A Ilusão Especular
Arlindo Machado Editora Brasiliense São Paulo, 1984
ÍNDICE Prefácio da segunda edição Recolocações (à guisa de introdução) Mística da homologia automática Tempos congelados pelo obturador Arquétipos pictóricos na fotografia A perspectiva ou o olho do sujeito Recorte do quadro e alusão ao extraquadro Sutura e transferência do sujeito Poder e arbítrio do ângulo de tomada Fissuras na profundidade de campo Lentes bizarras, histeria, alucinações Aura e materialidade Uma conclusão provisória Referências bibliográficas Apêndice Exercício de crítica Opiniões sobre a primeira edição de A Ilusão Especular
Recolocações (À guisa de introdução) Levando a sério a anedota de Blow up , o fotógrafo-protagonista Thomas, num relance de sua trajetória frenética e vazia pela swinging London dos anos 1960, descobre por acaso entre as fotos de um par romântico a imagem de um cadáver misteriosamente inserida no cenário idílico e revelada pelas ampliações fotográficas. O filme de Michelangelo Antonioni, em linhas gerais, é o relato dessa descoberta espantosa, como se uma realidade insuspeitada pelos olhos negligentes do protagonista fosse de repente resgatada pela câmera, no limite da própria credibilidade do fotógrafo.À medida que Thomas ia ampliando cada vez mais seus negativos, toda uma dimensão invisível do cotidiano se impunha de forma surpreendente, revelando por detrás das formas familiares do mundo uma realidade outra que só a intervenção do aparato fotográfico pôde fazer aflorar. É muito curioso comparar essa idéia central de Blow up com o percurso de um pequeno filme de Marcelo Tassara denominado Abeladormecida Entrada
numa só Sombra , no qual uma foto familiar de um casal de favelados é sucessivamente ampliada até perder todos os seus contornos figurativos. Neste último caso, a situação antonioniana é invertida completamente: quanto mais o olhar se aproxima da foto e amplia os seus detalhes, na procura desesperada de uma realidade sufocante que se supõe estar atrás do verniz asséptico da cena familiar, mais e mais a cena se desmaterializa e perde o seu referencial simbólico,
reduzindo-se
cada
vez
mais
a
ranhuras
e
manchas
despersonalizadas, até resultar apenas na granulação característica da ampliação fotográfica. No filme de Tassara, o exame penetrante e minucioso de uma imagem aparentemente plena de ilações, pelo menos no nível das convenções figurativas, choca-se cada vez mais com a opaca materialidade da fotografia e os limites de um código enganoso na sua transparência fantasmática. Mesmo correndo o risco de uma abreviação grosseira, poderíamos dizer que a problemática desses dois filmes resume o núcleo das questões que este volume tenta enfrentar. Toda uma tecnologia produtora de imagem figurativa
vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada há pelo menos cinco séculos, no sentido de possibilitar uma reprodução automática do mundo visível – “automática” quer dizer: livre das codificações particulares e das estilizações pessoais de cada usuário. Essa tecnologia goza do prestígio de uma objetividade essencial ou “ontológica”, para usar o termo com que os seus próprios apologistas a têm caracterizado. Ela reivindica para si o poder de duplicar o mundo com a fria neutralidade dos seus procedimentos formais, sem que o operador possa jogar aí mais que um mero papel administrativo. Entretanto, basta um mergulho crítico na história dos seus desdobramentos técnicos para que possamos verificar nitidamente que a indústria da figuração automática só consegue “reproduzir” ou “duplicar” uma realidade que lhe é exterior porque opera com concepções de “mimese” , “objetividade” e “realismo” que ela própria perpetua. Ou para usar a formulação mais precisa de Pierre Bourdieu (1978: 113): “conferindo à fotografia a patente do realismo, a nossa
sociedade não faz mais que se confirmar ela própria, na certeza tautológica de que uma imagem construída segundo a sua concepção de objetividade é verdadeiramente objetiva.” O que nós chamamos aqui “ilusão especular” não é senão um conjunto de arquétipos e convenções historicamente formados que permitiram florescer e suportar essa vontade de colecionar simulacros ou espelhos do mundo, para lhes atribuir um poder revelatório. A fotografia em particular, desde os primórdios de sua prática, tem sido conhecida como o “espelho do mundo”, só que um espelho dotado de memória. Certamente, a superfície prateada e a base rígida do daguerreótipo contribuíram para essa analogia. Já na aurora de 1839, Jules Janin, explicando o que era a nova invenção, conclamava ao leitor: “imagine um
espelho que pode reter a imagem de todos os objetos que ele reflete e você terá a idéia mais completa do que é o daguerreótipo ” ( apud Owens, 1978: 75). Ora, se é verdade que as câmeras “dialogam” com informações luminosas que derivam do mundo visível, também é verdade que há nelas uma força formadora mais que reprodutora. As câmeras são aparelhos que constroem as suas próprias configurações simbólicas, de forma bem diferenciada dos objetos
e seres que povoam o mundo; mais exatamente, elas fabricam “simulacros”, figuras autônomas que significam as coisas mais que as reproduzem. Nos domínios da figuração automática, o mundo imediato das impressões luminosas passa a ser trabalhado pelo código: isso quer dizer que ao invés de exprimir passivamente a presença pura e simples das coisas, as câmeras constroem representações, como de resto ocorre em qualquer sistema simbólico. Porém, com uma diferença fundamental, que constitui o alvo principal de nossas investigações: uma vez que a imagem processada tecnicamente se impõe como entidade “objetiva” e “transparente”, ela parece dispensar o receptor do esforço da decodificação e da decifração, fazendo passar por “natural” e “universal” o que não passa de uma construção particular e convencional. É exatamente nesse ponto que as mídias mecânicas e eletrônicas do nosso tempo se tornam o terreno privilegiado das formações ideológicas: o fetiche de sua “objetividade”, no qual se acham mergulhadas massas inteiras de espectadores, é a máscara formal que oculta a intenção formadora que está na base de toda significação. Por essa razão, este trabalho, dedicado ao exame do código que opera no mais influente sistema figurativo de nosso tempo, é também uma crítica dos seus suportes ideológicos multiplicados num repertório infinito de crendices populares e teorias eruditas, de modo que se possa esclarecer porque não podem existir sistemas significantes neutros nem inocentes. Entre a verdade oculta que Blow
up revela e a máscara ilusionista que Abeladormecida desvela há uma fronteira mal conhecida e pouco desbravada, que corresponde justamente àquela complexa trama de motivações que traça o liame entre as formas simbólicas e o mundo. Uma vez que este trabalho se propõe tratar das bases ideológicas que suportam os procedimentos técnicos e formais de um sistema de signos particular, baseado na exploração da imagem figurativa, faz-se necessário, antes de mais nada, esclarecer para nosso uso particular em que sentido se está empregando essa terminologia. Embora aqui não seja lugar adequado para entrar em extensas discussões filosóficas sobre o estatuto de cada um dos conceitos, é necessário pelo menos reconhecer a complexidade das questões
que vamos levantar. Mas como o verdadeiro embate dessas questões se dará no próprio corpo do trabalho, no enfrentamento direto do objeto, esta introdução apenas nos ajudará a tornar os conceitos operativos, esclarecendo de antemão a natureza do terreno que pretendemos explorar e a intenção metodológica que o deverá conformar. RECOLOCANDO A INVERSÃO IDEOLÓGICA
Em primeiro lugar, a mais espinhosa das questões: a ideologia. Pensando-a em termos modernos, ou seja, a partir da perspectiva de classe que lhe deram Marx e Engels na Ideologia Alemã , a ideologia aparece, numa primeira aproximação mais rasteira, como o sistema das representações de que se valem os homens para se dar conta das relações materiais (naturais e sociais) em que se acham mergulhados: “Mas há também as formas jurídicas, políticas,
religiosas, artísticas, filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas, nas quais os homens tomam consciência dos conflitos e os conduzem a um fim ” (Marx e Engels, 1961: 9). Ocorre, porém, que essas “formas ideológicas” não são meros sistemas de representação transparentes: são formas de exercício da luta de classes, sofrem a pressão das forças dominantes e a resistência dos oprimidos; numa palavra, estão sujeitas à tensão das forças contraditórias que se digladiam na arena social. Numa sociedade de classes, os sistemas de representação que deveriam explicitar os fenômenos já estão eles próprios contaminados pela luta de classes e, por conseqüência, tornam-se sistemas necessariamente “deformadores”, isto é, dotados de intencionalidade, formatados pela estratégia classista, atravessados pelo crivo da classe que os forjou e que, na maior parte das vezes, coincide com aquela que detém o poder político. Os sistemas simbólicos que os homens constroem para representar o mundo são ideológicos exatamente porque, longe de constituírem entidades autônomas transparentes, estão sendo determinados, em última instância, pelas contradições da vida social.
Grosso modo , esse é o alicerce da concepção marxista de ideologia: nem Marx, nem Engels chegaram a aprofundar o conceito e, ademais, não existe uma teoria sistemática das ideologias nos escritos dos dois pensadores alemães. Na parafernália de seus desdobramentos, porém, alguns nomes (como os de Lukács, Gramsci e Althusser) produziram um impacto e uma repercussão tão esmagadores, que mesmo os seus detratores passaram a falar a sua linguagem e combatê-los no seu próprio terreno. Entregue, portanto, ao arbítrio dos continuadores da herança marxista, a matéria se agigantou e a confusão se estabeleceu, mergulhando a teoria das ideologias numa abstração sem saída. O primeiro problema diz respeito à interpretação da célebre comparação de Marx e Engels que serve de epígrafe a este trabalho, ou mais precisamente, ao esclarecimento da natureza dessa “inversão” de que se fala no citado trecho da
Ideologia Alemã : “Se em toda ideologia os homens e suas relações aparecem invertidos como em uma câmera obscura, esse fenômeno responde a um processo histórico de vida (...)”. Nessa “inversão”, os herdeiros da tradição marxista leram “distorção” e daí, por conta própria, “falsificação”, “ocultamento” das condições reais de existência. Tanto a concepção primitiva de Lukács, que via na ideologia uma “falsa consciência”, quanto a acepção mais sofisticada de Althusser, para quem a ideologia se refere às “relações imaginárias” (portanto fictícias e, de qualquer maneira, mentirosas) que os homens mantêm com suas condições de existência, implicam sempre a redução do conceito de ideologia a uma expressão marxista para “erro”. Mas se continuarmos a leitura do trecho acima referido, veremos que Marx e Engels completam assim sua comparação: “...como a inversão dos objetos ao projetar-se sobre a retina responde ao seu
processo de vida direta mente físico” (Marx e Engels, 1958: 26). Ora, ninguém poderá sustentar que, por inverter as imagens na retina, o olho “falsifica” o mundo visível. A teoria da Gestalt até poderia demonstrar, como o tem feito, que o olho “vê” inclusive imagens que não existem concretamente no mundo físico e “ignora”outras que estão à sua frente, mas nem por isso se pode concluir que o que o olho vê é “certo” ou “errado”, “verdadeiro” ou “falso”; ele apenas tem a sua maneira de ver e essa é a sua única técnica operativa. Assim como não se
pode exigir que o olho seja o que não é, assim também não se pode entender o mundo sem invertê-lo. O que Marx e Engels querem dizer com a metáfora da “inversão” é que os sistemas de representação agrupados sob o nome geral de “ideologias” não são simples “espelhos” para refletir o mundo de forma imediata: ao representar, ao construir sistemas para operacionalizar o mundo, ao articular as relações em que se acha mergulhado, o homem necessariamente “inverte”, isto é, interfere, interpreta e altera o objeto representado, porque a ação do sujeito é sempre produtiva e não pode ser reduzida à atitude do espectador passivo. Se a atividade representativa – a atividade ideológica – é “inversora”, os critérios dessa inversão estão dados pela estratégia operativa de cada grupo, gangue, clã, casta, raça ou, na sociedade de classes, por cada uma das classes que se enfrentam na arena social. As ideologias não podem ser tomadas como outra coisa que essa solidariedade dos sistemas de representação ao grupo social que os forjou numa condição dada. Entretanto, como a maior parte das vezes em que Marx recorre a esse conceito ele está trabalhando, por força do contexto, com uma expressão particular da ideologia – a da classe burguesa – grande parte dos intérpretes do marxismo se deram a liberdade de tomar o particular pelo geral, de forma que fizeram com que a função da ideologia da classe dominante designasse a Ideologia, tomada então no seu sentido burguês absolutizado e universalizado. Assim, da dominação histórica e concreta de uma ideologia passamos à dominação abstrata da Ideologia. Mas se concordarmos que os sistemas de representação de que se valem os homens estão vinculados de alguma forma às condições materiais que os produzem, então teremos de concluir que há tantas ideologias quantas são as forças efetivas que se defrontam na vida social. Assim considerando as ideologias (lato sensu ), elas não têm por que aparecer como algo necessariamente pejorativo, de que fogem os iluminados como o diabo da cruz. E neste caso, a “distorção” ou a “inversão” que elas operam não implica, em todas as circunstâncias, uma “falsificação” ou um “ocultamento” das relações efetivas do mundo, mas sim a marca (ou seja, o
ponto de vista, a perspectiva, a estratégia operativa) da classe social que as forjou (Rancieri, 1971: 16). Na verdade, se existe uma diferença radical entre a ideologia dominante e isso que poderíamos denominar as ideologias libertárias ou revolucionárias das classes oprimidas, ela está no fato de a primeira ocultar o seu caráter de classe, fazendo-se passar por uma abstrata universalidade, enquanto a segunda explicita esse caráter, desnuda o seu acento ideológico e manifesta aquilo que é: um ponto de vista oposto ao da classe dominante. De fato, para que a ideologia dominante possa aparecer como dominante, ou seja, para que ela se imponha como o sistema de representação de toda a sociedade e não de uma classe em particular, ela não pode se mostrar como ideologia. Aqueles que forjam a ideologia dominante se dizem e se julgam fora dela: a imprensa se diz “objetiva”, a religião se diz “universal”, o sistema político se diz “democrático”, a instituição jurídica se diz “igualitária” e a produção intelectual se diz “científica”. Marx e Engels observaram que a burguesia sempre transforma em leis eternas da natureza e da razão o que não são senão as suas próprias relações de produção e de propriedade: a essa prática universalizante, eles deram o nome de “ idealização da ideologia ” (Marx e Engels, 1958:331). Por essa razão, quando a burguesia atribui à bandeira da “objetividade” da intervenção social dos meios de expressão um caráter democrático, que se contraporia à utilização dirigida e
engagé dos seus adversários políticos, o que ela quer, na verdade, é impedir que sejam explicitados nos próprios meios o caráter de classe de sua intervenção, de modo que o seu acento ideológico não seja revelado, nem seja comprometido o seu efeito universalizante. De onde vem então o preconceito de que a ideologia é parente próximo da mistificação, do engodo e da falsificação das relações sociais? Que moral é essa que nos ensina que “estar na ideologia” é algo tão abominável como estar no pecado? No fundo de tal assertiva, brilha sempre o idealismo do projeto teleológico de Lukács, onde o proletariado aparece como o sujeito que realiza o objetivo da história e, portanto, como o portador autorizado da verdade. Por ser, segundo essa fantasia intelectual, a primeira classe amadurecida para a
hegemonia da sociedade, o proletariado permite que, pela primeira vez, o conhecimento “genuíno” se torne possível, enquanto a burguesia, barrada na “pré-história” das formações sociais, só pode ter como sistemas de representação “ideologias” necessariamente enganosas e mistificadoras. Tal horror à ideologia não demorou muito a se converter num namoro interesseiro para com a Teoria ou o “saber científico”, de forma que o aprofundamento da dicotomia lukacsiana conduziu à contraposição entre “Ideologia” (conhecimento reificado) e “Ciência” (representação objetiva). Ouçamos Althusser: “É preciso
estar fora da ideologia, isto é, no conhecimento científico, para poder dizer: estou na ideologia (caso excepcional), ou (caso geral): estava na ideologia ” (1974: 1O1). Em outro contexto: “ Não é por acaso que um governo burguês
reacionário ou tecnocrático prefere sempre os semi-saberes e que, pelo contrário, a causa revolucionária está em todas as ocasiões indissoluvelmente ligada ao conhecimento, isto é, à Ciência” (Althusser, 1964: 94). É certo que, em
obras posteriores, Althusser atenuou bastante seus desvarios idealistas, mas jamais renunciou inteiramente à matriz teórica que manda identificar ideologia com “distorção”, de forma que seus primeiros textos levam a vantagem de representar essa matriz em sua pureza cristalina. Mas acreditar que a teoria ou a ciência estão livres da ideologia não é apenas uma demonstração de ingenuidade, facilmente contestada inclusive pelos cientistas, mas representa também um golpe contra o próprio marxismo, que jamais se reconheceu como produtor de conhecimento inocente, mas como ciência crítica e arma revolucionária de uma classe. Os meios que cada grupo social elege para exprimir as relações em que está mergulhado são, como essas próprias relações, derivações da história desse grupo. É por isso que, na sociedade de classes, a ideologia torna-se necessariamente uma das expressões da luta de classes e, como tal, não pode ser reduzida ao dualismo moral tipo “certo/errado”, “verdadeiro/falso”, “bom/mau”: ela é contingência de nossa história e fora dela é impossível entendermos a nós mesmos. Mas os ideólogos da ideologia, incapazes de resolver a questão da ideologia nos termos marxistas da luta de classes, preferem atacá-la em termos
de estratégia paramilitar. Para que uma classe emergente conquiste a hegemonia social – raciocinam eles – ela precisa consolidar as formas de exercício de sua dominação de classe. O governo e sua máquina administrativa, as leis, os tribunais, a polícia, o exército, as prisões são aparelhos criados para garantir essa hegemonia, mas eles funcionam com base na pura e simples repressão direta e como tal se tornariam ineficazes a longo prazo, se não estivessem associados a outras formas de regulagem social mais sutis. Esse outro aparelho dissimulado, que não tem feição de instrumento de dominação e não se baseia (predominantemente) na violência física, seria o aparelho ideológico do Estado, que funciona pela “ideologia” ao invés de pela repressão: tal é o caso da religião, da escola, da família, do sistema político, do código moral, da cultura etc. (Althusser,1974: 41-52). Mas dentro de tal concepção, a ideologia se reduz à expressão da ditadura de uma classe e nesse caso ela tende a se confundir perigosamente com o conceito de poder, pois é pensada exclusivamente em termos de dominação e saturação do todo social por uma classe hegemônica. O mínimo que se pode dizer de uma concepção dessas é que ela é estática e tende a ignorar a luta de classes: a ideologia é vista como um sistema fechado e impermeável, não pode ser rompida nem transformada, não mostra contradições internas, não se deixa perfurar pela luta ideológica, isto é, pelo conflito de ideologias antagônicas no interior de cada “aparelho”. Outra questão: se a ideologia é um fato, se ela tem um papel a desempenhar tanto na reprodução das relações de produção quanto na sua superação, ela precisa ter uma expressão material: do contrário, ela seria um fantasma. Mas os críticos da ideologia não puderam imaginar para ela outro modo de existência que o puramente ideal: ideologias – imaginam eles – são “idéias”, “concepções de mundo”, “formas de consciência”, “sistemas de pensamento”, “senso comum”, “relações imaginárias” etc. Em qualquer das hipóteses, a ideologia é vista como expressão do mundo das idéias e não como expressão de relações sociais concretizadas em instituições e práticas materiais. Todavia, “a consciência
nunca pode ser outra coisa que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (Marx e Engels, 1958: 26). Nesse sentido, a ideologia é
menos um conteúdo abstrato objetivado num corpo de idéias do que um certo modo de arranjar, organizar, combinar e fazer funcionar homens, objetos e sinais no mundo. É verdade que esse problema não passou despercebido a Althusser: o indivíduo que “está na ideologia” – diz ele – manifesta essa circunstância num aparelho ou numa prática; se ele crê em Deus, vai à missa, reza, confessa-se, cumpre os mandamentos e paga dízimos. Claro que aqui Althusser está falando do ritual praticado por alguém que “está na ideologia”, mas não ainda da natureza da ideologia. O grande problema da conceituação de Althusser é que ele confunde ideologia com o “aparelho” onde ela ocorre e usa os dois termos como se fossem sinônimos. Ele está certo quando percebe a necessidade de uma existência material para a ideologia, mas não consegue resolvê-la nem em termos práticos, nem em termos teóricos, pois o “aparelho” não é a materialidade de cada ideologia: é apenas a casa que ela habita, conjuntamente com outras com quem convive dialeticamente. Incapaz de resolver o problema da materialidade da ideologia, Althusser pede aos seus acólitos que aceitem o postulado sem discussão: “É claro que, apresentada sob a forma de uma
afirmação, essa tese não é demonstrada. Apenas pedimos que lhe seja concedido,
em
nome
do
materialismo,
um
pré-conceito
favorável.
Desenvolvimentos muito longos seriam necessários para a sua demonstração”
(Althusser, 1974: 84). Ora, mas o que se trata de demonstrar está exatamente aí: o que é concretamente isso a que denominamos “ideologia”? Althusser termina por onde deveria ter começado: se ele não é capaz de descobrir a materialidade de seu objeto de exame, de onde tira ele então a sua mirabolante Teoria da Ideologia? RECOLOCANDO A QUESTÃO DO SIGNO
Já em fins da década de 1920, V. N. Volochinov, jovem marxista ligado ao chamado “Círculo de Bakhtin”, defendia em seu volume Marxismo e Filosofia da
Linguagem 1 que a realidade material da ideologia são os signos , entidades elementares que constituem todos os sistemas de representação. Constatação absolutamente simples e até mesmo óbvia se toda a tradição idealista de nossa cultura não tivesse teimado em situar a ideologia no terreno de uma quimérica “consciência”, quando não em regiões ainda mais nebulosas. Mas como defendiam Marx e Engels, até mesmo a consciência mais “pura” ou o espírito mais transcendental “já nascem condenados à maldição de estarem
impregnados de matéria, que aqui se manifesta sob a forma de casulos de ar em movimento, de sons, em uma palavra, sob a forma de linguagem ” (Marx e Engels, 1958: 30). Por essa razão – completa Volochinov – se privarmos a “consciência” de seu conteúdo semiótico (sua constituição sígnica), desses casulos de ar (ou de sons, ou de luz), não restará mais que um simples ato fisiológico desprovido de qualquer sentido. As ideologias, no entender de Volochinov, não podem ser encaradas como algo diferente dessa realidade material que lhes dá corpo, ou seja, os signos criados pelos grupos sociais no curso de suas relações. “Todo fenômeno semiótico e ideológico é dado de uma
forma material: como som, como massa física, como cor, como movimento corporal etc. Nesse sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e unitária. O signo é um fenômeno de mundo exterior. (...) No entanto, por mais paradoxal que isso possa parecer, o estudo das ideologias até o presente ainda não tirou daí todas as conseqüências necessárias ” (Volochinov, 1930: 15). O signo existe, grosso modo, para remeter para alguma coisa fora dele mesmo, ou seja, para “representar” algo que não é ele próprio; daí a definição clássica de signo: aquilo que está no lugar de alguma coisa. Mas na acepção de Volochinov, essa
“representação” das coisas se dá de forma dupla e
contraditória: os signos, ao mesmo tempo, refletem e refratam a realidade visada pela representação. Os verbos refletir e refratar, tomados da óptica, significam igualmente modificar (do latim refringere /quebrar) uma onda de luz por meio da interposição de uma superfície cristalina ou líquida. Quando os raios de luz 1
No Brasil, seguindo uma invenção da França, costuma-se creditar equivocadamente esse livro a Mikhail Bakhtin. É possível que Bakhtin tenha colaborado na redação da terceira parte apenas, mas o corpo principal das idéias é sem dúvida de Volochinov, pois não ocorre em nenhum livro de Bakhtin.
atravessam a superfície de separação de dois meios diferentes (digamos, por exemplo, que eles evoluam do ar para o vidro), formando com ela um ângulo oblíquo, uma parte deles é rechaçada ou devolvida para o mesmo meio de onde vieram (o ar), enquanto a outra parte atravessa o outro meio (o vidro). No segundo caso, como há diferença na densidade dos meios (ar e vidro) e, portanto, permeabilidades diferentes à infiltração da luz, ocorrerá uma alteração na velocidade da onda luminosa, que fará com que se modifique a direção do feixe. Ao primeiro fenômeno (devolução dos raios) a física dá o nome de reflexo e ao segundo (absorção e desvio dos raios) refração . O espelho nos dá o melhor exemplo de reflexo; quanto à refração, podemos percebê-la quando tentamos agarrar peixinhos na água e descobrimos que isso não é possível, porque os peixinhos não estão onde os vemos: a informação luminosa que deles recebemos está modificada pelo percurso da luz em dois meios diferentes. Todos os materiais dotados de superfície lisa, sejam eles o vidro, o cristal ou a água, refletem da mesma forma os raios luminosos; porém, cada material tem uma densidade diferente e portanto determinará uma refração particular dos mesmos raios: a água refrata os sinais de luz de forma diversa do vidro, por exemplo. Resulta daí que o fenômeno da refração nos impede de obter uma reprodução “fiel” dos sinais luminosos, já que ele os “deforma” ou os “transfigura” de acordo com a natureza do material cristalino interposto em seu percurso. É justamente esse caráter “transfigurador” dos signos que Volochinov tem em mente ao apropriar-se da expressão óptica refração : vale lembrar, além disso, que o termo russo usado pelo autor (prelomit ) é normalmente utilizado na conversação cotidiana com o sentido secundário de “dar uma nova interpretação”, “atribuir um outro significado”. Eis porque refratar , na acepção de Volochinov, significa operar uma modificação nos fenômenos. Mas por que o signo modifica? Exatamente porque ele não é uma entidade autônoma, que “aponta para”, ou “representa” os fenômenos do mundo com inocência, sem quaisquer mediações. Os signos são materialidades viabilizadas por instrumentos e enunciadas por sujeitos. Esses instrumentos, esses sujeitos, juntamente com os sinais materiais que eles constroem, se interpõem na
produção de signos como elementos de refração da realidade, elementos que interpretam, reformulam, transmutam os sentidos segundo a especificidade de sua realidade material, sua história e seu lugar na hierarquia social. Por essa razão, Medvedev (do mesmo círculo intelectual a que pertencia Volochinov) defendia que os sentidos dependem basicamente de dois fatores: os traços particulares do material ideológico organizado como material significante e as formas de intercâmbio social em que cada sentido se realiza (Medvedev, 1978: 9). Conseqüentemente, o signo já vem marcado pela natureza de classe do grupo que o produz: numa organização hierarquizada e conflitante, a produção social de signos condensa necessidades, interesses e estratégias de intervenção de cada estrato social. Considerar um sistema de signos como uma estrutura estável e independente dos elementos que o produzem constitui uma abstração científica. Por essa razão, criticando Saussure e suas dicotomias abstratas, Volochinov considera limitado elaborar um modelo lingüístico que cubra todos os fatos da língua, pois esse modelo abstrato oculta o fato de que a língua é praticada por pessoas no seio de uma sociedade atravessada por conflitos e reviravoltas. Malgrado as classes sociais antagônicas pareçam se servir de uma só e mesma língua, elas o fazem confrontando-se com índices de valor contraditórios: as camadas superiores têm o seu próprio linguajar, suas regras particulares de concordância e regência e um vocabulário que lhes é peculiar; já as classes subalternas consideram pedante o sistema de expressões das primeiras e resistem a se submeter à tentativa de universalização da “língua” dominante. Dialetos, sotaques, jargões e gírias são marcas de classe que atestam que também no signo lingüístico o antagonismo social se manifesta, malgrado a burguesia erudita tente uniformizar os múltiplos falares com o cabresto da gramática nor mativa. Daí a assertiva de Volochinov: “O que determina a refração
do ser no signo ideológico é o confronto de interesses sociais contraditórios nos limites de uma mesma comunidade sígnica, ou seja, a luta de classes ” (Volochinov, 1930: 27).
