteterior"l~. Resulta que, na avaliação artística, não cabe "conceber o espaço no sentido kantiano, como um a priori absoluto e constante de toda a intuição humana, senão como um ato criador da sensação, ato variável nas distintas culturas, de cuja singularidade.e condições nasce", mudando, pois, constantemente, enquanto o espaço matemático é sempre igual, ao menos no interior da concepção euclidiana. À noção clássica de um espaço tridimensional homaloidal (nesse sentido, a noção não-euclidiana não difere da noção euclidiana), Worringer opõe um lIespaço como forma da intuição e da vivência artística'" a "prática da experiência espacial. fenômeno distinto da teoria do conhecimento espacial", e cuja história é a própria história da arte. A história da ordenação arquitetônica do espaço será a resultante dos pontos de contato conflitua\ entre a história das limitações construtivas do espaço e a história do próprio conceito de espaço. Se compreendemos que o espaço ideal, tal como modemamente o concebemos, tem seu mais próximo sunbolo numa esfera infinitamente ampliável que figuraria O ilimitado dinamismo de que resulta - 110 espaço musicalmente perfeito", diz Worringer - , também compreendemos que 17. Wilhelm WORRINGER. Form in gOfhfc, authorized tr::lnslation edited wilh an introduction b)' Herbert Rcad. London, G. P. Pulllam's Sons, Ltd., 1927. 18.
Form in ,otlde,
p.
13.
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o problema das formas arquitetônicas resulta do contraste entre essa ilimitação conceptual: de um lado, e, de outro, as limitações técnicas que, somadas à limitação estática do solo, dão-nos o esquema ortogonal const~utivo (no qual, por certo, a técnica do cimento e do aço não deixou de repercutir em novas libertações). Só o barroco, contudo, haveria de tentar a tiansfiguração artística dos limites construtivos, fazendo-os definir, em linhas e planos; uma forma que busca exprimir o espaço ilimitado, musical, mas 'la história nos ensina que ( ... ) os espaços abobadados ou com as paredes laterais bombeadas, os espaços barrocos nos quais ressoa a música imanente das vibrações, constituem exceção, como casos esporádicos isolados" 10. E, a partir desse conceito, ainda se alonga Worringer em considerações sobre as condições necessárias ao estabelecimento dessa expressão espacial, a seu ver resultante de um sentimento cósmico que, perdendo a rigidez estática inicial, concebe dinamicamente todos os sucessos terrenos, sentimento esse que, por sua vez, implica em um "sentimento da vida que só se apresenta em épocas culturais já maduras". Se descrevemos, com alguma minúcia, os passos da incidental, mas significativa interpretação de Worringer, foi apenas porque nela nos pareceu bastante evid~nte o trânsito metodológico extenso e globalizador que, da interpretação de Riegl, passando pela concepção de Lipps, traz nosso autor a uma visão cultural do problema do barroco em que, com maior largueza, mas por certo com pertinência comparável, supera as teorias genético-sociais particulares. A interpretação de Worringer poderíamos juntar, sem forçá-las, as palavras de Hauser, na passagem já referida anteriormente", .alongando a citação: "Os escopos artísticos da Cúria de Roma eram fundamentalmente diversos daqueles da côrte real de Versalhes, e quanto possam ter em comum, por certo não haverá de conciliar-se com o propósito artístico da Holanda burguesa e calvinista. Não obstante, é possível estabelecer certas características comuns. Porque - mesmo deixando de parte que o processo que promove a diferenciação intelectual sempre. 19. Os trechos citados, como os que se seguem, são do Capitulo 11 de EI Arte Egipcio. 20.
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The Sociol Hlslory 01 Ar', clt., voJ. I. pp. 431 a 433.
ajuda, ao mesmo tempo, a integrar, pois facilita a expansão dos produtos culturais e as trocas entre as diversas regiões - uma das mais importantes conquistas culturais da idade barroca, a nova ciência -natural e a nova filosofia baseada na ciência natural, era internacional desde as origens, mas a visão universal, que então encontra expr~ssão, também dominou toda á produção de' arte dessa idade, em todas as suas ramificações". E, depois de desenvolver o tema, volta a afirmar: "O conjunto da arte do período barroco mostra-se cheio dessc horror (do juiz.do universo), cheio do eco dos espaços infinitos e da inter-relação de todos o::. seres. A obra de arte em sua totalidade torna-se em símbolo do universo, como um organismo uniforme e vivo em todas as suas partes. Cada uma dessas partes aponta, como os corpos celestes, para uma continuidade infinita, ininterrompida; cada parte contém a lei que governa o todo, em cada uma trabalha o mesmo poder, o mesmo espírito". E se a idéia de "homogeneidade do estilo barroco" continua ainda a repugnar Hauscr, é tão só por poder levar a uma particularização causal - "a porfia pelo infinito" das comuns generalizações teóricas - o que tem sua importância no texto citado, que é sobretudo polêmico. Não obstante, nenhum conflito há entre o analista que dá a organização espacial do barroco por filha de especial amadurecimento cultural c aquele que acusa a simplificação excessiva que, em toda uma cultura amadurecida, vislumbra apenas uma batalha pela conquista do infinito. Mais do que a proximidade do tratamento do assunto pelos dois autores, deve interessar-nos, no confronto, a importância pennanente do conteúdo cultural, tomado em sua complexidade e variedade, para a interpretação do complexo artístico. Presumivelmente, nesse panorama cultural, imprescindível à justa interpretação do barroco, haverá de desempenhar papel fundamental a contribuição da técnica. Se Worringer já o deixara entrever, hoje tornou-se comum a referência, por exemplo, à utilização de todos os recursos construtivos na arquitetura barroca. Não obstante, parece-nos sobremodo significativo que a referência à técnica ressurja, não apenas como achega eventual, senão como linha condutora da análise, sobre· tudo se a encontramos nos escritos de um historiador que, preliminarment~, insiste em declarar-se discípulo c 71
Matriz de Santo Antônio. Santa Búrbara.
possível continuador de WÕlfflin. De fato, Giedion, em seu já clássico Space, Time alld A rchitecturezJ, InIcIai·
menle encarece o valor dos ensinamentos de W01fflin, não sem acrescentar que também Burckhardt contribuiu
substancialmente para sua formação, para deixar registrado que "como historiador de arte" é discípulo do mestre dos "Conceitos Fundamentais", cujo método, inicialmente, procurou seguir com fidelidade. Não obstante, quando se põe a analisar o problema do barroco, sua interpretação vai socorrer-se de elementos semelhantes aos que serviram a um Worringer ou a um Hauser. O ponto de partida de Giedion é, como poderíamos esperar, um fenômeno formal: a fachada ondulada de S30 Carlo alie Quattre Fontane assume importância de marco inicial e padrão estilístico. Não obstante, a colocação do problema do barroco, desde o primeiro instante, passa a entrelaçar-se com o problema da técnica construtiva de que se serviu. A abóbada-de-canhão longitudinal, que haveria de atender tanto à definição espacial quanto ao maior problema construtivo da Re· nascença, é anotada já nas antecipações da pintura de Masaccio e do estratagema ilusionista de Bramante, e, uma vez bem definida na obra de Leon Battista Alberti e de Maderno, torna-se o ponto de referência obrigatório no desenvolvimento da história das condições que permitiram ao arquiteto evolui.r dos muros planos e opticamente estáticos de Brunelj~schi à agitação da fachada conseguida por Borromini. Dir-se·ia que Giedion apenas enriquece, por tal forma, a análise da evolução formal com referências aos avanços técnicos que permitiram ou foram solicitados por tais anseios psicomorfológicos. Mas, não; logo se esclarece que "barroco não se aplica exclusivamente a um edifício hiperdecorado do México ou da Espanha", mas tem "hoje um sentido as· sentado no campo da história da arte como se referindo não a uma forma especial, ~enão a todo um período" ::. Essa noção, Giedion não se priva de ampliá-la e esclarecê-Ia: "A marca distintiva da idade do barroco é o método de pensar e sentir nela prevalecentes; sua 21.
Sie.,lricd
Ifrowlh of
IJ
GIEDIQN. Spac:e. Time IJnd Arc:hlltctllre Th. ntw trllditioll; Cambrida;c (USA), The Han'ard Univcrsity
Preu. 1949. 22.
Obrll cit., pp. •2 e .3.
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principal feição, o desenvolvimento de uma específica categoria de universalidade. Em nosso campo, isto manifesta-se como um novo poder de moldar o espaço e alcançar um todo, -surpreendente e uno, a partir d~s mais variadas partes. Mas, digno de nota é que, em todos os setores, os métodos e maneiras de sentir barrocas tenham sobrevivido até que a desintegração causada pela idade industrial surgisse e trouxesse consigo uma temporária destruição do ponto-de-vista universal". Em nome dessa ampla visão do conteúdo cultural de uma época que se exprime nas formas barrocas, é que nosso autor ousa insurgir-se contra o próprio Burckhardt que, atendendo a um demasiado e simplista funcionalismo físico que o proibia de ver numa parede ondulada mais do que um produto decorativo, desprezava 5an Carla. Giedion recusa-se a encarar apenas fisicamente a arquitetura, como verificamos, à saciedade, no seu capítulo sobre "O muro ondulado e a planta-baixa flexível"~J, onde Saot'Ivo de Boriomini, San Lorenzo de Guarini e Vierzehnheiligen de Neumann são dissecadas para que mais patentes se tornem as significativas minúcias que possibilitaram a tradução plástico.arquitetônica do anseio de infinito do barroco, sendo de notar que "infinito", para Giedion, liga-se mais à abstração e à matemática do que ao comum "movimento sem fim". ovas considerações levam-nos a compreender Versalhes como uma expressão do absolutismo que Bernini não conseguiu formular - e as grandes orgailizações urbanísticas de França, Itália e· Inglaterra como, a um só tempo, traduzindo um novo modo de vida e uma oo,,:a concepção espaciaP". :E "todo um período" e não apenas "uma forma especial" que se registra na Parte II de Space, Time alld Architecture. Nas. TI.otas bibliográficas de Giedion e de Hauser reaparecem, com freqüência, os nomes daqueles teóricos que, graças a alguns exemplos, procuramos dispor em nossa visão panorâmica das teorias, e como não surgem eles, ~essas citações e nos textos. na qualidade de intérpretes refutados, mas. antes e de regra, como autores de contribuições substanciais para a nova compreensão do barroco, percebemos facilmente que a nossa tentativa de síntese teórica apenas recobriu o mesmo caminho 23. 24.
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Obra cit., pp. 44 a 67. Obra c/t., Thr Orgatll:,ation 01 Ouur Spac•• PJl. 68 e 96.
já desenvolvido pelo progresso dos estudos de história
da arte nos últimos vinte ou trinta anos. Deixando de parte as excessivas resistências doutrinárias, que a própria evolução das pesquisas se incumbe de atenuar e corrigir, pode-se dizer, a rigor, que o barroco teve a sua essência entrevista, quase simultaneamel'lte, a partir de vários ângulos que, se porventura se distanciavam, nem por isso deixavam de ser complementares. Afinal, o "conflito do barroco" baixa à condição de simples querela. E, se quiséssemos indicar o motivo maior desse tumultuado, mas saboroso desencontro, diríamos que se deve, sobretudo, ao excesso de abstração teórica.
Descoberta a constância e a especificidade da morfologia barroca, abstraiu-se a forma para cair-se no fonnalismo, com todos os desnecessários esquematis mos que, logo depois, se buscou abrandar com achegas históricas e culturais. Verificadas as ligações entre as manifestações barrocas e certos elementos do complexo cultural que traduzia artisticamente, abstraiu-se essa causâ próxima para elevá-Ia à posição de determinante ou condicionante exclusiva que, a seguir, precisava sofrer as restrições que inevitavelmente traziam outras interpretações igualmente exclusivistas, mas de diversa preferência. EnfiID, abstraiu-se demais e durante muito tempo. Mas, desde que, por qualquer modo, se levantava uma ponta do véu e adivinhava-se a importância e a riqueza do objeto da investigação, uma reação normal e necessária fazia-se sentir na correção das posições extremadas e dos pontos-de-vista particulares. O barroco, afinal, recusava-se a conter-se nos limites de uma teoria. De outra parte, acontecendo o mesmo com todos os grandes complexos artísticos, também a história da arte mostrou-se indócil às reduções que tentavam simplificá-Ia a um mero jogo de alternância ou coexistência de duas ou mais constante~ ou fundamentais::;. 25" Por isso f-nos menos grata a formulação geral da tústória da arte que encontramos nas excelentes CO'lSiduarõ~s sób'~ ATt~ Cont,mde Lúcio Cosia (Rio, Cadernos de Cultura, 1952)_ O esquematismo das "tendências gerais", senlio mesmo dos "conceitos (undamentais" levam Lúcio Costa a reduzir loda a evolução artística a um "eixo nórdico-oriental", inspirado por uma ·"concepção drnâmica da arle", e a um "eixo mesopotamo-mediterrâneo", de inspiraçlio "estática". Ora. não só os yArios complexos artísticos levam, seilundo o próprio texto, i conceituação de hibridaçõcs, altemll.ncias, coexistências, choques, harmonizações etc., mas ainda, para concretizar tais ocorrência" fica Lúcio COSIa obrilado a por em confronto "unidades artfsticas de diversa importância histórica e expansão geográfica, de tuj10 rcsultando a imprC"ssão de que .seria dispensivel a esquematizaçio binúia. Ademais, a aplicaçio porijll~Q.
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Conseqüentemente, reassumem hoje suas verdadeiras posições e sua real importância os elementos que, isolada ou preferentemente, inspiraram as primeiras teorias sobre o barroco. O quadro metodológico, de tal sorte, mostra-se simples, embora amplo, e, por assim dizer, completo, na medida de nossos atuais conbeci, mentos artísticos, históricos e sociológicos, e de nossas possibilidades de pesquisa e interpretação. Forma, expressão e cultura continuam a interessar-nos, mas não só nos esquivamos de qualquer valorização excessiva, que a um elemento atribua predominância, como 'ainda passamos a cuidar, principalmente, de pesquisar as ligações que, estabelecendo-se entre tais elementos; traduzem, em verdade, os processos sociais vivos que vinculam uma forma a uma cultura e fazem esta recorrer àquela. Evidente se torna que, nessa dependência recíproca, devendo os liames desenvolverem-se no campo da expressão, esta, por sua vez, assumirá duplo aspecto, pois não só deveremos considerá-la como um feixe de possibilidades expressivas oferecidas pela forma, senão ainda precisaremos atender à importância do conteúdo expressivo que uma cultura acaba por infundir nas suas manifestações artísticas. Se, como deseja Lionello Venturi, a crítica permanece e sempre haverá de permanecer em tensão entre os extremos do juízo universal de valor estético e a intuição da obra de arte particular, dependendo, pois, da construção intermediária fundada nas conexões entre símbolos e esquemas que reaproximam o universal do parücular, também haveremos de reconhecer que tais sím bolos e esquemas não haverão de servir-nos enquanto permanecerem à mercê de interpretações ocasionais e subjetivas. mas que poderão, pelo contrário, oferecer-nos um quadro interpretativo plasmado na própria realidade, desde que os tomemos ainda imbuídos do processo histórico e do complexo em que tiveram origem e desenvolvimento. do esquema ao objeto de an:i1ises - a arte moderna - nâo só nâo ajuda a melhor compreender o problema que Lúcio Costa tio bem e:tpÕoe e comenta em seus próprios dados concretO$, mas muitas veus che,a o leitor a perauntu-se se a formulação teórica não lança dúvidas JiObre a questão. De fatO; não há identificação obriaatória cntre os conceitos "orainico-formal" Co "plistico-ideal", de um lado. e as concepções "csti· tlu" e "dinámica", de outro, acrescendo ainda a dificuldade de adequar-se qualquer slmplificaçâo csquemath:adora l configuração complexa, exccssl· vamente rica, quue tumultuária nas múltiplas e ineYitáyel! conjunções ideolóaicas e formais da arte contemporinea.
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Lançando luz ,obre um problema que os retardamentos e limitações da estética, da crítica e da arte, tinham submetido li uma visão despreziva, à deformação das interpretações arbitrárias, ou ao puro e simples desconhecimento; focalizando aspectos fundamentais desse mesmo problema, embora nem sempre com a necessária isenção de juízo e a fecunda relatividade de avaliação; abrindo um imenso campo de investigação, muito embora, com freqüê,ncia, o alcançasse pelos entrechoques da polêmica - as teorias do barroco tiveram imensa importância. Hoje, porém, já cumpriram sua função.
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o I
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BARROCO E O ABSOLUTISMO
CONCEPÇÃO DE WüLFFLlN
Talvez seja cedo para tentar-se a análise teórica do barroco brasileiro. Sequer completou-se o levantamento material das amostras salvas ao desgaste do tempo ou à inconsciência dos homens, e grande núrr,ero dos problemas históricos ligados a essas realizações ainda constitui objeto de dúvida ou de controvérsia. Não óbstante, a impressão de originalidade e a pujança de certa:; peças - que por vezes são monumentos de grandes proporções, para cuja ereção vários ofícios e aftes foram convocados, e que exigiram o concurso de mais de uma geração de artistas e artífices - torna
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inevitável a referência, embora precária e bastante subjetiva, às grandes interpretações históricas e sociológicas do barroco. Parece-nos que de nada valeria a pura e simples continência em face das teorias, a honesta e obstinada negativa de admitir, desde já, tais cogitações interpretativas, não obstante reconhecermos que esse rigor talvez constitua o segredo da prodigiosa tarefa já realizada pelo D.P.H.A.N. Mas a vivacidade do espírito não se rende à simples disciplina. Melhor será, portanto, tornar flexíveis os princípios disciplinadores e, transformando·os de obstáculos em úteis marcos balizadores das inevitáveis aventuras de interpretação, traçar um programa de estudos que, sem desmentir a absoluta prioridade das pesquisas diretas e materiais, permita, contudo, acompanhá-las pelas cogitações mais generosas. Desde já, entretanto, precisamos apelar para a ética científica. O desconhecimento de certos pontos relevantes do problema; a dificuldade de manuseio do material, ao qual não está afeito o pesquisador, que até então dele se encontrou afastado; o canhestrismo do homem de gabinete ao defrontar objetos de estudo por demais grandiosos e belos; a perturbação causada pelas peça~ de arte no estudioso fiel ao compromisso de objetividade, mas nem por isso despido de alguma senslbilidade, a ignorância maior ou menor das técnicas profissionais de quatro ou cinco artes cuja presença se impõe - eis os grandes percalços que, junto a mil outros menores e não menos incômodos, se levantam à frente de quem deseja tentar a análise teórica provisória do barroco brasileiro. Ao admiti-los francamente não se quer tão só repetir fórmulas consagradas pela falsa modéstia dos conferencistas e ensaístas à antiga. mas busca-se honestamente cumprir \Im dever imposto pela própria moralidade profissional, pois que também para as ciências, e sobretudo para as ciências do homem, existe um conjunto de normas éticas condicionadoras de toda a produção intelectual. Aos que as seguem, não parecerão estranhas nem excessivas todas as iniciais confissões de ignorância. Pelo contrário, graças a elas tornar-se-á possível o ponderado juízo dos resultados obtidos, posto que nelas se exprimem, por assim dizer. as limitações subjetivas do autor que, com-
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binadas às limitações subjetjvas do próprio material, traçam o conjunto real "lIas condições de trabalho. Bastam tais esclarecimentos, cremos, para compreender-se que, ao estabelecer um quadro de relações entre o absolutismo português e o barroco brasileiro, não buscamos uma solução para o velho problema d<'l relação entre uma forma artística e outra política nem sequer a sugestão de uma possível interpretação da arte colonial brasileira. Se, porventura, aqui e ali, deixamos escapar afirmações que parecem atestar desvios e precipitações, dessa ordem devemos atribuí-las à sugestão demasiado poderosa do material ou à impositividade de certas primeiras evidências. Não buscamos contrariar tais indicaçõ~s nascidas, por assim dizer, espontaneamente. Contentamo-nos com enquadrá-las rigorosamnte no interesse principal de nossa pesquisa que em essência era, como se verá, levantar um problema e adequar-lhe uma metodologia, apenas pJ.'eparando o caminho dos futuros pesquisadores da questão, Se algo conseguimos, não terá sido mais do que uma hipótese de trabalho. Esse e não outro foi nosso objetivo. Se, a julgar pela forma, por vezes aproximamo-nos de uma síntese tendente a abranger a globalidade dos aspectos estéticos, políticos e sociológicos do assunto, e em outros pontos entramos no campo da monografia descritiva1 , isso se deve ao estado atual dos problemas abordados e à própria natureza da pesquisa que, buscando relações entre manifestações pouco próximas na cultura material, nos obrigou a jamais desprezar ou dar por conhecidas quaisquer indicações, mesmo imprecisas ou insuficientes que pudéssemos colher. Assim, cônscios das limitações subjetivas e objetivas, subordinados ao espírito que organiza o trabalho científico e desejosos de jamais ir além do que permitem nossas forças e nossas observações, traçamos esse primeiro esquema que a nosso ver, poderá ao menos (1) Muito embora a pr'ópria necessidade expositiva por vezes leve·nos a lançar mão de referências a dados concretos c a exemplos, estas notAs não se destinam a tal fim. A descrição do material analif,::ado deixamos em uma série de artigos originalmente publicados em O Estalfo de S. Pa/llo que, malgrado certas liberdades subjetivas e certa vGleidadc literária, consideramos como inquér'ito prep::aratório das jnterpreUçõcs teóricas com que, agora, procuramos colocar, com alguma :leuidade metodológica, a problem:ítica das relaçõcs entre o barroco brasileiro e o absolutismo português.
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Igreja de São Francisco de Assis. São João deI Rei.
sugerir diretrizes a futuros estudiosos. Por isso, o que a seguir se lerá, deverá dar uma noção aproximada de seiS pontos: (a) a possível aplicação ao caso brasileiro da análise teórica do barroco em seu estado atual; (b) a legitimidade da escolha de uma amostra representa· tiva do barroco brasileiro, senão tanto como a "melhor" amostra, mas ao menos como "uma" amostra válida; (c) o reajuste dos conceitos teóricos em uso, por meio de definições mais precisas do ponto de vista histórico; e (d) mais adequadas à realidade social (estética e política); (e) o levantamento do primeiro rol de problemas fundamentais contidos na questão enunciada, e, afinal, (f) a definição teórico-sociológica do b~rroco e do absolutismo, que passará a constituir a hipótese de trabalho. Os dois primeiros passos representarão a inicial colocação do problema submetido a um primeiro tratamento analítico que, no terceiro e quarto pontos, sofrerá uma crítica conceitual para possibilitar o estabelecimento de um enunciado mais científico; isso se faz, de maneira concreta, por uma problemática prepafatória e, de maneira teórica, pelo enunciado metodológico final, os quinto e sexto passos respectivamente. Em suma, trabalhamos com a consciência exata de que visavamos um simples esboço preparatório, aceitando todas as limitações e deficiências que se incluem em tal tipo de estudo. Eis o que justificará muitas coisas, que não se poderiam explicar todas sem alongar demasiado esse preâmbulo. Assim aconteceu com a própria linguagem, bastante longínqua daquela seca precisão expositiva que se consagrou como científica, muito embora até hoje não' se saiba exatamente por quê. 1 . Raros objetos de investigação terão suscitado tão variados estudos quanto a ame barroca. Não nos referimos ao grande número de autores ou de obras que tratam da questão, mas antes aos muitos campos afins da investigação histórica e científica, sem aludir às correspondentes cogitações filosóficas, que foram, direta ou indiretamente, referidas nas várias interpretações do barroco. Estas só manterão a natural ligação que lhe dá o mesmo objeto, se nos limitannos às gene83
ralidades do campo vasto da história da arte, pois, tomadas em sellS aspectos peculiares, distanciam-se em direções divergentes. Por isso, quando se deseja realizar uma investigação sociológica sobre o assunto, não se pode deixar de, primeiro, definir historicamente o problema, porquanto todos os teóricos do barroco sempre se preocuparam com a forma que, cronológica e concretamente, sucedeu à arte da renascença européia. Acreditamos que essa referência histórica jamais deverá ser esquecida, sobretudo quando, como em nosso caso, se deseja estudar uma manifestação artística que, ao menos preliminarmente, se pode considerar como barroca, mas que, na realidade, se desenvolveu em diferente tempo e lugar. Tomando tal precaução, poder-se-á ter sempre presente a conexão, mas não se ignorará a distância temporal e espacial existente entre o barroco brasileiro e o europeu, e também não se perderá de vista a especificidade das teorias, sugeridas por este último, mas supostamente extensíveis àquele. Só nos quadros da história da arte - repetimos - mantêm-se ligadas as teorias do barroco. A partir daí, diferenciam-se, ignoram-se mutuamente, tornando-se necessário um esforço de síntese didática para reduzi-las a posições típicas e integrá-las num quadro simples e coerente. Entre nós, já se firmou que há ao menos três pontos de vista fundamentais para a compreensão do barroco 2 , que poderá ser encarado à maneira de Wõlfflin, à de Dvorak e à de Balet. Wõlfflin opôs-se, antes de mais nada, a uma compreensão patológica do barroco ao qual, por muito tempo, se atribuiu reduzida vitalidade criadora, posto que se limitava à arquitetura e artes decorativas afins; origem estética duvidosa, posto que parecia refletir um desvio do gosto senão o próprio mau gosto; e afinal filiação artística espúria, posto que não passaria de uma corrupção do clássico. Ora, o barroco representa, na teoria de W61fflin, um dos temas maiores de uma estética dualista, conquistando foros não só de forma legítima, mas ainda de passo essencial à própria evolução da arte, A acu(2)
Hannah Levy, "A Propósito do Três Teorias sobre o Barroco".
Rn'istD do Serviço do Patflimunio Histórico }al1~iro,
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A.rtístico NaciOrull Rio de
Ministêrio da Educação e Saúde, 1941,
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sação de monstruosidade inverte-se, dando lugar a urna conceituação hipervalorizadora, sobre a qual se funda, aliás, uma oOova definição da história da arte, que passa a ser a história das formas consideradas em si mesmas c da evolução permanente dos estilos. Vi~ando superar a etapa de simples coleta e classificação das manifestações estéticas, a história da arte, para alçar~sc à condição de disciplina científica investigadora e interprctadora, não hesitou em enveredar, guiada por Wõlfflin, pelo caminho da análise da forma em si mesma, sem consideração preliminar do seu conteúdo expressivo ou de suas implicações sociais. Tais elementos, na verdade, não seriam desprezados, mas só entrariam em linha de conta uma vez desenvolvida a definição das formas básicas e fixada a sua lei de sucessão e relação causal. Postulou-se, portanto, uma contínua evolução dos estilos e, para animá-la a dar-lhe coerência, uma imanência necessária das formas artísticas. Desdú logo, o barroco é tido como o segundo e último termo de uma série estética irreversível e fatal, cujo termo inicial seria o clássico e, muito embora no de.scnvolvimento da teoria os dois conceitos adquiram progressiva amplitude e generalidade, não podemos esquecer que a idéia geradora de toda a construção de Wôlfflin inspirou-se diretamente no caso concreto do barroco e do renascimento europeus. De fato, se 3dmite que "existe uma arte clássica e uma arte barroca não só na época e na arquitetura antiga, mas também num terreno tão estranho quanto o do gótico"3, só o fez depois de declarar que a "mudança da forma da visão foi descrita mediante o contraste entre o tipo clássico c o barroco" e que, embora não pretendesse "analisar a arte dos séculos XVI e XVII" ... "mas tão só o esquema, as possibilidades -de ver e dar formas". .. para exemplificar "não tivemos outro remédio, naturalmente, senão ir exibindo obras de arte soltas" e estas amostras são barrocas ou remanescentes, "de Rafael a Ticiano, e também de Rembrandt e Velasquez".4 (3) Enrique WÕlfflin. LO.f COtlUptos Frlntfamentoles de la Historio flrl Arte. Tradução espanhola de J. Moreno Vill3. Madri. 1933. Espasa-C31pe, p. 313. (4) Idem, fbldem, p. 303.
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Para libertar o clássioo e o barroco de sua definição contingente histórica e emprestar-lhes amplitude universal, impôs-se a reduzi-los a categorias formais, opostas aos pares. Partindo-se de uma primeira oposição, segundo a qual a renascença buscou e realizou uma arte precipuamente linear, enquanto O barruco firmou-se em visões pictóricas, esse antagonismo irredutível estende-se aos vários setores da realização artística. Assim, acaba-se por caracterizar o estilo clássico como linear, realizado no plano, valendo-se de formas fechadas. alcançando uma unidade divisível e exprimindo-se com uma clareza absoluta. De sua partc o barroco distingue-se por ser pictórico, construir em profundidade, servir-se de formas abertas, estabelecer uma unidade indivisível e oferecer uma clareza relativa. Mas, essa oposição irreconciliável trará, dialeticamente, o nexo - o "momento". diria Hegel que liga as séries históricas pois, exatamente por serem em absoluto opostos, os dois termos tomam-se absolutamente necessários para satisfazer a lei geral da visão, cuja essência se constituiria, em conseqüência, das categorias gerais a que podem ser reduzidos os enunciados contraditórios. Assim, a força dessa lei visual obriga, incessantemente, o primeiro termo (renascente, ou melhor, clássico) a engendrar seu sucessor e contrário (barroco). Wõlfflin não deixou de atentar para as possihilidades de maior ampliação doutrinária de sua concepção e, também, para as limitações que os acontecimentos registrados pela história da arte lhe ofereciam. Foi generoso ao tratar das ampliações e simplesmente acomodatício ao enfrentar o desmentido dos fatos. Realmente, não hesitou em dar às cinco categorias, com que opôs o barroco ao renascente, um colorido étnico ou psicológico, afirmando que os povos e os indivíduos, submetidos à lei da visão em sua globalidade, se distinguiriam por polarizarem-se, segundo o caráter cultural ou a etapa de amadurecimento, num ou noutro dos dois estilos. Alude, por isso, a um caráter românico e mais especialmente italiano do clássico, e a uma nota barroca da civilização nórdica e em particular alemã. Também fala de urna mocidade barroca e de uma maturidade clássica. Porém, J
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ao enfrentar a realidade histórica que apontava o neo-clássico a suceder imediatamente o barroco ou, o que é mais importante, o próprio estilo renascente a já expandir-se em suas primeiras manifestações quando o gótico ainda demonstrava algum vigor, defende-se fracamente admitindo que tais contradições, aliás irretorquívcis, se deveriam à influência de fatores externos à história da arte e, portanto, anormais. Nesse ponto, positivamente, patenteia-se a fragilidade de sua construção.
2.
AS IDÉIAS DE DVORAK E BALET
Vimos que, diante das contradições concretas que lhe opõe a própria história, a teoria wólffliniana hesita. busca uma escapatória acomodatícia, mas não consegue disfarçar sua insuficiência mesmo apelando para a patologia. Não seria esse, contudo, o único senão da teoria de Wólfflin, pois, implicitamente, deixava sem análise o conteúdo individual da arte. Reagindo ao formalismo wólffliniano, aparecem os defensores de uma investigação que atentasse, antes de mais nada, para o expressivo. Desde já notemos que, nessa nova tendência como na teoria de Wólfflin, estamos ainda diante de certa indefinição de termos; a expressão, ou melhor, o "ex·· pressivo" era atribuído, a um só tempo ou alternadamente, ao homem isolado e à sua cultura. Todas as aventuras intelectuais e todas as singularidades filosofantes t('rnavam-se permissíveis num terreno tão vasto, e não causa surpresa a intromissão do spenglerianismo na questão, pois aquelas grandes instituições que, dando base às culturas, tornam cada uma delas única e inconfundível, como queria Spengler, pareciam úteis à crítica refutadora do estrito formalismo. No entanto, malgrado os esforços dos spenglerianos, não mantiveram eles o domínio exclusivo da matéria, sobrevindo a inevitável coincidência de várias interpretações de diferentes proveniências filosóficas; entre todas destacou-se exatamente a menos comprometida com as grandes e vagas concepções de Spengler. Depois de Wõlfflin, o mais
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comentado dos críticos do barroco é Dvorak. Se Spengler tomara a arte como um sintoma principal para a descrição da pujança ou decadência biológicas das culturas que considerava como organismos fechados, Dvorak interessava-se mais diretamente peJa própria arte e procurou fazer sua história u como história do espírito". Opondo-se a Wõlfflin. afirma: "A arte não consiste apenas em resolver e desenvolver problemas formais; também é, sempre antes de mais nada, expressão das idéias que preocupam ao homem c à história da arte. em não menor grau que à história da filosofia, da religião ou da poesia e parte da história geral do espírito"G. Contudo, a palavra espírito não figura nessa definição com a habitual e imprecisa largueza, pois basta lembrar que Dvorak, ao analisar o barroco abandona todas as generalizações arbitrárias para realizar uma pesquisa histórica das mais minuciosas e fecundas. Quando alude ao esgotamento do espírito renascente, traduz essa enunciação genérica em termos de fato, apontando os "máximos" realizados nos vários campos da arte de seu tempo por este ou aquele artista e, quando afirma a existência de um novo espírito no após-renascença, indica sua concretização na volta das igrejas à planta basilical ("i! Gesú" de Roma). Para Dvorak, como para seus antecessores, o barroco é um descendente do renascimento, mas a relação entre os dois termos não se estabeleceu pela decadência nem pela imanência wõlffliniana, senão por um terceiro tcrmo intermédio de importância equivalente aos outros dois: o maneirismo. De outra parte, não se trata de um termo médio puramente dialético, imposto pelo rigor da lógica intrínseca de uma construção abstrata, mas de uma realidade histórica comumente negligenciada pelos estudiosos que encaravam as etapas de desenvolvimento da arte ocidental sem se Jibertarem de certos prejuízos. Um determinado. número de manifestações, ligadas por uma mesma tendência, medeia entre o renascente e o barroco; enquanto anteriormente apenas eram desprezadas a uma categorização inferior, como denota a própria denominação habitual que as recobre. Dvorak procura-lhes as causas e examina-lhes as conseqüências, buscando retraçar a história espiritual da fase. Ora, os iàeais intelectuais da Renascença estavam esgotados, 89
porquanto se atingira o auge em cada um QOS objetivos parciais que os traduziam: não sendo possível superar Rafael na beleza formal, Miguel Ângelo na representação do corpo humano, Ticiano na riqueza cromática, dirigem-se seus sucessores a outros centros de interesse, provocando um deslocamento dos próprios conceitos estéticos básicos. Não são ecléticos sem originalidade, nem exploradores das variações graciosas e sem conteúdo; pelo contrário, ao abandonarem padrões exaustos, abrem caminho para a instalação de uma nova era artística, pois, na verdade, sentindo sua impotência para superar quanto já se fizera no sentido da beleza objetiva da forma, em sua produção, dirigem-se francamente para a beleza do conteúdo subjetivo. O formal cede lugar ao ideal, e onde se buscara um acuramento da construção artística, num esforço gêmeo do primeiro ímpeto cientifista moderno, instala-se uma exaltação poética. Com o maneirismo, o subjetivo sobrepuja '3 objetivo e aí começa, precisamente, o barroco. A planta basilical restaurada, na qual a grande cúpula domina toda a igreja, é a expressão da submissão do material e terrestre ao imaterial, absoluto, divino. Mas esse desdobramento ilimitado do subjetivismo constituía, está claro, uma ameaça aos fundamentos da igreja; quando esta reage, o faz num compromisso de tendências, acatando o subjetivismo dos meios de representação, mas prendendo-os a um conteúdo espiritual objetivo. B {) barroco inteiramente definido. Logo se percebem os pontos que de preferência seriam visacos pelos críticos de Dvorak. De um modo geral, a crítica foi a mesma para-toda a vasta tendência que, no momento, levou a confluir para uma história da arte como história do espírito muitos estudiosos de inspiração vária; se tão minuciosamente se acompanhou um passo da história artístico-espiritual, por que se deveria continuar considerando a produção espiritual como algo autônomo em si mesmo, quando o próprio método de verificação objetiva, empregado no esclarecimen~o da importância do "maneirismo", constituía uma aproximação da grande pesquisa que se poderia realizar ;:;0bre o barroco? Se um "espírito" marca e caracteriza uma época na vida da arte e, mais, se esse acento espi-
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ritual só se revela, por meio de formas determinadas e adequadas, no interior de um todo cultural limitado e definido. torna-se quase lmpositivo atribuir-se ao estudo dessa forma artística toda a amplitude das cogitações sociológicas modernas para levantar o contexto de traços peculiares da cultura, que à arte se ligam organicamente. Isso procurou fazer com o barroco Leo Balet, mas. preliminarmente, devemos lembrar que, quando se chega a uma definição da história da arte como o estudo de uma fase histórica sob o ponto de vista globalizador da sociologia, procurando-se apanhar o condicionamento da arte pela interação dos demais domínios históricos~ materiais e espirituais, será legítimo argüir-se se ainda estamos fazendo história da arte propriamente dita, se já entramos na história geral da cultura, ou se apenas nos entregamos à sociologia pura e simples. A conclusão a que chega Balet ainda mais evidencia e fundamenta tal dúvida: para esse autor, o barroco, em última análise, identifica-se com o absolutismo. Cremos dispensável repetir toda a análise de Balet; são bem conhecidas, hoje, as ligações causais que levam do mercantilismo, advindo da expansão comercial com que se iniciam os tempos modernos, ao absolutismo dos governantes cu do Estado. Sobre tal base: amplia ~ua concepção buscando demonstrar que o exibicionismo absolutista, :evaria, fatalmente, às formas barrocas, únicas capazes de corresponder às solicitações da ambição ilimitada de domínio. No entanto, a passagem não é singela, fazendo-se, no mínimo, por dois caminhos complementares. De fato, o absolutismo é um conceito cuja conotação mínima exige ao menos dois termos: poder e ilimitação. A negação do limite pode aqui ser compreendida da maneira mais extensa (Balet a concebe como uma tendência ininterrupta para o infinito) e graças a ela penetraremos .;) sentido da expressão formal do barroco que se constrói como um movimento sem fim, uma perpétua agitação de linhas e formas já que a noção de poder exige caminhos mais variados para expandir-se pois manifesta-se, ao mesmo tempo na existência, como estilo de vida, e na ação, com"o meta dos empreendimentos. Assim, o poder é.:.bsoluto cria uma existênci.a de "es-
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plendor", qualidade tão evidente na figura dos déspotas e tão fielmente traduzida na arte pelo barroco. Mas, a "ação absoluta" não se limita à simples exaltação impositiva de seu titular, ousando voltar-se contra a própria ordem natural, que constituía o fulcro das cogitações filosóficas pós-renascentes, tanto dominando os objetos como até violando-os em sua coerência íntima - o barroco, de sua parte, apela constantemente para o virtuosismo, que na arte é o domínio total das técnicas e processos a permitir qualquer aventura, e não trepida em transformar em padrão estético a ausência de naturalidade. Esplendor, virtuosidadc. ausência de naturalidade e, também, movimento em agitação interminável são os grandes atributos do barroca, arte do absolutismo. Essas qualidades, aliás, evidenciam-se na própria morfologia das realizações plásticas, pois além de notarmos uma interpenetração entre o religioso e o profano (igrejas mundanas e palácios celestiais), a arte, nessa fase histórica, volta-se "contra a vida", deformando e contorcendo "artisticamente" a anatomia dos seres, ou, pelo contrário, esforçando-se para "substituir" a vida numa minudente e inquietadora imitação dos seres vivos em estátuas sacras vestidas e animadas por olhos de vidros, dentes de porcelana e cabelos naturais. Deslocam-se todos os valores invertem-se todas as certezas e a aparência toma lu~ gar da realidade, parecendo que o escopo máximo dos artistas é a total confusão do espectador, como se pode observar principalmente na pintura dos tetos em que o fingimento de uma perspectiva ilimitada graças ao escorços de detalhes arquitetônicos fantasiosos e figuras humanas flutuantes e floridas vegetações arbitrárias e raios de luz e nuvens exóticas e anjos e santos, leva-nos a uma irrealidade que, a um tempo, desmente os atributos da pintura e a contingência do teto. O barroco é a arte do trompe l' oeit. Assim como vimos a negação d formalismo wõlffliniano dar vasas a todas as teorias e até a profecias filosófico-históricas, assim como vimos uma confluência de estudos e interpretações a conglomerar-se no ponto que no esquema de Hannah Levy é marcado por Dvorak, também veremos a nova possibilidade
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interpretativa trazida pela inspiração sociológica ser explorada em muitos sentidos e muitas intenções. Seria inútil, neste ponto, repetir que a sociologia é ciência jovem e, pela própria natureza de seu objeto, exposta aos abusos que forçam a natural imprecisão das ciências humanas. Ademais, a complexidade dos termos, demasiado gerais, dessa interpretação que prende a arte à política absolutista, permite todas as extens.ões; eis porque, por exemplo, enquanto Hannah Levy expõe as idéias de Balet de modo a torná-las muito próximas de uma teoria econômico-social, a idéia de absolutismo reaparece no prefaciador espanhol de Weisbach em sentido bem diverso, inteiramente subme· tido à concepção idealista, com laivos de spenglerianismo e com fortes reminiscências das afirmações de Dvorak, de maneira a transformar o barroco em expressão exclusiva do absolutismo místico e clerical da contra-reforma, senão mesmo da contra-reforma ibérica. .. Ao que parece, e ao contrário do que aconselharia a habitual cautela dos pesquisadores, deveremos. para ser justos e não pormos a perder o melhor dessas investigações evitar as minúcias de cada caso especial. Estamos, afinal, diante de grandes quadros de interpre.tação e, neles, interessam-nos menos as peculiaridades desta ou daquela referência concreta e parcial do que o aproveitamento das indicações metodológicas superiores numa nova aplicação que, longe de desejar .'J comprovação de originalidade ou pertinência de determinado intérprete do barroco europeu, visa lançar luz sobre um caso concreto, rico e extenso, cuja primeim aparência já está a indicar-nos uma possível originalidade e, em conseqüência, uma provável discrepância dos modelos pré-existentes. Evitemos, pois, comprometermo-nos nas controvérsias entre os "formalistas" ou os "expressionistas" ou os "absolutistas" e os "contra-reformistas" do barroco, contentando-nos com aproveitar tudo que alcançaram, até agora, de certo ou sugestivo. 3_
DAS TEORIAS A HIPÓTESE DE TRABALHO Propúnhamos, no último artigo, fundir as principais teorias do barroco numa mesma hipótese de tra-
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Matriz de Santo Antônio. Tiradentes.
balho aplicável ao caso brasileiro. Não se trata de praticar perigoso ecletismo, mas, pelo contrário, apenas de reconh;,:cer a maíor ou menor precariedade das teorias até hoje surgidas sobre o barroco, sobretudo porque, ao contrário do que afirmam seus defensores mais ou menos facciosos, nada as opõe de maneira absoluta. Por exemplo, não há dílvida, do ponto de vista lógico e epistemológico, quanto a excluírem-se mutuamente as explicações de Dvorak e de Wolfflin, mas daí não se pode concluir que, em definitivo, se deva afastar qualquer análise formal das realizações da arte, sempre que se queira interpretar ti história da arte como parcela representativa da história do espírito. Por sua vez, a interpretação globaliz:ldora, à maneira de Balet, não só não rejeita, mas, pelo contrário, veementemente apela para as minuciosas análises da evolução do "espírito" artístico de qualquer fase histórica. Devemos, isso sim, fugir às grandes leis apriorísticas, às generalizações demasiado rápidas e, antes de mais nada, a essas implicações que, fundando-se tão só num pressentimento ou numa possibilidade apenas lobrigada, acabam por comprometer o que poderia representar um esplêndido exame cient(fico da questão. Em conseqüência, poderemos continuar con· cebendo épocas que se exprimam por via de "formas fechadas" ou "abertas" e, mesmo, a possibilidade nunca o postulado - de sua alternância, desde que não estatuamos uma linha irremissível de evolução; por imanência lógica ou qualquer outra mecânica abstrata. Assim, também, e sem excluir os exames formais, ';1 análise evolutiva das próprias tendências artísticas, firma-se como necessária seja para pôr a descoberto .:) "seu" espírito, seja para enquadrar esse espírito num grande contexto geral, pois, numa ampla amílise sociológica não se saberá desprezar o valor dos passos intermédios que se evidenciam nas intenções dos grupos artísticos. Constituem fatos evidentes que não puderam ser negados tanto na análise de Wõlfflin (interferências históricas anormais) quanto na de Dvorak (termo médio evolutivo). São, ademais, expressivos e significativos, posto que a "história do esp(rito", ,.ludindo a uma evolução artística (beleza objetiva - subjetivismo - expressão subjetiva com conteúdo espiritual
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objetivo) já antecipava e preparava a explicação mais geral, indicando como a aparente gratuidade inventiva da forma artística (barroco) pode traduzir fielmente a forma política de domínio (absolutismo). Estamos, pois, diante de um contingente de interpretações que, sem possuírem direito de monopólio ou de resolução definitiva do problema, apontaram, sucessivamente, seus aspectos mais relevantes e forneceram as primeiras indicações metodológicas para seu tratamento. Preferir qualquer d~las, seria pouco cauteloso numa pesquisa que, por si mesma, poderá oferecer variações específicas de objeto que não se poderia desprezar em proveito de uma concepção restritiva e resultante de condições diversas daquelas em que trabalhará o estudioso do barroco brasileiro e do absolutismo português. Aceitá~las todas, seria impossível, dado o caráter polêmico de que se revestiram já ao nascer. Submetê-las ao puro ecletismo utilitário, seria abandonar o critério objetivo e lógico da ciência. Assim, en:ontramo-nos na contingência de amalgamá-las criticamente num só enunciado teórico que, por isso mesmo, se mostrará bastante geral e ambicioso. Nenhum mal há nisso~ afinal, nosso objetivo, como dissemos de inÍcio, é simplesmente firmar uma hipótese, no sentido estritamente lógico do termo, a fim de preparar investigações futuras. Ora, não se pode imaginar hipótese mais generosa do que a contida no seguinte quadro geral de inquérito, extraído das várias teorias: a) colocando-se o problema como a procura das relações entre o barroco e o absolutismo, G campo de investigações forçosamente não poderá conhecer limitações de qualquer espécie e abrangerá todo o corpo social, não se admitindo sequer a abstração duma superestrutura, de vez que a própria natureza do assunto. embora precipuamente ligada aos_ produtos da cultura espiritual traz em si mesma implicações técnicas ·=tue forçosamente se referem à cultura material. b) de tal forma definido o objeto, lama-se óbvia a definição metodológica, cabendo apenas relembrar que, assim como o cerne da investigação nem por ser específico exclui o contexto geral em que se contém, t<1mbém o ponto de vista das sociologias especiais
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não poderá excluir as considerações de ordem geral. c) a própria natureza do objeto torna admissível a pesquisa de um determinado "espírito" da época estudada, ou seja. mais precisamente, de um traço comum que caracterizaria toda a cultura espiritual, refletindo-se na infra-estrutura; no entanto. tal entidade, ainda hipotética não deverá ser considerada como condição da pesquisa. d) por outro lado, a existência de determinadas formas peculiares - estéticas e políticas - encontra-se no próprio enunciado do problema ~ sua determinação pode, no entanto, admitir reajustes conceituais c até redefiniçães. e) a simples colocação desses termos exige o estudo das relações recíprocas: a pesquisa da relação entre o "espírito" e as formas, e. quer seja esse primeiro nexo encontrado. quer não, a pesquisa da relação das formas entre si, finalmente, não se excluirá 3possibilidade de relação entre as formas escolhidas para objeto da pesquisa e outras, do mesmo tipo, mas relativas a diferentes setores da cultura espiritual ou material. f) afinal. no caso de inexistir a entidade hipoteticamente admitida na letra "c" limitando-se. pois, () estudo aos nexos rei acionais enunciados na letra "d'deve-se ter em mente a possibilidade de concluir-se pela existência de um traço comum às duas formas pesquisadas e, portanto} por uma relação globalizador;t de ambas que, pela amplitude natural dos termos que toca, poderá, em movimento reversivo, caracterizar, com maior ou menor propriedade, toda a cultura estudada; pode-se a priori admitir que a sucessão de termos encontrada nesse caso (formas estéticas e políticas -nexo relacionaI - caráter ou "espírito" da cultura) enquadra-se melhor na compreensão sociológica do que aquela de que partimos (cultura - "espírito" - nexo relacional entre formas estéticas e políticas). Se fastidiosa, essa longa enunciação terá a virtude de evitar-nos a repetição do que ficou dito, tanto para justificar a ligeireza com que tratamos das teorias conhecidas sobre o barroco. que só nos interessavam como material preparatório, quer para explicar 97
porque não passaremos do tratamento preliminar da questão em si mesma, a cuja altura não julgamos que cheguem nossas forças. _ 2. Tel!:-se. dito qu.e a hipótese é uma antecipaçao da expenenc13 e, maIS exatamente, que é uma antec~pação da lei. Não se estranhará, pois, verificar que apos o levantamento formal da hipótese, passemos '~m exame nosso objeto de estudo, não para aferir a veracidade de qualquer interpretação, mas para confirmar a legitimidade da adequação lógica do enunciado hipotético. Nesso matai ai ue observaçüo prévia, não sendo muito abundante, ainda mais necessária parece tal inspeção, posto que, desde logo se levanta também a questão de saber-se se será representativa a amostra assim isolada. Estivessem em adiantado andamento os trabalhos de identificação e levantamento do patrimônio artí::;tico nacional e qualquer interpretação deveria considerar a totalidade das manifestações catalogadas e analisadas, ao menos para justificar um critério de triagem Oll de classificação capaz de fundamentar qualquer escolha preferencial. No entanto, em que pesem os ':5forças prodigiosos e profícua atividade do D.P.H.A.N. estamos longe desse ideal e o isolamento de um objeto de estudo ainda representa, em grande parte, obra casual. As observações que colhemos não foram resultantes de uma preferência prévia, senão no que diz respeito a certa curiosidade estética e a certas condições materiais eliminatórias. No entanto, uma vez reunidos esses dados, e não os colhemos de início senão como anotações sem destino exato, verificamos que. até certo ponto, possibilitavam um trabalho da -ordem do que ora tentamos, sobretudo se submetido às já enunciadas limitações. O material pertence, por inteiro, a um mesmo ciclo artístico e histórico: compõe-se, primordialmente, de observações sobre as construções religiosas da cidade de Ouro Preto, às quais se trouxe, sempre que possível o confronto com a arquitetura civil c, em maior grau, com peças daquele mesmo gênero examinadas em outras cidades da chamada zona do ouro (Mariana, Sabará, Congonhas do Campo) ou reunidas nos dois esplêndidos museu especializados de Minas Gerais, o da Inconfidência (Ouro Pre98
to) e o do Ouro (Sabará). A antiga Vila Rica é tida como o mais extenso e mais preservado conjunto urbano colonial da zona, sendo dispensável encarecer que sua vida pregressa a favoreceu particularmente nesse sentido; pode-se, pois, tomá-la como ponto de referência, conglomerando os demais dados à sua volta. E uma vez praticado o levantamento prévio, verificar-sc-á, ao que cremos, a homogeneidade do material colhido. Tal homogeneidade patenteia-se, antes de mais nada, historicamente, sobretudo porque, no sentido em que a amostra nos interessa, pode ser limitada a mais ou menos um século, espaço de tempo em que se deu a construção dos monumentos. Ora. nesse espaço de tempo, não encontraremos nenhuma deslocação ou perturbação "anormal" da população, que apresenta o mesmo ritmo comum de desenvolvimento numérico positivo ou negativo de progresso ou regressão cultural, estando por igual submetida aos mesmos fenômenos políticos que, sobre serem gerais na região, comumente já possuíam significação nacional. A rigor, o acontecimento que interessou à vida de Vila Rica, nesse espaço de tempo, interessou igualmente, no mínimo, à toda zona do ouro. Isso nos garante, portanto, o direito de afastar, na análise preliminar, a ponderação dos fatores de significação restrita ou local. Desde que estamos atentando sobretudo para fatos que dizem respeito à sociedade global, poderemos manter-nos nesse plano sem o receio de sermos surpreendidos por variações advindas de esferas menos amplas e genéricas. Essa homogeneidade histórica, mesmo não poP dendo ser tomada como índice da homogeneidade social do grupo em questão, de qualquer maneira a reflete. Por homogeneidade social, no caso, não estamos entendendo qualquer indicação referente à justaposição de elementos internos ao grupo, mas apenas indicando que os vários grupos considerados - já os que se distinguem espacialmente, em formações urbanas e rurais, já os que se distinguem em sentido propriamente sociológico no interior desses aglomerados e, ao mesmo tempo, em sua generalidade podem ser tidos como muito semelhantes e, portanto, redutíveis a uma mes-
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ma enunciação genenca. Numa palavra, os intérpretes da vida das Gerais não exageraram ao aludirem a uma "zona do ouro" ou a um "ciclo do ouro"; em toda a região parece patente um mesmo teor cultural que permite a sempre arriscada operação simplificadora pela qual os sociólogos assimilam certos grupos geograficamente distintos numa mesma sociedade global. De fato, a partir daquela primeira entidade tão encarecidn pelos geógrafos - a. paisagem - as variações já são mínimas. Sobre tal base, o grupo humano compôs-se, quer pela colonização inicial, quer por desenvolvimento vegetativo, quer pelas migrações posteriores, de maneira a continuamente obedecer, em suas grandes :tinhas, antes aos movimentos do conjunto do que aos impulsos particulares de cada ponto especial. Também a evolução da economia básica e, conseqüentemente, das técnicas fundamentais segue Jinha conforme em toda região, sendo de notar-se que assim acontece, tanto com o esgotamento e coexistência das várias técnicas quanto com as grandes fases de apogeu e decadência da mineração aurífera. Depois de examinados estes pontos, o pesquisador por certo compreenderá bem mais claramente porque a composição estrutural da sociedade do ciclo do ouro se mantém estável e genérica a toda a região, enunciando-se as mesmas linhas de separação em classes e, até, em funções grupais e individuais. Eis porque - na medida em que (> estado atual dos conhecimentos autoriza interpretações - se explica que os movimentos coletivos tenham, no mínimo, amplitude regional. 4.
A "ZONA DO OURO" E SUA ARTE
Falávamos da uniformidade paisagística e humana da "zona do ouro". No entanto, para nosso caso, essas considerações preparatórias deverão servir apenas como fundamento para a apreciação daquilo que diretamente nos interessa: a generalidade dos movimentos supra-estruturais, da cultura em seu aspecto de produção espiritual. à qual se prendem diretamente o barroco e, igualmen(:' a formulação de ideologias e tendências políticas 100
que contrariaram ou confirmaram o absolutismo. Ora, quanto se saiba, até agora os estudos feitos nesse sentido não desmentem a homogeneidade aludida. Os estudiosos que tentaram o levantamento dos pnssados padrões de vida isolaram um tipo especial e bem caracterizado de existência coletiva na sociedade mineradora de ouro. Nesse, padrão incluem-sé, de forma clara e visível, padrões de comportamento habitual c, também,. padrões de gosto, aliás, mais bem documentados pela similaridade dos monumentos preservados. Em nada afeta a observação, mas pelo contrário, confirma-a vigorosamente o fato de haver evidentes variações correspondendo aos vários níveis em que se esca lonavam os indivíduos dentro dos grupos posto que. tais níveis engendrando diferenças específicas, todas essas entrosam-se organicamente de maneira a tornar ainda mais perceptível a generalidade do grande padrão comum. O mesmo poder-se-á adiantar relativamente aos movimentos, intelectuais ou ativos, de natureza pol.ítica, nos quais os termos diferenciais não 'proíbem, mas instigam o estabelecimento de um quadro orgânico de forças, diversas ou mesmo contraditórias. que se compõem em resultante comum. Valham tais obse,-"vações para comprovar a legitimidade da escolha da amostra que, em si mesma, oferece possibilidades de completa liberdade ao pesquisador. Cremos desnecessário afirmar que, com elas, não se visa considerar definitivamente encerrado o assunto, mas, pelo contrário, deixar bem claro que es~á ele aberto a todas as pesquisas que, venham a confIrmar ou contraditar essa primeira e precária interpretação, deverão nela firmar-se como ponto de partida, como decerto percebeu O leitor. De qualquer forma, o que importa é fixar-se uma direção inicial para a pesquisa, o que, a nosso ver, se encontrará na própria natureza das peças barrocas oferecidas pela "zona do ouro": a amostra coerente c homogênea permite que se faça um primeiro confronto, não das peças entre si (o que poderia levar-nos talvez a uma investigação extenuante e sempre incompleta), mas preferivelmente ao confronto entre seus caracteres globais e gerais, e as linhas mestras por que se orientou o barroco europeu 101
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Matriz de Santo Antônio. Tiradentes.
ao qual não se pode negar o papel de inspirador e modelo do nosso. Aquelas tábuas de presença e ausência, preceituadas por Bacon e sem as quais não se estabelecerá a tábua dos graus ou da comparação, podem ser obtidas, mas não no interior da amostra. O confronto far-se-á grosso modo entre dois fenômenos apenas o barroco do conjunto examinado e seu modelo passando-se, depois, a um segundo exame, ainda em termos globais, das suas relações com o absolutismo. Não desconhecemos a arbitrária simplificação a que fomos levados. No entanto, ao risco que oferece e que é o da precariedade de construção tão geral e relativamente prematura, contrapõe-se a vantagem de, desse modo, iniciar-se a interpretação de fenômenos sem cuja compreensão quase impossível se torna a perfeita avaliação de uma das fases mais importantes da história social do Brasil. Por outro lado, o risco da precariedade constitui, por assim dizer, o penhor de toda e qualquer conquista científica. Nesse sentido, não precisamos alegar que "a ciência é uma aventura" mas apenas lembrar o que Descartes deixou dito: "Afin que chacun soit libre d'en penser ce qu'i] lui plaira, je désire que ce que j'écrirai soit seulement pris pour une hipothese, laquelle est peut-être fort éloignée de la vérité: mais encare que cela fUt, je croirais avoir beaucoup fait si tautes les choses qui en sont déduites sont entierement conformes aux expériences". Examinadas as hipóteses de trabalho e reduzidas a uma só hipótese final, aplicável ao material observado desde que não exageremos a amplitude do estudo, podemos passar à segunda análise do assunto. Depois da verificação metodológica, entramos, agora, no levantamento da problemática. A linha mestra das novas indagações é simples; posto que, para o caso europeu, se dá por verdadeira uma relação entre o barroco e o absolutismo, buscaremos, num primeiro passo, registrar as variações do barroco mineiro em relação ao modelo europeu e, pelo confronto com eventuais variações do regime absolutista, ao exercer-se no Brasil, chegaremos a um quadro de variações concomitantes ou, pelo contrário, encontraremos resíduos que exijam novas explicações causais. 103
Uma primeira variação do barroco brasileiro, tão notável que dificilmente escapa aos observadores, é l) despojamento das fachadas. O barroco de Minas - a julgar pela amostra escolhida - mostra-se claramente indiferente aos efeitos decorativos predominantes, aos recursos teatrais tão característicos nas grandes construções européias. As igrejas mineiras, em sua generalidade, tendem à facha~a limpa e lisa, caráter que, embora abstrato, está "presente" mesmo nos casos em que a decoração recobre parte do muro plano e até quando há ondulação da própria fachada. Via de regra, o decorativo das fachadas é mero complemento da arquitetura. Ora, nesse sentido, podemos registrar uma verdadeira inversão do padrão europeu. De fato, o barroco original interessava-se sobremaneira por comunicar a "agitação sem fim" dos monumentos ao ambiente exterior; assim se explicam fachadas compostas por painéis ondulados que não correspondiam a nenhuma necessidade construtiva (não sendo exagero afirmar-se que por vezes há mesmo contradição a esse elemento essencial), e o enorme desenvolvimento das obras complementares destinadas ao arranjo da paisagem, tais como as escadarias externas, os jardins em tabuleiros, a disposição das massas vegetais, o represamento das águas, as cascatas artificiais, os repuxos. .. Um caso de arranjo especial do adro, como o de Congonhas do Campo, muito embora sem torsões de patamares, escadas lançadas obliquamente ao eixo da obra ou o estudado desencontro dos planos e das dimensões, ainda assim abre uma exceção no complexo artístico-religioso da zona do ouro. Não é apenas pela beleza estranha de seus profetas que Congonhas forma caso à parte, pqis lá o observador encontra o que não vê nas outras igrejas da região, a organização vestibular da paisagem subjacente, desconhecida, nos outros casos, mesmo quando o terreno permitia coisa dessa ordem, como no átrio de Antonio Dias, ou em S. Francisco de Paula. Também a igreja do Rosário poderia ter recuado seus alicerces, sobretudo porque sua planta bombeada sugeria uma maior gratuidade e solicitava o apoio dos estratagemas paisagísticos barrocos, mas, na verdade, a sobra de ~erreno ficou abandonada às suas 104
costas. A igreja da zona do ouro implanta-se dire:tamente na terra, sem ofertar preparativos cenográficos ao visitante, e, ainda quando apresenta adornos externos por vezes tão belos, sua determinante estética é a . parede lisa e plana, em função da qual se conglomeram os demais elementos visuais. Na verdade, os monumentos, à medida em que avançamos nas datas, podem complicar sua feição anterior; contudo, mesmo quando chegamos às obras de auge, notamos que a maio grandiosidade expressiva não busca a agitação esplendorosa para exprimir virtuosismo ou para renegar a naturalidade, mas encaminha-se em sentido diverso, senão oposto. Lembraremos que o despojamento das fachadas só se evidencia em contraposição ao modelo europeu, posto que a igreja mineira, quando comparada às suas ancestrais jesuíticas do litoral suF parecerá, pelo contrário, bem servida de embelezamentos externos. Da primeira à segunda etapa da construção religiosa, o decorativo progride e essa marcha temporal da decoração barroca pode ser observada, até certo ponto, na estética da própria zona do ouro: tomando-se como pontos de referência a fartura do Carmo de Sabará (onde a lavra decorativa ainda ficou incompleta), e a singeleza da matriz de Ouro Branco (posto que padre Faria, de Ouro Preto, foi aparentemente desfigurada), o incremento dos elementos complementares torna-se visível. No entanto, parece-nos que tal evolução apenas confirma o que de fato quisemos significar ao aludir a fachadas despojadas, desde que mesmo na riqueza do exemplo de Sabará, o ponto de referência observado na composição global é a frontaria simples e linear ê, por outra parte, verifica-se que, aumentando as possibilidades da técnica e do financiamento cuja influência limitadora poderia ser responsabilizada pela simplicidade primitiva, correspondente enriquecimento decorativo não se processa pela volta ao modelo reinoI ou europeu, mas busca efeitos que caracterizam especialmente o barroco brasileiro. Na verdade, é patente a primeira variação do barroco brasileiro. (7) o reparo, de todo objetivo c judicioso, loi·nos leito por ?i1,:io do V3sconcelos, quando pela primeira vez cltpusemos, em conlcl'c':Ic1a, nossas observaçGcs sobro o despojamento das fachadas barrocas de Minas.
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Abre-se, pois, o primeiro problema. Desde já podemos indicar duas vias prováveis para ri. pesquisa de influências especiais ou causas peculiares que dêem razão de ser a esse caráter especial do barroco brasileiro, limitação artesanal e condição geográfica especial. Em primeiro lugar J assinalaremos a provável influência das condições de trabalho artesanal. Historicamente, restam traços de um grupo de artesãos numericamente reduzido, muito ligado espacial e temporalmente, cujas obras de colaboração estão a indicar uma grande interpretação de estilos e ideais estéticos. Ora, de toda a evidência, esse grupo formou-se e agiu dentro de condições algo restritivas e constantes; havia uma limitação material que tornava as construções vagarosas e sua complementação decorativa, externa ou interna, sujeita a flutuações muito grandes, como havia também uma clara limitação de conhecimentos, pois já não se gozava do lento processo de sedimentação profissional que caracterizara o corporativismo medieval, nem tampouco de qualquer especialização além da imposta pelas capacidades naturais do artesão, como o atesta a atividade de um mesmo homem em vários ramos. Tais imposições não afetaram, está claro, as possibilidades inventivas e criadoras, engenôrando antes ,:) problema da superação dos obstáculos quer no aspecto puramente ergológico - emprego da mão-de-obra escrava - . quer no aspecto propriamente artístico pinturas calcadas em gravuras, técnica de lavra em madeira adaptando-se à pedra-sabão, etc. E, recusando-se quase sempre- à -simples improvisação, esses esforços alcançaram realizações originais e de inteira consistência estética. Compreende-se, pois, que as soluções impost::as por condições materiais inarrostáveis, como parece ter sido originalmente o despojamento das fachada~, possa depois fixar-se mais solidamente e já agora como padrão estético desejado por todo um grupo dr). artesãos de tal ordem, transformando-se em verda~_eira diretriz inspiradora, florindo em obras-primas todas as vezes que a anima um sopro criador. O aspecto externo do monumento barroco do Brasil ao infletir num sentido inédito na Europa, assume, pois, feição de traço cultural em que houve perfeita adequação entre as condições infra-estruturais e o produto espiritual q1J,e 106
brota na supra-estrutura. Além disso J -não podemos deixar de assinalar uma possível ínfluência de fatores geográficos exprimindo-se por via de constantes psicológicas da população. De fato, o eririquecimento artificial do terreno subjacente, notório no barroco europeu, pode, em grande parte, explicar-se como uma imposição do meio em que eram levantados os monumentos. Se '0 objetivo espiritual e formal desse estilo foi o esplendor impositivo, parece óbvio que as produções que inspirava não podiam apagar-se modestamente, dissolvidas no contexto físico a que pertenciam. Ora~ no burgo vindo da civilização feudal, na asfixiada cidade do século XVI, o palácio e a igreja deveriam buscar meios de tornarem-se o foco polarizador da atenção visual. 5.
PAISAGEM E FACHADA
o barroco europeu buscou impor-se impositivamente à uniformidade urbana, o que só consegmna rompendo o ritmo comum das construções circundantes. A fachada, sobretudo, era o grande instrumento para alcançar-se tal fim. Por isso, não surpreende vê-la fazer-se de sucessivas concavidades, cada uma das quais vazadas por nichos e todas atacadas entre si por colunas que se contrapõem convexamente ao ritmo geral - como em São Carlos das Quatro Fontes; nem por retrair-se num semicírculo a. opor-se à massa bojuda da cúpula, ficando enquadrada entre duas torres e cortada por um frontão quas~ clássico - como em Sta. Inês de Roma; nem por mostrar-se curvilínea na cornija embora retilínea no alicerce - como no oratório de S. Felipe Neri; nem por aventurar-se a todas as missões formais que Fontana estampara na fachada de S. Marcelo. São desmentidos ao plano vertical, feitos para atrair os olhares num conjunto urbano submisso à maior coerência entre aspecto exterior e função construtiva. Se tais singularidades se admitem e se compreendem no barroco, não se haveria de rejeitar as singularidades que vinham de mais cedo ainda: quando Giacomo della Porta, tomando a construção de Vigno107
la à altura do primeiro entablamento, ergue um segundo andar e uma segunda cornija na "li Gesu", procu· rando desmentir a discrepância de dimensões e, so· bretudo, o ângulo reto formado pela superposição d.. dois andares de largura diferente, com duas mênsula!laterais em "s" inclinado,8 não apenas lançara o marco inicial do barroco, mas nele gravara a regra da gra· tuidade decorativa como norma suprema que deveria impor-se mesmo ao funcional e utilitário. Desse ponto de partida, decorre quanto mais atribuiu ao barroquismo um espírito especial na história da arte e aí já se incluem as fontes de Bernini, que brotam de rochas naturais para subirem a finos obeliscos, geométricos, as colunetas e as escadarias exteriores, os terraços de relva ou de água, os repuxos de arbustos ou de espuma líquida, os patamares, os peitoris e até anfiteatros ajardinados. Numa palavra, o monumento reagia à uniformidade citadina e abria caso especial para si próprio. Ora, a igreja brasileira não encontrara a rivalidade do urbano. Segundo os melhores indícios, as igrejas da zona do ouro plantaram-se, de início, em espaços bem abertos. O casaria que hoje cercou a matriz do Pilar ou a de Antônio Dias não ousou encostar-se a elas, respeitando a circulação livre a toda a volta, o que decerto já constituía hábito enraizado quando as moradias adensaram-se naquele sítio. Quando isso não acontece e a construção civil vem confinar com a religiosa, o faz com toda a timidez e dificilmente encontramos mais de uma face de contato e, ainda assim, quase sempre a construção contígua é de emprego eclesiástico, como' se poderá observar nas três principais igrejas de Mariana. Mas, o templo sempre foge à aglomeração urbana. Em Ouro Preto, sente-se que cada igreja busca sua plataforma no cume de um morro e que, segundo certos indícios, essa plataforma dominava todo o casario no momento em que se rasgaram os alicerces. A igreja ficava, pois, solta no conjunto do burgo e, desde que as moradas começavam a cercá-la, mais adiante e mais acima haveria uma nova plataforma a espera da nova igreja. As datas de construção elevam-se com as colas orográficas. (8) 1943.
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Cf. A. C. Pclliccr. "El Barroquismo" Barcelona; cu. Amaltci:l,
Percebe-se, pois, que o sítio da igreja mineira exclui, naturalmente, o problema do enriquecimento da fachada. Ademais é preciso atentar não apenas para o sítio (algumas vezes desmentido, como no Carmo e em São Francisco de Mariana), mas sobretudo para o próprio caráter de paisagem. De fato, a orografia característica da zona do ouro, que jamais o urbanismo ou a arquitetura coloniais buscaram contraditar, sempre acompanhando os caprichos dl1 feição do terreno, é feita de surpresas, imprevistos e dificuldades, desenhando-se em curvas fortíssimas quer vertical, quer horizontal. Os tabuleiros, patamares e cascatinhas são a solução natural a que se acomodaram as hortas, quintais e fundos de casas que se vêem de cada ponto de Ouro Preto; tentar enriquecer a frente das grandes construções religiosas ou civis com estratagemas dessa ordem, seria trabalhar em pura perda. O vestíbulo barroco de Sta. Efigênia é a ladeira do Vira-saia e jamais um arquiteto do barroco italiano imaginou jogar o adro de sua igreja sobre um precipício como acontece em São José. Ora, nes~e esquema nada há, por si mesmo, de barroco. Portanto, a primeira impressão do observador será a de que, também na América, o barroquismo assentar-se-ia sobre a construção sem nascer dela, apenas procurando ocultá-la sob formas que por tudo merecem o nome de gratuitas, ou, então, até querendo desmenti-la, segundo a já citada "violação" da forma natural. No entanto, a simples inspeção das amostras concretas diz-nos o contrário. Nos casos mais complexos c, também, mais desenvolvidos, isto é, na combinação de duas torres simétricas e presas à fachada, estão presentes linhas e ritmos legitimamente barrocos e o esquema não se encontra desmentido ou disfarçado. Há mesmo uma bonita evolução das mênsulas em "s", no sentido de formarem entablamentos graciosos, feitos de linhas sinuosas e devolutas, com interrupções que conservam toda a vivacidade do estilo que buscava o movimento sem fim e o esplendor virtuosístico. São composições simétricas, onde não raro as linhas ascensionais da cimalha se interrompem antes de encontrar-se no eixo médio da fachada, para abrir o espaço em que se .jevanta, com inteira liberdade, a peanha da cruz. No
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entanto , toda a composição busca apoiar-se na morfologia da estrutu ra construtiva, posto que se faz sempre no sentido do triângulo resultante das peças de sustentação do telhado, muito embora - eis o que nos parece import ante - os elementos decorativos se construam acima da linha de intersecção da parede da fachada com as traves de cobertu ra, restando-lhes pois todas as possibilidades de erigirem-se segundo a fantasia do artista e, mesmo, segundo as solicitações do barroco que poderia m sugerir formas mais volumosas, mais altas e mais arbitrárias. Contud o, a cimalha construtiva e a cimalh a decorativa, mesmo quando não são coincidentes - e o foram nas velhas construções, conservando-se até hoje na Sé de Marian a - não se ignoram, e, sobretudo, não se afastam, senão o mínimo necessário para enriquecer-se discreta e regrada mente o triângulo retilíneo do esquem a fundam ental. Há, pois, uma contenção na arqnite tura religiosa da zona do ouro que equivale a uma profun da modificação do barroco europeu, sobretudo quando considerado em suas típicas expressões italianas. :B ainda o barroco ; mais precisamente: são ainda as formas específicas da decoraç ão barroca , mas o espírito que as convoca assume feição original. A igreja barroca de Minas deveria ter uma fachada linear, simples e grandiosa, de cor clara e contras tante com a verdura circundante, cuja eventual ornamentaç ão deveria acompa nhar esse caráter severo, impone nte mas regeado, que constitui a única maneir a de destaca r a obra do homem no seio de uma natureza ciclopicamente barroca .
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Se alongamos essa exposição sobre as fachadas das igre1as observadas, não raro repetindo muito do que ficara no material preparatório, foi expressamente para por a este ,em mais direto confronto com o modelo europeu e, sobretudo, porque só dessa maneira se tornaria possível encaminhar o problema para seus justos termos; o estabelecimento de um padrão morfológico, relativamente fixo, cuja presença seja constante na generalidade das amostras observadas. Não se trata, evidentemente, de padrão arquitetônico, na completa expressão do termo, mas, simplesmente, de um esquema fundamental que, por indução, podemos abstrair da va~ riedade de versões especiais e de casos individuais. Procuraremos, pois, raciocinar como os estudiosos da antropologia ao examinarem traços materiais da cultura e permitindo-se aproximarem peças de proveniência bem afastada por causa de seu parentesco formal, incluindo no capítulo dos arcos, por exemplo, amostras africanas e americanas, primitivas e medievais. Dentro dessa orientação, também poderemos estabelecer uma forma geral para as construções religiosas do barroco do ouro. Dois elementos básicos compõem as igrejas de Minas: a) o corpo de capela, quer na versão simples de capela propriamente dita, quer chegando às complicações requeridas pela funcionalidade litúrgica que exige o vestíbulo, ?nave, a capela-mor, por vezes alas laterais, sacristia, coro etc. e. b) a torre do sino, já na singeleza da simples sineira despretenciosa e desligada do corpo principal, já a este ligada e repetida em par simétrico, com tratamento arquitetônico mais ou menos complexo. De qualquer forma, há sempre a construção da casa do culto, redutível a quatro paredes cobertas por um telhado de duas águas, com a cumieira posta ao meio da fachada. Ao seu lado, coloquemos a torre, também feita de quatro faces, com seu telhado que repete, em escala reduzida, a forma do telhado principal, embora logo tenda a formar-se em. meio octaedro regular9 . Desse esquema devemos partir, obrigatoriamente na análise das igrejas e. com esse cuidado, poderemos verificar sua presença constante: numa amostra primitiva (9)
Vide esquema n9 I, a.
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(embora desfigurada) encontramos o próprio esquema, como acontece em Pc. FarialO~ por vezes. sob múltiplas reformas ou, mesmo, por causa delas, encontramos combinações em que a torre foi para o centro da fachada, caso de S. José e Mercês de Cima l l ; mas a grande massa de exemplos nos levará à mais simples das composições que chamaríamos de "segundo grau" e onde a fachada por duas torres simétricas, mais ou menos inclusas no corpo central, tanto no sentido lateral, quanto no da profundidade, mas de qualquer forma sempre (10) (lIl
Vide esquema n9 I a. Vide esquema n9 I, b.
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atacando-se a capelal2• Nessa última combinação, podemos incluir construções veneráveis como a matriz de Ouro Branco ou aquelas que ainda há pouco recebiam acabamento final como S. Francisco de Paula. No entanto, nunca deixa de ser evidente a presença dos elementos esqnemáticos e poderiam ser eles percebidos ainda que não existissem casos concretos que os encarnassem.
Esse traço pode ser ainda observado em outros pontos. Assim, quando a cobertura das torres se inclina para as soluções esféricas, começa simplesmente por abaular, geralmente em dupla ondulação, os planos dos diedros originais, conservando em enunciados curvilíneos a intersecção dos quatros planos fundamentais da construção do telhado. Depois, mesmo quaodo se adota a solução esferóide, a torre propriamente dita mantém-se ainda enunciada por paredes retas e só poucas soluções - já de auge - ousam apelar para a configuração cilíndrica. Na verdade, tais torres de alicerces que prenunciam a planta bombeada - suma ousadia, só por duas vezes encontrável no complexo artístico que passamos em exame, - à primeira vista parecem constituir verdadeira violação do esquema original. Isso, no entanto, s6 poderá ser esclarecido mais adiante, porquanto, até o momento, apenas cuidamos da silhueta frontal das igrejas. 6.
