Lutero: sua vida e obra Vicente Themudo Lessa
Copyright © 2017 de Felipe Sabino de Araújo Neto ■ Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO Brasília, DF, Brasil www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2017 Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Rogério Portella PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lessa, Vicente do Rego Themudo Martinho Lutero: sua vida e obra / Vicente do Rego Themudo Lessa — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017. ISBN 978-85-69980-41-4 1. Martinho Lutero
2. Reforma Protestante
3. História
I. Título
Sumário Sumário 1. Eisleben 2. Mansfeld Mansfeld e Magdeburgo Magdeburgo 3. Eisenach Eisenach 4. Erfurt 5. Conclusão Conclusão de estudos em Erfurt 6. Mudança Mudança de vocação 7. Frei Martinho Martinho 8. No convento convento 9. A unção sacerdota unção sacerdotall 10. Wittenberg Wittenberg 11. A preparação preparação de um um teólogo 12. Missão diplomática Missão diplomática 13. A jornada jornada 14. A Roma Roma daqueles dias 15. Decadência Decadência do papado 16. Professor Professor e pregador pregador 17. Na véspera véspera da refrega 18. A causa causa ocasional ocasional da Reforma 19. Tetzel 20. Primeiros efeitos da tormenta 21. O firmamento cobre-se de trevas 22. O rugido do leão 23. A Rosa de Ouro 24. O Debate de Leipzig 25. Evolução de Lutero 26. Carlos V 27. A cruzada de Lutero 28. O Cativeiro Babilônico 29. A terceira trombeta 30. Os raios do Vaticano 31. Pena de Talião
32. Worms 33. Capitólio ou rocha Tarpeia? 34. A hora decisiva da Reforma 35. O anátema do Império 36. Wartburgo 37. A Bíblia alemã 38. Os excessos do radicalismo 39. Novas reações 40. Modificações do papado 41. Política de contemporização 42. A origem do nome protestante 43. Augsburgo 44. A Liga de Esmalcalde 45. Catarina von Bora 46. Vida doméstica de Lutero 47. Defeitos de Lutero 48. As Tischreden 49. Personalidade discutida 50. A bigamia do landgrave 51. O castigo do landgrave 52. A nova organização eclesiástica 53. Educação e a política eclesiástica 54. As sombras do crepúsculo 55. Os companheiros de Lutero 56. A noite de Eisleben 57. Pulvis es… 58. Goivos e saudades 59. O julgamento dos séculos Bibliografia
A Francisca Leme Themudo Lessa, nobre e abnegada companheira do lar.
Prefácio: Quinhentos anos da Reforma Em 1935, o pastor e historiador Vicente Themudo Lessa publicou sua obra sobre Martinho Lutero. Foi a primeira vez que um brasileiro escreveu um livro sobre o tema. Ao que parece, apenas uma outra biografia do reformador já havia sido publicada em português, de autoria de A. de Saussure, que veio a lume em 1912 em Lisboa e no Rio de Janeiro. [1] Vicente do Rego Themudo Lessa (1874-1939) nasceu num engenho pertencente à sua família em Palmares, no interior de Pernambuco. Converteu-se bem jovem na Igreja Presbiteriana de Recife, ouvindo as pregações do rev. dr. George William Butler. Após os primeiros estudos no estado natal, seguiu para o Sudeste a fim de frequentar o recém-criado Seminário Presbiteriano, sediado inicialmente em Nova Friburgo, no Estado do Rio de Janeiro. Terminou os estudos depois que a instituição foi transferida para São Paulo. Foi ordenado em janeiro de 1901, orgulhando-se de ser o primeiro ministro presbiteriano ordenado no Brasil no século XX. Iniciou o ministério em Jaú e Lençóis, no interior paulista. Sendo grande admirador do Rev. Eduardo Carlos Pereira, em 1903 uniu-se a esse líder e a outros pastores na fundação da Igreja Presbiteriana Independente (IPI), da qual foi pastor e missionário em muitas regiões do país. Ocupou cargos relevantes na denominação e também se dedicou ao ensino, tendo lecionado no Colégio Evangélico e no seminário da IPI, bem como no Instituto José Manoel da Conceição. Escreveu amplamente nos periódicos da época, em especial no jornal O Estandarte. Produziu longas séries de artigos sobre suas viagens e ainda uma valiosa série a respeito da história da imprensa evangélica no Brasil. Embora não tenha recebido formação específica em história, destacou-se como o primeiro grande pesquisador e historiador do presbiterianismo e do protestantismo nacional, como atesta sua obra mais importante e conhecida, Anais da 1ª Igreja Presbiteriana de São Paulo (1863-1903), publicada em 1938. Nos últimos anos de sua vida, escreveu os trabalhos mais substanciais, quase todos de natureza biográfica, como os sobre José Manoel da Conceição, Maurício de Nassau, João Calvino e Martinho Lutero. Suas obras revelam a pesquisa cuidadosa, a utilização de boas fontes e
a preocupação com o estilo apurado, de leitura agradável. Acima de tudo, evita transcrever as fontes de maneira mecânica, mas apresenta reflexões próprias e análises perspicazes sobre os temas que aborda. Essas preocupações são claramente perceptíveis na biografia do reformador alemão, cuja quarta edição, com 270 páginas, foi publicada pela Casa Editora Presbiteriana em 1960. O livro é composto por 59 capítulos que abordam a vida e a carreira da ilustre personagem de maneira bastante detalhada e abrangente, com grande riqueza de informações. Os capítulos 1 a 5 seguem os primeiros passos de Lutero nas cidades de sua infância e adolescência (Eisleben, Mansfeld, Magdeburgo, Eisenach e Erfurt). No capítulo 6, narra-se o grande momento de transição que o levou a optar pela vida religiosa, seguido dos capítulos sobre a vida monástica inicial, ordenação ao sacerdócio e estudos teológicos em Wittenberg. O autor dedica vários capítulos (12 a 15) à missão diplomática de Lutero em Roma, incluindo reflexões sobre a situação reinante na famosa cidade e sobre o papado. Os capítulos 16 a 19 consideram vários fatores que prepararam o caminho para a Reforma: as atividades de Lutero como professor, pregador e administrador, a situação religiosa da Alemanha e a questão das indulgências. A partir do capítulo 20, são apresentados o contexto das 95 teses, as primeiras reações da Igreja Romana, os debates com Cajetano e Eck, a evolução teológica de Lutero e a eleição do imperador Carlos V. Os capítulos 27 a 29 descrevem as três obras decisivas do reformador em 1520: À nobreza cristã da nação alemã, O cativeiro babilônico da Igreja e Da liberdade cristã. Os capítulos 30 a 35 descrevem a ruptura final com Roma, destacando as Bulas de Leão X contra Lutero e os episódios dramáticos associados à Dieta de Worms. Os capítulos 36 e 37 narram a estada do reformador no castelo de Wartburgo e o início da tradução da Bíblia em alemão, seguindo-se pelos capítulos sobre as dificuldades enfrentadas pela Reforma, como dissidências internas e a Revolta dos Camponeses. Os capítulos 40 a 44 tratam dos pontífices da época, dos envolvimentos políticos da Reforma, da Dieta de Espira, do Colóquio de Marburgo, da Dieta de Augsburgo e sua famosa confissão de fé, e da Liga de Esmalcalde. Os capítulos 45 a 49 mostram a dimensão pessoal de Lutero, destacando seu casamento, vida familiar, personalidade e as famosas Tischreden [Conversas à mesa]. Os capítulos finais se voltam para temas
diversos como a bigamia de Filipe de Hesse, o culto e a hinódia luterana, a educação e política eclesiástica, os companheiros do reformador, seu declínio e morte, e avaliações de sua obra. No início de cada capítulo, como é característico das obras desse autor, é apresentada uma relação dos tópicos abordados, o que constitui em valioso recurso didático. Evidentemente, uma obra publicada há mais de 80 anos, ainda que tenha utilizado algumas das melhores fontes então disponíveis, padece de certas limitações. A principal delas é o fato de não incorporar as contribuições do enorme acervo de pesquisas, novas descobertas e interpretações sobre o tema feitas pelos estudiosos ao longo do século XX. Descontando-se esse fato, o livro foi um feito admirável e permanece relevante para os leitores atuais. É especialmente significativo e digno de reconhecimento o fato de esta nova edição ser publicada no transcurso do quinto centenário da Reforma Protestante. Na época em que tantos desconhecem ou desvirtuam o legado dos reformadores, esta obra contribuirá para a divulgação, celebração e valorização desse grande acontecimento histórico que impactou o mundo. Soli Deo gloria! — R EV. ALDERI SOUZA DE MATOS , Th.D. São Paulo, 31 de julho de 2017
1. Eisleben Nascimento de Lutero — Lugar e data — Nome dos pais — Origem humilde — De Möhra a Eisleben — De camponês a mineiro — Caráter dos progenitores — O brasão de um plebeu — Significação do nome Lutero — O nome Martinho — Consagração ao nascer
Martinho Lutero — “o homem que abalou o mundo” — nasceu no centro da Alemanha, na região da Turíngia, em Eisleben, Saxônia Prussiana, a 10 de novembro de 1483. Sua mãe, no testemunho de Melâncton, biógrafo e grande amigo do reformador, lembrava-se muito bem do dia e hora do nascimento — a 10 de novembro, pelas 11 da noite. Não guardara, porém, a memória do ano. Para obter isso apoiou-se ele no depoimento de Tiago, irmão mais novo de Lutero, que fixou a data de 1483. Há, porém, divergência em alguns autores e o próprio Melâncton entendia que nascera um ano depois. A data estabelecida por Tiago é a geralmente adotada. Sete semanas mais tarde, em 10 de janeiro de 1484, no cantão suíço de São Galo, nascia Ulrico Zuínglio, o reformador da Suíça alemã. João Lutero (Hans Luther) e Greta (ou Margarida) Ziegler eram os pais do futuro monge agostinho, sendo o pai oriundo de Möhra, nas florestas da Turíngia, paragens aquelas em que, séculos passados, Bonifácio, o apóstolo da Germânia, começara primeiro a proclamar as boas-novas do cristianismo. Margarida nascera em Eisenach. Lutero costumava dizer: “Tenho muitas vezes conversado com Melâncton narrando-lhe minuciosamente minha vida. Sou filho de camponês. Meu pai, meu avô e meu bisavô não passavam de camponeses”. De sua origem humilde, ele, contudo, se orgulhava. Em certo dia, resolveu João despedir-se da Möhra de sua infância, de onde seus maiores procediam. Dá uma tradição como motivo um homicídio que houvesse perpetrado. Köstlin, porém, melhor autoridade no assunto, reputa sem base tal acusação.[2] Filho mais velho, a granja e os campos paternos, tocariam, segundo o costume, ao filho mais moço. E o camponês fez-se mineiro, no condado de Mansfeld, nas montanhas do Harz, onde se encontravam ricos veios de cobre, não muito distante do ninho dos ancestrais. “No condado de Mansfeld” — rezava antigo provérbio, celebrando a
fertilidade da terra — “aquele a quem o Senhor ama concede-lhe morada”. Com o tempo, o mineiro — a quem a história perpetuaria na pessoa de seu filho — à força de trabalho, pois bem pobre era ele, veio a possuir relativo conforto, uma habitação cômoda na rua principal e duas forjas de fundição. Veio ainda a legar aos seus cerca de mil táleres em dinheiro. Antes, porém, de adquirir esse quinhão, foi-lhe duro o mourejar. Era mineiro e lenhador na floresta. “Meus pais eram muito pobres”, atestou Lutero. “Meu pai era um pobre lenhador e minha mãe carregou lenha muitas vezes para ter com que nos sustentar”. Podemos bem imaginar quantas vezes não teria acompanhado a boa mulher o pequeno Martinho, trazendo das matas o seu feixinho de lenha. O laborioso camponês não era iletrado. Amava os livros e com o tempo veio a ocupar posição de honra, sendo, desde 1491, repetidamente eleito assessor, como um dos quatro burgueses que deviam servir na administração municipal. Era tido como homem de bem e respeitável. Os camponeses também possuíam brasão de armas e não somente os fidalgos. Segundo Michelet, o mineiro da Turíngia escolheu o seu: um martelo assentando num bloco de granito.[3] No casamento de Melâncton tomou assento entre os sábios e letrados da brilhante assistência. Margarida era um modelo de mãe de família, no cuidado para com os seus sete filhos — quatro filhos e três filhas. Melâncton louvou-a pela modéstia e pelos hábitos de oração e de disciplina doméstica, pessoa em quem habitava o temor de Deus. Lucas Cranach esboçou os retratos do casal, que são conservados em Wartburgo. O menino Lutero cresceu na escola do trabalho, ao lado das forjas e fundições onde seu pai trabalhava, vendo os rostos tostados daqueles mineiros honrados e intrépidos, que faziam ecoar nas florestas harmoniosamente os seus cantos varonis. O nome Lutero apresenta variantes: Luder, Lüder, Ludher, Luther, Lutter, Lutherr, Lutherus, Lothar e Lotharius. Nos registros da Universidade de Erfurt foi inscrito como Ludher, em Wittenberg como Ludeh e Luder. Adotou ele definitivamente a forma de Luther e daí Lutherus ou Lutero. A forma Lotharius ou Lotário lembra o nome de imperadores e reis. De um destes procedeu o nome Lotharingia e depois Lorena, dado a uma região entre o Reno e o Mosa. Certo escritor, considerando a semelhança entre Lutero e Lotário, observou: “Certamente nenhum potentado de nome Lotário
veio a exercer maior realeza do que Martinho Lutero, o filho do mineiro de Eisleben”. Alguns derivam o nome de lauter, claro ou puro, e Cristiano I, eleitor da Saxônia, achava-o em verdade um teólogo lúcido e puro (voll lauter und ein reiner Theologus). Certo teólogo católico confessou: “Lutero, ustificais em verdade o vosso nome, escrevendo num estilo puro e claro (lauterus et limpidus)”. Martinho, o nome de batismo, foi-lhe dado pelo progenitor em homenagem ao santo do dia em que foi batizado (11 de novembro — no dia seguinte ao do nascimento). Trata-se do grande são Martinho de Tours, valente legionário do Império Romano e não menos valoroso soldado de Cristo pelos serviços que prestou à Igreja. Matésio, que publicou 17 sermões sobre a vida de Lutero, foi de opinião que honrou ele o nome do seu patrono de batismo, o apóstolo da Gália, mantendo-se, com dignidade cristã, como valente soldado e cavalheiro de Cristo. O sentimento religioso de João Lutero acentua-se no nascimento de seu primogênito. Lucas Cranach, o maior pintor alemão do seu tempo, grande admirador do reformador, ilustrou a vida do amigo em todas as suas fases. Na gravura que representa o nascimento de Lutero aparece Margarida em seu leito de parturiente, cercada das assistentes que lhe ministravam os cuidados do momento. À esquerda, João, de joelhos, tendo nos braços o recémnascido, consagra-o solenemente a Deus. E Conrad Schlüsselburg refere que muitas vezes o carinhoso pai orava em voz alta e fervorosamente ao pé do leito para que Deus concedesse ao menino a graça necessária e, justificandolhe o apelido, viesse a ser ele um pregoeiro da doutrina pura ( lauter).
2. Mansfeld e Magdeburgo Armazém de pancadas no lar e na escola — Alvo de contendas em todos os tempos — Os números e a astrologia — Na escola de Mansfeld — Em Magdeburgo — Um quadro alegórico
Salomão, nos Provérbios, encarece como salutar o regime da vara para a educação da mocidade e muita gente o tem assim entendido, não só nos tempos antigos como ainda em nossos dias. Nos tempos da infância de Martinho tal era a regra. De ânimo impetuoso, de modo algum o pouparam. “Castiga o teu filho enquanto há esperança” — preceituou Salomão (Pv 18.18). São Paulo, mais brando, aconselha: “Vós, pais, não irriteis a vossos filhos para que não percam o ânimo” (Cl 3.21). Os pais de Martinho pareciam antes ouvir a Salomão: “Meus pais — dizia ele — trataram-me com dureza, implantando em mim a timidez. Minha mãe, por causa de uma avelã, castigou-me até correr o sangue”. O pai fustigou-o a tal ponto, em certo dia, que o pequeno se viu constrangido a fugir, temendo dele aproximar-se. “Ambos acreditavam que faziam bem” — observou Lutero mais tarde — “porém não sabiam distinguir os caracteres. É preciso castigar, mas importa colocar uma fruta gostosa ao lado da vara”. Na escola o regime não era diferente. Numa só manhã o mestre impiedoso açoitou-o 15 vezes por não saber uma lição que não lhe havia sido ensinada. Daí o dizer ele, em sua linguagem característica, que as escolas do seu tempo figuravam o inferno e o purgatório pelas torturas infligidas. Aliás, constituiu-se Lutero em verdadeiro armazém de pancadas desde a infância. Primeiro foram os pais e mestres no sentido material da palavra. Depois os tratos que recebeu em sua vida de reformador. Sobre ele desceu o anátema do império na famosa Dieta de Worms. Antes disso os raios de Leão X haviam caído sobre a sua cabeça. Daí em diante a rabies theologorum, que tanto afligia a Melâncton, não lhe concedeu um momento de paz. Perscrutaram o seu nascimento e recorreram à mística dos números, achando que, no grego e no hebraico, o seu nome equivale ao misterioso 666 do Apocalipse, esquecendo ou ignorando talvez que o mesmo simbolismo do número 666 se encontra nas palavras Neron Cesar, Latinē Basileia, Italica Ecclesia, Lateinos (Latino) e Romanus, e ainda em Roma, em hebraico ( Romiith) e em outras palavras mais. Foram à astrologia e, para melhor
ajuste, alteraram a hora e o dia do nascimento do reformador. Por meio de combinações astrais, descobriram que, somente por influência do maligno, revolução de tal natureza poderia ser efetuada na Igreja. Mediante a ciência astral, viram, no horóscopo, haver sido ele destinado a ser o maior inimigo da fé cristã e que morreria na maior impiedade, sendo votado aos infernos para ser ali flagelado eternamente pelos terríveis açoites de Alecto, Tisífone e Megera, as três fúrias infernais. Concluíram também que havia sido gerado por um demônio íncubo. Assim gravemente o afirmou Cochlaeus. Sondaram a sua vida íntima e descobriram nele um ébrio, um devasso, um monstro de impiedade, um conjunto de vícios. Houve até quem tentasse provar o seu fim como suicida, morte digna de um heresiarca. E o odium theologicum continua a persegui-lo em panfletos, revistas e boletins tendenciosos. Bem criança foi Lutero levado aos bancos escolares, em Mansfeld, para onde a família se havia transferido seis meses depois do nascimento de Martinho. Distava cinco léguas de Eisleben. Mansfeld ficava no centro da mineração. João esperava do seu primogênito grandes coisas. Ele mesmo o levava carinhosamente aos ombros pelo áspero caminho que conduzia à escola, sendo nisso auxiliado por Nicolau Emler, um excelente rapaz, que mais tarde desposou uma irmã de Lutero. Sem embargo das varadas, iniciou-se logo na ciência que Jorge Emílio lhe proporcionava. Refere D’Aubigné que em Mansfeld lhe ensinaram tudo o que se sabia na escola: o Catecismo, o Decálogo, o Credo, a Oração Dominical, cânticos e orações, a gramática latina de Donato, do século IV, que fora mestre de são Jerônimo, e o livro de Cisio Janus, obra singular do século X. Falaram-lhe de um Deus a tal ponto severo que Martinho tremia de medo ao ouvir o nome de Jesus, que lho haviam pintado como um juiz rigoroso. A escola latina de Mansfeld, onde estudou, era uma escola “trivial”, em que se ensinavam os rudimentos das três disciplinas fundamentais: gramática, retórica e dialética. Nisto se iniciou, além do ensino religioso mencionado. Aos 14 anos, em 1497, deixou o lar de Mansfeld, indo para a escola de Magdeburgo. João queria fazer dele um sábio, imaginando no menino um futuro jurisconsulto. Um ano viveu na grande cidade que o deslumbrava com sua opulência. Frequentou, naquele período, a escola dos Irmãos da Vida Comum, os Nollbrüder como eram chamados, aumentando os conhecimentos,[4] e lá
observando tudo com muito cuidado. O geral dos agostinhos, André Prolès pregava então com ardor sobre a necessidade de reforma na religião e na Igreja e isso, pondera D’Aubigné, talvez gravasse no ânimo do jovem assistente as primeiras impressões que deveriam frutificar mais tarde. Conta-se que em Magdeburgo viu Lutero um quadro que muito o impressionou. Representava uma barca, figurando a Igreja. Nela, porém, não se via nenhum leigo. Somente o papa com os cardeais e bispos à proa, tendo a imagem do Espírito Santo sobre as cabeças. Padres e frades eram os remeiros e demandava a barca as praias celestiais. O curioso, porém, era que os leigos nadavam dificultosamente no mar e os que não se afogavam eram sustidos nas águas por meio de cordas que lhes atiravam os frades, movidos de compaixão, cordas que representam as suas boas obras, aplicadas em favor dos fiéis. Somente por esse modo conseguiam ir aos céus, na dependência absoluta de Roma. Era um quadro simbólico do ensino daqueles dias. Por mais piedosos que fossem os leigos, nada conseguiam de Deus sem o auxílio dos ministros da Igreja. Naquele ano em que permanecia em Magdeburgo nascia no Palatinado, na humilde tenda de um armeiro, o sábio Melâncton, que teria de ser o mais valioso sustentáculo do filho do mineiro.
3. Eisenach Ainda em Magdeburgo — Panem propter Deum — O estágio de Eisenach — Uma nova Sunamita — O gosto pela música — Um coração agradecido — Progresso nos estudos — Um professor afável — Profecias que se teriam de cumprir — Os amigos de Lutero
De um ano apenas foi a permanência de Martinho em Magdeburgo. Os meios de viver eram-lhe escassos e seu pai lutava com muita dificuldade para prover a família, não lhe podendo valer em muito, apesar de haver já arrendado uma mina e fornos de fundição. Os escolares pobres costumavam cantar pelas ruas para obter meios de subsistência. Até filhos de magistrados assim procediam, parecendo isso originar-se na prática dos frades mendicantes. [5] Iam mesmo pelas povoações adjacentes à cata do pão. Ouçamos o próprio depoimento de Lutero: “Eu pedia com meus camaradas algum alimento a fim de prover as nossas necessidades. Um dia, no tempo em que a Igreja celebrava a festa do nascimento de Jesus Cristo, percorremos juntos as povoações vizinhas, indo de casa em casa e cantando a quatro vozes os cânticos usuais sobre o menino Jesus nascido em Belém. Paramos no fim de um povoado, em frente de uma casa isolada, habitada por um lavrador. Ouvindo-nos cantar os hinos do Natal, saiu ele ao nosso encontro com algumas provisões e perguntou com forte voz e em áspero tom: ‘Meninos, onde estais?’. Assustados, deitamos a correr. Não havia motivo para isso. O lavrador nos oferecia o socorro de bom grado. Os nossos corações estavam intimidados pelas ameaças e tiranias com que os mestres aterravam os seus discípulos, de sorte que súbito temor se apoderou de nós. Então, depondo o medo, corremos para o seu lado e recebemos o presente que nos dava”. Afinal, com bem poucos recursos, um ano depois, em 1498, o pequeno Martinho empunhou o bordão e a sacola de peregrino e tomou a estrada de Eisenach, pequena cidade da Turíngia, onde nascera sua mãe Margarida. Era mais ou menos no tempo em que o execrando Alexandre VI fazia acender a fogueira de Savonarola, o ousado dominicano que se atreveu a denunciar os desmandos de Roma. Lutero quase desanimava à míngua de recursos. Estudava mendigando o pão cotidiano. Algumas vezes estendiam-lhe a mão benfazeja; de outras repeliam-no duramente. Talvez pensasse em voltar a Mansfeld e transformar-
se em mineiro como seu pai. Possuía uma bela voz e notável tendência para a música. Um dia saiu como costumava, um tanto desanimado, a cantar tristemente pelas portas, implorando: “Panem propter Deum da nobis” — quando uma delas se abriu, na Praça de são Jorge. Uma alma generosa atentou nas faces pálidas do menino e naquele olhar profundo. Reconheceu na voz harmoniosa e doce um dos meninos do coro. Úrsula Cotta, a filha do burgomestre de Isfeld e esposa de Conrad Cotta, honrado comerciante, era ela. Deu-lhe boa acolhida e repartiu com ele o seu pão. Conrad aprovou a boa obra.[6] Agora a situação mudava. A terra de Margarida deparava-lhe uma segunda mãe na pessoa de Frau Cotta. Deram-lhe, nas crônicas da cidade, o nome de “piedosa Sunamita” pelo seu procedimento para com o novo Eliseu. Tinha casa, pão e amigos. Era prosseguir nos estudos com o temor de Deus como já o fazia. Outros protetores encontrou em Eisenach. Cita-se o nome de Conrad Huter, seu parente, e o da família Schalbe, a que pertencia Úrsula Cotta. Lembrando-se mais tarde de sua situação nos dias de escola, recomendava Lutero que não deveriam ser desprezados os meninos que andavam pelas portas esmolando o panem propter Deum, porquanto ele havia feito o mesmo. Em Eisenach aprendeu a tocar flauta e alaúde; possuía uma sonora voz de contralto. Com o tempo adiante compôs belos hinos — letra e música — composições que se tornaram assaz conhecidas. Úrsula faleceu em 1511 e Lutero a esqueceu. Refere D’Aubigné que a propósito disso escreveu o seguinte: “Nada há mais doce sobre a terra do que o coração de uma mulher onde habita a piedade”. Audin, historiador católico, dá outra versão e a referência deve ser ao mesmo caso. Conta que afixou ele em sua Bíblia, à margem do livro de Provérbios, o seguinte conceito que aprendera da própria Úrsula: “Nada há mais doce sobre a terra do que o coração de uma mulher quando alguém é bastante feliz para o obter” (Audin, Histoire de Luther, vol. I, p. 28). Quando já doutor em Wittenberg, conta-se que acolheu em sua casa e em sua mesa, com alegria, um filho de Frau Cotta, que ia estudar naquela cidade. Era uma retribuição à antiga bondade da piedosa Sunamita. Em Eisenach estudou quatro anos levando vantagem a muitos companheiros e fazendo progresso no estudo das línguas antigas, da
eloquência e da poesia. Entre os seus professores causou-lhe grande impressão o bondoso João Trebônio, que era o reitor da escola de Eisenach. De maneiras afáveis, costumava descobrir-se saudando os seus discípulos, como que lhes dando a entender que bem valiam alguma coisa. Os colegas de Trebônio estranhavam-lhe a condescendência e ele um dia explicou-lhes, estando presente Martinho: “Entre estes meninos há homens dos quais Deus fará um dia burgomestres, chanceleres, doutores e magistrados. E, posto que os não vejais ainda com as insígnias da dignidade, é justo, contudo, que os respeiteis”. Tinha razão o bom Trebônio. Entre aqueles meninos estava ao menos Lutero, que deveria deixar um nome famoso nos anais da história. Algumas observações, a propósito. André Prolès, aquele velho geral dos agostinhos que encontramos em Magdeburgo e preconizava a necessidade de uma reforma na Igreja, costumava dizer aos que lhe perguntavam o motivo pelo qual não se punha ele mesmo à frente da empresa: “Vede, meus irmãos, como eu vergo ao peso dos anos, estou fraco de corpo e não tenho a ciência, o talento e a eloquência que tal cometimento requer. Mas Deus há de suscitar um herói que, pela idade, forças, talento, ciência, engenho e eloquência, ocupará o primeiro lugar. Ele começará a reforma e se oporá ao erro e Deus lhe dará coragem para resistir aos poderosos do mundo”. Este velho geral dos agostinhos foi o antecessor de Staupitz, que teria de ser o guia espiritual de Lutero, futuro monge agostinho. Staupitz impeliu Lutero para a Reforma, mas não teve coragem de acompanhá-lo no passo decisivo. João Hilten era um velho franciscano de Eisenach, dado ao estudo de Daniel e do Apocalipse. Escrevendo um comentário sobre tais livros, veio a censurar os escândalos da vida monástica. Os frades indignados o meteram num calabouço infecto. Enfermando gravemente, mandou vir o guardião que o encheu logo de impropérios, a que o frade respondeu suspirando: “Sofro tranquilamente as vossas injúrias por amor de Cristo, porquanto eu nada disse que pudesse abalar o estado monástico, apenas censurei os seus frisantes abusos”. Então, alçando o voo profético, prosseguiu: “Outro homem há de ser suscitado no ano do Senhor de 1516. Ele vos há de destruir e não lhe podereis resistir” (D’Aubigné, History of the Reformation of the Sixteenth Century, vol. I, p. 110-1). Naquela mesma Eisenach, onde João Hilten profetizava, teria de estudar por algum tempo aquele que era o objeto da profecia. A diferença foi
de um ano. A 31 de outubro de 1517 Martinho Lutero afixava as suas teses à porta da Catedral de Wittenberg. É a data oficial do começo da Reforma. Além das famílias Schalbe e Cotta, de Conrad Huter, o sacristão de São Nicolau, e do bondoso Trebônio, deixou Lutero outros amigos na sua “querida” Eisenach. Um deles era o padre Wigand, um dos seus professores. Outro era o vigário de Santa Maria, João Braun, amigo dos moços, que recebia Lutero com outros jovens no seu presbitério. Excelente músico, dele recebeu Lutero proveitosas lições. Em Mansfeld, em Magdeburgo e Eisenach fazia parte do coro nas igrejas. Braun deu-lhe um ensino metódico de música. Tocavam juntos diversos instrumentos, cantando até tarde.
4. Erfurt Estágios escolares — Erfurt e sua universidade — Situação econômica de Lutero — Seu ardor nos estudos — Professores em Erfurt — Estudos clássicos
O quarto e último estágio na história da educação de Martinho Lutero desenvolveu-se em Erfurt. Mansfeld assinala os estudos rudimentares. Magdeburgo e Eisenach indicam passos mais adiantados. Erfurt marca os estudos superiores. Erfurt, velha cidade prussiana, já em tempo de Carlos Magno se salientava pelo seu comércio e importância. Sua universidade datava de 1392 e acolhia em seu grêmio cerca de mil estudantes nos dias da Reforma. Era, no limiar do século XVI, a mais notável da Alemanha e subsistiu até 1816. Nos dias de Lutero a população da cidade passava de 20 mil habitantes. O reformador celebrizou-a e o famoso convento em que professou veio depois a ser um orfanato, que derivou dele o nome — Martinstift — fundação Martinho. Ainda não completara Lutero os 18 anos quando ali foi ter, sendo matriculado sob o nome de Martinus Ludher ex Mansfeld, em maio de 1501, ano em que, na Universidade de Heidelberg, recebia o grau de bacharel o esperançoso Ecolampádio, reformador de Basileia, mas originário da Alemanha, nascido dois anos antes de Martinho. Foi ele o complemento de Zuínglio, assim como Melâncton o veio a ser de Lutero, e Beza de Calvino. A situação econômica do jovem estudante ia melhorando. Em Eisenach encontrara no seio das famílias Cotta e Schalbe albergues de bondade. Em Erfurt acudiu-lhe João Lutero, o mineiro de Mansfeld, cujas finanças permitiam agora auxiliar o filho de tantas esperanças. Intensa era a sede de saber do estudante. Ter ingresso numa universidade era a sua grande aspiração. João desejava que seu filho se entregasse ao estudo das leis jurídicas e antevia nele um ansioso inquiridor da ciência que dignificou o povo romano. Curioso, porém, é de notar o contraste e semelhança neste particular entre Lutero e Calvino e seus respectivos progenitores. Geraldo Calvino desejava para seu filho os mais exaltados postos na Igreja. Depois mudou de parecer e enviou-o ao estudo do direito, que tão útil veio a ser ao legislador eclesiástico de Genebra. Mas não lhe pôde contrariar a vocação religiosa.
João Lutero queria a ciência do direito para Martinho, mas a vocação religiosa do filho impeliu-o para um convento. Era corrente então dizer-se: “Quem deseja um bom preparo deve dirigirse a Erfurt”. Tal a fama da universidade. Lutero teve ao seu alcance professores eficientes. Eram seus mestres favoritos Joducus Trutvetter — o doctor Erfordiensis — que parece ter sido o reitor da universidade, e B. Usingen. Audin (op. cit., p. 30) menciona outros professores como J. Emser, que explicava a poética de Reuchlin; Hecker, monge agostinho, que depois abandonou a ordem; Grevenstein e J. Bigand. Entregou-se à escolástica em toda a sua aridez. O curso de bacharelado em artes era de ano e meio, incluindo gramática, lógica, retórica, física e filosofia, conforme o método de Aristóteles. Mais uma vez predominava o nominalismo, segundo o qual as ideias gerais tinham apenas existência nominal — contra o realismo que nelas achava realidade objetiva. Consagrou-se especialmente a Guilherme de Occam, altamente considerado em Erfurt, que se tornou o seu mestre querido, franciscano inglês que resistira com denodo aos pontífices do século XIV e servira de guia a Wycliffe e Huss. Maternus foi seu professor de autores clássicos. Afeiçoou-se a Virgílio, Tito Lívio, Plauto, Cícero e Terêncio. Aliás, era o latim a língua adotada nos cursos de Erfurt, vindo a ser para ele uma segunda língua materna. Mas nos seus escritos não chegou a usar estilo clássico. Ele mesmo reconhecia isso na sua linguagem vívida, comparando o seu latim rude com o de outros escolares. Qualificava-se então como um ganso entre cisnes. Era no tempo do humanismo, quando os estudos gregos começavam a florescer na Alemanha, em Erfurt principalmente, onde primeiro se editou no país uma gramática grega. João Jager, “mais conhecido por Crotus Rubeano, então estudante em Erfurt, veio a ser mais tarde reitor da universidade e um dos próceres do humanismo e colaborador de Hutten nas celebradas Epistolae obscurorum virorum, que metiam a ridículo a ignorância dos monges. Lutero, porém, só veio a cultivar o grego quando professor em Wittenberg e sua cultura clássica não chegou a atingir o fastígio da de Erasmo e Melâncton, de Calvino e de Beza. Sua conduta moral em Erfurt não admitia repreensão. [7] Outrossim era notório o seu sentimento religioso. Ao despertar pela manhã, seu primeiro cuidado era o culto a Deus. Entregava-se com fervor à oração, pedindo a bênção divina sobre os seus trabalhos diários. Depois ia à Igreja exercer as
suas devoções. Desde os dias escolares costumava dizer: “Bene orasse est bene studuisse” [“Ter orado bem é ter estudado bem”]. Daí entregava-se com ardor aos livros, aprofundando os estudos a ponto de conquistar os primeiros lugares. Interrogava a miúdo os professores e sua memória fácil o ajudava muitíssimo. Em sua Vida de Lutero, Melâncton observava: “Assim brilhou desde a juventude. Toda a universidade admirava seu talento”. A música e a poesia ocupavam lugar distinto entre os seus estudos.
5. Conclusão de estudos em Erfurt O grau de bacharel — O primeiro contato com a Bíblia — A Reforma escondida naquele livro — Enfermidade séria — Predição de um velho padre — Um acidente na jornada — Doutor em Filosofia — Início do estudo de Direito — A morte de um amigo — Visita ao lar paterno
Entregando-se com afinco aos livros na universidade, recebeu o grau de Bacharel (baccalaureus artium) no outono de 1502.[8] A despeito de seus esforços, neste primeiro estágio foi apenas o trigésimo numa turma de 57 alunos. Quando alcançou o grau de mestre, era o segundo de uma classe de 17. Assim o refere McGiffert em Martin Luther: The Man and His Work (London, 1911, p. 16). Para o curso de mestre em Artes requeriam-se dois anos. Prosseguia-se no desenvolvimento dos estudos anteriores e mais ainda no estudo das matemáticas, [9] ética e metafísica. Surgiu o ano de 1503 e nele se acentuou ainda mais a sua índole. Não faltava às cerimônias e práticas da Igreja e era fervoroso adorador da Virgem. Nos momentos disponíveis visitava assiduamente a biblioteca da universidade na ânsia de conhecimentos. Em certo dia fez uma descoberta singular. Tinha diante de seus olhos um exemplar da Vulgata. Verdadeiramente maravilhado com a descoberta, abriu o livro e suas vistas caíram sobre a história do menino Samuel. O cântico de Ana e a vocação religiosa do menino muito o comoveram. Até aí só conhecia da Bíblia os excertos que vinham nos livros de devoção, gotas apenas do rico manancial agora encontrado. Era um novo mundo que se lhe descortinava. As suas visitas à biblioteca se intensificaram ainda e o livro sagrado ia-se tornando cada vez mais interessante. Como disse um historiador, naquela Bíblia que veio às mãos de Lutero estava escondida a Reforma. Usingen, um dos professores da universidade, não apreciava a atitude de Lutero, ao vê-lo absorvido no estudo daquele livro. Ouçamos este último: “O dr. Usingen, que era meu tutor em Erfurt, quando me via a ler a Bíblia com tal interesse e devoção, costumava observar-me: ‘Irmão Martinho, que há na Bíblia? Mais proveito haveria em consultar as obras dos antigos doutores. Sugaram eles o mel da verdade. É a Bíblia a causa de todas as turbações na Igreja’”. A propósito dessa descoberta de Lutero notou certo historiador: “Foi aquela Bíblia que deu a Lutero a liberdade, e Lutero, com a Bíblia em punho,
deu ao mundo a liberdade”.[10] Mas este primeiro contato com a Bíblia acendeu nele principalmente o gosto de um intelectual. Mais tarde, quando se achava no convento, teve um segundo encontro com o livro. É o caso da Bíblia acorrentada, por alguns confundida com a da universidade. Foi então que descobriu nela um valor mais excelente. Naqueles dias a Bíblia era vista apenas na biblioteca dos mosteiros e das universidades ou entre as pessoas de recursos. A Reforma é que fez dela um livro popular. A aplicação aos estudos enfraqueceu-o sobremaneira e em certo momento veio a cair perigosamente enfermo. Graves pensamentos afligiramno no leito. Julgava haver soado a hora extrema. Seus pecados o preocupavam. Seus amigos deploravam o fim de tantas esperanças ante o caráter da moléstia. Entre os visitantes conta-se de um velho sacerdote que acompanhava com interesse a carreira do estudante. Conforme relata D’Aubigné (op. cit., vol. I, p. 176), ao vê-lo, exclamou desanimado: “Em breve serei chamado deste mundo”. Ao que lhe replicou o ancião: “Meu querido bacharel, tende ânimo. Não morrereis desta enfermidade. Deus, Nosso Senhor, fará ainda de vós um homem que, por sua vez, consolará a muitos”. Matésio, amigo e biógrafo do reformador, narra o fato e nota a impressão que a profecia produziu no ânimo do enfermo. Seus sentimentos religiosos, após a séria doença, cada vez mais se iam fortalecendo. Afligia-o sempre o receio de morrer. Veio a Páscoa de 1503. Resolveu então passar uns dias com os pais em Mansfeld. Viajava com um seu condiscípulo através dos bosques verdejantes, respirando o ar balsâmico das árvores naquela manhã ridente. Iam transbordando de alegria, de mocidade, de esperança. Teriam caminhado uma hora quando a espada de Martinho batendo-lhe num pé desembainhou-se e cortou-lhe uma artéria. Segundo o uso, os estudantes cingiam espada. Correu o sangue em abundância, e como não estavam distantes de Erfurt, deixou o companheiro ao cuidado de alguns aldeões e correu a chamar um clínico. Como de costume, implorou Lutero ardentemente o socorro da Virgem. O facultativo fez o que lhe foi possível e o doente voltou à cidade. Pela noite adiante a ferida abriu-se de novo e o sangue jorrou a ponto de fazer
o estudante desmaiar. Pensou que ia morrer e invocou Maria com mais ansiedade. A crise passou. Prosseguindo nos estudos, veio a colher em breve mais um triunfo, recebendo, em 6 de janeiro de 1505, o grau de mestre em Artes (magister artium), que correspondia ao de doutor em Filosofia. Foi um dia de festa e de regozijo para ele e para os seus amigos. Segundo o uso, saíram a recebê-lo com archotes. Satisfazendo os desejos de seu pai, em 20 de maio iniciou os estudos de Direito. Como mestre em Artes cabia-lhe ensinar por dois anos na Faculdade de Artes. Começou a dar preleções públicas sobre a física e a moral de Aristóteles. Assim o diz Melâncton. Boemer assinala o dia 24 de abril como a data inicial de suas preleções. Vários incidentes, porém, iam ocorrendo, os quais influiriam numa próxima e decisiva mudança de vocação. Um deles teria sido aquela enfermidade séria em que recebeu animação do velho sacerdote. O outro veio a ser o corte da artéria que lhe pusera de novo a vida em perigo. O terceiro surgiu quando já iniciava o estudo de Jurisprudência e se fazia professor. Foi a notícia que teve da morte súbita de um seu amigo, assassinado ou morto em duelo. Diz Melâncton não se saber ao certo a causa do triste desenlace. Se tivesse sido com ele o caso, pensou então, qual seria a sorte de sua alma arrebatada de modo tão imprevisto! Vieram as férias de junho daquele ano de 1505. Resolveu ir a Mansfeld a rever o lar paterno e talvez aconselhar-se sobre o verdadeiro curso a seguir. Julga-se, porém, que não teve coragem de desfazer os belos planos e esperanças de seu pai que o antevia mestre de Jurisprudência e lhe arquitetava um vantajoso casamento. A situação de João Lutero era bem diversa agora. Segundo um cronista, o mineiro de Mansfeld tinha obreiros em seus fornos de fundição e ia a caminho de burgomestre. Como não seria aprazível a Lutero a companhia dos seus, embora por uns dias somente! Já Margarida não ia lenhar à floresta como nos dias da infância de Martinho, nem a vida era tão dura como naquele tempo. Era um lar de conforto e de paz.
6. Mudança de vocação A tempestade na floresta — “Santa Ana, valei-me!” — Um novo Francisco de Assis — A porta de um mosteiro — Os dois amigos do século — As portas impenetráveis — Cum sacco per civitatem
Um último incidente influiu-lhe definitivamente na mudança de vocação. Regressava de Mansfeld, de visita ao lar paterno. Já perto de Erfurt, nas proximidades de Stotternheim, ao entrar na floresta, uma tempestade o assaltou. Gemia o vento nos pinheirais. Troncos robustos eram desarraigados do solo. Nuvens negras obscureciam o firmamento. Relâmpagos sulcavam o espaço e o trovão ribombava. Dir-se-ia que o fragor dos elementos interpretava o verbo inflamado do salmista: “A voz do Senhor é poderosa, a voz do Senhor é cheia de majestade. A voz do Senhor quebra os cedros; sim, o Senhor quebra os cedros do Líbano. Ele os faz saltar como um bezerro — ao Líbano e ao Sírion, como novos unicórnios. A voz do Senhor separa as labaredas do fogo” (Sl 29.4-7). Como outrora com os israelitas apavorados diante do Sinai, envolto em fogo — o mesmo horror invade o ânimo do jovem doutor de Erfurt. Um clarão o deslumbra. Estala o raio aos seus pés. Martinho cai prostrado, novo Saulo no caminho de Damasco. Veio-lhe à mente a santa padroeira dos mineiros e brada angustiado: — “Santa Ana, valei-me! Far-me-ei monge, se me for poupada a vida!”. A sorte estava lançada. Julgava achar no claustro a salvação! Neste passo da floresta, ocorrido a 2 de julho, alguns autores colocam a morte de Aleixo, ferido pelo raio. Matésio e Selnecker, contemporâneos, desconhecem o fato e o mesmo faz Melâncton.[11] Entrando em Erfurt, tratou Lutero de pôr em ordem os seus negócios. A história se repete. Francisco de Assis, como Lutero mais tarde, decidia-se por uma vocação religiosa. Em certo dia, depois de intenso conflito espiritual, resolveu despedir-se dos amigos de sua mocidade. Convidou-os para um animado festim, prolongando-se o banquete até altas horas. Mas já o pensamento divagava. A certo trecho, viram-no alheio a tudo. Sacudiram-no, dizendo um dos convivas: “Não vedes que ele sonha em tomar esposa?”. “Sim”, replica o filho de Bernardone, voltando a si, “sonho em tomar esposa,
mais bela, mais rica e mais pura do que podeis imaginar!”. O moço rico de Assis ia lançar mão da vida eterna, desposando-se misticamente com a Pobreza. Ia dar seus bens aos pobres para seguir a Jesus Cristo! Tratou Lutero de desfazer-se de seus livros, indo no número o valioso Corpus Juris, que custara bom preço ao mineiro de Mansfeld, todo vaidoso do seu estudante de Direito, ao qual já tratava com respeito pelo seu título de doutor. Fez então como o Poverello de Assis. Convidou os amigos da universidade para uma ceia animada, à qual não faltou a música em que tanto se deleitava. Cantavam e palestravam ruidosamente quando, em determinado momento, reclamou silêncio e anunciou o propósito firme em que estava. Ficaram todos tomados de assombro. De nada valeram rogos e súplicas. Tempos volvidos, escreveu-lhe, a propósito, Crotus Rubeano, seu amigo e um dos luzeiros da universidade: “A Providência divina descobriu o que devias ser um dia, quando, no regresso do lar paterno, o fogo do céu te fez cair em terra perto de Erfurt, qual outro Saulo e, separando-te de nossa sociedade, introduziu-te na ordem de Agostinho”. Naquela mesma madrugada, quando os monges repousavam e a cidade dormia, pancadas repetidas vibraram à porta do mosteiro. Descerrouse o claustro. Era um mancebo que se despedia do mundo, aspirando à vida eterna. Deixava lá fora o ruído para meditar em silêncio na glória vindoura. Levava consigo tudo quanto possuía — dois amigos do século: o seu Virgílio e o seu Plauto — a epopeia e a comédia. Comentando o incidente, observa D’Aubigné: “Com efeito, houvera nele uma completa epopeia, um belo, grande e sublime poema. Mas de um caráter propenso à alegria, ao gracejo e ao humorismo, entrelaçou-se mais de um rasgo familiar ao fundo grave e magnífico de sua vida” — (D’Aubigné, op. cit., p. 181). O mancebo era o dr. Martinho Lutero. A gravura ilustrativa representa-o cabisbaixo, sobraçando os dois volumes e cruzando o limiar do mosteiro. Pela porta entreaberta vê-se a lua em declínio. O porteiro dá-lhe a destra e recolhe-o. Rangeram os gonzos e as pesadas portas se recolheram. Os estudantes que o acompanharam ficaram confusos. Por fim um deles murmurou: “Morto para o mundo, o sepulcro não poderia ser mais silencioso!”. A reclusão daqueles altos muros tirava-lhes a esperança do convívio.
Foi na madrugada de 17 de julho de 1505 que Lutero se separou do século, dia consagrado no calendário a Santo Aleixo. Atingia ele a maioridade. Passava um pouco dos 21 anos. Era uma vitória para a Ordem, cujos frades deram boa acolhida ao jovem doutor de Erfurt, cujo nome se ia á tornando conhecido. A despeito de tudo, não o pouparam à mais severa disciplina. Tal era o regulamento. Deram-lhe os serviços mais rasteiros como se tivessem por alvo humilhar o doutor. Tinha de ser aguadeiro, porteiro, sacristão e varredor. Cumpria-lhe limpar as celas dos frades. Como diz um biógrafo: “ Loca immunda purgare coactus fuit ”. “Sic mihi, sic tibi”, diziam-lhe os frades. “Faze como nós fazemos”. E quando, terminada a tarefa pensava em dar-se aos livros — quiçá o Plauto e o Virgílio — gritavam-lhe: “Cum sacco per civitatem!”. “Vamos, vamos, não se trata de estudar, mas de mendigar pão, trigo, ovos, peixe, carne e dinheiro, coisas de utilidade para o mosteiro” (D’Aubigné, p. 185). Martinho, resignadamente, punha às costas o alforje ou a sacola e partia a pedir de casa em casa, pelas ruas da cidade, batendo muitas vezes à porta de antigos colegas e pessoas conhecidas que se doíam ao vê-lo assim humilhado. Ele a tudo se sujeitava, sem murmuração, ele que em Magdeburgo e em Eisenach esmolava pelas ruas solicitando panem propter Deum. As censuras de muitos levaram o reitor da universidade a se dirigir ao prior para fazer cessar a humilhação, no que foi atendido. Assim diz a tradição. Percorrendo a via dolorosa, teria porventura, diante de seus olhos, a visão daquele jovem príncipe de Anhalt que, trajando o burel franciscano em Magdeburgo, escaveirado e consumido pelo ascetismo, vergava mendigando ao peso da sacola, quadro que tanto impressionara a Lutero naquele tempo. Ou talvez a acirrada penitência daqueles jovens frades cartuxos da mesma Erfurt que ele vira tantas vezes, moços e já com aparência de velhos.
7. Frei Martinho Destino de uma toga e de um anel — A decepção de um pai — Estima dos conventos — Um frade esmoler — O noviço dá lugar ao frade — O símbolo de uma Bíblia acorrentada
Voltando as costas ao século, desfizera-se Martinho de tudo aquilo que o prendia ao mundo. Refere um seu amigo e cronista que, ao irem os companheiros no dia seguinte ao aposento deserto, viram tudo em ordem. Sobre a mesa a flauta e o alaúde, instrumentos tão queridos de Martinho. Os livros, cuidadosamente separados, estavam endereçados a vários livreiros. A um canto, o vestuário de gala, e mais a toga e o anel de doutor, que deveriam ser enviados ao mineiro de Mansfeld. Outros autores, porém, referem que a toga e o anel os devolveu à universidade, no dia imediato ao da entrada no convento. Comunicou outrossim ao velho pai a resolução inabalável que tomara. Grande veio a ser o abalo experimentado pelo assessor municipal de Mansfeld, que lhe respondeu profundamente consternado. Ele que, em sinal de respeito para com o filho doutor, passara a dirigir-se-lhe por “vossa mercê” — volta a tratá-lo por “tu”. Por algum tempo as relações foram cortadas e somente dois anos mais tarde consentiu em reatá-las. A peste que, naqueles dias, irrompia em determinados lugares, levou-lhe dois dos filhos. Parece que Martinho foi acometido do mal e circulou em Mansfeld a notícia de que o frade de Erfurt também lhe fora arrebatado. Intervieram os amigos rogando-lhe, à vista do falso rumor, que desse agora ao filho permissão para que se fizesse frade. Com o coração partido, consentiu. Mais tarde, estando com Martinho e contando-lhe este a série de eventos que o haviam determinado a refugiar-se no mosteiro, replicou-lhe: “Oxalá não tenhas tomado por sinal do céu o que não era senão uma ilusão do diabo!”. Toda a vida de Lutero foi de profunda experiência religiosa. Segundo observa McGiffert, a religião era para ele um fato real. Sua imaginação povoava-se de anjos e demônios e vivia na constante dependência dos santos, seus advogados e intercessores. A ideia do pecado e a perspectiva da punição divina eram coisas que lhe preocupavam a mente desde a infância. A fama dos conventos não era a mesma em toda parte. Se Erasmo e os humanistas metiam os frades a ridículo, outros havia que faziam da vida monástica o mais alto conceito. Entre os que criticavam o viver dos frades era
corrente o provérbio: “Aquilo que o demônio se envergonha de fazer, praticao o frade sem pejo algum”. A despeito das críticas do humanismo, nada menos de oito mosteiros se contavam na cidade universitária. O convento dos agostinhos, onde Lutero se refugiou, gozava de reputação pelos estudos teológicos e pelos serviços que prestava no exercício da caridade. Entrando no convento, Martinho abrira mão de sua liberdade. A disciplina era rígida. Tudo lhe era rigorosamente prescrito — o andar, o vestir, o falar, até o modo de orar a Deus. Nada era deixado à escolha individual. Em cada dia sete horas eram designadas para a oração. Eram as horas canônicas ou simplesmente “horas”, em cada uma das quais os noviços tinham de rezar 25 Padre-nossos com a Ave-Maria. Tinha de confessar-se uma vez por semana ao menos. De uma feita, andava um frade, com a véstia negra e o capuz dos agostinhos, mendigando pelas ruas de Erfurt, levando às costas pesada sacola. O solo estava branco de neve e o pedinte trazia os pés descalços. Batendo a uma porta, reconheceram-no. “Martinho, não me conheces?”. “Estou ao serviço do convento”, respondeu. “Não permitem as regras nenhuma conversação ou demora”. “Deus e os santos te ajudem, irmão Martinho”, replicou o amigo desolado. Deu o noviço meia-volta, fez o sinal da cruz, inclinou-se outra vez profundamente no momento em que uma criada lhe dava uns restos de carne. Disse então humildemente: “Louvado seja Deus por todos os dons que nos depara”. Findou o ano do noviciado e frei Martinho foi devidamente recebido com o cerimonial do estilo. Diante da comunidade reunida com o prior à frente, e revestido do hábito monacal, proferiu os votos solenes: “Eu, o irmão Martinho, faço profissão e prometo obediência ao Deus Todo-Poderoso, à Santa Virgem Maria, ao Santo Padre Agostinho e a ti, prior do convento, que representa o Geral da Ordem: prometo viver até a morte em pobreza e castidade, segundo a regra de Santo Agostinho”. “Hoje te revestiste do homem novo”, disse o prior. Prostrado no chão em forma de cruz, foi aspergido com água benta. Colocaram-lhe depois na mão uma vela acesa e o prior entrou a orar. Entoaram o Veni Sancte Spiritus e o novo monge foi levado ao coro, onde os confrades lhe deram o ósculo da paz. Deveria ter sido isso em setembro de 1506.
Teria daí em diante uma cela própria com leito, mesa e cadeira, prerrogativas estranhas ao noviço. Dois anos seguiram-se, votados aos exercícios religiosos e aos estudos. Teve o privilégio de ter a Bíblia ao seu dispor. À sua leitura se dedicou com mais afinco do que no tempo em que travara conhecimento com o livro divino na biblioteca da universidade. Aquela Bíblia, acorrentada segundo a tradição, era bem um símbolo da época. Era o livro da Igreja, à qual somente cumpria a interpretação. O vulgo não lhe tinha acesso. Ao monge de Wittenberg estava confiada a tarefa de erguê-lo qual farol à face dos povos. Era o livre exame que se aproximava, iluminado pelo clarão da liberdade espiritual.
8. No convento A ordem dos agostinhos — Roma em miniatura — Ascetismo de Lutero — Desfalecido pelos jejuns — Estudos teológicos — Mestres preferidos — “Si lyra non lyrasset…”
A ordem dos monges agostinhos era assaz poderosa. Fundada na Itália no século XIII, arregimentou-se definitivamente no pontificado de Alexandre IV, em 1256. No alvorecer do século XVI enfileirava uma centena de recolhimentos, somente na Alemanha. Como se dera em outras ordens religiosas, a de Agostinho começou a degenerar, a ponto de André Prolès, já mencionado, intentar um movimento de reforma, na Saxônia, em oposição ao vigário-geral daquela província. Resultou daí uma cisão em que se alistaram cerca de trinta mosteiros na Saxônia e fora dela. Prolès veio a ser o vigário-geral do grupo, que professava uma disciplina mais restrita. Eram os eremitas de Santo Agostinho, aos quais se filiava o convento onde Lutero deu entrada. Eram conhecidos como Observantes por oposição aos Conventuais, de costumes mais frouxos, os quais constituíam a maioria. Em 1503 João Staupitz sucedeu a André Prolès, na qualidade de vigário-geral, e começou a fazer uma revisão nos regulamentos, resultando daí uma regra mais austera, à qual se teve de submeter Lutero dois anos mais tarde. Erfurt era uma cidade religiosa. Entre igrejas, conventos, hospitais e outras obras no gênero, contavam-se para mais de cem edifícios. Era denominada a “pequena Roma”. Estava sob a jurisdição de um bispo e enfeudada a dois príncipes eleitores: o arcebispo de Mogúncia e o eleitor de Saxônia. Sua posição geográfica e política colocava-a numa situação média entre o norte e o sul da Alemanha. O convento de Erfurt era bastante conceituado. Lutero havia feito boa escolha. Durante o noviciado exercitou-se em todas as regras daquela austera disciplina, não só nos serviços que prestava, como na observância religiosa. Jejuava muitas vezes e confessava-se frequentemente. Alimentava-se quase sempre de pão e arenque e não há razão, como alguns o fazem, de qualificá-lo de gastrônomo e amigo dos prazeres da mesa. Observava metodicamente as suas “horas”. Essa inclinação religiosa de Martinho era a sua norma desde a infância, e fora a contragosto que se dobrava à exigência paterna,
frequentando durante algumas semanas o curso de Direito. Sua vida ascética, no convento, era muitas vezes criticada pelos próprios companheiros, que viam naquilo um zelo demasiado. Escrevendo mais tarde ao duque Jorge de Saxônia, ele mesmo deu atestado do seu viver austero: “Eu fui verdadeiramente um frade piedoso e segui as regras de minha ordem com mais severidade do que o posso dizer. Se jamais houve frade que entrasse no céu por seu espírito fradesco, eu de certo seria um deles. E todos os religiosos que me hão conhecido podem dar testemunho disto. Se tais práticas houvessem durado mais tempo, eu me teria consumido até a morte, à força de vigílias, de orações, de leituras e outros trabalhos”. Este depoimento de Lutero vem relatado em diversos autores. Seckendorf, entre outros, narra um episódio que bem documenta o ascetismo de Martinho. Em certo dia trancou-se em sua cela, consagrando-se a práticas devocionais. Esqueceu-se de comer e de beber. Lucas Edemberger, um dos seus companheiros, inquietou-se deveras com aquela reclusão. Levando consigo alguns dos frades moços do coro, bateu Lucas à porta da cela inutilmente. Arrombando-a, viram frei Martinho estendido no soalho, desfalecido pela rigidez da penitência. Aqueles moços começaram a cantar e a tocar em seus instrumentos até que o frade despertou, levado pelo seu gosto musical. Seckendorf dá o caso como tendo ocorrido mais tarde em Wittenberg, mas a tradição o dá como sendo ainda em Erfurt. É possível, diz um cronista, procurando harmonizar os fatos, que o evento se houvesse reproduzido mais de uma vez. Livre do noviciado, dedicou-se Martinho ao estudo de teologia, tendo em vista a ordenação sacerdotal. Dava-se ao estudo da Bíblia, dos santos padres e dos filósofos. Parece também que se iniciou no estudo das línguas originais do livro divino — o grego e o hebraico — sendo seu mestre João Lange, um dos irmãos do mosteiro e seu amigo particular. Afligia-se acima de tudo com o problema da salvação de sua alma, entregando-se a longas vigílias e orações. Entre os autores a que frei Martinho foi atraído, acha-se Gabriel Biel, nominalista, classificado como o último dos escolásticos, e professor em Tübingen. Foi mestre de Staupitz. Era um ardente apologista do sacrifício da missa, exaltando o poder sacerdotal. Não era coisa sem importância fazer Cristo descer aos altares, renovando o sacrifício do Calvário. Isto fez que Lutero o admirasse e se tornasse naquele tempo um desvelado apreciador da
doutrina. Se, porém, Biel exaltava a missa e a hierarquia papal, era do número dos que colocavam o Concílio acima dos papas e clamavam contra os abusos e a corrupção da Igreja. Ensinava também que o poder do sacerdote era apenas declarativo, não tendo faculdade de absolver o pecador. A Deus é que isso cumpria. Outro autor em que se deleitava era o franciscano inglês Guilherme de Occam, o doctor invencibilis, também nominalista, que em Paris, ensinara a soberania das Escrituras em matéria de fé. Tomara o partido de Felipe, o Belo, contra Bonifácio VIII e era do número daqueles que consideravam o papa subordinado aos Concílios. Lutero punha-o acima de Aquino e de Scotus. Era para ele o seu querido mestre. Biel fora também discípulo de Occam. A teologia do franciscano inglês muito influiu na vida do reformador. Agostinho era para ele outro grande mestre e muitas doutrinas que veio a ensinar tinham o seu gérmen no piedoso bispo africano. Era apreciador de Pedro D’Ailly, outro discípulo de Occam. Tornou-se familiar de Gerson e de São Bernardo. Era outrossim admirador de Aquino, como Calvino o veio a ser depois. Scotus era por ele apreciado pela sua dialética. Exaltava igualmente Aristóteles, mas discordava de Aquino e de outros doutores escolásticos que aplicavam o método dialético do grande pensador grego na interpretação das Escrituras. Tornou-se depois entusiasta de Tauler e dos místicos que ensinavam a comunhão direta com Deus. Não desprezava Boaventura, mas tinha em particular agrado os Comentários de Nicolau de Lira, o doctor planus et perspicuus. Filiava-se este como Boaventura e Occam à ordem dos franciscanos e era profundo conhecedor do hebraico, a ponto de pensarem alguns que seria de origem judaica. Francês de nascimento, Lira nos seus comentários — Postilae perpetuae in Vetus et Novum Testamentum —, como iniciado que era nas línguas originais e mestre em exegese bíblica, não se prendeu demasiadamente à Vulgata e aos preconceitos e fantasias da época. Lutero recebeu dele muitas luzes na interpretação das Escrituras. Pflug, depois bispo de Naumburgo, costumava dizer: “Si lyra non lyrasset, Lutherus non Saltasset ” [“Se Lira não houvesse tangido a lira, Lutero não teria dançado”].