O leitor já terá percebido que dois dos termos que nos propusemos esclarecer na abertura desta introdução tenderam a se encontrar e a se superpor: ideologias e sistemas de signos parecem se referir, a partir do enfoque que lhes dá Volochinov, a um mesmo e único fenômeno. Porque tem uma expressão material e porque é produzido no bojo da efervescência política real, o signo ideológico resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados, razão pela qual as suas formas de manifestação decorrem das condições dessa organização. Em cada etapa do desenvolvimento social, determinados “sinais” particulares se tornam valorizados pelo corpo social que os preenche de sentidos explícitos e implícitos e deles se vale nas trocas simbólicas cotidianas. Assim é que o ouro , por exemplo, mercadoria produzida nas mesmas condições que as demais, torna-se valorizado num certo estágio do desenvolvimento, em razão da necessidade de um padrão de equivalência no mercado burguês e passa a ser o signo (moeda) do valor de troca. Todo signo ideológico está marcado por esse “horizonte social” (Volochinov) de uma época e de uma classe, razão porque “não pode entrar no domínio da ideologia, tomar
forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social ” (Volochinov, 1930: 26). Se subtraído das tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, o signo deixa de ser o meio vivo por onde passam as trocas simbólicas da sociedade, para degenerar em objeto de estudo dos filólogos. No entanto, se em determinadas circunstâncias os sistemas de signos se fazem passar por entidades autônomas, de caráter perene e universal, isso ocorre porque é função da ideologia dominante tornar monolítico o seu acento. A ideologia dominante não é apenas conservadora em decorrência da necessidade de sua perpetuação; o seu enraizamento nas formas das coisas e dos seres é tão profundo que ela tende a se conservar mesmo depois de ultrapassada a situação que lhe deu origem. Quando Barthes diz que a língua é “fascista”, “porque o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer ” (Barthes, 1980: 14), ele está se referindo a essa petrificação da estratégia dominante no signo. Embora não se coloque de um ponto de vista marxista, Barthes concebe a língua como uma legislação que nos obriga a dizer coisas com as quais nem
sempre concordaríamos se tivéssemos domínio do processo. O francês, por exemplo, nos obriga sempre a escolher entre o masculino e o feminino, “proibe- me de conceber o complexo ou o neutro” , estabelece a ditadura de uma hierarquia social, ao impor o tratamento pelos pronomes tu (para se referir aos subordinados) e vous (para se referir aos superiores), “ o suspense afetivo ou
social me é recusado ” (Barthes, 1980: 13). Poderíamos multiplicar os exemplos sugeridos por Barthes ao infinito. Em russo, o verbo casar-se é dito de duas formas diferentes: o homem usa “jenítsia ” (derivado de jená /esposa) que significa “desposar”; a mulher diz “vikhodit zamuj " (za = atrás de; muj = marido) que quer dizer “vir atrás do marido”, subordinar -se ao homem. Mesmo depois de superadas, ou pelo menos atenuadas, as relações sociais que determinaram a submissão da mulher ao homem, a língua as continua perpetuando em seu corpo simbólico: e não há outra maneira de falar que não seja a dada pela história social. Em português, pode-se recordar as metamorfoses semânticas que a óptica dominante imprimiu a termos como “indígena”, “primitivo”, “judiar”, “anarquia”, “radical”, “negro” etc, a ponto de que mesmo pessoas esclarecidas as emprega cotidianamente – e sem se darem conta – no sentido que lhes foi atribuído por uma estratégia de dominação. Há ainda o vocabulário vastíssimo das injúrias e dos palavrões, no qual se exprimem as normas dominantes num certo período com relação a temas socialmente reprimidos, como o desejo, o sexo, a marginalidade radical. Mesmo as regras de sintaxe, aparentemente mais resistentes às vicissitudes da vida social, tendem elas também a petrificar – como a antropologia contemporânea vem tentando demonstrar – o sistema das trocas, combinações e parentescos que rege o funcionamento da comunidade como um todo. “A dialética interna do signo – afirma Volochinov (1930: 27) – só se
revela em definitivo nas épocas de crises sociais e de rupturas revolucionárias. Nas condições habituais da vida social, essa contradição oculta em cada signo ideológico não pode ser descerrada porque na ideologia dominante estabelecida o signo é sempre um pouco reacionário e procura como que estabilizar o momento
precedente do fluxo dialético da formação social e valorizar a verdade de ontem como sendo a verdade de hoje ”. RECOLOCANDO A IMAGEM FIGURATIVA
Até aqui, tratamos predominantemente do signo verbal e poderia parecer que isso autorizasse supor que a palavra seja o signo ideológico privilegiado das modernas condições de produção. Nada mais inexato. Volochinov, tal como Barthes e grande parte dos modernos semioticistas, não puderam desvencilhar-se inteiramente dos padrões culturais de sua época e caíram também nas malhas da ideologia dominante ao privilegiar, sem muito senso crítico, o signo verbal como “ fenômeno ideológico por excelência ” (Volochinov, 1930: 18). Essa concepção está baseada num preceito muito familiar entre os formalistas russos, como também na psicanálise moderna, de que a palavra, por ser produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem extra-corporal, funciona como uma espécie de “discurso interior”, tornando-se, por essa razão, o meio que perpassa todos os sistemas de signos e que pode preencher qualquer função ideológica. “Na
verdade, a consciência só pode se desenvolver se for dotada de um material flexível, veiculável pelo corpo. (...) Esse papel excepcional de instrumento da consciência faz com que a palavra acompanhe como ingrediente necessário toda e qualquer criação ideológica ” (Volochinov, 193O: 19). Assim, partindo de uma premissa já bastante discutível, a de que o processo de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (visuais, auditivos, sensoriais etc) não pode ocorrer sem o recurso à linguagem verbal interiorizada no indivíduo, Volochinov tira apressadamente a conclusão de que todos os signos não-verbais banham-se no discurso verbal e não têm existência autônoma em relação a este. Mas com base em que evidências se pode afirmar que o discurso interior é composto apenas de palavras? Acaso não interiorizamos também, junto com a palavras, todo um complexo de imagens, sons, movimentos, formas geométricas, sentimentos, cheiros, paladares, sensualismo? O problema é outro: ocorre que a
palavra é o único signo que pode ser exteriorizado por qualquer indivíduo que tenha pulmões e cordas vocais, já que a produção dos demais sistemas de signos pressupõe a propriedade privada dos meios de produção (as tintas, o pincel, o instrumento musical, a câmera fotográfica, os aparelhos de gravação e toda a parafernália mecânico/eletrônica da ideologia industrializada) e a aquisição nem sempre democrática de know-how para operar instrumentos e códigos. Em decorrência disso, o indivíduo comum, desarmado de meios de exteriorização, tende a ser espectador passivo de ideologias alheias, condenado que está a viver apenas na sua privacidade interior a articulação dos signos não-verbais. Mas não estará justamente aí, nesses interstícios que escapam ao verbal, a luta ideológica principal? Não é por essas brechas que a ideologia dominante nos atinge com maior eficácia, por não estarmos aparelhados para rebatê-la e enfrentá-la no mesmo nível? Não está aí o grande desafio que os modernos meios audiovisuais de informação nos coloca, ao fazer proliferar com uma sedução irresistível a bala-de-açúcar da indústria cultural? Os termos refletir (otrajat ) e refratar (prelomit ), de que se vale Volochinov, evidentemente só podem ser utilizados em lingüística e nos sistemas verbais em geral num sentido metafórico, já que a língua não se comporta segundo as leis da óptica. Mas na fotografia (e, por extensão, no cinema e demais meios figurativos modernos) já não estamos mais no terreno da metáfora, uma vez que a câmera reflete (através do pseudo-espelho que é a película) e refrata (através das objetivas, que quebram e reorientam o sentido da informação luminosa) o mundo visível no sentido etimológico mais primordial, como qualquer corpo cristalino. Por isso, aplicadas a esses meios, as idéias de Volochinov não se resumem num esforço de enquadramento, mas encontram o terreno de aplicabilidade mais exato: é aí que, em última instância, as suas concepções revelam os seus limites e as suas aberturas mais radicais. Essa é a fissura que, dentro do texto de Volochinov, perfura de cabo a rabo o excessivo verbalismo de sua abordagem. A atualidade de suas idéias precisa ser buscada hoje para além dos limites estreitos em que ele próprio a encerrou.
Para além dos limites da palavra e de todo substrato verbal, a imagem figurativa vive um drama que é só seu e que tem alimentado a sua existência pelo menos nos últimos cinco séculos de história do ocidente: a resolução sempre impossível do problema da analogia. A perspectiva central e unilocular inventada no Renascimento introduziu nos sistemas pictóricos ocidentais a estratégia de um efeito de “realidade” e fez com que os seus artífices mobilizassem todos os recursos disponíveis para produzir um código de representação que se aproximasse cada vez mais do “real” visível, que fosse o seu analogon mais perfeito e exato. Não se tratava apenas – isso é o mais importante – de buscar recursos para representar o “real”, no sentido de que todo e qualquer sistema de signos busca de alguma forma se referir a algo “real”: a estratégia introduzida pela perspectiva renascentista visava suprimir – ou pelo menos reprimir – a própria representação, na medida em que esse analogon buscado deveria ter espessura e densidade suficientes para se fazer passar pelo próprio “real”. Na verdade, mais que analogia, o que a imagem figurativa buscou esse tempo todo foi uma homologia absoluta, a identidade perfeita entre o signo e o designado. De fato, a fotografia, no momento em que se materializa no daguerreótipo, perpetuando o modelo renascentista de codificação da informação visual, desencadeou um delírio de aperfeiçoamentos tecnológicos destinados a produzir uma impressão de “realidade” cada vez mais impositiva: do daguerreótipo passamos ao calótipo e à impressão direta em papel branco; da emulsão ortocromática (sensível apenas às radiações do azul e do violeta) passamos à emulsão pancromática (sensível a todo o espectro visível); da película preto-e-branca às viragens e depois à representação em cores (tricromia); da foto plana à estereoscopia e ao holograma; da foto fixa ao cinema e, depois, do cinema mudo ao cinema sonoro, do cinema plano ao cinema em três dimensões, da tela quadrada à tela aberta em “Cinemascope”, “Amplavision” e em 180 graus. O trabalho da técnica é impor de forma crescente um efeito de “realidade” sobre os sinais óticos, imprimir -lhes a marca de uma homologia cada vez mais absoluta e fetichista com o objeto representado. Nesse sentido, a
fotografia e seus desdobramentos tecnológicos parecem visar a uma materialização da profética narrativa de Adolfo Bioy Casares em La invención de
Morel , onde se fala de uma máquina capaz de produzir imagens humanas tão absolutamente fiéis à sua matriz (capazes, inclusive, de se mover, falar e gozar de uma existência independente) que os homens se tornam eles próprios desnecessários e até mesmo incômodos, de forma que já podem ser eliminados do cenário dos vivos: ou seja, o analogon , de tão fiel, acaba resultando autônomo em relação ao seu modelo. “O que significa – pergunta Umberto Eco (1971: 100) – dizer que o
retrato da rainha Isabel II da Inglaterra, pintado por Annigoni, tem as mesmas propriedades da rainha Isabel? O bom senso responde: porque tem a mesma forma dos olhos, do nariz, da boca, o mesmo colorido, o mesmo tom dos cabelos, a mesma estrutura... Mas o que quer dizer a mesma forma do nariz? O nariz tem três dimensões, ao passo que a imagem do nariz tem duas. Visto de perto, o nariz tem poros e protuberâncias minúsculas, de modo que a sua superfície não é lisa, mas desigual, diferentemente do nariz do retrato. Finalmente, o nariz tem na sua base dois furos, as narinas, ao passo que o nariz do retrato tem na sua base duas manchas negras que não perfuram a tela ”. Ora, se a imagem que nos é fornecida tanto pela pintura figurativa quanto pela fotografia não resiste sequer à mais elementar comparação com o seu referente, a questão ideológica básica que ela nos coloca é a seguinte: como podem nos parecer iguais às coisas que representam signos pictóricos que não têm nenhum elemento material em comum com essas coisas? Todo esforço de elaboração de uma ilusão de verossimilhança é um trabalho de censura ideológica que visa, em última instância, reprimir o código que opera no sistema simbólico, ocultar o seu papel de produção de sentidos. O que esse efeito de “realidade” almeja, no mesmo momento em que sofistica o seu aparato técnico de representação, é esconder o trabalho de inversão e de mutação operado pelo
código, o que quer dizer: censurar, aos olhos do receptor, os mecanismos ideológicos dos quais esse efeito é fruto e máscara ao mesmo tempo. Tomamos aqui a expressão código num sentido mais ágil e operativo do que o colocado em circulação pelos estruturalismos de origem saussuriana: código, para nós, é o conjunto de todos os processos de reflexão e refração que constituem o sistema simbólico; as demais concepções de código como sistema de regras de articulação fixas e formais tendem, na prática, a se revelar estéreis, na medida em que são transposições ingênuas do conceito tradicional de código lingüístico. Interessa-nos encarar, nos limites deste trabalho, o código como personificador da refração principalmente, porque é justamente essa sua propriedade primeira o que a máscara do “realismo” visa apagar em definitivo. Se é verdade que os critérios de “imitação” do mundo visível pelos signos figurativos são decorrência da história do grupo social que os pratica e se é verdade que cada grupo representa o que vê e vê o que representa a partir de certos pressupostos gnosiológicos que conformam o seu modo particular de se impor na sociedade, então o exame detalhado do código da fotografia e de seus sucedâneos deverá revelar – esperamos – a estratégia operativa da burguesia ascendente que o inventou. Isso é, pelo menos, o que nos cabe demonstrar a partir de agora.
“Se em toda ideologia os homens e suas relações aparecem invertidos como em uma c a m e ra ob s c ur a , esse fenômeno responde a um processo histórico de vida,
como a inversão dos objetos ao projetar-se sobre a retina responde ao seu processo de vida diretamente f ísico” (Marx & Engels, D i e d e u ts c h e Id e ologi e / A Ideologia Alemã).
1. MÍSTICA DA HOMOLOGIA AUTOMÁTICA A invenção da fotografia não pode ser confundida com a descoberta das placas sensíveis à luz e por isso a data de 1826 (quando Niépce registra ou fixa a imagem na chapa fotográfica pela primeira vez) é arbitrária para designar o nascimento do processo. A fixação fotoquímica dos sinais de luz é apenas uma das técnicas constitutivas da fotografia; a câmera fotográfica, porém, já estava inventada desde o Renascimento, quando proliferou sob a forma de aparelhos construídos sob o princípio da camera obscura , essa mesma camera obscura que representava para Marx e Engels a metáfora da ideologia. Tais aparelhos eram caixas negras inteiramente lacradas, que deixavam vazar luz apenas por um pequeno orifício, de forma que os raios luminosos penetravam no seu interior fazendo projetar numa das paredes o “reflexo” invertido dos objetos iluminados. Os pintores renascentistas utilizavam com muita freqüência esses aparelhos, pois eles pareciam favorecer uma reprodução mais “fiel” do mundo visível: afinal, era a própria “realidade” externa que se fazia projetar de forma invertida na parede oposta ao orifício, enquanto o papel do artista consistia apenas em fixar essa imagem com pincel e tinta. Alguns modelos mais aperfeiçoados chegaram mesmo a prenunciar os modernos sistemas reflex , fazendo a imagem rebater para o alto, através de um espelho colocado a 45 graus do orifício, de forma que o “reflexo” se fazia projetar num vidro despolido situado em cima da câmera. A história da arte nos dá provas suficientes de que a camera obscura foi invocada em diversas circunstâncias para viabilizar “retratos” mecanicamente produzidos. Sabe-se, por exemplo, que Jan Vermeer utilizou esse aparelho para construir suas Vista de Delft (l658) e Menina com uma Flauta (l665), pois algumas anomalias da composição, impensáveis numa “reprodução” baseada apenas no olho nu do pintor, denunciam a intervenção de um mediador óptico. As coroas de luz evanescente (bloom ) no casco do barco no primeiro quadro e o desfoque da cabeça de leão gravada numa cadeira no segundo são fenômenos gerados pela refração da luz nas lentes colocadas na abertura da câmera e não
poderiam jamais ter sido imaginados pelo artista. Durante o barroco e o rococó, a camera obscura foi também utilizada para possibilitar vistas panorâmicas das cidades. Observando quadros de artistas como Crespi, Guardi, Zuccarelli, Vanvitelli e os Canaletto, pode-se concluir que a perspectiva comprimida e os primeiros planos exageradamente abertos que aí se verificam só poderiam ter sido produzidos por uma lente de distância focal curta (Coke, 1964: 3). Do ponto de vista óptico, já estava resolvido no Renascimento o problema da fotografia; o que a descoberta das propriedades fotoquímicas dos sais de prata significou foi simplesmente a substituição da mediação humana (o pincel do artista que fixa a imagem da câmera escura) pela mediação química do daguerreótipo ou da película gelatinosa. Essa origem pictórica da fotografia talvez explique, entretanto, porque os primeiros fotógrafos eram quase todos pintores: a câmera era ainda um mecanismo óptico complicado e só rendia imagens nítidas e significativas se fosse manobrada por um perito em representação visual; é por isso ainda que a produção fotográfica primitiva seguiu comodamente as determinações do gosto pictórico reinante. A invenção da fotografia representou portanto o cruzamento de duas descobertas distintas no tempo e no espaço. De um lado, a fotografia se baseia no fenômeno da camera obscura , tal como foi entendido no Renascimento, e num código de representação decorrente desse fenômeno: a perspectiva
artificialis sistematizada por Leo Batista Alberti em seu De Pictura (1443). Como toda perspectiva, a artificialis consistia num sistema de projeções geométricas destinadas a representar relações tridimensionais no plano bidimensional, só que ela o fazia organizando todas as linhas perpendiculares ao plano da representação em torno de um único ponto, chamado ponto de fuga . Ela era produzida automaticamente pela camera obscura e a imagem por ela codificada mostrava-se inteiramente focada, mas com sérios problemas de definição, além de exibir uma curvatura nas partes mais afastadas do centro, conforme se pode constatar ainda hoje nas câmeras artesanais de “buraco de agulha”. No século XVI, aparecem as objetivas, inventadas por Daniele Barbaro, que consistiam num sistema de lentes côncavas e convexas destinadas a refratar a informação
luminosa que deveria penetrar na camera obscura , para corrigir os problemas decorrentes da aplicação estreita da perspectiva renascentista, mas gerando, em contrapartida, uma distorção suplementar: os problemas de foco. Junte-se os aparelhos de produzir retratos com base no fenômeno da camera obscura , a técnica da perspectiva artificialis e as objetivas de Barbaro e já temos solucionados nos séculos XV e XVI todos os problemas ópticos que intervêm no processo fotográfico. Faltava apenas descobrir um meio de fixar o “reflexo” luminoso projetado na parede interna da camera obscura . A descoberta da sensibilidade à luz de algumas substâncias tais como o betume da Judéia ou compostos de prata, nos séculos XVIII e XIX, veio solucionar esse problema e representou o segundo grande passo decisivo na invenção da fotografia. A ênfase nessa origem óptica arcaica é necessária porque ela impõe critérios de interpretação bastante distintos daqueles que proliferam quando se busca na fotografia apenas a sua origem química moderna. Se a fixação da informação luminosa na película gelatinosa é tomada como princípio do processo fotográfico, é de se supor que em toda fotografia deve intervir uma verdade originária, pois é o próprio objeto focalizado que “imprime” os seus sinais nos grãos de prata do negativo. Assim, ignorando os códigos pictóricos historicamente formados que estão implícitos na concepção do sistema óptico da camera obscura , esse ponto de vista menospreza os processos de refração que modificam a informação luminosa fixada na película e se faz cego ao arbítrio da convenção fotográfica. Sem dúvida, o raciocínio mais generalizado, o ponto de vista predominante que envolve a fotografia como fenômeno semiótico é o dos “realistas” (tomamos aqui a expressão “realista” no sentido que lhe dão os teóricos da fotografia; não há relação direta com a escola literária de mesmo nome surgida na Europa no século passado) e, nesse sentido, vale a pena seguir a sua evolução para trazer à tona os seus suportes ideológicos. A visão “realista” coincide, de certo modo, com a concepção ingênua e largamente aceita por todos de que a fotografia fornece uma evidência: não se coloca em dúvida que ela “reflete” alguma coisa que existe ou existiu fora dela e que não se confunde com o seu código particular de operação. Alguns povos
ditos “primitivos” acreditam que a fotografia lhes rouba o espírito e resistem em ser fotografados, temendo que alguma parte de si mesmos seja fixada no celulóide. Balzac defendia, em seu tempo, que todos os corpos físicos estavam revestidos de um número infinito de capas fantasmáticas ou auráticas, de forma que cada vez que alguém ou algo se deixava fotografar uma de suas camadas espectrais era transferida para a película e a figura resultava empobrecida (Nadar, 1981:128). Esse ponto de vista prolifera também entre nós, embora de uma forma sublimada, quando recusamos a nos desfazer da fotografia de uma pessoa amada ou nos agarramos à foto de um parente morto, guardamo-la com mil cuidados, como se fosse uma parte viva que dele restou em nossas mãos. Não temos todos nós o álbum de família que compila as imagens que nos são caras, como evidências incontestáveis de uma realidade que existiu e que permanece existindo na forma simbólica da fotografia? Quando a moça “traída” rasga em pedacinhos a fotografia do amante cruel, ela está reproduzindo uma operação mágica, muito semelhante à de certos povos “primitivos” que acreditam poder destruir um rival violentando a sua imagem representada em bonecos. Às vezes, porém, essa concepção de fotografia como uma emanação direta da coisa fotografada pode assumir feições menos sublimes: todos os documentos exigidos de nós pelas instituições de poder só são validados pelas fotos, o que significa dizer que somos oficialmente identificados pela imagem que a câmera fotográfica nos dá de nós mesmos. Paradoxo à parte, um indivíduo que não se parecer com sua foto comete hoje contrafação criminosa. A polícia se utiliza da fotografia para identificar manifestantes nos acontecimentos políticos e depois prendê-los com base na “evidência” fisionômica fornecida pelos grãos de prata, como aconteceu, por exemplo, durante a Comuna de Paris (Barthes, 198Oa: 25). Não se sabe, é claro, se os justiçados coincidem exatamente com os fotografados, mas o que importa para a instituição é menos a correção dos atos do que a eleição de um critério de “verdade” universalmente aceito e socialmente respeitado. Até mesmo nas atividades científicas, às vezes, o “reflexo” fotográfico é utilizado de forma impensada como critério de verdade,
como por exemplo no uso que fazem dele alguns antropólogos, crentes de que a câmera favorece uma abordagem do “primitivo” muito mais imparcial e isenta de preconceitos, já que ela nos dá o povo observado “como ele realmente é”, sem interferência ou projeção pessoal do observador (Collier Jr., 1973: 4-7). Por toda parte, há um consenso de que a fotografia coincide com o seu referente, já que é uma emanação luminosa dele próprio. Não sem motivo, essa confusão “ontológica” entre o signo e o objeto designado tem criado problemas incontornáveis para o direito burguês; a quem pertence uma foto: ao fotógrafo ou ao sujeito fotografado? Ou para exemplificar em termos limítrofes: a foto de uma paisagem divulgada por um veículo de imprensa pertence ao proprietário da câmera ou ao proprietário das terras? A famosa atriz inadvertidamente fotografada nua em sua casa de praia tem direito a indenização legal do fotógrafo que se apoderou de sua imagem? Ao distribuir objetos e processos de nosso mundo em sua célebre classificação dos signos, Peirce coloca a fotografia na categoria dos índices , ou seja, entre aqueles signos que se referem ao objeto por conexão física, por serem realmente afetados por ele, como uma impressão digital. “ As fotografias – diz Peirce (1978: 159) –
especialmente as do tipo instantâneo, são muito
instrutivas, pois sabemos que, sob certos aspectos, são exatamente como os objetos que representam. Essa semelhança, porém, deve-se ao fato de terem sido produzidas em circunstâncias tais que foram fisicamente forçadas a corresponder ponto por ponto à natureza”. Tal é também o ponto de vista de
Susan Sontag (1979: 154) ao considerar que “a fotografia não é apenas uma
imagem (como a pintura é uma imagem), uma interpretação do real; ela é também um traço, algo diretamente gravado pelo real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. Enquanto a pintura, mesmo aquela que conhece os padrões fotográficos de analogia, não é nada mais que uma declarada interpretação, uma fotografia se restringe ao registro de uma emanação (ondas de luz refletidas por objetos) – um vestígio material de seu objeto em uma forma que nenhuma pintura pode reconstituir ”.
Em ambos os casos, a analogia da foto com o seu referente é justificada com base na pura e simples realidade química do processo fotográfico: são ondas de luz refletidas pelo referente que vão impressionar a película e determinar a configuração final da imagem. Nenhuma referência à refração imprimida pelo aparato técnico, nenhum peso atribuído à enunciação da analogia. Vista dessa óptica, a fotografia implica um rito quase sagrado, que se corre o risco de profanar ao interpor-lhe expedientes técnicos: ela é como o rosto de Cristo impresso em sangue na toalha de Verônica. A esse respeito, aliás, André Bazin (1958: 16) coloca entre os ancestrais da fotografia o Santo Sudário de Turin! Parodiando um rançoso periódico alemão citado por Walter Benjamin, se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, a imagem humana refletida pela fotografia não conterá o mistério divino que materializa esse laço invisível? Ajoelhemo-nos por via das dúvidas. A expressão mais cristalina dessa concepção quase mística do fenômeno fotográfico nos é dada por um texto clássico sobre o assunto: Ontologie de l
image photographique , escrito por André Bazin nos anos 50 e que ainda hoje faz escola. Para Bazin, a origem mais remota da fotografia está na técnica do embalsamento dos egípcios, ou mais exatamente naquilo a que ele chama o “complexo” da múmia. “A religião egípcia, dirigida inteiramente contra a morte,
fazia depender a sobrevivência da perenidade material do corpo. Isso permitia satisfazer uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte não é senão uma vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é arrancá-lo do rio da duração: dispô-lo para a vida” (Bazin, 1958: 11). Com o avanço da civilização, as artes plásticas teriam camuflado as suas funções mágicas: ao invés de se fazer embalsamar para driblar a efemeridade do corpo, as pessoas passaram a se fazer retratar. Mas a técnica do retrato não faz senão sublimar com um revestimento lógico esse desejo de exorcizar o tempo e de salvar o ser de uma segunda morte espiritual. “Não se trata mais da sobrevivência do homem, mas mais genericamente da
criação de um universo ideal à imagem do real e dotado de um destino temporal autônomo” (Bazin, 1958: 12).
Mas na busca do seu duplo ideal e perfeito, o homem se defrontava com uma limitação: a de sua própria mediação. Um acontecimento decisivo no século XV, entretanto, permitiu dar o primeiro passo em direção a uma imitação automática do “mundo exterior”, liberando-a inclusive da mediação humana: a invenção da
perspectiva artificialis , que para Bazin (1958: 12) é um sistema científico objetivo. Essa invenção teria desencadeado uma série de aperfeiçoamentos técnicos que iriam resultar finalmente na “satisfação completa de nosso apetite de ilusão por
uma reprodução mecânica da qual o homem está excluído ” (1958: 14): a fotografia. A grande novidade da fotografia em relação à pintura residiu, portanto, nessa objetividade que Bazin não hesita em chamar de “ontológica”. Não por acaso, as lentes que vão constituir o olho fotográfico, substituindo o olho humano do artista, chamam-se justamente objetivas , porque dão veracidade às imagens fixadas na película e as submetem a uma “transferência de realidade
da coisa para a sua reprodução ” (1958: 16). “Essa gênese automática desmantelou radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade ausente de toda obra pictórica. Sejam quais forem as objeções de nosso espírito crítico, nós somos obrigados a acreditar na existência do objeto representado, efetivamente re-presentado, isto é, tornado presente no tempo e no espaço ” (1958: 16). O operador da câmera entra nesse jogo “apenas” para fazer a escolha do quadro e dar a orientação da tomada. “Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada se
interpõe a não ser outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente sem a intervenção crítica do homem, segundo um determinismo rigoroso. (...) Todas as artes estão fundadas sobre a presença do homem; só na fotografia contamos com a sua ausência. Ela age sobre nós enquanto fenômeno natural, como uma flor ou um cristal cuja beleza é inseparável de suas origens vegetais ou telúricas ” (1958: 15). Conhecesse Bazin, entretanto, o verdadeiro significado da construção perspectiva que está embutida na câmera e ele teria o desprazer de verificar que nada é mais
subjetivo do que as objetivas fotográficas, porque o seu papel é personificar o olho do sujeito da representação. Mas vamos por partes.
“A fotografia tem qualquer coisa a ver com a ressurreição”, pois ela permite materializar essa coisa terrível que é o retorno do morto – assim fala o mais brilhante e ardoroso pensador da fotografia como “reflexo”: Roland Barthes (1980a: 129s). Reclama Barthes da limitação das abordagens sociológicas, semiológicas e psicanalíticas, pois qualquer aproximação científica se verá constrangida a encarar o código, ao invés do referente da fotografia: conseqüentemente, “face a certas fotos eu me torno selvagem, sem cultura” (Barthes, 1980: 20). Para Barthes, falar do “significante” ou do código da fotografia não é evidentemente uma tarefa impossível, mas é um esforço secundário de reflexão. A fotografia tem qualquer coisa de tautológico, ela não se distingue jamais de seu referente. “Pode-se dizer que a fotografia traz sempre
consigo o seu referente, todos os dois surpreendidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no seio de um mundo em movimento; eles são colados um ao outro, membro por membro, como o condenado acorrentado a um cadáver em certos suplícios” (1980a:17). Todavia, ele se vê logo na contingência de
esclarecer em que sentido o referente da fotografia difere daquele de outros sistemas de representação. O referente fotográfico para Barthes não é apenas a coisa facultativamente real que foi colocada diante da objetiva e sem a qual não haveria fotografia. O pintor pode representar uma paisagem apenas de lembrança, ou mesmo simular uma paisagem imaginária; o escritor trabalha com signos que apenas remotamente apontam para um referente concreto; mas diante de uma foto ninguém pode negar que “a coisa esteve lá”: a presença do objeto fotografado nunca é metafórica. “E uma vez que essa coação não existe
senão para ela (a referência), nós devemos tomá-la, por redução, como a própria essência, o noema da fotografia. O que eu intenciono numa foto (...) não é nem a Arte, nem a Comunicação, é a Referência, ordem fundadora da Fotografia” (1980a:120). Para ilustrar, Barthes cita uma foto antiga, tirada num
mercado de escravos, onde se via o senhor rodeado de seus escravos de tanga; o que o impressionava nessa imagem era o fato de tratar-se de uma foto e não de uma gravura, o que quer dizer que aquilo tudo havia ocorrido de fato: “... não
é uma questão de exatidão, mas de realidade: o historiador não era mais o
mediador, a escravidão era dada sem mediação, o fato era estabelecido sem método ” (1980a: 125). A visão fotográfica baseada no culto do “reflexo” pode aparecer tanto como a crença ingênua do “homem comum”, quanto sob a forma de um raciocínio mirabolante, pleno de acrobacias teóricas. Em qualquer das hipóteses, o observador se faz cego ao mecanismo óptico que está informando a imagem e se deixa fascinar pela mística das emanações luminosas que se fixariam automaticamente na película, por força de algum poder mágico inerente ao aparelho. Mas o fenômeno fotográfico não é tão simples assim. Se me exponho ao aparelho de raios infravermelhos, corro o risco de ver os sinais emanados pelo “referente” impressos em minha pele sob a forma de queimadura. A planta registra os raios luminosos que incidem sobre ela sob a forma de fotossíntese, a pele sob a forma de bronzeamento: em qualquer circunstância, temos reações fotoquímicas muito semelhantes à sensibilização dos sais de prata na película e que, no entanto, não resultam em chapas fotográficas. A película só poderia registrar por si só uma informação luminosa coerente e inteligível, vale dizer fotográfica, por contato direto com outra imagem plana; só que aí não teríamos propriamente uma foto, mas a simples duplicação de uma imagem já anteriormente composta e enunciada: esse é o princípio da copiadora eletrostática. Nos anos 20, Moholy-Nagy e Man Ray inventaram técnicas de fotografia sem câmera, a que denominaram respectivamente “fotograma” e “rayograma”, e que consistiam em colocar objetos diretamente sobre a película sensível para “imprimi-los” aí através de uma luz móvel. O resultado final, entretanto, nada tem de “fotográfico” no sentido “realista” do termo: são paisagens inteiramente abstratas, de afinidades com as vanguardas nãofigurativas da época. Isso quer dizer que as emanações luminosas do referente só podem resultar em imagens fotográficas após elas terem sido transformadas pelo dispositivo óptico da câmera. Claro que a construção de uma imagem na superfície da película depende sempre de um referente que posa diante da câmera, pois o aparato fotográfico não pode gerar uma imagem a partir dos seus próprios meios.