ORIGINALIDADE DA ARTE MINEIRA
Na planta baixa das construções religiosas do barroco mineiro também se pode colher o enunciado de um esquema constante, embora agora devamos compreendê-lo também evolutivamente. De novo voltando à enunciação dos mais depurados traços culturais, poderíamos estabelecer como esquema básico horizontal um retângulo em cujo interior, na porção posterior e no sentido dos lados maiores, encaixam-se dois outros retângulos bem menores, que entre si deixam largo espaço. A porção anterior do grande retângulo, de todo livre, forma a nave, enquanto os dois retângulos menores servirão de sacristia e de recatadas zonas de serviços interiores, desenhando a capela-mor pelo vazio que (12)
JJ4
Vide esquema nll' 1 c.
deixam no centro do templo. Em Padre Faria, mais uma vez, o esquema está concretizado c, em escala mais farta, reencontramo-Io na matriz de Ouro Branco. Coincide, talvez, com um tipo histórico primitivo. No entanto, essa forma abstrata pode ser reencontrada nas construções posteriores, sendo freqüente a transformação dos pequenos corpos laterais em simples corredores de passagem que conduzem a uma sacristia agora colocada ao fundo da construção e bastante mais ampla, como já exige o vulto dos serviços nos templos de maior importância. No entanto, o esquema assume seu valor exato quando o vemos compor-se pelo crescimento da própria construção, a qual, não raro, se processou muito vagarosamente: as pequenas mutações técnicas da taipa ou da alvenaria c, também, certos pormenores de acabamento permitem uma perfeita reconstituição dos trabalhos como se dá em Matozinhos. Ali, na forma atestada historicamente para a grande generalidade dos templos, e como o exigia' a própria funcionalidade ritual, começou-se pela capela-mor; a nave, com as torres, veio depois, sendo sua contemporânea ou sucessora imediata a sacristia; mas, inegavelmente, os corredores laterais acolchetaram as três peças numa úl tima obra de arremate. Mais uma razão para induzirmos um esquema repitamos - menos como forma genérica comum às construções particulares, do que como um traço cultural que se liga à própria técnica e dela decorre. Não devemos, dado o próprio caráter da fórmula, levá-la a interpretações forçadas. Não obstante, uma última observação deve ser feita acerca das variações mais comuns. Estas são, como logo se vê, referentes à porção média da fachada. Ao que parece, decorrem de um desejo de enriquecimento que fez modificar ou recomeçar a obra às vezes muito tempo depois de estar concluída; tal reparo não autoriza negar-se que algumas fachadas com projeção média anterior assim se concebessem já no risco, sendo de temer-se uma longa controvérsia acerca desse ponto no caso de São Francisco de Assis. Para nossas afirmações. entretanto, pouco importará que seja um acréscimo ou uma previsão do t:rojeto inicial: em ambos os casos, o aparente desmentldo da fachada lisa que aceitamos como elemento de 115
nosso esquema básico, não o inutiliza mas atê o reforça desde que se enquadra, por inteiro, em nossa conclusão, acerca da dominância do funcional-construtivo sobre o ilusório-decorativo no barroco mineiro. De fato, quer' tomemos uma fachada desfigurada por sucessivas reformas e hoje apresentando uma portada saliente - matriz do Pilar - , quer tomemos na projeção não apenas mais elaborada, senão também mais consistente, arquitetônicamente e mais dirigida aos efeitos plásticos S. Francisco de Assis - , notaremos que a morfologia exte'rna, assim tornada atípica, não entra em contradição com a morfologia interna, que pelo contrário, ganha com mais modificações. J:. o que podemos notar nos vestíbulos de tais igrejas. Mesmo quando as paredes exteriores se tornam curvilíneas e as torres circulares, atingindo o máximo de barroquismo observável na zona do ouro, a peça vestibular adquire nova e mais cabal definição arquitetônica, podendo-se afirmar o mesmo do coro que a domina superiormente. Basta, para percebê-lo, comparar o caso da Sé de Mariana, grande construção bastante antiga, e sem modificações posteriores substanciais, onde o enriquecimento posterior não conseguiu acomodar-se em conveniente arrumação, e aqueles exemplos já citados. Não podemos ignorar, à vista desses monumentos, dois pontos fundamentais: as modificações da simplicidade exterior são submetidas conscientemente a um uso interior legítimo e funcional: mantêm-se as formulações esquemáticas que se encontram, concretamente, nos exemplos mais singelos1 5 . Difícil será, pois" encontrar-se na zona do ouro uma clara amostra da gratuidade barroca, Por vezes, a decoração interior cede à vocação curvilínea do barroco. Mas, o faz de maneira a respeitar o retângulo fundamentai da construção: tendo os altares laterais quebrado o ângulo reto da intersecção das paredes maiores com as asas do arco cruzeiro, a mesa da comunhão descreve, à volta de toda a nave, uma elipse que, tratada ~m madeira rica, escura e torneada, se torna a nota visual dominante, incutindo uma-curvi\inearidade no curso não chega sequer a constituir um estratagema; baseia-se, apenas, numo'efeito ó-PJtc~. ]SO~o nos anima a OS)
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Vide esquema n9 3, A .
não excluir do esquema sequer aquele? casos extremos - Rosário de Ouro Preto, e a planta original de São Pedro de Mariana - das igrejas de paredes curvas. Poderíamos deixá-las de lado, exceções que são essas duas amostras (uma incompleta) em toda a zona, mas quer parecer-nos que a inflexão bombeada dos muros não desmente o esquema que, aqui, em curvas repete exatamente a compleição geral que encontramos, em outras partes enunciada por linhas retas. Mesmo o aspecto exterior vem confirmar nosso esquema de fachaàa, embora não queiramos exagerar o sentido de sua simplicidade de acabamento e decoração. \·ivo desmentido de qualquer imitação do europeu 1'. Por sumárias que sejam, as indicações registradas dar-nos-ão o direito de encaminhar uma primeira conclusão provisória sobre o caráter formal do barroco da zona do ouro e, conseqüentemente, enunciar os primeiros problemas que se levantarão em seu estudo sociológico. A conclusão é simples: o barroco mineiro tem uma morfologia específica, sem contradizer ou ignorar os padrões barrocos. Poder-se-á, de futuro, erguer-se um conjunto de regras básicas para caracterizar as construções religiosas desse ciclo que se ligam orgânicamente a um mesmo complexo artístico. Para tanto, necessariamente, traçar-se-á toda a evolução histórica que, de tipos bem definidos e conhecidos - a construção européia em geral e, particularmente, a portuguesu; depois, o jesuítico, sua formulação no litoral sulino e sua lenta modificação das várias etapas do desbravamento etc. - nos tragam ao caso em estudo, posto que só tal análise conseguirei alcançar os pequenos porquês da forma final. Por enquanro, bastar-nos-emos com anotar a .lriginalidade da versão mineira do barroco, relembrando seus .dois grandes traços característicos: ainda é o barroco, sobretudo se atentarmos para a formalística decorativa, onde encontraremos as mesmas linhas, ritmos e princípios de composição europeus, mas já é um barroco diferente, sobretudo em contraposição aos padrões italianos de onde promana a estilística que inspirou toda a Europa e, também, a América. A muração faz-se, sobretudo, no espírito geral das realizações (17)
Videcsquema n~ 2. c.
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nas quais, inegavelmente, observamos uma inteira coerência entre os elementos utilitários e os puramente ornamentais, o que faz desaparecer um dos traços apontados como centrais no barroco europeu, qual seja o império despótico do decorativo, único elemento artÍstico capaz de levar à plena gratuidade, ao virtuosismo e às principais formas do espleodor. Aceita a conclusão, abre-se uma problemática, assaz rica. De fato, todos os primitivos esquemas teóricos encontram-se modificados. Da formalística à Wõlfflin, pouco resta, desde que desaparecem as contraposições marcadas entre o clássico e o barroco, e onde deveria imperar a forma aberta, pictórica, pouco clara, começam a misturar-se elementos de definição precisa, una, bem organizada e claramente marcada. No entanto, não nos interessa refutar a visão wõlffliniana, pois, de toda a evidência, estamos em face de um barroco velho, evoluído, talvez de um pós-barroco, razão pela qual, aliás, também não poderá interessar-nos sobremaneira a teoria da transição por via do maneirismo, porquanto não só aquela primeira transição, cumprida na Europa, aparece como elemento assimilado, mas ainda podemos indicar uma segunda transição, embora talvez de menores proporções, realizada já no Brasil. Deveremos. portanto, restringir-nos ao maior passo teórico, pesquisando apenas as relações entre o barroco e o absolutismo: se há uma permanência do baroco em Minas, dever-se-á ela à permanência do elemento absolutista? E, mais, se for afinnativa a resposta, quais os fatores responsáveis pelas sensíveis mutações sofridas pelo estilo? Interessando-nos particularmente as relações entre o político e o estético, tais como se enunciam na tese da conexão entre o barroco e o absolutismo, por certo admitimos possibilidades de variações especiais e locais da vida pública coletiva, das expressões pessoais ou grupais de poder, mando e prestígio, e até variações do sistema organizado de administração estatal; todos esses fatores poderão entrar em correlação ou paralelismo com a grande causa - o absolutismo - para determinar o aparecimento de um barroco de caracteres especiais. Devemos, não obstante, insistir na redução simpli118
ficadora que vai sofrendo, com o próprio desenvolvimento da análise, nosso primitivo esquema teórico. De fato, colocando-se o problema, não tanto como a caracterização formal do barroco em contraposição ao cl~s sico, nem tampouco da evolução primitiva que o teria trazido à sua plenitude, mas, marcadamente, como um problema de permanência de uma forma malgrado certas evidentes modificações, do aparelhamento teórico de que a princípio tivemos de servir-nos, resta-nos, em sua expressão mais simples, a relação barroco-absolutismo. A realidade social, a que se liga direta e coerentemente a realidade política, aparece-nos como a responsável pela definição de um determinado espírito e de uma certa forma de expressão estética: a conjunção entre ambas, feita sobretudo graças às forças políticas, levar-nos-á diretamente à caracterização de um complexo de manifestações artísticas a cujos traços gerais nos referimos por meio do termo "barroco". Uma primeira conclusão a que nos leva tal redução teórica do problema, dirá que, ao menos no caso do barroco, a criação artística obedece a uma formulação consciente e finalista; é caráter próprio dos fenômenos de ordem política a consciência dos fins que inspira a criação ideológica e dirige a ação, e, ainda que tal fator não seja intrínseco à definição das realidades estéticas, torna-se-ia peculiar ao barroco, contaminado pelo político que o sujeita e conduz. Em segundo lugar, precisamos anotar que nos encontramos a dois passos de um rigoroso determinismo, pois o condicionar a existência do barroco à do absolutismo levar-nos-á, de qualquer forma, a admitir que, posto o absolutismo, sempre teremos o barroco; as condições favoráveis ou desfavoráveis - cuja influência sobre uma forma artística poderiam provocar até a frustração completa - no caso da coojánção entre uma forma política e outra artística, ou seriam sobrepujadas pelas forças políticas, que, conscientes da realidade social global, não poderiam desprezá-las, ou obrigariam tal forma artística a desvirtuar-se a ponto de criar-se como entidade diversa daquela que qualificamos inicialmente, comprometendo-se então toda primitiva hipótese relaciona!. Parece-nos inútil lembrar que, sendo a forma política em questão exatamente o absolutismo, não há rigor demasiado em supô119
-lo desfeito ou pelo menos desfigurado desde que se amoldasse ou cedesse a condições ambientais que se opusessem a seus fins. Ademais, BaUet não hesitou -2m caracterizar o próprio barroco como uma forma capaz de dominar e superar obstáculos, nessa capacidade ;~n contrando seu traço essencial. Ora, desse modo, defront
A COROA E E SEUS SÚDITOS
Ainda mesmo tomando o absolutismo na acepção peculiar à história moderna, encontraremos ao menos três conotações diversas. Já há absolutismo no despotismo humanista renascentista; é o desejo de afastar quaisquer entraves à plena expansão do poder de mando que inspira o formal rompimento entre a ética e a política e, igualmente, entre esta e a teologia. Cresce, assim, um conceito de poder ilimitado, mas formulando-se como uma concepção de poder pessoal, inspiradora da arte maquiavélica do governo, a qual se exprime sobretudo por normas para o exercício da entidade es-
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tatal. o elemento "estado" vai ser o principal responsável pelo absolutismo pessoal da Renascença, pois tende ele, inegavelmente, para uma concepção de soberania nacional, muito embora essa só saiba definir-se personalizadamente. O humanismo político ateu e amoral deve, pois, ceder ao restabelecimento temporário mas rigoroso da doutrina teológica do poder legítimo, e o rompimento definitivo com o poder papal leva os novos teóricos a buscarem num direito natural, não raro leigo, os princípios de uma moral que substitua a das virtudes cristãs. Afinal, o despotismo esclarecido, mais comumente chamado de absolutismo, aparece quase que como uma fusão das duas versões anteriores. Tem traços humanistas, quer pelo aspecto cultural do enrique~imento da personalidade, quer pelo aspecto político da iluminação do chefe como princípio de governo. Mostra tendências e soberania nacional ainda bastante fortes'. No entanto, o neo-humanismo tende a opor limitações aos conceitos mais amplos: limitação ética ao arbítrio pessoal, imposto pelo direito natural afinal assente em bases sólidas e de todo livres de conexões com o poder papal; limitação da soberania nacional, devida a um direito das gentes que já estatui uma ordem para a paz e para a guerra; limitação ao próprio despotismo, graças a tímidas afirmativas que prenunciam alguns dos direitos da pessoa humana. Acreditamos necessário acrescentar, posto que certos teóricos do barroco a tanto aludem, que a contra-reforma se tingiu dessas matrizes absolutistas; permite-se interpretá-la como uma tentativa de espírito absolutista desde que, por via de uma restauração ética c teológica, visava igualmente uma restauração da hegemonia política do papado - no entanto, trata-se de interpretação fundada em mero paralelismo, que não se considerará como de grande rigor sistemático. Fechando o parênteses, digamos que o barroco deve referir-se, historicamente, ao segundo c, sobretudo, ao terceiro estágio do absolutismo, posto que não só a renascença conheceu seu estilo artístico próprio, mas ainda a revolução que criou o barroco pressupõe o desequilíbrio da primeira versão do absolutismo c, conscqüentemente, do estilo que a ela corresponderia : o
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Matriz de N. S. da Conceição de Catas Altas.
renascente. Ademais, se de fato há conexão entre o desenvolvimento mercantil, a expansão. ge.ográfica, .~.() mercantilismo e o absolutismo, como' -quer Balet, lembremo-nos que o último termo da seqüência é, naturalmente, o de mais lento desenvolvimento c sua plenitude: a rigor, representa a etapa final do ciclo. Eis porque só no despotismo esclarecido encontraremos bem claros e explícitos todos os caracteres de esplendor com que o próprio Balet O marca. A5 discrepâncias históricas de país para país e, igualmente, a pequena nitidez com que se estabelecem as distinções concretas entre as três versões sucessivas do absolutismo são as verdadeiras responsáveis pela aparente precocidade do barroco em relação ao absolutismo. Com isso, não queremos resol" ver um ponto menos claro da teoria de Balet, mesmo porque, no caso do barroco brasileiro, tais hesitações não tcriam tanto cabimento: o absolutismo português está em plena expansão quando se lcvantam as construções religiosas que estudamos e o despotismo esclarecido de Portugal personifica-se cm Pombal quando o ciclo do ouro vai alto. 4. Temos, pois, a existência de um padrão barroco específico em Minas Gerais. Nele patenteia-se a independência em relação ao modelo europeu. Por outra parte, na idéia de padrão já está implícita a de constância. Devemos pesquisar, portanto, as causas das originalidades específicas sem jamais perder de vista a constância do fenômeno. Para tanto, como aconselha a própria economia da pesquisa, deve-se examinar aquelas variações sociais diretamente ligadas aos monumentos religiosos que escolhemos como amostras. Dessas variações, mais depressa se patenteiam aos olhos do observador os processos de conflito e acomodação que, interessando os grupos sociais subjacentes, encontraram via de expressão nas próprias igrejas. Na zona pioneira, onde nos primeiros tempos a imigração era presumivelmente mais forte do que o desenvolvimento demográfico vegetativo e um marcado individualismo econômico assumia a função de principal força agregadora, a composição das comunidades ter-se-á feito com muita vivacidade e singeleza. Não surpreende, pois, que o atrito entre as várias camadas e grupos par123
ciais facilmente se expandisse, dada a ausência -de órgãos )~.uturais de controle e composição. Contudo, a expansão dos conflitos não significa, como veremos. decomposição ou esfacelamento da sociedade global, em cuja formação definitiva os próprios choques desempenham seu papel. O mais velho e o mais amplo desses conflitos não pode ser comprovado historicamente, pelo menos em toda a sua extensão. Colhemo-lo, em todos os elementos, na tradição oral, na qual já se mostram algumas contradições históricas. Segundo a legenda, poder-se-ia explicar a existência de duas freguesias confinantes Antonio Dias e Ouro Preto - pela oposição da facção emboaba à paulista, de cujas lutas há notícia trágica na. história nacional. Dessa maneira, estaríamos diante do conflito de duas sociedades globais, incomunicáveis, riváis, mas que geograficamente se tocavam e pela própria força e crescimento acabaram por interpenetrar-se espacialmente. No entanto, devemos aqui abrir espaço para os judiciosos reparos que nos foram feitos quando publicamos o material preparatório, pelo erudito historiador Salomão de Vasconcelos"', além dos choques iniciais, por ocasião da posse das terras, não consta qualquer traço preciso e comprovado por documento que permita dar como verídica a continuação da luta entre paulistas e emboabas sendo, no entanto, freqüentes e convincentes, indícios em contrário, posto que se misturavam portugueses, "paulistas" e homens de Ol)tra~ (.). "Achei curiosa a sua observação, em distinguir as duas frcj.!ucsias de Antonio Dias· e do Pilar. como fundações paulista. e emboabas. Parece que não há fundamento hirtórico para isso. A primeira foi, realmente, paulista na sua origem; mas scrá um tanto forçado considerar-se a do P ·ar ob'a dos ~mboabas. O de~envolvimento do povoado, conquistando a encosta do morro e espalhando-sc para a vertente oposta (Ouro Pri:to de hoje foi antes da prÓpri,1. exp:msão demográfica, impulsionada pelo advento do our'o e na qual se ach;1ram env!oVidos também os paulista~: descobridores e os forasteiros de toda costa. Além disso, reinóis c emboabas foram também fundadores do lado de Antonio Dias, bastando citar·sc Pascoal da Silva, o potentado principal do chamado "l'vlorro da Queimada" de cujos lavrados era o mais influente possuidor do tempo da sedição de 1720. Tem·se mais a considerar que os emboabas entre 1709 e 1711, depois de batidos em Ribci~ão do Carmo, dispersaram-se quase todos, com a Estirada de Nunes Viana, para os . seus domínios no médio S. Francisco. A rivalid:lde, que scmpre existiu entre as Irmandades dos primeiros tempos, cnda qual procurando suplantar a outra em conquistas; sendo outra r'azão o maior surto de progresso do bairro de Ouro Prêto sõbre o de Antônio Dias. Terão sido êsscs os dois fatores da rivalidale quo até hoje existe entre as duas freguesias, embora tcndo já cessado -as causas mas ficando os efeitos" - Salomão de Vasconcelos em carta de 15·10·1948.
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provemencias na sedição violentamente esmagada· por Assumar. Não há argumento a opor a tão justas ponderações, trazidas pelo desejo de colaborar e de corrigir. Mas, o próprio dr. Salomão de Vasconcelos faz-nos notar 'que a rivalidade entre as duas freguesias existiu como ainda hoje continua a existir, embora em grau acentuadamente baixo. Há uma competição, pois, e, do nosso ponto de vista. o fato da legenda avançar-se na história e "racionalizar" a pacífica competição atual por referência aos sangrentos choques dos começos do século XVIII, parece-nos um bom índice de intensidade de oposição entre os dois grupos. Podem ser apontadas causas, sobretudo econômicas, para explicar a constante rivalidade entre os núcleos, como claramente indica nosso espontâneo e precioso colaborador, mas não nos esqueçamos de que o elemento psico-coletivo, sobretudo quando consciente (embora não necessariamente objetivo) J tem uma importância que não se saberia subestimar. Trata-se de um índice seguro, que nos aponta a vivacidade e o caráter "político" do J.irocesso de atrito e, em evolução natural, acabará tal elemento por tornar-se senão causa, ao menos estímulo dos conflitos em suas formas brancas. Aliás, não devemos contar apcnas com esse sintoma c, à sua custa diagnosticar o que já passou. A evolução urbana, que acabou por soldar um ao outro os núcleos primitivos (por sua vez alimentados pelos arraiais dos' primeiros anos da exploração mineira), incumbiu-se de, ao mesmo tempo, registrar e conservar a velha contenda: os edifícios do governo reinol estabeleceram-se no espigão "neutro" que medeia entre Antônio Dias e Ouro Preto, e a diferença entre os dois povoados perpetuou-se na administração eclesiástica e na civil que, ainda hoje, os consideram freguesias e distritos diversos. Ao lado desses traços evidenciadores, outros '~n contramos que atestam a constante consciência da competição. Podemos - é claro - deixar de lado aquela interpretação que se refere a paulistas e emboabas, forma extrema da microideologia que acompanhou lutas e choques já encerrados. Na verdade, não precisamos ir tão longe) desde que, a julgar por várias evidê:ncias, a vida de cada núcleo se processou sempre no sentido de manter bem clara a quase-suficiência. No 125
tocante a vida religiosa, chegam a adquirir ritmo simétrico as realizações observáveis de uma parte e de outra; ainda admitindo que, em determinadas épocas, a devoção se polariza à volta de certos oragos e prefere certas irmandades, não podemos atribuir apenas a tais vogas a regularidade com que surgem repetidos, em Ouro Preto e Antônio Dias, os mesmos padroeiros e as mesmas ordens terceiras. Se à Virgem são dedicadas as duas matrizes, há duas igrejas das Mercês, os negros formaram duas irmandades do Rosário, e assim sucessivamente. São dois cultos distintos e simétricos, no seio do que hoje é uma mesma cidade. Em relação a essa dualidade deverão, pois, ser interpretados certos fatos de monta como seja o histórico, mas também lendário "Triunfo Eucarístico" com que se inaugurou a matriz do Pilar. . 8.
A SOCIEDADE COLONIAL E SUA ARTE
Há, pois, uma competição entre Antônio Dias c Ouro Preto. A competição, contudo, não se esgota nessa linha mestra, ramificando-se em múltiplos aspectos parciais. Desde já, no entanto, podemos observar que tal forma de competição pacífica que se exprimia em construções religiosas erguidas com evidente intuito de exibição da valia econômica e artística aproxima-se, bastante, das formas de concorrência de prestígio característicos das sociedades primitivas e que tanto preocuparam a Escola Sociológica Francesa em determinada época 1B • A teoria da dação, inspirada pelos,exemplos do potlatch observados em certos grupos primitivos, poderia encontrar nova extensão c inesperada "crsão concreta na concorrência das igrejas barrocas de Minas. Também ali, Jnlltatis l1l11tandis, pode-se observar uma marcada intenção suntuária nas várias demonstrações de poderio econômico que se renovam em diretas correspondências e não será demais lembrar que, como nas sociedades primitivas. estamos diante de uma competição pacífica entre segmentos da mesma sociedade global. Mais ainda, poderíamos adn~.itir novo paralelismo na medida em (18)
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em "Annce Soc.iologique'· n9 Xl.
que a luta pelo prestígio que se desenvolve entre os grupos - correspondendo mais especialmente ao pol/alch sirko - não excluiu demonstrações idênticas, mas desenrolando-se no interior dos grupos e visarido uma ~Iquisição individualizada de prestígio mais próxima do {latIatcll wagal - como se pode presumir do fato Jcsse ou daquele doador mais gencroso ter ficado com 'iCU nome inscrito na história do templo. Acrescentaremos apenas que, referindo-nos à teoria da dação, n5.o q~ueremos levá-la às extremadas hipóteses políticas de um Davy 19; bastamo-nos com anotar a extrema sem~ Ihança das linhas gerais de um e outro comportamento coletivo, mas sem trazer à noção do potlatcll para o campo das instituições de poder c mando, preferindo a interpretação de Mauss que nele viu uma forma "civil" de vida coletiva, um processo de aquisição de prestígio que não leva, necessariamente, ao empolgamento dos postos de governo. Esse paralelismo de atitudes coletivas e, sobretudo, de processos de expressão, não lucrarú com ser exagerado. ao menos enquanto lhe faltar a base de uma análise mais pertinente e r:1inuciosa. 5:=:. porventur
Sociolo~ic
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I.
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Sociolnl(i,·
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há cativos também há pobres. Esses buscam exprimir-se socialmente, tal qual as outras classes e estamentos: construindo igrejas. Aqui, a caracterização do conflito é bem mais vaga e indefinida, admitindo-se mesmo que a existência de igr,ejas pobres seja menos devida à autoconsciênca de determinadas camadas do que à projeção no templo da conclição econômica da população circunjacente, pois ainda restam vestígios de igrejas que mudaram de nível econômico, enriquecendo ou empobrecendo. Isso, no entanto, não mudà o ,caráter último dé! de força capaz de retratar' fielm'ente as capacidades ,naturais de um grupo ao qual a camada superior desejaria' negar todo e qualquer atributo. Assim, aparecem as irmandades de negros e seu ponto de honra é possuir uma igreja que possa ombrear-se com as igrejas construídas por iniciativa dos brancos. Não deixa de te" interesse notarmos que nas duas freguesias as irmandades são as mesmas, pois em Santa Ifigênia a invocação é de Nossa Senhora do Rosário. De novo, caberia se':'" referida a lenda, sem veleidades de transformá-Ia em fato histórico, pois a narrativa legendária sobre os feitos do Chico-rei e a construção da igreja financiada pelo pó de ouro que os pretos alforriados traziam em seus cabelos, poderá, ainda que tudo venha a desmenti-la: servir para significar a valorização coletiva da competição entre pretos e brancos: e que parece ter sido, como dizíamos, simples demonstração de capacidades reais de um grupo em condição inferior insuperável, de tal modo viria a incluir, segundo a representação coletiva, a superação dos próprios limites estamentais e a ascenção dos escravos à liberdade dos próprios senhores. Mas, a sociedade dividida em escravos e senhores, conhecia, por igual, as diferenciações trazidas, no grupo superior, pelas variações de posses. Se Sombart quis opor a sociedade em que ser poderoso significa, '~m conseqüência, possuir riqueza, àquela onde ser rico leva a ser poderoso, precisamos ter em mente que sociedades há em que essas distinções coexistem e interpenetram-se. Era assim a sociedade mineira que o ouro alimentou e na qual, portanto, a riqueza deveria engendrar a categoria social, mas na qual, em verdade, a própria natureza da exploração da terra solicitara e incrementara Ç) crescimento da escravaria. Por isso, em Ouro Preto, se 128
manifestação, porquanto se sente na construção dess<.ls igrejas pequeninas a vontade de um sprit de corps que poderia ter-se frustrado diante das vicissitudes materiais, mas que, não obstante, reluta e acaba por concretizar seu próprio prestígio, Daí, talvez, a quantidade aparentemente excessiva de igrejas numa cidade de proporções mépias e de população pouco densa. Uma vez delineados, embora ligeiramente, esses traços da organização soc:.al, desde logo podemos perceber duas tendências importantes no estilo das construções religiosas que se encontram na zona do ouro. Primeiro, evidencia-se que, em todas essas variações, .':} permanência do barroco é constante. Segundo, ainda mais notável, é que, t~ndo sido o barroco adotado come a forma estética adequada às competições intergrupais, perde ele a principal função, que sublinhavam seus teóricos europeus, de instrumento de expressão do absolutismo político. O barroco se estabelece como uma forma de referência à qual estão abertas todas as realizações particulares. Há, não cabe dúvida, ex'pressões específicas e' peculiares a cada monumento. A mais nítida de todas elas será talvez, do ponto de vista da decoração interna, a da matriz do Pilar onde se acentuam caracteres que noutras igrejas são menos definidas. Encontra-se ali uma maior severidade ortodoxa das formas, um barroco mais "canônico", A acentuação do elemento de riqueza intrínseca - o revestimento de ouro presente mesmo onde hoje o recobre a pintura a óleo - ainda mais frisante torna essa fidelidade ao esplendor do padrão europeu. No entanto, a proximidade de objetivos (Pilar é uma manifestação caracteristicamente santuária e ostentatória) não basta para ligar D monumento ao ciclo europeu, porquanto, em sua própria formalística e, sobretudo na adequação do decorativo ao constru,tivo, reaparece o padrão diferenciado que apontamos para distinguir o barroco do ciclo do ouro. Quando passamos à matriz de Antônio Dias, sua correspondente e oponente no pollatch entre as sociedades grupais, a realização, muito mais pobre, muito menos expansiva, apresenta-se, contudo, dentro da mesma for.ma: agora, sente-se a restrição dos recursos financeiros e, conseqüentemente, não é difícil perceber, entre outros traços, uma abundante colaboração do ob129
jcto não-erudito e talvez nem sequer artesão, mas o· ideal artístico mantém-se imperturbado. Por exemplo, as duas toscas pias de água benta da entrada, chegam :] ser caricatas em sua execução rude e primitivista, mas o que desejou o negro escravo que a talhou foi conseguir uma pia como as mais finas que Ouro Preto possui, até com aquele característico anjinho que é a marca distintiva da arte religiosa do ciclo do ouro. Manuel Bandeira no Guia, chama a atenção para duas cabeças de índio, quase ocultas aos lados do altar-mor; ainda aqui, o motivo brasileiro aparece assimilado pelo estilo geral da obra, naquela morfologia entre brasileira e européia que tão marcadamente aparece no barroco local. Também nos demais binômios de conflito encontraremos enriquecimento, empobrecimento, gigantismo, abundâncill, rudez, simplificação. Nunca, contudo, abandonamos o barroco. No entanto, esse bnrroco sempre encontra maneira de manter-se característico e especial. No caso das igrejas negras, seriam de esperar-se expressões mais próximas daquilo que se convencionou chamar de arte afróide. Mas não; o grupo escravo busca constantemente o mesmo ideal do grupo senhorial. E, quando podemos encontrar uma igreja de decoração e obras complementares de extrema pobreza - será o caso da Mercês de Cima - a execução artesanal baixa à condição humilde do que hoje chamamos em arte moderna, "primitivo". No entanto, esse desaparelhamento técnico total que, tão evidente e não pouco belo, surge nas esculturas sacras (peças de grande porte, sobretudo as das figurações para-religiosas), não perde de vista os preceitos firmados nos demais monumentos barrocos, ainda quando lança mão de recursos simplificadores extremos, qual seja o da moldura plana e apenas recortada nos bordos (retábulos e outras obras da nave e capela-mor). Ora, a imperturbável e familial relação barroco-absolutismo não poderá manter-se por muito tempo diante dessa dupla contradição que afa~l~ o barroco de Minas do absolutismo, mas dá à forma artística uma fixidez extrema s:- uma constante fidelidade a si mesmo. Dissemos mais acima que o absolutismo, que his[Qricumente corresponde ao barroco mineiro, é um ab130
solutismo de plena expansão, nitidamente caracterizado e de grande vigor, ao rhenos no que diz respeito ao estado em que se estabeleceu. Se a constância desse fator não corresponde à fixidez do barroco, posto que a versão do estilo que a ele melhor servia não se conserva, sendo mesmo contrariada, devemos, sem desprezar ] possível e provável influência do absolutismo reinol l1a produção artística brasileira, fixar nossa atenção em cutras causas. Não precisaremos desmentir desde já <.l relação entre a forma política c o estilo; não obstante, somos forçados a aceitá-la, ao menos provisoriamente, como simples correlação ou coexistência, procurando alargar o âmbito das cogitações causais. Nesse sentido, a primeira observação que se impõe é a das modificações substanciais que sofre o exercício do poder absoluto quando seu campo de ação é colonial. Parece óbvio que, nas colônias, a ação iluminista do absolutismo se empana, senão mesmo desaparece. 9.
O DESPOTISMO E A CULTURA
Variou, pois, nos meios e em intensidade, a <.iÇa0 do absolutismo lusitano, ao exercer-se, nos vários setores da vida colonial americana. As preocupações ·ja cultura espiritual - que, talvez, em exame mais aprofundado, possa aparecer como um "compromisso" do despotismo com forças intelectuais autônomas, chegando ao extremo do entendimento entre monarcas absolutos c enciclopedistas - não são necessárias nos territórios colonizados, sobretudo tal como o eram há :lois ou três séculos, posto que ali se deseja sobretudo estabelecer uma cultura material em sua acepção mais rudimentar. A mineração c a agricultura solicitam :J máximo da atenção do poder metropolitano e os dogmas mercantilistas ainda mais reforçaram tal estado de coisas postas que tendiam irrcrnissivclmente a considerar certas terras c populações como destinadas à simples produção material de cuja circulação se incumbiriam o~ núcleos nacionais soberanos c evoluídos. Acrescenta-se ao quadro o valor superior que quase misticamente passaram a atribuir ao ouro aqueles grandes impérios. cujas metrópoles pareciam menos aptas para a mallufaJ31
Igreja de São Francisco de Assis. São João deI Rei.
tura ou para o comércio distribuidor mais apurado eis o conceito de colonização que, grosso modo, ted inspirado o absolutismo português em suas terras conquistadas. Não surpreende que se formasse, paradoxalmente, um preconceito antiiluminista na administração colonial. Ainda que tais interpretações pareçam extremadas ou encontrem no Brasil-colônia contradições esporádicas, acreditamo-la, contudo, bastante condizente com a situação dominante na zona do ouro das Minas Gerais. O poder real ali aparecia, sobretudo e quase exclusivamente, com fins de vigilância e t2:.xação da atividade mineradora: se estudiosos daquele ciclo de civilização têm insistido na obsessão áurea dos homens comuns, não deixaremos de sublinhar, numa análise política, que a mesma obsessão dominava os prepostos da coroa. Junte-se a isso o indiferentismo metropolitano pela cultura espiritual da colônia tão bem traduzido pela proibição de prelos ou pela inexistência de escolas, lacuna de que se valeram, sempre que possível, os jesuítas. Parecerá porventura estranho, em tal quadro, que todo o império iluminista - então a universalizar-se e a tornar-se irreprimível mesmo quando contrariado por disposições oficiais - se divorciasse do absolutismo e se mostrasse, não raro, antiabsolutista, como por exemplo se estabelecerá pelo exame mais atento da função da cultura erudita na Inconfidência? Aludimos ao ilumi~ismo em geral para deixar bem claro nosso pensamento, mas está claro que dos termos genéricos não se afasta o caso particular do barroco, forma estética absolutista que sobreviria onde o poder político não cuidaria das formas mais simples da cultura. Em seus aspectos literários e filosóficos, o espírito iluminista encontrava, quando desamparado pela coroa, todos os recursos que podiam emprestar-lhe os bacharéi~ e clérigos formados na Europa. Mas a construção c, sobretudo, as artes plásticas complementares desconheciam tais escápulas: não havia, ao 'que parece, comunicação de padrões e quadros profissionais entre a metrópole e a colônia, no que se refere ai-ais atividades. O processo de acomodação far-se-ia em outros termos. Ora,. o poder real, mesmo no auge do desp~ti~lO. 133
encontrou limites naturais não apenas na natureza física, que lhes impunha fronteiras geográficas, ou no obstáculo de outros núcleos políticos que traçavam linhas de confinamento entre os reinos, mas conhecem ainda óbices na natureza social que lhes restringiam a ação. Aquilo que os constitucionalistas franceses acham dos "corpos intermediários" teve um grande papel na atenuação do mando ilimitado dos monarcas e também na acomodação entre seu arbítrio e os interesses dos súditos. A história do absolutismo não é apenas o registro duma infinda liberdade do governante, mas também uma série de conquistas das formações políticas espontâneas que se defrontavam, e não raro vantajosamente. com os senhores supremos. No que respeita à Europa, é por demais conhecido o papel das corporações e das comunas~ entre nós, o papel paralelo desempenhado pelas ordens terceiras encontrou seu brilhante estudioso no sr. João Camilo de Oliveira Torrcs20• Essas irmandades - cuja existência não exclui a presença e vitalidade das corporações, tão argutamente documentada pelos estudos do dr. Salomão de Vasconcelos 21 acabaram por assumir inteiro domínio sobre as iniciativas de construções religiosas. Não há dúvida quanto à colaboração financeira e a supervisão de riscos e projetos oferecidos pelo poder real português que, a cada passo, é consultado ou solicitado pelos promotores da construção de uma igreja. Contudo, a iniciativa, a consecução da pClfte privada do financiamento, 11 solicitação c administração da parte oficial e, sobretudo, o trato direto c a supervisão do grupo artesannl (cujos membros freqüentemente eram, eles próprios, irmãos da ordem) constituíam o largo e transcendente campo dc ação da ordem. Não queremos insistir sobre o apuramento cultural que possibilitava essa aproximação dos possuidores de certos conhecimentos aos quais não '~ra estranha a erudição de alguns letrados de proveniência européia. O processo educativo atípico da reciprocidade de opiniões e interco~unicação de conhecimentos não (20) João Camilo de OUVIHAA TOARES. "O Homem c n Montanha". Belo Hori7.onle. Cultura Brasileiro. ... 1944. (21) em Rel'isra do Sent/ço Patrimônio. eit.. ne;> 4. p. 331 c s.<;.
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só deve ter existido como por certo influiu ponderavelmente na criação artística. Mas. ainda fazendo abstração dele, teremos de atentar os benefícios que daí advieram para a cultura artesanal em sentido estrito. Em outra parte dessas notas, assinalamos o reduzido número de artistas identificados e, por presunção, dos não identificados que concorreram na ereção dos monumentos da zona do ouro. Dissemos, então. que essa concentração numérica apenas poderia favorecer e mesmo estimular a fixação de novas regras e criações porventura descobertas no interior do grupo. Agora, compreendemos que um segundo fator influiu poderosamente no mesmo sentido, com a ação das ordens e sua soberania no campo da construção religiosa, a originalidade conseguiu o único concorrente que poderia anulá-la ,~ que era a imposição dos padrões estéticos da coroa. Inegavelmente a vontade real exprimiu-se clara e estampou-se na feição de muito monumento da zona do ouro; no entanto. a condi.ção colonial, a existência dos corpos intermediários e o poder criador dos artesãos nativos abriu margem de liberdade verdadeiramente notável. Poderemos, afinal, ligar tais observações àquelas que, mais acima, fizemos acerca da constância do barroca em conexão com as competições de prestígio de que, em geral, resultou a construção das igrejas. Logo percebemos que as irmandades deverão ser apontadas como responsáveis pela coesão dos grupos parciais que entraram em competição. representando-os por delegação tácita ou, mesmo, expressa desde que naturalmente as lideranças individuais dos grupos subjacentes conglomeravam-se e harmonizavam-se no interior das ordens terceiras. A entidade exponencial social confunde-se. pois, com o grupo regulador da atividade artística, :.ienão com o próprio grupo criador. E, deste modo, somos levados a concluir que o barroco. na zona do ouro, passou a servir a finalidades antiabsolutistas, pois a ação dos corpos intermediários sempre foi o de opor-se ao ·absolutismo. senão no campo estritamente político, ao menos no social. Assim ajustado ao quadro brasileiro o problema central do absolutismo em suas relações com o barroco, 135
poderemos assentar o caminho final que deverão seguir as pesquisas. Já aludimos, ao menos uma vez, à necessidade de estudar-se o barroco mineiro em descrição evolutiva que, delimitando-o e caracterizando-o historicamente, consiga levantar as verdadeiras relações r.:ausais que provocaram manifestações tão originais. O~ problemas que até aqui levantamos, pouco mais valerão, conseqüentemente, do que simples sugestões destinadas ao encaminhamento dessa pesquisa. O mais só poderá sair da verificação positiva dos fatos. Há um ponto de partida bastante claro: o jesuítico, que jó mereceu uma análise exaustiva e pertinente,22 em que se levantaram seus traços característicos de maneir::l precisa e convincente. A partir daí, portanto, começará o estudioso do barroco mineiro_ Os grandes passos do inquérito evidenciam-se por si mesmos, como vimos, e podem encontrar sólido fundamento na análise da repercussão dos fatores locais da formação de um estilo senão novo, ao menos peculiar ao Brasil. A subordinação da construção a um critério severamente "funcionalista", a simplificação das obras complementares e a restrição do decorativo ao ambiente interior, a conservação do caráter essencial da obra e de sua destinação necessária mesmo quando há indícios de maior abundância de recursos financeiros e técnicos - eis alguns dos pontos que poderão esclarecer-se pelo simples confronto entre os dois passos da I.:onstrução religiosa no centro-sul do País, No entanto, cremos que o cerne dessas questões encontrar-se-á, para a maioria dos casos, no fenômeno importantíssimo da adequação das novas técnicas. A passagem pela taipa, ainda que e~,se material não se tenha preservado posteriormente sendo substituído pela pedra-c-cal, podení fornecer preciosas indicações acerca, por exemplo, da feição quadrangular e retilínea dos grandes corpos ::la igreja, sobretudo quando sabemos que, no mesmo local, uma igreja de pedra-e-cal substituiu outra de taipa ,~ adobe, ou então que há monumentos resultantes de hibridação de processos construtivos, ou ainda que algumas amostras mais velhas sejam inteiramente de barro. (22) Lúcio COSTA. "A Arquitetura tlos Jesuítas no Brasil". Rl'I-üta do Sl'rl·iço do Património, cit., 5, 1941.
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ln:
Passando do campo geral para um aspecto particular da construção, não há porque não se fazer um levantamento cuidadoso das técnicas de cantaria que o emprego de rochas abundantes no local - o itaculomito, tão louvado corno cor e textura, funciona como elemento construtivo central - senão exatamente no que diz respeito ao seu aparelhamento, que não terá exigido grandes improvisações, ao menos na repercussão que possa tcr trazido ao enriquecimento ou simplificação das obras decorativas complementares ou, ainda, às repercussões eventuais que tenha sofrido o aspecto ergológico da construção que depende diretamente do transporte mais ou menos fácil dos materiais. Afinal, uma última indicação apontará a transformação da técnica da lavra. decorativa e cscultórica da pedra-sabão, material local cujas qualidades físicas e cujas possibilidades artísticas discrepam fartamente dos caracteres comuns aos outros minerais comumente empregados para tal fim, exigindo pois uma total transformação dos meios práticos a fim de alcançarem-se resultados satisfatórios, Acrescenta-se o problema concorrente de ter sido a pedra-sabão objeto dos esforços inovadores de artesãos originalmente adestrados para a lavra torêutica, e teremos um conjunto de questões relevantes não apenas para a história das técnicas artísticas, mas sobretudo para a compreensão definitiva da morfologia do barroco mineiro. Não se creia, contudo, que a referência à análise das técnicas aqui surja com objetivo acadêmico, visando tão só esclarecer pontos laterais da nossa questão centraI. Pelo contrário, acreditamos que tais verificações possibilitarão melhor inteligência daquilo que nos sen· timos tentados a chamar de Ulibertaçâo" do barroco da zona do ouro. De fato, as inovações técnicas, surgidas das imposições ou possibilidades locais, poderão levar-nos, por via concreta, àquelas mesmas conclusões que a análise macrossociológica e supra-estrutural sugerem. Realmente, as novas técnicas ofereciam possibilidade de realizações que, acompanhando o espírito da ortodoxia barroca, poderiam ainda mais ampliá-lo. 137
lO.
EVOLUI O ESTILO
Na zona do ouro, o barroco europeu poderia ter-se repetido e proliferado. Não lhe faltariam nem materiais adequados, ncm técnicas adaptadas, nem artífices que o conhecessem e se mostrassem aptos à sua produção. Há, nesse sentido, claros indícios. Aquele virtuosismo que se deu como caráter essencial do barroco europeu poderia ser aqui explorado com resultados superiores, vê-se isso, por exemplo, nas duas sacadas de pedra-sabão do sobrado residencial da rua Direita de Mariana: são obras-primas de lavra que, desmentindo barrocamente o material, transformam a pedra inteiriça em autêntica renda de perfurações e pequenas porções esculpidas. Puríssimo barroco europeu perceber-se--á na lavra em madeira, gratuita e decorativa ,que, nos altares da matriz de Ouro Branco, desmentem em avançados docéis circulares a linha de sustentação funcional do grande móvel. Na capela-mor da Sé de Mariana há aqueles grandes capitéis de madeira lavrada que, :.mstentando a cúpula, atacam-se com absurda gratuidade aos muros lisos de taipa, sem uma pilastra a suportá-los ou sequer um atlante que os justifique - ainda o espírito do barroco. E, afinal, é o próprio barroco europeu, sem disfarces ou adaptações, que encontramos em . certas imagens sacras de fatura mais fina, geralmente de roca, que têm de humano todo o aspecto, algo inquietante por causa da roupagem e dos cabelos que são naturais ou dos olhos de vidro, dentes de porcelana ,~ tez pintada que figuram com extraordinária semelhança o natural. Para terminar, chamaremos apenas a atenção para o fato de serem as pinturas dos tetos, por fatores ainda a serem esclarecidos - deficiências artesanais? - exatamente as mesmas que nos apontam como características das construções religiosas jesuíticas ou barrocas da Europa. Por que, pois, o barroco europeu não evoluiu e fortificou-se à custa das técnicas brasileiras? Essas técnicas e também os artesãos capazes de servir à tradição importada, possuíam possibilidades artisticamente ambivalentes. Podiam, como acabamos de ver, alcançar o barroco europeu. Preferiram, contudo, subir mais alto. 138
Na obra de auge, que aqUI i:1dividuaremos em São Francisco de Assis, nota-se o desejo d~ro e explícito de criar coisa diferente. Em São Francisco, certas obras suplementares, cuja confecção independeu da construçao, como a pintura do teto da nave e as imagens antigas filiam-se direta e declaradamente às fontes européias. No entanto, à desenvolvimento do barroco num sentido novo, perceptível à inspeção visual da morfologia, resiste à análise mais minudente e objetiva. Como, no material preparatório dessas notas, castigamos o leitor com o exame vagaroso da igreja, conceder-nos-emos a liberdade de restringir-nos às conclusões. Nesse momento, há a notar-se, em primeiro lugar, uma completa adequação dos materiais àquelas finalidades que COfrespondem aos seus caracteres intrínsecos e, mesmc depois de observarmos essa aplicação exata, no que diz respeito à construção (na qual, aliás, as improvisações arriscadas são muito mais difíceis), compreendemos que a exatidão técnica desceu aos pormenores menos exigentes, pois o material funciona não apenas segundo normas arquitetônicas, senão também segundo as regras da colorística e da plástica. Na fachada, a argamassa de revestimento com acabamento a cal, o itaculomito e a pedra-sabão encontram-se numa composição que não se saberia corrigir plasticamente ou condenar pelas leis da composição. No entanto, não será só no açerto artístico da criação que, de nosso ponto de vista, São Francisco de Assis apresenta caracteres distintivos; de fato, o sábio emprego dos materiais c seu lratamente segundo a mais rigorosa ortodoxia plástica, acompanha-se de um traço que constitui verdadeiro caso especial no complexo do barroco: a reintegração do decorativo na sua função específica. Em São Francisco há uma maior barroquização da fachada, o que, em grande parte, se explica pelo próprio sítio em que se plantou. Não obstante, a movimentação da fachada não se dirige aos efeitos teatrais nem permite que, para tal fim, a decoração domine o conjunto. Pelo contrário, o que se nota é que a arquitetura é a ...rte condutora, enquanto o decorativo bastou-se com aparecer como arte complemt;ntar. Nem por isso. entretanto, se creia que o elemento decorativo baixou à
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Igreja N. S. do Carmo de Sabarú.
Igreja de São Francisco de Assis. São Joflo deI Rei.
condição de simples embelezamento aposto posteriormente à construção e concebido como mero adorno de eventual utilização. As linhas construtivas são, elas próprias, decorativas e a decoração jamais desmente ou força a arquitetura (cornija-frontão-medalhão). As pilastras (torres e projeção anterior da frontaria) são peças de sustentação dos muros e obras de decoração. O pórtico funde o funcional (ombreira e degraus) e o ornato (escudo e anjos) num só e mesmo estilo. E, no entanto, tudo se enquadra já numa fisionomia nitidamente barroca, dominfmcia das curvas - agitação dos muros - apelo às volutas e interrupções aparentemente gratuitas - organização geral a sugerir a agitação infinita pela ausência de elementos enquadradores definidos), já num esquema que, no Brasil, se mantém por toda uma longa linha de evolução das igrejas (duas torres laterais e uma fachada '. com acabamento superior triangular). N'ão se fale, pois, num paroxismo do barroco em desintegração, nem nos ademanes e arrebiques do rococó. Não estamos diante de uma amostra de decadência, mas do fruto melhor de uma fase de criação plena e autêntica. Essa linha de compreensão do monumento, insinuada já pela fachada, pode ser acompanhada em toda obra, desde que se ponham de lado alguns resultados intervenientes e contrários ao espírito do conjunto (pobreza e inacabamento das obras complementares da nave, pintura do teto da nave etc.). Antes de mais nada, acentuemos que a projeção frontal do vestíbulo, qile tão harmônica ao ajustar-se às torres no exterior da construção, possibilita, no interior, graciosíssima solução do vestíbulo e do coro. Além disso, a mesma função estética atribuída às torres - que são o elemento transferidor, sem linhas de delimitação definida, colocados entre a frente e os lados _da igreja - repete-se nos púlpitos que representam a passagem entre nave e capela-mor. Esse traço ainda mais se acentua na vaga repetição de certas linhas dominantes na saliência da fachada e aproveitadas na orientação geral dos volumes do altar-mor. Afinal, a decoração da capela-mor, que certamente se pode dar por completa e acabada, apresenta um dos mais finos exemplos de adequação .: 141
ordenamento de várias artes segundo um principIo COmum; essa regência superior que leva a seu lugar exato a escultura de pleno culto, a lavra decorativa, as estátuas esbatidas numa das dimensões, o relevo encarnado, a pintura policroma e a imitação monocroma do azulejo, fornece-nos a comprovação final de que o barroco brasileiro buscava uma organização, ou melhor, uma ordem própria. Encontrou-a, embora para tanto se afastasse, em muitos pontos, da ordem que regeu o estilo na Europa. Desta forma, também na obra concreta, isto é, no fenômeno de realização, patenteia-se aquele mesmo barroco original que víramos apontado nas discrepâncias entre os monumentos locais e os modelos estrangeiros, ou seja, nas manifestações de diferenciação. O barroco de Minas busca uma ordem própria, dissemos, e não custará indicar alguns dos elementos normativos por ela estabelecidos: a completa adequação dos materiais à finalidade decorrente de sua natureza intrínseca. possibilitando a utilização em função certa de suas ca~ racterísticas construtivas e plásticas; a rigorosa adequação de cada arte ao seu âmbito estrito de criação; a conjunção das diversas artes visando um fim comum sem a dominação tirânica de uma delas ou de seus efeitos especiais; e, até) a organização, segundo princípios racionais, das várias manifestações artísticas presentes nas grandes obras compósitas. Dir-se-á, talvez, que princípios tão gerais são fundamentais a toda e qualquer organização artística. Não é certo. Em primeiro lugar, observemos que o barroco, por desmenti-los, foi por muito tempo considerado um estilo confuso e grosseiro, não raro acusado de decadentismo e ignorância. Depois, quando estudos mais aprofundados revelaram sua coerência íntima, não se deixou de assinalar que a confusão e grosseria aparentes eram apenas resultantes da má observação de certos efeitos desejados e meticulosamente calculados que levavam à obtenção de formas gratuitas, agitadas em movimento sem fim e que violentavam a natureza dos materiais e as possibilidades das técnicas. Ora, o barroco de Minas marcha em sentido inverso. Ademais, notemos que o ordenamento racional e o aproveitamento dos materiais segundo sua natureza, 142
e das técnicas segundo sua índole espedfica não são constantes na história da arte. Largos períodos de qesordenada liberdade alternam-se com im:tantes de rigorismo lúcido, mesmo porque não se atribuirá à natureza essencial da arte a exatidão objetiva e a especulação racional. Por isso, quando tais elementos repontam, claros e desejados, estão a indicar uma orientação nova e diferente, sobretudo quando tnl acontece no interior de uma época marcada por outro estilo, outras intenções e outra formalística. :E o que acontece com o barroco brasileiro. Se, afinal, quis"ec-se uma prova extrema do que deixamos assinalado em largos traços, poder-se-á obtê-la, em futuros estudos, também pelo estudo de obras da decadência dn 1)arroco mineiro. Alguns monumentos de construção lenta, onde as obras maiores iniciaram-se dentro da ordem especial estabelecida pelo barroquismo da zona do ouro, exibem, sobretudo na decoração interna, uma tentativa de reservar elementos formais consagrados a fim de com eles adornar uma forma geral diferente e, ao mesmo tempo, não desmentir com demasiada violência o espírito do conjunto até então construído. Isso, parece-nos, pode-se encontrar nos altares de S. Francisco de Paula ou na lavra do revestimento do arco-cruzeiro dessa mesma igreja, cujas obras complementares interiores exibem já uma marcada intenção oeo-clássica, malgrado os vestígios barrocos de florões e volutas. Mas. torna-se em tais casos evidente a involução do estilo, a decadência do barroco, que tenta francamente tornar-se simples subsidiário, mera aplicação aposta, recurso decorativo no pior sentido do termo. Nem sequer a forma de decadência do barroco europeu - o rococ6 - se encontra para marcar a agonia do barroco de Minas, muito embora por vezes haja inclusões rococós, de evidente importação, em alguns monumentos das fases iniciais da evolução do estilo local. O barroco brasileiro mostra-se diferente até ao morrer. 11.
CONCLUSOES Partindo de uma hipótese, tomada aliás a outrem. 143
segundo a qual o barroco, estilo artístico de feição própria e oposta à do renascentista, deste derivando-se por uma linha de evolução que propôs à criação de novos ideais, submeteu-se ao espírito geral da sociedade a que corrcspondia, atendendo afinal à função de expressão estética do absolutismo político. Examinando - e não mais repetiremos que nossa análise é simplesmente preparatória - o caso concreto das construções religiosas da zona da mineração do ouro em Minas Gerais, chegamos a uma conclusão à qual não falta certo acento inesperado: encontramos a permanência do barroco e, por certo, a constante presença do absolutismo português, mas, entre um e outro não mais a mesma forçada relação que apontavam os teóricos europeus, pois, se o absolutismo ainda aparece como um dos motivos da preservação do estilo, este não s6 deve sua vida ainda a outros fatores, senão também adquire feições nitidamente antiabsolutistas. Como causas prováveis dessa notável variação, podemos apontar certos fatores de ordem social responsáveis pelo estabelecimento e desenvolvimento de instituições intermediárias entre a política e a organização social espontânea, que conseguiram ressumar competições naturais subjacentes e quando orientaram e conduziram manifestações artísticas, exprimiram tendências e representações coletivas, correspondendo antes aos grupos locais do que às necessidades do poder político. Tais fatores possibilitaram a fixação de uma nova estética do barroco. Em termos estéticos, e por referên'cia aos esquemas teóricos traçados, para patentear a relação entre o barroco e o absolutismo, a nova ordem pode ser caracterizada como contrariando certos atributos da primeira versão do barroco e conservando algumas' delas que completa com novos elementos. No primeiro caso, salta aos olhos o repúdio, pelo barroco mineiro, da contraposição da arte à naturalidade dos objetos. isto é t a recusa a valer-se do virtuosismo e da ausência de naturalidade para criar a semelhança enganosa da natureza ou para simplesmente contrariar a natureza. O esplendor. isto é, a pompa em si mesma, a suntuosidade grandiosa e brilhante que outra finalidade 144
não tem senão ofuscar pelo espetáculo do poder, também desaparece, muito embora o barroco mineiro não abra mão do direito de fulgir em suas belezas e lev<.í-las ao máximo, mas, aqui, impõe-se distinguir, porquanto nada mais distante do esplendor da majestade do que o esplendor artístico: enquanto um é a expressão de pretensas possibilidades inatas e inerentes à própria condição superior, outro exprime uma conquista criadora que o homem consegue pela ação e não pelo seu estado. Assim, abandonando dois dos caracteres do primeiro barroco, a arte da zona do ouro apega-se ao elemento mais -evidente, de caráter formal mais marcado e, também, menos regrado: o movimento sem fim, a agitação das formas. E, explorando uma única das possibilidades das técnicas e dos materiais, isto é, duma arte oposta às arbitrariedades do virtuosismo e contrária aos abusos contra a natureza das coisas. Há, no barroco de Minas, uma reposição de valores, muito embo ra tecnicamente o grupo artesanal que o produziu estivesse habilitado a repetir os estratagemas da forma européia. O abandono voluntário de certas expressões do barroco europeu levanta o problema de aparente contradição interna da nova ordem estética: de fato, se o movimento sem fim e a agitação das formas continuavam interessando o artista, por que haveria ele de restringir tal recurso pelo cultivo de valores menos amplos, como seja o da recoordenação das artes e técnicas? Isso faz-nos voltar aos termos gerais do problema. Com efeito, já sabemos que o espírito do tempo em que se originou o barroco agasalha duas tendências: que se completavam, embora fossem contraditórias- o absolutismo e o iluminismo - , a ponto de possibilitar sua temporária missão no despotismo iluminadó:-' Ora, o barroco, que tão insistentemente se tem ligado às dominantes espirituais de sua época, também deverá estar ligado às duas tendências políticas e não apenas a uma delas. :f:, a um só tempo, absolutista e iluminista. A tese de ligação indestrutível do barroco ao absolutismo foi concebida, não nos esqueçamos, por teóricos que estudaram manifestações relativas a um 145
ciclo cultural onde o absolutismo, de certo tipo, constante e onipresente, pôde monopolizar o barroco, não só porque sua ação se fazia sentir de maneira direta c totalizadora, mas ainda porque os corpos intermediários - aos quais se atribuirá o papel de liberadores, por exemplo, das atividades econômicas - não interferiram na criação artística. Mas, desde que o absolutismo refreie ou limite sua ação - e isso deve ser válido em muitos outros casos, além do focalizado nestas notas - o barroco, sem desaparecer e sem desmentir o espírito do tempo, enquadra-se noutra função que não é menos sua - serve ao iluminismo. Não se creia que haja contradição entre as arbitrariedades formais do barroco e o rigor do racionalismo clássico. Pelo contrário, o barroco oferecia à tendência racional em plena evolução uma via de expressão sensível e, se nela se patenteava uma liberdade irrestrita, claro está que assim apenas se reatava uma tradição humanista a que não deixava de aparentar-se o iluminismo: o homem da Renascença, que se acreditava capaz de transformar-se em anjo ou em besta, em bruto ou em deus, ressurgia e tinha a seus pés todas as franquias da criação artÍstica. Eis como aquela "tendência ao infinito", que se desejou reservar para caracterizar o absolutismo, revela-se, agora, como distintiva do mais puro iluminismo. E não se torna bastante coerente o repúdio às formas extremas do virtuosismo e da aberração antinatuTa c, mais, o abandono do esplendor pomposo, desde que não mais se deseja a dcmonstração do poderio infindo da potência política, mas a expressão sincera e laboriosamente conquistada dos poderes infinitos da inteligência e da sensibilidade do homem? No caso brasileiro, o absolutismo não-mercantilista e de pura exploração fiscal. quando não direta, dos recursos naturais, descurara do cultivo espiritual, abrindo campo para um barroco nascido de fontes funcionalmente antiabsolutistas, senão mesmo voluntariamente antiabsolutistas, pois não se despreza nunca a influência de um iluminismo Iibertário, que, embora indeciso e até confuso. deixou traços evidentes de sua existência. O barroco libertado de sujeição ao poder político, expande·sc. Na verdade, esteticamente, essa 146
expansão era mais do que necessana desde que os padrões barrocos, ao atingirem o Brasil, contavam já séculos de vida e encontravam-se cristalizados. No entanto, ao invés da renovação fazer-se pelo abandono dos padrões exaustos, repetindo o caminho dos velhos "maneiristas") firmou-se antes pelo. aprofundamento desses padrões até alcançar-lhes a última essência daí o reencontro da ordem natural das técnicas, da ordem natural das artes, da ordem natural da própria marcha do espírito pelos caminhos da ilustração, enfim do espírito duma sociedade que vivia voltada para a pesquisa incansável da grande ordem natural. Se isso acontece, no Brasil, ainda com um pequeno atraso em' relação à Europa, lembremo-nos que o vigor do barroco conseguira já encurtar sensivelmente a discrepância histórica entre os dois continentes. Nos fins do século XVIII, importávamos uma arte quinhentista. No começo do século seguinte, tínhamos integrado os princípios de um movimento revolucionário que, mesmo na Europa, estava longe de encerrar-se. No entanto, antes que enveredemos por cogitações marginais, devemos voltar nossa atenção para as conclusões de ordem teórica que nosso estudo permite indicar, pois outro objetivo não temos senão o de tentar um ensaio de problemática e metodologia. Nesse sentido, a primeira observação dirá dos inconvenientes de não se manterem distinções nítidas acerca da própria natureza dos fenômenos em estudo, porquanto infelizmente ainda perduram, em tal tipo de análise, a indistinção entre o político e o social e, não menos, entre o histórico e o sociológico. Daí decorrem classificações e, conseqüentemente, definições que deturpam a própria natureza do objeto de estudo. Na interpretação das relações entre o barroco e o absolutismo, presenciamos aberrações conceituais decorrentes, exclusivamente, da imprecisão que' aqui condenamos. Assim, vemos atribuir-se função política a um fenômeno que, originando-se natural e espontaneamente da ordem social subjacente, nem por adquirir eventuais funções políticas, deverá ser considerado como englobando essencialmente tais atributos contingentes dessa maneira, ao barroco emprestaram-se caracteres . 147
Matriz de N. S. do Pilar. Ouro Preto.
notativa exigida em qualquer generalizaçiío - aconte· cc que, nessa indefinição. se subestimaram as possíveis variações históricas do absolutismo, desmentindo-se qualquer interpretação em tal conceito fundada .desde que encontremos a forma política em posição diversa daquela em que originalmente foi examinada. Nossa análise, na verdade, pode ser considerada como um simples reajuste desses dados que, a rigor, devp.riam estar claramente definidos antes de qualquer te:ltativa teórica de maior fôlego. Se considerarmos a vida social como fenômeno espontâneo, elIlbora complexo, que ao mesmo tempo se completa e se opõe à ordem política cuja existência, muito lembora condicionada pela existência do social, depende, por igual, duma tomada de consciência da vida em grupo e de seus problemas e de um intento de ação visando a modificação ou conservação da ordem espontânea, haveremos de entre ambas abrir espaço para toda uma ampla e variada série de produtos espirituais que, de simples representação coletiva ao completo sistema de filosofia social, encarnem os vários passos de tomada de consciência da sociedade por si mesma. Não cabem, aí, categorias rígidas, pois são a própria fluidez e transformação contínua desses produtos espirituais que mantêm a unidade essencial entre o social e o político. No entanto, uma interpretação exclusivista que rejeite um desses produtos a apenas ·um dos dois planos principais da realidade social, arriscase a deformar toda a compreensão do conjunto. Isso presenciamos no caso das teorias sobre a relação entre o barroco e o absolutismo.
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o barroco, em si mesmo, não passou de um valor estético, de uma padrão artístico. Medeiou, portanto, entre o social - pelo que tinha de produto espontâneo do grupo - e o político - pelo que representou para a autoconsciência do grupo c, conseqüentemente, para uma ui terior aplicação concreta na ação conservadora ou modificadora. Por esta simples razão, no momento em que se repelem as velhas interpretações, que implicitamente o relegaram à condição de pura excreção social, impõe-se evitar o exagero oposto de identificá-lo a uma única forma política. A ser identificado com alguma coisa, o barroco confundir-se-á com aquilo a que vulgarmente, se chamou de "espírito do tempo" e que, em termos mais objetivos, não passa do próprio caráter global dominante na cultura em que nasceu e se desenvolveu. Se, temporariamente, caiu sob a influência do absolutismo e mostrou-se capacitado a atender a tal função, essa concreção histórica não exclui a possibilidade de outras combinações. E, de fato, isso se observou no caso concreto do barroco do ciclo do ouro, no Brasil. Se, afinal, quiséssemos resumir a conclusão teórica destas notas c, ao mesmo tempo, revisar todas as indicações de fato, diríamos de maneira muito breve mas não menos verdadeira que, se o barroco europeu foi a expressão do despotismo dominador, o barroco brasileiro o foi da liberdade criadora.
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BARROCO EM MINAS GERAIS
o estudo do barroco mineiro, em sua fase atual, ainda não permite o recurso às sínteses compendiadoras, tão apetecíveis ao gosto acadêmico e tão cômodas para os que devem respeitar os exigentes limites de uma conferência. Farto, muito farto mesmo, é () levantamento das peças, dos monumentos e da documentação que, com admirável severidade c plena eficiência, vem praticando quase sozinha a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, numa irrecusável demonstração de que certas tarefas intelectuais só podem realizar-se satisfatoriamente se entregues a uma equipe capaz e submetida a direção competente. Menos abun151
dante. porém sugestiva e proveitosa. é a contribuição de certos estudiosos isolados que. conhecendo a sábia continência do organismo oficial em matéria interpretâtiva. buscam desenvolver a pesquisa das significações. Não obstante, na medida em que o recenseamento das peças e documentos abre, a cada nova descoberta, todo um horizonte de perspectivas inéditas, e também por ser indisfarçável a desconcatenação dos trabalhos interpretativos feitos ao sabor das preferências pessoais, :devemos reconhecer não haver ainda chegado o mom~nto de uma verdadeira mise-au-point. . Essa profissão de modéstia valer-nas-á, ao menÇJs, para fixar um ângulo de análise que, embora limitado e provavelmente menos sedutor, pode servir à mais profunda penetração desse fenômeno que, sem dúvida, é dos mais significativos c, ao meu ver, o mais belo de toda a história cultural do Brasil. Se é cedo para panoramas gerais e sínteses abrangedoras, por que não nos determos, por um instante, na consideração do barroco mineiro como problema e tão só como problema? Não sc trata de resolvê-lo desde já, mas apenas de prQCurar enunciá-lo em .proposição clara que consiga supcrar os unilateralismos, a cspeciosidade de tcrmos e, até, o facciosismo sentimental em que, com freqüência, o encontramos envolto. Para tanto, devemos evitar a tentação de uma pretensiosa revisão crítica, aliás impraticável e in6cua no momento presente, pelos motivos já apontados, como tampouco seria tolerável a vaidade de adotar a autocrítica como ponto de partida. Nesse momento de convívio intelectual, poderíamos partir juntos para, se~ preconceitos ou prenoções, reexaminarmos mais uma vez a questão, animados tão s6 do desejo de me-
lhor compreendê-Ia e de mais exatamente formulá-Ia. Com tão singelo itinerário, começaríamos por algumas considerações sobre o próprio conceito de' barroco. Tantas versões interpretativas inspirou o termo que, se outra valia não tiveram, as teorias do barroco serviram ao menos para deixar patente que essa especial expressão artística conseguiu . fixar, por intermédio de um complexo formal característico e singular, O conteúdo espiritual de determinada cultura. Não obstante, empenhados em assinalar peculiaridades expressivas que certos elementos institucionais ou certos valores coletivos exigiram das formas barrcx:as, os teóricos quase 152
sempre se esqueceram de observar como essas mesmas formas, além de atender a tais solicitações, ultrapassavam-nas, nitidamente, desde que constituíra.m expr~ssão global do complexo cultural em causa, cUJa totalIdade inutilmente se tentaria identificar com qualquer de seus elementos componentes ou, mesmo, com a sua soma. Muito se falou, em verdade, de contra-reforma. de absolutismo, de anticlassicismo, para indicar como a forma barroca se mostrou capaz de exprimir plenamente o êxtase místico. o poder incontrastado. o movimento infinito, não raro se denunciando. entre forma expressiva e conteúdo expresso, uma relação de efeito e causa. Depois, admitiu-se que os grupos sociais. inicialmente responsabilizados pela barroquização da arte, não dispunham da extensão conceitual e histórica requerida pela ampla [unção causal que se lhes atribuira. Aludindo-se às cortes católicas e aos países protestantes, ao maneirismo e à exacerbação racionalista. ao jesuitismo e ao livre-exame. ao naturalismo cientifista e à transcendência metafísica, passou-se a considerar o barroco ;como o liame essencial entre os termos opostos de cada par dessa dialética modesta. Mas, quando tal condição de momento dialético improvisado colocava o barroco em posição propícia a ter afinal desvendada a sua essência última, paradoxalmente tudo se perdeu na vaguidão de aventuras pseudofilosóficas, que pretendiam explicar a forma barroca por um indefinido espírito barroco. isto é. jogaram o barroco. .. à conta do barroquismo. Se, de fato. a investigação teórica permitira perceber que toda uma fase da história ocidental, mais do que protestante ou jesuítica, mais do que absolutista, capitalista ou apenas mercantilista, e mais até do que naturalista ou iluminista, necessariamente se caracteriza como a época barroca. claro está que na forma barroca devêramos procurar o que inutilmente se imaginara surpreender em cada um daqueles aspectos parciais. ou seja, o sentido profundo duma cultura que, para exprimir-se, exigira o intermediário simbólico de uma arte polivalente, universal, global. No Extase de Santa Teresa, de Bernini. alguém foi buscar o registro fiel da exaltação passional da contra-reforma, mas no· Luis XIV, do mesmo Bcrnini, já se apontou a necessária repercussão artística do absolutismo real - não bastaria 153
Matriz de N. S. de Nazaré.
Santuário da Serra da Piedade.
tão simples exemplo para firmar-nos na certeza de que, para além da figura da santa e do busto do rei, o artista exprimiu algo que, acidental e eventualmente servindo para comunicar o sentimento da transcendência da fé ou da arrogância do mando, por isso mesmo supera as representações incidentais ou as intenções particulares. para alçar-se a um plano superior e mais amplo? A um plano estético, digamos logo, e portanto só tradutíveJ, para a plástica, em termos de análise formal c, para a crítica) numa síntese de compreensão visual específica a que corresponde? Não é, pois, o gosto da abstração, senão os mais simples e concretos dados históricos que nos conduzem à definição do barroco pelo seu elemento funcional, que é um conceito de espaço especificamente seu. Despreocupemo-nos. portanto, das tentativas de caracterizar como entidade explicável em si mesma um espírito barroco, um barroquismo exposto na linguagem traiçoeira de vaga e inexata psicologia coletiva, se não quisermos cair nos unilateralismos de quantos desejaram prender O barroco no acanhado de uma determinada formulação política, religiosa, e mesmo na rígida cronologia das escolas artísticas, ou se não consentirmos em pactuar com singular exaltação do indefinido que chega às raias do ilogismo patológico num Eugênio D'Ors. Concordando com a hipótese de que o barroco cor~ responde, direta e intimamente, a uma determinada estrutura mental. por isso mesmo estamos obrigados a concebê-Ia na maior generalidade possível c, em conseqüência, não haveremos de pesquisá-Ias tão só nas suas expansões conjunturais particulares. Mas, de outra parte, nessa generalizàção é-nos proibido desprezar a realidade essencial de um fenômeno que na história encontramos e, pois, que só historicamente poderemos compreender. Expressão global daquela estrutura mental em sua totalidade e em sua coerência básica, essa arte criou, conjugou, organizou e compôs formas para significar de modo visível e palpável o sentimento do espaço infinito que desafia a criação humana a dominá-lo, numa expansão irrestrita que será também a mais singela e a mais completa realização da liberdade. Não se vazam mármores para transformá-los em rendas, não se ondulam muros até desmentir a rigidez cúbica da construção, não se desdobram arquiteturas impossíveis
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na pintura dos tetos, mudando-os em pontos de passagem para o infinito do céu, apenas para confirmar nos reis a certeza de seu poder ou tributar aos santos a homenagem de nossa exaltação, mesmo porque coroas e auréolas sempre encontraram modo de exprimir-se satisfatoriamente por intermédio das mais diversas formas artísticas. O desafio da limitação, a certeza da irrestrição, a anexação intelectual do espaço sem fim é que exigem e justificam as formas barrocas para daí feição visível a um novo estado de alma do homem. Estado de alma tão novo para o mundo, que não conseguiu projetar-se inteiro na linguagem lógica da ciência, e tão firme em sua impositividade, que foi preciso reapresentar reis e santos em seu vocabulário inédito, para que continuassem a ser reis e santos. Quando, pois, abordamos o problema do barroco mineiro, que é propriamente nosso problema, devemos estar seguros de não carrear, para esse rico e sedutor aspecto especial, as muitas imprecisões e outras tantas confusões que têm obstado a compreensão do fenômeno em geral. Novamente, carecemos da coragem dc partir do que é simples e conhecido de todos. E esse lugar-comum será, sem dúvida, a evidência do caráter barroco da arte colonial mineira, que, na exata acepção filosófica da palavra evidência, a quantos no espírito [êm presente a significação dos tennos em causa, torna-se impossível duvidar de sua veracidade. Ora, essa evidência, junto à qual a filiação estética documentada e analisada só desempenha papel de exabundância, é resultante duma intuição estética e de uma certeza formaI. Formal, não só materialmentc. Formal não só pelo que possa obedecer às injunções de determinadas estruturas e instituições, aliás dificilmente aqui reconhecíveis em sua totalidade original. Formal, sim e principalmente, pelo que possa traduzir de uma estrutura mental, na mais larga e profunda acepção da forma memis (e, por isso mesmo, mais fàcilmente difundível e mais universalmente adequável a diversas latitudes e grupos humanos), correspondendo ao que, de mais básico numa cultura, só por intermédio das formas consegt'e tornar-se explícito. Formal, portanto, no que tenha de realização óptica e tácl1l desse desejo de .povoar o espaço cç>m formas tão irrestritas quanto o próprio espaço. Na medida, pois, em que a intuição estética, a evidên156
cia monumental e a inferência documentária nos levam a aludir a um barroco mineiro, igualmente nos levam a pesquisar a permanência da noção barroca de espaço tal como se exprimiu especificamente num meio diverso daquele em que se originou. Assim como os teór:icos europeus acabaram por permitir.,nos entrever uma definição fundamental de barroco, as interpretações do barroco mineiro também vão confluindo, embora raramente o façam de modo deliberado, para uma caracterização em tennos de forma e espaço. Difícil seria apontar uma só interpretação da arte colonial mineira que se ativesse, exclusiva e rigorosamente, a esse critério básico. Mas ele sempre volta a impor-se, porque, em sua ausência, certas observações analíticas e interpretativas perdem o melhor de seu conteúdo," e ainda porque constitui uma espé:cie de vale natural a quc vertem, em espontâneo entrelaçamento, todas essas investigações sobre a arte colo~ial mineira, cuja mais singular característica é, sem dúvida, o de aproximarem-se e completarem-se, malgrado sua gratuidade, sua desconexão e, até, certos evcntuais vezos polêmicos. Quando, por exemplo, se analisa o barroco mineiro com ânimo de verificar a presença ou a ausência, aqui, das entidades encarecidas pelas teorias européias - e bem conheceis os estudos de vário teor e intenção que desejaram reconhecer no barroco mineiro as repercussões do absolutismo europeu (político ou eclesiástico) c as resistências libcrtárias do grupo local (no plano da independência civil ou da laicização do culto) - não conseguimos compreender o sentido de tais perquirições, aparentemente desligadas de compromissos outros que não os da pura interpretação, sem o apoio dos muitos dados concretos que paralelamente se vão investigando. J á não nos referimos ao drástico e irrecusável contraste das verificações monográficas documentárias, cujo melhor e mais recente exemplo está no tomo sobre os assentamentos da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto, com que o Cônego Raimundo Trindade balizou em definitivo o caminho de futuras hipóteses, mas queremos sobretudo sublinhar a importância capital, para o intérprete de elementos mais sutis e mais gerais, de quaisquer informações exatas sobre a fixação autônoma ou a repetição adotiva de modelos e padrões estéticos. Atcnhamo-nos a fatos simples. do 157
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dominio de todos nós: a singeleza construtiva e ornamentai da fachada da Sé de Mariana posta a par com a planta bombeada da Rosário de OuroPret6;. ou então a comparação das estátuas de São Simão Stockler e de São João da Cruz, da Carmo de Sabará, com os santos de roca, anônimos e obedientes à tradição, que a cada passo topamos nas igrejas da zona do ouro, ou ainda os charões autênticos de Sabará e Mariana, quando confrontados com as ingênuas e afrancesadas chinesices que acabaram de ressurgir, ainda em Mariana, no corta-vento da Carmo. Tenhamos em mente tão singelos exemplos e logo concederemos que os problemas da interpretação teorética exigem o trato de questões de diferente ordem, como sejam as relativas à formação e organização dos grupos artesanais locais e, conseqüentemente, as que tangem o espinhoso, porém irrecusável, capítulo das técnicas profissionais. Por causa da consciência dessas dificuldades é que, sem dúvida, algumas linhas evolutivas gerais foram aceitas como de relativa precisão e grande utilidade. Embora interpolada das inevitáveis suposições que deveremos tolerar enquanto se descobrem mais e mais documentos, marcou-se a transição dos retábulos que nos traz da Padre Faria, da Cachoeira do Campo e de Ouro Branco à plena pujança mineira o'u à descolorida simplicidade dos altares principais das duas São Francisco de Ouro Preto. Também acompanhamos - desprezando rigores cronológicos e servindo-nos de velha sugestão de Mário de Andrade, que uma ou outra deficiência particular não chega a invalidar o .desenvolvimento da igreja de Minas Gerais desde o ascético funcionalismo do abrigo de duas águas com sineira ao lado até a esplendorosa construção de torres cilíndricas. Tais retificações genéticas só devem, contudo, ser utilizadas como estratagemas expositivos e explicativos, posto que, a cada passo. intercorrem evidências monumentais e documentárias de uma ma~or riqueza artística do' que fariam supor tais simplificações. Não são propriamente contradições, mas simples interferências. Não desmentem a tendência esquematizada, mas advertem que, na r:ealidade histórica. anda ela paralelamente, quando não entrelaçada, com outras e diversas preferências e inclinações. Então, o pesquisador que se animara ao verificar que os dados materiais possibilitavam 159
uma retificação esquematizadora dos elementos de cunho valorativo estético compreende que, por seu ·turno, a história da evolução técnica depende da apreciação meticulosa da vida dos padrões artísticos considerados em si mesmos. Nesse torna-caminho metodológico, aparecerão novas interrogações existentes - se nos parecera chegar ao auge da solução local com a arquitetura de São Francisco de Assis de Ouro Preto, como se explicará o europeíssimo bombeamento da Rosário de Ouro Freto ou da São Pedro de Mariaoa? E a história da escultura de Minas, ainda menos dominada e ordenada até este momento, apresenta outras provocações à curiosidade - o rebatimento perspectiva de certos volumes plásticos das estátuas do Adro de Congonhas, tão surpreendente que chegou a inspirar abstrusas acusações aos conhecimentos anatômicos de seu autor, poderá, pelo contrário, resultar em efeito de sábia observância, ampliadora de regras tradicionalmente aceitas e transmitidas, se tivermos em conta, por exemplo, a organização geral do velho topo de altar vindo de Santa Bárbara para o Museu da Inconfidência ou, mesmo, a compreensão óptica que domina a decoração lateral em talha da capela-mor da Pilar de Ouro Freto. Haverá critério válido e operante para distinguir, nesse intriocamento de amostras discordantes, o que é local do que é importado, o que é tradição do que é originalidade, quando a novidade plástica pode ser repercussão de algo historicamente mais velho e quando a invenção autônoma também envolve valores importados? Sem dúvida, as pesquisas do empirismo recenseador, na humildade mesma da sua tarefa de fixar os caracteres locais do trabalho artesanal, conseguiram a inestimável vitória de esclarecer até que ponto a técnica local, pelas deficiências de seu rudimentarismo inicial ou pelas inéditas liberdades rasgadas por seu ulterior desenvolvimento, modificou o padrão importado tanto pelas primitivas limitações quanto pelas instigações inspiradoras da fase de maturidade. De sua parte, as pesquisas de interpretação genérica, na aparente irrestrição de suas hipóteses, vieram a demonstrar como os padrões chegados de fora constantemente interessaram e a si mantiveram preso o artista mineiro, tanto na aspiração de realizá-lo por seus próprios meios, quanto no desejo de lIbertar-se da rotma ImItatIva por uma criação que 160
não s6 àquela equivalesse, porém mesmo a superasse. Não obstante, todo êsse progresso do conhecimento do barroco mineiro, que se adiantou espantosamente nas últimas duas décadas, não chegou para conjurar o risco de transformar em dogma conclusivo a opção local-importado que na função de hipótese de trabalho produziu e continua a produzir os melhores frutos. Realmente, as muitas noções de que hoje dispomos e cujo alcance não se diminui por ainda permanecerem esparsas e, por vezes, sem fonnulação exata, devem-se à pressuposição de que o trabalho inicial de recenseamento das peças e de sua análise preliminar poderia firmar-se na distinção entre o que é aut6ctone e o que vem de fora. O critério, por certo, acha base na realidade empiricamente observável e constitui ótimo crivo de coleta e classificação. Mas, havendo cumprido sua função, a serviçal distinção deve, por seu turno, ser submetida a uma crítica, cujo objetivo não será tanto o de rever-lhe a validade, senão o de reajustá-la à extensão que lhe é própria, antes que se transformem em valor absoluto. Caberá aqui um parêntese para registrar o exagero de alguns espíritos singulares que se dispõem à pagar qualquer preço pela acentuação da originalidade da arte (e, em geral, da cultura) mineira, não trepidando sequer em afirmar que tudo ou quase tudo em Minas é secundário, desde que com a injusta depreciação se possa distinguir Minas. .. Não é só a gratidão sincera de freqüente beneficiário de vossa hospitalidade que me leva a repelir energicamente essa intolerável opinião, pois também me atinge ela onde fere a quantos se utilizam da inteligência para irmanar-se com seus semelhantes e não para deles distinguir-se, embora por tão insólito negativismo. Se aludo à estranha tendência, é apenas para registrá-la como o lado malévolo, perverso quase, dum incQnforntismo com a flexibilidade dos pobres termos de que nos valemos para· pensar e dizer nossos pensamentos. Porque - merecendo nossa atenção e crítica - há uma feição benévola de semelhante rebeldia contra a relatividade das palavras, porém tão diversos são seus represep.tantes pela lisura dos intuitos, pela substância e valia de seus trabalhos e, acima de tudo, pelo alto teor ético-profissional e pelo valor inle161
lectual de suas pessoas, que não me compadeço com a idéia de colocá-los na mesma categoria dos primeiros. Fechemos o parêntese para voltar ao problema da oposição local-importado e assinalar como, apesar de todo o respeito que nos inspiram os que cuidam de destacar os elementos nâo-barrocos da arte colonial mineira, com freqüência surpreendemo-Ios a ceder à insinuação de que tais fatores discrepantes do padrão geral valem muito para sublinhar-se a originalidade, senão mesmo a autonomia, da criação artística de Minas. Mais de uma vez assim vimos interpretados e utilizados os registros desejadamente objetivos de um Wash Rodrigues, no campo da ornamentação c do mobiliário, e de um Paulo Santos, no setor dos grandes monumentos. E ainda há pouco, no mais amável e hoproso desafio polêmico que já me foi dado conhecer e ao qual espero não faltar ao menos para fruir a rara oportunidade de ombrear com um especialista do porte de Sílvio de Vasconcellos, lastimava verificar que o extremismo da rigidez vocabular enfeava a sua notável contribuição sobre os elementos góticos presentes na arte mineira. Para outra ocasião ficará a polêmica - de momento, só cabe assinalar o exagerado vezo de opor irreconciliavelmente Minas e a Europa, o barroco trazido de fora e as ex':' pressões espontâneas da arte local, o que importa substancialmente para as considerações mais gerais, como as deste momento. De perfeito senso, ninguém negará a existência das unidades não-barrocas que se imbricam, com relativa fartura, no corpo do barroco mineiro. O que se impõe, contudo, é evitar interpretá-los pelas pseudo-impressões que possam causar à nossa sensibilidade atual, tão pejada de conhecimentos históricos aos quais sempre se liga alguma participação afetiva. A não ser assim, viremos a projetar essas reminiscências sentimentais na peça, passando a vê-Ia segundo nossa própria perspectiva, atual e interessada, ~o -invés de perscrutar com isenção a estrutura mental de quem a criou, ao tempo de sua fatura. Nesse. sentido, Minas constitui o mais farto repositório de amostras elucidativas, a começar pelo exemplo extremo das peças transpostas in tatum e com deslocamento completo d~ função. As portas de sacristia de Sabará, o lambril do cadeiral de Mariana e, quiçá, o dragão do púlpito de Congonhas constituem casos de 162
integral abandono da expressão original de peças impanadas, cuja função em novo meio só podemos compreender em sentido apenas decorativo e sem significação simbólica. Em conseqüência, ao passarmos ao capítulo das cópias não poderemos considerar o modelo repetido pelo artista brasileiro como representativo de seu primitivo espírito, a menos que tal espírito se patenteasse, para além da reprodução superficial, na estrutura total que revela o clima de criação e am'bientação da peça. Aceitas tais preliminares, precisamos recorrer à máxima contenção no interpretar, a fim de que a simples figuração ou qualquer outro elemento secundário da composição não nos reavive velhas impressões participantes, colhidas em museus, viagens ou mesmo em gravuras, arrastando-nos ao pecado da autoprojeção atual em obra antiga e alheia. Nascendo a apreciação crítica e a estesia simpática de impulsos profundos e imediatos, impõe-se supor possíveis todas as traições de nosso espírito em tão delicada operação e, de tal sorte, neste passo a referência analítica mais segura será sempre aquela, inteiramente racional e profundamente' meditada, que DOS oferece uma interpretação mais genérica, fundada em mais numerosos objetos, Dela, que nasce de convicções constantemente reexaminadas e não de preferência de gosto ou de particularismo gratuito, haverá sempre de resultar a certeza da insofismável dominância do barroco na arte colonial mineira, certeza que mais sólida ainda se mostra exatamente quando tomamos conhecimento das presenças dissonantes que se fazem visíveis no complexo artístico da região. Não se trata, está claro, de ceder ao argumento do maior número, senão de curvar-se à evidência de que os elementos não-barrocos, sempre que aparecem por aqui, são submetidos e utilizados por uma estética nitidamente barroca. Minas coloníal anseia pelo barroco, podemos afirmar sem qualqqer literatura, quando passamos em revista seus monumentos e suas obras de arte. Pode um determinado termo do vocabulário original frustrar-se em óbices técnicos insuperáveis, como aconteceu com a ondulação vertical e horizontal das fachadas, na pobreza construtiva dos primeiros tempos, mas ele reaparecerá desde que a infra-estrutura material o permita, como nos mostram os muitos exemplos. já ci163
Igreja de N. S. do Rosário. Ouro Preto.