9. A unção sacerdotal Conflitos espirituais — A experiência de Staupitz — O verdadeiro caminho dos céus — “Creio na remissão dos pecados” — As primeiras e as últimas ordens sacerdotais — A primeira missa — A presença de João Lutero — Escrúpulos de consciência — Os 21 santos da devoção de Martinho
Quase dois anos decorreram desde a entrada de Martinho no convento, tempo este consagrado ao estudo e às práticas religiosas. Foram muitos os conflitos espirituais de Lutero neste intervalo, os quais se prolongaram muitas vezes depois. O vício reinava na obscuridade dos claustros, mas a verdadeira piedade brilhava ao seu lado. Muitas almas havia que se deleitavam na comunhão com Deus, tendo recebido a iluminação do alto. Gemia Lutero procurando obter o perdão de seus pecados e a purificação de suas culpas, voltando-se a todo o gênero de penitências. Os velhos monges mostravam-lhe simpatia, interessando-se pela sua sorte, e davam-lhe conselhos espirituais. A notícia chegou aos ouvidos de Staupitz, o geral da ordem, que começou desde logo a olhar também com atenção para o ovem religioso. Lutero considerava-o como pai espiritual: “ Reverendus in Christo pater”. Em carta ao mesmo assinava-se: “ Filius tuus Martinus Lutherus”. O geral interrogava-o sobre a natureza daqueles conflitos e tentações. Contava-lhe as suas experiências e encaminhava-o aos braços do Redentor: “Olha para as chagas de Jesus Cristo e para o sangue que derramou por ti. É aí que a graça de Deus te aparecerá. Em lugar de te martirizares por tuas faltas, lança-te nos braços do Salvador. Confia nele, na justiça de sua vida, na expiação de sua morte. Não retrocedas. Deus não está irritado contra ti, és tu que estás irritado contra o Senhor. Escuta o Filho de Deus. Ele se fez homem para dar-te a segurança de seu divino favor. Ele te diz: ‘És minha ovelha, ouves minha voz, ninguém arrancar-te-á de minha mão’”. Praticando sobre o arrependimento, dizia-lhe o experiente Staupitz: “Não há arrependimento verdadeiro senão o que começa pelo amor de Deus e da justiça. Aquilo que muitos imaginam ser o fim e o complemento do arrependimento não é outra coisa senão o seu começo. Para que enriqueças no amor ao bem, é preciso que primeiro cresças no amor a Deus. Se queres
converter-te, não te entregues a todas estas macerações e a todos estes martírios. Ama a quem primeiro te amou”. Ensinava-lhe que o arrependimento não consistia no cumprimento de penitências, mas na mudança do coração e na contemplação do sacrifício de Cristo. Os conselhos do geral eram-lhe um bálsamo para a alma. Mas às vezes recaía em abatimento. “Meus pecados, meus pecados, meus pecados!”, exclamava ele em certa ocasião, angustiado. Foi a seguinte a resposta de Staupitz: “Acaso quererias ser pecador somente em figura e ter um Salvador somente em imagem? Sabes que Jesus Cristo é Salvador, mesmo daqueles que são indubitavelmente os maiores pecadores e dignos de toda a condenação, que têm blasfemado, cometido adultério e assassinado. Quando Deus abandonou seu Filho por nós, não foi por pouca coisa” (D’Aubigné, op. cit., vol. I, p. 198ss.). Staupitz aconselhou-o a aprender a teologia nas escolas. Fez-lhe mesmo presente de um exemplar da Bíblia, o que lhe proporcionou a maior satisfação. De uma feita caiu gravemente enfermo, no segundo ano de sua residência no convento. Um velho monge visitou-o na cela e, qual Staupitz, encheu-o de consolação. Recitou-lhe o artigo do Credo: “Creio na remissão dos pecados”. E o experiente frade ensinou-lhe que não era bastante crer que os pecados são perdoados a Davi ou a Paulo — mas a cada um individualmente. Citando São Bernardo, disse ainda o monge: “O testemunho que o Espírito Santo deposita em teu coração é este: ‘Teus pecados te são perdoados!’”. Aos poucos a luz se foi desenvolvendo e a paz inundou-lhe o coração. Vejamos, em resumo, os passos da vida religiosa de Lutero, segundo os dados mais plausíveis. Em 17 de julho de 1505 deu entrada no convento. Depois de dois meses de observação foi recebido em setembro como noviço. Um ano depois, no começo de setembro de 1506, foi admitido a fazer a profissão religiosa, proferindo os votos monásticos. Provavelmente em 19 do mesmo mês e ano foi ordenado subdiácono. A 19 de dezembro recebeu as ordens de diácono. A 3 de abril de 1507 foi consagrado pela unção sacerdotal. Estas datas são estabelecidas por Boemer, no seu Luther (p. 353), baseado em várias autoridades. Alguns confundem a data da ordenação com a da primeira missa que somente um mês depois foi por ele celebrada. Tal cerimônia era realizada
com aparato. Depois se procedia a uma festa íntima da qual participavam os amigos do novo sacerdote, que traziam ofertas para os cofres da Igreja. Na festividade tinha o recém-ordenado o privilégio de dançar com sua própria mãe, dizem as tradições locais. Se, porém, era já falecida, a missa do novo celebrante tinha o poder de redimi-la do purgatório. Frei Martinho convidou os seus amigos. A João Braun, seu velho amigo de Eisenach e piedoso sacerdote, escreveu solicitando o comparecimento. É a mais antiga carta que dele se conhece. Escreveu também ao pai convidando-o e pedindo-lhe que designasse ele mesmo o dia da cerimônia, ao que aquiesceu, marcando o domingo, 2 de maio daquele ano de 1507. No convite não esqueceu do seu velho parente Conrad Huter, sacristão de São Nicolau, nem dos seus amigos da Fundação Schalbe. Veio o conselheiro de Mansfeld com uma escolta de 20 cavalheiros, em grande aparato. Trouxe-lhe 20 florins de presente e algumas ofertas de valor para o convento, querendo assim honrar o filho. Quando soou a hora do banquete, João Lutero assentou-se a par do filho no mosteiro. Este solicitou então dele o perdão da desobediência e a aprovação da resolução que adotara. O mineiro mostrou-se até certo ponto inflexível. “Querido pai”, disse-lhe Martinho, “por que tanto te opuseste à minha resolução de professar e tanto te desgostaste a ponto de não te haveres ainda conformado com o passo que dei? É este um gênero de vida tranquilo e santo!”. Os frades tomaram o lado do moço, tentando a defesa da posição assumida. Mas o velho, com a franqueza rude que o caracterizava, retorquiulhes a todos: “Não ouvistes nunca que os filhos devem obedecer aos pais? E vós, homens doutos, não haveis nunca lido na Santa Escritura: ‘Honrarás a teu pai e a tua mãe’? Praza a Deus que a tranquilidade e a paz de que falais não venham a ser enganosas maravilhas do Príncipe do Mal!”. Embora transigisse pela força das circunstâncias, não poderia perdoar a desobediência do filho, quando lhe contrariou os ideais. Aquele voto assumido na floresta era por ele havido como temerário e vários autores, mesmo católicos, concordam no ponto. Lutero mais tarde, escrevendo sobre os votos monásticos, chegou à mesma conclusão. Este tratado, escrito em Wartburgo, foi dedicado ao seu velho progenitor. Lutero, ao celebrar pela primeira vez a missa, mostrou-se excessivamente impressionado. Parecia-lhe que ia morrer e com dificuldade
conservou-se no seu posto. Tinha na mente o tratado de Biel sobre o valor daquele ato religioso. Era-lhe conferido o poder de oferecer um sacrifício pelos vivos e pelos mortos. Considerava-se sobremodo indigno de oficiar um mistério tão augusto. Quando o bispo sufragâneo de Erfurt, oficiando na sua consagração, dera-lhe o cálice, dizendo-lhe: “ Accipe potestatem sacrificandi ro vivis et pro mortuis”, ficara imensamente maravilhado por ter em suas mãos o poder de realizar na terra a mesma obra do Filho de Deus. O escrúpulo de Lutero, não só na celebração da primeira missa como em outras subsequentes, escrúpulo produzido pelo reconhecimento da sua indignidade, levou seus adversários a descobrirem nisso algo de anormal, não querendo reconhecer no celebrante uma consciência demasiado sensível. Há um episódio no gênero, referido por Cochlaeus, escritor que não simpatizava com a Reforma. Achava-se Lutero no coro em ocasião de missa. Lia-se no Evangelho a história do mudo do qual Jesus expelira o demônio. Absorto e extremamente nervoso, exclama então Lutero: “Não sou eu, não sou eu!”. A solenidade foi quase interrompida. Explicando o caso, diz um historiador que Lutero, num momento de dúvida, talvez, se julgasse indigno de entrar no número dos beneficiados por Jesus. Mas Cochlaeus, e com ele outros, tiraram conclusão diferente. Acharam que tinha comércio com o Maligno. Outro caso, ainda. Em Eisleben celebrava-se a procissão de Corpus. Staupitz conduzia o sacramento e Lutero acompanhava-o revestido de hábitos sacerdotais. A ideia de que o Salvador estava ali em pessoa agitou-o a tal ponto que quase desfaleceu. A sensibilidade de consciência de frei Martinho manifestou-se mais tarde de modo interessante, mostrando o sentimento que professava, de extrema humildade. Já em Wittenberg e professor da universidade, Staupitz impeliu-o ao púlpito. Só com muita dificuldade aquiesceu. Entendia que não era coisa de pouca monta falar aos homens em lugar de Deus, em local tão sagrado como o púlpito. Era a noção clara de sua responsabilidade. Continuava no mesmo pé de devoção. Havia escolhido 21 santos do calendário aos quais dedicava veneração particular. Cada dia da semana invocava a três deles desde que recebera a unção para o sacerdócio.
10. Wittenberg Os dois ramos saxônios — Frederico e Jorge e suas atitudes na Reforma — Fatores no desenvolvimento da cidade — Fundação da universidade — Professores famosos — Curiosidades de Wittenberg — Escolha de Lutero para o professorado
Penetremos agora nas portas de Wittenberg que foi o quartel general de Lutero e o berço consagrado da Reforma. Demorava nos limites da casa de Saxônia, que, desde 1485, estava dividida entre dois ramos — o ernestino e o albertino, assim denominados dos príncipes Ernesto e Alberto da Saxônia. O ramo ernestino, então representado pelo eleitor Frederico III, constituía a Saxônia eleitoral. A vergôntea Albertina, a mais nova, tinha à frente o duque Jorge, o Barbudo. Era a Saxônia ducal. Os dois primos divergiram no agitado movimento religioso do século XVI. Contra a expectativa, Frederico, que fizera a peregrinação da Terra Santa e se tornara zeloso colecionador de relíquias, patrocinou a causa luterana. Jorge, que, pelo lado materno, era neto de Jorge de Podiebrad, rei da Boêmia e partidário dos hussitas, constituiu-se em campeão de Roma contra Lutero. Ao alvorecer daquele século, Wittenberg, que se encontrava nos domínios de Frederico, partilhava com Torgau a dignidade de residência eleitoral. Edificada à margem direita do Elba, numa planície estéril e arenosa, embora viesse do século XII, era insignificante no começo do século XVI, de cerca de três mil habitantes. Deveu então seu rápido crescimento a dois fatores importantes: à fundação da universidade e por se tornar a pátria da Reforma ou berço do luteranismo, como depois aconteceu com Genebra — o berço do calvinismo. No dizer de Schaff, o próprio Lutero afirmava achar-se Wittenberg no limite extremo da civilização, a poucos passos do barbarismo, sendo os seus habitantes pobres de cultura, de cortesia e de bondade. Melâncton, que para ali viera do fértil Palatinado, queixava-se da escassez de recursos para a alimentação diária e Micônios descreve as casas da cidade como desgraciosas e de mesquinha aparência. Para a boa sorte da terra aconteceu revolver Frederico em seu cérebro a ideia da fundação de uma universidade nos seus domínios eleitorais. Mais favorecida na partilha fora a Saxônia ducal, que tinha em Dresden a sua sede e em Leipzig a sua universidade.
Expondo o caso aos seus íntimos, riu-se Frederico quando Martin Pollich de Mellrichstadt propôs-lhe Wittenberg como sede da instituição. Mas a sugestão foi aceita. A cidade era uma das residências eleitorais. Tinha em seu seio a Igreja do castelo ou catedral de Todos os Santos, com uma boa dotação, e um convento agostinho que podia concorrer com elementos valiosos para o corpo docente. A universidade abriu as suas portas a 18 de outubro de 1502. O imperador Maximiliano dera-lhe a carta de fundação. Frederico escolheu para reitor o sábio Pollich, que tinha o cognome de Lux Mundi Mundi pela sua extensa cultura em Medicina, Direito e Filosofia. Havia sido seu companheiro na peregrinação a Jerusalém, e era seu médico. Para deão foi escolhido o monge Staupitz, conselheiro e íntimo do eleitor, o qual fora primeiro a Roma, no intuito de conseguir os privilégios para a nova fundação. No ano seguinte veio a ser distinguido com a honra de vicariato da ordem dos agostinhos, a que pertencia. Fora ele o agente principal na instituição da universidade, que tinha em Santo Agostinho o seu padroeiro. Wittenberg tinha como rivais próximas as universidades de Erfurt e de Leipzig, mas não tardou em obumbrá-las com a sua nova teologia. Tinha como professores membros da ordem do seu padroeiro, principalmente vindos de Erfurt e de Tübingen. Sua fama cresceu. Milhares de estudantes afluíram de todos os pontos da Europa e a cidade também lucrou e se desenvolveu extraordinariamente. Melâncton chegou a ouvir no refeitório 11 línguas diversas, que atestavam o cosmopolitismo da universidade. Outros professores foram sendo incorporados e entre eles se notaram personagens que se salientaram no movimento reformador como Lutero e Melâncton, Karlstadt, Dídimo, Justo Jonas, Bugenhagen, Major, Cruciger, Flacius e outros. Wittenberg tornou-se depois o centro de lutas teológicas contra o filipismo, o sincretismo, o pietismo e outros partidos. Cidade forte, foi assediada e tomada pelas tropas imperiais em 1547, em guerra contra a Liga de Esmalcalde. Os austríacos bombardearam-na e destruíram-na em parte, em 1760, havendo sido atacada quatro anos antes pelos prussianos, em 1756. Não a pouparam os franceses em 1806, nas guerras napoleônicas. Sua universidade foi suprimida em 1817 e agregada a de Hale. Entre as coisas curiosas do berço tradicional da Reforma apontam-se as
residências de Melâncton, de Lutero e do pintor Lucas Cranach. Na Igreja do Castelo mostram-se as afamadas portas em que foram afixadas as 95 teses contra as indulgências. Os franceses incendiaram-nas mas foram substituídas por outras de bronze, que reproduzem, em caracteres latinos, as célebres teses, doação de Frederico Guilherme IV à cidade histórica, em 1858. No referido tempo veem-se os túmulos dos eleitores Frederico, o Sábio, e João, o Constante, bem como os dos reformadores Lutero e Melâncton. Naquelas abóbadas trovejou então o verbo ardente de Lutero, de Bugenhagen, de Jonas e de tantos outros. As estátuas dos dois principais reformadores são outras tantas curiosidades que se apontam aos forasteiros, a par de muitas coisas interessantes. Em outubro de 1508, contando apenas 25 anos, foi convidado frei Martinho para o honroso cargo de professor na universidade pelo eleitor Frederico, o Sábio, que a isso fora aconselhado por Staupitz. O geral dos agostinhos dele dava o melhor testemunho.
11. A preparação de um teólogo Chamada súbita para o professorado — Na regência de Aristóteles — Bacharel em Teologia — De novo em Erfurt — Sentenciário — Tempo de residência em Wittenberg — Bacharel e doutor sem recursos para as despesas do grau — Doutor em Teologia — A ata do doutoramento
Da ordenação de Lutero à chamada para Wittenberg, no espaço de pouco mais de um ano, continuara ele em seus estudos que se completaram mais tarde em Wittenberg. Não só estudava em Erfurt, como se consagrava aos deveres do sacerdócio, celebrando diariamente o sacrifício da missa. Seus estudos bíblicos iam também em progresso. Natin, discípulo de Occam e de Biel, era o seu principal professor. Em outubro de 1508 veio a chamada para a nova cidade universitária. Frederico, por sugestão de Staupitz, escolhera-o para o professorado. A carta do eleitor exigia sem demora a presença de frei Martinho. As regras de obediência da ordem também apertavam. Segundo informa Audin, seu biógrafo católico, (vol. I, p. 67), mal teve tempo de despedir-se dos confrades. Nem pôde dar o adeus a seus mestres: “Sua bagagem era pequena. Uma roupa de burel, duas bíblias — uma grega e outra latina — e um pouco de roupa ‘branca’”. Audin acrescenta que, ao deixar Erfurt, molhava o pranto as faces do jovem religioso: “Lia talvez no futuro, quiçá previa a onda de lutas e amarguras, mas não lhe cumpria desobedecer”. Em Wittenberg, como agostinho que era, foi residir no convento de sua ordem. Seus conflitos espirituais começados em Erfurt continuaram ali. Staupitz não se afastava do seu posto de conselheiro. A pouco e pouco se ia fortalecendo na doutrina da justificação pela fé. A cadeira que foi reger obedecia ao programa escolástico. Era a filosofia de Aristóteles. Informam autores que se tratava de dialética e física; dizem outros que de ética simplesmente. Ao mesmo tempo prosseguia nos estudos teológicos para habilitar-se ao grau de bacharel em Teologia. Era-lhe assaz fastidioso o velho sistema escolástico em vigor. Maior prazer experimentaria no ensino da teologia para o qual se preparava. Escrevendo a seu amigo Braun, de Eisenach, dizia: “Estou bem, pela graça de Deus, a não ser que tenho de estudar filosofia com todas as minhas
forças. Desde minha chegada a Wittenberg tenho desejado vivamente trocar esta matéria pela teologia, mas falo daquela teologia que busca o fruto da noz, a polpa do trigo, o tutano do osso”. Nas figuras empregadas, a alusão era ao velho sistema de teologia em voga. Ele a preferia originada na fonte divina — as Escrituras. Com ardor cuidou de instruir-se nas línguas originais — grego e hebraico — a fim de melhor entender o livro de Deus. No ano seguinte, 1509, a 9 de março, obtinha o grau suspirado. Era agora bacharel em Teologia — baccalaureus biblicus — e poderia dar preleções sobre as Escrituras. Staupitz era seu colega, ocupando a cadeira de exegese bíblica. Continuando Lutero a dar preleções sobre Aristóteles, tinha agora a seu cargo também prelecionar sobre a porção da Escritura que lhe fosse designada. Ao bacharelado seguia-se o estudo para a obtenção do grau de sentenciário, que o habilitaria a expor as Sentenças do autorizado Pedro Lombardo, o Magister Sententiarum. Segundo as regras da universidade, o candidato a um curso bíblico — como era a aspiração de Lutero — deveria antes dedicar três semestres a preleções sobre o referido livro de Sentenças. É curioso notar que não pôde frei Martinho contribuir com o exigido para a aquisição do grau de bacharel. Nos registros anotaram o seguinte: “ Adhuc non satisfecit facultati”. Lutero mais tarde explicou à margem: “ Nec faciet, quia tunc pauper et sub obedientia nihil habuit ”. Ele havia jurado o voto de pobreza a que a ordem o obrigava e nada percebia pelo ensino universitário. No outono daquele ano de 1509 fez os exames para sentenciário e ia dar a primeira preleção introdutória ao primeiro livro de Sentenças quando o requisitaram para a universidade de Erfurt. Grisar, escritor católico, em seu livro sobre Martinho Lutero, refere que o fato de não haver ele pronunciado a lição inaugural, muito embora houvesse recebido em Wittenberg o grau de sentenciário, veio a prejudicá-lo perante os teólogos de Erfurt, que afinal o admitiram a explicar Pedro Lombardo. [12] Ainda se conserva o exemplar das Sentenças de que se serviu Lutero para as suas lições, cheio de notas marginais. As notas tomadas por ele, naquela estadia em Erfurt, implicam vasta leitura. Cita Occam, d’Ailly, Biel, Bernardo, Agostinho, Scotus, Crisóstomo, Jerônimo, Ambrósio, Hilário, além da Bíblia. A primeira residência em Wittenberg foi de pequena duração. Em Erfurt ficou os três semestres exigidos, segundo alguns autores. No seu quartel-
general de Wittenberg, residiu até poucos dias antes de sua morte em Eisleben, em fevereiro de 1546. Naquele ano de 1509, em que Lutero se qualificava como teólogo, e se habilitava para explicar as Escrituras, nascia em Noyon, França, um menino predestinado. Era João Calvino, o reformador da Suíça francesa. Os vultos mais notáveis da Reforma constituíam um grupo de cinco hábeis teólogos: Lutero e Melâncton, na Alemanha, Zuínglio e Calvino, na Suíça, e John Knox, na Escócia. Residia agora de novo em Wittenberg, onde se iria tornar distinto como professor e pregador. Para este último encargo cumpria-lhe doutorar-se em teologia, o que se realizou no outono de 1512, recebendo em 18 de outubro o grau de licenciado e no dia 19 o de doutor. Tanto Staupitz como Frederico o constrangeram a apressar-se a receber o grau. Lutero recusou a princípio, alegando a sua incapacidade, fraqueza física e indignidade. Staupitz insistiu: “Só o Espírito Santo pode criar um doutor em teologia”, exclamou o frade cada vez mais amedrontado. “Fazei o que o convento vos pede”, replicou o vigário-geral, “e o que eu mesmo, vosso vigário, vos mando; pois que haveis prometido obedecer-nos”. Assim refere D’Aubigné (Op. cit., p. 230-1). Outra objeção opôs Lutero. Não tinha recursos pecuniários para as despesas do grau, como se dera já no seu bacharelado. A isso tinha o vigário a promessa do eleitor, que se comprometia a enviar os 50 florins estabelecidos. Lutero recebeu solenemente as insígnias do doutorado das mãos do decano da faculdade de teologia, André Bodenstein de Karlstaldt, que era também cônego e arcediago da Catedral de Todos os Santos. Ao impulsivo arcediago teria ele mais tarde como companheiro na obra da Reforma. Muito trabalho e muitas amarguras lhe teriam de sobrevir por causa dele. [13]
12. Missão diplomática Dificuldades internas entre os agostinhos — Embaixada à cidade de Hale — Recurso ao geral — A caminho de Roma — Itinerário provável — Impressões de um forasteiro — Esperanças que se vão desvanecendo — Um convento sibarita — Enfermidade grave
Retrogrademos alguns passos depois de termos assistido ao doutoramento de Lutero em 1512. Acompanhêmo-lo na missão a Roma, originada de uma divergência entre sete conventos de sua Ordem e o vigário-geral da mesma. O convento de Erfurt para onde Lutero, na sua qualidade de sentenciário, fora dar lições de teologia, era do número daqueles que dissentiam de Staupitz. Lutero e Natin, seu antigo mestre de teologia, foram enviados, em outubro de 1510, com um memorial ao arcebispo de Magdeburgo, por intermédio de Adolfo de Anhalt, preboste da Catedral em Hale. Staupitz queria unir a secção de Observância à secção Conventual da Ordem, na Saxônia e na Turíngia. Erfurt não consentia nisso. A missão de que Lutero havia sido investido ao lado de Natin punha-o em divergência com o seu protetor. Erfurt não queria saber da associação com os Conventuais. A deputação fracassou em Hale. O convento de Erfurt achou prudente enviar uma representação ao geral da Ordem em Roma, sendo Lutero um dos escolhidos para isso por sugestão do próprio Staupitz. As suas aptidões naturais qualificavam-no. Sua vivacidade, facilidade de palavra e talento na argumentação, tudo o recomendava para embaixada de tal natureza. Há divergências na data da partida de Erfurt. Uns dão o outono de 1510, outros o de 1511. Parece mais certa a data de 1510, em outubro. Segundo as regras da Ordem, não deveria viajar só. Como os discípulos de Cristo outrora, teriam os frades de sair de dois em dois. Deramlhe, pois, um companheiro, na pessoa de João de Mecheln. Iam pela estrada, um após o outro, rezando as suas “horas”. De bordão e sacola ao ombro, levavam o suficiente para o primeiro dia. Para o sustento dos dias subsequentes deveriam esmolar quando não estivessem de pousada em algum convento. Refere Audin (p. 53) que levava Lutero consigo seis ducados para os ciceroni, que lhe teriam de mostrar os monumentos da Cidade Eterna. Mecheln era o chefe da delegação.
Não se sabe ao certo do itinerário tomado. De alguns pontos há informações seguras. Sobre outros tiram conclusões os biógrafos e historiadores. Um mundo novo se descortinava aos olhos de Lutero. Ele, que jamais saíra da Alemanha, teria de maravilhar-se ante os belos panoramas vistos dos Alpes e dos Apeninos — alcandoradas montanhas e vales pitorescos, lagos tranquilos e torrentes murmurejantes, cidades sem conta de tradições históricas, conventos e igrejas seculares, povoados de relíquias sacratíssimas aos espíritos devotos. Intentava adquirir muita experiência religiosa. Católico sincero, religioso de convicção, revestido da crença profunda dos alemães, seu interesse repousava mais nas coisas da religião do que nas perspectivas da geografia. Foi e voltou católico, com a mente, porém, melhor esclarecida e despovoada de ilusões. Mais tarde, quando rompeu com a disciplina de Roma, veio a considerar-se mais habilitado a combatê-la com a proveitosa experiência que havia adquirido. Então deu seu testemunho do que presenciara naqueles dias: “Não trocaria a minha viagem a Roma por mil florins. Teria receio de julgar erroneamente o papa. Agora só refiro aquilo de que fui testemunha ocular”. Quanto à alegria de Lutero ao partir, Audin assim se expressa, citando Niemeyer: “Como seu coração pulsava de júbilo ante a ideia de ver a face do papa, que lhe parecia a encarnação viva da Palavra de Deus, o resplendor de Cristo e dos apóstolos! E que dizer de Roma, a terra iluminada pelos raios do sol das almas e que não poderia deixar de ser um paraíso celeste!”. Com efeito, para um monge piedoso, a maior ventura do mundo seria transpor os umbrais de Roma dos apóstolos e dos santos, tão suspirada pelos peregrinos de todos os tempos do cristianismo! Atravessou a Baviera e notou mais gentileza e hospitalidade por parte dos habitantes do sul da Alemanha do que nos rudes saxônios, seus conterrâneos. Na Suíça admirou a multidão do gado, bem como as boas estradas e a indústria e frugalidade do povo. Passou além dos Alpes e desceu às planícies da Lombardia. Viu Milão de Pávia. Subiu aos Apeninos e penetrou na Toscana. Tomou a via popular. Aos seus olhos se apresentaram o lago Bolsena e Viterbo. Ei-lo saudando Roma, no Lácio de tão gloriosas tradições. A movimentada península encheu-o de sensações. Isso não aconteceria na quieta Germânia. As deliciosas uvas e os saborosos pêssegos,
as vermelhas romãs e outros apetitosos frutos, a fragrância dos limões e a multidão das oliveiras não saíram jamais de sua memória. As margens encantadoras do Pó prenderam sua atenção — “um rio cheio de poesia entre os Alpes e os Apeninos”. Filólogo por índole, muito apreciou a doçura da língua italiana, mas não lhe causou o mesmo agrado a imperfeição notada na linguagem popular. Sentiu-se escandalizado com o mau latim dos frades. Ao entrar na Lombardia, hospedou-se em um convento beneditino no delicioso vale do Pó. O tratamento foi dos melhores, mas habituado aos rigores do ascetismo, vivendo a pão e arenque, estranhou a opulência dos manjares e o repasto soberbo daqueles religiosos. Não só os pratos, mas o luxo e o fausto de que se cercavam os monges, tudo lhe pareceu fora do viver simples do Evangelho. Dos 36 mil ducados de renda, consagravam aqueles frades a terça parte aos prazeres da mesa. O que mais o assombrou ainda foi que, ao chegar a sexta-feira, notou que o preceito não era obedecido. Viandas em profusão mostravam que nenhuma distinção se fazia. Em sua simplicidade provinciana, ousou observar brandamente que a Igreja e o papa não permitiam tais excessos. Acharam os frades incivil a lição, mas o monge alemão insistiu com veemência. Não o quiseram tolerar mais e o porteiro amigo houve por bem avisar aos forasteiros de que corria perigo a sua segurança. Lutero e seu companheiro trataram imediatamente de se pôr a salvo. Prosseguindo na marcha, foram ter a Bolonha, “o trono da lei romana e dos legistas”, nas palavras de Michelet. Aí Lutero enfermou. Sua vida esteve seriamente comprometida. Os terrores da morte mais uma vez o assaltaram. Nas torturas espirituais que o faziam quase consumir, vieram-lhe à lembrança as palavras de São Paulo, em sua epístola aos Romanos, quando citava o profeta Habacuque: “O justo, porém, viverá da fé”. Não era a primeira vez que o luminoso texto bíblico confortava a sua alma e agora lhe outorgou consolação real. Antes da demora em Bolonha, na Romagna, de passagem pelo território lombardo, tinha visto Milão e Pávia. Na opulenta cidade, onde o grande Ambrósio realizara o seu glorioso apostolado, ficou admirado ao ver que a missa era celebrada pelo rito ambrosiano em vez do gregoriano, um verdadeiro desacordo com a liturgia romana. Lutero não podia entender aquele gênero de missa.[14]
13. A jornada Em Florença — Lutero perpetuado na tela — Maravilhas de Florença — Savonarola — À vista de Roma
A viagem de Lutero tomou-lhe nada menos de cinco meses de ida e volta, a pé, incluindo a demora de quatro semanas em Roma. Transpondo os Apeninos, achou-se na bacia do Amo, aprazível jardim da Itália, no solo fértil e no doce clima da Toscana. Viu Florença, de onde recebeu a melhor impressão do serviço esplêndido dos hospitais da cidade. O tratamento era ministrado com toda a eficiência e tudo quanto viu no gênero encheu-o de admiração. Sua passagem ficou assinalada na arte. Hospedara-se no convento de sua Ordem quando ali o encontrou o notável pintor Giorgione, surpreendendo-o a tocar um pequeno órgão, olhando distraidamente para um lado. Naquela posição ele o representou na tela, a par de duas outras personagens, dois filhos da Itália. Seus olhos azuis e sua fisionomia teutônica, comenta Schaff, que reproduz o clichê e insere o episódio, estão em frisante contraste com as duas personalidades italianas. O quadro, observa o referido historiador, havia sido recentemente identificado e figurava na galeria Pitti, de Florença. Sobre a cidade das margens do Arno muito haveria que dizer, tamanha a sua importância. Resplandecia na fidalguia dos seus palácios e no brilho dos seus edifícios. Universidade, escolas, igrejas, catedral suntuosa, ardins, passeios, lugares imortalizados nas tradições — tudo prendia a atenção dos visitantes. Notabilizava-se como pátria de Dante, o grande épico florentino; de Guiciardini, diplomata e historiador; de Policiaria, poeta e humanista; de Pulei; poeta de valor; de Vilani, de Vespúcio, de Marsílio Ficino, de Cimabue, o grande pintor, e de tantos vultos ilustres. Era um dos centros movimentados de cultura, na época da Renascença. Ali vivera Boccacio, do número dos precursores do grande despertamento artístico e literário. Era a pátria dos Médicis e mais de um pontífice designava-a como o seu berço. Na cidade maravilhosa, onde tivera a sua corte Lourenço, o Magnífico, vivia Maquiavel, na ocasião da passagem de Lutero. Muitas curiosidades se impunham aos forasteiros. Lutero, porém, andava preocupado somente com a sua missão religiosa. Ao falar-se em Florença, naqueles dias, não se pode omitir o nome de Savonarola, o místico dominicano enviado à
fogueira por Alexandre VI em 1498, quando Lutero era uma criança de cinco anos apenas. Nascido em Ferrara, em 1452, de família notável, no momento em que se operava a transição da Idade Média, seu destino fatídico impelira-o a uma carreira agitada. Aos 23 anos, contra a vontade paterna, abriu-lhe as portas o convento dos dominicanos de Bolonha. Estudou teologia, leu as Escrituras e logo se impressionou com o tom das profecias. Removido para Florença, em 1488, foi nomeado depois para o cargo de prior do convento dos dominicanos de São Marcos. Era já notado como pregador. Dois anos depois, em Bréscia, emocionou a muitos com sua ardente pregação sobre textos apocalípticos. Foi, porém, de 1491 em diante, que se revelou como agitador teocrático. Nas abóbadas soberbas da catedral florentina o seu verbo atroava como o dos impetuosos videntes hebreus, condenando os desmandos de Roma e do papado, tão aviltado pelos pontífices do dia. Fulminou a corte licenciosa dos Médicis e, entrando no terreno das profecias, anunciou o juízo de Deus. Um rei estrangeiro teria de cruzar os Alpes e converter-se em instrumento de vingança. Predisse ainda a morte de Inocêncio VIII e a destruição da oligarquia dos Médicis. Assim aconteceu pouco depois, quando Carlos VII, de França, penetrou na Itália para firmar pelas armas os seus direitos sobre Nápoles. Prevalecendo-se da situação, os florentinos baniram os Médicis da cidade. Nápoles caiu nas mãos dos franceses. Savonarola constituiu-se então em ídolo do povo. Foi ditador teocrático. Organizou o governo em bases religiosas, concentrando nas mãos o poder. Reprimiu os costumes licenciosos. Suprimiu o carnaval e promoveu o ascetismo. Muitos foram impelidos voluntariamente a buscar a vida monástica. Insurgindo-se contra os costumes pagãos da Renascença, deitou ao fogo peças literárias de Dante, de Boccacio e de Petrarca. Alexandre VI acenou-lhe com o chapéu vermelho, a ver se o conquistava. Mas, às honras cardinalícias, dizia preferir a coroa vermelha do martírio. Por fim começou a empalidecer a sua estrela. Os franciscanos buscaram a sua condenação. Os florentinos banidos rodearam o papa. Os franceses, regressando ao seu país, não lhe puderam valer. Caiu a teocracia. O papa excomungou-o, vendo que não o aliciaria por meio de honras. Os cordéis da morte apertaram-no de todos os lados. As autoridades de Florença enviaram-no ao cárcere. Alexandre VI não o deixou em paz. Havia dito: “Ainda que fosse um outro João Batista, teria de perecer”. Novo João Huss, subiu à pira do sacrifício e suas cinzas foram deitadas ao Arno. Mais tarde os confrades dominicanos, querendo reabilitá-lo, requereram em vão a sua
canonização. O próprio Júlio II, grande cultor da Renascença, ordenou a Rafael que, em um fresco consagrado aos doutores da Igreja, incluísse a figura do veemente dominicano, muito embora Alexandre VI o tivesse posto debaixo de anátema. Estadista, místico, reformador e mártir, é assinalado na galeria dos precursores da Reforma. Todavia não é tido como reformador radical, à semelhança de Wycliffe e de Huss. Negava a supremacia do papa e pleiteava, de acordo com o Evangelho, a comunhão nas duas espécies. Condenava o tráfico das indulgências e ensinava a justificação pela fé e não pelos méritos do pecador. Eis palavras suas: “Deus perdoa ao homem o pecado e o justifica por misericórdia. Quantos justos há na terra, tantas mercês há no céu; porquanto, mediante suas próprias obras, nenhum homem se poderá salvar. Ninguém se pode gloriar de si mesmo e se, em presença de Deus, se perguntasse a cada justo: ‘Fostes salvos por vossas próprias forças?’, todos unanimemente exclamariam: ‘Não a nós, Senhor, seja dada glória, mas sim ao teu Nome!’”. Foi a mesma doutrina que Lutero veio a advogar tempos depois. Voltemos, porém, aos dois peregrinos a caminho de Roma. Deixando Florença, atravessaram as regiões da Úmbria, outrora percorridas pelo seráfico fundador dos franciscanos e, por fim, penetraram no Lácio. Na noite que precedeu a chegada a Roma, experimentou Lutero grande emoção. Ia transpor os umbrais da cidade santa, dos apóstolos e dos mártires. Seria talvez o bastante para obter a remissão dos pecados — pensaria ele — a conquista de tamanho privilégio. No dia seguinte, ao avistar das alturas do monte Mário a cidade tiberina, saudou-a de joelhos, em grande exaltação: “Salve, Roma, a santa, tu, muitíssimo abençoada que foste pelo sangue dos mártires!”.
14. A Roma daqueles dias Resultado da missão a Roma — Falta de religiosidade entre os eclesiásticos — Missas despachadas com rapidez — “Panis es, panis manebis” — Ceticismo típico do cardeal Bembo — A escada de Pilatos e o profeta Habacuque
Foi de muito proveito aquela estada em Roma. Visitou Lutero os principais santuários e monumentos. Percorreu com respeito as galerias das tradicionais catacumbas, onde os cristãos celebravam seu culto na era das perseguições. Deteve-se na contemplação das ruínas da Roma antiga. Viu os lugares assinalados na história e celebrados na poesia. Roma pagã e Roma cristã desfilaram diante de seus olhos embevecidos. Hospedaram-se os dois monges no convento de Santo Agostinho, ao lado da Igreja de Santa Maria del Popolo, onde, segundo a tradição, frei Martinho disse, em Roma, a sua primeira missa. Ele e seu confrade João de Mecheln trataram da missão de que haviam sido investidos. Não se sabe bem ao certo o resultado. Schaff, citando Kolde (p. 81), observa que o despacho parece ter sido desfavorável a Staupitz, que tempos depois se retirou de Wittenberg. Grisar (p. 33) assevera até que a missão fracassou por não estarem em ordem os documentos dos dois delegados. Este mesmo escritor esuíta informa que, aproveitando o ensejo, requereu Lutero permissão da autoridade pontifícia no intuito de permanecer algum tempo em Roma, a exemplo de outros religiosos, tendo por alvo aperfeiçoar-se nos estudos, petição que lhe foi indeferida por falta de recomendação de seu superior. A versão é, contudo, rejeitada por MacKinnon em sua alentada obra Luther and the Reformation (vol. I, p. 143).[15] Na relação de vários autores, na sede de aprender, naquelas poucas semanas tomou Lutero lições de hebraico com Elias Levita, rabino alemão. Mas não sai do domínio da hipótese. Roma naquele tempo não passava de 40 mil habitantes. Mal governada e mal policiada, nela se registravam homicídios diários. Os costumes dissolutos de grande parte da população não atestavam bem quanto à moral e a religião dos habitantes da cidade afamada. Era Júlio II o pontífice reinante, o único papa visto por Lutero. Bem cedo o monge alemão foi testemunha da falta do verdadeiro sentimento religioso nos eclesiásticos, principalmente na classe mais elevada, fato esse que vem registrado em quase todos os seus biógrafos.
Muito desejou ele dizer missa em São João de Latrão. Era provérbio comum então em Roma: “Ditosa a mãe cujo filho diz missa em São João de Latrão”. Mas a concorrência era tão numerosa que nenhuma ocasião se lhe deparou para isso. Católico sincero, acreditando em todo o ensino da Igreja, reputando de muita valia o sacrifício da missa para o resgate das almas, chegou a lamentar que seus pais vivessem ainda. Desejaria, naqueles altares privilegiados de Roma excelsa, livrá-los do fogo purgatório por meio de sufrágios e orações. Várias missas celebrou com toda a unção e reverência. Notou, porém, que, enquanto dizia uma, rezavam sete nos altares vizinhos. Um dos celebrantes dizia-lhe irreverentemente: “Anda, anda, devolve depressa à Nossa Senhora o seu Filho!” — aludindo assim ao dogma da transubstanciação. De outra feita, celebrando, achava-se no Evangelho, quando o sacerdote, que lhe estava próximo, gritou-lhe impaciente: “Passa, passa, acaba de uma vez!”. Em sua qualidade de delegado dos agostinhos, frequentou reuniões de eclesiásticos distintos. Observou então a conversação pouco edificante e o modo como zombavam das coisas santas. Metiam-no a ridículo quando manifestava sua reprovação a tais desmandos. Ficou sobremaneira escandalizado quando alguns daqueles eclesiásticos lhe disseram que, na consagração dos símbolos eucarísticos, em vez das palavras sacramentais: “Este é o meu corpo, este é o meu sangue” — diziam: “ Panis es, panis manebis; vinum es, vinum manebis” [isto é, “Pão és e pão ficarás, vinho és e vinho permanecerás”]. Mal podia Lutero acreditar em semelhante profanação! O paganismo da Renascença, favorecido pelos pontífices da época, concorria para impiedades dessa natureza. O cardeal Bembo era o verdadeiro tipo do espírito que reinava então. Mais versado nas letras profanas do que nos livros sacros, usava de termos pagãos para designar as coisas sagradas. Nisso se punha de acordo com a moda. Em vez de Espírito Santo, escrevia “sopro de zéfiro celeste”; em vez de “perdoar os pecados”, dizia: “aplacar os manes e os deuses soberanos”; em vez de “Cristo, Filho de Deus”, parodiava: “Minerva, saída da cabeça de Júpiter”. Assim o refere D’Aubigné (op. cit., vol. I, p. 68). Bembo viu um dia o cardeal Sadoleto, seu confrade, a traduzir a epístola de São Paulo aos Romanos, e exclamou: “Deixa essas puerilidades, tais inépcias não são próprias de homem sério”. Bembo não lia a Vulgata
para não desaprender o seu latim ciceroniano. Desejando ser favorecido com bênçãos especiais, fez Lutero confissão geral e se dispôs a subir os degraus da Scala Sancta. Reza a tradição que é a mesma escada do palácio de Pilatos pela qual subiu Jesus em Jerusalém à presença do governador romano. Diz a lenda que os anjos a transportaram pelos ares a São João de Latrão, e nisso crê o vulgo piamente. Milagre da mesma natureza se teria dado na transladação da modesta residência da Virgem Maria, primeiro para a Dalmácia, em 1291, e anos depois para Loreto, na Itália. É a Santa Casa de Loreto, esplendidamente adornada e visitada com reverência por milhares de peregrinos cada ano. A famosa escada conta 28 degraus. Leão IV concedera uma indulgência de nove anos ao que subisse de joelhos cada degrau da mesma. Até nossos dias penitentes sem conta galgam os santos degraus, murmurando preces, ávidos da indulgência. Lutero fez o mesmo. Subiu de joelhos, no espírito de um penitente, até certo ponto. A meio da escada, levantou os olhos ao Alto e volveu a descer a passo lento. É que lhe pareceu ouvir do céu a voz do profeta Habacuque, naquela passagem favorita repetida por São Paulo: “O usto viverá da fé”.[16] Não era a primeira vez que o passo bíblico lhe acudia. Agora a mente se lhe esclareceu. Compreendeu que a salvação não dependia de penitências, mas da fé nos merecimentos de Cristo, quando derramou pelos pecadores o sangue expiador.
15. Decadência do papado Crise espiritual — O cativeiro babilônico da Igreja — O Cisma do Ocidente — Concílios reformadores — papas e antipapas — Félix V — Os papas da Renascença
No alvorecer do século XVI o padrão religioso de Roma era bem pouco lisonjeiro. A crise do papado vinha de longe, desde a Idade Média, e agravou-se no período dos papas da Renascença quando o gosto pelas letras e pelas artes enfraqueceu o sentimento religioso. Fortes laivos de paganismo invadiram a religião no governo daqueles pontífices de espírito secular, nos dias de Nicolau V, Calixto III, Pio II, Paulo II, Sixto IV, Inocêncio VIII, Alexandre VI, Pio II e Júlio II. A tal ponto se elevou o ceticismo que se tornou necessário ao Concílio de Latrão (1512-1517) reafirmar a doutrina da imortalidade da alma. Nem deveria ser melhor a situação com Leão X, filho de Lourenço, o Magnífico, em cujo pontificado explodiu o movimento reformador. Em ligeiro retrospecto, historiemos a crise lamentável do papado. Primeiro fora o chamado “cativeiro babilônico” da Igreja, o período de Avinhão, quando os pontífices de Roma emigraram para a cidade francesa sob a pressão de Felipe, o Belo, após o doloroso conflito com o obstinado Bonifácio VIII. Sete pontífices tiveram ali a sua cátedra, de 1305 a 1377, nada menos de setenta e dois anos, de Clemente V a Gregório XI, que, para não perder os seus domínios, sob a forte influência de Catarina de Siena, teve de fazer voltar a cadeira pontifícia para a sua sede original. Naquela época viveram os papas de Avinhão sob a ingerência da corte francesa, numa existência voluptuosa em que o espírito religioso se ia enfraquecendo visivelmente. Petrarca deu a Avinhão o qualificativo de terceira Babilônia e de quinto labirinto. O regresso a Roma determinou a crise mais intensa. Irrompeu o grande cisma — o “Cisma do Ocidente” — que se estendeu por outro longo prazo de setenta e um anos, de 1378 a 1449. Era o papado com duas cabeças, uma em Roma, outra em Avinhão — papas e antipapas —, às vezes três em número, de Urbano VI em Roma e Clemente VII em Avinhão em 1378, a Nicolau V em Roma e Félix V em Basileia, em 1449, quando, afinal, o cisma se extinguiu.
Reuniram-se então os Concílios reformadores, como os de Pisa e Constança, para sanar a irregularidade. Queriam todos uma reforma, “na cabeça e nos membros”. Mas o mal se agravou. Ao lado do pontífice eleito pelo Concílio continuavam os pontífices depostos, anatematizando-se mutuamente. Até as nações se viam eclesiasticamente divididas, umas sendo por um papa, outras pelos pontífices rivais. Aproximava-se o fim do deprimente espetáculo. Em 1477 foi eleito Nicolau V, um dos brilhantes pontífices de Roma, em sucessão a Eugênio IV, cujo pontificado decorrera no meio de lutas constantes, havendo sido deposto pelo Concílio de Basileia em 1439. Em seu lugar foi eleito o duque de Saboia, Amadeu VIII, sob o título de Félix V. O papa suíço obteve poucos partidários, sua corte cardinalícia em breve se desvaneceu e Eugênio conseguiu de novo a ascendência, falecendo em 1447. Entretanto Félix V continuava no seu pontificado caricato, sem rendas e sem corte papalina, até que, em 1449, num dia de feliz inspiração, resolveu abdicar como antes abdicara da sua corte saboiana, recolhendo-se ao viver tranquilo do seu convento de Ripaille. Não ficou, todavia, sem recompensa o antipapa suíço. De Nicolau recebeu o chapéu cardinalício com outras prerrogativas eclesiásticas. Nicolau V, que teve o privilégio de ver sanado em seus dias o Cisma Ocidental, foi o papa da transição da Idade Média para a moderna. Em seus dias caiu Constantinopla. Reinou num período de sete anos e foi o primeiro dos papas da Renascença, período brilhante nas iniciativas das letras e das artes, muitíssimo prejudicial à espiritualidade da Igreja. Nicolau patrocinou o renascimento das letras, engrandeceu a biblioteca do Vaticano, a ponto de ser considerado o seu fundador. Adquiriu valiosos manuscritos e estipendiou copistas. Depois dele subiu os degraus do Vaticano, já bem velhinho, aos setenta e oito anos, o primeiro dos Bórgias, o espanhol Alonso de Bórgia, que tomou o nome de Calixto III. A melhor coisa do seu curto pontificado de um triênio foi a reabilitação de Joana d’Arc. Tornou-se impopular, todavia, pelo seu desmedido nepotismo. Vem, em seguida, o letrado Eneias Sílvio, contemporâneo dos hussitas, que adotou o nome de Pio II (1458-1464), não por sentimento religioso, mas em alusão ao herói de Virgílio — a quem este qualificou de “pio Eneias”. Era uma amostra do espírito pagão da Renascença. Na coincidência dos nomes,
explicava-se tudo. Pio notabilizou-se como orador, poeta, historiador, geógrafo, diplomata e teólogo. Mas deixou nota desagradável pela falta de firmeza nos princípios. Em Basileia concorreu para a deposição de Eugênio IV e foi secretário de Félix V. Depois aderiu de novo ao partido de Eugênio. No Concílio era partidário daqueles que sobrepunham o Concílio ao papa. Quando galgou o pontificado afirmou o princípio contrário. A despeito do nome não brilhou pela piedade. Paulo II (1464-1471) iniciou o período dos papas cruéis, em número de quatro. Era sobrinho de Eugênio IV. Avarento, ávido de dinheiro, reduziu o período dos jubileus, que Bonifácio VIII fixara em cem anos. Não demorou muito e Clemente VI reduziu-o a 50. Urbano VI achou ainda longo e modificou-o para 33. Paulo II firmou-o em 25. O ano do Jubileu acarreta muitas ofertas para o tesouro de São Pedro. Daí a pressa em reduzir o período. Sixto IV (1471-1484), da família Rovera, encheu a Itália de sangue. Elevou ao cardinalato filhos e sobrinhos seus, entre os quais Julião, o futuro Júlio II. Inocêncio VIII (1484-92) foi eleito por influência do cardeal Bórgia, que deveria vir depois dele. Não deixou melhor fama que o seu predecessor. Tratou de amparar bem seus filhos, em número de 16, segundo alguns historiadores. Um deles desposou-se com uma filha de Lourenço de Médicis. A um filho deste, João de Médicis, elegeu cardeal aos 13 anos. Seria o futuro Leão X. Papas, cardeais e altos dignitários eclesiásticos não ocultavam os filhos que tinham. Surge então na tela a figura sinistra do sobrinho de Calixto III, Rodrigo Bórgia — o famigerado Alexandre VI, que encheu a medida dos papas abomináveis. Cingiu a tiara a peso de ouro, peitando os cardeais. Ao mais influente, o cardeal Sforza, enviou ao seu palácio quatro mulas carregadas de dinheiro. Cercou-se de uma corte sensual, à feição do paganismo da Renascença. Entre seus filhos adquiriram triste celebridade César e Lucrécia Bórgia. No mesmo dia da coroação de Alexandre, César, que andava bem longe da religião, foi nomeado arcebispo de Valença e bispo de Pamplona. Foi também elevado ao cardinalato no ano seguinte e mais tarde Luís XII nomeou-o duque de Valentinois. Entre as suas mulheres contase uma filha do rei de Navarra. Deixou a púrpura para agarrar-se à espada. Assassinava para apoderar-se da fortuna alheia. Nem poupou o próprio irmão. Foi cruel e sanguinário. Teve vida aventurosa. Lucrécia foi outra
Messalina. Governou Roma em lugar de seu pai quando este foi pôr cerco a Sermaneta. Do seu terceiro casamento, com Afonso de Este, filho do duque de Ferrara, nasceu Hércules de Este, que se tornou esposo de Renata de França, filha de Luís XII. Admiradora de Calvino, abraçou Renata a Reforma com mais resolução ainda do que sua prima Margarida de Navarra, irmã de Francisco I. Alexandre VI foi sanguinário, licencioso, ambicioso e despótico. Celebrou no Vaticano os esponsais de sua própria filha Lucrécia, como havia feito seu predecessor Inocêncio VIII, quando ali abençoara o enlace de uma sua filha. Degradou o papado pelos seus atos hediondos. Foi tido como envenenador para usurpar bens de terceiros. Fez subir Savonarola à fogueira. Morreu envenenado, segundo o referem as crônicas, do veneno que ia propinar ao cardeal Corneto para se apoderar dos seus bens. O cardeal, avisado, peitou o cozinheiro que trocou a dose que lhe ia ser ministrada, dando-a ao pontífice. Pio III, sobrinho de Pio I, reinou apenas 26 dias. Sempre o nepotismo. É agora a ocasião do belicoso Júlio II (1503-1513), do qual se disse “que deitara no Tibre as chaves de São Pedro para só conservar a espada de São Paulo”. Era sobrinho de Sixto IV que fez dele cardeal. Inimigo mortal de Alexandre VI, viu-se forçado a fugir para escapar ao punhal e ao veneno do feroz vigário de São Pedro. Júlio II caracterizou-se como político, estadista e guerreiro; mais político, porém, do que religioso. Foi um decênio de guerras constantes. Formou a Liga de Cambraia com Luís XII, Fernando e Maximiliano, contra os venezianos. Engrandeceu os Estados da Igreja, alargando os seus territórios. Como Alexandre VI, ele mesmo ia à frente do exército. Reforçava as suas tropas com mercenários suíços. Malquistou-se depois com Luís XII. Ao receber notícia de uma derrota do seu exército pelos franceses diante de Ravena, ocupava-se, na ocasião, em ler as suas “horas”. Furioso com a notícia, arrojou o livro ao chão e em horrível praga dirigiu-se ao Eterno desta forma: “Eis-te convertido em francês! É assim que proteges tua Igreja!”. E, voltando-se para o lado da Suíça, deprecou, em alusão aos seus mercenários: “Sancta Svizzera, ora pro nobis”. O rei de França, cercando-se de um grupo de cardeais, reuniu um Concílio em Pisa e suspendeu Júlio II de suas funções. Em troca, reuniu este outro Concílio em São João de Latrão, excomungou Luís XII, anulou os atos
de Pisa, desligou os franceses do voto de obediência ao seu rei, e aliciou contra este a Henrique VIII. Júlio II distinguiu-se também como protetor das artes e das letras e deu grande incentivo à Renascença naqueles dias de tantos artistas e letrados na Itália. Era esta a situação do papado quando Lutero esteve em Roma. Muito esplendor e muita grandeza se viam. Monumentos artísticos embelezavam a capital pontifícia. Igrejas suntuosas, conventos inúmeros, instituições múltiplas, atestavam a grandeza de Roma. Mas faltava o cunho da espiritualidade no meio daquele culto aparatoso. Campeava a superstição. Muitos dos conventos eram antros de dissolução. Jeremias, se por ali aparecesse, desejaria de novo que sua cabeça se convertesse em fontes e seus olhos em torrentes para deplorar a ruína espiritual daquele povo.
16. Professor e pregador Multiplicação de atividades — Subprior do convento — Descontentamento de Erfurt — Lutero, o cavaleiro da Bíblia — O texto bíblico que lhe trouxe a paz — A fama do professor — O conceito de Pollich de Mellrichstadt — Poder de Lutero no púlpito — Preleções sobre os Salmos e outros livros bíblicos
Em fevereiro de 1511 estava Lutero em Wittenberg após o regresso de Roma. Ali deveria ser o seu centro de atividade permanente. Sua vida passou a ser bastante movimentada. Além do professorado da universidade devia preparar-se para alcançar o grau de doutor em Teologia. Em março de 1512 acompanhou Staupitz a Colônia para assistir à reunião do Capítulo de sua Ordem. Foi então eleito subprior do convento de Wittenberg. Ao regressar, o prior logo o encarregou de uma parte das funções administrativas. Ao receber o grau de doutor, em outubro de 1512, convidou para o ato seus amigos de Erfurt. Edwin Booth, professor de História Eclesiástica na Universidade de Boston, em seu livro Luther, traduzido em francês pelo professor Raoul Patry, edição de 1934, comenta o desgosto dos superiores de Erfurt contra Lutero, especialmente de seu mestre Natin, visto como realizou os exames de doutoramento em Wittenberg e não naquela cidade, onde estudara por tantos anos. Deu ele como desculpa o fato de estar obedecendo aos seus superiores. Edwin acentua a divergência sempre crescente desde aí. Lutero em Wittenberg dava ênfase ao ensino teológico fortalecido nas páginas da Bíblia. Em Erfurt o mesmo ensino era apoiado nos moldes escolásticos. Aos 29 anos, recebendo o doutorado, era como se tivesse sido armado “cavaleiro da Bíblia”, na expressão de um historiador. Tinha agora a faculdade de dar preleções sobre os livros bíblicos, o que constituía a sua grande aspiração. No ato do doutoramento, jurara “defender a verdade evangélica com todas as suas forças”. Nos seus conflitos espirituais, o texto bíblico que lhe trouxe a luz da verdade e a paz de consciência veio a ser a célebre passagem da Epístola aos Romanos (1.17), em que o apóstolo cita o profeta Habacuque — “O justo pela fé viverá”, texto que lhe acudira ao subir a Scala Sancta, segundo a versão tradicional. Inspirando-se em Agostinho e Bernardo, e trazendo à
mente os conselhos de Staupitz, viu que São Paulo fazia do sacrifício de Cristo o centro da verdade em religião. Seus pecados, suas angústias, seus sofrimentos, haviam caído sobre os ombros de Cristo na cruz. Cristo fizera o que ao pecador teria sido impossível fazer com suas penitências e méritos pessoais. A certeza do perdão trouxe-lhe a paz espiritual e imprimiu uma nova direção ao seu ensino na universidade e no púlpito. Foi a grande inspiração de sua vida. Por isso, quando deu início às suas preleções, todos se admiravam da nova luz que seu ensino projetava. O número de alunos crescia progressivamente. A fama se espalhou e estudantes acudiam de todas as partes a ouvir a nova teologia de Wittenberg. Professores de valor na universidade, como Karlstadt e Amsdorf, iam ficando eclipsados ante o novo astro que se erguia. Não só estudantes como mestres viam-se por vezes na assistência, entre os quais o vigário-geral Staupitz e o reitor Pollich de Melrichstadt. Este último chegou a dizer: “Este frade derrotará todos os doutores; introduzirá uma nova doutrina e reformará toda a Igreja; pois ele se funda sobre a Palavra de Cristo, e ninguém no mundo pode combater nem destruir esta Palavra, ainda quando a atacassem com todas as armas da filosofia, dos sofistas, dos escotistas, dos albertistas, dos tomistas e com todo o inferno” (Melchior Adam, Vita Lutheri, p. 104, citado por D’Aubigné). Quando, a instância do vigário-geral, Lutero fez-se pregador, o sucesso não foi menor. As primeiras pregações, para os monges, a princípio, se realizaram numa pequena capela de madeira unida ao convento dos agostinhos, o “Claustro Negro”, como era chamado por causa da vestimenta negra dos monges. Não lhe faltavam atrativos no púlpito: imaginação, vida, estilo pitoresco, palavra fluente, magnetismo pessoal, tom apaixonado, emoção religiosa. A isso se ajuntava simplicidade na pregação, virtude que muito o recomendava. Sua figura cheia de expressão, o ar nobre, a voz pura e sonora, completavam o quadro. O calor e a unção de suas palavras, o tom austero da pregação, empolgavam os ouvintes. Não levou muito e a capela não comportava os assistentes. O senado de Wittenberg convidou então o pregador a ocupar o púlpito da Igreja paroquial da cidade. Foi quando a fama se estendeu mais e o próprio eleitor Frederico se abalou um dia para ouvi-lo. De 1513 a 1515 seu curso bíblico na universidade versou sobre o livro
dos Salmos. Foi um curso aprimorado. A edição de que se serviu tinha aparecido recentemente e trazia espaços em branco entre as linhas, nas quais lançava as suas notas e comentários. Ainda hoje estas notas podem ser lidas, afirma Edwin Booth. Quando Lutero iniciou suas lições bíblicas recorria à Vulgata como texto. Mas pouco e pouco entrou a usar os textos originais. Servia-se da língua latina nas suas exposições, que era a língua usualmente empregada. Às vezes, porém, no intuito de evitar expressões estereotipadas, características da filosofia escolástica, intercalava frases em alemão, tomando-se mais explícito ao auditório. “Gostávamos de ouvi-lo porquanto nos falava em nossa língua materna”, disse mais tarde um dos seus ouvintes. Embora não fosse profundo no hebraico e no grego, conhecia o suficiente para explicar os textos escriturísticos. Tinha sempre sobre a banca a gramática e o léxico de Reuchlin, o grande hebraísta da época. Inferior como humanista a Reuchlin, Erasmo e Melâncton, era-lhes superior como gênio, afirma Schaff. No conhecimento da língua alemã ninguém o excedia em toda a Germânia. Em 1515 encetou o seu curso sobre a epístola aos Romanos, que é a mais profunda das cartas de São Paulo. Observa Edwin Booth que, quando expunha, capítulo após capítulo, o pensamento do apóstolo, os estudantes imaginavam ver reproduzido o grandioso drama da redenção. Na exposição da Epístola e dos Salmos, ia apresentando o esboço sistemático de sua teologia. Ao entrar no capítulo 9, apareceu a edição de Erasmo do Novo Testamento em grego. Adotou-o como texto. O príncipe dos humanistas, com a referida edição, prestou o mais assinalado serviço à Reforma, despertando nos estudiosos o gosto pelo livro santo. Outro livro favorito de Lutero, como os dois supracitados, veio a ser a epístola aos Gálatas, também exposta no seu curso bíblico. Tamanho foi o apego que manifestou a esta epístola que não mais a perdeu de vista. Sobre ela escreveu longo comentário, aparecido primeiro em latim, em 1519. Nova edição, prefaciada por Melâncton, surgiu em 1523. É o mais popular de seus comentários e foi traduzido em diferentes línguas. A tal ponto se identificou com a epístola, que dizia, na sua linguagem pitoresca, considerá-la como sua esposa, como outra Catarina de Bora. É que a doutrina da liberdade espiritual em Cristo vem nela bem expressa. Procurou ele acentuá-la nos termos da interpretação paulina.
Sua vida de reformador abrange um período de 29 anos, de 1517 a 1546. Sua obra de comentador é mais extensa. Teve princípio em 1513 com as lições sobre os Salmos e terminou com o Gênesis em novembro de 1545, três meses antes de sua morte. Lembra o historiador Schaff, porém, que o reformador avaliava as Escrituras do ponto de vista de certas doutrinas em que mais se comprazia, como a de justificação pela fé. Daí o não dar tanta importância a alguns dos livros como a epístola de Tiago e ao Apocalipse.