Mas não se pode daí tirar a conclusão de que a imagem fotográfica seja apenas a fixação do seu “reflexo” e, por conseqüência, o correspondente mais exato e fiel do modelo que o gerou. Ao penetrar na câmera, a informação luminosa é codificada e se deixa reestruturar para conformar-se à convenção de um sistema pictórico. Barthes sentencia: sem referente não há fotografia; mas nós poderíamos completar: só com o referente, muito menos. Se não existir a câmera escura, a lente com seu poder organizador dos raios luminosos, um diafragma rigorosamente aberto como manda a análise da luz operada pelo fotômetro, um obturador com velocidade compatível com a abertura do diafragma e a sensibilidade da película, se não houver ainda uma fonte de luz natural ou artificial modelando o referente e um operador regendo tudo isso, também não haverá fotografia, muito embora o candidato a referente possa estar disponível. A ênfase no referente, a concepção de fotografia como reflexo bruto da “realidade” só se pode justificar como postura estratégica, isto é, ideológica. Resta saber que ideologia é essa. Que realidade – pergunta Brecht – nos mostra uma foto das indústrias Krupp? Talvez ela nos possa falar da disposição das máquinas, do modelo de macacão usado pelos operários, da sucessão de etapas na linha de montagem, das condições de iluminação, em uma palavra: quase nada (Benjamin, 1977: 384). A simples réplica do mundo visível, exposta tal e qual, sem qualquer mediação, não nos dá qualquer informação importante sobre a realidade. Onde ficam nessa foto as relações sociais de produção, a exploração de mais-valia e tudo isso que forja a realidade propriamente dita do ambiente industrial? Os “realistas” sempre pressupõem tacitamente que a coisa mais evidente, a mais notória, aquela que menos exige o exame de seu sentido, é justamente a “realidade”; mas de que realidade falam eles? Na verdade, eles endossam o equívoco imposto pela ideologia dominante, ao considerar uma certa representação da realidade como a realidade mesma e um determinado modo de apropriação do mundo como o único autêntico. Marx sempre insistiu na distinção entre a aparência visível do mundo e o seu movimento real invisível, de onde decorre, como premissa metodológica do marxismo, que o conhecimento não é nunca contemplação,
mas ação sobre o mundo. As coisas não são como elas “se mostram” ao olhar desprevenido: para compreendê-las, é preciso fazer um desvio , dar um salto “por trás” da miragem do visível, destruir a aparência familiar, natural e reificada com que elas aparecem aos nossos olhos, como se fossem originárias em si mesmas e independentes do sujeito que as opera e modifica. A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e predestinada, impressa de forma imutável nos objetos do mundo: é uma verdade que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e produzida. Nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se não pudéssemos ao mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la, modificá-la: a ação humana é ativa e por isso as nossas representações tomam a forma ao mesmo tempo de reflexo e refração. A fotografia, portanto, não pode ser o registro puro e simples de uma imanência do objeto: como produto humano, ela cria também com esses dados luminosos uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela, mas precisamente nela. É somente a partir desse ponto de vista que uma foto das indústrias Krupp começa a nos interessar: como intervenção de um aparelho produtor de ideologia. Os dois anti-heróis do Les Carabiniers de Godard – Michelangelo e Ulisses – após engajarem-se no Exército Real com a promessa de ricas pilhagens, retornam finalmente às suas humildes cabanas, trazendo numa mala o resultado de sua conquista do mundo: milhares e milhares de cartões postais, com fotos coloridas de todos os tesouros do planeta, sejam eles classificados na categoria Cidades Principais, ou Monumentos, Maravilhas da Natureza, Aviação, Ruínas Históricas, Obras de Arte... Porque a fotografia aparece, aos olhos ingênuos, como uma fixação “real” do referente, a posse de uma antologia de imagens parece redundar num domínio sobre a coisa fotografada. É assim que a fotografia aparece sob a ideologia dominante: como apropriação do referente, não para fins de conhecimento, mas para garantir uma posse, um poder, ou pelo menos um controle. É bastante irônico perceber que a sociedade que dá toda a ênfase ao referente, mantêm paradoxalmente o maior desprezo por ele; o referente não é quase nunca o objeto de que se busca aproximar, num ato de interrogação e respeito, mas a coisa que se quer apreender a qualquer custo,
para fixar, catalogar, arquivar e manter sob controle, ao alcance da mão. “Marx
criticou a filosofia por ter simplesmente procurado compreender o mundo em vez de tentar modificá-lo. O fotógrafo (...) sugere a inutilidade até mesmo de tentarmos entender o mundo e em lugar disso propõe que o colecionemos”
(Sontag, 1979: 82). A mesma Susan Sontag que disse essas palavras observou também a grande afinidade técnica e operacional que existe entre a câmera e o fuzil: ambos têm o mesmo dispositivo de mira, apontam igualmente para o objeto e disparam; só que a fotografia rouba apenas simbolicamente a vida da vítima (Sontag, 1979: 15). Alguns aparatos chegaram mesmo a incorporar ostensivamente o desenho de armas bélicas, como é o caso, entre outros, do canhão fotográfico de Talbot, do foto-revólver de Enjalbert e do fuzil fotográfico de Pickard. Mas o que Sontag esqueceu de dizer é que essa afinidade é mais profunda do que pode
parecer à primeira vista: as duas tecnologias são
intercambiáveis entre si, dependendo das conveniências. O mesmo aborígine que está sob a mira de minha câmera, poderia estar sob a mira de meu fuzil; por via das dúvidas, o turista e o desbravador levam consigo os dois aparelhos. É por isso que as imagens fotográficas que proliferam na grande imprensa, mesmo quando focalizam distúrbios e revoluções, pragas e hecatombes, trazem consigo essa marca de segurança e conforto, sem a qual a comunidade dos leitores médios entraria em pane: afinal, se um fotógrafo da UPI pode furar o cerco inimigo e capturar o referente, por que um fuzileiro americano não poderia fazê-lo? Até o limite em que a segurança das instituições não está em jogo, a classe dominante tira fotos; ultrapassado o limite, ela atira fogos.
2. TEMPOS CONGELADOS PELO OBTURADOR A pintura figurativa, de quem a fotografia se pretende uma continuidade, cristaliza como esta um momento preciso do objeto, mas o momento fixado pela pintura é sempre aquele tempo ideal e privilegiado, pleno de sentido e intenção, no qual estão condensados todos os instantes significativos que concorrem para o tema. Os figurantes que aparecem na Ceia de da Vinci estão fixados naquele momento ideal para o qual convergem todos os instantes particulares: Judas escondendo os 30 dinheiros da traição, Pedro levantando o punhal à procura do traidor, Tomé duvidando da afirmação do Mestre de que alguém o iria trair e assim por diante. Mas o momento captado pela fotografia é sempre esse tempo impensado e aleatório, esse centésimo de segundo destituído de controle, em que o acaso não pode ser inteiramente abolido por uma intenção. A modelo pisca justamente no momento em que se abre o obturador e sai de olhos fechados; a bela atriz coça o nariz no instante exato em que o fotógrafo a capta num instantâneo, resultando a careta grotesca de um monstrengo. Antes de mais nada, é preciso considerar que cada tomada de câmera corresponde a um intervalo de exposição ínfimo, escolhido mais ou menos arbitrariamente dentre os inúmeros outros intervalos próximos. Como conseqüência, esse “registro” de uma emanação do referente resulta também a petrificação dessa fração infinitesimal de segundo escolhida num leque de possibilidades. Daí porque se pode falar de um certo caráter aleatório da imagem obtida pela câmera: pode-se dizer que o obturador que torna visível a luz na película é ele próprio cego e governado pelo acaso. Num primeiro momento, esse arbítrio do mecanismo enunciador parece reforçar a crença no automatismo da “fixação” fotográfica, já que revela uma impotência da vontade do operador. Não tendo aparentemente condições de controlar de maneira definitiva o instante exato em que deve piscar o obturador, o fotógrafo só pode abordar o motivo a partir de operações estocásticas, mas isso não impede evidentemente que detalhes inteiramente imprevistos ou indesejáveis sejam impressos na película. É certo que a fotografia encontra-se
marcada, depois de Cartier-Bresson, pelo conceito de momento decisivo , um certo senso de oportunidade de que são dotados alguns
fotógrafos mais
perspicazes e que consiste em apertar o botão do obturador no instante mais adequado, naquele em que o motivo encontra-se mais carregado de significados. Mas o fotógrafo sabe muito bem que em todo momento decisivo há também uma alta porcentagem de acaso, não sendo raros os casos em que o que há de realmente decisivo na escolha do momento fotográfico é a felicidade da emergência do momento qualquer. Os acidentes do acaso são muito mais freqüentes do que se possa imaginar, mas o espectador ou usuário da fotografia não chega a tomar consciência disso, porque as fotos que ele vê cotidianamente nos álbuns, nas revistas, nas galerias são quase sempre as fotos felizes, aquelas em que o controle estocástico surtiu efeito, reconciliando a imagem com o modelo figurativo da pintura; as demais são simplesmente destruídas ou negligenciadas ainda sob a forma de “contato”. Esse “determinismo” – digamos assim – do processo fotográfico, essa resistência a toda moldagem exterior da parte de um agente manipulador, tudo isso constitui um dos fatores decisivos que permitiram florescer e prosperar o mito da objetividade do produto fotográfico. “Em princípio – afirma Max Bense (1971: 205), numa discussão sobre a viabilidade estética da fotografia – a fotografia se distingue pelo fato de que a
cada ponto da superfície-imagem corresponde um ponto que lhe é exterior. (...) Toda fotografia exibe – por si própria – um sistema de coincidências e, como se sabe, sobre essas coincidências repousa, em última análise, a possibilidade de experiência do mundo real ”. Será possível? Observemos uma foto de Carlos Fadon Vicente onde essa assertiva resulta visivelmente contestada (figura 1). Fadon trabalha propositadamente com uma velocidade de obturação baixa em relação ao deslocamento da mulher no plano mediano. Como resultado, nós podemos ver entre as formas fixas nitidamente definidas da paisagem urbana uma mancha disforme imprimida pelo deslocamento de uma transeunte diante da câmera. Essa mancha despersonalizada corresponde “ponto por ponto” a quê? É possível falar de uma “experiência real” a propósito dessa foto, ou não
se trata mais propriamente de uma transfiguração que só o aparelho fotográfico permite acontecer? Não se pode concluir com toda inocência que o aleatório do processo fotográfico implica um reforço do efeito homológico. O obturador tem a sua própria forma de tornar visível o referente, de resto bastante diversa da forma como o olho humano vê: ele é uma fenda que se move em alta velocidade sobre a superfície do filme, expondo cada parte deste último em diferentes momentos. Não podemos nos esquecer de que esse único fragmento temporal que o acaso escolheu para congelar na foto é também ele composto de infinitos outros instantes que o obturador, todavia, não sabe distinguir. Tanto isso é verdade que se tivermos diante da câmera um motivo em movimento, a película “fixará” não mais um momento absoluto, o aqui e agora imposto pelo acionamento do mecanismo, mas o deslocamento do motivo em vários “instantes” superpostos uns aos outros, de uma forma que só o obturador pode produzir. A célebre fotografia que Jacques-Henri Lartigue tirou durante o Grande Prêmio Automobilístico da França, em 1912 (figura 2 ), é o melhor exemplo dessa dilatação própria da imagem fotográfica: como resultado de um tempo de exposição muito longo em relação ao movimento dos carros e de uma modalidade de obturação que “varre” o quadro da câmera em instantes sucessivos (obturador de plano focal ou de “cortina”), o referente resulta visivelmente distorcido, com os volumes comprimidos e as linhas verticais inclinadas para a frente (as rodas do automóvel) ou para trás (os espectadores do fundo). Isso ocorre porque à medida que o obturador ia “varrendo” o quadro, o motivo ia se deslocando, de sorte que a cada posição do primeiro correspondia um avanço na posição relativa do segundo. Ao mesmo tempo, uma vez que o fotógrafo moveu a câmera durante o acionamento do gatilho, para acompanhar o carro em movimento, esse gesto interferiu também na “fixação” dos espectadores do fundo da cena: quando o obturador estava imprimindo a imagem de suas pernas, a câmera estava numa posição, mas ao chegar às suas cabeças a posição da câmera já havia mudado. Esse efeito de achatamento e inclinação tornou-se tão comum nas fotos de objetos velozes que,
por transferência semiótica, os próprios desenhistas e artistas gráficos passaram a usar essa convenção para representar a velocidade, como se pode ver sobretudo nas histórias em quadrinhos. Já os obturadores que se abrem em círculo a partir do centro (obturadores tipo Compour ou de “íris”), pelo contrário, desintegram a imagem, reduzindo-a a um borrão indistinto, quando o tempo de exposição é longo em relação à velocidade do motivo. É verdade que a técnica fotográfica, desde o começo do século, tem feito progressos no sentido de reduzir o tempo de exposição a alguns milésimos de segundo, mas ainda assim é preciso considerar que a tecnologia se trai a si mesma: quanto mais aumenta a velocidade do obturador, mais proliferam também os referentes velozes (os veículos e projéteis, novos referentes fotográficos, atingem a velocidade supersônica), de modo que a corrida parece não ter fim, pelo menos até o limite da velocidade da luz. Até aqui, tratamos de uma discrepância entre a velocidade do obturador e a velocidade do objeto fotografado, de que o fotógrafo pode valer-se para fazer emergir visões inteiramente inéditas a partir de um aparato supostamente mecânico de duplicar o “real”.Mas digamos que o dispositivo técnico está ajustado para congelar o movimento num instante ínfimo, como é o caso aliás de qualquer foto convencional. É possível então falar de um ganho de objetividade e verossimilhança? Talvez sim, mas aí os critérios a partir dos quais definimos o que é “objetivo” e o que é “verossímil” devem ser reformulados à luz da nova experiência que possibilita o instantâneo fotográfico, necessariamente mais analítica e abstrata do que a experiência óptica habitual. “A natureza que fala à
câmera – explica Walter Benjamin – é distinta da que fala aos olhos; distinta sobretudo porque um espaço elaborado inconscientemente aparece no lugar de um espaço que o homem elaborou com consciência. É possível, por exemplo, que alguém se dê conta, mesmo que seja de forma bem geral, da maneira de andar das pessoas, mas seguramente não sabe nada de sua atitude nessa fração de segundo em que o passo se alarga. (...) É somente por intermédio da fotografia que podemos perceber esse inconsciente óptico, como somente graças à psicanálise percebemos o inconsciente instintivo ” (Benjamin, 1977:
371). Com o advento da fotografia, toda uma dimensão “invisível” ou inconsciente da experiência óptica pôde aflorar, modificando certos arquétipos a que nos acostumara a tradição pictórica, como o retesamento dos músculos nos movimentos barrocos. A partir de então, nossos olhos passaram a aceitar como verossímeis certas paisagens plásticas antes inconcebíveis, como um cavalo “voando” com todos os cascos no ar, ou a ridícula máscara de estupor de um orador petrificado em pleno arrebatamento do discurso. Com justa razão, vê Benjamin nessa fixação do inesperado alguma coisa de surrealista, o retorno de um inconsciente reprimido: o atleta congelado no ar com sua vara de salto, olhos esbugalhados, fisionomia contorcida em expressão estúpida, o corpo sólido e pesado desafiando a lei da gravidade, como as bolas de chumbo flutuantes que se vê em algumas telas de Magritte. A fotografia, sem dúvida, possibilita materializar, pelo menos no domínio do simbólico, um antigo sonho dos místicos: a levitação. Poucos são os fotógrafos, entretanto, que sabem tirar proveito dos acidentes do acaso para fazer emergir esse inconsciente óptico e arrancar do mundo dos protocolos e convenções cotidianas visões perturbadoras e corrosivas. “Fixar” as personalidades da vida política num instante de estupefação ou no esboçar de um gesto obsceno, petrificá-las em trotar de asno ou em sorriso de hiena, revelar nas suas feições a carranca medíocre ou alucinada do poder – que fotógrafos da imprensa política habitual têm senso crítico e vontade desconstrutiva suficientes para tal gesto enunciador? A verdade é que o grosso da produção fotográfica convencional, embriagada de ilusão homológica, costuma rejeitar todos esses acidentes do acaso que fazem aflorar uma paisagem bizarra, preferindo apoiar-se nos modelos elegantes da pintura figurativa, mais seguros e melhor estratificados na consciência coletiva. Longe de se dar por vocação desencavar esses instantes críticos onde a normalidade de uma visão acomodada se desintegra em nonsense , a prática habitual busca, da maneira como for possível, reprimir na fotografia o seu poder de perturbação e desconcerto. É que o acidente, longe de encarnar a prova de uma objetividade “ontológica” do processo fotográfico, costuma desarticular o real ao invés de
promovê-lo, pelo menos um certo estereótipo de “real” que é aquele a que nos viciou a tradição figurativa. “Não fixando jamais senão instantes que a sua
solenidade arranca da corrente temporal e tomando apenas personagens imóveis, instalados na imutabilidade do plano, a fotografia perde todo o seu poder de corrosão. Desde que uma ação se desenha é sempre uma ação essencial, imóvel e arrancada de seu tempo; é – as palavras o dizem bem – o equilíbrio, o fio de prumo de um gesto eterno, como a significação social que ele encarna ” (Bourdieu, 1978: 112). Não está aí a plena vigência do tempo ideal da pintura? No final do século XIX, o francês Etienne-Jules Marey e o inglês Eadweard Muybridge desenvolveram uma série de experimentos com fotos sucessivas, onde procuraram utilizar essa propriedade da câmera de petrificar o instante para tornar visível o que o olho não vê. As suas fotos sucessivas decompunham o movimento em vários de seus momentos constitutivos, de forma a permitir ao investigador um exame analítico de certos gestos ou andamentos: através desse processo foi possível, por exemplo, perceber como o cavalo trota ou galopa, como o pássaro move suas asas ao voar e como os músculos humanos se comportam durante um esforço físico. Mas os experimentos de Marey e Muybridge, desdobrados nas mãos de outros seguidores mais pragmáticos, ultrapassaram rápida e facilmente a positividade científica de suas motivações mais imediatas, para se impor como uma técnica de domar esse inconsciente cego que parecia comprometer a plena consistência da homologia fotográfica. Num primeiro momento, o fotógrafo aprende com Marey e Muybridge que ele pode controlar o acaso que ameaça o projeto ilusionista simplesmente bombardeando o evento com fotos sucessivas e depois escolhendo aquela foto ideal, onde os acidentes do acaso estejam menos evidentes e o efeito de “realidade” mais próximo do padrão pictórico que o informa. Num segundo momento, as fotos sucessivas de Marey e Muybridge são desenvolvidas através de inúmeros aparatos mecânicos, por industriais ávidos de perspectivas comerciais (como Edison e Lumière), até resultar no maior aperfeiçoamento do projeto fotográfico até hoje obtido, justamente aquele que parece dominar de vez
o aleatório imprimido pelo obturador: o cinema. O mesmo efeito de “realidade” que a câmera
aperfeiçoou para satisfazer o apetite homológico de uma
civilização, por uma contradição interior do fenômeno, passou a denunciar um irrealismo básico do processo fotográfico: a sua incapacidade de inscrever o tempo em sua duração e a conseqüente dissolução do movimento em instantes congelados. O cinema surge, entre outras coisas, para tentar resolver essa impotência da fotografia em satisfazer as novas exigências de “realismo” que ela mesma desencadeou.
3. ARQUÉTIPOS PICTÓRICOS NA FOTOGRAFIA Mas se a fotografia encontra-se ameaçada por esse supra-realismo do obturador, essa potencialidade de fazer emergir pesadelos, foi preciso imaginar uma estratégia para atenuar a sua vocação para o acaso. Ninguém gosta de ser surpreendido por um instantâneo, pois a imagem que ele nos dá sempre trai a idéia que fazemos de nós mesmos e que queremos fazer passar adiante: por essa razão, diante de uma câmera, sempre posamos. “Ora, desde que eu me
sinto olhado por uma objetiva, tudo muda: eu me ponho a posar , eu me transformo imediatamente num outro corpo, eu me transfiguro de imediato em imagem. Essa transformação é ativa: eu sinto que a fotografia cria meu corpo ou o mortifica a seu bel prazer ” (Barthes, 1980a: 25). A pose é uma tentativa de fixar a eternidade nesse instante fugaz em que o obturador dá a sua piscadela; é a luta para introjetar no momento aleatório da fotografia o momento ideal da pintura. Para reprimir o inconsciente que pulsa no obturador da câmera, nós nos petrificamos diante dele, como uma estátua grega ou renascentista, e forjamos no bronze de nosso próprio corpo a imagem ideal que supomos ser ou que queremos ser. A pose é uma espécie de vingança do referente: se for inevitável que a câmera roube alguma coisa de nós, que ela roube então uma ficção . A origem da pose, entretanto, é inteiramente outra. Nos primórdios da história da fotografia, as primeiras placas de prata iodada ofereciam uma sensibilidade à luz muito baixa, o que exigia do modelo que ficasse exposto à luz durante muito tempo e absolutamente imóvel. A pose era então a necessária máscara de imobilidade para fixar na cadeira o paciente (assim era chamado, muito sintomaticamente, o candidato a modelo fotográfico). Alguns aparelhos invisíveis à objetiva sustentavam e mantinham o corpo ereto e imóvel durante todo o tempo da exposição. Benjamin (1977: 372) nos lembra que muitos dos retratos de David Octavius Hill foram tirados num cemitério, já que naquela época o processo fotográfico exigia do modelo a imobilidade e o recolhimento de um cadáver. A tecnologia deu passos largos e rápidos e logo se fabricavam películas tão sensíveis que a velocidade de obturação pôde evoluir para níveis
mais elevados.O desenvolvimento tecnológico mudou a dinâmica da fotografia, mas não mudou a sua técnica refrativa: a nova propriedade introduzida (que nos permitia ver imagens inéditas, congelamentos de instantes arbitrários, como nenhuma geração anterior pôde contemplar) foi submetida à velha forma, de modo que a fotografia nos continuou presenteando com estátuas e máscaras mortuárias ao gosto do antigo artesanato. Surgiram os modelos profissionais, homens e mulheres treinados especialmente para serem fotografados, isto é, capazes de se movimentar ou de se deslocar no espaço com tal eloqüência, que em qualquer momento ou sob qualquer ângulo que a câmera os fixasse, eles dariam uma imagem sempre idealizada e helênica, mas nunca a postura elástica e desairosa de quem é surpreendido em flagrante. A fotografia (tecnologia avançada) passa a conviver com a pose (armadura arcaizante), como se tivesse se tornado parasita de um organismo atrofiado. Nos primeiros retratos tomados em meados do século XIX, era comum ver o modelo recostado em balaustradas, apoiado em pedestais ou mesinhas: mas esses expedientes não eram adornos para fantasiar a cena; eram pontos de apoio necessários para garantir a imobilidade do corpo. Quando a câmera se tornou mais ágil, os acessórios de cena, ao invés de desaparecerem, proliferaram em abundância e se tornaram ainda mais pesados, como se lhes fosse designado por função fixar o modelo no sentido etimológico da palavra, preenchê-lo da inércia – e da grandeza – do monumento. “Foi então que
surgiram aqueles estúdios com suas grandes cortinas e palmeiras, seus tapetes e cavaletes, a meio caminho entre a representação e a execução, entre a câmera de tortura e o salão do trono, dos quais existe um testemunho comovedor numa foto antiga de Kafka. Em uma espécie de jardim de inverno há um menino de aproximadamente seis anos de idade, embutido em seu traje infantil, diríamos que humilhante, sobrecarregado de ornamentos. Folhas de palmeiras se alçam enrijecidas no fundo. E como se fosse preciso tornar mais sufocantes, mais redundantes esses trópicos de cartão, leva o modelo na mão esquerda um chapéu enorme de abas largas como o dos espanhóis. É óbvio que Kafka desapareceria em semelhante encenação, se seus olhos
incomensuravelmente tristes não dominassem essa paisagem que de antemão lhe havia sido determinada ” (Benjamin, 1977: 375). Se a imagem que nos dá a câmera é sempre essa ficção petrificada na pose, não é de se estranhar que neste século e meio de história da fotografia os observadores mais atentos tenham relutado em aceitar os sinais registrados pela câmera como documentos absolutos da verdade. Longe de encarnar o verismo essencial que que lhe querem creditar os “realistas”, a câmera tem um poder transfigurador do mundo visível que chega a ser devastador nas suas conseqüências. Diante de uma câmera, não há realidade que permaneça intacta: tudo se altera, tudo se arranja, tudo concorre para a ordem ideal do monumento. Basta apenas que alguém penetre com uma câmera no interior de uma instituição qualquer e de repente aparecerá uma legião de faxineiros limpando o terreno; os móveis serão arrastados para a melhor disposição, peças e pessoas indesejáveis serão retiradas de cena, toda desordem – física, mental, social – será substituída por uma paisagem homogênea e asséptica; alguém colocará um vaso de flores em cima da mesa. Ignorar a câmera que está apontada para nós é uma tarefa tão impossível quanto ignorar uma dor de dente: ficcionistas do cinema que trabalham em exteriores e em logradouros públicos conhecem bem o drama de não poder impedir que os transeuntes se aglomerem e olhem para a câmera, comprometendo o universo fictício que se quer simular. A câmera não é nunca passiva diante de seu objeto; ela impõe um arranjo, ela produz uma configuração das coisas pela força de sua simples presença. Em vista disso, é bastante difícil saber discernir na pesquisa fotográfica em antropologia até onde a câmera permanece um observador “imparcial” e a partir de que limites a sua presença pura e simples já está interferindo sobre o motivo fotografado. Alguns jornalistas etnográficos (por exemplo, Andréa Tonacci documentando os índios canelas e araras do norte do Brasil) refutam logo de início qualquer fetiche de objetividade, pois a experiência demonstra que a única etnologia que nós podemos praticar é a do choque de culturas e a da interferência de uma estratégia operativa sobre outra.
Por essa razão, ao invés de apoiar-se no “processo imparcial de visão da
câmera ” (Collier Jr., 1973: 5), para apurar o exame objetivo do “real”, a sociologia e a antropologia poderiam obter resultados mais produtivos se passassem a examinar a maneira como cada comunidade fotografa e se deixa fotografar. Se o ato de fotografar, na ideologia dominante, é concebido como promoção do objeto fotografado, o repertório de situações e eventos fotografáveis constitui um inventário precioso dos valores de cada grupo. É esse exatamente o tema que Pierre Bourdieu explora em seu livro Un art moyen : a fotografia convencional é aí vista como uma espécie de “totem” onde toma forma o sistema ético e estético do grupo social. Segundo Bourdieu, a fotografia popular é um culto doméstico: nas cerimônias institucionais, como os casamentos, os aniversários, as bodas, o batismo, a comunhão cristã, a viagem de férias ou de núpcias etc, ela se inscreve no ritual e tem por função sancionar, consagrar a união familiar. Em tais cerimônias, as pessoas se fazem fotografar porque a fotografia realiza a imagem que o grupo faz de si mesmo: o que ela registra em seu suporte fotossensível não são propriamente os indivíduos enquanto tais, mas os papéis sociais que cada um desempenha: pai, mãe, avô, tio, marido, debutante, militar, turista. “ A maior parte das vezes, a fotografia só
existe e subsiste por sua função familiar, ou melhor, para a função que lhe confere o grupo familiar, que é a de solenizar e eternizar os grandes momentos da vida familiar e de reforçar a integração do grupo, reafirmando o sentimento que ele tem de si mesmo e de sua unidade ” (Bourdieu, 1978: 39). A fotografia não teria conseguido uma penetração tão profunda no seio das camadas populares se ela não possibilitasse esculpir e celebrar nas figuras os mais arcaicos valores culturais. Sem dúvida, o efeito de “realidade” da fotografia tende sempre a se superpor à percepção dos arranjos que a câmera impõe. Os “voluptuosos” pimentões que Edward Weston fotografou entre 1929 e 1930 certamente são tão “reais” que o observador precisa resistir ao desejo de tocá-los e comê-los. A seu respeito, Sontag (1979: 98) fala da “descoberta da erótica sugestão que possui aquela
forma ostensivamente neutra e o aumento de sua palpabilidade aparente ”.
Talvez não passe pela cabeça das pessoas que um pimentão, para ser fotografado, e sobretudo para se impor com um poder de verossimilhança irresistível precisa ser preparado: é preciso escolher o legume ideal em termos de cor e textura, trabalhar a sua casca com resinas que lhe realcem o brilho, dispor a câmera e a iluminação de modo a acentuar-lhe o relevo e assim por diante. Ninguém melhor que os fotógrafos que trabalham com publicidade conhecem essa técnica de transfigurar o referente para aumentar o poder de convicção de sua imagem. Os produtos vistosos e sensuais que a publicidade forja em seus painéis iconográficos, longe de endossarem um realismo “ontológico” que estaria na base do modelo fotográfico, constituem verdadeiras reconstruções, às vezes até mesmo distintas dos objetos a que visam aludir. Os pêssegos apetitosos que convidam a uma mordida estão maquiados com pó-de-arroz, as
maçãs com rouge, os legumes lustrados com vaselina,
enquanto a deliciosa coxa de frango assada foi dourada numa calda de açúcar. Às vezes, a pura manipulação do produto não é suficiente para sugerir um efeito de verossimilhança esmagador e simula-se uma barra de chocolate com uma massa envernizada ou fabricam-se sorvetes de silicone. Daí a frustração dos cozinheiros quando percebem que o seu prato não tem a mesma aparência tentadora que as fotos que ilustram os álbuns de culinária: eles apenas não percebem que as imagens que acompanham as receitas culinárias foram forjadas por peritos em iconografia e não em gastronomia. Por essa razão, é destituída de sentido a afirmação de Sontag (1979: 154) de que “o ato de fotografar é essencialmente um ato de não-intervenção. (...) As
pessoas que intervêm não registram; as que registram não intervêm ”. Sontag vê a intervenção política na sua expressão puramente física, mas no regime das trocas simbólicas a intervenção também se dá no nível das representações materializadas em signos ideológicos. Para usar o exemplo citado por ela mesma: quando o monge vietnamita ateia fogo no próprio corpo e se imola em protesto à intervenção americana em seu país, o fotógrafo que registrou a cena – afirma Sontag – tendo podido escolher entre a vida e a representação, escolheu a última, preferindo documentar o evento a salvar o manifestante. Mas
a opção do fotógrafo é também um ato de intervenção política indubitável e tanto isso é verdade que o monge só se dispôs ao sacrifício de si próprio porque estava certo de que havia um fotógrafo nas proximidades; não fosse assim, o seu protesto seria inútil e vazio. Na verdade, o ato político em questão pressupôs o acordo tácito, mesmo que não explicitado, entre as duas partes: o monge encena uma representação – patética, é verdade, mas ainda assim uma representação – enquanto o fotógrafo a codifica e a torna significante. Para que seja possível detectar alguma verdade nos sinais que a película registra é preciso, antes de se perguntar o que está representado, colocar-se a questão: por que as coisas estão representadas de determinada maneira? Alguns fotógrafos mais sensíveis ao poder devastador da câmera souberam perfurar a armadura da pose, na medida em que passaram a exibi-la não simplesmente como técnica representativa inocente, mas como um mecanismo refrativo que induz uma “leitura” positiva do referente. Tal é o caso – para citar um exemplo extremo – de Diane Arbus, fotógrafa especializada em retratar pessoas anormais ou excêntricas, desgraças íntimas e cretinismos fisionômicos, tudo isso que os nossos padrões helênicos de beleza convencionaram agrupar sob a rubrica genérica do feio: anões e gigantes, travestis, mascarados, doentes mentais, nudistas idosos, marginais, artistas de circo ou de teatro de variedades, gorduchos, magricelas etc. Só que essa galeria de monstrengos genéticos ou sociais não é dada de forma sub-reptícia, através de imagens furtivas de uma câmera oculta, mas é exibida ostensivamente para o espanto do voyeur fotográfico. Arbus descobria os rejeitados no submundo de Nova York, ganhava-lhes a confiança, pagava-lhes muitas vezes e os punha finalmente a posar diante da câmera, para um retrato em grande estilo, como se fossem barões e duquesas diante do pincel de um Velázquez. Chamados a posar para um retrato, colocados cara a cara com a câmera – portanto convocados a forjar uma imagem positiva de si próprios – os deserdados da sorte exibiam sua feiúra às vezes com visível constrangimento, outras vezes com perturbadora inconsciência. Mas a carapuça não lhes servia, a imagem helênica não sobrevinha e a pose os tornava mais ridículos (ou eram eles que tornavam
ridícula a pose): decididamente, eles não haviam sido feitos para a câmera, nem a câmera para eles. Descendente direta de uma tradição pictórica aristocrática, de que é também um resquício ideológico, a pose nem sempre se deixa compatibilizar com as facilidades democráticas da câmera fotográfica: ela impõe, antes, uma certa sublimação do motivo e uma espécie de “seleção natural” dos referentes. Durante os anos 1920 e 1930, August Sander dedicou-se a um inventário fisionômico minucioso do povo alemão, procurando retratos que fossem representativos de cada classe, de cada grupo social, de cada categoria profissional, de cada faixa etária etc. O projeto de Sander era uma materialização bastante eloqüente do ideal burguês que impulsionou a invenção do aparato técnico e químico da fotografia: permitir que todo e qualquer cidadão da República pudesse tornar-se pintor ou modelo, emancipando assim a representação pictórica da tutela da aristocracia que a monopolizou durante séculos. Tal como Sander, Lewis Hine também acreditou nas promessas democráticas da câmera e supôs que poderia fazer emergir através da fotografia aquela outra realidade que a figuração pictórica teimava em reprimir: o mundo dos oprimidos. A obra fotográfica de Hine é toda ela voltada para a “documentação” das condições de vida dos mineiros, imigrantes, trabalhadores menores, desempregados e demais vítimas da Depressão americana no começo do século passado. Mas é preciso que nos detenhamos um pouco sobre o sentido desse “progressismo”. Allan Sekula já observou, a respeito de certos trabalhos de Hine sobre a exploração de crianças no trabalho industrial, que há algo mais nessas fotos que a simples “fixação” fotoquímica de um referente patético: as crianças que Hine colocava diante da câmera eram cuidadosamente trabalhadas, despojadas de seus traços infantis e mesmo de suas marcas operárias. Isso quer dizer que na chamada straight photography de Hine, as pessoas eram arrumadas para a foto: a maneira de fazê-las posar e representar-se a si mesmas dava-lhes a dignidade dos mártires mitológicos, de acordo com as convenções pictóricas cristalizadas ao longo dos séculos. Ainda no dizer de Sekula, o motivo que Hine fotografava com mais freqüência não era
propriamente a miséria, mas a dignidade dos miseráveis (Sekula, 1982:103-108). Essa diferença sutil certamente permitia aos oprimidos que posavam para a câmera triunfar sobre sua condição de vítimas e se furtar ao vexame das criaturas de Arbus, mas, por outro lado, a eliminação do mal estar causado pela pose ridícula implicava também a perda da contundência das fotos e a redução do trabalho enunciador a uma mera celebração de valores plásticos (e morais) perpetuados por uma certa burguesia liberal. Uma foto de Hine, particularmente, denominada Uma madona dos cortiços , mostra, em janela circular como em certos ícones medievais, uma mulher e seus dois filhos trajados em roupas modestas como as dos operários de sua época, porém trabalhados numa composição que rende tributos aos modelos pictóricos acumulados ao longo da história da pintura ocidental (figura 3 ). O próprio Hine (apud Trachtenberg, 1981: 242) define essa foto como “um estudo para
representar a maternidade entre os pobres, segundo a concepção usada por Rafael em sua Madona na cadeira ”. Trata-se, portanto, de uma miséria domesticada, despojada de sua imagem perturbadora, fiel aos cânones do gosto pictórico dominante e, por conseqüência, facilmente assimilável pelas antologias fotográficas. E que dizer, no entanto, de fotos que sabidamente não foram posadas e que, apesar disso, exerceram impacto sobre a nossa civilização? Sabe-se, por exemplo, que, no final dos anos 1930, Walker Evans fez um trabalho surpreendente no metrô de Nova York, fotografando passageiros anônimos com uma câmera oculta. Esse é também o caso de certas fotos jornalísticas particularmente privilegiadas que se fixaram em nossa imaginação com um poder de persuasão irresistível. Mas, ainda aqui, os critérios de assimilação da fotografia não estão inteiramente desvinculados dos padrões pictóricos que os informam. John Berger já observou, a propósito de uma foto da agência UPI mostrando o cadáver de Che Guevara rodeado de militares bolivianos e agentes da CIA, a curiosa semelhança dessa imagem com algumas composições pictóricas célebres, como o Cristo morto , de Mantegna ou a Lição de anatomia , de Rembrandt. Berger se pergunta se o impacto dessa foto não estaria mais no
seu arranjo estético e nas sugestões iconográficas implícitas do que na contundência de seu conteúdo imagético mais imediato. Na linha dessa indagação, Susan Sontag (1979: 105-107) observou também que dentre as inúmeras fotos que W. Eugene Smith tirou, durante a década de 1960, na baía de Minamata, no Japão, documentando as deformações causadas pela poluição de mercúrio nos pescadores da região, apenas uma assombrou o mundo: era a foto de uma mãe com os braços abertos e um sorriso benigno depositado sobre o filho monstruoso que jazia em seu colo, justamente uma foto que parecia reproduzir com uma surpreendente fidelidade a Pietà, de Michelangelo. Esses exemplos parecem nos mostrar que boa parte das fotografias jornalísticas que mais profundamente marcaram a nossa imaginação talvez tenham depositado seu impacto na coincidência – acidental ou premeditada – com certos arquétipos pictóricos que povoam o inconsciente de nossa civilização. Se assim for, é possível que estejamos superpondo à foto protótipos iconográficos acumulados ao longo de quase cinco séculos de ditadura da imagem figurativa. Isso que a Berger e a Sontag aparece apenas como uma intuição, pode ser todavia comprovado de forma muito mais sistemática, através do exame dos procedimentos técnicos que geram a imagem fotográfica. É o que passamos a fazer a partir de agora.
