LEITURA E ENSINO
EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
Reitor Vice-Reitor Diretor da Eduem Editor-Chefe da Eduem
Prof. Prof. Dr. Dr. Décio Sperandio Prof. Prof. Dr. Dr. Mário Luiz Neves de Azevedo Prof. Prof. Dr. Dr. Ivanor Nunes do Prado Prado Prof. Prof. Dr. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini CONSELHO EDITORIAL
Presidente Prof. Prof. Dr. Dr. Ivanor Nunes do Prado Prado Editor Associado Prof. Prof. Dr. Dr. Ulysses Cecato Vice-Editor Associado Prof. Prof. Dr. Dr. Luiz Antonio de Souza
Editores Cientícos Prof. Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Prof. Dr. Clóves Cabreira Cabrei ra Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Elieze r Rodrigues Rodrigue s de Souto Prof. Dr. Evaristo Evarist o Atêncio Atênc io Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Prof. Prof. Dr. Dr. João Fábio Bertonha Bertonha Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini Prof. Dr. Manoel Messias Messi as Alves da Silva Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Prof. Dr. Reginaldo Benedito Benedi to Dias Prof. Dr. Ronald José Barth Pinto Profa. Dra. Rosilda das Neves Alves Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis EQUIPE TÉCNICA
Projeto Gráco e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka Fluxo Editorial Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanamati Hundzinski Hundzins ki Vania Cristina Scomparin Edilson Damasio Artes Grácas Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing Marcos Cipriano da Silva Comercialização Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima
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FORMAÇÃO DE PROFESSORES - EAD
RENILSON JOSÉ MENEGASSI (ORGANIZADOR)
Leitura e Ensino 2. ed.
Maringá 2010
19
Coleção Formação de Professores - EAD Apoio técnico: Rosane Gomes Carpanese Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos Edição, Produção Editorial e Capa: Carlos Alexandre Venancio Júnior Bianchi Eliane Arruda
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
L533
Leitura e ensino / R enilson José Menegassi. 2. ed. Maringá : Eduem, 2010. 190 p. ; 21 cm. ( Formação de Professores - EAD; v. 19). ISBN 978-85-7628-285-3 1. Leitura – Estudo e ensino. 2. Leitura – Conceitos. 3. Ensino de leitura – Estratégias. 4. Literatura para crianças – Narrativas. I. Menegassi, Renilson José, org. CDD 21. ed. 372.4
Copyright © 2010 para o autor Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2010 para Eduem.
Endereço para correspondência:
Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná Fone: (0xx44) 3011-4103 / Fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br /
[email protected]
S umário Sobre os autores
> 5
Apresentação da coleção
> 7
Apresentação do livro
> 9
CAPÍTULO 1 Conceitos de leitura
> 15
Renilson José Menegassi / Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
CAPÍTULO 2 Estratégias de leitura
> 41
Renilson José Menegassi
CAPÍTULO 3 A produção de sentidos na aula de leitura
> 65
Lílian Cristina Buzato Ritter
CAPÍTULO 4 Avaliação de leitura Renilson José Menegassi
CAPÍTULO 5 Literatura para crianças: a narrativa
> 87 > 109
Rosa Maria Graciotto Silva
CAPÍTULO 6 A leitura de poesia na escola
> 139
Mirian Hisae Yaegashi Zappone
CAPÍTULO 7 Perguntas de leitura Renilson José Menegassi
> 167 3
S obre os autores CRISTIANE MALINOSKI PIANARO ÂNGELO Professora da Universidade do Centro-Oeste (Unicentro). Graduada em Letras (Unicentro). Mestre em Letras (UEM).
LÍLIAN CRISTINA BUZATO RITTER Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras (UEM). Mestre em Linguística Aplicada (UEM).
MIRIAN HISAE YAEGASHI ZAPPONE Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras (UEM). Mestre em Letras (Unesp). Doutora em Teoria da Literatura (Unicamp).
RENILSON JOSE MENEGASSI Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduado em Letras (UEM). Mestre em Linguística (UFSC). Doutor em Letras (Unesp).
ROSA MARIA GRACIOTTO SILVA Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduada em Letras (Feeclep). Mestre em Letras (USC). Doutora em Letras (Unesp).