17. Na véspera da refrega Lutero como vigário distrital — Visitas administrativas — Múltiplas ocupações — Experiências úteis ao futuro reformador — Relíquias — Primeiras escaramuças — Primeiras publicações — Teoria sobre o livre-arbítrio — O duque Jorge de Saxônia
Multiplicava-se cada vez mais a atividade de Lutero. Não era somente pregador e professor. Era também subprior do convento de Wittenberg. No Capítulo regional da Ordem, em maio de 1515, em Gota, foi eleito vigário distrital para os conventos da Mísnia (Meissen) e da Turíngia. Dez mosteiros estavam aí compreendidos. Pouco depois incluíram na lista o convento de Eisleben, sua cidade natal. Era uma posição de responsabilidade, visto como representava nisso o vigário-geral. Tinha de visitar cada um destes conventos pelo menos uma vez cada ano, o que lhe tomava boa parte do tempo. Dirigiu-se logo a Grima, onde ouviu falar de Tetzel pela primeira vez. Daí foi a Dresden. Uma amostra do seu zelo e caridade como administrador tem-se numa carta dirigida ao prior dos agostinhos de Mongúncia, fugindo de Dresden. O fugitivo cometera atos reprováveis e Lutero reclamava-o: “Eu te agradeço por o haveres recebido, pondo termo à sua vergonha. A ovelha perdida pertence ao meu rebanho, cumpre-me tomar cuidado dela e reconduzi-la ao aprisco, sendo da vontade do Senhor Jesus”. E assim prossegue em termos caridosos para com o filho pródigo. Visitou o convento de Êrfurt, o mesmo convento no qual 11 anos antes exercera as funções mais humildes — abrindo as portas, dando corda ao relógio e varrendo a Igreja. Com a autoridade de que estava revestido, nomeou como prior o seu amigo João Lange, homem sábio e piedoso, seu antigo mestre. No decurso de suas visitas, notou muitas irregularidades e procurou com seus conselhos pôr em ordem todas as coisas. Escrevendo de Wittenberg, pouco depois ao seu amigo Lange, informa-o de suas múltiplas ocupações. Com a administração da Ordem era grande a correspondência. Somente para isso necessitava de dois secretários. Ainda mais. “Sou pregador do convento e leitor do refeitório, tenho de pregar diariamente na Igreja paroquial, sou vigário do distrito (isto é, 11 vezes prior), inspetor das lagoas de pesca de Litzkau, procurador do nosso processo
em Torgau contra os Herzberger, tenho um curso sobre São Paulo e outro complementar sobre os Salmos… Raras vezes sobra-me tempo para rezar as horas canônicas, ainda menos para me ocupar das tentações contra o mundo e a carne e o diabo. Que homem desocupado sou!”. Para recuperar as “horas” omitidas na devoção diária costumava encerrar-se na cela o sábado inteiro, entregando-se às devoções até ficar em dia. Naquele tempo surgiu a peste em Wittenberg. Não desamparou Lutero o seu posto. Na referida carta, assim se expressa sobre a epidemia, trechos adiante: “Começarei amanhã um curso sobre a Epístola aos Gálatas, mas receio que a peste não me permita ir até o fim… Deverei fugir? Se o mal progredir, farei partir os monges, mas eu estarei aqui. A obediência me impede de sair”. Tudo neste mundo tem a sua razão de ser. Os múltiplos trabalhos de Lutero no ensino e no estudo, na prédica, na obra pastoral e na regência do vicariato, as contrariedades a enfrentar, as irregularidades que tinha de corrigir na disciplina — todo esse conjunto de experiências ia o preparando para a grande missão que teria de exercer na direção do movimento reformador. Afligia-se Lutero com as superstições e práticas que se iam radicando na Igreja. Entre elas estava o culto das relíquias. O eleitor Frederico era grande colecionador no gênero e na sua Igreja de Todos os Santos tinha delas um verdadeiro museu. Enquanto Lutero andava na administração da ordem, partira Staupitz para os Países Baixos, a pedido do príncipe, no intuito de enriquecer ainda mais a coleção. Tão satisfeito ficou ele com o resultado que pensou até em recompensar o vigário-geral com a concessão de uma mitra episcopal. Escrevendo a seu amigo Espalatino, capelão e íntimo do príncipe, manifestou Lutero opinião contrária àquele projeto, que viria sobrecarregar demasiado o seu protetor. Frederico não se mostrou ofendido e até enviou a Lutero um finíssimo pano para um novo hábito. O culto das relíquias dava lugar a muitos abusos e explorações por parte de pessoas pouco escrupulosas. Os vendedores de relíquias percorriam as cidades e expunham com pompa nas igrejas a curiosa mercadoria. Às vezes vendiam-na em consignação, dando certa porcentagem aos proprietários. Entre as relíquias da coleção da Igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, mostrava-se um pedaço da arca de Noé, um pouco de ferrugem do forno em que foram lançados os três mancebos de Babilônia, um pedaço
de madeira do presépio de Belém, os cabelos da barba do gigante São Cristóvão, um pedaço da cabeça de Santa Eufêmia, dois dedos e uma das mãos dos Santos Inocentes, um dente de Santa Beatriz, um pedaço da perna de Santa Juliana etc. Em Schaffhausen mostrava-se o hábito de São José recolhido por Nicodemos em sua luva. Em Württenberg um vendedor de indulgências dava saída à sua mercadoria tendo na cabeça uma pena tirada das asas do arcanjo São Miguel. A coleção de Frederico continha mais de cinco mil relíquias. Existe ainda um catálogo delas, ilustrado por Lucas Cranach. São casos tirados entre milhares. Naquele ano de 1516 começaram as escaramuças que deveriam produzir a Reforma. Alguns denominaram aquele ano de “estrela matutina do dia evangélico”. Entre outros resultados da pregação de Lutero, assinala-se o fato das proposições de Bartolomeu Bernardi de Feldkirchen, professor de Filosofia Aristotélica em Wittenberg. As teses do jovem eclesiástico e professor atacavam os sofistas e feriam certas doutrinas de Roma. Lutero presidiu aos debates e as proposições discutidas eram na direção dos ensinos que o mesmo propagava. Mostravam a inteira incapacidade moral do homem natural. Uma das proposições dizia que a vontade do homem sem a graça não é livre, mas escrava, e isto pelo seu próprio querer. Transformou-se Lutero em publicista. Naquele ano de 1516, de tanta atividade, leu os sermões de Tauler, pregador místico de Estrasburgo, falecido em 1361. Descobriu um livro célebre — a Teologia germanica, de autor anônimo. Atribuía-o a Tauler, no que se enganava. Era o gênero da Imitação. Parte deste livro publicou-o ele em dezembro desse ano. Em 1518 tirou a obra completa. O misticismo de Lutero era prático e do tipo católico. Preferia os místicos aos escolásticos. Em 1517 publicou a sua primeira obra original — uma exposição dos sete salmos penitenciais. Pouco depois das teses de Feldkirchen, voltou Lutero a discutir o mesmo tema, que distribuiu em 99 proposições. A ideia principal era a da liberdade da vontade ou livre-arbítrio. Isso ele o negava, combatendo a tendência pelagiana de certos escolásticos. Reconhecia a doutrina da depravação total: “Aquele que está fora da graça de Deus peca sem cessar, ainda quando não mate, não roube, nem cometa adultério”. Outras proposições diziam: “O homem, tornado semelhante a uma árvore má, não pode senão querer e fazer o que é mau”; “A lei faz abundar o pecado porque irrita e repele a vontade.
Mas a graça de Deus faz superabundar a justiça por Jesus Cristo, que faz amar a lei”. Em julho desse ano de 1517 pediu o duque Jorge de Saxônia a Staupitz que lhe enviasse um pregador sábio e eloquente. Lutero foi o escolhido e o duque ouviu-o pregar em Dresden na Igreja do castelo. Tomou por texto os versículos 20 a 23 do capítulo 20 de São Mateus e pregou sobre os desejos e súplicas insensatas dos homens e ainda sobre a segurança da salvação. Desenvolveu o ponto com precisão e seu sermão causou profunda impressão em parte do auditório. O duque, porém, não ficou satisfeito com Lutero e o mesmo se deu com o seu secretário Jerônimo Emser e vários dominicanos presentes. Jorge era primo do eleitor Frederico e neto de Jorge de Podiebrad, rei da Boêmia, partidário dos seguidores de João Huss. Nascera em 1471. Filho mais moço, foi destinado ao serviço da Igreja, sendo nomeado cônego de Mísnia aos 13 anos. Por morte dos irmãos mais velhos, subiu ao trono ducal em 1500. Os prejuízos da educação clerical fizeram-no hostil à Reforma que combateu a todo o transe. Provocou a disputa de Leipzig em 1519, entre Eck e Lutero, à qual nos teremos de referir. Teve, porém, o desgosto de ver grande parte dos súditos, e até mesmo de sua família, aderirem ao movimento religioso. Perseguiu os evangélicos, mas no leito de morte, em 1539, terminou seus dias confiando unicamente nos merecimentos de Cristo, na mesma crença daqueles a quem perseguia, honrando assim ao velho avô hussita.
18. A causa ocasional da Reforma Início histórico da Reforma — As indulgências relacionadas com o sacramento da penitência — Classificação das indulgências — Origem e fundamento — Perfil de Leão X
As indulgências de Tetzel e o consequente gesto de Lutero afixando as teses às portas da Igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, marcam a data histórica da Reforma. É o dia 31 de outubro de 1517 o início da grande controvérsia que cindiu a Igreja Ocidental. Constitui a indulgência uma das instituições peculiares à Igreja de Roma. Relaciona-se com o sacramento da penitência no qual se incluem três coisas para que se possa obter a graça da absolvição. São elas contrítio cordis (contrição), confessio oris (confissão) e sastisfactio (satisfação). Satisfação é a pena imposta pelo sacerdote e cumprida pelo penitente como reparação pelos pecados cometidos. Neste mundo consiste a penitência em esmolas, jejuns, peregrinações, orações e outras práticas. Na outra vida abrem-se ao pecador as portas do purgatório, do qual escapam somente os que morrem em estado de graça. Gradualmente as penas impostas pelo confessor passaram a ser comutadas por dinheiro e daí veio o uso das indulgências. Consistem elas na remissão da pena temporal do pecado, não da eterna, mediante uma oferta pecuniária. Podem ser concedidas pelos bispos e arcebispos, dentro da respectiva diocese, ou pelo papa a toda a cristandade. Dizem-se plenárias quando outorgam remissão de todos os castigos temporais neste mundo e no purgatório; parciais, se remitem somente parte da punição. São temporárias se abrangem espaço determinado de tempo; erpétuas, sem limitação de prazo; locais, quando ligadas a certas igrejas ou lugares; reais, quando se prendem a objetos, como medalhas, rosários etc.; essoais, concedidas a indivíduos ou comunidades. Originou-se do costume dos bárbaros invasores que aceitavam uma compensação pecuniária em lugar da punição de uma ofensa. A Igreja imitou a prática, estendendo-a às ofensas religiosas. Nisso não se houve com muita sabedoria e as consequências o provaram. O primeiro exemplo de uma compensação pecuniária pela ofensa data do tempo de Teodoro, arcebispo da Cantuária (690). O uso propagou-se pelo continente. No tempo das cruzadas tomou grande incremento e contribuiu imensamente para engrandecer o poder dos papas.[17] Os escolásticos trataram de construir a teoria do sistema
em conexão com a penitência e absolvição sacerdotal. [18] A base para as indulgências jaz na doutrina das boas obras como opera operato, isto é, de valores que podem ser transferidos de uns para outros. A isso prende-se a doutrina da communio sanctorum ou comunhão dos santos, em virtude da qual a Igreja se torna a proprietária do fundo inesgotável do excesso das boas obras de Cristo, da Virgem e dos santos de todos os tempos. O depositário ou distribuidor deste thesaurus meritorum ou obras superrogatórias vem a ser o bispo de Roma, que pode comutar pela graça das indulgências uma penitência ou uma punição de um pecado determinado. O produto da venda é aplicado a fins piedosos, sendo encaminhado ao tesouro de Roma. A Bula do primeiro jubileu, de Bonifácio VIII (1300), atraiu a Roma muitos visitantes, ávidos de indulgências, porquanto um jubileu significa uma indulgência plenária, em sua forma mais ampla. O resultado pecuniário para o tesouro pontifício foi demasiado animador. Daí o motivo de vir a ser sucessivamente reduzido o número de anos do jubileu, de 100 para 50, 33 e 25, muito embora Bonifácio VIII, ao determinar um período de 100 anos, declarasse que incorreria na ira de Deus, de São Pedro, de São Paulo e de todos os santos todo aquele que infringisse a Bula. O Concílio de Trento confirmou a doutrina das indulgências, tomando, porém, alguma cautela depois do caso de Tetzel. Os ignorantes e supersticiosos logo no começo acolheram sofregamente a medida. Antes de Lutero, todavia, como Wycliffe, na Inglaterra, João Huss, na Boêmia, João Wessel, na Holanda, e Wyttenbach, na Suíça. As indulgências de Tetzel, que vieram ocasionar o cisma da Reforma, estão intimamente relacionadas com o nome do pontífice do dia. Trata-se de Leão X, sucessor de Júlio II, os dois papas mais aparatosos e brilhantes do século XVI. Júlio foi o papa cavalheiro que cingia melhor a espada que a tiara, mais homem do século que da Igreja. Leão herdou-lhe a capa como homem do século e não lhe foi inferior como amigo das glórias deste mundo. João de Médicis era o seu nome de família, nascido em Florença, em 1475, filho de Lourenço, o Magnífico, estadista florentino, protetor das letras e das artes. Pelo lado materno procedia dos Orsinis, rivais da família Colona. Os Orsinis forneceram dois pontífices: Nicolau III e Benedito XIII. João de Médicis, que era filho segundo, foi desde cedo favorecido pela sorte. Destinado à carreira eclesiástica, recebeu a tonsura aos 7 anos e nesta mesma
idade Luís XII concedeu-lhe o arcebispado de Aix. Sixto IV, contudo, teve escrúpulos em ver um arcebispo de 7 anos. Contentou-se ele com a abadia de Pessignano e vários outros benefícios. Aos 13 anos foi eleito cardeal diácono de Santa Maria, mas só aos 16 é que Inocêncio VIII lhe conferiu as insígnias do posto.[19] No governo de Júlio II teve lugar de destaque. Na batalha de Bavena tinha o comando supremo. Foi, porém, derrotado e levado prisioneiro para a França, logrando evadir-se de Milão, de onde voltou para Florença. Estando ali, ouviu que Júlio II morrera. Correu a Roma a pleitear a candidatura. Sofria de certa enfermidade de que nunca se curou. Soube então afetar tal grau de moléstia que parecia não ter muito tempo de vida. Grangeou a simpatia de um grupo de cardeais e ascendeu ao posto cobiçado com o aplauso popular. Tinha apenas 38 anos, mas não foi longe. Faleceu aos 46 em 1521. Muito ambicioso, sua grande preocupação foi o engrandecimento dos Médicis. Para seu irmão Juliano conseguiu o trono de Nápoles, a seu sobrinho Lourenço couberam a Toscana, Ferrara e Urbino. Para isso entrou em aliança com Luís XII. Ao subir ao trono Francisco I, quis renovar a aliança, mas o novo rei não o favoreceu nos planos que engrandeciam os Médicis. Negociou com Francisco por bom preço a permuta da Sanção Pragmática, que dava grande autonomia à Igreja francesa, pela Concordata, que punha nas mãos do rei a nomeação de todos os cargos eclesiásticos, ficando praticamente o rei de França como chefe da Igreja. Tudo isso mediante uma boa soma anual. Esse absolutismo real explica a oposição tremenda oposta à Reforma naquele país. Grande parte do pontificado de Leão X decorreu no meio de intrigas políticas. Em certa ocasião, elegeu num só dia 31 cardeais de uma vez, diz Michelet, na sua Vida de Lutero (p. 20), como meio de levantar dinheiro. As finanças eram a sua grande preocupação. Não tinha a seu dispor as minas do novo mundo como o monarca da Espanha, comenta ainda Michelet, e recorreu à mina das indulgências que assinalaram o fracasso do seu pontificado. Mas todas as taxas e tributos e dízimos, bem como a renda das indulgências, não chegavam para as prodigalidades do novo Mecenas, que despendia torrentes de dinheiro na proteção às letras e ciências. Quando morreu, diz um historiador, os credores ficaram em desespero. Não havia dinheiro nas arcas para pagar os círios do funeral. Leão X levou vida regalada. Passava dias em caçadas com os grandes
de sua corte. Apaixonava-se pela música e pelo teatro. Em sua presença foram representadas as primeiras comédias italianas. Nem damas faltavam à corte, uma das mais luzidas da época. Era brando e afável no trato. Favorecia os letrados e artistas. Deu pensões a vários deles. Fundou a biblioteca laurenciana em homenagem ao nome de seu pai. Adquiriu manuscritos de valor. Teve o mérito de dar o nome ao século em que viveu, graças ao resplendor de que se cercou, num tempo em que brilhavam Ariosto, Maquiavel, Rafael, Michelangelo, Guiciardini, Bramante e tantos outros vultos insignes. Mas a prodigalidade custou-lhe caro, na questão das indulgências.
19. Tetzel A aproximação de Tetzel — A basílica de São Pedro e a indulgência plenária — A impopularidade do tráfico — A escolha do eleitor de Mogúncia — Um discípulo de Leão X — O dominicano Tetzel — Um erro histórico — Seria o ciúme dos agostinhos o móvel de Lutero no ataque às indulgências?
Vem aí Tetzel com suas indulgências, apregoando com voz retumbante o mirífico valor e mostrando o cofre no qual deveria cair em profusão a moeda resgatadora dos pecados dos alemães. Após a proclamação das virtudes mágicas de sua panaceia, apontava ao cofre bradando: “Trazei, trazei, trazei!”. E o vulgo crédulo depositava a moeda que ao tinir fazia voar do purgatório a alma penada do pai, do irmão e do amigo. Tratava-se de uma Bula de indulgência plenária, cujo produto visava a conclusão da basílica de São Pedro, maravilha de construção iniciada em 1506 por Júlio II e que o magnífico Leão X queria ver levantada. Todavia, foi só em 1626 que se completou a suntuosa estrutura na qual se consumiram 46 milhões de escudos. A acolhida não foi a mesma em toda parte. A Espanha, onde o cardeal Ximenes havia iniciado um movimento religioso que tinha em vista tornar o clero mais bem preparado e mais diligente no seu ministério — a Espanha de Fernando e Isabel não se mostrou favorável à Bula. O mesmo se viu na Inglaterra e na França. Os monarcas e príncipes não recebiam os emissários com simpatia e razões para isso não faltavam. Por onde passava o mercador de indulgências era farta a arrecadação de dinheiro, ficando a terra empobrecida; o fanatismo e a superstição tomavam incremento, e a situação moral e espiritual do povo estava longe de experimentar melhora. Libertos do pecado pelo preço das indulgências, voltavam os penitentes aos pecados habituais, com mais desenvoltura e segurança. Mas na Alemanha mantinha o cetro imperial Maximiliano I, que não primava pela energia. Era um campo favorável. E Leão X dividiu o país em 3 distritos para o efeito e confiou um deles a um Hohenzollern, o eleitor Alberto, arcebispo de Mogúncia e de Magdeburgo, e irmão do eleitor Joaquim, do Brandemburgo.[20] O eleitor Alberto entrou em acordo com o seu patrono Leão X. Metade do lucro seria dele, para acudir ao pagamento dos 50 mil florins que fora
obrigado a pedir, tempos antes, ao banqueiro Fugger, que, por sua vez, enviou emissários ao séquito de Tetzel a fim de ir recolhendo o que lhe era devido. Outros chefes de Estado, à imitação de Alberto, só admitiam a venda das indulgências nos seus territórios, mediante associação nos lucros. Tudo convinha ao papa, necessitado como estava. Os pontífices exploravam algumas vezes eles mesmos o negócio das indulgências; outras vezes as arrendavam, como no caso vertente. Alberto encontrou o homem de que necessitava na pessoa de João Tetzel [21] com longa prática no assunto. Desde 1502 era vendedor oficial de indulgências. Sua experiência e autoridade o indicavam para a grande feira que se abriu na Alemanha. Aliás, Tetzel não se distinguia pelas qualidades morais. Acusado antes de adultério e condenado à morte, fora perdoado por Maximiliano, a pedido do eleitor Frederico. No caso das indulgências revelou plenamente o seu caráter. Frade dominicano, dois filhos o acompanhavam. E atacado pelos próprios correligionários e pelo núncio do papa, Miltitz, que o tachou de imoral, avarento e desonesto, morreu acabrunhado em seu convento, em 1519, no meio de lutas que o cercavam.[22]
20. Primeiros efeitos da tormenta O aparato da venda das indulgências — Imponência de Tetzel — O valor mágico da mercadoria — As 95 teses de Lutero — Acolhimento resultante — Tetzel e Konrad Wimpina
Os vendedores de indulgências pararam na divisa, em Jüterborg, a oito milhas de distância de Wittenberg. A exemplo de outros príncipes, não permitira Frederico que a Saxônia eleitoral fosse invadida. Era corrente naqueles dias o provérbio: “Quando Roma se aproxima, trata bem de apertar os cordões da tua bolsa”. Revestia-se de grande aparato a entrada do comissário das indulgências. Bimbalhavam os sinos. Os magistrados, o clero, os estudantes e grande multidão, com bandeiras e círios, iam ao encontro do ruidoso cortejo. Em carruagens ornamentadas, assomavam os frades comissários. A Bula pontifícia era conduzida por um frade, no cortejo procissional, sobre uma almofada. Tambores e clarins atroavam. Um dos emissários proclamava então, diante do magistrado principal: “A graça de Deus e a do Santo Padre estão diante de vossas portas”. Numeroso séquito associava-se aos representantes do papa. Encaminhavam-se todos para a Igreja, sendo acolhidos pelos sons do órgão entre nuvens de incenso. Em frente do altar-mor ostentava-se uma grande cruz vermelha. Nela flutuava o estandarte do pontífice, ao qual todos iam render homenagem. A um lado, jazia o cofre onde iria ter a moeda dos penitentes. Não cessavam os exercícios religiosos — cânticos, procissões, pregações, confissões. Tetzel surgia revestido dos hábitos dominicanos. Com voz possante apregoava o valor da indulgência, exaltando-a como se fosse a dádiva mais preciosa e sublime de Deus: “Eu não trocaria os meus privilégios pelos que São Pedro tem no céu, porquanto tenho salvado mais almas com as minhas indulgências do que São Pedro com os seus discursos”. Inculcava o valor delas sobre os pecados passados, presentes e futuros, bem como sobre as penas do purgatório. Pintava com cores vivas os tormentos das almas para comover os fiéis: “Escutai os vossos parentes e os vossos amigos que morreram e que vos gritam do fundo do abismo: ‘Estamos sofrendo o martírio! Uma esmolinha nos livraria. Podeis e não a querei dar!’”; “No mesmo instante em que a moeda retine no fundo do cofre, liberta-
se a alma do purgatório e voa livre para o céu”; “Eu vos declaro que, ainda que tenhais um só vestido, devereis tirá-lo e vendê-lo a fim de obterdes esta graça”; “O Senhor nosso Deus já não é Deus. Entregou todo o seu poder ao papa!”. Sobre os pecados futuros também exaltava o poder da mercadoria: “Vinde e eu vos darei cartas munidas de selos pelas quais mesmo os pecados que tiverdes vontade de cometer no futuro vos serão todos perdoados”. Havia preço especial para os pecados privados. A poligamia custava seis ducados. O perjúrio e o roubo, nove; o homicídio, oito; a feitiçaria, dois; e assim por diante. Bernardo Sansão, que percorreu a Suíça como Tetzel a Alemanha, cobrava por um parricídio ou fratricídio um ducado somente. Zuínglio o enfrentou. D’Aubigné cita um episódio bastante curioso, confirmado em alguns historiadores, entre os quais Hechtius, em sua Vida de Tetzel. Em Leipzig, um fidalgo saxônio escandalizado com o negócio das indulgências, dirigiu-se a Tetzel, indagando se possuía ele a faculdade de perdoar pecados que se tencionava praticar. O dominicano respondeu logo pela afirmativa. Confessou então o fidalgo que desejava exercer uma pequena vingança sobre um desafeto. Mediante 30 escudos obteve a respectiva Bula do perdão, depois de regatearem um pouco e, em companhia de alguns servos, foi esperar Tetzel em certo trecho do caminho, caindo sobre ele, tendo-lhe dado uma boa sova e arrebatado a caixa das indulgências. O frade deu queixa, mas o fidalgo apresentou aos tribunais a Bula do perdão. O próprio duque Jorge mandou que o acusado fosse absolvido. Tetzel ia ao ponto de imaginar toda sorte de pecados, mesmo os mais abomináveis: “Não há pecado tão enorme”, dizia, “que a indulgência não possa perdoar. Mesmo que alguém — o que é impossível sem dúvida — houvesse violado a pureza da Santíssima Virgem Maria, mãe de Deus, que pague, que pague bem e isso lhe será perdoado”. Contestou isso depois. Com a facilidade de perdão concedida pelas indulgências, a moralidade ia decrescendo. Com Lutero se deu o mesmo que com outros sacerdotes. No confessionário, ao imporem a penitência, acudiam logo os fiéis apresentando as respectivas Bulas que os isentava da pena. Ficou célebre o dito de Lutero em presença de Staupitz, quando ouviu
conta do escândalo das indulgências de Tetzel, então em Würzen: “Se Deus o permitir, eu farei um buraco no seu tambor!”. De fato, Lutero animou-se a desmascarar o dominicano. Com isso imaginava estar prestando um serviço a Roma, ignorando o ajuste entre Leão X e Alberto, o eleitor eclesiástico que se lhe associara a fim de acudir às exigências do banqueiro Fugger. Na pressa em receber os seus florins, um delegado deste último acompanhava o séquito, tendo consigo uma das três chaves do precioso cofre do produto das indulgências. Aproximava-se a festa de Todos os Santos quando a multidão afluía à Igreja do Castelo, em Wittenberg, para visitar a numerosa coleção de relíquias expostas à curiosidade popular. Lutero, sem proveito, se havia dirigido a alguns bispos, pedindo o concurso deles para opor um paradeiro ao tráfico indecoroso. Ninguém se incomodou. Ele, pois, sem consultar a ninguém, na véspera da festividade, ao meio-dia, afixou, às portas do templo, as suas 95 teses, prontificando-se a discuti-las em público como era o costume da época. Era o 31 de outubro de 1517, que marcou o início histórico da revolução religiosa no Ocidente. Em bem elaborado sermão, fortaleceu depois as suas teses. O corajoso impulso do frade alemão, no dizer de Schaff, fez dele um novo Bonifácio, quando, sete séculos antes, deitaram o machado ao tronco do carvalho sagrado que o antigo povo da Germânia adorava. No mesmo dia endereçou, com exemplares das teses, duas mensagens cheias de confiança. A primeira dirigia-se ao arcebispo eleitor que redigira minuciosas instruções para a propaganda da indulgência: Instructio summaria ro subcommissariis. Expondo os abusos de Tetzel e seus emissários, concluía Lutero: “Que posso fazer então, digníssimo bispo, sereníssimo príncipe, se não rogar a Vossa Alteza, por Nosso Senhor Jesus Cristo, que se digne olhar com fraternal cuidado para este assunto, retirando as Instruções e impondo outro tom aos pregadores de indulgências? Se assim o não fizerdes, levantar-se-á alguma voz que refute a esses pregadores para confusão de Vossa Alteza”. A segunda era endereçada ao bispo de Brandemburgo, Jerônimo Scultetus, a cuja diocese Wittenberg pertencia. O arcebispo não respondeu. O bispo aconselhou-o a não prosseguir mais. Ninguém aceitou o desafio. Estudantes e professores em Wittenberg quase todos concordavam com ele. As teses condenavam principalmente os abusos das indulgências, lamentando o tom profano dos vendedores. Entendia ele que o perdão
proclamado deveria ser gratuito. Os sinais exteriores do arrependimento, sem a dor íntima do pecado, de nada valiam. Era preciso a mudança de vida. Somente o arrependimento verdadeiro valeria ao pecador. Sem contrição nada aproveitaria. A proposição quinquagésima assim dizia: “É preciso ensinar aos cristãos que, se o papa conhecesse as exações dos pregadores de indulgência, preferiria que a metrópole de São Pedro fosse queimada e reduzida a cinzas a vê-la edificada com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas”. Consolava-se com a ideia de que o papa nada sabia daqueles abusos. O pecador arrependido, no seu entender, recebia o perdão sem as cartas de indulgência, ao passo que, sem contrição, nenhum mérito produziriam. Era como que o esboço do programa da Reforma. As teses logo se espalharam por toda a Alemanha e em breve estavam na Itália. Foram cedo traduzidas do latim para o espanhol, o holandês e o italiano. Muitos acolheram aquelas proposições de boa mente como Reuchlin, o grande hebraísta do século. O próprio Erasmo, que em tudo concordava com o monge revolucionário, mostrava-se satisfeito perante o duque Jorge e o cardeal Campégio. O imperador Maximiliano admirou-o então, vendo nele um possível aliado contra Roma na luta da Alemanha. A Frederico mandou dizer: “Conservai o frade Lutero com cuidado. Poderá vir o tempo em que dele necessitaremos”. O pintor Alberto Dürer, animando-o, enviou-lhe um mimo, talvez um dos seus quadros. Tetzel, porém, como era de esperar, encheu-se de furor. Às teses de Lutero opôs outras suas, em janeiro de 1518, em Frankfurt (Oder), onde havia desde 1506 uma universidade rival da de Wittenberg. As teses que Tetzel se propunha a discutir haviam sido elaboradas por Konrad Wimpina, doutor em teologia, professor e primeiro reitor da nova universidade. Era êmulo de Pollich Mellrichstadt. Preparou teses e antíteses em auxílio de Tetzel, defendendo as indulgências e a autoridade do papa. A primeira série continha 106 proposições, a segunda 50. Em seu zelo pela causa que defendia, numa das teses, Tetzel confirmava: “O que afirma que a alma não sai do purgatório ao tinir da moeda no cofre, labora em erro”. Tetzel e seu companheiro não atacaram somente a Lutero. O eleitor Frederico, que o tolerava, foi também atingido nas teses. Aos dois frades resistiu vitoriosamente, em debate público, um jovem franciscano
de 20 anos, João Knipstrow, futuro reformador na Pomerânia. Tetzel, cada vez mais encarniçado, dirigiu-se em procissão solene para um dos arrabaldes da cidade. Levantou um púlpito e um cadafalso e sobre este queimou as teses de Lutero, bradando do púlpito que a mesma sorte teria o frade. O dominicano era também inquisidor. Em réplica, os estudantes de Wittenberg deitaram igualmente às chamas as teses de furibundo apóstolo das indulgências. Lutero não tomou parte nessa desforra, a despeito de acusações contrárias. Manifestou até seu desagrado ante a represália. Em obras subsequentes, corroborou a doutrina das suas teses, especialmente nas Resalutiones.
21. O firmamento cobre-se de trevas A voz do dr. Eck — Obeliscos e Asteriscos — O capítulo de Heidelberg — Três futuros reformadores — Martinus Eleutherius — Hoogstraten — Prierias — Firmeza de Lutero — Celeuma provocada pela questão das indulgências
Primeiro fora a réplica dos dominicanos e de Wimpina. Era como se por eles se pronunciassem as respectivas universidades a que estavam ligados — Leipzig e Frankfurt (Oder). A primeira, manifestando o seu agrado, conferiu a Tetzel o grau de doutorado por ocasião do debate recente. Agora era a vez de falar a Universidade de Ingolstadt pelo seu chanceler e professor João Eck, nascido em Eck, na Suábia, em 1486, e filho de camponeses como Lutero. Humanista e teólogo, era tido como homem de capacidade e veio a ser um dos mais terríveis adversários do reformador, não obstante haverem sido amigos antes disso. Em março de 1519 o doutor de Ingolstadt saiu à liça, replicando as teses e atacando fortemente a Lutero, a quem procurava humilhar e desprezar. Seu trabalho circulou em manuscrito sob o título de Obeliscos. Eck representava a sediça escolástica combatida frequentemente por Lutero. Os Obeliscos tiveram grande divulgação. Lutero não era poupado naquelas páginas, sendo tido por herege e continuador de Huss e das heresias da Boêmia. Embora em manuscrito, o opúsculo espalhou-se rapidamente. Eck procurou lançar a culpa da publicidade ao bispo de Eichstadt, a pedido do qual escrevera a obra. Assim se justificou em carta a Karlstadt. Achava-se Lutero de viagem para Heidelberg quando os Obeliscos apareceram. Por isso Karlstadt apressou-se a responder ao dr. Eck com as suas Conclusiones. Ao regressar, respondeu Lutero com os seus steriscos, também em manuscrito. Depois saíram impressas as obras dos dois principais contendores. Mas os ataques deviam suceder-se com rapidez. O assalto do reformador ia mesmo aos fundamentos do papado. Roma começou a polir as armas do seu bem guarnecido arsenal. Ia reunir-se em Heidelberg, em abril, o capítulo dos agostinhos e de Roma já viera ordem para ser chamado a contas o monge perturbador. Saiu Lutero a pé de Wittenberg. Foi sendo bem acolhido pelo caminho. Em Judenbach, Pfeffinger,
conselheiro íntimo de Frederico, deu-lhe boa acolhida. Em Wurzburgo, o bispo da cidade, Lourenço de Bibra, que havia recebido bem as teses, tratou-o com consideração. Staupitz e Lange, prior em Erfurt, que também ali estavam de passagem, ofereceram-lhe lugar na carruagem para o resto da jornada. Segundo refere Grisar (p. 62), teria Lutero nesta ocasião de deixar o seu lugar de vigário. A atitude do frade rebelde devia entrar na ordem do dia. Para justificar-se, Lutero aproveitou o ensejo para discutir uma série de 40 proposições ou Paradoxos, fundadas em São Paulo e Santo Agostinho, em que eram encaradas doutrinas tais como a depravação da natureza humana, a escravidão da vontade, a graça regeneradora, a fé e as obras. Deduz Schaff que nelas advogava a theologia crucis contra a theologia gloriae, contrastando a Lei com o Evangelho. As últimas 12 teses encaravam a filosofia de Aristóteles. Travou-se o debate no próprio convento dos agostinhos, por haverem os professores da universidade negado o local para a pugna. A assistência era seleta e numerosa. Cinco doutores em teologia combateram as teses. A resposta de Lutero, baseada nas Escrituras, causou boa impressão e fez calar os adversários. Era a sua defesa na acusação do momento. Assim voltou em paz.[23] Leão X ao receber as primeiras notícias do debate de Lutero contra Tetzel, não ligara a isso a devida importância, achando não passar de uma querela de monges: “Frei Martinho é homem de talento. Seu rompimento é uma contenda de monges ciumentos”. Ao receber, porém, as teses, teria dito: “Foi um ébrio alemão que as escreveu. Quando a embriaguez se dissipar, pensará de outra maneira”. Lutero, homem talhado para lutas, armazém de pancadas em pequeno, suportava tudo corajosamente. Nesse período assinava-se nas cartas Martinus Eleutherius, isto é, livre ou independente dos homens, dizia, mas servo de Cristo. Depois de Tetzel, de Wimpina, de Eck, surgem novos campeões. Um deles é Jacob Hockstraten ou Hoogstraten, de origem holandesa. Era prior dos dominicanos de Colônia e inquisidor ao mesmo tempo. Fora ele adversário ferrenho do sábio Reuchlin, ao qual fez comparecer perante o seu tribunal inquisitorial. Contra ele e os frades do dia, ignorantes e fanáticos, caíra a sátira dos humanistas, quando, nas célebres Epistolae obscurorum vivorum, atacaram ironicamente a ignorância dos frades,
trabalho atribuído a Crotus Rubeanus, Huten e outros. O dominicano de Colônia, tomando as dores pela ordem a que pertencia, estremeceu de furor e clamou contra o herege. “É um crime de alta traição contra a Igreja, afirmava, deixar viver mais uma hora um tão terrível herege!” Martinho replicou, não temendo a fúria inquisitorial. Roma levanta-se diretamente contra o monge alemão. Tem a palavra agora Silvestre Mazzolini da Prierio, dominicano de Roma, mestre do sacro palácio e também censor, sendo por isso o primeiro ali a ter notícia da tese. Produziu logo um escrito agressivo dedicado ao papa. Tinha a forma de diálogo e era um conjunto de injúrias e zombarias. Dizia “ser curioso saber se Lutero teria nariz de ferro ou cabeça de bronze, que não pudessem ser despedaçados” [“an ferreum nasum aut caput oeneum gerat iste Lutherus, ut effringi non possit ”]. Prierio discutia o ponto da autoridade. Onde residiria a fonte infalível do poder? Para ele a voz do papa era a autoridade infalível. Querendo zombar do frade de Wittenberg, dizia: “Querido Lutero, se houvesses recebido de teu senhor, o papa, um bom bispado e uma indulgência plenária para a reparação de tua Igreja, andarias com mais tato e exaltarias a mesma indulgência que difamas agora com tanta satisfação”. Era julgar os outros por si mesmo. Lutero não tardou em responder, estabelecendo com firmeza o princípio de que, na Bíblia, só na Bíblia, e não no papa, reside a suprema autoridade. Foi um dos princípios básicos do movimento religioso do século XVI. Prierio replicou e continuou a escrever, mas foram tais os inconvenientes que o papa teve de lhe impor silêncio. Enquanto sobre sua cabeça rolava a tempestade, continuava Lutero a pregar e a ensinar no posto onde se achava. Publicou naquela época vários desses ensinos como os Discursos sobre os Dez Mandamentos e a Exposição da Oração Dominical. Falando contra as indulgências, jamais atacava a pessoa de Leão X, a quem muito considerava. Em 30 de maio daquele ano de lutas, dirigiu ao pontífice uma epístola em que expunha a questão e se ustificava. Em certo trecho, dizia: “Se não me houvesse eu conduzido neste assunto como se deve, fora impossível que o sereníssimo Frederico,
duque e eleitor da Saxônia, que brilha entre os amigos da verdade cristã e apostólica, houvesse jamais tolerado em sua Universidade de Wittenberg a um homem tão perigoso como pretendem que eu seja”. Esta carta com as suas Resoluções enviou-a ao pontífice por intermédio de Staupitz. Todavia naquela época Roma se empenhava em abafar a voz do reacionário. O cardeal Rafael de Rovere, em nome do papa, escreve, em 3 de abril, a Frederico, insinuando haver já desconfianças sobre sua fé. Deveria quanto antes retirar de Lutero a sua proteção. Entretanto o povo alemão ia compreendendo a força do grande lutador e muitos estavam prontos a estender-lhe o manto que o haveria de resguardar.
22. O rugido do leão Leão X assume uma atitude — Ao herege uma fogueira — O Ganso da Boêmia cede o passo ao Cisne da Alemanha — Citação perante o tribunal de Roma — Política da época — Missão de Cajetano — Viagem para Augsburgo — Em frente do legado — Fuga para Wittenberg — Apelo para o papa mais bem informado
Leão X começa a agir. Se Frederico é por ele, deverá opor-se ao frade rebelde. O mesmo deverá fazer o encanecido imperador. O monge ousado terá de ir à corte pontifícia, a dar contas do seu atrevimento. Justificando o nome que usa, ruge o leão de Roma com seu bramido atroador, lembrando-se, porventura, o filho de Lourenço, o Magnífico, de um daqueles dias rubros em que comandava na Itália as hostes belicosas do papa Júlio II. Mas o fradezinho da Alemanha confia na missão que lhe havia sido traçada. Volve os olhos para o Alto e apela do juízo do Vaticano para o ulgamento de Deus. Crê e espera. Impávido resiste. João de Médicis de nenhum modo o aterrará. Incidam sobre sua fronte os raios do Vaticano. Esmague-o o anátema do império. Parece que tudo se conspira para o sacrifício. Seria uma fogueira a mais e mais um herege reduzido a cinzas no acervo imenso de Roma. Tetzel proclamara que Lutero deveria ser queimado. O bispo de Brandemburgo, aquentando-se no seu salão de inverno, arrojara ao braseiro um tição, exclamando convencido: “Não quero deixar minha cabeça em paz enquanto não houver arremessado Martinho ao fogo como faço a este tição”. Hoogstraten, de Colônia, vocifera pedindo a morte do herege. O censor romano Prierio entendia que a Igreja nem devia empregar razões para combater e vencer os rebeldes. Eck teria de pedir a sentença de excomunhão para o seu amigo de outros tempos. Cem anos antes o Concílio de Constança ateara a fogueira de João Huss, o herói nacional da Boêmia. Ao procederem à cerimônia da degradação, rezava a tradição haver exclamado o sacerdote boêmio no momento em que o despojavam do cálice: “Centum revolutis annis Deo respondebitis et mihi” [“Dentro de cem anos responderei perante Deus e perante mim”]. A legenda foi afixada a uma medalha que circulou então da Boêmia.
Outra tradição referia que do alto da fogueira exclamara também: “ Hodie anserem uritis, sed ex meis cineribus nascetur cygnus quem non assare poteritis”, que se traduz: “Hoje queimais o ganso, das minhas cinzas, porém, nascerá um cisne ao qual não poderei assar”. O nome Huss tem a significação de ganso. Fosse ou não autêntica a predição, o certo é que o cisne de Wittenberg iria realizar o vaticínio do ganso da Boêmia. O grito dos teólogos e dos frades despertara Leão X que nomeou um tribunal em Roma para tratar do caso de Lutero, do qual fazia parte o já mencionado Silvestre Prierio. Martinho, que havia escrito ao papa, justificando a sua atitude, recebeu com surpresa, em 7 de agosto daquele ano de 1518, uma citação intimando-o a comparecer perante o referido dentro de um limite de 60 dias, limite esse que veio a ser antecipado. A consternação apoderou-se de seus amigos de Wittenberg. Ir a Roma era caminhar direito ao sacrifício. O monge aflito escreveu a Espalatino. Intercedesse ele perante o eleitor para que lhe fosse concedido responder à citação em algum ponto da Alemanha. O eleitor mostrou-se favorável e seu secretário dirigiu-se ao imperador no mesmo sentido. A Universidade de Wittenberg fez o mesmo. Leão X parecia haver resolvido a perda do frade. Exigia-se dele uma retratação pelo menos. Mas a política deveria também intervir. Em agosto reunira-se em Augsburgo a Dieta. Seria a última a ser presidida por Maximiliano. O imperador manifestara aos eleitores e aos príncipes da Alemanha o desejo de ver a coroa do império repousar sobre a fronte do seu neto Carlos, já de posse do trono da Espanha. Frederico, que era o mais considerado entre os príncipes alemães, se opôs a isso com firmeza e a ideia não foi por diante naquela ocasião. Quando Leão X soube da atitude de Frederico louvou muito a posição que este assumira. É que o rei da Espanha mantinha o cetro de Nápoles e ao papa não lhe conviria um tal aumento de poder. O pontífice acedeu em enviar um legado à Alemanha para ouvir ali o frade sedicioso. Mas rogava ao eleitor que pusesse seu empenho em entregar ao legado o “filho do diabo”. Maximiliano, que havia reputado Lutero como elemento de valia na política contra Roma, levado agora pelos seus planos políticos, queria captar a simpatia do pontífice em favor do neto. Por isso dirigiu-lhe uma carta lisonjeando-o. Toma-se de dores pela ortodoxia e suplica a Leão X que não
deixe de chamar logo a contas o monge em questão. A escolha do papa para ouvir a Lutero na Alemanha recaiu na pessoa do cardeal Tomás de Vio, de Gaeta ou Caieta, e daí apelidado de Cajetano ou Caetano. O cardeal representara o papa na recente Dieta de Augsburgo. Na mesma cidade deveria realizar-se o encontro. Uma tradição refere que o cardeal se hospedou com o opulento Fugger, banqueiro do imperador e do papa. Eram severas as instruções recebidas por Cajetano. Deveria solicitar o apoio de Maximiliano e de todos os poderes da Alemanha para ter Lutero ao seu alcance e conduzi-lo a Roma no caso de não mostrar arrependimento. Na hipótese contrária, o legado deveria excomungá-lo, fazendo o mesmo a todos os prelados, ordens religiosas, universidades, congregações, condes, duques e potentados, que o não auxiliassem nesse empenho. Todas as entidades citadas ficariam debaixo do interdito se protegessem o rebelde. A única exceção seria a pessoa do imperador. Todos os mais seriam declarados infames e privados da sepultura dos cristãos, segundo D’Aubigné. Como se vê, era o bramido espantoso do leão romano. Lutero partiu em setembro de Wittenberg para atender ao legado, fazendo a viagem a pé. A 7 de outubro foi recebido em Augsburgo pelo dr. Peutinger, humanista e conselheiro da cidade, e por dois conselheiros do eleitor. Visitara Frederico em Augsburgo o legado, antes de retirar-se da Dieta. Cajetano prometera-lhe tratar com benignidade a Lutero, que compareceu no dia 11, munido de um salvo-conduto, a conselho dos amigos. O imperador andava à caça depois da reunião da Dieta e isso facilitou a obtenção do documento. De caminho tocara Lutero em Weimar, onde Frederico tinha a sua corte. Os franciscanos hospedaram-no e ali se encontrou pela primeira vez com Frederico Miconius, franciscano, que se converteu depois em luterano, como tantos outros frades ao travar-se o grande conflito religioso. Veio a ser elemento de valor na difusão do movimento e escreveu mais tarde uma História da Reforma. Convém notar que o cardeal legado, na sua vinda à cidade onde se reunira a Dieta, fora portador do chapéu cardinalício para o arcebispo eleitor de Mogúncia, o mesmo que fora o concessionário das indulgências que atearam o incêndio da Alemanha. A cerimônia imponente realizou-se
na catedral de Augsburgo. Cajetano era dominicano e geral da ordem, e tomista tão apaixonado que mudara o seu nome de Tiago para Tomás ao entrar nos dominicanos. Escreveu um comentário sobre a Summa do doctor angelicus. A fim de preparar o terreno, enviou o cardeal um cortesão italiano de sua comitiva, Urbano Serra Longa, a entender-se com Lutero. Como se fora um mestre de cerimônias, Serra instruiu o frade ainda mesmo na maneira de se apresentar diante de Cajetano. Deveria prostrar-se até tocar o rosto no chão e depois ajoelhar-se quando recebesse a ordem de se erguer. Mas o fim principal dele foi aconselhar a Lutero que se retratasse logo e tudo ficaria sanado. Lutero desconfiou das amabilidades e das artes do cortesão. Mais astuto do que o italiano, lembrou-se de um incidente de Virgílio e disse com os seus botões: “Este astuto Sinon foi muito mal instruído e muito mal adestrado pelos seus gregos”. Lutero compareceu três vezes perante o legado. Foi tratado por este com muita cordialidade, em termos de carinho e de afeto. Mas no fim havia uma condição a exigir dele: retratação ou condenação. Dizia ao frade que bastaria uma palavra de poucas letras: “ Revoco” [“retrato-me”]. Mas Lutero resistiu citando as Escrituras, em cujas doutrinas se apoiava. Cajetano propunha três coisas em nome de Leão X, três artigos a que deveria prestar adesão: retratação e reconhecimento de culpa, silêncio e compromisso de não divulgar mais as suas opiniões, e finalmente moderação daí em diante no modo de tratar as questões religiosas. Foram três dias de conflitos e fortes discussões. O paternal Staupitz acudiu a Augsburgo a ver se podia valer ao seu amigo. Não o conseguindo demover, tomou uma resolução dolorosa. Decidiu-se a desligar Lutero da obediência para com a ordem, sendo a cerimônia efetuada com as formalidades do estilo. Lutero entristeceu-se ao ver-se rejeitado por aqueles que o haviam acolhido. Staupitz teve dois fins em vista — diz D’Aubigné — evitar que a ordem ficasse maculada com a condenação de um de seus membros; e livrar-se de responsabilidades no caso do cardeal exigir dele que obrigasse Lutero ao silêncio ou à retratação. O debate entre Lutero e o legado e seus assistentes foi tremendo. O bom Staupitz procurou intervir algumas vezes no sentido de atenderem às razões de Lutero, na confusão que se estabelecia. Nada se conseguiu e o
cardeal teve palavras duras. Não queria mais tratar com aquela besta que tinha na cabeça estranhos pensamentos: “ Ego nolo amplius cum hac bestia loqui. Habet enim oculos et mirabiles specidationes in capite suo”. Não houve acordo possível. Cajetano ameaçou com a excomunhão de que vinha armado, mas não se pôde apoderar dele, defendido pelo salvoconduto. Sua vida corria perigo e os amigos prepararam-lhe a fuga, auxiliados pelo próprio Staupitz. Um cavalinho que Staupitz lhe havia deixado, foi levado à porta do convento. Despediu-se dos carmelitas onde estava hospedado, cujo prior havia sido estudante em Wittenberg. Partiu de noite às escuras por um postigo na muralha. Cavalgava um animal trotão. Com a pressa deixara parte da vestimenta e viajava sem armas, sem esporas e sem botas. A vítima escapara das garras do algoz. Antes de sair de Augsburgo, porém, deixou Lutero uma carta e um apelo devidamente assinado e preparado nos termos da lei, em que “apelava do papa mal informado para o papa mais bem informado”.
23. A Rosa de Ouro Na iminência do exílio — Solução inesperada — Miltitz — Fim de Maximiliano — Frederico na regência do império — Tetzel chamado a contas — O engodo da Rosa de Ouro e a independência de Frederico
Em Wittenberg foi Lutero acolhido com regozijo pelos amigos e tratou de preparar outro “apelo” do papa para o Concílio geral. Mas o perigo continuava iminente. O cardeal Cajetano escreveu logo ao eleitor dando conta da situação e pedindo-lhe que enviasse o frade a Roma ou o expulsasse dos seus territórios. Aconselhava-o a não deslustrar a sua honra e dos seus maiores por causa de um miserável frade como Lutero. O eleitor enviou ao frade cópia da carta e este respondeu-lhe queixando-se da injustiça com que o tratavam os emissários do papa, não querendo ouvir os seus argumentos. Suplica-lhe, porém, que não o envie a Roma, onde sua vida não estaria segura. Preferiria o desterro. A universidade também intercedeu e por último Frederico recusou atender ao pedido. Nem enviaria Lutero a Roma, nem tampouco o desterraria. Dizia mais o eleitor que a universidade tinha a Lutero em grande conta. Antes, porém, deste desfecho, o eleitor hesitava. Chegou mesmo a pedir a Lutero que se afastasse de Wittenberg. Consternado com isso, Lutero renovou a cena de Erfurt, quando se despediu dos amigos para ir buscar refúgio no convento. Convocou os seus íntimos para uma refeição de despedida. Sentado à mesa, com eles discorria. Interromperam-no. Uma carta vinha da parte do eleitor. Era desoladora. Indagava do motivo por que Lutero se demorava tanto em retirar-se. Sucumbido de tristeza, cita aos seus amigos a frase do salmista: “Quando meu pai e minha mãe me desampararem, o Senhor me recolherá”. Estavam ainda à mesa quando vem nova mensagem da corte. Que seria? Era a intervenção de um poder estranho. Lutero havia resolvido refugiar-se na França, mas agora vem nova ordem. Já não havia pressa. Ele que se demorasse mais um pouco, pois o enviado do papa desejava arranjar uma solução por meio de mais uma conferência. Era a salvação nas angústias do momento. Entretanto Leão X fazia publicar pelo seu legado nova Bula na Alemanha, confirmando a doutrina das indulgências, mesmo nos pontos em que haviam sido impugnados. A medida foi contraproducente. Provocou
repulsa de quantos haviam reprovado a campanha indecorosa de Tetzel. Enquanto estas coisas ocorriam, apelava Lutero, em 28 de novembro, da decisão do papa para um Concílio geral. Por sua vez, Cajetano era censurado pela inabilidade diplomática. Os cortesãos de Roma entendiam que melhor andaria o legado oferecendo a Lutero um rendoso bispado ou um chapéu de cardeal. Mais adiante, em Worms, conta-se haver dito o eleitor que conhecia um certo Martinho que poderia vir a ser arcebispo ou cardeal — contanto que se retratasse. Novo embaixador foi escolhido em lugar do desastrado cardeal. Era agora um fidalgo saxônio, agente dos príncipes da Saxônia, camareiro pontifício e cônego de Mogúncia, de Tréveris e de Mísnia. Amigo do vinho, dele Palavicini testificou na História do Concílio Tridentino: “ Nec ab usu immoderato vini abstinuit ”. Esperava-se muito de sua habilidade. Frederico estava em boas graças perante Leão X e este, com seu faro político, lembrouse de premiá-lo com uma insígnia de há muito por ele acariciada — a Rosa de Ouro, concessão feita a reis e príncipes. Em dezembro o novo legado entrava na Alemanha. A Rosa de Ouro seria o meio empregado pelo papa para se apoderar de Lutero e Miltitz assim o esperava. Notou, porém, com espanto, que a heresia luterana progredia a passos largos. Moeller, em sua History of the Christian Church (traduzida do alemão) nota que em toda a nação havia grande interesse por Lutero (vol. III, p. 13). Por segurança foi a Rosa de Ouro depositada na casa mercantil do banqueiro Fugger, em Augsburgo (Kostlin, p. 103). Outros historiadores dizem que pelo caminho ia o legado sondando a opinião pública e viu que, por uma pessoa favorável ao papa, havia três ao lado de Lutero. Compreendeu então que nem com um exército de 25 mil homens poderia conduzir Lutero a Roma: “Estava munido de setenta breves apostólicos. Se as lisonjas e favores de Roma ferissem o alvo, se Frederico entregasse Lutero em suas mãos, esses setenta breves lhe deveriam de alguma maneira servir de passaportes. Miltitz queria exibir e afixar um breve em cada cidade que tivesse de atravessar, esperando destarte conseguir dar com seu prisioneiro em Roma sem oposição”. Mas o horizonte político se transformou. A 12 de janeiro de 1519 falecia Maximiliano,[24] sendo o eleitor Frederico investido da regência do Império até que se fizesse a eleição. Agora a personalidade deste último avultava aos olhos de Leão X, o que era uma garantia para Lutero, a quem o
eleitor queria proteger. É assim que uma intervenção estranha surgia para o livramento do reformador. Entretanto, penetrando na Saxônia, achou-se Miltitz em Altemburgo, onde residia Espalatino, que era seu amigo. A despeito da mudança que se ia operando na situação política, não quer perder ele o ensejo de se apoderar de Lutero. Ao tocar no assunto, porém, ouve do seu amigo as mais fortes objurgações contra o comissário Tetzel, acusado de improbidade na venda das indulgências, movido pela ganância. Miltitz quer fazer justiça e cita o frade para vir justificar-se em Altemburgo. Era o feitiço contra o feiticeiro. O comissário treme de susto e não quer comparecer, receoso pela própria segurança. À vista disso, o legado vai ouvi-lo em Leipzig e ameaça-o com a ira de Leão X. Além de tudo, era apontado como o causador da divisão que ameaçava a Igreja. O agente da casa Fugger ali se encontrava, e Miltitz pôde apresentar ao frade as contas da casa bancária e os papéis que Tetzel assinara, provando que este, ou desperdiçara ou subtraíra considerável soma. O dominicano entrou em desespero e em grande abatimento. Tal foi o choque que pouco depois veio a sucumbir. Não pôde suportar o peso do desgosto. Quando caiu na desgraça, Lutero mostrou-se magnânimo, enviando-lhe uma carta de simpatia. O encontro entre Lutero e o legado dera-se em janeiro, em Altemburgo. Recebeu-o com amabilidade e procurou captar-lhe a confiança. Dizia que esperava encontrar um velho teólogo e dava com um rapagão na flor da idade. Repetindo o ataque de Cajetano, volta a falar-lhe em retratação. Lutero prometeu calar-se daí em diante se os adversários fizessem o mesmo. Por um acordo feito, as duas partes não disputariam mais sobre a questão. Miltitz informaria do acordo ao papa e este nomearia um bispo para estudar os fatos e apontar os artigos de que Lutero se deveria retratar, caso o convencessem do erro. Em 3 de março mais uma vez escreve Lutero ao papa mostrando o seu modo de pensar. A seguir, o emissário do pontífice convidou-o a cear. Derramou lágrimas pedindo a Lutero que não rasgasse o manto da Igreja. Por fim, estendeu os braços e beijou Lutero que desconfiou de tantas finezas, como no caso de Serra Longa. Não seria este um outro Sinon? A despeito do ósculo, Miltitz foi ter uma entrevista com Cajetano, que
se achava em Tréveris. Não queriam deixar escapar a vítima. Escolheram o arcebispo eleitor de Tréveris como medianeiro para se apoderar dela. Mas o frade entrou em acordo com o eleitor da Saxônia, seu amigo, resolvendo-se, por fim, que somente na próxima Dieta, seria o caso discutido. A delonga serviria a Lutero. Entregando-se ao estudo da história eclesiástica, admirou-se ele de não encontrar vestígios do papado nos dias antenicenos. O caso das Decretais do papa e da Doação de Constantino começava a impressioná-lo. A propósito, porém, da Rosa de Ouro, repetia Lutero um episódio vindo de Roma. Contava-se que, estando os cardeais reunidos, surgiu entre eles a proposta de ser enviada a citada condecoração sob a condição da entrega do monge rebelde. A isso replicara um deles em cólera: “Acaso sereis tão tolos ou tão crianças, vindo a supor que conseguireis do príncipe a venda do monge?”. Rasgou então o cardeal o papel que continha a proposta (McGiffert, Martin Luther, p. 127). Verídica ou não a versão, o certo é que o eleitor da Saxônia, com a independência que o distinguia, não se deixou peitar e recebeu quase com indiferença a honraria que antes tanto cobiçara.
24. O Debate de Leipzig Acordo desfeito — Os pródromos do debate — Aprestos em Leipzig — A numerosa assistência — Início do debate — Retrato dos três contendores — Karlstadt e Eck — Luther e Eck — O termo do debate — Resultados
A luta ia continuar. Rogara Miltitz a Lutero que não rasgasse a Igreja de Cristo. Ia, porém, ser desfeito o acordo. O silêncio ia ser quebrado. Os representantes de Roma provavam-se inábeis como diplomatas e tudo ia correndo para a dissidência que se veio a manifestar, muito embora Lutero não pensasse em deixar a Igreja em cujo seio crescera. O próprio Staupitz, seu pai espiritual, desligara-o em Augsburgo da obediência à ordem a que se filiara desde moço e Roma não cessava de ameaçá-lo por todas as formas. Foram ao ponto de queimá-lo em efígie, uma vez que o não conseguiam apanhar vivo. A isso ele se refere em uma das suas epístolas: “Asseguram-me que queimaram publicamente em Roma, no campo de Flora, um Martinho Lutero de papel, depois de o terem coberto de execrações”. O doutor de Ingolstadt teria de ser impensadamente o violador do acordo de Augsburgo, provocando a disputa de Leipzig, que tão alta significação viria a ter. Começara a luta por escrito entre Karlsdadt e Eck. Mas o impetuoso arcediago de Wittenberg mostrou-se tão imprudente como o seu contendor. Por fim combinou-se a disputa para Leipzig com a devida permissão do duque Jorge, concordando nisso a Universidade de Wittenberg. Via-se, porém, que o dr. Eck, que se jactava de suas vitórias em oito universidades com vários opositores, não tinha em vista somente o arcediago. Seu empenho era convocar à liça o frade rebelde e derrotá-lo publicamente. Havia atacado as teses de Lutero. Publicara contra ele 13 proposições, às quais replicou Lutero por escrito. A última proposição do rebelado assim dizia: “É por meio de decretais desprezíveis, forjadas há quatrocentos anos e ainda menos, que se demonstra o primado da Igreja de Roma. Mas este primado tem contra si a história fidedigna de mil e cem anos, as declarações da Escritura e as conclusões de Niceia, o mais santo de todos os Concílios”. A alusão é para as assim chamadas Decretais de Isidoro que depois a crítica histórica provou serem apócrifas. Por muitos anos passaram por autênticas e tinham por fim promover os interesses de Roma, demonstrando o primado de Pedro e a sucessão ininterrupta dos papas.