4. A PERSPECTIVA OU O OLHO DO SUJEITO .....Durante quase cinco séculos, as necessidades figurativas da civilização ocidental foram satisfeitas por um sistema de representação plástica do espaço conhecido como perspectiva artificialis, ou por inúmeros outros nomes como perspectiva central, geométrica, unilocular, linear e até mesmo albertiana, em homenagem ao seu primeiro teorizador: Leo Batista Alberti. Esse sistema, nascido e florescido no Renascimento, procurava obter uma sugestão ilusionista de profundidade com base nas leis “objetivas” do espaço formuladas pela geometria euclideana. No caso, o suporte matemático parecia dar garantias de racionalidade às suas projeções gráficas. Dizia-se, naquela época, que por ser um sistema de representação fundado nas leis científicas (leia-se euclideanas) de construção do espaço, a perspectiva renascentista deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da realidade visível. Dizia-se mais: essa mesma perspectiva deveria corresponder à visão da natureza mais próxima daquela que o olho humano obtém através do seu mecanismo ótico. Para justificar esta última assertiva, Alberti imaginava o quadro como uma secção plana daquilo que ele denominava “pirâmide visual” (ângulo de visão do olho) e a perspectiva como a projeção nesse plano de todo o campo visual que se estende à sua frente. Para construir essa perspectiva, ele considerava o centro visual como sendo um ponto fixo, correspondente ao vértice da “pirâmide”; em seguida, ligava esse ponto aos contornos de todos os objetos que estavam dentro do campo visual: as linhas retas que efetivavam essa ligação (“raios visuais”, na sua terminologia) deveriam determinar no plano de intersecção a posição relativa desses objetos e portanto a configuração final das imagens no quadro. Tinha-se assim um sistema geométrico objetivo para projetar todo o espaço tridimensional no plano bidimensional da tela. A imagem obtida através desse sistema de projeções mostrava uma hierarquia de proporções que deveria representar a distância relativa dos objetos no espaço tridimensional. Ao mesmo tempo, todo o espaço representado no plano se mostrava unificado pelas linhas de projeção, de maneira que as retas perpendiculares ao plano de intersecção pareciam se
prolongar de forma invisível no espaço, até se juntarem todas num ponto de convergência comum, denominado ponto de fuga . .....Para o homem do Renascimento, a perspectiva artificialis significou o descobrimento de um sistema de representação “objetivo”, “científico” e portanto absolutamente “fiel” ao espaço r eal visto pelo homem; mas veremos logo a seguir que o que eles conquistavam era um espaço fictício, fruto da positividade científica e das reformas político-sociais em andamento nas imediações do século XV. “A perspectiva linear – de modo algum a única fórmula conhecida no
Quattrocento – não é um sistema racional melhor adaptado que outro à estrutura do espírito humano; não corresponde a um progresso absoluto da humanidade na busca de uma representação sempre mais adequada do mundo exterior sobre a tela fixa de duas dimensões; é apenas um dos aspectos de um modo de expressão convencional, fundado sobre um certo estado das técnicas e da ordem social do mundo em dado momento” (Francastel, 1960: 9).
.....Ainda no Renascimento, o alemão Albert Dürer construiu diversos aparelhos destinados a obter de forma prática imagens em perspectiva. Em geral, tais aparelhos eram dotados de um estilete, na proximidade do qual deveria estar colocado o olho do artista (apenas um olho; o outro deveria estar tapado): a ponta do estilete era tomada como ponto de referência, a partir do qual o artista “copiava”, numa tela transparente colocada à sua frente, os objetos colocados no lado posterior. Acreditavam Dürer e seus contemporâneos que a construção em perspectiva central mostrava o mundo tal como ele era visto a partir desse ponto único e fixo. Mais tarde, descobriu-se que era mais simples obter essa mesma perspectiva utilizando-se a camera obscura e substituindo o ponto de mira de Dürer pelo orifício de entrada da luz (“corrigido” pela objetiva), que fazia os raios luminosos convergirem para um ponto único, dispondo a imagem em perspectiva. Todo o mecanismo ótico da câmera fotográfica – que nasce aí – foi reclamado exatamente para resolver o problema da obtenção automática de
perspectiva artificialis , razão pela qual a fotografia é indissociável da ideologia dessa técnica projetiva. Ao incorporar nos seus procedimentos óticos esse código perspectivo particular, o aparelho fotográfico buscava justamente
perpetuar a impressão de “realidade” que está a ele associado. A câmera fotográfica é, antes de mais nada, um aparelho que visa produzir a perspectiva renascentista e não visa isto por acaso: toda a nossa tradição cultural logrou identificar essa construção perspectiva com o efeito de “real” e por isso a fotografia faz basear o seu ilusionismo homológico na ideologia que está cristalizada nessa técnica. .....Sabe-se hoje, porém, que todos os sistemas perspectivos são relativos e condicionados historicamente, de forma que a perspectiva central do Renascimento não é senão uma decorrência de uma concepção de espaço e de certos deslocamentos gnosiológicos que se processavam na época. Antes da reforma renascentista, outros sistemas de representação eram conhecidos. Havia, em primeiro lugar, a perspectiva angular , utilizada na Idade Média, que se caracterizava pela inexistência do ponto de fuga único: cada objeto do espaço tinha a sua própria projeção perspectiva, dependendo de que facetas de sua configuração visual o artista queria colocar em evidência. A perspectiva inversa (chamada “inversa por referência à albertiana) data da mesma época e se caracterizava pela redução das medidas no primeiro plano, enquanto os objetos do fundo tendiam a se ampliar: essa modalidade perspectiva, hoje tão estranha para nós, se justificava na época como representação do ponto de vista de um observador (ou de vários observadores) colocado(s) no fundo do quadro – em geral o próprio pintor representado na cena. A pintura oriental, por sua vez, utilizava a perspectiva axonométrica , cujo ângulo de visão era sempre oblíquo e elevado em relação aos objetos representados e pressupunha o observador no infinito, donde se explica o fato de suas linhas serem paralelas e não convergentes: a arquitetura moderna, o desenho técnico e industrial, os esquemas tridimensionais científicos em geral utilizam sempre essa perspectiva, porque ela é mais analítica e permite visualizar melhor as relações de proporção e distância que os objetos jogam no espaço. Finalmente, a perspectiva curvilínea, também conhecida desde a Idade Média, pode ser considerada hoje uma filha legítima das geometrias não-euclideanas, pois projetam o espaço tridimensional na curva e não no plano.
.....Para que a perspectiva central e unilocular do Renascimento pudesse aparecer como a representação “natural” do mundo, vários aspectos da percepção tiveram de ser censurados. O primeiro pressuposto dessa modalidade de representação é a existência de um olho único, imóvel e abstrato, sem o qual as projeções retilíneas convergentes seriam absurdas. Isso quer dizer que a visão da perspectiva renascentista é a visão do Cíclope muito mais que a do homem. Nós vemos o mundo com dois olhos e com dois olhos em movimento, razão porque o nosso campo visual toma a forma de uma esferóide e não de um plano. A nossa percepção de tridimensionalidade é dada pela divergência de dois campos visuais próximos mas distintos e não pela proporção das figuras na “pirâmide visual” de Alberti. Cada um dos dois olhos da face vê uma parte diferente dos objetos que estão no campo visual, de forma que a combinação dessas duas imagens na mente permite perceber relações de volume e profundidade. A fotografia estereoscópica, que tanto impacto causou em fins do século passado e que permitia perceber relações de tridimensionalidade diferentes da perspectiva central, baseava o seu efeito na produção de uma imagem diferente para cada olho: uma faceta do objeto para ser vista pelo olho esquerdo e outra faceta para o olho direito (Holmes, 1981: 104-105). .....A perspectiva central pressupôs ainda que o ângulo visual nos dava a medida exata do que era visto, mas desenvolvimentos posteriores da investigação da percepção ocular mostraram que a visão nítida de um olho normal não ultrapassa dois graus, de forma que a superfície abrangida por ele representa apenas treze milésimos do campo englobado pelo ângulo ótico (Taton e Flocon, 1967: 98). A explicação desse fenômeno é simples: apesar de o ângulo visual projetar todo o seu campo na retina, apenas uma pequena porção desta última – a fóvea – pode perceber as imagens com definição. .....Se o campo visual nítido e significativo é assim tão reduzido, o olho precisa movimentar-se, localizar os objetos, persegui-los em disparada e para isso ele descreve uma trajetória bastante complexa, semelhante ao movimento browniano das partículas atômicas e que pode ser seguida e registrada por um
aparelho: a câmera de Mackworth. Sendo o olho móvel, suas diferentes aberturas angulares não podem ser identificadas senão por meio de comprimentos de arco que, por sua vez, só podem ser reunidos numa superfície esférica. Além disso, sabe-se que o olho tem ele próprio uma forma esférica e portanto os dados luminosos do “exterior” são projetados não sobre uma superfície plana como na pintura, mas sobre uma curvatura côncava: isso por si só já distingue a realidade percebida pela retina da realidade construída pela perspectiva renascentista ou pela câmera fotográfica sua herdeira. O incômodo fenômeno das “deformações laterais” (agigantamento dos ângulos formados pelas retas convergentes nas bordas do quadro), que a fotografia nos tornou familiar e que embaraçou os teóricos da perspectiva no Renascimento, nasce dessa contradição entre a projeção plana da perspectiva e a percepção curvilínea do aparelho ocular (Panofsky, 1975: 44-45). .....Outros problemas ainda poderiam ser apontados. Um dos mais notórios é o irrealismo do ponto de fuga. Por ser o ponto de convergência de todas as retas do espaço, o ponto de fuga é a representação do infinito : o ponto de encontro dos trilhos de trem, por exemplo, não indica o fim da linha, mas o seu prolongamento invisível. Mas o infinito está ali ao meu alcance, posso até tocá-lo com os dedos. Só mesmo por força de um convencionalismo muito poderoso o espectador pode ignorar a artificialidade desse procedimento. No Renascimento, os pintores tinham como regra esconder a evolução das linhas em direção ao ponto de fuga, barrando-as com muros ou paredes colocadas ao fundo, justamente para evitar que o irrealismo do procedimento se revelasse. Além disso, como a perspectiva renascentista trabalha apenas com projeções retilíneas, ela encontra dificuldades para representar as formas curvas. É por isso que não existe uma fórmula para se obter um efeito perspectivo da tridimensionalidade das esferas, o que obriga os pintores a remediar o problema com técnicas de iluminação. E para completar o quadro da relatividade do sistema renascentista de representação do espaço, um psicólogo poderia dizer que, do ponto de vista da percepção individual, a perspectiva é uma abstração, pois o nosso olhar está carregado de intenção: o mundo visível não nos é dado
como algo absoluto e total, mas como uma matéria que a percepção seleciona, amplia ou ignora, opera e modifica de acordo com a intencionalidade do olhar. Se o princípio fundador da perspectiva renascentista é a imitação fiel da natureza, como é possível que uma fórmula projetiva tão arbitrária tenha podido se impor para uma civilização inteira como técnica de duplicação especular da realidade visível? Para responder a essa pergunta é preciso identificar o sistema gnosiológico que a pintura renascentista materializa em sua projeção perspectiva. Em primeiro lugar, a perspectiva central substitui o espaço descontínuo e fragmentário da pintura medieval por um espaço sistemático e racional, isto é, dotado de tal coerência interna que não se poderia hesitar em classificá-lo como um espaço puramente matemático. A esse esforço sistemático se aplicam duas propriedades fundamentais: a infinitude e a
homogeneidade .Por infinitude se entende a continuidade (imaginária) da cena diegética para além dos limites materiais do quadro. Em outras palavras: com a
perspectiva artificialis , a noção de suporte material do quadro é afastada em definitivo e substituída pela noção de plano transparente, que o nosso olhar supõe atravessar para afundar num espaço imaginário, o qual, por sua vez, não é mais limitado, mas literalmente cortado pelas bordas do quadro. Alberti chamava o quadro de finestra aperta (janela aberta), como se a representação pictórica construída segundo os cânones dessa perspectiva funcionasse como um mundo duplicado, que se supõe continuar ad infinitum , para além das fronteiras impostas pela moldura. Aliás, nas molduras de madeira dos quadros renascentistas, os caixilhos imitavam de fato uma janela, de forma que, colocados na parede, os quadros pareciam realmente paisagens abertas à visão através da janela. .....Segundo Panofsky, Jan Van Eyck foi o primeiro a liberar o espaço da representação das fronteiras ditadas pelas bordas do quadro. Antes dele, a cena diegética começava no primeiro plano e se alongava em direção ao fundo, mas depois dele o espaço e mesmo os objetos de cena começaram a aparecer ostensivamente seccionados pela moldura, dando a impressão de continuarem para além das bordas (Panofsky, 1975: 137). O quadro torna-se então “porção
de realidade”, enquanto os “raios visuais” parecem se prolongar de forma infinita para além dos limites materiais da tela. Tal ilusão de um espaço infinito não poderia existir na Idade Média pela simples razão de que não existia ainda a própria noção de infinito. Esta última só se tornou possível a partir da revolução operada na astronomia por homens como Bruno, Copérnico e Galileu, quando demonstraram que nem a Terra era o centro do universo, nem a “abóboda celeste” o limite das coisas materiais. A perspectiva central, com sua espacialidade estendida ao infinito, corresponde a um período em que o pensamento conceitual rompe com a visão aristotélica do mundo, abandonando a noção de um cosmos edificado em torno da Terra e desenvolvendo dessa forma um conceito de infinito cujo modelo já não é mais Deus, mas a própria natureza material onde se move o homem. .....Uma segunda propriedade fundamental desse modelo perspectivo – a homogeneidade – acaba por consolidar de vez o deslocamento do universo divino em benefício de um universo humano. Por homogeneidade se entende a unificação de todas as linhas do quadro, de forma que nenhum objeto de cena possa gozar de autonomia estrutural: eles estão todos solidários por força das determinações topológicas da perspectiva. Assim, a linha de contorno de um objeto qualquer se prolonga de forma invisível no espaço, retorna a seguir personificando o contorno de outro objeto e assim prossegue a sua trajetória ininterrupta até morrer no ponto de fuga. Ademais, tudo o que está na cena se dispõe de modo a evidenciar o ponto de vista gerador do quadro e se conforma à hierarquia de proporções definidora de sua posição relativa. Antes da invenção da perspectiva central, as composições pictóricas não davam esse espaço unificado: cada objeto do quadro tinha o seu sistema espacial próprio e independente; às vezes, até mesmo cada parte do objeto tinha sua projeção perspectiva particular. Como resultado, a “realidade” construída pela pintura era necessariamente fragmentária e incompleta – e não poderia ser diferente porque a única força unificadora e totalizante capaz de povoar os objetos e seres do mundo era Deus. A partir da perspectiva renascentista, porém, o espaço ganha homogeneidade e isso se mostra na sua materialidade gráfica: tudo aparece
unificado, mas unificado não por forças místicas ou divinas e sim por relações geométricas forjadas pelo espírito racional do artista. Isso quer dizer que o espaço material passa a ser habitado por forças invisíveis (linhas convergentes, proporções, pontos) que já não são mais Deus, ou que pelo menos já não mais escapam ao domínio intelectual do homem (figura 1). A ordem divina das coisas é substituída por uma ordem racional e científica e o espaço passa a ser criação da inteligência do artista-geômetra. Não por acaso, o nascimento da perspectiva central coincide com o período da história em que uma burguesia emergente toma posição frente a Deus e afirma os seus direitos citadinos contra a autoridade suprema personificada em seus adversários políticos: a nobreza absolutista e o clero. .....Toda a racionalidade da perspectiva unilocular repousa no pressuposto de que as retas do espaço estão condenadas a convergirem todas para um ponto de fuga único, arbitrário e gerador de toda ordem. Esse ponto privilegiado que organiza os dados visuais e que determina a topografia do espaço corresponde, no contracampo da ilusão especular, ao olho do sujeito que preenche o mundo de sentido, ou seja, o olho arbitrário do artista que sobrepõe à ordem divina uma ordem humana. É com essa perspectiva que nasce a noção de sujeito na pintura: todo quadro, a partir de então, torna-se uma visão do mundo a partir de um ponto originário, que coincide com o olho único e imóvel (o “centro visual”) que está no vértice da “pirâmide” de Alberti. Se tomarmos como exemplo a Ultima
ceia (l593) de Tintoretto, veremos que o centro diegético da cena Cristo cercado pelos apóstolos) não coincide com o centro pictórico do espaço materializado no ponto de fuga (figura 2). A divindade é portanto deslocada para um segundo plano, ela não é mais a fonte originária das determinações topológicas; pelo contrário, ela própria torna-se determinada pela posição do olho/sujeito que organiza o quadro. No primeiro plano do quadro já não está mais a figura sagrada, mas os mercadores burgueses, curiosamente privilegiados por uma posição estratégica do olho organizador do espaço, muito embora eles ocupem apenas um lugar marginal na encenação do ato religioso. Em termos conceituais: a verdade sagrada perde a sua validez absoluta e é
deslocada em benefício da verdade constitutiva do sujeito (Arnheim,1980: 284). “O que motiva a experiência da perspectiva central é a profunda transformação
espiritual que se operou no mundo europeu a partir de 1400, época em que a Europa se liberou da visão cósmica da Idade Média, à qual o indivíduo se encontrava funcionalmente integrado. Se até então todo julgamento sobre o valor, toda representação do Eu e das coisas materiais pertenciam ao princípio de uma ordem superior e sobre-humana, tal como Deus vê o mundo, a partir desse momento, pelo contrário, o homem toma consciência de seu papel de sujeito onisciente . É de seu ponto de vista, com seu olhar que visa e que fixa, que ele imprime às coisas a sua ordem no mundo da imagem. A perspectiva central nasceu estabelecendo as proporções de distância; ela é a expressão de um egocentrismo da ótica e do pensamento, um subjetivismo total que marca o início dos tempos novos ” (Schmoll, 1952: 8). .....Há algo de paradoxal nessa homogeneidade das formas imposta pela perspectiva central. De um lado, ela parece imprimir um caráter objetivo às suas projeções, pois logra superar a subjetividade das construções espaciais da Idade Média por um sistema matemático rigoroso e exato. É essa “objetividade”, essa racionalidade, esse distanciamento que possibilitam a constituição do efeito de “realidade” dessa perspectiva, bem como a eficácia de seu sistema especular, de longa tradição em nossa cultura. Mas, ao mesmo tempo, essa mesma homogeneidade impõe um ponto de vista subjetivo, uma determinação do olho totalizador do sujeito da representação, “o triunfo desse desejo de poder que habita o homem e que anula toda distância, (...) um alargamento da esfera do Eu” (Panofsky, 1975: 160). Ao olhar para um quadro construído em perspectiva, o espectador parece ver tão somente o “reflexo” especular de uma realidade que se abre para ele como numa janela; o que ele não percebe, na maioria das vezes, é que esse quadro já está visto por um olho hegemônico que lhe dirige o olhar. Essa contradição apenas reproduz o paradoxo que habita toda ideologia dominante: as determinações particulares, o ponto de vista específico, a intencionalidade que dita cada estratégia se encontram reprimidos ou ocultados por mecanismos de refração, de modo a permitir que a subjetividade de uma
visão particular possa aparecer como a objetividade de um sistema de representação universal. .....Na verdade, por detrás de sua pretensão mecânica de “imitar a natureza”, a perspectiva renascentista esconde a sua verdadeira motivação ideológica: ela visa instituir a visão plena de um espaço homogêneo e infinito elaborado por um olho/sujeito, tal como na filosofia idealista, a plenitude e a homogeneidade do Ser é dada por um sujeito transcendental. Quase ao mesmo tempo em que Galileu anuncia o fim do geocentrismo, essa refração perspectiva surge para produzir um novo recentramento num ponto fixo originário – o olho – a partir do qual os objetos visualizados se organizariam. A perspectiva inventada no Renascimento ocupa nas artes visuais o mesmo lugar que o idealismo vai ocupar na filosofia três séculos mais tarde: substitui o geocentrismo cristão decadente por um novo recentramento, através da instalação de um sujeito transcendental, entendido como uma consciência que dá origem ao sentido. A sua visão unilocular tem por função circunscrever a posição do sujeito; o espaço que ela constrói é sempre o espaço centralizado, cujo núcleo coincide com o olho que o produz. O próprio sujeito cartesiano, como bem observou Lacan, não é senão um ponto geométrico, baseado no ponto gerador da perspectiva (Lacan, 1979: 85). Quando, no decorrer do século XIX,a pintura afrouxa a obediência cega a essa visão monolítica, a ponto de um Cézanne, por exemplo, se insurgir completamente contra os seus cânones, a fotografia recém-inventada surge para salvar a perspectiva em crise, pois a construção de seu aparelho de base recupera todos os procedimentos renascentistas de “retificação” da informação visual. .....A câmera fotográfica é sempre esse aparelho que estrutura os sinais luminosos recebidos do “exterior” segundo um código historicamente formado e que fabrica o visível com base num sistema de representação que corresponde à estratégia refrativa da burguesia ascendente do Renascimento. Por essa razão, não é exagero dizer que o aparelho de base do processo fotográfico “é um aparelho que difunde ideologia burguesa, antes mesmo de difundir o que quer que seja” (Pleynet/Thibaudeau, 1969: 10) e mesmo quando grosso modo
ele é utilizado com intenções progressistas. A imagem produzida pela câmera não faz senão confirmar e redobrar o código da visão renascentista que coloca um olho abstrato no centro do sistema de representação, impedindo ao mesmo tempo a ocorrência de qualquer outro sistema e assegurando dessa forma a dominação do olho sobre qualquer outro órgão da percepção. Essa hegemonia da visão está ligada, como não podia deixar de ser, ao logocentrismo ocidental, que põe o olho/sujeito no lugar de Deus: essa foi uma das formas assumidas pelo humanismo burguês para se contrapor ao cristianismo aristocrático e que a fotografia veio recuperar, bastante tardiamente, quatro séculos depois. A primeira fotografia que Niépce registra em 1826 nos mostra justamente uma perspectiva de telhados e a primeira imagem animada que Louis Lumière obtém no cinema em 1895 mostra, por sua vez, a perspectiva dos trilhos e um trem surgindo a partir do ponto de fuga. Logo de início, foi preciso deixar clara uma continuidade, fixar a opção ideológica: “o triunfo da perspectiva unilocular como sistema de representação em que o olho do observador (do pintor, do sujeito) ocupa o centro, dirige as linhas, reina à partida e na convergência dos raios luminosos” (Comolli, 1975: 47). .....É curioso que os analistas da fotografia (e dos seus desdobramentos posteriores) se mostrem preocupados quase que exclusivamente com a “ideologia” dos produtos acabados, das obras e de seus respectivos significados, permanecendo entretanto indiferentes às determinações técnicas de que dependem esses produtos. Ocorre que a fotografia, por estar subordinada a um aparato tecnológico e por incorporar a racionalidade matemática da projeção perspectiva, parece gozar de uma espécie de inviolabilidade que lhe garante a ciência. Durante muito tempo, a arte renascentista fez escorar o seu efeito especular no recurso às máquinas, pois a máquina, na sociedade capitalista emergente, dava garantias de cientificidade aos seus produtos: a câmera fotográfica é apenas um eco tardio dessa hipóstase. “Sem dúvida, poderíamos
questionar o lugar privilegiado que parecem ocupar as máquinas óticas no ponto de intersecção da ciência com as produções ideológicas. Não se poderia pois se perguntar se o caráter técnico das máquinas óticas, diretamente relacionado à
prática científica, não serve para mascarar não só o seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar? Sua base científica lhes assegura uma espécie de neutralidade e as evita tornarem-se objeto de um questionamento ” (Baudry, 1970: 1). No entanto, basta seguir a gênese do efeito de “transparência” da fotografia para ver que os seus meios, as suas técnicas, os seus procedimentos já se encontram codificados segundo exigências de ordem ideológica: a história de seu nascimento e de sua transformação técnica não foi ditada por “progressos científicos”, mas sobretudo por tensões ideológicas. Por essa razão, só por inocência ou por má fé se pode ainda falar de uma “neutralidade” ou de um “realismo essencial” a pretexto de seus produtos e menos ainda se pode afirmar que eles possam estar engajados numa prática política libertária, sem que as formas dominantes de enunciação tenham sido profundamente perfuradas.