Igreja de N. S. do Carmo Sabará.
tados e confrontados. O que, contudo, nos assegura a autenticidade e profundeza do sentimento barroco de Min~s, será menos essa recuperação do tempo perdido, que afinal se poderia considerar simples concessão a um gosto temporalmente retardado, pois ainda mais significativas são as tentativas comovedoras de alcançar o mesmo efeito geral, isto é, de exprimir "a mesma forma mentis do estilo original, por vias diversas das importadas, o que nos faz transitar inquietamente, em Vila Ríca, da meia-ousadia da Carmo para o esplendor consistente da São Francisco vizinha. Nas pilastras que Burton não compreendeu; consubstancia-se não só o mais belo, não s6 o mais original, mas também o mais puro e autêntico que o barroco mineiro concebeu. Nossa curiosidade não descansará enquanto não soubermos, com certeza, se vieram de velhas memórias renascentes ou se já atendiam a qualquer novidade contemporânea até aqui ehegada, mas já eaptamos, para além dessas implicações históricas secundárias, o árnago de sua beleza, desde quando as deciframos, graças a Mário de Andrade, como as chaves-mestras da movimentação vertical e horizontal da fachada primorosa. E os exemplos poderiam ser multiplicados. Poderíamos atentar em elementos materialmente menos vultosos, como o frontão das igrejas, em cuja formulação há até momentos de hibridismo arriscado, da espécie da Carmo de Sabará. Ou nessas linhagens menos precisamente delineadas e mais difíceis de captar, como a que nos levam a acompanhar os sistemas de ornamentação, a partir do requadramento emoldurador da talha discreta, ouro-preto-vermelha, emoldurando painéis pintados que pelo arranjo nos lembram o jesuítico de outras regiões brasileiras, para depois jogar-nos na franca definição barroco-européia de Pilar e, assim, habilitar-nos a compreender toda a novidade e toda a capacidade de integração dos grandes retábulos do Aleijadinho, onde o modelo importado reelabora-se e ao mesmo tempo integra uma quantidade insuspeitada de elementos rococó. Por isso, não temerei mais uma vez ceder a meu apegamento à S. Francisco de Assis de Ouro Preto, de cuja fachada Sílvio de Vasconcellos restabeleceu o traçado regulador meticulosa e minudentemente submisso ao número-de-ouro e em cuja ornamentação externa e interna Wash Rodrigues isolou numerosas 165
formas rococó. Essâs indicações capitais, somadas a outras que a mesma igreja poderia fornecer, atestam-nos a solidez e a profundidade das raízes do barroco mineiro. Em inegável atraso temporal relativamente à Europa, longamente obstado pelas deficiências ou peculiaridades de diversas técnicas e materiais, pode contudo receber e assimilar derivações formais que em outras terras anunciavam uma deterioração estilística e uma mudança de gosto, mas que aqui se reintegram no complexo estético original para revitalizá-Io e ampliá-lo. Como também pode, muito tempo depois do auge do racionalismo renaseentista, referir-se às fontes primeiras sem arcaizar-se ou, o que é mais, sem metamorfosear-se num desses neo abastardares da história da arte ocidental. Carecessem de novas refutações as teorias européias do barroco, e melhores não poderiam surgir do que as desse barroco mineiro, tão firmemente enraizado no novo solo e tão desligadas daqueles núcleos institucionais e daquelas estruturas sociais específicas que se desejou considerar como causas do complexo estético-formal. Se Vila Rica surge na formação da sociedade nacional como pujante exemplo da primeira cultura ur: bana de formação espontânea e de função não-litorânea, em tudo difere das cidades mercantis e rnilitarizadas que sustentaram o Renascimento latino," enquanto a oposição à coroa metropolitana· que se esboça contemporâneamente à maturação do barroco local possui uma fisionomia totalmente diversa do cerco burguês às cortes onde floria a maneira frouxa do rococó. E, mais", aqui nada se encontra que assemelhe à organização social correspondente ao barroco dos reinos católicos ou das regiões dominadas pela burguesia protestante no século anterior. Não se queira, pois, busc~r aqui um barroco que signifique os valores específicos· de inexistentes grupos e instituições, como· também não se queira, pela inexistência deles, negar a presença do barroco. Por isso, de início vos propus considerarmos juntos a enunciação do barroco mineiro. Graças aos esforços dos que, por função e vocação ou por gosto e abnegação, rasgaram tantas novas perspectivas desse aspecto singular da, cultura brasileira, chegamos ao ponto, não de sumariar as conquistas feitas para organizá-las num quadro gerai, que seria pouco expressivo e insuficiente, mas de con166
siderar a atitude de espírito com que, doravante, deveremos continuar estudando o problema. É tempo de dar menos atenção aos elementos transpostos, como tais e apenas como tais, porquanto nessa condição por força parecerão expressões antes correspondendo a outros ambientes sociais, quando nossa tarefa particular está em precisar sua utilização e função em um novo e diverso clima coletivo. Correlatamente, também devemos evitar a supervalorização exclusivista da contribuição local, como tal, e tão só como tal, desde que, representando soluções impostas por relações básicas de uma sociedade complexa e já revelando uma estrutura específica e própria, interessa-nos sobretudo estudá-las como modos particulares da integração de elementos importados e, conseqüentemente, como reações da mentalidade nova às contribuições exteriores. Só assim poderemos respeitar devidamente a essência e os caracteres da cultura colonial mineira, que é cultura em formação e tendendo à expressão de sua autonomia, e também do barroco que lhe ofereceu uina forma menUs capaz de atende.r aos seus desejos de simbolização inédita e global. A pesquisa e a interpretação, em tais quadros, ,aproveitar-se-ão, principalmente, de um necessário desdobramento do binômio arte-sociedade que, de comum, é a fórmula adotada pelos estudiosos de questães estéticas. A relação fundamental, como é óbvio, permanece a mesma, porém em nosso caso especial urge compreender que cada qual dos dois termos possui significação ambivalentc. Tanto a arte quanto a sociedade, nos tempos coloniais de Minas, nascem de semente importada para florescer em nova atmosfera. Conseqüentemente, a eX:pressão estética· tanto deverá corresponder às solicitações .dos elementos transpostos quanto dos elementos locais e espontâneos, assim se compreendendo quer os fatores estritamente estruturais, pois aqui conhecemos uma ordem imposta em çonvívio nem sempre harmônico com os grupos locais a se estruturarem naturalmente, quer a -esfera dos conhecimentos, das idéias e dos valores que, em larga margem decorrentes da fonte cultural original, nem por isso deixaram de modificar-se e transformar-se quando instalados sobre uma infra-estrutura inédita. Em conseqüência, a arte - concretamente: o barroco - passou a constituir 167
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meio de expressão ambivalente, através do qual se vai refletir, em seus fluxos e refluxos, todo o processo social em trânsito. Se o encararmos do ponto-de-vista dos elementos transpostos, concebê-la-emas sobretudo em termos de modelos e padrões trazidos de fora e que, portanto, deveriam atender aos valores estéticos da sociedade dominadora, tal como se encontravam na consciência da elite formada lá fora e, também ela, para aqui transposta. Em verdade, tal esquema só refletiria uma porção mínima da realidade histórica, que me proíbo de escrever a quem a conhece pela inteligência e pelo coração. O dinamismo local assediou por todos os lados a célula transplantada e, correspondentemente, o modelo artístico, que se suporia fixo e imodificável, conheceu as mais variadas transições. De forma muito esquemática, diríamos que tal modelo, modificado já de início pelas limitações materiais e técnicas, nem por isso foi propriamente contrariado, na medida em que poderia emergir intato, como em certos casos de fato emergiu, quando cessassem as restrições impositivas. Não obstante, mais importa verificar que, aceitando o modelo mais pelo seu espírito fundamental do que pela sua formulação explícita, desde logo a cultura mineira desejou exprimir-se por intermédio de um barroco que, sendo fundamentalmente o mesmo barroco universal, deveria adquirir feição própria. Muitas. vêzes, a modificação imposta pelos novos materiais e pelas maneiras de dominá-los constituiu elemento propulsor de novas concepções plásticas - a influência, na arquitetura, da primeira técnica construtiva e, na escultura, do trato da pedra-sabão pelo instrumental da torêutica constituem exemplos frisantes do milagre de uma riqueza nascida da escàssez. Contudo, só quando as transformações materiais cedem passo às verdadeiras transfigurações estéticas é que se toma visível e insofismável a tendência fundamental da expressão artística de Minas colonial. J á então era possível realizar, sem maiores adaptações, o modêlo origina1. Já então era possível superar as imposições dos materiais e das técnicas, sem ceder muito da formulação final. Em vários casos concretos, salvo talvez no caso muito particular da pintura figurativa, há patentes demonstrações dessa inteira liberdade de reiorno à fonte. Exatamente, nesse instante histórico, afir169
ma-se um barroco mineiro, plenamente barroco c especificamente de Minas. Por sobre o paralelismo que coloca lado a lado o fio débil da obediência ao modelo importado e o tronco pujante da formação de um novo barroco, corre o traço vigoroso da linha tendencial estética -do barroco mineiro. Que, ao menos a meu ver. importa mais do que todas as interrupções, perturbações, pequenos desvios. eventuais bifurcações e raríssimos desfalecimentos acusados pela evolução cronológica do fenômeno. Realmente, só tomando por ponto de reparo a linha tendenciaI estética; é que podemos alcançar a congruência e a continuidade virtual da linha de evolução histórica da arte colonial de Minas. E, quero crer, nessa indicação direcional, tão irrecusável quanto reveladora, encontrar-se-á um elemento imprescindível ao estudo cultural do núcleo mais evoluído e mais düerenciado da vida colonial brasileira. Impõe-se-me respeitar os limites de meu próprio assunto, porém não os violarei se disser que esta Minas dos árcades e da Inconfidência, que constitui a culminância e o fecho dos três ~éculos da, existência brasileira anteriores à transladação do Estado português, esta mesma Minas ainda possui mais um título a proclamar, entre os que mais alto a colocam na história de nossa sociedade: o de haver desenvolvido uma cultura, cujo avanço e cujo requinte podem ser avaliados, com exatidão, pela capacidade de assimilar intelramente os padrões europeus para, em profunda reelaboração, formular seus próprios valores e conceitos no que apresentam de mais básico, isto é, na própria estrutura mental que os gera e. sustém. Se essa forma mentis, enquanto tal, pode ser aproximada à da Europa barroca, barroca havia de ser Minas, mas a autenticidade e amplitude dessa integração de padrões estéticos, que apaixona o investigador atual, permitiu-lhe desenvolver tão. completa e perfeÍtamente um novo processo social, que nos obriga a reconhecer a especificidade mineira deste barroco. Daí partamos para dizer mais duas palavras, sem polêmica e sem paixão, sobre o fenômeno individual mais importante e significativo do complexo barroco-mineiro. que é Antônio Francisco Lisboa. Se tanto falamos e refalamos de um conceito de espaço, 170
tal como socialmente se fixou e passou a exigir expressão própria, acrescentemos apenas que _essa estrutura mental coletiva jamais se reduz à formulação racional de seu cálculq geométrico ou de suas normas morfológicas, .embora deles freqüentemente se valha nas concretizações. Não obstante, realidades mais profundas estão em jogo: em primeiro lugar, .o equipamento perceptivo básico de que o ser humano dispõe e se utiliza em seu espaço vital; depois, o sentimento que empiricamcnte vai formando do espaço efetivamente vivido, c, afinal e principalmente, o processo de constante socialização das reações físico-psicológicas básicas e das paranoções resultantes da experiência de vida. Portanto, não devemos repetir o excesso esquematizador de Francastel na sua análise do Renascimento, tentando reduzir a noção de espaço aos efeitos subjetivos·possi. bilitados pelas técnicas de seu domínio concreto. A noção de espaço, tendo por base relações mutáveis, da ordem da relação entre ação humana e meio ambiente, recusa-se à cristalização das regras racionais para mostrar-se essencialmente dinâmica e traduzindo-se, quase sempre, num complexo de reações mútuas entre a tendência racionalizadora e a inovação· do sentimento vivido. Essa insolução racional, que proíbe o domínio absoluto de padrões formulados de modo definitivo, é que atribui importância capital às soluções individuais. Participando da forma mentis coletiva, o artista irá atendê-Ia, mas agirá ligado a seu próprio equipamento de experiências sentimentais, de sorte que poderá ino'iar as formas expressivas e sua organização artística, tornando-as ainda mais próximas e sirnbolizadoras daquela noção que a razão, sozinha, não consegue significar. Corno o fez, no barroco mineiro, Antônio Francisco Lisboa. Da análise direta e despreconcebida de sua obra, sempre resulta uma impressão irrecusável de poder inventiva. Não obstante, essa invenção, que o desdobramento da pesquisa cada vez mais sublinha, faz-se sempre dentro do barroco, e será a constância dessas duas presenças o sinal distintivo da parte melhor de seus trabalhos, da sua plena maturidade artística. A tal ponto que Mário de Andrade, no tempo em que a documentação ainda não revelara o verdadeiro autor do medalhão da portada de Mercês de Cima. enquanto 171
Igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos. Congonhas do Campo.
a tradição mal fundada o lançava à conta de Antônio Francisco Lisboa, concedia constrangido à atribuição, ressalvando, porém, que seria essa uma -obra da fase da mocidade e formação do Aleijadinho, isto é, dum momento em que o Aleijadinho ainda não fosse, completamente, o Aleijadinho, tal como o compreendemos e admiramos. Em verdade, se mentalmente separarmos ó que Antônio Francisco Lisboa realizou em obediência aos preceitos transmitidos pela elite artesanal formada à européia, teremos, de outra parte, o que criou por impulso próprio, quase sempre a partir das modificações locais, tais como as conheceu e aceitou, para alçar-se a realizações marcadamente inventivas e dominantemente barrocas. Melhor do que ninguém, praticou a reintegração dos elementos renascentes de fundamento racionalista e a integração revitalizadora das contribuições do rococó. Como ninguém, soube submeter os mais variados vocabulários estilísticos, que lhe chegavam ]10 tumulto informativo da Colônia proibida de instruir-se, tanto do Oriente quanto do Ocidente, tanto da Idade Média 'quanto do Renascimento, tanto do classicismo quanto do mais que se lhe seguiu na infinita genealogi!1 do maneirismo. ?'fão obstante. a sua sintaxe, a articulação básica desses termos em frases logicamente estruturadas e inteiros discursos, é pura e essencialmente barroca, não s6 na organização e composição das peças, mas até na intenção criadora considerada em si mesma. Pela terceira vez, poderíamos lembrar a sua invenção arquitetônica, ao mesmo tempo libérrima e autodominada, em que repele o bombeamento da planta-baixa à européia e até mesmo a sua própria e discreta ondulação aposta à Carmo paterna, para lançar-se à aventura do jogo de planos e massas dessa fachada inteiramente ínédita, na qual obteve a mais barroca animação, embora não temesse subordiná-la à trama exigente do número-de-ouro. Passemos logo ao setor
da escultura, onde, pela própria condição do trabalbo criador, um campo mais livre era oferecido às aventuras estéticas do artista e, não obstapte, onde o encontramos sempre avesso aos transbordamentos gratuitos, para dar-se todo aos valores essenciais. Assim como a facbada de Ouro Preto respondeu ao infinito do espaço, animando-se em movimentos lineares e volumé173
tricos, recurso eficaz no animaf "a foima pa,:à que ela invada e se confunda com o ambiente, penetrando-o e deixando-se penetrar, assim também a escultura de Antônio Francisco Lisboa recusa-se à pura afirmação da massa contra o vazio, para procurar a animação dos volumes e, pois, sua expansão no espaço. Despreza, contudo" os virtuosismos de tratamento e nunca o rendilhamentn da matéria nu a gesticulação dramática interessam-no em si mesmos, sequer quando a figuração simbólica os pede. Atém-se a uma severidade desejada que lembra um pouco a limitação expressiva imposta pelas deficiências materiais aos artesãos dos primeiros tempos. Não é um barroco epidérmico, mas uma essência barroca que O estimula. Por isso, não recusa sequer princípios ordenadores da expressão exterior, percebendo que lhe darão unidade à expressão sem lhe abafar o ímpeto profundo. Cultiva dócil e carinhosamente a simetria das dessemelhanças, a, compensação virtual dos volumes, como vemos no lavabo de São Francisco de Assis, seguro do poder de animação que imprimiu à figura do monge em marcha ou ao voo do arcanjo que carrega o medalhão do santo. Em Congonbas, adota um regramento óptico estrito, que leva às últimas conseqüências, submetendo todas as figuras do adro às distorções supostas pela visão de quem segue o caminho normal das escadas, porém está certo de que, olhados de qualquer ponto, seus profetas acabarão sempre por comunicar-se entre si numa mútua repercussão de linhas em movimento e volumes animados - assim Carlos Drummond de Andrade ouviu-Qs dialogar. E, contudo, possível surpreender Antônio Francisco Lisboa em humaníssimo pecádo de vaidade. Também ele acaba cedendo à tentação do orilulho, mas não será para o supérfluo exibicionismo das aparências fáceis, senão para a máscula afirmação do poder criador do homem onde o desafio parece inaceitável. Ele, cuja excepcional habilidade manual pode ser reconbecida, ainda hoje, não só pela nossa vista, mas também pelo instrumento mais exigente e sensível de QOSSO tato, desinteressa-se pelo virtuosismo tópico para 'aplicar-se a essa verdadeira luta com o anjo que é o dotnínio do espaço escultórico em condições adversas e deliberadamente escolhidas. Assim. o encontramos em tentativas limitadas no r.elevo inferior do altar-mor de São Fran174
cisco, com a surpreendente perspectiva desse túmulo aberto que se rasga contra um fundo inexistente, e também na amostra secundária do J6 que está ao pé de um dos altares laterais da Carmo. Logo, porém, percebemos .outros arroubos de maiores proporções, na condensação e animação das figuras e no arranjo, em projeção perspectívica, forçada porém rigorosamente ortogonal, dos grupos de púlpitos da São Francisco, cujas. faces, não obstante, são caprichosamente onduladas. Porém, a mais arrojada realização do virtuosismo superior de Antônio Francisco Lisboa, parece-me ser a dos púlpitos da Carmo de Sabará, onde o antagonismo flagrante entre o bombeamento da peça básica e o partido adotado na figuração dir-se·ia invencível, se já não o conhecêssemos inteiramente dominado. Observações de tal ordem é que reforçam minha convicção de nada haver exagerado quando, desde o primeiro instante, reconheci em todo o conjunto decorativo da capela-mor de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, uma rigorosa organização racional de técnicas e meios expressivos que, nessa ordenação friamente calculada, oferecem lastro para o maior conjunto decorativo, expressivo e movi~entado, que nos resta de Antônio Francisco Lisboa. Novamente, as condições adversas do caso particular dessa capela originalmente fria e rígida em seu cubo construtivo interno são vencidas, por intennédio de uma instrumentação racional dos meios disponíveis que, abandonando os estratagemas fáceis do velho retábulo tradicional, sempre disposto a ocultar o Jimite do muro, possibilitam agora o estabelecimento de uma nova noção de espaço, irrestrito e animado, que tem seu principal foco de irradiação no topo do altar, para contagiar essa peça central, mas também para transbordar-se em todas as direções laterais e superiores, desmentindo os muros sem escamoteá-los, até estabelecer uma .o.ova visão para a qual não se poderia conceber arremate mais adequado e belo do que o arcanjo que, solto nos ares, derrama sobre nossas cabeças sua cesta de flores. E o espaço infinito que renasce. transfigurado e ainda mais impositivo, das mãos de Antônio Francisco Lisboa, a mais alta, a mais autêntica figura do barroco mineiro.
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VIAGEM A OURO PRETO Chega o viajante 1 a Belo Horizonte determinado a visitar Ouro Prêto e anotar suas observações sôbre a arre que a civilização colonial semeou e nutriu, como a prever que, uma vez apagadas as luzes de seu esplendor, algum testemunho deverá restar de sua grandeza. I. pado~
Aqui se publica, em conjunto, o que apareceu em arti~os cstampor O Euado d~ S. Paulo, nos mesc~ de :lgOsto, setembro c
outubro
do
ano
passado.
Afora
li{:cira
revisão,
não
se
modificou
o
ICll;to senão para o acréscimo no pcríodo final. esquecido na primeir•• public:u;ão.
Em
suma,
conservQu-'\oC a primitiva forma dessas nosimples rell:lslro di' observaçõcs pessoais, (
las de Yia~cm. foram aprOYCilau<'ts Ü guisa de material prcparatõrio num trabalho leorico sõbrc o absolulisrTlo c o barroco '". (.) Rcfere-<;e o A., na nota supra :1 pubiiçação do~ ani~os n .. Rt'l"i.
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Mas, já no aeroporto da Pampulha, onde a terra rasgada pelos planos urbanísticos agasalha em seu rubor os moderníssimos vidros e cimentos de Niemeyer, começa-a hesitar. Qual a atitude de espírito que deve assumir o visitante de iorejas barrocas ou o espectador desajeitado desse d:sdobrar de sobrados infinitamente belos em sua severidade farta? O comportamento de jornalista, a registrar notas para a futura reportagem, seria algo como um insulto que Ouro Preto não merece, nem poderia tolerar. E as veleidades críticas, que se podem alimentar na í!rande cidade, em face duns abstratos ou expressionism~s e até a tanto chega a vaidade ... _ contemplando coisas menos contemporâneas num museu, desaparecem tangidas pelo pudor afinal ressuscitado. Não há, no caso do barroco mineiro, caminho crítico preconcebido que se afigure legítimo. Diante dum complexo artístico, consistente e rico, dir-se-ia que a crítica reclama a erudição. Mas quem, com alguma saúde mental, tentará fazer-se passar por erudito ou sequer iniciado nos mistérios do conhecimento pormeQ-orizado, quando os segredos da inspiração, da fatura~ dos artistas e das próprias obras erguem uma muralha ameaçadora e capaz de deter todas as ousadias? Se conhece, de leitura, os esforços sinceramente modestos e, por isso, esplendidamente fecundos, por exemplo, de Hannah Levy ou de Rodrigo M. F. de Andrade, visando erguer uma ponta de véu para a melhor compreensão dos modelos do pintor Ataíde ou a precisa autenticação dos principais trabalhos do Aleijadinho, desde logo perceberá a inconsistência das improvisações, embora brilhantemente disfarçadas. . Caberá, então, o recurso do guia útil e informativo, em que se compendiem as indicações necessárias aos que doutra forma se perderiam chegando de súbito a uma cidade que parece zombar de todas as ousadias turísticas? Talvez fosse legítima a escapatória, se não existisse o Guia de Ouro Preto, que Manuel Bandeira fez para o Serviço do Patrimônio. Com dez anos já e tendo virado raridade, como quase todas as esplêndidas publicações daquele serviço, que a cupidez dos livreiros não perdoa, o livro-guia do poeta continua a constituir obra-prima em seu ingrato gênero. Isso teria fatalmente de acontecer, pois Manuel Bandeira dispõe da paciência meticulosa do pesquisador honesto e pôde, assim, reunir 178
lOdos os dados úteis conhecidos em 1938, mas ninguém esquecerá que Manuel Bandeira é dos grandes da poesia nacional e, desse modo, talvez mesmo sem o querer, deixou filtrar, entre duas datas e localização de um altar, a gotinha de sua infinita sensibilidade. O seu trabalho, com as ilustrações de Luís Jardim, nada tcm de baedeker cacete para tcr tudo de passeio ameno, na melhor' companhia deste mundo. Vedadas, dessa forma, as passagens extremas, o viajante anteriormente tão ambicioso cai em dúvida e começa já a imaginar um manhoso meio-termo. escapatória habitual de todos os escribas de jornal, quando numa banca da Avenida Afonso Pena recebe o conselho de Carlos Drummond de Andrade, ali postado nas páginas de Polillea e Letras, a falar dos profétas monumentais de Congonhas do Campo. Descobriu, esse homem fora do comum, que as estátuas do Aleijadinho se reuniram para agitar, em rumorosa assembléia, a causa eterna da liberdade. Gritaria o doutor que jamais o estilo da contra-reforma visou alimentar insubrnissões e objetaria o informante preciso que nada, na enfarruscada rudez de mestre Lisboa, autoriza uma tal interpretação. Mas os intérpretes não pedem, quando são grandes, mais do que o penhor de sua própria autoridade, e ninguém negará a Carlos Drummond direito de advogar seu imenso liberalismo. Aos pequenos, conceder-se-á acompanhar o modelo, sem aspirar à imitação dos resultados. Esta será, pois, a solução. Tratar da grandeza da arte mineira, esperando apenas que· ela venha a tanger qualquer coisa de íntimo e profundo no viajante. Depois, contar, com plena sinceridade, o que sentiu por si próprio. E a generosidade de Ouro Preto chega ao ponto de fazer ressoar as almas mais modestas. Mesmo aquelas que em nada repetem os eruditos e os sensíveis, de que há pouco falávamos. Mesmo aquelas que chegam a Belo Horizonte já hesitando e quase a desistir da intenção de anotar observações sobre Ouro Preto. Ademais, só o conjunto de todos os depoimentos dirá inteiramente do poder dessa arte que uma civilização passada nos legou. Ouçamos, pois, a todas as testemunhas. Dê-nos o leitor aquela mesma liberdade que haverá de exigir quando vier, ele próprio, à cidade onde se refugiam as sombras potentes ~e Vila Rica. 179
Feição da terra Nos meses frios é que se deve viajar para Ouro Preto. Não se creia. porém. que só os hábitos higiêni cos fundamentam tal preferência. Há também nessa escolha, que traz a Minas tanta ge'nte em junho e julho. o desejo de alcançar certo proveito estérico na comemplação da superficial geografia que a paisagem insinua. ,,
contínua serpentina, que assim quer o chão. Imaginemo:"! que, lá quase pelo meio-dia, o trem se detenha teimo~amente em Tripuí, a seis quilômetros de Ouro Preto. A E.F. CeQtral do Brasil, pródiga musa de impossíveis aventuras, enviar-\'os-á o maquil1ista em pessoa para comunicar, com um sorriso feito de cética experiência e algum alegre espírito de aventura, que um acidentezinho (nada menos que um descarrilamento) ali vos conservará até a tarde. Então, é a cavalgada heróica. A sabedoria dos caixeiros-viajantes providencia, pelo seletivo, automóvel. O trem despeja malas, sacos, pacotes e rrtesmo máquinas datilogrificas, em plena campina. Há os esportivos que irão a pé, por desconhecidos atalhos que encolhem milagrosamente as distâncias. Há os caritativos que repartem a bagagem do pai de famÍlia esmagado sob malas. Há a preparação de coisas e seres numa plataforma natural - o que será inteiramente inútil, está claro. Afinal, as buzinas. Agora, no automóvel, arrastando-se pela estradínha que não foi aberta por ninguém e que desconhece as turmas de conserva, o viajante sentirá ainda melhor a natureza do roteiro. Se viesse de Belo Horizonte num táxi, desde habirito o saberia. Mas, mesmo nessa meia-hora da etapa imprevista, compreenderá o caráter da terra e do povo que visita. Uma enorme cobra de poeira \'ai costeando o morro, sempre para cima, até que Ouro Preto surge, de repente, com todas as suas vinte e tantas torres maiores. Entramos pela parte alta, recebidos pelo São Miguel da portada de Matozinhos das Cabeças, com seu cocar de pedra-sabão.
Não estranhe o leitor que o façamos sofrer essas duas viagens - a das hesitações intelectuais e a dos sofrimentos terrenos - pois só elas, em sua lentidão e em sua rCíll impositividade, podem trazer a compreensão da humildade, sem a qual jamais se sentirá. por inteiro, a grandeza de Ouro Preto.
A Matriz de A ntônio Dias Em Ouro Prêto, há as mais variadas amostras de arte colonial. Mas, na verdade, visitam-se as igrejas. Assim o exige um hábito turístico c, por acompanhá-lo, 181
nada perderá o viajante, pois essas igrejas constituem, por si sós. um conjunto de belíssimos monumentos. dos mais representativos de nossa arte passada. Há, na ver-
dade, esplendores de construção civil -
a Casa dos
Contos, sobradões belíssimos, os palácios do Museu e da
Escola de Minas, o aljube de Mariana - , mas sempre acaba-se por visitar as igrejas.
Se o viajante que vem a Ouro Preto é paulista e se a indicação profissional que deixa na ficha do hotel atribui-lhe algumas luzes presuntivas, é quase certo que sua primeira visita será à Igreja de Nossa Senhora da Concç;ição de Antônio Dias. Talvez, historicamente, fôsse mais adequado começar por uma terrível e esta~ fante excursão ao Morro Queimado, para rever as ruÍnas da primitiva aglomeração bandeirante. que cresceu sob os olhos protetores daquele Pascoal Silva. cuja casa. e riqueza se consumiram em cinza e fumo na punição exemplar determinada pela Coroa, tão irritada pela rebelião de que se tornou símbolo Felipe dos Santos, o mártir primeiro. Mas a aventura retrai-se diante das escarpas sem caminhos e a história que se traz na alma tem base em vagos sentimentos humanos e não em documentos comprovados. Antônio Dias, menos que o nome de certo bandeirante taubateaóo ou de uma fase histórica, é o apelativo de uma evocação enternecedora. Vai-se, pois, primeiramente, à sua Matriz) muito embora com a certeza de que a igreja grandiosa só conserva, da primitiva capela, o sítio. Para chegar até lá, faz-se um longo caminho que, em hipótese alguma, deverá ser cumprido, tanto na serpenteante descida, quanto na marcha de volta por ín~ gremes ladeiras, senão a pé. Desde o Largo Tiradentes, a Rua Direita de Antônio Dias (freguesia que até hoje mantém orgulhosamente as diferenciações, já quase ideais apenas, que a distinguem de Ouro Preto propriamente dita) escachoa sobrados pela fralda dos morros. Primeiro sobrados nobres e ricos. à volta da casa de Tomás Antônio Gonzaga. Depois, a pobreza crescente das moradias mais humildes, que humilíssimas se en~ contram na rua lateral, que traz o nome do Aleijadinho. Alcança-se a igreja pelos fundos, pois a sua fachada e Q seu jardim olham para a região externa das lavras, deitando sobre a ponte de Marilia. Entra-se. 182
A nota dominante da Conceição de Antônio Dias vem do contraste entre a fachada e o interior enriquecido pelos altares. Não se trata, frisemos, de uma casa externamente pobre que guarda tesouros no interior. Ao contrário, há um equilíbrio inegável entre os dois aspectos e a impressão de dissonância provirá quase exclusivamente de haver uma orientação estilística que presidiu ao risco e outra, à talha. Enquanto a fachada se fez serena e pura, de linhas sóbrias c sinceras,' ,a madeira dos altares laterais - principalmente no caso do segundo à direita - rendilhou-se de tal maneira que o dossel e as figuras aladas que o dominam. parecem flutuar em pleno ar. Essas agitações em ouro, branco, carne e azul, ondeiam-se em progressão ascendente até atingirem o altar-mor. imponente, poderoso e bem pIa0· lado, que representa o auge daquela sinfonia de indefinições surpreendentes. Um auge. sim, mas um auge orquestral em que o compositor, conhecendo seu mister, ataca "com brio" sem perder as linhas da pauta, traz pela babuta todos os sons de que dispõe sem escapar aos cânones consagrados, faz um "fortíssimo" sem entregar-se ao descabelamento descomposto dos paroxismos nervosos. UM ALTAR
O altar já vos espera. bem antes da mesa do ofício, com dois nichos elaborados e que se projetam à frente graças a uma ilusão de perspectiva em que o corte da madeira prepara a mutação violenta das cores bem contrastadas - lá estão, sentinelas e anunciadoras, São João Nepomuceno e a serviçal Santa Bárbara das trovoadas. As duas velhas imagens são apenas um prelúdio; a tempestade orquestral começa propriamente a 1artir das duas grandes colunas saIomônicas. retorcidas ;m suas gordas roscas. branco e ouro. que. grandiosas mas ágeis no envolvimento ascendente, constituem o ponto de referência e o· elemento estável do conjunto. Moldura da santa que governa a igreja, servem também de apoio lateral ao escachoar de formas aladas (humanas ou não) que agitam. a atmosfera à volta da Conceição. A cada momento, os olhos, para não se perderem, voltam a essas colunas .. Mas não se espere do barroco grande sos~ego. Pelo contrário, até o rápido instante
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de segurança deve servir para patentear a fragilidade da certeza humana. Então, logo por trás dos pilares que a vista, subindo, abandona para chegar ao capitel, desdobram-se mais e mais capitéis. Já não agora consistentes capitéis verdadeiros que se entalham com profundidade igualou proporcional à altura e à largura. Desfazem-se as três dimensões que amparam nossa realidade habitual e delas só permanece a ilusão. Os capitéis complementares, sob os quais escorregam fios anunciadores de outras tantas colunas igualmente ilusórias, ocuparão talvez meio palmo, ou menos, para o interior do altar, porém, nascidos da força da ilusão que nenhuma verdade supera, dão ao retábulo toda a imaginável amplidão. Direis que tudo isso, afinal, é a própria linguagem do barroco. De fato, é. Por outra parte, a matriz de Antônio Dias não será nem o melhor, nem o mais rico barroco que encontrareis em Ouro Preto. Sua rival, a matriz do Pilar, toda em ouro e sombras, satisfará muito mais os que conheceram as fórmulas européias desse estilo que os livros especializados descrevem. Mas aqui, na velha igreja que fica próxima à Rua dos Paulistas, a análise será menos fatigante para o não-erudito, a cujos olhos muito do ouro foi escondido por uma capa de gesso alvo. Um esplêndido barroco, mas não um barroco esmagador, eis o meio-termo conveniente para quem chega a Vila Rica armado apenas de muita curiosidade e alguma sensibilidade. Assim, diante desse altar-mor que cobre toda a parede do fundo da capela, pode u visitante reconhecer o que procurava e, ao mesmo tempo, encontrar-lhe na fisionomia muito que não esperava. De fato, ali está aquele senso de ilusão e movimento incansável que sabia constituir a alma do bar~ roco. Começa, contudo, a distinguir. Na verdade, a ilusão desse barroco, muito embora empregue todos os recursos de uma magia armada e consciente, não se esgota no trompe-l'oeil, nem exige o esforço do "é como se fosse". Revolta-se contra os limites da pura prestidigitação e da simples cenografia. Não deseja fazer-se passar pelo real e, por isso mesmo, cria sua realidade própria, fora da qual não poderá ser alcançado. Engendra uma ilusão sem buscar iludir-vos e, sobretudo, se desejais compreendê-la, deveis evitar todos os esforços para decifrar seus pequeninos misté184
rios e seus passes hábeis. Porque, se são eles facilmente dc:cifráveis, jamais por aí se chegará à inteira fruição estética do todo e dos pormenores. Para tanto. impõe-se receber esse mundo formal, não como substituto do mundo habitual, senão como um mundo diverso. mas. nem por isso, mesmo autêntico. Voltando ao nosso exemplo, poderíamos assegurar que uma coluna barroca apenas enunciada pelo esbatimento de linhas à borda de um retábulo monumental. se imi(a as formas em escorço de uma verdadeira coluna. não deve ser apreendida como uma coluna verdadeira que assim se figurou. Antes pelo contrário, para captá-Ia em toda a beleza, importa aceitá~la tal como é, deformação consciente c, por certo, mais bela c potente que o modelo inicial. Em outra oportunidade. pode-se ter, à borda de um medalhão que encabeça uma portada rica, uma linha de fiarão ornamental que se resolve, subitamente, numa asa de anjo. Seria inútil tentar uma dissecação lógica do conjunto, pois jamais ter-se-á por razoável que uma linha de flores dê nascença a um membro feito de penas leves. Não obstante. a consistência do conjunto é tal que faz obrigatória a compreensão puramente estética da obra regida apenas pelo impulso das linhas em volutas largas que, para acabarem~se. pedem a contradição de uma curva ascendente, pequenina e forte, antes do gesto final da linha quase reta que vai do alto ao termo da plumagem. Por que falar de ilusões ópticas ou. sequer. de habilidades enganadoras? Só se chega ao barroco mergulhando nele, ou melhor, deixando que ele submerja o espectador. Esta tese, no entanto. não exige nenhum esforço. Não precisareis procurar aquela simpatia calculada, aquela transposição especial e temporal que quase todas as grandes fases históricas da arte solicitam. Pelo contrário. tudo que se pede será apenas a cessação de qualquer esforço, a entrega total do ser. Se, para dormir e penetrar no mundo dos sonhos. o corpo deve ir furtando cada músculo à sua função dinâmica diurna e desligar-se, desse modo; dos pedestais da vigília, também o espírito diante do barroco deverá abandonar todos os frágeis pontos de apoio a que, em nOSsa vigllia intelectual, nos agarramos, para sub.ir até a beleza. E, se o sonho embrenha-se quase sozlOho no corpo e o adonnece, também o barroco envolve o espírito e o 185
amolenta com suas sugestões, até amansar~lhe todas as resistências. Difícil seria resistir. Detenha-se, pois, a razão, em sua sofreguidão impotente, diante da obra de arte e esta, sozinha, atingirá seu· fim. Em seus caminhos altíssimos, a arte tem-se defrontado com o racional, alimentando as mais variadas intenções. Tentou servir-se dele para acabar na menos gloriosa vassalagem, como aconteceu no chamado esplendor grego. Ignorou-o, voltando-lhe as costas, para alçar-se a mundos novos, no gótico. Chegou mesmo a tentar a superação do conhecimento inteligente pela negação ou pela assimilação total, em tentativas mais recentes. Mas talvez nunca tenha enfrentado a razão com decidido ânimo de combater e para da luta sair plenamente vitoriosa, como sucedeu no barroco. A vitória, velha de séculos, ainda ecoa hoje, em Ouro Preto. PAISAGEM E MONUMENTO
J á aludimos ao contraste entre a fachada e o interior da Matriz de Antônio Dias. De um modo geral, essa é a nota curiosa de todas as igrejas do complexo ouro-pretano. Barroco perdulário no interior, severidade austera do lado de fora. Não que faltem olhos-de-boi, medalhões esculpidos, portadas ricas e imaginosas. Aí estão os dois Canno - o de Vila Rica e o de Mariana - , São Francisco de Assis, o santuário de Conganhas. Todos interessados em adornar a fachada. São Miguel e Almas têm mesmo seu famoso nicho com belíssimo santo em escultura livre. Mas a ondulação das paredes é mais rara: de novo São Francisco, Rosário ou o risco primitivo de São Pedro de Mariana valerão como raros exemplos do bombeamento das linhas principais da planta baixa. Mas nunca - salvo na exceção espedalíssima de Congonhas - a arquitetura se impõe . à paisagem para ordená-la segundo as regras do barroco e subordiná-la ao monumento. No entanto, esta foi a regra básica na Europa. San Carla alie Quattro Fontane tornou-se marco do estilo e glória de Borromini por ter imprimido às suas paredes, batidas numa n~sga de terreno, o panejamento incon. trolável de bandeira ao vento, e dali parte, em linha reta, a evolução que levará às escadarias da Plazza di
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Spagna e aos degraus d'água de Villa Torlonia. Nunca mais· o barroco fugiria dessa senda. Em Minas, uma primeira restrição foi imposta pelo próprio meio, pois não se encontraria, malgrado toda a fartura de ouro, aquela superabundância de fortuna que justificara e provocara as maiores obras européias. De uma maneira geral, as igrejas nasceram, em sua pobreza, da generosidade dos grandes da terra, posto que a Coroa mais sabia cobrar que aplicar as taxas devidas ao Papa. Em geral, construíram-se (como San Carla) da capela para a fachada, aguardando-se as doações e reservando-se a igreja para um enriquecimento final sem fugir à finalidade eclesiástica. Contudo, ao chegar à fachada c, sendo já tantas delas bem ricas, parece que se hesitou antes de transbordar para o exterior. Por vezes, admitindo-se o melhor aparelhamento da seção frontal, dali contudo não se passou e mesmo tais manifestações são claramente menos barrocas cá fora do que lá dentro. A simples lembrança do "churriguesco" mexicano (com seus ocasionais paralelos do norte do Brasil) melhor evidenciará o que queremos anotar e, assim, a explicação fundada no simplicismo determinista, que atribuiria o maior despojamento formal à menor riqueza da sociedade subjacente, deve completar-se por outras interpretações. Sobretudo nos monumentos mais velhos, a discrepância entre altares e fachada (que, em termos gerais, possam ser considerados como obras contemporâneas) apela para outras causas. Padre Faria e a igreja de Ouro Branco são ilustrações gigantes; Antõnio Dias, a peça global de mais fácil análise; Pilar, o argumento decisivo. Na verdade, as igrejas mineiras não sentiam aquela fome espacial - "feeling for space", dizem os comentaristas ingleses e norte-amcricanos - que tantas vezes lcvou o barroco às expansões paisagísticas e panorâmicas. Em primeiro lugar, porque o problema, em Minas, se invertia: tratava-se apenas de plantar a igreja na terra como uma afirmação e nunca se procurou comunicar ao chão mais próximo o ritmo arquitetônico. Aqui, o templo não nasccu afogado pelo casaria de cidades velhas, mas sempre teve à disposição todo o terreno que desejava. Parte o viajante, em suas excursões por Ouro Prêto, das margens dos córregos - o Caquende, o Tripuí, o Sobreira - onde, por certo, brotar:am. as pn187
meiras casas, e compreenderá que todas as igrejas procuraram o alto dos morros e, desde que o casaria as circundava, podiam-se encontrar sítios novos ainda mais
elevados, até alcançar o pedestal formidável elll que se plantou São Francisco de Paula. Não se cuidou, pois, de enriquecer o terreno, mas de evidenciar a igr~ja. Além disso, seria absolutamente inútil qualquer tentativa em sentido contrário. Porque, na verdade, 8 topografia da zona do ouro ofereceu-se monumental e barroca. A orografia das Gerais, desdobrando-se em imensos dorsos antediluvianos na imobilidade do repouso, tem sempre uma dobra envolta em penumbra, como as estátuas barrocas sempre entregam uma parte de sua superfície à voracidade da sombra. Vila Rlca, com seus mil e cem metros de altitude, longe de dominar senhorialmente os campos subjacentes, acaçapa-se, à beira d'água, no fundo de três valezinhos apertados que despejam no ribeirão do Funil e entrega a metade de seu céu ao espetáculo impositivo da montanha. Esta, mesmo quando desabrocha nas flores ásperas das grandes rochas, mantém a mesma variedade de colorido e de luz, pois a pedra, ao invés de mostrar-se na esfericidade negra a que nos acostuma a paisagem paulista, rompe a terra em gumes e dentes afiados, formando florões ornamentais à volta dos grandes caracóis ciclópicos dos montes, que a carapinha rasteira da vegetação apenas colore. Mas, afora essa impressão, que não sabemos ao certo se vem da orografia ou se nasce da sugestão poderosa da obra humana atacada a seus flancos, vale por atribuir à paisagem uma função mais direta e concreta na determinação de uma monumentalística peculiar das Minas Gerais.
De fato, se a feição das cidades prende-se ao caráter do solo que a agasalha, esse parentesco não se deverá à inspiração estética que o panorama admirável incute, mas ao esforço cotidiano que a terra impõe ao homem: quem alicerça ou bateia, traz sempre os olóos voltados para o chão em que planta os pés. Ora, as ddades da zona do ouro, e sobretudo Ouro Preto, incrustaram-se na montanha e dela tiraram sua fisionomia. Até as praças e os adros são em declive. A rampa e a curva dominaram avassaladoramente toda a organização urbanística. Não há ruas, há ladeiras. Não há caminhos, 188
há voltas no morro. As pontes, que são tantas, não ligam numa só duas retas que se encontram, mas representam apenas o ponto de passagem entre um declive que se percorreu e um aclive que se começará a subir. Os chafarizes por vezes apóiam-se nas encostas. As esquinas transformam-se em escadas circulares, quando todo um quarteirão não se fragmenta em degraus. Casas que têm quintais em tabuleiros defrontam-se com casas que jogam os cômodos traseiros sobre pilares de pedra ou de madeira forte. E isso por todas as partes, desde o Caminho das Lajes à Esttada Real que leva a Ouro Branco,. desde a ponte de Antônio Dias à ponte do Pilar. . Que adiantaria, nessa .paisagem, uma escadaria barroca, longa e espalhada, em vários lances, seguindo eixos divergentes? De que valeriam, nesse panorama, jogos d'água que alternassem lagos ovalados e cachoeirinhas cspumejantes? Degraus, curvas e rampas há em todas as ruas de Ouro Preto e os córregos e ribeirões espadanam águas fervilhantes sob cada ponte e debaixo das janelas de cada sobradão. A cidade já nasceu barroca. ·FORMA E INTENÇÃO
Não sairemos, tão já, da matriz de Antônio Dias. Descanse o leitor, que o viajante não insistirá 00_ pecado de descrever altares, balaustradas ou pinturas. Se cedeu um pouco, diante do altar-mor dessa igreja velha, foi pela imposição da própria peça que não .se resigI1a ao simples registro e parece forçar a visão e a sensibilidade de quem a defronta. Por isso, mais do que suas belíssimas formas, o que anotamos foram as principais aventuras dos olhos nessa floresta cerrada de curvas e brilhos. Aliás, seria inútil a descrição desses despetdícios de talha vestidos do branco do gesso, do grito colorido do óleo, do ouro verdadeiro. A regra é válida, aliás, para toda e qualquer arquitetura de maior valia e, mais, para tudo que a completa e acaba. Num manual de desenho geométrico pode-se encontrar, porffi.enorizadamente exposta e até acompanhada de umas tantas fonnulazinhas matemáticas, uma voluta; que semelhança, para nós, haverá entre tais indicações, ditas objetivas, e a sensação que nasce, despreconcebida e nua de razões, da mais simples, da mais pobre, da mais 189
fria voluta jônica que o homem fez de pedra e postou . ao alto de uma coluna que a integra na construção? O descrever, o calcular, o expor e, mesmo, o reproduzir nada têm do encanto VIvo de um volume organizado em razão do conjunto arquitetônico. Fujamos, pois. às descrições: o homo sapiens pode interferir e, interfe~indo, ordenar a obtenção da peça artística, mas a obra de arte. tal como a recebemos, já pronta e total, continuará sempre a pertence.r ao homo faber. E não se poderá aviltar a grandeza da criação reduzindo-a, analiticamente, aos pobres passos da confecção, para ignorar a contribuição humana que comunica à arte vida perene e luminosa. Essa observação, válida para todas as grandes fases da arte, torna-se gritantemente impositiva no caso do barroco. onde parece incluir-se na própria intenção explícita das peças. Dir-sc-á, talvez, que a pretensa fuga ao racional não passará de simples projeção de nosso próprio de::>ejo de fug~ à razão, atitude artificial ou, pelo menos, requintada. Incréu, crítico. indigestado de pretensa erudição ou exaltado por fragílimas convicções teóricas, o viajante buscaria apenas arrancar dos monumentos de Ouro Preto uma simples compensação, bela e sensível, de suas canseiras cerebrais ou cerebrinas. Mas essa guerra à razão, hostilidade puramente ocasional e fugaz no homem moderno, cuja condição social há de incluir uma fatal coordenada. cartesiana, foi campanha sofrida, matéria de vida e morte no processo do barroco. O jogo de espírito contemporâneo já constituía justa sangrenta há cento e cinqüenta ou duzentos anos atrás. Colocai, em Antônio Dias, o homem dos fins da colônia. Ele é, por natureza, um hesitante. Não por timidez, mas pela incompleta ousadia que o leva apenas a meio-caminho da superação almejada. Na poesia é árcade, pastor helênico, mas já começa a sentir o encanto do negro escravo, das lavras, da América, Nos costumes, aspira aos figurinos europeus, mas já cedeu algo às cômodas simplificações indíBc.nas. Nas realizações de maior porte, admitirá a cópia de uma igreja portuguesa - digamos, de .Braga - , mas faz o seu casarão citadino dentro das novas normas impostas peJa adaptação ao ambiente ou peJas necessida· des sociais nascidas da culturp. nova. ;'Na política. so190
bretudo, quando toma consclencia do grupo e intenta aperfeiçoá-lo, cai em verdadeiro paroxismo de marginalidade. Esboça timidamente uma república futura, tão vaga, tão sonhada, tão poética, que nela haverá todas as possibilidades de uma aristocracia risonha. Pressente os prejuízos das barreiras sociais, mas invectiva o Minésio por não usar alvas cabeleiras, nem beijar com graça a mão das senhoras. Homem livre da América, não resiste às injunções do colete de seda e da casaca verde-alecrim. Quando risca a bandeira da revolução, que não saberia defla.,grar, fica interdito entre um índio de cocar e um verso latino. Sob tantas indecisões, patenteia-se, enfim, a indecisão fundamental, que viera de fora, que lhe chegara do europeu autêntico, também ele hesitante entre a Cruz e a Enciclopédia. Para esse homem fêz-se o barroco um argumento forte. Contra a razão setecentista, Razão maiúscula que chegaria à condição divina, ergue-se uma arte poderosa e convincente. E a catequese impositiva que a todos se dirige: ao intelectual armado de diploma coimbrão e delicado versejador de rimas perfeitas, ao tenente-coronel bonacheirão que mantinha lavras medianament~ rendosas, ao suboficial espezinhado e mais sinceramente violento em suas façanhas, ao mascate matreiro, ao vendeiro bem humorado, ao escrivão míope e acanhado, à rudeza do capataz, ao orgulho bárbaro do forro de Chico-Rei, à inquietação do mulato pobre, à mística impermeabilidade do negro ·escravo. Contudo, esse apêlo ao não racional - pois, nenhum valor tinha a crença alcançada pela inteligência despojada da fé deixou de atingir o fim último, embora superabundasse em efeitos colaterais. Em primeiro lugar, extremam-se os tipos e os hesitantes recorrem aos exageros para definir-se. Perante o braço secular, como se verá na insurreição frustra, definem-se os leais súditos e os positi.vamente revoltados. Perante o trono romano, definem-se os crentes devotos ou os ousadamente ímpios. A condição e a posição social, no caso, pouco contam: não se estranham os cônegos voltairianos de quem postumamente Eduardo Frieira se faria demônio. _. E, se havia traidores e hipócritas, não devemos esquecer que a traição e a hipocrisia são formas aberrantes da fidelidade e da rebeldia. 191
De sua parte, a arte não se define. Adapta-se. Assimila. Desenvolve-se. Destinada, de origem, a combater a razão, prefere cuidar de si própria a continuar hostilizando um inimigo tão fraco e tão desesperado. O barroco mineiro começa, pois, a atender menos aos interesseiros destinqs que o tinham engendrado na Europa e contra plena satisfação t::ffi desenvolver-se, desin.teressadamente, em ·razão de si próprio. A ilusão visual, de onde partimos nessas primeiras observações, deixa de ser meio e instrumento, e passa a constituir interesse e objetivo em si mesmo. Não é, conseqüentemente, estranhável ou sequer surpreendente que o barroco de Minas apresente uma originalidade toda sua, um esplendor nessa originalidade e, sobretudo, que acabasse por servir à expressão da sociedade "contra" a qual, inicialmente, se organizara. Ao cabo da sua evolução e tal como o temos ainda hoje, não esmaga a razão com a simplicidade dos guerreiros estúpidos, mas, em simples torneio lúdico, mostra-se tão superiormente poderoso que finda por enriquecer o homem.
A Matriz de Ouro Preto A mesma curiosidade que levou o viajante a procurar inicialmente, em Vila Rica, a Matriz de Antônio Dias, deverá impeli-lo agora a atravessar a cidade para ir à igreja de Nossa Senhora do Pilar, Matriz do Fundo de Ouro Preto. Na verdade, os homens dessas duas freguesias até hoje se defrontam ignorando a' unidade municipal que, desde cedo, a Coroa instituíra colocando, entre os dois grandes arraiais evoluídos, o poderoso traço--de-união da autoridade reinol afirmada pelo palácio dos governadores e pela imensa cadeia, no alto do morro de Santa Quitéria. A majestade lusitana e seus canhões vigiavam pelas costas os dois povpados e foram temidos, mas não conseguiram convencer aos de Ouro Preto e aos de Antônio Dias que pertenciam, todos, a Vila Rica. O antagonismo de ontem continua na diferenciação puramente convencional de hoje, sendo sem-pre viva essa memória. Por isso, depois de uma Matriz, impõe-se visitar a outra. Esteticamente, a transição é fácil e agradável. A fachada da Matriz do Pilar tem a mesma sobriedade severa de Antônio Dias. Apesar de todas as modifica192
ções sucessivas, a semelhança ainda é impositiva, o que levou alguns a atribuírem-nas, ambas, a um mesmo arquiteto - Pedro Gomes Chaves. Ademais, aqui também se mostrará o contraste entre exterior e interior. Muito mais forte, porém. Desde o tapavento, o visitante é engolfado numa onda de ouro. A nave, escura e ampla, é toda ornada pelos seis fartos altares laterais e cercada de camarins em toda a volta. A capela-mor. ainda mais sóbria, é inteiramente dominada pelo altar do trono. Essas peças, talhadas no mais sincero barroco que se poderia esperar do lado de cá do oceano, não desprezaram as regras da boa escola de que nasceram e, se há, de toda evidência, maior desperdício de pormenores ornamentais, com largo predomínio de adornos florais denticulados que se dobram em torções freqüentes. os elementos compo- . nentes, sejam humanos ou vegetais ou arquitetônicos, ainda não se contaminaram de todo, em sua morfologia intrínseca, do ritmo do barroco nativo. Corpo e rosto de anjos são calmos e bem formados. as colunas salomônicas mostram·se ágeis e isentas daquelas adiposas roscas que noutras igrejas se vêem; tudo, enfim, parece mais regrado quando encarado em pormenor, destacado do conjunto. Não obstante, a igreja, no. todo, parece mais afrontosamente r:ica, mais exuberante em sua vaidade, mais impositiva em sua autoridade arrogante. O milagre está no pigmento. Porque no Pilar tudo. mesmo aquilo que o óleo coloriu mais tarde, é coberto de ouro. Aqui. o arranhar do tempo e certa curiosidade cautelosa revelaram que houve, de fato, recobrirncntos posteriores. Então a igreja, já tão cheia de ouro à primeira vista, parece recobrir-se inteira desse brilho amarelo-tostado que fulge entre sombras, consumindo toda a luz ambiente nos reflexos fulvos das obras encurvadas dos altares e dos notáveis painéis laterais da capela-mor. A pintura foge para o teto onde se encastoa em caixões de três palmos de profundidade, novamente cercados de ouro. Livres dessa capa régia estão, apenas, as aves monumentais· pelicanos em estilização funcional, quer parecer-nos, apesar das opiniões em contrário - , que su'stentam, sobre a nave. as lâmpadas votivas laterais, e também a bela e equilibrada Trindade que coroa o altar-mor e na qual figura um Deus-Pai (entidade 193
freqüente no barroco e rara na iconografia posterior) tão vigoroso, tão belo c tão jovem que ma.is parece uma réplica do Deus-Filho que defronta. Mas, afora essas figuras e as pinturas do teto, Pilar se fez de torêutica e douradura.
o
TRIUNFO DO EMBOABA
Cabe, então, ouvir a explicação que generosamente dá o vigário da Matriz, o paciente Padre João do Pilar, clLja voz calma e cuja paciente narrativa, completadas pelo morno depois-do-almoço dominical de Ouro Preto, levam à imaginação o mais positivo dos homens. A ex· periência dos quarenta anos de serviço aos pés do mesmo altar e a prudente sabedoria da idade levaram-no a uma simplicidade interpretativa que, talvez se conjugando mal com a miuÇ(,alha de fatos da crônica, atingiu, contudo, à mesma solução alcançada pelo Se. João Camilo de Oliveira Torres ao tentar uma visão antropo-sociológica dos primeiros povoamentos do ouro. Para o padre e para o historiador, a diferenciação entre Antônio Dias e Ouro Preto descende diretamente dos choques entre paulistas e emboabas. Dos encontros sangrentos à vaguíssima competição bairrista de hoje, vai toda uma escala de antagonismos, estando o ponto intermediário de maior importância ·na competição orgulhosa das fortunas. Ora, as duas matrizes, centro da vida religiosa e social dos dois arraiais, haveriam de registrar esse passado de embates. Na guerra, nem sempre branca, das duas facções, a grande batalha e a maior vitória de Ouro Preto foi o famoso Triunfo Eucarístico, a monstruosa procissão que em 1733 transladou o Santíssimo para o Pilar, então simples capela, pois a nave ainda não fora atacada. O incrível préstito compôs-se de incontáveis figuras mitológicas, bíblicas, do martirológio ou da imaginação tradicional, todas representadas pelos "grandes", que esgotaram supérfluos c reservas em veludos bordados com fios preciosos para cobrirem-se e às suas montarias; em pedraria de cor e brilhantes para marchetar os fiorões do peito, das costas, dos gorros; em rendas e plumas para acabar mangas e arrematar chapéus; em chuveiros de diamantes, postos em diademas, pulseiras e broches. Aqude que encarnava "Ouro Preto" - quem 194
seria? - vinha vestido de veludo negro e ouro escuro, e trazia, numa salva de ouro, enorme réplica, ainda de ouro e maciça, do morro que deu nome à freguesia! Era o batismo áureo da matriz. Antônio Dias, de qualquer forma, fora derrotado. A consolidação da vitória fez-se ainda pelo orgulho. A igreja do Pilar sempre preferiu os artistas reinóis, igw norando a contribuição dos primeiros artesãos da terra e dos primeiros mestiços. Essa interpretação do padre vigário do Pilar peca um pouco, como dissemos, quanto à precisão histórica. Teremos de abrir mão dela se aceitarmos a hipótese de um só arquiteto para os riscos da construção, ou se lembrarmos que mestre Manuel Francisco Lisboa enriqueceu com seus trabalhos a fre-.· guesia de Antônio Dias, ou que a famosíssima estátua eqüestre de S. Jorge, do Aleijadinho, pertencia à igreja do Fundo. Mas, se abrirmos mão dessa teoria simples e eletiva, como compreender a matriz do Pilar, tão diversa das igrejas dessas montanhas e que logo lembra aos viajantes mais experimentados os templos baianos? Porque só o orgulho emboaba explicará a riqueza poderosa da matriz com seus nobres e negros jacarandás, a profusão de esplêndidos paramentos, a grande cômoda de dez metros de comprimento e feita de uma só madeira, o infinito de suas pinturas da sacristia e da nave, e, afinal e principalmente, a lavra mais fina, mais regular, mais acadêmica, de seus altares e adornos. Negar que entre Antônio Dias e Nossa Senhora do Pilar mew deia a distância de dois ciclos culturais, aparentados mas em antagonismo, será requerer, para explicar-lhes a dessemelhança, o argumento inviável de duas esferas artísticas autônomas ou de duas espécies sensíveis ignorando-se mutuamente. . A igreja mineira torna·se, pois, o instrumento de diferenciação dos vários grupos. Muito provavelmente, também os indivíduos se utilizaram desse mesmo processo, pois, além de se terem conservado alguns nomes de instituidores de capelas (com a auréola trágica de uma legenda romântica, no caso de Mercês de Baix~, as ordens funcionariam como organismos intermédios, o bastante grandes para evitar as personalizações gritantes, o bastante pequenas para não velar de todo a iden· tidade dos doadores de maior monta. Afinal, numa sOw 195
ciedade escravagista, sem vida feminina fora da moradia, as parcelas operantes, isto é, os homens maiores e não-dependentes constitUiriam, talvez, o décimo ou o duodécimo da população total. Dentre esses, os ricos destacavam-se e chamavam sobre si a atenção de toda a cidade. Daí o desejo de afirmar-se e reafirmar-se, de fazer-se e. manter-se "um". Se a Igreja se tomara o foco de competição entre as freguesias rivais, seria também forçosamente a via de satisfação da vaidade pessoal; quem não consegue perceber que os ouro-pretanos disputaram arduamente o direito de personificar tal ou qual figura relevante no Triunfo Eucarístico? Mas acrescentamos uma palavra final que nos servirá de guia nas próximas visitações aos templos de Vila Rica. Se a igreja era a via, o ouro era o motor. Não se trata de repetir apenas o truísmo sobre a infra-estrutura econômica, mas sobretudo de sublinhar o papel onivalente do metal precioso que encontramos cumprindo um punhado de funções: produto da indústria mineradora, moeda corrente (cunhada ou não) I objeto de adorno, matéria-prima das obras de arte - tudo isso in concreto, sem as abstrações do capitalismo porvindouro. Ouro e arte religiosa são, por via de regra, os termos das equações que exprimiram, pelo menos nas expansões mais altas e duradouras, os movimentos sociais da civilização das Montanhas. PERMANÊNCIA DD EsTILD
Patenteado por tantas evidências históricas de ordem geral, o antagonismo entre Antônio Dias e Pilar, melhor do que qualquer outro dos conflitos intergrupais que agitaram e aqueceram a vida social de Vila Rica, servirá para iniciar o viajante nos mistérios do barroco. Porque, como vimos, a afirmação social e econômica, que inspirou e custeou a ereção e o desenvolvimento das duas igrejas, deve permanecer no meio-termo de algo entre o pressentimento e a interpretação, evitando-se colocar o problema em termos de extremado determinismo, que nos afastariam, irremediavelmente,. da realidade. Que houve rivalidade acesa e, até, choques violentos entre os dois arraiais e as freguesias suas herdeiras, não há dúvida. Julgar, porém, que daí proviesse 196
uma diferenciação total dos dois monumentos, seria pouco inteligente e menos viável. Trata-se de apanhar. quase sempre por via sensível apenas, as modulações no tom, na nota, na expressão subjetiva das obras de arte, não esperando modificações fundamentais na linha, na ordem, na fisionomia material do estilo. A rigor, não se deve procurar saber se mudou a regra, mas tão só se buscará conhecer as maneiras especiais de obedecer-Ihc. Na vcrdade, salvo certos casos particulares que a seu tempo serão anotados, vale considerar Ouro Preto como um reino quase absoluto do barroco, empregando-se aqui o termo em sua acepção brasileira, segundo passo de uma evolução iniciada vigorosamente pelo "jesuítico", ou, numa palavra. algo que corresponderia a uma maturidade e esplendor da concepção européia inicial. Há mesmo, a marcar ponto de partida da maneira local e começo de declínio da fórmula vinda de fora, esplêndidas amostras mais antigas, como a capela do Padre Faria. Também do tenno final desse processo, há documentos já do tempo do Império. Nessas notas. ao menos em sua intenção inicial, procuraremos ficar mais nas generalidades (mesmo arbitrárias ... ) e. assim, interessar-nos-á mais captar o fenômeno em sua fase de plena expansão. Aliás, esse "barroco brasileiro" mostra-se bastante farto para dar vazão a todas as necessidades de ordem social. Vimos como isso aconteceu enquanto mais violento foi o atrito entre os dois grandes grupos globais. O caso, no entanto, não é único, nem o mais gritante, muito embora represente o ponto de contato inicial mais favorável ao viajante despreconcebido e curioso. Mas, imediatamente contíguos, outros exemplos abundam como o dos grupos negros. Escravo ou liberto, o africano sentiu necessidade de demonstrar vigorosamente que era feito da mesma massa humana dos brancos, senh~ res ou não. E. ao menos nas igrejas, o conseguiu. Igrejas Negras
Convincentemente, o Sr. João Camilo de Oliveira Tôrres encareceu, já. o papel das ordens terceiras. "Um dos característicos principais, uma das notas essenciais da sociedade do período histórico que se convencionou chamar de 'antigo regime' era a existência de grupos 197
dentro dos quais todos eram. innãos." Na Europa, conheceram-se as corporações que visavam unão somente resolver os diversos problemas dos seus sindicalizados no ponto-de-vista terreno, como também salvar as suas almas". Mas no Brasil interferem as diferenças raciais. "Distribuíram então as irmandades pelas três raças. Dentro da irmandade, cada irmão tinha amigos e sociedades, socorros espirituais e materiais; os que ocupavam cargos de diretoria tinham oportunidade para ganhar prestígio social e desenvolver suas qualidades de dominação. Havia ambiente para firmarem-se coletivamente; perte.nciam a um grupo importante na vida social." Donde poder-se concluir: "O aspecto no nosso caso, mais importante, das Ordens Terceiras, foi o social. Aos negros recém-vindos da África, foi concedido um ambiente favorável e adequado, onde eram homens livres e não sujeitos a outrem e onde escolhiam os seus chefes ... " Uma vez traçada a linha de antagonismo entre Antônio Dias e Ouro Preto, o encontrar-se um par de igrejas "negras" em Vila Rica assume ar de coisa certa, de comprovação de lei. Elas lá estão: Rosário, na freguesia emboaba, eSta. Ifigênia, do lado paulista. Ambas não teriam muito para mostrar ao viajante, não fosse a particularidade da linha arquitetônica geral (o sítio numa, e noutra, a planta baixa) e auréolas lendárias verdadeiramente curiosas. Sta. Ifigênia (na verdade, N. S. do Rosário dos Pretos da Cruz do Alto de Padre Faria, como ensina Manuel Bandeira) está no alto do morro no extremo leste da cidade. Para chegar lá, é preciso vencer a ladeira colubrejante e íngreme do Virassaia (expressão das dificuldades topográficas ou o nome expressivo de um lendário bandido e tambeur de femmes?), mas, mesmo ao cabo dessa longa e extenuante subida, o acesso à igreja ainda exigiu uma escadaria de trinta ou quarenta degraus - é a topografia barroca de Ouro Preto, já referida, diante da qual o arquiteto, respeitoso da Natureza, evitou retorcer degraus ou espaçar lances desiguais. A fachada é graciosa, sobretudo para quem vem das velhas matrizes severas, mas não se entrega a grandes fantasias. As linhas tradicionais que o barro abrandou sem desfigurar só cederam à imaginação no implantar um nicho que, forçando 198
com a base o arremate da porta, vai encobrir um pedaço do olho-de-boi - sacrifício do funcional ao decorativo que sugere acréscimo posterior - ou no desenho ágil da cúpula das rorres, em que o bulhoso se achata em esbatimento forçado para mais leves se tornarem os expressivos pináculos. Se formos exigentes, isto é tudo que Sta. Ifigênia pode dar-nos. Nada, em seu interior, merece uma especial atenção. Mas Sta. Ifigênia também na lenda se coloca alto: ela é a igreja de Chico-Rei, construída quase à boca da mina que alforriava escravos e de onde subiam as negras com o cabelo empoado de ouro para lavá-lo na pia de água-benta ... Rosário (isto é, N.S. do Rosário dos Pretos da Freguesia de N.S. do Pilar) possui atributos mais positivos. Sua famosa estrutura bombeada, formada por dois ovais intersectados entre si e, na fachada, interrompidos pelos círculos das rorres, abrem caso especial na fonnalística do barroco mineiro. O Sr. Miran de Barros Latif quis, a propósito, falar de "neotradicionalismo" e "neoclassicismo", admitindo-a "embora muito barroca em suas formas abauladas, nos pináculos do coroamento etc ... " e apegando-se a "uma certa severidade tradicional". Parece-nos um pouco forçada a interpretação, apoiada, aliás, apenas no fato de não se poder conceber 1'0 fuste das colunas com a placidez dos galbos clássicos, quando na missa, aos domingos, os homens se perturbam com o simples pressentimento das curvas dos corpos, sob a seda armada dos vestidos ... " A regra das fachadas do barroco mineiro é, mesmo, a da severidade e Disso devem acompanhá-las as colunas, encontrando-se exceção nos pilares centrais do adro de S. Francisco de Assis. Ademais, colunas de volume liberto teriam perturbado a fachada do Rosário, onde o movimento abundante e poderoso da planta baixa, no caso de ser multiplicado nos pormenores, descairia para um. amaneiramento rococó qualquer. A. aparente simplicidade exterior dessa igreja na verdade não existe; será antes impressão vaga da quase desilusão que nos causa seu interior. Sua fisionomia externa, mesmo sem pedra-sabão e medalhões elaborados, enquadrawse no barroco e constitui apenas uma ousadia arquitetônica, como há, no Canno, uma modesta ousadia decorativa.