Para ir a Leipzig, acompanhando Karlstadt, obteve Lutero o salvoconduto do duque. O bispo de Merseburgo, a que estava Leipzig jurisdicionada, temeu pelas consequências da disputa e chegou mesmo a proibi-la, mas o duque Jorge era amigo do livre exame e não o ouviu, aparelhando, para o debate, uma sala no seu palácio de Pleissemburgo. Primeiro apresentou-se o doutor de Ingolstadt, com seu secretário Poliandro, a 21 de junho. A 24 chegavam os de Wittenberg. À frente vinha Karlstadt. Depois o duque Barnim, da Pomerânia, reitor da universidade, tendo na sua sua carruagem Lutero e Melâncton. Vinha também João Lange, agora vigário distrital em substituição de Lutero. E ainda outros vultos depois notáveis no movimento reformador, como Justo Jonas e Amsdorf, e vários teólogos e eclesiásticos. Os estudantes, em número de duzentos, mais ou menos, também se uniram ao cortejo, armados convenientemente para defesa de seus mestres. Eck era tido por muitos como o mais hábil teólogo da Alemanha, sendo três anos mais moço que Lutero. Aos 14 graduara-se em Tübingen como mestre em Artes. Lutero falava dele com respeito e mantiveram amizade até o tempo das indulgências, quando Eck o acometeu nos seus Obeliscos, destinados a princípio à circulação privada. Lutero replicara com os Asteriscos, e a inimizade entre ambos foi crescendo. Ao chegar Lutero a Leipzig visitou-o Eck, manifestando desejo de disputar antes com ele do que com o seu amigo Karlstadt. Só a muito custo o duque conseguiu nisto. Foi a 27 de junho de 1519 que a discussão teve início entre o dr. Eck e o deão de Wittenberg. Em 4 de junho Karlstadt cedeu o lugar a Lutero e somente a 15 terminou o debate, sendo que, nos dois últimos dias, Karlstadt teve de novo a palavra como no início da disputa. A cerimônia cercou-se das solenidades do estilo naquela manhã de ulho. Da universidade saíram todos em procissão à Igreja de São Tomás, onde se celebrou uma missa cantada. Daí foram ao palácio ducal onde seria realizado o debate. Uma guarda foi colocada às portas do castelo para impedir a perturbação da ordem. Deram-se então os preliminares da disputa. [25]
A disputa entre Eck e Karlstadt durou vários dias. O assunto foi o livrearbítrio. O arcediago apoiava-se na Bíblia e em Santo Agostinho. A vontade do homem antes da conversão, dizia ele, nada pode fazer que seja de bom. Toda a obra boa vem de Deus que dá ao homem, a princípio, a vontade de fazê-la e depois a força para completá-la. A doutrina dos reformadores não negava a liberdade do homem como agente moral, nem fazia dele máquina passiva. Consistia a liberdade no poder de obrar segundo a escolha. Toda a ação feita sem constrangimento é ação livre. A alma se determina por motivos, mas estes em muitos casos operam diversamente. A corrupção do homem é que torna ineficazes os motivos. Mas a regeneração arreda os obstáculos e isso não priva o homem da sua liberdade. Karlstadt era de fraca memória nas citações e Eck levava-lhe vantagem. Levava cadernos com argumentos, mas não lhos permitiram ler. Apenas concederam que lesse passagens dos santos padres. Terminou o debate e o arcediago pareceu não ter levado a melhor. No dia 4 de julho entrou Lutero na liça. Sobre o púlpito via-se o retrato de São Martinho, o santo de seu nome. Acima do púlpito de Eck via-se a efígie de São Jorge. Lutero, diz Schaff, era inferior a Eck em erudição histórica e em latinidade, mas excedia-o no conhecimento da Bíblia, em originalidade, em uízo independente e tinha do seu lado a lei do progresso. Lutero começou: “Em nome do Senhor! Amém. Declaro que o respeito que consagro ao pontífice me teria obrigado a não sustentar esta disputa se o excelente dr. Eck não me tivesse a isso impelido”. E Eck por sua vez: “Em teu nome, doce Jesus. Antes de descer à arena, protesto em vossa presença, magníficos senhores, que tudo quanto eu disser está submetido ao juízo da primeira de todas cadeiras e do mestre que nelas está sentado”. Estavam aí as duas correntes. Eck submetia-se a Roma cegamente. Lutero alude à quebra do acordo com Miltitz, devido à provocação do seu opositor. Nessa direção deveria progredir. Entrou em debate a supremacia papal e a discussão prolongou-se por muitos dias. Acreditava Eck no absolutismo e na infalibilidade do papa, sucessor de São Pedro. Lutero nos últimos meses havia estudado bem o
assunto e respondeu com muita cautela. Em seus estudos chegara a conclusões diferentes. Achava tal pretensão contrária às Escrituras e à Igreja primitiva. Quando Eck estabeleceu que a Igreja deveria ter um chefe, sendo este o pontífice de Roma, Lutero afirmou ser o próprio Cristo e não um homem o chefe da Igreja militante. Apoiando-se nos padres e nos Concílios primitivos, disse que o bispo de Roma seria não o bispo universal, superior aos demais bispos, mas apenas o primus inter pares, o primeiro entre os seus iguais. Citou o célebre texto de São Mateus, provando com Santo Agostinho ser Cristo a Pedra e não Pedro. Mostrou como o mesmo Pedro assim o interpretara em sua Primeira Epístola (2.4-8), dizendo ser Cristo a pedra viva, reprovada pelos homens, mas para com Deus eleita e preciosa. Eck, ciente da posição do adversário, depois de muito debate de parte a parte e de muita citação dos padres, dos Concílios e da Escritura, com a habilidade que o caracterizava, procurou impelir o adversário a se confessar partidário das ideias hussitas para declará-lo herético perante a augusta assembleia. Lutero a princípio recuou do caminho da Boêmia. Mas depois chegou a confessar que Huss sustentava verdades bíblicas e fora injustamente condenado e queimado pelo Concílio de Constança. Entendia que tanto um Concílio como o papa poderiam errar e não tinham direito de impor um artigo de fé sem base bíblica. Aproveitou Eck o momento para insinuá-lo como herético aos olhos da assembleia. O próprio duque, ao ouvir Lutero mostrar simpatia para com a heresia da Boêmia, não se pôde conter, soltando uma exclamação de horror. Lutero reconheceu a legitimidade do papa, não como direito divino, mas como direito humano. Citou a Igreja Grega que não reconhecia o papa de Roma e nem por isso deixara de ser cristã. Martinho ia evoluindo visivelmente. No ataque aos vendedores de indulgências apelara para o papa. Em Augsburgo, perante Cajetano, apelara do papa mal informado para o papa mais bem informado, e, pouco depois, do papa para um Concílio. Agora firma-se no rochedo das Escrituras. O debate continuou sobre outros pontos. A 8 de julho tratou-se do purgatório. Lutero ainda o admitia, negando, porém, que a doutrina estivesse na Bíblia ou nos padres conforme os escolásticos pretendiam. “Nosso doutor
Eck”, disse ele então, “tem corrido hoje sobre a Escritura sem tocar na mesma, quase como uma aranha passando por cima da água”. Depois trataram das indulgências. Eck pouco discordou do adversário e chegou a dizer: “Se eu não houvesse disputado com o dr. Martinho sobre o primado do papa, poderia estar quase de acordo com ele”. Discutiu-se ainda o arrependimento, a absolvição sacerdotal e a satisfação, terminando Lutero o debate com as seguintes palavras: “O rev. dr. Eck foge das Escrituras como o diabo da cruz. Quanto a mim, salvo o respeito devido aos padres, prefiro a autoridade da Bíblia. É ela que eu recomendo aos nossos juízes”. No dia 16 encerrou-se a assembleia com um discurso do reitor de Leipzig e o cântico solene do Te Deum. Naqueles 20 dias de debates os espíritos estavam prevenidos contra o doutor de Wittenberg. Entrando num domingo no claustro dominicano, antes da missa conventual, os frades trataram de recolher o ostensório no tabernáculo para que os olhos heréticos de Lutero não o profanassem. Alguns que diziam missa ordinária nos altares, ajuntaram tudo precipitadamente e correram para a sacristia como se os perseguisse o demônio. Eck precipitara a situação. O debate de Leipzig iria definir a posição de Martinho Lutero.
25. Evolução de Lutero Consequências do debate de Leipzig — Conquistas valiosas de Lutero — Luzes tiradas do livro de H. Boemer — Progresso nos estudos e métodos de Lutero — Breve perfil de Staupitz
Ambos os partidos reclamaram a vitória, mas parece que nenhum ficou satisfeito. O duque Jorge cumulou de honras o dr. Eck, e Lutero foi condenado pelas faculdades de teologia de Colônia e Lovaina e mais tarde pela de Paris. Eck, todavia, queixou-se em particular, a Hoogstraten e a alguns íntimos, julgando-se desfavorecido no debate. Considerara-se isolado, ao passo que os de Wittenberg, dizia ele, tiveram consigo os dois doutores oponentes e ainda João Lange, Amsdorf, o sobrinho de Reuchlin (Melâncton) e outros doutores e mestres em artes, que haviam ajudado os dois grandes contendores. Por outro, lado, os doutores de Leipzig alegavam que, a não ser com o auxílio deles, Eck não teria levado vantagem. Algumas conquistas resultaram para o campo luterano do debate de Leipzig. A mais curiosa foi a de Poliandro, secretário de Eck, que em 1522 se tomou pregoeiro da Reforma. João Celário, mestre de hebraico, converteu-se também, foi estudar em Wittenberg e tomou-se pastor em Frankfurt e em Dresden. O príncipe Jorge de Anhalt, que assistira aos debates, tinha somente 12 anos e estudava em Leipzig. A impressão que recebeu foi tão grande que se decidiu pela Reforma. Em vão o duque Jorge tentou persuadi-lo a firmarse nas velhas doutrinas. Mas o moço resistiu e chegou a abalá-lo. Disse o duque, todavia, que havia de ficar na sua Igreja, porquanto, como dizia, “cachorro velho não toma ensino”. No leito de morte mostrou, porém, confiar somente no sangue de Cristo para a salvação de sua alma. Conquista maior manifestou-se no grande número de estudantes de Leipzig que se transferiram para Wittenberg. Entre eles estava um jovem, Gaspar Cruciger, que mais tarde foi um dos auxiliares de Lutero na tradução da Bíblia. Outrossim, os Irmãos da Boêmia, discípulos dos antigos hussitas, começaram a mostrar suas simpatias por Lutero: “O que foi Huss para a Boêmia, sois agora para a Saxônia”, disseram. Acima de tudo, porém, notouse a decidida vocação de Melâncton desde aquela ocasião , o “gramático” do qual tanto desdenhara o dr. Eck, e que somente em agosto do ano precedente iniciara em Wittenberg as suas lições de grego. Do outro lado, a par das simpatias de muitos, houve manifestações de
desagrado para com o doutor de Ingolstadt, que muito se aborreceu com isso. Ecolampádio, lá da Suíça, unido a Adelman de Augsburgo, escreveu uma sátira, “Canonicorum indoctorum responsio”, que muito o irritou e o letrado Pirckheimer de Nurembergue dirigiu-lhe outra sátira que Schaff considera verdadeira antecipação às Provinciais de Pascal. Desde o debate de Leipzig tomou-se mais sensível a evolução que se notava em torno do reformador. Roma olhou-o com mais desconfiança. Sua popularidade foi crescendo também. Neste sentido é preciosa a leitura da obra Luther and the Reformation in the Light of Modem Research, do prof. H. Boemer, de Leipzig, traduzida para o inglês por E. S. G. Potter, obra moderna e erudita, que responde às acusações de Denifle, Grisar e outros contra o reformador. Um estudo sobre Lutero é incomparavelmente mais fácil do que sobre o reservado Calvino ou o impenetrável Loiola. Expansivo por índole, não guardava reservas. Era como um João Batista diante de Herodes, não receando a face dos poderosos. Suas inúmeras produções — teses, esboços, tratados, controvérsias, sermões, panfletos — bem mostravam o homem que ele era, sem rodeios nem rebuços. As obras que publicou foram muitas, cerca de setenta volumes, aumentando o número conforme as edições. Suas produções começaram tarde e de 1505 a 1513 conhecem-se apenas quatro cartas, um recibo e notas marginais em alguns livros. Há muitas lacunas nos seis anos seguintes e daí em diante sucedem-se abundantemente essas produções. Nos últimos tempos, porém, encontrou-se muita coisa perdida, anterior à disputa de Leipzig. Em 1877, observa Boemer, achou-se em Colônia, numa livraria de segunda mão, uma cópia de estudante, do Comentário aos Gálatas, de 1516. Buchwald, dois anos depois, descobriu em Zwickau, numa biblioteca, sete livros antigos nos quais evidentemente Lutero estudou quando monge, cheios de notas marginais, conforme o seu hábito. Em 1885 foram descobertos alguns sermões seus, até então desconhecidos, incluindo o esboço de um sermão da Páscoa, de 1515. Pouco antes, editaram-se em Dresden, as notas preliminares do Comentário dos Salmos (1513-1515) e também o texto final do mesmo comentário. Em 1899 Herman encontrou na Biblioteca do Vaticano uma cópia do Comentário aos Romanos, de 15151516, e uma versão de estudante do Comentário aos Hebreus, de 1517. Com surpresa, pouco depois, no Museu de Berlim foi identificado o manuscrito
original do famoso Comentário aos Romanos. Muita coisa há ainda perdida que se espera restaurar. O que se tem descoberto revela em Lutero um verdadeiro estudioso. Os livros de sua biblioteca estão cheios de notas marginais e de glosas de várias espécies, denotando que não lia de relance. Lia-os com interesse, afixandolhes notas críticas. De seus cadernos de preparação para as classes colhe-se que o jovem professor progredia extraordinariamente de ano em ano. Na sua primeira exposição teológica das Sentenças de Lombardo (150910), revelam as notas que seguia o caminho rotineiro. No Comentário dos Salmos, seus arranjos para a obra obedecem ao método escolástico. Mas então passa a socorrer-se das luzes do humanismo e julga necessário aprender o hebraico. O mesmo parece notar-se no seu livro sobre a epístola aos Romanos. Logo que tem ao seu alcance o Novo Testamento de Erasmo, passa a seguir o texto grego. Não se escraviza, porém, a Erasmo. Recorre à sua experiência e procura solver o problema encarado por cristãos primitivos e medievos, e por humanistas desde Marsílio Ficino — tentando mostrar o que São Paulo sentia. Nos comentários citados, nota-se a evolução que se ia operando nele, libertando-se dos velhos métodos. Ansioso por se fazer entender, introduzir ilustrações e provérbios alemães, germanizar atrevidamente expressões gregas e latinas para fazer-se entendido até dos estudantes menos argutos. Isso explica a popularidade que adquiriu como professor e a onda sempre crescente de estudantes em Wittenberg. Também se evidencia o interesse desses estudantes nas cópias preservadas pelos ouvintes destas preleções tão instrutivas. Evolui como professor e crítico. Do mesmo modo como teólogo e pregador. É somente aos poucos que vai notando os erros doutrinários e os abusos da Igreja. Não combate em si as indulgências, mas o mau uso que delas estavam fazendo. Nem o culto dos santos, mas as superstições daí derivadas. Nem a prática do jejum voluntário e sim compulsório, e assim por diante. Enquanto as nuvens se acumulavam e Roma polia as armas do seu arsenal, notava Lutero o afastamento de algumas de suas velhas relações, a mais sensível das quais a de Staupitz, cuja personalidade merece ser rapidamente descrita.
Pouco se sabe da data de seu nascimento. De família nobre da Mísnia, fez-se monge agostinho. O estudo da Bíblia, de Agostinho, de Tauler e dos místicos, insinuou-lhe no ânimo o desprezo pelos ensinos áridos da escolástica. Em 1500 era doutor em teologia em Tübingen e prior do convento dos agostinhos. Em 1502, ao criar a Universidade de Wittenberg, Frederico nomeou-o professor de teologia e deão. No ano seguinte sua ordem nomeou-o vigário-geral da Alemanha. Andando em visitação aos mosteiros, encontrou-se em 1505 com Lutero em Erfurt e afeiçoou-se-lhe profundamente, servindo-lhe de guia e de pai espiritual. Levou-o depois para Wittenberg e obteve para ele a proteção do eleitor, que lhe deu uma cadeira na universidade. Enviou-o a Roma e fê-lo depois vigário distrital da ordem. Esclareceu-o na questão das indulgências. Vendo, porém, a celeuma que se levantava, começou prudentemente a recuar. Em 1519 esteve ainda ao lado de Lutero em Augsburgo e no encontro com Cajetano, e favoreceu-lhe a fuga. Roma via o perigo e removeu-o de Wittenberg naquele ano, indo para o convento dos beneditinos de Salzburgo. Transferido para esta ordem, veio a ser abade do referido convento em 1522. Pouco depois falecia, em 1524. Não teve ânimo de seguir o movimento reformador, mas não lhe fez oposição como Erasmo. De seu retiro de Salzburgo, ofereceu bondosamente um abrigo a Lutero perseguido, que respeitosamente recusou: “Vossa submissão entristeceu-me, pois vi nisso um Staupitz diferente do pregador da cruz e da graça”. Staupitz foi o pai espiritual de Lutero. Sem o pensar, impeliu o discípulo para a obra formidável que revolucionou o mundo religioso de então. Veio a ser, até certo ponto, um carpinteiro de Noé. Lefévre de Étaples e Briçonnet, bispo de Meaux, fizeram o mesmo na França. Não foi pequeno o número dos que deram os primeiros passos na estrada dificultosa da Reforma e recuaram depois aos embates do vendaval. Até o grande Erasmo, que desferiu golpes formidáveis no velho baluarte papalino, julgou prudente vibrar em tempo o contra-ataque, dando lugar ao conceito humorístico: “Erasmo pôs o ovo, mas Lutero o chocou”. Ao ouvir o dito chistoso, explicou o sábio de Roterdã que o ovo posto era de galinha, mas dele saiu um galo de briga.
26. Carlos V Uma eleição imperial — eleitores e candidatos — Frederico de Saxônia rejeita a coroa — Carlos I da Espanha vem a ser Carlos V da Alemanha — Suas futuras dificuldades políticas — Francisco I e sua situação político-eclesiástica — Extensão do poderio de Carlos — Sua ambição desmedida
Enquanto, em Leipzig, Karlstad, Eck e Lutero digladiavam-se no campo da teologia, reuniam-se em Frankfurt os príncipes eleitores. Iam tratar da sucessão de Maximiliano I, falecido em 12 de janeiro daquele ano de 1519. Por 26 anos cingira ele a coroa imperial e fora denominado “o último cavalheiro” por haver encerrado a era medieval. Era demasiado crítica a situação do império. Oito séculos antes a espada do Crescente ameaçara a civilização ocidental, havendo os sarracenos cruzado os Pirineus e levado tudo de vencida. O gládio de Carlos Martelo foi a barreira que embargou naquele tempo a onda maometana. Agora era a vez do turco, já às portas de Viena, renovando a arrancada formidável dos árabes seus irmãos de crenças. Havia ainda a ameaça de uma ruptura na Igreja, que se esboçava naquele embate teológico de Leipzig. Requeria-se, pois, um homem de energia que rebatesse a investida das novas hordas e mantivesse a unidade da Igreja — um novo Carlos forte e poderoso. De acordo com o que fora estatuído na Bula de Ouro de Carlos IV (1356), regulamento em vigor até 1806, estavam reunidos os sete príncipes eleitores: três eclesiásticos — os arcebispos de Tréveris, Mogúncia e Colônia; quatro seculares — o rei da Boêmia, o conde do Palatinado e os duques da Saxônia eleitoral e do Brandemburgo. Três candidatos se apresentaram na liça. O primeiro era Carlos I de Espanha, neto de Maximiliano, que por essa candidatura se batera na última Dieta a que presidira. O segundo era Francisco I, rei dos franceses, rei cavalheiresco, que já se imaginava um novo Carlos Magno destruindo o poder de Maomé. O terceiro era Henrique VIII de Inglaterra, que cedo desistiu da candidatura. Feriu-se a luta entre os dois primeiros e correu em profusão o ouro que deveria aliciar os eleitores. Os partidários de Francisco viam no competidor um moço inexperiente, de 19 anos apenas, incapaz de conjurar o
perigo do momento. Leão X era favorável à candidatura do rei de França por ser este um potentado menos temeroso. Mas também dele tinha receio pelo arrojo que o caracterizava. Por isso mandou propor aos sete príncipes que escolhessem entre eles mesmos o melhor para reinar. O arcebispo eleitor de Tréveris, então, indicou Frederico de Saxônia, o mais prestigioso dos sete, candidatura que granjearia o favor de todo o povo da Alemanha. Seis meses havia já que ocupava a regência e a sua moderação e capacidade política faziam dele um candidato viável. Foi, por isso, deposta aos seus pés a coroa imperial. Frederico mereceu o cognome de Sábio pela sua prudência e tino administrativo. Como vigário do império substituíra Maxiliano nos seus impedimentos. Tinha agora o ensejo de empunhar definitivamente o cetro imperial. Todavia, a elevada posição não o tentou. Considerou a situação do império ameaçado pelos turcos e entendeu que somente um pulso vigoroso poderia conjurar o perigo. Achou mais sábio desistir e propôs ele mesmo o rei da Espanha. O legado do papa, que também era por Frederico, vendo que seria Carlos o escolhido, declarou que retirava o papa as suas objeções. E assim, a 28 de junho, Carlos V era reconhecido como detentor do império. Não obstante a eleição, continuou Frederico na regência até outubro do ano seguinte, quando foi a posse de Carlos, regência de quase dois anos. Na véspera da decisão de Frankfurt, havia começado em Leipzig o debate teológico. O monge da Alemanha iria de certo modo influir na balança política do império ante a situação político-eclesiástica que se elaborava. Os delegados espanhóis quiseram agraciar com 30 mil florins o magnânimo eleitor que havia decidido a situação em favor de Carlos, mas Frederico terminantemente se recusou a isso, proibindo mesmo que seus ministros recebessem qualquer donativo. Dadas as suas simpatias pela Reforma, seria de esperar que, se aceitasse a coroa, fácil seria a vitória do movimento religioso. Recusou o cetro, que foi parar às mãos de um neto dos reis católicos e súdito fiel de Roma. A despeito, porém, de todo o poder que foi dado a Carlos, não lhe foi possível subjugar a revolta religiosa. Depois de 36 anos de luta, reconheceu a sua impotência, assinando a Paz de Augsburgo (1555), que reconhecia a existência do luteranismo e lhe assegurava tolerância religiosa. Cheio de tédio e de desgosto, abdicou então sucessivamente do trono da Espanha em favor de seu filho Felipe II (1555), e do império na pessoa de seu irmão
Fernando da Áustria — Fernando I da Alemanha (1556). Foi acabar sua agitada carreira na solidão do claustro de São Justo, na Extremadura, continuando, porém, a forjar intrigas políticas até a sua última hora. Morreu em 1568. Era de caráter dissimulado, implacável e pouco generoso. Em grau ainda mais apurado herdou-lhe as qualidades seu filho Felipe II. Carlos passou a vida em luta e complicações com reis e papas, e todas as continuadas intrigas de sua política tomaram-lhe o tempo e as forças requeridas para dar o golpe à Reforma, seu sonho habitual. Francisco I da França foi o seu principal competidor desde o trono da Alemanha. No desastre de Pávia (1525), Carlos levou-o prisioneiro a Madri e fê-lo assinar um tratado desastroso. As contendas entre os dois prolongaramse indefinidamente. Nem lhes valeu a aliança de família, porquanto, em 1530, desposou o rei da França a Leonor de Castela, irmã de Carlos e viúva de dom Manoel de Portugal. Em virtude da Concordata que lhe fora outorgada, tornou-se Francisco praticamente o chefe da Igreja francesa, fazendo as nomeações eclesiásticas, embora tivesse de enviar dinheiro para Roma. Criou com isso uma situação mais cômoda que a de Henrique VIII de Inglaterra, seu contemporâneo. A Concordata unia na França os interesses do trono e do papa e daí a política encarniçada dos reis da França contra a Reforma como se viu dos dias de Francisco I, de seu filho Henrique II e de seus netos Francisco II, Carlos IX e Henrique III, perseguição açulada pelos Guises e pela astúcia de Catarina de Médicis, tragédia que teve sua culminância na Matança de São Bartolomeu. Henrique IV acalmou a situação abjurando o seu protestantismo mais político do que religioso. Promulgou, contudo, o Édito de Nantes, que por alguns anos estabeleceu um certo grau de tolerância religiosa na França. Francisco I, que perseguia os protestantes no seu reino por causa da Concordata, auxiliava-os na Alemanha, instigado pela sua birra para com o imperador. Carlos não teve de lutar somente contra a França e a Itália e sua política consequente. Via-se ainda de envolta com os sarracenos ameaçando as fronteiras do império. Por isso necessitava constantemente do apoio dos seus príncipes e súditos luteranos. Tinha as mãos atadas. Era-lhe necessária a tolerância para com aqueles súditos rebeldes e assim a Reforma foi tomando conta da Alemanha. Mas, a despeito desse fracasso, era sobremaneira extenso o seu poder como o veremos voltando ao momento de sua eleição.
Carlos nascera na Flandres, em Gand, na Bélgica atual, no ano de 1500. Pela eleição imperial e pelos territórios que já possuía veio a ser um novo Carlos Magno, o maior soberano de sua época. Maximiliano I, seu avô, havia se desposado com Maria de Borgonha, filha de Carlos, o Temerário, que lhe trouxe os estados burgúndios e o domínio dos Países Baixos. Deste consórcio nasceu Felipe, cognominado o Formoso, que teve por esposa Joana, a Louca, filha dos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Falecendo Isabel, em 1504, deixou a Joana e a Felipe os seus estados de Castela, confiando a regência a Fernando até a maioridade de Carlos, o herdeiro presuntivo. Felipe, o Formoso, arquiduque da Áustria, disputou a regência com seu sogro e foi proclamado rei de Castela com o nome de Felipe I. Morreu pouco depois, em 1506, deixando dois filhos, Carlos e Fernando, que subiram ao trono da Alemanha um após o outro — Carlos V e Fernando I. Por morte de Felipe, teve o domínio da Borgonha e dos Países Baixos. Morrendo Fernando, em 1516, coube-lhe o trono da Espanha, tomando o título de Carlos I. Mas à coroa Espanhola vinham anexadas as possessões italianas — Nápoles, Sardenha e Sicília, além dos vastos territórios da América, recentemente descobertos. A morte do avô, Maximiliano, deu-lhe a soberania das províncias austríacas dos Habsburgos. A coroa do império alemão vinha completar o círculo da extensa realeza. O sol não se punha sobre os seus domínios. Maior do que ele somente veio a ser mais tarde seu filho Felipe II que teve a menos o Império Alemão. A perda foi compensada, porém, em 1580, com a posse da monarquia portuguesa e suas possessões asiáticas e africanas. A tudo isso acrescentou-se o vasto território brasileiro. Portanto, toda a América do Sul, a Central e parte da América do Norte, o maior soberano do mundo até hoje. Carlos foi coroado imperador da Alemanha em 23 de outubro daquele ano de 1519, em Aachen (Aix-la-Chapelle), onde fora sepultado Carlos Magno, o fundador do Império Germânico. Em 1530 foi coroado rei da Lombardia e imperador dos romanos pelo papa. Para ele todo aquele domínio era pouco e sonhou com a soberania da Europa. De Frederico da Saxônia, que decidira a sua eleição em 1519, contase que veio a dizer depois: “Deus nô-lo deu em seu favor e concedeu-o em sua ira”.
Carlos V e Lutero foram as duas personagens mais em evidência no estabelecimento da Reforma na Alemanha. Carlos era também um rei cavalheiro. Em um torneio em Valadolide adotara a divisa modesta “ Non-dum” [“Ainda não”]. Depois mudou-a na fórmula “ Plus ultra” [“Mais além”]. De seu casamento com Isabel de Portugal, nasceu-lhe Felipe, o sombrio Demônio do Meio-Dia. Teve dois filhos ilegítimos, Margarida de Parma e dom João de Áustria, o herói de Lepanto. Destemeroso na guerra, foi tido como um dos três grandes capitães do seu tempo — ele, o duque de Alba e o Condestável de Montmorency.
27. A cruzada de Lutero A doação de Constantino e as Decretais de Isidoro — A nobreza alemã em favor de Lutero — Três opúsculos formidáveis — O apelo à Nobreza — Três muralhas a demolir
Depois do debate de Leipzig perdeu Lutero as esperanças de uma reforma na Igreja por parte de Roma. Havia lido a valiosa obra de Laurêntio Vala, vulgarizada por Huten, em que se demonstrava, à luz da crítica histórica, não passar de uma forja o famoso documento da doação de Constantino ao papa Silvestre e seus sucessores em relação à soberania temporal de Roma e dos territórios do Ocidente. Tratava-se apenas de um decreto permitindo à paróquia de Roma possuir bens de raiz e receber donativos. Do mesmo aspecto de falsidade se revestiam as chamadas Decretais de Isidoro, coleção de decretos desde Clemente de Roma, o terceiro na suposta cadeia dos papas, leis que exaltavam os privilégios da hierarquia sacerdotal. Durante séculos tais documentos foram tidos como autênticos e deram ao clero as mais altas prerrogativas. Quando surgiu, porém, a crítica histórica, verificou-se a fraude pia de tais falsificadores. O bispo de Sevilha estava completamente inocente e nenhuma responsabilidade tinha naquelas afirmações, que por séculos haviam servido para favorecer as pretensões de Roma. Grande então foi o desapontamento daqueles que se deixaram assim iludir. Lutero, pois, levantou a grita contra os falsificadores e clamou contra o Anticristo, qualificativo que deu ao papa. Em sua ingenuidade, arriscou-se a escrever ao novo imperador, então ainda em Madri, expondo as suas razões e solicitando dele a defesa da verdade. Carlos deixou sem resposta a estranha carta. O frade de Wittenberg começou a ser acometido de todos os lados. Ao mesmo tempo a sua popularidade ia em aumento. Vários membros da nobreza alemã levantaram-se em sua defesa, oferecendo-lhe abrigo e refúgio e mesmo a proteção pelas armas. Entre eles estava Silvestre de Schaumberg, da Francônia, que se prontificou a reunir um grupo de mais de cem fidalgos para resguardá-lo do furor dos adversários. Francisco de Sickingen, nobre cavalheiro e herói do tempo, Hormut de Cronberg e Ulrico de Huten, poeta e cavalheiro, enfileiraram-se ao seu lado. Lutero a todos agradeceu, dizendo-lhes, porém, que considerava suficiente a
proteção de Cristo. Foi então que, em rápida sucessão, de julho a outubro de 1520, atirou à face da Alemanha os seus três formidáveis opúsculos que lhe granjearam a mais larga popularidade e o habilitaram a fazer frente ao leão de Roma. Os dois primeiros soaram como clarins marciais. Foram golpes vigorosos que abalaram o trono pontifício. O terceiro era um símbolo de paz, a bonança após a tempestade. O primeiro, o mais formidável, encerrava um apelo: À nobreza cristã da nação alemã concernente à reforma da cristandade. O prefácio era dedicado ao seu amigo Nicolau de Amsdorf, licenciado e cônego de Wittenberg, em data de 23 de julho. Em 20 de julho estava pronto e em meados de agosto a edição de quatro mil exemplares estava esgotada, sendo logo preparada a segunda. Era muito para aqueles tempos. O tom forte do livro encheu de susto os amigos de Lutero. Staupitz fez o possível por obstar a publicação. Por isso, dias depois, resignou o vicariato geral da Ordem e foi recolher-se ao convento de Salzburgo. João Lange, de Erfurt, foi outro que temeu pelo amigo. Mas, como disse este, a sorte estava lançada. A popularidade do livro serviu até de anteparo à Bula de extermínio que estava sendo elaborada em Roma. Na opinião de alguns, o Apelo à nobreza fora inspirado no Vadicus ou Trindade Romana de Huten. O livro era dividido em três partes. Na primeira propunha-se Lutero a deitar em terra as três muralhas de Jericó que o papa erigia contra qualquer reforma na Igreja. Eram elas: a exclusão dos leigos na direção do trabalho da Igreja, o exclusivo direito de interpretar as Escrituras e a exclusiva retensão na convocação de um Concílio. Atacou Lutero o primeiro baluarte opondo à teoria romana do sacerdócio do clero o fundamento bíblico do sacerdócio de todos os cristãos. Roma expunha a teoria dos dois estados — o espiritual ou eclesiástico, que compreendia os bispos, os padres, os frades — o secular, que abrange os príncipes, os nobres, os operários, os camponeses ou lavradores. Ensina Lutero que todos os cristãos pelo batismo, pelo Evangelho e pela fé, pertencem ao estado espiritual, sejam clérigos ou leigos, sendo a diferença de ofício e função apenas. A ideia então em voga excluía os leigos do serviço da Igreja. O ensino de São Pedro e o do Apocalipse mostram que todos os fiéis em certo sentido constituem um reino sacerdotal, reis e sacerdotes diante de Deus.
Observa Schaff estar este princípio incorporado à Declaração de Independência do povo americano, quando assevera que “todos os homens nasceram livres e iguais”. O sacerdócio de todos os fiéis preconizado na Bíblia foi reconhecido depois como um dos princípios fundamentais, o princípio material do protestantismo. A teoria medieval interpunha a mediação do padre entre Deus e o pecador. Só assim o perdão poderia ser obtido. A Igreja com a doutrina das indulgências vinha ao encontro do pecador, oferecendo-lhe o perdão mais comodamente, a troco de alguns ducados. O acesso direto a Deus não era permitido e o papa, por meio de uma Bula estabelecendo o interdito, tinha o direito de privar uma nação inteira dos serviços religiosos. Os reformadores, louvando-se nos textos bíblicos, pregaram a comunhão com Deus, pela mediação somente de Cristo, a clérigos e leigos. A segunda muralha consiste em outorgar somente à Igreja o privilégio de interpretar as Escrituras. Lutero acomete-a também com textos bíblicos, provando o direito individual da interpretação, em virtude do princípio estabelecido do sacerdócio universal dos fiéis. Conclui esta parte com uma ilustração característica: “A burra de Balaão foi mais prudente do que o próprio profeta. Se Deus falou contra um profeta pela boca de um asno, por que não poderia falar contra o papa pelos lábios de um homem piedoso? São Paulo não repreendeu a São Pedro pelo erro em que caíra?”. O direito do livre exame das Escrituras é também outro princípio fundamental do protestantismo. Deriva-se da doutrina do sacerdócio dos crentes. Clérigos e leigos podem ter acesso ao Livro e receber dele as luzes divinas. Outro princípio fundamental, deduzido da citada doutrina, é o da ustificação pela fé em Cristo, mediante a obra expiatória do Calvário. As boas obras não constituem mérito para a salvação, mas são a evidência da fé verdadeira. Não se pode ser fiel cristão sem uma vida caracterizada pela piedade e pelas boas obras. A terceira muralha é investida. Nega Lutero que somente o papa possa convocar um Concílio. Cita o capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos, entre outros argumentos. Aquele primeiro Concílio de Jerusalém foi convocado não só por Pedro, mas por todos os apóstolos e anciãos. Assim encerra a primeira parte do livro. Na segunda parte dá de rijo no mundanismo e na pompa aparatosa de
que se reveste o pontífice, em contraste com a pobreza e a modéstia de Cristo e de São Pedro. Atacara a riqueza do papa e dos cardeais, a sua ambição insaciável e as exações constantes que levam o povo ao depauperamento econômico. Na terceira parte oferece sugestões e conselhos práticos, em 27 artigos, para o benefício da Igreja. Assim é que recomenda a abolição das annatas ou taxas anuais para o tesouro pontifício. Pede a abolição do celibato clerical, que não se apoia em doutrina bíblica e na prática do cristianismo primitivo, e vem a constituir-se antes na destruição do que na promoção da castidade. Manifesta-se contra as missas pelos mortos como fontes de renda muitas vezes. É contra as procissões e pede a abolição dos dias santos, excetuando-se o domingo, que é o dia santificado como a Bíblia o ordena. Pede a redução do número de mosteiros e a conversão dos mesmos em escolas. E assim prossegue nos seus artigos reformadores. Relativamente ao tratamento dos hereges, mostra que deveriam ser convencidos dos seus erros por meio de livros e não com o argumento da fogueira. Ataca os vícios nacionais, especialmente a intemperança do povo alemão nos excessos do comer e do beber, que tão má fama lhes granjeou nos países vizinhos. O opúsculo tinha o tom nacionalista quando se referia às exações de Roma e à escravização da Igreja alemã. Isso arrancou o aplauso dos príncipes, dos nobres e do povo. Até o duque Jorge de Saxônia apoiou o livro neste particular. Os outros dois panfletos vigorosos são o Cativeiro babilônico da Igreja e a Liberdade cristã, que passaremos a examinar ligeiramente.
28. O cativeiro babilônico A nova canção de Lutero — Evolução do reformador — O papa reproduz as proezas de Ninrode — Análise dos sacramentos — A comunhão em seus vários aspectos
A cruzada de Lutero não terminou com o Apelo à nobreza alemã, que havia sido uma espécie de trombeta apocalítica. Quase no final daquele tratado assim se exprimia: “Tenho ainda sobre Roma uma canção de reserva. Se lhe incomoda o ouvido, entoá-la-ei em voz mais elevada. Sabes bem, ó Roma, o que intento dizer com isso?”. De novo empunha a tuba e segunda vez se faz ouvir o clangor marcial contra a cidade das Sete Colinas. Em 3 de outubro daquele mesmo ano escreve a Espalatino: “ Liber de captivitate ecclesiae sabbato exibit, et ad te mittetur” (No sábado sairá o livro sobre o Cativeiro da Igreja e ser-te-á enviado). O Cativeiro babilônico da Igreja era o título do segundo panfleto da ardente cruzada. É escrito em latim. Era a canção de reserva a que aludira. Como no primeiro tratado, fere fundo nos alicerces de Roma. Acomete a doutrina romana dos sacramentos, elaborada simultaneamente com o poder autocrático dos papas. O sistema sacramental é representado como um cativeiro, visto como a ele se prende o homem do nascimento até a morte. Roma é a nova Babilônia que retém a Igreja em cativeiro. Recorrendo à alegoria, Lutero de modo algum manifestava irreverência ou desprezo para com a instituição do sacramento. Seu ataque era forma da interpretação romanista. Começa o frade o novo tratado por uma referência ao debate de Leipzig dois anos antes. Naquela ocasião admitia o papado, não já por direito divino, mas por direito humano. Agora, porém, evoluíra. Nem já lhe reconhecia o direito humano. Havia examinado as Decretais e visto o descrédito em que haviam caído as pretensões de Roma: “Há dois anos escrevi sobre as indulgências quando ainda em supersticioso respeito pela tirania romana. Agora, com o auxílio de Prierio e dos frades vim a aprender que as indulgências não são mais do que instituições malévolas dos lisonjeadores de Roma. Depois disso Eck e Emser instruíram-me a respeito do primado do papado. Até então negava eu o direito divino, mas admitia o direito humano. Mas, depois de ler as sutilezas destes peralvilhos em defesa do seu ídolo, convenci-me de que o papado não é senão o reino de Babilônia
e o poder de Ninrode, o vigoroso caçador. Peço, pois, a todos os meus amigos e a todos os livreiros que lancem às chamas os livros que escrevi a esse respeito e que lhes deem este novo título: ‘O papado é uma caçada geral capitaneada pelo bispo de Roma com o fim de apanhar as almas e deitá-las a erder’”. Em seguida analisa os sacramentos sob diversos aspectos. Estudandolhes a eficácia, nega-lhes a virtude mágica, o opus operatum. Segundo a doutrina romanista, operam os sacramentos ex vi ipsius actionis sacramentalis, isto é, conferem a graça sacramental pela sua própria virtude. Do mesmo modo que no fogo subsiste a virtude de queimar, assim no sacramento jaz a virtude de conferir graça ao recipiente, desde que este não lhe oponha obstáculo positivo. Para Lutero a fé é condição essencial. Se ao recipiente falta-lhe este dom, o sacramento não opera sobre ele a graça sacramental. Quanto ao número, não concorda com o estabelecido pela Igreja. A maior parte deles não tem as condições necessárias para tal qualificação. Não sendo justificados pelo Novo Testamento, não poderão ser admitidos nessa categoria. A confirmação, o casamento, a ordem, a extrema-unção, são atos religiosos, desprovidos todavia do caráter sacramental. Lutero reconhece somente três sacramentos: batismo, comunhão e penitência, este último somente em parte. No sacramento da comunhão, no sentido romanista, nota ele três erros, outras tantas cadeias. O primeiro é o da retirada do cálice aos leigos, fato ocorrido desde o Concílio de Constança em 1415. A Igreja Grega estende a todos o direito da comunhão nas duas espécies como o entendia a Igreja da Boêmia. Refuta Lutero os argumentos de Alveld no seu recente tratado sobre a comunhão aos leigos nas duas espécies. O professor de Leipzig vai ao ponto de dizer que nem Cristo nem os apóstolos determinaram que os leigos participassem do sacramento nos dois elementos. A isso Lutero replica logo com uma sentença decisiva — o texto dos três Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, quando ao estender Jesus o cálice aos discípulos, proferiu as palavras: “Bebei dele todos”. É como se o Espírito Santo previsse o que se teria de passar na Boêmia. Não disse Jesus tais palavras ao distribuir o pão. O argumento era forte. Daí conclui: “O sacramento não pertence aos sacerdotes, mas a todos; nem os sacerdotes são senhores, mas servos, cujo dever é distribuir os dois elementos aos que os requerem, tantas vezes
quantas os buscarem”. O segundo ponto que Lutero disputa na comunhão é a doutrina da transubstanciação, que Roma admitiu de certa época em diante, depois de muitas controvérsias. A doutrina de Roma é que, depois da consagração, embora os acidentes permaneçam os mesmos, a essência se transforma no corpo, alma e divindade de Cristo, tão real e verdadeiramente como está no céu. As palavras — hoc est corpus meum — dizia Lutero, Cristo tomou-as em sentido figurado. Lutero não admitia o milagre da transubstaneiação, mas ensinava a doutrina da consubstanciação, isto é, a coexistência do corpo e do sangue nos dois elementos, pão e vinho — com, em e sob as duas espécies, conservando cada substância as suas propriedades. O terceiro ponto impugnado era o sacrifício da missa como uma repetição do ato expiatório do Calvário. Era a terceira cadeia e a mais ímpia. O sacrifício de Cristo oferecido uma só vez foi suficiente para a remissão dos pecados segundo o testemunho bíblico. Entendia também que a missa deveria ser celebrada no vernáculo e não no latim. Admitia o sacramento do batismo e em parte o da penitência. Não aceitava, porém, os restantes por lhes faltarem para tanto os requisitos. Eram atos religiosos. O matrimônio foi instituído por Deus para todos e não via razão para ser o ato proibido ao clero. Terminou Lutero o seu arrojado panfleto com estas palavras: “Ouço a respeito de novas Bulas e anátemas contra mim. Terei então de retratar-me ou de ser declarado herético. Sendo assim, este pequeno livro pode ser considerado parte de minha futura retratação para que não se queixem de sua tirania se haver gloriado em vão. O restante cedo virá, e o conjunto, com o auxílio de Cristo, formará um todo tal como Roma nunca viu nem ouviu coisa semelhante, em prova de minha obediência em nome de nosso Senhor Jesus Cristo — Amém”.
29. A terceira trombeta O tratado da Liberdade cristã — Antecendentes de sua publicação — Política de Miltitz — A epístola de Lutero a Leão X — Breve análise do tratado — Interpretação errônea do “ pecca fortiter sed fortius fide”
Vai soar a terceira trombeta. É o terceiro tratado da época, brando e suave, porém bem diverso no tom, diferindo nisso dos dois precedentes. Embora de poucas páginas, é tido como um dos melhores escritos do reformador, respirando o misticismo de Tauler e refletindo a doutrina de São Paulo. É o tratado da Liberdade cristã. Vejamos, porém, os antecedentes que determinaram a sua publicação. Em fins de agosto de 1520 reunira-se em Eisleben, berço de Lutero, o Capítulo geral dos Agostinhos. Staupitz compareceu para resignar o vicariato, sendo escolhido para seu sucessor Wenceslau Link, um daqueles que haviam acompanhado Lutero a Augsburgo. Sem se esperar, compareceu Miltitz, legado papal que havia trazido a Rosa de Ouro e havia sido o mais hábil dos diplomatas de Roma na questão de Lutero. Em sua ânsia de paz, alimenta ainda a esperança de reconciliar com o papa o monge rebelde. Além disso, o seu amor próprio havia sido ferido em Roma com as intrigas do doutor de Ingolstadt, que para ali se encaminhara com o fim de perder de vez a Lutero. Em discurso no Capítulo, faz Miltitz ver a responsabilidade e sugere que vá uma comissão ter com Lutero em Wittenberg e aconselhe-o a escrever ao papa, dizendo-lhe que nunca tramara contra a sua pessoa. Achava ser isso suficiente para se obter a paz. Parte logo a delegação composta do antigo e do novo vigário-geral, que levaram a Martinho uma carta de Miltitz toda cheia de atenções. Mas nem os dois frades nem Lutero acreditavam na eficácia do expediente e pouco depois chegava a esperada Bula de Roma. Miltitz nem assim desanimou e convidou Lutero para uma conferência em Lichtenberg, no distrito de Torgau. O editor permitiu-o, mas os amigos do reformador temiam alguma cilada em que o conduzissem a Roma. Lutero partiu em companhia do fiel Melâncton e rodeado de 30 cavaleiros. Deu-se a entrevista no convento de Santo Antônio a 11 de outubro. Ficou ajustado que Lutero dirigisse uma carta ao pontífice, protestando que não havia atacado a sua pessoa e afirmando que
o dr. Eck havia sido o causador de toda a celeuma. Em virtude de ser já conhecida a Bula condenatória, sugeriu Miltitz que a carta trouxesse a data de 6 de setembro, anterior à chegada daquele documento. Deveria ser acompanhada de um tratado em que expusesse a sua doutrina. Tal a origem do terceiro opúsculo. O hábil Miltitz exultou e acompanhou Lutero a Wittenberg. Aconselhou o eleitor a agradecer ao papa a Rosa de Ouro e a enviar a Roma 40 ou 50 mil florins. Escrito em latim, é o livro precedido de uma epístola a Leão X. Outra versão foi publicada em alemão. Era a terceira epístola de Lutero ao pontífice. Na primeira, de 1518, confessava-se filho obediente do vigário de Cristo. Na segunda, de 1519, era dele humilde súdito, mas recusava-se a repudiar as suas convicções. Nesta terceira e última, de 1520, dirigia-se-lhe como de igual para igual. São graves as queixas que tem de Roma, mas fala ao vigário de Cristo com a maior das atenções, comparando-o a um cordeiro entre lobos, a Daniel na cova dos leões. Acusando os emissários que rodeavam o pontífice, diz em certo trecho: “Eu fazia algum progresso quando Satanás abriu os olhos e despertou a seu servo João Eck, grande inimigo de Jesus Cristo, a fim de me fazer descer ao combate, graças a uma palavra que me havia escapado sobre o primado de Pedro e da qual se apoderou. [...] Ele queria estabelecer não o primado de Pedro, mas o seu sobre os teólogos do tempo. É por sua culpa que lancei todo este opróbio sobre a Igreja Romana. [...] Para não me apresentar com as mãos vazias diante de Vossa Santidade, trago-vos e dedico-vos este pequeno tratado como um penhor de paz e de esperança. Pouco é se atentardes no volume, muito se olhardes o conteúdo. Salvo erro, nele se contém o sumário da vida cristã. Nada vos tenho a oferecer na minha pobreza. Aliás de nada precisais, senão de dons espirituais. À Vossa Santidade recomendo o meu livro e a minha pessoa. Que o Senhor Jesus Cristo vos guarde eternamente — Amém”. Em breves termos, vamos dar uma ideia do livrinho tão bem acolhido por muitos e que se põe em contraste com os outros dois que eram ataques decididos à tirania do papa. É antes um complemento positivo, estabelecendo a situação em que se colocava. Opondo-se ao absolutismo de Roma, não advogava a liberdade extrema que conduz à licença. Ele admite-a no sentido evangélico, liberdade em Cristo, não fora de Cristo. A ideia principal do opúsculo consiste no princípio de que o cristão é
senhor de todas as coisas, tudo lhe está sujeito e, em virtude da fé, a ninguém se submete. Por outro lado, em virtude do amor, é servo de todos e sujeito a cada um. As duas virtudes constituem a vida do cristão, uma o prende a Deus, a outra ao próximo. É doutrina de São Paulo. Imitar a Cristo deve ser o ideal cristão. Somente a fé nos justifica e por ela somos libertados do pecado. Manifesta-se, porém, no amor e nas boas obras. A pessoa torna-se boa primeiramente para que suas obras possam ter o mesmo qualificativo. É a fé que constitui o crente e dignifica as suas obras. Elas, porém, não tomam o homem crente nem o justificam diante de Deus. Não rejeitamos as boas obras; encarecêmo-las no mais alto grau: “Concluímos então que o cristão não vive em si e para si mesmo, mas em Cristo e no próximo — ou não será cristão absolutamente. Em Cristo vive pela fé, no próximo pelo amor. Pela fé sobe até Deus, pelo amor desce até o próximo”. Condena aqueles que convertem liberdade em licença, desprezando as cerimônias, tradições e leis humanas. Tal é a essência do precioso tratado. Não derriba, mas edifica. Lutero tem sido muito mal interpretado neste ponto por seus inimigos, que insinuam haver ele ensinado que bastava a cada um ter fé, podendo viver desordenamente. Isso é deturpar o seu ensino. O que ele proclamava é que ninguém pode ser salvo pelos seus méritos pessoais, mas somente pela fé no sacrifício do Calvário, que pode salvar o maior pecador. O verdadeiro crente, porém, vive no caminho das boas obras que constituem os frutos da fé. Neste ponto é costume citar, fora de seu sentido, um trecho de sua carta a Melâncton, escrita de Wartburgo em 1 de agosto de 1521. A carta de Melâncton não foi conservada, ficando só a resposta de Lutero, pelo que não são conhecidos os termos da consulta. Vejamos as frases célebres: “ Esto eccator et pecca fortiter, sed fortius fide et gaude in Christo, qui victor est eccati, mortis et mundi, peccandum est quandiu hic sumus” [“Sê pecador e peca fortemente, confia, porém, e regozija-te mais fortemente em Cristo, que é o vencedor do pecado, da morte e do mundo; enquanto aqui estivermos, teremos de pecar”]. É sabido que Lutero possuía uma noção viva do pecado e do sentimento da culpa. Condenava a vida desordenada. Quando fala a Melâncton naquele sentido, dirige-se a um homem reto e consciencioso, mas
que poderia ter dúvidas quanto à amplitude do perdão. Deve-se tratar aqui de uma hipérbole. São Paulo também recorria a hipérboles semelhantes. Ele fora sempre um homem justo no modo de pensar usual, cumprindo as exigências da lei. Diz, entretanto, em uma epístola a Timóteo: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). E, ensinando aos cristãos residentes em Roma, diz assim em sua famosa epístola: “Entrou, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas onde o ecado abundou superabundou a graça” (Rm 5.20). De textos semelhantes é que Lutero formou a hipérbole.
30. Os raios do Vaticano A Bula Exsurge — Breve análise do documento — Arrogância de Gregório VII, Inocêncio III e Gregório IX — O sílabo de Pio IX — O papel de Eck — Aleandro e Caraciolo — Desapontamento do dr. Eck
“ Leo Episcopus, Servus Servorum Dei. Ad perpetuam rei memoriam. Exsurge, Domine…” [“Levanta-te, Senhor, e julga a tua causa, lembra-te dos impropérios ditos contra ti, daqueles com que um povo néscio te injuria todos os dias” (Sl 73.22)]. “ Exsurge, Petre…” [“Levanta-te, Pedro, atenta na causa da tua Igreja Romana, mãe de todas as igrejas e mestra da fé…”]. “ Exsurge, tu quoque, Paule…” [“Levanta-te, também tu, ó Paulo…”]. Surge agora um novo Porfírio, que assim como se atira contra os antigos apóstolos, acomete os santos pontífices nossos predecessores: “ Exsurget denique omnis sanctorum ac reliquia universalis Ecclesia…” [“Finalmente toda a assembleia dos santos, santa Igreja de Deus…”]. Depois do proêmio, em que Deus, os dois grandes apóstolos e toda a assembleia dos santos são invocados, mostra a Bula que os erros dos gregos e dos boêmios são revividos por Lutero e seus seguidores. Acusa os alemães que, a despeito de terem recebido do papa o império, deram origem agora aos erros mais perigosos. Cita depois 41 proposições extraídas das obras de Lutero, que são apontadas como heréticas, entre elas a que diz: Queimar os heréticos é contra a vontade do Espírito Santo. É uma indireta que a Bula trata logo de rebater, porquanto a fogueira era o grande argumento contra a heresia. Prosseguindo, afirma que tais proposições são condenadas como heréticas, escandalosas, ofensivas e contrárias à verdade católica. A defesa e divulgação de tais erros deverá ser terminantemente proibida. Do mesmo modo os escritos de Lutero deverão ser retirados da circulação e atirados às chamas. Vem, contudo, uma queixa contra o rebelde, tantas vezes admoestado por seus erros e convidado a ir a Roma. De novo é o mesmo exortado ao arrependimento, pois será readmitido com filho pródigo. Conforme o texto do documento, é Martinho suspenso do ministério sagrado e dão-lhe um prazo de 60 dias, a contar da publicação da Bula, para que se retrate de seus erros. Em caso contrário, ele e os seus seguidores serão excomungados e julgados nos termos da lei. Nenhum católico deverá ler, imprimir, ou publicar qualquer livro de Lutero ou de seus adeptos. Deverá, porém, queimar tais obras condenáveis. Depois de publicada a excomunhão
final, todos os católicos deverão cortar toda a sorte de relações com Lutero e os seus seguidores, não lhes dando acolhida, sob pena de interdito. As autoridades deverão se apoderar deles e enviá-los a Roma. Cairão também debaixo da interdição todos os lugares onde eles permanecerem. Finalmente, termina a Bula providenciando sobre a sua promulgação e execução, sendo dada em Roma no dia 15 de julho de 1520. Assim falou o soberano da cidade das Sete Colinas, o poderoso Leão X. Mais arrojado, talvez, foi no século XI o enérgico Gregório VII (Hildebrando), que entre as suas máximas, dizia: “Nenhuma pessoa poderá viver debaixo do mesmo teto com outra que tenha sido excomungada pelo papa. Somente o papa tem o direito de usar as insígnias da realeza. O papa é a pessoa deste mundo cujos pés os príncipes e soberanos do mundo devem beijar. O papa tem autoridade real. O papa não pode ser julgado por ninguém. Só a Igreja de Roma não tem errado, nem errará jamais, segundo as Escrituras. O papa tem direito de absolver e de libertar os súditos do juramento de fidelidade aos seus soberanos”. Em sua luta com Henrique IV, teve o referido papa ocasião de aplicar algumas de suas máximas. Vergado ao peso da excomunhão, transpôs os Alpes o imperador alemão e apresentou-se perante Hildebrando no castelo de Canossa. Descalço, em hábitos de penitente, fê-lo o papa esperar três dias ao relento, no rigor do inverno, quando foi admitido e teve de entregar a coroa, reconhecendo-se indigno dela. Só então foi absolvido. Inocêncio III, o maior dos papas, excomungou a João da Inglaterra e desobrigou da obediência aos súditos do rei britânico. Por último o fez descer do trono e doou ao rei da França os seus territórios. Temeroso, o rei João, agora João Sem-Terra, submeteu-se e entregou o reino em feudo ao papa, do qual se considerou vassalo. Gregório IX excomunga Frederico II da Alemanha e Bonifácio VIII a Felipe, o Belo, da França. Muitos outros pontífices fizeram o mesmo, dispondo dos tronos e desfazendo reis. Considerando os termos da Bula de Leão X, assim se exprime o historiador Schaff: “Podemos inferir daquele documento em que estado de servidão intelectual estaria o mundo atualmente se o poder de Roma houvesse conseguido esmagar a Reforma. Difícil será avaliar o quanto devemos a Martinho Lutero no terreno da liberdade e do progresso”. Mesmo em nossos dias tivemos o Sílabo de Pio IX, que é a negação
de todas as conquistas modernas da civilização, a condenação do liberalismo, da liberdade de consciência, de toda a espécie de racionalismo, da independência recíproca entre a Igreja e o estado, do casamento civil. Indiretamente assegura a infalibilidade do papa, o direito exclusivo do reconhecimento da Igreja Romana pelos governos civis, a ilegalidade das demais religiões, a completa independência da hierarquia papal, o poder de coação da Igreja de Roma e seu domínio absoluto sobre a educação, a ciência e a literatura etc. A Bula de Leão X foi arrancada graças à tenacidade do dr. Eck, em seu zelo amargo contra Lutero, justificando assim o conceito bíblico de que os inimigos do homem são os seus próprios domésticos. Eck, alemão, procura a ruína de Lutero, seu amigo de outros tempos e patrício de nação. Insinua Schaff haver agido Eck também no interesse do banqueiro Fugger, tão empenhado no negócio das indulgências pelas suas relações financeiras na Itália. Leão X preocupava-se mais com suas caçadas e suas rodas literárias e artísticas, homem mais secular que religioso. Mas o doutor de Ingolstadt, após o encarniçado debate de Leipzig, encaminhou-se para a corte pontifícia e conseguiu para o fim que tinha em vista o concurso valioso de Prierio e Aleandro e dos cardeais Campégio e Cajetano. Este último compareceu mesmo enfermo ao consistório. Quase três anos haviam decorrido desde a questão das indulgências e mais um desde o debate de Leipzig quando a Bula apareceu. Lutero não cessara de provocar a cólera pontifícia, redobrando os seus golpes formidáveis e urgia que Roma se pronunciasse. Era nisso que, auxiliado pelo rancor, Eck persistia. Foi aquela a última Bula a ser dirigida ao cristianismo ocidental ainda unido e a primeira a ser desobedecida em grande parte. A sua promulgação e execução na Alemanha foi confiada a dois prelados italianos, Aleandro e Caraciolo. À frente da embaixada vinha o dr. Eck, que, na linguagem de um historiador, parecia o novo Atlas a amparar o edifício abalado de Roma. Tão ufano vinha de sua vitória que se chegou a dizer que fora ele mesmo o autor da Bula Exsurge. Fora investido na qualidade de núncio papal e da faculdade de estender a condenação a outros indivíduos, além de Lutero. Isso ele o fez, contemplando os seus desafetos Karlstadt e Feldkirchen de Wittenberg, Adelman, cônego de Augsburgo, Egranus, pregador de Zwickau, e os humanistas Pirckheimer, e Lázaro
Splenger, de Nurembergue. Os dois últimos e Adelman tiveram de humilharse para escapar à condenação. Os outros não se incomodaram. Infelizmente para Roma, mau diplomata era ele, como se via em Leipzig, no seu ataque a Lutero, levando este a quebrar o acordo da boa diplomacia de Miltitz. O arrojo com que de novo se apresentou e o fato de não possuir qualidade superior na hierarquia veio a ferir susceptibilidades eclesiásticas e concorrer para o fracasso da comissão. Ao arcebispo de Mogúncia, como primaz da Alemanha, é que cumpria a execução da Bula, mas o dr. Eck vinha como arauto e pregoeiro. Em Mogúncia, Colônia e Lovaina não houve dificuldades e os livros de Lutero foram sendo recolhidos e atirados ao fogo. Depois conseguiu ele afixar a Bula na Mísnia, em Merseburgo, em Ingolstadt e em Brandemburgo. Em Leipzig parecia tudo muito bem a princípio. O duque mandou-lhe um presente, Miltitz foi ali ter. Banquetearam-se os dois e Eck mostrou-lhe a Bula e “fez-lhe ver como chamaria à razão o patife do Martinho”. Mas o vento mudou. O próprio duque Jorge não permitiu que se afixasse o documento sem ordem do bispo de Merseburgo. Então os estudantes começaram a ridicularizá-lo, sendo reforçado o grupo com um bando numeroso de outros colegas de Wittenberg. Teve de refugiar-se no claustro de São Pedro e daí fugiu para Coburgo. Em Erfurt pior foi o caso com Eck. Alvo de zombaria, a faculdade recusou-se a publicar a Bula. Exemplares impressos da mesma foram atirados ao rio pelos estudantes que diziam: “Bulla est, in aqua natet ”. Bula quer dizer bolha. A água é o seu lugar próprio. Nela deverá nadar.