5. RECORTE DO QUADRO E ALUSÃO AO EXTRA-QUADRO Toda fotografia, seja qual for o referente que a motiva, é sempre um retângulo que recorta o visível. O primeiro papel da fotografia é selecionar um campo significante, limitá-lo pelas bordas do quadro, isolá-lo da zona circunvizinha que é a sua continuidade censurada. O quadro da câmera é uma espécie de tesoura que recorta aquilo que deve ser valorizado, que separa o que é importante para os interesses da enunciação do que é acessório, que estabelece logo de início uma primeira organização das coisas visíveis. Eisenstein já afirmou mais de uma vez que a visão figurativa é sempre uma visão “em primeiro plano” (no sentido de que se fala de primeiro plano no cinema, como detalhe ampliado), porque tanto o pintor como o fotógrafo precisam sempre efetuar uma escolha, para recortar na continuidade do mundo o campo significante que lhes interessa. Toda visão pictórica, mesmo a mais “realista” ou a mais ingênua, é sempre um processo classificatório, que joga nas trevas da invisibilidade extra-quadro tudo aquilo que não convém aos interesses da enunciação e que, inversamente, traz à luz da cena o detalhe que se quer privilegiar. .....Evidentemente, essa escolha, esse recorte não são nunca inocentes, nem gratuitos. Toda síncope do quadro é uma operação ideologicamente orientada, já que entrar em campo ou sair de campo pressupõe a intencionalidade de quem enuncia e a disponibilidade do que é enunciado. Num material etnográfico preparado pela Encyclopaedia Cinematographica de Gottingen, vemos uma série de tomadas documentando uma cerimônia de circuncisão numa tribo do Chade (Beschneidungsfest der Haddad in Sudwadai, Tschad/ Festa da circuncisão dos Haddad no Uadai Meridional, no Chade). Muita coisa poderia ter sido captada pelas câmeras dos cientistas, como, por exemplo, a dança frenética dos membros da comunidade ao redor dos iniciantes, cujo ritmo forte e marcado levava a tribo inteira a um estado de êxtase, que funcionava como uma espécie de “anestesia” primitiva, permitindo que os pequenos fossem cortados aparentemente sem dor. No entanto, toda a ênfase do material documentado
voltou-se para o ato particular do corte do prepúcio e as reações fisionômicas dos meninos submetidos à circuncisão. Um desses planos, inclusive, focalizou justamente o detalhe agigantado da poça de sangue no chão, na melhor tradição dos thrillers hollywoodianos. Ora, eis aí uma seleção de quadros que já demonstra uma intromissão indevida, carregada de preconceitos “civilizados” ocidentais, sobre uma cultura que opera de forma diversa da nossa. O recorte efetuado pelo quadro da câmera esteve o tempo todo ideologicamente orientado no sentido de prescrever uma “leitura” européia/ocidental do material registrado: a escolha do campo significante abarcado pelo quadro não era nem de longe “objetiva”, mas arbitrária e autoritária; e nem podia ser diferente porque o ato puro e simples de intervenção da câmera é já um ato de colonização implícito. .....É verdade que uma foto pode ter sempre muitos recortes possíveis: além daquele fixado na película no ato de fotografar, pode-se posteriormente produzir outros recortes, como no momento da ampliação ou mesmo durante a edição do material para fins de exibição ou publicação. Mas esse fato apenas potencializa na fotografia a sua função metonímica. Não é muito difícil perceber a força significante
do
recorte
quando
esse
trabalho
de
síncope
aparece
ostensivamente como uma manipulação, seccionando porções do objeto ou decepando as pessoas pelo meio, de forma que a continuidade do mundo apareça cindida de maneira brutal. Quando se corta uma figura humana nua à altura do umbigo, por exemplo, não é difícil concluir que os limites colocados pelas bordas do quadro foram impostos por padrões morais, ou seja, para censurar os órgãos genitais. Quando Fidel Castro visitou oficialmente o Chile, em novembro de 1971, uma imagem de sua figura caída no chão durante um jogo de basquetebol foi recortada habilmente por editores de jornais sensacionalistas, de modo a eliminar o contexto em que se deu a queda, na tentativa de sugerir um atentado que o primeiro ministro cubano supostamente havia sofrido. Assim, o “documento” fotográfico serviu de pretexto para vender gato por lebre. .....Mas a violência decepatória pode ter outras funções: em alguns casos, o recorte do quadro age como elemento despersonalizador, retirando do evento
fotografado as suas identidades mais imediatas, de forma a revestir a cena de um sentido simbólico. Uma foto de Luís Humberto, tirada no Palácio do Planalto em 1979, mostra um fila de bajuladores cumprimentando alguém que provavelmente deve ser o presidente Figueiredo, mas que não se pode dizer com segurança porque as cabeças foram decapitadas pelo recorte do quadro (prancha 4). Degolados os pescoços, a cena perde o seu referencial histórico imediato, mas em compensação ganha um sentido novo, propositadamente introjetado na foto através do enquadramento insólito: ela se torna uma caricatura mordaz da subserviência ao poder. Ainda nessa foto, é preciso considerar que enquanto a parte superior do quadro aparece cortada violentamente, decepando porções significativas da “realidade”, a parte inferior esbanja espaço, deixando sobrar um grande vazio cênico, que reforça ainda mais um certo sentimento de vacuidade das esferas do poder. Nessa foto surpreendente, o enquadramento aparece ostensivamente “errado” em relação aos padrões habituais, mas é esse “erro” que revela na cena um sentido a que um olhar apenas convencional jamais teria acesso. .....Uma convenção implícita nos meios cultores da fotografia determina uma certa abertura do campo de visão, de modo a fazê-lo abranger uma porção da cena mais ou menos ampla. Tomadas muito próximas ou muito fechadas sobre o objeto, que dilaceram e fragmentam o visível em um nível próximo ao microscópico, acabam por perder o efeito de perspectiva. Os renascentistas já ensinavam que a manutenção do ilusionismo de profundidade depende de uma certa abertura do quadro, condição que não se pode transgredir sob pena de comprometer profundamente o “realismo” da cena. Não é por acaso que toda a teoria cinematográfica ligada à mística do “real” sempre encarou com reservas o uso do plano mais fechado, o primeiro plano no cinema: afinal, isolando com demasiada ênfase uma imagem de seu contexto, o seu efeito especular tende a se dissolver na materialidade da tela. Algumas fotos que Edward Weston obteve através do detalhamento de folhas e troncos de árvores, pequenos recortes de corpo humano ou fragmentos de nuvens e dunas lembram com mais insistência as texturas abstratas de artistas plásticos como Tobey ou Fautrier do que
qualquer referencial concreto. Um de seus motivos particularmente, um coração de alcachofra fraturado e arrancado de seu contexto pelas bordas do quadro, acaba por perder os seus contornos figurativos e resultar numa fantástica paisagem informal: não fosse o título, seria impossível identificá-lo (prancha 5). .....Na verdade, isso a que nós chamamos o “reconhecimento” de um objeto” ou pessoa numa foto depende muito mais da topografia geral da imagem do que de qualquer fetiche homológico. O “retrato falado”, utilizado na identificação policial, baseia-se nesse fenômeno. Os vários órgãos do rosto humano são decompostos nos seus tipos característicos: nariz fino, achatado ou aquilino; olhos randes, redondos ou alongados; lábios finos, grossos e assim por diante. Escolhendo um a um o tipo característico do suspeito num paradigma de possibilidades (portanto, num código fisionômico) e depois combinando os traços escolhidos num sintagma artificialmente produzido, pode-se sintetizar a fisionomia que se procura. A “identificação” de uma fisionomia num retrato fotográfico é o resultado de uma série de coincidências topológicas, que o espectador percebe como uma Gestalt, ou seja, um arranjo particular de uma série de elementos isolados num todo articulado. Sabemos que é possível “reconhecer” uma fisionomia num negativo fotográfico, muito embora os tons pictóricos e os efeitos de luz estejam aí todos invertidos: é que, neste caso, a configuração topográfica da imagem é preservada. Mas basta isolar a imagem de um olho ou de uma boca do restante da fisionomia para que a figura se torne imediatamente irreconhecível. De que outra maneira – senão através dos títulos – se poderia reconhecer as faces de Jean Arp, Antonio Tàpies ou Jean Dubuffet nos “retratos” que Bill Brandt lhes tomou, se elas estão reduzidas apenas a um olho rodeado de rugas? Desarticulada a topografia da face, o “retrato” se torna “desretrato”, que é exatamente o contrário da celebração do referente. Não por acaso, quando não se quer que uma pessoa seja reconhecida numa foto, na prática jornalística habitual, coloca-se uma pequena tarja preta à altura dos seus olhos e isso já é suficiente para quebrar as relações fisionômicas, deixando a face irreconhecível.
.....Aversão ao espaço microscópico e necessidade de preservação da profundidade da cena são duas instâncias complementares do mesmo ideal figurativo, que visam garantir o império das duas propriedades fundamentais da construção perspectiva: a infinitude e a homogeneidade. A arte pictórica oriental, que não está fundada na perspectiva artificialis, encara o quadro como uma superfície plana limitada pelas bordas e por isso o espaço que ela preenche de signos é o espaço opaco da materialidade da tela. Já a arte fundada na projeção perspectiva euclideana conduz a uma abstração do espaço da representação e faz a tela parecer transparente como uma janela, simulando uma ilusão de profundidade que funciona como “réplica” ou “cópia” da natureza. Como já vimos no capítulo anterior, o espaço representado por esta última perspectiva já não se encontra mais limitado pelas bordas do quadro, mas apenas cortado por uma moldura, que não tem o poder, entretanto, de impedir que ele extravase para além da materialidade da tela, sob a forma de um campo invisível. A imagem construída sobre esse modelo perspectivo trabalha, portanto, em dois lugares imaginários: o espaço que se afunda para dentro da tridimensionalidade ilusória do quadro, como que perfurando o suporte material e, de outro lado, o espaço que se supõe atravessar as bordas do quadro, saltando para fora e ocupando o lugar do observador. Um infinito para dentro e um infinito para fora: é através dessa ilusão de um espaço ilimitado que a representação perspectiva renascentista oculta o recorte do quadro e reprime a mutilação metonímica que está na base de todo procedimento figurativo. .....A referência a um espaço imaginário extra-quadro pode se dar de várias maneiras, como ocorre, por exemplo, toda vez que uma figura que está em campo aponta ou remete para algo fora de campo: esse é o caso da foto de uma mulher com a expressão aterrorizada, as mãos protegendo o rosto e= o olhar fixo em algo que só ela mesma pode ver. O espectador só tem diante de si a imagem da mulher assustada e a direção apontada pelo seu olhar, mas não tem o contracampo desse espaço para o qual se dirige o olhar: isso não o impede (ou melhor, isso exatamente o força) de conceber imaginariamente o prolongamento desse espaço emoldurado pelas bordas do quadro. Alguns
exemplos marcantes: uma foto de Hiroshi Nakanishi, tomada por ocasião de um golpe direitista na Tailândia em 1976, mostra dois estudantes da Universidade de Thammasat olhando para algo fora do quadro que se supõe ser as próprias cenas do massacre esquerdista no campus (prancha 6). Outra foto, de Hector Rondon Lavero, tomada durante uma rebelião militar na base naval de Puerto Cabello, na Venezuela (l962), mostra um padre socorrendo um soldado mortalmente ferido e os seus olhos voltados para o local onde se supõe estar(em) o(s) atirador(es), muito embora a câmera não seja capaz ela própria de se voltar para esse extra-quadro (prancha 7). Porque o fotógrafo prefere tomar a cena pelo seu contracampo é algo difícil de responder, mas arriscamos a hipótese mais provável: em certas situações-limite de extrema periculosidade ou de difícil acesso, nem sempre é possível apontar a câmera diretamente para o motivo; neste caso, o fotógrafo procura no contracampo da cena determinados sinais que apontem para o centro da representação. Nos dois casos citados, a imagem enquadrada no recorte aponta para a sua continuidade no extra-quadro e nessa simulação de um espaço infinito ela esconde a sua própria fragmentação e a precariedade de sua visão. Mais que isso, invocando a mística de uma representação infinita, a fotografia nos impede de perceber aquilo que é o mais importante: as condições reais de produção – hostilidade do excluído para com o fotógrafo, compromissos inconfessáveis entre as partes, impossibilidade de mudar o ângulo de tomada etc – que estão justamente determinando o esfacelamento do espaço e o esquadrinhamento da cena. Numa palavra, o fetiche do extra-quadro funciona como um curto-circuito da materialidade da foto, censura do gesto enunciador e, em todas as circunstâncias, reforço do efeito especular. O extra-quadro não pode jamais nesse sistema ser encarado como tal, ou seja, como perda irreparável, sem reapropriação. .....Godard caricaturou essa sedução pelo espaço infinito oferecido pela construção perspectiva no seu filme Les carabiniers, quando o espectador, que vai pela primeira vez ao cinema, ao ver na tela a imagem da bela mulher nua mas com os seios censurados pelas bordas do quadro, levanta-se de sua
cadeira e caminha para a frente na esperança de descobrir um ângulo privilegiado que lhe permitisse olhar pelo viés do quadro, crente de que o corpo feminino se prolongasse para fora de campo. A impressão de infinitude produzida pela perspectiva logra apagar a marca ideológica imprimida pelo recorte do quadro, ou mais exatamente: ocultar o fato de ser toda cena uma construção e uma seleção, intencionalmente arquitetadas por um enunciador, em determinadas relações de produção, com vistas a um fim determinado. Ocultando a refração imposta pelos limites do quadro, fazendo a cena extravasar para o espaço imaginário do extra-quadro, a perspectiva esconde a enunciação e o papel fundante do código, torna o espaço da representação um espaço autônomo e independente das condições que o geraram. O mundo representado pela estratégia perspectiva carrega sempre essa contradição: ele aparece como um anologon quase perfeito do real, ou como a sua cópia mais exata e, no entanto, paradoxalmente, surge também como um mundo à parte, autônomo e auto-suficiente, infinito por si mesmo, sem qualquer ligação com o mundo que o gerou a não ser o fato de ser o seu Reflexo, o seu Outro. .....A pintura que vem do Renascimento nos predispôs a imaginar o fetiche desse espaço extra-quadro quando descobriu que poderia “apontar” para ele ou simular sua existência através de espelhos espalhados pela cena. Entre os inúmeros exemplos que proliferam durante o Renascimento e o Barroco, poderíamos citar o Retrato de Giovanni Arnolfini e sua esposa Jeanne de Chenany (1434) de Jan van Eyck, O banqueiro e sua mulher (l5l4) de Quentin Metsys, o Auto-retrato (l523) de Parmigianino, ou Vênus, Vulcano e Marte (1551) de Tintoretto, nos quais um espelho convexo colocado no fundo da cena reflete o que estaria à frente da tela, na sua continuidade imaginária, ou seja, o contracampo da sala. A desnorteante sedução que brota dessas telas reside no fato de nos forçarem, enquanto observadores, a crer que a cena prossegue para além das bordas do quadro, abrindo-se para um espaço ilimitado que vem nos roubar o próprio espaço em que estamos colocados. O jogo de supressões e censuras parece não ter fim: desaparece o suporte material da tela, desaparecem as bordas do quadro e o espectador ele próprio é também
suprimido, na medida em que o espaço que ele ocupa é substituído pelo espaço imaginário refletido no espelho da cena. Essa supressão do espectador enquanto um “leitor” autônomo do texto figurativo constitui, como veremos a seguir, um dos fenômenos mais importantes da representação entendida como produção de um efeito de “realidade”.Por ora, fica aqui registrado que a vertigem dessa representação infinita contagiou também a fotografia, quando esta descobriu que poderia desdobrar o espaço pictórico focalizando o modelo e seu duplo através do reflexo de um espelho, de modo a estender o seu lugar simbólico para além da própria materialidade da foto. Um espelho dentro de um espelho – como nas construções en abime da heráldica – se considerarmos que a vocação ideológica da fotografia é a produção do reflexo especular. A esse respeito, aliás, há uma foto de Brassai surpreendentemente reveladora, em que o trio colocado no contracampo do quadro e projetado no espelho da cena repete, como num eco visual, o trio que se vê em cena (prancha 8). Alguns analistas vêem nessa foto uma caricatura do próprio projeto fotográfico, entendido como um desejo de duplicar seres e objetos do mundo em sua imagem especular (Owens, 1978: 74-75). .....Só que na fotografia ocorre um sério problema: se faço desdobrar o espaço da cena colocando espelhos em campo, a própria câmera pode aparecer refletida nesses espelhos, comprometendo a inocência do efeito de “realidade”. Por isso, desde que não esteja nos propósitos do fotógrafo a desconstrução da ilusão especular, ele deve suprimir da cena, ou pelo menos ocultar, o seu próprio instrumento de inscrição, a câmera. Para tanto, ele deve fixar a câmera num enquadramento ligeiramente oblíquo em relação ao plano do espelho, ou então ocultá-la dentro de algum objeto de cena. Há portanto um lugar na continuidade do espaço que não cabe na infinitude da projeção perspectiva, um campo cego, uma zona marginalizada, um gueto que a fotografia não tem como inscrever, a não ser à custa da transgressão de seu efeito especular: trata-se do lugar ocupado pelo próprio fotógrafo e sua parafernália foto-mecânica. Essa “coisa” está radicalmente excluída da cena e mesmo da cena extra-quadro, muito embora seja ela a força instauradora de toda a mitologia figurativa. A rigor,
o fotógrafo e seus instrumentos técnicos constituem a única porção invisível da foto cuja presença não é um fetiche, pois é a condição da fotografia; mas a ficção do extra-quadro a exclui de forma irremediável e lhe rouba o lugar. A câmera não pode nunca fotografar-se a si mesma, a não ser que a tomemos através do reflexo de um espelho da cena. Mesmo neste caso, a produção habitual sempre encontra meios de escondê-la ou disfarçá-la, pois se a câmera aparece refletida na superfície de algum objeto fotografado o resultado é o comprometimento senão da fotografia, pelo menos do seu efeito de “realidade”, já que ocorre um desvelamento do agente enunciador. Sempre que possível, na prática dominante, é preciso que tudo se passe como se não houvesse um fotógrafo diante da cena, é preciso que a cena apareça como se estivesse lá entregue à sua própria sorte, a despeito de qualquer intervenção de um agente enunciador. Para que o efeito de “realidade” se complete, nenhum detalhe da cena pode denunciar a porção do extra-quadro onde se encontra o fotógrafo e seu aparato técnico. Os fotógrafos que trabalham em publicidade, justamente aqueles que mais tiram proveito da ilusão especular, acumularam um grande número de técnicas cuja função é esconder o lugar do extra-quadro onde está a câmera. Digamos que eles desejem, por exemplo, fotografar frontalmente uma panela de pressão: como evitar que o próprio objeto funcione como um espelho, refletindo no seu aço a câmera que o toma? Para resolver esse problema, o fotógrafo constrói um verdadeiro “envólucro” de cartão negro ao redor da panela, cercando-a tão hermeticamente que ela possa ficar na obscuridade total (a luz que a ilumina vem de trás e é difundida na cena após refletir-se no teto de cartão), e deixando apenas um pequeno orifício, suficiente unicamente para penetrar a lente que a toma. .....Se a câmera não pode nunca incluir-se na imagem enunciada, a única maneira de vê-la é detectando as marcas que ela deixa na cena. Quanto mais a foto se deixa permear por essas marcas, quanto mais a foto deixa entrever o seu mecanismo enunciador, mais ela se libera do fetiche do extra-quadro e se abre a essa outra cena invisível e reprimida, a cena do próprio trabalho produtor de signos. Daí o efeito hilariante e desmistificador quando Umbose fotografa para
um Auto-retrato, apontando a câmera para si próprio, mas de uma tal forma que o sol faz projetar a sombra do aparelho sobre o seu rosto, ocultando-lhe a face como a máscara do Lone Ranger (Zorro) (prancha 9). Ou então quando a mão de um policial tenta tapar a lente da câmera para impedir que o fotógrafo testemunhe uma ação violenta: tais fotos, tão significativas para uma visão desconstrutiva, costumam ser destruídas ou negligenciadas na prática jornalística habitual, porque não ostentam o “sentido pleno” que caracteriza o motivo bem enquadrado. Abrir o espaço da representação a esse lugar cego significa trazer à tona as relações de produção em que se dá o trabalho enunciador, bem como colocar em evidência as forças ideológicas que estão interagindo no resultado final.
6. SUTURA E TRANSFERÊNCIA DO SUJEITO Fizemos referência, no capítulo anterior, a determinadas telas renascentistas e barrocas que jogam com o espaço extra-quadro refletido em espelhos da cena, mas deixamos de mencionar propositadamente uma obra decisiva na fixação e no desvelamento crítico desse modelo figurativo: Las damas de honor (l656) de Velásquez, mais comumente conhecida como As meninas. Nessa tela, um espelho colocado no fundo da sala reflete aquilo que está (ou esteve) no contracampo da cena, ou seja, os personagens (o rei Filipe IV e a rainha Mariana da Espanha) sob a mediação dos quais a imagem é dada a ver. A porção do espaço que é aqui excluída da cena, mas indicada pelo reflexo do espelho, não é uma porção qualquer: trata-se justamente daquele lugar privilegiado de onde a cena é vista e a partir da qual se dá a enunciação. A cena concebida por Velásquez torna-se então um espetáculo que é visado por um olho (por quatro olhos, mais propriamente) que está excluído de seu campo, enquanto o reflexo dado pelo espelho é o termo segundo o qual esse olho se nomeia a si próprio como o sujeito da representação. Ora, se esse espelho indica que à frente da cena há alguém que a torna visível enquanto seu próprio sujeito, o espectador, que é aquele que atualmente está de fato diante do quadro, torna-se ele próprio fantasmático e transparente, apagando-se enquanto tal. Uma vez que o lugar de onde o espectador vê a cena coincide com o lugar de onde o sujeito enuncia a
representação, há uma transferência de
subjetividade deste para aquele. Em outras palavras, o que ocorre é um “assujeitamento” do espectador, pois em toda construção perspectiva unilocular este último se identifica com o sujeito e vê a cena como se fosse ele. A tela de Velásquez constitui a primeira manifestação explícita e nomeadamente visível dessa inscrição do sujeito na cena. .....Mas nessa mesma tela ocorre ainda uma desconcertante inversão da fórmula pictórica clássica: nela, é o próprio pintor que é visto como objeto do olhar, enquanto os modelos ausentes, mas indicados pelo reflexo do espelho, ocupam no extra-quadro o lugar do sujeito. O quadro torna-se então a denúncia de um
procedimento ideológico pelo avesso de sua representação: lançando mão do poder que tem a perspectiva central de exprimir o exercício de um olhar, Velásquez se apropria do olhar dos personagens e constrói a cena a partir dessa ótica inesperada (Foucault, 1968: 17-33). A sua onipotência é tal que ele pode fingir ser o objeto de um olhar que ele próprio, enquanto sujeito, enuncia. E o personagem investido dessa função hegemônica torna-se, por outro lado, um sujeito fictício, um sujeito que só existe dentro das articulações diegéticas com que joga o quadro. Esse sujeito fictício vai resultar, trezentos anos depois de Velásquez, na alma de um certo tipo de cinema dito “subjetivo”, que faz o olho da câmera personificar a visão de um personagem. .....O quadro de Velásquez nos diz ainda uma outra coisa, a despeito do fetiche do espelho da cena. Ele nos diz que, dentro desse sistema pictórico que ele quer desmascarar, não precisa haver necessariamente um espelho na cena para o sujeito aí se inscrever: a coerência do escalonamento dos planos em direção ao ponto de fuga já é um traço por demais suficiente dessa inscrição. O sujeito, muito embora ausente da cena, já se encontra nela embutido pelo simples fato de que a topografia do espaço está determinada pela sua posição. Na verdade, a evolução das linhas de fuga já constitui por si só um “espelho” que indica a hegemonia de um observador ausente e que transfere o espectador atual para dentro do olho do sujeito. Numa palavra, o afunilamento dos planos, marca registrada da perspectiva central, não visa simplesmente “reproduzir” relações de profundidade: ele funciona, na verdade, como matéria significante da inscrição do sujeito no discurso figurativo, ele é o “espelho” que reflete, no plano simbólico, essa ordem egocêntrica que instaura a representação. Nesse tipo de construção, o sujeito (e também o espectador que é investido de suas funções) olha para os seres e objetos “fixados” no quadro, mas ao mesmo tempo se vê também refletido nesse quadro, graças às projeções perspectivas que definem o seu olhar. Não é destituída de propósito a referência aqui à “fase do espelho”, momento privilegiado da vida da criança em que, segundo Lacan, se dá a especularização do corpo e a constituição do primeiro esboço do “eu” como formação imaginária: nessa fase, o reflexo da imagem da criança no
espelho estabelece o contorno de seu próprio corpo e o identifica como uma forma separada dos outros seres e objetos (Lacan, 1966: 89-97). É nesse momento em que o portador do olhar se percebe refletido no espelho que se dá a origem do “eu” na ordem do Imaginário, da mesma forma que na cena perspectiva renascentista o reconhecimento da realidade pictórica como uma realidade produzida pelo “eu” é o momento genético da constituição do sujeito na história e do “assujeitamento” do espectador. .....No que diz respeito à fotografia particularmente, uma experiência que já deve ter intrigado muita gente é a seguinte: tomamos uma foto qualquer em enquadramento frontal, fixamo-la numa parede e depois nos pomos a observá-la; os olhos da figura retratada parecem nos fitar atentamente. Para fugir ao olhar incômodo, deslocamo-nos para um dos cantos da sala ou subimos a um plano mais alto, confiantes de que assim escaparemos daquele campo de visão que supomos nos abranger. Em vão: à medida que nos deslocamos, o olhar da figura petrificada na foto parece nos acompanhar e continua a nos fitar teimosamente, como uma maldição. Sabemos muito bem que a foto é fixa e que ela congela uma expressão num intervalo de tempo escolhido pelo obturador, mas como ignorar a evidência inquestionável desse olhar que parece se mover para nos alcançar onde quer que estejamos? Para o senso comum, isso atesta, de qualquer forma, uma natureza “mágica” da fotografia, prova de que algo sobrenatural participa de seu processo reflexivo. .....O que ocorre, na verdade, é essa transferência de subjetividade a que nos referimos a propósito da tela de Velásquez. Se toda imagem de natureza fotográfica já se encontra de alguma forma construída pela posição que o olho/sujeito ocupa em relação ao motivo, deve-se concluir que quem vê efetivamente a imagem não é o espectador: ele apenas endossa uma visão que já foi realizada antes pela objetiva. A construção em perspectiva renascentista nos dá sempre uma paisagem já vista e já dominada por um olho. Isso significa que quando vemos uma foto não é simplesmente a figura que nos é dada a olhar, mas uma figura olhada por outro olho que não o nosso. É exatamente o que ocorre na experiência da foto fixada na parede: não importa onde nos
colocamos para olhá-la, pois não somos nós que a vemos; um outro olho vê em nosso lugar e nós não fazemos senão confirmar essa visão. Se a foto foi tirada de frente, com o modelo olhando diretamente para a lente, essa imagem de uma figura se dirigindo ao vértice da pirâmide albertiana fixar-se-á em definitivo e nós seremos forçados a vê-la sempre dessa forma, onde quer que nos encontremos. No cinema, essa transferência de subjetividade chega aos requintes da vertigem: vemos a paisagem “girar” ao nosso redor (através das panorâmicas), deslocar-se para os lados (através dos travelings) ou aproximar-se e afastar-se (através do mecanismo da zoom) sem que nós próprios nos tenhamos movido um centímetro sequer. Diante da imagem figurativa renascentista, o nosso olhar se submete, portanto, a um outro olhar, torna-se seu escravo mudo e impotente e não vê senão aquilo que um sujeito onividente o obriga a ver. .....Teoricamente, para que o efeito de “realidade” da perspectiva central pudesse ser preservado em sua integridade, o observador deveria se colocar exatamente no ponto de vista que gerou o quadro, ou seja, o ponto de vista atual do espectador deveria coincidir com o centro perspectivo da pintura (o vértice da pirâmide de Alberti). Como essa condição em geral não é nem pode ser observada, o efeito produzido pela perspectiva torna-se absurdo: eu me coloco à esquerda e abaixo do objeto representado pela foto e, no entanto, esse mesmo objeto me é mostrado como se fosse visto de cima e da direita. O observador só não se dá conta dessa alucinação topográfica porque diante do quadro ou da foto ele penetra num espaço simbólico: ignora o seu próprio lugar e se imagina no mesmo ponto privilegiado do espaço que organizou a imagem. É isso justamente o que nós chamamos de transferência de subjetividade: a supressão provisória de nosso próprio olhar para colocá-lo à mercê de um outro que dirige o nosso. Todavia, se essa duplicidade de pontos de vista se acentua de modo exagerado, a imagem percebida resulta visivelmente distorcida. Tal deformação visual – conhecida como anamorfose – pode ser observada no cinema, quando nos sentamos numa posição incômoda, muito perto da tela, ou então quando olhamos para um outdoor exatamente debaixo dele. É possível inclusive registrar uma anamorfose, fotografando novamente uma foto, porém, de um
ângulo diferente. Ou então utilizando uma câmera de estúdio, cujas paredes são de fole, portanto móveis, permitindo desalinhar deliberadamente os planos da objetiva e do filme. .....A anamorfose nasceu mais ou menos junto com o sistema projetivo renascentista e constitui “uma contínua advertência dos elementos aberrantes e artificiais da perspectiva” (Baltrusaitis, 1977: 2). Na história da pintura ocidental, ela comparece em momentos isolados, corroendo a autoridade do olho hegemônico da representação através de um segundo olho, contraditório com a posição do primeiro. Reorganizando inteiramente a topografia da cena a partir de um novo ângulo de visão, esse segundo olho torna o lugar tradicional de mirada do quadro – o ponto frontal – um lugar precário para visualizar a cena. O exemplo mais eloqüente dessa técnica está numa tela corrosiva de Holbein denominada Os embaixadores (1533), em que se vê dois gentlemen da aristocracia francesa – Jean de Dinteville e Georges de Selve – tomados de frente, diante de uma mesa onde estão distribuídos vários objetos indiciadores das ciências e das artes da época: um globo celeste, um globo terrestre, instrumentos astronômicos, compassos, livros, um relógio de sol, um alaúde etc. A cena não poderia ser mais clássica, com um absoluto equilíbrio na disposição dos motivos, uma riqueza microscópica na descrição realista da paisagem e os efeitos de perspectiva perfeitamente solucionados. Tudo estaria tranqüilo – como convém a uma paisagem renascentista – não fosse um estranho objeto inclinado, impossível de ser identificado, que rouba o primeiro plano da cena. Trata-se, na verdade, da distorção anamórfica de um crânio, que só pode ser visualizada se o observador se colocar acima e à direita do quadro, olhando-o bem de perto. Desse ponto de vista, toda a precisão da cena, toda a luxúria dos nobres e o progresso das artes e das ciências são reduzidos a uma mancha indistinta, sobrando apenas, enorme e perturbador, o signo da morte (Baltrusaitis, 1977: 104-105). O segundo olho introjetado na cena é um olho crítico, cuja função é desmantelar as certezas do sistema renascentista. Na teoria psicanalítica, há um conceito que parece dar conta de toda a complexidade do fenômeno da subjetividade na fotografia: trata-se do conceito de sutura. Ele foi
proposto originalmente por Jacques-Alain Miller, no contexto da teoria lacaniana, para designar a relação do sujeito (em termos psicanalíticos) com a cadeia de seu discurso. Sabe-se que, para Lacan, o inconsciente está estruturado como linguagem e que é essa linguagem que constitui o sujeito, daí porque ele propõe repor a noção de inconsciente pela noção de sujeito na linguagem. O sujeito é portanto o resultado, ou mais precisamente o “efeito” de uma circulação de significantes, na qual a questão de sua existência é colocada como contraposição ao lugar do Outro. Segundo Miller, a descrição dessa circulação exige uma lógica, a lógica do significante, capaz de seguir o movimento da constituição do sujeito. Se este último, ainda na acepção lacaniana, só se pode constituir no jogo simbólico por uma divisão, em que para ele aparecer como sujeito ele precisa ser excluído ou “recortado” pelo significante, conclui-se que ele só se torna alguém (um) pela sua constituição como menos-que-um. Miller usa aqui a metáfora do número zero na série numérica (0, 1, 2, 3 ... etc), segundo a qual só se pode pensar um número dessa espécie como algo que está no lugar de uma ausência: ele é necessário para a lógica da cadeia, mas não está aí a representar nada que não seja uma exclusão. “ Sutura é o nome
que se dá à relação do sujeito com a cadeia de seu discurso: podemos ver que ele figura aí como o elemento que está faltando, na forma de um substituto (tenant-lieu). Pois enquanto lá faltando, o sujeito não está simplesmente ausente. Sutura, por extensão, é a relação geral de ausência na estrutura em que ele é um elemento, visto que implica a posição de um substituto (tenant-lieu )” (Miller, 1977: 25-26). .....Entretanto, o conceito de sutura nos interessa aqui em sua “tradução” para o terreno da cinematografia, tal como foi efetuada por Jean-Pierre Oudart. Neste particular, sutura se refere à lógica do significante no cinema, ou mais precisamente à lógica do enunciado cinematográfico, de acordo com a relação mantida com ele por seu sujeito e aquele que é colocado em seu lugar: o espectador. Segundo Oudart, o espaço no cinema não é uma simples extensão que se afunda em direção ao ponto de fuga: ele está ali em função de um campo ausente, um campo que se encontra no prolongamento anterior do cubo da cena,
na sua “quarta parede”. Esse espaço se abre, portanto, para um personagem fantasmático que não pode ser visto na cena e justamente porque ele está ausente, o espectador ocupa o seu lugar (Oudart, 1969: 36-39). Ocorre, porém, que o conceito de sutura introduzido por Oudart está limitado às convenções discursivas de um certo tipo de cinema narrativo que tem na estrutura campo/contracampo o seu modelo dominante e em que cada plano (no sentido cinematográfico) é tomado como o ponto de vista de um personagem da intriga. O sujeito de que fala Oudart é apenas o sujeito fictício da cena diegética; não é nem o sujeito clínico da psicanálise, nem o sujeito histórico da civilização burguesa. Oudart trata, portanto, de um aspecto particular da sutura, tal como ela ocorre na articulação dos planos numa modalidade particular de discurso cinematográfico e se equivoca ao supor que essa seja a única operação suturante possível no domínio da figuração. .....Antes mesmo da continuidade narrativa se colocar em articulação, o cinema já está marcado, entretanto, pela presença do fotograma, que é a sua base fotográfica e é aí que se dá, antes de mais nada, a operação primordial de sutura, entendida como a ocupação do campo ausente pelo lugar do espectador. O que ocorre particularmente no cinema é que aí o mecanismo da sutura é duplicado pela manipulação da câmera subjetiva (aquela que se põe no ponto de vista de um dos personagens), forçando a identificação do espectador com determinados protagonistas da cena diegética. Mas a fotografia, pela pura hegemonia da perspectiva que a sustenta, já obriga o espectador a se colocar no ponto de vista da câmera, suturando o sujeito transcendental que a enuncia. Diante da imagem figurativa informada pela perspectiva unilocular, nós abandonamos o nosso olhar àquele outro olhar invisível mas onipresente – o da câmera – que comanda a nossa visão. O olho personificado no vértice da pirâmide albertiana funciona, portanto, como um mediador: é através dele que nós devemos olhar a cena. Não há como nos mover no espaço da representação que não seja por procuração: o nosso olhar apenas pode mover-se em direção aos pontos que o olho enunciador aponta na cena. Isso é exatamente o que nós podemos chamar de alienação em fotografia: os
espectadores, sem o saber, são destituídos do poder e da liberdade de olhar; o olhar é coisificado, separado do indivíduo que olha. .....Sem o saber, é bem a questão. Essa transferência de subjetividade é fundamental para o efeito especular, pois se o espectador pudesse se desprender do olhar que o domina e fazer o seu próprio percurso na paisagem representada, os limites e as convenções do código figurativo se evidenciariam aos seus olhos. É por isso que, na prática fotográfica dominante, a câmera não pode nunca aparecer refletida nos objetos da cena: se ela aparece, ela se objetiva (torna-se objeto do olhar) e perde o seu poder de personificar o sujeito. Em termos lacanianos, ela só funciona como sujeito na medida em que está ausente, na medida em que ocorre como menos-que-um. Mas justamente porque ela é o campo cego da figuração, o “texto” plástico da fotografia não aparece nunca como o exercício do olhar de um sujeito hegemônico, mas como um discurso de ninguém, ou seja, uma paisagem pintada pela própria natureza (“the pencil of the nature”, como dizia Nadar). .....Presa fácil das armadilhas da enunciação, o espectador entra no jogo articulatório da fotografia ocupando “naturalmente” o espaço do Ausente. A cena que se abre para ele, aparentemente “real” e objetiva, é uma paisagem que se oferece ao seu olhar privilegiado, que lhe é dada a ver com exclusividade, como se tudo tivesse sido forjado apenas para lhe ser exibido. Em termos freudianos, o seu olhar é ao mesmo tempo escopofílico (porque transforma o visível em objeto do seu olhar) e narcisista (porque o que ele vê, em decorrência da particular topografia do espaço, é a devolução do seu próprio olhar). A fotografia pornográfica, de ampla difusão entre o público masculino principalmente, é a melhor evidência desse envolvimento: o que o espectador vê na foto não é simplesmente a mulher nua, mas uma mulher nua que posa para ele,que expõe sua plástica para ele, que lhe sorri e lhe deposita o olhar, que se oferece toda à sua embriaguez voyeurista . A sedução desse tipo de fotografia reside no fato de que o olho da objetiva (que o espectador assume) torna-se o centro para onde converge toda a cena, o ponto privilegiado para o qual seres e coisas se voltam submissos. John Berger já observou que o nu artístico, de ampla difusão na
pintura ocidental, tem sempre um protagonista que não é visto no quadro, mas que se presume tratar-se necessariamente de um homem. “Tudo está
endereçado para ele. Tudo deve aparecer como o resultado de sua presença ali. É para ele que as figuras assumiram sua nudez. Mas ele é, por definição, um estranho, com suas roupas ainda a vestir- lhe” (Berger, 1972: 54).A mulher comparece nesse sistema como um fetiche: ela se torna aí o objeto do olhar erótico de uma parte (masculina) dos espectadores; o seu corpo é arranjado para possibilitar um panorama privilegiado para o olho/sujeito que a aborda.Mesmo quando ela contracena com um homem em campo, “a atenção
da mulher raramente é dirigida para este. Ela se dirige sempre para aquele que olha o quadro e que ela considera o seu verdadeiro amante: o espectador-proprietário ” (Berger, 1972: 56). Por essa razão, o nu costuma ser sempre frontal, porque ele se destina ao olhar que o observa de frente e que se supõe ser um olhar masculino. O espectador ideal do sistema figurativo ocidental é sempre pressuposto ser um homem; mesmo quando se trata de uma mulher, é preciso que o seu olhar assuma uma identidade masculina, sem a qual os arranjos do corpo no quadro não demonstrariam sentido. Pesquisadoras feministas que atualmente investigam o poder de sutura da imagem figurativa já se perguntam desconfiadas se esse delicioso antegosto da onipotência que a civilização burguesa nos proporciona não esconde, sob a máscara da masturbação ótica, a ordem falocrata que o fomenta (Kuhn, 1982; Doane, 1982).