Mas só. 199
Aqui, aliás, para as observações que nos sugeriram esta nota, há um dado histórico que não se pode subestimar. A lenda cede ao fato comprovado e o poder das irmandades negras torna-se patente e impositivo quando sabemos que o Rosário dos Pretos, quando ainda capelinha, abrigou o Sacrário Paroquial e que na igreja dos africanos teve o orgulho português de vir buscar o Santíssimo para o Triunfo Eucarístico. Como também no Rosário de Ouro Preto sempre houve "hü Rey e hua Rainha, ambos pretos de qualquer nassão que seja", parece-nos que assim se comprova a tese da função de afirmação social desempenhada pelas igrejas e irmandades na civilização do povo. Pretos e brancos, no mundo religioso, colocavam-se, como poderes soberanos vizinhos, em pé de igualdade. Deve precaver-se o visitante de Ouro Preto contra as tentações do esquema, pois tão farto e tão belo é o material que encontra e tão envolvente o clima histórico que, muito provavelmente, as pretensões eruditas voltam a emergir do silêncio em que a afogara a humanidade do primeiro instante. Valha, pois, esse mea culpa para escusar certo esquematismo algo forçado que começa a dominar essas notas. Interessados em apontar a docilidade do barroco quando submetido a certas exigentes necessidades de expressão social, e insistindo em sublinhar o caráter suntuário e o processo de ostentação da auto-afirmação de grupos em choque, tememos agora ter simplificado exageradamente o pensamento. Não se creia, pois, que atribuímos ao barroco mineiro uma constante tendência a exprimir-se apenas em formas ricas. As expressões "altas", de verdadeira prepotência econômica, parecem antes resultar dos valores sOCiais dominantes na civilização do ouro, aos quais a arte pode acompanhar sem cair em escravidão. Não há, como forçosamente haveria de não haver, paralelismo entre a altura da expressão artística e o nível da fonte econômica que a instigou. Assim, se na luta entre as freguesias Ouro Preto pode conseguir a vitória esmagadora do Triunfo Eucarístico, na competição mais lenta e mais grave dos monumentos - Pilar teve de enfrentar Antônio Dias, embora muito mais rica. Depois de encerrado o espetáculo da competição social, voltam a pesar outros elementos que o exibicionismo perdulário do ouro-moeda temporariamente ofus200
cara. A autenticidade, o equilíbrio e, sobretudo, a originalidade da obra acabam por reclamar seus direitos. Daí, talvez, certo desapontamento que causam os interiores das igrejas "negras", nas quais uma primeira reivindicação de status superior concretizou-se em pretensão arquitetônica (o sítio em Sta. Ifigênia, a planta no Rosário), mas às quais faltou uma segurança artística que continuasse na nave, no altar-mor e na sacristia, a diretiva adotada no exterior. Não se conclua, contudo, que a pobreza enfeie os templos: na verdade, nada assegura que a igreja de Chico-Rei não contasse sempre com os necessários recursos econômicos, sendo antes lícito supor um depauperamento artístico ou, mesmo, artesanal. I.~rejas
Pobres
~ Ganha, pois, o barroco mineiro uma independência expressiva que limita a tirania das determinantes econômicas. Há igrejas pobres, belas e feias, ou então belas e feias igrejas ricas. Algumas vezes, a pobreza é mesmo condição. Em outros casos, é apenas o fruto de progressiva decadência. Na primeira categoria está Mercês de Cima. Na segunda, Mercês de Baixo. Ambas, aliás, cheias dessas emendas de arquitetura e decoração que refletem os azares do dinheiro ou a transição dos raros mecenas individuais. Mercês de Cima não deveria ter a fachada atual e a torre exigiu o desfiguramenta da estrutura interna, como anota Manuel Bandeira no Guia. Abriga alguns móveis antigos. Mas já no que tem de mais velho restou da igreja primitiva, já no que tem de mais recente marca-se por uma npta decididamente pouco próspera. Tem mesmo uma certa graça e imitação de grande templo, com os camarins laterais da capela-mor, redução das largas varandas dos templos maiores. 'E, nesse espírito humilde de fazer o possível, desenvolve-se toda a igreja de altares d=spojadas e claros, desarmados das douraduras, dos planos múltiplos e das rotundidades sucessivas do barroco farto. J; a timidez discreta do pobre imitando o rico, sem desejo de igualá-lo. que recorta curvas barrocas à . borda dos retábulos, mas deixa as tábuas, no mais, lisas e limpas. Dir:s~-ia uma versão linear daquela mesma decoração, que, de comum, se vê jogando à custa das
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três dimensões e de suas ilusões. Não se creia que daí venha o mau gosto da imitação simiesca e desajeitada; pelo contrário, a igrejinha, tocada pela luz da manhã, tem um encanto especial, uma concisão modesta e consciente de quem prefere calar-se para não proferir disparates. No seu aparelhamento discreto, só terá, para uma vaidade maior, a fachada, que não é talvez muito bonita, dado o excesso da solução rigorosamente canônica do frontão em triângulo regular, nem exageradamente graciosa com suas sacadinhas de ferro ornadas de pinhas de cristal de cor, mas que pode dar-se ao orgulho de um medalhão de discreta lavra de pedra-sabão, completado por elegantes florões de ornato, em que se quer ver a influência estilística, direta ou indireta, do Aleijadinho. Um pormenor que não merece ser desprezado é o conjunto de imagens de Mercês de Cima, tanto alguns santos, bem antigos, que se encontram nos altares (sobretudo um Batista-menino de exagerada cabeça), quanto, principalmente, as estátuas que figuram nas procissões. Ficam estas, em geral, desarmadas, e só têm suas peças compostas para as grandes ocasiões: as treze figuras da Santa Ceia, que na Semana da Paixão se arma numa sala aos fundos da sacristia; um papa e dois cardeais - todos anônimos, como convém à transcendência do poder espiritual - , com que se carrega um andor semi-alegórico; uma imagem anônima (talvez um segundo São Pedro Nolaseo, fundador da Ordem), que está de pé, o ano todo, no consistório, para ajoelhar-se aos pés da padroeira nas procissões, e, também, uma santa igualmente sem identidade nas suas alvas roupas freiráticas, mas que o sacristão transforma, nas ocasiões, em uma Senhora das Dores de trajes roxos e longa cabeleira. Q maior interesse não está, contudo, nos "segredos de bastidores", com perdão da palavra mas na fatura dessas peças, todas elas saídas de uma ou mais mãos não eruditas. Têm o poder expressivo do artista primitivo. Em Mercês de Cima, onde a peça de acabamento fino se chocaria com o resto do ambiente, as estátuas rudes fazem continuidade com as outras, mais antigas e bem autênticas, dos altares, e, sobretudo, com o tom geral do templo. A igreja encontrou o santeiro que lhe convinha. 202
Valha a referência para tornar patente a capaci~ dade de absorção do formulário barroco, capaz de resumir-se ou de expandir-se em extremos inauditos. Todas as mãos podem trazer-lhe contribuição, todas as sensibilidades podem dar-lhe uma interpretação, todas as forças do homem e do "grupo encontram maneira de exprimir-se através dessa linguagem poderosa. Haverá, nas igrejas de Ouro Preto, um barroco culto, um baixo barroco ou barroco bárbaro, mas a língua é uma só c a mesma, e suas variações ali vivem lado a lado. A mensagem, pois, não se perderá. Seria inútil tentar explicar o esplendor barroco pelas lutas sociais que foram a contingência c não a determinante das belezas de Vila Rica. Seria improfícuo tentar enquadrá-lo nos rigores de um esquema de prosperidade e disponibilidade econômica. Seria ingênuo tentar traçar uma simples linha evolutiva para reger e organizar esse conjunto de manifestações que, fossem quais fossem as condições circundantes, sempre encontrou meio de expandir-se dentro delas e até contra elas, modificando-se, adaptando-se, simplificando-se ou complicando-se, mas nunca - e isso é que importa - chegando a negar-se. Igrejas Velhas
Encantado com a maleabilidade do barroco mineiro e tendo os olhos cheios dessas contínuas c sempre renervadas variações sutis com que a arte desencadeada pela contra-reforma c alimentada pelo absolutismo conseguiu, afinal, em terra estranha e para outra gente, atender às solicitações exigentes de uma sociedade nova em plena expansão, viajante acaba por hesitar c deter-se. Não cairia ele, afinal, no preconceito turístico de só ver o que prefigura em espírito antes da excursão? Na higiênica simplicidade do hotel de Niemeyer estão seus companheiros de férias, e, na verdade, também eles, diante da cidade-monumento, só fazem seleciouar segundo o "seu" critério. Uma comissão inspecionadora, militar, louva o sítio ... dos quartéis, os turistas ricos excitam-se com a perspectiva de boas compras de antiguidades; estudantes de belas-artes enfurecem-se contra as ladeiras e deliciam-se com as serenatas. Há mesmo especialistas dentro de cada categoria como o autêntico cronólogo, amante de "antigório", descoberto
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por d. Raquel de Queiroz, ou aquele douto professor, cultor da estrita autenticidade, que virou as costas ao Javabo da sacristia de São Francisco de Assis afirmando "não haver inteira comprovação da autoria do Aleijadinho" . .. Mas, com que direito os criticaremos, se também nós andamos a buscar, no espetáculo imponente, a positividadezinha medíocre e sensaborona que carregávamos ao embarcar? Não nos deixemos, pois, afogar na sociologia seca e esquemática, sobretudo se ela desmerece a história, pois que história e sociologia ou andam de mãos dadas O~i. perdem-se a meio caminho. Na verdade, tão efetiva e autêntica é a função do barroco na civilização do ouro, que jamais nos perderemos, diante de seu esplendor, em esterilidades abstratas. Se das próprias igrejas salta a evidência das velhas lutas, das acomodações raciais e das desigualdades de fortuna, também delas próprias poderemos tirar toda a evo· lução da história que as fez e modificou. Não queremos aludir à crônica de fatos minúsculos, que registra um prego de ouro batido por D. Pedro II na base de um altar. Nem à história global desse núcleo econômico e político que conheceu pessoalmente Felipe dos Santos e Tiradentes e Pedro 1. Mas, sim, à história do próprio barroco das Gerais, o que, de certo modo, é fazer a história de algo que sinteriza a história. Certas igrejas servem de ponto de referência inicial e outras de indicação da etapa de termo. Basta que não se seja demasiado exigente no tocante às datas. Assim, por exemplo, a Capela do Padre Faria - que, pelo seu interior, já poderia considerar-se algo mais que capela e que se construiu muito depois de o padre-bandeirante ter-se retirado para Guaratinguetá constitui a peça mais velha de Ouro Preto. Porém, aqui, mais velha não se traduz no enunciado numérico de um determinado ano: diz seu lindo sino 1750, diz sua cruz pontifícia, lindíssima, 1756 - no entanto, diz a tradição que isso tudo já é posterior aos anos de sombria interdição da capela primitiva (cuja porta se fechou por causa do assassínio de um padre) c, também, de sua reconstrução pela irmandade do Rosário dos brancos. Quem sabe? No entanto, em Padre Faria está o mais velho barroco de Ouro Preto, o único que, todo de talha dourada, como o de Pilar, escapa à ostentação 204
evidentíssima da matriz emboaba. Há, na capelinha, uma tirânica severidade, que rege os altares fulvos em sua avançada para fora das sombras densas da construção de reduzidas proporções. E, tudo, ali, indica que não foi a riqueza que fez o barroco de Minas enriquecer-se. " A Capela do Pe. Faria é rica. No acanhado espaço que a taipa pode cercar, pôs-se um máximo de torêutica finíssima e nobre metal. O oficiante vinha para o púlpito passando por um alpendrezinho externo à sacristia e ao corpo do templo (lá estão, ainda, alicerces e calçadas), mas no interior respira-se a atmosfera da largueza econômica. Não nos deixemos arrastar, portanto, pelo exemplo da Pilar, cuja decoração luxuriante não deve ir para a conta da evolução dum estilo, mas apenas ser atribuída à hipertrofia do orgulho dos nababos que sucederam aos pioneiros. Tanto melhor: o que se caráter dos homens e não o da arte. Esta, desfez foi no máximo, tolera; nunca pactua, porém. Essa interpretação não se deve a um exagero. Ela, como tôdas as idéias que nos vêm à cabeça em Vila Rica, é imposta por mais um outro monumento: no caso, a igreja de S. Miguel e Almas, ou seja, do Senhor Bom Jesus de Matozinhos das Cabeças segundo a consagração popular. Certos críticos, ardentes de espírito de geometria, sorrirão com ver aqui citada, como igreja antiga, aquela que possui na portada um belíssimo São Miguel de pedra-sabão que, embora faltem documentos, terá de ser atribuído ao Aleijadinho, a menos que houvesse na antiga Ouro Preto outro gênio de porte idêntico ao do mestiço famoso. Hesitamos, contudo, ao defrontar o belo arcanjo e, sobretudo, esse baixo-relevo que, a seus pés guerreiros, figura o Purgatório. Olhemos, antes, para a construção da igreja. Matozinhos cresceu lentamente. Vista dos fundos," deixa perceber que, de início, foi simples capela ocupando o espaço que hoje é da capela-mor, segundo o ritmo de tantas outras construções religiosas de Minas. Aliás, o próprio altar-mor parece vir desses tempos difíceis; tão simples é no recorte de tábuas lisas",à borda dos retábulos, a lembrar talvez os de Mercês de Cima, nãç fossem ainda mais toscas as colunas que aqui, ao invés de apar~c'erem cônicas ou cilíndricas, são simples três pranchas que secções de obeliscqs truncados -
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uma tabuinha, lá no alto, coroa com imitação pintada de capitel florido. Todas as curvas desaparecem, seja no altar. seja na planta baixa, e até no teto, querendo fazer-se côncavo, só consegue uma retilínea conjunção. a 45 graus, de três planos lisos. Salvo os conezinhos envergonhados dos dois nichos laterais, nenhuma linha da construção e da decoração escapa à régua. Voltas e volutas só mesmo pintadas e. ainda assim. raríssimas. Contudo, Matozinhos aspirava ao barroco. Malgrado esse império do retilíneo - a reta traduz a pobreza de recursos e a rusticidade técnica - é barroca. Ali está toda uma época a reclamar o seu espírito, a remediar-se como pode para não faltar à fidelidade para consigo mesma. E: a fatalidade, de certa fonna, que se sabe única capaz de exprimir um estado de alma, urna cultura, uma política até. Contudo, Matozinhos cresce. Faz-se a nave mais larga e mais alta que a capela-mor e, ao mesmo tempo ou logo depois, as torres. Os tempos são melhores e. embora sejam só dois, os altares laterais superam folgadamente, em risco e execução, a peça do trono. Que mais longe ainda se queria chegar. mostra-o o púlpito começado em pedra lavrada, mas até hoje ostentando a caixa su~ária de maâeira livre, ali posta, por certo, provisoriamente. Veio, afinal, a terceira parte da construção, em "U", a pinçar os extremos da nave e a envolver a capela-mor, lateralmente com dois corredores e ao fundo com uma sacristia. Nesse corpo, as peças complementares, mais ocasionais e menos funcionais, não dão seguras indicações: no lavabo, de áspero arenito e talvez mais velho que a parede em que se apóia, fez~se o acréscimo de uma cabeça de anjo, de melhor fatura, em pedra-sabão, e nas paredes há uma série de estranhos quadros de madeira em relevo encarnado (nos quais Cristo, solitário e em tamanho natural, é representado nas várias cenas da paixão). obras rudes no lavor, mas de um vigor primitivo que a distorção canhestra mais acentua.' Peças velhas, postas ali depois de uma reforma? Coisa vinda de fora? Simples primitivismo, catalogável em qualquer época ou fase? Mas o barroco a que aspirava Matozinhos já estava ali, conquistado e suficiente. Um último toque, no entanto. foi dado e, esse, definitivo e confirmador da precária teoria que se pode aventurar acerca do templo 206
de São Miguel e Almas. Para os corredores da sacristia, vieram duas telas que, se forem de Ataíde, como se diz, estarão entre as melhores obras do artista, e a escultura e os relevos da entrada que, a serem, como devem ser, do Aleijadinho, jamais figurarão entre seus trabalhos menores. Igrejas Novas
Não mais insistiremos sobre· os primeiros arroubos do barroco a buscar livrar-se da contenção, tão superior e bela, do jesuítico. Poderíamos, por exemplo, examinar melhor o caso d.essa igreja de Ouro Branco, tão pouco falada e de linda decoração. Mas o leitor não pode ter os lazeres de um viajante em férias. Saltare-
mos, pois, para o extremo oposto; procuraremos o fim do barroco, se é que, jamais, uma forma de arte, uma vez cultivada, morre. São Francisco de Paula é a mais nova das igrejas "históricas" de Ouro Preto. Posta no alto do morro mais alto de todo o núcleo urbano, é vista, cá embaixo, de todos os pontos, sobretudo nas noites de luar, quando o rebrilho de suas cúpulas se torna fantasmal. b, de todos os templos, o de sítio mais privilegiado. Grande e farto, não poupou despesas, nem trabalhos. Começada em 1804, a construção conclui-se em 1878. Em 81, D. Pedro II honrou-a com uma inspeção dos trabalhos de decoração, só terminados, contudo, com a douradura do altar-mor, em 1898, e dos laterais, em 1908. A igreja, nascida na colônia, chegou incompleta aos presidentes republicanos. Estendeu-se por todo o vice-reino e cobriu, por inteiro, o primeiro e o segundo império. Mas essa aritmética de datas nada significaria, se em sua própria feição não estivesse a marca visível dos tempos imperiais. Que não se procure a marca na frontaria. Esta concorda com o tempo do risco, cujo autor - o Sargento-mor Francisco Machado da Cruz ~ tirou partido do sítio e projetou um volume exterior grosso e imponente. Dominam as horizontais que afogam as linhas retas com estratagemas sahidíssimos: a cornija a atravessar a fachada de lado a lado, na altura do telhado da nave; o frontão desmanchado em um par de enonnes volutas a alcançar as sineiras e a abater as torres; as 207
cúpulas feitas da superposição de duas meias-esferas ligeiramente achatadas, cercadas por quatro pináculos e coroadas por outra grimpa mais afirmativa. A massa é, pois, potente. Mas não pesada. Alguns contrastes castanhos sobre o alvo da cal, o adro bem planejado, a escadaria com seus santos de louça e, sobretudo, a topografia favorecedora dão graça e movimento à solidez da construção. Do lado de fora, nada, pois, contradita a data inicial. No interior, contudo, já não se encontra a atmosfera do comum das igrejas de Vila Rica: um novo espírito instalou-se. Digamos logo: é o espirito imperial. A intenção classicizante, um dia chegada com a missão francesa e depois abrigada à sombra do paço de São Cristóvão, procura apoderar-se de Ouro Preto. A pri~ meira impressão é a da obediência à linha tradicional, mas logo se sente a ausência das colunas salomônicas e de suas companheiras estriadas, que umas tímidas caneluras ao pé de lisos cilindros rememoram vagamente - vem a nostalgia daquela superabundância das formas, lastima-se não haver a ilusão mágica do barroco. Sabe-se, então, que do passado só há a cortês reminiscência da decoração. Se o belo, como dizia a velha definição, é "o esplendor da forma na ordem perfeita", vemos que há fases da arte em que se insiste na "ordem" desprezando-se o "esplendor". E os batalhadores da renovação clássica acreditavam que a sua ordem fosse a própria ordem universal: impuseram-na ao barroco tiranicamente, sem perceber que o barroco tinha a sua ordem peculiar e própria, difícil de captar porque muito complexa, muito original e muito autên~ !ica. O barroco feneceu. Ainda assim, forçaram seu fantasma a revestir uma nova ossatura, tentando impossível ressurreição. Conseqüentemente. o que era esplendo externo de uma coerente ordem íntima perdeu a razão de ser e contentou-se com estar onde o puseram, com simples ademane imitativo. A' quimera fez-se adorno. Explica-se, pois, que o interior de São Francisco de Paula não desagrade como simples espetáculo visual. Tudo ali se esbateu e se adocicou. A lavra é serena e bem comportada, u gesso alvinitente das igrejas velhas abdica em favor dum azul-claro juvenil e feminino, a douradura faz-se muito mais lavada no amarelo pálido 20S
do metal menos opulento e mais recente. Há, pois, uma harmonia nesse desnaturamento total. A arqui. tetura não se recusou a colaborar e seis janelas altas. que num conjunto barroco seriam reglutidas pelas balaustradas de jacarandá, pelas dobras repetidas e profundas do entalhe, pelas roupas dos santos. pelas tintas carregadas e pelo ouro negro, jorram agora uma luz abundante e alegre, um sol de manhã montanhesa sobre os meios-tons risonhamente tímidos da decoração neoclássica. O homem do século dezenove julgou seu antepassado imediato como nós hoje encaramos os orientais, divertindo-se com sua luxuriante ostentação e atribuindo-a a uma extroversão, incontida e escandalosa, que não se equilibrava por um universo lógico, consistente e legítimo. Mas, sempre que a zombaria dos "espíritos fortes" inferioriza as épocas de paixão, acaba por patentear sua fragilidade, servindo-se, sem o sentir, das conquistas pass'adas. A escadaria de São Francisco de Paula despeja sobre uma ladeira íngreme que leva à acropolezinha miniatural onde construiu a igreja, ou melhor, a capela de São José. Não nos deteremos, agora, a examinar-lhe o interior, que nem por isso é pouco interessante. Basta-nos uma inspeção de sua fachada, que mal se entrevê desse adro mínimo que se precipita para os lados do Rosário e da Rua Tiradentes em ladeiras quase intransponíveis. Aqui também houve um intuito de alcançar a graça e a leveza do decorativo, mas, como estamos diante de uma obra mais velha (construída entre 1752 e 1811), os caminhos trilhados foram bem diversos. Se não se resistiu ao desejo de enfeitar a fachada - coisa rara nestas Gerais e que, no caso, só se compreende como uma compensação -do reduzido tamanho da obra - , não houve socorro do adorno proposto ou da estilização. A planta incumbiu-se da tarefa. Projetou, na frontaria, um corpo mais avançado, com o modesto pórtico à frente e dois abaulamentos laterais que se prendem na nave. Ao alto corre a balaustrada de uma sacadinha a trazer lembranças renascentistas. Desta base; nasce a torre, também ela avançada em relação à nave. mas detendo-se antes de alcançar o plano da entrada. Corta-a uma cornija com sua linha de telhas que, reta a partir do telhado, faz um semicírculo no centro da fachada. Idêntica linha
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de telhas ondulante eorre pelo telhado, onde este se prende à torre, e pela própria torre acima das sineiras. Duas grandes grimpas rematam as esquinas. Não há por que procurar, num conjunto dessa ordem, aquele espírito decorativo de acréscimos epidérmicos que faz a ruína do neoclássico e demais academismos. AqtJi também, por certo, houve a preocupação de enriquecer o conjunto com elementos que, julgados segundo um injustificável rigor funcional, seriam inexplicáveis. No entanto, não há uma contradição entre função e embelezamento que, antes, se completam, ajustando-se reciprocamente. Em suma, a visita a São José traz contraprova ao que começáramos a perceber em São Francisco de Paula - a ordem do barroco, as suas leis de organização e cristalização, não só existem, mas também são de urna inesperada potência, pois onde os "estilos" posteriores se mostram convencionais ou parasitários, o barroco demonstra uma força expansiva e criadora. E nisso, realmente, nada há de surpreendente. Por meio do barroco exprimiu-se todo o espírito de uma civilização ou, pelo menos, de um estágio bem definido de determinada civilização. Por isso, tem uma autenticidade que seria inútil buscar-se nas formas artificiosas com que outras épocas, de menor consistência histórica, procuraram exprimir sua ansiedade, ou melhor, disfarçar suas vicissitudes. A Obra-prima Vimos o barroco mineiro brotar, desejado ou espontâneo, mas sempre determinado a alcançar seus objetivos, seja da riqueza fabulosa das primeiras igrejas que, tão belas e equilibradas, não se satisfizeram com o rigor do "jesuítico", seja da abençoada pobreza dos templos humildes que, tão funcionalmente despojados a princípio, não se conformam com sua condição e aspiram à expansão destinada a agasalhar mais fiéis e a firmar maior prestígio, porém capaz, também, de conquistar a glória da arte. Nessas notas não caberá, por certo, a minuciosa descrição evolutiva de um processo artístico que, como já vimos, traduz não apenas a flexibilidade de um padrão estético refletindo todas as necessidades sociais subjacentes, mas ainda o vigor de uma formalística gerada pelo próprio espírito de seu 210
tempo. Não podemos fugir, cootudo, à obrigação de ao menos registrar alguns pontos típicos_ Por isso, ano-tados os marcos iniciais, é preciso, agora, apontar o ponto de auge, já não tanto para traduzir o deslumbramento, por sinal indescritível, senão para aludir às possibilidades máximas do barroco mineiro. A tarefa é fácil, porque existe a igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Não exageramos ao falar em possibilidades máximas. São Francisco de Assis não só é obra-prima, mas teve ainda a fortuna de construir-se rápida, numa região em que o· arrastar das obras constitui o único pecado e o maior interesse dos templos maiores. Suas obras ergueram-se e completaram-se entre 1765 e, mais ou menos, 1810. Nesse meio século - uma eternidade segundo nossos padrões, um minuto apenas no ritmo colonial - , não só a igreja se aprestou com a celeridade necessária para apresentar-se esplendidamente harmônica, mas ainda teve a ventura de contar, para fazê-la, com o gênio do Aleijadinho e o talento de Ataíde e José Arouca. Mestre Lisboa, que s6 morreu em 1814, amadureceu em São Francisco de Assis sua arte, cuja paixão final ficaria plantada no adro de Congonhas do Campo. O Ataíde, se não deixou num só ponto" o melhor de sua obra, em São Francisco não desmereceu de sua fama, que aliás não convém exagerar. Por fim. dos Aroucas de Mariana. ainda à espera de um pesquisador paciente que lhes compute a contribuição ao barroco. veio também alguma coisa para Ouro Preto; quando mais não fosse, o inestimável aviso de mestres de obra experimentados. Mas a conjunção de esforços parcos resultados daria se a inspiração total da obra não proviesse de um mesmo artista, do mesmo grande artista, do maior artista do barroco mineiro, E difícil falar de São Francisco de Assis colocando-o à margem da obra do Aleijadinho. Nessa igreja. ele imperou soberano e, até, despótico, Suas são as obras principais de adorno: essa portada divina, esses púlpitos primorosos, esse extraordinário lavabo que marcam os pontos mais altos da escultura brasileira e pináculos alevantados na criação do pobre mundo moderno, Sua será, por certo, a planta que lhe é atribuída com todos os vezos de probabilidade histórica e com todo o rigor da ",dedução estilística 211
e estética. Se, um dia, descobrir-se outro autor do projeto que não o Aleijadinho, ter-se-á também milagrosamente descoberto outro gênio na civilização do ouro. Mas, enquanto não sobrevier eSSe impossível, São Francisco de Assis será do Aleijadinho. Encontramos aqui uma perfeita coerência entre interior e exterior, fenômeno tão raro até agora. Posta num patamar intermediário da fralda oriental do Morro de Santa Quitéria, a igreja não se notabilizaria pelo sítio, pois, se domina as torres de Mercês de baixo, ali ao fu~ndo, e olha sobranceira para Antônio Dias a seus pés, essa posição de rainha de sua freguesia foi esmagada pela ostentação do poder secular que, se já incumbira ao pai de seu autor de construir o Palácio dos Governadores em lugar mais ao norte e mais elevado, acabou plantando ao seu lado esquerdo o arrogante Paço Municipal, que depois cadeia e depois museu. Mas a sua fachada, presa a um esquadramento urbano mais denso do que o de suas irmãs, conseguiu (como a do Rosário) apelar para o erudito e ortodoxo recurso de barroquizar-se para impor-se. Assim fez o Aleijadinho. Desde os fundos, a planta mostra-se inquieta e divide-se em três corpos distintos onde a pura funcionalidade estaria satisfeita com a linha pura. A arte, contudo, exigiu mais e lançou os três corpos complementares da sacristia, da capela-mor e da nave, sendo t::ste mais pronunciado em largura e na altura das telhas. Como se fosse pouco, rasgam-se, na porção intermédia, loggie tríplices que, provavelmente, atendem à função de iluminação, mas sublinham também uma nostalgia da Renascença, que não se encontrará em outros monumentos de Vila Rica. Seria contudo inútil descrever obra tão acabada, pois, já nas fachadas laterais, que são o mais pobre do conjunto, encontramos um não-acabar de pontos sedutores, como, por exemplo, as belíssimas cornijas de risco tão puro. Vamos, portanto, para frente e anotemos as torres circulares, que só se prendem à planta baixa pelo raio da base e, por isso, atirando ao espaço livre metade de seus cilindros, emprestam um impulso inaudito ao conjunto. São elas o toque de atenção, claro e corajoso, anunciando um espetáculo: a fachada. 212
Duas torres e uma frontaria central arrematada em triângulo - eis o normal da igreja histórica brasileira. Lúcio Costa tem perfeito estudo sobre o jesuítico; mas aqui adotamos uma fórmula, um esquema didático. Essa fórmula está sempre presente, mas com que sutileza se soube tratá-la até que desse à luz a novidade total de São Francisco de Assis. Circulares, as torres plasticamente como que pertencem, por inteiro, tanto à fachada lateral quanto à frontaria, pois tanto a uma como a outra entrega metade de sua fisionomia. Mas, por livrar-se da massa total avançando metade de seu volume para além dos alicerces da nave, adquirem uma função dupla e, na aparência, paradoxal de limite e transição entre os lados e a frente da igreja. A partir delas, com'o se fossem continuar a linha lateral, mas já infletindo a quarenta e cinco graus sobre o eixo longitudinal da construção, projetam-se duas paredes estreitas e altas, vazadas por uma porta falsa e por uma janela com sacada, que permitem à frontaria propriamente dita libertar-se nas duas dimensões dos elementos que, no esquema normal a que aludimos, a prenderiam à esquerda e à direita. Estamos, pois, diante de uma porção do templo que já exige uma definição larga, pois se é uma projeção da frontaria, não é toda a frontaria, e, embora pareça constituir um desenvolvimento da entrada, sobrepassa notoriamente os limites de um simples pórtico. Limitam-na duas grandes colunas de pedra areriosa e rosada, que sobem para desenharem, por sobre os capitéis, sempre em pedra, duas asas poderosas que, prenunciando um grande frontão, no entanto, logo se interrompem. O verdadeiro frontão nasce, na verdade, do interior desses elementos e, esbatendo seu triângulo estrutural em curvas vagarosas, encaracola-se em volutas e coroa-se pelo poderoso supedâneo da cruz de Lorena ladeada por duas esferas flamejantes. A linha inferior do frontão, que coincidiria com a comija vinda do teto da nave, atravessando as torres e alinhando-se pelos capitéis das colunas fronteiras, suspende-se num semicírculo que acaba de desfazer a configuração habitual do acabamento em triângulo. O recurso é conhecido, sendo freqüente onde há olho-de-boi, um nicho ou um medalhão, mas aqui a sugestão duma linha livre é mais acentuada e mistura-se, portanto, à norma barroca. 213
Também o aprisionamento do verdadeiro frontão dentro de dois prenúncios de um inexistente frontão maior, é conhecido, mas agora adqui~e nova beleza por colocar-se o elemento figurado em uma linha de orientação diversa da do verdadeiro - um a 45, outro a 90 graus em relação ao eixo longitudinal, o primeiro no plano do lance intermediário e o segundo na linha da fachada. São elementos barrocos puros e autênticos. O espírito que os organiza, no entanto, mesmo continuando inteiramente mergulhado na mais pura inspiração barroca, não abre mão de uma contribuição original e impõe uma ordem especial em que se guarda, do estilo adotado, a característica principal que é o contínuo movimento das massas e linhas, sem perder-se nos paroxismos do "barroquismo" decadente e nos ademanes prenunciadores do rococó. Numa palavra, em São Francisco esplende o barroco, mas o barroco brasileiro das Gerais. Construir e Decorar
Foi, provavelmente, o elemento brasileiro que surpreendeu a Burton, homem de sensibilidade muito limitada e estrangeiro incapaz de captar as variantes da alma local. Se, no Carmo, indignou-se com a exuberância deformadora, chacoteando contra um "estilo barrigudo" que julgou descobrir, em São Francisco patenteou-se sua superficialidade ao estranhar que duas colunas jônicas pudessem servir como pilastras. Numa observação assim, transparecem todos os preconceitos do crítico, peado pelos prejuízos nacionais (o barroco, na Inglaterra, será mais uma aspiração racial do que uma época ou um estilo), pelos prejuízos históricos (Burtou vinha de uma Europa antibarroca, para uma América fulgindo em esplendores barrocos) e, afinal. prejuízos conceituais (que o fazem reservar para determinado elemento uma só função em todos os conjuntos). Ora, em São Francisco de Assis, Burton enfrentava uma rigorosa afirmação barroca e de um barroco evoluído e autenticamente radicado ao meio. Positivamente, era demais ... Há. aliás, para o espectador que, diante dessa fachada, sente pruridos de analista, uma tremenda dificuldade em distinguir o arquitetônico do ornamental (a 214
coluna e a pilastra. na linguagem de Burton). Cabe mesmo perguntar se não seria mais razoável evitar tais rigores enciclopédicos, sobretudo quando o exemplo sob os olhos não apresenta confusão, mistura ou abastardamento de uma das artes pela outra, mas, pelo contrário, as mostra fundidas em uma mútua complementação em que ambas buscam adequar-se a um resultado final que a cada qual valoriza e que supera a soma das duas. Afinal, a impressão de jóia cinzelada - que !v1anuel Bandeira assinalou - donde vem? Apenas dos medalhões geniais do Aleijadinho não será, pois outras igrejas também têm enfeitadas suas fachadas (por vezes com obras equivalentes a essa, como acontece em Matozinhos) sem conseguirem a mesma impressão de coerência entre o fundo construído e a aplicação artística. Aqui, o decorativo apenas contribui para um fim já contido no conjunto. De fato, os três planos que compõem a fachada de São Francisco (dos quais um só é, na verdade, plano, pois os outros alternam côncavos e convexos) imprimem o movimento em profundidade. De sua parte, o arqueamento semicircular da cornija, o arremate altaneiro do frontão e, sobretudo, os vazamentos da porta e das janelas impõem o ritmo ascensional que se reencontra, lá em cima, nas sineiras que não olham de frente, mas buscam a orientação das quatro esquinas. Ora, muros, abas de telhado, janelas, portas e sineiras são elementos intrinsecamente construtivos e, em São Francisco, nenhum deles desmente a mais rigorosa funcionalidade. Arquitetônicas são também, e não menos, as pilastras e a cantaria de esteio, cuja significação decorativa começa já na cor - o rosa - , imposta pela escolha do material mais adequado e mais abundante na região - o itacolumito, áspero e forte. Encarado como volume, o conjunto só poderia ser analisado em exame paciente e exaustivo, coisa para calhamaço indeglutível, porque, mal começa o observador a deslocar-se e a perceber que não há um ponto-de-vista em que o limite da massa escape a uma superfície bombeada que, além disso, no contorno extremo assim tão mal definido, é cortada por uma saliência qualquer da pedra que emoldura olhos-de-boi ou janelas, pelo arrebitado de um capitel ou de uma gárgula em feitio de canhão. Mas, cingindo-nos ao que nos interessa, notemos apenas que a planta nada sofreu para que tais formas se coadaptassem em sua 215
aparente liberdade; pelo contrário, tudo que o arquiteto de São Francisco fez foi colocar as torres entre a seção do vesHbulo e coro, e o corpo da nave· propriamente dito. Nenhum preceito o proibia disso c, ademais, o desejo de compor precisamente a porção vestibular não constituía mera solicitação estética, mas também desejo de enobrecimento do ritual. Nem diga um discutidor impenitente que as torres se fizeram cilíndricas e côncavas as paredes intermediárias apenas para formar mais graciosa a fachada, porquanto isso já seria defender às avessas o estranho princípio de que se deveria adotar a rctilincaridade para que o conjunto fosse feio ... O elemento decorativo extra-arquitetônico entra agora em cena, porém já encontra não só seu lugar indicado, mas também a orientação geral determinada. O espaço que lhe sobra é pouco: a portada e, exatamente mais acima, o lugar destinado ao olho-de-boi que, no caso, constituiria inútil superfetação, desde que o coro já recebe luz das duas janelas fronteiras e das duas laterais. Além disso, a nota rosada do itacolumito está a solicitar uma coloração complementar e a arquitetura, já de si tão leve e agitada, exige que a escultura se rendilhe e se componha em verdadeiros panejamentos; numa palavra: pedra-sabão. E ela para ali vem, contrastando com um cinza azulado o róseo esmaecido da outra pedra. E, nela, o Aleijadinho pôs todo o seu gênio de escultor. Este seria, talvez, o melhor momento para traçarmos um rápido confronto entre São Francisco e o Carmo, pois, se nesta última, abundante e rica, também há, de toda a evidência, participação indireta do Aleijadinho (talvez o risco original de obras menores) entre uma e outra igreja patenteia-se a minudente variação que, entre duas obras de apogeu, pode marcar as distinções que separam o momento em que o estilo amadurece a tradição herdada e aquele em que já se capacita para dar a contribuição original. No Carmo, a decoração da frontaria ainda obedece, ao menos par:cialmente, à norma européia de fazer a submersão do construido na exuberância do adorno. O medalhão visa, como sempre, preencher o espaço monótono da parede que fica, por sobre a pnrta, entre as janelas, mas não resiste à tentação de ligar a verga central ao 216
olho-de-boi do alto da fachada, enquanto a sobrecarga de aplicações ,por sobre as linhas mais definidas faz misturarem-se o friso inferior da cornija e a moldura das duas janelas que, por sua vez, aparecem cavalgadas por uma sobreverga puramente ornamental. Coroando as ombreiras da porta, há um par de elementos pesados c híbridos (meio-capitéis. meio-frontões truncados), resolvendo-se numa concha cercada de volutas, mas que passam de enfeite destinado a desfigurar a linha da construção. Ora, em São Francisco a solução formulou-se no aspecto fanual, de maneira bem próxima desta, mas, esteticamente, é bem diversa. Instigada pela arquitetura, como já acentuamos, a decoração não teme atribuir-se uma função para-arquitetônica. Também aqui os olhos viajam da portada para cima, até chegar ao medalhão, percorrendo ornamentos de pedra-sabão. Mas o abandono da simetria rígida que se substitui agora por uma simetria apenas ideal e feita de compensações afasta qualquer falsa imponência e, em seu lugar, põe a graça da variedade. Aumenta, dessa forma, a coerência da peça que, por exemplo, faz assentarem-se nas sobre-ombreiras, da mesma familia das do Carmo, dois anjos e assim se acaba por encontrar urna "função" _para as fonnas menos graciosas. Isso permite aos anjos destacarem-se, com inteiro vulto, do relevo geral e projetarem para o ar as cruzes que sustentam (hoje, resta só uma). Apaga-se, pois, a impressão de aposição ocasional e, igualmente, a de disfarce da realidade arquitetônica. Pelo contrário, o pressentimento da continuidade da parede por detrás das costas das figuras aladas confirma a natureza construtiva do conjunto. Enfim, a coroa da Virgem que, no Carmo, se prende à cartela, mergulhando em sombra a cabeça de um anjo, para, superiormente, apertar-se contra a moldura do olho-de-boi, agora fica a flutuar entre as duas peças, cujas bordas apenas sobrepassa, mas com notável diferença de profundidade. Não se disfarça uma porta, mas emprega-se uma porta como soco de obra escultática, jungindo-se à função arquitetônica a função decorativa. Confluem, pois, as duas artes para o mesmo fim, não há dúvida, mas não são duas obras paralelas marchando em emulação amistosa ou competição, nem tampouco o servilismo de uma arte à outra. Ambas 217
estão presentes, mas é impossível separá-las, senão pela abstração crítica. Pode-se, fazendo a análise de qualquer das duas realizações, esgotar-se a obra, mas jamais seria possível negar o outro aspecto da realidade global. O barroco, que estamos habituados a ouvir descrever como forma paradoxal, desordenada e contraditória, mostra-se coerente, organizado e assente numa lógica assaz rígida. Se, na Europa, barroco soa como denominação de uma tendência que, forçando todas as fronteiras estabelecidas, negou a própria estrutura arquitetônica, retorcendo as construções para desmentir-lhes o sentido funcional e imprimir-lhes vezo de gratuidade irrestrita e irresponsável, provocando o exagero decorativo que acabou por violentar a própria índole da decoração pois instigou-a a superabundar, qual vegetação daninha capaz de cobrir e matar o tronco a que se encosta. Agora, na América, vamos encontrar o barroco em novo equilíbrio, a levar cada arte até as máximas conseqüências, mas sempre respeitando-lhes as tendências idiossincrásicas, preservando-Ihes a índole temperamental, poupando-lhes o espírito natural. Por isso, se a casa barroca e, sobretudo, templo barroco, na Europa, tornou-se algo próximo do cenário teatral, em Minas o encontramos não só fiel à pragmática finalista, senão também - o que é mais importante' - sobrepassando esse conceito funcional, sem jamais o desmentir, pela reconquista da exata noção de monumento.
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Criar e Ordenar Ainda em São Francisco de Assis, de Ouro Preto, encontraremos a indisponível contraprova de quanto dissemos do caráter e possibilidades do barroco de Minas. Quando reafirmamos que essa arte fora capaz, em seu apogeu, de recompor, segundo as leis da coerência interna, a organização do monumento, empregamos como exemplo a peça de análise uma fachada de templo, o que poderia causar algumas confusões, muito naturais, entre a índole plural da obra de arte e a grandiosidadc física da mesma, à qual se aplicaria melhor o adjetivo monumental, em seu sentido corrente. Não empregamos o termo nessa acepção, como bem se pode depreender do fato de acabarmos distinguindo a adequação de duas artes a um escopo comum, do caráter 218
de grandiosidade decorativa e simplesmente aposta que marca a grande massa das realizações monumentais da arte ocidental a partir do Renascimento. Mas, ao invés de nos prendermos a uma simples palavra ou de cairmos em sutilezas puramente teóricas, preferível será experimentarmos nossas afirmações em peças de diversa natureza, onde, ao menos na aparência, dominem elementos diversos. Por exemplo, na decoração interna de São Francisco de Paula. Passaremos rápidos pela nave, não por falta de interesse ou de espetáculo, mas porque ali há matéria para cogitações que já deixamos para trás: a força do artesanato mineiro (a talha de José Pinto de Souza), a intenção deo-disfarce à maneira do barroco ortodoxo e europeu na imaginária (os santos de roça, com olhos de vidro, cabelos e roupas humanas) e a pintura do teto (Ataíde obedecendo aos cânones cenográficos do modelo importado). Vamos, pois, direto aos púlpitos. São obras do Aleijadinho; não se precisaria dizer, porque as cabeças de anjos da base estão a atestá-lo com a serena 'e segura autenticidade de tudo que fez o grande artista. O caso prodigioso do Aleijadinho pode em grande parte ser compreendido pela meticulosa observação de seu domínio da matéria que, de preferência, empregou em seus trabalhos. A pedra-sabão, talcosa e escorregadia, adquire com o tempo um aspecto de solidez e frieza; seus reflexos de cor põem em perigo a expressão final da escultura, mas reforçam-na quando a arte é legítima; sua enganadora maciez e a aparente facilidade de corte não ajudam, mas perturbam o escultor, que não encontra ponto de apoio para o escopro e, por isso, começa a fugir à linha fina e ao pormenor. Ora, do trabalho de Antônio Francisco Lisboa não saiu apenas obra-prima de escultura, mas igualmente um perfeito repositório de normas técnicas para a lavra da esteatita. O material, dúbio, sem caráter e traiçoeiro - um exército de artesãos aos poucos o tornara conhecido e mais dócil - , adequa-se facilmente à arte do homem prodigioso que pertencia legHimamente à corporação dos artífices coloniais, mas que também possuía o gênio do artista isolado. Os púlpitos do Aleijadinho repetem, no interior de São Francisco, a função formal das torres na fachada: são o fim da nave (dentro da nave se colocam os pú!219
pitos da generalidade da igreja de Vila Rica) e, não menos, O começo da capela-mor. Atribuí-los a um dos dois corpos seria desconhecer seu papel de intermediário, de transferidores que a situação do arco-cruzeiro ainda mais reforça. Nem se julgue, por estranho amor às definições abstratas, que nesse ponto de transitorie-
dade se tenham colocado obras-primas, pois· isso ainda mais sublinha seu emprego paradoxal de, ao mesmo tempo, deter o espectador no corpo principal da igreja e atrair a atenção do fiel para a cena do sacrifício. Ao pecador expõe-se a sublimidade do divino, mas não se permite uma participação no sagrado senão pela ascese espiritual propiciada somente aos que se humilham. Tudo isso ensinam os púlpitos do Aleijadinho, esse estranho portico que não deve ser ultrapassado: Mas, hoje, a igreja é também um museu e os visitantes desrespeitam as regras do ritual para alcançar mais de perto o esplendor da beleza. Invade-se a capela-mor para encontrar um altar que - nova repetição - vagamente imita as linhas gerais da fachada e, sobretudo, seu movimento. De maneira geral, a planta baixa do altar é a mesma da fachada, sobretudo no recurso da curvatura dos corpos intermediários que trazem à frontaria. Mas, nesse caso, o caráter da obra e a natureza do material permitem uma solução mais elaborada, que compõe as três linhas em pequenas porções variadas em tamanho, flexão, ou sentido da curva, todas buscando dois eixos auxiliares que idealmente cruzam a linha média de profundidade a meia altura do sucedãneo. Este enriquecimento no plano horizontal ganha ainda mais com o complemento que lhe trazem mesa, retábulo e trono, principalmente este último, que soube movimentar com certa novidade a conhecida superposição de degraus sucessivamente menores. Mas ainda não será aqui que nos deteremos. A originalidade notável dessa capela - que, mais uma vez, a esse respeito. realiza em toda plenitude a tendência apenas prenunciada ou esboçada em outras igrejas - reside na decoração propriamente dita. De passagem digamos que talvez a luz peculiar a São Francisco, onde o dia penetra com relativa liberdade, tenha sugerido e possibilitado o que noutros monumentos não passou de singularidade contrária à índole da construção. Talvez instigado por essa luz, o artista faz nascer. 220
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bem por sobre retábulo, uma composlçao, complexa porém bem ordenada, reunindo grandes figuras da Trindade - um Deus-filho ressurreto de um Deus-pai de severa e poderosa fisionomia sem qualquer marca de velhice, sobrevoados pelo Espírito Santo - , nas quais é notória a atenção do entalhador pelo escorço horizontal, pois as estátuas inclinam-se entre as paredes do fundo e o forro da capela. Neste, à frente e mais ao centro, aparece um grande anjo, flutuando paralelamente ao teto, que, de braços erguidos, deixa pender a corrente de prata da lanterna votiva. Mas, ao invés de apoiar-se numa base, como a Trindade, voa solto no ar, deixando evidente espaço entre suas costas e a abóbada, c isso permitiu ao artista resolvê-lo não pelo escorço horizontal estratagema "realista" tão freqüente - , mas pelo csbatimento da terceira dimensão, única, aliás, a não obedecer ao estrito figurativismo da imagem. A partir dessa figura e passando às imediatamente seguintes, inicia-se uma progressiva diminuição da profundidade da lavra, passando o truque artístico a fingir ardilosamente o elemento real que já desertou das possibilidades práticas da decoração. Em relevo pronunciado, mas afinal em simples relevo, surgem aos cantos as figuras dos quatro canonizados da ordem - São Boaventura, Santo Antônio, Santo Ivo e São Gonçalo. Contudo, os papas da irmandade, que aparecem logo abaixo, são simplesmente pintados, bem como os dois quadros grandes que ladeiam - uma ceia e um lavapés. Não será inútil dizer que esses painéis abusam um pouco do claro-escuro do barroquismo pictórico - maneira d.c acentuar volumes e de rebater o fundo das cenas, como se sabe - porque é preciso preparar os olhos para as cenas menos profundas com que, nos painéis inferiores, Manuel da Costa Ataíde narrou a vida de Abraão, imitando a técnica dos azulejos. Ao leitor não terá escapado a sutil mas segura progressão que, nesse passeio óptico, fizemos da escultura de pleno vulto ao relevo, deste à pintura imitativa dos painéis c, afinal, a essa espécie de desenho que é a monocromia dos azulejos, falso ou verdadeiro. Acrescentemos, apenas, que as figuras esculpidas são de viva encarnação (obra de Ataíde, dízem) e melhor se poderá compreender a natureza do conjunto. De fato, o 221
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artista. para sugerir divino e o supranatural, rompeu com as barreiras clássicas das artes especiais e das normas da figuração artística; até aí, é evidente, estamos diante do barroco. Mas, se esse rompimento de fronteiras clássicas, que apenas dever~a significar a prepotência absolutista sobre a razão, procurou e, sobretudo, encontrou, uma nova regra, uma nova ordem e uma nova coerência, isso de novo nos autoriza a falar na originalidade do barroco mineiro. Aqui termina nossa viagem. que não foi feita para levantar teorias. Se, aqui e ali, repontaram veleidades críticas ou pruridos analíticos, procuramos resistir a tais provocações. Mesmo porque, para aprofundar esses vagos pressentimentos e levá-los à categoria de afirmações bem fundamentadas, precisaríamos abordar com muita coragem e, mesmo alguma ousadia, o caso especialíssimo do Aleijadinho. Mas isso, no mínimo, exigiria nova viagem. Que, talvez, um dia venha a ser feita. Talvez o leitor proteste, pois não lhe escaparam certas divagações interpretativas, por vezes bem longas e insistentes. que foram aparecendo nessas notas e acabaram por conduzi-las. Parece-lhe-á, portanto, algo forçada essa fuga às conclusões, que. no entanto, sobre ser sincera, nos parece inevitável: não possuem nossas notas a índole e o estilo requerido pelos rigores da clencia objetiva e fria. E. verdade que a participação ativa - no caso, a simpatia sentimental e estética - de há muito dcixou de scr desprezada pelos investigadores sociais, mas, ainda assim, não ousamos misturar duas tarefas originalmente diversas. Aqui ficam as anotações do primeiro contato. Não negamos que nelas se incluem dados que aproveitamos, neste momento. na redação de uma análise sociológica das relações entre o barroco e O absolutismo; tudo, no entanto, nos aconselha a publicá-Ias separadamente. Afinal, se. a reportagem acabou por beirar o survey, e a viagem transformou-se em pesquisa. nada há a estranhar-se. Inicialmente, ao leitor pedimos apenas liberdade. Ora, a liberdade é fecunda.
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OS POLPIT0S DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS DE OURO PRETO Influência de Lorenzo GJziberti na obra de A ntôn;o Francisco Lisboa
Diante de certos problemas artísticos, o pesquisador vê crescerem aJguns riscos inerentes à investigação histórica. O objeto de estudo suscita questões críticas essenciais, impondo, como necessária ao próprio conhecimento, uma aferição de valores que, por seu turno, obriga à escolha e à fixação de critérios de avaliação, sempre perigosos porque nunca inteiramente isentos de subjetividade. Dispensem~nos. aqui, de referência às
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observações de um Lionello Venturi sobre a fragilidade dos dados intermediários de que nos valemos para pôr em conexão o juízo estético universal e a intuição da obra de arte - a operação crítica, difícil e delicada, mais do que conhecida é vivida por cada um dos que se atiram à história da arte. Acrescentemos, para melhor descrever o estado qe espírito dos estudiosos de tais assuntos, a inevitável tentação representada pelas sugestões instigadoras que, a cada passo e para além do caso particular em exame, vão suscitar hipóteses sobre uma obra, um autor c, mesmo, todo um período. E pode suceder que essa criação, esse homem ou esse momento histórico sejam menos conhecidos do que desejáramos por ter entrevista, nas características já reveladas, toda sua importância. Então, a curiosidade só faz aumentar a ousadia, parecendo até justificá-la. Afinal, anotemos a aspiração, algo paradoxal, ~e estabelecer conhecimentos exatos e positivos em campo tão aberto aos azares da imaginação interpretativa e às imprecisas mas imprescindíveis indicações da sensibilidade. Resistir a tais elementos insinuantes, eliminando-os voluntariosamente ou fingindo ignorá-los, seria, contudo, empobrecer a pesquisa e seus resultados. Mais vale aceitar o que, aliás, quase sempre se torna irrecusável, procurando apenas distinguir, na medida do possível, o que é dado seguro e o que permanecerá como simples tentativa de interpretação. E, desde o início, dizê-lo com franqueza. Como procuramos fazer no limiar destas notas sobre dois modelos que julgamos tenham servido a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
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problema dos modelos artísticos no Brasil colonial
Em que pese ao incremento das pesquisas realizadas com o necessário rigor, desde a fundação do Serviço (hoje, Diretoria) do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ainda há muito por conhecer da arte brasileira dos tempos coloniais. Na medida mesma em que se desbrava o campo, outros e novos problemas vão surgindo. Por vezes, dizem respeito a elementos fundamentais, como, por exemplo, a data ou a exata autoria de peças e monumentos importantes. Outras vezes, são campos inesperados de investigação que se abrem gra-
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ças à penetração de pesquisadores que, com caso singular bem estudado, encontram a ponta de toda uma farta meada de questões interessantes. Assim sucedeu com o problema dos modelos a que recorreram nossos artistas coloniais, problema apaixonante pelo que sugere à curiosidade do pesquisador paciente e pelo que pode trazer de surpresas reveladoras num achado feliz. Necessária e merecida, portanto, foi a atenção despertada pelos trabalhos, entre outros, de Luís Jardim, C. F. Ott e Hannah Levy, identificando gravuras e livros ilustrados que inspiraram pintores e decoradores de Minas e do Norte do país. A Luis Jardim caberá o título de ter despertado o gosto pela' questão, pois a partir de descobertas suas, como as relativas ao trabalho de Ataíde na matriz de Santa Bárbara, é que se inicia uma fase mais interessante e mais meticulosa no trato da questão t • Até então dir-se-ia ter-se temporariamente esquecido. no que interessa à arte brasileira, a função fundamental desempenhada pela <:irculação das gravuras na história das anes, e particularmente da pintura, desde o século XVI. Os gravadores, que reproduziam, multiplicavam e difundiam entre artistas as obras dos mestres de então, são considerados pelos críticos modernos como os principais propulsores do amplo e célere alastramento da "maneira" italiana, e também a absorção da arte do Norte, principalmente da arte de Dürer, que influenciaria alguns criadores peninsulares de priineira plana. Não se trata, apenas, de um instrumento de comunicação, como esclarece André Chastel 2 , para quem na nervosidade dos maneiristas é agravada pela rápida circulação dessas folhas; tidas por equivalentes dos desenhos, elas fornecem motivos cada vez mais numerosos a artistas já inclinados a complicar". O próprio estilo, portanto, haveria de ressentir-se da vivacidade dessa vulgarização intensa do maneirismo. Ora, quem trata de maneirismo já fala de barroco, acrescendo ainda que, sobre ser nosso barroco algo mais lento no desaparecer do que o europeu, no Brasil as gravuras haveriam de constituir, os únicos elementos de informação 1. Luf, JARDIM. "A pintura decorativa em algumas igrejas antigu de Minas". In: Revista do ServIço do PatrimónIo HIstórico, ArtfJtlco n9 3, 1939. 2. Andr~ CHASTEL, "La 'maniere' Jtaliennc". lo: L'Oeit, o. 6, 15· V419S5.
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e. por igual, os únicos modelos disponíveis, que não se usavam modelos naturais. Afinal, o surto da gravura durou muito na Europa, embora mudando de objeto de predileção, como podemos verificar pela obra, singulannente significativa, de um Piranesi, a publicar seus documentos de arqueologia romana na segunda metade do século XVIII. Como era fácil de presumir, à estampa tocaria papel decisivo na fase florescente que, nos séculos XVII e XVIII, conheceu a arte do Brasil. Uma vez iniciado o estudo do assunto, farto material haveria de oferecer-se aos investigadores. Assim, a C. F. Ott devemos o reconhecimento da fonte dos temas e composições figurativas de todo um conjunto de peças da importãncia dos azulejos do pavimento térreo do claustro de São Francisco da Bahia, com a particularidade de ter posto a mão no Theatro Moral de la Vida Humana y de Toda la Philosophia de los Antigos y Modernos com suas gravuras inspiradoras, assinadas por Otto van Veen, antes mesmo de poder-se apontar quem pintou os painéis do convento3 • Sendo de proveniência portuguesa, como seguramente se sabe. os painéis do claustro de São Francisco vieram atestar que o recurso à inspiração em obra alheia era prática costumeira e legítima fora do Brasil, evidenciando ainda, quando confrontados com as gravuras do holandês, que a cópia pura e simples do modelo nenhuma reserva suscitava mesmo em artistas de bom nível e evidente capacidade técnica. Por isso, se havemos de convir, lendo C. F. Ott, quanto à maior habilidade gráfica e à mais leve e graciosa expressão dos painéis do claustro em confronto com as pranchas do Tlreatro, como reconheceremos a sabedoria da redistribuição das figuras para rearrumá-Ias num quadro dominantemente horizontal, não nos parecerá menos evidente que o pintor dos azulejos sempre que pôde - e quase sempre pôde - preferiu manter-se na declarada posição de mero copista. De qualquer forma, o estudo dos modelos já começava a tocar problemas colaterais e não menos importantes, qual fosse o das possibilidades técnicas e propriamente criadoras do copista, o da contribuição que seguramente se pode apontar como sua. o da impo3. C. F. OTI. "Os A:z:ulejos do Convento de Sio Francisco da Bahia". In: RnlstQ do S.P.H.A.N., n9 7, 1943.
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sição de novas condições materIaiS de trabalho ou de novas preferências do gosto etc. Inevitavelmente os . pesquisadores haveriam de atribuir maior amplitude a suas observações. Escrevendo seu artigo sobre Modelos Europeus na Pintura Colonial", não se bastou Hannah Levy com a análise de casos particulares, embora apresentando novas e valiosas contribuições de tal ordem. Em que pese à extrema modéstia de suas proposições, deixou fIxadas diretrizes para o estudo genérico do problema das peças inspiradoras.. Se, no confronto com o modelo, sempre surge ocasião para investigar-se, com maior segurança, o domínio das técnicas e o impulso inventiva revelados pela peça resultante, a pesquisadora soube valer-se de tais oportunidades, chegando a algumas conclusões de inegável importância e interessando o campo das atribuições de autoria. Solidamente fundada e de todo convincente é, por exemplo, a revisão da atribuição das obras da sacristia de Bom Jesus de Matozinhos (Conganhas do Campo) que, habitualmente dadas todas como de João Nepomuceno Correia e Castro, contudo revelam, quando comparadas às estampas-modelo da Bíblia de Weigel, a necessária existência de Hum. copista inteiramente passivo e mecânico", autor de "Caim e Abel", e de "um copista que pensa e age com personalidade", responsável pela recomposição de "Abraão oferece hospitalidade aos Anjos". Menos do que a elucidação do caso em si, interessa aqui registrar, por seu intermédio, como e a que ponto o estudo dos modelos coloniais abre campo para a identificação estilística dos autores brasileiros, nem sempre cabalmente individuados pela documentação disponível. Acreditamos que a simples menção a personalidades e estilos já baste para encarecer a importância de tais subsídios na progressiva compreensão do que foi, como visão plástica e sentimento estético, toda uma fase de nossa história. Antes de estabelecermos, com relativa justeZa, os lineamentos gerais das preferências do gosto e dos padrões estéticos sobre os quais se fundou nossa arte colonial - e vale anotar que, muito provavelmente," as variantes regionais terão grande importância numa tal visão geral, como começa a tomar-se evidente no caso 4.
In:
R~\lista
do S.P.H./t.N., n. 7, 1944.
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especial da arquitetura - , deveremos dispor, como é óbvio, de uma quantidade bem mais abundante de análises monográficas. Mas, pela direção que vão tomando as investigações dessa ordem, é lícito pedir que, ao praticá-las, o pesquisador não se esqueça de anotar todas as sugestões de maior amplitude que, porventura, lhe sugira o caso particular.
A ntôllÊo Francisco Lisboa e seus modelos Curioso é notar que a investigação dos modelos, desenvolvendo-se bastante no que respeita ao barroco de Minas Gerais, entretanto mantém-se, para essa como para outras regiões, limitada à pintura e às suas aplicações decorativas. Mesmo deixando de lado a estatuária de pequeno vulto, pois o grande número de imagens de santo só faz aumentar o intrincamento do problema das origens "e influências, poderemos afirmar que a escultura de grande porte, também ela suscetível de servir-se de fontes inspiradoras, ainda não as teve identificadas. Ora, no caso de Minas colonial, logo avulta o problema singularíssimo do Aleijadinho. E, com ele a curiosidade de conhecer seus modelos, cuja existência, mais do que provável, é admitida como necessária até mesmo por um historiador da impecável exatidão e da severa contenção a que nos habituou o cônego Raimundo Trindade: "Nesses dois quadros, o de Jonas e do Senhor na barca [refere-se aos relevos dos púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto] revela-se inspiração da arte gótica. Sente-se que, ao projetá-los, tinha Antônio Lisboa diante dos olhos gravuras e composições do período ogival"fõ. Em outros autores encontraremos a mesma e bem fundada presunção de que Antônio Francisco Lisboa trabalhava com modelos, como os outros artistas de seu tempo, transparecendo, aliás, a constante preocupação com a descoberta dessas peças inspiradoras, pois, confrontadas com as obras resultantes, haveriam de permitir melhor compreensão das qualidades artísticas daquele que continua sendo nosso maior escultor. O ideal seria, sem dúvida, obter as gravuras de que se valeu o s.
C:ôncgo R3.imundo TRINDADE. São Francisco d~ Assb ck: Ouro
Prelo. RIO, M.E.C., 1951. pãg. 372.
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Aleijadinho para esculpir suas obras - pelo menos as de mais numerosos elementos de composição e figuraçã~, que fazem supor.: o aproveitamento 'de obras anteriores - , porém não se deve esquecer que, em muitos casos, senão na maioria, as estampas-modelo por sua vez reproduziam obras de mestres consagrados, difundiam peças exemplares. Donde torna-se legítimo, na falta desse elemento intermediário, que é a gravura provavelmente utilizada pelo artista brasileiro e que, por assim dizer, constitui o documento direto da cópia, procurar-se a obra primeira que, copiada pelo gravador, seria novamente reproduzida pelo copista. Tal processo de pesquisa poderia ter sido aplicado, por exemplo, ao caso das cenas da vida de Abraão que Manuel da Costa Ataíde pintou para a capela-mor da São Francisco de Assis de Ouro Preto, copiando-as das estampas da Histoire Sacrée de Demarne que, por seu turno, são d'aprês Rafael, cuja Blblia da segunda loja do Vaticano reproduzem r,. Não obstante, conseguiram-se as gravuras intermediárias antes de descobrir-se a fonte primeira. A descoberta da peça inspiradora inicial afigura-se, sem dúvida, de mais remota possibilidade e de menos compensadora pesquisa. Se, contudo, desde logo solver-se a sua identificação, nada impede que, através de cuidadosa análise formal, se levantem os pontos de contato entre ela e as cópias finais. O confrontu direto entre as obras de Rafael e os trabalhos de Ataíde, por exemplo, poderia ter sido feito, com bom proveito para a análise destes últimos e para o mais amplo conhecimento da arte de seu autor. Foi o que ocorreu quando, compulsando reproduções fotográficas de trabalhos de Lorenzo Ghiberti e deste modo reavivando a lembrança de peças anteriormente vistas, em duas delas encontramos modelos que, pelo presumível intermédio de reproduções gravadas, muito provavelmente teriam auxiliado Antônio Francisco Lisboa a co~ceber os relevos principais dos púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto, aqueles mesmos a que se refere o Cônego Raimundo Trindade na passagem acima transcrita. Faltando-nos a referência da estampa intermediária, sabíamos' estar obrigados a muito maior rigor na análise formal que nos capacitaria 6.
Cf. Hannah LEVY. art. cito
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Igreja de São Francisco de Assis. Ouro Preto.
a apontar a existência de uma ligação substancial entre as peças italianas e as do Aleijadinho_ Contudo, desde que esse exame oferecesse resultado positivo, estaria estabelecida a filiação dos relevos brasileiros e, portanto, çritérios válidos para julgar de seu valor artístico e da capacidade de criação de seu autor, tendo em conta a maior ou menor contribuição do modelo na composição da obra final. A Tempestade, de Lorenzo Ghiberri, e o Jonas, do Aleijodinho Quando foi contratado para modelar a segunda porta do Batistéx:io de Florença - a primeira para ele, que assim s6 fazia seguir o precedente de Andrea Pisano - , Lorenzo Ghiberti reservou-a, com o provável assentimento da corporação promotora do concurso de escultores e responsável pelo contrato de execução, a episódios do Novo Testamento guardando o Velho para futuro empreendimento. que seria uma nova porta. Entre as cenas da vida de Cristo ideadas por Ghiberti para sua primeira obra no Batistéri0 1 , uma há que representa Jesus a andar sobre as águas encapeladas em que .navega o barco com seus discípulos, enquanto o apóstolo de fé insegura lhe pede socorro para não ir ao fundo. Esse relevo é o último, à direita de quem defronta a porta, na fila central dos vinte e oito quadros sue compõem a grande peça. Nele figuraru, ao gosto de Ghiberti, que era homem de seguros conhecimentos e muita exatidão narrativa, todos os doze discípulos e mais o Cristo, de tal sorte que a cena principal, entre Jesus e Pedro, deveu ser deslocada para um lado, a fim de deixar mais espaço para o grupo, numeroso. O arranjo denso, quase congestionado, das figuras, tornou-se 1: Impropriamente se tem chomado, ;\ primeira porta do Ghiberti, "Porta de Sáo João", erro em que caímos, também n6s, nas notas preliminares sobre o assunto, publicadas em O F.stado de São Paulo (8 e 15-1-56). Oever-se-á a çonfusão ao São João Batista dispurando com um uvtla t'! um Earist'!u, de Giovanni Rustici, que se encontta. sobre a arquitrave, ou ao fato de ter a primeira 1J
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imposltlvO, e para regê-lo com linhas seguras e prender firmemente as personagens numa composição harmônica e equilibrada, precisou o escultor valer-se, preferencialmente, da forma de barca a que aludem os Evangelhos. Esta, pois, irá surgir como forma predominante tanto pelo volume da popa, que avança para o primeiro plano à altura das figuras principais, continuando-se ainda pela borda do casco, quanto irá fornecer a linha máxima da porção superior da composição, estentendo o mastro, a verga e a vela contra o fundo liso. Essa figuração náutica é que de início torna evidente a inspiração tomada a Ghiberti pelo Aleijadinho. Ou, mais exatamente, essa descrição de um conjunto de pormenores náuticos é que permite indicar, com irrecusável evidência, a ligação entre o relevo de Ghiberti e aquele que Antônio Francisco Lisbc::ftl esculpiu para o púlpito do lado da Epístola da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto. Veremos que inúmeros são os elementos de ligação entre o Jonas atirado ao Mar e o modelo florentino, porém nenhum deles se apresenta com a mesma sinceridade no copiar pura e simplesmente, razão pela qual nos pareceu que, necessàriamente, a análise deverá partir do que é visível e insofismável, para depois fixar-se em outras partes da composição do Aleijadinho, também elas influenciadas por Ghiberti, porém de modo menos direto e sobretudo menos simplista, até que os dois relevos acabem por ligar-se em inegável filiação. A barca do Jonas de Ouro Preto, desde que confrontada com a barca da Tempeslade de Florença, logo deixará patente, para além de umas poucas modificações de pormenor, total semelhança entre as duas concepções. Verifica-se que Antônio Francisco Lisboa seguiu Lorenzo Ghiberti, valendo-se, muito provavelmente, de uma reprodução em gravura que, por enquanto, desconhecemos. Surgem, como dizíamos, algumas transformações menores. Assim, o desenho da popa altera-se, perdendo a forma de caixa retangular e os ornatos circulares com vazamentos quadrilobados decorrentes do gosto e da técnica pré-renascentes, para fazer-se simples, compacta e de perfil barroco. Também a cordoalha apresenta elementos muito menos numerosos e menos complicados, desprezando polias e escadas. São, porém, modificações tão só descritivas que, plasticamente, não
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possuem maior interesse. Do ponto de vista da composição, que ora nos preocupa, o que importa, e muito, é o fato de serem, o barco e seu aparelhamento, invertidos no sentido lateral - dir-se-ia que o relevo do Aleijadinho reflete, como se fôra um espelho, o modelo florentino. Se, neste, isolarmos os elementos náuticos da peça de Ghiberti e os voltarmos da direita para a esquerda, não poderá restar qualquer dúvida acerca da fonte em que bebeu Antônio Francisco Lisboa. Praticada a transposição, até os ponnenores conservados parecerão tão numerosos e significativos quanto os que, por modificados ou eliminados, nos impressionaram à primeira vista.
No caso do Aleijadinho, estamos contudo, longe dos copistas bons ou maus da fase colonial, pois sua personalidade o proíbe de simplesmente repetir o modelo. Por isso niesmo, uma vez positivado o elemento evidenciador da filiação, devemos atentar, ao contrário do. que faríamos com outros artistas, principalmente para o pouco que, na nova composição, resta do modelo, pois o que não faltará são indícios duma ampla reelaboração. C6pia e Transformação
Fixa-se Antônio Francisco Lisboa em determinados elementos do relevo italiano, sejam francamente visíveis, 233
sejam apenas virtuais, que adota sem alterar.
Assim, no caso do ângulo em que a grande cruz, figurada pelo mastro e pela verga, se insere no quadrilátero exterior (oculto, em ambos os relevos, por sob as molduras ornamentais). E, também, em certos componentes menores, porém determinantes de ritmos essenciais, tais como as cordas que Ghiberti pôs ao lado direito do mastro e que o Aleijadinho colocará à esquerda, conservando, embora espelhada, sua ordenação original, como nos revela a contagem do grupo inicial de três linhas, a última das quais encobre parcialmente a primeira corda do segundo grupo ternário. O mesmo talvez se pudesse dizer dos gomos formados pela vela presa à verga, que em ambos os casos são cinco, se aqui já não se tomasse visível, pela primeira vez, o sentido de reelaboração que, a nosso ver, constitui a atitude característica de Antônio Francisco Lisboa quando se serve de um modêlo. De fato, vendo-se obrigado a sacrificar maior porção de mastro e verga à imposição de uma moldura superior mais baixa, o Aleijadinho não temeu r.1terar o ritmo do velame, passando o conjunto ternário para a parte que se inclina por sobre as águas, desde que não conseguiria, de forma alguma, encaixar elegantemente as três grandes dobras na pequena porção visível da haste ascendente. Rompendo, assim, com as imposições descritivas e compositivas da peça inspiradora, passa Antônio Francisco Lisboa a recompo-Ia livremente, e, se Ghiberti mar"cou o ritmo com os volumes da tela arrepanhada pelas cordas, o brasileiro valer-se-á antes dos vazios deixados entre o pano e a haste, fazendo a vela cair em duas curvas que, tocando as cabeças das figuras, irá dispensá-lo das minúcias náuticas da cordoalha do relevo original, como se vê claramente nas fotografias. À direita, uma só corda bastará para marcar a linha de composição (Ghiberti utilizara-se do recurso, como linha secundária e em sentido oposto), e o complicado aparelhamento da primeira embarcação será elidido para que apareça nova barca, talvez menos viável do ponto de vista da arte de navegar. porém mil vezes mais expressiva e consistente do ponto de vista da arte de esculpir. Interessado antes na forma do que na praticabilidade da nau, o Aleijadinho toma todas as liberdades requeridas pela expressão: reforça os volumes que;
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agora, enuncia de forma limpa e singela, prepara ndo saboros o contras te com o tumultu amento de linhas de que se utilizar á na porção inferior do relevo. Se na peça de Florenç a o mastro parece subir e perder- se no infinito do céu, como pedia o decanta do "pictor ialismo " de Ghiber ti. O púlpito de Jonas terá nove traços grossos a jorrar sobre a cabeça dos navega ntes, como um acento impositivo que obriga os olhos a seguire m podero sa linha descend ente. Assim, ainda no campo· da cópia, transpo ndo elementos que encontr ou definid os e que julga essenci ais à sua obra, Antôni o Francis co Lisboa eiemonstra uma capacid ade de assimil ação do modelo c de domíni o da compos ição que habilita a inverte r - não mais soment e no ingênuo c mecâni co espelha mento lateral da figuração, porém na própria estrutu ra da compos ição - a intenção e a express ão da peça origina l. Conseq üentemente, a borda do casco e a popa, utilizad as por Ghiberti como apoio inicial de que partiam os olhos para subir até o topo do mastro, passam a constitu ir como que um grande cálice no qual verte o ímpeto linear despejado do alto. E o Aleijad inho, sem forçar o relevo a exagero s contund entes, intensifica essas formas, tanto alargan do a amurad a, quanto multipl icando as linhas das tábuas do casco. J á agora pode-se dizer que trabalh a em compos ição sua. Apenas iniciado o exame do aprove itamen to de um modelo por Antôni o Lisboa, revelam -se e impõem -se os traços particu laríssim os de sua persona lidade artístic a . . Não bastará , por isso, aproxim ar as duas peças e anotar as eventua is modific ações de pormen or a que um copista bem qualific ado deveria recorre r para acomod ar a primeir a compos ição a diferen te técnica ou a diversa s proporç ões de enquad rament o. Sem dúvida , esse recurso analític o, sobre ser eficiente, mostro u-se capaz de positiva r as peculia ridades técnica s e estilísticas do anônimo autor dos azulejo s do claustr o de São Francis co da Bahia, do Ataíde em seus trabalho:; da matriz de Santa Bárbar a e da capela- mor de São Francis co de Ouro Preto e princip almente , do pintor (João Nepomuceno Correia e Castro, provav elment e) de Os Anjos na Casa de A braão, que está na sacristi a do santuár io de Congon has do Campo . Por si só, contud o, não satisfaz no caso do Aleijad inho.
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A ntônio Francisco Lisboa e os Copistas Coloniais O escultor dos púlpitos de Assis de Ouro Preto, quando pomos suas obras em confronto com modelos, exige análise dupla e simultânea, em direções contrárias, mas complementares.. Realmente, tanto devemos atentar para os elementos de semelhança, evidenciadores da filiação do seu trabalho, quanto estamos obrigados a registrar todas as operações de eliminação, acréscimo e transformação e mais rodas as reelaborações, para fazermos plena justiça à sua quase-constante originalidade. E, principalmente, não parece possível isolar-se. em determinada peça, o que é cópia do que é contribuição exclusivamente sua. Os esquemas expositivos simplificadores - de que já começamos a servir-nos e aos quais continuaremos a recorrer - sempre tenderão a separar sumariamente o que toma a outrem daquilo que inventa, por assim dizer, sem estímulo exterior. Ora, Antônio Lisboa, diante de obra alheia, é incapaz de transpo-la mansamente, para a nova peça, pois, como O artif)ta que repara no modelo natural para reproduzi-lo, do modelo só aproveita o que lhe parece belo e dele tira tudo que, embora não sendo evidência concreta, constitua sugestão instigadora. Permanece, portanto, em pleno campo da criação, mesmo quando se vale de modelos. Em conseqüência, não será legítimo, quando se analisa trabalho do Aleijadinho, fazer rol separado para os pormenores aparentemente transliterados, mas inegavelmente refundidos, e para os elementos que, denunciando ideação própria, por sua vez não se afastam nem contrariam O exemplo inspirador, mesmo quando o ampliam e o superam de maneira vislvel . De tudo se concluirá que também no campo das cópias e modelos o Aleijadinho constitui caso à parte. Torna-se descabido classificá-lo como mais um desses copistas coloniais que, paulatinamente, vão sendo descobertos e identificados. Mais do que um decorador invulgarmen-
te hábil e capaz, como o dos azulejos baianos, mais do um copista "que pensa e age com personalidade", como o do painel de Congonhas, aqui nos defrontamos com um artista constantemente tangido por uma força cria-
dora excepcional, e incapaz de sopitá-la mesmo quando lhe bastaria ser fiel e exato. Como se poderá verificar, de modo ainda mais convincente, pelo exame da porção
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mediana do. relevo de Jonas, onde estão os vultos humanos. Lorenzo Ghiberti, fiel à narrativa bíblica, deveu modelar treze figuras. Mesmo va[endo~se da descrição incidental do mais minucioso dos Evangelhos e, portanto, conseguindo colocar Pedro e Jesus fora da barca", restaram~lhe onze corpos a acomodar na embarcação e. principalmente, onze cabeças a arranjar entre o volume e o casco. Dispô-las, depois de anular uma delas por detrás das outras e de rebater mais uma quase ao nível inferior do relevo, numa calma e longa sinuosa que caminha na direção do Cristo, deixando, acima e abaixo da dominante, as pequenas contracurvas representadas pelo discípulo jovem que espalma a mão por sôbre os olhos e pelo velho que se encosta à amurada, num esquema geral inspirado pelo fiarão gótico, tal como freqüentemente sucede em outras obras dessa mesma fase. Tal disposição, destinada à acomodação do grupo considerado em si mesmo, entrosa-se com as grandes linhas da composição geral e, em seu interior, mostra-se hábil para fornecer pontos de luz e massas de sombras capazes de enriquecer o esquema principal. Assim, a grande diagonal virtual que, partindo da haste superior da verga, atravessa todo o relevo para morrer no pé esquerdo da figura de Jesus, ganha o retorço das "linhas de crista" das cinco cabeças por que passa, sendo poderosamente sublinhada, à esquerda, pela curva sombria do interior do grupo, e, à direita, por um dorso voltado contra a popa, para afinal cruzar-se com sua equivalente contrária (menos forte e, por isso mesmo, acentuada com certo primarismo pela corda e pelo braço que a distende) à altura da cabeça que se mostra bem ao centro da cena. Antônio Francisco Lisboa, sempre invertendo o modêlo, aproveitar-se-á dessa estrutura composiüva, embora não vá simplesmente repeti':la. Conserva o esquema das grandes diagonais com seu ponto de partida superior, mas, jogando apenas com cinco figuras humanas (pois o livro de Jó, com seu sumarismo, deixava-lhe larga margem de arbítrio). imprime ao grupo 8. Só o Evangelho de S. Mateus (14.38.31) alude à incerta caminhada de Pedro sobre as ondas e ao socorro que lhe deu o Mestre. Acres~nte·5C, ainda, que f menos preciso o titulo T~mp~:H(Jd~, tradicionalmente dado ao relevo do Ghiberti, pois pelo tuto blblico é poulvel distinauir o episódio em que Jesus acalma o mar duranle uma borrasca, daquele outro em que caminha sobre as ondas para ir ter com os dis· clpulos na barca. ESte último ~. exatamente, o escolhido por Ghiberti.