31. Pena de Talião Efeito da Bula em Wittenberg — Lutero apela do papa para o Concílio — A Bula é impelida às chamas — Coroação do imperador — Empenho de Aleandro — Frederico contemporiza — Erasmo é constrangido a manifestar-se e para na encruzilhada
Continua a Bula a agitar a Alemanha. Eck, que se saíra tão mal em Leipzig e em Erfurt, não se arriscou a aparecer em Wittenberg. Enviou o documento pontifício ao reitor, ameaçando-o de ver retirados os privilégios da universidade no caso de desobediência. Mas o reitor recusou-se a obedecer, alegando que não recebera com a Bula nenhuma carta do pontíficie. Nisso parece ter agido de acordo com os conselheiros do eleitor. Lutero encarou com sobranceria a situação. Pareceu entender a princípio que a Bula não passava de uma forja do próprio Eck. Com sua ironia dizia ter vindo o doutor “com longa barba, longa Bula e longa bolsa. Eu, porém, zombarei de sua Bula ou bolha”. [26] Por fim acreditou e, conforme seu hábito, deu pronta e veemente resposta, escrevendo Contra a Bula do Anticristo, nome que agora dava ao papa. Por sua vez Huten, em Mogúncia, metia o documento a ridículo, atacando-o em tom sarcástico. Pondo a lei em prática, o arcebispo eleitor de Mogúncia baniu de sua corte o humanista e lançou na cadeia o impressor. Em várias cidades, principalmente nos Países Baixos, território hereditário do novo imperador, acenderam-se fogueiras que consumiam os livros de Lutero. O mesmo se deu em Colônia perante o imperador. Em Lovaina fizeram uma grande fogueira, mas os estudantes burlaram os doutores, atirando às chamas obras dos escolásticos em vez de livros de Lutero. O reformador ia cada vez mais despedaçando os grilhões que o prendiam a Roma. Em 17 de novembro chamando um notário e cinco testemunhas, entre elas Cruciger, o esperançoso estudante conquistado no debate de Leipzig, mandou redigir um documento formal no qual apelava do uízo do papa Leão X para um Concílio. Apelo semelhante considerava-se heresia em Roma. Era agravo sobre agravo. O apelo, em forma de protesto, foi espalhado por toda a Alemanha e enviado às nações da cristandade. O arrojo era inaudito. O filho do humilde mineiro de Mansfeld corria
a enfrentar o herdeiro de Lourenço, o Magnífico, como se fora seu igual. Era o começo apenas. A 10 de dezembro uma carta de Lutero, afixada aos muros da universidade, convidara os professores e estudantes a se acharem às 9 horas da manhã junto à porta oriental da cidade. Erguia-se uma pira no local designado. Um dos doutores ateou as chamas nas quais atirou Lutero a Lei canônica, as Decretais, as Clementinas, vários escritos de Eck e de Emser, o secretário do duque Jorge. Ergueu então a Bula de Leão X e lançou-a ao fogo pronunciando em latim o juízo de Josué contra Acã: “Quia tu conturbasti Sanctum Domini, ideoque te conturbet ignis eternus” (Js 7.25). O ponto onde tal aconteceu mostra-se ainda em Wittenberg, à sombra de um robusto carvalho, cercado de uma grade de ferro com uma placa comemorativa. O reformador tomou a palavra e disse entre outras coisas: “Acaba-se de encetar uma luta séria. [...] Comecei esta obra, em nome de Deus. Terminará sem mim e por seu próprio poder. Se ousam eles queimar meus livros, nos quais, para falar sem gabolice, se acha mais Evangelho do que em todos os livros do papa, eu posso por mais razão queimar os seus em que nada há de bom”. Era a pena de talião. No dia seguinte, ao encetar as aulas da universidade, fez a preleção dos Salmos, como de costume. Definiu depois melhor sua atitude. O auditório mostrou-se vivamente impressionado com isso. A queima da Bula era o divórcio final de Lutero com a Igreja Romana. O incêndio ateado ao lado da porta oriental ilumina o mundo há quatro séculos [27] e Roma jamais o extinguirá. O entusiasmo partido de Wittenberg se espalhou por toda a Alemanha. Karlstadt, também alvejado na Bula, levantou igualmente a sua voz “contra o leão furioso de Florença, que rasgava as leis divinas e humanas e conculcava os princípios da eterna verdade”. Melâncton, com a suavidade e prudência que o caracterizavam, dirigiu-se por sua vez aos príncipes da Alemanha, manso mas enérgico, salientando a maneira por que a nação era tratada pelos poderes de Roma e ustificando a atitude do doutor de Wittenberg. Em 3 de janeiro de 1521 findara o prazo mareado na Bula Exsurge. Então o pontífice pronunciou o anátema definitivo, a Bula de excomunhão
que deveria esmagar o frade rebelde. Tal, porém, não veio a acontecer. A Bula perdera a sua força e o anátema viria a repercutir fracamente. Retrogradando alguns passos, mencionaremos a coroação de Carlos V em Aix-la-Chapelle no dia 23 de outubro. A magnificência e a pompa foram além de toda a medida. Marino Caraciolo e Jerônimo Aleandro representaram o papa. Este último havia sido secretário de César Bórgia. Era bibliotecário do Vaticano e tido entre os homens mais cultos do seu tempo. Teria de ser cardeal. Parecia um digno embaixador de Roma pela intolerância e espírito inquisitorial que manifestava. Edwin Booth refere que pusera ele à morte cinco camponeses pelo fato de haver perdido o seu cão predileto. Aleandro cientificou a Carlos V das esperanças do pontífice no novo governo, do qual esperava toda cooperação no saneamento da heresia: “O papa”, dissera ele, ao entregar-lhe a Bula, “que tem sabido subjugar tantos e tão grandes príncipes, saberá bem chamar à ordem três gramáticos”. Erasmo estava presente no momento e era ele um dos gramáticos em questão, sendo Lutero e Melâncton os outros dois. A peste assolava e logo o imperador e a comitiva foram estacionar em Colônia. Aleandro insistia querendo apanhar a palavra do imperador. Moço, mas prudente, entendia que seria necessário consultar primeiro a experiência de seus príncipes alemães, principalmente de Frederico, o prestigioso regente por tanto tempo e a quem devia ele a coroa imperial: “Saibamos primeiramente o que pensa sobre este negócio nosso pai, o eleitor de Saxônia. Veremos depois o que convirá responder ao papa”. Por isso os dois representantes de Roma trataram de assediar o eleitor que, devido a um ataque de gota, não pudera assistir à cerimônia da coroação e ficara em Colônia. Logo depois da missa, no primeiro domingo de novembro, acercaram-se dele. Caraciolo começou brandamente, mas Aleandro tomou-lhe a dianteira, manifestando logo a sua intolerância. Duas coisas pedia-lhe em nome de Leão X: queimasse Frederico os livros de Lutero e o punisse. Ou, se não, o enviasse prisioneiro a Roma. Replicou o eleitor mostrando a gravidade do assunto, que somente com vagar poderia ser resolvido. Não era a primeira vez que Frederico se via em dificuldade por causa de Lutero com o qual simpatizava, embora continuasse a render homenagem a Roma. Via a perseguição que se desencadeava sobre o monge desprotegido
e não queria abandoná-lo. Como de outras vezes, haveria de achar prudente solução. Não aprovava a política pontifícia que admitia medianeiros como Eck, despidos de toda a moderação. Aleandro continuou a assediá-lo, querendo ver logo definida a sua atitude. Exprimiu ele o seu desgosto no rumo da política de Roma, nada ainda decidindo. A notícia chegou a Wittenberg e Melâncton exultou, entendendo que os demais príncipes se guiariam pelo exemplo do seu Nestor: “Se Homero chamava a seu herói muralha dos gregos, por que se não chamaria Frederico de muralha dos germanos?”. Erasmo continuava em Colônia e resolveu ouvir o eleitor, fazendo-lhe a pergunta momentosa: “Que pensais de Lutero?”. O astuto, porém, tímido sábio de Roterdã, bem desejaria evitar a resposta para se não deixar comprometer. Fez trejeitos e não disse palavra. Mas o eleitor insistiu pela sua autorizada opinião. Então deu a resposta humorística tão conhecida: “ Lutherus peccavit in duobus; nempe quod tetigit coronam pontificis et ventris monachorum” [“Lutero pecou por dois lados; porquanto tocou na tiara do papa e no ventre dos monges”]. Espalatino estava presente. Mas Frederico não se satisfez com o dito chistoso. Erasmo, saindo da reserva habitual, disse-lhe então entre outras coisas: “A origem de toda esta disputa é o ódio dos frades contra as letras e o medo que têm de ver findar-se a sua tirania. Que têm eles posto em campo contra Lutero? Clamores, cabalas, ódios, libelos. Quanto mais um homem é virtuoso e afeiçoado à doutrina do Evangelho, tanto menos oposto é a Lutero. A dureza da Bula tem excitado a indignação de todas as pessoas honestas e ninguém há que possa nela reconhecer a doçura de um vigário de Cristo”. Então formulou Erasmo 32 proposições, mostrando que deveria o papa nomear um tribunal imparcial para examinar as afirmações de Lutero. Frederico contemporizou e Erasmo tratou de agradar a ambos os partidos, segundo o ditame de sua astúcia. Escrevia cartas lisonjeiras a Leão X. Via bem a responsabilidade. E assim foi sempre. Apreciou a Lutero por algum tempo e mostrou o seu afeto a Melâncton e a outros reformadores. Fomentou a Reforma mas não seguiu a via dificultosa daqueles homens corajosos. Agradou a Roma que lhe chegou a oferecer o chapéu cardinalício, que não quis aceitar.
Por fim todos desconfiavam de sua atitude dúbia, como que entre dois caminhos. Sabia gracejar e agradar. Mas era amigo do comodismo e preferia o viver tranquilo no sonho das letras. O grande erudito não tinha vocação para o martírio e achou mais prudente ficar na encruzilhada.
32. Worms Origens de Worms — A primeira Dieta de Carlos V — Entre duas muralhas — Política de Leão X — Popularidade de Lutero — Exigências de Aleandro — Queixas do duque Jorge contra Roma — Acusações do mesmo teor dos povos da Europa — Lutero citado perante a Dieta — A Bula In coena Domini
Eisleben, Mansfeld, Magdeburgo, Eisenach, Erfurt, Wittenberg, a que untaremos Wartburgo e Coburgo, constituem marcos miliários da agitada carreira de Martinho Lutero. Worms — ao princípio Vangiones, Borbetomagus, Vormatia, era a antiga capital dos Vangiões, povo ribeirinho do Reno. Fundada pelos vândalos, conquistada por Júlio César, serviu de residência a soberanos carlovíngios e nela tiveram assento vários Concílios, conferências e Dietas. Foi ali assinada, em 1122, a Concordata de Worms, entre Henrique V e o papa Calixto II, que pôs termo à debatida questão das Investiduras. Tornou-se famosa na poesia alemã, como cena dos Niebelungen, poema épico baseado nas velhas sagas germânicas. A sua maior celebridade, porém, é devida à presença de Lutero na Dieta, de onde deveria sair o Édito de Worms, que descarregaria o opróbrio sobre o monge da Alemanha. Em 28 de janeiro de 1521 — aniversário da morte de Carlos Magno — na velha cidade do Reno, então cidade livre, reunia-se a primeira Dieta ou assembleia do império presidida pelo jovem Carlos V, coroado três meses antes em Aachen. Jurara então manter a fé, defender a Igreja e prestar submissão ao papa e à sé de Roma. A reunião deveria ter sido em Nurembergue, o que não se realizou em virtude da peste reinante. A Assembleia era a mais brilhante possível, devido principalmente ao fato de ser a primeira a que esteve presente o imperador. Cerca de duzentas pessoas faziam a composição da notável assistência. Além de seis dos principais eleitores, viam-se duques, condes, margraves, landgraves e grandes senhores do império, arcebispos, bispos, embaixadores, delegados das cidades imperiais e ainda os legados do papa e muitas dignidades eclesiásticas. Ao lado do imperador, via-se seu irmão Fernando da Áustria.
Muitas questões teriam de ser debatidas na Dieta, no interesse do império. A mais palpitante, porém, era a questão religiosa, concretizada na pessoa de Lutero. Ferido pela Bula Exsurge Domine, em 15 de junho do ano precedente, a sua situação agravara-se com a Bula Decet Romanum Pontificem, de 3 de janeiro, que o excomungava definitivamente. Por isso os representantes do papa exigiam do imperador a pronta execução da Bula fulminatória. Carlos viu-se, todavia, entre duas muralhas. De um lado, premia-o a exigência inquisitorial de Aleandro, apontando-lhe a vontade de Roma. De outro, a figura veneranda de Frederico da Saxônia indicando-lhe uma atitude de clemência e de contemporizações. O imperador sentia-se magoado com Leão X, que dera a sua preferência a Francisco I, e olhava com a maior consideração a Frederico, a quem devia a coroa imperial. Entretanto, querendo Leão X aumentar os territórios papalinos, concluía naqueles dias, ao mesmo tempo, dois tratados secretos, dizem alguns historiadores. Com Francisco I contra Carlos V, reclamando uma parte do reino de Nápoles que deveria ser tirada do imperador; com este contra o rei da França, do qual pretendia Parma, Placência e Ferrara. Tal a política sem escrúpulos de João de Médicis. Deveria ser aplicada logo a sentença de Roma, ou deveria ser Lutero ouvido primeiramente? Era a questão a resolver. Aleandro andava inquieto vendo o herege contar com a simpatia de boa parte da nação. Tratou então de formular as maiores acusações. Previa a guerra civil ante o procedimento sedicioso do frade, que tinha ao seu lado grande parte do baixo clero, dos nobres e da massa popular, sem falar em Frederico. McGiffert observa que, de fato, muita gente se enfileirava contra Roma. Huten estava à frente dos nobres e letrados. Nove décimos da nação alemã fortaleciam Lutero e o décimo restante não morria de amores pela cúria. Havia até quem lhe atribuísse já milagres, tal a popularidade do monge rebelde. Estava Carlos ainda nos Países Baixos quando o seu embaixador em Roma lhe dera aviso de que deveria mostrar clemência para com um certo Martinho Lutero de quem o papa se temia. Aleandro procurava tirar todo o partido da situação. Na sua correspondência para Roma mostrava o perigo que ele próprio corria na Alemanha por se colocar em oposição ao popular Lutero, a quem qualificava de Anticristo, de ébrio, de mero instrumento de Huten e seus aliados. Considerava Sickingen de tanta influência e tão temido que parecia o
verdadeiro rei da Alemanha. O representante do papa conseguiu permissão para levantar sua voz contra Lutero na Dieta. Em 13 de fevereiro, por três horas continuadas, procurou defender a causa de Roma, tendo diante de si as obras do reformador, as Bulas do papa e vários documentos que reputou necessários. Na defesa da tiara papal, dizia ele, estava pronto a dar o corpo às chamas se o monstro que produziu a heresia pudesse ser envolto no mesmo fogo. Ataca Lutero nas doutrinas que pregava e na sua terrível obstinação em não se querer submeter a Roma. Vê nos erros do frade material para queimar cem mil hereges. Achincalha terrivelmente a todos os que se tornaram seus adeptos. O antigo secretário de César Bórgia esgotou a sua eloquência poderosa contra o herege que não estava presente para produzir sua defesa. Parecia ter certa a vitória, entretanto, não foi ela tão facilmente conseguida. Dias depois levantou-se na Dieta o duque Jorge, não para defender Lutero, a quem aborrecia, mas para levantar a mais terrível acusação contra Roma e seus desmandos e abusos. Tocou principalmente na ganância da corte pontifícia, canalizando para Roma o dinheiro da Alemanha e tolerando toda a sorte de corrupção e de imoralidade. Nem Lutero falaria com mais veemência. Cento e uma acusações foram apuradas por uma comissão que as apresentou ao imperador. Aliás, de todas as partes da Europa partiam acusações e queixas contra Roma pela sua posição absorvente. É por isso que, por séculos consecutivos, pedia-se uma reforma. Nada se alcançava e os que ousavam erguer demasiado a voz como João Huss eram consumidos nas fogueiras. Há um trecho do historiador Lindsay que bem caracteriza a situação naquela época: “Naqueles dias a Igreja era um grande império eclesiástico, tendo Roma como capital. Toda a Europa estava dividida em bispados e o clero era muito rico. Possuía extensos domínios que arrendava; tinha também direito aos dízimos de todas as outras propriedades. [...] As várias ordens de frades se haviam tornado igualmente muito opulentas, sendo a sua maior riqueza constituída em terras que lhes haviam sido doadas ou legadas em testamento por pessoas devotas. Em quase todos os países da Europa se haviam promulgado leis com o fim de impedir ou delimitar estas doações, mas essas leis tinham sido tão ineficazes que, no tempo da Reforma, as ordens religiosas eram senhoras de quase um terço do
território europeu. E, apesar de ricas, andavam constantemente esmolando. Parte de seus bens ia todos os anos para Roma. Quando um bispado vagava, as receitas eram recolhidas pelo papa, que demorava sempre a nomeação de outro bispo. O papa se empenhava frequentemente em que os bispos ou abades fossem italianos, pois que estes ficariam residindo em Roma e o dinheiro lhes seria remetido para ali. Quando um novo bispo era nomeado, tinha de remeter ao papa as rendas do primeiro ano, as annatas. Todo este dinheiro remetido para Roma fazia falta aos países donde saía. No tempo de Lutero, as indulgências ainda mais o extorquiam” ( A Reforma, p. 12). Era mais ou menos deste teor a queixa da Alemanha expressa pelo duque Jorge. Aleandro perdeu em parte o seu latim. Ficou resolvido que Lutero comparecesse e Carlos enviou-lhe a citação em termos respeitosos: “Ao honrado, caro e piedoso dr. Martinho Lutero, da ordem dos agostinhos”. E o maior dos monarcas do universo assim se qualificava: “Nós, Carlos, quinto do nome, por graça de Deus eleito imperador romano, sempre augusto, rei da Espanha, das Duas Sicílias, de Jerusalém, da Hungria, da Dalmácia, da Croácia etc., arquiduque da Áustria, duque da Borgonha, conde de Habsburgo, de Flandres, do Tiro etc. etc.”. Tantas honras para com um humildde frade excomungado! E, contudo, “doutor honrado e pio”! A citação tinha a data de 6 de março. A 28 era quinta-feira santa. E, segundo o costume das coisas solenes de Roma, nesse dia Leão X, no meio de grande encenação, depois de lançar do alto do trono pontifício a bênção aos fiéis, leu a Bula In coena Domini, a Bula das maldições, prática que durou até 1770. Era como se estivesse ele no cimo do Ebal, no tempo dos hebreus. Os altos dignitários assistentes viraram para baixo as tochas acesas e atiraram-se ao solo violentamente, como se fossem chamas do inferno, símbolo dos excomungados e das almas condenadas. Então o povo atemorizado ouviu as tremendas palavras de maldição: “Leão bispo [...] servo dos servos de Deus [...] para guardar a santa comunhão dos fiéis seguimos o costume antigo e excomungamos e amaldiçoamos da parte de Deus Onipotente, o Pai, Filho e o Espírito Santo, e segundo o poder dos apóstolos São Pedro e São Paulo e o nosso próprio poder, amaldiçoamos a todos os hereges — os cátaros, os patarinos, os pobres de Lião, os arnaldistas, os esperonistas, os wycliffistas, os hussistas, os fraticellos [...] e Martinho
Lutero, há pouco por nós condenado por heresia semelhante”. Lutero bem poderia replicar com as palavras do Salmista: “Amaldiçoem eles, mas abençoa tu!” (Sl 109.28). Em vez das grimpas agrestes do Ebal, das excomunhões e dos anátemas, as dádivas graciosas do Gerizim das bem-aventuranças.
33. Capitólio ou rocha Tarpeia? O arauto do império em Wittenberg — Partida de Lutero para Worms — Companheiros de jornada — Marcha triunfal de um frade excomungado — Predições pessimistas — O castelo de Ebernburg — Lutero desconfia da cilada de Glápio — A carta de Huten — As palavras de um velho general
No dia 24 de março o arauto imperial Gaspar Sturm apresentou-se às portas do Claustro Negro com a citação do imperador. Interpretou Lutero a intimação como sendo de determinação divina e dispôs-se a partir. No meio de tantas agitações, tendo sobre a cabeça as maldições do Vaticano, não cessara Lutero de trabalhar como dantes. Não abandonara o convento nem tampouco as vestes monásticas. Continuara a pregar e ensinar na universidade. Expunha as Escrituras e trabalhava nos seus comentários. Produzia tratados em profusão. Concluiu a sua exposição sobre o Magnificat, e publicou sermões e obras de polêmica. Trazia o enviado imperial o salvoconduto de Carlos V, e de outros também — do eleitor da Saxônia, do duque Jorge e do landgrave de Hesse, cujos territórios teria de atravessar. Os amigos de Lutero temiam pela sua sorte. Achavam muitos deles que não mais regressaria de Worms. O fiel Melâncton queria acompanhá-lo, mas não lhe foi isso permitido: “Se eu não voltar”, disse Lutero comovido, “se meus inimigos me matarem, não cesses, ó meu irmão, de ensinar e de permanecer firme na verdade... Se viveres, pouco importa que eu morra”. Ao lado de Melâncton ficava Bugenhagen, recentemente chegado a Wittenberg. Teria de ser um dos leais companheiros. Era padre e foi pastor 36 anos na cidade. O conselho de Wittenberg forneceu uma carruagem toldada, na qual viajou Lutero até Worms. A 2 de abril deu-se a partida. Com ele foram alguns amigos: Amsdorf, professor da universidade, Pezensteiner, seu companheiro de mosteiro — de acordo com a praxe de viajarem os frades de dois em dois — e um estudante dinamarquês, Pedro Swaven, que quis acompanhar o mestre. A este número alguns acrescentam Jerônimo Schurff, seu amigo, professor de direito em Wittenberg. Assim na pequena comitiva estavam representados a universidade, o mosteiro e os estudantes. Na frente, em brilhante cavalgadura, marchava o arauto com as insígnias do império — uma bandeira amarela com a águia negra, bicéfala. Amigo da música, não se
esqueceu Lutero do seu alaúde para a longa viagem. Em Leipzig, a despeito da animadversão da universidade, os magistrados e estudantes dispensaram-lhe bom acolhimento. Em Naumburgo deu-lhe o burgomestre boa recepção. Em Weimar, Justo Jonas, de Erfurt, adiantando-se, incorporou-se à comitiva. Foi outro amigo fiel e teria de ocupar posição saliente. Companheiro da jornada de Worms, estava-lhe também reservada a missão de testemunhar-lhe a jornada final, 25 anos depois. Em Weimar, estava o povo alvoroçado e Gaspar Sturm explicou o motivo. Afixaram na cidade o Édito do imperador mandando entregar aos magistrados as obras de Lutero. Era um mau prenúncio e o próprio Sturm indagou dele se desejava prosseguir. “Confio no salvo-conduto”, foi a resposta. O duque João, irmão de Frederico e futuro eleitor, aí estava. Deulhe audiência, forneceu-lhe dinheiro para a viagem e convidou-o a pregar. Erfurt marcou a etapa seguinte. Foi uma recepção triunfal. Uma tropa de cavalheiros foi-lhe ao encontro. Crotus Rubeano, reitor da universidade, o poeta Eóbano de Hesse, e muitas pessoas distintas acolheram-no. Lange, seu velho amigo, exultava em vê-lo. Hospedou-se no seu antigo convento. Apesar da interdição, convidaram-no a pregar no domingo de Páscoa. A assistência era tão numerosa que uma das galerias estalou, o povo se assustou pensando que ia ceder e muitos fugiam de medo. O pregador parou por um instante. Estendeu a mão e bradou: “Não temais, não há perigo. O diabo procura assim impedir que eu pregue o Evangelho, mas não o conseguirá”. Tudo prosseguiu calmamente. O texto do sermão era apropriado. “Paz seja convosco! E dito isto, mostrou-lhes Jesus as mãos e o lado” (Jo 20.20,21). A jornada foi reencetada. Pregou em Gota. Em Reinhardsbrunn hospedou-se com os beneditinos. Adoeceu ao chegar a Eisenach e foi necessário aplicar-lhe uma sangria. Por toda a parte o povo saía a vê-lo, levado, ao menos, pela curiosidade. Nas estalagens a multidão se aglomerava. Parecia mais a marcha de um triunfador do que a passagem de um então compadecido: “Há em Worms tantos bispos e cardeais! [...] Reduzir-vos-ão a cinzas como fizeram a João Huss!”. Mas o intrépido monge respondia: “Quando fizessem um fogo que se estendesse de Worms a Wittenberg e que subisse até o céu, eu o atravessaria em nome do Senhor. Compareceria diante deles, faria caminho pela garganta desse Beemoth, quebraria seus dentes e confessaria o nome de Cristo”.
No domingo, 14, estava em Frankfurt, donde escreveu a Espalatino: “Cristo vive e entraremos em Worms apesar de todas as portas do inferno e de todas as potências do ar”. No dia seguinte visitou o geógrafo Nesse e deitou sua bênção aos colegiais. Aí residia Cochlaeus, terrível inimigo, que foi o primeiro, do lado contrário, a escrever-lhe mais tarde a biografia, eivada de preconceitos. Cheio de zelos pelo papa, correu logo a Worms, depois da partida de Lutero, para defender a sua Igreja. Em Worms correu a notícia da aproximação do monge. Houve logo um grupo que pensou impedir-lhe a chegada, do qual era chefe o franciscano Glápio, confessor do imperador. Tratou ele de empregar a astúcia. Dirigiu-se ao castelo de Ebernburg do intrépido cavaleiro Sickingen, que era o albergue dos perseguidos e onde o dominicano Bucer, partidário de Lutero, se achava refugiado e servia de capelão. Fez ver aos dois o perigo de ir a Worms e a conveniência de abrigar-se ali o frade. O imperador mandaria alguns a conferenciar com ele então. Sickingen de nada suspeitou e Glápio conseguiu que o próprio Bucer, acompanhado de cavaleiros, fosse o portador do convite a Lutero. O encontro deu-se em Oppenheiem. Mas Lutero desconfiou da cilada. Faltavam três dias para expirar o salvo-conduto e se fosse ter ao castelo, o prazo terminaria, ficando ele sem garantias. Era isso o que astucioso confessor tinha em vista. Lutero então mandou lhe dizer que conversariam melhor em Worms. Foi mais sagaz que o franciscano. Todos os amigos temiam por Lutero. Ao aproximar-se de Worms, enviou-lhe Espalatino, capelão e confidente do eleitor, um mensageiro, aconselhando-o a não entrar na cidade. Mas o destemido frade fez voltar o enviado: “Ide e dizei a vosso amo que, quando mesmo houvesse tantos demônios em Worms como as telhas dos telhados, assim mesmo eu entraria!”. Na manhã de 16 avistou as muralhas da cidade. Uma grande comitiva adiantou-se-lhe. Cerca do meio-dia o vigia do campanário da catedral fez soar a trombeta, anunciando a chegada. Calculou-se em duas mil pessoas o número dos que então o acompanhavam. Todos corriam a vê-lo. Uma recepção ainda maior que a de Carlos V. “Lutero chegou!” — ouvia-se por toda parte e os membros da Dieta se assombraram da audácia. O arcebispo de Mogúncia — o homem das indulgências na Alemanha — tinha ainda como capelão e conselheiro a
Capito, um dos futuros reformadores de Estrasburgo. Autêntica ou não, cumpria-se a profecia atribuída ao herói nacional da Boêmia, citada em outro lugar. Carlos reuniu o seu conselho íntimo. Conta-se que então o chanceler de Flandres fez-lhe uma sugestão maligna. Lembrou-se que não se era obrigado a guardar a palavra a hereges e que Sigismundo havia feito queimar a João Huss a despeito do salvo-conduto. O imperador repeliu nobremente a sugestão. Diz-se, porém, que no seu retiro de São Justo, o velho imperador arrependia-se mais tarde de não haver seguido o conselho. Supunha então que, se o Reno houvesse recebido as cinzas de Lutero como recebera as de João Huss, a onda da Reforma teria de abater-se. Lutero não foi queimado e a sua obra perpetuou-se. O cavaleiro de Huten, do seu retiro de Ebernburg, o castelo hospitaleiro de Sickingen, escreveu a Lutero em Worms uma carta cheia de conforto, que tinha como início as palavras alentadoras do Salmista: “O Senhor te ouça no dia da triBulação, o nome de Deus de Jacó te proteja! Envie-te socorro o Santuário e desde Sião te proteja! Reparta contigo segundo o teu coração e cumpra todos os teus desígnios!” (Sl 20.1-4). A jornada a Worms, iniciada na dúvida e na incerteza, foi a inspiração da fé e da coragem. Bem o interpretou o general Jorge de Freundsberg quando, tocado de admiração, ao entrar Lutero na Dieta, batendo-lhe no ombro exclamou: “ Monchlein, monchlein monch lein — — mongezinho, mongezinho, tens diante de ti um passo e um negócio tais que nem eu, nem muitos capitães, temos jamais visto semelhante nas mais sanguinolentas batalhas. Mas se tua causa é justa, e se tens toda a certeza, segue em nome de Deus e nada temas! Deus não te abandonará!”. Sairá Lutero de Worms com vida? Subirá ao Capitólio ou será precipitado da rocha Tarpeia?
34. A hora decisiva da Reforma Lutero perante a assembleia — O chanceler de Tréveris — Prazo concedido para a resposta — Uma noite de ansiedade — A hora decisiva — Uma resposta à altura da situação — O jarro de prata de Eric de Brunswick
Para o alojamento de Lutero em Worms foi-lhe designada a hospedaria dos Cavalheiros de São João, onde estavam também dois conselheiros de Frederico. Ao descer da carruagem, exclamou, segundo a informação de Aleandro: “Deus seja comigo”. O legado noticiou também para Roma que depois daquelas palavras, “olhou tudo em redor com seus olhos de demônio”. Não lhe faltaram visitas até alta noite. Muitos curiosos queriam vê-lo. Os íntimos conversaram demoradamente. No dia seguinte, 16, citou-o o marechal do império a comparecer às quatro horas da tarde perante o imperador e os estados da nação. Naquela manhã fez os seus preparativos para o comparecimento e atendeu ainda ao chamado de um nobre saxônio, às portas da morte, que queria receber dele mesmo o conforto espiritual. Em sua vida, jamais se eximiu Lutero aos deveres pastorais. Por isso atendeu ao enfermo, ouviu-o de confissão e ministrou-lhe a comunhão. À hora assinalada, veio buscá-lo o enviado imperial, que, somente com muita dificuldade, conseguiu introduzi-lo na assembleia, devido ao numeroso concurso. Lutero havia dito que iria, ainda quando houvesse tantos demônios como telhas nos telhados de Worms. Agora não só as ruas como os telhados estavam apinhados, não de demônios, mas de curiosos, que desejavam ver passar o herege que tanto perturbava o papa e a Alemanha. Eis enfim o homem diante da assembleia, o mongezinho perante o maior dos reis do século. Estava ali a esplêndida majestade de Carlos com os seus grandes do império e seus nobres da Espanha e da Flandres. O frade fora alvejado pelos raios do Vaticano. Caíra a sua sorte entre os condenados. Deveria sua boca emudecer e para sempre ser o seu nome execrado. Aconteceu, porém, ser chamado a dar o seu testemunho perante o tribunal de César, na majestosa assembleia dos poderosos, havendo sido intimado, nos termos mais reverentes, como “doutor honrado e pio”, a despeito de tantas maldições! Quando Lutero se apresentou diante do trono de Carlos V, todo o
auditório concentrou nele a atenção. Após alguns momentos de silêncio, previamente industriado por Aleandro, aproximou-se dele o chanceler do arcebispo de Tréveris, João de Eck, que se não deve confundir com o doutor de Ingolsdt, seu homônimo. Primeiro em latim, depois em alemão, nestes termos lhe falou: “Martinho Lutero, sua santa e invencível majestade imperial citou-te diante do seu trono, segundo o parecer e conselho dos estados do Império Romano, a fim de interrogar-te sobre duas questões”. E, apontando para um montão de livros ali postos sobre a mesa, inquiriu: “Reconheces que estes livros por ti foram escritos? Em segundo lugar, estás pronto a retratar-te do que neles escreveste, ou persistes no teu modo de pensar?”. Lutero ia responder afirmativamente à primeira pergunta quando tomou a palavra Jerônimo Schurf, seu colega e amigo, que havia sido designado por Frederico para acompanhá-lo no interrogatório como jurista e conselheiro. Pediu então o professor de Direito de Wittenberg que se lessem primeiro os títulos das obras, ao que anuiu o chanceler. Entre elas havia livros devocionais e matéria estranha à controvérsia. Lutero respondeu então em latim e em alemão. Quanto à primeira interrogação, replicou na afirmativa, acrescentando que ainda maior número escrevera. Quanto à segunda, atendendo à sua complexidade, pedia que se lhe marcasse um prazo para responder com mais reflexão. Carlos compreendia mal o alemão. Sentia-se mais à vontade com os seus flamengos, em cujo território nascera, e com os espanhóis, dos quais herdara o sangue materno e entre os quais morava, do que com os seus súditos germânicos. Com eles nunca se veio a identificar completamente, contra a expectativa que mantinham este naqueles primeiros tempos. Pouco tempo residiu entre eles. O imperador e os membros da assembleia reuniram-se em particular a fim de deliberar. Então se fez ouvir de novo o chanceler de Tréveris: “Martinho Lutero, Sua Majestade Imperial, segundo a bondade que o caracteriza, quer te conceder um dia ainda, mas sob a condição de lhe dares a resposta verbalmente e não por escrito”. Reconduziram o monge à pousada. Diziam uns que só lhe restava a fogueira. Entendiam outros que se retrataria. Aconselhavam alguns que repudiasse os erros de doutrina, mas persistisse no ataque ao pontífice e à sua corte. Mas Lutero não se batia por uma reforma política e sim religiosa. Contra as inovações do dogma é que ele principalmente se erguia.
Naquela noite de expectativa procurou Lutero o conforto lá de cima. Dirigiu-se a Deus em oração e uma delas ficou nos arquivos. Alguns trechos provam a sua intensa confiança no Senhor: “Deus eterno, onipotente, quão terrível é o mundo, como abre a sua boca para me sorver, quão fraca a minha confiança em ti! [...] Assiste-me contra toda a sabedoria do mundo. [...] Não é minha minha a obra, obra, mas sim t u a ! [ . . . ] Quisera Quisera eu passar passar dias felizes felizes e tranquilos, mas a causa é tua. [...] Vem em meu socorro, Deus fiel! [...] Não escutas, ó meu Deus! Estás morto? Não, tal não poderá ser! Não mostras o teu rosto simplesmente. Escolheste-me, bem o sei, para esta obra. Fica ao meu lado pelo teu amado Filho Jesus Cristo, meu escudo e fortaleza minha. E quando estivesse o mundo cheio de demônios, quando o meu corpo, obra de tuas mãos, tivesse de ir morder o pó [...] minha alma é tua, pertence-lhe, ficará eternamente ao pé de ti. Amém. Ó Deus, ajuda-me!”. A sua alma ficou em paz. A leitura da Palavra divina confortou-o. Na véspera sentira-se aniquilado e tímido porventura. Falara em voz pouco audível. Via-se isolado naquela grande assistência. Poderia considerar um novo Atanásio “contra o mundo”. Veio a hora da segunda audiência. Era agora o momento da história, a hora decisiva da Reforma. Via-se nele a atitude dos mártires da era sagrada das perseguições. Um novo Policarpo a confessar o Mestre. Um outro Huss a abraçar as chamas. Estava Lutero no vigor da idade. Contava 38 anos. Trajava o manto negro dos agostinhos e encarava a assembleia com firmeza, encarecendo a clemência imperial e indagando se queria retratar-se dos seus livros, no todo ou em parte. Falou Lutero com voz sonora e tranquila, cheio de majestosa serenidade. Era a voz do povo erguendo-se diante dos reis, o batalhador valente no terreno das ideias, que arrancara na véspera a admiração do experimentado capitão germânico. Era a voz da consciência incendida contra o absolutismo espiritual. Suas palavras foram nobres e dignas. “Sereníssimo imperador, ilustres príncipes, graciosos senhores! [...] Ontem propuseram-me duas questões. Se fora eu o autor dos livros cujos títulos foram enunciados; se estava pronto a repudiar ou persistir na doutrina ensinada. Quanto à primeira parte, reconheço esses livros como de minha autoria, a não ser que tenham modificado certas passagens neles”. Relativamente à segunda parte, mencionou que suas obras eram de
várias categorias. Havia livros devocionais, próprios para avigorar a fé, como os próprios adversários atestavam. Ai dele se desdissesse tais verdades! Numa segunda categoria estavam as obras em que atacara o papismo, condenando os seus abusos e o seu despotismo, os seus escândalos e irregularidades, coisas que mereciam a reprovação de todos. Se repudiasse tal gênero de escritos, seria justificar e encobrir tais faltas e abusos: “Grande Deus, ficaria eu sendo qual um manto infame destinado a ocultar e encobrir toda a espécie de malícia e tirania!”. “Em terceiro lugar escrevi contra indivíduos privados que queriam defender o absolutismo romano e destruir a fé. Confesso francamente que talvez os tivesse atacado com mais violência do que conviria ao meu estado eclesiástico. Não me considero um santo”. Disse então que, se reconsiderasse estes escritos, viria a autorizar a impiedade de seus adversários. Suplica, pelas misericórdias de Deus a todos aqueles grandes dignitários, que o convençam, pelas Escrituras, de seus erros, e estará pronto a lançar os livros ao fogo. No mesmo tom persuasivo prosseguiu ainda por algum tempo em seu discurso, falando em alemão. Estava visivelmente fatigado, quando ordenaram que repetisse as palavras em latim. Frederico de Tun, conselheiro do eleitor de Saxônia, posto ao lado de Lutero, por ordem de seu soberano para livrá-lo de alguma violência, quis evitar a repetição. Ele, porém, depois de ligeiro esforço, repetiu com firmeza em latim o seu discurso. Nisso o chanceler se adiantou impaciente, pedindo uma resposta clara e definida. Lutero, então, nas duas línguas, pronunciou as palavras que ficaram gravadas no bronze da história, como o protesto da consciência reclamando sua soberania ante a opressão de Roma. Era a magna carta das liberdades espirituais, que tiveram mais ampla realização nas constituições americanas, como o demonstrou Jellineck, professor de Direito de Heidelberg. E o professor Larnaud, de Paris, referindo-se ao trabalho do jurista alemão, assim se exprimiu judiciosamente: “O que se supunha até agora uma obra da Revolução não é realmente senão uma obra da Reforma e das lutas por ela geradas”. O livre exame advogado por Lutero fez soar depois a trombeta de oitenta e nove. Ouçamos, porém, a resposta ousada do monge de Wittenberg à
interpelação do chanceler de Tréveris: “Pois que a sereníssima majestade e as altas potências exigem de mim uma resposta simples, clara e precisa, dá-la-ei sem pontas nem dentes: Não posso submeter minha fé nem ao papa nem aos Concílios, porquanto é claro como o dia que caíram muitas vezes em erro e mesmo em grandes contradições consigo mesmos. Se, pois, não for eu convencido com testemunhos da Escritura ou por evidentes razões; se me não persuadirem pelas próprias passagens que citei e me não tornarem a consciência cativa da Palavra de Deus — Não posso e não quero retratar-me de coisa alguma, porque não é seguro para o cristão falar contra a sua consciência”. E relanceando um olhar pela assembleia que tinha sobre ele poder de vida e de morte, concluiu: “Assim Deus me ajude. Amém!”. Tais palavras incidiam como golpe mortal na tirania e marcaram a vitória da Reforma. O imperador que, na véspera, ao ouvir o frade, dissera desdenhoso: “Não seria este homem que me haveria de converter em herege”, ergueu-se agora horrorizado e levantou a sessão. Quando vieram buscar a Lutero imaginaram alguns que o iriam conduzir à prisão. Os espanhóis do imperador apuparam-no à saída do Palácio Episcopal, sede da Dieta. Tudo, porém, tem a sua compensação. Lutero saíra visivelmente abatido? Quando penetrou na pousada seguiu-o um criado de um dos nobres que lhe apresentou um jarro de prata cheio de cerveja de Einbeck. “Meu amo”, disse o servo, “convida-vos a restaurar as forças com esta bebida”. “Qual o príncipe”, disse o frade , “que tão graciosamente se lembrou de mim?”. Soube então que era o velho duque Eric de Brunswick, partidário do papa. E, para evitar qualquer desconfiança, continuou o servo: “Sua alteza dignou-se ele mesmo provar esta bebida antes de vô-lo mandar”. Profundamente comovido, esgotou Lutero o vaso que lhe trouxe refrigério. Alçou então o voto: “Assim como hoje o duque Eric se lembrou de mim, assim também nosso Senhor Jesus Cristo se lembre dele no último combate”. Eric recebeu a mensagem com agrado e quando se viu no leito de morte, pediu ao seu pajem que lhe abrisse o Evangelho. E emocionado, ouviu as confortadoras palavras de Cristo: “Todo aquele que houver dado só que seja um copo de água fria a um destes pequeninos, na qualidade de discípulo, de modo algum perderá a recompensa”.
35. O anátema do império A comunicação do imperador aos estados — Nova tentativa de reconciliação de Lutero — O Édito de Worms — Regresso de Carlos V — Progresso da Reforma — A carta de Lutero ao imperador — Incidentes da viagem — Sequestro nas florestas da Turíngia
Detenhamo-nos um momento ainda na velha cidade do Reno. O eleitor Frederico mostrou-se extremamente satisfeito com as palavras de Lutero na Assembleia. Carlos V, porém, enviou no dia seguinte, aos estados reunidos, uma declaração em francês, que era uma espécie de confissão de fé. Como sucessor dos imperadores germânicos, súditos leais da Igreja Romana, e herdeiro dos reis católicos da Espanha, sentia-se no dever de defender a herança religiosa dos antepassados. Ia, pois, conceder o salvo-conduto do regresso, mas, em seguida, trataria a Lutero como herege obstinado e convicto. Observa um historiador que Carlos teve ao menos o mérito de cumprir a palavra a despeito das sugestões de vários de seus conselheiros que o tentavam a imitar Sigismundo em Constança, quando entregou o herege da Boêmia. Carlos não quis aviltar-se como o seu antecessor, cuja face enrubescera ao violar o salvo-conduto de João Huss. Foi o maior serviço que prestou à Reforma, muito embora no fim de sua vida se tivesse mostrado pesaroso pelo ato de honestidade então praticado. Considerava agora que a Reforma progrediria e ele não a pudera entravar. Num codicilo ao seu testamento determinou a Felipe II que mostrasse o seu favor à Santa Inquisição como o melhor instrumento para suprimir a heresia em seus domínios: “Assim fará prosperar os vossos empreendimentos”. De como o Demônio do Meio-Dia ouviu respeitosamente as palavras de seu progenitor, testemunham-no os autos de fé na Espanha e os rios de sangue que correram nos Países Baixos. Herdara de preferência as más qualidades do pai. Ante a declaração de Carlos V aos estados, pediram e obtiveram os amigos de Lutero que lhes concedesse mais uma tentativa de conciliação. Houve, pois, três conferências presididas pelo arcebispo eleitor de Tréveris, que era amigo pessoal de Frederico. Mas nada se conseguiu. Queriam que Lutero se desdissesse ao menos das acusações contra o Concílio de Constança. Então seria convocado um Concílio geral para estudar o caso. Mas se manteve ele firme no seu ponto de vista. A Palavra de Deus era para
ele a razão suprema, conforme testificara na Dieta. O arcebispo de Tréveris portou-se com muita magnanimidade nestas conferências e o próprio Lutero confirmou-o. Por fim, a 26 de abril, deu-se a despedida. Grande multidão foi com ele até além dos muros da cidade e 20 gentis-homens a cavalo cercavam a carruagem. O arauto imperial acompanhava-o. O salvo-conduto, porém, não lhe permitia pregar pelo caminho. A Bula de Leão X teria de ser agora fortalecida pelo Édito de Worms. Filho obediente de Roma, não quis o imperador se retirar sem cumprir a vontade do pontífice. Deixou primeiro que se afastassem o eleitor de Saxônia e o conde do Palatinado, que se mostravam favoráveis a Lutero. Então, a 26 de maio, quando os estados já não estavam funcionando regularmente, surpreendeu os príncipes que restavam na cidade com o Édito restritivo. Todos aplaudiram o ato de Carlos V, que era um gesto de autoritarismo. O decreto tinha a data de 8 de maio para simular que tivera a aprovação unânime da Dieta. Entre os reacionários presentes salientava-se Joaquim, eleitor de Brandemburgo. O Édito de Worms fora redigido por Aleandro e dir-se-ia uma nova Bula de Roma. Nele significava o imperador o seu empenho em extirpar a heresia. Lutero é encarado como uma personificação do demônio. Era Satanás em forma humana, encoberto no capuz de frade. Expirado o prazo do salvo-conduto, ninguém o poderia receber, pois ficaria incurso no crime de lesa-majestade. Ninguém lhe deveria fornecer alimento ou matar-lhe a sede, nem prestar-lhe socorro de espécie alguma. Quem o encontrasse deveria entregá-lo às autoridades. Penas severas esperavam o desobediente. Os livros do reformador deveriam ser destruídos. No mesmo dia do decreto, concluiu Carlos um tratado de aliança com o papa contra a França. A seguir, passando mais uma vez pelos Países Baixos, regressou à Espanha, onde teve de subjugar uma insurreição. Depois envolveu-se em luta com Francisco I na Itália. Os turcos adiantavam-se na Hungria. Frederico protegia a Lutero e a Reforma caminhava na Alemanha. O protestantismo fazia progresso na Saxônia, em Brandemburgo, em Hesse, na maior parte da Alemanha do Norte, no Palatinado, em Württemberg, em Nurembergue, Frankfurt, Estrasburgo, Ulm etc., e dominou dali a península escandinava. O fato é que a Bula e o Édito até certo ponto constituíram letra morta
e o frade excomungado ia suplantando o poderoso imperador. Partindo Lutero de Worms, atingiu Frankfurt a 26 de abril. Daí escreveu ao pintor Lucas Cranach. [28] Em Friedberg, dirigiu uma carta a Carlos V expondo claramente a obediência devida aos reis. [29] Escreveu também aos estados do império relatando os fatos de Worms, espalhando-se cópias dessa carta por toda a Alemanha. Por toda parte, disse Cochlaeus, excitou-se a indignação do povo contra o imperador e o alto clero. Dali voltou o arauto Gaspar Sturm que foi o portador das cartas. Foi mais um que Lutero conquistou para o seu redil. Em Hersfeld o abade beneditino abraçou-o e o senado veio recebê-lo às portas. Em Eisenach ocupou o púlpito. Passou em Möhra, a terra de seu pai. Encontrou ainda sua avó paterna e visitou vários parentes. No dia seguinte um episódio dramático impediu-o de regressar a Wittenberg. Ao atravessar as florestas da Turíngia, cinco cavaleiros mascarados e armados dos pés à cabeça caíram sobre a carruagem, afugentaram os companheiros, puseram a Lutero sobre uma cavalgadura e afastaram-se a todo o galope. As novas do rapto se espalharam rapidamente. Correu notícia de sua morte e Aleandro escreveu para Roma contando as novidades: “Dizem uns que o fiz matar; outros acusam disso o arcebispo de Mogúncia. Queira Deus que o fato seja verdadeiro” (Edwin Booth, op. cit., p. 154). O pintor Alberto Dürer escreveu: “Se Lutero, ó Deus, é morto, quem no futuro nos pregará o Evangelho?”. Deplorou o desaparecimento do “santo homem” e dirigiu-se a Erasmo pedindo-lhe que tomasse o lugar vago e levasse até o martírio a obra de Lutero. Erasmo, porém, não havia sido feito para mártir.
36. Wartburgo O castelo de Wartburgo — O cavalheiro Jorge — Operosidade incrível de Lutero — Alberto de Mogúncia e o ídolo de Hale
Wartburgo era um dos castelos situados no território da Saxônia eleitoral, não longe de Eisenach. Fora em Worms, entre Frederico e seus amigos, que se tramara a reclusão de Lutero, sendo tudo concertado debaixo do maior segredo. Conta-se que, deixando Frederico a empresa a pessoas de confiança, para se não comprometer, nem ele mesmo sabia ao certo o ponto do esconderijo. Por isso é que o arauto imperial e outros companheiros foram-se apartando dele no caminho, restando somente, ao saírem de Eisenach, Amsdorf, que estava inteirado de tudo, e o frade agostinho Petzensteiner, que da floresta seguiu a pé para Waltershausen, regressando Amsdorf no carro a Eisenach. A identidade do refugiado foi cuidadosamente ocultada no castelo. Para os guardas era ele simplesmente o Junker Georg, isto é, o cavalheiro Jorge, que procurara aquele retiro para, tranquilamente, viver ali por algum tempo. Para justificar o disfarce, ordenaram-lhe que deixasse crescer a barba e o cabelo e usasse espada. Vivia quase como prisioneiro. Às vezes andava à caça e percorria somente os arredores. Vivia, de ordinário, no interior da fortaleza. Mas personalidade tal não poderia viver na ociosidade, naquele retiro de quase um ano. Nada lhe faltava e nunca fora tão bem tratado na sua vida. Mas essa transformação não lhe fez muito bem para a saúde e sofria continuamente de insônias. Depois de algum descanso, a que não estava habituado, começou a trabalhar. Em rápida sucessão, com operosidade incrível, escreveu sobre vários assuntos, breves tratados para a edificação dos fiéis, e outros de polêmica. Entre os primeiros estava a coleção de sermões — Kirchenpostille — publicada em fins de 1521. Eram sermões para os domingos e dias de festa, destinados para o uso do clero e que serviram de modelo para várias gerações de pastores e criaram, conforme Henri Ströhl, o tipo da prédica protestante. Um outro tratado versava sobre a Bula “ln coena Domini”, a Bula das maldições. Muita coisa mais escreveu então. Essas produções foram-se espalhando por toda a Alemanha e concorriam para desnortear os adversários, que já se regozijavam com as
notícias propaladas sobre a sua morte. Recebiam o golpe e ficavam cada vez mais confusos por não saberem de onde vinha. Os amigos de Wittenberg tinham dele notícias mais seguras. A maior parte desconhecia o seu retiro e, quando lhes escrevia, datava as cartas do “deserto”, da “região dos pássaros”, “do ar” ou da “ilha de Patmos”, com que qualificava o seu retiro. Espalatino era o seu intermediário e por prudência retardou a impressão de alguns dos trabalhos que seu amigo lhe enviava de Wartburgo. A muita insistência do prisioneiro é que o demoveu a divulgá-los. Antes disso, quando os adversários se julgavam aliviados do açoite do obstinado frade, registrou-se um episódio interessante. Trata-se de Alberto de Mogúncia, irmão de Joaquim, eleitor de Brandemburgo. Alberto era o primaz da Alemanha e o primeiro entre os príncipes eleitores. Possuía a corte mais brilhante da Alemanha e não tinham termo as suas prodigalidades. Tinha agora a sua corte em Hale e empreendera construir naquele centro uma universidade que rivalizasse com Wittenberg. De tudo sabia ele fazer dinheiro para os seus gastos e liberalidades. Até aos eclesiásticos que desejavam ter uma concubina não lhes era difícil obter permissão para tanto, desde que pagassem. Era discípulo de Roma. Agora que se julgava livre de Lutero, resolveu recorrer de novo às suas indulgências. Antes disso colecionou cerca de 9 mil relíquias e as expôs em Hale, ofuscando assim a coleção de Frederico na Igreja do Castelo. Entre outras curiosidades da nova exposição, via-se “um fragmento do osso do patriarca Isaque, restos do maná e da sarça ardente, bilhas cheias de vinho das bodas de Caná, espinhos da coroa de Jesus, uma das pedras que servira para apedrejar Santo Estêvão etc.”. Uma indulgência plenária era concedida a cada fiel que viesse render homenagem a essas santas relíquias, contanto que trouxesse o dinheiro necessário. A primeira romaria verificou-se em setembro daquele ano de 1521. A notícia chegou a Wartburgo e Lutero, indignado, escreveu logo um tratado, tendo por título Contra o ídolo de Hale. Enviou-o a Espalatino, mas o eleitor, por intermédio deste seu secretário, fez-lhe ver a inconveniência do ataque, dadas as circunstâncias em que Lutero se encontrava. Conteve-se por um momento, mas tomou logo a si o negócio. Escreveu ao arcebispo eleitor uma carta no seu estilo característico, cheia de ousadia no mais alto grau, embora em termos respeitosos.
Lembrou-lhe o caso de Tetzel que o arcebispo havia patrocinado as consequências que poderiam agora resultar com o novo ídolo de Hale. Mostra a responsabilidade que pesava sobre o alto pontentado da Igreja. Deus tudo via e saberia resistir ao cardeal como bispo e não como lobo, enganando o pobre povo de Mogúncia, mesmo quando este tivesse quatro imperadores ao seu lado. Termina convidando o Príncipe a derribar o ídolo. Marca-lhe um prazo de 15 dias. Depois publicaria o volume que já havia escrito e o trataria como no caso do papa. Contra a expectativa, Alberto respondeu. Por sinceridade ou por arte, dirigiu-se-lhe nos termos mais humildes. Assim começava: “Meu caro doutor. Recebi vossa carta e a tomo em bom sentido. Se não me encontro em erro, já não existe a causa que provocou a vossa indignação. [...] Estou disposto a receber vossa punição fraternal e cristã. Espero que o Deus de misericórdia e de bondade continue a conceder-me graça, força e paciência, permitindo-me viver nisso e em tudo o mais de acordo com sua vontade”. Lutero confiou meio desconfiado e não publicou senão mais tarde o tratado com título diverso e modificado nos termos, ferindo antes o sistema. O mediador e conciliador parece ter sido Capito, o secretário de Alberto, que mais tarde foi um dos reformadores de Estrasburgo. A prontidão da resposta do poderoso arcebispo mostra a influência moral de Lutero, que começava a ser temido entre o povo. O melhor serviço feito por Lutero em Wartburgo foi a tradução do Novo Testamento. Era o início de uma obra de mais valor, a tradução da Bíblia completa.
37. A Bíblia alemã A tradução do Novo Testamento em Wartburgo — Base de seu trabalho — Sua tradução da Bíblia e esforços formidáveis na adaptação à língua alemã — Como a Bíblia deu estabilidade à língua alemã — Seus colaboradores — Edições católicas
A tradução do Novo Testamento teve início no mês de dezembro, em Wartburgo, naquele ano de 1521. Foi um verdadeiro esforço hercúleo, de um fôlego, sem auxílio de secretário, com tinta ordinária e papel inferior. Seguiu Lutero o texto grego, conforme a segunda edição de Erasmo de 1519, trabalho este que foi o melhor serviço prestado à Reforma pelo sábio de Roterdã. Esta segunda edição foi a base do Textus Receptus, que atingiu a sua madureza na edição de Stephen de 1550. Em março de 1522, quando a obra terminava, findou igualmente o exílio de Wartburgo, por circunstâncias que depois mencionaremos. Em setembro do mesmo ano saiu a edição impressa em grande volume, in folio, ilustrado com 21 gravuras de madeira, trabalho de Lucas Cranach. Não vinha afixado o nome do tradutor. Cada livro do Novo Testamento era precedido de um prefácio e o texto era acompanhado de notas explicativas. Foi o trabalho de Lutero revisto por Melâncton em Wittenberg, de versículo em versículo. Em dezembro seguinte apareceu a segunda edição. Não ficou nisso o trabalho de Lutero. Empreendeu logo a tradução do Velho Testamento, serviço em que se ocupou por mais de dez anos, sendo publicada a Bíblia completa em 1534. O Pentateuco, em separado, aparecera em 1523; os Salmos em 1524. Ele, porém, não se satisfez com isso. Continuou a aperfeiçoar edições sucessivas, sendo publicadas nada menos de dez durante sua vida. As Sociedades Biblicas não deixaram passar a data em esquecimento. Em 1934, foi comemorado em todo o mundo evangélico o quarto centenário da edição da Bíblia de Lutero, que marcou uma época na história do cristianismo. O primeiro monumento da literatura teutônica havia sido a versão gótica da Bíblia, no quarto século, pelo bispo Wulfila. Não havia sido Lutero o primeiro a traduzir o livro para o alemão. Antes de sua edição, pelo menos 14 haviam aparecido no alto alemão e três ou quatro no baixo alemão, afora traduções em separado do Novo Testamento e dos Salmos. Mais as versões anteriores na Vulgata, cujo texto tinha muitas incorreções. A linguagem não se impunha. Era um alemão latinizado, bárbaro, sem atrativos.
A Igreja oficial não animava empreendimentos de tal natureza das Escrituras, até na Vulgata, e especialmente nas traduções vernáculas, quase sempre anônimas. A versão de Lutero baseava-se em textos mais fidedignos do que o da Vulgata de São Jerônimo, de 405, cujo texto se corrompera no decurso de onze séculos. Para o Velho Testamento se apoiou na última edição hebraica de 1494, de Gerson Ben Mosheh. Para o Novo baseara-se em Erasmo. Conhecia regularmente o grego e o hebraico e os textos bíblicos eram-lhe familiares desde a Universidade de Erfurt, pelo menos: “O grau de que mais se orgulhava era o de doutor nas Sagradas Escrituras. Estava completamente saturado do espírito e da matéria do livro”. A maior dificuldade estava na produção do texto alemão, devido à confusão da língua alemã em cerca de duzentos dialetos. “O grande tradutor, mais com a intuição de um poeta, do que com o cabedal científico de um filósofo, tomando um dos dialetos mais espalhados, expandiu-o numa traça de língua escorreita que desbancou os demais dialetos. Tocando no próprio coração do escritor bíblico, ele o convertia, no escrito, em frases peculiares ouvidas dos lábios do povo, de onde resultou um alemão em que pulsa a nacionalidade mesma, num estilo jamais sobrepujado e só de poucos igualado em sabor e fervor religioso”. Lutero aparelhou-se de um profundo conhecimento da língua do seu povo, especialmente da linguagem popular. Enquanto prosseguia na tradução, “misturava-se com o povo nas feiras e nas lojas, tomava parte nas conversações, escutava os jovens ao brincarem nas ruas e as mães a conversarem com seus filhinhos. [...] Estudou zoologia para dar aos animais da Bíblia os verdadeiros nomes. Obteve de um açougueiro que lhe matasse uma dúzia de carneiros e explicasse-lhe as diversas partes desses animais para melhor traduzir as passagens referentes aos sacrifícios”. Pediu a seu amigo, Espalatino, pregador da corte, que lhe remetesse joias do palácio, com etiquetas de nomes e de cores, a fim de não cometer erro ao mencionar as pedras da Nova Jerusalém. Consultou Sturz, em Erfurt, sobre moedas, pesos e medidas. Informou-se com judeus acerca de termos e costumes do Velho Testamento. O trabalho não foi de pouca monta. Ele mesmo assim observou: “Muitas vezes sucedeu que acerca de um único termo gastássemos duas, três ou quatro semanas para fracassarmos ainda em alguns casos”. Sobre o livro
de Jó, disse com espírito: “Tivemos muita dificuldade em traduzir Jó por causa do seu estilo grandíloquo e sublime. Trabalhando para vertê-lo em alemão parece-nos que se agastou mais com o nosso empenho do que com as consolações de seus amigos”. Sobre os profetas escreveu a Wenceslau Link: “Estou agora lidando com os profetas, ó céus, quão duro é obrigar os escritores hebreus a se exprimirem em alemão! Resistem aos nossos esforços. Não querem trocar a sua linguagem por um idioma bárbaro, como o rouxinol não abandona a sua toada melíflua pelo cântico monótono do cuco”. Esforçou-se Lutero, diz McGiffert, para trazer a Bíblia aos seus dias, em vez de transportar os leitores para aqueles tempos. O alemão de que faz uso não foi de sua própria criação, mas lhe ficou devendo muitíssimo. O citado escritor assim se expressa (p. 226): “Não foi exagero o que disse certo escritor contemporâneo: ‘O dr. Martinho é o verdadeiro Cícero germânico. Não só nos ensinou a verdadeira religião como reformou a língua alemã e não houve escritor que nisso o igualasse’”. A Bíblia de Lutero deu forma à língua alemã e prestou ele com isso o mais assinalado serviço à nação germânica. [30] A preocupação de confiar ao povo a leitura das Escrituras, baseadas no princípio do livre exame, levou os reformadores a se aperfeiçoarem no cultivo do vernáculo. Assim é que Wyccliff, com sua versão da Bíblia, foi chamado o pai e criador da prosa inglesa, como Chaucer foi apelidado de pai da poesia na mesma língua. Do mesmo modo Calvino aperfeiçoou a língua francesa com seus escritos. No dizer de Schaff, Lutero não conhecia rival no conhecimento da língua alemã, deu forma e estrutura ao alto-alemão com seu grande empreendimento. Em seu zelo escrupuloso de dotar sua pátria com o conhecimento das Escrituras numa versão fidedigna, constituiu uma espécie de sinédrio ou colégio bíblico, que se reunia em sua casa uma vez por semana, algumas horas antes da ceia, tendo por alvo corrigir a edição que já havia sido publicada. Era um corpo de pessoas habilitadas entre as quais se destacava Melâncton, que mereceu o apelido de Preceptor Germaniae. Melâncton trazia consigo o texto grego. Cruciger comparava os textos no hebreu e no caldaico. Bugenhagen tinha a Vulgata. O dr. Jonas e Mateus Aurogalus consultavam os velhos comentadores. Lutero tinha consigo a versão hebraica ao lado da versão latina e da recente edição alemã.
Assim procediam estes homens conscienciosos procurando aperfeiçoar as novas edições. Lutero assumia a presidência, propunha os textos e recolhia os votos, ouvindo o que cada um dizia segundo a peculiaridade da língua e a interpertação dos antigos doutores. Além dos vultos apontados, outros tomavam parte nestas reuniões, como Ziegler, Forstenius, Rorer, revisor de provas e vários rabinos. A versão de Lutero espalhou-se por toda a Alemanha. De 1534 a 1574, no espaço de 40 anos, Hans Lufft, de Wittenberg, imprimiu e vendeu cerca de cem mil exemplares, coisa assombrosa para o tempo. Edições católicas baseadas na Vulgata apareceram para contrabalançar as edições de Lutero. Tais eram as edições de Emser (1527), Dietenberger (1534) e Eck (1539), sendo companhadas de notas. Em muitos lugares, porém, copiavam a mesma linguagem de Lutero, que a propósito escreveu: “Os papistas roubam o meu alemão que pouco conheciam anteriormente. Não me agradecem por isso, antes se servem dele contra mim”. Cochlaeus, campeão do romanismo, citado por Schaff no segundo volume de sua história sobre a reforma alemã (p. 350), assim se expressou com pesar: “O Novo Testamento de Lutero a tal ponto se multiplicou e se divulgou pelos editores que até alfaiates e sapateiros, mulheres e indivíduos ignorantes, que haviam recebido o novo evangelho luterano e podiam ler um pouco o alemão, estudavam-no com a maior avidez como fonte de verdade. Alguns o decoravam e o traziam no seio. Em poucos meses tais pessoas pareciam tão letradas que se não envergonhavam de disputar a respeito da fé e do evangelho não só com leigos católicos, como até com sacerdotes, monges e doutores em teologia”.