7. PODER E ARBÍTRIO DO ÂNGULO DE TOMADA .....Da mesma forma como o recorte efetuado pelo quadro pressupõe uma escolha e uma intenção que se materializa no resultado, outra opção ideológica da mesma natureza vai ocorrer na determinação do ângulo de tomada, ou seja, na posição que o olho/sujeito ocupa em relação ao objeto fotografado. Esse ponto privilegiado do espaço que define os valores na cena é uma decorrência lógica da construção perspectiva, já que esta é por natureza uma topografia organizada em função do ponto de vista do sujeito da representação, tal como ele está cristalizado no olho fixo e único da objetiva. O enquadramento e a angulação constituem justamente a petrificação desse ponto de vista que coincide, no extremo diametral do contracampo, com a posição do ponto de fuga. Não existe representação pictórica fundada na perspectiva central que não esteja de alguma forma fixada num ângulo de visão rigidamente estabelecido; aliás, a possibilidade de localizar com exatidão um ponto originário de sentido constitui a prova mais cabal de que uma imagem está arranjada de acordo com os cânones perspectivos renascentistas. Mesmo o cinema, que goza dos acréscimos do movimento e da mobilidade da câmera, não está livre dessa fixação do ângulo de visão ou de tomada: cada fotograma é a petrificação de um ponto de vista único, como em qualquer fotografia; se a câmera se desloca, é o olho totalizador que ganha asas, sem abrir mão todavia do monopólio da visão. .....Se o enquadramento determina a fixação de um ponto a partir do qual a câmera toma seu objeto, isso por si só já estabelece uma hierarquia de valores dentro do quadro, que corresponde à forma como a posição da objetiva refrata o visível: algumas coisas vão estar em primeiro plano ou numa posição privilegiada em relação ao ponto de tomada e, por conseqüência, vão ser valorizadas e ganhar importância na cena; outras coisas vão ser jogadas para o fundo, reduzidas de tamanho na relatividade das proporções perspectivas e, dessa forma, funcionarão com um peso menor na escala de importância da cena; umas terceiras ainda terão sorte pior: serão eliminadas de campo,pois o enquadramento as esconderá atrás de algum objeto ampliado no primeiro plano.
A posição da câmera petrificada na angulação constitui, em toda construção perspectiva, um poderoso mecanismo gerador de sentido e tanto mais perturbador porque ele opera, na maioria das vezes, sem que os espectadores se dêem conta do seu papel e da sua eficácia. A esse respeito, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin realizaram uma análise bastante detalhada de uma foto que
Joseph Kraft obteve em Hanói da atriz Jane Fonda colhendo
depoimentos de populares norte-vietnamitas durante a guerra do Vietnã. A câmera – explicam os autores – encontra-se colocada num ponto tal que privilegia apenas a atriz; os interlocutores vietnamitas aparecem um de costas para a câmera e os outros de frente mas já fora do limite da profundidade de campo e, portanto, desfocados. Por razões comerciais e ideológicas evidentes, era preciso orientar a câmera para a vedete, ressaltar a sua presença fotogênica, enquanto os vietnamitas comparecem apenas como marcas geográficas do lugar que a atriz ocupa (Godard e Gorin, 1972: 82-83). .....Não é difícil perceber a natureza ideológica do ângulo de tomada quando a posição que a câmera ocupa em relação ao objeto pressupõe uma relação de classe e de poder. Por exemplo: o Pentágono só pode ser fotografado de fora e em enquadramento aéreo, uma vez que está protegido por severas normas de segurança contra possíveis olhos indiscretos de câmeras inimigas. As leis soviéticas são extremamente rígidas em relação à fotografia em lugares considerados estratégicos como o Cremlin e suas imediações, cercanias de bases militares e zonas ocupadas por industrias de base. No Brasil, igualmente, a fotografia é proibida em locais que o governo considera “zonas de segurança nacional”, a menos que haja autorização explícita da autoridade militar competente. Quando o ato de fotografar
implica conseqüências sociais e
políticas de grande monta, nem sempre se pode escolher aleatoriamente o ângulo de tomada: ele é determinado pela relação de forças, exatamente como na guerra só podemos fotografar o inimigo do ponto de vista de nossas próprias trincheiras.
.....O lugar que a câmera ocupa para mirar seu objeto não é nunca um espaço neutro ou aleatório; mas é preciso se colocar em certas situações-limite para que essa condição se mostre em toda sua irredutibilidade. O amador sempre supõe em sua inocência que a simples posse de um aparelho fotográfico já lhe dá procuração para mover-se com liberdade na cena dos acontecimentos e decidir a seu bel-prazer a posição do olho enunciador, mas muito cedo ele experimentará a dura realidade do confronto com as forças monopolizadoras do espaço; em pouco tempo, ele aprenderá que o espaço já está de antemão esquadrinhado e ocupado, como numa operação militar, e que os ângulos privilegiados de visão, aqueles que permitem maior intimidade com o objeto, nem sempre estão disponíveis. O tripé de uma câmera é como o mastro de uma bandeira: para fincá-lo no solo é preciso primeiro ocupar um território ou – mais comumente – estar solidário com aqueles que o ocupam. É por isso que o ato de fotografar exige mais que a simples posse da câmera: exige o pacto com o detentor do espaço, exige a retaguarda da agência noticiosa ou da empresa jornalística monopolizadora da informação, exige a credencial do ocupante e beneficiário da cena. O espaço que o fotógrafo ocupa em zonas de litígio e o lugar em que ele finca sua câmera são sempre suspeitos: suspeitos porque a presença do fotógrafo em geral só se pode dar à custa de uma cumplicidade com o ocupante e sem a qual o ato de fotografar não seria possível. Acaso não foi preciso solidariedade, confiança e compromisso para que, em 1968, o chefe de polícia pró-americano Nguyen Ngoc Loan se deixasse fotografar estourando os miolos de um vietcong pelo fotógrafo da Associated Press Eddie Adams? .....Uma foto de Charles Harbutt, de 1971, mostra uma massa de jovens manifestantes contida por uma cerca de arame farpado, durante os protestos contra a guerra do Vietnã em Washington; do outro lado da cerca, policiais fortemente armados vigiam a concentração (prancha 10). Essa foto foi tomada de um dos lados da cerca, ou seja, do ponto de vista dos policiais. E não poderia ser diferente: se estivesse do outro lado, junto com a massa de manifestantes, o fotógrafo provavelmente não teria permissão para fotografar e nem mesmo estaria com a câmera ou com os filmes. Em quaisquer
circunstâncias, o fotógrafo é sempre uma co-presença no espaço dos acontecimentos e essa presença não é nem poderia ser indiferente ou descomprometida, mesmo porque a liberdade para fotografar só se dá por força de um pacto explícito ou implícito entre enunciadores e enunciados. O mais belo exemplo desse comprometimento, entretanto, está numa foto que Henri Bureau tirou para a agência Sygma, em abril de 1974, por ocasião da queda do regime salazarista em Portugal, e que mostra um informante da PIDE no momento em que era preso em Lisboa por uma unidade do exército amotinado (prancha 11). Os soldados fecham um círculo perfeito ao redor da vítima e o fotógrafo – muito embora invisível – faz parte do cerco e completa o seu fechamento: isso se mostra na foto através de uma lacuna que parece quebrar o círculo na sua parte frontal e que corresponde exatamente ao seu ponto de tomada. Em uma palavra: o fotógrafo era cúmplice da emboscada e atuou o tempo todo em sintonia com a tática militar dos soldados. Nenhuma inocência, nenhuma “objetividade” pode redimi-lo desse pacto sem o qual não haveria foto alguma. .....Muito dificilmente, porém, o espectador se dá conta dessa solidariedade da câmera com um dos lados do confronto: por estar fora do quadro, num espaço invisível e sem marca, o ponto de tomada se faz ignorar e o olho enunciador se faz passar por errático e gratuito, como se o fotógrafo fixasse a cena de forma imprevista e impensada, a partir de ângulo em que por acaso ele está. Tudo na foto jornalística parece corroborar em favor desse aparente aleatório: o enquadramento é apressado e o foco pouco preciso, sintomas de que a foto está sendo tomada em pleno fogo dos acontecimentos; o quadro aparece, por sua vez, exageradamente aberto, como o requer a grande-angular, objetiva própria para circunstâncias em que o imprevisto pode acontecer a qualquer momento e não há tempo para acertar o quadro. Em toda prática convencional da fotografia, os efeitos ideológicos do ângulo de tomada não aparecem de forma cristalina, de modo que a posição da câmera e o lugar ocupado pelo fotógrafo parecem mostrar-se tão arbitrários que se fazem passar por nulos ou inexistentes. A menos que ocorra uma reviravolta geral nesse estado de coisas e o fotógrafo intrometido perca a solidariedade do ocupante, de forma que venha a sofrer ele
próprio a força das instâncias de poder. Neste caso, a câmera perde a sua “objetividade” e o ponto de mira ocupado pela objetiva é desvelado porque é para ele – e não mais para antagonistas confinados no fundo do cubo da cena – que apontam os fuzis. O exemplo mais trágico e significativo desse desvelamento do ângulo de tomada e de revelação do espaço extra-quadro ocupado pelo fotógrafo nos foi dado no Chile, em junho de 1973, quando Leonardo Henricksen foi fuzilado pelos soldados enquanto filmava uma rebelião de militares direitistas contra o regime de Salvador Allende. .....Grande parte do efeito de “distância” e “objetividade” da fotografia jornalística decorre do ângulo de visão privilegiado que a câmera assume em relação ao objeto fotografado. Chamamos esse ângulo privilegiado de lugar panóptico, pois só ele é capaz de resolver um problema duplo: possibilitar uma visão abrangente e integral do evento e, ao mesmo tempo, simular uma posição externa ao evento, como a de um turista visitando a realidade alheia. Se quero mostrar uma grande concentração humana – digamos, por exemplo, uma manifestação pública ou um comício – o lugar panóptico é necessariamente um ponto ligeiramente superior – uma base ou uma plataforma – de onde a dimensão integral do evento me seja dada de uma só vez e cuja exterioridade esteja marcada pelo tipo de visão espacial que ele possibilita, uma visão que nenhum indivíduo da massa concentrada poderia obter de seu próprio lugar. Por coincidência, esse ponto superior que possibilita o ângulo privilegiado da câmera costuma ser o próprio palanque onde estão as autoridades (se o movimento é oficial) ou os líderes (se o movimento é contestatório): dirigentes e fotógrafos dividem entre si esse espaço privilegiado, de onde se descortina uma visão totalizadora da massa mobilizada e de onde a massa é vista como corpo despersonalizado, pura quantidade, simples cifra numérica, que é preciso dirigir ou petrificar, de acordo com a estratégia de cada um. As fotos de multidão que Cartier-Bresson tirou nas mais diversas circunstâncias – seja nos últimos dias do Cuomitang em Shangai (1949), na cerimônia de cremação de Ghandi na India (1947), ou num comício em Paris (1954) – reiteram sempre essa visão totalizadora de quem ocupa os pontos estratégicos, de quem pactua com o palanque oficial graças à
imunidade que lhe garante a credencial da agência noticiosa: são sempre fotos grandiosas, abrangentes, povoadas de milhares de cabeças, por sobre as quais o olho/sujeito realiza um vôo rasante, magistral e intimidador (prancha 12). .....Tente o leitor imaginar o que seria uma foto de uma multidão de manifestantes vista do interior da própria multidão, ou seja, personificando o ponto de vista de cada um dos manifestantes. Tal foto não teria certamente nenhuma grandeza visual, nenhuma abrangência ou amplitude: o máximo que seria dado à visão seriam as cabeças dos companheiros mais próximos. Essa visão fragmentária e sem glória, essa visão tortuosa e difícil de quem vê de dentro da multidão ou de quem está solidário com ela é o tema de uma série de fotos obtidas por José Roberto Sadek por ocasião da comemoração do Dia do Trabalho na cidade industrial de São Bernardo em 1979. Enquanto seus companheiros de imprensa tomam lugar comodamente no palanque oficial, Sadek enfia-se no meio da massa e se põe a tomá-la em pequenos closes individuais, descobrindo uma personalidade em cada rosto, uma configuração particular em cada gesto e toda uma dimensão micropolítica que é simplesmente reprimida quando a massa é reduzida a cem mil punhos fechados espetados para cima. Nem mesmo as faixas com suas palavras-de-ordem são dadas a ler, porque elas são amplas demais para caberem no quadro fragmentário dessa desconstrução (prancha 13). Evidentemente, tais fotos não são consideradas na prática jornalística habitual, porque parecem não se dar conta do evento, como se o evento fosse aquilo que é dado à visão através desse lugar privilegiado e originário de poder que é o palanque. .....Eisenstein, mestre insuperável do uso consciente da câmera como arma ideológica, sempre se mostrou sensível a essa vinculação da posição física da câmera com a posição de classe de seu operador e soube explorá-la de forma criativa. Em seu Encouraçado Potemkin, os canhões dos marinheiros sublevados aparecem apontados para o inimigo, ou seja, como a base no primeiro plano e a boca voltada para o fundo do quadro, em direção ao ponto de fuga, enquanto os canhões do inimigo aparecem apontados para a câmera, como se esta última personificasse o ponto de vista dos amotinados. Isso quer
dizer que a câmera de Eisenstein está o tempo todo solidária com os marinheiros do Potemkin; ela vê a sucessão dos eventos sempre do ponto de vista destes últimos, não passa nunca para o lado de lá, não aparece nunca como um olho “neutro” e totalizador que se sobrepõe ao objeto enfocado. Da mesma forma, enquanto a polícia do tzar é tomada apenas em planos fixos “distanciados”, na seqüência das escadarias de Odessa, a massa reprimida é focalizada por uma câmera solidária, que corre com ela escada abaixo, em traveling. A câmera de Eisenstein cai literalmente junto com um dos fuzilados na mesma seqüência e sobe as escadas juntamente com a mulher, no momento em que esta vai se defrontar com os cossacos. Para Eisenstein, tomar partido da massa revolucionária não se resumia numa mera retórica conteudista, mas era algo tão concreto que a câmera assumia ela própria um ponto de vista de classe. .....Nenhum enquadramento é mais requisitado no uso dominante da fotografia do que o frontal, exatamente porque no enquadramento frontal o ângulo de tomada é praticamente ignorado. O senso comum só percebe que há uma posição da câmera norteando e organizando o espaço quando o enquadramento é bizarro e difícil, quando a câmera ocupa uma posição oblíqua e conflituosa com a frontalidade da cena. É que os enquadramentos em ângulos tortuosos e insólitos desnudam a função da fotografia como forma de exercício do olhar: em posição excêntrica, a perspectiva age explicitamente como instrumento de deformação e a posição do olho/sujeito se denuncia como agente instaurador de toda ordem. É assim que se perfura a sensação de naturalidade e de “realismo” proporcionada pelo enquadramento frontal: deslocando o ângulo de visão para posições impossíveis, optando pela excentricidade radical do ponto de vista, a ponto de mutilar os corpos e colocar em campo zonas mortas de cenário (Bonitzer, 1978: 12). O ângulo excêntrico desmistifica a autoridade do olho/sujeito de privilegiar um ponto de vista e estabelecer uma hierarquia de valores na profundidade da cena: ele põe essa autoridade à mostra, impedindo-a de esconder-se sob o simulacro da “objetividade” fetichista.
.....Uma das polêmicas mais férteis a esse respeito deu-se na Rússia soviética dos anos 20, quando Aleksandr Ródtchenko elegeu o ângulo insólito para quebrar os automatismos da visão e liberar o olho do espectador da subserviência ao sujeito da enunciação (prancha 14). Ródtchenko se apoiava nas teorias dos formalistas russos, sobretudo de Chklóvski, cujo conceito de estranhamento lhe servia de base para uma virada radical na prática fotográfica habitual. Chklóvski defendia um conjunto de técnicas de construção, cuja função seria perturbar as nossas percepções rotineiras e forçar a sensibilidade a “estranhar” o arranjo simbólico que lhe é apresentado: o discurso difícil e tortuoso, o ponto de vista não familiar deveriam impedir o envolvimento inocente e exigir o empenho do leitor/espectador para decodificar o “texto” (Chklóvski, 1973: 26). Ródtchenko completava à sua maneira o raciocínio de Chklóvski, dizendo que o ponto de vista tradicional – aquele da câmera frontal à altura dos olhos do fotógrafo – já estava comprometido com vários séculos de ditadura da arte ocidental, de modo que uma sociedade revolucionária não poderia fotografar os seus líderes assumindo o mesmo ponto de vista com que a velha ordem autocrática tomava seus generais. Não há revolução alguma – dizia ele – em fotografar operários como se fossem cristos ou virgens marias captados pelo pincel de um Leonardo: uma nova visão do mundo deveria ser necessariamente uma visão que rompesse com os automatismos impostos pela produção dominante. Com base nesses argumentos, Ródtchenko dedicou-se, durante os anos 20, à busca do ângulo “impossível”, de onde a mística homológica resultasse “estranha” ao espectador. Infelizmente, porém, a ascensão do stalinismo ao poder lhe poda os experimentos e Ródtchenko é expulso do grupo Oktiabr, acusado de “radicalismo de esquerda”. A partir de então, a burocracia soviética só admite em suas publicações fotos claras
e transparentes,
facilmente reconhecíveis sem qualquer esforço, fotos necessariamente tiradas de frente e à altura dos olhos e que servissem aos fins de propaganda institucional. Alguns meses depois da publicação de uma polêmica acirrada entre Ródtchenko e os advogados do stalinismo na revista Novi Lef (1928), o fotógrafo cai em desgraça perante o regime, enquanto o Pravda publica em
página inteira um retrato frontal de Stálin, o mesmo retrato que enfeitaria as paredes das casas russas durante todo o longo inverno stalinista (Burgin, 1982a, 177-186). .....Simplificando a questão: existem duas maneiras diferentes, contraditórias mesmo, de desvendar a autoridade do olho da câmera. Num primeiro caso, o fotógrafo faz o ângulo de tomada trabalhar explicitamente para produzir sentido. A título de exemplo: em 1979, quando começa a vertiginosa ascensão do ministro Delfim Neto, que passa rapidamente pelas pastas da Agricultura e Planejamento, até chegar ao ministério mais importante, o da Economia, o fotógrafo Pedro Martinelli o tomou num flagrante surpreendentemente revelador (prancha 15). Ladeado pelo presidente da República e pelo governador do estado mais rico do país, o ministro ocupa uma posição central dentro do quadro e o fato de estar de pé lhe dá ainda maior proeminência. A câmera encontra-se colocada num lugar tal que praticamente faz esconder o militar de alta patente que se encontra atrás do ministro, dando a impressão de que o quepe daquele encontra-se na realidade colocado na cabeça deste último. A ironia da foto é evidente: o todo-poderoso super-ministro aparece como aquele que realmente dá as cartas no governo Figueiredo e, embora civil, ele é a expressão mais exata dos interesses e ambições que os militares alimentam em relação ao poder. Certamente, a foto não teria a mesma eloqüência se a posição da câmera fosse outra. elfim está, com toda precisão, centralizado pela objetiva e encaixado no quepe do militar, como forma do fotógrafo tecer um comentário – certamente intuitivo e improvisado, mas nem por isso menos agudo – sobre o seu papel estratégico na hierarquia do poder. Num segundo caso, o fotógrafo recusa qualquer significação ostentatória, resiste a encarar a cena fotográfica como um palco para o sentido pleno e consistente, aciona o obturador de forma aleatória, fazendo a imagem resultar tão refratária em termos de retórica visual quanto uma tela abstrata. As fotos do alemão Andreas Muller-Pohle constituem a melhor demonstração disso (prancha 16): nelas, a composição é errática, ditada por um olho cego que se recusa inclusive a usar o visor reflex, a própria câmera estando em movimento durante o acionamento do obturador, para que
nenhum ponto de tomada seja escolhido propositadamente. Como conseqüência, o olho da objetiva toma a cena de um lugar que não privilegia nenhuma configuração: parece que nada está dado a ver sob uma perspectiva figurativa, donde resulta um retorno do quadro à sua opacidade material. Uma composição como essa não manifesta sentido, pelo menos o sentido a que o sistema de expectativas convencionais da fotografia nos habituou, mas, em contrapartida, faz aflorar no suporte fotossensível as formas perceptivas – cor, textura, efeitos de luz, grafismos do gesto – com os quais e apenas com os quais o mundo se torna significante para nós. .....Por mais paradoxal que isso possa parecer, essas duas formas extremas de manejar a câmera conduzem a um mesmo efeito desconstrutivo: a denúncia do ângulo de tomada como mecanismo subterrâneo e “invisível” de instauração do sentido; só que a primeira o faz através da ênfase gritante, enquanto a segunda obtém o mesmo resultado através da negligência e do desprezo mais absolutos.
8.
FISSURAS NA PROFUNDIDADE DE CAMPO
.....O aparelho fotográfico foi concebido, na sua origem, para produzir automaticamente o código perspectivo, mas essa produção não se dá de forma límpida e coerente como na arte pictórica renascentista: caracteres particulares do mecanismo técnico introduzem anomalias e deformações na representação do espaço, de modo a fissurar a sua homogeneidade. E sabido que, no seu uso convencional, a fotografia é sempre invocada para simular uma continuidade absoluta do espaço, desde o primeiro plano da cena até o ponto de fuga, ou seja, para permitir uma projeção integral do espaço codificado pela perspectiva. Essa circunstância, todavia, nem sempre pode ser obtida satisfatoriamente, porque as condições técnicas resistem a conformá-la, quebrando muitas vezes a integridade do espaço com rupturas, compartimentação da cena, dissolução das formas e desmaterialização de zonas inteiras da imagem figurativa. Os principais responsáveis por esse verdadeiro detonamento interior do código perspectivo – e de que passamos a tratar agora – são três caracteres interdependentes: o foco, a composição do quadro e as condições de iluminação. .....Nem é preciso insistir que o foco representa a mais evidente ruptura da continuidade da projeção perspectiva, na medida em que seleciona na profundidade da cena uma zona de nitidez, deixando o restante do espaço longitudinal borrado com uma mancha indistinta, o desfocado. Em fotografia, dá-se o nome de profundidade de campo a essa zona de nitidez da imagem projetada na película. Os manuais de fotografia nos ensinam que ela é função de algumas condições técnicas bastante precisas: a) distância focal da objetiva utilizada (uma lente de 28 mm, por exemplo, produz uma profundidade de campo maior que uma de 50 mm); b) recursos de iluminação (quanto mais intensa é a fonte de luz, maior a profundidade); c) abertura do diafragma (a maior profundidade é dada no fechamento máximo do diafragma);d) determinação do ponto de foco (a profundidade aumenta quanto mais o foco se aproxima do infinito). Teoricamente, pensando nos termos do ideal mimético que norteia o projeto fotográfico, a profundidade de campo mais verossímil seria
aquela que possibilitasse uma construção integral do espaço longitudinal da cena, de modo a encobrir a expressividade do foco com a ilusão de uma tridimensionalidade total. A essa restituição do código perspectivo em sua integridade teórica chamaremos aqui, para nosso uso particular, profundidade de campo infinita: ela é uma das condições para a plena vigência do efeito de transparência da foto e, como tal, visa cultivar a sua vocação “realista”. Não é por acaso, portanto, que o fotógrafo realiza verdadeiras acrobacias técnicas para obtê-la e assim mascarar a anomalia do espaço desfocado. Mas como, na maioria das vezes,o fotógrafo não pode dominar todos os quesitos necessários para a obtenção da profundidade de campo infinita, ele faz o foco trabalhar expressivamente, em benefício do olho/sujeito da enunciação. Supondo que o espaço “tridimensional” sugerido pela perspectiva seja composto de infinitos “planos” paralelos ao plano do quadro, o fotógrafo deve escolher quais desses planos ele vai privilegiar e tornar visíveis (quais vão merecer o foco) e quais outros serão transformados em borrão indistinto (desfoque). A seleção do espaço revelado à visão através da profundidade de campo é, como o recorte do quadro, um recurso de estabelecimento de sentido, e visa também instituir uma hierarquia na cena, separando o essencial para os interesses da enunciação do supérfluo ou do acessório. Numa foto de Irmo Celso (prancha 17) mostrando o papa João Paulo II em visita ao Brasil e saudado por uma multidão, o motivo não permitia uma proximidade maior do fotógrafo, o que o obrigou a utilizar uma objetiva de distância focal longa (teleobjetiva), portanto uma objetiva cujo ponto de foco é crítico: conseqüentemente, de toda a extensão longitudinal da cena, composta de milhares de figurantes (multidão, carros, guardas), apenas um único ponto do espaço é dado à visão. No caso, o ponto privilegiado pelo foco corresponde exatamente ao ponto privilegiado pela cena (o papa), de modo que essa coincidência garante a “naturalidade” da profundidade de campo, impedindo que o espectador menos atento perceba a forte codificação do espaço. O foco impõe, portanto, uma “leitura” do evento, organiza o espaço de modo a torná-lo inteligível, reforça o comando de veneração à figura máxima do
catolicismo – tudo isso sem comprometer a “objetividade” do flagrante fotográfico, essencial para o “realismo” da representação. .....Sempre que o ponto de atenção do olho/sujeito (zona focada) privilegia o ponto para onde converge toda a cena, o desfoque não chega a aparecer como aquilo que é: quebra da continuidade do espaço, desmaterialização dos corpos, dissolução da imagem figurativa numa mancha amorfa, que é bem o contrário de uma representação “objetiva” Mas tente o leitor imaginar o que aconteceria se, num ato de extremo atrevimento, o fotógrafo dessa mesma cena tivesse ignorado o centro do espetáculo e jogado o foco na cara de um obscuro espectador qualquer no meio da multidão: então, todo o trabalho de compartimentação do espaço pela profundidade de campo e o arbítrio de olho enunciador saltariam imediatamente à vista, solapando seriamente o efeito especular da foto. E extamente o que faz Murray Riss numa foto denominada A moça e o muro de tijolos (prancha 18), na qual ocorre uma inversão da relação figura/fundo e o motivo que, de acordo com a tradição figurativa, deveria ser dado à visão – o rosto humano – é desintegrado através do desfoque, enquanto o foco vai para o fundo da cena, revelando a textura de uma parede de tijolos. Neste caso, a foto torna-se desmaterialização do “retrato” e inversão das expectativas figurativas. É preciso que a intenção do olho enunciador contradiga a hierarquia da cena e subverta a ordem que dita o arranjo do motivo para que o foco possa aparecer como fissura. .....Imaginemos provisoriamente que todas as condições técnicas estão dadas para a obtenção de uma profundidade de campo infinita: temos uma objetiva de distância focal curta e há iluminação suficiente para permitir o fechamento máximo do diafragma. Neste caso, porém, o acréscimo de “realismo” obtido pela reconstituição do campo perspectivo integral não pode ocorrer sem a invocação de um outro processo de refração previsto pelo código: a composição da cena. De fato, nenhum espaço contínuo pode ser projetado na profundidade de campo infinita sem que esse espaço esteja preenchido de motivos ao longo de toda sua extensão. Absurdo seria imaginar, em fotografia, um espaço perspectivo integral que não estivesse preenchido de objetos a serem colocados em foco.