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em
substituírem o ovóide singelo do relevo florentino, ou
uma planta de pé, somada aos dedos da mão que o sustém, aparecer em lugar da pala improvisada pelo apóstolo que olha para o alto; porém a nota mais original está no achado dessa calva, quase agressiva em sua luminosidade, que marca um fulgor mais forte entre tantos pontos claros. Antônio Lisboa não despreza o modelo, porém sempre o toma como uma fonte de su-
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gcstóes ao invés de refazê-lo. E o que se vê, por eXemplo, no aproveitamento das linhas de silhueta (em traço grosso nos esquemas comparativos). O perfil superior esquerdo do grupo de Ghiberti agradará ao Aleijadinho. mas ele repetirá a mesma linha (espelhada, está claro) para contornar figlÍras inteiramente novas, entre as quais incluirá o singularíssimo chapéu circular que substitui a cabeleira elegante do original. Na porção inferior e oposta ao relevo, a reelaboração será ainda mais ampla c, sobretudo, muito mais fantasiosa; na borda interna da moldura quadrilobada, na linha forte da onda que com ela vai encontrar-se, nos pontos de luz dos pés. do joelho e da túnica de Jesus, encontraremos certas sugestões de linhas e volumes que, inteiramente transformadas, transfiguradas mesmo, irão engendrar a curva exterior, o
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olho, a língua, o interior da mandíbula e até os jorros d'água da especialíssima baleia imaginada pelo mestiço que nunca chegou à beira do mar. Inspiração e C ópio
Poderíamos multiplicar exemplos de como, recusando-se à cópia pura e simples e, também, à modesta redistribuição de formas alheias em nova moldura, Antônio Francisco Lisboa obedece ao ímpeto criador mesmo quando se vale de modelos. Cremos. contudo, já haver oferecido indicações bastantes para fundar tal conclusão que, em verdade, vai tornar particularmente inadequada, no caso, a expressão "modelo". A palavra convém, sem dúvida, ao instrumento de que se utilizaram os bons e maus copistas de outros tempos, podendo igualmente aplicar-se às primeiras fontes das numerosas transcrições artísticas (inclusive literárias) que enriqueceram a arte ocidental até o século XIX, pois entretanto não se estabelecera aquele horror ao plagiato destinado a transformar-se numa das cabeças-cle-turco da crítica do século passado e, ainda, do atual, que ambos cederam ao exagero personalista da estética romântica para a qual a obra-de-arte, digna do nome, só era a nascida dos impulsos interiores do criador genial. Mesmo depois de revista essa exaltada psicologia da criação, permaneceram os conceitos de "cópia" e de "modelo", imbuídos de sabor depreciativo e vinculados à idéia de imitação servil. Ora, num complexo artístico dominado pela prática da transcrição e não lhe atribuindo menor importância do que à invenção pessoal, o Aleijadinho parece antecipar a concepção romântica de artista criador. Se o surpreendemos a servir-se de uma peça já existente para esculpir coisa marcantemente sua e havendo registrado como constantemente foge à repetição do já feito, mais exato seria falarmos de inspiração e não de modelo. Se ninguém qualifica como modelo a gravura d'apres Rafael que deu base ao Le déjeuner sur l'herbe de Manet, por que aplicaríamos o vocábulo, suspeito e prenhe de insinuações atuais, aos relevos florentinos dos quais resultaram, numa recomposição profunda que 241
deixa a léguas o exemplo impressionista, os dois púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto? Não se confundam, porém, esses reparos com tentativas sentimentais para ressalvar as glórias do Aleijadinho ou pior ainda -:- as glórias da arte nacional. Esperamos que o leitor nos poupe da suspeita de tamanha tolice e, em retribuição, não lhe atribuiremos a tolice de tal suspeita. Com o que, voltaremos ao nosso assunto propriamente dito, para sublinhar quanto é presente e evidente, no Aleijadinho, a visão especial do verdadeiro artista. André Malraux muito insiste em que a visão do artista, nada apresentando de comum com a visão pura e simples, se origina, se estrutura e se cristaliza a partir de outras obras-de-arte. E lembra a freqüência com que, depois de contemplar obra alheia, o futuro artista sente declarar-se sua vocação, isto é, a sua própria necessidade de expressão estética. Em que pese à pequena nota de paradoxo nela contida, a afirmação de Malraux nos convirá na oportunidade, desde que não esqueçamos como, mesmo em face da obra-de-arte, a visão comum insiste em retomar seus direitos e como nem todos, por isso, se habilitam à fruição estética. Os que, por essa porta estreita, penetram no mundo da arte, são capazes de comunicação com a obra criada, sendo bem menos numerosos os que se sentem convocados a repetir o milagre. Estes últimos, os verdadeiros artistas, passam então a apreender, em visão artística, não só os seres nascidos da criação de seus iguais, mas todo o vasto mundo dos homens e, por isso mesmo, poderão exprimir algo inédito. Se a interpretação de André Malraux parece demasiado abstrata - e também ~ossos reparos mereceriam igual crítica - lembraríamos o conselho que a tradição atribui a Piero de Consimo e a Leonardo da Vinci. Na opinião dos dois mestres, os jovens artistas desejosos de instigar sua imaginação visual deveriam fixar-se nas manchas que o tempo e a umidade estampam nos velhos muros, até sentir que dali começa a surgir uma "nova", uma "outra" visão, isto é, até que se recomponha, em visão artística, um espetáculo desprezível para a visão comum. Desprezíveis ou admiráveis, todos os espetáculos podem desencadear a visão folo
MAReEI..
G.\UTHEROT.
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artística. Essa transfiguração - que mais tarde os surrealistas erigiriam em dogma - claramente se revela na transcrição artística de Antônio Francisco Lisboa. mas daí não se inferirá 4ue dela fosse consciente, sendo mesmo provável o contrário. Certo é que Antônio Francisco Lisboa via artisticamente, inclusive quando contemplava obras-de-arte. Origina/idade dos Ptílpitos de Ouro Preto
Diante de um relevo, naturalista aos limites extremos da discrição, narrativo à exaustão das menores minúcias, figurativo ao máximo da reconstituição anedótica, e que representa Jesus a andar sobre as ondas, salvando Pedro e maravilhando os discípulos, o que o Aleijadinho vê é um conjunto harmônico e bem equilibrado de massas e linhas, volumes e luzes, a partir do qual. paulatinamente, sua imaginação vai compondo uma nova, uma outra ccna em que Jonas é atirado ao mar pelos navegantes apavorados, enquanto o espera a baleia que Deus mandou. Se há um barco, com mastro, vela e verga, que parecem bem ao seu gosto e ao seu senso de composição. tomá-Ios-á como seus, mas o simples fato de adotá-los figurando o que originalmente figuravam já o levará a transcrevê-los ã sua maneira e não tal qual os encontrou. Porque, de fato, os aceitou como formas capazes de exprimir um barco com sua aparelhagem e não como a repetição das formas reais de uma embarcação, muito embora talvez assim os conceituasse Lorenzo Ghiberti. No mais, encontra e aprecia perfis, valores, zonas de claro-escuro que, visualmente, simplificará ou complicará, aceitará ou rejeitará. até fixar a concepção que grava na pedra-sabão do púlpito da nova igreja que projetou e ajuda a construir. E tão à vontade se sente, tão dono da criação que tirou às sugestões alheias! que acaba por compor um relevo em que a dominante é um bem ordenado emaranhado de massas e linhas que, do topo do púlpito, levam a vista do espectador ao monstro marítimo que aguarda a queda do profeta. Talvez, a certos espíritos cautelosos, surpreenda chegarmos a conclusões tão gerais, acerca da arte de um escultor de vida em tantos pontos ainda obscura e com fundamento tão só na análise particular de um de seus trabalhos e da peça inspiFoto
M ....CEL
GAUTlfEROT
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radora que julgamos ter identificado. Acreditamos, contudo, que na peça analisada se encontre motivo e justificação para nossas proposições interpretativas. Ademais, por felicidade, além de não ser singular o caso apresentado, a segunda peça, que vem trazer apoio aos nossos pontos de vista, é gêmea da primeira, como ligado indissoluvelmente ao primeiro relevo inspirador de Ghiberti está aquele que, em nossa convicção, teve Antônio Francisco Lisboa à sua frente, quando criou o segundo púlpito de São Francisco de Assis de Ouro Preto, em que esculpiu Cristo no barco. No exame do novo caso, poderemos, por isso, ser mais sucintos. Agora, a peça inspiradora é A visita dos Reis Magos, penúltimo relevo à direita do quinto registro horizontal da segunda porta do Batistério e no qual Lorenzo Ghiberti, i~teressado na utilização dos elementos arquitetônicos então valorizados pelo umanesimo arcaizante e ciassicista, procurou agrupar num dos lados os magos e seu séquito, a fim de reservar a porção fronteira à Sagrada Família abrigada sob os arcos de uma loggia. Na composição geral muito simples e acompanhando os ângulos retos interpostos no quadrilobado da moldura, alcançou boa solução, porém o mesmo não se dirá do grupo da direita, com sua complicação arquitetônica e mais a Virgem, o Menino e São José. Este, por exemplo, é encaixado com dificuldade na composição onde, praticamente, só se abria lugar para a cabeça, razão pela qual o restante do corpo foi rebatido num relêvo mínimo, além. de, figurativamente, surgir por entre duas colunas, como se fora testemunha indiscreta duma cena em que, afinal, é personagem principal. Também a mutilação da coluna que, construtivamente, devera estar à frente da Virgem, tem sabor de "licença" exagerada e imposta pela incapacidade para achar melhor arranjo. Afinal, entre esses elementos cuja configuração quer atender às solicitações compositivas, mas para tanto deve renegar o naturalismo, tão caro ~ Ghiberti, está ainda o caso do mais idoso dos Magos que, além de prostrar-se em posição menos humana, ergue um braço para tocar o pé do Menino - impunha-se, evidentemente, encontrar uma figura de relevo poderoso e capaz de evitar que, isolados os dois grupos e entre eles medeando as linhas verticais das colunas, não se frag-
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mentasse o todo do relevo em duas entidades ópticas sem relação recíproca.
Deste relevo se vale o Aleijadinho para compor seu Cristo na barca. Não o atrairá, propriamente, o esquema compositivo geral. Modifica-o visivelmente,
multiplicando o ângulo superior numa sucessão de paralelas que, marcadas à direita pelas cordas, pela v.erga, pelo braço de Jesus e, depois, desdobrando-se nas linhas do panejamento e da borda da barca, serão à esquerda menos gritantes, porém igualmente efetivas, pois r~gem as duas ordens de barretes e rostos, bem como as linhas mestras das barbas, das mãos e do panejamento, até alcançar o tornozelo que fecha o canto inferior. Desaparecem as linhas descendentes que, no relevo de Ghiberti, levam ao ângulo médio inferior da moldura e à
mão do mago prostrado.
Aqui, mais do que simplifi-
cações ou acentuações, estamos diante de um caso de total revisão da composição, proposta desde o primeiro instante e cuidadosamente desenvolvida. Note-se, por exemplo, a superação das dificuldades que Ghiberti antes contornou do que resolveu: ao invés do congestionamento e da heterogeneidade do arranjo misto de formas arquitetônicas e humanas da seção direita, temos agora uma perfeita harmonia e mútua com-
plementação das partes do barco com o vulto de Jesus, que se mantém nitidamente em primeiro plano, sem quaisquer soluções arbitrárias. Outros pormenores poderiam ainda ser comentados no mesmo sentido, mas
preferimos chegar logo ao problema da censura central. Essa solução de continuidade que Ghiberti deveu superar por um visível artifício, Antônio Francisco Lisboa eliminou já no enunciado geral, não temendo aproximar as duas partes do relevo (embora o verismo pedisse o contrário nesta nova cena) e deslocar o elemento óptico negativo, assim reduzido, para a esquerda do eixo ver-
tical. Com isso, obrigou as oblíquas paralelas do grupo dos ouvintes a comunicarem-se indissoluvelmente com d mão do predicante, transformada em foco da composição plástica e também da figuração descritiva. Em conseqüência, o estranho Mago, que assumia posição animal aos pés do M~nino, pôde ser substituído pela figura do cachorro, tão humilde, tão franciscana, tão·. .. humana. O cãozinho constitui elemento de ligação entre duas porções do relevo, porém agora o hiato é secun247
dário e limitado à base da peça. Portanto, não precisa transpor completamente o vazio intermédio, nem superpor-se à seção da direita, que se limita a indicar com a flecha formada pelas orelhas e pelo focinho. Sua função principal é a de repoussoir dos volumes próximos - quilhas e ondas, de uma parte, e, de outro lado, pés e barras de túnicas - que irão recuar ilusoriamente para o fundo. abrindo espaço.
Permanencia do Modelo e Nova Criação Como se vê, mais ainda do que no Jonas, o exemplo de Ghiberti é reelaborado, refundido, recomposto. A tal ponto, que caberia perguntar-se o que resta da fonte inspiradora, e, conseqüentemente, se é legítimo continuar considerando-a como ponto de partida. A verdade. não obstante, é que, por sob tais e tantas fransformações, o relevo de Florença continua sempre presente, como constante propiciador das sugC'stões plásti-
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cas e lineares que Antônio Lisboa organiza em nova composição e nova figuração. Um esquema simples, no qual as principais linhas do grupo da direita sejam pontilhadas e, sobre elas, se risquem algumas dominantes que reaparecem no trabalho do Aleijadinho, poderá revelar boa parte da passagem de uma escultura, a outra. Julgamos porém que mesmo a vista desarmada o observador sensível logo perceberá, por exemplo, algumas das transliterações maiores: a fusão numa única figura - a de Jesus - do busto e da cabeça da Virgem com o braço de São José, ou então as linhas da cabeleira, da manga da túnica e do braço direito do mago que sugeriram toda a parte dianteira do cão, ou, afinal, como o grande laço da túnica de Cristo sumaria o conjunto escultórico formado pela cabeça e braços do Menino e pela mão da Virgem do relevo de Ghiberti. Também caracteriza-se, esse segundo caso, como uma transfiguração da peça inspiradora que, ao invés de servir como modelo de cópia. vale como objeto de visão artistica, e, pois, como instigador da imaginação criadora. Quando analisadas, as formas gerais permanecem, porém, não só desaparece a figuração original, como há uma recomposição dos elementos 6ptico-escultóricos qu~, sendo afinal os mesmos, entram em diferentes rela~ ções de conexão e valorização recíproca, integrando-se em elementos inéditos e, sobretudo, redispondo-se em composição inteiramente original. Para definir, mais uma e pela última vez, a atitude de Antônio Francisco Lisboa diante de obra alheia, julgamos proveitoso o exame pormenorizado da porção superior esquerda dos dois relevos, pois aí, não dominando o propósito deliberado de mudar, posto que visível o intuito de quanto possível conservar a concepção original, patenteia-se insofismavelmente a tendência à condensação do con~ junto, conseguida à custa de simplificações e elimina~ ções dos primitivos elementos. Passando dos magos de Ghiberti ao grupo do púlpito de Ouro 'preto, logo percebemos que desaparecem duas personagens e, com um pouco mais de atenção, acompanharemos uma linha de contração das formas que leva o capucho da segunda cabeça da fila dianteíra do relevo mais antigo a fundir-se com o perfil da ter~ ceira e a linha do panejamento da espádua da quarta
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figura para, em nova conexão, desenharem a grande cabeça do segundo personagem da primeira fila de ouvintes esculpidos pelo Aleijadinho. Semelhante condeno sação notamos na segunda linha de cabeças, sobretudo no sentido de eliminar os vazios. Afinal, torna-se também perceptível uma linha secundária de contração, perpendicular à principal, e que responde pela aproximação ousada das duas filas de personagens de Antônio Francisco Lisboa e, conseqüentemente, por uma ainda maior densidade do grupo em seu todo. Em sintese, o segundo exemplo da inspiração ghibertiana do Aleijadinho, substancialmente ligado ao primeiro, confinna e amplia todas as indicações interpretativas tiradas àquele. Mais uma vez, capacitamo-nos da impossibilidade de reduzir as primeiras obras de Antônio Francisco Lisboa, cujas fontes inspiradoras conhecemos, à mesma condição e nível dos trabalhos de cópia pura e simples a que começam a habituar-se os artistas coloniais. Mais uma vez, a transfiguração visual c a conseqüente reelabonição plástica dominam e caracterizam o trabalho do escultor mineiro, acentuando a originalidade das peças que produziu e, CQDseqüentemente, sua especial psicologia da criação. Se insistíssemos em sublinhar alguma diferença entre o segundo e o primeiro relevos analisados, haveríamos de frisar, inicialmente, a maior condensação da composição do Jesus na barca, quando esta seria simples variação de intensidade, posto que o Jonas, quando examinado em suas porções média e inferior~ denota idêntica incli250
nação para maior aglutinação dos elementos e mais densa trama geral do que se pode perceber nas composições de Ghiberti. Também aumenta a tendência ao abandono das minúcias descritivas, pois não encontramos no segundo relevo, em que pese ao particular do grupo da direita, uma verdadeira transcrição, mesmo tendo em conta a liberalidade com que são transpostos, para o .Jonas, o velame, mastro e casco do barco da Tempestade. Talvez essas notas diferenciadoras pudessem ofecampo' para algumas suposições de ordem cronológica, porquanto o avanço de liberdade e originalidade, que pretendemos assinalar na passagem do Jonas a Jesus na barca, permitem entrever um amadurecimento progressivo das soluções adotadas. Recusamo-nos, contudo, a ir tão longe, principalmente em razão de faltar-nos um elemento cuja importância seria impossível desprezar. De fato, quando se tornarem conhecidas as reproduções a que, necessariamente, recorreu o Aleijadinho, poder-se-á verificar até que ponto a peça intermediária terá servido para influir, não diremos determinando, mas instigando as transformações da reelaboração final. Essa ressalva, que justifica nossa recusa a novas hipóteses, diz respeito, também, a muitas das indicações que fomos fazendo ao loogo de nossos confrontos, pois, se não é grande a probabilidade de vê-las contrariadas, quase certamente a análise da estampa intermediária as fecundará e as tornará mais exatas. recer-nos~
A Maneira de Conclusões Por. isso mesmo, ao fim deste registro não serão propriamente firmadas conclusões, mas tão só delineadas perspectivas que, sobretudo tendo em vista a possibilidade de novos confrontos por via da gravura-modelo, se configuram bastante promissoras e dignas de mais amplos e fundados estudos. Se ampliadas e confinnadas, possibilitarão, sem dúvida, uma melhor compreensão desse caso excepcional de nossa história artística, cujo conhecimento, contudo, não anda a par com nossa ad. 251
rniração. De biografia ainda pouco precisa c, ~obre.tuLl.o, eivada de deformações lendárias, Antônio Francisco Lisboa só agora começa a ter estabelecido o rol exato de suas obras. O trabalho paciente dos pesquisadores de documentação e alguns acasos felizes na descoberta de peças vêm ultimamente por um lado fixando com razoável precisão sua autoria no caso de peças já conhecidas, enquanto de outra parte acrescentam novos itens a lista de trabalhos '-lue, com boa base, lhe podem ser atribuídos. Isso tudo dificulta, está claro, o estudo estilístico da arte que criou, mas, no que nos diz respeito, não acreditamos que represente razão bastante para adiá-los. Pelo contrário, quando se ehega a entrever algo acerca de sua personalidade artística, ainda que seja em cafi.iter provisório e com todas as reservas, também se contribui para o melhor conhecimento de sua vida e sua obra. Tomemos, como exemplo, aquele aspecto particular do estilo de Antônio Francisco Lisboa que acusa certo sabor "gótico" na grande generalidade de seus trabalhos, tal como se comprova, irrccusavelmente, pelo exame de certos elementos visíveis e constantes. Esse "goticismo" do Aleijadinho, registrado pelos historiadores e críticos, muito naturalmente é levado à conta dos modelos que, já vimos, constituem suposição geralmente aceita. De fato, a nota expressionista, visível particularmente na figura humana concebida por Antônio Francisco, tem inegáveis ressaibos medievais, como sejam, entre muitos outros pormenores significativos, a acentuação das cabeças em relação ao r::orpo, o talhe acutângulo das obras de panejamento etc. Num complexo artístico dominado pelo barroco e pelo roeocó, justifica-se perfeitamente supor que tal desvio medievalesco se deva a estampas reproduzindo obras góticas, responsáveis por esse gosto especial de nosso artista. Ora, se O confronto com Ghiberti não invalida tal hipótese, modifica-a substancialmente ao atribuir-lhe diverso sentido e nova amplitude. Quem estuda Lorenzo Ghiberti sabe, muito bem, que o escultor das portas famosas se encontra no limiar entre o "gótico florido", cuja rápida e extensa irradiação lhe valeu o qualificativo de "internacional", e o pré-renascimento, estimulado e fecundado pelo humanismo arcaizante e classicista. Estudar esse artista é, aliás, um
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dos caminhos que levam a compreender, contràriamentc a certos chavões crítico-históricos, como, para superarmos o último gótico escultórico, inspirado no naturalismo borguinhão de Sluter e, com icola . Pisano, na aventura dos modelos pseudoclássicos, assim passando à nova etapa das primeiras afirmações da escultura renascente, imbuída de uma curiosiaage realista que demora em firmar-se, não se requer propriamente um salto, nem se presencia a um conflito. Pelo contrário, faz-se, de um estilo a outro, transição mansa, embora substancial - atesta-o, exatamente, a obra de Ghiberti, em que se confundem e harmonizam os últimos lampejos góticos e as primeiras promc;ssas renascentes. Diante de Ghiberti, o Aleijadinho reage, como vimos, numa reelaboração da c<;>mposição e da figuração. E, no que interessa ao ponto em questão, haveremos de concluir que Antônio Francisco Lisboa "goticiza" os modelos florentinos. Antes de mais nada, assinalemos que os elementos de sabor medieval apontados nas obras do ..óJeijadinho não têm parentesco com o gótico naturalista pós-s!uteriano, mas se prendem vlsivelmente ao gótico expressivo das esculturas das primeiras catedrais, que não se libertara integralmente das deformações expressionistas de origem romântic~. O sacrifício da veracidade descritiva à intenção expressiva caracteriza as figuras de Antônio Lisboa, e a tal imperativo irá submeter também as personagens de Ghiberti, já tão próximas do realismo.
Para que, portanto, continue de pé a hipótese que atribui o goticismo do Aleijadinho à influência de prováveis estampas-modelo - e não há por que repudiá-Ia - , impõe-se conceber que o nosso artista dispunha de um bom número dessas gravuras inspiradoras. Mais ainda: que, possuindo-as de variadas proveniências e com diferentes motivos, pôde por elas praticar uma verdadeira escolha, na qual, pelas combinações de elementos, deixou patente seu gosto personalissim? e sua própria concepção estética. Realmente, assim podemos explicar que os relevos de Ghiberti, seu inspirador, tenham imposto o goticismo dessas figuras de cânüne antianatômico!f de Jonas e de Jesus na barca. Cremos, com sinceridade, que essa simples verificação bastaria 9. No caso particular dos relevos, a relação mêdia entre cabeça c corpo t I:5. em contraposiç;;;o à 1:6.5. adolada por GhiherlÍ-
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para compensar-nos dos trabalhos de aproximação e confronto aqui registrados, sobretudo porque, nesse particular, nenhuma probabilidade há de dever-se a novidade trazida por Antônio Francisco Lisboa a eventuais sugestões da gravura intermediária. Aprofundem-se estudos desse tipo, na medida em que forem surgindo as ocasiões, e logo teremos uma melhor e mais justa compreensão da personalidade artística do Aleijadinho. Se, hoje, os exageros da lenda cedem às meticulosas verificações documentárias e, também, vão-se encontrando elementos positivos para estabelecer a apreciável largueza da cultura geral e artística de Antônio Francisco Lisboa 1o , que certo romantismo crítico negava, cabe igualmente atentar para os aspectos estilísticos de sua obra. Mas, tendo tomado o problema do goticismo do Aleijadinho como simples ponto de reparo complementar utilizável no confronto de duas de suas obras com as respectivas fontes de inspiração, não queremos insistir mais. Numa última palavra, tão só acenaremos com outro problema da mesma ordem, intimamente relacionado com esse. Muito embora já se tenha sublinhado o que de despojamento e disciplina traz a arte de Minas ao bar~ roca luso-brasileiro, nem por isso se deixou de atribuir ao barroco mineiro e, também, ao seu maior artista, os traços de hábito imputados ao barroquismo considerado genericamente. S~m dúvida, ali estão presentes o movimento sem fim) a levitação das formas, o ilusionismo óptico, a expressividade transcendente, e o mais. Porém o que caracteriza o barroco mineiro é a contenção, a dosagem prudente, a ordenação discreta com que lidou com tais elementos sem ceder aos exageros que lhe são inerentes. No caso do Aleijadinho, esse autodomínio é virtude constante, atingindo limpidez de propósito e execução realmente singular. Por isso mesmo, parece-nos conveniente, nestas palavras finais, voltar a certos passos da análise formal para lembrar que, muito embora sempre reaja aos modelos ghibertianos com uma clara condensação dos elementos da composição, Antônio Francisco Lisboa o consegue, indefectívelmente, por meio de soluções simplificadoras, sejam numéricas, mor10. Haja vista, por exemplo, para a reposição do traçado, pelo nClmero Aureo, a fachada da São Francisco de Assis de Ouro Preto, como realizou Silvio de Vasconcelos.
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fológicas, ou cdmpositivas. Em étmseqüência, sua peça é mais densamente tramada, porém muito mais clara, "legível", apreensível, do que a peça florentina correspondente. E, quando examinamos certos porme~or~s (voltemos ao grupo de cabeças dos magos e seu seqUlto), seremos levados a convir em que Ghiberti é, . , mais barroco. Barroco, está claro, na acepção generalizadora e' até algo despreziva que, pela deformação do esquematismo conceitual, se tornou corrente. Mas, nem por isso, será menos sugestivo o reparo que, desse modo, se contrapõe a certas caracterizações simplistas do barroco de Minas Gerais. Tanto basta para exemplificar - segundo nos parece - a largueza das perspectivas abertas por uma simples análise fonnal, como a requerida pelo encontro de peças que terão inspirado a Antônio Francisco Lisboa. O que ao menos terá valido para apontar a legitimidade de investigações desse tipo e, mesmo, sua necessidade, mas não importa, em caso algum, na valorização específica do caso particular que acabamos de expor!t. li, Em artigo originalmente publicado no DidTlo de Minas e depois reproduzido em O E~tQdo de SikJ Paulo. Sílvio de Vasconcellos. que é hoje um dos nossos melhores especialistas em arte mineira, op&: reparos 1 ap:oximação entre o Aleijadinho e Ghiberti, Não obsUDte, desde logo se evidencia Que responde menos às nossas observaç6es., do que ~ adulteraç6es cometidas por Quem est1 interessado em denegrir os méritos de AnIÔnio Francisco Lisboa. Quem o diz é o próprio Silvio de Vasconcellos. Desviando-se de seu objetivo, o critico começa por desenvolver uma longa dissertação sobre a legitimidade da prática da cópia. e do uso de modelos na arte colonial mineira, o que de forma alguma estava em dúvida, de vez que procuramos encarecer tal legitimidade para as artes de todos os tempos, enquanto não sobreveio o preconceito romãnticn do plagiato. Posto nesse l,;aminho, por .UJ:na segunda vez desvia·se Sílvio de Vasconcellos quando reduz o problema da côpia à repetição forçosa e Jleccl$ária dos simbolos concretos - melhor dito; dos atributos alegóricos consasrados pela representação hagiogrâfic:l, campo muito restrito c 56 incidentalmente interessando à criação plâstica prOpriamente dita, que era nosso interesse central no problema dos modelas inspiradores dos púlpitos de Ouro Preto. Sem dúvida, chega o critico a aludir à importãncia "da eomposiç50 plástie:l que deve ser, ~:>sim, o ponto de referência para a apreciação da obra realizada, indepl:ndentemenle, quase. da composição temática utilizada", 1IIIas, não segue tal orienl:lção certa e nec:cssiria _ que, pois, permanece como simples reparo margin:l!. Ora, exatamente lal critério, par ser o único adequado, foi o que adotamos em nossas no135. E, nelas, interessamo-nos por registrar a origem e a orfr'natidade d3 criação artística. de Antônio Francisco Lisboa, t31 como 6 paulvel de:monSU3r, pela primeira vez, graças ao encontro das peças inspiradoras dos dois púlpilOS de pedra-sabão. Se. conseqüentemente, Silvio de Vasconcellos pergunta por que, Quando não h3via qualquer tema imposto, o Aleijadinho preferiu tudo transformar do modelo para aproveitA·lo em diverso tema, :I respoSla só pode ser unu. Esse repúdio da cópia servil atesta, como desejei provar em Iong_ demonltraçio, que Ant6nio Francisco Lisboa era um artista, - na
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pltnói accpç::l.o do termo. Essencialmente plástica erOl Ol sua vblo e. correspondentemente, sua atividade foi essencialmente criadora. Eis o que f3Z compreender por que, em nOu" an1lis.e, tanto acen· tuamos as semelhanças entre modelos e obras resultantes, quanto nelu sublinhamos diferenças coisa aparentemente inadmiss[vel para nono critico. Claro t que nas semelhanças, ou melhor, n:lS perman~ncia.s de determinados elementos, buscamos apontar a li,açio entre as peças de Ghibcrti c as do Aleijadinho, ou sejil, a ori~em dos trab31hos deste. enquanto as dcssemelh:mças, que maiS propriamente devêr3mos chamar de invenções, p3tenteiam a re-elaboração, a re-criaçâo praticada pelo artista brasileiro, i~lo é, sua oril;linalidade. Certo, a Silvio de Vasconcellos escaparam alyuns pormenoreS, o que se deVerá em parte i reprodução em papel de jornal. Mas, outras veles, sua maneira caprichOsa - de analisar peças de arte (tomando a linha de cesur3 pelo eixo de composição, tanto na T~mpes'od~ de Ghiberti, quanto no J~SllS na Borco do Aleijadinho ... ) foi a maior responsivel pela sua oposiçio a nossos reparos. Atinai, resta lembrar que seria diftcil objetar fundamentalmente observações - que, nio obstante, disso muito necessitam - quando $C tinha em mira, antes de mais nada, sua maliciosa distorç30 por terceiros. Tomar a~ quatro peças em causa para simplesmente afirmar quc entre c1u n3da h1 de cópia não pode levar a conclusio de maior vulto. Enquanto se admitem outras tantas muito peri,osas e menos corretas 19) implicitamente, tolera-se a opini!io segundo a qual a cópia t obra arthtica desprezlvel; 20) também se permite pensar que, no cuo em questão, há suspeita de cópia; 39) que os méritos do Aleijadinho dependem de ter sido Ou nio copista.. Sem falar em como se desperdiça a oportunidade de ser produzida uma das maJs altas demonstraç6cs da aeniaUdade plistica de AntOnio Francisco Lisboa, qual seja • de ter-te voluntariamente recusado a copiar quando isso lhe era posslvcl, 5oaltimo e, até. aconselhado.
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o
MEDALHÃO DAS MERCI'.S
Sobre a porta principal da Igreja de N. Sa. das Mercês, de Ouro Preto - da Mercês de Cima, como se diz, para distingui-la da Mercês de Baixo, que é da paróquia de Antônio Dias - , há um' medalhão esculpido. E, só por ser belo, esse relevo acabou suscitando dúvidas e controvérsias que, em conjunto, acabam por compor um verdadeiro "mistério" desses típicos da história artística das Minas Gerais. Ao que parece, tudo começou quando Diogo de Vasconcelos, o velho e bom historiador, ao qual"não escapavam as coisas de arte, reconhecendo no medalhão um certo encanto singular, que de fato tem, dispô.s-SC.3
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lançá-lo à conta do mais singular artista de Minas e, também, do Brasil: Antônio Francisco Lisboa. Por muito tempo pennaneceria indiscutida a atribuição perfilhada ainda há pouco por José Mariano Filho, o que, aliás, facilmente se explica pela falta de elementos documentários capazes de contraditar a impressão causada pela peça aos mais sensíveis e a muita generosidade, assim inspirada, com que se acabava por dá-la como do Aleijadinho. Quando, afinal, surgiram tais documentos, infinnando a suposta autoria, era chegado o momento de pacificamente corrigir-se a opinião de Diogo de Vascancelos; o que, ao menos em aparência, de fato se fêz. Não obstante, perduraram dúvidas. Que têm razão para persistir, na medida em que descobrir um têrmo de ajuste, firmado nas Minas do tempo da Colônia, não significa absolutamente, como tantos casos notórios estão a indicar, que o ajustante seja, por força, o próprio executor da obra. De outra parte, muita gente sensível e bem informada, inclusive especialistas que puderam manter mais direto contato com o medalhão da Mercês de Cima, continua confessando, embora com tôdas as reservas, que nele julgam perceber "algo" de Antônio Francisco Lisboa. De certo modo, portanto, permanece em aberto o velho problema e, pois, valerá a pena passá-lo por nova revisão. Sobretudo quando o Cônego Raimundo Trindade, como já o fizera para outros monumentos mineiros, acaba de publicar os documentos sobrexistentes do arquivo da Mercês de Ouro Preto 1 , Rememora, esse valioso historiador, o engano de Diogo de Vasconcelos, por tanto tempo mansamente aceito, e sublinha que a Manuel Gonçalves de Bragança, nos termos de papéis compulsáveis hoje, deve ser atribuída a autoria do medalhão. Mas, movido pelos mesmos documentos que publica, levanta uma hipótese até agora inédita, ao menos para nós, e segundo a qual naquele relevo haveria possível participação de Justino Ferreira de Andrade, discípulo bem eonhecido do Aleijadinho. Tudo, como se vê, está a pedir reexame_geral do problema dessa algo misteriosa autoria, sobretudo se, com os documentos à mão, podemos recompor, ao meI. Conf. Raimundo TRINDADE. "Igreja. d:lS Merces de Ouro Preto - Documentos de seu Arquivo". In: Revista do Patrimlinjo llistorico c Artístico Nacional, nQ 14; Rio, 1959. CiUmos os documenlos segundo a
numera.,:io que lhes foi dada neste traba,lpo.
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nos em parte, a história da peça de fachada da Mercês de Cima. Manda a sinceridade desde logo advertir que bom será manter-se o leitor disposto a acolher com isenção algumas novas surpresas menores. Mesmo porque a simples identificação de Bragança como autor não basta para deslindar toda a complicada história na qual, finalmente, têm algo a dizer todos os elementos que acabamos de enumerar. Inclusive, em certa medida, aqueles que poderíamos acreditar ora superados.
Não parece simples, aos que hoje a estudam, como não terá~parecido fácil, para os que um dia a viveram, a história dessa capela e, também, da ordem terceira que a construiu. Conta-nos o Cônego Raimundo Trindade a acidentada existência da irmandade, inclusive a ruptura com a ordem que fraternamente de início a agasalhara na igreja de S. José e a cisão interna que por certa altura dividiu os terceiros de N. Sa. das Mercês. De nossa parte, ficou-nos a impressão de que a construção da nova igreja complicou-se e arrastoU-se por nem sempre haver fartos recursos financeiros. Eis por que, examinados à distância e com a falta irremediável de alguns documentos, enovela-se e por vezes obscurece-se a narrativa dos fatos. Basta dizer que o meticuloso investigador dos arquivos da igreja assegura que a igreja começou abandonando· o local que lhe fora inicialmente reservado e, ainda, que teve pelo menos dois riscos gerais, sem falar de numerosos riscos parciais, para a torre, para o arco-cruzeiro etc.. .. Devemos, por isso mesmo, ser pacientes também no examinar a história da obra particular que nos interessa. E, portanto, começar retraçando o episódio em que primeiro surge, junto com a figura algo pitoresca do pedreiro Antônio José de Lima. Esse nome surge em série, praticamente contínua, de recibos datados dos anos que vão de 1797 a 1808, podendo-se por aí inferir que o Lima naquela época trabalhou na cantaria e outras obras básicas do corpo da capela com gente a de subordinada, não sendo este, porém, o único grupo de operários. De fato, tanto declara receber parcelas relativas a "meu trabalho", a "meu ajuste da obra de Cantaria", a «jornais que venci" ou "de meu ofício".
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quanto o faz relativamente aos Ujornais de um aprendiz" ou aos "que venceu o servente Roque"\ enquanto surgem documentos paralelos, como o que Joaquina Rosa do Sacramento dá em recibo do trabalho de dois pedreiros seus escravos. J á então, torna-se notória a escassez de dinheiro na caixa da innandade, pois há alusões a "resto de c0111a" e, sobretudo, em detenninado momento, paga-se em espécie: u . . . nove oitavas, meia e Sete vintens d'oiro, digo e quatro vintens d'oiro sendo 7/8 em hum par de fivelas depedras cravadas em prata, assim mais 3/4 - 2 emhu Almocafe velho, assim mais 3/4 - 4 em 7 Libras de ferro velho, e assim mais 3/4 -> 6 em 7 e 1/2 Lbras. de ferro novo . .. "'. Eis o que talvez explique contrato, algo temerário, que a irmandade viria a assinar com Antônio José de Lima que, tolerante no receber, contudo não era pessoa recomendável para trato maior, como já sabiam os terceiros e logo veremos. Certo é que em 1808, presumivelmente em abril, juízes, juízas, oficiais, irmãos da mesa e simples lavram solene ajuste com o Lima. na importância de um conto trezentos e trinta mil réis. Ao que parece, entregavam-lhe tudo que ainda faltava fazer na parte da frente da capela, pois deveria executar "a sobre verga da porta principal", "o resto dos pilares", "a Simalha", "as Janelas do corro" com "sulleyras de cantaria", "Duas Pirambidas para sima da empena, e duas quartelas", "camtarias para tres sineyras" e "pirambida com seu sopa . .. para Remate da tore". "capiteis' e moldura de pedra para as "Janelas do coro e para baixo que faltão", Afinal: "o Ajustante sera obrigado a lavrar e aSentar e como também as Armas de NoSa Snra, na frente . .. "., l? o primeiro documento que alude ao medalhão, parecendo definir-lhe a sorte. As coisas correram, contudo, de maneira diversa. No fim desse mesmo ano de 1808, o Lima estava fora de Ouro Preto, pois há recibo seu pago a um po'rtador, sendo presumível não tenha mais voltado a Vila Rica, porque s6 voltamos a encon. trar papel com sua assinatura e com a carta datada de "Redondo 27 de Mayo de 1810". Trata-se da resposta
°
2. 3.
Cf. documentos n9s. 69 a 81.
4.
Doc, fi8.
260
Doc. 81.
dada ao que lhe escrevera, um mes antes, o juiz da irmandade, solicitando que desse algum andamento às obras antes da festa de Na. Sra. das Mercês, a fim de bem impressionar aos doadores, porquanto "o q. podemos fazer he pa. a comida alguma coisa pos paguemos muitas dividas q. nos decharão os otros ofeciais". Respondendo o Lima para romper o ajuste, pedindo avaliação do que estava feito, disposto a rescindir o contrato por "200$000 rs. mais como gosto da pas com 100/8 as. meacomodo"r.. Três dias depois, em ofício de exageradas queixas, a irmandade recorre ao Conde da Palma, junto ao qual insistirá logo depois, para afinal saber que "Não he mister auctoride. ou intervenção deste govo. pa. os fins a que os Suppes. se propem"G. Faz-se, então, a avaliação privada, que manda pagar 67$500, ou seja, pouco mais da metade das cem oita·vas pretendidas por Antônio José de Lima, do qual não se tem mais notícia no arquivo da Mercês de Cima. Não é, contudo, desprezível sua participação na história do medalhão, pois por aí podemos vislumbrar não só como iria a obra parar às mãos do Bragança, segundo ajustante, senão também por consentir a hipótese, embora pouco provável, de que já ao tempo do primeiro ajuste se houvesse cuidado de desenhar o relevo. Se tal porventura sucedeu, cabe entretanto a certeza de que não seria Antônio José de Lima autor do projeto, pois, embora a qualidade de mestre ou oficial pedreiro de forma alguma a esse tempo excluísse a qualidade de escultor, o fato é que esse, menos do que mestre, seria um desses oficiais menores que abundavam nas Minas e pouco habilitado a sair da linguagem lisa dos muros e das modernaturas simples da cantaria de arremate. E o que deixa supor o ofício ao Conde da Palma onde a ordem diz que, ao tempo do ajuste, o Lima trabalhava como administrador da fábrica do Coronel José Velozo Carmo, função que depois perdeu, incapacitando-se, s6 por isso, para o bom cumprimento dos seus compromissos contratuais. Tratava-se, provavelmente, de elemento mais acessível à pobre caixa dos terceiros· da Mercês de Ouro Preto e ao qual, ao entregar-se a finalização das obras de toda a fachada principal, por
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5.
Does. 89 e 90.
6.
Does. 91 e 92.
261
acessório também se dera a incumbência das armas, isto é, do medalhão. Se deste chegou Antônio José de Lima a cuidar, parece bastante improvável, pois na sua carta apenas protesta "q. essa obra não ha muros no xam" e êle próprio avalia em apenas 200S000 (logo abatendo para 100 oitavas) a parte executada duma empreitada contratualmente estimada num total de I: 330S000. Se jamais o fez, muito provavelmente teria pedido o projeto e acenado com a execução a terceiro realmente capacitado, o que, aliás, era então comum nos ajustes e arrematações de obras artísticas, cujos titulares jurídicos muitíssimas vezes não são, como foi dito, os criadores das obras. Ora, nessa perspectiva há oportunidade para, mais uma vez, reformular-se a hipótese dos que, mesmo depois da redescoberta do [ermo de ajuste com Manuel Gonçalves Bragança, continuam a sentir no medalhão da Mercês de Cima "algo" do Aleijadinho, pois ser-lhes-á consentido continuarem a supor que o desenho da peça venha da mão de Antônio Francisco Lisboa. Seja para o ajustante Lima, no momento que agora examinamos, com posterior aproveitamento, quando vigorava o segundo ajuste, pelo Bragança. Seja diretamente para este. Dois anos perdeu a ordem das Mercês de Ouro Preto com o ajuste firmado com Antônio José de Lima, contratador ousado aceito por contratante pouco exato. Buscou, contudo, recuperar o tempo perdido e, já em novembro de 1810, faz novo "ajuste das Armas da Frente da dita Capela pello preso de quarenta e seios oitavas" com Manuel Gonçalves Bragança. O termo desse compromisso, lavrada a folhas 14, verso, do Livro de Termos aberto em 1799 - passou a constituir, depois de redescoberto, a chave-mestra do "mistério" do medalhão famoso, por constituir o principal argumento com que se elimina de sua fatura qualquer participação do Aleijadinho. Aos que, para consultar o inteiro texto do do. cumento, forem ao trabalho do Cônego Raimundo Trindade - que transcreve sob n. 39. - , valerá advertir no sentido de que não se· deixem iludir por qualquer relação entre esse termo de ajuste e os dois recibos que,
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embora transcritos a seguir, são de data anterior. De fato, firma-se o contrato a 25 de novembro e são de 26 de outubro dois recibos passados por Bragança, o primeiro, de 125315, "da obra de talha do frollte Espicio q. estou c01l/illualldo", e o segundo, de 425885, "deresto detoda aobra da frente". Salvo erro de transcrição ou revisão muitíss.imo improvável em tão exato pesquisador - , parece-nos legítimo concluir que, ao findar-se 1810, Manoel Gonçalves Bragança trabalhava ativamente na fachada da Mercês, deixada pelo Lima, ao que parece, apenas nos panos de alvenaria, a julgar pela sua referência a não existirem "muros no chão". O sucessor cuidava, pois, não só dessa alvenaria, enquadrável na referência genérica à "obra da frente", como também da cantaria lavrada da moldura dos vãos, cimalhas e tantas outras peças especificadas no primitivo ajuste. E, como o primeiro ajustante, em determinado momento passara a merecer a confiança da mesa da ordem que, então, resolveu com ele contratar a peça mais fina do conjunto. Aliás, nesse dia 26 de outubro de 1810, dir-se-ia tcr ocorrido certa fartura monetária que permitiu pagamentos de novos e velhos compromissos. Além dos recibos do Bragança, há outro, assinado por Miguel Moniz da Silva, pelas "pedras de sabam q. carretei pa. a mesma CapeI/a". Lembrados das pirâmides, quartclas e outros adimplementos do contrato com Antônio José de Lima, podemos conceber que agora andava o inteiro projeto para a frente, muito embora haja no arquivo indicações de que a fachada principal sofrera sucessivas modificações antes de chegar a seu atual aspecto com a torre central, algo' insólita. Assim, pedreiros do Bragança e carreteiros avulsos percebiam, neste dia, a paga por serviços prestados e o otimismo desse instante teria animado a irmandade à contratação das armas. Teremos. pois, com toda a probabilidade, que, a 25 de novembro de 1810, nada existia, esculpido, do medalhão. Obra a ser atacada, nem por isso elimina a hipótese de haver um desenho anterior, traçado do tempo de Antônio José de Lima. Como também adquire consistência, ainda maior, a suposição de ser este o momento propício para riscar-se um novo desenho, existisse ou não um hipotético projeto inicial, pois rião 263
se pode desprezar a aparência de definitiva ruptura de relações entre a confraria e o pedreiro Lima. Esclarecer tais pontos importaria muito para os adeptos da participação, a qualquer título, do Aleijadinho. Acontece, porém, que a documentação de que agora dispomos é absolutamente silenciosa a esse respeito. E, para novamente adensar-se o "mistério:', surge 'a referência ao lustino. Consta do Livro aberto em 1754, a tolhas 195: "Recebo do Thezoureiro actual da Irmandade de N. Snra. das Mercez da Freguezia do Ouropreto mil de duzentos rs. de compor os dedos dos Santos epor verdade passo este por mim So me. assignado Va. Ra. era ut supra (27-X-1812) / / Justíno Ferra. de Andre". E a folhas 196; "Recebi do Thezoureiro actual de acrescimo de obras das armas do Fonte espicio da Capela de N. S. das merces de oiro Preto acoalJtia de coatro mil e oito centos reis "aje Va. Ra. 28 de 8bro. de 1812 / / Justino Ferra. de A ndre". No segundo destes recibos funda-se, ao que parece,
° Cônego Raimundo Trindade, para afinnar, quanto à
obra do medalhão, que "Bragança a realizou entre os anos de 1810 a 1812". Legítima, a indicação não é, contudo, de molde a excluir outras, mesmo porque a simples expressão "acréscimo" parece demasiado vaga para que dela infiramos que já se terminara trabalho principal. Preferimos inferir, sim, que a esta altura o Bragança, concluído ou não o objeto do ajuste de dois anos antes, retirara-se da capela das Mercês, pois de outra forma não se compreende a colaboração em obra sua, de J ustino Ferreira de Andrade, pago diretamente pela irmandade. Fato irrecusável, porém, que J ustino pôs a mão nas armas. E, desse modo, vem a confinnar-se, embora por via indireta, a impressão dos que sustentavam ali haver ualgo" de Antônio Francisco Lisboa, pois que também por intermédio de um discípulo pode numa obra de arte
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surgir a marca do mr-~rc. Sobretudo quando se trata dum mestre do porte tio Aleijadinho e de um discípulo do limitado poder eriador de Justino Ferreira de Andrade. Antes, porém, de concluir acerca dessa participação identificada, vale sublinhar dois elementos oferecidos pela documentação. Primeiro, confrontando-se os âois recibos assinados por Justino, verificamos que ao segundo deles, se corresponde a tarefa já acabada (como sua redação permite supor na medida em que não traz a ressalva do "por conta"), forçosamente se refere a obra pequenina, de pormenor, remate ou reparação. De fato, se 1$200 era o preço de J ustino para reparar dedos avariados das imagens da igreja, por 45800 não atacaria obra extensa e em pedra. Basta, aliás, comparar essas 4 oitavas do "acréscimo" com as 46 por que o Bragança contratara a totalidade do medalhão para deixar bem clara a insignificância do que, então, realizara Justino. Em segundo lugar, malgrado a relativa segurança dos dados que acabamos de comentar, não podemos deixar de anotar a existência de mais um recibo datado do mesmo mês de outubro de 1812 e figurando a folhas 163 do livro citado, pelo qual ficamos sabendo que a Libório José Bandeira foram pagas 3 e 1/2 oitavas pelo fornecimento de "duas pedras de sabão que tirei para os Anjos da frente da Capela". Ora, anjos, em seu exterior, essa capela só os tem no medalhão. Se a chegada das pedras para fazê-los pode ter-se dado muito antes da data do reeibo eorrespondente (eomo é legítimo supor à vista do tardo e irregular ritmo dos pagamentos), não é menos certo que por 45800 Justino não esculpiria nenhum sequer dos três anjos das annas, enquanto o plural "anjos", empregado num momento em que se supõem adiantados os trabalhos do medalhão, leva-nos a propender pelo par gêmeo que sustém a coroa, ainda por ser a terceira forma angelical, mais prõpriamente, um querubim. Abre-se, pois, campo largo para cogitações acerca do que trouxe Justino Ferreira de Andrade ao medalhão da Mercês de Cima. Por esta altura, andava ele pela capela, a tomar pequenos encargos de reparação. embora não possamos presumi-lo em total disponibilidade profissional. De outra parte, a ordem já não con-
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tava mais com o serviço do Bragança (do qual, aliás, não consta recibo de prestações parciais ou término de obra), pois senão estaria impedida de interferir no trabalho por ele ajustado. E chegam pedras para os anjos da frente. Encadeando-se tais dados numa sucessão verossímil razoável, teríamos que ao medalhão, por inacabado ou por parecer insatisfatório a seus contratantes, quis-se juntar algo em outubro de 1812 e que, a julgar pelo recibo de Libório José Bandeira, seriam uns anjos, provavelmente os da coroa. E, se estava por ali Justino, já então bastante conceituado, pois discípulo mais chegado do Aleijadinho, ainda vinha de contratar com a Ordem do Canno a continuação da talha por aquele iniciada, parece bastante provável que se lhe tenha dado a incumbência. Tudo, como é óbvio, não passa de mera conjetura. Acontece, porém, que na história artística das Minas Gerais, a conjetura é a matéria-prima da investigação. Imprescindível quando há ausência ou escassez documentária, utilíssima mesmo quando a documentação é bastante, pois também esta admite uma margem interpretativa que solicita a imaginação. Mas, uma vez .utilizada, precisa, não só sofrear-se, como pennitir as retificações trazidas por outros elementos de investigação. Que, no caso presente, devem provir, antes de mais nada, da análise formal da própria obra em questão. Assim,' colhidas as informações documentárias relativas ao medalhão da Mercês de Ouro Preto e, depois de tentar relacioná-las e coordená-las, teremos o seguinte esquema: a) Quanto à atribuição tradicional, de concepção e execução, a Antônio Francisco Lisboa, nada há que a confirme. Dessa negativa não é, contudo, legítimo excluir, malgrado a menor probabilidade, a hipótese da autoria do risco que poderia ter ocorrido, teoricamente, tanto no primeiro e frustro ajuste, quanto no segundo. b) Quanto à interferência de qualquer espécie, por parte de Antônio José de Lima, pode ser dada por nula, tal a margem de improbabilidade e o pt:so das sugestões em contrário. Logicamente, só não se poderá excluir, ao menos em princípio, a oportunidade de haver esse oficial providenciado um risco da peça.
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c) Quanto a Manuel Gonçalves Bragança, seu nome continuará como o do autor presumível da peça, a menos que sobrevenham novos elementos documentários. Assim, não obstante, de forma alguma se exclui a possibilidade de haver ele contratado apenas, passando a terceiro a concepção e fatura (ou qualquer delas) do medalhão. Nem, tampouco, o caso de não haver terminado a obra, nos termos do projeto que adotou ou
da expectativa que suscitou aos irmãos da ordem. d) Quanto a Iustino Ferreira de Andrade, é certo que participou da obra com um acréscimo de menor importância, devidamente documentado, e muito possí-
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vel que tenha depois assumido compromisso de complementação de maior porte, presumivelmente relativo à concepção e fatura (ou só esta) dos anjos e coroa componentes do registro superior do medalhão. Resta, agora, buscar na própria peça indicações capazes de confirmar, limitar ou anular tais ilações. Se, para melhor analisar o desenho do medalhão da Mercês de Cimd, desejarmos um ponto de :reparo, teremos de torná-lo ao medalhão da Carmo que lhe fica próxima. Como, ao que saibamos, ninguém até hoje tentou tã:t aproximação, caberá dizer que não se trata, absolutamente, de forçar a hipótese (cuja tenuidade deixamos bem marcada no curso do exame documentário) da possível autoria do Aleijadinho que, no caso da Carmo, é unanimemente aceita, malgrado a falta de comprovação direta. Na realidade, das igrejas de toda a região, será esta a única capaz de oferecer um subsis· tente paralelo ao relevo de armas da Mercês de Ouro Preto, enquanto só por seu intermédio e num segundo passo Se poderão convocar, já com considerável afasta~ mento, os ornatos da sobreporta da Ca~mo de Sabará. O paralelo estabelece-se, pois, por motivo único de uma semelhança formal, inegável, embora até o momento não explorada. Realmente, postos lado a lado o medalhãq: da Carmo e o da Mercês, este logo se denunciará como uma espécie de alongamento vertical daquele, que aliás se configurou para preencher o espaço, relativamente acanhado, mediante entre a verga da porta e o grande óculo. Se imaginarmos uma ampliação longitudinal da peça da Carmo que permitisse a seu querubim destacar-se mais do conjunto, a fim de constituir ele. menta praticamente autônomo, ao mesmo tempo trans. ferindo os dois anjos laterais para uma posição imediatamente inferior e presa à coroa, estaremos, muito provavelmente, retraçando os passos da reelaboração praticada pelo autor do risco da Mercês. Na Carmo, a figuração heráldica dos símbolos da ordem, ou seja, as armas propriamente ditas, aparece metida numa forma discretamente concheada e próxima dum pentágono alongado, à qual serve de moldura uma forte tarja que, semelhando aspas, se retorce em firmes volutas nos extremos e, ao centro, sofre leve
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influxão convergente que, sobrepassada por ligeira porção, em rocalha, do escudo caprichoso, acaba por estabelecer uma configuração final de um par de arcos-de-besta. A mesma conformação pode ser vista na porção central das annas da Mercês, apenas com a maior abertura superior das aspas que, agora, juntas, lembram um perfil de urna, enquanto a forma central concheada, embora na porção média insista em fundas ondulações, acaba por perder-se, desfeita, no topo, malgrado o acréscimo de mais dois pares de aspas, aliás, tam bém tomados à peça do Canno, onde figuram, soltas, aos lados da moldura. Curioso, contudo, é como, sentida a importância da linha ondulada-que, na Carmo, emoldura a -cruz e liga as volutas su'periores com muita graça, o risco de Mercês aproveit6u-a na filactera onde inscreveu: Venite ad me omnes qui /abor{lfis ... et ego re/ieiam vos. Se, na Carmo. as asas do querubim já tocam essa linha alta e seu rosto se inclina para baixo, na Mercês, alçando-se ainda mais o desenho, há espaço para uma nova cartela, menor e tarjada por outras aspas semicirculares. sendo o conjunto rematado por um ornato que começa em volutas para revirar-se numa caulícola de acanto, acima da cabeça do querubim. Circundando o escudo central,. numa e noutra das peças, espalha-se uma farta rocalha que, em ambos os casos, assumem forma de ave, com duas grandes asas erguidas lateralmente e. emba.ixo, uma cauda aproximadamente triangular. Mas, se na Canno essa franja decorativa se espicha decididamente no sentido horizontal, só admitindo ligeira obliqüidade ascendente para melhor se ligar aos dois anjos que a completam. já na Mercês surgem em _ dispersão centrífuga c com tal profusão que podem dispensar os anjos, por isso mesmo transferidos para o regist(o superior. Importa ainda notar que na Mercês assenta-se o conjunto num soco. a semelhança de trono de altar, flutuando ao centro de um festão de rocalhas e tarjas, bem acima da verga, enquanto na Carmo o supedâneo já é parte integrante da própria moldura da porta. Enunciado. assim, em termos de morfologia e composição, o confronto logo indica que o autor do riscp da Mercês, num tempo em que se encareciam Uengenho e
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arte", supria e mesmo sobrepassava, na sábia dosagem e correta redistribuição dos elementos aproveitados, o que possívelmente lhe faltava em inventiva. Avaliando o problema nos exatos termos em que lhe era fonnulado, deu-lhe solução cabal e correta, à exceção talvez da faixa sobrante entre a última linha esculpida e a viga da porta. No mais, sobrepôs-se às dificuldades da recomposição verticalizada dum modelo francamente dominado pela horizontal. O recompor, o reorganizar, o quase-recriar suposto na consecução duma nova obra, artisticamente válida e interessante, a partir de elementos tomados a alguma peça preexistente, constitui, sem dúvida, pro-cesso muitíssimo utilizado pelo artista brasileiro do tempo da Colônia. Onde quer que surjam, redescobertos, os mooelos que serviram a tais recomposições e que são, indefectivelmente, gravuras dos velhos livros ilustrados, podemos observar o desenvolvimento óptico e conceitual dos novos arranjos. Aliás, à vista do confronto praticado por Carlos Olt entre os azulejos do Convento de São Francisco da Bahia e as estampas abertas por um dos mestres de Rubens para uma espécie de tratado de moral pela imagem, sabemos que o recurso era praticado correntemente também em Portugal. E varia, ao infinito, o grau de liberdade que se permitia o recriado!, indo desde ligeiríssimas reacomodações visando a diverso dimensionamento e proporção de quadro, até efetivas composições originais. Certa feita, julgamos ter percebido, numa extrema amplitude em que só operavam os valores ópticos e táteis, dispensando-se, pois, qualquer arrimo da figuração propriamente dita, uma operação desse tipo praticada pelo Aleijadinho. Assim se explicaria a composição dos púlpitos da São Francisco de Assis de Ouro Preto como nascida da impressão visual e plástica causada por gravuras reproduzindo porções de uma das portas de Ghiberti para o Batistério de Florença. Não havendo, até hoje, surgido o livro ou as estampas avulsas ·que teriam servido como o necessário elemento de ligação, a análise formal então levantada e que continuamos a julgar bastante consistente, permanece como simples hipótese. Mesmo, porém, nessa condição, servirá para indicar, de certo modo, que até ao grande 270
Antônio Francisco Lisboa não repugnava o recurso, apenas utilizando-o na altura de seu imenso poder criador, Não obstante, tal indicação é incapaz de por si só autorizar a suposição de Que o escultor da Carmo haja, por reelaboração de obra por ele mesmo criada, esboçado as armas da Mercês. E o que nos revela o próprio relevo quando examinado, confrontando-se com o primeiro, num plano .de puros valores artísticos expressivos. Efetivamente, desde logo surgem não exatamente erros ou falhas, mas senões e deficiência de maior ou menor gravidade. Assim, logo à primeira vista, haveremos dc perceber a imprcssionantc falta de economia com quc sc traçaram e retraçaram linhas, tanto na porção central como no resplendor decorativo, sem que daí tivesse resultado a bem posta ênfase nas linhas de torça que, com elementos infinitamente menos numerosos, logo se impõem no relevo do Aleijadinho. Na mesma ordem de idéias incluem-se os festões florais que, na portada da Carmo, conseguem, pela fragmentação movimentada da superfície, sublinhar o escudo central, trazendo-o aparentemente à frente, enquanto nas armas da Mercês parecem submergir entre outros elementos de equivalente vigor. E, ainda com o mesmo sentido, cabe observar a distância no rendimento plástico entre a peça-modelo, onde são exploradas espetacularmente as possibilidades, reais ou virtuais, da tridimensionalidade do relevo, ao passo que a obra derivada parece tcimar em regredir para o plano, comunicando uma sensação final que, embora agradável e convincente, mais pertence à gravação plateresca do que ao relevado da escultura. Enquanto na peça derivada multiplicam-se os elementos ornamentais em minúcias de desenho que só podem corresponder ao desejo de preencher o "campo", isto é, de animar com ritmos lineares um plano simples, a aspiração fundamental do Aleijadinho sempre se mostrou, no portal da Carmo e na totalidade de suas peças, como o claro desígnio de fazer vibrar o espaço em tôdas as suas dimensões, a ponto de tomar difícil o reconhecimento de um "fundo", mesmo quando as imposições do material e da configuração da peça pareceriam opor-se a tanto, como sucede com os púlpitos de 271
Sabará. Daí o constante flagrante entre as duas obras aqui examinadas, pois na já aceita como de Antônio Francisc;o Lisboa o desenho, isto é, a linha como ente sensível, resulta, indefectivelmentc, do encontro de planos bem marcados, mesmo quando a procuramos nos minúsculos detalhes em que o plano da face anterior duma rocalba, duma folha de acanto ou da pena de uma asa é intersectada pelo plano, ainda menor, de seu rebordo, ao passo que no relevo da Mercês as linhas se oferecem como meros traços, primeiro marcados no papel, e, depois. "cheios" com a pedra-sabão do rel~vo. Se a alguém parecer demasiada a menção à bidimensionalidadc plateresca que acima ficou, não cremos que o mesmo aconteça, agora, com essa impressão de modelagem escolar, laboriosa e inexpressivelmente procurado à vista do projeto riscado, que lhe é bem superior. Entre o medalhão da Mercês e o da Canoo, medeia a grande distância revelada por duas diferentes ordens de valores ópticos e conceituais. Diferentes, dissemos e muito de propósito, pois, para a distinção que ae hnediato nos interessa, não precisaremos insistir na sua desigualdade qualitativa que, em torlo caso, já assinalamos. Basta-nos, efetivamente, caracterizá-los corno correspondendo a dois universos de visão e de aspirações estéticas C, pois, caracterizando dois diferentes artistas ou. pelo menos, dois diferentes temperamentos artísticos. Com o que podemos afastar. por inferência estética e confronto estilístico, a possibilidade de ser Antônio Francisco Lisboa o autor do segundo risco. Impõe-se a imediata eliminação de tal possibilida~ de exatamente na medida em que, se continuarmos e pormenorizarmos o exame, novos elementos aparecerão capazes de reacender aquela dúvida. Se de qualquer forma existir aquele "algo" do Aleijadinho por tantos até hoje procurado no medalhão da Mercês, importa ainda mais sublinhar que ali não foi parar pela mão ou por vontade do mestre. Encontrando afastar a hipótese cisco Lisboa que, tivos, decorativos 272
motivos, 'a nosso ver bastantes, para de ter sido o próprio Antônio Franreelaborando os elementos composie figurativos do medalhão da igreja
do Carmo, riscou o projeto da Mercês de Cima, nem por isso perde intel ~sse a existência de porções da nova peça capazes de justificar, ao menos com alguma razão, aqueles que insistem em ali sentirem "algo" do Aleijadinho. Cabe, pois, examiná-los, numa exemplificação capaz de indicar-nos até que ponto vai a importância efetiva das várias ordens em que se poderiam grupar .tais reminiscências estilísticas ou formais. Desde logo, podemos apontar e, a seguir, descartar aqueles elementos que lembram o mestre pela simples razão de serem diretamente imitados do modelo. Tal o caso dos festões florais que em ambas as peças escorrem verticalmente aos lados do escudo central. Anteriormente, já assinalamos como esses ornatos perdem, na peça derivada, a nítida e necessária função compositiva, que desempenham na preexistente, o que, aliás, nos valeu para indicar uma concepção evidentemente mais pobre. Agora devemos apontar como também lhe escapou a graça dos festões que imitava, mas a seus olhos não passavam de colares de bonitas flores de pedra. Tanto que se reduziu, por sua vez, a riscar pendentes de flores, abandonando, delas, a mais característica da ousadia de gosto do Aleijadinho, e que são os margaridões de miolo farto. Talvez por rejeitar esse pormenor, escapou-lhe uma das chaves desse tipo de decoração nos trabalhos de Antônio Francisco Lisboa, ou seja, a pseudo-simetria conseguida por compensação de linhas e volumes que sempre emprega em lugar da simetria perfeita, espelhada, razão por que, em dois festões que se defrontam as rosas, margaridas, açucenas etc., alternam-se em séries diferentes que, contudo, se equibrarn. Assim, poderão os elementos florais da Mercês lembrar aos do Aleijadinho porque dele imitados; nunca identificá-lo como autor, desde que jã não possuem a mesma sutileza no inventarem-se e comporem-se. Poderíamos registrar, de passagem, outros elementos imitados que também se afastam da maneira do mestre, porém não mais pela feição do desenho, agora fielmente transcrito, mas pela inegável diversidade de fatura. E. O que sucede, Vis'lvelmente, com as ~sas do querubim central que, embora alongadas verllcalmente como todo o conjunto da peça, contudo 273
buscam acompanhar a configuração do modelo. E não o conseguem. Quem lavrou o medalhão da Mcrcês "via" as asas angélicas como feitas dessa espécie particular dc penas, que são as fofas e levíssimas plumas. Assim denota finura, embora mais literária do que plástica, porém se afasta totalmente da visão do Aleijadinho. Este, tanto nas peças menores onde estava obrigado a utilizar tão só a linha geral das asas. quanto nas figuras maiores onde podia descer à pormenorização da haste e rama das penas, acaba sem-
p.r:e por "vegetalizá-las", transforrnando-as em folhagem rara de caprichoso desenho. Neste ponto, estamos sem dúvida defrontando um afastamento devido antes à execução do que ao desenho (se,' porventura, dois homens distintos se incumbiram dessas tarefas), mas, outra vez, o que nos fez supor a presença do Aleijadinho é exatamente o que acabará por nos afastar dele. J á que começamos a examinar a figura do que~ rubim, desde logo podemos passar às suas feições, nascidas do evidente desejo de imitar, senão propriamente o elemento correspondente da Carmo (ingrata, para o novo caso, em sua inclinação frontal), sem dúvida aos, então como hoje, admirados anjos do Aleijadinho. I'., inegavelmente, helo esse rosto, digno de outras belezas do relevo da Mercês, porém jamais sairia das mãos de Antônio Francisco Lisboa. Ao esculpir anjos, como praticamente todas as cabeças mais despojadas de detalhes, o Aleijadinho deixa perceber que seu ponto de partida estrutural é uma espécie de paralelepípedo de proporçães áureas (ou quase), submetido a um forte arredondamento das arestas e, pois, sofrendo dobrada redução dos ângulos triedros. Daí esses mentos particularíssimos, aos quais se acrescenta a maciez robusta que os torna proeminentes c fugidios, mas sempre se mantêm paralelos à fronte larga, que ·um hábil arranjo de cabelos torna mais ampla. Ora, o anjo central da Mercês provém duma compreensão menos geométrica e mais anatômica das cabeças, que, se reduzíssemos a esquema, apresentaria como um círculo central (indo do cenho ao mento) completado por dois troncos de cone, sendo mais amplo o da fronte do que O do pescoço. Mesmo sem querer insistir, cabe sublinhar que o contraste entre 274
essas duas soluções plásticas vai ligar-se às anteriores observações acerca do caráter tri e bidemensionaI da composição geral dos medalhões, respectivamente, da Mercês e da Carmo. Passemos, agora, à figuração do escudo central, ponto em que, premido pelas circunstâncias, mas sabendo corresponder às dificuldades, o artista da Mercês terá dado o seu melhor, sobretudo se considerarmos os termos amplos e convincentes com que praticou a reelaboração. rv1uito embora não se possa aludir propriamente a uma sobreposição compositiva, ~ogo se evidencia que a Virgem das Mercês, abrindo os braços sobre os dois cativos em adoração, com seu gesto substitui a cruz, enquanto o conjunto dos três corpos toma o lugar da massa do Monte Carrnelo. Já as estrelas das armas originais não encontrando, por questão de congruência anatômica, substitutos bastantes nas cabeças dos redimidos, exigiram o acréscimo menos convincente dos dois pequeninos que-rubins a suster a capa da Senhora. Também nessas figuras há algo do Aleijadinho. Não na Santa, imagem com qualquer coisa de arcaico c goticizante, saída talvez dalguma gravura européia, mas de qualquer forma desprovida daquela serena beleza humana que dá base à barroca transcendência das Madonas do Aleijadinho - sobretudo da que se vê, em quase idêntica postura, da portada da Carmo de São João deI Rei. Será o cativo mais velho que nos lembrará uma daquelas 'Ifamfiias" de tipos humanos que, ao longo de sua obra, Antônio Francisco Lisboa definiu com tanta nitidez. Aparenta-se, de fato, com certas figuras de ancião do Velho Testamento dos relevos principais dos púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto, ou, em particular, com o selo do frontal do altar de S. João Batista, da Carmo, onde jaz aquele Jeremias que a tradição lendária se dispôs a identificar com o próprio artista doente. E não é só uma parecença genérica, mas também a repetição minuciosa de certas porções da figura, a exemplo das mãos abertas, com o polegar igualmente acentuado e igualmente distribuídas as falanges, os músculos da palma e até os tendões do punho. Não obstante, logo de novo começaremos a afastar-nos do mestre, sobretudo pela ausência de seu modo particular 275
de trabalhar as superfícies, num desenho anguloso e inventiva, marcando linhas e planos cortantes. Ademais, na mesma figura alternam-se os pormenores à maneira do Aleijadinho (os pis, por exemplo) com outros inviáveis em sua mão, tanto de desenhista quanto de escultor. E o que se evidencia na sobremanga, na dobra impossível do calção na virilha, para não irmos logo à espelhada simetria que repete toda a metade inferior de seu corpo na do outro cativo, que lhe faz face, ajoelhado aos pés da Senhora. Enfim, somos levados à conclusão de que, tanto no risco quanto na execução, o artista da Mercês era alguém bem próximo de Antônio Francisco Lisboa. Não, porém, ele próprio. Hoje, aliás, não podemos mais adiar o momento de começar, sobretudo pela investigação analítica, o estudo da escola (ou das escolas?) que se criou a partir do Aleijadinho. Sabemos, pelo famoso relato do segundo vereador de Mariana, que a seu tempo Antônio Francisco Lisboa era considerado criador invulgar, em que pese ao conjunto excepcional de artistas plásticos então trabalhando em Minas. Tal conceito só poderia nascer e firmar-se na contemplação de suas obras, por quem capaz de apreendê-las perfeitamente e atribuir-lhes o correto valor. Por quem, conseqüentemente, na quase totalidade dos casos, era do seu ofício, e portanto, suscetível duma impressão tão forte que viesse a influir em sua própria maneira de conceber e realizar outras obras. Para além de seu atelier, até agora menos pesquisado e no qual, ao menos teoricamente, deverá ter formado diretos discípulos, pode-se, sem forçar a interpretação dos fatos, supor a espontânea formação de um grupo artístico, aspirando à sua maneira. E conseguindo-o, na medida das desiguais forças de cada qual, pela simples imitação, pela reelaboração global, pelo aproveitamento eventual de elementos isolados, e, o mais das vezes, pelo recurso simultâneo a todos esses recursos. Tais como os encontramos, ora com mais, ora com meno~ felizes resultados, no bem harmonizado conjunto do medalhão da Mercês de Ouro Preto. Quem teria sido este artista? Com grandíssima probabilidade, o mesmo Manuel Gonçalves Bragança do segundo ajuste. Embora, ao menos para nós, falte 276
notícia de outra obra sua, mesmo de simples talha, não podemos excluir esta possibilidade, tanto pela relativamente pouca documentação que resta acerca do imenso labor artístico nas Gerais por esse tempo, quanto porque se poderia dar o caso de ter o artista trabalhado, em outras ocasiões, sob o nome de contratantes. Mais do que identificar o autor da obra com o Bragança - o que, a rigor, equivale a equacionar dois termos desconhecidos - , importa reconhecer, possivelmente por intermédio desse nome e seguramente nesse medalhão, uma daquelas peças, variadas e numerosíssimas, com que paulatina e pacientemente se buscará, de futuro, formar o amplo mosaico da evolução estilística da arte mineira. Na qual Antônio Francisco Lisboa figura como a assimilação superadora de todas as contribuições para aí trazidas ou aí elaboradas; o que já se reconheceu. Mas, também, como uma nova maneira de ver e de criar que influenciou contemporâneos seus e continuou a inspirar outros artistas até depois de sua morte. O que, sem dúvida, se começa agora a reconhecer. Restam ainda dois pontos a comentar: a hipotética contribuição de Justino Ferreira de Andrade e a análise da peça de coroamento do medalhão, não sendo descabido supor certa ligação entre tais problemas. Foi, aliás, o que se entreviu quando procuramos ordenar e compreender as indicações estritamente documentárias. Agora, porém, depois de examinada, embora de modo fragmentário, a fisionomia estilística da peça, parece menos viável a suposição. Realmente, o autor do medalhão perde no confronto direto com o Aleijadinho. contraste difícil mesmo para os melhores de seus antecessores e contemporâneos. Nem por isso deixa de avultar como escultor de apreciáveis recursos, e, portanto, passível de figurar na primeira linha dos artistas de seu tempo. No reelaborar de composição, sobretudo na criação praticamente original das figuras do escudo central, e no esculpir a inteira peça, demonstra seguros conhecimentos e desenvolvida destreza que, se não chegam a comunÍcar aquela vibração das obras de singular poder expressivo, também não deixam de preencher, 277
sobradamente, todos os reqUisItos de um trabalho decorativo de primeira qualidade. Tal será o nível em que, de justiça, figura, ainda que apenas por essa peça, mestre Manuel Gonçalves Bragança. Eis por que mais difícil se torna reconhecer, em qualquer parte do medalhão, sinal deixado pela mão de Justino Ferreira de Andrade, a menos que se trate da execução subalterna de alguma porção dos ornatos, inclusive os florais. Nisso, efetivamente, parecem ter sido habilíssimos os oficiais de Antônio FIa0· cisco Lisboa, ao menos a julgar pelo bem pouco que deles julgamos saber, enquanto são penosos os resultados a que chegam nas figuras. Anotando, de passagem, que tal limitação parece tcr sido comum à massa do artesanato colonial - como o prova, entre tantos, o caso da desigualdade flagrante entre a talha decorativa pura e a ornamentação figurativa no interior da São Francisco da Bahia - assinalemos que nas empreitadas maiores da fábrica do Aleijadinho, notadamente em São João deI Rei, tornam·se evidentes, aos olhos do observador mais atento, as porções trabalhadas pelo mestre e outras, muitas vezes simétricas àquelas, que entregou aos discípulos. A essa regra geral dificilmente escaparia o Justino e, se o fato de ter conseguido ajuste por conta própria na rica e exigente Carmo de Ouro Preto, parece contraditar a ilação, em voerdade exatamente nessa igreja e no mesmo ponto em que podemos com maior probabilidade inferir a intervenção do discípulo num traba· lho em pedra, surgem patentes demonstrações de sua limitada capacidade para esculpir figuras. Eis o que nos afinnam os querubins das ombreiras e da verga da porta principal. Se examinannos, mais uma vez, todas as feições do anjo do medalhão da Mercês. concluiremos pela impossibilidade de atribuí-los a quem lavrou aqueles outros. Ora, o nome de Justino aparece, na histófia da Mercês, com a única possibilidade - além do pequenino e imperceptível acréscimo referido no recibo - de tomar ~ seu cargo, quando o Bragança paderi,: já se ter ~do, os "dois anjos da frente" para os quaJs nesse momento ou pouco antes se carretearam as pedras-sabão. Ademais, não há notável diversidade de desenho ou fatura a distinguir dois grupos 278
de figuras como provindo de dois autores diferelJ'es. Pelo contrário, desenho e tratamento de rostos são constantes e, possivelmente, daí decorre a extrema parecença que une todas as feições angelicais e, mais, a cabeça do cativo jovem, sem ainda afastar-se, no tratamc(lto geral, do rosto da Santa e do cativo idoso, embora nestas, como é óbvio, outra devesse ser a descrição fisionômica e, corno é provável, outros fossem os modelos imitados. Inferências de ordem quase exclusivamente cronológica, derivadas da análise e ordenação do material documentário, levaram-nos a crer em que a melhor probabilidade na interpretação daqueles "anjos da frente" do recibo passado pelo carreteiro Libório José Bandeira seria admitirmos que, por esta altura, ainda não se atacara o registro superior das armas. Tecnicamente, a suposição se confirma, tanto por tratar-se de uma porção por assim dizer autônoma e fisicamente desligada da peça principal, quanto por adequar-se sua dimensão à quantidade (duas pedras) de material então transportado. Nada, porém, favorece a hipótese. puramente teórica, da participação do Justino, pois estilisticamente se apresenta como muitíssimo improvável, senão impossível. Cabe, apenas, acrescentar uma palavra acerca do desenho deste elemento superior. Se, ao tentar reconstituir o processo de reelaboração pelo qual do medalhão da Carmo sai o da Mercês, dissemos que os dnis anjos foram transferidos da porção mediana do primeiro para a parte superior do segundo, haveremos agora de ampliar o sentido dessa transferência. De fato, trata-se de uma cópia, com muito pequenas e tímidas alterações, visivelmente impostas pelas circunstâncias. Assim, para cobrir a linha de arco que deveria traçar ao alto. o artista viu-se levado a dispor os corpos dos novos anjos numa oblíqua muito próxima da horizontal. E isso o perdeu, diríamos (se estivéssemos fazendo crítica de um contemporâneo), pois as resultantes alterações, embora leves, inutilizaram o melhor do modelo.
Para mais facilmente "deitar" os anjos, O artista da Mercês submeteu-os a ~a rotação, tendo a su279
posta espinha dorsal como eixo e, portanto, veio a
sobrepor-lhes as pernas e a empurrar parede a dentro um ombro e a parte superior do braço, sem falar das cabeças que se encostaram no muro como em travesseiros. Desaparece, por inteiro, a expressão original (não descritiva, mas plástica), de seres soltos no es-
paço, verdadeiramente alados. Os anjos do Aleijadinho pairam no ar, vibrantes na riqueza barroca das asas,
dos mantos soltos e daquela faixa a modo de boldrié; os da Mercês semelham meninos que se deitam em camas macias e imobÍlizaram-se no sono acaçapante. Não foi em vão, portanto, que insistimos na falta do sentido da terceira dimensão, sempre que falamos
do medalhão derivado.