38. Os excessos do radicalismo Os intuitos de Lutero — O conflito inevitável — Karlstadt e outros espíritos radicais — Vários membros do clero contraem matrimônio — Os profetas de Zwickau — Regresso de Wartburgo
Durante os primeiros cinco anos o trabalho da Reforma consistiu antes de tudo em debates de palavras. O vinho novo não rompeu os velhos odres e os primeiros protestantes não saíram da comunhão da velha Igreja. Assim se deu igualmente no início do cristianismo em Jerusalém, quando os apóstolos, em seguida ao Pentecostes, continuaram a frequentar o templo e as sinagogas, a praticar a circuncisão, a observar o sábado e os costumes judaicos até que a perseguição os dispersou de Jerusalém. Lutero, pugnando por uma religião mais espiritual, por uma comunhão mais íntima com Deus, pensava em fazê-lo dentro da própria Igreja, sem que houvesse rompimento definitivo. Não cuidava em formar uma nova religião e mesmo quando se deu a organização protestante, mostrou-se ele o mais conservador possível, mais do que Zuínglio, Calvino e John Knox. Fatalmente alguma coisa nova teria de produzir-se. A doutrina da ustificação pela fé não reconhecia a prática das boas obras como causa meritória da salvação, muito embora não as dispensasse como evidência da fé salvadora. A doutrina da liberdade cristã isentava da dependência da hierarquia e dos sacramentos. Daí participarem do sacerdócio espiritual não somente o clero, mas todos os fiéis. A doutrina da supremacia das Escrituras colocava em ordem inferior o papa e os Concílios. De tudo isso teriam de advir consequências radicais. O conflito teria de se manifestar, além de tudo com a publicação da Bula da excomunhão e do Édito de Worms. As primeiras manifestações de radicalismo irromperam durante o exílio de Lutero em Wartburgo e do regresso de Worms. Haviam sido excomungados dois jovens sacerdotes que se tinham excedido nas suas manifestações em favor das novas ideias. Por isso os estudantes e o povo tomaram as dores na questão, e cometeram depredações e violência. As autoridades não deram grande importância a esses excessos reprováveis. Em Wittenberg aconteceu ser Karlstadt um dos principais perturbadores. De reconhecida erudição, era dotado de eloquência, de zelo e
de coragem. Estudioso das Escrituras, veio a ser um dos pioneiros da crítica bíblica na sua apreciação do cânon sagrado. Era, porém, excêntrico, apaixonado, inconstante, precipitado. A isso juntava-se a ambição do mando. Na ausência de Lutero começou a pregar e escrever na direção do radicalismo. Atacou a missa, o celibato clerical e os votos monásticos, artigos de fé que se apoiavam mais na tradição do que nas Escrituras. Por ocasião do Natal daquele ano omitiu no cânone da missa certas partes a que punha objeção e distribuiu a comunhão nas duas espécies, conforme a prática da Igreja primitiva. Pôs de lado também os paramentos sacerdotais. Vários sacerdotes passaram a contrair matrimônio, sendo Feldkirchen, de Wittenberg, o primeiro, ainda naquele ano de 1521. Em janeiro de 1522 foi a vez do impulsivo Karlstadt. Justo Jonas seguiu-lhe o exemplo no mês seguinte. Karlstadt não ficou nisso. Denunciou o culto das imagens como sendo uma transgressão do segundo mandamento do Decálogo e induziu o conselho da cidade a retirá-las da Igreja paroquial. O povo alvoroçou-se e cenas iconoclásticas foram presenciadas, Karlstadt, que havia assumido a liderança, não parou ainda. Pregou contra os jejuns e dias de abstinência. Pôs de lado as vestes clericais. Tornou-se místico e desprezou as ciências, julgando-se inspirado. Repudiou os títulos honoríficos e chamou-se simplesmente irmão André. Desde novembro de 1521 o convento dos agostinhos de Wittenberg foi sendo despovoado. Em janeiro seguinte os monges resolveram dar liberdade aos que o desejassem, contanto que se entregassem a algum serviço útil. Vários deles contraíram matrimônio. Gabriel Zwilling, também chamado Dídimo, foi um dos frades mais em evidência durante a ausência do reformador, sendo considerado por alguns como um segundo Lutero. Era também dos reacionários. A situação começou a piorar pelo Natal daquele ano. Em Zwickau, não longe da fronteira boêmia, levantou-se um grupo de extremistas exaltados. Dois deles, Nicolau Storch e Marcos Stübner, vieram até Wittenberg, uniram-se a Karlstadt e praticaram desatinos. Consideravam-se iluminados. O eleitor ficou desolado e Lutero teve notícia do acontecido. Em dezembro veio secretamente a Wittenberg quando a situação não era ainda
alarmante. Frederico não deseja vê-lo sair daquele retiro, mas Lutero escreveu-lhe dizendo que estava resolvido a voltar definitivamente a fim de pôr um termo à situação angustiosa. O duque Jorge não desistia de persegui-lo e instava com seu primo Frederico para que usasse de medidas rigorosas para com o frade perturbador. Mas para Lutero dirigir-se a Wittenberg teria de passar pelo território do duque, que dele desejava apoderar-se. Escreveu então a Frederico informando-o de que teria de passar pela zona perigosa. Teria de tocar em Leipzig ainda mesmo que, “por nove dias sucessivos, houvesse uma chuva de duques Jorges mais terríveis do que o original de Dresden”. No começo de março disse adeus ao retiro de Wartburgo, a Patmos onde estivera exilado por dez meses. Veio ainda no disfarce de cavalheiro e em Iena teve um encontro com dois estudantes suíços que iam estudar em Wittenberg. Estranharam eles um cavalheiro dado a livros, porquanto tinha o saltério hebraico entre as mãos. Lutero chegou afinal à sua cidade universitária. A situação era crítica, diz Schaff. Havia a resolver o seguinte: “Lutero ou Karlstadt, reforma ou revolução, a Palavra escrita ou a inspiração ilusória, ordem ou confusão”. Mais uma vez mostrou-se à altura da situação. Subiu ao púlpito e por oito dias sucessivos, com rara felicidade, fez tudo entrar em ordem. Dídimo reconheceu o seu erro e achou que Lutero falara com um anjo. Os profetas de Zwickau bateram em retirada. Karlstadt voltou a ensinar por algum tempo. Justo Jonas e Bugenhagen faziam agora parte do corpo docente ao lado de Lutero, Karlstadt, Amsdorf e outros elementos. É curioso o registro de Michelet, na sua vida de Lutero, na síntese que faz dos trabalhos múltiplos do reformador no curto espaço de dez meses de Wartburgo: “Naquele retiro sossegado encontrou vagar para tomar de novo o seu alaúde, entoar seus salmos germânicos, traduzir sua Bíblia e trovejar contra o papa e o Diabo” ( Life of Luther, p. 99).
39. Novas reações A Revolta dos Nobres — Causas e consequências — A figura altaneira de Sickingen — O vulto conspícuo de Huten — A Revolta dos Camponeses e suas causas — Consequências desastrosas — Amarguras de Lutero
Regressando a Wittenberg em março de 1522, conseguiu Lutero em breve espaço pôr termo às reações do radicalismo promovidas por Karlstadt, Dídimo e os profetas de Zwickau. Outros movimentos teriam de perturbar a paz da Alemanha, agravando o progresso da Reforma. Tal foi primeiramente a Revolta dos Nobres, no verão daquele ano, chefiada por Francisco de Sickingen, o intrépido cavalheiro da Germânia. Viam os nobres que o território alemão se ia convertendo em patrimônio de meia dúzia de famílias principescas e que o povo das cidades se ia enriquecendo nos azares do comércio. Queriam volver ao antigo tempo em que os nobres germânicos reconheciam apenas a autoridade do imperador. Em Landau se coligaram e aclamaram Sickingen como chefe da Liga. Procuraram aliciar as simpatias da Reforma, buscando um pretexto religioso para a revolução que obedecia a motivos políticos e econômicos. O chefe da Liga dispôs-se a atacar o eleitor de Tréveris, príncipe eclesiástico, inimigo da Reforma, dizendo que “ia abrir uma porta ao Evangelho”. Com cinco mil cavaleiros e mil infantes Sickingen acercou-se de Tréveris, mas o arcebispo, com o auxílio do eleitor Palatino e do landgrave de Hesse, simpáticos à Reforma, aliás, conseguiu pô-lo em retirada. Sickingen refugiou-se no seu castelo de Landstuhl, onde foi sitiado na primavera seguinte, havendo já sido posto sob o anátema do império. Feriu-se o ataque e o intrépido paladino teve nele a sua ruína. Os três príncipes vitoriosos foram encontrá-lo moribundo num subterrâneo da fortaleza e começaram a exprobá-lo. Disse, porém, ao eleitor Palatino: “Deixai-me em repouso, pois necessário é que me prepare agora para responder a um Senhor mais poderoso do que vós”. Pediu então a comunhão e entregou a sua alma ao Criador, a 7 de maio de 1523, no quadragésimo segundo ano de sua vida. Dentro de um mês os aliados saquearam e queimaram os seus castelos, baniram dois de seus filhos e aprisionaram um terceiro. A situação dos nobres piorou ainda.
Sickingen merece que se diga mais alguma coisa a seu respeito. Era um fidalgo cavalheiro, digno de toda a consideração. Recebera educação esmerada e pelas suas nobres qualidades veio a conquistar a estima de Maximiliano e mesmo, no princípio, a de Carlos V. Granjeou muitas honras civis e militares, recebendo a graduação de general do império e distinguindo-se nos campos de batalha. Dotado de coração magnânimo, estava sempre disposto a esposar as boas causas. Sua espada, como a dos cavaleiros andantes, estava a serviço dos pobres e dos oprimidos. Se, por vezes, praticou excessos, foi sempre em defesa de causas que lhe pareciam ustas. Abraçou com entusiasmo a Renascença e, esclarecido por Huten, olhou para a Reforma com simpatia. Seu castelo de Ebernburg, onde nascera, veio a ser chamado por Huten de “Albergue da justiça”, pois ali foram acolhidos hospitaleiramente todos os perseguidos e oprimidos pelo despotismo. Reuchlin, Huten, Bucer, Ecolampádio, Aquila, Shwebel e muitos outros, acharam guarida naquele reduto hospitaleiro. Ao próprio Lutero ofereceu um refúgio naqueles dias em que tudo conspirava contra este. Muitos prelados e príncipes alemães não ousaram erguer as mãos contra Lutero respeitando a espada de Sickingen, de Huten e de outros nobres cavalheiros. Lutero não aprovava os extremos e negou adesão à revolta de Sickingen. Ao saber da morte do magnânimo campeão, exclamou: “O Senhor é justo, mas admirável! Não é com a espada que ele quer que se propague o seu Evangelho”.[31] Huten não teve melhor sorte. Mais moço sete anos, fora destinado à carreira monástica, entrando aos 11 no célebre mosteiro de Fulda. Não tinha, porém, vocação para a Igreja e aos 16 deixou o convento. Intelecto brilhante, ilustrou-se na carreira das letras como amigo das musas e exímio cultor da Renascença. Foi coroado poeta por Maximiliano e mereceu o título de Cícero e Demóstenes da Germânia. Letrado e guerreiro, enfileirou-se ao lado de Sickingen. Defensor dos oprimidos, foi um dos campeões de Reuchlin, perseguido pelos inquisidores de Colônia. Crotus Rubeano era o chefe do partido reuchlinista ao lado de Huten, Mutianus, Eóbano, Euricius Cordus, Pirkheimer, Peutinger, Capito, Ecolampádio e Melâncton. Em versos latinos celebrou a vitória do grande hebraísta. Regressando de um encontro com Carlos V, o impetuoso letrado e guerreiro avistou na estrada o inquisidor Hoogstraten, o feroz perseguidor de Reuchlin. Amedrontado, caiu-lhe aos pés o dominicano, encomendando a alma a Deus e os santos. Mas o cavalheiro
limitou-se a dar-lhe algumas pranchadas, dizendo: “Não desejo manchar a minha espada no teu sangue”. Pouco antes do desfecho da Revolta dos Nobres, com a saúde abalada, foi buscar refúgio na Suíça. Erasmo acolheu-o com frieza, mas Zuínglio socorreu-o com livros, remédios e dinheiro. Morreu ao 35 anos, em agosto de 1523, precedido pouco antes por Sickingen e Reuchlin. Era amigo da Reforma, talvez mais por motivos políticos. Lastimou Lutero aquela morte prematura. Assim determinou o reformador ultra-radical, no dizer de Schaff, que tentara demolir pela espada e pela violência os baluartes de Roma. Maior abalo que o da insurreição dos nobres causou a Revolta dos Camponeses no verão de 1524. Como no caso da sedição dos nobres, a Reforma não teve culpa nisso. Foi o grito de uma classe oprimida por anos consecutivos de lágrimas e de dores. Eram as bestas de carga da sociedade e viviam quase em completa servidão. Para combater os opressores formaram ligas secretas como a dos Käsebroder, nos Países Baixos, e a Bundschuh ou do calçado atado, na Alemanha do Sul, que ocasionaram movimentos sediciosos em várias partes da Alemanha em 1476, 1492, 1493, 1502, 1513 e 1514. Uma falsa compreensão dos princípios da Reforma provocou a campanha revolucionária de 1524, fomentada pelos fanáticos de Zwickau, tendo à frente Tomás Münzer, apóstolo e demagogo da revolução social e precursor do socialismo moderno, ou melhor, do comunismo e do anarquismo. Julgava-se inspirado e aceitou alguns dos princípios da Reforma. Opôs-se tanto a Lutero, que não concordava com os seus excessos, como ao papa. Karlstadt, em grau menor, concorreu também para incentivar a sedição. Apresentam os camponeses um programa razoável em 12 artigos, tendo em vista aliviar a condição miserável em que viviam, pois, além de pagar aos senhores uma renda pesadíssima, tinham de prestar serviços gratuitos e de concorrer para a Igreja com o grande dízimo — a décima parte da colheita e mais o pequeno dízimo — a décima parte do produto da criação. Entre outras coisas, nos artigos citados, requeriam diminuição no arrendamento, direito de pesca e caça, de cortar lenha nas matas, de campos de pastagens etc. Queriam ter liberdade de escolher os seus pastores ou curas de almas, comprometendo-se para isso com o produto do grande dízimo, mas recusavam o pequeno dízimo que seria o sustento de suas famílias. Requeriam ainda a abolição da servidão.
Filho de camponeses, dipôs-se Lutero a advogar a causa dos oprimidos, dirigindo-se em termos dignos aos senhores e proprietários e fazendo-lhes ver a injustiça das exações. Aos camponeses aconselhou prudência, acautelando-os contra os pregadores fanáticos que lhes estavam fazendo perder a causa reivindicada. Propunha que ambas as partes estabelecessem um tribunal para ajustar as condições razoáveis. Mas nada conseguiu. Os camponeses entregaram-se a toda sorte de violências e excessos, comprometendo a situação. Vários dos nobres atribuíram a Lutero a culpa da insurreição. O reformador, desgostoso com excessos que não poderia aprovar, desinteressou-se pela sorte daqueles homens obstinados e aconselhou os príncipes a recorrerem a medidas rigorosas. Lutero não se poupou, arriscando a própria vida para conter os rebeldes, persuadindo-os a se submeterem à autoridade constituída, segundo a ordenação bíblica. A insurreição começara na Suábia e no ano de 1525 estendeu-se à Alemanha meridional e central. Os insurretos saquearam e queimaram castelos, destruíram propriedades e cometeram toda a sorte de tropelias. A reação dos príncipes esteve à altura da situação. O landgrave de Hesse, o duque de Brunswick, o duque Jorge de Saxônia, o duque João, uniram as suas forças. Feriu-se a batalha decisiva de Frankenhausen em 25 de maio, na qual pereceram cinco mil rebeldes e trezentos foram executados. Os eleitores de Tréveris e do Palatinado foram ao encontro de outros bandos. O número de vítimas passou de cem mil. O fanático Tomás Münzer foi torturado e executado. Lutero sofreu grandemente em sua popularidade com esta guerra infeliz. Cessou de ser o herói popular da Alemanha, diz McGiffert, para se tornar para muitos um objeto de execração. O certo, porém, é que não poupou esforços para evitar o tremendo desenlace que ensanguentou a terra do seu berço.
40. Modificações do papado Fim prematuro de Leão X no momento de vitória — Rápida passagem de Adriano VI — Clemente VII — O saque de Roma — Lutero aclamado como papa
O ano de 1521, que registrara os episódios de Worms e Wartburgo, descreveu também a última cena da existência de Leão X. Em maio, no mesmo dia da assinatura do Édito de Worms, Carlos V firmou aliança com Leão X que desejava reaver os territórios italianos em poder da França. Ao mesmo tempo estalava na Espanha a revolta dos cumuneros e Carlos teve de correr para ali. Francisco I aproveitou-se da oportunidade para reaver o antigo Reino de Navarra. Em 15 dias apoderou-se do território, mas em outros 15 teve de desocupá-lo. Entretanto Leão X acendia a guerra na Itália, confiado na aliança de Carlos V, e não tardou muito a que os franceses lhe restituíssem os ducados de Parma e Piacenza. Logo o cardeal Júlio de Médicis, primo do pontífice, que militava no exército papalino, entrou em Milão com os exércitos aliados de Leão e de Carlos. Leão X recebeu as boas-novas da vitória na sua vila Maliana, onde se entretinha na caça e na pesca, rodeado de sua corte artística e literária. Correu logo a Roma para assistir às festas ruidosas da vitória. Porventura julgava ter ainda largos dias diante de si, contando 46 anos somente. Muito sossegado, estava ele em seu palácio, gozando do triunfo de sua diplomacia. Afirmam historiadores que, visando apenas seus interesses pessoais, havia formado aliança secreta ao mesmo tempo entre Carlos e Francisco separadamente, visto como ambos tinham interesse na Itália e ele se queria livrar talvez dos dois. Carlos, ciente da duplicidade, exasperou-se e exigiu que se definisse por um lado só. Tomou, então, o partido do imperador que era o mais forte. Estava, pois, celebrando a vitória em Roma, quando a morte o colheu de modo imprevisto. Sentiu-se mal subitamente e pediu a seus familiares que orassem a seu favor, pois queria a todos eles tornar ainda felizes. A morte, porém, sobreveio tão rapidamente, que nem tempo houve para receber os últimos sacramentos. Suspeitou-se de envenenamento, coisa vulgar em Roma, e chegou a ser autopsiado. Uns foram pela afirmativa, outros pela negativa. Não teria sido o primeiro nem teria de ser o último no pontificado, caso fosse o fato verdadeiro. Ranke e outros descreveram a triste impressão que produziu a morte do papa, crivado de dívidas e sem haver recebido os sacramentos como
se fora um herético, ele que tão encarniçado se mostrara contra Lutero, o arqui-herege: “Rastejaste qual raposa, diziam no seu enterro, “governaste como leão, morreste à semelhança de um cão”. E o poeta Sanazaro fez a propósito o dístico irônico, aludindo talvez à ânsia de dinheiro e às prodigalidades de João de Médicis: “Sacra sub extrema, si forte requiris, hora, cur Leo non potuit sumere! Vendiderat” [“Queres saber por que Leão à hora extrema não pôde receber o sacramento? É porque o havia vendido!”]. Deu, entretanto, Leão X ao século o seu nome! Morreu em l.º de dezembro. Reinara apenas oito anos e meses. Em janeiro reuniu-se o Conclave. Júlio de Médicis, que cingira a espada na campanha recente, pleiteava a própria candidatura. Era ainda cedo e o conclave não chegava a um acordo. Segundo Ranke, nestes termos falou ele: “Prevejo que nenhum dos presentes virá a ser eleito. Propus três ou quatro nomes e todos foram rejeitados. Devemos buscar um que não esteja entre os presentes. Escolhamos o cardeal de Tortosa, ancião venerável, tido como santo” ( History of the Popes, vol. I, p. 71). A proposta foi bem acolhida. O eleito havia sido o candidato de Carlos V. Era um holandês, Adriano de Utrecht, que fora preceptor do imperador nos Países Baixos e homem de sua confiança. Havia conseguido fazer dele bispo de Tortosa, na Espanha, e cardeal. Colocou-o no lugar de Ximenes, o grande cardeal, ao qual alijara do poder. De origem humilde, filho de um tecelão, Adriano tornou-se dominicano e professor de teologia, em Lovaina. Na Espanha foi inquisidor e Carlos V deixou-o como regente ou vice-rei, quando ausente do reino. Seu curto pontificado de 20 meses foi a antítese do pontificado recente. Entrou em Roma descalço e sem ostentação. Tomava uma simples refeição e levava a existência de um monge. Não mudou de nome como os outros papas. Continuou Adriano, o sexto do nome. Roma tinha agora um pontífice piedoso e não um cético como Leão X. Apesar de inquisidor e dominicano ortodoxo, negava sem rebuços a infalibilidade papal e tentou granjear a influência de Erasmo e de Zuínglio (Schaff, op. cit., p. 393). Combateu os abusos do clero. Por intermédio de seu legado Chieregato, confessou, perante a Dieta de Nurembergue, as muitas abominações e desvios da Santa Sé: “Da cabeça a corrupção passou aos
membros, do papa aos prelados: não há quem faça o bem, nem sequer um”. Considerava a Reforma como um justo castigo pelos pecados dos prelados. Pedia, contudo, a execução do decreto contra Lutero, comparado por ele a Maomé. Os italianos consideravam-no estrangeiro e não se identificaram com ele. Seu rigor disciplinar não agradou a Roma, acostumada por longos anos à corte desordenada dos papas da Renascença. Faleceu em setembro de 1523. Falou-se também em veneno mas não ficou isso provado. Morreu aos 64 anos. Chegou a vez de Júlio de Médicis cingir a tiara, de 1523 a 1534. Adotou o nome de Clemente VII e o método do seu primo Leão X, ocupando-se mais com a política, ficando a religião em terreno secundário. Foi um pontificado tumultuoso. Carlos V, no período, continuou a ter dificuldades com Francisco I, lutas que ocuparam quase todo o reinado de ambos os soberanos, impossibilitando assim o imperador no seu propósito de esmagar a Reforma, visto não lhe sobrar quase espaço para isso. A guerra entre os dois monarcas feriu-se de 1521 a 1526, de 1527 a 1529, de 1536 a 1538 e de 1542 a 1544. Curioso é notar a posição dos pontífices em tal ocasião. No interesse de sua independência, não importava aos pontífices a vitória da casa de Habsburgo ou a do rei de França. A melhor política era passar de um campo para outro, ficando ao lado do vencido para enfraquecer o vencedor. Carlos via-se forçado a residir na Espanha, deixando os negócios da Alemanha a cargo de uma regência com sede em Nurembergue, da qual tinha a presidência seu irmão Fernando, que residia em Viena. Com o advento de Clemente VII, os Médicis voltaram ao poder. Catarina de Médicis, esposa de Henrique II, de França, era sobrinha de Clemente e governou por muito tempo os franceses com a política astuciosa característica de sua família. Clemente não nutria simpatias pelo imperador, que prometera à Alemanha um Concílio e contrariava a política dos Médicis. Por isso favoreceu a Francisco I e formou em 1526 a Liga de Cognac, a Santa Liga, na qual, além dos dois, entraram Henrique VIII e alguns príncipes italianos, tendo por alvo abater o imperador. Cognac era o nome da cidade onde nascera o rei de França.
Daí resultou, em 1527, o saque de Roma. Os espanhóis e alemães de Carlos V, em número de 20 mil homens, penetraram na cidade eterna sob a direção do condestável de Bourbon, que se tornara contra a sua nação e do general Fründsberg, aquele mesmo que em Worms batera no ombro de Lutero, admirando a coragem do mongezinho. Foi uma desordem sem conta o saque de Roma. Clemente refugiou-se no Castelo de Santo Ângelo. Os espanhóis cometeram toda a sorte de depredações. Saquearam o Vaticano e profanaram o túmulo de São Pedro e os despojos de Júlio II. Os alemães marcharam pela cidade em trajes cardinalícios. Revestiram a um jumento de hábitos sacerdotais e, em gritos de zombaria, aclamaram a Lutero como papa. A política desastrada do pontífice impelira as tropas do imperador católico a cometer sacrilégios tais.
41. Política de contemporização Progressos da Reforma — A Liga de Ratisbona tem a sua réplica na Liga de Torgau — Os singulares aliados de Lutero e de sua causa — Tolerância, apesar de tudo — A primeira Dieta de Espira — Fim de Frederico, o Sábio
A Reforma ia prosseguindo a despeito de contratempos. Alguns Estados, como Brandemburgo, chegaram a pedir a abolição da missa, do culto dos santos, da supremacia do papa e o reconhecimento de dois sacramentos apenas — o batismo e a eucaristia. Em 1524 já havia adeptos da Reforma na França, na Dinamarca, na Suécia e nos Países Baixos. Este último território, pátria de Carlos V, forneceu os primeiros mártires da Reforma, em 1523. Foram os dois frades agostinhos Henrique Voes e João Esch, queimados em Bruxelas. Lutero consagrou-lhes o seu primeiro hino: “o Cântico dos dois mártires de Cristo em Bruxelas, queimados pelos sofistas de Lovaina”. A segunda Dieta de Nurembergue, em 1524, teve como consequência a convenção de Ratisbona ou Regensburgo, em junho do mesmo ano, por instigação do cardeal Campégio. Era o partido que exigia a execução do Édito de Worms, tendo à frente Fernando da Áustria. Ao lado do arquiduque arregimentavam-se os duques da Baviera e a maioria dos bispos da Alemanha meridional. Formaram com isso a Liga de Ratisbona, com o fito de extirpar a Reforma, dividindo assim a Alemanha em dois partidos e fazendo prever os episódios horrorosos da Guerra dos Trinta Anos. Os principais reformadores responderam com a Liga de Torgau, em maio de 1526, a cuja frente se notava Felipe de Hesse. Ao seu lado, se mobilizavam o eleitor da Saxônia, e os príncipes de Luneburgo, Grubenhagen, Anhalt e Mansfeld, além da cidade de Magdeburgo que se emancipara da jurisdição de Alberto de Mogúncia e aceitara a confissão luterana. Carlos via-se continuamente embaraçado para a execução do seu plano favorito, que era o aniquilamento da Reforma. Os turcos sempre ameaçadores levam-no a não dispensar o concurso dos seus súditos protestantes para que fossem detidos tais avanços. Também eram eles necessários para a resistência a Francisco I, que, em sua rivalidade constante, havia sido esmagado em Pávia em 1525, sendo aprisionado e conduzido a Madri. Depois de um ano de
cativeiro, assinou o Tratado de Madri, pelo qual cedeu os seus domínios da Itália, a Borgonha, o Artois e algumas praças de Flandres. Fomentando a inimizade entre os monarcas rivais, o papa, sem o perceber, estava trabalhando pela Reforma. O imperador desde a Dieta de Worms não pudera mais voltar à Alemanha para dar a Lutero o combate decisivo. Não deixava de ser singular o que aconteceu em quase todo o reinado de Carlos V. Tudo conspirava contra os seus planos de fiel súdito de Roma. Parecia que o turco, a França e o próprio papa se punham do lado de Lutero. Não podendo prescindir o concurso dos seus súditos luteranos para combater inimigos tais, via-se obrigado a usar de tolerância a favor dos hereges como se viu na primeira Dieta de Espira e em quase todo o período do seu governo. Um exemplo disso se vira no Tratado de Madri em que Francisco I se obrigara, como aliado, a combater o luteranismo. Entrando, porém, logo depois na Santa Liga de Cognac, voltou-se de novo contra Carlos V, tendo o papa ao seu lado. É bom notar que o pontífice desobrigou o rei de França dos compromissos que assumira perante o imperador. Declarava a Dieta que, em matéria de religião, todos os Estados deveriam proceder de maneira tal que estivessem prontos a responder por si diante de Deus e de sua majestade imperial. Cada Estado poderia declarar qual a confissão religiosa a professar nos seus limites. O primeiro a fazê-lo foi o landgrave de Hesse, que encarregou a Francisco Lambart da redação de uma constituição eclesiástica. Na Dieta de Espira os príncipes evangélicos traziam nos escudos as iniciais “V. D. M. I. Æ”, do texto sagrado “Verbum Domini manet in aeternum”, isto é, “A palavra do Senhor permanece eternamente” (1Pe 1.25). [32]
Lutero sofrera muitas contrariedades com os distúrbios de Wittenberg, a Revolta dos Nobres e a Guerra dos Camponeses. Grande desgosto estava-lhe reservado em 1525, na campanha final desta última guerra. Teve então de lastimar a perda de seu nobre protetor, Frederico, o Sábio, a 5 de maio, aos 63 anos de idade. Algumas palavras sobre o magnânimo príncipe. Nascido em Torgau, Prússia central, a 17 de janeiro de 1463, aos 23 anos, em 1486, entrou na posse da dignidade eleitoral por direito hereditário. Muito adstrito à Igreja, fez uma peregrinação aos lugares santos em 1493, sendo ordenado cavalheiro do Santo Sepulcro. Ficou célebre a sua coleção de relíquias, cerca de cinco
mil exemplares, na Igreja do Castelo ou de Todos os Santos. Fundou a Universidade de Wittenberg. Ganhou fama pela sua prudência, probidade, sabedoria, piedade, moderação e tino político e administrativo. Maximiliano afeiçoou-se-lhe e fê-lo regente do império nos seus impedimentos legais. Vagando a coroa em janeiro de 1519, os príncipes eleitores escolheram-no como imperador da Alemanha. Modesto e despretensioso, recusou o cetro tão ambicionado por Francisco I e por Carlos de Espanha. Daí o cognome de Sábio, que veio a adquirir. Todavia continuou na regência do império até a posse de Carlos em outubro do ano seguinte. Foi o maior protetor do monge alemão como decorre das páginas anteriores. Poupando-o, como o fez tantas vezes, salvou a Reforma. Saudando o movimento religioso, não rompeu, contudo, com a velha Igreja. Prudente como era, comunicava-se com Lutero por intermédio de Espalatino, raríssimas vezes avistando-se com ele. Pouco antes de morrer, recebeu do seu capelão Espalatino a comunhão nas duas espécies, e não quis receber a extrema-unção, primeiro ato distintivo de sua conexão com a Reforma. Mandou vir o seu testamento no qual encomendara a sua alma à “Mãe de Deus” e ditou outro em que depositava sua confiança somente nos méritos de Cristo. O capelão passou a exortá-lo, confortando-o com as promessas bíblicas. Morreu em paz, confiando em Cristo para a remissão de seus pecados. Terminou seus dias no seu castelo de Lochau, lastimando a sorte dos pobres camponeses revoltados: “Meus queridos filhos”, disse pouco antes de morrer aos que o rodeavam, “se ofendi a algum de vós, em atos ou palavras, conjuro-vos a que me perdoeis pelo amor de Deus. Dirijo este mesmo pedido a todos a quem tenho feito qualquer agravo e isto ainda pelo amor de Deus; pois, nós outros, príncipes, fazemos muitas vezes mal ao pobre mundo”. Seu corpo foi sepultado na Igreja do Castelo, onde Lutero afixara as suas teses. Lutero e Melâncton assistiram-lhe nos funerais. O reformador muito lamentou a sua morte. Aleandro denominara-o de “velha raposa da Saxônia”, mas o qualificativo de “Sábio” é que verdadeiramente exprimia o seu caráter. Seu moto Tantum quantum possum era característico de seu bom senso.
42. A origem do nome protestante João, o Constante — A segunda Dieta de Espira e seu valor histórico — Protestantismo não é sinônimo de negativismo — O Colóquio de Marburgo — Hoc est corpus meum — Inflexibilidade de Lutero — Os pontos de acordo
A Frederico, o Sábio, sucedeu seu irmão João de Saxônia, apelidado o Constante. Frederico era celibatário. João, o Constante, regeu o ducado pelo espaço de sete anos (1525-1532). Seu moto era o seguinte: Verbum Dei manet in aeternum. Não tinha a prudência nem o prestígio de seu irmão, mas era firme aderente da Reforma. A Dieta de Espira, de 1526, fora uma espécie de armistício em relação ao Édito de Worms e estabelecera o princípio do cujus regio, ejus religio, mais tarde consagrado em Augsburgo. Cada príncipe determinaria a confissão religiosa do seu Estado, de acordo com a sua própria crença. Era ainda o jus reformandi religionem, ou o direito de estabelecer a religião. Em 1528 Oto von Pack, político sem escrúpulos, fez crer ao landgrave de Hesse, o mais intrépido dos príncipes reformados, que os príncipes católicos haviam formado em Breslau uma liga de extermínio contra os luteranos, apresentando-lhe falsos documentos vendidos por bom preço. A vista disso, Felipe persuadiu o novo eleitor de Saxônía a organizar uma liga contrária, o que foi causa de muitas amarguras para o partido reformador. A fraude de Pack foi denunciada pelo duque Jorge. Vem agora a segunda Dieta de Espira, em 15 de março de 1529, presidida ainda pelo arquiduque Fernando, mais encarniçado adversário da Reforma do que o próprio imperador. Até então em alguns estados estava em vigor o Édito de Worms e era proibida a propaganda das doutrinas evangélicas. Em outros dominava o Édito de Tolerância de 1526. A proposta que veio a ser votada agora pela maioria determinava o status quo, com a agravante de certas restrições nos estados em que dominava o Édito de 1526. Deveria ser restaurada a hierarquia romanista, seria a missão permitida e nenhum súdito católico poderia daí em diante abraçar o luteranismo. Era um entrave ao progresso do movimento religioso. Nenhuma nova conversão seria permitida. Era a pressão das consciências, o jugo do absolutismo. O imperador havia feito as pazes com o papa e mais uma vez vencido a França. Livre por um momento, dos inimigos, pensou ser a hora de subjugar a heresia.
Foi então que os príncipes luteranos, membros da Dieta, levaram o nobre e heróico Protesto, que deu o nome de protestantes aos filhos da Reforma. Tinha a data de 19 de abril e era uma repercussão da posição de Lutero em Worms. Resistiam os príncipes às medidas da Dieta por serem contrárias à Palavra de Deus, às suas consciências e às decisões da Dieta precedente, de 1526. Apelavam da decisão da maioria para o imperador, para um Concílio geral na Alemanha e para juízes cristãos imparciais. [33] O termo protestante parece a muitos sinônimo de negativismo. Não significa, porém, o protestantismo um sistema de negações, de impugnação aos dogmas católicos. É antes um sistema de afirmações, aceitando os dogmas do cristianismo primitivo e repudiando apenas os artigos baseados nas tradições. Deve ser entendido, como observa Schaff, no seu sentido positivo ou evangélico: “O Evangelho de Cristo, conforme é estabelecido no Novo Testamento e de novo proclamado em sua primitiva pureza e poder pela Reforma, é a base do protestantismo histórico e isso lhe transmite vitalidade e permanência. O Protesto de Espira era baseado objetivamente na Palavra de Deus, subjetivamente no direito da consciência e do juízo privado, e historicamente, na decisão da Dieta de 1526”. Depois do Protesto de Espira, o passo seguinte digno de nota vem a ser o Colóquio de Marburgo ou o encontro dos teólogos luteranos e zuinglianos, [34] reunião promovida pelo landgrave de Hesse, tendo em vista a harmonização dos dois grupos numa só confissão de fé.[35] Foram redigidos 14 artigos sobre a fé evangélica nos quais os dois grupos concordaram. Discutiram em seguida o décimo quinto e último, que encarava o sacramento da eucaristia. Até certo ponto concordaram porquanto os dois grupos não aceitavam a doutrina romana da transubstanciação, dogma de 1215. A grande divergência era a questão da presença real de Cristo na comunhão. Lutero sustentava a doutrina da consubstanciação, em virtude da qual Cristo, graças ao dom da ubiquidade, podia estar presente em, com e sob os elementos do pão e do vinho, sem a intervenção do milagre de transubstanciação. Era uma teoria complicada, vazada nos velhos moldes eclesiásticos. Zuínglio não admitia a presença corpórea: “O pão e o vinho eram apenas sinais da presença de Cristo do mesmo modo que uma carta é o sinal da pessoa ausente que a escreveu”. Era a doutrina da presença simbólica.
O landgrave, que era um moço de 25 anos somente, e inclinado à paz, conseguiu que, antes do início das discussões, houvesse uma reunião interlocutória entre os quatro principais corifeus, Lutero, Melâncton, Zuínglio e Ecolampádio. Esperava Felipe de Hesse que esta entrevista preliminar dispusesse melhor os ânimos. De 1 a 4 de outubro durou o Colóquio, estando presentes cerca de 50 assistentes entre os quais o duque Ulrich de Wüstenberg e os teólogos Cruciger de Wittenberg, Lamberto de Avinhão e Frederico Miconius de Gota. Felipe de Hesse ocupava um lugar à parte. Os quatro teólogos principais sentaram-se em torno de uma mesa e desenvolveram os debates. Lutero entrincheirou-se no texto bíblico “ Hoc est corpus meum”, escrevendo a giz as palavras na mesa. Mostrou-se irredutível diante dos argumentos de Zuínglio e Ecolampádio. Melâncton pouco falou, mas era solidário com o seu companheiro. A discussão foi acalorada e por vezes Felipe de Hesse teve de intervir. Lutero mostrou-se extremamente duro com Zuínglio, recusando-lhe a mão que este lhe estendera com lágrimas. “Vosso espírito é diferente do nosso”, dizia Lutero a ele e aos de Estrasburgo. É que, devido aos excessos de Karlstadt e dos profetas de Zwichkau, ficara muito prevenido contra os teólogos suíços. No fim dos trabalhos pediu o landgrave que assinassem os disputantes os 15 artigos que foram redigidos por Lutero, havendo somente a divergência á citada em referência à última parte do artigo final. Deram sua assinatura os seis teólogos luteranos e os seis zuinglianos já mencionados, representantes oficiais dos partidos. Assim terminaram sem ter havido acordo unânime, o que contrariou o landgrave. Todavia muito se conseguiu, visto como os dois grupos em quase tudo concordaram. Retiraram-se em paz e Zuínglio estendeu de novo a mão a Lutero que a aceitou, fazendo, contudo, distinção entre destra de amizade e de fraternidade. A última implicava identidade de fé e de comunhão. Era no primeiro sentido que considerava a Zuínglio. O reformador suíço mostrou espírito mais benigno e mais conciliador. Os gênios divergiam. Lutero era bem o tipo germânico com todas as suas virtudes e defeitos. Zuínglio era-o no mesmo sentido em relação ao tipo suíço. Eram da mesma idade, sendo Lutero alguns dias mais velho.
43. Augsburgo Coroação de Carlos V em Bolonha — Esperanças de Solimão, o Magnífico — A Dieta de Augsburgo — Valor da Confissão de Augsburgo — A Confutação — A Apologia e outras confissões — Lutero em Coburgo — Brandura de Melâncton
O ano de 1529 marcou, em suas efemérides, a Dieta e o Protesto de Espira e ainda o Colóquio ou Conferência de Marburgo. 1530 assinalará a Dieta e a Confissão de Augsburgo. Todos estes acontecimentos estão intimamente relacionados com a vida e a obra de Lutero e os seus biógrafos não os deixam de mencionar. Carlos pensava agora em agir contra o protestantismo. Em 29 de unho de 1529 assinara, em Barcelona, a paz com Clemente VII e em 5 de agosto celebrara-a com Francisco I pelo Tratado de Cambraia. Em seguida, embarcou para a Itália, no intuito de render obediência ao pontífice, que, em dezembro, lhe impôs a coroa em Bolonha, como rei da Lombardia e imperador dos romanos, ato esse que seria o último na história da Alemanha, e que fazia do papa e do Imperador os dois luminares do mundo cristão. Em setembro, Solimão, o Magnífico, batera às portas de Viena, urando pelas barbas do profeta que não haveria de descansar até que fossem os crentes convocados à oração do alto da torre de Santo Estêvão. O ataque foi repelido, mas o perigo não foi conjurado. Daí o imperador necessitar mais uma vez do concurso de seus súditos germânicos. De Bolonha mesmo, convocou a Dieta em 21 de janeiro de 1520 para 8 de abril em Augsburgo. Mas somente em 15 de junho conseguiu o imperador atingir a velha cidade imperial da Baviera. O eleitor da Saxônia havia recomendado aos teólogos de Wittenberg que preparassem uma confissão de fé, certamente necessária em Augsburgo. Para ali partiu com seu filho João Frederico e vários nobres, e os teólogos Lutero, Melâncton, Jonas, Espalatino e Agrícola. Quanto a Lutero, visto estar sob o peso do anátema imperial, não lhe seria lícito aparecer diante de Carlos V. O eleitor deixou-o, pois, em Coburgo, na fronteira saxônia, e partiu com os demais. No dia seguinte ao da chegada do imperador, 16 de junho, realizou-se a solene procissão de Corpus Christi, da qual se abstiveram de participar os príncipes que pendiam para a Reforma. Todos eles tinham os seus capelães, que faziam pregações diárias, muito concorridas, na Igreja dos
franciscanos. O imperador proibiu tais pregações. Isso levou o idoso margrave de Brandemburgo a declarar-lhe que preferiria perder a cabeça a renegar a sua fé, ao que respondeu Carlos não ter vindo ali para cortar cabeças. Os príncipes em questão tiveram de contentar-se com o serviço religioso nas habitações onde estavam hospedados. No dia 20 reuniu-se a Dieta e Carlos quis primeiramente assegurar-se do auxílio que lhe concederiam os príncipes para a campanha contra os turcos. Foi quando os príncipes luteranos insistiram em que se tratasse primeiro da questão religiosa para eles de tanta relevância. No dia 25 foi lida perante a Dieta a notável Confissão de Augsburgo, documento da maior importância na reforma luterana, pelo que Schaff emparelha o 25 de junho de 1530 ao 31 de outubro de 1517, quando Lutero afixou as teses em Wittenberg. Durou a leitura duas horas e o imperador não se sentia com isso satisfeito. Queria que fosse lido o texto latino, mas João de Saxônia insistiu: “Estamos em território alemão e esperamos que Vossa Majestade permitirá que seja feita a leitura na língua alemã”. Outrossim não consentiu que a leitura se fizesse na sala da Dieta e sim na Capela privada do palácio episcopal. Mas o vice-chanceler da Saxônia eleitoral, Cristiano Bayer, leu o documento em voz clara e vibrante, de modo que toda a assistência o ouviu. A moderação dos termos agradou aos próprios católicos. A Confissão trazia a assinatura do eleitor da Saxônia em primeiro lugar, vindo em seguida os nomes do landgrave de Hesse, do margrave de Brandemburgo, dos duques Ernesto e Francisco de Luneburgo, do duque João Frederico, do príncipe de Anhalt e dos representantes das cidades livres de Nurembergue e Reutlingen. A Confissão de Augsburgo é a primeira e mais notável das confissões evangélicas, e exerceu muita influência na elaboração dos Trinta e Nove artigos de religião da Igreja Anglicana. Baseava-se nos Quinze artigos de Marburgo, nos Artigos de Schwabach e nos Artigos de Torgau. Lutero e Melâncton foram os principais colaboradores do documento em Coburgo. Melâncton deu-lhe a forma, o tom e o estilo. Compunha-se de duas partes, uma positiva e dogmática; outra negativa, de tom polêmico ou, melhor, apologético. O imperador determinou que teólogos de Roma elaborassem a
Confutação católica à Confissão de Augsburgo, de que se encarregaram entre outros Faber, Cochlaeus e Eck de Ingolstadt. Em 3 de agosto fez-se a leitura da Confutação. Carlos V que dormira a sono solto durante a leitura da Confissão luterana, dormiu igualmente durante a leitura da Confutação. Foi nisso coerente. Não terminava ainda a apresentação de confissões religiosas. Melâncton respondeu à Confutação com a Apologia da Confissão de ugsburgo, de alto valor teológico. Mas a Dieta não quis tomar conhecimento do seu trabalho. Zuínglio também remeteu a Carlos V a sua confissão de fé, ou Fidei ratio. Por sua vez foi apresentada a Confissão Tetrapolitana, das quatro cidades de Estrasburgo, Constança, Memmingen e Lindau, preparada durante as sessões por Bucer, com o auxílio de Capito e de Hedio, a qual representava mais o pensamento buceriano e zuingliano do que o luterano. Todavia Carlos V não ligou importância a Fidei ratio, nem à Confissão Tetrapolitana, não permitindo que fossem lidas. João, o Constante, impacientava-se com a intolerância de Carlos V e não esperou a conclusão dos trabalhos. Declarou-lhe que não poderia renunciar à sua fé. Carlos o ouviu pesaroso, dizendo-lhe: “Meu tio, meu tio, não esperava isso de ti!”. Despediu-se dele, com lágrimas, o eleitor. Enquanto tais coisas se davam em Augsburgo permanecia Lutero no seu retiro de Coburgo, impossibilitado de comparecer perante a Dieta. Estacionou ali de abril a outubro, trabalhando incessantemente. Estava em constante comunicação com Melâncton e os teólogos luteranos, acompanhando os trabalhos da Dieta. Por prudência, o eleitor João encerrara-o no castelo, como nove anos antes o fizera seu irmão Frederico, enclausurando o reformador em Wartburgo. Larga foi então sua correspondência, que datava do “deserto” ou “da região dos pássaros”, como naquela ocasião. Em Coburgo teve notícia da morte do velho João Lutero, em Mansfeld. Resignado, tomou o seu alaúde para louvar ao Senhor e por dois dias encerrou-se, lastimando a perda do amado progenitor: “Meu pesar é grande”, escreveu a Wenceslau Link, “recebi a notícia da morte de meu pai, deste velho Lutero tão querido e tão bom”. No seu novo retiro prosseguiu nos trabalhos da tradução da Bíblia, encetados em Wartburgo, e comentou os 25 primeiros salmos. Preparou uma edição popular de três fábulas de Esopo, por ele então traduzidas e adaptadas
à mentalidade alemã. Recebeu diversas visitas, entre elas a de Urbano Régio, reformador em Luneburgo, e de Bucer, que desta visita colheu a impressão de que “Lutero temia a Deus e buscava sinceramente a sua glória”. Carlos desejava a todo o custo a submissão dos luteranos. Queria que admitissem a Confutação ou réplica dos teólogos de Roma e daí o desgosto e a retirada de João, o Constante. Também o landgrave retirara-se desgostoso. Do choque poderia resultar uma guerra civil, caso os luteranos não se submetessem. Sabido o espírito brando e conciliador de Melâncton e o seu prestígio como teólogo, procurou o imperador envolvê-lo em conferências com os teólogos de Roma. Por amor à paz, ia ele cedendo em muitos pontos e enchendo de desgostos os príncipes luteranos. Lutero soube da fraqueza do seu amigo e escreveu-lhe de Coburgo no seu estilo característico: “A mestre Felipe Kleinmuth (coração pequeno) — Segundo me parece estais fazendo uma obra prodigiosa, qual a da reconciliação de Lutero com o papa. [...] Advirto-vos, porém, de que se é vossa intenção meter num saco essa águia gloriosa que se chama o Evangelho, Lutero, tão certo como Cristo viver, há de ir libertá-la, fazendo apelo a todas as suas forças”.
44. A Liga de Esmalcalde Motivos que determinaram a formação da Liga — O desastre de Kappel — A paz de Nurembergue — Morte de João, o Constante — Fim de Clemente VII — Ascensão de Paulo III — A Concórdia de Wittenberg
Ao retirar-se de Augsburgo, passou o eleitor João pelo castelo de Coburgo e reconduziu a Lutero do seu exílio de seis meses para Wittenberg, onde chegou a 11 de outubro de 1530. Recomeçaram os seus trabalhos e as suas lutas. Supondo-se forte, conseguiu o imperador em 19 de novembro um decreto da Dieta marcando o dia 15 de abril de 1531 como o termo fatal para a submissão dos protestantes da Alemanha. Tratou ao mesmo tempo de fortalecer a sua dinastia, promovendo a candidatura de seu irmão Fernando para rei de Roma. O arquiduque da Áustria já havia sido reconhecido como rei da Boêmia e da Hungria. Faltava-lhe a coroa imperial que teria de conseguir mais tarde com a abdicação de Carlos. Alarmados os príncipes protestantes com a aproximação do 15 de abril, reuniram-se em Esmalcalde pelo Natal de 1530 e protestaram contra a eleição de Fernando procedida em novembro. Ao mesmo tempo lançaram as bases de um pacto que foi confirmado em uma segunda reunião e assim, em 27 de fevereiro de 1531, constituiu-se a Liga de Esmalcalde com a Saxônia eleitoral, Hesse, Luneburgo, Anhalt, Mansfeld e mais 11 cidades. Mais tarde o Württemberg e outros estados aderiram, convertendo-se a Liga em poderosa agremiação política dos príncipes luteranos. Em 11 de outubro morria Zuínglio no campo de batalha de Kappel, no encontro dos cantões florestais, que representavam a reação católica contra Zurique. Zuínglio partira para a campanha não como combatente, mas na sua antiga qualidade de capelão militar como o fizera anos antes, acompanhando os mercenários suíços ao lado de Júlio II e Leão X. Feriram-no quando ministrava a um moribundo os socorros espirituais. Bullinger substituiu-o em Zurique na direção da obra da Reforma. Poucos dias depois, em Basileia, morria Ecolampádio de pesar pela morte de Zuínglio. O teólogo e humanista de Basileia era para Zuínglio, na Suíça, o que Melâncton era para Lutero, na Alemanha. O desastre de Kappel encheu de esperança a Fernando e aos
reacionários da Alemanha no projeto de esmagar Lutero e os seus adeptos. Mas Solimão com os seus turcos iria transtornar todos esses planos. Com 300 mil homens em pé de guerra rejeitou o sultão todas as propostas de paz. O imperador e seus irmãos tiveram de contemporizar mais uma vez com os protestantes para que lhes oferecessem homens e recursos para a campanha contra o islã. Assim, em 23 de julho, foi concluída a Paz de Nurembergue, que permitia aos aderentes da Confissão de Augsburgo persistirem nas suas doutrinas e concedia-lhes ainda outros privilégios. Protestantes e católicos empenhavam-se pela reunião de um concílio geral na Alemanha para acertar as questões religiosas. Todos estes processos da política eclesiástica se relacionam diretamente com a vida do reformador de Wittenberg e a eles fazemos ligeira referência para a inteligência dos fatos. No mesmo ano da Paz de Nurembergue, que conjurava a guerra civil, falecia em 16 de agosto, em Schweinitz, o eleitor da Saxônia, assistido por Lutero e por Melâncton. João, o Constante, bem merecera o qualificativo. Desde as teses de 1517 mostrara a sua simpatia pela Reforma e pelo fato de ter sido o primeiro a assinar o Protesto de Espira veio também a ser o primeiro protestante histórico. Irmão de Frederico, o Sábio, ainda em vida do irmão lhe fora associado na regência do ducado eleitoral. Seu período administrativo durou sete anos, de 1525, quando se dera a morte de Frederico, a 1532. Teve como sucessor a seu fiho João Frederico, o Magnânimo (15321554), que sobreviveu a Lutero e veio a ser o fundador da Universidade de Iena. Foi constante como seu pai e na derrota da Liga de Esmalcalde em 1547 preferiu perder o eleitorado e parte de seus estados a negar a fé evangélica. Pouco depois da Paz de Nurembergue Carlos V retirou-se da Alemanha para a Itália e a Espanha, regressando somente em 1541. Em 1534 falecia Clemente VII, continuador até certo ponto da política de seu primo Leão X. Nas suas lutas com Henrique VIII, apertado por todos os lados, vendo em certo momento a situação política desfavorável a Carlos V, chegou a assinar uma Bula anulando o casamento do rei. Serviu de emissário o cardeal Campégio que a deveria mostrar somente a Wolsey, o cardeal inglês e ao rei. Mas se, na situação política, a balança pendesse para Carlos, a Bula deveria ser queimada. De acordo com isso, o cardeal gastou oito meses na viagem a ver o rumo que a situação tomava. Carlos venceu. Henrique teve apenas o gosto de ver nas mãos de Campégio o suspirado
documento, que o cardeal tratou logo de fazer desaparecer. Foi uma Bula apenas para “o inglês ver”. A Clemente sucedeu Paulo III (Alexandre Farnésio, 1534-1549). Havia sido cardeal no governo dos seis últimos papas e foi o pontífice que aprovou a ordem dos jesuítas e convocou o Concílio de Trento. Hábil político, ofereceu a Erasmo o chapéu cardinalício por este recusado. No seu pontificado teve início a Contrarreforma, que foi um dos benefícios prestados por Lutero a Roma. É sabido o estado de decadência do papado quando o monge alemão iniciou o seu movimento reacionário. Ele não queria demolir e sim reformar. Em parte, ao menos, foi isso conseguido. Daí em diante houve mais compostura na escolha dos pontífices e não mais conspurcaram o papado homens do padrão de Alexandre VI. A disciplina melhorou e houve mais zelo e mais espiritualidade na Igreja. É curioso mencionar que Alexandre Farnésio, quando simples cardeal, teve várias entrevistas com Lutero procurando reconduzi-lo à obediência. Mostrou-lhe o exemplo de Eneias Sílvio, secretário do papa cismático Félix V, que não passara de cônego enquanto seguira as próprias ideias. Retratando-se, veio a ser bispo, cardeal e por fim cingiu a tiara. O obstinado Lutero não aspirava, porém, a tais honrarias. Paulo III veio a ser o último pontífice dos dias do reformador. Relativamente à controvérsia eucarística, deu-se em 1536 mais uma tentativa de aproximação entre os suíços e estrasburguenses, de um lado, e os luteranos, de outro. É o que se chamou a Concórdia ou Concordata de Wittenberg, graças aos esforços de Bucer e Melâncton. Muitos passos prévios vinham sendo dados desde 1531. Em 1543 renovou-se, contudo, a controvérsia e a Concórdia foi posta de lado.
45. Catarina von Bora Lutero não deixou o mosteiro, tendo em vista o casamento — Origem do celibato clerical — Tentativas de revogação da medida — As freiras de Nimbschen — Pretendentes de Catarina — “Ou o dr. Amsdorf ou o dr. Martinho” — Casamento de Lutero — A famosa carta a Camerário — Humorismo de Erasmo
Ao contrário do que propalam os adversários, não pensava Lutero em contrair matrimônio quando afixou as teses em Wittenberg, em 1517. Todo o seu tempo era absorvido nas questões eclesiásticas em que se via envolvido — escrevendo, pregando, ensinando, discutindo, organizando. Ao tempo de sua reclusão em Wartburgo, em parte de 1521 e de 1522, é que os primeiros religiosos em Wittenberg e em outras partes da Alemanha começaram a dissolver os votos do celibato, constituindo família legalmente. Assim o fizeram Feldkirchen, Karlsdat, Jonas, Bugenhagen, Wenceslau Link e outros mais. O celibato religioso foi observado entre os pagãos da antiguidade. Teve a Grécia os seus hierofantes, Roma as suas vestais e o Egito sacerdotes que observavam o celibato. Entre os judeus, porém, não era assim. Sacerdotes e levitas constituíam família. O casamento é santificado no Novo Testamento. Parece que os apóstolos eram casados, pelos menos alguns deles como Pedro, ao qual Roma admite como o primeiro dos seus papas. São Paulo a isso se refere em uma de suas epístolas: “Acaso não temos nós poder para levar por toda a parte uma mulher irmã, assim como também os outros apóstolos e os irmãos do Senhor, e Cefas?” (1Co 9.5). Mulher irmã quer dizer mulher cristã e Cefas é outro nome de Pedro, que, pelas linhas acima, se fazia acompanhar da esposa em algumas viagens ao menos. Em outra epístola, o mesmo apóstolo preconiza: “Importa logo que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher [...] que saiba governar bem a sua casa, que tenha seus filhos em sujeição com toda a honestidade” (1Tm 3.1,4). Curioso é também que o mesmo apóstolo prediz tentativas de revogar esta prática: “O Espírito manifestamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos de erro e doutrinas de demônios [...] que proibirão casar-se” (1Tm 4.1,3).
Com o andar dos tempos foi sendo revogado o costume a pouco e pouco. O celibato veio a ser considerado mais santo e eram preferidos os sacerdotes celibatários para os cargos mais honoríficos até que no século XI, Gregório VII, hábil político eclesiástico, estabeleceu como dogma o celibato clerical (1074). Era uma medida disciplinar, de caráter político. Tinha por alvo fazer do clero um estado à parte, sem pátria e sem família, para melhor servir aos interesses de Roma. A medida encontrou resistência na Alemanha e em outros países e a vida irregular do clero deu origem a muita controvérsia daí em diante. No Concílio de Trento, Carlos V representou a necessidade de ser a prática abolida. Prevaleceu, porém, a medida de Gregório VII. A Igreja Grega ou Ortodoxa não estabeleceu o celibato do seu clero e a própria Igreja Romana permite o casamento ao seu clero oriental — aos maronitas, aos gregos católicos etc. [36] Com o fim de sanear o viver dissoluto do clero, em vários Concílios procurou-se revogar a prática disciplinar. Pio II foi um dos papas favoráveis a isso. Lutero não se opôs a que o clero secular contraísse matrimônio. Tinha dúvidas, porém, quanto ao clero regular, pois os votos monásticos lhe pareciam mais severos. Só mais adiante é que evoluiu neste sentido. Catarina von Bora, nascida em 1499, de família nobre, fez os seus votos no convento cisterciano de Nimbschen, na Saxônia eleitoral. No seu convento, como em tantos outros, penetraram as novas doutrinas e muitas pessoas foram esclarecidas. Vários mosteiros foram sendo aos poucos despovoados. Frades e freiras regressavam à vida social e constituíam família, integrando-se na sociedade. Em abril de 1523 nove freiras de Nimbschen conseguiram escapar, graças ao auxílio de Leonardo Koppe, burguês de Torgau, que para isso fora comissionado. Tinha negócios com o convento e no seu carro de cerveja ocultou as freiras em tonéis e assim as levou a Wittenberg. Entre elas estavam Madalena Staupitz, irmã do antigo vigário-geral, e Catarina. Lutero procurou estabelecê-las. Catarina foi recebida no lar do secretário e depois burgomestre Reichenbach e ali viveu dois anos. Lutero viu-se em dificuldades para acomodar aquelas freiras e teve de pedir a Espalatino que lhe arranjasse recursos para atender às necessidades, pois suas rendas eram escassas. O pintor Cranach recebeu duas em sua casa. Algumas regressaram aos próprios lares, outras acharam esposo.
Restava Catarina. Baumgartner, estudante de Wittenberg, afeiçoou-selhe por algum tempo, mas, regressando a Nurembergue, sua terra, encontrou casamento mais vantajoso. Novo pretendente se lhe deparou na pessoa do reitor de Wittenberg, o teólogo Casper Glatz. Ela, porém, não se sentia atraída por ele, apesar de Lutero se interessar pelo casamento nos dois casos citados. Em março de 1525 veio a Wittenberg Amsdorf, um dos fiéis amigos de Lutero, agora pastor em Magdeburgo. Visitando Catarina, pediu-lhe a exfreira que dissesse a Lutero que não insistisse no casamento com o dr. Glatz, visto não nutrir por ele simpatia. Sorrindo-se então, disse-lhe ingenuamente que só se desposaria com o dr. Amsdorf ou com o dr. Martinho. O pastor de Magdeburgo não tinha inclinação para o casamento e conservou-se solteiro, mas referiu o caso a Lutero, que começou a refletir no assunto. Serviu-lhe de sugestão aquela proposta. Ele tinha já 42 anos e ela 26. Não pensara nisso antes. Em novembro escrevera a Espalatino dzendo que não se sentia tentado a mudar de estado, “embora o seu coração não fosse de pau nem de pedra”. Tinha aversão ao casamento, além de que, perseguido como herético, não tinha a vida segura. Nova carta em abril, depois da sugestão de Amsdorf, mostra-o já perplexo. Em 2 de junho dirige uma carta aberta ao arcebispo de Mogúncia, o antigo promotor das indulgências, aconselhando-o a casar-se e a secularizar o seu arcebispado eleitoral. Finalmente, para grande surpresa de seus próprios amigos, em 13 de unho, dia de Santo Antônio, convidou a Bugenhagen, que era pastor da cidade, a celebrar o seu casamento, estando presentes apenas o pintor Lucas Cranach e sua esposa, o dr. Jonas e o dr. Apel, jurista e professor da universidade, antigo deão da catedral de Bamberg, que havia também desposado uma freira. No dia 27 houve uma reunião de amigos para festejar as bodas de Lutero. Depois de um culto religioso, participaram todos do festim, estando presentes os velhos pais, vindos de Mansfeld para se associarem ao regozijo do filho. Lutero havia feito vir de Torgau um tonel de cerveja, da melhor, do mesmo negociante que havia trazido Catarina e suas companheiras em receptáculos daquele gênero. No festival de Lutero muitos presentes foram recebidos. A universidade ofertou-lhe um copo de prata maciça com inscrição. [37] Entre as dádivas figuravam um barril de cerveja de Einbeck, vinhos finos e 20 florins
de prata. O mais interessante é que o arcebispo de Mogúncia enviou a Catarina um presente de 20 florins de ouro. Isso provava que ele não se ofendera com a arrojada carta aberta de Lutero. O casamento do reformador provocou muita celeuma entre amigos e adversários. Era no fim da Guerra dos Camponeses e muitos estranhavam que tivesse dado aquele passo em momento tão aflitivo para a Alemanha. Entre os descontentes estava o próprio Melâncton, que não havia sido convidado para o casamento embora o tivesse sido para o festival do dia 27. [38] Em uma carta sua a Camerário, descoberta não há muitos anos, considerava aquele passo como um ato de fraqueza e de leviandade, que viria a prejudicar a influência do reformador. A carta tem sido muito explorada por adversários tenazes entre os quais Denifle e Grisar, a que deu réplica suficiente o prof. H. Boemer, de Leipzig. Melâncton censura o ato precipitado mas defende-o da acusação malévola dos adversários: “O rumor de que ele havia procedido mal para com ela é uma evidente mentira”. Erasmo, com sua ironia mordaz, dizia que a Reforma começara por uma tragédia e acabara por uma comédia de casamento. Citavam os inimigos de Lutero uma tradição segundo a qual, da união de um frade com uma freira, nasceria o Anticristo. Neste ponto Erasmo não só defende Lutero da acusação que Melâncton também rebatia, como explicava, com chiste, a fábula do Anticristo. Dizia o grande humorista que, a ser verdadeira a predição, milhares de Anticristos teriam já nascido de uniões semelhantes.