Por essa razão, a produção de profundidade infinita exige a escolha ou mesmo o arranjo de uma composição que articule pelo menos três planos diferentes: o primeiro plano, o plano mediano e o plano de fundo. Na verdade, a profundidade de campo infinita e a composição do quadro estão profundamente imbricados: para que os motivos possam aparecer dispostos perpendicularmente ao plano do quadro, é preciso deslocá-los ao longo das linhas de fuga, é preciso que a luz possa alcançá-los no seu percurso, é preciso preenchimento da profundidade com planos escalonados que permitam a ocorrência do código da perspectiva. Isso quer dizer que a obtenção do efeito visual mais “realista” impõe, paradoxalmente, a disposição dos motivos mais controlada e carregada de intenção. .....O que significa dizer que uma foto apresenta uma “boa composição”? Os manuais e as escolas de fotografia acumulam conhecimentos empíricos para tentar definir as regras de um jogo composicional que agrade aos olhos, que ofereça a consistência plena do motivo bem disposto. Mas nem as escolas, nem os manuais estão em condições de identificar o efeito ideológico de que a “boa composição” é a materialização. Já fizemos referência ao fato de que a fotografia obriga o espectador a se colocar no ponto de vista da câmera e assim se submeter ao sujeito da representação. O papel da “boa composição” é justamente reforçar essa transferência de subjetividade, através de uma disposição dos motivos que favoreça a ocorrência da projeção perspectiva. Numa foto “bem composta”, a posição do olho enunciador é inequívoca, pois ela está claramente definida no quadro pela hierarquia do escalonamento dos planos e pela coerência da evolução das linhas de fuga. Numa foto “bem composta”, o espaço está totalmente preenchido na sua porção longitudinal e a profundidade aparece, portanto, como a própria encarnação da perspectiva renascentista. O que se mostra nessa foto é, portanto, uma ocupação do espaço perspectivo com planos escalonados que se afundam em direção ao ponto de fuga, de modo a forçar a identificação do olho do espectador com o olho do sujeito enunciador. Trata-se de uma fotografia “clara”, “consistente”, “agradável à
vista”, perfeitamente inteligível e assimilável dentro dos padrões de decodificação convencionais. .....Mas o que acontece quando a composição do quadro não preenche a extensão toda da cena, ou então quebra a sua homogeneidade com desarranjos estruturais? Neste caso, a foto se apresenta incomodamente “errada”, alguma coisa parece estar faltando ou sobrando em campo; ela faz emergir, enfim, uma paisagem fragmentária e desnorteante, que desintegra a coerência das linhas de fuga. Observemos essa foto insólita de Charles Harbutt denominada O senhor raios X (prancha 19): nela, as cenas que se passam no interior do veículo, de fora no lado posterior e no extra-quadro refletido no vidro se misturam e se confundem desorganizadamente; a inteligibilidade dos motivos torna-se precária e o espectador é convidado a demorar-se mais numa decodificação que se torna uma verdadeira decifração. As linhas de fuga do sistema perspectivo, aquelas que estabelecem a hegemonia do sujeito da representação, encontram-se aí parcialmente subvertidas, porque há uma ambigüidade entre a frente e o fundo, sem falar que as texturas impostas pela iluminação não favorecem em nada a inteligibilidade dos motivos, aliás até pelo contrário. E preciso um esforço consciente e deliberado do espectador para que o espaço construído na profundidade de campo apareça como um lugar organizado de forma singular e coerente. Esse esforço significa, em termos propriamente semióticos, uma intervenção do olhar próprio do espectador, já que o olho da objetiva não permite mirar coisa alguma, pelo menos coisa alguma coerente. Nessa foto de Harbutt, o aparato técnico encontra-se praticamente falido para garantir a transferência de subjetividade e, por conseqüência, falido para investir de poder unificante o sujeito que está no ponto de mira da câmera. As barreiras, os jogos de espelhos, a ambigüidade entre o primeiro plano e o plano de fundo, tudo isso que atrapalha o pleno desenvolvimento das linhas de fuga confunde o espectador, abrindo brechas para a intervenção do seu olhar. O esforço para buscar a coerência perdida libera, portanto, o espectador da identificação com o olho do sujeito.
.....Victor Burgin propõe como treino para impedir a transferência de subjetividade olhar demoradamente para uma foto, até que o espectador “estranhe” o efeito especular. “Mirar uma foto por um certo tempo é correr o risco
de se despreender do comando imaginário do olhar, livrá-lo daquele outro ausente a quem ele pertence por direito – a câmera. A imagem passa a receber então o nosso olhar e nos recoloca na nossa centralidade fundante, mas também, por outro lado, evita o nosso olhar, confirmando sua lealdade a outro. Como a alienação se introduz fatalmente em toda captação da imagem, nós podemos, orientando nossa mirada ou virando a página, reinvestir de autoridade o nosso olhar ” (Burgin, 1982: 152). É possível, entretanto, imaginar certas fotos fotos que chamaríamos de desconstrutivas do efeito especular, em que a possibilidade de liberação do espectador estivesse já nelas contida, sob a forma de procedimentos composicionais que favorecessem o estranhamento da cena e retardassem a sua inteligibilidade, inteligibilidade, criando assim uma situação propícia propícia para o prolongamento do tempo de mirada. Sempre que no interior da profundidade de campo infinita infinita a composição e o enquadramento fazem intervir intervir zonas “mortas”, divisões, mascaras, cortinas e obstáculos despistadores da “lógica” figurativa da cena, a profundidade resulta fraturada e desequilibrada, impedindo a plena hegemonia do olhar do sujeito. Numa foto de Moholy-Nagy denominada Plataforma de mergulho (prancha 20), a confusãode linhas perpendiculares, paralelas e diagonais criam um espaço complexo e estilhaçado, tornando ambíguas as noções de “acima” e “abaixo” nela, a perspectiva já não joga propriamente um papel unificador, nem o olho do sujeito torna coerente a projeção. Mais desnorteante ainda, uma estranha foto que Cartier-Bresson Cartier-Bresson tirou num cemitério de Saint-Laurent (prancha 21), 21), mostra o alinhamento das cruzes desorganizando a convergência das linhas de fuga, de modo que a perspectiva perspectiva do fundo da cena parece estar invertida e abalada pela contradição de direções. Nesses dois casos, é a perspectiva central que continua ditando o arranjo plástico do espaço, mas a composição do quadro age como elemento desarticulador da profundidade de campo, provocando deslocamentos de planos e solapamento da “transparência” fotográfica.
.....Quando a fotografia automatizou as regras de construção do espaço ditadas pela perspectiva artificialis , ela imediatamente confirmou uma suspeita que atormentava os teóricos do Renascimento e que os imp impedia edia de
acreditar
cegamente na integridade do espaço produzido exclusivamente por essa técnica: a dependência fatal da profundidade da cena às condições de iluminação. De fato, a representação dos planos paralelos ao plano-suporte da representação não depende apenas das projeções geométricas da perspectiva, mas também das fontes de luz que incidem sobre o objeto representado. Os jogos de claro-escuro que banham a cena constituem elementos de codificação codificação
de
volume e profundidade tão importantes quanto a hierarquia de tamanhos da projeção perspectiva: conhece-se, por exemplo, o papel que a contra-luz desempenha na produção da ilusão de profundidade, desprendendo o primeiro plano do plano de fundo, de modo a acentuar a impressão de distância de um a outro; da mesma forma, um plano de fundo pode ser trazido para a frente da cena simplesmente intensificando a iluminação que incide sobre ele e apagando as fontes de luz do primeiro plano. Ademais, a iluminação trabalha no mesmo sentido que o foco: um como outro são mecanismos de ruptura da continuidade do espaço perspectivo, são recursos de produção de sentido que organizam o espaço na profundidade imaginária da cena, selecionando o visível, transformando em mancha disforme ou jogando na invisibilidade da escuridão tudo aquilo que não convém aos interesses da enunciação. .....Para compatibilizar a iluminação com a racionalidade da projeção perspectiva, os artistas renascentistas introduziram a fonte única de luz, capaz de banhar com a mesma coerência todos os objetos e seres do quadro. Atente-se para o exemplo da cena do casal Arnolfini, pintada por Van Eyck: toda a paisagem está sendo iluminada exclusivamente pela luz que vem da janela à direita dos figurantes. Assim, o espaço inteiro, com tudo o que o povoa, se mostra unificado pela coerência da iluminação: tudo o que está voltado para a janela está fortemente matizado pela luz, enquanto o que se volta para o lado oposto jaz na penumbra. Através dessa técnica foi possível fazer a iluminação trabalhar
em benefício da racionalidade perspectiva, reforçando as relações de volume e profundidade estabelecidas por esta última. Durante pelo menos dois séculos, a técnica da fonte única de luz satisfez plenamente as necessidades figurativas que a sociedade colocava e não entrava em conflito com a homogeneidade e a infinitude da perspectiva central. .....Entretanto, os artistas do Renascimento que empreenderam a tarefa de pintar com base nas regras de Alberti não raro se viam metidos em sérias dificuldades, seja para fazer a cena “caber” dentro da camisa-de-força camisa-de-força perspectiva, seja para representar os volumes esféricos ou complexos, como é o caso da própria figura humana. Em geral, sempre que as regras albertianas impediam a evolução do tema, o artista deformava sutilmente as projeções perspectivas, às vezes fazendo as linhas convergirem para vários pontos de fuga ao mesmo tempo. Claro que tal procedimento gerava anomalias na representação do espaço e essas anomalias precisavam ser escondidas ou disfarçadas para não provocar provocar o desagradável efeito de uma paisagem “irreal”. Foi da necessidade de ocultar as zonas de deformação da perspectiva que nasceu o famoso chiaroscuro , método pictórico em que a produção de relevo através da iluminação prevalece sobre as regras geométricas de projeção. Ele era inicialmente um ardil para esconder as dificuldades provocadas pela interpretação estreita dos postulados perspectivos, fazendo as zonas problemáticas do espaço desaparecerem sob as trevas. Mais tarde, todavia, mais precisamente no século XVII, essa técnica vai resultar na aventura do caravaggismo e, com muito mais eloqüência, na técnica do claro-escuro de Rembrandt. .....Tanto Rembrandt como a escola de Caravaggio mostravam o mundo como um lugar intrinsecamente escuro, iluminado aqui ou ali por algumas réstias de luz. Esse trabalho da iluminação resultava num poderoso recurso simbólico capaz de organizar o espaço em função do significado perseguido; por essa técnica, era possível colocar em relevo todos os detalhes necessários para a expressão do tema e sob o ângulo luminoso mais conveniente, deixando tudo o que é acidental ou secundário imerso na região da obscuridade insignificante.
Na célebre Descida da cruz (1658) de Rembrandt, dois focos de luz são jogados para iluminar – ou seja, para tornar visíveis – os dois personagens principais do drama: o corpo inerte de Cristo e a figura pálida de Maria, cada um deles ocupando um lugar distinto do espaço. Todo o restante da cena, conclamado apenas a conformar o seu papel “realista”, encontra-se imerso numa penumbra que dissolve as figuras. O efeito estrutural de uma composição como essa é o esfacelamento da profundidade de campo, a emergência de um espaço composto, fragmentário e fortemente codificado, que acaba por corroer as marcas da infinitude e da homogeneidade da projeção perspectiva. Na medida em que a imensa gama de tonalidades intermediárias entre o claro e o escuro é reduzida drasticamente a um violento contraste, as trevas se põem a engolir as formas bem definidas do Renascimento, comprometendo grandemente o seu primado. .....E curioso que a técnica do chiaroscuro tenha podido florescer em pleno século XVII – quando a eletricidade e a iluminação artificial ainda estavam longe do descobrimento – pois ela corresponde a uma paisagem plástica que só se pôde concretizar com os arcos voltaicos e os refletores elétricos de fins do século passado. A luz localizada através de spots, gerando efeitos de intenso contraste entre as partes iluminadas e as obscuras e projetando sombras agigantadas sobre as formas das coisas, tudo isso configura exatamente o papel modelador que a iluminação joga na fotografia: basta ver o exemplo de Weegee, que usava o flash em cenas noturnas para produzir contrastes violentos, com sombras pesadas circundando o motivo iluminado, exatamente como nos cenários de Rembrandt. A película de sais de prata destinada a “registrar” a informação luminosa manifestou, desde as suas origens, uma resposta demasiado lenta ao estímulo luminoso, razão pela qual ela sempre exigiu o concurso das intensas fontes de luz produzidas pelos refletores. Mesmo quando se fotografa à luz do sol, é necessário ainda assim recorrer a focos de luz orientados para o motivo –em geral, rebatedores – para iluminar as partes que aquela não tem o poder de atingir por si só. E certo que se o campo a ser fotografado é pequeno, pode-se iluminá-lo uniformemente (fazendo a luz rebater
no teto, por exemplo), de forma que o ambiente não mostre indícios de receber sua claridade de fonte alguma e sua luminosidade se apresente como uma propriedade inerente ao motivo. Mas uma foto obtida nessas condições é pouco inteligível; falta-lhe a modelação do espaço e os efeitos de relevo imprimidos pela iluminação dirigida. Em suma, os efeitos da iluminação localizada na fotografia, da mesma forma como a revolução do caravaggismo na pintura, trabalham no sentido de quebrar a coerência da profundidade de campo infinita, na medida em que a modelam com “escadas” de luzes e sombras, ou a dissolvem no lusco-fusco dos photofloods dirigidos; em última instância, a iluminação resulta também num recurso para codificar o espaço e organizá-lo segundo os interesses da enunciação. .....Mas, tal como no Renascimento, é preciso inventar fórmulas que atenuem ou ocultem essa quebra da unidade do espaço, para que o efeito de transparência não se perca: esse é, aliás, o drama maior vivido por toda a tradição fotográfica engajada no projeto mimético. Nesse sentido, a iluminação lateral – mais utilizada que qualquer outra na prática corrente da fotografia – costuma jogar um papel fundamental: quando corretamente utilizada, ela tem o poder de unificar e coordenar a organização espacial da cena. Se as luzes se aglomeram todas de um lado e as sombras do outro lado diametralmente oposto, o conjunto assim iluminado ganha coerência estrutural, já não aparece mais tão ostensivamente fissurado, muito embora ele esteja borrado por grande manchas negras. Mas um efeito de luz lateral não é algo fácil de ser obtido. Antes de mais nada, para simular esse princípio de orientação espacial é preciso que apenas uma única fonte de luz ilumine toda a cena. Se isso for feito ao pé da letra, o contraste entre luzes e sombras será gritante e as enormes sombras dos objetos mais próximos da luz se projetarão sobre os outros, apagando-os da cena. A tendência natural do fotógrafo é compensar a unilateralidade irritante da iluminação com outros focos de luz dirigidos num sentido inverso. Neste caso, porém, as várias fontes de luz podem se interferir mutuamente, produzindo uma confusão de luzes e sombras sem um princípio norteador e tornando as relações espaciais incompreensíveis. Só depois de muita experiência, após anos a fio de
ensaio e erro, é que o fotógrafo aprende a balancear as fontes, organizando-as numa hierarquia, de modo que apenas um foco de luz – necessariamente de maior intensidade – assuma a orientação plástica do espaço, enquanto os outros, tratados com sutileza, sirvam às exigências da enunciação, iluminando tudo aquilo que as sombras projetadas pelo primeiro ameaçavam apagar. Assim, a iluminação pode reconstituir e redimensionar o espaço segundo os interesses do olho/sujeito, sem que o seu trabalho apareça como uma manipulação ou uma violência, isto é, preservando acima de tudo o “realismo” da cena. Na verdade, aquele a quem chamamos o “fotógrafo” deveria antes ser chamado o “iluminador”, porque é na iluminação que está a ciência mais difícil do ato de fotografar, aquela que nenhum expediente técnico jamais logrará automatizar. .....Falamos em iluminação lateral, mas essa expressão não é muito feliz. “Lateral” significa do lado de quê(m)? Se a pessoa fotografada é tomada de perfil (isto é, de “lado”), a iluminação lateral não é aquela que ilumina inteiramente esse “lado” contra o qual se defronta o olho enunciador. A lateralidade em questão se refere a um ponto do espaço extra-quadro ligeiramente oblíquo em relação ao interface da cena com o fotógrafo (em geral, um ângulo de 45 graus). Ora, se há um ponto do espaço dando coerência à cena e que não corresponde ao ponto onde está plantada a objetiva, isso não significa quebra da hegemonia do sujeito enunciador? Em circunstâncias habituais não, porque sabemos que é justamente esse sujeito quem tira proveito dos jogos de claro e escuro, colocando-se no ponto em que a iluminação reforça a homogeneidade do espaço. Mas se esse mesmo sujeito não quer ou não pode se deslocar em direção ao ponto em que a iluminação advém lateral, as fontes de luz podem comprometer o resultado, tornando o ponto de tomada um lugar precário para a visualização da cena. A silhuetagem das figuras, isto é, a perda da topografia da imagem com todos os seus detalhes identificadores, é o resultado de uma contradição entre o ponto de tomada da cena e o ponto de emanação das fontes de luz. Numa surpreendente foto de Bill Brandt intitulada Trem deixando Newcastle (prancha 22), visão outonal de uma Inglaterra arruinada no período entre guerras, as posições antagônicas da câmera e da
fonte de luz produzem uma imensa sombra negra que domina a paisagem e impede a profundidade de campo de avançar para o primeiro plano, ao mesmo tempo em que comprimem violentamente toda a extensão longitudinal do espaço, reduzindo-a apenas a dois planos silhuetados: o viaduto e a fábrica. Neste caso, o efeito de perspectiva é dissolvido graças à silhuetagem, de modo que o quadro advém plano e opaco como em sua materialidade. .....Se a iluminação pode, portanto, reforçar a mística homológica da fotografia, ela pode também fissurá-la de forma implacável, desde que o retalhamento do espaço com o jogo dos claros e escuros apareça claramente como uma manipulação. Assim, na mesma linha desconstrutiva da foto de Brandt, poderíamos colocar uma série de fotos em que os recursos de iluminação tendem a esfacelar deliberadamente a profundidade de campo, produzindo um espaço composto, fragmentário e descontínuo, que é bem o contrário de uma representação “realista”. Numa
foto de Kenneth Josephson denominada
Chicago (prancha 23), a iluminação aparece ostensivamente como intervenção sobre a cena e desconstrução de sua coerência espacial: as pequenas réstias de luz jogadas ao acaso sobre os quatro pedestres não favorecem a inteligibilidade do evento e provocam o “estranhamento” da cena. Um Nu famoso de Bill Brandt (prancha 24) recorta a figura de uma mulher com focos de luz localizados, reduzindo-a apenas a três peças independentes: o braço, o seio e a metade da face (não haverá aqui um eco da montagem cubista?). .Mais surpreendente ainda, a figura trabalhada por José Oiticica Filho na fotomontagem O túnel (prancha 25) chega quase ao limite de seu grau zero: a grande mancha negra que domina a paisagem, matizada apenas pela abóboda clara da boca do túnel e pelos fios de luz dos trilhos iluminados, praticamente corrói qualquer ilusionismo de profundidade, devolvendo a imagem à bidimensionalidade do plano. Em todos esses exemplos, os papéis de modelação do espaço e de fissura da profundidade imprimidos pela iluminação não podem mais ser resgatados como um acréscimo de “realismo” para a cena especular; antes, eles barram o comando autoritário do olho do sujeito, impedindo que se complete a
transferência de subjetividade. Nesse sentido, ao quebrar a unidade da perspectiva e retalhar a profundidade em compartimentos luminosos, essas fotos funcionam como questionamento dos suportes ideológicos da imagem figurativa, acumulados ao longo de cinco séculos de imperialismo da perspectiva monocular.
9. LENTES BIZARRAS, HISTERIA, ALUCINAÇÕES .....É verdade que o emprego de lentes de diferente distância focal pode variar o campo da perspectiva. O efeito ideológico que daí resulta, entretanto, continua marcado pela ideologia inerente à perspectiva, ou seja, qualquer que seja a distância focal da lente, é sempre a construção perspectiva do Renascimento que está na origem do modelo fotográfico. “O recurso de múltiplas lentes, quando não é ditado por considerações técnicas visando restabelecer um campo perspectivo habitual (cenas tomadas em espaços limitados ou estendidos, que é preciso aumentar ou reduzir) destrói menos a perspectiva do que a leva a desempenhar o papel de uma norma referencial; o desvio, seja por meio de uma grande-angular ou de uma teleobjetiva, fica bem marcado por uma comparação com a perspectiva dita normal” (Baudry, 1970: 3). De fato, se considerarmos que uma objetiva de 50 mm (no formato 35 mm de negativo) nos dá a visão “normal” dos objetos dispostos em profundidade, uma grande-angular (digamos, por exemplo, uma 25 mm) deve nos dar teoricamente um quadro cujo primeiro plano tem o dobro do tamanho do primeiro plano dado pela lente “normal” e cujo plano de fundo tem a metade do tamanho do plano de fundo dado por aquela; mas em compensação, a distância relativa (imaginária) que separa os dois planos na imagem obtida com a grande-angular é também duplicada em relação à mesma distância fornecida pela objetiva dita dita “normal”. Ou seja: as objetivas de distância focal curta exageram as proporções entre o primeiro plano e o plano de fundo, mas em compensação os afastam consideravelmente um do outro, de forma que, no fim das contas, elas continuam reproduzindo as mesmas relações geométricas da perspectiva. Igualmente: as teleobjetivas nivelam os tamanhos do plano de frente e de fundo, mas em contrapartida os aproximam um do outro, de modo que a anomalia perspectiva é compensada pelo estreitamento da profundidade. Em ambos os casos, a ilusão de verossimilhança é mantida exatamente dentro dos cânones da perspectiva, muito embora a imagem obtida falsifique declaradamente o objeto que se quer representar.
.....Na verdade, não foi a fotografia que tornou visível as novas paisagens plásticas
produzidas
pelas
grande-angulares
e
teleobjetivas.
Já
no
Renascimento, no momento mesmo em que as técnicas da perspectiva central eram aperfeiçoadas, métodos engenhosos de encurtar ou alongar a evolução dos raios visuais em direção ao ponto de fuga estavam sendo elaborados. Como conseqüência, podia-se fazer com que um pequeno espaço se dilatasse a dimensões infinitas, ou que grandes distâncias fossem reduzidas a um ínfimo qualquer. Baltrusaitis fala, a esse respeito, de perspectivas “aceleradas” ou “desaceleradas”, capazes de produzir um efeito semelhante ao que hoje atribuímos respectivamente às grande angulares e teleobjetivas: elas não são senão desdobramentos naturais do código perspectivo, muito embora o efeito delas resultante seja fr ancamente ancamente irrealista, “uma multiplicação de mundos
artificiais que atormentam os homens de todas as épocas ” (Baltrusaitis, 1977: 4). Não se pode esquecer ainda que um dos maiores estudiosos dessas contrações e descontrações perspectivas foi justamente Daniele Barbaro, nada menos que o inventor das objetivas Claro que essas lentes – que nós vamos aqui chamar, por comodidade, de “bizarras” – podem também estilhaçar a convencionalidade do código perspectivo, desde que sejam utilizadas explicitamente com vistas a deformar a “normalidade” da representação convencional. Mas, por enquanto, apenas estamos nos referindo à exploração cotidiana de seus efeitos na prática fotográfica habitual. É sabido que o abuso da fotografia no periodismo jornalístico criou certos hábitos hábitos de “leitura” que acabaram por forçar a “tradução” do campo perspectivo das lentes “bizarras” para os padrões projetivos da lente dita “normal” (50 mm, sempre no formato padrão de negativo em 35 mm). Os
paparazzi (fotógrafos caçadores de celebridades), por exemplo, trabalham preferencialmente com a teleobjetiva, não porque em todas as circunstâncias eles tenham de “fixar” o seu motivo à distância, mas porque essa objetiva corresponde, na convenção jornalística, ao olhar clandestino e bisbilhoteiro, à curiosidade voyeurista de quem “rouba” a imagem do referente inacessível. A foto de uma atriz nua tomando banho de sol em sua praia particular não teria a mesma força de convicção se obtida com uma objetiva de 50 mm. No extremo
inverso, a foto de “atualidades” (acontecimentos políticos ou catástrofes naturais) pede uma outra projeção espacial: se o imprevisto pode acontecer a qualquer momento, essa circunstância exige um quadro exageradamente aberto e profundidade de campo integralmente recomposta, ou seja, todo o código da grande-angular. A teleobjetiva, em virtude do seu campo visual extremamente reduzido, exige recortes extraordinariamente bem feitos, composição estudada, foco apurado e tripés firmemente apoiados no chão, condições impossíveis de se obter quando se está em pleno fogo dos acontecimentos. Ninguém creditaria verossimilhança ao flagrante de um evento inesperado obtido com uma objetiva de distância focal longa. E a grande-angular que impõe ao fotógrafo uma proximidade do motivo e, em troca, lhe oferece agilidade no enquadramento; o universo que ela constrói aparece como “um espaço envolvente, no qual se
encontra brutalmente preso, mas sempre como que por acaso, um espaço no qual se está simplesmente de passagem, com todo o descompromisso e a ligeireza que se pode obter com essa condição de estar de passagem e de poder, a todo instante, se desprender do acontecimento. A foto histórica suporta mal a marca muito visível do enquadramento: ela se oferece sem margem, como que surpreendida acidentalmente pela borda do quadro: nenhum espaço de transição, nenhuma marca da enunciação ” (Bergala, 1976: 42). .....Estas são, digamos assim, as condições em que as lentes “bizarras” são reclamadas na fotografia para simular um efeito de “normalidade” ótica, semelhante ao obtido pelas objetivas de 50 mm. Mas quando essas lentes “bizarras” se põem a deformar visivelmente a projeção perspectiva, a coisa começa a complicar. Sabe-se que
as objetivas de dist distância ância focal curta curta
(grande-angulares) podem, a partir de algumas condições de iluminação, representar integralmente a profundidade da cena, mas esse ganho de “realismo” é neutralizado pela sua propriedade de exagerar as relações topográficas da perspectiva, gerando uma imagem abertamente distorcida, embora no limite ainda fiel ao código perspectivo. Observe-se a aberração que resulta a paisagem urbana obtida com uma grande-angular em O edifício Time and Life de Yale Joel (prancha 26), para se ter uma idéia de como uma objetiva pode
transfigurar o seu referente. Há quem defenda a tese de que as objetivas de distância focal curta correspondem aproximadamente a uma perspectiva com dois pontos de fuga (Hawken, 1976: 61), razão porque as relações de profundidade são acentuadas de forma exagerada, enquanto as teleobjetivas participariam de um outro código perspectivo, de tipo “isométrico” (se o enquadramento é frontal) ou “axonométrico” (se o enquadramento é oblíquo). Em ambos os casos, essas comparações só se podem sustentar num sentido figurado, pois as lentes “bizarras” pelo fato mesmo de serem bizarras, não são outra coisa que anomalias da representação perspectiva unilocular, que só mesmo as próprias lentes podem produzir. As teleobjetivas, por exemplo, ao contrário das projeções perspectivas de tipo “isométrico” ou “axonométrico”, só “vêem” um único plano do espaço, de forma que se o foco está regulado para o infinito, elas comprimem todo o espaço nesse único plano, produzindo um estranho efeito de amontoamento ou de encavalamento das coisas: a surpreendente imagem dos recrutas de Biafra na foto de Romano Cagnoni intitulada Soldados (prancha 27) é bem um exemplo disso. Não é por acaso que os fotógrafos, sempre que possível, evitam utilizar as objetivas “bizarras” quando buscam representar um espaço “natural”: é que essas objetivas denunciam a convencionalidade do código perspectivo, incomodando a noção que o senso comum tem da normalidade ótica. Recorre-se a essas objetivas, com maior freqüência, quando se busca sugerir uma visão supra-real, de caráter onírico ou patológico: o mundo visto sob a ótica do alucinado. A coisa se passa mais ou menos como se a objetiva “normal” de 50 mm nos desse o analogon da realidade, enquanto as objetivas “bizarras” nos dessem deformações esquizofrênicas, miragens de realidade, visões alucinatórias. .....Paradoxalmente, entretanto, o cineasta Serguei Eisenstein defende, não sem razão, que a sensação de anormalidade transmitida por uma grande-angular não resulta apenas das distorções manifestas no nível da representação dos objetos, mas também de sua propriedade aparentemente mais inocente: o seu poder de produzir uma profundidade de campo infinita. Uma cena que deixe simultaneamente visíveis tanto os objetos que se encontram num ponto próximo,
como os objetos que se encontram no ponto mais longínquo do observador gera necessariamente uma imagem impossível à percepção normal, pois o olho sempre necessita de um ponto de foco definidor de sua intencionalidade para além ou para quem do qual tudo se torna indistinto e invisível. Eisenstein cita, para exemplificar, uma narrativa de Edgar Allan Poe, The sphinx , na qual o narrador descreve um monstro enorme e ameaçador que descia a face nua de uma colina longínqua; no entanto, tratava-se apenas, como se revela no final,de um pequenino inseto preso a uma teia de aranha logo à frente dos olhos do observador e que este inadvertidamente projetara sobre a colina no fundo da cena. Mas esse “erro” de perspectiva – esclarece Eisenstein – é impossível em circunstâncias normais, pois ao colocar em foco um dos planos (o inseto próximo ou a colina distante), o olho eliminaria automaticamente o outro, tornando-o invisível. Ainda de acordo com o cineasta, essa visão total, nítida do primeiro plano ao plano de fundo, só se pode obter em estados alterados da percepção, como os provocados pelos alucinógenos e comprova isso através da análise de croquis de opiômanos, logo após as suas experiências com drogas. Ocorre que Poe era também um opiômano e como tal tinha uma objetiva “bizarra” de 28 mm no lugar dos olhos, através da qual violentava a normalidade ótica (Eisenstein, 1980: 85). .....Uma colocação como a de Eisenstein é desconcertante, porque ela nos revela que ali justamente onde a representação do espaço parecia exibir o trunfo maior da homologia – a profundidade de campo infinita – emerge também a ordem fantasmática de uma alucinação: a (con)fusão indiferenciada de lugares e proporções no espaço marcado pelo foco total. Por mais paradoxal que isso possa parecer, a reconstituição integral da perspectiva unilocular, pedra de toque para a obtenção do efeito de “realidade” da representação renascentista, torna-se, para a sensibilidade contemporânea, uma paisagem alucinatória, inteiramente estranha aos olhos humanos, que só podem ver um único plano do espaço longitudinal de cada vez. Jurgis Baltrusaitis veio mesmo a afirmar que a perspectiva central carrega essa estranha contradição de ser ao mesmo tempo uma representação do “real” e uma técnica de produzir alucinações (Baltrusaitis,
1977: 2). Não é por outra razão que os surrealistas, quando se lançaram à procura do anormal e do irracional na pintura, foram desenterrar justamente o modelo renascentista de representação. Uma parcela significativa das obras surrealistas mais consagradas – como as de Chirico, Delvaux ou Magritte – obtém grande parte do seu efeito de “irrealidade” justamente na reprodução integral do modelo perspectivo do século XV. O que era o máximo de “realismo” tornou-se, paradoxalmente, o máximo de irrealismo, provando mais uma vez que os códigos perspectivos são historicamente condicionados. Daí o efeito de “estranheza” produzido por uma grande-angular: ela dá um espaço perspectivo integralmente reconstituído a um só golpe de vista, de forma que o fundo mais longínquo e o primeiro plano mais próximo estejam dados à visão conjuntamente, na mesma hora e lugar. Basta ver as incríveis fotos “surrealistas” de Bill Brandt (prancha 28) – cuja bizarria está precisamente na convivência impossível do primeiro plano extremamente próximo com o plano de fundo extremamente afastado, e tudo em foco – para se concluir que “real” e “irreal” são concepções ideológicas, que cada comunidade, classe ou época manipula em seu próprio benefício. .....Eisenstein se interessou profundamente pelos efeitos deformantes da grande-angular – objetiva que ele chamava de extática, no sentido etimológico da palavra êxtase (do grego ex stasis, “fora do seu estado” fora da normalidade) – sobretudo nas suas análises de El Greco, artista cuja religiosidade desenfreada o levava a romper com os padrões paralisantes do modelo pictórico renascentista, para representar visões místicas, a um passo entre a clarividência e a loucura. O motivo que El Greco perseguiu ao longo de toda sua obra era a representação de seres no momento mesmo do “arrebatamento”, do “transporte” místico ou de sua passagem para o transe religioso, e ele obtinha esse efeito através principalmente de uma distorção plástica: a tomada de um personagem com a cabeça vista de baixo e os pés vistos de cima, como se ele estivesse representado sob dois pontos de fuga dispostos no sentido vertical. Conseqüentemente, a figura aparece com a cabeça e os pés afunilados e voltados para o fundo, enquanto a barriga resulta alargada, dando a impressão
de que o corpo todo está contorcido em arco. Ora, uma figura alargada no centro e afunilada nos pés e cabeça é exatamente o efeito produzido pelas objetivas de distância focal curta, cujo retraimento da perspectiva na profundidade faz com que os objetos verticais tomados de seu centro se arquem contra o observador, como num espelho esférico convexo. El Greco, embora evidentemente não conhecesse tal objetiva, teve entretanto oportunidade de travar contato com o seu efeito, provavelmente através do célebre auto-retrato de Parmigianino (que o mestre cretense poderia ter conhecido no atelier de Bassano, ainda segundo Eisenstein) (Eisenstein, 1980: 69-97). .....Claro que não era a religiosidade de El Greco que interessava ao ateu Eisenstein, mas a surpreendente analogia entre o recurso plástico por ele utilizado para produzir o efeito de frenesi místico e a representação do comportamento do paciente histérico, tal como no-la dão os psicanalistas. Em particular, o cineasta soviético cita a obra de G.M.Charcot e P.Richer ( Etudes
clinique sur la grande hystérie ou hystero-épilepsie e Les démoniaques dans l art ), em que se defende a hipótese de que a contorção em arcos de círculo é uma das fases de articulação da crise histérica e onde se cita nominalmente El Greco como o artista que lhe soube dar expressão plástica. A flexão em arco é, portanto, característica tanto dos indivíduos que se retorcem em espasmos durante o ataque de histeria, como da anomalia perspectiva produzida pela grande-angular. Curiosamente, entretanto, Eisenstein ignora, ou pelo menos deixa de se referir a uma obra-chave de Charcot a esse respeito: a Iconographie
photographique de la Salpêtriere , em três volumes, em que o notável médico francês, contemporâneo de Freud, faz um levantamento fotográfico das quatro fases do comportamento histérico. Ao contrário de Freud e de seus discípulos e dissidentes, que só conseguiam ver uma ponte de acesso ao inconsciente através da palavra (dispositivo de escuta, lapso lingüístico, talking cure etc), Charcot abre a brecha da iconografia na análise do paciente histérico. No entanto, as fotos de Charcot permanecem essencialmente contemplativas e “inocentes” em relação ao paciente histérico, como se lhes fosse designado assinalar a distância que separa o médico/fotógrafo do doente/modelo; nesse
particular, elas são claramente pré-psicanalíticas. As teorias de Charcot não encontram expressão plástica na “matéria” fotográfica; foi preciso que Eisenstein,
homo semioticus por excelência, lhes desse corpo e as materializasse na objetiva “histérica”. O que quer dizer – embora Eisenstein não o diga – que na iconografia da histeria, Charcot deveria ter abordado seus pacientes com uma olho-de-peixe (grande-angular de distância
focal curtíssima). Ruptura da
normalidade comportamental (histeria) e ruptura da normalidade ótica da perspectiva (visão “bizarra” da grande-angular) parecem se corresponder mutuamente: ambas perfuram e corroem o solo firme da ideologia da normalidade que se cristaliza em nossos gestos tanto quanto em nossas retinas.