Nele, ao invés da linha no
espaço e do volume tangível que dão substância à escultura, encontramos uma linha formosa e interessante, porém desenvolvida sempre no mesmo plano, ao qual também se reduzem os valores tácteis, como no mais simples dos desenhos. Ademais, os conceitos que orientam a invenção· andam, quase sempre, próximos da linguagem literária, descritiva e explicativa, fugindo pois ao universo visual em que se estrutura o discurso plástico. Pequenos detalhes, como a posição dos escapulários ou a dinâmica do escasso panejamento, ainda mais reforçam tal impressão, mais uma vez sugerida pelos anjos da coroa, porém anteriormente colhida nos exames a que submetemos outras porções, maiores ou menores, das annas da Mercês. Fora caso de indicar como seria possível atender às imposições da nova composição sem prejudicar expressividade escultórica, e bastaria lembrar a portada da Carmo de Sabará, na qual Antônio Francisco Lisboa desenvolve .o mesmo tema, em termos diferentes, porém tão altos e sonoros quanto os consegue na Carmo de Ouro Preto. Quem riscou e lavrou o medalhão da Mercês de Cima - repitamos para terminar - era alguém bem próximo do Aleijadinho. Não ele, porém. Alguém que conhecia, admirava e tentava imitar, no bom sentido da palavra, a obra do Aleijadinho. Alguém familiarizado com essa obra, a ponto de ter presentes na memória certas soluções habituais de figuras, ornatos ou pormenores, cujos exemplos se encontravam esparsos por diferentes obras em localidades ..muitas vezes distantes, e remcmorá-Ias quando tomava
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por modelo, numa reelaboração, certa peça mais próxima e mais admirada. Alguém que, na escolha de tal modelo, revelava ainda plena capacidade de ajuizamento dos valores de função arquitetônica e de excelência artística, ao mesmo tempo que, buscando servir-se de g~ia modelar, nem por isso se resignava a repeti-lo servilmente, muito embora talvez tivesse consciência de constituir, cada modificação desejada, um correspondente risco de perda das qualidades imitadas. Alguém, pois, que podemos, sem maior risco, qualificar como seguidor do mestre, mesmo não sabendo se era um oficial da sua fábrica que um dia, como o Justino, ajustou por conta própria, ou se era um mestre autônomo cujo sincero apreço pela criação de Antônio Francisco Lisboa o levou a enfileirar-se entre seus imitadores. Se quisermos dar-lhe um nome próprio, no ponto em que atualmente se encontram as investigações documentárias e quanto nos permite inferir a análise estilística, terá o de Manuel Gonçalves Bragança. Mas, como ficou dito, se o signatário do segundo ajuste efetivamente surge como o mais provável autor do risco e da execução das armas - principalmente porque, no combinarem-se os dados dos documentos com os da análise formal e artística, vão sendo eliminadas as possibilidades relativas a outros nomes - , não menos certo é que esse artista passa a ser definido, exclusivamente, por essa única peça. Temos dito e repetido que é o Bragança um artista de desconhecida biografia, cujo currículo produtivo se reduz a um único item. Cabe, nesta altura, acrescentar, por imposição do rigor documentário, um cauteloso Uquase" a essa afirmação, sem contudo alterar essencialmente sua total validade. Efetivamente, há três documentos estranhos aos arquivos da Mercês, em que surge o nome de Manoel Gonçalves Bragança. O primeiro é o recibo das dez oitavas que lhe foram pagas por uma "custódia do Santo Lenho", conforme consta a folhas 17 do Livro de Despesas do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, de Congonhas do Campo. O segundo, citado por Furtado de Menezes na monografia que se imprimiu em Bicentenário de Ouro Preto, págs. 261 a 287, apresenta-o como louvado na obra de pintura e douramen281
to da capela-mor de São Francisco de Assis de Ouro Preto, função que exerceu em companhia de Vicgas de Menezes e do autor do trabalho, que foi Manoel da Costa Ataíde. O terceirÇ>, afinal, certifica seu falecimento a 10 de fevereiro de 1820. Dos três documentos, rigorosamente, não podemos inferir mais do que já nos consentira supor a análise estilística: era o Bragança artista de primeira linha e assim reconhecido em seu tempo, pois que o contratava para obra fina e cara uma igreja, como a de Conganhas,. exigente na escolha dos autores de seus trabalhos de. arte, enquanto outra irmandade de notório refinamento, a dos franciscanos de Vila Rica, tomava-o por perito avaliador de tarefa executada pelo Ataíde. Podemos, contudo, por esse único elemento tentar uma mais ampla definição de sua posição e valor na história na arte de Minas. Foi o que procuramos com estas notas. Em que pese a todas as deficiências e descaminhos que possam afetá-las, reclamaremos a importância lintrínseca de dois pontos nelas assinalados e que só ganhariam com novas pesquisas. Primeiro: a identificação do medalhão da Carmo de Ouro Preto como modelo das armas da sobreporta da Mercês de Cima. Esse elemento, parece-nos, terá a virtude de coordenar numa só e mais ampla compreensão todas as cogitações de autoria, aparentemen· te falsas ou com vezes de exatidão, que, antes e depois da recuperação do termo de ajuste do Bragança, se levantaram acerca deste ou daquele artista mineiro da época. Afinal, a resistência da sensibilidade de aI· guns estudiosos dignos de respeito constitui, em aná~ Uses do gênero, indicação ponderável e da qual podem resultar conclusões apreciáveis. Assim vimos suceder com a insistência numa possível contribuição do Aleijadinho nesta peça, pois, sinceramente, se não a considerássemos, possivelmente não nos sentiríamos tão animados a explorar o caminho de pesquisa que, afinal, nos levou ao adro da Carmo. E, sem nos insurgirmos cegamente contra a documentação, nem desprezarmos sumariamente a advertência dos mais sensíveis, acabamos, embora em diferente sentido, por tomar coragem para apontar, mais do que um indefini·
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do "algo", tooo um conjunto de contribuições, indiretas embora, de Antônio Francisco Lisboa. Segundo: a inclusâo das armas da Mercês de Ouro Preto entre as obras que, com boas razões, virão um dia a ser catalogadas como representativas do que, provisoriamente, chamaremos de Escola do Aleijadinho. A arte mineira, embora talvez mais estudada do que a de outros núcleos brasileiros, ainda depende, em boa parte, da identificação preliminar de peças e autores. No fazê-lo, porém, importa atribuir, aos fenômenos de derivação por influência, por identidade de oficina ou por formação de escolas, atenção equivalente à que se dá, com justiça, às atribuições individuais. A cautela impõe-se, ainda mais, num núcleo de produção artística que conheceu a presença e atividade dum criador do porte de Antônio Francisco Lisboa, pois. afinal, sua importância se continua e mais se amplia na obra dos seguidores dç vária ordem que, sem dúvida, teve.
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A ARTE DO SANTUARIO DE CONGONHAS A Igreja, O Adro, Os Passos
Até há pouco, era Congonhas do Campo conhecida como a mcta das romarias inspiradas pela devoção do Senhor Bom Jesus de Matozinhos e também porque no adro de seu Santuário estão os doze profetas esculpidos em pedra pelo Aleijadinho. E tanto bastou, em verdade, para mantê-la em relevo entre as cidades brasileiras que atraem peregrinações religiosas e recebem, por causa de seu patrimônio de arte, a' visita de viajantes. Jamais desiludindo os .que a buscavam por impulso piedoso ou por sede de conhecer,
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'a famosa Congonhas guardava, contudo, no que res· peita aos seus tesouros artísticos, uma surpresa que só agora se revela. Sabiam os estudiosos que ali, na igreja que Feliciano Mendes prometera levantar, trabalhara um punhado de excelentes artistas mineiros, cuja atividade, iniciada pelas alturas de 1770, certamente ainda prosseguia, ao menos no que respeita a tarefas complementares e obras menores, quando já tocava seu fim a primeira década do século seguinte. Aos poucos, em pacientes pesquisas que, muitas vezes, exigiam revisões totais, a documentação foi sendo reunida e consentindo a identificação de alguns nomes. Eis como, deixando de lado um ou dois que não resistiram à crítica mais severa, os de João Nepomuceno Correia e Castro, Jerônimo Félix, Bernardo Pires da Silva, João de Carvalhais e Francisco Vieira Servas vieram juntar-se ao"de Francisco de Lima, que em 1773 dava por concluída a capela-mor de Congonhas que, com a nave, constituía o principal do edifício, e ao do ourives Felizardo Mendes, de cujas mãos saíram as alfaias principais. Esse rol, para os que fre"qüentam a arte de Minas, representa, sem qualquer exagero, verdadeira elite, um ·grupo composto por alguns dos melhores do tempo naquela região. Acrescentemos ainda que nas obras complementares do adro e dos "passos" trabalharam os dois mais altos valores de Minas no século XVIII, Antônio Francisco Lisboa e Manuel da Costa Ataíde, mais o principal discípulo deste, Francisco Xavier Carneiro, e teremos fixado o valor do patrimônio artístico de Congonhas do Campo. E ISSO, sem examinarmos o que se pode encontrar fora do conjunto do Santuário. A mesma fama que tomou Congonhas conhecida e visitada foi, não obstante, a indireta causadora da temporária ocultação de boa parte dos haveres de arte do seu Santuário. As romarias, como hoje, sempre congregaram regulares multidões que," pelo simples aglomerado, impunham à igreja um desgaste incomum e uma constante necessidade de manter-se limpa e em ordem. Como o desejo de preservar a dignidade material da capela nem sempre atendeu à segura orientação que o caso exigia, logo resultou numa operação rotineira que, em verdade, negligenciou o aspecto ar.,;
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lístico. Tal desvio, numa época em que baixara mui· to a estima pelo nosso patrimônio colonial, redundou, afinal, numa série de desfiguramentos e ocultações que mais tarde, retomado o gosto e o estudo daquela fase artística, chegaram a confundir e desanimar pesquisadores e críticos. A rigor, só os profetas do adro, cuja matéria não favoreceu limpezas e retoques e cuja fama permaneceu constante, pareciam constituir uma nota verdadeiramente alta no conjunto do Santuário. Não surpreende, pois, que a recuperação, ao contrário do que a lógica poderia indicar, começou no campo documentário e só muito recentemente concretizou-se no plano material. Muitas vezes decorreu de interesses paralelos, e, até, de pequenos incidentes de investigação. Hannah Levy. trabalhando no árduo mas saboroso problema das gravuras que seryiram de modelos para os artistas coloniais·, lançou luz de interesse sobre os quadros que. na nave de Congonhas, deixara o Nepomuceno. A hipótese levantada pela excelente crítica acerca da possibilidade de vir-se a reconhecer, nas pinturas de Congonhas, duas mãos, sendo uma livremente inventiva e outra servilmente submissa no copiar, aumentava ainda mais a curiosidade por esse conjunto de peças. Também a leitura confrontada dos dois manuscritos da biografia do Aleijadinho, escrita por Rodrigo Ferreira Bretas, postos ainda sob o contraste da documentação fragmentária já colecionada, revelou pontos interessantes, sobretudo na parte transcrita do perdido relatório que, em obediência à Ordem-Régia de 20 de julho de 1782, redigiu o Capitão Joaquim José da Silva, segundo vereador da Câmara de Mariana. Assim, sabendo-se que, no juízo - e seguro juízo - do vereador, os contemporâneos viam em HJerônimo Félix e Felipe Vieira, êmulos de Noronha e Xavier". logo se cuidou de melhor observar o que o primeiro talhara em Congonhas. E quando se identificou o "Serval" do erro de transcrição de Bretas com o Servas de outros documentos, também não se pôde esquecer que há, no Santuário, trabalho seu. Assim, da fecunda relação do Capitão Joaquim José da Silva sobre a arte de Minas, confluem linhas imperativas para Congonhas do Campo. Não obstante, tais e outras referências - entre as quais as nascidas al,;erca da atribuição das doura-
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çoes dos altares colaterais a Bernardo Pires e a João de Carvalhais, como a das pinturas do teto da nave e da capela-mor, ao Nepomuceno e ao mesmo Bernardo Pires - excitavam uma curiosidade que, na realidade, permanecia insatisfeita. Em verdade, a igreja oferecia-se aos olhos do visitante numa apenas mediania de obra comum. Já arquitetonicamente parecia - e de fato é - pobre sua ambientação interior, submetida ainda ao linearismo estático das antigas capelas, de fonna que o tratamento de sua fachada, evidentemente posterior e aposto à planta original, que parece ser de meados do século, pelo contraste incutia uma impressão de perda de altura estética aos que entravam na nave. E lá, não saltava aos olhos a esperada maravilha, revelando-se, pelo contrário, um conjunto discreto e bem regrado, porém baço na expressão e medíocre na fatura. E que, por sobre a esperada e, apesar de tudo, existente maravilha, juntara-se o emboço de sucessivas mãos de pintura grossa e, pior ainda, de pintura que não se bastava com aplicar-se de forma menos nobre, recorrendo, por exemplo, à purpurina industrial para fingir o ouro, pois ia mais longe, retocando sem finura, transpondo e substituindo cores, até recobrindo a primitiva . decoração com coisas muito diferentes. Por isso, a velha e tina talha perdera todo o resplendor por sob o gesso e os pigmentos que lhe tornaram cegas as linhas másculas e mesmo abatera seus níveis de relevo; a velha e fina pintura decorativa perdera seus faiscados de bom gusto e suas harmonias tonais bem ajustadas por sob as cores lisas da inabilidade; até os painéis figurativos maiores receberam dispensáveis acrescentamentos ou insuportáveis substitutos. O. esplendor artístico da igreja de Feliciano Mendes continuava existindo, mas se tornara invisível. Para revelá-lo novamente, a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico NacionaI empreendeu, em começos de 1957, uma ampla restauração. Firmada nos dados seguros de uma documentação suficientemente explorada e, sobretudo, na admirável proficiência de sua equipe especializada, propôs-se a trazer à luz, pela segunda vez, a feição original do Santuário, ao mesmo tempo estabelecendo condições capazes de sobrestar, nos muitos pontos em que S~ fazia iminente, a ruína total 288
de porções substanciais do conjunto. Não é aqui lugar adequado à descrição dessas operações técnicas, bastando dizer, para que se avalie sua extensão real, que todo o antigo madeiramento do teto da nave, praticamente desaparecido sob a ação do ·fungo e do cupim, foi substituído por inteiro, só se conservando, na limpidez primitiva a que restituiu a cuidadosa remoção dos retoques e da poeira, a delgada película da pintura. Também a talha foi inteiramente libertada das capas de tinta acrescentada c devolvida à primitiva coloraçao e douramento, muitas vezes em bem diversa distribuição do que faria supor o seu último aspecto. Afinal, recuperou-se a decoração de peças ancilares, como as colunas do coro, ou principais, como o altar decorado por Bernardo Pires, reencontrando-se sempre, debaixo dos desfiguramentos trazidos pelo excesso de zelo, uma parte primorosa na sua contida elegância e na sua sábia técnica. Também' os quadros do Nepomuceno mereceram a necessária reposição - aqui, só o tempo trabalhara - e à inspeção dos especialistas surgiram como de um só e mesmo autor, embora admitindo variações no repetir modelos. De tudo, porém, que em Congonhas se recuperou, deixando de parte a restauração dos "passos" de que mais adiante se falará, importa ressaltar o restabelecimento da harmonia conjunta, da entonação das partes constitutivas que, embora nascidas de mãos diferentes, foram criadas em razão de um todo variado, porém congruente.
Hoje, quem entrar no Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos não mais sofrerá aquele contraste entre a decoração da fachada e um interior pouco expressivo que a decoração morna não conseguia animar. Ao invés dessa insatisfação, deparará, como lá fora, com uma arquitetura que, rigidamente proposta na formulação primitiva, depois consegue alçar-se à inesperada formosura que, com ser variada, não padece do artificialismo dos adornos sucessivamente acrescentados, nem, por ser adicionada ao ambiente construtivo, deixa de integrar-se nele. Se, porventura, o visitante tiver pendor pela observação mais minuciosa e o gosto da contemplação mais detida, poderá examinar, uma a uma, as contribuições
dos artistas de Minas setecentista à capela de Canganhas. A pintura de João Nepomuceno Correia e Cas289
tro está no forro da nave e nos quadros que se distribuem por toda a igreja. A talha de -,tunes de Carvalho encontra-se no altar-tl"'or, que voltou a seu lugar. Os altares colaterais mostrarão quem era, no ofício da talha, Jerônimo Félix Teixeira. Bernardo Pires deixou sua pintura no' teto da capela-mor e no altar de São Francisco, enquanto o altar de Santo Antônio foi trabalhado pelo pintor João de Carvalhais. Os grandes anjos do altar-mor são obra de Francisco Vieira Servas, que só conhecia superior no Aleijadinho. O Ataíde, no ano de t 819, andou a retocar pinturas da capela-mor, mas não é por esse título que se prende, substancialmente, ao Santuário de Congonhas, como logo veremos.
Reposta cm sua plena dignidade artística, a igreja, que Feliciano Mendes prometera ao Senhor Bom Jesus de Matozinhos, continua tcndo sua mais alta nota de arte no exterior. Naquele mesmo conjunto de profetas que, durante tantos anos, atraiu, por assim dizer sozinho, viajantes a Congonhas do Campo. E, hoje, também, nos "passos". São os profetas a maior obra escultórica, em pedra, do Aleijadinho, mesmo considerando-se o caso da escultura que, na São Francisco de Assis de Ouro Preto, o mestre incluiu nesse conjunto que, não obstante, é todo seu e, pois, não saberia tolerar desmembramentos analíticos. A rigor, cm Congonhas também se coloca uma relação entre o conjunto esculpido e o conjunto arquitetônico, mas o fato é que no adro, mesmo com o pano-de-fundo da fachada, acabou por constituir-se um ambiente autônomo, um espaço autárquico que nasce das estátuas e para elas vive. Sempre se suporia, a fechá-lo, o quadro (pois não é massa) da frontaria duma igreja, porém esse confinamento posterior do espaço, concedida a imprescindível consonância mínima de estilos, poderia ser desempenhado pelo frontispício que lá está ou por am outro de nível artístico e proposição fonnal equivalentes. Aquém desse anteparo final, já se define e se impõe o espaço escultórico criado pelas doze estátuas compreendidas como u~ só todo coeso que, aliás, integra e domina o agenciamento do
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adro, com seus patamares, seus lances de escadas, seus muros de arrimo e parapeitos. Essa afinnaçâo cabal dos direitos da escultura é também a completa afirmação de Antônio Francisco Lisboa como escultor. ASSIm como na arquitetura podemos sentir, pela progressao da obra realizada e, nela, pela realização progressiva do mestre, a constante aspiração que se plasmará afinal na capela franciscana. de Vila Rica, também na sua obra esculpida há um~ evolução e, sobretudo, uma tensão que nos traz, necessariamente, ao adro de Congonhas. Se aqui não cabe a pormenorizada análise dessas etapas sucessivas c constantemente encaminhadas para um alvo bem definido, bastar-nos-emos com lembrar o que há nas soluções completas dos relevos de púlpitos, lavabos e portadas, primeiro no sentido da criação de um verdadeiro espaço artístico, apesar das injunções materiais do plano de fundo ou até contra esta imposição concreta, e, depois, na aspiração de soltar as figuras que, desses espaços supostos, passam progressivameme a projetar-se no espaço real. Essa intenção tangível do Aleijadinho, que se confirma na proposição formal e estética de certas figuras de madeira, como os dois santos de Sabará, é a manifestação sensível duma escultura, fidelíssima às funções que lhe reservava seu tempo, mas nem por isso deixando de aspirar ao vulto pleno, à massa solta no espaço que se anima de um movimento inerente e, cada vez mais, se desprende do fundo, do muro, do nicho. Afinal, haverá de afirmar-se contra o espaço ilimitado. E a prova de seus direitos dará quando, no infinito espaço natural, determinar seguramente seu próprio espaço escult6rio. Como su:cedeu, afinal, em Congonhas. Lá está essa plenitude de realização duma tensão vocacional. Impõe-se, porém, assinalar que se concretiza por intermédio de recursos excepcionais que, novamente, só compreenderemos como uma suma de carreira. Toda a experiência de uma atividade artística laboriosa e superconsciente concentra-se na etapa final quando o Aleijadinho, já entrado nos sessenta e talvez pressentindo que será essa a sua última obra de grande vulto, começa seus profetas. Neles reafirma-se, antes de mais, o poder das linhas, desde as definidoras de intersecção de planos principais até às do mais deli291
cado grafismo incidental, naqueles desdobramentos angulares que sempre foram seus, mas que aqui são especialmente conjurados a fim de não penp.itir que a textura macia e oleosa da pedra e sua cor sutil e fria cedam ao I,;erco dissolvente do céu aberto. Assim, sombra e luz são recursos plásticos empregados com um objetivo puramente plástico. Decorre daí, sem dúvida, a ciência com que, posto a serviço da expressão, o panejameoto só é descritivo secundariamente e, no fingimento de roupas enfunadas, encontra o artista todas as definições de massa e movimento que lhe eram necessárias. Se nesse sentido alia minúcia e fôrça, quando passa às partes anatômicas praticamente renuncia ao detalhamento, para fixar-se apenas na expressividade, cujo poder cresce nas simplificações, muitas vezes beirando à geometrização, que impõe às mãos e às cabeças. Mesmo, porém, nesse exame particular de cada peça, logo se torna inipossível escapar à dominante grupal, pois cada figura e cada porção de figura submete':'se, docilmente, à exigência dos escorços - tão bem conhecidos tecnicamente por quem talhara figuras de topo de altar e de barretes de capela-mor - , que aqui organizarão, no ângulo de visão obrigatório para quantos transitem pelas escadas, desdobramentos de perspectiva sábios e convincentes. Já então mergulhamos na noção desse espaço único que envolve as peças num mesmo todo, e as coloca em constante inter-relação. Torna-se, de tal sorte, sensível a orientação que levou à distribuição geral das partes do grupo, não tanto pela simétrica disposição no plano horizontal, mas principalmente pela variedade com qUI.:', nas distâncias relativas, se interpenetram, no plano vertical, as figuras das três grandes fileiras paralelas que, aliás, se enriquecem ainda mais com as ligeiras flexões do alinhamento. E quando, já fatigados do esforço analítico que impede a simples fruição, os olhos passam a dar-se conta da conjunção, por assim dizer espontânea, das figuras em grupos parciais de três e quatro estátuas, cujas massas e cujas linhas acabam sempre se pondo em concordância, seja qual for o ponto do adro em que se coloque o visitante. Essas qualidades de uma escultura, levada às extremas conseqüências, consentiram ao Aleijadinho alcançar, nos modestos limites de uma testada que não se 292
aproxima, sequer, dos trinta metros e numa profundide que pouco passa dos oito, organizar um espaço verdadeiramente monumental. A grandiosidade que dispensa a grandeza dimensional traz a marca da genialidade. Os viajantes que, a princípio, estranham não sejam maiores os profetas, ou melhor, que não correspondam fisicamente às proporções que supuseram pela força das figuras fotografadas isoladamente ou pela sugestão. dos relatos orais, para, afinal, irem sentindo progressivamente a monumentalidade de um conjunto que não se impõe pelo tamanho - estes viajantes são, sem dúvida, os melhores e mais sinceros testemunhos do poder criador de Antônio Francisco Lisboa. Se esses reflexos simples e sinceríssimos não bastarem para significar plenamente a grandiosidade da obra do Aleijadinho, melhor será que, saltando sobre todas as explicações da crítica que, afinal, jamais explicará o inexplicável, o viajante procure um poeta que lhe dê a mão no passeio pelo adro. Um poeta como Carlos Drummond de Andrade, capaz de revelar todo um mistério em duas frases assim: "Sobre o vale profundo, onde flui o rio Maranhão, sobre os campos de cOllgonha, sobre a fita da estrada de ferro, na paz das minas exauridas, conversam entre
si os profetas. Aí onde os pôs a mão genial de Antônio Francis~ co, em perfeita comunhão com o adro, o santuário, a paisagem toda - magnificos, terríveis, graves e eter-
nos -
eles falam de coisas do mundo que, na lingua-
gem das Escrituras, se vão transformando em símbolo".
A documentação oferecida pelo Livro. de Despesas do Santuário indica-nos que, de 1796 a 1799, Antônio Francisco Lisboa e seus oficiais receberam paga~ menta em ouro por trabalhos para "os Passos do Sr.", enquanto entre 1800 e 1805 pagaram-nos "pela factura dos Profetas p' o Adro da Capela do Sr.... Dispomos, pois, de boa base para afirmar que as seis dezenas de peças em madeira precederam, na concepção e execução, as doze estátuas de pedra. Provavelmente Essa cronologia é interessante. inspirados pelo exemplo oferecido pela igreja portuguesa do Monte Espinho (Braga), quiseram os realiza-
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dores da Senhor Bom Jesus de Congonhas colocar à frente do Santuário seis capelinhas de função nitidamente vestibular, sem que nisso vissem óbice à decoração do adro propriamente dito. Curioso é, pois, que se tenha atacado e, muito provavelmente, concluído inteiramente os "passos", antes de iniciar-se o grupo dos Profetas, sobretudo quando, nas condições locais, a pedra-sabão era imediatamente açessívei. A própria lógica da construção, cuja peça inicial foi a nave logo completada pela capela-mor, indicava normalmente como segunda etapa o acabamento final do edifício, enquanto os decoradores, dando conta das obras interiores, veriam seu trabalho continuar-se no agenciamento arquitetônico e na decoração escultórica da fachada e do adro. Não sucedeu, contudo, assim.. Exigiu a prevista obra do adro uma meditação mais profunda, para a qual o Aleijadinho reservou os três ou quatro anos de trabalhos nos "Passos", nos quais, com a numerosa equipe que o próprio vulto da realização imperativamente supõe, mais apuraria na madeira sua segurança visual e conceptiva, antes de atirar-se às figuras de pedra, ou um fator incidental qualquer, desses que se perderão definitivamente para a história, teria determinado essa opção pelas capelinhas do jardim? O certo é que, preparando-se para esculpir aquela Bíblia de pedra-sabão Banhada no ouro das Minas. Antônio Francisco Lisboa começou por um Novo Testamento talhado em madeira, onde a vibração mística da paixão de Deus feito Homem prepara o acesso, mais sutil, à transcendência. dos profetas judeus. Há, pois, uma orgânica e substancial ligação entre os "passos" e o adro, tanto na sua adequação material no conjunto .arquitetônico quanto no conteúdo significativo de sua intenção. Não era, contudo, possível captá-la, sem dúvida, antes da restauração de 1957. Pelo contrário, as figuras dos "passos" surgiam tão menos cuidadas na sua talha e tão vulgarmente coloridas que, ao contraste do requinte e vigor das estátuas do adro, suscitavam as mais fundas hesitações no visitan~ te. No visitante e também, vale acrescentar, na crítica, pois esta, até certo ponto intimidada pelo que podia ver e tocar, arriscou umas poucas hipóteses aco294
modatícias para explicar o nível aparentemente inferior das imagens de madeira. Assim, sempre se cedeu um pouco à suposição de que ali se permitira o artista ir ao encontro da ingenuidade popular, cuja sincera devoção podia cobrar direitos sobre a linguagem expressiva. Também ganhou constância a referência à equipe numerosa e seguramente apoiada em farta mão escrava, para insinuar-se que o Aleijadinho figurara mais como um diretor de trabalhos do que, propriamente, como autor principal. Chegou-se mesmo a escolher, entre as peças, algumas cuja fatura mais firia e cuja plástica mais segura só poderiam ter saído das mãos de um grande artista - daí se deriva o louvor, aliás por tudo merecido, do Cristo da Coluna. Vieram, porém, os técnicos da Diretoria do Patrimônio. Com a calma segurança dos que sabem o que fazem, iniciaram um trabalho em tudo semelhante ao executado na talha do interior da igreja. Tratava-se de, mais uma vez, remover sucessivas camadas de pintura, em busca da riqueza da talha, embotada já pelas gordas películas que tantas vezes recobriram suas linhas originais, e também da redescoberta da encarnação original. Não era possível supor, contudo, a revelação de tanta beleza quanta, afinal, surgiu ao cabo desses trabalhos. Parece mesmo inconcebível que o simples acrescentamento de repinturas, ditadas pelo mais desorientado fervor, pudesse causar tal desfiguração. Porque, em verdade, desde o início de 1957, os "passos" de Conganhas podem, rigorosamente, ser considerados como peças inéditas, pois, salvo um leve desgaste da primeira pintura que aliás lhes dá um toque de imprescindível antiguidade, estão como só os conheceram aqueles que, até meados do século XIX ou pouco depois, visitaram Congonhas. Cabe, .portanto, como se s6 agora acabassem de ser esculpidos e encarnad9s, chamar a atenção para suas qualidades plásticas e colorísticas. Conquanto peças de talha executadas por todu um atelier conduzido por um mestre inigualável. impõe-se assinalar, em primeiro lugar, a constante finura do tratamento e a inabalável coesão estilística que as liga todas a um mesmo nível de obra superior. Como já aludimos à imagem do Cristo atado à Coluna, voltaremos ao exemplo para fazer notar como, para além
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das qualidades excepcionais que já o tornavam o preferido da crítica mais exigente, ainda guardava ocultas outras belezas insuspeitadas que ressurgiram quando, removidos colas e pigmentos, desapareceu certo adocicamcnto dos volumes anatôrriicos e, paralelamente, reapareceu a energia requintada de certas linhas fortes. Assim, a peça ganhou maior virilidade expressiva e maior finura de trato, alçando-se ainda mais. Maior surpresa, porém, trariam as demais figuras do Cristo, qu~ até há pouco se citavam como exemplos inferiores àquela imagem exemplar para, pelo contraste, precisar a ação direta do Aleijadinho. Também essas figuras, livres da deturpação, apresentaram uma qualidade excepcional que, pelos mesmos supostos anteriores, obrigam a atribuição ao mestre. Entre elas, cabe citar, especialmente, o Cristo no Horto, que, livre das estranhas franjas sangüíneas que inspiraram aos inábeis retocadores a idéia do suor de sangue, veio a revelar, pelas suas possibilidades propriamente escultóricas, l0da uma exaltação mística digna do maior e melhor barroco de todos os tempos e todos os lugares. Corno também dpvemos apontar, na atmosfera mais sutil porém não menos impositiva do "passo" da Ceia, uma outra figura de Cristo até há pouco desmerecida pelo falso aspecto que lhe haviam imposto. De todas as figuras centrais, aquela, contudo, que constituiu verdadeira revelação, foi a do Cristo de Cruz-às-Costas, no qual praticamente tudo se tinha ocultado da poderosa talha que lhe atribuíra uma expressividade patética que, embora por diferentes caminhos, atinge um clima berniniano. Também no que tange à unidade estilística, na proposição. execução e qualidade impõe-se uma nota para dizer que das figuras centrais às secundárias irá, no máximo, uma diferença de função e não, prQpriamente, de valor. Atestam-no as mulheres do "passo" da Cruz-às~Costas ou os dois ladrões da Crucificação que, decorrendo visivelmente de mãos que não são as do mesfre, entram em perfeita consonância com os Cristas do Aleijadinho em estilo e nível, embora lhes falte o toque genial. Em outros casos, a proximidade estilística é tão grande - como na figura da mulher do "passo" da Crucificação, que logo faz lembrar aquela que está num dos púlpitos de Sabará e a aguadeira do Caminho das Lajes - ou é tão elevado o nível como no
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grande anjo do "passo" do Horto, peça de altíssimo valor - que, novamente, devemos admitir a participação direta do mestre. Mas importa sentir, sobretudo, que todas as peças, as geniais e as complementares, integram-se numa mesma e excelente arte e, hoje, tornou-se possível levar a afirmação mesmo ao caso, até ontem considerado à parte, das figuras caricaturais. Continuam sendo caricaturais, que essa é sua função, mas libertadas das espaventosas cores que as tornavam horrivelmente grotescas, revelam uma mesma compreensão fundamental da anatomia expressiva como se pode verificar, no "passo" dos Açoites, em que pese à ousadia do confronto, comparando-se a cabeça do Cristo com a do soldado que lhe está próximo. Tudo isso estava oculto. Não s6 pela presença física das capas de repintura, mas também pela sua interferência propriamente colorística, como se pode verificar tanto nos pormenores, quanto nas grandes porções. No primeiro ca~o, citaríamos a repintura dos cabelos das imagens que não só mergulhavam os finos ritmos lineares da talha numa pasta uniforme e insignificante, mas ainda desmentiam o sentido da encarnação original que era de pretos pobremente foscos, para entregar-se ao fácil calor dos castanhos de variado tom. Também as carnes, que progressivamente foram acalentando-se num amarelo cortado com um pouco de carmim, eram, como vemos hoje, muito mais próximas do branco, e esse tom constante, na luz difícil das capelinhas, entra em imediata vibração, fundindo o conjunto numa mesma e intensa visão global. Passemos por cima da tremenda exageração das chagas e dos fios de sangue, de que, em verdade, o primitivo encarnador se servira com uma contenção e uma precisão incomuns, para aludir logo às "correções" que os sucessivos retocadores fizeram no tocante às cores das roupas. Se, agora, uma peça como o Cristo que carrega a· cruz surge na composição fechada que lhe impõe a faixa de tom claro que, nascendo na fímbria interna e inferior da túnica, envolve a figura inteira ao continuar-se na curva livre e caprichosa da capa, basta dizer que, antes, uma compreensão mais "verídica" do colorido da roupagem rompia a composição das imagens, soltando-a num grande "S". Afinal, se agora o visitante logo sente que, num mesmo grupo, capas, mantos, túnicas se con-
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jugam numa mesma paleta em que as complementares imperam, tempo houve em que tudo aquilo se fragmentava na "variedade" de cores com que os retocadores procuraram revelar sua liberalidade. , . A referência ao passado estado das capelinhas de Congonhas e suas admiráveis figuras haverá, contudo, de interessar cada vez menos ao viajante de hoje, que já não é perturbado pelas desaparecidas interferências e adulterações. Bastar-Ihe-á compreender que se encontra diante da obra de talha mais vultosa do Aleijadinho. Vulto de número, como é óbvio. Mas também vulto da importância artística, pois aqui o mestre pôde desenvolver à vontade essas figuras que, embora presas à composição de quadros destinados à visão frontal, se realizam em forma plena e em espaços livres. Afinal, vulto estético, pois, embora toda a obra de imaginário de Antônio Francisco seguramente nos preparasse para o espetáculo dos upassos", sua arte, no melhor, aqui está presente. Aqui, melhor do que nunca. torna-se patente aquele "engenho e arte" perseguido pelo criador da época colonial, pois nem se afoga na exaltação expressiva. Andam juntas. numa harmonia mental de que inutilmente procuraríamos remanescentes nos tempos que se seguiram. Assim, no "passo" da Ceia, onde para restauradores da Diretoria do Patrimônio pareceu mais segura a reposição do arraojo das figuras em grupo, logo se acusa o equilíbrio entre o mental e o emocionaI. A disposição sábia, que, no caminho aberto por uma tradição que remonta à Renascença, aconselhava ligar as figuras por linhas sinuosas que, em concreto, se esboçam na gesticulação, é aqui reelaborada com extraordinário domínio, a ponto de, ultrapassando sua função imediata de unir as massas entre si, ainda consegue in'cutir uma movimentação óptica que envolve também as cabeças - cada par de braços, comunicando-se com positivamente com seus vizinhos imediatos, ínterionnente leva à contemplação das feições que assim se entrelaçam no ritmo geral, numa ligação mais sólida e substancial do que a da correspondência psicológica, a que também obedecem. Essa riqueza de composição, onde toda a indetenível movimentação do barroco se exprime, prepara um clima emocional intenso em que se expande a plena drarnaticidade do ins298
tante de comunhão que dá início ao grande ato trágico. E a figura de Cristo, nessa única cena defrontando, ollios nos ollios, o espectador, alça-se a um misticismo transcendente.
E talvez caiba aqui voltannos a acentuar a importância da pintura aplicada às esculturas dos "pas~ 50S", pois, entrando em perfeita consonância com as aspirações da talha, no "passo" da Ceia a paleta de Manuel da Costa Ataíde escapa ao esquema cromático geral que domina as demais cenas e adota tons claros e limpos que comungam no espírito da representação sagrada quando, em seu primeiro acorde, começa a
narrativa de Congonhas. Essa adequação dos recursos pictóricos às intenções plásticas marcadas pela escultura é, em escala coletiva e com a mesma significa-
ção do espírito de grupo que une o atelier do Aleijadinho, o pleno domínio do engenho e arte no dobrar as ambições pessoais em favor do objetivo comum e superior. Flexível e atenta, a visão de Ataíde como, aliás, a de Xavier Carneiro, que dificilmente ambas se distinguirão, atendem fiéis à concepção de Antônio Francisco, quando aspira a uma inflexão particular, como fidelíssima é sempre, em toda a obra, nunca tentando dizer o que já disse a forma talhada, nunca se calando quando solicitada a exprimir-se sozinha. Daí a coesão perfeita desse conjunto invulgar pelo porte, pelo número e pela arte. Com as figuras dos "passos", distribuídas nas sete cenas das seis capelinhas - ponto alto da restauração de 1957 e diante do qual se torna inevitável falar de uma reconquista de Congonhas - , podemos encerrar esta breve notícia sobre os tesouros artísticos que se acumularam no Santuário de Congonhas, um dia pnr metido por Feliciano Mendes ao Senhor Bom Jesus de Matozinhos. A rigor, deverá esse conjunto constituir a etapa inicial para o viajante que, começando ao pé do jardim, pelo "passo" da Ceia e seu vizinho, em que se figura o Horto, deverá grimpar, depois de recolher·Ihes a atmosfera de comunicação mística. de capela em capela, .detendo-se diante de cada um dos quadros da Paixão, até alcançar a esplanada em que, do Novo Testamento de talha, passará à pedra-sabão de um Ve299
lho Testamento resumido no ímpeto divinatório do~ profetas. Eis a Bíblia que deve saber inteira, antes de entrar na igreja onde a arte dos homens continua a render culto a Deus. No breve percurso, terá conhecido o que de melhor possuiu, na áurea segunda metade do século XVIII, a Arte de Minas.
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RECONQUISTA DE CONGONHAS
o Adro e os Passos No ano de 1790, o Capitão Joaquim José de Silva, segundo vereador do senado da Câmara de Mariana, dava cumprimento à ordem régia que mandava "sefazercm effectivamente todos os annas hum as memórias annuais dos novos Estabelecimentos, factos e casos notáveis e dignos de história, que tiverem succedido desde a fundação dessa capitania e forem succedendo". Perdeu-se o documento, para infelicidade de nossa história da arte, pois era muito culto o vereador e sabia, realmente, exercer a crítica. Restou-nos apenas o trecho 301
transcrito por Rodrigo José Ferreira Bretas, mas so por ele já é possível verificar o altíssimo conceito em que era tido, por seus contemporâneos, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Mi-nas Gerai.s encontrava-se, então, no auge de sua expansão artística, ainda não se ressentia do declínio da mineração do ouro, e dispunha de esplêndida quantidade de obras-primas criaàas por um grupo verdadeir",mente e,,;cepcional de mestres construtores t' decoradores, de memória recente ou em plena ação. Não obstante, com admirável descortino, é ao Aleijadinho que o vereador-crítico recorre, como a pedra de toque, para medir pelo confronto outros valores, tanto, por exemplo, sopitando a impressão que lhe causava o neoclássico da nova cadeia de Vila Rica, quanto registrando a superação dos velhos padrões trazida pela invenção de Antônio Francisco, "superior a tudo e singular nas esculturas de pedra em lodo o vulto ou meio-relevado e no debuxo e ornatos irregulares do melhor gosto francês". Aludindo, o texto, a esculturas de pedra, cumpre lembrar que a referência deve ligar-se, tão-só, a figuras de função ornamental, apostas a frontarias, lavabos c, em menor porte, a chafarizes. De qualquer forma, não criara ainda o Aleijadinho o conjunto dos doze profetas do adro da igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo. Dada de 1796 o primeiro documento relativo à sua atividade naquele povoado, mas por segura dedução podemos acreditar que só seriam começados os profetas pelas alturas de 1799 ou J 800, quando portanto Antônio Francisco Lisboa entrava na casa dos setenta anos. Completara já, em Vila Rica, uma obra-prima, a igreja de São Francisco de Assis, singular, na história da arte, por ser monumento de grandes proporções em que, à só exceção da pintura, toda arte sai das mãos de um único criador, porém igualmente singular, na história do barroco brasileiro, pelo que de criação inovadora trouxe aos padrões artísticos da região e do tempo. Dir-se-ia, pois, encerrada tão longe e tão alta carreira, nada fazendo prever que nova obra-prima monumental pudesse vir a ser criada pelo Aleijadinho. Foi, contudo, o que se viu surgir com os profetas do adro de Congonhas. Talhadas em pedra-sabão para animar, cada uma de per si e o conjunto em sábia compmiição rclacio303
nal, o espaço imenso da ampla platafonna plantada no alto duma elevação que, deitando sobre vales, outros limites visuais não conhece além das montanhas que' traçam a linha do horizonte, as doze c:5tátuas passaram a constituir, tradicion,!lmentc; a obra mais representativa do grande mestre que, em nossa arte, ocupa o posto máximo, sempre confirmado pelas novas pesquisas e interpretações. E'!tretanto, nos três ou quatro anos que antecederam à latura dos profetas, na mesma igre~ ia de Congonhas realizara Antônio Francisco Lisboa outra obr.a de conjunto: sessenta e seis peças esculpidas em madeira que representam, em seis capelinhas distribuídas pelo jardim fronteiro ao adro, as cenas da Paixão de Cristo. Assim, tendo-se em conta que, voltando para Vila Rica, onde viria a morrer, só executaria trabalhos de talha na igreja do Canno, a última realização de grande porte do Aleijadinho, que é também obra-prima insofismável, embora inesperada em tão avançados anos, foi a deixada na igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo. Sucede, porém, que aos visitantes, amadores ou eruditos, parecia impossível colocar senão em pé de igualdade, ao menos em direta conexão de qualidade, as peças em madeira dos Passos e as peças em pedra do adro. Apesar de todas as indicações dos documentos e da tradição, impunha-se a indisfarçável impressão de um verdadeiro desnível entre os dois conjuntos. Mesmo os menos dispostos a admiti-lo acabavam cedendo à evidência, que buscavam minorar com certas hipóteses acerca duma possível função secundária e apenas espetacular das figuras da Paixão, ou outras de semelhante ordem. Assim, quando se soube, em princípios de 1957, que a Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional decidira operar ampla restauração da igreja de Congonhas e em seus planos incluía a recuperação das peças dos Passos, a notícia instigou excepcional curiosidade em quantos se interessam pela história da arte brasileira. Era preciso ver o que revelariam tais trabalhos. Respondendo pela secção de arte do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, encontramos em seu direto, Júlio de Mesquita Filho, toda a compreensão que era de supor num constante admirador de nosso barroco, dêle recebendo o apoio necessário não 305
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só para a viagem de reconhecimento, mas também . para fazer-nos acompanhar de Eduardo Ayrasa, cujas excelentes qualidades de fotógrafo pareciam particu!armente adequadas a documentação tão especial \. De sua parte, a Diretoria do Patrimônio, por intermédio de Rodrigo M. F. de Andrade e Sílvio de Vasconcellos, oferecera todas as facilidades ao trabalho do cronista e do fotógrafo durante a excursão. Assim ~asceu um simples relato, que só ultrapassou os limites da mais despretensiosa reportagem quando certas lembranças de estudante de história da arte ou certas inferênetas de crítico profissional não puderam ser abafadas, tão poderosamente as instigava a revelação oferecida pelos restauradores. Tudo foi depois publicado, no Suplemento de O Estado, inclusive as fotografias de Eduardo Ayrosa. Demos por encerrada a missão, que outras pretensões não alimentava. Restou:-nos, porém, a suspeita de as fotografias merecerem posterior aproveitamento que as mostrasse em maior número e em apresentação gráfica mais duradoura do que a oferecida pela impressão num jornal, ainda mesmo com a técnirca de O Estado. Mera cogitação, não teria essa idéia tomado corpo sem a espontânea solicitação de José Renato Santos Pereira, que desejou fazer publicar pelo Instituto Nacional do Livro o que, com Eduardo Ayrosa, conhêramos em Minas. Assim nasce este volume, no qual se empregaram os possíveis recursos para dar-lhe a apresentação material exigida pelas publicações sobre arte, que entre nós ainda estão nos primeiros passos. Que seja, pois, recebido como um livro de imagens onde a visão de um notável fotógrafo transliterou, sem entregar-se à frieza do documento impessoal e sem enganar.-se com as distorções de pretensa originalidade, a bele,a das velhas peças do Aleijadinho no mesmo momento em que renasciam, com toda a força e pureza originais, das mãos dos restauradores da Diretoria do Patrimônio. . O texto que, afora essa explicação inicial, se conserva nà" ·versão primitiva com umas inevitáveis mas limitadíssimas correções e supressões, passa à função de mero ele1. As primeiras ediçõcs do texto - em Suplementos de O Estado de São Paulo e, depois, em volume do Instituto Nacional do Livro cootinham in(Jmeras reproduções de fotografias de Eduardo Ayrosa. Infelizmente, não foi possfvel usar todo esse material na presenl.c edição.
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menta informativo, destinado a oferecer uma séne de dados, possivelmente úteis, acerca das obras recuperadas e da importância da restauração. Porque, em verdade, cronista e fotógrafo desejam deixar bem claro que, se jamais tiverem algum valor o seu relato e as suas gravuras, primeiro destinados à fugaz mas sempre estimulante divulgação jornalística e agora preservados em livro, devem-no todo ao fato que inicialmente atraiu sua atenção e despertou sua curiosidade: a autêntica e admirável reconquista de Congonhas. Reconquista de Congonhas "A viagem para Ouro Preto é bem incômoda. Quem vai lá, deve pois fazer o sacrifício de gastar mais uns duzentos mil réis indo de automóvel a Congonhas do Campo, distante 126 km de Ouro Preto. A excursão aliás é um belíssimo passeio onde há muito que se ver." Esse a convite, no qual ressoa longínquo eco de velhos relatos viageiros, dirigido por Manuel Bandeira aos leitores de seu Guia. Não que faltassem visitantes a Congonhas, cujo Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, construído com as esmolas que nas rudes estradas de Mi as colheu a piedosa gratidão do português Feliciano Mendes, lá pelos meados do século XVIII, hoje atrai compacta multidão de peregrinos na primeira quinzena de setembro de cada ano. O que o poeta temia, pelas alturas de 1938, e o que se podia temer até há pouco tempo, é que as canseiras da viagem a Ouro Preto inibissem o viajante, embora sinceramente interessado em arte, de lançar-se à nova aventura, pela extensa alça do caminho de Cachoeira-Itabirito-São Julião ou pela mais curta porém desafiadora estrada imperial que passa por Ouro Branco, a fim de chegar a Congonhas. No entanto, era preciso ir a Congonhas ... Hoje, as coisas mudaram bastante. O asfalto, que liga Belo Horizonte ao Rio, cobre um terço da nova estrada para Ouro Preto, que é toda bem traçada e bem conservada. Esse mesmo asfalto, deixando à direita o caminho de Vila Rica, tangencia Congonhas, a uma hora de viagem, mais ou menos, para quem deixou Belo Horizonte de automóvel. E continua a
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ser necessano, agora que é tão fácil, ir a Congonhas. Porque em Congonhas estão os profetas que o Aleijadinho esculpiu em pedra-sabão para o adro, por isso famoso, da igreja de Feliciano Mendes. Os profetas, em verdade, lutaram sozinhos todo esse tempo para impedir que a peregrinação artística, tão menos intensa e tão menos fervorosa que à romaria dos devotos, viesse a.. . cessar de todo. Hoje, porém, quando é tão cômodo, desde que se vá a Belo Horizonte, chegar a Congonhas, impõe· -se lembrar que a cidade apresenta ao viajante muito mais ainda do que o conjunto inigualável que passa por ser o coroamento da vida e da obra de Antônio FrancisGO Lisboa. Já não diremos da Matriz, onde há o que ver (e, até mesmo, do próprio Aleijadinho), nem da graça ingênua desse resumo popular da São Francisco de Assis, de Ouro Preto, que é a igreja de São José, pendurada em ladeira. Mas precisamos sublinhar que, na própria igreja do Bom Jesus, há algo de valioso além dos profetas. Em primeiro lugar, a excelente talha dos altares, a pintura do forro e também aquela, abundante e rica,' que foi aposta em quadros às paredes da nave e da capelaemor, pois tudo é obra dos melhores do grupo artístico mineiro da segunda metade do seu século XVIII. E, também, os Passos da Paixão, em suas capelinhas que sobem teimosas, por onde já houve um jardim na encosta áspera, ao adro famoso. Todo esse conjunto foi submetido, no início de 1957, às mãos laboriosas e hábeis de um grupo de restauradores da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob a chefia de Edison Motta. A modéstia quase monástica desse grupo de sua atribuição é cumprir as tarefas de restauração e não cuidar de publicidade. Como aqueles a quem incumbe divulgar tais fatos vêm tristemente falhando em sua função, ninguém, por exemplo, salvo os viajantes que, pas. sando por Sabará, tiveram a oportunidade de revisitar -a igrejinha de Nossa Senhora do O - supondo-se ~inda que a conhecessem de antes se capacitou do que são capazes esses restauradores do Patrimônio. A mesma turma de peritos dirigiu-se, depois de 311
concluída a salvação daquela capela, para Congonhas do Campo. Ainda estavam em andamento os trabalhos no corpo da igreja do Bom Jesus quando lá chegamos, o que nos sugere uma indicação inicial acerca da natureza e alcance intrínsecos dos serviços de restauração.
Comecemos, pois, por dizer que as igrejas de nosso acervo colonial, sobre sofrerem o deperecimento imposto pelo desgaste material e, muito comumente, pela
pobreza de recursos locais, como acontece com a generalidade dos monumentos religiosos e civis, oficiais e privados que ficaram à margem do desenvolvimento citadino mais recente, ainda padecem, freqüentemente, dos males resultantes de uma atividade de "conservação" ou, mesmo, de "melhoria", que ignora exemplarmente aquilo de que cuida proteger. Por isso mesmo, a primeira e maior tarefa do restaurador bem orientado está em redescobrir a feição primitiva das coisas por sob as acrescentações desfiguradoras, o que é muito difícil, na prática, relativamente à arquitetura, por exemplo, e o que é quase sempre necessário no campo da pintura. Sabe-se que o século XIX se obstinou em repintar periodicamente o interior das igrejas, cobrindo, com pigmentos e óleo, a talha dos altares, as obras construtivas de madeira, e muitas vezes atingindo até elementos de pedra. Tal o caso da igreja de Congonhas. Se desejássemos começar pelo mais chocante e pelo mais fácil, caberia aludir, desde logo, à moldura de pedra-sabão azulada, requintada e pura na sua textura oleosa e na sua coloração natural, que guarnecia a porta travessa da capela-mor do Santuário e que, em dado momento, foi coberta por uma obstinada e espessa mão de pintura pretendendo, com meios laboriosamente simulados, imitar... pedra. O que é chocante, porém nada novo, pois de coisas assim já se lastimava, no Portugal de seu tempo, Ramalho Ortigão. Digamos, pois. que, onde havia reposição a fazer. os restauradores do Patrimônio a fizeram. Assim, no caso da guarnição das portas travessas da capela-mor, que voltaram a ser o que eram: tarjas nobres da pedra sutil das Gerais, o que constitui, aliás, uma das mais apuradas contrihuições da arquitetura local à plástica final, não só dos exteriores, mas também dos in313
teriores. Ao que parece, o mestre de obras que trabalhava em Minas, longe de surpreender-se ou confundir-se com as ocorrências da região, rapidamente delas se apoderou numa 'segura utilização técnica de suas qualidades peculiares c, em pouco, passou a dominá-las também esteticamente. O itacolumito, ás· pera e forte, e a pedra-sabão, oleosa e doce, forneceram então, nos tons complementares que a natureza lhes deu, as notas de cor,' discretas mas bem definidas, com que haveriam de pautar-se e animar-se os panos amplos e lisos da construção que, por norma, se entendiam na brancura da cal. Reencontrar essa feição essencial dos conjuntos arquitetônicos constitui uma das mais belas tarefas dos restauradores, que na parte externa das construções não encontrando maiores óbices, no interior das igrejas devem cuidar de. derribar as recoberturas espalhadas por sobre a nobreza da pedra. Recoberturas que, em Congonhas, não só atingiam as portas da capela-mor, mas ousadamente se derramavam também pelo arco-cruzeiro em tuda a sua curvatura majestosa, à qual o engenho singular das gerações mais recentes não trepidou em acrescentar mesmo umas frisazinhas geométricas, dessas que já se vendem, vazadas em papelão forte, nas casas de tintas. A mesma tarefa, com maior delicadeza ainda, tornou-se necessária em elementos originalmente trabalhados em madeira. O caso característico, na igreja de Congonhas, foi o das colunas de sustentação do coro que, erguendo-se a partir de uma porção inferior trabalhada em motivos ornamentais de talha, faziam supor certa riqueza no tratamento geral. Estavam, contudo, pintadas uniformemente de branco, com filetes de purpurina. A operação de limpeza revelou, porém, .que suas almofadas haviam merecido, na pintura original, um tratamento em vermelho "faiscado" que aligeira e justifica a forma elaborada da base do segundo lance da peça. Sob a purpurina, surgiu ouro. Aliás, essa recobertura do ouro, verdadeiro e aplicado em tolha.~, pela purpurina de imitação, constitui uma das calamidades que se abateram sobre as igrejas mineiras no último 'século e que parece desmentir a' benévola versão que justifica a recobertura de dourados autênticos por tinta a óleo de vária coloração como resul- . tante de um improvável recrudescimento do espírito as315
cético no século XIX. O fato é que no Santuário de Congonhas a purpurina foi empregada com muita liberalidade nas sucessivas "limpezas", pois vamos encontrá-la recobrindo o ouro puro também na mesa do a1tar-mor, cuja história merece, contudo, parágrafo à parte. Há quarenta anos, mais ou menos, a mesa original do 'altar-mor, de cedro, com decoração de talha dourada e pintada, passara para uma capela adaptada em dependéncia para tal fim construída ao lado da igreja. Aqui, porém, é preciso fazer justiça aos eclesiásticos responsáveis pela igreja de Congonhas do Campo que, se às vezes se deixaram iludir pelos executores de passadas "conservações" (o que, hoje, seria impossível), demonstraram seguro critério quando tiveram de cuidar, eles próprios, de uma modificação que alcançava também a parte artística. A remoção da mesa do altar decorreu de imposição religiosa, pois a sagração dos· altares pode exigir, segundo o disposto pelo direito canônico, que a mesa seja de pedra e se assente, pelas fundações, na rocha. Impunha-se, pois, su bstituir a antiga mesa, que era de madeira, por outra que se fez em mármore, porém o simples fato de haver-se preparado uma dependência especial para receber a peça removida bem indica a consciência de seu valor ãrtÍstico e o deseio de preservá-lo. Pôde, pois, a Diretoria do Patrimônio recuperá-la inteiramente e, contando com a colaboração inteligente e benévola do Padre José Luciano Penido, atualmente na direção da ordem, encontrar a solução adequada para o problema em que se mesclavam o interesse artístico e as exigências religiosas: a mesa de madeira voltou ao antigo sítio; revestindo a mesa de mármore. E o conjunto do altar-mor voltou à unidade essencial, continuando-se a decoração do retábulo no desenho da mesa, muito belo, aliás, com seus florões e remates de canto em cabeças de anio de lavra fina e erudita. Mas foi preciso libertar a antiga pintura e o primeiro ouro das camadas de tinta e purpurina que os recobriam. Hoje, pode-se ver o que os restauradores conseguem, não s6 repondo a antiga coloração c, pois, reavendo a justa composição cromática que completa a talha tal como foi inicialmente concedida, mas ainda recuperando tôda a finura da escultura em madeira, cujos pormenores se esbatiam, chegando a desaparecer em 316
certos pontos, e cujas linhas se embotavam, tornando-se pesadas e inexpressivas, por sob as capas grossas de linhaça, de cola, de gesso, de pigmentos que, conforme o caso, lhes eram periodicamente adicionados. Há mais, porém. Nessa faina aparentemente simples e, sem dúvida, laboriosissima de ressuscitar o passado, o restaurador em certas ocasiões conhece surpresas que recompensam generosamente suas fadigas. E, às vezes, um único e bem sim-pIes elemento que traz toda uma lição sobre o gosto seguro e a sabedoria bem fundada dos velhos decoradores das igrejas coloniais, como a revelação, em Congonhas, depois de retirada a purpurina uniforme que cobria as molduras dos muitos quadros que decoram a nave e a capela-mor da igreja do Bom Jesus. Se os retocadores do século passado e também dêste resolveram ceder à convenção, por muito tempo dominante, de dourar totalmente as molduras de grande porte, o certo é que os primeiros decoradores de Congonhas haviam percebido que esse simples elementos poderiam ter uma função certa e importante no todo decorado, e as pintaram em faixas "faiscadas" azuis-amarelas-azuis com discretos filetes de ouro. Basta, hoje, entrar na igreja - e logo à entrada as almofadas vermelhas das colunas do côro, pintadas na mesma técnica e circundadas do mesmo fio de ouro - para sentir o que, na integração no todo e na harmonização dos elementos adicionais, representam as molduras, por tanto tempo sonegadas à sua verdadeira função. Outras vezes, a surpresa é maior e a recuperação alcança peças mais substanciais. Foi o que aconteceu, por exemplo, ao se retirarem duas camadas de pintura, relativamente recentes, do frontal de um dos altares laterais e ao ressurgir a decoração antiga. O que lá antes se encontrava era algo "impossível", feito de pobres frisos em relevo fingido ou filetados à maneira dos que se desenham na carroçaria dos veículos urbanos ("pintura de bonde", disse alguém de bom gosto), emoldurando dois tímidos raminhos de flores ao gosto dos cadernos escolares do começo do século. O que lá agora se encontra, é um almofadão decorado com motivos florais que, nem por atenderem. com muito boa técnica. à delicadeza de gosto dum rococó contido, deixam de corresponder à escala mai úscula das 317
proporções do altar e às solicitações forI1)ais exigidas pela talha requintada dos relevos emoldurantes. Curioso é que nas novas pinturas se conservasse o tema das fiares, numa obscura intuição de que ali se faziam necessárias, porém mais curioso ainda é que no ornato floral se processasse uma progressiva retração espacial que acabou pedindo o triste concurso dos filetes na composição de uma segunda moldura ilusória, quando já havia a esplêndida moldura verdadeira. Esse abas~ tardamento por timidez pode desfigurar totalmente o conjunto óptico duma peça, como esse altar que, ao invés de continuar mostrando seu frontal como um retângulo forte, uno e bem marcado pela faixa lavrada do emoldurarnento, amesquinhou-se, exatamente na porção que dá sustentação visual ao todo, encolhendo-se nas sucessivas reduções do retângulo primitivo que, pois, praticamente se desfez. São casos assim que atestam, não só a proficiência dos trabalhos <;los técnicos do Patrimônio, tantas vezes mal compreendidos, como também indicam O quanto, afinal, podem ser úteis aos que, .interessados em manter ativas e em sua precípua função as antigas igrejas, só podem querer que elas sejam belas, o mais belas possíveis, isto é, tão belas quanto as ergueu a fé dos doadores, dos clérigos e dos artistas que se uniram em sua realização. Também se desfazem, com restauração tão hábil, tão sábia e tão honesta, muitos dos equívocos suscitados pela aparência atual e aparentemente irrecuperável de certos monumentos, cuja feição verdadeira, não obstante, só algumas mãos de tinta grossa separam de nossos olhos. Até há pouco, a igreja de Congonhas não parecia oferecer, em seu interior, mais do que algumas notas pitorescas relativas a seus atributos artísticos: os decantados dragões orientais a servir de porta-lâmpadas, o arremate inferior dos púlpitos. e coisas assim. Depois, ·a documentação começou a revelar os nomes de bons decoradores que ali trabalharam. Hannah Levy, com seus confrontos de modelos, chamou a atenção para a pintura de Nepomuceno. A correção de um lapso de leitura pôs em foco Francisco Vieira Servas, que tanto tempo foi chamado de Cerva!. O texto de Bretas, recompulsado, foi patenteando a se-gurança crítica do fragmento do "segundo vereador" 318
e, portanto, a presumível excelência da talha de J erônimo Félix Teixeira. Falou-se também de Carvalhal e, sobretudo, da pintura de Bernardo Pires. Ora, todos êsses artistas, verdadeira elite do grupo de mestres mineiros. da segunda metade do século XVIII, trabalharam em Congonhas, que contou ainda com a arte do Aleijadinho, ·do Ataíde e de Francisco Xavier Carneiro. Mas não era apenas o choque deslumbrante do adro com seus profetas que inibia, no interior do San· tuário, a percepção dos valores artísticos que deveriam desde logo patentear-se. O que dificultava a visão exata da decoração interna era, em primeiro lugar, o deperecimento material de certas peças - haja vista a película grossa e ictérica de vernizes somada aos estragos da fumaça, aos grãos de poeira e à incessante agressão dos morcegos, que até há pouco literalmen' te impedia uma inspeção razoável das pinturas de João Nepomuceno Correia e Castro - e, .principalmente,
o desfiguramento do conjunto decorativo. Ora, o ar-
tista colonial sempre trabalhou tendo em vista o todo a compor-se, e, mesmo em casos que se diriam próximos do individualismo criador, como já se pretendeu insinuar a respeito da São Francisco de Ouro Preto, demostram que, ainda onde abundam obras-primas. nenhuma delas deve supor-se mais importante do que o todo. E no caso de obra coletiva - é bem o caso de Congonhas - os elementos de ligação, que homogeneízam a obra e ressaltam as qualidades específicas dos seus componentes. representam algo essencial. Que, contudo, escapou aos executores das pa3sadas "limpezas", enquanto prosseguiam na ingrata faina de embotar as linhas da talha com tinta grossa e recobrir ouro com purpurina. Os exemplos que aqui ficam, à guisa de introdução, servirão para sublinhar o trabalh o obstinado e competente da turma de técnicos do Patrimônio em Congonhas do Campo. Graças à sua atividade, o visitante interessado em arte voltou a ver a igreja de Feliciano Mendes. Não exatamente como foi lá pelas últimas décadas do setecentos, pois há porções que o tempo desgastou irrecuperavelmente e há também superfícies que não deixaram de esmaecer-se um pouco com o recobrir-se e descobrir-se de tintas estranhas. Mas essas pálidas manchas, que valem como notas de 319
autenticidade, apenas comunicarão um tom de tempo vivido à velha igreja, agora de novo visível, senão como era ao completar-se, ao menos como foi concebida pelos seus construtores e decoradores. E como a marcou, de leve, a mão do tempo, tão diferente da garra da ignorância. Cabe, agora, com mais calma minudência, relatar, de ponta a ponta, uma única das operações da restauração realizada no Santuário do Bom Jesus de
Matozinhos, em Congonhas, para que, afinal, não passe o grupo de técnicos por uma companhia de mágicos a operar pequenos milagres gratuitos. Milagres, eles os fazem, e poucas vezes pequenos. Nunca, porém, gratuitos. Por isso, vale descrever porrnenorizadamente suas práticas. Tomemos o caso do forro da nave. Pintou-o, um
dia, aí por 1769 ou 70, João Nepomuceno Correia e Castro, e sua figuração descritiva e simbólica lá ficou, sem grandes desfiguramentos, atestando, com precocidade para a região. um apegamento ao gosto rococó que, por essas alturas, ainda não mereceria a aceitação comum, nem pois se assimilara à arte mineira. A altura do teto e, também, o respeito por uma obra fina e bem executada terão, provavelmente, poupado essa pintura como a dos quadros da nave c da capela-mor - das sucessivas "conservações". Posta lá ao alto, onde nada parecia alterá-la, se-
não uma leve pulverização dos pigmentos que, em grânulos muito finos, se desprendiam em desprezível quantidade, estava, no entanto, praticamente condena-
da.
Impõe-se aqui esclarecer que no Brasil o cupim,
ajudado pelo fungo, representa o grande inimigo das obras em madeira e que peças, deixadas sem tratamento específico pôr mais de um século (e ainda· mais, em
certos casos do Norte e do Nordeste), podem ser totalmente destruídas pela ação lenta mas pertinaz do térmita. Talo caso do forro da nave de Congonhas. Acontece, porém, que o cupim, ávido de madeira, detesta .. as tintas de ·pintura e não ataca o ouro em ter
lhas; assim se· explica ·0 aparente bom estado de peças. inteiras que, exteriormente, parecem intatas mas que, como lenho, já deixaram de existir. Ayrton de Car320
valho mostrou-nos, certa feita, grandes colunas salomõnicas da S. Bentn de Olinda que, de fato, se resumiam ao douramento. Em Congonhas, algo de semelhante aconteceu. Praticamente, o forro se reduzira à película da pintura. Visto cá de baixo, como o vê o visitante, parecia um belo forro milagrosamente preservado pelo tempo. Mesmo quando a igreja se encheu dos improvisados andaimes da turma de restauração e se destacaram as primeiras tábuas do teto, o aspecto do fator aparelho sustentador, que a preocupação de solidez do arquiteto colonial distribuiu sob o telhado, parecia desfazer qualquer suspeita de perigo. Se, para além dos elementos de sustentação, o visitante enxergava as tábuas do guarda-pó, percebia um maior deperecimento, porém a sujeira acumulada não permitia ajuizar a situação real. Aliás, O cupim e a ação do fungo trabalham sempre a partir da superfície mais· exposta da madeira, que no caso era a face superior, e costumam destruir toda a peça sem, contudo, alterar decisivamente sua forma externa, até que ela venha, literalmente, a desfazer-se, reduzida a pó. Às vésperas desse aniquilamento súbito estava o forro pintado do Santuário de Congonhas. Inspeções meticulosas deixaram patente que, no estado atual, as grandes tábuas não poderiam ser tiradas de seus lugares, como se impunha fazer, pois se esfarelariam totalmente com tal abalo. Aos restauradores foi exigido todo engenho e perícia. Para salvar uma pintura cujo suporte de madeira tivera sua resistência reduzida a zero, grimparam de novo pelos andaimes, agora levando grandes peças de tecido alvo e leve, o que lhes dava ares de enfermeiros em gigantesca cirurgia. Iniciaram, então, a delicada operação de colar, a cada tábua, porções desse pano, primeiro em curtas faixas transversais que se tocavam pelos bordos e, depois, numa larga fita longitudinal sobreposta àquela e que abrangia toda a peça. Era algo como o reentelamento que os peritos de outras terras vêm praticando com a devida publicidade, mas aqui não se cuidava de transpor uma pintura de cavalete para novo suporte, senão de restabelecer a solidez de um teto, substituindo seus elementos de vedação, sem alterar-lhe a pintura. As duas bandagens 321
Rctirlldas algumas tábullS, encontrou-se por sobre os elemcntos de sustentação. o guarda-pó arruinado.
Antes de rcmover as tábullS, suporte da pintura, providenciou-se sua proteção com tims de lt.;cido. pois sua rcsist~ncill se reduzira a zero por causa dos cstmgos do cupim e do fungo.
A remoção eXigIU mais uma medida de proteção: a grade de madeira scrvia como padiola para as túbuas arruinadas qU<.lI1do era prcciso movimentá-las nos nndaimcs ou trazê-Ias no chão.
Uma peça de forro. atac<.lda pelo cupim c pelo fungo: embaixo, a túblla, tal como foi retirada, apresentando os estragos que praticamente se mostram tOlais pois, removida a parte arruinada. só resta. como ::;c vê cm cima, a pclícula milimétrica de fibras retidas pela pintllm c que repousa, frngilbsima, sobre a grade de transporte.
Ao lodo duma arruinado (direita), uma tábua "reconstituída". ou melhor, a reconstituição de uma túblla por pequenas liras de. cedro aglutinadas por um composto de cera p
Nessas duas fotos aparece o mesmo Cristo com a cruz às costas. tal como era antes da restauração e como hoje. pode ser visto. A pequena altc(ação do âng"ulo ue tomada corresponde. também. a modifica-
ção do
pomo cle observação normal que a peça
oferecia ao visitante dos Passos na antiga e na atual posição. pois anles ficava conra a parede do fundo, enquanto hoje veio parar a frente e para a direita do conjunto. Basta lima simples comparação das duns fotografias para (onar-se patente a 'perícia dos restauradores e a intensa beleza que permanecia oculta sob as repinturas. Certos pormenores chegam mesmo a parecer chocantes, como sucede com a pintura da boca que se torna grossa e untuosa. sem nos referirmos à ocultação dos dentes. Também a pintura das chagas. que originalmente descrevia o dilaceramento da carne submetida aos espinhos, jamais inspiraria o desagradável sentimento de mau gosto que logo impunlw o chuveiro de lágrimas sangrentas das pinturas. A maIOr reconquista torna-se evidente, contudo, nos cabelos. pois em lugar de madeixas cllcordoadas e pesadas, temos agora lineamentos sutilíssimos que ritmam a cabeleira e a barba. O que não é apenas lima retomada drl: "verdade" anatômica. pois o que se recuperou foi a beleza plástica das linhas que movimentam as massas, ora nas ondas densas dos grandes cachos, ora em pequeninos desenhos caprichosos, como o dos bigodes.
Na anúlise tia restauração do arranjo das telas em conjuntos plasticamcnt~ compostos e de expressão ha!·mónicê.l, a primeira evidênci~ oferecida pelo Pcsso da Ceia é a da funçào cntrosêJdora que foi dada às mãos dos apóstolos que. em torno d~ mesa, gesticulam. O recurso, I:fctivamenlc. não é novo e, no que tange Ü:S representações da Ceia, constitui verdadeira tradição, ü. panir da Renasccnça. Aqui. contudo, há algo inédito a assinalar, que é a utilização desse elemento de ligaçào num conjunto qu~, sendo esculpido, deve ainda figurar "um verdadeiro quadro", como diz a expressão popular. A solução adotada por Antônio Francisco Lisboa ates la. irrceusavclmcntc. O domínio do problema. Se cada figura da cena deveria ter interesse plústico em si mesma, o escultor a concedeu. dentro do seu súbio, original e dominado harroquismo. C0l110 UI11 foco movimento qU(;. contudo, não se fecha sobre si mesmo. Pelo contrúrio, as peças. suficientemente ricas de movimcntos lineares e de variedade nos volumes, depois de darem "tempo" para a imprescindível valorização da cabeça (foco da expressão psicológica) encaminha os olhos da observador para ê..lS linhas descendentes e confluentes dos braços. E, em seu conjunto. pontos coordenados que conduzem a vista, por todo o percurso de cada lado da mesa, numa ampla e bem ritmada sinuosa que vlli da figura de Cristo ao último ê.lpóstolo de cada lima dê.ls alas de imagens. As mãos constituem, pois, pontos de intersecçüo entre as duas amplas curvas da composição geral c as várias pequenas alças que regem a composição particular de cê.lda figura. Não se creia, porém, que essa at1úlis~ exija esforço de abstraçào ao visitante do P~tSSO da Ceia. De sua evidência dizem bem duas fotos. Naquela em que surgem. em iIHeira figura, as imagcl1~ dos Apóstolos. mostra-se claramcntc a "alç
Cabe. agor.J. a pcrgullt:1 inevil<Ívcl. Bastaria essa eomp1L'xa composição pl;-lstica para prenJer os vúrios ..:\1..;mCJ1(Os no lodo? Bastar, bastaria. Sucedc. porém. que ü estética do Aleijadinho c (Il: seus contcmponineos é inerente ~\ expressão fugurativa, o contcúJo em toda a sua pknitu(k:. Daí a 11l1portôncia tll: cada imagem que além de ser demento de um lodo plúslico. figura aindi.l como verdadeil:a e opcranlc personagl.'lll de uma CC!li.l. O que não traz choques, nem perturbações - ao contr;.Írio do que se suporiam Ccrlas concepçôc:: hojl..' I.'m moda. O quc, evcntualmcnte, podc trazer ullla mlJtua valorização da criação plústica e Ja figur
tempo. servindo para cnunciú-Ia, foi o momento psicológico especial e bem marcado de caua figura que interessou ao escultor mais do que qualquer intenção «retratística" . Assim, O que Se tem diante dos olhos. para além ua trama plüstica, erudita e dominada, é a trama subjeliva d..::scrita de forma contida, porém irrl:cus~ível. Cada Apóstolo se liga, psicologic:JJTIente, ao Anfitrião. E ni3.o scní preciso acrescentar quc as mãos, sobre cuja função phística tanto insistimos, também S.lO sublinhadon.ls emocionais das feições. Porque, sempre, o Gesto foi suporte do Verbo.
Entre Os muitos problemas histórico-críticos suscitados ou renovados pata restauração dos Passos uc Congonhas. estão, selll dúvida, os das Illuitas cogitações que se tem levantado acerca da efetiva existência, senão ue uma "escola" do Aleijadinho, ao menos de um ate/ia do mestre que representaria o foco irradiador duma tradição que indubitavelmente encontrou continuadores. N.:iD obstante até agora .a maior parte das figuras de Congonhas constituí<1m um verdadeiro tropeço para as versões mais liberais dessa orientação interpretativa, na medida em que havia flagrantes afastamentos dos padrões superiores fixados pelo mestre, sobretudo nas cst(ltuas sccunei<írias dos vários conjuntos. De fato, por isso se começou a insistir na possibilidade de saírem tais peças de mão inculta - "escrava". como diziam logo os mais românticos - que canhestramente buscamm seguir uma formal muito superior üs suas verdadeirns possibilidades de realização . .:\.gora. porém, o probkmi.l esl<Í reaberto. Rl.:cuperadas as peças na Slla versão primitiva. atest:JSI.: ullla grand...:: co...::s~o estilística, que insinua não só a presença. mas a constante participação de Antônio Francisco no 10c<.t1 de feitura das imagens. Aqllclc~ "oficiais" de que f;:llam os documentos do tempo. sclo-ão na completa c tradicional acepção da palavra. Basta. por exemplo. que se confronte umú peça cel1~ trai - o Cristo atado ú coluna - com uma figur;'l secundúrül caricatural - um dos soldados dc~se mesmo Passo - par;'l que se vl.:rifiquc é.l permanência de um mesmo conceito an,itômico da cabeça. variando apenas. ao passar da feição sublime ~l grotl.:sca, na <.Ic...::n1O'Içüo de determill
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Um pequeno ~squema diní. talvez melhor do qUl': muitas palavras, da profunda modificação sofrida por lima peça como o Cíisto com a Cruz üs costas. quando a mão dos restauradores a devolveram ao aspcctl' primitivo, e da alteração que, conseqüentemente. conheceram certos problemns críticos estudados segundo a falsa aparência até hú pouco dominante nas imagens dos Passos. Assim, é preciso primeiral11ente atinar para a imensa distância 'que. na composição original. vai do prdendido realismo da imagem ü sua verdadeira feição pl:ística que atende, em primeiro lugar. às imposições da forma e do movimento. Se o desejo de ser verídico colide com a idéiu de uma pobre túnica de condenado que tenha no interior cor diferente da externa. o fato é que os cncarnadores de Congonhas não temeram assim pintar a cscultur;:l que lhes entregara o Aleijadinho, para acentuar-lhe a espl~ndida movimentação el11 um grande círculo que, envolvendo-o. valoriza o corpo e, permitindo uma única interrupção, ressalta a importância da cabeça. Ê o que resume o pequeno croqui de cima, enquanto no de baixo deixamos anotado o desfigurarnento phístico imposto pela "vcrdadL''' com que o último reencarnador desejou corrigi. s~us antecessores, colorindo a porção interna da túnica com a mesma tinta <..lo lauo ue fora e deixando para a capa. a vantagem de apresentar-se com direito e avesso. O que talvez fosse mais real c mais lógico, por~m nada artístico. A partir duma lal modificação material e ópticél, impõe-se I'ecolocélr em diversos termos a análise da peça, que, longe de ser encarada com mera recorrência tardia de um goticismo firmado na tradicional COI11posição da figura em "S", propõe-se. pelo contrário. como uma reeJ;jboração dos esquemas circulares c dinâmicos do barroco, numa realização em que. indiscutivelmente, é notável a contribuição original.
em sentidos opostos preservavam a obra de João Nepomuceno de qualquer repuxamento, fratura ou alteração dimensional, mas sempre permanecia o perigo maior que era o de fragmentar-se a tábua ao ser despregada. Nova operação, ainda de aspecto hospitalar, deveria prevenir acidentes no ato de- deslocamento e transporte da peça destacada. Desceram, uma a uma, as tábuas do forro deitadas sobre uma grade de madeira que, na prática, servia de padiola a esses corpos delicadíssimos. Com isso, era possível, uma vez arrancados os pregos, movimentar as tábuas por sobre os andaimes c, depois, baixá-las ao chão em suave descida, para conseguir maior liberdade de movimentos na restauração propriamente dita. Esta se iniciava com o exame da madeira e a conseqüente eliminação da parte atacada pelos térmitas. Largos e fundos sulcos na superfície superior da madeira denunciavam a entrada do cupim, mas, em verdade, essa alteração superficial, em si mesma assustadora, não correspondia à. metade sequer da destruição havida no cerne. A madeira, de fato, deixara de existir, e as lâminas irregulares e esfareladas, se ainda consentiam a aparência de coisa sólida, sempre se apresentavam com a espessura e a fragilidade de retalhos de papel que se impunha eliminar. Feita a raspagem desses sobejos do cupim, verificava-se que a tábua desaparecera e dela restava tão só a lamínula fibrosa milimétrica que, aderida à pintura, não pudera ser destruída pelo bicho. O problema, agora, estava em substituir o elemento destruído. Há algo que a restauração abomina: as soluções simplistas. Assim, onde o senso comum diria para sem maiores complicações colocar-se uma nova tábua no lugar da velha, o restaurador logo percebe todos os perigos inarrostáveis duma tal substituição mecânica. A pintura, em seu suporte original, aderira diretamente a ele e, portanto, acompanhara seus "trabalhos" segundo as oscilações da temperatura, a umidade, o jogo das peças confinantes e suas próprias alterações intrínsecas. Com uma nova tábua, recomeçaria esse processo de tensões, porém, desta feita, a pintura não poderia acompanhá-'la tão docilmente, tornando-se provável sua ruína definitiva. Dessas considerações, resultou a solução paciente e exata dos
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restauradores, que não substituíram, mas recompuseram a tábua arruinada mediante a aplicação, sobre a capa milimetral dos restos de madeira preservados pela pintura, -de uma série de tiras novas de cedro, com dois e meios centímetros de largura e a mesma espessura da peça original. São réguas curtas que se enfileiram longitudinalmente, recebendo, de espaço em espaço, um elemento transverso igualmente descontínuo. O conjunto, como se percebe, não poderá sofrer com os "trabalhos" das várias partes componentes, que se anularão reciprocamente, ou se perderão nos interstícios. Mas não é só a madeira que preocupa ao restaurador, pois deve resolver também o problema trazido pela junção desses componentes miúdos num todo uno e, então, impõe-se evitar as colas comuns tiradas às cartilagens, ou mesmo as sintéticas, que, solúveis em água, devem sempre ser evitadas onde possa aparecer uma goteira, e que, naturalmente higroscópicas, isto é, suscetíveis de absorver a umidade atmosférica, seriam fácil presa dos ténnitas e dos fungos. Empregou-se, por isso, um aglutinante composto de cera parafina, resina de Damar e terebintina de Veneza, que escapa a todos esses perigos e, mais, cujo ponto de fusão se situa entre 120 e 130 graus centígrados, pois, entre o telhado e o forro, as construções se aquecem mais, muito embora, no caso em questão, os termômetros tenham acusado, em pleno verão, a temperatura máxima de 38° apenas. Assim são as novas tábuas do forro de Congonhas, filhas, aliás, duma experiência consolidada na capela de N. S3. do Ó, de Sabará. Flexíveis, praticamente suportarão para sempre a pintura. Com 3 vantagem suplementar de garantirem uma perfeita adesão da película pintada em toda extensão, coisa que não se teria por certo como o emprego de novas tábuas inteiriças, pois com estas se possibilitaria o risco da formação de bolhas entre o novo suporte e a pintura, provocando o posterior descolamento. Quem agora entrar na igreja de Congonhas, verá, simplesmente, um belo texto pintado, cujas cores foram, aliás, realçadas por uma operação final de limpeza. Jamais saberá o que, por trás das figurações humanas e arquitetônicas de João Nepomuceno de 337
Correia e C:astro,' foi feito pela ciência e pela arte dos restauradores do Patrimônio. Se perdoar o excessivo da descrição, aliás imprescindível, por ela poderá o leitor aquilatar o que sejam tarefas como a 'recuperação da talha, da douração e da pintura originais dos altares e do coro, como a reposição da antiga cromática das molduras de quadros e da encarnação dos anjos suplementares do altar-mor e das imagens dos Passos, ou, ainda, como a consolidação das obras construtivas - todas, enfim, exigem a mesma perícia artesanal, o mesmo domínio técnico, a mesma segurança histórica e a mesma sensibilidade estética que denotaram exuberantemente os restauradores da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico NacionaI. Sobre sua esplêndida atividade, digamos ainda uma palavra para sublinhar que, além da preservação do monumento, uma restauração de tal porte contribui substancialmente para o seu exato conhecimento, não só pela reposição artística, que já comentamos, senão também pela confirmação, infirmação ou alteração de dados documentários. Tal sucedeu, mais uma vez, em Congonhas. Ali, a leitura atenta de documentos antigos e a descoberta de novas indicações jã haviam trazido substanciais achegas e correções ao que se encontra, por exemplo, no Guia de Manuel Bandeira, que, ao ser redigido, só contava com o apoio da velha Relação do Padre Júlio Engrácia (1908). Assim é que, posteriormente, se identificara a talha do altar-mor, elegante e sábia, como de autoria de Antunes da Costa, que Manuel Bandeira não citava. Doutra parte, firmou-se ser Jerônimo Félix Teixeira (não 'Manoel Roiz Coelho, como indica o Guia) O entalhador dos colaterais, cuja douração e pintura couberam a João de Carvalhais e a Bernardo Pires da Silva (conforme registra Manuel Bandeira). Já sobre o que mais de pintura deixara Bernardo Pires em Congonhas, e se supunha fossem todas as pinturas de forro (nave e capela-mor), padecera forte dúvida desde que Rodrigo M. F. de Andrade descohrira, no Livro de Despesas da igreja, pagamentos por andaimes erguidos na nave jã concluída, indicando a existência, nesse setor, de trabalho de João Nepomuceno Correia, que recebeu aquele dinheiro. Aliás, identificando-se como do mesmo Nepomuceno os quadros que decoram as 338
paredes da nave e da capela-mor, mais se consolidava a indicação. Verdade é que, em seu famoso artigo sobre os "modelos" coloniais, Hannah Levy pensara descobrir dois estilos nesses quadros - um, de copista 'servil, e outro, de criador livre - , porém, com sua infatigável exatidão, registrava que escrevia o que lhe sugeriam reproduções fotográficas e não as pinturas propriamente ditas. Ora, os trabalhos de restauração, pondo a nu a primitiva feição dos quadros e dos forros, além de oferecer a Edison Motta, na chefia da restauração, uma direta inspeção da técnica e maneira do pintor, veio concorrer para que se acolha o nome de João Nepomuceno Correia e Castro como o grande pintor de Congonhas: seu é o forro da nave, seus são todos os quadros da mesma nave e também os da capela-mor (a cujo teto se resumiu a atividade de Bernardo Pires), como talvez sejam suas outras obras que se acham na sacristia. As duas mãos entrevistas por Hannah Levy, livres de desfigurações, não passam de uma só mão - a mesma mão que subiu aos . andaimes pagos pela igreja para decorar o teto da nave. Afinal, os dois grandes anjos (eram quatro originalmente) que ladeiam o altar principal, obra documentadamente atribuída a Francisco Vieira Servas (não Serval, nem Cerval, como registraram transcrições defeituosas), quando libertos das sucessivas capas de pinturas grossas e devolvidos à feição original, vieram a confirmar o pleno merecimento das referências elogiosas do Capitão Joaquim José da Silva, o Hsegundo vereador de Mariana" e primeiro crítico da arte mineira. Não se creia que tais precisões de autoria e identidade de artistas representem coisa miúda de historiadores pacientes. Pelo contrário, por seu intermédio ficamos sabendo haver trabalhado em Congonhas o melhor do que nas artes tinha Minas nesse tempo e, ademais, tomamos consciência de que é preciso, a partir de hoje, confrontar essas peças superiores com outras de igual porte, a fim de melhor acompanhar a evolução artística da região. Isso, para não aludir a outros pontos, menos gerais, porém não menos importantes, como a possibilidade de estudar-se convenientemente a obra de Nepomuceno, agora tão bem e tão fartamente rcpre~ sentada. Não foi, enfim, apenas um monumento que se
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preservou da destruição. Nem, tampouco, a simples devolução de um monumento à sua aparência original. Pois houve tudo isso e, mais, toda uma nova perspectiva aberta para os investigadores de nossa história e de nossa arte. Justo, pois, será juntar, aos nomes dos que criaram o harmonioso conjunto do Santuário de Congonhas, os daquele~ que o reconquistaram: Edison Motta, Jair Afonso Inácio, José Manoel de Matos, Oldach de Freitas, Amado Rescala, Joaquim Pedro de Andrade.