46. Vida doméstica de Lutero Despovoamento do Claustro Negro — Excelente dádiva do eleitor — Qualidades morais e domésticas de Catarina — Os filhos do casal — Morte de Madalena — Modéstia no viver
Lutero nunca deixou de residir no Claustro de Wittenberg, o “Claustro Negro”, como era conhecido. Desde seu exílio em Wartburgo fora sendo despovoado o mosteiro. Por muito tempo conservou o frade agostinho os antigos costumes. Trajava os hábitos monásticos e rezava as orações costumadas. Em 1523 sua vida foi se alterando e somente em público usava as vestes de monge. O mosteiro despovoou-se de todo afinal, restando dois habitantes solitários — Martinho Lutero e o prior Brisger. Não era raro, porém, encontrarem-se ali hóspedes ocasionais, frades egressos de outros conventos que ali ficavam por um pouco. Em 9 de outubro de 1524 passou a trajar a vestimenta dos professores da universidade. Os dois frades dispunham-se a consagrar o mosteiro a outros fins quando Frederico, virtualmente, fez presente do edifício a Lutero, dádiva confirmada sete anos depois pelo eleitor João. Foi nesse que se realizou a cerimônia do casamento do antigo monge, que ali residiu até o fim de seus dias. Quando rompeu com a Igreja Romana estava no pleno vigor dos 35 anos, entretanto, era já homem maduro quando pensou em casamento. Por mais que o acusem os seus adversários, sua vida íntima foi sempre irrepreensível. No seu estilo vívido, explicou, ao dar o passo decisivo do casamento, que se resolveu a fazê-lo por três motivos: “Fazer a vontade de seu pai, irritar o papa e afligir o diabo”. De 21 anos foi o decurso da vida conjugal de Lutero passada na melhor harmonia, em simplicidade e afeto cordial. Nenhuma sombra de desordem obscureceu aquele lar onde se respirava uma atmosfera religiosa. Catarina foi-lhe em tudo excelente companheira. Não tinha ele hábitos regulares no viver. Descuidava-se no trajar. Livros, cartas, manuscritos, viviam espalhados pelas mesas, cadeiras e outros móveis e um cão que tinha consigo aumentava a desordem, espalhando e rasgando livros e papéis. Absorvido com as ocupações, esquecia-se por vezes do alimento em horas regulares. Acostumado à austeridade de sua ordem, passava não
raramente a pão e arenque. De todas estas irregularidades livrou-o a nobre companheira. Seis filhos nasceram do casal. Hans (João), o mais velho, do nome do avô paterno, estudou Direito e exerceu um cargo público. Parece que deu algum trabalho aos pais. Isabel morreu na infância, ocasionando-lhes muito pesar. Madalena, que derivou o nome de uma tia materna que residia no lar, era o encanto da família. Faleceu aos 14 anos e Lutero deu na ocasião mais uma prova de seu espírito religioso. Em aflição, ergueu uma súplica aos céus: “Eu a amo profundamente, bom Deus, se, porém, é do teu agrado levá-la, de boa vontade a darei”. E à filha querida falou nestes termos: “Querida Lena, minha filhinha, preferes permanecer aqui na terra com teu pai ou desejas ir ter com o Pai Celestial?”. “Seja o que Deus quiser”, replicou-lhe. E quando a depositou no caixão: “Querida Lena, terás de ressuscitar e brilharás como uma estrela, como um sol. Sinto-me feliz em espírito, embora muito triste na carne”. Martinho foi o quarto filho. Foi o único a estudar teologia, mas possuía saúde tão precária que quase nada pôde fazer e faleceu aos 34 anos. Depois vieram Paulo e Margarida. Paulo estudou Medicina e tornou-se médico distinto na corte dos eleitores de Saxônia. Foi o mais competente de todos e morreu em idade avançada. Margarida desposou-se com um estudante de Wittenberg, de família nobre. De Paulo e Margarida, ainda existem descendentes. Nenhum dos filhos, porém, herdou o gênio de Lutero. Catarina era mulher sadia e disposta para o trabalho. Olhava pela casa, punha em ordem os negócios, cultivava o jardim, criava os filhos, atendia aos hóspedes. Dir-se-ia uma das mulheres fortes da Escritura. As rendas de Lutero eram pequenas e vivia com toda a modéstia, bem distante da vida opulenta dos bispos e cardeais. O mesmo se dava com outros reformadores. Quando o cardeal Sadoleto foi a Genebra, condescendeu em fazer uma visita a Calvino e ficou admirado de vê-lo em uma habitação modesta, em vez de residir num palácio, como supunha. Assim era Lutero no seu querido Claustro Negro. Vivia do seu salário de professor, que foi sendo aumentado gradualmente. Recebia também muitas ofertas e conseguiu assim adquirir uma granja. Mas as despesas eram muitas. Lutero tinha sempre amigos e hóspedes à mesa. Em sua casa se abrigavam parentes de sua mulher e chegou a contar 11 órfãos em seu lar. Havia ainda muitos visitantes, que vinham a Wittenberg para conhecer o popular reformador e ele os recebia em sua casa. Era além disso muito generoso e caritativo. Daí o viver em pouca
largueza. Nada recebia de seus serviços como pregador. O mais curioso é que seus livros rendiam bastante para os editores. De sua parte nada queria receber.
47. Defeitos de Lutero Lutero acusado de bêbado por Denifle e defendido por Boemer e Grisar — Outras acusações sem base — Expressões e termos grosseiros
Muitas acusações são atiradas contra Lutero. Entre elas a de ter sido um ébrio, um grande bebedor. O dominicano Denifle, entre os modernos, é um desses acusadores. Boemer, em seu recente livro Luther and the Reformation, reduz o caso às suas justas proporções. [39] No século de Lutero bebia-se extraordinariamente na Alemanha, cerveja principalmente, de modo que a bebedice podia ser considerada como o pecado nacional dos alemães. Carlos V costumava beber três goles nas refeições, mas cada trago correspondia a um copo de cristal de quase uma garrafa. E era tido como um bebedor moderado. O eleitor João Frederico, a despeito de sua piedade, e os duques Guilherme IV e Alberto V da Baviera eram tidos como bebedores incorrigíveis. E assim por toda a Alemanha. De Miltitz, emissário do papa perante Lutero, conta-se haver perecido no Reno, por ter caído embriagado do barco em que fazia a travessia do rio. Lutero não era abstinente e apreciava os bons vinhos bem como não desdenhava a sua cerveja de Einbeck e de Naumburgo, que empregava como remédio para os rins e para as insônias. Era, porém, moderado e sentia-se com forças de clamar, como nenhum outro, contra o pecado nacional, até perante a corte do eleitor. Fosse um alcoólico e não teria a extraordinária capacidade de trabalho que nele se notava. Apesar de sua saúde precária, só no ano de 1521 suas obras somaram 985 páginas, afora as traduções e outros trabalhos menores. Desta sorte Boemer conclui: “Assim o bêbado Lutero nunca existiu e o quase ébrio Lutero nunca foi visto” (p. 204). Contra o dominicano Denifle temos o jesuíta Grisar, do qual citamos alguns trechos: “Jamais teve (Lutero) costume de buscar seu bem-estar e os prazeres da mesa. [...] Representá-lo como um pilar de cabaret, como um habitual das tascas em que seus amigos estavam certos de o encontrar à tarde, é uma pura ficção. Muito pelo contrário, à tarde ele se comprazia em permanecer em família, na companhia de Catarina, de seus discípulos ou dos peregrinos que o visitavam. Acusam-no de ter sido um ‘bêbado’ — outra
acusação sem fundamento. Os fanáticos e arrelientos, os anabatistas por vezes severíssimos, católicos mesmo, adversários mal informados, espalharam esses boatos. Autores de escritos polêmicos têm querido achar um pretexto para esta acusação em certas palavras de Lutero, que eles compreenderam mal. Não compreenderam que eram palavras ditas por gracejo, expressões excusáveis num homem conhecido como nem sempre circunspecto no falar. Na sua pessoa os casos de embriaguês não foram nunca atestados de maneira cabal, ainda que, por vezes, seja notório que, à maneira alemã, tenha acariciado um pouco demais o seu pichel de cerveja. Sem ser um modelo de temperança, ele condenava vivamente os excessos de seus príncipes e do pessoal da corte. [...] Se Lutero se tivesse assim entregue ao vinho ou à cerveja, teria sido incapaz de desenvolver, como fez, sua maravilhosa força criadora. Um ‘bêbado’ não escreve livros, os tratados que ele compunha, por assim dizer ao correr da pena e que, por vezes, estão cheios de nobres e graves pensamentos. Nos seus escritos polêmicos, percebe-se a cólera, o furor; sente-se mesmo a lama, mas não o bafio do álcool, como ainda ultimamente, na América, um historiador protestante de Lutero quis fazer crer. O tal doctor plenus não pertence à história; e, a propósito disso, faremos observar que esse epíteto, que procuraram achar em uma de suas cartas, não tem outro fundamento que um texto corrupto” (Grisar, p. 230-1). Boemer afirma que, no texto legítimo, se lê a palavra Hanns, o nome do filhinho de Lutero, que mandava saudações aos padrinhos. Leram Plenus em vez disso: doctor Plenus em lugar de doctor Hanns. Atribuíram a Lutero uma famosa copla: “Quem não ama a mulher, o vinho e o canto será sempre um néscio em toda a sua vida”. É mais outra calúnia de seus inimigos. Não se encontram em suas obras tais palavras nem em escritores contemporâneos, diz Schaff. Parece ter sido originada no século XVIII, na base de algum dito medieval, de alguma canção de estudante. Melâncton, sua fiel testemunha, que o conheceu bem de perto, atesta que se admirava de vê-lo passar tão sobriamente. Jejuava às vezes quatro dias, quando em boa saúde; outras vezes passava o dia com um arenque e um pedaço de pão. Quanto à pureza de sua vida, ouçamos ainda Grisar (p. 231): “Mais de uma vez, no ardor de uma polêmica mal esclarecida, falou-se de vários filhos de Lutero. Erasmo, em uma carta, fala de um filho que Catarina teria tido 15
dias antes do casamento. Ele mesmo desmentiu, mais tarde, o falso boato. Outro filho assim chamado, nascido mais adiante, fora do casamento — André — veio a ser simplesmente André Kaufmann, sobrinho de Lutero. [...] Quanto ao adulter infans [filho adulterino] descoberto em Aurifaber, em 1569 numa polêmica, verificou-se que era simplesmente erro de impressão, em lugar de alter infans [outro filho], conforme a edição de 1568”. Habituado a controvérsias e discussões em toda a sua vida, nem sempre se sabia moderar nas expressões, quer escrevendo, quer falando. Do mesmo modo, nas suas cartas e na conversação habitual, saturada de humorismo. Ofendia os adversários e escandalizava os amigos. Por vezes tornavase até inconveniente e, à luz moderna principalmente, parece fora de compostura em tais ocasiões. Suas expressões rudes não causam boa impressão. Como explicação, é preciso encararmos a sociedade em que vivia. Termos grosseiros no ataque aos adversários eram frequentemente empregados por muitos, por bispos e cardeais e até papas, como temos visto em Leão X, em referência ao reformador. Nos debates e conferências de Lutero, se seus termos e expressões são dignos de censura, não merecem elogios as frases empregadas pelo dominicano Tetzel, ou pelo inquisidor Hoogstraten, nem pelo dr. Eck, ou o núncio Aleandro, o cardeal Cajetano e tantos outros. Nem mesmo Erasmo escapava à regra comum, ele e os letrados e humanistas do seu tempo. Expressões delicadas e caridosas nem sempre eram frequentes. Há ainda a notar a atmosfera respirada por Lutero, naquele meio impregnado de contendas e polêmicas amargas. Acresce a isso a esfera em que foi criado. Era filho de camponeses, com todos os defeitos e qualidades do povo alemão. Lutero não possuía os hábitos aristocráticos, nem a diplomacia, as maneiras finas e os modos austeros de Calvino. Wittenberg, povoada de cervejarias, estava longe da disciplina rígida de Genebra. Todavia, embora não se notassem em Wittenberg as austeridades de Genebra, é bom salientar a campanha de Lutero e seus colaboradores contra toda a sorte de vício, campanha que determinou o fechamento de prostíbulos e a proibição do meretrício, que era tido como coisa lícita. Do mesmo modo se impôs a restrição da bebida e de outras irregularidades.
48. As Tischreden Uma alma franciscana — Um novo rei Artur com seus cavalheiros — Palestras proveitosas — Um pai de família modelar — Quadros da vida familiar de Lutero — Profundo sentimento religioso — Um enfermo salvo por uma oração
Filho do povo, legítimo expoente da semibárbara Alemanha do seu tempo, presta-se Lutero a observações interessantes. Alma franciscana, extasiava-se ante as maravilhas da criação. Ouvia com deleite o gorjeio dos pássaros, admirava a inteligência das abelhas, inebriava-se com o perfume das flores e cultivava o seu jardim. Compadeciase dos animais. No castelo de Wartburgo levavam-no à caça. Quis salvar uma lebre, abrigando-a na larga manga de seu hábito. Mas os cães excitados morderam-na através do tecido e mataram-na. Mais tarde, com tristeza, referiu-se a isso, ilustrando no incidente a maneira por que Satanás faz parecer uma alma a despeito dos esforços em salvá-la. Ao seu jardineiro repreendeu severamente por ter preparado armadilhas para pássaros. Era amigo da pintura, da poesia e das belas-artes em geral. Para a música sentia verdadeira atração. Sobrepunha-lhe somente a teologia. Seu alaúde ia com ele em viagem e foi seu companheiro na jornada de Worms. Após a refeição da tarde, na companhia dos amigos e dos filhos, executava trechos de música e entoava canções sagradas e profanas. Tornaram-se famosas as palestras que se travavam em torno de sua mesa, todas as tardes, num período de mais de 15 anos, uma outra Távola Redonda em que o novo rei Artur dissertava com os seus cavalheiros sobre assuntos variados de religião e moral. Melâncton, Cruciger, Jonas, Bugenhagen e outros amigos, bem como os pensionistas estudantes que Catarina admitira por motivos de ordem econômica — todos esses constituíam o grupo interessante. No verão de 1531, um daqueles convivas do Claustro Negro, Conrado Cordato, teve a feliz iniciativa de ir registrando aquelas palestras. Desta sorte assemelhava-se a nova Távola Redonda a uma classe universitária em que as preleções do mestre iriam passar à posteridade naquela simplicidade familiar. Além de Cordato, vários registradores ofereceram os seus serviços — Dietrich, Lauterbach, Matésio, Aurifaber e ainda outros. Estes registros constituem as célebres Tischreden [ Propos de table,
Table-talk ou Colloquia mensalia]. Aurifaber, que foi pregador da corte em Weimar e pastor em Erfurt, e que, além disso, editou as obras do reformador, foi também colecionador das Tischreden, publicando-as em 1566. Entende Boemer que estas notas não representam talvez o sentido original. Mas, se o não fazem exatamente, dão-nos uma viva ideia daquela experiência. Mostrou-se Lutero pai de família modelar. Ao lado do cuidado espiritual para com os seus, tratava de rodeá-los de distrações inocentes. Vários quadros ilustrativos recordam esses momentos felizes. Um deles representa o reformador rodeado de seus amigos e de seus filhinhos entoando hinos religiosos ao som da música. Outro reproduz uma cena de verão. Lutero, no seu pomar, estende os braços aos seus meninos. Catarina, assentada, segura o menorzinho. É o tempo das vindimas e trazem todos nas mãos cachos de uvas. Outros amigos admiram os frutos abundantes e um pequeno corta cachos e distribui-os. Um dos presentes vai transcrevendo a conversação. É uma reprodução das Tischreden. O terceiro quadro é uma cena de inverno, na festa do Natal. Os dois esposos na sala e os meninos em torno da árvore do Natal. Pelo chão muitos brinquedos. A uma mesa a tia Madalena mostra aos pequeninos embevecidos as figuras de um livro. Lutero não só brincava com os filhinhos, na expansão característica de seu gênio, como escrevia-lhes cartas quando em viagem, modelos de graça e de simplicidade como aquela carta de Coburgo a seu primogênito Hans, que vem reproduzida em vários autores. Trata-o às vezes de doutor. Interessantes são também as cartas a Catarina nas quais se lhe dirige em termos carinhosos e honoríficos ao mesmo tempo. Era homem profundamente religioso. Iniciava o dia com suas devoções particulares. Depois recitava com sua família o Decálogo, o Credo, a Oração Dominical e um salmo. Deitava-se cedo e cedo também se levantava. De suas devoções particulares dá testemunho Veit Dietrich: “Não se passa um dia sem que dedique três horas à oração e sente-se então mais apto para os estudos. Uma vez escutei-o a orar. Que espírito, que fervor havia em suas expressões! Falava com tal reverência que se tinha a impressão de que estava a falar com Deus com tanta esperança e tanta fé como se se dirigisse a um pai e um amigo: ‘Eu sei, dizia então, que és o nosso Deus e nosso Pai. Estou certo de que destruirás os que perseguem teus filhos e, se o não fizeres, o nosso dano
será também o teu. Este caso é teu inteiramente. Aqui estamos debaixo de compulsão. Defende, pois, a tua causa!’”. Lutero era poderoso nas armas da oração. Vamos citar um fato apenas. Melâncton, em viagem para Hagenau, caiu gravemente enfermo em Weimar. Ninguém dava nada por sua vida. A um apelo do eleitor, Lutero e Cruciger foram em socorro do enfermo, e quando Lutero o viu quase exânime exclamou: “Ó Deus, salva-o! Como o demônio destruiu este órgão!”. E voltando-se para a janela expandiu-se na mais arrojada e veemente oração. “Saíam palavras com tal arrojo de seus lábios que poderiam ser condenadas como blasfemas se procedessem de outros lábios, mas que nele denotavam a mais sublime confiança em Deus e uma fé incondicional nas Escrituras. Ele mesmo disse depois: ‘Naquele momento dirigi-me ao Altíssimo com todo o vigor. Ataquei-o com suas próprias armas, citando todas as promessas das Escrituras em que diz que há de atender às orações, dizendo mesmo que ele as deveria ouvir para que daí em diante me confirmasse nas suas promessas’”. Aproximou-se então do enfermo e estendeu-lhe a mão dizendo: “Tem bom ânimo, Felipe. Não morrerás. Deus não quer a morte do pecador e sim que se converta e viva!”. E em tom humorístico acrescentou depois: “Come, senão excomungo-te”. Desde aquele momento sobrevieram as melhoras e viveu ainda muitos anos.
49. Personalidade discutida Boemer versus Denifle — Conhecimentos de Lutero — Prejuízos do tempo — Lutero e a democracia — Contrastes salientes
Lutero mostrou-se à altura de sua missão trabalhando sem detença, lutando até o último momento. Defeitos teve, como todos os mortais, e era o primeiro a reconhecê-lo. Ninguém, porém, julgando-o imparcialmente, deixará de reconhecer os seus méritos e as suas capacidades. Todavia, adversários descaridosos como Denifle fazem dele o juízo mais lastimável. É tido como homem de ignorância crassa, glutão e bebedor da pior espécie, dissoluto, turbulento e charlatão da ordem mais ínfima, escritor que supera a Zola na obscenidade, falsificador, mentiroso, indivíduo que se converteu em perigo social e não encontrou igual ainda em degradação moral. É assim que Boemer resume as acusações de Denifle, cujo livro não muito antigo, do começo deste século, na aparência esmagador, prestou o mais assinalado serviço, porquanto novos estudos se fizeram em torno da personalidade de Lutero, que são a mais ampla resposta a imputações tão infamantes. Fosse o reformador de caráter tão execrável, não teria abalado o mundo e sacudido os alicerces de Roma, como pioneiro de um movimento que arrebatou à Igreja dos papas a maior parte da Alemanha e da Suíça, os países escandinavos, a Inglaterra, a Holanda e um bom número na França e em outros países da Europa; movimento que contribuiu para o progresso material e moral dos domínios arrebatados ao pontífice. Relativamente à acusação de crassa ignorância, Boemer, cuja obra valiosa é já uma réplica a Denifle — responde, provando a inanidade da asserção. O reformador tinha pleno conhecimento dos clássicos latinos como Virgílio, Terêncio, Ovídio, Cícero, Sêneca, Juvenal, Lucano, Salústio, Quintiliano, Varrão, Tácito etc. Conhecia também o grego, embora não tivesse a perícia de Melâncton, e não lhe era estranho o hebraico. Os teólogos escolásticos eram de seu conhecimento como Aquino, Lombardo, Bernardo, Boaventura, Scotus, Occam, D’Ailly, Gerson, Biel e outros. Familiares eramlhe também os antigos padres — Agostinho, seu predileto — Irineu, Cipriano, Eusébio, Atanásio, Hilário, Ambrósio, Gregório Magno, Anselmo.
Ainda se comprazia em estudar Tauler e os místicos. Conhecia a literatura exegética da Idade Média, a lei canônica, Aristóteles, Porfírio e a filosofia medieval. Tinha conhecimentos de matemáticas, história natural, música, astronomia, metafísica e outros estudos do seu tempo. Em outro lugar foram feitas considerações sobre o seu caráter moral. Quanto a excessos de linguagem, era isso comum entre os escritores da época, mesmo entre os altos dignitários da Igreja, bispos e cardeais: “Até a sentimental Margarida de Navarra escrevia contos que hoje em dia uma mulher decente não pode ler sem mágoa”. Em sua linguagem desabrida não poupava Lutero ao Príncipe do Mal, que se servia da instrumentalidade do papa e de muitos outros para embaraçar o progresso do Evangelho. Em um pequeno tratado contra o duque Henrique de Brunswick, observa Schaff, o nome do Maligno é citado 146 vezes. Até em oração amaldiçoava o grande inimigo de todo o bem. São curiosos certos termos do seu último testamento em que se qualifica como “homem assaz conhecido no céu, na terra e no inferno, pobre, miserável e indigno pecador, ao qual o Pai das Misericórdias confiou o Evangelho de seu Filho, a despeito do papa, do imperador e do demônio”.[40] Com as ideias em voga relutava em aceitar o sistema de Copérnico por entender que contrariava a narrativa de Josué quando mandou parar o sol. Como era de supor, participava Lutero de tais prejuízos do seu tempo. Um tanto supersticioso, cria em feitiçarias e em duendes. O demônio era para ele a caracterização de todo o mal. Quando praticava alguma boa obra era como se desancasse o grande adversário. Ao traduzir o Novo Testamento imaginou que o golpe teria sido tremendo. Supôs vê-lo uma vez na forma de um cão negro debaixo de seu leito. Deitou-o então pela janela afora. Cria ouvir rumores pelo quarto e passos pela casa, atribuindo tudo ao demônio. Fala-se do tinteiro que teria arremessado à face do diabo, no seu retiro de Wartburgo, deixando o sinal na parede. Esse caso, porém, é tido como pura ficção nos melhores autores. É do domínio da lenda. Loiola e outras personagens da época tinham também as suas lutas com Satanás, não constituindo Lutero um caso peculiar. Loiola lutou com ele em forma de serpente. [41]
Como todos os grandes homens, observa ainda Schaff, havia nele contrastes salientes. Era um gigante em público e uma criança no lar; reformador ousado e eclesiástico conservador; apologista da razão como
serva da religião e acusador da mesma como aliada do diabo; campeão da liberdade do espírito e servo da letra; aborrecia encarniçadamente o papado e admirava profundamente a Igreja Católica e vinha a ser espécie de papa na Igreja que fundou. Hasse, protestante, nota que Lutero alternadamente qualificava o papa como o mais santo e o mais infernal dos padres. O católico Möhler entende que dos escritos de Lutero se poderia extrair a mais gloriosa apologia da Igreja Católica. Harnack denomina-o de sábio sem prudência, estadista sem política, artista sem arte, livre do mundanismo mas vivendo no meio dele, de sensualidade vigorosa e, contudo, puro; obstinadamente injusto, mas interessado na causa da justiça; desafiando a autoridade, mas escravo dela; blasfemando da razão e emancipando-a ao mesmo tempo. Um mundo inteiro de contrastes, característico dos grandes gênios!
50. A bigamia do landgrave Papel de Felipe de Hesse no movimento da Reforma — Talento de estadista — Seu casamento desastrado — Responde Lutero à consulta de acordo com a doutrina medieval — Posição insustentável — Energia de Lutero, embora tardia
Cada indivíduo tem a sua cruz, cada um experimenta as suas amarguras. Teve Calvino a sua cruz no martírio de Serveto. A de Lutero é a bigamia do landgrave. Aliás Felipe de Hesse (1504-1567) foi o mais inteligente e o mais operoso dos príncipes que apoiaram o movimento luterano. Teve o apelido de Magnânimo e houve quem o qualificasse de “gênio político da Reforma”. Tal o seu talento de estadista. [42] Todavia seus brilhantes serviços foram ofuscados com o escândalo de sua bigamia, que lhe fez perder a força moral e prejudicar imensamente a causa que defendeu com valor. Foi isso em 1540. Aos Aos 19 anos havia desposado uma filha do duque Jorge da Saxônia, o encarniçado adversário da Reforma. Mas não veio a sentir amor por ela e seus dotes físicos não o atraíram. Acusava-a de falta de asseio e de se entregar com excesso à bebida. O caso é que lhe foi infiel e esta infidelidade atormentou-lhe muito a consciência, conhecedor como era das verdades evangélicas, a ponto de, escrupuloso, comungar apenas uma vez em 15 anos, conforme confessou a Lutero. Em suas lutas espirituais, punha em dúvida a salvação de sua alma. Buscando um lenitivo para seus males, lembrou-se dos casos de poligamia do Velho Testamento e determinou contrair um novo casamento com o consentimento de sua esposa Cristina, que a isso não se negou. Expôs o caso a Bucer, teólogo de Estrasburgo, e encarregou-o de ir a Wittenberg consultar Lutero e Melâncton sobre o caso melindroso. A alternativa era ou continuar como até então ou tranquilizar a consciência com a bigamia. Os dois reformadores rogaram-lhe que evitasse o escândalo por amor da causa evangélica, mas acharam a bigamia preferível à situação em que vivia. Não era uma opinião teológica que expediam, mas um conselho apenas. Opinavam por um casamento secreto e o landgrave desposou Margarida von der Saale, dama da corte de sua irmã. Foi um caso parecido com o de Henrique VIII, embora sem as consequências e agravamento daquele.
O parecer de Lutero foi um ato de fraqueza lastimável. A nova sogra do landgrave não concordou em que o casamento se realizasse secretamente, de modo que tudo veio a público e o escândalo foi grande. Os dois luminares de Wittenberg não haviam mostrado a devida energia. Os escritores protestantes não os tentam defender. O judicioso Schaff, referindo-se ao assentimento dos três reformados, assim se expressou: “É uma mancha no seu caráter e não admite justificação”. E, em outro lugar: “O protestantismo não é mais responsável pelos pecados de Felipe de Hesse do que o romanismo pelos pecados de Luís XIV”. [43] Em explicações que deu, Lutero agiu de acordo com o espírito da Idade Média. Havia sido confessor por muitos anos e concluiu que nesta qualidade podia conceder dispensas para atos proibidos pelas leis civis e eclesiásticas. Era a doutrina medieval da dispensatio in foro interno tantum. Eram as sombras do convento obscurecendo a inteligência do reformador. Observa Boemer que o cardeal Cajetano era de opnião que o papa em circunstâncias análogas deveria dar a devida dispensa e que no caso de bigamia de Henrique VIII deveria permiti-lo para evitar um mal maior. O certo é que Clemente VII apressou o caso de Henrique aos cardeais para discussão. Não aprovaram a medida. O cardeal Campégio, porém, indo à corte de Inglaterra, levou consigo um documento de anulação de casamento. Apresentou-se ao rei, mas não lho deu definitivamente, conforme dissemos em outro lugar. O landgrave não andou sinceramente quando expôs o seu caso a Lutero. Ocultou-lhe o fato de que havia tido uma concubina e ele ao saber disto quis anular o conselho que lhe dera. Refere McGiffert (p. 365) que um clérigo subserviente, sob o pseudônimo de Neobulus, tomou a defesa do landgrave, aprovando a sua bigamia, em um livro que publicou. Lutero, que dera o seu conselho nas circunstâncias aflitivas de Felipe, compreendeu o mal que daí resultara. Ele que se levantara contra certos anabatistas extremados, que defendiam a poligamia, manteve-se de novo no terreno da verdade. Em sua linguagem veemente, acomete agora o livro do clérigo de Hesse: “Todo aquele que seguir este velhaco e o seu livro, tomando mais de uma mulher e pretendendo a sanção da lei, favoreça-o o demônio com um banho nos infernos. Amém. Deus louvado, saberei manter isso mesmo se outra espécie de neve não caísse por um ano inteiro senão Neobulus e demônios. Ninguém conseguirá fazer disso lei para mim. Não o
permitirei”. Tarde lhe veio a energia. Melâncton, de natureza mais delicada, lamentou profundamente de sua parte a fraqueza em tomar parte no conselho dado a Felipe de Hesse. Indo de viagem para participar da Conferência de Hagenau, tal foi a sua mortificação com aquele fato que caiu gravemente enfermo em Weimar, sendo salvo somente pela ardente oração de Lutero. Penalizado, confessou este último que, em sua qualidade de filho de um duro saxão, tinha pele mais rija para suportar golpes semelhantes.
51. O castigo do landgrave Negaças de um astuto caçador — O duque Jorge e seus sucessores — Um caçador mais hábil do que o imperador da Alemanha — “A fortuna é mulher” — O arrependimento do landgrave
Teve o landgrave de pagar severamente a pena dos seus pecados. Como no caso de Davi, sobre ele caiu a mão de Deus. Carlos V, o astuto caçador que por muitos anos espreitava uma oportunidade, viu chegar o momento de empolgar a caça cobiçada. Apoderarse do landgrave seria cortar os braços da Liga de Esmalcalde da qual era ele o expoente de maior valia. Pelo crime de bigamia as leis vigentes expunham-no à pena capital. Muitos passos foram dados para demover o imperador da linha que tinha em vista. De fato, abrandou, concedeu a vida a Felipe. Mas na Dieta de Ratisbona (1541) estabeleceu acordos políticos que tornaram inerme o adversário temível.[44] O castigo de Felipe deveria ir mais longe. Em 24 de abril de 1547, um ano depois da morte de Lutero, deu-se o esmagamento da Liga pelas forças do imperador na desastrosa batalha de Mühlberg, motivada pela traição de Maurício de Saxôma, sucessor do duque Jorge, o Barbudo, e genro de Felipe, como Felipe o havia sido do duque Jorge. Era a ironia do destino. O genro contra o sogro. Maurício, hábil político, achou meio de embair o próprio imperador. Cinco anos depois, vendo que não cumpria Carlos V as promessas que fizera e além disso tratava cruelmente ao seu sogro, o landgrave, arrastando-o de prisão em prisão, na Alemanha e nos Países Baixos, procurou emendar o seu erro e prestigiar a causa da Reforma. Deitou então manifesto e formou uma coligação contra Carlos V, invocando o auxílio das forças luteranas e de Henrique II da França, prometendo-lhe Metz, Tour e Verdun. O monarca francês invadiu a Lorena e se apoderou das cidades que cobiçava. Maurício atacou o imperador no Tirol que, ante as forças da coligação, correu o risco de ficar prisioneiro. Vencido, teve Carlos V de assinar o Tratado de Passau, em que concedia liberdade de consciência e anistia geral, e libertava do cativeiro o ex-eleitor João Frederico, que ainda viveu dois anos, bem como ao landgrave.[45] Maurício reabilitou-se perante os antigos correligionários. Possuía o
gênio político do landgrave. Ferido numa batalha, mais tarde, quando combatia Alberto de Brandemburgo, que resistia ao Tratado de Passau, pouco sobreviveu à vitória, falecendo em 1553. Sua filha Ana desposou-se com Guilherme, o Taciturno, o herói nacional dos Países Baixos. [46] Uma última palavra sobre o landgrave. Os cinco anos de prisão constituíram um benefício para a sua alma. Lia os santos padres — Agostinho, Jerônimo e Ambrósio — diz Hangenbach, nas Escrituras encontrava a principal consolação. Lia, marcava as passagens prediletas e anotava-as. Na biblioteca de Cassei existiam duas Bíblias in folio, contendo tais anotações. Essas leituras eram o seu conforto, pois seu cativeiro era amargo e o imperador tratava-o com dureza, de prisão em prisão, sem conforto e cheio de humilhações. Debalde intercediam em seu favor. Então viu-se o poder da virtude. Cristina, a esposa desprezada, não o abandonou. A muito custo obteve permissão do imperador e visitou-o uma vez, enchendo-o de consolação. Faleceu durante a prisão do ingrato consorte. Quando foi posto em liberdade tinha o landgrave os cabelos embranquecidos, o físico e o moral abatidos. Foi recebido com emoção e homenageado devidamente pelo seu povo que o estimava. De Marburgo foi a Cassei. Os burgueses acompanharam-no à catedral. Realizou-se o serviço religioso e Felipe, o Magnânimo, ajoelhou-se diante do monumento de sua magnânima Cristina e assim permaneceu durante o sermão e o canto ambrosiano. Era uma homenagem à memória da nobre esposa ultrajada. Era de crer na piedade do velho pecador arrependido.
52. A nova organização eclesiástica A reforma introduzida no culto público — Reforma religiosa e não revolução — Lutero conservador — Aspectos principais do culto reformado — O púlpito, o trono do pastor — A hinologia — Lutero, músico e cantor sagrado
O movimento reformador produziu modificação sensível nas formas do culto público, que passou a ser celebrado na simplicidade dos tempos primitivos. Tinha por alvo a espiritualidade em oposição ao formalismo. Agia sobre o coração através do intelecto, de preferência a agir sobre os sentidos e emoções; antes pela instrução do que pelas cerimônias. Levava os fiéis à comunhão direta com Deus mediante Cristo, pela oração e pela pregação, sem o embargo de mediadores humanos. Os reformadores aboliram a venda das indulgências, o culto dos santos, dos anjos, das imagens e relíquias, procissões e peregrinações a lugares santos, missas privadas e missas pelas almas do purgatório. Rejeitaram cinco dos sete sacramentos, conservando o batismo e a eucaristia, sendo os demais considerados como meros atos religiosos, por não possuírem os requisitos sacramentais. Deixaram também de lado a doutrina da transubstanciação, a ideia de sacrifício da missa, a adoração da hóstia, retirada do cálice aos leigos, o purgatório, o celibato sacerdotal, o uso da língua latina nas cerimônias e tudo o que era baseado apenas nas tradições e não nas Escrituras. Os reformadores não supunham criar uma nova religião. Não era uma revolução, mas uma reforma religiosa, o cristianismo restaurado à simplicidade dos primeiros séculos, o culto espiritual de preferência a um culto formal e aparatoso. As igrejas que se foram originando da Reforma nem todas guardaram o mesmo extremismo. Sem falar de seitas exóticas, as mais radicais foram as igrejas dos tipos zuingliano e calvinista. Os anglicanos foram os mais conservadores, subordinando a pregação às formas do culto. Os luteranos representavam a posição média, retendo os usos tradicionais que não eram antagônicos às prescrições bíblicas. Lutero começou a introduzir as reformas do culto em 1523, cautelosamente, em oposição ao radicalismo de Karlstadt, verificado em Wittenberg durante o exílio de Lutero em Wartburgo.
Conservou o termo missa para significar o culto público e especialmente o serviço eucarístico. Usou de formas litúrgicas. Conservou dos velhos ritos os Evangelhos e Epístolas, as Coletas, o Te Deum, o Gloria in excelsis, o Benedictus, o Credo, os Responsos, a genuflexão por ocasião da comunhão, a elevação da hóstia e do cálice (que depois abandonou), embora sem a cerimônia da adoração. Determinou três reuniões para o domingo e outras para os dias da semana. Considerava certas cerimônias do culto como matéria de indiferença, podendo ser abolidas ou não. Tal era o caso das vestes clericais, de velas no altar etc., coisas estas que mais tarde os puritanos ingleses não puderam tolerar. Na revisão do serviço batismal, em 1526, aboliu o uso do sal, da saliva e do óleo, conservando o exorcismo em forma abreviada. Reteve o uso da confissão pública e da absolvição e recomendou a confissão privada ao ministro. As Igrejas Luteranas da Alemanha setentrional e da Escandinávia adotaram a ordem de Wittenberg com algumas modificações, mas as do sul da Alemanha seguiram o tipo simples dos suíços. Com o correr dos anos o culto luterano sofreu diferentes modificações. O calvinismo suplantou-o em alguns lugares, desenvolveu-se numa área mais extensa. Lutero deu lugar proeminente ao sermão no culto público. No culto católico romano é a missa a parte principal, sendo rara a pregação. Como observa Schaff, o altar é o trono do sacerdote católico, o púlpito é o trono do pastor protestante. Lutero tornou-se o tipo do pregador popular. Pregava constantemente e seus sermões constituíam 16 volumes em uma das edições de suas obras. Alternava no púlpito com Bugenhagen, que era o pastor da cidade e pregava longos sermões. Lutero preferia os sermões breves. Tinha a faculdade de expressar os mais profundos pensamentos nos termos mais claros. Nas suas prédicas não poupava o papa nem o demônio. Ao lado do púlpito dava Lutero grande importância ao ensino do catecismo, conforme a prática dos primeiros séculos, em que o preparo dos catecúmenos merecia lugar de consideração. Preparou dois Catecismos, o Grande e o Pequeno, em 1529. O último adquiriu grande popularidade. Estudava o Decálogo, a Oração Dominical, o Credo, o batismo e a eucaristia, em termos ao alcance de todos. A Santa Ceia era distribuída nas duas espécies. Comemorava a morte
de Cristo e era símbolo da comunhão dos santos. Lutero estabeleceu-a semanalmente, na conclusão do culto dominical. Interpretava-a conforme a doutrina da consubstanciação. O serviço religioso passou a ser celebrado no vernáculo, tornando-se assim mais popular e mais inteligível. O número de festivais foi reduzido ao Natal, domingo de Ramos, sexta-feira da Paixão, Páscoa, Ascensão, Pentecostes e Santíssima Trindade. A hinologia desempenhou parte notável na história da Reforma. Nos seus templos não se dispensavam os cânticos sagrados. Neste sentido revelou-se Lutero o Ambrósio da Reforma. Hans Sachs denominou-o de “Rouxinol de Wittenberg”. A Igreja medieval ufanava-se por seus hinos clássicos como o Dies irae, o Te Deum, o Pange lingua, o Veni Creator, o Salve caput cruentatum, o Stabat Mater, o Lauda Sion etc. Estes hinos, porém, cantados pelos sacerdotes e pelos coristas, falavam ao povo numa língua estranha, do mesmo modo que a missa e as cerimônias latinas. [47] Lutero compôs 37 hinos, a maior parte do ano de 1524. Uns originais, outros traduções ou reproduções de hinos latinos. O mais antigo é a propósito do suplício dos dois protomártires da Reforma, queimados em Bruxelas, e assim começa: “ Ein neues Lied wir haben an”. O mais célebre é baseado no salmo 46, e veio a ser uma espécie de Marselhesa ou hino guerreiro da Reforma: “ Ein’ feste Burg ist unser Gott ” [“Castelo forte é nosso Deus”]. [48] Foi traduzido em muitas línguas e encontra-se nos hinários evangélicos usados no Brasil. Outro hino de Lutero que vem nos referidos hinários assim começa: “Regozijai-vos e louvai”. Entre os hinos do reformador há alguns próprios para o Natal, que compôs para seus filhos. Lutero era apaixonado pela música e preparou a parte musical para algumas de suas composições sacras. Nos dias de Lutero, colaboradores e amigos seus trouxeram o seu concurso na composição de cânticos sagrados, como Justo Jonas, Dietrich, Paulo Ebert, Lázaro Splenger, Hans Sachs, Esperato, Matésio e outros. Também se interessava em certo gênero de canções populares nas curiosas palestras da tarde. Quando do castelo de Coburgo acompanhava de longe os trabalhos da Dieta de Augsburgo, naquele seu exílio de seis meses,
entre outros trabalhos que empreendeu, conta-se a tradução de algumas fábulas de Esopo, adaptando-as ao uso popular. Referindo-se a esses trabalhos a que se dedicava, escreveu então a Melâncton: “Temeu enfim atingido o nosso Sinai, meu querido Felipe. Mas deste Sinai faremos uma Sião e construiremos três tabernáculos: um para o Saltério, outro para os Profetas e o terceiro para o Esopo”.
53. Educação e a política eclesiástica A escola ao lado da Igreja — Observação de Michel Bréal — O apelo de Lutero aos magistrados da Alemanha — Distinção dos dois poderes — A aposição de Roma — Teoria de Lutero — Obediência à autoridade — Usurpação de poderes na Alemanha
Na Reforma caminham a par a Igreja e a escola. O gênio do protestantismo favorece a instrução popular, eleva o laicismo, emancipa o juízo privado e estimula o sentimento da responsabilidade pessoal na religião. O leigo não obedece implicitamente ao sacerdote como medianeiro dos céus. O princípio do livre exame leva-o a examinar por si mesmo o livro divino e quando apresenta os filhos ao batismo se obriga solenemente a mandá-los à escola para que leiam e entendam as Escrituras. Lutero apreciou o caso no primeiro dos seus três formidáveis opúsculos, o Apelo à nobreza alemã (1520).[49] Em 1524 publicou um livro sobre a instrução em que dirigia um apelo aos magistrados de todas as cidades da Alemanha a melhorarem as escolas existentes ou estabelecerem novas para meninos e meninas, sugerindo que parte das propriedades das igrejas e conventos fosse a isso destinada. Na Idade Média a Igreja não se havia descuidado da instrução, fundando escolas nos conventos e promovendo a criação de universidades. Essa educação, porém, era de natureza aristocrática e favorecia apenas ao clero e aos leigos da classe mais elevada. O vulgo continuava ignorante e supersticioso e não sabia ler nem escrever. Os livros eram raros e mesmo entre os nobres havia muitos que sabiam apenas assinar de cruz. A invenção da imprensa veio melhorar a situação e a índole da Reforma deu impulso reconhecido à causa da instrução popular. No seu apelo aos magistrados dizia Lutero: “Tenho vergonha de nosso povo cristão quando ouço dizer: ‘A instrução só serve para os eclesiásticos, não é necessária aos leigos’. [...] Precisamos, em toda parte, de escolas para nossas meninas e nossos meninos, a fim de que o homem se torne capaz de exercer convenientemente sua profissão e a mulher de dirigir sua casa e educar seus filhos. [...] Peço que a criança vá à escola pelo menos uma ou duas horas por dia e é preciso que se tomem os mais capazes para fazerem deles professores e professoras”.
Zuínglio, na Suíça, foi outro a lutar pela causa da instrução popular. Melâncton mereceu o epíteto de Preceptor Germaniae. João Sturn deixou nome em Estrasburgo, chegando a ser qualificado como um dos maiores pedagogos do seu tempo. Calvino, em Genebra, foi outro propulsor da instrução. Sobre as relações entre a Igreja e o Estado publicou também Lutero um livro dedicado ao príncipe João da Saxônia, no qual, baseando-se nos textos bíblicos, ensinava o dever de obediência às autoridades constituídas, muito embora a obediência a Deus viesse a ocupar o primeiro lugar. Fazia distinção entre a esfera dos poderes estabelecidos, reprovando as autoridades eclesiásticas quando se intrometiam nos negócios civis e os príncipes e nobres quando se envolviam nos interesses da Igreja. Assim preceituava: “Deus ordenou duas espécies de governo entre os filhos de Adão: o reino de Deus, debaixo de Cristo, e o reino do mundo, sob o magistrado civil, cada um deles com suas leis e direitos. As leis do reino do mundo não vão além do corpo e dos bens e dos negócios externos. Sobre a alma, porém, o direito pertence só a Deus. Quando o governo do mundo ousa dar leis nos interesses da alma invade o reino de Deus”. [50] Deste modo ensina que a Igreja e Estado são poderes separados e não devem invadir a esfera um do outro. É a doutrina da separação da Igreja do Estado, contra a qual Roma não se pode conformar segundo o estabelecido pelos pontífices mais em evidência e ultimamente por Pio IX no seu famoso Sílabo.[51] Lutero com a sua teoria de obediência às autoridades ensinava a resistência passiva e foi só com muita dificuldade que consentiu na organização da Liga de Esmalcalde para a defesa dos interesses da Reforma e que tantas garantias trouxe ao movimento religioso desde a paz de Nurembergue em 1532. O imperador queria a todo o custo a uniformidade religiosa e chegou a pensar em um Concílio geral na Alemanha, mesmo sem consultar o papa e a França (Lindsay, p. 40). Em 1540 e 1541 diligenciou chegar a um entendimento em religião por meio de conferências, que se realizaram em Hagenau, Worms e Ratisbona, entre teólogos católicos e protestantes. Esta atitude conciliatória era mais um benefício colhido da Liga de Esmalcalde. Daí o progresso rápido da doutrina. O Württenberg, a Pomerânia, o Anhalt, o Mecklemburgo e muitíssimas cidades tornaram-se protestantes. Os bispados
de Magdeburgo, Halberstadt e Naumburgo deixaram de reconhecer a supremacia de Roma. O Brandemburgo e a Saxônia ducal aderiram à Liga. Mais tarde teria de ser a Liga esmagada em Mühlberg (1547), mas a reação de Maurício de Saxe salvou de novo a Reforma e concorreu para a paz de Augsburgo (1555). Estes pormenores são estabelecidos apenas para mostrar o esforço desenvolvido para a vitória da liberdade religiosa.
54. As sombras do crepúsculo A má saúde de Lutero — As penitências e jejuns do mosteiro de São Justo — Disposições testamentárias — O último aniversário e a última preleção — O crepúsculo de uma vida
Quem olha o retrato de Lutero e vê aquele rosto cheio e aquela aparência bem-disposta, aqueles olhos grandes e vivos, e aquele corpo alentado, imagina ter diante de si um homem de ferro, principalmente ao saber de seus múltiplos trabalhos e de tantos embates vigorosos. Bem diferente é o retrato de Calvino, magro, de rosto ossudo, longa barba pontuda e semblante austero. O reformador de Genebra gozava de saúde precária. Dispéptico, sofrendo de constantes enxaquecas, de gota e do doloroso mal de pedra, a tudo isso acrescia o tormento indizível da asma. A despeito disso, viveu 55 anos no meio de trabalhos tirânicos. Aquela maravilhosa aparência de Lutero não correspondia à realidade. Por ocasião do debate de Leipzig, aos 26 anos, assim o descreve Pedro Mosalano: “Martinho Lutero é de porte médio, e tão magro que quase se lhe podem contar os ossos, devido aos muitos estudos”. Com os anos, porém, seu físico tornou-se outro. É então descrito como homem corpulento, de fronte larga e busto saliente, lábios de orador, olhos penetrantes — “olhos de demônio” — no relatório de Aleandro, o emissário de Leão X em Worms. Tudo nele dava a impressão de um homem forte e corajoso. Com essa constituição aparentemente vigorosa, sua existência foi cheia de sofrimentos como a de seu confrade de Genebra. No ano da Dieta de Augsburgo (1530) considerava-se já um velho e vivia na expectativa da morte de ano em ano. Padecia muito dos rins — o mal de pedra de Calvino. Atormentavam-no a gota e o reumatismo, a ciática, enxaquecas quase contínuas, insônias, males do estômago, vertigens frequentes e fraqueza cardíaca. No último decênio da existência viviam seus médicos em constante apreensão, receando que lhe sobreviesse um insulto apoplético mais dia, menos dia. McGiffert atribui-lhe também outra enfermidade cruciante, o flagelo da asma. Em fevereiro de 1537, quando estava reunida a Conferência de Esmalcalde, na cidade deste nome, foi Lutero acometido de um terrível
ataque de cálculos renais ou mal de pedra, seu velho inimigo, e sua vida correu sério risco. Cercado de cuidados pelo eleitor João Frederico, que o visitou e prometeu olhar por sua família, tinha ao seu lado Frederico Micônio, Espalatino, Melâncton e outros. Clamou então aos céus: “Estou morrendo como inimigo do teu inimigo, maldito e excomungado pelo papa, porém será ele por sua vez por ti excomungado e ambos nós seremos julgados”. Os médicos levaram-no para Gota onde havia mais recursos. Ali quase morreu. Contra a expectativa, deu de melhorar e pôde ainda viver nove anos. Apesar de valetudinário, desenvolvia invulgar capacidade de trabalho, pregando e ensinando. Atendia a uma grande correspondência como se fosse um estadista. Há dele ainda mais de três mil cartas de seu punho que provam sua grande atividade. No seu testamento de 1542 providenciou sobre o futuro de sua Catarina. Deixava-lhe a propriedade adquirida em Zulsdorf e uma pequena casa também comprada em Wittenberg, vizinha do Claustro Negro que lhe fora oferecida pelo eleitor, à posse do qual deveria voltar no entender de Lutero. Deixou ainda a Catarina seus cálices e algumas joias e não se esqueceu de seus fâmulos. Generoso e desprendido, poderia ter sido rico se fizesse comércio de seus livros. Rejeitou também a partilha das minas de prata de Schneberg que o eleitor lhe ofereceu. Em 10 de novembro de 1545 celebrou o seu último aniversário, 62 anos, no círculo de Bugenhagen, Melâncton, Cruciger e outros amigos. Estava alquebrado e encanecido. Próximo estava já o dia em que teria de unir-se aos seus maiores, seguindo o caminho de toda a terra. O velho Hans (João Lutero) partira em 1530 e no ano seguinte deixara-o Margarida, sua mãe. Perdera também duas filhinhas, a pequena Isabel e a sua querida Lena, á mocinha. Em 11 de novembro passou a dar as últimas preleções aos estudantes sobre o Gênesis. No dia 17 terminou este seu derradeiro trabalho. Seus discípulos comovidos ouviram-no dizer suavemente: “Quão precioso este livro do Gênesis. Queira Deus que outros o possam explicar melhor depois de mim. Sinto-me fatigado. Rogai a Deus que me dê uma partida tranquila e me abençoe na hora extrema!”.
E assim deixou aquela sala onde outrora vibrara de entusiasmo e de fé e onde, em enxames, vinham a ouvi-lo de todos os lados. O fatigado obreiro suspirava pelo repouso merecido. Desciam lentamente as sombras do crepúsculo apagando aquela vida proveitosa. Mais três meses e poderia entregar sua alma ao Criador nas palavras de Jó: “Os olhos dos que agora me veem não me verão mais. Os teus olhos estarão sobre mim, porém, não serei mais” (Jó 7.8). Curioso é notar que seu grande antagonista Carlos V, no retiro de São Justo, não gozava de melhor saúde. A despeito de suporem muitos que o antigo soberano vivia então enclausurado austeramente, numa cela fria e desprovida de tudo, como um penitente aparelhando-se para a morte, bem ao contrário era o seu viver. Dispusera para si oito aposentos confortáveis no mosteiro e fazia penitências e jejuns com empadas de enguia e frutas de Valladolid, finas perdizes, salchichas à moda de Flandres, caça variada de Aragão e Castela, a Nova, vitelos de Saragoça, ostras frescas, linguados e lampreias de Sevilha e Portugal, anchovas de Andaluzia, variadíssimos doces de fruta, sem falar nos delicados regalos que lhe enviavam periodicamente o arcebispo de Toledo, o prior de Guadalupe, as duquesas de Bejar e de Frias e outros prelados e grandes do reino. Assim o diz Mignet, citado pelo dr. Souza Guimarães no seu livro Erros de História (Porto, 1925). No meio destas constantes macerações de sibarita, o régio penitente, em planos constantes de ambição, vivia assediando sua irmã Catarina de Áustria, viúva de d. João III, de Portugal, no intuito de conseguir a coroa do reino para a sua dinastia. Era seu fiel medianeiro o notável jesuíta Francisco de Bórgia, mais tarde canonizado. Mas sem embargo da atividade política e do viver regalado, conta Souza Guimarães no seu livro, passava atormentado “o imperial magnata desde as suas convulsões de epiléptico, os seus acessos de asma, o seu alcoolismo inveterado, até as suas hemorroidas, a sua gota, lambendo-lhe às dentadas as articulações das mãos e dos joelhos, ao lacinante eczema das suas pernas, obrigando-o a tê-las ao léu durante as noites estivais da Extremadura” (p. 259).
55. Os companheiros de Lutero Breve resenha — Karlstadt, Espalatino, Amsdorf, Bugenhagen, Jonas, Matésio, Dietrich, Aurifaber, Melâncton — Adversários
Não será sem interesse uma breve notícia sobre alguns, ao menos, dos amigos e colaboradores de Lutero citados frequentemente no decurso destas páginas. Acima de tudo vem Karlstadt (André Bodenstein, 1480-1541), nascido em Karlstadt, Francônia, de onde o ser conhecido pelo nome de sua terra. A data do nascimento não é muito precisa. Clérigo secular, era arcediago e professor de teologia na Universidade de Wittenberg. Na sua qualidade de deão presidiu ao ato de doutoramento de Lutero e mais tarde tornou-se seu ardente colaborador. Tomou parte no debate de Leipzig (1519). No ano seguinte, a chamado do rei Cristiano II, passou alguns meses na Dinamarca no interesse da Reforma naquele país. De regresso, foi um dos chefes do movimento radicalista e extremista em Wittenberg, na ausência de Lutero, movimento este que muito prejudicou a causa que defendia. Ambicioso e fanático, relacionou-se com os profetas de Zwickau. Banido pelo eleitor, voltou a Wittenberg graças à interferência de Lutero, que bondosamente o acolheu no lar recentemente constituído. Malquistou-se de novo com o velho companheiro e na questão eucarística tomou partido com os teólogos da Suíça e de Estrasburgo. Andou errante em vários lugares, graças à sua versatilidade. Em Basileia conquistou uma cadeira de teologia, sendo vitimado pela peste reinante. Foi um verdadeiro varão de contendas e o mais irrequieto colaborador de Lutero. Depois dele surge o vulto nobre de Espalatino (1484-1545), de Espalato, e daí o apelido com que passou à história. Jorge Burkhardt era o seu verdadeiro nome. Foi ordenado sacerdote no mesmo ano em que o foi Lutero (1507). De simples cura de aldeia, suas belas qualidades promoveram-no a capelão, secretário e bibliotecário do eleitor Frederico, que muito o considerava e o fazia viajar na mesma carruagem. Foi pregador da corte e homem erudito, sendo contado entre os teólogos luteranos. Gozando de confiança perante o príncipe, muito valeu com isso a Lutero. Era dotado de brandura e de prudência. Graças ao cargo que exercia, acompanhou o eleitor a várias reuniões. Erasmo muito o considerava e assim se pronunciou certa vez: “Eu escrevi o
nome de Espalatino, não somente entre os meus principais amigos, mas também entre os nomes dos meus protetores mais venerados, e isto não no papel mas no meu próprio coração”. Nicolau Amsdorf (1483-1565) lembra outro valente companheiro de Lutero. De origem nobre, parente de Staupitz era também membro do sacerdócio e conservou-se celibatário, em vez de constituir família como tantos outros colegas seus que abraçaram o movimento reformador. Foi professor na Universidade de Wittenberg e esteve com Lutero no debate de Leipzig e na jornada de Worms. Organizou em comissão a Reforma em Magdeburgo e Leipzig. Foi pastor, superintendente e bispo. Teólogo distinto, era luterano restrito contra o sinergismo de Melâncton. Foi um Nestor entre os colaboradores da Reforma contemporânea, falecendo aos oitenta e dois anos em Eisenach. Vem depois Bugenhagen (1485-1558), também conhecido por Pomerano e doutor Pomer, por ser da Pomerânia. Era filiado à ordem premonstatense. Surgiu em Wittenberg, em 1521, para ouvir a Lutero, cujas ideias abraçou, tornando-se um dos membros do seu cenáculo privado. Nesta cidade permaneceu até o fim de sua longa vida, embora com interrupções. Lutero era como se fosse ali o general, tendo como ajudantes Melâncton, Jonas e Bugenhagen. Foi professor na universidade e um dos auxiliares na tradução da Bíblia com Amsdorf e outros. Espírito organizador, coube-lhe a missão de preparar a constituição luterana de Lubeck, de Treptow e da Pomerânia. Foi o instalador da Reforma em Hamburgo, no Brunswick, no Schleswig-Holstein e em outros lugares. Mais alta missão lhe estava reservada na Dinamarca, onde estivera Karlstadt nas primeiras manifestações do movimento religioso naquela terra. A Dieta de Odensee (1527) deu mais um passo e em 1534 foi a Reforma adotada, tocando a Bugenhagen organizála. Residiu naquele país por cinco anos, de 1537 a 1542. Teve a alta honra de coroar o rei Cristiano III e a rainha consorte e de reorganizar a Universidade de Copenhague. Foi pastor em Wittenberg por longos anos, abençoou o casamento de Lutero e pregou nos seus funerais. Outro nome é Justo Jonas (1493-1555), tão popular nas biografias de Lutero. Era cônego e professor em Erfurt quando se foi encontrar com Lutero em Weimar, acompanhando-o a Worms. O doutor Jonas logo depois daquela reunião foi removido para Wittenberg e nomeado preboste e professor de direito eclesiástico. Foi teólogo competente, autor de hinos e de catecismos.
Esteve presente no Colóquio de Marburgo, na Dieta de Augsburgo e em outras assembleias de vulto. Foi chamado a consolidar em Hale a obra da Reforma, e nomeado ali superintendente. Teve ainda a glória de ser um dos fundadores da Universidade de Iena. Em consequência da derrota de Esmalcalde teve de deixar Hale, mas em 1551 foi nomeado pregador da corte em Coburgo e depois disso superintendente em Eisfeld, onde morreu. Foi dos mais íntimos amigos do reformador e das testemunhas de sua morte. Matésio (1504-1565), falecido como pastor em Joachimstal, na Boêmia, viveu por algum tempo em Wittenberg, sendo comensal de Lutero no Clautro Negro e fazendo parte daquele cenáculo de amigos. Tornou-se notável por uma série de 16 sermões que depois publicou em Nurembergue, sermões sobre a vida do reformador, que constituíram a primeira biografia completa de Lutero e que alcançou muitas edições. Foi compositor de hinos. Veit Dietrich (1506-1549) foi secretário de Lutero por vários anos e um dos colecionadores das Tischreden. Foi depois pastor em Nurembergue, sua terra. Escreveu hinos e sermões e traduziu para o alemão vários trabalhos de Lutero e Melâncton. João Aurifaber (1519-1575) foi o editor das Tischreden e de outras obras de Lutero, sendo testemunha da sua morte em Eisleben. Faleceu como pastor em Erfurt. Gaspar Cruciger (1504), de Leipzig, estudou medicina e teologia e foi um dos melhores auxiliares de Lutero na tradução da Bíblia, fazendo o confronto com os textos hebraicos e caldaico. Foi professor em Wittenberg e pregador da Igreja do Castelo. Era também do círculo dos íntimos do reformador. Omitindo outras personalidades, deixamos para o fim o mais notável e de mais renome. É Melâncton (1497-1560) do Palatinado, sobrinho-neto do grande hebraísta Reuchlin. Seria necessário muito espaço para tratar de tão elevada personalidade. Foi uma precocidade. Aos 17 anos era doutor em Filosofia. Dois anos depois Erasmo escrevia a Ecolampádio: “Tenho de Melâncton a mais alta opinião e nutro a seu respeito as mais altas esperanças. Estou persuadido de que Jesus Cristo destina este mancebo a ultrapassar a todos nós. Ele totalmente eclipsará Erasmo!”. E, em carta ao esperançoso ovem, assim terminava: “Adeus, sapientíssimo Melâncton, esforça-te para que as esplêndidas esperanças da Alemanha sobre o teu gênio e a tua piedade sejam não somente realizadas mas até excedidas”. Erasmo não sofreu decepção. Melâncton veio a ser chamado o
“Preceptor da Alemanha”. Teve lugar insigne entre os humanistas e foi helenista consumado. Veio a ser o mais forte auxiliar de Lutero e o seu mais íntimo amigo, sendo para este o que Virgílio era para Horácio — “dimidium animae” — metade de sua alma. Foi teólogo emérito, notável pensador, arguto polemista, espírito piedoso, o mais profundo dos teólogos luteranos do seu tempo. Entre muitos livros, citam-se os Loci communes, a sua obra clássica de teologia. É classificado entre os cinco reformadores mais notáveis: Lutero, Zuínglio, Melâncton, Calvino e John Knox. E o que é de admirar: nunca pertenceu à ordem do clero. Lutero havia sido monge; Zuínglio e Knox, padres; Calvino recebera as ordens menores e foi consagrado pastor. Melâncton era um leigo-teólogo. Vimos a lista dos amigos mais notáveis. A dos adversários seria fastidioso enumerar. No decurso destas páginas alguns foram mencionados como Tetzel, Eck, Hoogstraten, Cajetano, Prierius, Cochlaeus. Erasmo, que o olhava com simpatia, voltou-se contra ele, escrevendo o Diatribe de libero arbitrio, a que Lutero respondeu com o De servo arbitrio. A publicação do Hyperapistae por Erasmo levou Lutero a qualificálo de cético, epicurista e inimigo da verdadeira religião. Adversário mais notável ainda lhe foi Henrique VIII, que intentou refutar o Cativeiro babilônico de Lutero com o livro Assertio septem sacramentorum, que lhe valeu de Leão X o título de defensor da fé ( fidei defensor). Lutero replicou ao soberano inglês em termos violentíssimos.