10. AURA E MATERIALIDADE .....Quando olhamos para uma foto, podemos “ler” na sua emulsão informações sobre a época provável de sua produção, com base unicamente no exame de sua materialidade – isto é, da textura de seus grãos, do gradiente dos tons de cinza, da qualidade de fixação da luz pela base química – e sem necessariamente nos remetermos a qualquer dado do referente, como costumes e cenários da época. Um “retrato” ortocromático provavelmente é anterior aos anos 2O, enquanto um negativo a cores pelo sistema Kodachrome deve necessariamente ser posterior a 1935, data de seu lançamento comercial. As fotos envelhecem muito mais rapidamente por causa de sua superação por novas técnicas óticas e químicas – que necessariamente modificam a informação luminosa imprimida na película – do que pelas características de época do referente. Por essa razão, pode-se dizer que as propriedades reflexivas ou fixadoras do fantasma de luz pela fotografia estão sendo constantemente modificadas com a evolução técnica e sempre para responder à mudança das exigências ideológicas de homologia. A partir de certo momento, a fixação exclusiva do azul e do violeta pela película ortocromática já não mais satisfaz às exigências sociais de verossimilhança, de modo que passa a haver uma demanda de aperfeiçoamentos técnicos capazes de resolver a questão da “fixação” das outras cores do espectro: para responder a essa demanda, nasce a película pancromática e, mais tarde, a tricromática; o mesmo ocorre com a dimensão dos grãos de prata, a rapidez de resposta da emulsão à luz e outros expedientes técnicos. Cada nova emulsão lançada no mercado introduz uma nova textura na produção da imagem, mais recortada ou mais evanescente, mais fina ou mais granulada, assim como as novas técnicas de revelação também alteram a densidade do negativo, tornando mais espessas suas zonas negras ou mais transparentes suas áreas claras, aumentando ou diminuindo os contrastes, deixando suas cores mais saturadas ou mais esmaecidas. Por fim, as características do papel de reprodução – brilhante ou sem lustro, liso ou rugoso, branco, azulado ou tendendo para o sépia – completam o quadro da
arbitrariedade da base material da foto, que a torna capaz de modificar as tonalidades da imagem figurativa ao sabor dos processos físico-químicos. .....Dissemos, no início deste trabalho, que a abordagem “realista” do fenômeno fotográfico (aquela que endossa a ilusão especular) está baseada na atenção exclusiva à fixação da informação luminosa na película, ignorando todo o processo de refração ótica que deriva da camera obscura renascentista. Entretanto, mesmo nesse nível que poderíamos denominar a materialidade da foto, o efeito de “real” só pode ocorrer à custa de uma codificação rigorosa. Na verdade, o que a película realmente “fixa” ou “registra” é o que existe de mais instável e efêmero no mundo visível: a absorção e reflexão da luz pelos objetos. E ela o faz ainda traduzindo, por assim dizer, essas diferentes propriedades reflexivas e absorventes dos objetos para o seu próprio repertório de recursos. Vale dizer: cada intensidade luminosa refletida pelo referente corresponde na fotografia a uma diferença de tom de cinza ou de cor, numa escala de valores que é função de, pelo menos, três fatores fundamentais: 1) a materialidade das tintas da própria película ou do papel de reprodução (cada marca de película lançada no mercado produz uma gama de cores diferente); 2) o gradiente de tons que os grãos de prata são capazes de distinguir e anotar de cada vez (em geral, cerca de cem tons diferentes, embora a escala de cinzas usada pelos fotógrafos só discriminem dez); 3) as motivações que norteiam o banho na revelação e que determinam a densidade, a saturação e o contraste do negativo ou do positivo. Além disso, as películas coloridas são em geral balanceadas para uma temperatura de cor de 3.200 graus Kelvin (para iluminação de estúdio) ou 5.500 graus Kelvin (para luz natural) e qualquer outra fonte de luz mais quente ou mais fria determinará relações de cor completamente alteradas (a menos que sejam contrabalançadas com filtros corretores). Em resumo, portanto, a informação luminosa “emanada” do referente – essa informação já refratada pelo mecanismo ótico da câmera – é também codificada pela base material da película, que deve necessariamente convertê-la aos seus próprios meios. .....Se for possível falar num “poeta” da base material da fotografia, ele será, sem dúvida, o norte-americano Ansel Adams. Densidades do preto e do branco,
tonalidades de cinza, textura do negativo, tudo isso é orquestrado por ele de forma rigorosa, por meio do tratamento da emulsão e controle dos tempos de exposição e revelação. Adams procura conhecer a fundo a elasticidade, a latitude e os limites de cada emulsão, para fazê-la trabalhar em benefício de suas próprias idéias plásticas e poder extrair dela, sempre de forma controlada, todas as tintas que configurarão as zonas luminosas. O ato de fotografar e o ato de revelar são considerados artes de extremo rigor: controlando os tons de cinza numa escala matemática, o fotógrafo os pode orquestrar em composições de raro efeito. Adams compõe suas texturas luminosas como um compositor combina as notas sobre a pauta: todos os elementos materiais que concorrem para a configuração final da imagem fotográfica são combinados em tons e proporções que permitam a ocorrência de uma paisagem plástica nova; todo acaso é domado, de modo a permitir que o lugar do automatismo técnico seja ocupado pela vontade sem fronteiras do sujeito. .....Claro que um trabalho como esse tem toda afinidade com as artes plásticas e Adams representa, por isso mesmo, o coroamento de uma certa concepção de fotografia como objeto de culto estético. Segundo essa concepção, o efeito especular da foto é negligenciado em benefício de uma orquestração de tons pictóricos, como se a escala de cinzas que separa o preto do branco na fotografia monocromática funcionasse como uma espécie de escala musical. “Tanto o fotógrafo quanto o músico –explica um adepto dessa corrente – trabalham com fundamentos similares. A escala de cinzas contínuos do preto ao branco em uma foto é similar à escala ininterrupta de tons e alturas na música. Um telhado brilhante pode ser ouvido como um tom agudo ou uma nota ruidosa contra um tecido de sons ou de tons de cinza. Esse tecido de fundo serve como estrutura de apoio tanto para os padrões melódicos quanto pictóricos “(Johnson, 1972: 3). Mas essa corrente estetizante, que poderia ter creditado a seu favor o fato de resistir ao peso do efeito especular, não favorece entretanto o conhecimento crítico do mesmo efeito que abomina. Ela não se coloca por função denunciar, perfurar, destruir sem tréguas os módulos da figuração renascentista. A questão da figuração é por ela colocada entre parênteses,
como se fosse uma questão de importância menor. O que ela busca explorar é o grafismo das formas: volumes, linhas, cores e tons combinando-se em harmonias “musicais” sobre a superfície branca do papel de reprodução. Ela gostaria de fazer tão simplesmente algo como uma fotografia “abstrata”, se pudesse livrar-se sem problemas do demônio da figuração. Mas como nesse terreno ela não tem condições de concorrer com a pintura propriamente dita, que é capaz de atingir os níveis de radicalidade desconstrutiva de um Mondrian ou de um Pollock, essa aristocracia mecanizada se contenta em atribuir
à
fotografia um valor positivo, atualizando-a em relação aos avanços das artes plásticas. O que ela quer, enfim, é recuperar a sua “aura” perdida, imprimindo-lhe um revestimento nobre. .....Ouçamos Benjamin: a partir do momento em que a foto se põe a desalojar a imagem figurativa do ambiente aristocrático e da atmosfera religiosa que era o seu habitat natural, sobretudo graças à sua possibilidade de reprodução, ela deixa de cumprir o papel de objeto de culto de uma minoria, perde a sua “aura” e se entrega ao usufruto das multidões emergentes. A “aura” é um conceito central da obra benjaminiana, definida um tanto enigmaticamente como “uma trama muito particular de espaço e tempo” em que ocorre “a irrepetível aparição de algo longínquo, por mais próximo que esteja” (Benjamin, 1977: 379). Metaforicamente, seria a irradiação manifestada pelos objetos quando vistos através do contra-luz; mas é evidente que o conceito foi tomado da esfera religiosa, para designar toda representação do transcendente ou do sublime,vale dizer da divindade: esse algo longínquo seria, portanto, o outro daquilo que está materializado na representação,a sua “alma”. Pois bem: segundo Benjamin, a modernidade se caracteriza precisamente pela destruição da “aura” e a fotografia faz bem o papel de aríete dessa função desmistificadora. Para justificar tal ponto de vista, o ilustre pensador alemão cita a seu favor a reprodução das obras de arte através do recurso da fotografia: “Essas
reproduções já não podem mais ser consideradas como produtos individuais: elas já se converteram em realizações coletivas e de tal modo poderosas que para assimilá-las não há outro remédio que passar pela condição de reduzi-las.
Os métodos mecânicos de reprodução, em seu efeito final, são técnicas redutivas que ajudam o homem a alcançar esse grau de domínio sobre as obras, sem o qual ele não saberia como utilizá-las ” (Benjamin, 1977: 383). .....Terá razão Benjamin? Já vimos até aqui que a fotografia, longe de se opor a toda tradição pictórica, não faz senão apostar em sua perpetuação, na medida em que petrifica os arquétipos ideológicos que a sustentam. Mas, evidentemente, Benjamin está falando de outra coisa: ele quer dizer que a materialidade pura e simples da foto não permite produzir algo que a ultrapassa e que consiste no investimento nobre, na elevação dignificadora, na “aura” enfim. Ainda aqui é difícil de concordar com Benjamin em todos os momentos e para problematizar as suas idéias vamos citar um caso limite. Kurt Schwitters, pintor-poeta dadaísta alemão, certamente conhecido de Benjamin, produziu no começo do século uma obra pictórica radical, conhecida como collage . Ao invés de utilizar as tintas tradicionalmente comercializadas para fins pictóricos, ele compunha seus quadros colando sobre a tela todo o dejeto rejeitado e despejado pela civilização moderna: jornais amarelados pelo tempo, passagens de bonde, restos de barbante, ferro velho, cacos de vidro, retalhos de tecidos e todos os detritos infectos que habitam os depósitos de lixo (Campos, 1969: 35-52). Seguramente, não havia nenhuma “nobreza” em tais construções: era olhar para um original e constatar a rudeza de suas formas, a imundice tomando conta de tudo, a cola vazando por baixo dos recortes e manchas de dedos sobre a composição. Pois bem: basta agora folhear um álbum de história da arte moderna e localizar uma dessas collages de Schwitters para se constatar, com surpresa, a transformação operada pela reprodução fotográfica: o papel brilhante e homogêneo, a viva pigmentação das cores e toda a demais assepcia do tratamento químico lograram converter a miserabilidade do original numa matéria enobrecida, que nada fica a dever às paisagens plásticas dos
“grandes mestres”.
Aqui,
seguramente, houve uma inversão do postulado benjaminiano: foi a fotografia que repôs a “aura” numa obra que programaticamente visava destruí-la, de forma que aquilo que deveria aparecer como um rompimento radical com a tradição, acabou por se mostrar como uma capitulação diante dela.
.....A prática profissional da fotografia é pródiga em ressuscitar, às vezes com evidentes intenções ideológicas, a velha “aura” aristocrática. A fotografia utilizada em publicidade principalmente nos oferece os melhores exemplos desse enobrecimento repentino do referente, através de recursos técnicos diversos (lentes especiais, filtros, tratamento químico do negativo, papéis especiais para reprodução) que possibilitam a aparição “única” (mesmo que multiplicável pela reprodução) de uma imagem “elevada” ou “transcendente”. Mesmo na prática cotidiana da arte fotográfica, destinada a museus
ou
publicações especializadas, esse efeito é uma constante. Uma mísera parede de favela, descascada e carcomida pelo tempo, ganha nova textura após o tratamento químico fotográfico, podendo resultar numa composição “abstrata”, de cores vivamente saturadas, bem ao gosto de uma certa sensibilidade pictórica moderna. E muito comum que o fotógrafo se sinta atraído por certas paisagens “vulgares”, como velhos latões enferrujados, montes de lenha ou de ferro velho, rochas destruídas pela erosão, mas isso não quer dizer absolutamente – ao contrário do que parecem crer Benjamin, Sontag, Barthes e outros – que a fotografia favoreça um olhar desmistificado sobre o mundo, permitindo que pela primeira vez o trivial mereça a atenção valorizadora do enunciador: muito pelo contrário, esses motivos só são destacados porque a textura pictórica da foto os permite transfigurar até o limite de convertê-los em aparições inéditas, reforçadoras de um ideal plástico já anteriormente fixado pela pintura. .....Benjamin trata com bastante freqüência do impacto da fotografia sobre as artes antigas, sobretudo a pintura, mas se cala no que diz respeito à interação dialética entre os meios, os empréstimos e as migrações de recursos de um a outro. Isso dá margem a algumas simplificações. Por exemplo: é muito discutível dizer que a fotografia, pela sua simples reprodutibilidade, tenha superado o valor de relíquia da pintura tradicional. Como se sabe, o daguerreótipo era um objeto único e irreprodutível, gravado numa chapa de cobre bastante cara. A literatura fotográfica de meados do século XIX demonstra uma obsessão pelas propriedades preciosas do objeto processado pela daguerreotipia: ele tinha um
valor intrínseco muito próximo da joalheria, sem falar que a sua propriedade mágica de “reproduzir” e perpetuar o visível lhe dava um status de preciosidade de valor inestimável. Foi a invenção de um processo de inversão do negativo para o positivo por Talbot que tornou a foto reprodutível. Mas, ainda assim, sob certos aspectos, o processo de Talbot não eliminou o objeto único, se considerarmos que o negativo continua preso a essa condição e a obtenção de cópias positivas depende do acesso a essa matriz. Alguns fotógrafos de renome ainda hoje costumam destruir o negativo após a impressão da primeira cópia, transformando assim o seu produto em objeto único, para alcançar altos preços nas galerias de arte. Isso não é uma questão irrelevante, pois o direito de reprodução fotográfica está baseado, entre outras coisas, na posse do negativo. Reproduções através de cópias positivas implicam necessariamente uma degradação da imagem, cuja definição fica sempre aquém do original. As fotos que ilustram este volume que o leitor tem nas mãos, por exemplo, são, em muitos casos, pálidas imitações dos originais, são “simplificações” no melhor sentido benjaminiano, pois se tratam de degradações de segunda ou terceira geração. .....Esse problema é vital para a fotografia dita “artística”, que depende fundamentalmente de técnicas de reprodução especiais para preservar os arranjos “musicais” da textura de tons e cores. Entre os anos 1903 e 1917, a revista Camera Work, dirigida por Alfred Stieglitz, exerceu uma influência marcante sobre toda uma geração de fotógrafos: praticamente, foi ela que definiu os critérios segundo os quais uma foto poderia ser considerada “artística”, além de ter estabelecido as coordenadas do que deveria ser um ensaio crítico ou uma abordagem do produto fotográfico. Tratava-se de uma revista de arte no sentido mais aristocrático do termo. Cada foto ocupava uma página inteira do volume e era impressa numa tela bastante frágil. Para vê-la, o leitor deveria separar cuidadosamente as duas lâminas brancas de papel grosso que a protegiam. As gravuras eram freqüentemente “viradas” para o sépia ou para outro tom que lhe enobrecesse o suporte. Câmera Work estabeleceu, portanto, uma tradição de elegância e valor na reprodução fotográfica, de que se
apropriaram as galerias de arte para a comercialização das cópias: as fotos que ilustravam as suas páginas eram objetos preciosos, produtos de um artesanato refinado. “Pela primeira vez, uma reprodução fotográfica tinha um valor
intrínseco, um valor que reside na sua natureza física imediata, no seu artesanato. Essa questão não é nada trivial se considerarmos o conflito entre o artesanato e a reprodução de imagens em escala industrial, entre os fins do século XIX e o começo do XX. Com a invenção da chapa reticulada, por volta de 1880, as fotos se tornaram acessíveis à imprensa de offset, permitindo a sua reprodução mecânica num ritmo veloz. Camera Work é contemporânea dessa proliferação de reproduções fotográficas baratas nos meios de massa. Por volta de 1910, reproduções degradadas mas informativas apareciam em muitos jornais e revistas ilustradas. Nesse sentido, Camera Work aparece como uma celebração pré-rafaeliana do artesanato em plena cabeça da industrialização ” (Sekula, 1982: 93). .....Camera Work descobriu a saída para repor a “aura” nas reproduções fotográficas e demonstrou, à sua maneira estetizante e afetada, que a reprodutibilidade pura e simples não é critério suficiente para marcar o rompimento com a condição elevada da tradição pictórica. Tanto não é, que foi essa mesma revista que deu origem a uma linha de evolução fotográfica destinada a elevar a fotografiaà categoria das Belas Artes e abrir as portas dos museus, galerias e publicações especializadas em estética aos seus produtos dignificados. E para distinguir esses produtos de nobre estirpe da prática convencional e meramente “automática” da fotografia, inúmeras técnicas de transfiguração do referente foram experimentadas e desenvolvidas. O flou, por exemplo. Trata-se de uma técnica que permite (através de filtros difusores principalmente) obter um ligeiro embaçamento da imagem, de modo a atenuar ou diluir a rigidez de seus contornos. Numa construção flou, a paisagem parece constituída apenas de nuanças muitos sutis, os objetos parecem estar ligados uns nos outros através de doces transições: nenhum contorno brusco, nenhum contraste violento parece perturbar essa íntima fusão das coisas. O modelo pictórico que está pressuposto nesse procedimento é a pintura impressionista de
um Monet ou de um Renoir, mas apenas nos seus ecos evocadores ou “auráticos” ao contrário dos impressionistas, entretanto, o fotógrafo que trabalha com o flou jamais recorre a essa técnica para destruir a estrutura dos objetos ou para desintegrá-los na pura materialidade das tintas. Ele quer apenas atenuar a proximidade gritante do espectador diante da representação, colocar um véu entre eles, de modo que a paisagem plástica possa surgir como uma aparição longínqua e inatingível. Quase todas as fotos de Alfred Stieglitz estão caracterizadas por essa marca que se
tornou uma espécie de clichê da
fotografia “de arte”: há sempre uma névoa povoando a paisagem, embaçando ligeiramente o recorte das figuras e dando-lhes um aspecto vagamente fantasmagórico. Durante um tempo relativamente longo, a grandeza de uma foto era medida, pelo menos em certos círculos de aficionados, pelos expedientes técnicos que eram interpostos entre a objetiva e o motivo fotografado, como forma de atenuar a brutalidade do efeito especular. Não é bem esse o papel do flou aurático que envolve as ninfetas de David Hamilton? .....Outro recurso para modificar a textura da imagem de uma foto, de modo a obter um efeito estético de desvanecimento das figuras,é a granulação. Consegue-se esse efeito sempre que se superexpõe uma película “rápida”, ou seja, uma emulsão de alta sensibilidade. As películas dessa espécie são constituídas de cristais de brometo de prata de maior dimensão que os comuns; por essa razão, elas necessitam de uma menor intensidade de luz para decompor-se, embora, em contrapartida, não tenham a potencialidade de imprimir detalhes finos. Se uma película dessas é superexposta, ela produz uma quantidade muito grande de prata metálica durante a revelação; essa prata decomposta se fixa aleatoriamente no negativo, formando zonas de concentração e zonas de rarefação, cujo resultado final, a olhos nus, aparece sob forma de uma granulação da imagem. O efeito é uma estranha densidade tomando conta das paisagens, como se elas tivessem se tornado voláteis ou imateriais, sem que, todavia, ocorra propriamente uma decomposição das figuras: sugere-se um esmaecimento da imagem, apenas para efeito decorativo ou dramático, mas nunca para desintegrar o motivo até a mancha constituinte.
.....É curioso constatar que as fotografias ditas “artísticas” sejam, no geral, bem pouco severas em relação à ilusão especular e permaneçam, apesar de tudo, figurativas, por mais que tentem disfarçar essa condição com arranjos harmônicos e composições “musicais”. Algumas chegam até a explorar distorções óticas, como certas anamorfoses de André Kertész, mas ainda assim não lhes é possível desmaterializar os corpos até chegar à revelação do processo constituinte da imagem, a não ser através de expedientes extra-fotográficos, como as colagens ou pintura sobre foto. Daí o equívoco fundamental de José Oiticica Filho ao supor que poderia, numa certa fase de sua obra, construir uma fotografia “abstrata”, debruçando-se sobre motivos informais, como traçados de tinta sobre vidro rugoso. O momento de abstração nas fotos de Oiticica é anterior à fotografia propriamente dita: por essa razão, tais fotos “abstratas” não são nem um pouco menos figurativas que qualquer pimentão hiper-realista de Edward Weston. E que, em quaisquer circunstâncias, a câmera e a película gelatinosa foram concebidas para possibilitar a emergência da figura, sem deixar brechas para qualquer outra exploração que não o ilusionismo de “real”. Nesse ponto, a fotografia se mostra radicalmente mais figurativa que qualquer tela renascentista ou moderna, porque em toda pintura, mesmo a mais ilusionista, há sempre uma dimensão que poderíamos chamar de genética, que corresponde à dança da mão do artista sobre a tela, o gesto enunciador tal como ele se revela nas pinceladas que forjam a imagem. Nem mesmo esse gesto existe na fotografia: a sua imagem já surge asséptica e homogênea, sem marcas da enunciação na base fotoquímica. Mas se a fotografia está condenada à figuração por sina ou por praga, é aí que a atividade desconstrutiva deve atuar, desvelando uma a uma as máscaras do ilusionismo especular. Não pode haver engajamento digno de crédito, nem sensibilidade artística isenta de afetação, se a prática da fotografia não começa auto-conhecimento das determinações ideológicas.
pelo
UMA CONCLUSÃO PROVISÓRIA .....Chegados a este ponto, cremos ser necessário retomar a questão que até agora esteve pendente: todos os processos de refração de que tratamos até aqui nos autorizam supor que o referente está em definitivo condenado a ser a miragem da representação fotográfica? De forma alguma. O referente comparece na fotografia nas mesmas condições que em qualquer outro sistema de representação: como um objeto do qual se deve aproximar por um détour , perfurando a sua ordem fantasmática mais imediata, desconstruindo-o sem tréguas, através do conhecimento crítico dos processos de refração que o distorcem, que o ocultam, que o anulam. E preciso, em todo caso, não nos entregarmos com inocência afetada ao culto de sua aparência mais superficial, como se ela exaurisse por si só, qual imagem e semelhança divina, a sua complexidade e as suas contradições. Perceber o referente é – tem de ser – uma empresa possível, pois o reflexo deve necessariamente ocorrer de alguma maneira que é preciso detectar; do contrário, a imagem fotográfica seria pura alucinação. Para identificá-lo, porém, é preciso percorrer um longo caminho, desmontando um por um os códigos que o refratam. .....O leitor talvez possa agora entender porque insistimos em taxar de místicas as abordagens convencionais da fotografia, baseadas no culto da
ilusão
especular. Mesmo modernamente, com o avanço das ciências da significação e em pleno coração das semióticas e semiologias de todos os matizes, a crença no poder de espelhamento elementar da película fotográfica é ainda um lugar comum. Barthes defendia, em seus vários escritos sobre o assunto, que a imagem fotográfica é “uma mensagem sem código”, de “caráter contínuo” e baseada na “perfeita analogia” com o que ele chamava um tanto ingenuamente de “real” (Barthes, 1970: 302). O “caráter contínuo”, no caso, se referia à inexistência de unidades elementares discretas, como os fonemas do código lingüístico, a partir das quais a mensagem pudesse se construir. Nessa tecla também bate Christian Metz, quando afirma não existir na fotografia nada que se pareça com a segunda articulação do código lingüístico. Na esteira de Barthes,
Metz defende que na fotografia há uma “quase fusão” do signo com o seu referente: cada imagem, das quais existe um número infinito, é irredutivelmente única e, por isso, não pode haver nada parecido com uma língua fotográfica (Metz, 1972: 79s). Não entramos no mérito da língua, pois trata-se de uma importação contraproducente para o estudo da imagem figurativa, mas os pressupostos desse tipo de argumentação já não se podem mais sustentar. A televisão e os sistemas de armazenamento de informação gráfica na memória de computadores nos ensinaram a ver diferentemente a questão: nesses meios, articulações de nível “abaixo” da imagem são processadas normalmente, sem que isso constitua novidade para ninguém. De fato, a imagem é aí codificada através de pontos ou retículas (dots e pixels ) de informações elementares de cor, tonalidade e saturação: esses pontos são as unidades constitutivas da imagem como os fonemas o são, guardadas as devidas distâncias, na linguagem verbal. Nesses meios ainda, a imagem pode ser convertida inteiramente num “texto” digital e armazenada na memória de um computador. .....Ora, a fotografia não difere essencialmente de qualquer imagem articulada através de pontos elementares de informação. Também ela é constituída de grãos que armazenam cada um deles uma informação luminosa específica, de modo que a tessitura dos grãos no conjunto configura a imagem final. Mas os grãos que constituem a imagem fotográfica não devem ser confundidos com a granulação de que tratamos no final do último capítulo, uma vez que esta é apenas o resultado de uma distribuição desigual dos cristais de prata durante o tratamento químico do negativo. As partículas individuais que armazenam a informação luminosa não são jamais dadas à visão na fotografia, porque são minúsculas demais para serem captadas a olho nu pelo homem. O único meio de torná-las visíveis é ampliando uma pequena porção do negativo através de um microscópio. Isso quer dizer que na sua dimensão microscópica e invisível, a imagem fotográfica é “reticulada”, como as telas do pontilhista Georges Seurat, em que a configuração do motivo se dá às custas do alinhamento de pequenos pontos de pigmento de cor. Mas a fotografia não tem como mostrar essa dimensão genética, que é o alicerce de sua materialidade, porque os seus
inventores ocultaram desde o princípio o seu processo constitutivo na sombra de um mundo microscópico que o olho humano não tem o poder de penetrar. Por essa razão, toda uma etapa vital de constituição da imagem fotográfica encontra-se inteiramente reprimida na visão do produto final. E não poderia ser diferente: se os grãos constitutivos da imagem fossem dados a “ler” em sua dimensão genética, simulando suas cores através da justaposição de pigmentos e constituindo o visível através de pontos de matéria quimicamente tratados, então não haveria ilusão homológica que se pudesse sustentar e a transparência da representação estaria seriamente comprometida. Foi preciso esperar até o advento da televisão para que toda essa dimensão reprimida aflorasse finalmente e a granulação constituinte da imagem figurativa se fizesse ver com toda sua carga dessacralizadora. A imagem eletrônica pode ser encarada como o avesso da fotografia, mas esse é um assunto complexo demais e de que já tratamos em detalhe num outro volume (A arte do vídeo, Editora Brasiliense, 1988). .....Por ora, como conclusão provisória, podemos dizer, emprestando um vocabulário da lingüística estrutural, que o signo fotográfico é ao mesmo tempo motivado e arbitrário: motivado porque, de qualquer maneira, não há fotografia sem que um referente pose diante da câmera para refletir para a lente os raios de luz que incidem sobre ele; arbitrário porque essa informação de luz que penetra na lente é refratada pelos meios codificadores (perspectiva, recorte, enquadramento, campo focal, profundidade de campo, sensibilidade do negativo e todos os demais elementos constitutivos do código fotográfico que examinamos até aqui) para convertê-los em fatos da cultura, ou seja, em signos ideológicos. Porque os dados luminosos do objeto ou do ser fotografado estão sendo trabalhados pelo código, é preciso investigar esse código até reencontrar o referente. Abstrair ou ignorar esse trabalho significa fatalmente transformar o referente em fetiche. .....Talvez tenhamos algo de útil a aprender com a medicina no que respeita aos seus processos de perscrutação e representação de interiores de organismos impenetráveis a olho nu. Tanto as já tradicionais radiografias e tomografias,
como as modernas fotos termográficas, os ecogramas de ultra-som ou as varreduras de radiação nuclear, constituem estratégias de investigação baseadas no modelo simbólico da fotografia: fixação numa superfície plana de reflexos ondulares do objeto que se quer examinar, a partir de certas convenções codificadoras previamente estipuladas. Mas aqui já não se trabalha mais ao nível da ilusão de um espelhamento elementar do referente; a inteligibilidade dos sinais registrados em cada processo é função de uma decodificação sistemática e rigorosa da imagem obtida, com vistas a identificar nela informações estruturais do objeto. E preciso conhecer antes e rigorosamente a permeabilidade de cada tecido à onda perscrutadora –raio X, radiação nuclear ou ultra-som – para que a imagem registrada no suporte ganhe um sentido preciso. Só um domínio eficiente do código que opera em cada sistema nos reconcilia com o referente e nos permite ver com clareza a dialética do reflexo e da refração operando sobre as formas simbólicas.