Sairemos agora da igreja do Bom Jesus para atravessar o seu adro. f: difícil passar pelos Profetas sem" parar e olhá-los longamente, como impõe sua beleza. Mas, desta feita, seguimos o caminho dos restauradores do Patrimônio, e aqui não encontraram eles o que fazer, senão deplorar o lento mas seguro dano que a ignorânciR dós romeiros, em cada setembro e também um pouco no decorrer do ano, vai produzindo, a ponta de canivete, com a inscrição de nomes e datas nas estátuas de pedra-sabão. Dano irreparável e que só se deterá com uma vigilância bem feita, tal como já se começa a planejar e a conseguir. Passemos, pois, pelos Profetas. Estamos ainda em Congonhas e, como sempre, faz-se tangível a memória de Oswald de Andrade, naqueles versos que se gravaram idealmente, aos pés dos Profetas, em dístico necessário. Aqui, no período mais ousado, mais revolucionário da vida de Oswald, perpassou um sopro de grandeza tranqüila que, embora então ninguém p.udesse adivinhar, prenunciava um pouco da ansiada certeza por que lutou depois, em suas mais fundas dúvidas, da maturidade até a morte: No anfiteatro de montanhas Os Projelas do A ieijadinizo Monumentalizam a paisagem. As cúpulas dos Passos E os cocares verdes das palmeiras São degraus da arte do meu país Onde ninguém mai:s subiu: Bíblia de pedra-sabão Banhada no ouro das Minas. 340
Vamos, contudo, ·aos Passos da Paixão. Porque, no limiar de sua Bíblia de esteatita, 'Antônio Francisco deixou esculpida, desta feita em madeira, outra estação evangélica. Não, propriamente, outra Bíblia, mas um Novo Testamento, cristão e mais facilmente tangível na pungente humanidade do drama que não se pode esquecer, como a preparar a tr~scendência das antevisões judaicas do Velho Testamento. Antes de rasgar, por entre as pedras dilacerantes e as línguas de fogo da condição terrena, um caminho para o céu, é preciso rememorar O preço terrível que o próprio~ Deus deveu pagar para indicá-lo aos homens. Era o que sabia, velho e doente, mas ainda disposto a dizê-lo, na sua máscula linguagem plástica, Antônio Francisco Lisboa. Era, contudo, o que ignorávamos. Ao menos até 1957, enquanto permaneceram as sessenta e seis imagens dos Passos por sob as capas grossas de pintura que, periodicamente, lhes foram adicionadas. O que resultava, de tão deplorável boa intenção, era um conjunto de peças esculpidas e encarnadas, nas quais era preciso ter muito bons olhos para reconhecer, aqui e ali, a mão inigualãvel do Aleijadinho. Houve mesmo uma atenção e um louvor especiais para a estátua do Cristo atado à coluna, porque era, entre tantas figuras, uma das raras, senão a única, que se podia atribuir com toda a segurança a mestre Antônio Francisco, embora nela se reconhecesse uma excessiva doçura de linhas e maciez de formas que pareciam afàstar-se, um pouco, do restante da sua obra. O todo dos Passos, na representação das sete cenas que animam as seis capelinhas, parecia coisa excessivamente grosseira, no intuito e fatura, e que atendesse apenas aos decantados objetivos anti-reformistas do barroco no sentido de esmagar. para dominá-la, a sensibilidade de uma população ignorante e crédula. Triste hipótese essa, que desmerecia o clima intelectual de Minas colonial, ignorava a significação estética do prolongamento brasileiro do barroquismo e, sobretudo, perturbava a aprenão obstante, ciação dos méritos do Aleijadinho única, embora triste, hipótese que se podia levantar diante daquele conjunto de figuras, onde abundavam e se faziam agressivas tantas caricaturas, onde as feições nobres não se mostravam plenamente convincen341
tes, onde uma pintura, espaventosa e de decidido mau gosto, transpunha o popular para cair no vulgar e no grosseiro, negava-se ao expressionismo para entregar-se a' uma espécie de ingê.nuo terrorismo. Aos que crêem no Aleijadinho e acreditam ser constante em sua obra a finura técnica, a segurança do gosto e a elevação conceitual, os Passos de Congonhas continuavam a atrair, como um mistério, e a atormentar, como a pena de um pecado. Agora, os Passos foram restaurados. Uma operação, penosa pelos esforços e pela delicadeza indispensáveis, porém segura e simples para os técnicos, submeteu as figuras das cenas da Paixão ao efeito conjunto de solventes e delicadíssimas raspagens. Foram, aos poucos, caindo grossas escaras da cola, gesso e pigmentos acrescentados per sobre a encarnação original - que documentadamente se atribui ao Ataíde e a Francisco Xavier Carneiro, o maior de seus disCÍpulos - , até restabelecê-la inteiramente. Depois, uma vez repostos tais ou quais pequenos elementos que, destacados, pereciam por ali, buscou-se dar um arranjo global às peças de cada cena, para tirá-las ao tumulto incongruente em que até então se encontravam. Só isso. Nada mais do que isso bastou para revelar - esse, o termo exato - um dos mais belos trabalhos do Aleijadinho e "seus oficiais", ao qual a pintura do Ataíde e de Carneiro veio ajustar-se com roda a sabedoria e plena beleza. Aqui, como ao aludir, mais acima, às intenções de Antônio Francisco no tocante ao conteúdo subjetivo e sacral de seus trabalhos, sabemos que a tendência natural do leitor será para suspeitar que exageramos. Pedimos-lhes, pois, que neste ponto, onde surgem referências mais objetivas, concretas, materiais mesmo, procure atentar menos para nossa interpretação do que para os exemplos tangíveis que lhe dão base. Sirva-se, pois, em primeiro lugar, do excelente confronto que lhe oferecem as fotos feitas por Eduardo Ayrosa, em duas épocas, do Cristo carregando a Cruz:!. Conclua por si mesmo. E procure compreender o que antes era e o que hoje voltou a ser a encarnação das imagens dos Passos. 2.
v. nota 1, páS. 224.
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o que se via, até fevereiro de 1957, eram tintas vivas, em muitos casos berrantes, cuja principal preocupação estava em acentuar ou "completar" as definiçoes plásticas alcançadas pela escultura. Assim, onde a talha delineara a forma óssea dos malares e a massa carnuda dos músculos, os encarnadores mais modernos acrescentaram um rosado intenso, tal como o carmim ingênuo da vaidade caipira costuma fazer, e o resultado - principalmente tendo em conta que O: Aleijadinho, e com ele sua escola, levara esses dois elementos a um máximo expressivo ----. só poderia ser o excesso perturbador, o exagero pernicioso. Também os olhos, tão seguramente rasgados na madeira, receberam uma linha de pintura circundante para "reforço" da forma geral que, contudo, já se talhara tão incisivamente. Mas não era só, pois, na grande mai
dos. Nada, enfim, em que a pintura redobre o que a escultura já definiu. Dessa contenção nos limites inerentes à encarnação, que representa o legítimo atestado de seu alto engenho e limpa arte deixado pelo Ataide e por Carneiro nos Passos de Congonhas, resultou a possibilidade de libertar-se, cento e setenta anos depois, a escultura, do Aleijadinho e seus oficiais. Não se creia, porém, que ali a pi.ntura desempenhe papel puramente ancilar: com a mesma segurança conceitual com que se recusou a invadir a alçada específica da talha, soube levar às ma:is ambiciosas fronteiras os seus próprios direitos. Se a concepção global por certo nasceu das mãos e do peito do Aleijadinho, devendo-lhe o sopro original e a intenção maior, não é menos certo que os pintores lhes deram muito e, por vezes, do melhor. Se, por exemplo, a impressão de unidade e coerência dos conjuntos se tor~ou imperativa depois da restauração, pois se deriva substancialmente das constantes escultóricas, hoje libertadas da má pintura post.erior, e dos primitivos esquemas grupais, em grande p:lrte reencontrados nos arranjos dos restauradores, bem' seguro é que essa impositiva homogeneidade talvez não se fizesse tão palpável e imediatamente perceptível sem a contribuição essencial do colorido. De fato, o que salta aos olhos desde o primeiro instante (já pelos postigos da porta, quando o visitante é sôfrego) é uma mesma vibração luminosa a envolver o conjunto das peças. E essa luz, fundindo as peças numa mesma vibração, vem do colorido das carnes e das vestes. Quando os restauradores começaram a trabalhar, logo se surpreenderam verificando que, se as camadas superiores da encarnação tendiam para o tom mais escuro de um amarelo "cortado" de rosa, a pintura original constantemente se fixava numa cor de carne muito mais tocada de branco. A sabedoria dos artistas colonias ajustara esse tom, sem dúvida alguma, em função do ambiente onde, contra a iluminação unilateral e praticamente unifocal permitida pela porta da capelinha, despenhava-se a penumbra vinda dos te~os de inesperada altura. As carnes claras, quando atlOgidas pelo fluxo luminoso, vibram com intensidad 7, mas também transmitem essa vibração, em progressIvo abafamento, às figuras mais distanciadas que pcr345
manecem na meia-luz. Eis o que funde as peças num mesmo grupo colorístico e, pois, oferece base à composição superior, que se definirá nas linhas e massas das formas esculpidas. Para que melhor se patenteasse a unidade, convinha sublinhá-la com notas secundárias c, sobretudo, evitar que discordâncias cromáticas desmentissem o desígnio superior. A restauração foi descobrindo esses complementos importantes: por sob a grossa pintura de cola e terras quentes, que em pastara, em sucessivas camadas, os cabelos das estátuas, descobriu-se um preto fosco que, em leve película, não desmentia os ritmos lineares das madeixas e barbas, causando ainda necessário contraste com as carnes claras. As poucas exceções decidem-se sinceramente pelos tipos loiros; evitou-se sempre o calor dos castanhos. Mesmo na série das figuras' caricaturais, idêntica sabedoria acabou por revelar-se: os capacetes dos soldados, retirada a recente purpurina prateada, são quase sempre pretos, e as espadas desembainhadas, livres da falsà prata, caem para os cinza neutros, enquanto as armaduras ora se tingem de cinzento, ora se mostram em delicados tons de pastel. Em certos grupos, torna-se evidente a função importante desempenhada por um elemento em aparência desprezível, como, por exemplo, a alvura das camisas dos brutos romanos. Não se creia, porém, que, estabelecida a homogeneidade fundamental e sublinhada por essas notas de suporte, aí pararam os pintores dos Passos de Coo· ganhas. Sua grande ambição, sem dúvida, era de participar, por mais de um modo, da obra final. Ei-los pois a compor, no pleno sentido da palavra, o contexto colorido de cada cena sacra. Mais ainda, arrogam-se o direito de transpor, de Passo a Passo, uma combinação básica que, além de tema cromático, é também tema simbólico e religioso. A exceção do Passo da Ceia, veste-se sempre o Cristo de uma capa cas· tanho-avinhada caindo sobre uma túnica azul, que, em cada cena, serve de ponto de partida ou pelo menos de suporte para contraponto das demais cores dos ·vestidos. Um só exemplo: no Passo do Horto, o mesmo castanho da capa de Cristo, um nada mais escuro, vai colorir a capa de S. Pedro, que contudo combina com uma túnica amarela, a qual, por sua vez, justifica 346
mau resultado, recomeçar em novas bases, e assim continuar até chegar a uma disposição convincente e com-
pleta. Por esse caminho árduo andaram os restauradores e, agora, pode-se dizer que acertaram sempre. Acertaram mesmo nas mais discretas tentativas de pôr apenas um pouco de ordem (a palavra, aqui, tem significação plástica e expressiva) no congestionadíssimo Passo (o penúltimo à esquerda de quem sobe para
o adro) onde figuram duas cenas: a da flagelação e a da coroação de espinhos. Nesse caso especialíssimo - sobre o qual sempre pairará uma dúvida relativa aos motivos da duplicação temática, ainda mais agra-
vada pelo desentrosamento das inscrições à porta das. capelinhas - conseguiu-se o máximo exeqüível na arrumação e já aí se torna patente a necessidade de distinguirem-se as figuras nobres das caricaturais, do que, mais adiante, falaremos. Acertaram. também os restauradores nos arranjos seguros e por tudo convincentes que empreenderam nos demais Passos. Em cada conjunto, sugerida à simples visão despreconce-
bida, confirmada pelo sentimento de equilíbrio da composição, e, afinal, sensível à imediata percepção das ligações psicológicas, tão significativa numa figuração francamente teatralizada, voltou a disposição das peças a representar fator fundamental, e operante, tal como, seguramente, aconteceu de início. Dois casos merecem ser destacados em especial.
Em primeiro lugar, falemos do Passo da Ceia. Era o preferido pela contemplação popular, que aí encontrava o drama, bem conhecido e bem compreendido, numa disposição simples de figuras que, postas lado
a lado, ofereciam a possibilidade da fonoa mais simples de percepção de um todo, que é a simples sucessão das unidades. Por isso mesmo, esse Passo, com que se inicia a subida do jardim, acusava as .-demons-
trações ingênuas do afeto dos humildes, seja pelo grande número de moedas que ali se atiravam, à guisa de esmola votiva, seja mesmo pela bárbara demonstração
de piedade daquele que, há bastante tempo, desfechou um tiro no olho esquerdo da figura de Judas. Também aí, por difícil que pareça num conjunto de tão fácil arranjo, a desordem das peças chegara a tal ponto que só se podia considerá-las uma a uma, como se o grupo 349
não passasse de uma coleção de quinze figuras sem conexão entre si. E a repintura, está claro, não deixara de produzir seus habituais efeitos perniciosos, desfazendo a harmonia cromática e velando as finuras da talha. Feita a limpeza das tintas, a Ceia ressurgiu toda colorida em tons baixos, de pastel. O azul, verde pálido, cinza dão a dominante discreta que se recorta, para maior apoio cromático, em zonas acessórias de amarelos, castanhos e vermelhos. Essa paleta contida era inesperada, sobretudo tendo-se em conta que, em boas razões, se presume ser a encarnação do Ataíde, cujo colorido, na pintura de tetos e painéis. segue outros e mais cálidos rumos. Mas, completando o efeito da perícia técnica dos encarnadores e o seu respeito conceitual pelos elementos volumétricos, a discrição cromática veio completar a revelação dos componentes escultóricos e, por seu intermédio, a afirmação de uma continuidade total que, indo de urna peça a outra, as funde num mesmo conjunto. Por isso mesmo, é de crer que, na Ceia, a côr possibilitou a reposição do arranjo. Hoje, os olhos do espectador não podem deter-se numa única figura sem imediatamente sentirem-se movidos para a estátua seguinte. Nesse trânsito ininterrupto, o Passo inteiro se anima numa movimentação poderosa, típica das grandes composições plásticas e pictóricas. Tudo estava em reencontrar a posição exata de cada personagem à volta da grande mesa, embora só se contasse, para estabelecer tais ubicações, com os elementos inerentes à própria estátua. De início, só se dispunha de uma indicação segura: a imagem de João deveria reclinar a cabeça sobre o ombro de Cristo, como quer a tradição literária e iconográfica, como registra a foto de Ferrez e como exige a própria conformação da peça que, não obstante, muito tempo permaneceu· pendida em inexplicável postura, sobre a mesa. Fora daí, contudo, era preciso muita argúcia para captar insinuações sutis na coloração dos trajes, na possível conexão dos gestos, no restabelecimento da trama psicológica refletida nas fisionomias. Mas os restauradores conseguiram penetrar tais mistérios. No instante atual, o rearranjo poderá parecer óbvio, pois, afinal, é o único ajuste organizado, possível
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e concebível. Mas. quem conhecia de antes o numeroroso grupo e. por exemplo. encontrava na veemente, porém desconcatenada posição das mãos um dos empecilhos à visão global e contínua do todo, haverá de reconhecer. agora, que exatamente os gestos voltaram a constituir um dos nexos mais poderosos a ligar uns aos outros os figurantes da cena. Sobretudo ao lado direito do espectador, essa ondulação de palmas e dedos em lenta sinuosa ascendente desenha um verdadeiro ritmo em terceira dimensão, pois se concretiza nos pontos de intersecção das curvas, que descem dos corpos pelos braços, com a linha ideal que leva do Cristo ao Judas. B ligação física, é continuidade plástica. é expressão psicodramática. Morre no braço erguido do Judas que. descansando a cabeça na mão, ainda se liga, materialmente. ao grupo. mas já se coloca espiritualmente fora dele. E nasce do grave gesto de abandono que a mão esquerda de Cristo desenha enquanto a direita se ergue no gesto eucarístico. que. por sua vez, ultrapassando a curva fechada do braço de João, dá começo ao ritmo de gestos do lado oposto da mesa. Assim renasceu o Passo da Ceia, obra completa, obra altíssima. Mas, se quiséssemos tomar um segundo exemplo da eficiência das reposições grupais, teríamos então a cena do Horto. Apenas cinco figuras: três apóstolos adormecidos, que são Pedro e os dois filhos de Zebedeu, como diz O Evangelho de S. Mateus, Cristo e o Anjo que lhe traz o cálice de amargura. De há muito estava o Anjo, esplêndida peça de que se voltará a falar, suspenso à parede do fundo do Passo e, com isso, a figura de Jesus não encontrava postura "normal". pois ou voltava as costas ao espectador, ou se desligava do mensageiro divino ou, afinal e como acabou por acontecer, cairia numa oblíqua hesitante entre êsses dois focos. Ousaram os restauradores deslocar O Anjo para a parede lateral à esquerda do observador e, com isso, o Cristo pode permanecer à direita. numa linha que, defrontando, em três-quartos, a entrada da capelinha. o põe em direta relação com a figura alada. Imediatamente revelou-se 0 acerto da disposição. pois a figura do Anjo ofereceu à visão do espectador o seu mais rico movimento plástico. enquanto uma inspeçã.o ponnen9rizada reconhece que, na 351
imagem de Cristo, a face que agora escapa à observação frontal é, exatamente, a de talha mais simples e menos cuidada. Também os apóstolos adormecidos, que sempre pareceram inverossímeis em suas anteriores posições, encontraram, no ângulo formado pela parede do fundo com a lateral esquerda, as linhas de arranjo que, revelando sua face mais bela, os transforma numa sóbria e rica tarja inferior desse grupo em que, realmente, se impunha rasgar um grande espaço vazio para traduzir plasticamente a atmosfera de vibração mística sugerida pela narrativa evangélica. Aqui, evidentemente, não se cuidará de buscar entre as imagens uma ligação "material", como aquela enunciada pelas mãos' da Ceia. As correspondências se estabelecem por via de amplas passagens subjetivas, dependendo diretamente das tensões dramáticas. Não que lhes falte o apoio seguro duma boa composição em que, num espaço amplo, se implantam três massas bem definidas: o Cristo, à direita e dominando a faixa inferior do conjunto, entra em direto contraponto com o segundo volume vertical o do Anjo - , de peso equivalente e posto na metade superior da cena, enquanto, encaminhando a vista de uma a outra figura, sem contudo tocá-Ias, há a massa horizontal dos Apóstolos adormecidos, cujos corpos, obedecendo ao ângulo esquerdo do fundo do patamar, se flexionam em tangível enunciado da dimensão perspectívica. A dominância dos grandes vazios intermediários não chega, pois, a perturbar a homogeneidade óptica, mas, como acontece em todas as composições rarefeitas pelas longas pausas, esta correria o risco de fragmentar-se na visão saltitante que, atendendo aos três focos de atenção, passasse de um a outro, sem rumo ou sucessão estabelecida. Se tal, de fato, não acontece, é porque um nexo psicocromático poderosíssimo coloca em forçosa relação o Cristo e o Anjo, tornando-se indiferente que os olhos caiam primeiro nesta ou naquela das figuras, pois, necessariamente, mover-se-ão, através do espaço vazio, para a outra c, depois dela, dirigir-se-ão para os Apóstolos, a fim de retornar à primeira imagem contemplada. A recuperação da pintura original e a reposição das composições transfonnou substancialmente a feição 353
plástica dos Passos de Congonhas. Deixaram de ser punhados de figuras que, por atributos circunstanciais ou presunções habituais, se reconheciam como de tal ou qual personagem bíblica, para ressurgirem como grupos escultóricos que são, ao mesmo tempo, quadros pictóricos, num perfeito entrosamento da arte das cores com a arte dos volumes, na síntese almejada pelo artista que, no passado, recorria a ambas, simultaneamente. Nesses grupos recompostos, nesses quadros recuperados, todas as figuras, todos os traços cromáticos ou plásticos têm razão de ser e uma só razão de ser. Certas peças de fisionomia mais marcada por uma expressão momentânea não são, como julgávamos ODtem, tentativas mais ou menos realizadas de máscaras individuadoras, mas protótipos expressivos e compcr nentes de uma unidade dramática. Certas figuras secundárias, provavelmente lavradas pelos "oficiais" e não pelo mestre, sustentam-se mutuamente e completam-se em grupos secundários importantes. Algumas delas emergem mesmo de uma insignificância aparente para condensar a expressão do sentimento dominante. E, afinal, as figuras caricaturais que, por tanto tempo, perturbaram o bom gosto do observador, sobretudo do observador justamente crente nas possibilidades excepcionais de Antônio Francisco Lisboa, voltaram a seus devidos lugares e à sua necessária função. Salvo no Passo de dupla figuração, mas ainda aí não escapando totalmente à regra, recuaram para o fundo da cena, perdendo a antiga agressividade grotesca (que, aliás, se devia na mor parte às pinturas posteriores) e, dentro de velhas regras da representação sacra, oferecem medido contraste valorizador ao patético dos grupos secundários naturalísticos e à finura invulgar das figuras nobres que, sempre, são dominadas pela beleza das imagens de Cristo. A restauração dos Passos devolveu-nos uma das mais importantes parcelas do barroco mineiro, ao mesmo tempo contribuindo para atestar insofismavelmente a perícia invulgar e a segurança de conceitos do artista colonial, o que é reafirmar a superioridade sem contraste da criação do Aleijadinho. Restabelecida a pintura original das estátuas, reorganizadas as peças
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em conjuntos compostos, tarDou-se irrecusável a evidência de que só uma plêiade de artistas de primeira grandeza, altamente inspirados, altamente adestrados e, sobretudo, conscientes da função estética que desempenhavam, conseguiria realizar tal obra comum. Impõe-se repelir, mais uma vez, a visão romântica com que se desejou enxergar, sobretudo no Aleijadihho. mas·· também nos mais artistas de Minas, o borhulhar do gênio no desgoverno da ignorância completa ou quase. Até os fatores étnicos, que a seu tempo Mário de Andrade definira na exata função de um estado de espírito da marginalidade angustiada, para evitar o aviltamento ou a glorificação da cor da pele, em si mesma indiferente - até a raça, dizíamos, desempenhou papel importante nessa romantização do barroco mineiro. A cor, a doença, a condição, mas acima de tudo a ignorância, que esta parecia O grifo mais adequado para sublinhar a palavra gênio. Eis que Congonhas, tanto na igreja quanto nas capelinhas do jardim, vem agora a impor-se como uma total refutação da versão sentimental e inexata. Sobretudo nos Passos. onde a sabedoria artística não é apenas a de um artista isolado a realizar obra individual. senão uma funda e exata noção estética a bitolar a criação impetuosa do gênio inconteste que ideou o todo. E também presente e operante, em níveis progressivamente descendentes, em todos os de sua numerosa oficina que, mesmo no caso dos incapazes de penetrá-las racionalmente, respeitavam e cumpriam as regras por sentirem ao menos sua necessidade na realização da obra. Durante anos, acreditou-se que as peças de Congonhas eram, pelos menos n'o que tange às figuras caricaturais, trabalho de mão escrava, desinformada e desconduzida. De fato, lá trabalhou muita mão escrava, ou melhor, mão africana, de sangue puro ou jã mestiçado, ainda cativa ou já forra. O que, contudo, importa no caso, é reconhecer que mesmo essa mão humilde era regrada, dirigida, mantida num plano de arte culta, dominada por um conceito comum e por uma vontade condutora. Cremos ter colhido a comprovação palpável dessa afinnativa em muitos casos, mas principalmente no confronto pelo qual se torna evidente que uma mesma visão da anatomia da face orienta a caricatura de soldado e a beleza sublime da 355
figura de Cristo, apenas variando a escala relacional dos elementos descritivos que se exageram grotescamente na primeira cabeça e, na segunda, se equilibram e se contêm. em perfeita harmonia. Atribua-se. pois. a figura do guerreiro ao obscuro auxiliar, presumivelmente ignorante, porque sua lavra é mais simples e mais fácil, porém reconheça-se que ele trabalhou sob as regras e, sobretudo, integrado na visão do mestre. Aquela mesma visão que já não "existia, por exemplo, para conduzir as mãos do oficial qualificado que mais tarde se incumbiu de terminar a portada do Carmo de Ouro Prêto. A firmeza culta de Antônio Francisco Lisboa já era reconhecida, nos últimos tempos, pelo menos no caso de obras suas que, aliás, sem meihor base. se consideraram como trabalhos individuais. Faltava. contudo. uma comprovação das dimensões e da altura do conjunto dos Passos de Congonhas, onde o caráter de realização coletiva se torna irrecusável, para liquidar de vez com tais dúvidas e hesitações. Quanto ao liame, dessa mesma ordem, que ali prende a obra dos escultores à dos encarnadores. já falamos bastante e aqui apenas relembramos sua existência, porque de futuro virá, por certo. a fornecer elementos para uma reconsideração dos elementos culturais de que dispunham Manoel da Costa Ataíde e, também, seu discípulo Francisco Xavier Carneiro. Novamente impor-se-ão reinterpretações rigorosas dêsses casos, que passem para um segundo plano o ingenuo encanto de descobrir os anjinhos mestiços que o Ataíde soltou nos tetos das igrejas, e permitam compreender como neles há menos de recalque racial do que de aspiração erudita de pintar como modelo vivo. Porque só a segurança culta, só a inspiração casada à erudição poderia levar à dosagem finne e à definição ambiciosa que o Ataíde e Xavier Carneiro impuseram à pintura nos Passos de Congonhas. Veja-se, por exemplo, o aligeiramento da forma, o movimento espiralado contínuo, a animação da imagem comunicados ao -Cristo carregando a Cruz. graças ao simplicíssimo recurso de colorir diversamente a parte interna da túnica, que aparece por trás da perna dobrada ao esfôrço da marcha, dessa forma conseguindo a conexão duma porção complementar, clara e curva, com a grande volta do
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manto que, surgindo à altura do joelho, circunda o frontal do lorso para ressurgir atrás numa imensa faixa que envolve a figura e a sobrepassa pouco abaixo dos quadris. Isso tudo dei.xará" de agitar-se e viver, apenas porque as repinturas, perseguindo não se sabe bem que verismo, coloriram- o avesso do manto com tom igual ao do direito e conceberam a capa como forrada de cor diferente da que trazia o pano de fora. Antes da restauração, a composição aparecia dominada internamente por um grande S. alçando-se do pé direito à cintura e daí ao 'ombro, para descer pelo braço direito, sem alcançar a forma da cabeça. Agora, como no cOlueço, a composição se enuncia num grande Q caligráfico que emoldura o corpo e acentua o foco fisionômico que a interrompe. Como continuar falando de genialidade ignorante? Engenho e arte, diziam os antigos. E tinham razão. Engenho e arte são as grandes coordenadas do fluxo de criação que deu a Minas uma fase artística própria, autônoma e autêntica, sem que nesses termos se inclua a necessidade de fazer-se milagrosamente isolada, ignorante de suas raízes culturais e de suas fontes artísticas. O inesperado prolongamento do barroquismo, que conhecemos durante todo o século dezoito e que toca mesmo a soleira do dezenove, logo será aceito como um fenômeno artístico inédito e importante, embora só agora comece a interessar aos historiadores e críticos lá de fora. Mas, quando se fizer, afinal, a tomada de consciência dessa manifestação inesperada e única, importa que estejamos capacitados a anular os desvios interpretativos a que, normalmente, levarão os parti-pris, os esquematismos, a categorizações rígidas atualmente sobejando na crítica e na história da arte. Importa. pois, que saibamos apresentar Antônio Francisco Lisboa, como ele realmente foi - acima da lenda sentimental que, emprestando um tom patético à sua criação, está longe de explicá-la. Mulato, aleijado, doente - sem dúvida. Genial - também. Mas, acima da exaltação do sofrimento atormentando e instigando à criação o gênio de nosso maior artista, torna-se imprescindível apontar toda a sua sabedoria, tal como conseguiu acumular no interior do Brasil colonial, o seu constante exercício dos direitos da razão no domínio das infinitas possi- .
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bilidades de que dispunha, a sua clara noção do próprio poder criador e do que, ao criar, desejou mantcr como objetivo superior.
importa. enfim, apresen-
tar Antônio Francisco Lisboa como se revela em suas obras superiores. Na arquitetura da S. Francisco de
Ouro Preto. Na pedra dos púlpitos da mesma São Francisco e dos profetas de Congonhas. Na madeira do altar da fazenda Jaguara e dos dois Santos de Sabará. Nas portadas de Ouro Preto. E, agora, nos Passos de Congonhas. Porque esses Passos, onde até há pouco se vislumbravam uns raros sinais da arte do Aleijadinho em grupos desfigurados, cuja aparente inferioridade se tentava desculpar pelo secundário da destinação ou da fatura, ressurgiram para a arte do Brasil: como obras complexas, onde a chama criadora e a vontade or-
ganizadora do escultor se impuseram tão poderosamente que se torna difícil, mesmo em figuras claramente reservadas à execução dos oficiais e artífices menores, afirmar que o mestre não as reviu e retocou. Antes, das imagens de Cristo, exaltava-se a da cena da flagelação. Hoje, ela ainda está mais bela, porém tornou-se temerário colocá-la acima do Jesus que carrega a Cruz, dorido mas não vencido, ou do Senhor escarnecido que responde com divina arrogância ao remoque da cana-verde, ou ainda ao Anfitrião da Ceia, cuja fisionomia
transfigurada entreabre os lábios e esboça um gesto menos para proferir as conhecidas palavras do drama, do
que para significar que é o próprio Verbo. Por vezes, a cena inteira, embora o saibamos impossível, parece ter nascido diretamente das mãos de Antônio Francisco, como acontece no Passos do Horto. Nessa, que é o mais original e o mais vigoroso dos conjuntos de Congonhas, cada detalhe sobe à altura do todo e, até quando a veleidade da análise nos leva a suspeitar de uma leve discrepância estilística - como sucede com a mão do terceiro apóstolo adormecido - , é para lembrar-
-nos algo do próprio Aleijadinho, pois grande é a proximidade entre esse gesto entalhado e a garra de pedra de certos profetas. Como o Cristo da Cruz às costas, também O Jesus do Horto recusa-se à relativa indiferença dos críticos para vir ocupar um posto altíssimo entre as figuras divinas dos Passos. E o Anjo, que chamava atenção apenas pela ousadia de sua postura 359
alada, renasce para ocupar seu verdadeiro lugar na obra do Aleijadinho, cujas figuras angélicas, sempre tão belas, pareciam culminar no arcanjo da capela-mor de Ouro Preto, até que a primazia fosse reclamada pela grande forma alada de Congonhas. Com o Anjo, pois, encerraremos nossa narrativa, que concluirá lembrando haver muitas maneiras de descrever uma obra de arte, mas uma só de senti-la: ir ao seu encontro.
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ARQUITETURA E ARTES PLÁSTICAS
Chegando com o colonizador. a arte portuguesa encontrou no Brasil um território aberto à sua exportação. As culturas pré-cabralinas, tanto as já então extintas como fosse a de Marajó, quanto as que conhe~ ceciam mais demorado processo de desaparição, come a Tapajó -- nisso não deferindo das que ainda sobrevi'vem no desgaste do insulamento fatal - eram incapazes de oferecer contraste à criação européia, não 'só por se encontrarem ao nível do neolítico, mas ainda por lhes faltar oportunidade de mais vigorosa afirmação. por choque ou na coexistência, em face do invasor. Há 361
indicações claras do aproveitamento de certas técnicas suas pelos portugueses, porém tais processos pouco di~ ferem da simples apropriação pelo branco da experiência condensada pelo indígena. Sobretudo na criação artística, torna-se evidente o caráter suplementar dessa contribuição que mais valeu à reafirmação ou à readaptação dos padrões europeus, quase nunca representando uma verdadeira sObrevivência da cultura nativa. Posto assim, em campo aberto e obrigado, na existência quotidiana, a uma rude condição que bastante se assemelhava à do conquistador num acampamento de fortuna, deveu o português inicialmente enfrentar o novo continente como povoador, denominação que a si próprio atribui com muito boas razões. Sua arte só encontraria, pois, oportunidade de realização, onde a solicitava uma necessidade instante, pois em tal situa~ ção não se admitia o supérfluo. Em tal conjuntura deverá, naturalmente, a arquitetura ser convocada em primeiro lugar e para atender à carência de abrigo. Na medida da radicação no chão conquistado, a essa função acrescentará a de padrão de domínio sobre o que, pouco havia, era ainda terra deserta. Vários, contudo, eram os sentidos do domínio, cujas peculiaridades se acentuavam e enriqueciam com passar o tempo e multiplicarem-se os homens. Não tarda, em conseqüência, o aparecimento de traços característicos a distinguir uma arquitetura civil da oficial, de ambas se destacando, pela especificidade da função porém ainda mais pela relativa fartura de meios, a arquitetura religiosa. Assim, as vilas do litoral, como logo repetiriam as do interior, exprimiriam suas aspirações nas três linguagens da construção, levantando casas de moradia, a elas contrapondo as casas de câmara e cadeiá, enquanto o poder religioso ganhava suas capelas. igrejas, conventos e colégios. Cabe aludir - sobretudo porque não observamos rigores cronológicos neste breve apanhado - à feição especial, porém não desligada desses padrões mais ou menos urbanos, que adotará a construção rural, solicitada a constituir o abrigo e, na mesma escala de necessidade, a exprimir o domínio efetivo e incontrastável desses senhores sem castelo, os proprietários da terra. A casa-grande, atendendo a toda a nu~erosíssima família e aos hóspedes; a casa-da-má362
quina, a casa-de-purgar, a casa-de-cozimento, os armazéns, o engenho, as senzalas, a suprirem as imposições do trabalho; a capela, a consagrar uma função religiosa inscrita no âmbito interior do grupo; enfim, todas as inúmeras peças que um modo de vida peculiar e autêntico pedia à invenção dos construtores, valiam como novos estímulos à mesma arte que, de início parecia destinada tão só à satisfação singela e imediata das necessidades básicas da ex.istência. Rcrnemorando tão conhecidos fatos, desejamos apenas lembrar as duas coordenadas da evolução da arte portuguesa, ou melhor, do transplante da arte portuguesa no Brasil. Urna é a que obriga, pelas condições iniciais do povoamento, a um despojado funcionalismo capaz, por si só, de fazer tornarem às essências fundamentais expressões artísticas que, na terra de origem, se conheciam maduras e, pois, complexas em suas formas finais. Outra pede à mesma arquitetura, assim despojada, que atenda a funções variadas c, também, a solicitações inéditas. Para o que, sem dúvida, precisará adaptar-se o próprio grupo humano a fim de, num segundo passo, estabilizarem-se, desenvolverem-se e, sendo o caso, inovarem-se os recursos técnicos e os valores estéticos, trazidos de fora ou nascidos aqui. Tem-se acentuado, quase à ênfase, a influência das técnicas construtivas na estabilização da arquitetura brasileira, tanto na sua fase de adaptação imediata às novas condições, quanto na sua posterior progressão em rumos próprios e verdadeiramente originais. As mais primitivas, do início do povamento, parecem constituir pontos de confluência das culturas em contato, como sucede na adjunção de processos medievais lusitanos e usanças indígenas evidenciada pelo recurso à palha e às palmas de coqueiro para realizar a inteira construção ou para cobrir a obra de pau-a-pique. Também este resume experiências paralelas, senão do índio, como querem alguns, seguramente dos negros e dos portugueses. E O mesmo sincretismo de processo caracterizaria ainda a taipa (não apenas a taipa de mão, atirada de sopapo na trama do pau-a-pique, mas também a taipa de pilão, comprimida em caixões de tábua) que, sem dúvida, é ponto de partida de técnicas mais avançadas, como o adobe (tal como o tijolo cozido, um desenvolvimento racionalizado da construção de 363
barro), ou a base inspiradora de processos mistos, à maneira da pedra-c-cal e da alvenaria, que, embora de diversa origem e desenvolvimento, no Brasil deveriam colhêr os inestimáveis ensinamentos das experiências iniciais, com as quais, de comum. não temem mesclar-se num mesmo edifício, onde a cantaria propriamente dita apenas viria a constituir. em regra, um complemento nobre. O curso forçoso determinado pelas condições materiais, que só lentamente se alargaram, marcou indelevelmente a fisionomia da construção, mas aí encontramos um só dos fatores do fenômeno histórico em que também agiu o elemento humano diretamente responsável pela expressão dos anseios estéticos por intermédio das formas que a técnica possibilitava. E também o fator humano reagiria ao aventuroso trânsito traçado pelos azares e vicissitudes da conquista da terra. Quando surgiram, em 1573, os Regimentos dos Oficiais Mecânicos da cidade de Lisboa, já se estabelecera uma diferença fundamental entre o padrão corporativo do resto da Europa e a composição das corporações portuguesas, pois nestas não se definia o mestre pela propriedade da oficina. No Brasil, onde a Câmara Municipal cumpriria função sócio-política muito diversa da que desempenhava na metrópole, outras e mais fundas diversificações surgiram, quase todas propiciando liberalidades e tolerâncias que, em verdade, se opunham à própria estrutura do sistema. Nada restou da assem bléia corporativa, da classe dos vinte e quatro, da própria alçada do juiz de ofícios que aqui passou a funcionar como mero fiscal da vereança. De maior alcance foi o enfraquecimento do instituto da licença que, após sucessivos abrandamentos, ainda conheceu a subversão trazida pelas licenças provisórias sob fiança. Por vezes a organização de confrarias religiosas pelos elementos de determinado ofício possibilitou o agrupamento profissional que a legislação não conseguia efetivamente realizar. De outra parte, certas ordens, sobretudo os jesuítas e os beneditinos, aplicavam-se em formar e manter seus próprios artesãos. Nesse clima de flutuações e, ao mesmo tempo, de ambicionados mas frustos rigores regulamentares, surgem e trabalham os profissionais das numerosas categorias exigidas pela arquitetura, sobretudo pela arquitetura religiosa: oleiros, ladrilheiros e telheiros; pedreiros,
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canteiros e rebocadores~ carpinteiros, carapinas e entalhadores (estes últimos. sem clara definição da categoria, misturando-se aos imaginários e escultores); fer,reiros, serralheiros e latoeiros. Não há, contudo, distinções rigorosas entre os ofícios quando postos em atividade. Se há, ao menos em esboço, uma hierarquia na execução dos projetos, cuja responsabilidade é do mestre de obra, os oficiais podem passar de uma a outra especialidade, e a própria função do arquiteto, algumas vezes chamado mestre de risco, é exercida por pessoas das mais variadas condições, sequer se distinguindo a engenharia militar da construção religiosa ou civil. Em tais grupos de trabalho, incluíam-se os pintores e escultores, úteis sobretudo na decoração interior das igrejas. Do ponto de vista sociológico, mais importante do que essa fluidez na especialização, será, sem dúvida, a presença numerosíssima e acomodada por via de certos estratagemas formais (como seja o pagamento por jornais ou tarefas, à maneira do obreiro comum) de mestiços artesãos. A vocação e a destreza artística passam a constituir uma inspirada possibilidade de movimento ascensional na rígida estrutura colonial escravista. Por essa via, forma-se um novo grupo, que não é cativo nem é senhor, cuja cor de tez é ignorada e cuja presença é indispensável. São aqueles prósperos e proficientes artesãos que impressionaram a J uao Francisco de Aguirre e, mais tarde, a Spix e Martius, cujos depoimentos Sérgio Buarque de Holanda relacionou. São aqueles mulatos livres e inventivos, nos quais Mário de Andrade vislumbrou a primeira raiz da consciência nacional a nascer. Os mesmos fatores, trabalhando em condições básicas que são comuns a todo o território, estabeleceram, pois, uma estrutura fundamental para toda a criação artística do período colonial. De outra parte, torna-se impossível ignorar as diversificações locais, evidenciando-se num exame mais pormenorizado das realizações deste ou daquele ponto e explicando-se em função 'das peculiaridades da' própria colonização que conheceu, de ponto para ponto, diferenças de ritmo e de intenções. Considerando-se, porém, as linhas genéricas e,
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também, o trânsito relativamente farto de peças e artistas havido entre as várias regiões da colônia, melhor será fugir ao agrupamento da produção artística por distintas regiões, continuando a encará-Ia como fenômeno uno embora variável e, pois, atendendo apenas a focos de concentração que se alternaram no tempo e no espaço. Preliminarmente, acentuamos a especificidade do caso do extremo norte, não, porém, por apresentar uma menor riqueza artística, como querem alguns, pois o que o distingue do resto do Brasil antes será resultado dos processos administrativos mais ou menos artificiosos que deram governo à parte ao Estado do Maranhão e Grão-Pará. Depois, considerando a primeira fase da cultura litorânea, quando se aglutinam os centros urbanos de alguma importância, distinguiríamos a coexistência de dois grandes focos de gravitação: Pernambuco (mais precisamente: o complexo Olinda-Recife) que, alimentado pela fartura do ciclo do açúcar, se complementa com Alagoas, Paraíba e Rio Grande; a Ba,hia, também rica e representando a capital da administração c da Igreja, magnetiza toda a vida social e artística contida pelo grande arco de Sâo Francisco. São as primeiras sedes centrais da criação na colônia, e dividem pacificamente encargos e esplendores da função até que o Rio de Janeiro l tornando-se em 1763 a sede do vice-reinado, possa expandir e multiplicar a sua própria arte que, embora em escala mais modesta, se desenvolvia desde os primeiros tempos, quando sua esfera de influência ia do Espírito Santo a São Paulo. Atentando apenas para a data dos monumentos, deveríamos considerar esses três núcleos litorâneos coexistindo e criando durante todo o período colonial; impõe-se, contudo, sublinhar que, do ponto de vista do apogeu de realizações, cabe distinguir um primeiro momento na dupla hegemonia pernambucano-baiana e um segundo, na preeminência carioca. Entrementes, por dois séculos entregue a modestíssimas realizações, cumpria São Paulo a tarefa de penetrar o interior, principalmente no centro-sul, para lá carreando a discreta arte de que dispunha - quando a exploração interna fez jorrar a riqueza imensa do ciclo do ouro e do diamante, daquela parca mas constante sementeira artística nasceria, em Minas Gerais, a mais forte, mais far367
ta e mais bela expressão de uma arte verdadeiramente brasileira. Esse esboço de distribuição no espaço e no tempo implkitamente indica que, nas manifestações do litoral, a arte do Brasil tendia sempre a tornar-se um reflexo da criação portuguesa. De maneira geral, no primeiro século de nossa existência, predominaram obras em materiais provisórios e de acentuada singeleza funcional e, se no fim desse período, as ordens religiosas, notadamente a Companhia de Jesus, decidiram-se a construções mais estáveis, a invasão holandesa, atingindo os dois grandes focos litorâneos, impôs uma pausa a tais empreendimentos. Grosso modo, podemos supor que até então a construção religiosa colonial conheceu, mesclando-se mas também superando a fase da palha e pau-a-piqu~, os estágios imediatamente seguintes, exemplificados em Olinda, apesar da proximidade de datas, pela igreja do Colégio Jesuíta e pela igreja, posteriormente bastante modificada, do Convento dos Carmelitas. No sul a amostra preservada em SãQ Miguel (com data bem posterior) indica o que continuava a ser a limpa e econômica linguagem adequada às regiões de menor prosperidade, nas quais regeu não só a edificação de igrejas, mas também a de fazendas e engenhos, tais como, com naturais inflexões de gosto e meio, permaneceriam por mais dois séculos, pelo mcnos. Onde, porém, aumentassem as disponibilidadcs, logo se impunha a tendencia à realização, completa quanto possível, do modelo português, obscrvação válida também para a decoração interna entregue aos escultore~ e pintores, tal como á podemos retraçar desde o ponto inicial identificado p.or Lúcio Costa nos retábulos de pedra daquela mesma igreja jesuítica de Olinda. Pela mesma razão, vem de fora o maior número das esculturas e pinturas, embora alguns remanescentes da ordem das três famosas imagens de barro cozido que João Gonçalo Fernandes modelou, em 1560, para as matrizes de Itarihaém e São Vicente - ind.iquem seguramente o início de uma produção local. O momento de verdadeira expansão da arquitetura litorânea brasileira coincide com aquele em que, segundo Reynaldo dos Santos, avulta em Portugal um barroco iniciado nos fins do século anterior, quando "segue uma linha evolutiva de caráter nacional onde de vez em 368
quando se enxerta e surge, como uma lufada renovadora, a influência de um mestre estrangeiro, quase sempre italiano, que introduz novos conceitos arquitetõnicos e renova o estilo até que no período seguinte se reata a corrente nacional dentro de suas tradições e gosto". Assim, ao declinar a influência de Filipe Tércio, ressurge a arquitetura lusitana, com fisionomia própria, em que pese à assimilação do recente aprendizado; marca-se o padrão que o Brasil seguiria. "Mas o que dá caráter às igrejas seiscentistas em Portugal, mais do que sua orgânica austera que se repete com monotonia, é a riqueza decorativa dos ai· tares e capelas, revestidos de talha policromada e dourada, forrando por vezes os muros de alto a baixo, emoldurando as portas e janelas, cobrindo as abóbadas e tetos. Esse revestimento de ouro estender-se-á às igrejas no Brasil. ( ... ) Tais são as primeiras bases arquitetura e talha decorativa seiscentista - que explicam a integração do primeiro perfodo da arte do Brasil nas suas ligações com a arte da metrópole". Nesse período (a rigor, o segundo) da integração da arte portuguesa no Brasil, e tal como sucedera na fase anterior, distinguem-se os je~uítas no deixar patente como, em prejuízo do modelo italiano, prefere-se no Brasil o padrão português. Tal processo inicia-se em Lisboa, onde a Companhia de Jesus interrompe a construção da São Roque de Lisboa, a pretexto de adaptá-la à planta da Gesu, mas aí acaba firmando um tipo específico e diferenciado de igreja, como também acontece à Santo Antão e à São Vicente, enquanto o arquiteto Afonso Alvares, qpe servia à ordem, inspirava-se principalmente no goticismo da São Francisco de E.vora, como ensina Mário Chicó. No Brasil, é o irmão Francisco Dias, que trabalhara na São Roque lisboeta, quem traçará a igreja do Colégio de São Salvador e a despojada redução do exemplo português, que é a igreja de Olinda. Entretanto, fazia-se patente o reflexo da mesmíssima São Roque na igreja (hoje desaparecida) do Colégio do Rio de Janeiro. Isso, para o século XVI; seguiu-se uma pausa correspondente à invasão holandesa e às suas seqüelas. Retomando suas edificações mais ou menos em 1550, voltam os jesuítas. até 1759, ano de expulsão, ao cristalizado padrão da
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São Roque, embora não temendo variantes enriquece· doras. Assim, a igreja do Colégio (hoje Catedral) d, Bahia (c. 1657-1872), com sua severa modenatura e as grandes volutas de arremate do ático, serviria de modelo à congênere lusitana de Santarém, como demonstra Paulo F. Santos. Sobretudo no conceito da planta - marcada por um amplo transepto e por duas linhas de quatro capelas ladeando a nave que vai defrontar um altar-mor com capelas colaterais de ines. peradas proporções .:- é que se revela, nesse edifício, um novo tipo arquitetônico a propor-se. A igreja de Belém do Pará, menos fina e mais barroca, o seguiria. Quanto à talha, a catedral baiana parece opor-se, pela inspiração construtiva e pelo reticulado severo do desenho, às fantasias do barroquismo fitomórfico que, contudo, se faz presente. Fora dos grandes centros ricos, os jesuítas sabiam construir com economia e simplicidade (à maneira da já citada igreja de São Miguel), mostrando-se obedientes às condições locais, como no Embu (São Paulo), ou mesmo resistindo a possíveis, porém supérfluas ostentações, como em Reritiba (Espírito Santo) . Terminava-se a construção jesuítica da Bahia quando o frade-arquiteto Bernardo de São Bento Correia de Souza refez os primitivos planos da igreja do Mosteiro beneditino do Rio de Janeiro, conjunto que, dada a destruição ou desfiguramento das demais construções da ordem, hoje figura como amostra única. Os novos planos deram à igreja as duas naves complementares, que tanto a individualizam, porém conservaram, pela sobreposição do coro à entrada, a nota exterior da gali/é. característica da ordem. A talha decorativa, o conjunto monástico, toda a riqueza de mobiliário e alfaias desse conjunto, cuja construção se prolongaria até o século XVIII, não podem, contudo, fazer-nos csquecer das indicações, fornecidas pelos eruditos levantamentos de O. Clemente da Sílva Nigra, acerca de outras edificações beneditinas. Assim, a tão desfigurada São Bento da Bahia, que inicialmente se traçou como a igreja brasileira mais próxim~ da Gesu. Por isso, o conjunto conventual das Carmelitas Descalças, riscado para a mesma cidade provavelmente pelo mesmo arquiteto, constituiu-se em objeto de estudos que assinalam peculiares características - a sineira plan370
tada sobre o muro lateral da nave e. conseqüentemente, liberta de interferências, a fachada tão próxima primeiro do desenho (Vignola) da Gesu. Traços de tal nitidez levam-nos à convicção de que, conhecendo embora experiências inovadoras em Portugal, a Ordem de São Bento, ao cpntrário dos jesuítas, preferia a direita referência aos exemplos romanos. Caberia, contudo, aos franciscanos romper essa hesitação entre duas .fontes de modelos, para traduzirem pela arquitetura, em' riqueza e requinte, a prosperidade das regiões sob direta influência de Pernambuco e da Bahia. Dos fins do século XVI à metade do XVIf, as edificações da Ordem, cuja primeira realização foi a N . S. das Neves de Olinda, expandem-se notavelmente no interior do arco descrito pelo São Francisco. Mas foi a partir de 1650, mais ou menos, que se definiu plenamente o esplendor dos conventos franciscanos, graças a uma série de redecorações, reconstruções e novas construções, como as conhecemos nas amostras preservadas. Há, evidentemente, um padrão fundamental orientando a generalidade dessas construções, cuja massa sempre encontra seu núcleo central num claustro que, cercado de três lados pelos dispositivos propriamente convcntuais, conclui-se, na quarta face, pela igreja. Esta, desde o primeiro século, conheceria o complemento, perpendicular à nave, da capela da Ordem Terceira. Atentos a essa estrutura básica, que refletia tão fielmente uma estrutura de vida religiosa ao mesmo tempo recolhida na clausura e posta em comunicação litúrgica com os fiéis, os arquitetos da ordem permitiam-se grande liberdade interpretativa, tanto na construção, Quanto na decoração. Assim, se a tradição pedia um espaço vestibular à igreja, tanto se fez em galilé, quanto em alpendre. Como também, se foram requeridas colunas toscanas para o claustro, uma infinidade de desenhos elementares e de integrações conjuntivas pode ser encontrada. Se tal largueza de expressões não redundou efetivamente em dispersão estética, nem muito menos em qualquer ecletismo, de tal sorte se comprova a força criadora autêntica que Germain Bazin acreditou discernir no fato de ter essa ordem sempre adestrado, cultivado e desenvolvido seus p'r~prios artesãos. Nesse sentido. deixando de lado o exemplo tão justamente .celebrado da Bahia. onde COIl371
Antônio Francisco Lisboa. Lavabo da Igreja Matriz de N. S. do Canuo. Ouro Preto.
tudo se faz maIS notória uma direta influência européia, o estudioso deve procurar compreender que a linha evolutiva da escola franciscana deixou o ponto mais fino de sua decoração na Capela Dourada do Recife, como na arquitetura atingiu o auge no convento de. João Pessoa. Avaliando-se devidamente a coerente liberdade com que arquitetos e decoradores puderam realizar essas muitas igrejas e conventos, ao mesmo tempo que condensavam suas experiências e transmitiam-nas aos aprendizes, não será difícil compreender como nas afirmações externas e riquezas interiores das edificações franciscanas, a igreja barroca do Brasil pôde encontrar caminho franco para sua mais autêntica realização até o século XVIII. Manda a sinceridade dizer que a escultura e a pintura não alcançaram as mesmas alturas a que nesta fase se alçou a arquitetura, salvo quando esta solicitou-as à função decorativa. Dizem-no as amostras até nós chegadas, devendo-se também reconhecer que tal acervo permanece sob as reservas suscitadas por uma pesquisa de identificação desprovida da documentação imprescindível à positivação de data e proveniência da maior parte das peças. Mais felizes não são as tentativas de confronto estilístico, dada a prolongada resistência dos m<:>d:elos iniciais e a evidente dispersão das peças por zonas afastadas do ponto de origem. Pode-se tão só sugerir uma maior importação de pinturas, inclusive daquelas emolduradas pela talha nos grandes conjuntos decorativos, enquanto a escultura, sem dúvida estimulada pela atividade .dos entalhadores, aqui se produzia com mais fartura, porém sempre tendendo à reiteração de padrões e modelos. Tanto se depreende, por exemplo, das indicações disponíveis acerca dos entalhadores e imaginários Simão da Cunha e Frei Domingos da Conceição da Silva, e dos pintores Frei Ricardo do Pilar e José Oliveira Rosa, que trabalharam no mosteiro beneditino do Rio. O caso de Frei Agostinho da Piedade e de seu discípulo, Frei Agostinho de Jesus, que produziram na Bahia, dá a medida dos mais cômodos, porém assaz disciplinados caminhos que trilhavam os criadores de peças "livres". Há, porém, muito que descobrir e estudar, antes de transferir essas in':' ferências e aproximações para o plano das afirmações históricas. 373
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1763 data da transferência do vice-reinado para o Rio, si~boliza transformações sociais e econômi~as que se derivam da expansão do povoamento e da ativa exploração dos recursos minerais. O deslocamento dos homens do litoral sul para as terras das Minas Gerais soma-se à intensificação das levas chegadas de Portugal na primeira metade do século XVIII; nos cinqüenta anos seguintes, darão base ao ciclo produtivo que passaria para Minas, como foco atuante, e para o Rio de Janeiro, como centro de controle administrativo, o domínio e prestígio que pouco antes ainda estavam na Bahia. Esta, agora, desempenharia um papel que, ainda muito brilhante, já não era de hegemonia. Continuava próspera; porém, tendo deslocada parte de sua vitalidade econômica para a função de subsidiária de uma produção alheia a seu território, não disporá mais da íntima coerência da vida social que, anteriormente, alicerçara suas expressões artísticas, muito embora não se possa acusá-las de declínio. O mesmo não se dá em Pernambuco que, graças ao poder constante do açúcar, se manteria no mesmo nível anterior, embora menos favorecido pelas atenções metropolitanas. Acrescente-se que, na estrutura dos quadros sociais, há notáveis novidades: no que tange à arquitetura religiosa, assinala-se o avanço da atividade das confrarias passando à frente das ordens, que se vêem proibidas em território mineiro e claramente superadas no processo de urbanização do Nordeste; quanto à arquitetura civil (até hoje desconhecendo um bom estudo de conjunto), anote-se J. linha de relativa prosperidade no quadrante norte, enquanto ao sul ao minerador custava libertar-se efetivamente da austeridade trazida de São Paulo; na arquitetura rural, merece nota a fidelidade aos padrões que, desenvolvidos na primitiva coerência entre meios concisos e fins essenciais, não chegam a alterar-se quando esses meios conhecem maiores larguezas. Ao Rio fica reservada a função de uma capital c, pois, a possibilidade de construir-se como uma capital, ou meia-capital européia, de hábitos cortesãos ou meio-cortesãos. Terá pois a Bahia, nesse século XVIII, os majestosos monumentos resultantes da evolução anterior à maneira da São Francisco - ou novos e formosos edifícios de gosto ainda menos local - como a Conceição da Praia - dir-se-ia que a arte, como a ceono374
mia, se ressentia da impossibilidade de uma elaboração interior. Pernambuco, desconhecendo deslocamentos na esfera produtiva, demonstrará maior vitalidade tanto no revigorar as afirmações anteriores - na linha de sua singular Madre de Deus - quanto no tcntar novas afirmações, do peso e valor da São Pedro dos Clérigos, com' sua clcgantÍssima verticalidade e sua planta de sábia elaboração. Mas, nesse movimento que, de um modo geral, busca evitar o rceceó, insinuado pela Europa, a atenção dos criadores parece fixar-se, de preferência, nas variações tópicas - frontões, coberturas e ornamentação de sineiras, desenho de colunas c modenaturas. Eis por que, para toda a grande região, o elemento mais notável, neste século, se condensará na decoração em pedra. Essa projeção criadora - tão inteligentemente estudada por Ayrton de Carvalho permitiria exprimir-se, DO material propiciado por ocorrência geológica particular, um punhado de aspirações lentamente condensadas enquanto se processava a experiência da talha em madeira. Malgrado certas assimilações da temática rococó, nela é possível discernir uma reiteração barroca, tanto no intuito decorativo que vem do interior para o exterior das edificações, quanto nos extremos expressivos, de quase delirante onirismo, que ficaram na N.S. da Guia (Paraíba). Diga-se q\le a escultura c a pintura, cuja vida é agora um pouco mais docu~entada, passaram a encontrar ainda mais vasto campo de expansão, embora nem sempre haja progresso qualitativo a par do quantitativo. Sobretudo na Bahia, de que temos mais conhecimento, sente-se que, partindo dum sólido mas retardado barroquismo à européia - patente na obra de José Joaquim da Rocha, autor do notável forro da nave da -Conceição da Praia e iniciador da chamada escola baiana - para progressivamente atenuar ousadias perspéticas e expressivas até ausentar-se na calma, para-acadêmica, figuração de Antônio Joaquim Franco Velasco e José Teófilo de Jesus. Entre as muitas e, em grande número, excelentes imagens sacras dos conventos e igrejas baianas, sobressaem-se as identificadas como de autoria de Francisco Chagas, o Cabra, cujo' talento e força exigem lugar à parte em nossa história artística, como demonstra o Cristo na Coluna, tão famoso, cujo atormentado pathas pode tocar à 375
quase-demasia expressiva sem afetar a segura capacidade de convicção comunicativa. Este artista não criou, contudo, escola direta ou indireta~ seus sucessores, como Manuel Inácio da Costa, farão paralelo à linha de ecletismo formal e premeditada expressão seguida pelos pintores. Quanto ao núcleo pernambucano ainda hoje padecendo daquele quase-desconhecimento deplorado por Joaquim Cardoso, não parece fugir a essa diretriz evolutiva, pois continuamos a voltar-nos para Sebastião Canuto da Silva Tavares e João de Deus Sepúlveda, quando buscamos o frescor da verdadeira liberdade de concepção e criação. Entrementes, o Rio de Janeiro ingressava deliberadamente pelo caminho europeu, requintando uma arquitetura inscrita no barroquismo, mas subordinada ao racionalismo da inspiração lisboeta. A igreja do outeiro da Glória, fina na concepção e no acabamento, surge como a primeira conta do colar de construções poligonais ou francamente curvilíneas com que se enfeitou a sede do vice-reinado, a maioria dos quais (camo a São Padro dos Clérigos) está hoje perdida. Escapando à tendência curvilínea, a São Francisco de Paula e, sobretudo, a Carmo demonstram a inaudita riqueza e a limpeza conceitual com que se procura repetir o padrão português - chegou-se a mandar vir de Lisboa a portada da igreja carmelita - porém, por isso mesmo, já acusam incapacidade para reagir à infiltração dos primeiros elementos neoclássicos. E. o prenúncio da tendência antibarroca que, no penúltimo decênio do século, o vice-rei insistiria em sublinhar por via das iniciativas monumentais e paisagísticas que contariam com a perícia de Mestre Valentim, já afeito às novas modas. E que teria sua decisiva implantação no programa joanino, executado pelos franceses. Em outras palavras, desde os primeiros anos de vice-reinado, o Rio preparava-se, sem saber, para receber D. João VI. E sua arte. Em particular, a pintura que, perdendo a força mística comunicada, nos velhos tempos, por Frei Ricardo e limitando-se, na curiosa escola fluminense, à lição de mestre Rosa que já surge identificado, pela formação e pelas encomendas, com a vocação dos vice-reis. Alternam-se, nessa progênie, as encantadoras espontaneidades do primitivismo com os rigores das fórmulas classicizantes, sendo por isso notável, embora
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redutível a mera coincidência, o caso de Frei Francisco Solano, tão vigoroso na expressão e autodidata. De qualquer modo, quando aparece um José Leandro de Carvalho, a pintura fluminense se encontra, já e sem dúvida, à espera de D. João, constante patrono deste artista, e da missão francesa. Nesse panorama geral, avulta ainda mais a arte e a arquitetura de Minas. Partira, ao começar o século, dos materiais primitivos e da singeleza formal peculiares à tradição litorânea, como se verifica mesmo nas edificações mais ambiciosas e complexas dos primeiros cinqüenta anos. Fundam-se as igrejas da região num mesmo esquema mínimo que, no retângulo construtivo, destaca, graças aos corredores laterais levando à sacristia posta ao fundo do edifício, o espaço da capela-mor em contraposição à maior largura da nave. Ademais, até as amostras que, na planta, fogem a esse tipo, acusam nas fachadas uma serena singeleza construtivista (Sé de Mariana e Conceição de Sabará). Sobre essa estrutura mínima e esse despojamento plástico, que indubitavelmente se ligam à arquitetura do primeiro século, desenvolver-se-á um novo tipo de igreja. A inovação artística parece acompanhar a vida material da região, com ela passando, com espantosa rapidez, do primitivismo pioneiro à prosperidade da mineração bcnr sucedida. Ademais, a diferenciação social, tão rígida e impositiva no resto do Brasil, mantém-~e com alguma dificuldade num meio em que são tantos os aventureiros e tantas as profissões marginais, pouco nobilitantcs porém assaz compensadoras. Não nos esqueçamos, ainda, de certas variantes introduzidas legalmente na trama das relações, como a proibição das ordens religiosas e, em conseqüência, o inusitado desenvolvimento das confrarias. Tudo se junta para reforçar o espírito ostentatório e competitivo, inclusive a rivalidade entre as irmandades que daria a Vila Rica igrejas cada vez maiores, mais ricas, e postas mais alto na encosta dos morros. Mas pouco adiantariam o porte e a situação dos edifícios, sem a cabal justificação do esplendor artístico. Far-se-ia, essa arte, no sentido do barroquismo que, embora pudesse parecer algo atrasado para a Eu_rapa c mesmo para o resto da colônia, dispunha ainda das altas glórias da tradição mais recente. Começara, 377
pois, na decoração interna executada, a partir de 1736, pelo português Antônio Francisco Pombal, na Matriz de N.S. do Pilar: a primitiva construção vê alterado seu espaço interno por um polígono de tribunas que, circundando a nave com seus arcos, pilastras, púlpitos e altares laterais, transforma-a visualmente numa elipse. E. a barroquização imprescindível; confirma-se na talha, enrolada em elementos vegetais e sustentando farta teoria de querubins e anjos. Dificilmente, porém, a solução do mascaramento. decorativo, como indicava o caso da Pilar que era o de meia-transformação do edifício preexistente, poderia satisfazer em novas empresas. Estabelece-se, portanto, uma tensão entre a inspiração construtiva, à qual as limitações técnico-materiais e O limpo gosto da simplicidade proibiam caprichos, e a aspiração estilística, insatisfeita com a visão retilínea e cúbica dos espaços. Pouco a pouco, surgem os avanços possíveis, num e noutro sentido. Vai-se delineando a fisionomia duma verdadeira igreja mineira, que podemos descrever idealmente, scm recorrer a exemplos. Antes de mais nada, confirma-se a planta do esquema inicial, graças à sua extrema funcionali· dade. Traça-se, pois, um retângulo alongado que, no primeiro lance, a nave preenche em toda a largura, dispensando os corredores ao longo do corpo-da-igreja, para só conservá-los aos flancos da capela-mor, por detrás da qual se estende a sacristia, sobremontada ou não por uma sala capitular. Por sobre a porta principal e ensejando, inferiormente, um vestíbulo definido pelo corta-vento, coloca-se o coro. Parece melhor, numa tal configuração, pôr fora do retângulo as duas torres, que nele anteriormente se inscreviam. Restavam, contudo, obstáculos à visão desejosa de movimento, como as faixas estáticas de muro, sobrantes entre as paredes laterais da nave e o ponto em que o arco-cruzeiro se abre para a capela-mor; o estratagema decorativo dos dois altares escantilhados parece constituir a única solução. Deslizando por eles e buscando o vazio do arco, irá o olhar cair na capela-mor com seu imenso retábulo, onde esplende uma decoração movimentada ao infinito. N o exterior J não se pode chegar aos mesmos fins com igual facilidade. Lateralmente, a diferença da linha da cumeeira que, baixando na porção da capela378
-mor e sacristia, mais acentua o contraste das torres, obrigava a uma descendente incompatível com o bom proporcionamento, para não falar dos tropeços trazidos pelo acréscimo de corpos laterais ou terminais destinados a atender à sacristia e a seus corredores. Mesmo, porém, na fachada principal, onde deveria esplender todo engenho e arte do autor do risco, eram evidentes as ambigüidades ou precariedades das soluções. O esquema frontal básico era visível já nas primeiras capelas: "duas pilastras de canto, encimadas por coruchéus ou sineiras, marcam os cunhais; uma empena, com um óculo de centro, arremata o telhado; e uma larga porta na nave e duas portas sacadas (ou janelas) no coro, completam a composição". Um único traço evolutivo: "O frontispício das igrejas - reduzido às linhas essenciais - se assemelha ao tipo mais característico de capela com o acréscimo de duas torres, uma de cada lado". Traçado claro e simples, nascido da funcionalidade da construção, estrutura-se em claras relações - e, por isso mesmo, 'opõe-se ao capricho do barroco, como atesta a pouquíssima felicidade com que quase sempre nele se busca transformar ,a empena em frontão caprichosamente recortado, ou preencher o vazio entre as janelas. Sobre tal base, porém, deveu desenvolver-se a fachada da igreja mineira na segunda metade do século, continuando a ansiar por irreprimível barroquismo. :E: sempre perceptível, na feição original ou apesar das refonnas posteriores, que nas sucessivas construções, mais e mais, buscavam aproximar-se do ideal visado. Houve, é verdade, tentativas de adotar o barroco total da planta elíptica e dos muros bombeados (Rosário, em Ouro Preto; São Pedro, em Mariana), porém tais construções permanecem à margem da tendência dominante e, o que ainda mais importa, nelas já se reflete (como na Carmo de Ouro Preto,· obediente ao esquema básico) a influência da autêntica solução local afinal realizada. Como a deu Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, à igreja de S. Francisco de Assis, de Ouro Preto. Nessa peça única, toda ela (à exceção da pintura) concebida por um só artista, os velhos problemas foram enfim dominados. Com solução original. A co379
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meçar pela superação do esquema, aparentemente insuperável, da planta onde Antônio Francisco, com uma ligeira inflexão imposta aos muros laterais pela altura do arco-cruzeiro e com o acréscimo duma porta abrindo da nave para os corredores e a colocação dos púlpitos no limiar da capela-mor, leva a dissolver-se a superfície morta do muro, que agora se resume a uma suave e ligeiríssima ondulação encaminhadora do olhar na direção do retábulo. A bifurcação desse muro consente, ademais, que se descarregue no dispositivo interno a sustentação da cobertura, com o que, no segundo andar, a massa construtiva (hoje desfigurada pelas varandas) se adelgaça à largura da capela-mor, para só voltar à extensão máxima ao chegar à sacristia. Solução puramente arquitetônica, que na proposição construtiva satisfaz ao programa até então mal atendido e, exprimindo-se sinceramente no exterior, aí supera velha deficiência plástica pela movimentação, bem proporcionada e tridimensional. das massas. Não foi, contudo, a única expressão original do Aleijadinho, nessa igreja. Reagindo às angústias do barroco aposto ao rígido traçado da fachada tradicional (que ele próprio defrontou na Carmo de Sabará), aplica-se o Aleijadinho em movimentar validamente o frontispício da S. Francisco de Ouro Freto. Começa por inscrever meio corpo das torres no retângulo da nave e, traçando-as com base circular e com as sineiras abertas obliquamente ao eixo da igreja, tornou-as construtivamente fortes e opticamente leves. Plantadas essas afirmações cilíndricas, sobre elas avança mais de três metros o alicerce do muro da portada que se alça entre duas claras pilastras cercadas por porções interrompidas de entablamenta, curvilíneas e postas de través. No interior dessas duas linhas, reafirmam-se no plano construtivo do muro as três aberturas tradicionais, porém entre elas se espalha uma farta decoração esculpida que se alça até tocar o óculo, agora transformado num medalhão em relevo que, acima da linha da empena, é sobrernontado por uma terceira porção de entalhamento que sustenta a cruz entre dois globos em chama. Passando das torres ao plano avançado, dois pequenos muros descrevem uma linha oblíqua e côncava, vazada por uma porta e uma janela. 381
Todas as indecisões, todos os estratagemas, todas as limitações das soluções tradicionais estão superados, além de estar atendida, na plenitude duma óptica que resulta diretamente da afirmação construtiva. a aspiração barroca, Sem dúvida, defrontamo-nos com um gênio criador. Perpassam sua obra temas que pertencem ineludivelmente ao rococó, e também elementos racionais e formais que anunciam ou prenunciam O neoclássico, porém à análise, que na forma procura um espírito mais do que uma data, impõe-se a evidência dum prolongamento renovado daquela mesma seiva barroca que a cultura européia, abalada, não fôra capaz de manter e continuar. Estamos, contudo. julgando Antônio Francisco Lisboa por uma só de suas obras, embora seja obra completa e obra-prima, e acentuando, nessa obra. a invenção arquitetônica que é apenas uma das suas muitas possibilidades criadoras. Não aludimos, por exemplo, às realizações na talha, raiz de sua criação, que o levariam, na mesma São Francisco, ao esplendor conceitual e formal da capela· -mor onde o retábulo, em face da tradição. não apresenta menos elementos inovadores do que a frontaria da igreja. Não estamos citando sua escultura - aí representada pelos relevos dos dois púlpitos e pelo lavabo da sacristia - cujo auge nos conduziria a outro conjunto artístico incomum - o famoso adro de Conganhas - onde a sabedoria da distorção perspéctica de anatomia e o rigor na animação escultórica do espaço aberto confirmam a profundidade dos conhecimentos artísticos e a genialidade da invenção formal do artista. Sem aludir, ainda, a que a figura do Aleijadinho constitui, na arte de Minas, o ponto máximo duma ver· dadeira escola que, nascida de mestres europeus, frutificou e amadureceu na ânsia de encontrar uma expressão própria e autêntica, tal corno o ser de exceção viria a plasmar em definitivo. Tendo aludido à importância da talha da reafirmação do barroco em Minas, comecemos por acentuar sua importância também no aprendizado artístico do Aleijadinho. Seus mestres não foram apenas o pai, uManuel Francisco Lisboa, :arquiteto prestigioso. mestre de obras reais, e João Gomes Batista, abridor de cunhas, desenhista requintado e introdutor no país do novo estilo ou gosto francês", 382
senão Utambém, provavelmente, Francisco Xavier de Brito e José Coelho de Noronha, que se distinguiam então nas obras de escultura e de talha nas igrejas mineiras", começando hoje a figurar como os principais responsáveis pelo estabelecimento de um padrão local de decoração entalhada. Ao invés, contudo, de citar outros criadores das mesmas artes, preferível será demonstrar a riqueza e a coesão da produção artística de então, em Minas, pelo desenvolvimento simultâneo de uma escola de pintura de. onde sairia, contemporaneamente ao Aleijadinho, Manuel da Costa Ataíde, que representa o auge duma linha de condensação e apuramento que acaba de encontrar seu primeiro historiador em Carlos deI Negro. Era, enfim, uma verdadeira escola, menos porque- as gerações se sucedessem no aprendizado e exercício das artes, do que pela transformação e radicação que, em tal processo, conheciam a visão estética e a direção artística. Prendem-se, tais desenvolvimentos plásticos, a um movimento espiritual de mais ampla órbita, como é legítimo supor. Permita-se, pois, uma referência (embora em campo alheio ao desse capítulo) para sublinhar a importância do paralelo oferecido pela criação musical de Minas, nesse mesmo instante. Francisco Curt Lange, cuja atividade de pesquisa reconquistou esse aspecto de nossa histórica artística, afirma: "O que foi escrito e executado na Capitania de Minas Gerais durante o século XVIII alcançou cifras tão vultosas que não cabem em nossa imaginação". Mais importante ainda é verificar que, como nós possibilitou saber a reconstituição e reexecução de algumas peças, a criação de José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita e Francisco Gomes da Rocha demonstra verdadeiro parentesco estilístico com o que nos deixou, na pintura, um Ataíde e, na arquitetura e na talha, senão um Antônio Francisco, ao menos um Manuel Francisco Lisboa e um Francisco Xavier de Brito. Havendo aceitá o risco do confronto com a música, já não podemos fugir à indicação de outros elementos presentes no mesmo tabuleiro cultural, como a Escola Mineira de poesia c, em meÇida que já se ajuizou em pesquisas ainda inéditas, os temas ideológicos da Inconfidência. Antes que se condene a ousadia de tais aproximações, diremos a pa383
lavra final desse capítulo, provável dirimente para um excesso inevitável, pOIS S(;l VIra para exprimir a convicção, firmada nessas referências, a pedir anális~ conjuntiva, de que em Minas, no século XVILI, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez, uma autêntica cultura brasileira
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ARTIGOS
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QUE O ALEIJADINHO NÃO FEZ
Ouro Preto é uma velha cidade cercada de lendas por todos os lados. Assim poderíamos explicar a dificuldade de bem compreender a velha Vila Rica, principalmente no que respeita à arte de seus monumentos e à história do maior de seus artistas, o Aleijadinho. Porque assim se explica como. durante o período de declínio material em que viveu a cidade, dos meados do século passado até as duas primeiras décadas deste, a lenda e praticamente só a lenda preservou a memória de Antônio Francisco Lisboa, cobrando o alto preço de terrível deformação de sua biografia, com inevitáveis repercussões na análise de sua obra. Depois. veio o
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tempo da recuperação objetiva, tão discricionária quan· to o fora desvio legendário. E o áspero rigorismo de Feu de Carvalho - seco especialista em arquivos e documentação, cuja ironia jamais foi perdoada por Mário de Andrade - provocou toda uma tendência negativa: se o Aleijadinho não era exatamente aque, le de quem falavam as lendas, por certo o Aleijadinho seria nada, ou quase nada .. Ao meio desses intoleráveis extremismos e sem importar-se muito com eles, deve passar quem hoje se interessa pela arte invulgar de Antônio Francisco Lisboa. Firmando-se na biografia traçada por Bretas quando, ao tempo da exaltação lendária, ainda era possív~l colher uns últimos testemunhos diretos da vida e trabalho do Aleijadinho. Atento para a documentação paciente e objetivamente recuperada pelo DPHAN. E com olhos de ver para, onde se cala o Bretas e não há documento, acompanhar a esteira dourada das obras-primas que Antônio Francisco deixou atrás de si. Sem esperar pelo apoio dos arquivos quando é ele improvávol, mas sem permitir à fantasia arroubos injustificados. E assim se explica como se refez o conhecimento do Aleijadinho nos últimos qlJ.inze ou vinte anos, desde o balanço contido nos Subsídios de Judite Martins . i té a recente reposição cronológica de Sílvio de Vasconcellos. Por isso mesmo, apraz verificar que, no livro de Germain Bazin, surge um Aleijadinho o quanto verídico possível nas referências de sua história de vida e, também, exatamente situado em sua posição única na história da arte brasileira. Porque, nessa primeira sistematização de nosso passado artístico que é L'A rchitecture Religieuse Baroque du Brésil, não se funda o elogio do Aleijadinho - se elogio vai no fazer-se justica - em dados biográficos mais ou menos fabulosos, mas na análise e interpretação de sua obra arquitetônica. De fato, Gerniain Bazin teve a paciência e o critério de s6 no capítulo relativo à "Análise das principais igrejas de Minas na segunda metade do século XVIII" afirmar a originalidade e a superioridade da criação de Antônio Francisco Lisboa, comprovando-as pelo rigoroso confronto com o mais de seu quadro histórico próprio.