56. A noite de Eisleben A desavença dos condes de Mansfeld patenteia a abnegação de Lutero — Duas viagens sem resultado — A terceira jornada — Uma taça de vidro dá lugar a um trocadilho — A inundação do Saale — A saúde precária de Lutero — Os condes se reconciliam — O último sermão — Fiel até a hora extrema — Uma câmara mortuária
Empalideciam em Wittenberg os últimos raios do sol poente. Sobre Eisleben iam ser projetadas as sombras da noite. Os condes de Mansfeld, Alberto e Gebhard, aos quais Lutero rendia vassalagem por haver nascido nos seus domínios, viviam em desarmonia entre si, por interesses de minas e de rendas que se relacionavam com o padroado eclesiástico. Desejaram os dois irmãos a presença de Lutero como árbitro naquela desavença. Por isso, em companhia de Melâncton e Jonas, viajou o reformador para ali, no começo de outubro de 1545. Nada pôde fazer, contudo, visto como estavam os condes de partida para a guerra contra o duque de Brunswick, como aliados que eram de outros príncipes. A despeito do estado precário de saúde, comprometeu-se a voltar segunda vez, o que fez no rigor do inverno pelo Natal daquele ano, em companhia de Melâncton. Nova decepção aguardava-o. Em Hale o seu amigo enfermou e dali tiveram de regressar. A 23 de janeiro partiu pela terceira e última vez de Wittenberg, serviçal e prestativo como sempre. Catarina, pressentindo a separação final, vendo-o de saúde tão arruinada, pediu-lhe que não fosse mais. Em lágrimas partiu, com má saúde e com mau tempo, a cumprir o seu dever. Uma semana antes, assim descrevera a Jacó Probst, pastor em Bremen, o seu estado: “Velho, gasto, cansado, sem energia e somente com uma vista disponível”. Köstlin, que refere o caso, diz que nada se sabe de conclusivo sobre a perda dessa vista. No domingo 17 pregou o seu último sermão em Wittenberg, a cidade de suas lutas e de seus triunfos. Lutero desta vez estava acompanhado de seus três filhos, João, Martinho e Paulo, assim como de Aurifaber, o colecionador das famosas Tischreden e do servo Ambrósio. A 25 de janeiro estava em Hale onde se hospedou com o dr. Jonas. Julga-se que foi então que o presenteou com a bela taça de vidro veneziano que ainda se mostra em Nurembergue. No esplêndido vaso de vidro veem-se os retratos de Jonas e de Lutero com uma dedicatória em verso latino e a
respectiva tradução para o alemão, não se sabendo quando a legenda foi feita: Dat vitram vitro Jonae (vitrum ipse) Lutherus, se similem est fragile noscat uterque vitro. É esta a ideia expressa: “Lutero, sendo ele mesmo um vidro, oferece um vidro ao vidro Jonas para que um e outro se reconheçam semelhantes ao frágil vidro”. Era profético o trocadilho. Lutero, o vaso de vidro, ia ser despedaçado dentro de poucos dias. Em Hale, de onde partiu acompanhado de Jonas, teve de esperar que se operasse o degelo e diminuísse a fúria do Saale. Pregou no dia seguinte ao da chegada. Disse ali aos seus amigos: “Vou indo a Eisleben com o fim de reconciliar os meus senhores, os condes de Mansfeld. Conheço a disposição do mundo. Quando Cristo desejou reconciliar com Deus o gênero humano, resolveu morrer por ele. Deus queira que assim seja comigo”. A propósito da violência do Saale, então transbordante, disse que naquelas águas impetuosas o demônio se estabelecera enfurecido, por isso não estava disposto a dar ao papa a alegria de vê-lo se afogar. E, quando passava o rio no barco, disse com humorismo ao seu companheiro: “Caro dr. Jonas, que banquete desusado não daríamos ao demônio caso nos afogássemos nestas águas eu, o dr. Martinho, coom seus três filhos, e ainda vós, o dr. Jonas!”.[52] De Hale e de Eisleben escreveu várias cartas cheias de ternura à sua boa Catarina, narrando no seu estilo pitoresco as peripécias da viagem e os resultados conseguidos para a pacificação dos dois nobres. Foi a 28 que conseguiram atravessar as águas perigosas. No mesmo dia atingiram Eisleben. Era a última etapa do ousado cavalheiro. Cem milicianos a cavalo fizeram-lhe a guarda de honra desde a fronteira de Mansfeld. Pouco antes de entrar na cidade onde nascera, foi acometido de sintomas alarmantes — vertigens, desfalecimento, forte constrição cardíaca e dispneia. Atribuiu isso ao frio violento e andou a pé até conseguir a transpiração. Em carta a Catarina descreveu o incidente: “Um vento glacial atravessou a minha gorra de doutor e até parecia que o meu cérebro iria ser transformado em gelo”. Os condes proporcionaram-lhe na cidade confortável alojamento. A despeito do estado alarmante da saúde, não cessou de trabalhar até o dia 17,
“a sua undécima hora”, tomando parte nas conferências tendentes a harmonizar os dois irmãos. Em tudo isso não se deixou abater, dando um exemplo notável de operosidade e boa vontade em servir ao próximo. Nas cartas que, nessa ocasião, escreveu, mostrou o tom humorístico de sempre. De Eisleben enviou seus filhos a Mansfeld em visita aos parentes que ali residiam. Ainda pregou quatro vezes, ordenou dois clérigos e fez a revisão dos regulamentos eclesiásticos para o território de Mansfeld. No dia 14 pregou pela última vez e administrou a comunhão. “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma” (Mt 10.28). Não pôde ir muito além: “Eis aí o que vos tinha a dizer sobre esta passagem. Poderia alongar-me mais, porém me sinto demasiado fraco. Ficaremos, pois, por aqui”. Neste dia escreveu as últimas cartas à sua Catarina e ao seu fiel Melâncton. Na primeira relata que sua missão estava quase concluída: “Os senhores arranjaram os seus negócios por intermédio dos árbitros, à exceção de um ou dois artigos, um dos quais é que o conde Gebhard e o conde Alberto vivam como irmãos, como noutro tempo, o que espero conseguir hoje”. Esperava regressar ainda naquela semana. Deus, porém, resolvera de outro modo. Lutero se esquecera, ao partir de Wittenberg, de levar consigo o cautério que deveria conservar aberta a fístula da perna e isso lhe causou inquietação. No dia 16, estando à mesa, disse, com o seu bom humor, a propósito do regresso para o qual se aparelhava: “Não quero me demorar mais aqui. Desejo voltar a Wittenberg para me deitar no meu caixão e dar em pasto aos vermes o corpo do gordo doutor”. Seria talvez o último tópico para as Tischreden de Aurifaber, que era um dos convivas. Amanheceu o dia 17, o último que seus olhos deveriam contemplar. O mensageiro celeste se apressava a concluir a sua obra. Nesse dia os condes de Mansfeld firmaram a reconciliação e fizeram valiosos donativos às igrejas e escolas. Vendo o abatimento físico de Lutero, pediram que se não preocupasse com as últimas conclusões. Limitou-se a apor a sua assinatura. As horas se apressavam. Conheceu o seu fim e disse a Jonas e a Célio, capelão e pregador da corte de Mansfeld, que morreria em Eisleben, no lugar em que havia nascido. À hora da ceia oprimiu-o uma forte pontada no peito. Friccionaram-
no com panos quentes. A dor melhorou e desceu ele ao salão para tomar a derradeira refeição. “Não há prazer em estar só”, disse então, caracterizando mais uma vez o seu temperamento. Falou animadamente, com o chiste habitual, discorrendo sobre vários assuntos. A uma pergunta que lhe fizeram sobre o reconhecimento nos céus, deu resposta afirmativa conforme a opinião que professava. Falou muito sobre a eternidade, afirmando a convicção em que estava de que lhe havia soado a última hora. Todos estavam apreensivos. Finda a refeição, dirigiu-se ao quarto de dormir. Ao seu lado velavam dois dos filhos, Paulo e Martinho e mais ainda Aurifaber, Justo Jonas, Célio, o capelão de Mansfeld e o servo Ambrósio. Pouco depois voltou-lhe a opressão do peito. O conde Alberto e a condessa, acompanhados de dois médicos, vieram em socorro. Dormiu até as dez horas. Acordou então e quis levantar-se mas não pôde. Dormiu de novo até uma hora. Era o começo de 18 de fevereiro, dia que ele marcara para o regresso a Wittenberg. Os condes velavam como os demais. O anjo da morte ia fazer a sua entrada na câmara. Veio sobre o enfermo uma forte transpiração que foi tomada de bom agouro pelos presentes. Ele, porém, não o acreditou e disse a Jonas: “É o frio suor da morte. Hei de render a alma a Deus, pois os padecimentos vão se agravando cada vez mais”. Orou então com fervor: “Pai Celestial, Deus Eterno e Misericordioso, tu me revelaste teu querido filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual eu tenho confessado, ao qual amo e adoro como meu bem-amado Salvador, Sacerdote e Redentor. Ele a quem os ímpios perseguem, desonram e vituperam. Ó Pai Celestial, ainda que deixe este corpo e deixe a vida, eu sei que estarei com ele para sempre. Recebe em teu seio a minha pobre alma”. Tomou então um remédio e declarou que era chegada a sua hora. Repetiu três vezes o versículo fundamental de São João: “Porque Deus de tal maneira amou o mundo que lhe deu seu Filho Unigênio para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Por três vezes ainda repetiu em latim o versículo dos Salmos: In manus tuas commendo spiritum meum, redimisti me, Domine, Deus veritatis. Cerrou então os olhos e ficou tranquilo. Era a passagem das grandes águas de que falou o profeta Isaías. Empregaram os amigos os últimos recursos para retardar a partida.
Na expressão de Paul Sabatier, as visitas da morte são sempre solenes, mas o fim dos justos é o mais emocionante Sursum corda que se pode ouvir sobre a terra. O doutor Jonas e Célio se aproximaram do moribundo e perguntaram com voz forte: “Reverendo padre, permaneceis fiel a Cristo e às doutrinas que tendes pregado?”. A resposta de Lutero foi um “sim” perfeitamente audível. Virou-se para o lado e adormeceu por um quarto de hora. Renasceu a esperança mas os médicos viram no sono um sintoma desfavorável. Aproximaram-lhe uma luz ao rosto e viram a palidez gradual da morte. As extremidades esfriavam. Suspirou docemente e entregou a sua alma ao fiel Criador. Era numa quinta-feira, entre as duas e três da madrugada. A habitação fúnebre ficava situada em frente da Igreja de São Pedro, a mesma em que Martinho Lutero, 62 anos antes, no dia de São Martinho, recebera as águas lustrais das mãos do cura Bartolomeu Renebrecher. O berço e o túmulo se encontravam.
57. Pulvis es… Preparativos para a jornada funérea — Cerimônias religiosas em Eisleben e Hale — A grande dor dos evangélicos da Alemanha — A chegada a Wittenberg e o ofício fúnebre — A sepultura — Calúnias sobre a morte de Lutero — Testemunho valioso do jesuíta Grisar
Muito embora houvesse Martinho Lutero adormecido o último sono na cidade onde nascera, seu túmulo não se assinalaria em Eisleben. Os condes de Mansfeld bem desejaram que os despojos do reformador repousassem no azigo que lhes estava destinado, no próprio berço de Lutero, que por eles se havia sacrificado num gesto de abnegação. Mas o eleitor João Frederico entendia que o privilégio pertenceria a Wittenberg, cenário dos trabalhos do grande lidador. Vestido de branco, foi o corpo encerrado num caixão de chumbo, depois de lhe haverem esboçado a fisionomia um artista de Eisleben e o pintor Lucas Fortnagel, de Hale. No dia 19 conduziram-no à Igreja de Santo André, onde o dr. Jonas fez um sermão apropriado e Miguel Célio um outro na manhã seguinte, antes de se pôr o cortejo em marcha. Foi no dia 20 que ficou determinada a jornada fúnebre de Lutero. Os velhos condes de Mansfeld, com suas esposas, os magistrados, os escolares e grande multidão foram até as portas da cidade. Daí em diante ia uma escolta de cavaleiros, à qual se incorporaram os filhos dos condes Alberto e Gebhard e muitas pessoas gradas. Pelo caminho e de cidade em cidade o séquito aumentava. Dobres de finados ecoavam dolorosamente em todos os lugares atingidos. Com suas línguas de bronze anunciavam os sinos das igrejas a dor que experimentava a Alemanha. Em Hale a urna repousou na Igreja principal. Naquela cidade havia ele pregado poucos dias antes. Agora a multidão comovida entoava o De profundis por entre lágrimas e soluços. Na fronteira do eleitorado, os delegados do príncipe João Frederico receberam os tristes despojos e por toda a região da Turíngia os aldeãos faziam subir o seu lamento. Poucos reis, observa Wylie, foram sepultados com tantas honrarias. O clero e o povo, velhos e crianças, mancebos e donzelas, todos de luto vinham render homenagem ao indefesso trabalhador, ao filho do povo, que se havia alistado entre os heróis nacionais. Dir-se-ia, à passagem do longo cortejo, que se reproduzia aquela cena dos tempos patriarcais, quando, das margens do
Nilo, partiram os egípcios em demanda do campo santo de Macpela, rendendo homenagem ao velho peregrino, cujo filho bem merecera da pátria dos Faraós. Conta o Gênesis que, ouvindo os habitantes da Planície do Espinhal o prolongado choro que se erguia, exclamaram admirados: “É este o pranto grande dos egípcios!”. Assim agora o mesmo acontecia entre os habitantes da Alemanha que se haviam acolhido à sombra da bandeira da Reforma. Em Wittenberg as tristes novas de Eisleben repercutiram dolorosamente. O excelente Melâncton ao iniciar as preleções do dia, exclamava como Eliseu à partida de Elias: “Carro de Israel e seu Condutor!”. Na manhã de 22 a procissão fúnebre avistou a cidade, que saiu em lágrimas a receber o seu reformador à porta oriental, justamente aquela junto à qual 25 anos antes arrojava ele às chamas a Bula de Leão X. Entre os assistentes viam-se Melâncton, Bugenhagen, Cruciger e Jerônimo Schurf, que lhe fora companheiro na jornada de Worms. Dirigiram-se todos à Igreja do Castelo, a cujas portas afixara o monge agostinho em 1517, no vigor da idade, as suas famosas teses contra Tetzel. Teve início a cerimônia fúnebre, pregando com o coração opresso o doutor Bugenhagem, o mesmo que abençoara 21 anos antes o casamento daquele que ia baixar à sepultura. Falou do mesmo púlpito em que por tantos anos se fizera ouvir o verbo arrebatado de Lutero. “Vi um anjo voando pelo meio do céu, que tinha o Evangelho eterno para pregar aos que fazem assento sobre a terra”, era o texto (Ap 14.6). Em seguida, profundamente comovido, como representante da Universidade, pronunciou Felipe Melâncton um discurso em latim, que foi logo traduzido em alemão para que todos o entendessem, por Gaspar Cruciger, outro companheiro fiel do reformador. Ali perto daquele púlpito, agora emudecido, abriu-se uma sepultura. Na segura e certa esperança da ressurreição, foram então depositados os restos mortais do dr. Martinho Lutero — “terra à terra, cinza à cinza, pó ao pó, conforme a sentença do Gênesis: “Pulvis es et in pulverem reverteris” (Gn 3.19). Naquela mesma Igreja do Castelo, a poucos passos de Lutero, dormiam já Frederico, o Sábio, o magnânimo eleitor que tanto o protegera, e João, o Constante, seu irmão. Quatorze anos depois Felipe Melâncton iria
também ali repousar, ao pé do velho companheiro. Tais são os fatos relativos à morte e ao sepultamento de Lutero no testemunho de autores fidedignos. Todavia o ódio sectário achou meios de deturpar a vida e a morte do reformador, afirmando inverdades, levantando juízos temerários, truncando citações de autores, caluniando, apresentando casos repugnantes, mesquinhos, absurdos, que servem antes para descrédito de escritores sem escrúpulos, que não olham a meios para justificar os fins que têm em vista. Tais coisas são vistas a cada passo em livros, panfletos e jornais tendenciosos, da imprensa, do púlpito, do confessionário. Há prazer especial em narrar a morte horrorosa dos reformadores — de Lutero, de Zuínglio, de Calvino, de Ecolampádio — ante a alegação de fatos que não podem ser provados. Vai uma amostra. Lutero ainda vivia quando um panfleto se espalhava na Itália contando coisas incríveis. Ao morrer, dizia o opúsculo, Lutero desejou comungar. Tomou o viático e logo morreu. Havia determinado que seu corpo fosse deposto num altar para ser adorado. Não se lembraram disso e o sepultaram. Nessa ocasião levantou-se uma furiosa tempestade que parecia o fim do mundo. Perceberam então que a hóstia que Lutero havia tomado, flutuava no espaço. Colheram-na com todo o respeito e depositaramna em lugar sagrado. A tempestade serenou para voltar à noite com mais fúria. No dia seguinte acharam vazio o sepulcro, desprendendo-se forte cheiro de enxofre que ninguém podia suportar. Muitos dos assistentes se converteram, regressando ao catolicismo. Lutero soube da notícia. Proclamou que estava bem vivo ainda e publicou um livro mostrando que o papado era de fundação diabólica. Lutero e Ecolampádio acabaram a vida pelo suicídio, houve quem o dissesse, havendo sido o reformador de Basileia arrebatado pelo demônio. Sobre o suicídio de Lutero é conveniente ler o jesuíta Grisar no seu livro sobre Lutero (p. 368-9). O doutor historiógrafo classifica o suicídio no domínio da lenda, assim como muitas outras invenções sobre a vida e o caráter do reformador. Vamos citar um trecho apenas: “Quando pensamos nos erros ou inexatidões, a propósito de Lutero, em que caíram mais tarde alguns escritores católicos de vistas estreitas e desprovidos de senso crítico, não nos admiramos das lendas que acabamos de recordar. Na velhice, dizem, renegou, no fundo da consciência, todas as suas doutrinas; queria voltar ao
papismo sem se converter. À sua Catarina, que lhe mostrava em certo dia a beleza do céu e das estrelas, lhe disse ele que aquele céu não era para eles. Atribuíram-lhe três filhos que teria tido de outra mulher e não de Catarina. Teria vivido em orgias com as religiosas. Em seus escritos teria feito a recomendação de orar para ter muitas mulheres e poucos filhos. Dele teria vindo o conceito: ‘Aquele que não ama a mulher, o vinho e o canto, não passará de um louco em toda a vida’”. [53]
58. Goivos e saudades O brasão de Lutero — “Este querido e excelente homem” — O cerco de Wittenberg — O nobre gesto de Carlos perante o túmulo de Lutero — Fim de Catarina
Adotou Lutero um selo que era também o seu brasão, representava a sua fé e expressava, como dizia, o seu pensamento teológico. Era um campo circular com uma rosa branca no centro e sobre ela um coração encimado por uma cruz negra. O coração sobre a rosa e a cruz sobre o coração. Ao redor um anel de ouro no qual se lia a divisa: In patientia suavitas. No reverso, um dístico em alemão que assim se poderá traduzir: “Sobre rosas descansa o coração, quando mesmo na cruz geme o cristão”.[54] Essas particularidades bem caracterizam Lutero. O pai de família modelar é descrito no trecho final de uma carta de Catarina à sua irmã Cristina de Bora, datada de 2 de abril daquele ano fatal: “Sou tão desgraçada, em verdade, que a ninguém posso exprimir a suprema angústia de meu coração, nem sequer posso dormir. Se possuísse um principado ou um império, seria menos dolorosa a sua perda do que essa, agora que Nosso Senhor mo arrebatou — e não somente a mim, mas ao mundo inteiro — este querido e excelente homem”. Quando Lutero faleceu ia-se estreitando o cerco das combinações políticas de Carlos V contra a Reforma e o reformador nos últimos tempos sentia-se cada vez mais torturado e magoado, não só pelas enfermidades, como pelas contrariedades, e pensara até em retirar-se de Wittenberg. A visita da morte, em fevereiro de 1546, livrou-o de amargo pesar. Pouco depois, o enfraquecimento das forças protestantes e o recuo de Maurício de Saxe concorreram para a derrota da Liga de Esmalcalde na fatal batalha de Mühlberg, de 24 de abril de 1547, na qual ficou prisioneiro o eleitor João Frederico. Carlos V, irritado contra ele, fê-lo comparecer a um tribunal de guerra presidido pelo fanático duque de Alba, que mais tarde teria de transformar os Países Baixos num extenso lençol de sangue. Alba era o general das tropas de Carlos. O conselho de guerra acusou o eleitor de traição e condenou-o à morte, que o imperador comutou em prisão, submetendo-o a muitas humilhações. Wittenberg, cidade forte, estava sitiada havia meses, desde outubro de 1546, e para aquele acampamento foi levado o prisioneiro, sendo obrigado a assinar a rendição da capital da reforma luterana.
Bugenhagen, no espírito de Lutero, animava os cidadãos que, na Igreja em que jazia o reformador, entoavam confiadamente o: “ Ein’ feste Burg ist unser Gott ”. Mas a capitulação teve de fazer-se no dia da Ascensão, em 1547, e Maurício de Saxe teve o prêmio de seus serviços, substituindo João Frederico no eleitorado. Deu-se então um incidente digno de nota. Entrando em Wittenberg depois da morte de Lutero, quis o imperador ver-lhe a sepultura. De braços cruzados lia a inscrição tumular. Quantos pensamentos não o absorveriam no momento! Olhara com desdém, 26 anos antes, ao mongezinho da Alemanha, que se atrevera a resistir ao maior soberano da época. Sobre ele descarregara o anátema do império, naquele Édito de Worms. Bem moço ainda, de 21 anos apenas, entendera que lhe seria fácil tarefa esmagar o frade rebelde, ao qual nunca mais vira desde aquele dia. Andava agora abeirando-se dos 50 anos e via cerca de metade do império alistando-se sob a bandeira da Reforma. A mudez daquela sepultura falava eloquentemente ao seu orgulho. Seu desapontamento teria de ir ainda em progresso e o conduziria à solidão de um claustro. Alguém chama-lhe a atenção. Era o duque de Alba, a criatura sinistra. Propõe-lhe o feroz guerreiro que seja aquele túmulo profanado e as cinzas do heresiarca atiradas ao vento. Nesse ponto, refere Audin, as faces do monarca tingiram-se de rubor e, num assomo de justa ira, respondeu: “Eu não faço guerra aos mortos. Seja respeitado este lugar”. Tinha ele alta ideia do sentimento de honra, como o demonstrou por várias vezes, a despeito de seus defeitos. Fosse, porém, Lutero vivo na tomada de Wittenberg e outra talvez fosse a sua sorte. A almejada caça de tantos anos iria cair nas mãos do astuto caçador e talvez se ateassem de novo as chamas que consumiram o mártir da Boêmia. A morte se apressara, porém. O cisne de Wittenberg fugira-lhe pela última vez. Catarina vivia na cidade, mas, receosa, escapou-se naquela ocasião. A situação política do momento pô-la em dificuldades econômicas, mas os amigos do reformador não a abandonaram. Voltou a Wittenberg e viveu em paz e confortavelmente. Na epidemia de 1552, vendeu suas propriedades e retirou-se definitivamente, indo viver em Torgau. Uma queda do carro em que viajava foi a causa de sua morte em 20 de dezembro do mesmo ano. Devido à peste, a universidade também se transferira temporariamente para
Torgau. Associou-se ela aos funerais realizados com grandes honras na Igreja principal, onde ainda se lê o seu epitáfio. J. A. Bost, no seu Dicionário de história eclesiástica, dá o seguinte testemunho: “Era uma mulher de coração e de fé, que, em mais de uma circunstância, levantou o ânimo de seu marido e se lhe mostrou sempre digna pela elevação do caráter, pelo devotamento e pela submissão”.
59. O julgamento dos séculos Um ideal religioso — O prisioneiro do seu século — Emparelhado com os maiores vultos da Alemanha — Opiniões de Schaff, Goethe, Heine e Döllinger — Bonifácio e Lutero — O neopaganismo alemão
Lutero não falou por si somente. Foi o porta-voz de quantos antes dele suspiravam por um elevado ideal espiritual, por uma reforma na Igreja, nos costumes e na doutrina, e por uma comunhão mais íntima com Deus. De preferência visava este último ponto, dando menos valor a uma simples reforma externa. Não criou uma nova Igreja, nem foi o primeiro protestante. Desde os primeiros séculos do cristianismo subiam protestos a cada inovação que se fazia, a cada artigo que se desviava dos ensinos dos primeiros tempos. Sendo o eco dos clamores de Pedro Valdo, de Wycliffe, de Arnaldo de Bréscia, de João Huss, de Savonarola e de tantos outros, foi, contudo, o pioneiro do movimento do século XVI. Simultaneamente se fazia ouvir Zuínglio na Suíça, e pouco depois Farel, Calvino e John Knox em outros lugares, para mencionar só os principais. Lutero abalou o mundo de seus dias e sobre ele se tem pronunciado o uízo dos séculos. Houve quem o julgasse e quem o julgue ainda do modo mais desfavorável possível, principalmente os que são movidos pelos preconceitos e pelo odium theologicum, o pior de todos. Há quem tenha dele a mais nobre e elevada opinião. Dos grandes reformadores do século XVI foi o único que deixou o nome ligado ao movimento religioso em que colaborou. Diz-se hoje Igreja Luterana, mas o nome de Calvino, de Zuínglio ou de Knox não tem a mesma amplitude quando aplicado aos movimentos em que eles mesmos se empenharam. Seu nome se emparelha aos dos maiores vultos surgidos na Alemanha. Até o século passado [XIX] há quem destaque quatro nomes da maior evidência entre aquele povo. Lutero, Frederico, o Grande, Goethe e Bismarck são as grandes personagens. Lutero é o tipo do líder religioso, o homem que despedaçou os grilhões de Roma para nacionalizar a Igreja de sua terra — o paladino da liberdade de consciência. Frederico, o árbitro da Europa no seu tempo, é a encarnação do gênio militar, que produziu a
grandeza da Alemanha. Goethe é o gênio da literatura nas suas mais sublimes concepções. Bismarck, o gênio político que realizou a unidade do império germânico e derrotou as forças ultramontanas da França e da Áustria, protestando que jamais iria a Canossa. Schaff admite que, para os semibárbaros da época, justificam-se a ameaça e o camartelo do Hércules protestante, servindo-se a Providência de suas fortes qualidades como o instrumento demolidor da maior tirania espiritual que jamais o mundo viu. Com todas as suas falhas, foi o maior homem que a Alemanha produziu e um dos maiores vultos da história. A grandeza de Lutero não está no polimento e na lisura de uma obra de arte, diz ele; lembra, porém, uma montanha alpina com seus píncaros agrestes internando-se nas nuvens, e deixando entrever nas vertentes as fontes cristalinas e os verdes prados mais abaixo. Seus livros de polêmica simulam furiosos vendavais ou torrentes rolando estrepitosas nos abismos. Goethe dá o seu testemunho nestes termos: “Dificilmente compreendemos o que devemos a Lutero e à Reforma em geral. Ficamos livres dos grilhões da estreiteza espiritual. Em consequência da nossa cultura progressiva, vamos ficando capazes de regressar às fontes primitivas e de compreender o cristianismo em sua pureza”. Heine, o poeta excelso, num brado de entusiasmo, exclamou: “Honra a Lutero, honra ao precioso varão a quem devemos a reconquista de nossos direitos mais sagrados, e de cujos benefícios vivemos hoje em dia. A polidez de Erasmo e a benignidade de Melâncton nunca nos dariam o que nos trouxe a brutalidade divina de frei Martinho. Desde aquele dia em que, na Dieta, Lutero negou a autoridade do papa e declarou abertamente que suas pretensões deveriam ser refutadas pela autoridade da Bíblia ou pelo argumento da razão, uma nova era surgiu na Alemanha. Havia sido despedaçada a cadeia com que Bonifácio prendera a Roma a Igreja alemã. Através de Lutero adquirimos a liberdade religiosa, deu-nos ele não só a liberdade de movimentos mas os meios, pois ao espírito deu também um corpo. Criou a palavra para o pensamento. Criou a língua alemã. Isso ele o realizou na tradução da Bíblia”. Döllinger, historiador católico liberal, vê-se obrigado a reconhecer também a grandeza de Lutero, não obstante havê-lo tratado com severidade. Disse contudo: “Não havia um alemão que possuísse tal conhecimento intuitivo de seus concidadãos e estivesse tão completamente possuído, para
não dizer absorvido, pelo sentimento nacional como o monge agostinho de Wittenberg. A mente e o espírito dos alemães estavam nas suas mãos como a lira na mão do músico perito. Havia dado mais do que nenhum outro dera amais ao seu povo — a língua, a Bíblia, a hinologia. [...] E contudo, mais poderoso do que este titã do mundo intelectual, era o anseio do povo alemão pela libertação dos laços de um sistema eclesiástico cheio de corrupção. Uma reforma teria vindo, e a Alemanha não teria permanecido católica quando mesmo Lutero não se tivesse levantado”. Muitos outros testemunhos poderiam ser aduzidos, mas longa é já a peregrinação, longos os rodeios. Por mais que o queiram amesquinhar, sempre há de ser grande o Hércules da Alemanha. Oito séculos antes de Lutero, nas mesmas regiões de Hesse e da Turíngia, onde o reformador revelou maravilhosa atividade, andara por ali, naquelas eras nebulosas, o monge Bonifácio, o apóstolo da Germânia. Vencendo preconceitos arraigados, em sua faina missionária, derribou, ante os olhos maravilhados dos pagãos, o carvalho sagrado do deus do trovão, erguendo da mesma madeira um templo ao verdadeiro Deus. Com o transcorrer dos séculos, porém, novo cativeiro algemou o pulso da Germânia. Monge como Bonifácio, procurou Lutero despedaçar esses grilhões e o povo libertado aclamou-o. O século de Leão X seria talvez melhor denominado o século de Lutero. As modas voltam e projetam agora impelir aquele povo forte a se abrigar de novo à sombra do carvalho sagrado dos antigos deuses pagãos. Hitler e seu partido consagram a novidade que deixa a todos assombrados. Um novo Bonifácio, um novo Lutero, monge ou não, terá de surgir ainda e de derribar, a pancadas vigorosas, os novos ídolos pagãos.
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[1] Uma nova edição de Lutero foi lançada em 2004 pela Editora Vida. [N. do R.] [2]1 Se
Hans Luther houvesse fugido de Möhra, pelo motivo alegado, não teria ido para um local a poucas milhas de distância, sob a jurisdição do mesmo eleitor da Saxônia. [3] Köstlin menciona outro brasão e selo usados por Tiago, filho de Hans, transmitidos por várias gerações. Consistia em uma besta, ladeada por duas rosas no centro de um escudo, tendo acima as iniciais I. L. [4] Os Irmãos da Vida Comum constituíam uma comunidade que teve como seu fundador Gerhard de Groot, nascido em Deventer, Holanda, em 1340. Dedicavam-se principalmente ao ensino e ao serviço da coletividade. Abnegado ao extremo, Groot foi arrebatado numa epidemia quando assistia os enfermos da peste. Em vez de abrirem escolas, os Irmãos preferiram servir como mestres em escolas já existentes, visando proporcionar uma educação cristã. Do seu meio saíram vultos notáveis como Tomás de Kempis, Gerbach, Petersen, João Wessel, Agrícola, Erasmo e outros. [5] Ströhl afirma que não só os filhos de pobres, mas os de pais abastados assim procediam. Era uma escola de disciplina que ensinava a humildade e desenvolvia o sentimento da caridade. Lutero contava de um jovem príncipe de Anhalt, de um convento franciscano, que esmolava em Magdeburgo e se mortificava tanto que seu físico não pôde resistir por muito tempo. [6] Este caso da acolhida de Úrsula Cotta parece ter alguma coisa de lendário em recentes escritores que se têm dado a pesquisa sobre a vida de Lutero, ao menos em vários dos pormenores. [7] Uma prova disso jaz no fato de se haver inscrito como interno numa das agremiações denominadas “bolsas”. Estudantes assim qualificados eram sujeitos a rigorosa vigilância e uma comissão universitária trimestralmente verificava com cuidado o seu procedimento.
Não eram admitidos a exames sem atestados de bom proceder (Ströhl, op. cit., p. 31). [8] Köstlin dá o dia de São Miguel com sendo o dia em que fez os exames. [9] O curso de Matemáticas abrangia música, aritmética, geometria e astronomia — o Quadrivium, em oposição ao Trivium das escolas — gramática, lógica e retórica. [10] H. Ströhl, apoiando-se em Scheel, entende que o primeiro contato de Lutero com a Bíblia não se deu em Erfurt e sim em Magdeburgo, onde os Irmãos da Vida Comum exaltavam o livro divino, que podia ser consultado na sala dos copistas. Muita coisa referente a Lutero é tida como lendária entre os modernos escritores. [11] Na opinião de autores modernos deve ter havido confusão no registro dos fatos ocorridos. O desastre que feriu o amigo se dera meses antes e não por ocasião da tempestade na floresta. A entrada no convento depois verificada veio a ser no dia consagrado a Santo Aleixo e daí o nome identificado com o amigo sinistrado. Em um livro ilustrativo da vida de Lutero, temos a gravura da floresta, que representa o reformador espavorido ante o espetáculo terrível, vendo-se o amigo fulminado a seus pés. Deve ter-se originado na tradição, como outros episódios que vêm ilustrados nesse livro, The Life o Martin Luther, The German Reformer, de Gustav König (London: N. Cooke, 1853). [12] McGiffert pretende que o grau de sentenciário Lutero não o recebera em Wittenberg, onde não chegara a dar a preleção inaugural de Lombardo como vimos, e sim em Erfurt, quando foi chamado no outono de 1509. Diz também que os de Erfurt não ficaram satisfeitos com o fato de receber ele mais tarde o doutorado em Wittenberg e não ali. [13] Audin, à p. 72 do 1º vol., em nota, transcreve o registro em latim, do livro da Faculdade — o texto do doutoramento de Lutero, nos seguintes termos que para aqui transcrevemos a título de curiosidade: “Decima octava octobris, que fuit festivitas sancti luce, Religiosus pater frater Martinus Luder, ordinis f. Eremitarum Sancti Augustini Sacre theologiae licenciatus: hora prima pomeridiana secundum formam statutorum a Magistro nostro eximio domino Archidiacono ecclesie omnium sanctorum a Magistro nostro eximio domino Archidiacono ecclesie omnium sanctorum Andrea Bodenstein ex Carollstadt : vesperiatus est presentibus dominis de universitate plurimisque aliis venerabilibus hospitibus. Sequenti die ad pulsum maioris campane congregatis ut prius patribus et hospitibus idem pater a prefato Magistro nostro Andrea doctoralibus insigniis in sacra theologia secundum formam statutorum est insignitus” ( Liber Decanorum Facultates Theologicae, Academiae Vitebergensis). [14] Segundo se observa em Edwin Booth, parece que este incidente de Milão se deu na viagem de regresso. [15] James MacKinnon, professor de História Eclesiástica na Universidade de Edimburgo. [16] Henri Ströhl, deão da Faculdade de Teologia Protestante da Universidade de Estrasburgo, em seu recente livro Luther, esquisse de sa vie et de sa pensée (1933), não dá muita força à versão corrente. Ouçamo-lo, à p. 62: “Esta versão remonta a um filho de Lutero, o médico Paulo Lutero, que em 1582 contou ter ouvido aos 11 anos seu pai narrar o fato. Esta lembrança da infância é inexata. Em um sermão de 1545, cujo manuscrito foi recentemente descoberto, refere Lutero que, desejando salvar do Purgatório a alma de seu
avô, subiu a escada de Pilatos recitando um Pater a cada degrau, porquanto tinha ouvido dizer que aquele que assim procedesse salvaria uma alma. Mas, ao chegar ao alto da escada, uma dúvida atravessou-lhe o espírito: ‘Quem sabe se isso será verdadeiro?’”. [17] Em campanhas em que pontífices se viam interessados, vários deles como Leão IV, João VIII, Leão IX, Alexandre II, Gregório VII, Vitor II, Urbano II e outros recorreram ao processo das indulgências como meio de aliciar tropas, acenando com a recompensa celestial. [18] O franciscano Alexandre de Hales, o doctor irrefragabilis, foi o primeiro a estabelecer a base das indulgências no tesouro das boas obras dos santos. Aquino por sua vez consolidou a doutrina. [19] Não deixa de ser curioso o número de títulos eclesiásticos de João de Médicis quando ainda bem moço. Extraímos a lista do vol. XIII de Cantu (p. 355). Era nada menos do que cônego das catedrais de Milão, Fiesola e Arezzo; reitor de Carmignano, de Giogoli, de São Cassiano, de São João em Valdano, de São Pedro de Cassale, de São Marcelino de Cachiano; prior de Montevarchi, chantre de Santo Antônio de Florença; preboste de Prato, abade de Monte Cassino, de São João de Pessignano, de Santa Maria de Marimonde, de São Martinho de Fontedolce, de São Salvador de Vajano, de São Bartolomeu de Anghiari, de São Lourenço de Coltibuono, de Santa Maria de Montepiano, de São Julião de Tours, de São Justo e São Clemente de Volterra, de Santo Estevão de Bolonha, de São Miguel de Arezzo, de Chiaravale, perto de Milão, de Pin, no Poitou, de Chaise-Dieu, em Clermont. A despeito de tantos títulos e benefícios eclesiásticos sua educação mostrou-se mais secular do que teológica. Policiano foi seu mestre de latim, Argirófilo, de grego, Marsílio Ficino e Pico de Mirândola, de filosofia, todos nomes ilustres. No paganismo dos humanistas desenvolveu-se a sua mentalidade. Aos 17 anos, sendo já cardeal, foi investido do governo da Toscana, como legado do papa. No pontificado de Alexandre VI foram os Médicis expulsos de Florença. Por isso achou ele melhor sair de Roma, indo viajar pela França, Alemanha e Países Baixos. [20] Alberto, um dos sete eleitores, era o homem que convinha a Leão X. Nascido em 1490, da casa de Brandemburgo, aos 23 anos era arcebispo de Magdeburgo. No ano seguinte obteve o arcebispado eleitoral de Mogúncia. Retinha ainda interinamente o bispado de Halberstadt. Para acorrer às despesas do pallium, que andavam em 30 mil florins, precisara recorrer ao banqueiro Fugger, de Augsburgo. Era amigo da Renascença, pródigo e dissipador como o pontífice. Fizera carreira rápida. Em 1518 era cardeal, chegando a chanceler do Império. Contribuiu para a vitória de Carlos V, na ascensão do trono da Alemanha. Era amigo de Erasmo e teve, como seu capelão, conselheiro íntimo e chanceler, o ilustre Capito, um dos futuros reformadores de Estrasburgo. Fundou a Universidade de Frankfurt. Não pôde deter a onda da Reforma e em 1541 teve de admiti-la nos seus Estados. Foi um dos primeiros a receber os jesuítas. Pretendia ser o Mecenas da Alemanha. Protegeu as letras. Erasmo e Huten foram seus pensionistas. De espírito mundano, era apaixonado pela música e manteve uma corte suntuosa. Segundo o testemunho de Capito, não era hostil à Reforma, mas tinha receio de comprometer-se. Por isso se lhe opôs. Faleceu em 1545.
[21] Tetzel
nascera em Leipzig, entre 1440 e 1460. Estudou na universidade local. Fez-se doutor em Filosofia e bacharel e doutor em Teologia. Entrou na ordem dominicana, e veio a ser prior. Era, além disso, comissário apostólico e inquisidor. Tornou-se popular como orador. [22] Cumpre agora corrigir um erro histórico, que vem registrado em diversos historiadores e mesmo em compêndios didáticos em uso em nosso meio. É o dizer-se que foi o ciúme dos agostinhos contra os dominicanos a causa da revolta de Lutero. Preteridos na escolha, teriam recorrido a Lutero os agostinhos como sendo o órgão mais apropriado para a luta. Hume, Bossuet e outros autores de vulto concorreram para a inserção do erro histórico e o fato vem sendo assim perpetuado. Na biografia de Lutero por Michelet (2. ed., 1882, p. 41), acha-se uma nota elucidativa da questão. Atribui-se aí o erro original a Paulo Sarpi, historiador do Concílio de Trento. É ele quem o diz quando relata que os monges eremitas de Arcimbaldo, por certos motivos, não foram investidos do encargo que até então lhes fora sempre confiado. Entregue aos dominicanos, estes se excederam na publicação dos méritos das indulgências, provocando a intervenção de Lutero. Daí resultou a questão amarga. Cinco razões são invocadas para impugnar semelhante asserção. A primeira é que nem sempre foram os agostinhos os privilegiados. Às vezes eram algumas ordens empregadas alternadamente — agostinhos, carmelitas, dominicanos, franciscanos, sendo que desde 1229 — logo no advento deles, a preferência cabia aos dominicanos. Nos registros, o nome dos agostinhos raramente se encontra. No período de 1450 a 1517, quando o negócio foi mais escandaloso, surge apenas um nome agostinho, o monge Palzins. Em segundo lugar, Arcimbaldo não figura na publicação das indulgências, sendo o seu distrito na Flandres e no Reno. Em terceiro lugar, Lutero agiu espontaneamente, não tendo sido instigado pelos superiores. Em quarto lugar — o argumento é mais forte — a venda das indulgências no fim do séc. XV ia-se tornando tão inconveniente que até os próprios dominicanos e franciscanos se opunham a isso. Mais ainda. No caso em questão, Leão X havia primeiro recorrido aos agostinhos que recusaram a oferta. Em quinto e último lugar, Lutero jamais foi acusado no ponto pelos escritores contemporâneos. Guiciardini admite que a intervenção de Lutero foi honesta. Diz Michelet no final da nota em questão: “Para não citar, contudo, Guiciardini, Erasmo, Sleidan ou De Thou, que, embora papistas, poderão ser acusados de parcialidade, nenhuma alegação produzem aqueles a quem Lutero atacou com mais veemência: Cajetano, Hoogstraten, Prierio, Emser, e o próprio Tetzel. Mesmo o pouco fidedigno Cochlaeus, observa Maclaine, silenciou sobre o tópico, embora, depois da morte do grande reformador, viesse a divulgar a calúnia que estou refutando. Poder-se-ia imaginar que o que escapou aos olhos perscrutadores dos contemporâneos de Lutero teria de ser descoberto por nós, que vivemos a grande distância do período de ação — por Bossuet, por Hume e outros acoroçoadores desta insensata e mal arquitetada afirmação? Ou não há regras de evidência moral, ou a asserção de Hume é inteiramente sem base e sem propósito”. [23] Dentre os assistentes que foram então conquistados pelas ideias de Lutero, achavam-se três jovens que merecem ser citados. Um deles era um dominicano de 27 anos, Martin Bucer, nome que se tornou respeitável entre os próceres da Reforma. Estrasburgo foi o seu
centro de ação e tomou parte saliente no grande movimento religioso. No reinado de Eduardo VI foi chamado para professor em Cambridge. Morreu na Inglaterra. O zelo fanático de Maria, a Sanguinária, não lhe poupou os ossos, que foram exumados e lançados às chamas, uma vez que não conseguira queimar em vida o teólogo alsaciano, a exemplo de Latimer, Riddley, Cramer, Hooper e tantos outros mártires da Reforma naquele país. O outro assistente era um jovem de 19 anos, ordenado sacerdote pouco depois. João Brentz era ele, o futuro reformador da Suábia e de Würtenberg. Erhard Schepf foi o terceiro, que também se ilustrou nas pugnas da Reforma. [24] Nascido em 1459, filho de Frederico III, subiu ao trono da Alemanha em 1493. Fez a guerra a Carlos VIII de França e contribuiu para que este abandonasse a conquista de Nápoles. Em 1508 fez aliança com Luís XII e com Júlio II na Liga de Cambraia. Opôs-se à conquista de Milão por Francisco I e livrou Bréscia dos franceses. Preocupou-se muito com o engrandecimento de sua casa. Teve por esposa Maria de Borgonha, filha de Carlos, o Temerário, e herdeiro dos Estados paternos, que foram disputados por Luís XI. A despeito de suas excentricidades, foi tido como bom administrador. [25] Assumindo a presidência, Pedro Moselano, latinista famoso, professor de grego na universidade, proferiu um discurso — De ratione disputandi — em que estabeleceu as regras do debate conforme a vontade do duque. Toda a assembleia, de joelhos, entoou o Veni, Sancte Spiritus. João Lange dirigiu uma súplica ao Eterno e em seguida entoou o Te Deum. A assistência era numerosa e brilhante, ao jeito da época. Entre os presentes avultavam o duque Jorge, o príncipe-herdeiro, o duque Barnim e o príncipe Jorge de Anhalt. Pedro Moselano, nascido em Proteg, sobre o Mosela, de onde derivou o apelido, era um dos homens mais eruditos do seu tempo. Humanista, ligou-se a Erasmo e aos principais guias da Reforma. Presidindo aos debates de Leipzig, esboçou depois com maestria o perfil dos três antagonistas, que vem reproduzido em vários autores. “Martinho Lutero”, dizia ele, “é de estatura mediana, e tão magro, por causa de seus muitos estudos, que se lhe podem contar os ossos. Está no vigor da idade e dispõe de voz clara e sonora. São incomparáveis os seus conhecimentos e sua compreensão da Sagrada Escritura. Ele a conhece nas pontas dos dedos. Entende suficientemente do grego e do hebraico para emitir o seu juízo na interpretação. É polido e afável na conversação. Tem ao seu dispor uma floresta de palavras e de pensamentos. Mostra firmeza e tem sempre ar de satisfeito, sejam quais forem as ameaças dos adversários, de sorte que somos levados a crer que com o auxílio de Deus é que se abalança a tais empresas. Acusam-no, entretanto, de ser na réplica mais mordaz do que lhe conviria ser como teólogo, mormente quando este teólogo anuncia coisas novas em religião. Karlstadt é mais baixo. Tem o rosto moreno queimado. Sua voz é desagradável. Sua memória não é tão segura como a de Lutero e é mais propenso à cólera. Todavia, ainda que em grau menor, se encontram nele as qualidades que distinguem seu amigo. Eck é de elevada estatura, largo de ombros, sua voz é forte e verdadeiramente alemã. Tem bons pulmões, de sorte que se faria bem ouvir em um teatro e daria mesmo um excelente pregoeiro público. Sua pronúncia, porém, é mais grosseira do que culta. Não dispõe dessa graça que tanto louvam Fábio e Cícero. Sua boca, seus olhos e todo o seu semblante, dão mais ares de um soldado ou de um cortador de gado do que de um teólogo.
Tem excelente memória e, se tivesse também inteligência em proporção, seria perfeito. Mas ele é tardo em compreender e falta-lhe o discernimento, sem o qual se tornam inúteis os outros dons. Assim, quando disputa, amontoa passagens da Bíblia, sem critério e sem escolha, bem como citações dos padres e provas de toda a sorte. Além de tudo é de uma impudência inconcebível. Quando se vê embaraçado, sai do assunto, atira-se sobre outro, apodera-se mesmo, sob diversas expressões, da opinião do antagonista e lhe atribui com destreza admirável o absurdo que ele próprio sustentava”. [26] “Venisse eum barbatum, bullatum, numatum. Ridebo et ego buliam sive ampullam.” [27] Cinco séculos — celebrados no ano da reedição deste texto. [N. do R.] [28] Nessa carta, dirigida ao seu “caro compadre Lucas”, dá a entender que o teriam de ocultar por algum tempo. [29] A carta ao imperador escrita em latim era muito extensa e encerrava uma espécie de profissão de fé. Agradece a bondade usada para com ele e expõe-lhe os motivos que o impediram de se sujeitar à sua vontade e de só se retratar em Worms. Curioso é notar que, em recorte antigo do “Estado de São Paulo”, se diz que a carta de Lutero ao imperador havia sido adquirida por 128 mil francos pelo milionário Pierpont Morgan, a qual se encontrava numa coleção particular alemã, a do conselheiro S. C. Keil, de Leipzig. Contase que Gaspar Sturm não se atreveu a entregar a carta ao imperador. [30] Entre outros, dá testemunho disso Jacó Grimm, o fundador da filologia alemã. Diz ele: “O alto-alemão moderno pode ser chamado o dialeto protestante. [...] Mais do que a nenhum outro, somos devedores a Lutero” (Boemer, p. 332). [31]
Entre os múltiplos tratados que escreveu em Wartburgo, achava-se um sobre a Confissão, que foi dedicado ao Cavalheiro nestes termos: “Ao justo e firme Francisco de Sickingen, meu especial senhor e patrono”. [32] Adriano VI, como o seu discípulo Carlos V, bem quis ver executado o Édito de Worms. Neste sentido fez uma representação à Dieta de Nurembergue em 1522. Vendo, porém, a atitude no momento, usou a Dieta a política de contemporização e pediu um Concílio geral para estudar a questão religiosa. Alguns dos príncipes acharam mesmo que o melhor seria a revogação do Édito. O legado levou a Adriano uma lista de cem queixas ou agravos contra Roma. Dizem alguns que com isso se encurtou a vida do Pontífice. Na Dieta seguinte de 1524, na mesma cidade, o novo papa Clemente VII renovou o pedido de seu antecessor. Votaram a execução do Édito de Worms, com a cláusula, porém, “na medida do possível” — o que permitia elasticidade na prática. [33] O
primeiro a assinar fora o eleitor João, o Constante, vindo em seguida Felipe de Hesse, Jorge de Brandemburgo, Ernesto e Francisco, duques de Luneburgo, Wolfgang de Anhalt, e os representantes das cidades imperiais de Estrasburgo, Nurembergue, Ulm, Constança, Reutlingen, Windsheim, Lindau, Kempten, Memningen, Nördlingen, Heibronn, Ismy, São Galo e Weissenburg. [34] No colóquio de Marburgo o partido luterano estava representado por Lutero,
Melâncton, Jonas, Osiandro, Agrícola e Brenz; os suíços tinham do seu lado Zuínglio, Ecolampadio, Bucer e Hedio, estes dois últimos vindos de Estrasburgo. Consultaram entre si sobre os principais artigos da fé cristã e os alemães convenceram-se de que os suíços tinham ideias perfeitamente evangélicas. [35] Ulrico Zuínglio, nascido em 1.º de janeiro de 1484, no cantão de Saint Gall, veio a ser o Lutero da Suíça alemã. Destinado à Igreja, recebeu ordens sacerdotais em 1506, exercendo as funções de cura em Glaris, Einsielden e Zurich. Nesta última cidade pôs-se à frente do movimento reformador. Como Lutero, teve de enfrentar um novo Tetzel em 1518, na pessoa do franciscano italiano Bernardo Sansão. Zuínglio resistiu-lhe e o mercador de indulgências foi pregar em outra freguesia. Incidentes diversos concorreram para que seu nome figurasse em primeiro plano, ao lado dos principais reformadores. Era homem erudito e notável cultor do humanismo. Muito trabalhou e escreveu no seu curto período de reformador. Foi o primeiro entre eles a organizar um governo eclesiástico regular. [36] Bost (Dictionnaire d’histoire ecclesiastique). [37] “Ao dr. Martinho Lutero e sua esposa Cate von Bora, presente de bodas da nobre Universidade Eleitoral de Wittenberg” — era o teor da inscrição. Köstlein informa que o copo de prata é agora propriedade da Universidade de Greifswald. [38] Lutero não o convidara, receando o desagrado do amigo. [39] Leiam-se, a propósito, os opúsculos de Frederico Hansen, pseudônimo do ilustre publicista paulista, professor Otoniel Mota, sob os títulos Lutero e o padre Leonel Franca; defesa do padre Leonel Franca; Lutero, a Bíblia e o padre Leonel Franca — nos quais os pontos de acusações são minuciosamente analisados. [40] Uma explicação sobre o caso do testamento de Lutero. Querendo deixar a Catarina certos legados e receoso de que a lei os anulasse pelo fato de se tratar de uma antiga freira, não quis recorrer a um notário público. Redigiu um testamento particular, em que figuraram como testemunhas Melâncton, Cruciger e Bugenhagen. Tem a data de 6 de aneiro de 1542. O documento assim termina: “Na esperança de que este testamento será suficiente para demonstrar que esta é a ardente e resoluta vontade do dr. Martinho Lutero, notário de Deus e testemunha no seu Evangelho, vai confirmado por sua mão e marcado com o seu selo” (Köstlin, p. 466). Pouco depois da morte de Lutero, o Eleitor João Frederico ratificou o testamento redigido pelo “notário de Deus”. [41] Boemer, op. cit., p. 194. [42] Em Worms teve o seu primeiro encontro com Lutero. Saudou-o com uma pilhéria mas logo recebeu dele impressão salutar. Três anos depois, de uma conferência com Melâncton resultou sua adesão à Reforma. Em 1526 entrou na Liga de Torgau e tomou parte na primeira Dieta de Espira. Aproveitando-se do Édito de Tolerância, então posto em vigor, foi o primeiro a estabelecer a Reforma em seus domínios, valendo-se da capacidade do antigo franciscano Lamberto de Avinhão. Criou pouco depois, em 1527, a Universidade de Marburgo, cujo quadricentenário foi comemorado há poucos anos. Em 1529, foi um dos príncipes que assinaram o Protesto histórico e na Dieta de Augsburgo de 1530 subscreveu a Confessio Augustana, inspirada por Melâncton. Dele partiu a iniciativa do Colóquio de
Marburgo, que tinha por alvo a união dos teólogos de Wittenberg com os da Suíça. Em 1531 constituiu-se a Liga de Esmalcalde da qual foi o mais valioso colaborador. Foi ela que tomou a defesa dos evangélicos contra a reação de Carlos V e de seu irmão Fernando de Áustria. Uma das vitórias da Liga veio a ser a Paz de Nurembergue em 1532. Arrojo notável de Felipe foi a sua atitude em 1534 em favor do duque Ulrico de Württemberg, despojado dos seus Estados. Obtendo auxílio pecuniário de Francisco I, derrotou Felipe de Hesse a Fernando na batalha de Laufen. O irmão do imperador viu-se obrigado, naquela conjuntura, a assinar um tratado nos interesses da Reforma. Ulrico foi restaurado no ducado, no qual se introduziu a nova doutrina, sendo Brenz um dos próceres do movimento. Felipe em 1535 trouxe o seu concurso ao imperador de cerco de Münster, contra os anabatistas. Em 1539 fez parte da Trégua de Frankfurt e em 1541 deu assentimento ao ínterim de Ratisbona. No ano seguinte em companhia do eleitor da Saxônia penetrou no Brunswick, de onde foi expulso o duque Henrique. A Reforma foi introduzida no ducado, para o qual Bugenhagen elaborou uma constituição evangélica. Tudo isso mostra o seu valor. [43] O prof. Strohl de Estrasburgo assim se exprime sobre o caso: “Este homem tão grande, tão nobre sob certos aspectos, não possuía o segredo de dominar-se. Sua conduta era desregrada muitas vezes. Tratando de pôr em ordem sua vida, teve a ideia de desposar uma dama da corte, embora fosse casado. Pediu com instância aos reformadores que autorizassem esse casamento clandestino, invocando o exemplo de Abraão, de Davi, de Salomão e outros homens de Deus, que haviam tido mais de uma mulher. Por escrúpulo de consciência é que propôs tal solução. Os príncipes católicos da época, Francisco I e Carlos V à frente, não tinham escrúpulos semelhantes em seus conhecidos desregramentos” ( Luther, p. 248). [44] Carlos V assegurou-lhe o perdão, mas teve o landgrave de prometer que impediria a entrada de novos membros na Liga de Esmalcalde. Assim o protestantismo coparticipou da expiação daquela culpa agravada pela falta de energia de Lutero e seus companheiros. Uma das consequências do pacto do imperador com Felipe de Hesse viu-se no caso do ducado de Gueldre. Carlos desejava incorporá-lo aos seus territórios da casa da Borgonha nos Países Baixos. O seu possuidor detinha também o ducado de Cléve e do de Juliers. O de Gueldre era favorável à Reforma e queria entrar na Liga para melhor resistir ao desejo imperial. O duque e senhor de Cléve aparentara-se com Henrique VIII que se desposara com Ana de Cléve, sua irmã, e ele mesmo havia tomado por sua mulher a uma sobrinha de Francisco I, Joana de Albret. Mas o astucioso Carlos recorreu a Felipe, escravo agora de seus desejos, e este impediu a entrada do duque na Liga de Esmalcalde. Assim desarmado, teve o duque de entregar o território apetecido de Gueldre e, ainda mais, de prometer não introduzir a Reforma nos demais territórios. Outras consequências resultaram daí. Hermann von Wied, arcebispo eleitor de Colônia, aguardava apenas a adesão de Cléve para introduzir a Reforma no seu arcebispado. O fracasso de Cléve determinou também o seu. A Reforma perdeu a oportunidade de conquistar o oeste do império — diz Strohl — de penetrar vitoriosamente nos Países Baixos, minados pelo movimento anabatista e, finalmente, de lançar uma ponte entre a Alemanha luterana e a Inglaterra, já separada de
Roma. Era o começo do castigo do landgrave, impotente para acudir aos seus correligionários. O imperador exultava com o ardil empregado. Em 1544 fez as pazes com Francisco I e obteve dele a promessa de não auxiliar os protestantes da Alemanha. Em 1545 cedeu ao turco a Hungria para obter uma trégua. No ano seguinte fez nova aliança com o papa, que também lhe prometeu auxílio. Livre do turco e da França, obteve a neutralidade do próprio genro de Felipe, Maurício de Saxe. Lutero morria nessa ocasião. Supunha Carlos chegada a hora da vitória, tão suspirada por ele. Por isso declarou guerra à Liga de Esmalcalde em 1546 e saiu vitorioso no ano seguinte. Mas a última palavra não havia sido dita e a Maurício cumpriria ainda rir por último. [45] O velho duque Jorge morrera em 1539. Aderente de Roma, protestava, contudo, contra os abusos da corte pontifícia, lia a Bíblia e interessava-se pela tradução feita pelo monge ao qual não podia tolerar. Dizia ele que, depois de concluir o frade a sua tradução, poderia ir para onde lhe aprouvesse. Não deixando herdeiros, devido a haver perdido os dois filhos, tentou passar o ducado ao rei Fernando, mas não o conseguiu, indo cair nas mãos de seu próprio irmão Henrique, o Piedoso, que havia abraçado a Reforma. Uma vez empossado, adotou este, formalmente, a Reforma na Saxônia ducal, ficando assim as duas Saxônias no círculo luterano. Lutero e Justo Jonas foram convidados para as festas agora realizadas e o primeiro teve de pregar na mesma sala do Castelo de Peissenberg onde 20 anos antes discutira com o dr. Eck perante o falecido duque. Dois anos depois morria o novo duque, ficando Maurício de Saxe, seu filho, com a herança. Protestante nominal, m.as de gênio político como seu sogro, o landgrave, ligou-se ao imperador contra os protestantes por um pacto secreto. No desastre da Liga em Mühlberg, teve o prêmio de ir contra os correligionários. Carlos tirou de João Frederico o eleitorado e metade dos seus territórios e deu-os a Maurício. Suplantou agora o ramo albertino da Saxônia ao ramo ernestino que vinha mantendo por muitos anos aquele direito. A outra metade do ramo ernestino doou-a o imperador a seu irmão Fernando. Tanto João Frederico como Felipe de Hesse foram conservados em prisão. [46] Curiosa a acusação de Maurício. Depois de haver por um momento comprometido a causa protestante por suas tergiversações, salvou-a finalmente, não querendo servir às ambições de Carlos V, que três anos depois, desalentado, teve de abdicar, assinando a Paz de Augsburgo, que reconhecia o direito religioso dos luteranos, embora não com a ampla latitude dos católicos. Era o suficiente no momento. [47] Há pouco, um artigo em “O Estado de S. Paulo” sobre assunto musical, dizia o seguinte: “Cabe a Martinho Lutero realmente, a celebridade de popularizar o Lied eclesiástico. Ele, o fixador da lingua alemã do Norte, não se contentou em traduzir a Bíblia para o alemão, mas utilizou-se da musicalidade alemã acordada pelos Mestres Cantores e fez cantar em alemão na sua Igreja os salmos e outros textos litúrgicos. Ele mesmo atuou como compositor e em 1524 aparecia um Choralbuch, cujas melodias em grande parte são obra de Lutero. A simplicidade, a interioridade de seus Lieder religiosos são incomparáveis, e o conhecido Ein’ feste Burg, com muitos outros de seus Lieder, são cantados ainda agora. [48] Sobre a data da composição do Ein’ feste Burg há várias opiniões. A tradicional — que
o ligava à jornada de Worms e que depois foi posta de lado — volta agora a prevalecer segundo críticos modernos. [49] Michel Bréal em uma obra sobre a instrução pública na França, diz o seguinte: “Tornando o homem responsável por sua fé, e colocando a origem dessa fé na Escritura Santa, a Reforma contraia a obrigação de pôr cada um em estado de se salvar pela leitura e pela inteligência da Bíblia. [...] A necessidade de explicar e comentar o Catecismo foi para os mestres uma obrigação de aprender a expor uma ideia e decompô-la em seus elementos. O estudo da língua materna, e do canto, se ligava à leitura da Bíblia traduzida em alemão por Lutero e ao ensino religioso. [...] A Reforma continha pois em germe toda uma revolução pedagógica; ela punha ao serviço da instrução o interesse religioso, associava o saber e a fé, e eis porque há três séculos as nações protestantes marcham à frente da humanidade no que diz respeito à instrução primária” ( História da pedagogia, compilada por um professor, 1914, p. 67-8). [50] A despeito da teoria de Lutero sobre a separação entre os dois poderes, na prática isso não se realizou muito claramente. A vitória na Guerra dos Camponeses fortaleceu os príncipes que gradualmente se foram ingerindo nos negócios eclesiásticos, no sentido oposto ao das pretensões romanistas. Cooperando no estabelecimento da Reforma, providenciaram sobre a educação religiosa e os bens da Igreja. Por vezes levantou-se a acusação de que aplicavam eles em seu proveito os bens confiscados em vez de os destinarem a obras de beneficência e à difusão da instrução. O abuso do poder trouxe consequências desagradáveis aos reformadores. O poder secular até certo ponto interferia sobre as igrejas, de modo que as congregações não eram livres na escolha de seus pastores. Havia também o sistema de visitas pastorais por magistrados ou nobres preeminentes, que relatavam às autoridades sobre o estado espiritual. Na Saxônia, o Eleitor nomeava os pastores. Superintendentes foram nomeados para a visitação pastoral. Observa Schaff que estas visitas eram repetidas de tempos a tempos sob o cuidado de superintendentes regulares e de consistórios que formavam os mais altos Concílios eclesiásticos debaixo do soberano como bispo supremo. [51] A Bula das maldições, a Bula In coena Domini, que saiu pela primeira vez em 1372, sob Gregório XI, em forma bastante simples, era lida na quinta-feira santa até os dias de Clemente XIV, “ingere-se na autonomia do Estado; invade-lhe os direitos de soberania para cobrar tributos, instituir pedágios, exercer justiça. Pretende impor penalidade aos crimes contra a religião; ameaça de excomunhão e anátema os que praticarem tais atos sem especial autorização do papa, devendo essas penas ferir não o chefe de Estado somente, mas todo o corpo dos funcionários, até o escrivão, os esbirros, o algoz. De semelhantes censuras, salvo em artigo de morte, só ao papa cabe o direito de dispensar” (Ruy Barbosa, O papa e o concílio, p. 629). [52] A propósito das obras do demônio, diz Lutero nas Tirchreden (DLXXIV): “Há inúmeros demônios nas árvores, nas águas, no deserto e nos lugares pantanosos prontos a danificar e maltratar o povo. Alguns há também nas nuvens que causam saraivas, relâmpagos e trovões e envenenam o ar, os pastos e os terrenos”. [53] Assim se expressou um jesuíta, levado neste ponto pelo amor à verdade. Entretanto, há