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Então, para falar da obra-prima que é S. Francis.. co de Assis de Ouro Preto e, portanto, com base na evidência estética, Germain Bazio afirma que o Aleijadinho praticou um "rompimento com todos os hábitos da província mineira e da arte luso-brasileira, trazendo um tipo absolutamente novo" (p. 191) E a tese, longa e minuciosamente demonstrada, irá concluir-se com um dos mais elevados títulos jamais conferidos, com base inegável e cabal justificação. à arte brasileira: "Entre os monumentos do Ocidente, São Francisco de Ouro Preto é talvez um dos mais perfeitos. um destes em que tudo foi concebido por um só homem e que assim lhe reflete a idéia original sem alteração; arquiteto e escultor, o Aleijadinho criou esse monumento em sua totalidade plástica ( ... ) . Mesmo na Itália, onde tantos artistas foram, ao mesmo tempo, arquitetos, pintores e escultores, não existe um monumento em que se exprimam assim todos os aspectos ja concepção singular dum homem de gênio" (p. 204). Estamos, sem dúvida, diante do mais exaltado el
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tribunas da capela-mor por uma elegante varanda de três arcadas de estilo tDscano" (ibid.). Porque, em verdade, essa varanda, o Aleijadinho n~m a concebeu, nem a mandou fazer, p~is, tal como hoje figura no flanco da igreja, foi ideada e concebida posteriormente e como recurso meramente utilitário que desfigurara a concepção original. Em sua exemplar monografia sobre a igreja de S. Francisco, publicada em 1951 e comentada na bibliografia do livro de Germain Bazin, o Cônego Raimundo Trindade reproduz o auto de arrematação pelo qual se confia a Domingos Moreira de Oliveira a construção do monumento, em 1776. E, nas "condições e advertências sobre o Risco" fica bem claro o que impunha a planta original (infelizmente transviada aí por 1913) - pelo item 12, sabemos que o telhado da capela-mor era não só mais baixo, mas também menos largo do que da nave e do consistório ("enão Sobirá tanto esta impcna como a outra em razão do Imadeiramento que nesta parte não sobirá tanto pnr ser mais estreito como mostra a planta" (p. 298). Ainda o Cônego Trindade fornece-nos reprodução de outro con. lrato, este referente ao barrete da capela-mor e abóbadas dos corredores laterais, parte da obra que se deixara para um segundo passo e cuja contratação se fazia com a peritagem de. José Pereira Arouca e do próprio Antônio Francisco Lisboa. Já no item I Q das condições, alude-se à obrigação de praticar o arrematante "as aberluras na prede do Consistório, para dar Serventia aos pateos, q Leva por Sima dos Corredores" por onde se vê que estavam construídos os três corpos da igreja, porém não os dois pequenos lances laterais do corpo intermédio que, de uma parte e doutra, ofereceriam passagem direta da nave à sacristia e. mais. que tais corredores se fariam abobadados e encimadas por "oatpo!'''. ou !'eia. Dor !'acada<; abertas. A obra causava mesmo certa inquietação: uErncondição, que Ladrilhará por Simo od 9 pateo comlages do Morro, e estas serem fabricadas as suas juntas deSorte, q recebão os baturncs para a defesa das agoas, que não penetrem abaixo ao tijolo [das abóbadas do corredor], por não causar ruhinas", E mais cuidados ainda se' tomam para a impermeabilização desse terraço descoberto, 391
Não param aí os documentos recolhidos pelo Cônego Raimundo Trindade, que transcreve também um papel avulso e sem data - "Condições, pelas quais Sehá de Rematar afactura das Barandas depedra por sima dos Corredores da Capela do Patriarcha S. Francisco de Va. Ra." - pelas quais se completa a compreensão do que ideara o Aleijadinho, ou seja, que as sacadas abertas sobre os corredores que se completariam, decorativamente, com balaustradas à guisa de guarda-corpo ("Obra depedra deSabão, tanto pilastras, como balaustre, bazamentos eCorrimoins, etudo fabricado como aponta omesmo risco" e também as minuciosas condições da arrematação), além de já contarem com o belo ritmo das três aberturas superiores da capela-mor, que são duas janelas de desenho mistilíneo poligonal, deitando para o recinto do culto, e um óculo circular simples, cuja função é apenas derramar luz no interior do camarim do retábulo. Sobrevindo a temida infiltração de águas no teto dos corredores, manda a Ordem cobrir os corredores em 1801 e só então se erguem os três arcos mais ou menos "toscanos" e a cimalha em "peito-de-pombo" que, graciosos, embora, hoje estão a desfigurar a concepção original de Antêr nio Francisco Lisboa. Desfigurar, sim, pois naquele ponto das fachadas laterais o Aleijadinho desejou marcar, criando-o originalmente, um momento expressivo-monumental que, sua própria obra, se encontra paralelo nas torres da mesma S. Francisco. Se estas, recuadas da fachada, negavam e destruíam O velho conceito da simplória "esquina" que separava a fachada principal das laterais nas velhas igrejas mineiras e, mais, animavam a visão frontal de sorte a desdobrá-la em planos sucessivos de recuo que já sugeriam a continuidade pelas "ilhargas", claro é que por aí se continuaria o mesmo dinamismo da face principal. Ora, animar por inteiro as fachadas laterais seria recurso superabundante, escapando ao es~ pírito da construção e até o ocultando. Eis o que repugnaria a Antônio Francisco, mestre das pausas silenciosas, como nos indicam sua escultura e sua talha decorativa. Assim, preferiu um simples e poderoso ritmo arquitetônico. Estreita, entre os volumes correspondentes à nave e ao consistório, o corpo da capela-
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-mor, sabendo que funcionalmente isso se impusera no interior das igrejas mineiras tradicionais, nos quais a decoração (Sta. Uigênia) ou a construção (Carmo) deviam recorrer às tribunas, algo teatrais, que oLham indiscretamente por sobre o oficiante da missa. Relega, então, as tribunas para óbter na composição externa do edifício, ao menos ao ·plano de segundo andar, um jogo de massas que se alternam em seu relevo relativo. Se as exigências funcionais e utilitárias continuavam a pedir os corredores laterais, imprescindíveis ao isolamento do culto e à fácil circulação interna, eles ficarão reduzidos às proporções requeridas pela função, isto é, limitados ao plano do andar térreo, com o que ainda mais se acentuará o recalque superior sugerido pelos "patcos". A solução plástica também é simbólica. A igreja mineira, sem abóbada central e sem torre-lanternim, sempre aspirou a significar exteriormente o local do rito mais' sagrado, mas sempre deveu bastar-se com o recurso discretíssimo da segunda cruz sobre o arco da capela-mor. Agora, além desse sinal consagrado, S. Francisco terá toda a sua capela-mor evidenciada nô exterior. Tão legítimo e nobre é o conceito assim firmado pelo Aleijadinho que não teme ele em sublinhá-lo com dois traços decorativos. Ambos, porém, resultantes de funções necessárias: a balaustrada com pilastras e pirâmides que ideou funcionará como parapeito da sacada, e os elaborados janelões mistilíneos irão jogar na capela-mor o poderoso fecho de luz que hoje tanto lhe falta. Mas ainda, essas aberturas possibilitarão uma rara e feliz comunicação entre o decorativo interno e externo, pois, se do lado de fora deverão consoar com as balaustradas e quebrar ritmo monótono das- janelas da nave e do consistório, interiormente entrarão em conexão muito bem composta com as molduras igualmente mistiJÚ1eas que o Aleijadinho impôs às pinturas do Ataíde no complexo geral da capela-mor. Mas a água da chuva traiçoeira, ou a incapacidade técnica dos pedreiros frustrou essa porção primorosa da concepção do Aleijadinho. A varanda com três arcos, que mais tarde se levantou acima dos corredores de São Francisco, é graciosa, quase elegante, quase bela. Tem merecido elogios e o próprio Germain Bann conseguiu louvá-la, no conjunto, como uma ori393
ginalidade.
Será, contudo, originalidade ingênua, uma
dessas notas espontâneas que, tantas vezes, nos surpreendem e nos agradam pelo seu tom populesco e puro.
Que, no entanto, por isso mesmo roubam um pouco à imensa grandeza plástica e arquitetônica da igreja terceira tal como a imaginou Antônio Francisco Lisboa. J á de começo, cobrou um alto preço à funcionalidade, ensombrecendo consideravelmente a capela-mor, concebida como um grito de luz natural a dominar o conjunto, já muito claro da igreja. Assim prejudicou o mais composto, equilibrado e completo conjunto de talha decorativa que Minas conhece. Depois, não só anulou a necessária concentração decorativa da vista lateral, mas a esta ainda exigiu o sacrifício do jogo de massas inicialmente planejado. .
Pode-se compreender o desfalecimento da atenção crítica do autor de LJArchitecture Religieuse Baroque au Brésil, desde que se tenham em conta as dtiiculdades de um trabalho no qual, entre a coleta dos dados e a elaboração do texto, deveu mediar o decorrer de dez anos e a separação do mar oceano: Tem-se a impressão de que Gennain Bazin, ao redigir seu capítulo sobre Minas, fixou os olhos na elevação lateral da São Francisco tal como a encontramos, fina e rigorosa- . mente desenhada, no livro de Paulo Santos, que tanto valeu ao especialista francês. Mas Paulo Santos fazia um levantamento do real, do que é e não do que deveria ter sido. E assim se produziu o lapso de Germain Bazin, muito embora o desenho de Paulo Santos, exato e minucioso, anote de forma visível a linha que, até hoje, atesta a existência de uma mureta baixa, que de início se colocara na projetada sacada para esperar, à guisa de parapeito, pela balaustrada de pedra-sabão e sobre a qual depois se ergueram os atuais elementos de sustentação do telhado da varanda em arcos. Como também não se compreenderá facilmente que tenham escapado a Germain Barln os indícios veementes da adição utilitária tal como lá estão, visíveis e tangíveis. na São Francisco: esse mesmo ressalto do primeiro peitoril por sob os elementos posteriores, as cimalhas mutiladas para deixar passar os prolongamento~ apostos à empena primitiva e sobretudo as pilastras de canto jônicas que definem as- massas dos três 394
corpos e que, nas intersecções em concavidade, exigiram soluções especiais muito curiosas. Seja como for, desfaleceu a atenção de Germain Bazin e seu livro se ressente do lapso. Por infelicidade, exatamente no ápice daquela linha evolutiva, tão bem descrita e analisada em trabalho de tanta importância para nossa história da arte, e na qual representam desenvolvimentos finais e superiores a arquitetura religiosa de Minas no complexo setecentista e a concepção da S. Francisco de Àssis de Ouro Preto no desenvolvimento da igreja mineira. Ora, essa concepção não poderia, por tais razões, ficar sem a reposição que ao crítico cabe praticar, ao menos em imaginação, pois que da reposição concreta só a competência e o crit.ério do DPHAN podem dizer. Mas, idealmente que seja, precisamos ver a São Francisco como foi concebida, com suas cumeeiras em quatro níveis diferentes (o da pequena cobertura do frontão, o da nave, o da capela-mor e o do consistório), daí descendo lateralmente suas telhas para duas linhas diferentes de cimalhas, habilmente entrosadas pelo jogo rítmico das modenaturas, que, no corpo central, recuariam para a linha idealmente marcada, na planta baixa; pelas famosas pilastras da fachada principal. Em mais simples palavras: São Francisco foge do padrão meramente construtivo-utilitário das laterais, em caixotão, das igrejas mineiras, e só com isso passa à condição de peça única, que não voltamos a encontrar mesmo em monumentos posteriores, mais evoluídos e até assimilando algo da lição do Aleijadinho (Rosário dos Pretos). Há mais, porém. Porque, no inovar, Antônio Francisco não se contentou com a invenção plástico-arquitetônica, levando-a às últimas conseqüências estéticas no campo decorativo e expressivo. Como se compreende, facilmente, quando se figura São Francisco de Assis tal como foi concebida.
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"MUITO LONGE DA PERFEIÇÃO"
Há, por aí, quem não acredite (talvez por causa da palavra, que é mesmo feia) em confrades. Não obstante, vem de um confrade a lembrança de .que o velho e bom Bernardo Guimarães' - também ele ... - se ocupara dos Profetas do Aleijadinho. E l!Q Seminarista, quando Eugênio, a quem se reservava um destino capaz de ,fazer inveja aos mais incontidos personagens danunzzianos, vai para Canganhas iniciar-se nos estudos que um dia o tornarão padre e padre maldito. "Eis o nosso herói transportado das livres e risonhas campinas da fazenda paterna para a monótona e austera prisão de um seminário no arraial
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de Congonhas do Campo, de barrete e sotaina preta, no meio de uma turba de companheiros desconhecidos; como um bando de Gnus pretos encerrados em um vasto viveiro". E, como se nos tivessem escapado as claríssimas insinuações dos três primeiros capítulos, o romancista, que é tão ingênuo calculista de desenvolvimento de. enredo, quanto convincente pintor de ímpetos passicr nais, deixa escapar algumas exclamações - "Que mudança radical de vida" - destinadas a deixar bem visível a desgraça que se vai armando. . Logo, porém, resolve-se a uma pausa: "Antes, porém, de prosse~ guirmos". " Intermédios narrativos de tal ordem não são raros no romance, onde a ação se detém para explicar-se, por exemplo, o que é o mutirão ou a quatragem. Nesse passo, o objeto do registro explicativo são os monumentos do arraial de romarias: ." "o pitoresco edificio do seminário e especialmente [ ... ] a alva e formo,sa Capela do Senhor Bom Jesus de Marozinlws, que em frente dele se ergue no alto da colina, como a branca pomba da aliança pousada sobre os montes". Em verdade, o Seminário será abandonado, mais adiante, numa frase que explícitamente afirma "que nada tem de muito notável" e o liquida na sumária rdação de "um grande edificio de sobrado, cuja freme se atravessa a pouca distância por detrás da igreja, tendo nos fundos mais um extenso lance, um pátio e uma vasta quinta". Não se poderia, aliás, dizer muito mais. Concentra-se, pois, o interesse na igreja propriamente dita que, não sendo descrita interiormente, nem detalhada em sua arquitetura externa, se rcs,",me, substancialmente, na descrição e .comentãrio do adro. Assim: "Sobe-se ao adro da capela por uma escadaria de dois lances flanqueados de um e outro lado pelos vultos majestosos dos profetas da antiga lei, talhados em.gesso, . e de tamanho wn pouco maior que o natural. "E; sabido que estas estátuas são obras de um escultor manetà ou .aleijado da mão direita, o qual, para trabalhar, era mister que lhe atassem ao punho os instrumentos. "Por isso, sem dúvida, a execução artística está muito longe da perfeição. Não é preciso ser profissional para reconhecer nelas a incorreção do desenho, a pouca. harmonia e falta de proporção de certas formas.
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Cabeças mal contornadas, proporções mal guardadas, ,corpos por demais espessos e curtos, e oUlros muitos defeitos capitais e de detalhe estão revelando que esses profetas são filhos de mn cinzel tosco e ignorante . .. Todavia, as atitudes em geral são caracteristicas, imponentes e majestosas, as roupagens dispostas com arte, e por vezes o cinzel do rude escultor soube imprimir às fisionomias uma expressão digna dos 'profetas. "O sublime Isaias, o terrivel e sombrio Habacuc, o melancólico Jeremias são especialmente notáveis pela beleza e solenidade da expressão e da atitude. A não encará-los com as vistas "minuciosas e escrutadoras do artista, esses vultos ao primeiro aspecto não deixam de causar uma forte impressão de respeito e mesmo de assombro. Parece que essas estátuas são cópias toscas e incorretas de" belos modelos de arte, que o escultor tinha diante dos olhos ou ingressos na imaginação. "Mesmo assim quanto não são superiores às quatro disformes e gigantescas caricaJuras de pedra, que ornam. .. quero dizer que desfiguram os quatro ângulos da cadeia de Ouro PrelO!" O trecho é breve, e o tom assumido pelo escritor à primeira vista autorizaria, pelo que ressuma de má compreensão estética, seu abandono imediato. Mas. evidentemente, não pode ser assim. Se à pretensiosa reação inicial opusermos uma segunda leitura mais atenta, encontraremos nesses cinco parágrafos um excelente documento, senão propriamente sobre a obra de Antônio Francisco Lisboa, ao menos sobre a maneira por que a via, em I 872, um homem de imaginação e gosto. Aliás, a rigor, o trecho registra o conflito entre o gost,o c a imaginação de um homem de espírito daquele tempo~ em face de uma obra de arte. Deformara-se já o gosto - digamos para começar. Firmara-se e consolidara-se a artinha acadêmica trazida pelo tardio iluminismo joanino e consagrada pelo conservantismo igualmente acadêmico dos ,tempos imperiais, naquela curiosa operação de transplante e aclimação que nos deu um Estado, mas nos tolheu a expressão plástica. O fato é que aí pela década dos setenta o pretenso ideal da perfeição formal dominava mesmo em espírito que. por temperamento e tendência. devia rejeitá-lo, pudessem os espíritos jamais livrar-se do peso coercitivo de padrões adotados por todo o grupo 399
circundante. Espíritos como o de Bernardo Guimarães, que viviam em tensão, pisando os últimos degraus dum indianismo que soube atender em dosagem muito regrada, abandonando a larga esplanada romântica em que se formara, e mal advinhando, através do descritivo consagrado pela velha escola, novidades que não sabia bem quais fossem, mas que nos levam hoje a pensar em antevisões, fundadas em algo mais do que o tema, do Crime do Padre A maro, ainda por vir. Eis como o escritor que em suas letras partia das certezas do expressivo romântico para as ânsias imprecisas de realismo ~ para-expressionista, não se atormentando com problemas de apuramento da linguagem senão enqUéinto representavam possibilidades de acuramento na comunicação, vem falar-nos, quando posto diante da escultura de Antônio Francisco Lisboa, de "perfeição". Seu primeiro ímpeto, que é "crítico", na mais superficial e convencional acepção. leva-o à condenação dos profetas. Não são perfeitos. E seus "defeitos capitais e de detalhes" são acusados segundo os padrões acadêmicos. Se condena "cabeças mal contornadas, proporções mal guardadas", não se creia que tem por reparo a realidade natural dos corpos, senão sua formulação idealizada e rigidificada pelas regras que logo se denunciam quando lastima "a incorreção do desenho, a pouca harmonia e" - note-se - "a falta de proporção de certas formas". Logo. porém, o julgamento, que inicialmente se fizera em nome da sensibilidade comum, pois para realizá-lo "não é preciso ser profissional", paradoxalmente é dado como refletindo exigências de especialista -
Assim, pois, apesar de todas as r~strições a que lhe obrigava o gosto acadêmico consagrado, acaba Bernardo Guimarães por deixar expandir-se seu sentimento profundo em face das estátuas e que é "forte impressão de respeito e mesmo de assombro", fundada, sem dúvida, nos elementos que anotara no parágrafo anterior, onde fala de atitudes "características, imponentes e majestosas", de "roupagem disposta com arte" e de feições marcadas por "uma expressão digna dos profetas". Que faltava, pois, ao escritor que olha as estátuas do Aleijadinho e nelas vê o melhor de sua plástica, o estupendo movimento das massas animadas pela agitação, nas linhas e nos planos, do panejamento e nos ímpetos, de vigor e de elegância, postos nos gestos? Que capta, em toda a plenitude, o máximo de sua força artística, a eKpressão, não apenas compatível com o bíblico abrasamento dos perscrutadores do futuro e da verdade, mas capaz ainda de impor, mais do que respeito, um autêntico assombro? Que detivera, por uma página, a ação de seu romance para, na descrição do arraial, que correspondia às exigências de sua escola literária, sublinhar a existência e, apesar de tudo, o valor artístico destas peças invulgares? Faltava-lhe apenas, somos tentados a concluir, prestar homenagem à moda do tempo. Entendamo-nos, porém, pois que nessa concessão aos ditames da moda, e no caso se trata de moda intelectual, não pomos nenhuma restrição depreciadora - e quem seríamos, para denunciá-la, nós que andamos curvados ao peso dessas modas atuais, resmungando talvez, mas não conseguindo livrar-nos delas? Ademais, no caso de Bernardo Guimarães, logo se apresentam duas fortes dirimentes para tal complacência, que não chega, aliás, a configurar culpa. Em primeiro lugar, o romancista não estava habituaJo à freqüentação das artes plásticas, dispensando-se nesse sentido qualquer pesquisa biográfica, pois PQMmos colhêr certeza no próprio texto, onde comete dois inocentes, mas imperdoáveis erros: primeiro, acreditando que sejam os Profeta.s "talhados em gesso" e, pois, revelando total ignorância dos problemas mais rudimentares do trabalho escultórico e de seus materiais; segundo, advogando a e?,celência dos Profetas por via de um confronto com as figuras decorativas da platibanda da casa de 401
cadeia, hoje Museu da Inconfidência, de Ouro Prêto. Como, portanto, sabendo-se jejuno na matéria, um homem inteligente e sensível não haveria de atemorizar-se ao lançar juízo em matéria artística e, sobretudo, como haveria de acomodar aquilo que sentia e amava com aquilo que sabia que os outros pensavam? A solução é bem de um intelectual: procura, com simplicidade, dar a entender que já ouviu falar do assunto e ao mesmo tempo, que não se oporá à opinião dos especialistas. Pelo contrário, toma dela como de um crivo, de uma pedra de toque, e demonstra como não será possível aprovar, segundo tal critério, as estátuas de Congonhas. Mostra, mesmo, por que, lembrando regras de desenho, harmonia e proporção. Tenta, até, uma explicação banal e fundada na voz corrente· da tradição, alegando o indepassável da deformidade física. Admite, afinal, a versão que faz do artista, mais do que maneta, um ignorante e um inábil. Curva-se, contrito, aos pés do oráculo acadêmico. Não obstante, a adoção de um gosto, até mesmo de todos os -gostos em moda, não pode calar a imaginação de um homem posto em efervescência criadora, nem inibir sua identificação simpática com outro criador. Acabam, por isso mesmo, parecendo inúteis todas as bem aprendidas e meticulosamente aplicadas noções artísticas de Bernardo Guimarães e,· na segunda leitura, mais atenta ri mais avisada. de seu trecho sobre o adro de Congonhas. vem à tona e, muito acima dos lugares-comuns disciplinadamente repetidos, sobrenada a verdade. A verdade que, julgando só sua e, pois, muito arriscada, tentou disfarçar por sob uma trama de sapientes regras, mas que voava alto demais para respeitar, na amplidão da posteridade, essas frouxas grades. A verdade que. afinal, é a nossa verdade sobre o Aleijadinho. cujo julgamento se faz, hoje, liberto da
pretensiosa sistemática que o condenava, sem melhor razão. A verdade. enfim, que "ao primeiro aspecto", já repercutia no mais fundo da imaginação de um h
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"ALGUMA IMPERFEIÇÃO"
No seu comentário sobre os Profetas de Congonhas, Bernardo Guimarãos, sob uma forçada censura feita em nome da "perfeição" acadêmica, deixa transparecer, como vimos, a funda e imensa impressão que lhe causara a força comunicativa da escultura do Aleijadinho. Analisando o· trecho, deixamos contudo para nova oportunidade, que é esta, o indício que, a nosso ver, melhor atesta o choque, no espírito do romancista, entre seu mais impetuoso sentimento espontâneo e o constrangedor contraste das noções que, possivelmente não o convencendo, de qualquer forma o tolhiam. Queremos nos referir, está claro, à escolha que praticou 403
entre os Profetas para louvar, em especial, três deles: Isaías, Habacuc e Jeremias. Essas três peças são as responsáveis indiciadas, no depoimento do próprio romancista, pela sua "forte impressão de respeito e mesmo de assombro" c, cada qual com o adequado adjetivo - "O sublime Isaías, o terrivel e sombrio Habacuc, o melancólico !eremias são exaltados como "especialmente notáveis pela beleza e solenidade da expressão e da atitude". Ora, se formos até o adro de Congonhas, e co.ntemplarmos cada um e todos os Profetas, como sentimos que o fez Bernardo Guimarães, sabemos logo que sua preferência recaiu em peças que, na possível companhia de mais uma ou duas, são das que menos se acomodam às regras da "harmonia" e "proporção" que poderiam apontar o caminho duma aprendida· "perfeição". Isaías e Jeremias são os dois vultos que nos esperam de cada lado do portão de acesso à escadaria. Pela própria feição paracolunária que lhes incute a posição particular, necessariamente haviam de fazer-se fortes na massa e vertica:is no todo, caindo, portanto, naquela acusação de "corpos por demais espessos e curtos", sobretudo em contraposição com os sinuosos movimentos das outras estátuas. Como, sem dúvida, não escaparão ao defeito das "proporções mal guardadas", na medida em que, para salvá-los à monotonia da massa vertical, Antônio Francisco Lisboa procurou animá-los pela projeção quase agressiva das cartelas em oblíquas convergentes sobre o caminho natural do visitante e, para tanto, viu-se obrigado a um forte rebatimento das linhas anatômicas dos braços que sustentam os dísticos a fim de, pelo escorço, obter o efeito óptico sem invadir o· ~spaço extra-escultórico. Isaías, cujo braço direito vem apontar a inscrição, ficando próximas as duas mãos, airida pode escapar à "lógica" figurativa dos visitantes menos atentos, porém Jeremias, para quem o examina pelo lado externo do muro, denuncia logo essa deformação que os veristas sempre se dispõem a qualificar como deformidade. Em compensação, sua cabeça é mais canonicamente proporcionada às dimensões do corpo, enquanto Isaías foi concebido em macTocefalia desejada e acentuada pela linha do manto que lhe recobre a cabeça (sendo o único, de todos, ll
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assim vestido). assim :.c oferecendo, fatalmente, como urna daquela,; "cabeças mal cOlllDrllaaas". Quanto a Habacuc, é, entre os Profetas, o de mais elaborado movimento. Apresenta-se venieal a quem. do portão de entrada, olha-o no topo da pilastra ua t:5quina direita, mas para quem vem ao seu encontro (como atualmente t5 necessário) pelo ângulo esquerdo do terreno. parece dobrar-se c desdobrar-se sobre si mesmo, numa curva em S que lança para cima o vôo libérrimo de uma mão esquerda que aponta os céus. Abdias. seu par simarico no extremo oposto, é bem menos ousado na inclinação uc tronco e no levantar do braço para o alto. Só Jonas, talvez, possa sustentar o confronto. Por que o romancista preferiu esses três? Fôsse sincero seu alegado critêrio de mansa harmonia c uesenha proporcionado, e teria a contida teatralidaue de Ezequiel a esperá-lo a meio-lance de escada ou, ao nível da capela, o dulcíssimo e equilibrado Daniel que. pelos tempos afora, acabou ganhando quase todas as prefer~ncias. Buscasse cabeças bem modeladas c teria, além da do mesmo Daniel, a sóbria, embora barroca, feição ele Baruc. Nada disso, contuJo, o atraiu, nem o prendeu. Porque cm verdade, <':01110 Antônio Francisco, andava "muito longe da perfeição", a perseguir outros ideais de beleza. E os cncolllrou no calor expressivo que punha em surda e vigorosa consonância toda a vibraç;io emocional de sua raiz romântica com todo o abrasamento místico do barroquismo renascido de mestre Lisboa. Rl.:atav, onde se publi..:ou c. sobrctudo. na onda de comentários quc certamcnte :Cvantou nas rodas literárias da velha
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Ouro Preto, aqueles Traços Biográficos Relutivos ao Finado Antônio Francisco Lisboa, Distimo Escultor Mineiro, Mais Conhecido pelo Apelido de Aleijadinho, que Rodrigo José Ferreira Bretas escrevera. O certo é que da leitura e dos comentários, se realmente existiram, não permaneceu muito na memória do romancista. Assim. por exemplo, no que respeita à famigerada deformidade física do Aleijadinho que, minuciosamente tratada por Bretas, ressurge em Bernardo Guimarâes na forma da mais simplificada tradição popular - "maneta ou aleijado da mão direita". Algo mais, porém, mudara-se na memória que os homens cultos guardavam da arte de Antônio Francisco. Bernardo Guimarães se via obrigado a render homenagens aos cânones acadêmicos para, só depois disso, deixar escapar sua própria opinião, cuja formulação autêntica só pôde chegar até nós intata, por sob a teia incômoda da artinha da "perfeição", porque a anima o calor da sensibilidade e a força duma imaginação sensível. Ora, Rodrigo Bretas, em sua famosa memória, pôde expandir-se de modo muito diferente, embora acolha as restrições já então correntes a propósito do pretenso canhestrismo linear do Aleijadinho - "porquanto o seu desenho ressente-se às vezes de alguma imperfeição" - , que os perfeitos anotadores da edição de 195 I se apressam em lançar à conta da "opinião pessoal do A., que revela certos vicios de apreciação próprios da época". O certo, porém, é que para Bretas a "alguma impafeição" contava muito pouco, nada mesmo, do ponto de vista estético. Se falando de peç.as nas quais é mais visível a acentuação expressionista (os mesmos relevos internos e externos da São Francisco ouro-pretana que até hoje suscitam justas suspeitas de goticismo à visão aguda de Sílvio de Vasconcellos), deixa escapar aquela restrição, mas aprcsenta-a numa forma bastante cauta e dosada: "Apenas atenta-se para estes trabalhos, depara-se logo com o gênio incontestável do artista, mas não se deixa de reconhecer também que de foi melhor inspirado do que ensinado e advertido,· porquanto o seu desenho". . . etc. Se, ao contrário do que conosco sucede, essa frase a alguém não parecesse suficientemente clara e indicativa dos valores que a inspiraram, Rodrigo Bretas dá406
· nos, mais adiante , nova formula ção a seu juízo crítico. escreve ndo: "Nas escultu ras do Aleijad inho obser).·a-se sempre mais ou menos bem sucedid a a imençã o de um verdadeiro artista, cuja tefldênc ia é para a expressão de um sentime nto ou de uma idéia, alvo comum de todas as artes. Faltou- lhe, como já se disse, o preceito da arte, mas sobrou- lhe a inspira ção do gênio e do espírito religioso". Então, já não cabem dúvidas quanto ao que, para o crítico, é valor domina nte. "alvo comUm de todas as artes", Que não se desmer ece ao contras te secund aríssim o do simples "precei to da arte". E, para reforça r razões, sua certeza - tão tipicam ente românt ica - acerca do borbulh ar genial que é, com exclusividade, responsável pela criação , aparece escorad a por uma erudita nota de rodapé em que se assinala a transiçã o da escultu ra frances a para o idealismo sentimental, graças à passag em. do sensual ismo de Locke para o espiritu alismo cartesia no. Rodrig o José Ferreir a Bretas era homem que sentia, mas também escond ia o que sabia. Assim temos, nestes dois registros, separad os por uns poucos anos, a mesma oposiçã o entre os valores do sentime nto e as imposições regrada s do conhec imento. Mas, enquan to em Bernar do a imagin ação sensível deve lutar, com todas as forças, para sobrevi ver às exigências da moda, em Bretas pode ela cobrar livremente seus direitos , apesar da referên cia ao "preceito" - ou devería mos dizer: exatam ente por causa dessa referência? Sintom ático, aliás, é que Bretas vá buscar apoio para sua apologi a do Aleijad :nho no famoso e lastima velmente perdido relato escrito. em 1790. pelo Capitão Joaquim José da Silva, segund o vereado r da Câmar a de Marian a, pois esse fundad or da crítica brasilei ra, que evidenc ia perfeito conhec imento históric o da arte mineira e, mais. cabal domíni o dos problem as estilísticos, defende sem reserva s a incomp arável superio ridade de Antôni o Francis co sobre seus contem porâne os e antecessores. Para além das cogitaç ões acerca da passagem do "gosto gótico" , do "gosto de Frederi co", do "melho r gosto do século passado " ao "melho r gosto francês " que, afinal, era o tema de seu tempo, quis o vereado r deixar bem patente o valor próprio e inexcedível do Aleijadinho, mesmo quando se realiza atra-
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vés desses valores transitórios das escolas e modas. "Superior a tudo e singular nas escÍilturas de pedra em todo o vulto ou meio relevado e no debuxo e ornlltos irregulares do melhor gosto francês é o subredito Antônio Francisco. Em qualquer peça sua que serve de realce aos edifícios mais elegantes, admira-se a invenção, o equilíbrio natural, ou composto, a justeza das dimensões, a energia dos. usos e costumes e a escolha e disposição dos accessorios com os grupos verossimeis que inspira f! bela natureza." Assim voltamos, por intermédio de um texto de 1790, senão propriamente ao juízo atual, pelo menos ao
plano de julgamento em que hoje nos colocamos para defrontar, em plena medida, a obra de Antônio Francis-
co Lisboa.
Nem procuramos desculpá-lo pelo impeto
expressivo de não saber desenhar, como precisou acomodar as coisas o sincero e sensível Bernardo Guimarães, nem procuramos reclamar os direitos do gênio acima dos preceitos, como deveu fazer o lúcido e entusiasta Rodrigo Bretas, que tão significativamnete transcreve, grifando as frases apologéticas, o velho vereador. Como este, reconhecemos que Antônio Francisco foi sábio no engenho e singular na arte, conhecendo e criando como nenhum outro conseguiu fazer. E que sempre assim foi, jamais se alterando, senão crescendo continuamente seu valor que - isto sim - não pode ser
igualmente alcançado pela posteridade cujas apreciações, sempre fiéis no admirar e sentir sua genialidade, menos constantes se mostraram em avaliar-lhe certas
capacidades específicas, pois, sob protesto ou resignadamente, submeteram-nas a uma pretensa codificação do belo por cujos maninhos produtos procuraram me-
dir o que de mais alto conheceu, até hoje, a arte do Brasil.
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UM LIVRO E DOZE PROFETAS
Para os que - se acaso eXIstIrem - têm a infinita paciência de acompanhar estas notas, será fácil compreender o entusiasmo com que nelas se receberão, sempre, estudos e monografias sobre o barroco mineiro e. em particular, sobre esse ainda injustiçado Aleijadinho. Até agora c em que pese a determinadas exceções, não se estudou o mestre invulgar como exigem seu próprio valor e sua importância para nossa história artística, pois. se sua bibliografia pode orgulhar-se deste ou daquele tomo mais alentado e duma ou doutra peça de pesquisa substancial e reveladora, o certo é que continua sendo cedo para falar, com PCfI-
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pricdade, de um ciclo de estudos sobre aquele que se colocou, talvez para sempre, no ápice de nossa criação plástica. Por isso, cada livro que aparece para cuidar do Aleijadinho merece, de princípio, uma acolhida feita das melhores esperanças e de antecipada gratidão. Tal o caso, exatamente, de The 12 Prophets of A monio Francisco Lisboa, O A leijadinho que recentemente publicou o Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura. Mais uma vez a inspirada ous~dia de José Simeão Leal, que aqui louvávamos de toda justiça ainda há pouco, faz sentir sua capacidade de realização do invulgar, reunindo num volume graficamente dispendioso as fotos realizadas em Congonhas por Hans Mann, artista de renome internacional. Cônscio de enfrentar uma empresa fora do gabarito comum, além dos recursos de uma excelente qualidade gráfica, resolveu José Simeão Leal adotar a colaboração de R. Debenham Clark, para o loy-oUl de paginação, e os textos introdutórios e elucidativos de Graciella Rojas Herrera. Eis que, não obstante, seriam esses elementos, convocados para a maior elevação do volume sobre os doze profetas, exatamente aqueles que nos levarão a formular algumas restrições. .. Se a qualidade artística das fotografias de Hans Mann, estejamos ou não de acordo com sua proposição visual das peças do Aleijadinho (o que mais adiante se discutirá), é sempre de primeira ordem e, pois, correspondente plenamente à sua nomeada internacional, por isso mesmo não podemos, como de hábito, ser tolerantes com seus companheiros de trabalho, desde que não se tenham aproximado dt:sse elevado nível. Porque restrições - digamos logo ~ há. E apanham, em primeiro lugar. a autora do texto, cujas responsabilidades informativas, senão mesmo didáticas, são postas em xeque por um menor rigor no colhêr e transmitir dados sobre o Aleijadinho. Um menor rigor, entendamo-nos, no sentido da atualização dos dados disponíveis e, nos últimos tempos, facilmente acessíveis, ao menos na abundante e precisa anotação de 1udite Martins, Rodrigo M. F. de Andrade e Lúcio Costa à clássica biografia escrita por Rodrigo Bretas e que inclui, além de outros elementos ponderáveis, o com410
pêndio da intensiva pesquisa documentária de toda uma esplêndida equipe. .E outras contribuições de acesso franco ainda existem, do mesmo teor e alcance, de forma a não mais se consentir que um texto publicado em 1958 repita as vagas indicações de há trinta anos atrás, quer no tocante à vida de Antônio Francisco - "o homem que se supõe tenha sido o pai do Aleijadinho, Manuel Francisco Lisboa", "deve ter começado sua formação técnica nas oficinas de seu pai e seu tio, Antônio Francisco Pombal" - quer no que tange à sua obra - "S. Francisco de Assis de Vila Rica abre a primeira página de sua carreira artística", "csta igreja representa indubitavelmente uma de suas mais completas obras de ornamelllação'·. Dessa imprecisão histórica à imprecisão propriamente crítica, vai um passo apenas. Não surpreende, portanto, que o texto de Graciella Rojas Herrera venha a incidir em alguns enganos sérios quando analisa o teor estético da realização do Aleijadinho, começando já por aquele lugar-comum da apreciação menos aprofundada que alude às "deficiências de sua preparação técnica, em particular dos conhecimentos elementares da anatomia humana". E verdade que na tradução inglesa do texto (melhor diríamos: a vcrsão, em inglês, de John Knox, tais são. as· liberdades que toma com o manuscrito castelhano original) coincide essa frase com três fotos das figuras de presépio que estão no Museu da. Inconfidência, de maneira a deixar bem claro, pelà· simples aproximação. que outros e diferentes são os caminhos críticos de quem se interessa pela concepção expressiva da figura humana na visão de Antônio Francisco Lisboa. E quem não trilha caminhos tais poderá perder-se quando em busca de Congonhas. Eis o que acontece com Graciella Rojas Herrera, já no definir as obras dos Passos, que não nos cabe dizer como possam chamar-se em espanhol e em inglês, mas que, por certo, não podem ser denominados "escellas dei Caivario de Cristo", nem como "scenes of the Crucifixioll", pois figuram momentos evangélicos de toda a Paixão, longe de resumirem-se às eslações da Via-Sacra e, muito menos, ao ato final do Gólgota. Mais grave, contudo, é o que acontece com certos elementos críticos que, a seguir, encontramos, por exemplo, acerca do velho probkma 411
da participação da mão popular ou escrava nesse conjunto escultórico, que, exposto, com muita ligeireza, é resolvido ainda com maior facilidade: "Os crítico~ afinnaram que o Aleijadinho só se ocupou pessoalmente com a execução das seis figuras de Cristo, da de Maria Madalena e das de alguns apóstolos". Ora, quem conhece a escassa bibliografia sobre o assunto não ignora a impossibilidade de conglomerarem-se seus autores, postos em franco debate polêmico, nesse pacífico coletivo de "os críticos". .. E, sobretudo, não pode esquecer-se de que, depois da restauração recentemente executada pela equipe do Patrimônio sob a direção de Edison Motta, o problema mudou substancialmente de feição. Um preconceito é, porém, algo de peso. E, pois, adotado o preconceito da deficiência anatômica de estatuária de mestre Lisboa, fatalmente viria a alcançar - pois não fúra esse outro lugar-comum da observação superficial - as figuras dos Profetas: "Como nas anteriores, ressalta nestas estátuas a desproporção anatômica, e os corpos, muitas vezes disformes e desarticulados, oferecem-se em violento contraste com as cabeças". Não se faz sequer alusão à exigência de tais distorções artísticas das estátuas (que nada, nada mesmo, têm a ver com as alegadas deformidades da anatomia natural), pelas necessidades da recomposição óptico-perspéctica, que é mandamento fundamental da formal barroca. O que talvez se pudesse deixar de parte, tolerantemente, não fora o elevado plano a que se propõe o livro e a rigidez crítica com que o próprio te~to acusa, em nota, Uffi!\ supOSta (roca das figuras de Jonas e J ool, assunto multo de discutir-se e, sobretudo, de estudar-se antes de discutir.
Não se precisará, parece, insistir em um texto que acusa tais debilidades fundamentais, revelando um menor conhecimento da matéria sem, contudo, deter-se ao ensejo de "correções" da obra que antes devera ao menos criticar, isto é, estudar com um mínimo de informações objetivas e de análises formais. Graciella Rojas Herrera desperdiçou a oportunidade, que esteve em suas mãos, de escrever o estudo mais atual e mais atualizado sobre Congonhas, preferindo permanecer no plano romântico das indicações mais ou menos legendárias e da exaltação calorosa da arte de Antônio Fran412
cisco, tal como se fazia muito tmepo atrás. Hoje, o Aleijadinho se propõe em outros termos ... Passando às fotografias de Hans Mann e, p~is, re':' gressando ao plano mais alto que nos oferecc o livro, torna-se curioso notar que também esse artista ncm sempre soube resistir à legenda romântica de Minas barroca. Ou será que, à vista do que Hans Mann realizou em Minas, teremos confirmada certa vaga ·impressão romântica que suas fotos européias já denotavam, embora apenas nos permitindo uma imprecisa e incomprovada desconfiança? Afirmemos, mais uma vez, a qualidade excepcional de seus trabalhos de câmara, para, a essa altura, interrogar-se sobre as intenções estéticas que poderiam justificar o aprisionamento de suas vistas. panorâmicas, por exemplo, ao convencional lirismo do repoussoir de ramos no primeiro plano (gritante na chapa de S. Francisco Xavier, de Ouro Preto) ou ao não menos comum recurso da filtragem de seus céus para a valorização das nuvens (como na tomada geral de Congonhas). Tudo, porém, se confirma quando; chegando âs fotos dos Profetas, peças centrais do livro, vamos sentir, numa série de verdadeiros estudos ópticos das estátuas de pedra-sabão, a dominante intencional de uma tendência a "romanizar", a "dramatizar" as feições esculpidas. Ao contrário do texto, essas excelentes fotos não pecariam por deficiência, mas por excesso. Diante delas, portanto, não cabem críticas restritivas, senão meras interrogações discursivas, pois não será o caso de acusarmos Hans Mano de não conhecer o Aleijadinho, senão apenas de argüirmos a validade do especial Aleijadinho que nos propõe. Em arte, sem dúvida, não cabem regras, mas sempre se poderá pôr em dúvida a ousada operação pela qual um artista se propõe a "desfazer" a criação de outro, repetindo os passos deste em sentido inverso. Pois não é o que fez Hans Mann, procurando forçar a voltarem à fugaz expressão humana essas máscaras que Antônio Francisco Lisboa esculpira exatamente para transcender ao humano, atingindo o eterno num conceito de figura transposta à condição de imagem pura? Sem dúvida, como à autora do texto, tê-Io-á desconduzido ·0 estado em que encontrou, lambuzadas por pobre e espaventosa pintura, as peças dos Pas413
sas. para tanto bastando verificar ~uanto o agradou o exagero caricatural das cabeças de centurião. que sublinhou naqueles mesmos acentos que a restauração Ipgo depois faria desaparecerem com toda a sua inautenticidade. Por igual, não o interessou o suposto COI1traste, hoje reduzido ao mínimo aceitável esteticamente, entre as figuras moralmente "más" e as "boas·', embora por vezes o embaraçassem os exageros sanguinolentos que, por exemplo, recobriam, em excesso melodramático, as mâsculas feições do Cristo coroado de espinhos? Seja como for, os Profetas constituíam caso muito diferente. Neles, a intenção do Aleijadinho permaneceu iota· cada e vibrante em toda a sua severíssima força. inútil, pois, seria escalar o parapeito do adro para tentar um close-up para insinuar quanto Habacuc "parece" um antigo sábio a meditar, quando sua força poderá ser captada, por inteiro, desde'a posição normal de observação, que é aquela de quem o defronta, olhando-o de fora do adro, a erguer o braço imprccante lã no alto da muralha, numa afirmação que, renovada na forma e intata na exprt:ssão, permanece até se o olhamos pelas costas, a rasgar o céu em vôo aquilino aliás) basta confrontar as três fotos do próprio Hans Mann. Infelizmente) contudo, a linha condutora do fotógrafo identificou-se com a dos "estudos fisionômicos", inadequados ao caso, e nos quais logo se revela o desejo de tornar a pedra em carne e as imagens em fisionomia. As estátuas resistem, está claro, e a tomada em corpo inteiro de Amós revela uma firmeza que ainda persiste na cabeça vista a três-quartos, desmentindo a maciez do close-up frontal de diverso intuito. E Joel só parece afastar-se de sua pétrea natureza e de sua expressão eterna, uma única vez, quando surpreendido num perfil acentuado pelas sombras e pelas nuvens. E Oséas permanece indiferente às solicitações da "pose" expressiva. E Daniel protesta contra a uorientalização", pela projeção de sombras, praticada na tomada frontal de sua máscara, para afirmar-se de outro e mais sutil hieratismo nas outras fotos. E assim também de Ezequiel, mesmo quando submetido à imperdoável violação do recorte da foto - sofrida ainda por Jere~ias -:. 'lue O autor do lay-oul. suscetível de outras 4J4
duras críticas. não trepidou em impor a peças escultóricas ... Não se creia, porém, lendo as linhas acima, que Hans Mann tenha acertado apenas quando não conseguiu errar - um artista consagrado, e que responde plenamente pelo que faz, não pode ser considerado tão simploriamente. Poderíamos, pelo contrário, afirmar que. quando a tentação reinterpretativa emocional não o colheu. isto é. quando trabalhou como o grande fotógrafo que é, e só como tal, realizou uma série de imagens verdadeiramente notáveis. Essa qualidade, significativamente, avulta menos nos close-ups do que nas tomadas gerais, tanto de estátuas isoladas quando de grupos, mais ou menos numerosos, dos profetas em seu adro sublime. Com o que se atesta o quanto a técnica fotográfica de Hans Mann pode fazer, e em tais casos fez, pela escultura de Antônio Francisco Lisboa. E com o que voltamos, da capo, às considerações iniciais desta nota para encarecer, sinceramente. a importância dessa nova contribuição ao conhecimento do Aleijadinho e de sua obra. Não há, de fato, contradições entre o aplauso dirigido à realização global e as restrições particulares sugeridas pelo seu conteúdo, sobretudo quando estas são exigidas pelo alto nível em que aquela se propõs. Resta, de qualquer forma, uma série de belas imagens sobre o que de mais belo deu. jamais, a escultura do Brasil. E quem dirá que isso não importa. e não importa muitíssimo?
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ANAT OMIA E CRITI CA
o Sr. Eugênio Luís Mauro, que, com A A nalOmia lia Obra do A leijadil1ho, ora faz sua primeir a incursão no campo da crítica, imedia tament e se impõe à admira ção do leitor pelo ímpeto apaixon ado. Desde a primeir a frase do breve ensaio evidenc ia-se seu amor pelo assunto e esse apegam ento afetivo , cego e exclusivista, como soem mostrar -se as grande s paixões , é que seguram ente o leva a investir desde logo contra LOdos os que até hoje escreve ram sobre Antôni o Francisco Lisboa. Todos erraram . Uns, pelo "entusi asmo jacobin o", outros, por "uma negaçã o também polêmi ca". Com o que, sem dúvida possível, acende ·nos a cu rio-. 417
sidade e espevita-nos o otimismo, mesmo porque afirma "necessário, inevitável, fazer-lhe, na história das artes, um lugar todo seu, onde os defeitos e as imperfeições se apequcnem frente a seus extraordinários valores" . Menos, em verdade, não merece o Aleijadinho, muito embora ainda não tenhamos exata noção do que sejam seus, assim genericamente denunciados, defeitos e imperfeições. Mas não será caso de deter-nos, hesitantes, quando o Sr. Eugênio Luís Mauro mais acresce à expectativa, prometendo, por tal sorte de análise, levar-nos à inteira psicologia do artista onde já entrevê "a timidez do mestiço, a amargura do exilado, o desalento do colonial, mas, acima de tudo, e principalmente, a angústia do pária". E, também, "um misticismo perpassado da sensação de inferioridade". Posto o que, de imediato se apega aos Profetas de Congonhas, obra de sua declarada predileção. "Somente esta obra, talvez, deveria ser examinada pelo crítico", que melhor fará, em sua opinião, se "deixar de lado aqueles frisos, aquclas decorações ( ... ) que são apenas edições sofríveis do barroco expatriado, transcritas talvez bem, ou mesmo enriquecidas, mas que nada revelam, em profundidade, da alma do artista." Novamente, não merecemos maior precisão no aplicarem-se os termos, porém agora, para nosso desespero, não conseguimos acompanhar o pensamento do crítico, impossibilitados de saber quais são esses frisos e decorações, havendo tantos em quase todas as obras monumentais do Aleijadinho. .. E nossa posição menos cômoda ainda se tornará ao sabermos que, graças a essas restrições, deveremos compreender e não nos surpreender com O que há de falho nas obras não-rceditadas, não-transcritas, isto é: inteiramente originais, de Antônio Francisco Lisboa. Antes de descer a problemas particulares, cabe assinalar que, por esta altura, já conhecemos duas coordenadas que regerão o breve ensaio do Sr. Eugênio Luís Mauro, para quem o Aleijadinho só é autêntico quando erra, sendo os seus erros, sempre, de anatomia. Sem dúvida, tal programa analítico, somado ao vigor apaixonado a que já aludimos e que transuda em cada frase da prosa rica e tendente à sonoridade poética, bastaria para marcar uma posição original, singular mesmo, e, pois, 419
capaz de justificar o inicial repúdio de tudo que até hoje se anotou nesse campo. À condição, porém, de tornar-se explícita tal inovação, por intermédio duma exemplificação segura, duma argumentação precisa. Eis o que, talvez por deficiência do leitor, não chega a estabelecer-se com a devida nitidez. Assim, mal acabamos de saber que o erro anatômico é uma espécie de timbre da autenticidade criaàora do Aleijadinho, somos postos em face de um exemplo concreto, qual seja a imagem cavaleira de S. Jorge (hoje recolhida ao Museu da Inconfidência) que, sem nos dizer por quê, o Sr. Eugênio Luís Mauro classifica entre "aquelas para as quais O artista se serviu, certamente (permita-nos os grifas), de modelos já padronizados pela estatuária lusitana". E embora se repisem, c mesmo se enriqueçam pormenores duma lenda mais do que duvidosa, qual seja a da caricatura do alferes Romão, não há a menor referência não só ao suposto "padrão" lusitano, nem tampouco ao fato de tratar-se de peça secundaríssima pela própria função original, que foi a de andar, nas procissões, escarrachada em algum cavalo manso. Com o que, por certo, se evitariam tantas acusações a falhas anatômicas que, em verdade, não passam, na maioria, de recursos ingênuos para manter melhor amarrado, em sua sela, um cavaleiro de pau no qual nada haverá de estranhável, se "os membros inferiores parecem mais pendurar-se do corpo do que sustentá-lo", sobretudo quando, de fato, não sustentam. Isso, para não aludirmos, desde logo, à possibilidade, muito provável, de tratar-se duma peça da oficina, mas não da mão do mestre. Seja como for, "os mesmos defeitos" são encontrados na figura de Cristo, do Passo do Horto, de Congonhas, "mas aqui, evidentemente, o sujeito foi sentido com outra intensidade". Do que lhe valeu essa outra intensidade, também não ficamos sabendo, pois, além do olhar ser considerado de "total inexpressividade", o "conjunto é certamente, senão totalmente falho, pelo menos mais aderente à imagem edulcorada que do Cristo tinha, naquela época, a estatuária eclesiástica". Para ser sincero, por esta altura começamos a duvidar da freqüentação que tenha o crítico das atléticas, másculas, ou então dramáticas, passionais imagens de Cristo que o barroco deixou, como também assalta-nos o temor
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de que sua acuidade visual para a verdade anatômica haja resfriado algo de sua sensibilidade à expressão artística, o que parece confinnar-se pela utilização de antigas fotos, retocadas e ~anteriores à reveladora restauração de 1957. com que ilustra suas asserções. Aumentará ainda nossa perplexidade ao saber que o crítico, ansiando por aceitar (hoje, depois de conhecidos os pormenorizados recibos ... ) a gratuitíssima hipótese de Fcu de C~~.alho, para quem as imagens seriam portuguesas, contudo detém-se, porque "se as obras não são do Aleijadinho, são de alguém que cometia os mesmos erros de anatomia". Teríamos, agora, modificadas as diretrizes iniciais do nbvo esquema artístico, talvez assim: nas obras, boas e más, do Aleijadinho, há erros de anatomia, e quando encontramos tais erros, a obra tanto pode ser do Aleijadinho quanto de alguém que padecesse das mesmas falhas. Logo, porém, nova dificuldade se ergue, porque no relevo de Jonas, do púlpito do lado da epístola da São Francisco de Ouro Preto, não só as figuras são de boa anatomia, como na do perverso que joga o profeta ao mar, os elementos anatômicos foram. sabiamente explorados em favor da expressão desejada. Antes, porém, que se destrua a sua hipótese central, acerca da ignorância anatômica do mestre, o SI. Eugênio Luís Mauro arrima-a com inesperado achado, qual seja a da deficiente discriminação anatômica. da baleia. O que se explica, evidentemente, porque "estava longe do mar o Aleijadinho, crescido nas encostas da Serra do Espinhaço"; porém não.. para nosso tormento, porque naquela peça anatomizou tão bem as figuras humanas. Desejamos assinalar, com alguma minúcia, as hesitações e, pois, os conseqüentes descaminhos do crítico, ao tentar estabelecer uma análise anatômica da obra do Aleijadinho por intermédio de peças que não se incluem no favorecido conjunto dos Profetas, porque, de início, afirmáramos muito importar o seu amor pelo objeto crítico. Agora, ao chegar às doze estátuas de pedra de Congonhas, vê-la-emas salvo tão só por esse mesmo fervor afetivo. Realmente, ainda o temos a valer-se da ciência.de que é especialista e professor, para condenar os corpos dos Profetas, mas, emb.ora ainda topemos com algumas expressões científicas, a
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análise das esplêndidas cabeças já é guiada principalmente pela sensibilidade que, afinal, dominou a pura razão instruída. Então, pode extravasar-se toda a paixão que liga, indissoluvelmente, o crítico aos doze vultos. Apesar de fiar-se nas hipóteses, pouco menos gratuitas do que as de Feu de Carvalho, que deixou José Mariano Filho. Apesar de irritar-se, em pura perda, com as transcendentes interpretações poéticas de Oswald de Andrade e de Carlos Drummond de Andrade, que não se criaram para contraprova, mas para iluminação superior da rígida objetividade. Apesar de desconhecer a origem da interpretação "mulata" e "nacional", que só pode irritá-lo tanto (a ponto de substituí-Ia por outra "escrava" e "latino-americana"), porque não a leu em Mário de Andrade, ausente de sua bibliografia. Apesar de insurgir-se até, em pura perda de tempo, contra quem aproximou, pela evidência, a contextura de composição de dois relevos do Ghiberti e de dois ,o';1tr05 do Aleijadinho, guardando, como única escusa para tanta ousadia, aquele "eu não procuro, encontro" do velho Picasso. Apesar, principalmente, da obsessão crítica de corrigir pela verdade natural a criação artística que, em hora menos feliz, tomou por porta de entrada das moradas da arte que à simples presença de sua finura de gosto e penetração sensível, já se encontravam franqueadas às suas incursões. Mas, se souber perdoar a maçada desses reparos e. . também, desses elogios que, contudo. são inerentes ao exercício da crítica da crítica, compreenderá que. ao contrário do que praticou com os confradcs, encontrará simpática acolhida por parte desses poucos que se obstinam em esclarecer um assunto e que são os primeiros a reconhecer como muito superior às suas forças e capacidades. E, se tiver ânimo para tolerar um aparente paradoxo, perceberá o quanto poderá ser útil. para os que não as dominam com a sua maestria, a contribuição da ciência anatômica. Como, para não alongar, tentaremos indicar por intennédio de um só exemplo. Se, pela simples observação e, ao menos de início, sem nenhum comprom;,:,so teórico, torna-se evidente, na obra do Aleijadinho, ora um suficiente realismo anatômico, ora uma grande indiferença pela realidade corpórea dos seres vivos, nada custa, desde logo, adotarem-se duas cautelas críticas. A primeira diz respeit(l
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Antônio Francisco Lisbo~. Fonte na Fragucsia. de Padre Faria. Ouro Prelo.
a nenhuma relação necessária, ou sequer proveitosa, entre a figura humana da criação artística e os conhecimentos exatos da anatomia, o que logo se evidencia pela consideração de certas obras-primas antianatômicas, ao modo da Gioconda sem sobrancelhas, ou da V énus, que Boticelli dotou de um tórax onde não caberia mais
do que um pulmão etc. A segunda aconselharia a reduzir-se o problema da "correção" anatômica apenas às obras indubitavelmente atribuíveis ao Aleijadinho, isto é, àquelas que, para além da atribuição tradicional e, mesmo, docurnentária, uma altíssima qualidade coloca acima do nível mais comum que se pode supor na produção da oficina do mestre ou da escola que o imitou e continuou. Então, sem falar de erros ou ignorâncias (que as peças anatomicamente "certas" desmentiriam), tcríamos como problema mais exatamente formulado o encontrar razões artísticas (cabendo insistir no adjetivo) para explicar a convocação. ou não, do conhecimento exato ou, pelo menos, do modelo natural. O que, para permanecermos fiéis aos métodos objetivos. se poderá alcançar pelo método das variações concomitantes. Nesse contexto, se as cabeças dos Profetas alteiam sobre corpos aparentemente "errados", de algo valerá afastar preliminarmente hipóteses descabidas como a de ser Antônio Francisco Lisboa "um medíocre escultor barroco e um genial escultor primitivo" que só perderia com "mais escrever e discutir detalhes técnicos". Estes, em verdade, são os primeiros a indicar como o esplêndido barroquismo no Aleijadinho não lhe consentiu moldar corpos serenos, pois ansiara, antes de mais, por acender essas doze tochas de pedra-sabão, cujas serpentinas de fogo animam a paisagem· ?acífica. Mesmo porque, hoje, não mais podemos falar impunemente duma "antítese total da decadência humanística que se esboroou, afinal, no barroco", a menos que nos resignemos a perder de vista a imensa ponte mental e passional que, só ela, ainda nos prende ao melhor do humanismo de todos os tempos. Uma vez captada a essência barroca da definição individual e coletiva dos Profetas, no interior desse mesmo grupo de estátuas, podemos, ainda, perceber, agrupar e relacionar determinadas alterações corpóreas. A mais simples inspeção empírica indicar-nos-á que, subindo naturalmente os degraus do adro famoso, só
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poderemos dar por anatomicameme "errados", por encurtamento, os braços que nossos olhos alcançam em primeiro plano. Não estará aí uma indicação (entre muitas) de que a deformação não só foi voluntária (como, aliás, se deveria supor apenas porque há aqui e alhures outras figuras "certas"), mas ainda correspon~eu ao desígnio, assaz freqüente mesmo no mais rigoroso figurativismo, da perspectiva forçada, do abatimento óptico, da êntase? De outra parte, a indicação encontra plena confirmação na ancílise das cabeças, que ao Se. Eugênio Luís Mauro tanto apraz, sendo mesmo curioso que lhe tenha escapado, por exemplo, que as feições de Naum, defrontadas, pelo espectador posto no adro, num ângulo oblíquo de meio-perfil deitando para fora do patamar, apresente, quando examinado frontal e atentamente, uma multiplicidade de eixos verticais que coloca em franca assimetria relacional o cenho, o nariz, a boca e o queixo. Ora, tal elemento, posto em confronto com a serena perpendicular correndo entre as duas porções equivalentes do rosto de Isaías, que nos espera ao pé da escadaria, indica-nos, com irrecusável clareza que, a aproximarmos o Aleijadinho da exatidão anatômica, não devemos temer, como o Sr, Eugênio Luís Mauro, pela sua ignorância, senão cogitar acerca do conhecimento seguro que lhe permitiu jogar com tal elemento, como quis e quando quis, em razão da sua própria verdade, que era a da arte, Não só conhecia o mestre essa particular ctenCla que curiosamente continua a servir de ponto de reparo no ajuizamento da figuração artística depois de séculos de constante contradição, mas ainda outras, corno a óptica, como a geometria, para só citar duas que, de um golpe, o crítico supôs desconhecidas do mestre que, seu ver, "não tinha, evidentemente, domínio seguro das leis das perspectivas", Isso porque observou haver, nos púlpitos de Ouro Preto, "corpos telescopados um pouco ao acaso", esquecendo-se apenas de que não foram eles esculpidos para serem vistos de frente, como fez o crítico e o mostra em fotografia, senão descontando-se a dupla distorção que lhes impõe o ponto de vista normal, muito inferior ao próprio cálice do púlpito, enquanto o frontal do tambor, além de inclinar-se para dentro, ainda se bombeia em linha de arbaJeta. Para rep~.t..ir a citação da preferência de Silvio de Vasconcel-
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diremos tão só que ao Aleijadinho não faltou "en_ genho e arte". Que à sua crítica atual Dão falte, correspondentemente, muito desse amor que lhe prodigaliza o Sr. Eugênio Luís Mauro, nem tampouco certa con'ienção no interpretar e alguma atenção no analisar que, proviso.riamente, não lhe sobram. Nesse esmiuçar paciente de detalhes observados e interpretações possíveis, poderia, efetivamente, constituir contribuição de importância relevante o estudo, senão propriamente da Anatomia na Obra do Aleijadinho, ao menos duma anatomia da obra de Antônio Francisco Lisboa, que ajudasse a mais precisamente conhecer c, pois, estimar os traços peculiaríssimos da sua arte.
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NOVA E EXATA CRONICA DO SANTUÁRIO DE CONGONHAS
Prosseguindo no elevado programa que impôs à sua existência de erudito infatigável, Edgard de Cerqueira Falcão acaba de publicar mais um trabalho, inscrevendo-o, como 111 Volume, nessa admirável Brasiliensia Documenta, surgida, no ano passado, com a edição dos textos preciosos de Aldenburgk e Liehtenstein. Trata-se, agora, de A Basílica do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Canzpo, apresentada no mesmo padrão gráfico, cuidado à minúcia e regrado pela técnica e gosto refinados de que nunca esse autor se afas,tou, em uma sequer de suas muitas produções. São
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335 pagtnas que, Ja ao primeiro contato, nos com uni cam todo agrado visual, não só pelas 66 admirá\'ci:estampas como, igualmente, pela composição elegantemente severa das folhas de texto. Em caso algum, porém, tal prazer poderá ofuscar o proveito histórico-crítico oferecido pelo conteúdo. Vem de bem longe o interesse de Edgard de Cerqueira Falcão pelo singular monumento de Congonhas do Campo, como tcríamos de reconhecer mesmo se não computássemos as fotos incluídas já em Relíquias da Terra do Ouro que, com o álbum de imagens baianas, constituem os marcos iniciais da sua carreira de pioneiros do livro de arte entre nós. Aliás, os pioneiros de verdade não se contentam com rasgar o primeiro caminho - voltam sempre a prolongá-lo e jamais deixam, eles próprios, de freqüentá-lo. Eis por que, em 1958, alçando-se o Sanruúrio de Congonhas à dignidade basilical, Edgard de Ccrqueira Falcão para a ocasião preparou uma edição comemorativa e, logo a seguir, uma nova tiragem aumentada dos capítulos iniciais de suas Relíquias. Assim retornava a um de seus objetos amados, reencetando anteriores investigações, para, dessa feita, alcançar acesso irrestrito à documentação jacente nos arquivos da instituição e explorá-la como nunca antes o fora. Desde então, vem realizando minudente revisão crÍtico-docurnentária de quanto (publicado ou não) já se escreveu sobre a capela de Feliciano Mendes, não se intimidando com a ampliação do campo de pesquisa, tal como lhe pareceu imprescindível, à história da devoção do Senhor de Matozinhos, não só no Brasil, mas tam bém em Portugal. Este, o conteúdo dos dois primeiros capítulos do livro ora publicado, nos quais se documentam, à saciedade e com muitas revelações, os precedentes e paralelos da devoção mineíra. Ao mesmo tempo em que se prepara, suficiente e eficazmente, o leitor para defrontar-se com o problema central da investigação, que é a história, tecida dos mais altos valores artísticos, da fabulosa capela de Congonhas. Até agora, sabia o estudioso da questão que, sobre o assunto, todas as informações impressas remontavam confluentemente à Relação Cronológica do Santuário e Irmandade do Senhor Bom Jesus de COllgonhas do Campo, publicada pelo Padre Júlio Engrácia, em 1903,
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na Revista do Arquivo Público Mineiro. Dali saíram, por exemplo. as indicações utilizadas por Manuel Bandeira no Guia de Ouro Preto e, sucessivamente, as demais. num processo quase-repetitivo que só ultimamente vinha conhecendo paulatinas correções por causa de descobertas ocorridas no decurso dos trabalhos, específicos ou correlatos, da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ora, havendo o Padre Engrácia trabalhado nos arquivos de Congonhas, o principal cuidado de Edgard de Cerqueira Falcão estava, desde o início, em confrontar a sua crônica com as suas fontes. Sucede, porém, que nos próprios arquivos existia, inédita e ignorada, outra relação cronológica, tal como a deixou o Padre Guilherme Peters, redentorista que viveu em Congonhas de 1924 a 1927. J á não era, pois, apenas uma, senão agora duas as peças derivadas do arquivo e, pelo confronto, capazes de indicar outras inspirações, que poderia e deveria examinar o investigador. E o complemento encontrado logo lhe prendeu o interesse, pois o Padre Peters impôs-se-Ihe como relator mais exato e paciente do que o Padre Engrácia, embora, como este, não escapasse a certas deficiências. Mas a peça central dos arquivos, a fonte primeira dominante das crônicas ali redigidas e, pois, a pedra-de-toque crítica de quanto sobre Congonhas se escreveu, continuava sendo o arquifamoso e menos compulsado Livro 1.0 de Despesas da Irmandade. Edgard de Cerqueira Falcão. nos últimos quatro anos, leu e releu-o, decifrando-o com paciência e transcrevendo-o com rigor, para afinal incluí-lo generosamente, linha a linha, no volume que redigiu. A mesma incomum humildade na autoria levou-o a inserir em seu trabalho uma preciosa série de documentos avulsos, inclusive os anteriormente reproduzidos pelo Padre Júlio Engrácia. Como, ainda, não se esqueceu de certos elementos, de outros autores, que antes enfeixara na tiragem especial de Reliquias - o já clássico artigo sobre O Adro do Santuário de Conganhas, de José de Souza Reis, a tradução das cartelas dos Profetas, estabelecida por Armando Tonioli, e até certa nota sobre A Arte do Santuário de Congonhas que, bem intencionada e honesta, nem por isso parece imprescindível ao contexto - tudo se completando com três artigos do Padre Gabriel T. Neves. Assim, ao 431
modo de construtor medieval e na máxima medida em que lhe foi dado despersonalizar-se, Edgard de Cerqueira Falcão coletivizou um trabalho legitimamente seu. Jamais conseguirá, contudo, realizar plenamente esse intuito, pois são bem nítidas e valiosas as contribuições que trouxe, por seu único mérito, à história do monumento. Antes de mais nada, a substancial contribuição de retificação documentária da inteira crônica da igreja de Congonhas do Campo - certo, certíssimo é que, doravante, a mais exata história do Santuário nascido da promessa de Feliciano Mendes é a que se encontra no terceiro capítulo do livro de Edgard de Cerqueira Falcão, assim transformado em peça de referência obrigatória para todos os estudiosos. Pouco importa a forma quase sintética, extremada na modéstia, isenta de apreciações pessoais, que deu o Autor ao texto, pois ° seu conteúdo é que, acima de tudo, conta, e, no caso, conta de forma decisiva. Como decisivas também são as muitas outras contribuições, de menor âmbito porém não menor significação, que deixou espalhadas no volume, quase sempre na forma de notas. Vale .examinar alguns exemplos. Como sabem os interessados, o Padre Júlio Engrácia, encontrando no Livro ]9 de Despesas a anotação, no ano de 1808, de 4 oitavas "a Antônio Francisco por uns castiçais", acreditou tratar-se de pagamento ao Aleijadinho. Nesta falsa pista, muita gente boa desviou-se, pensando, como o padre relator, que o Aleijadinho, além de tudo, tivesse ainda praticado a ourivesaria, o que provocaria a resistência de Rodrigo M. F. de Andrade que preferiu ver, nos castiçais do assentamento, peças trabalhadas em madeira. Ora, cotejando as várias anotações do livro, Edgard de Cerqueira Falcão repõe a história em SCt,lS verdadeiros termos, mostrando que em Congonhas trabalhou outro Antônio Francisco, este de Paula e ourives de profissão, a cuja arte se deveu, ao menos em parte, a fatura dos canudos do órgão, por exemplo. Nos anos em que ambos os Antônio Francisco tiveram recebimentos, o tesoureiro registrou-lhes os nomes de família, mas em outras oportunidades foi mais sumário, e embora sempre conservando ao menos os dois prenomes quando aludia ao Lisboa, tratou o Paula por todas as possíveis 432
combinações de seus três nomes. Quando já não surgem pagamentos ao Aleijadinho. presumindo-se pois que se fora de Congonhas, nos registros o Paula passou a ser, simplesmente, Antônio Francisco, mas a continuidade de trabalho dentro de seu especial ofíCio - canudos de órgão, lâmpadas, castiçais - vale como um decisivo reforço de identificação. Assim, na intrincada história de Antônio Francisco Lisboa. desfaz-se, para desaparecer de vez, uma velha e. agora o sabemos. descabida confusão. Ainda a interligação de recebimentos múltiplos dentro da linha de continuidade duma constante prcr fissional autoriza Edgard de Cerqueira Falcão a afastar a hipótese de haver intervenção, mesmo modesta, de Tomás Maia Brito, mestre canteiro. na fatura propriamente artística dos Profetes do Adro. E, com a mesma indeclinável atenção, estabelece que esse mestre sobreviveu à suposta morte que, em 1794, julgaram perceber os dois padres cronistas. tanto que aquela suposição de alguma parceria com o Aleijadinho nasce de um recibo firmado em 1800 ... Por vezes, a .retificação documentária incita a vôos mais amplos e, aí temos Edgard de Cerqueira Falcão, pro e),.~mplo, a perscrutar papéis antigos para ver se consegue autenticar a tradição oral que até hoje diz ter vindo de Portugal pelo menos uma das imagens do Bom Jesus existentes em Congonhas. Uma indicação, surgida em certo "Treslado do inventário de bens" praticado à morte de Feliciano Mendes. assegura a existência, já então, de duas estátuas e. mais, o uso de "qua_ tro toalhas de cingir o Senhor Bom Jesus", o que leva a crer que uma delas, desarticulável nos braços, conhecia o duplo emprego da crucifixão no altar e da exposição no esquife durante a Semana Santa. até que chegasse a segunda imagem. Seria. com toda a probabilidade, a que está hoje no sepulcro sob a mesa do altar-mor. Consultas a Reinaldo dos Santos e Germain Bazin acabaram por datar as duas peças. sendo a que atualmente se vê na cruz da passagem do XVII para o XVIII século, enquanto a jacente é identificável como do começo do XVI, embora, ousamos acrescentar por nossa conta. o arcaísmo de certas expressões formais ·em Portugal consintam certa flexibilidade na leitura dessa última data. .
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Pena é que o mesmo recurso ao subsídio da análise estilística não socorresse à crítica do revisor de Júlio Engrácia, no ponto em que este último, sem qualquer base, atribui ao Aleijadinho dois trahalhos de autoria identificada, mas sem qualquer relação entre si, como sejam a cartela mural do Adro e a portada do Santuário. Aquele é peça contemporânea dos Profetas e (ao contrário do que sucede com a portaria da igreja) a propensão do crítico é atribuir-lhe a autoria, ao menos no risco, a Antônio Francisco Lisboa. J á o curioso portal abarretado do Seminário, por essa mesma configuração, pelo amaciamento das linhas limítrofes do símile-frontão, pela redução linear e plana dos festões ornamentais nas colunas e arquitraves, faz logo lembrar o. gosto dominante nas Gerais nas três ou quatro décadas posteriores à morte do Aleijadinho e, pois, a tornam bem contemporânea da data de 1844, inscrita no escudo imperial que a encima. Não chega, contudo, tal tímida omissão a constituir um senão e, se o fosse, ainda as~im seria o único de todo esse livro precioso. Cuja definição, se não erramos demais no expor-lhe as altas qualidades, será doravante, a de nova e exata crônica, incluindo a definitiva lista de mestres e obras, do singular monumento. O que basta, acreditamos, para sublinhar a importância desse trabalho que, à altura dos precedentemente produzidos pelo seu autor e com importância equivalente à dos textos que o antecederam na Brasiliensia Documenta, passa a constituir elemento básico de quanto, daqui por diante, se quiser e~tudar a propósito desse ponto altíssimo de nossa arte antiga que é a capela de Congonhas do Campo.
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CRONOLOGIA DO AUTOR
1917 - Nascimento em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo. 23 de abril. 1928/32 Preto.
Curso secundário no Ginásio do Estado, em Ribeirão
1934/38 - Curso de Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
1936138 - Curso de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. 1939/42 Convidado pelo Professor Paul Arboussc-Bastide para ocupar a primeira assistência da Cadeira de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (exer~ cicio de maio de 1939 a janeiro de, 1942).
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1942 - Transfere-se com o Professor Paul Arbousse·Bastidc para a Cadeira de Política da mesma Faculdade. 1942 - Doutoramento em Política. Tese apresentada: "Alguns Aspectos Atuais do Problema do, Método, Objeto e Divisões da Ciência Política". 1941/44 -
Co·fundador e diretor da revista Clima, São Paulo.
Professor substituto da Cadeira de Política, em substituição ao Professor Paul Arbousse·Bastide. Estiveram nessa regência, como contratados, em épocas diferentes, os Professores Georges Gurvitch e Charles Morazé.
1944/45 -
1945 - Recebe o Prêmio Fábio Prado, pelo ensaio Retrato de. Arte Moderna no Brasil. 1946 Redator especializado de Política Internacional do jornal O Estado de São Puulo. 1949 - Concurso de Livre-Docência à Cadeira de Política da Faculdade de Filosofi' ':iências e Letras da Universidade de São Paulo. Tese ap• ..:entada: "O Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga". Diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo. 1951 - Organiza e instala a I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, na qualidade de Diretor Artístico.
1949/51 -
1952 - Contratado para a Cadeira de História da Arte e Estética -da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni· versidade de São Paulo. 1954 - Concurso para a Cátedra de Política da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Tese apresentada: "Homem e Sociedade na Teoria Política de Jean·Jacques Rousseau". Responsável pela Secção de Arte Literário do jornal O Estado de São Pau/o.
1956/62 -
d~
Suplemento
Diretor do Departamento de Assuntos O.1lturais da UNESCO, na Sede do Secretariado em Paris.
1962/6-:' -
1966 Delegado especial da UNESCO na Campanha de Recuperação de Veneza e Florença, Itália. 1967 - Falecimento em Milão, Itália, 17 de março, na estação ferroviária, no momento de tomar o trem para Veneza, onde ia participar de .reuniões da Campanha de Recuperação de Veneza e Florença. 1967 -
436
Sepultamento em São Paulo, dia 22 de março.
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