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A presentação da Coleção A coleção Formação de Professores - EAD teve sua primeira edição publicada em
2005, com 33 títulos nanciados pela Secretaria de Educação a Distância (SEED) do Ministério da Educação (MEC) para que os livros pudessem ser utilizados como material didático nos cursos de licenciatura ofertados no âmbito do Programa de Formação de Professores (Pró-Licenciatura 1). A tiragem da primeira edição foi de 2500 exemplares. A partir de 2008, demos início ao processo de organização e publicação da segunda edição da coleção, com o acréscimo de 12 novos títulos. A conclusão dos trabalhos deverá ocorrer somente no ano de 2012, tendo em vista que o nanciamento para esta edição será liberado gradativamente, de acordo com o cronograma estabelecido pela Diretoria de Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que é responsável pelo programa denominado Universidade Aberta do Brasil (UAB). A princípio, serão impressos 695 exemplares de cada título, uma vez que os livros da nova coleção serão utilizados como material didático para os alunos matriculados
no Curso de Pedagogia, Modalidade de Educação a Distância, ofertado pela Universi dade Estadual de Maringá, no âmbito do Sistema UAB. Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reexão que foi pensado para uma disciplina especíca do curso, mas em nenhum deles seus organizadores e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e práticas construídas historicamente no que se referem aos conteúdos apresentados. O que buscamos, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura, da reexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a formação do Pedagogo na atualidade. Por isso mesmo, esta coleção somente poderia ser construída a partir do esforço coletivo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Esta-
dual de Maringá (UEM) e das instituições que têm se colocado como parceiras nesse processo. Neste sentido, agradecemos sinceramente aos colegas da UEM e das demais insti tuições que organizaram livros e ou escreveram capítulos para os diversos livros desta coleção. Agradecemos, ainda, à administração central da UEM, que por meio da atuação direta da Reitoria e de diversas Pró-Reitorias não mediu esforços para que os traba lhos pudessem ser desenvolvidos da melhor maneira possível. De modo bastante 7
LEITURA E ENSINO
especíco, destacamos o esforço da Reitoria para que os recursos para o nanciamento desta coleção pudessem ser liberados em conformidade com os trâmites burocráticos e com os prazos exíguos estabelecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Internamente enfatizamos, ainda, o envolvimento direto dos professores do De-
partamento de Fundamentos da Educação (DFE), vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCH), que no decorrer dos últimos anos empreenderam esforços para que o curso de Pedagogia, na modalidade de educação a distância, pu desse ser criado ocialmente, o que exigiu um repensar do trabalho acadêmico e uma modicação signicativa da sistemática das atividades docentes. No tocante ao Ministério da Educação, ressaltamos o esforço empreendido pela
Diretoria da Educação a Distância (DED) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES) e pela Secretaria de Educação de Educação a Distância (SEED/MEC), que em parceria com as Instituições de Ensino Superior (IES) conseguiram romper barreiras temporais e espaciais para que os convênios para a li beração dos recursos fossem assinados e encaminhados aos órgãos competentes para aprovação, tendo em vista a ação direta e eciente de um número muito pequeno de pessoas que integram a Coordenação Geral de Supervisão e Fomento e a Coordenação Geral de Articulação. Esperamos que a segunda edição da Coleção Formação de Professores - EAD possa contribuir para a formação dos alunos matriculados no curso de Pedagogia, bem como de outros cursos superiores a distância de todas as instituições públicas de ensino superior que integram e ou possam integrar em um futuro próximo o Sistema UAB. Maria Luisa Furlan Costa Organizadora da Coleção
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A
presentação do livro
PARA QUE LER? Minha lha de sete anos estava realizando sua tarefa da primeira série, no livro de Português, e começou a reclamar sobre o conteúdo, perguntando-me: “Para que essas perguntas? Não é melhor só ler o texto?” Inicialmente, indaguei-lhe o que estava perguntando, pois não conseguia entender. Sua resposta foi pronta, porém, através de duas outras perguntas: “Para que perguntas, se a resposta está no texto?! Não é melhor ler somente o texto?!”. Para compreender essa situação, transcrevo a tarefa que a pequena realizava: Essa notícia apareceu em uma revista. Leia:
Cachorro Ciclista Cachorro também sabe pedalar. No Japão, o dálmata Momotar vem encantando adultos e crianças com suas habilidades em cima de uma bicicleta. Momotar tem 3 anos e seu dono garante que o animal aprendeu a pedalar em apenas seis semanas. O dálmata ciclista virou até estrela de televisão, parcipando, constantemente, de programas (Revista Zá, ano I, n. 9 abril 1997, p. 9).
INTERPRETAÇÃO ORAL Procure, com seu professor e seus colegas, a resposta para cada pergunta abaixo. Voltem à notícia para encontrar a informação e anotem a resposta na linha diante de cada pergunta: • Em que revista foi publicada esta notícia? Zá • Em que ano foi publicada a notícia? 1997 • O que o cachorro sabe fazer? Pedalar, andar de bicicleta • Em quanto tempo ele aprendeu a fazer isso? Seis semanas • Qual é a raça do cachorro? Dálmata • Qual é o nome do cachorro? Momotar • Em que país o cachorro vive? No Japão • Quantos anos o cachorro tinha quando a notícia foi publicada? 3 anos • Quantos anos o cachorro tem agora, quando você está lendo a notícia? A reposta depende do ano em que o livro esteja sendo usado: somar o número de anos transcorridos desde 1997 aos 3 anos que o cachorro tinha nesse ano. (SOARES, Magda. Português : uma proposta para o letramento: ensino fundamental. São Paulo: Moderna, 1999. v. 1. p. 116-117.).
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LEITURA E ENSINO
Depois de ler as questões, percebi que minha lha tinha razão. Sua professora do primeiro ano, assim como todas as professoras da Educação Infantil que estiveram desenvolvendo a sua leitura, está fazendo um trabalho interessante de formação e de-
senvolvimento do leitor com criticidade, a partir das noções do sociointeracionismo. Contudo, o exercício do livro didático empregado, considerado um dos melhores na época (em 2005), mostra à criança que a leitura é algo sem sentido, pois basta buscar no texto as respostas certas e copiá-las para ter a atividade completa. Como minha lha aprendeu a ler, com a professora, o texto a partir de sua idiossincrasia, construindo
sentidos próprios, a questionar o texto, a interagir com o autor, a realizar um diálogo com o texto e consequentemente com seu autor, ela percebeu que as perguntas apre sentadas não faziam sentido algum, ou melhor, não lhe possibilitavam a construção de um novo sentido, não a faziam trabalhar com a leitura sobre o texto. Após essa reexão, voltei-me para minha lha e perguntei: “O que pode ser feito, então?”. Sua resposta foi novamente pronta: “Ler o texto!”. Foi o que zemos. Jun tos, conversamos sobre o texto, retirando dele informações que estavam explícitas e implícitas, criando, durante esse processo, uma série de perguntas, que ora eu fazia, ora ela me fazia, sempre buscando respostas, servindo como uma mediação para a
manutenção de nossas interações, para a produção de um diálogo em que estavam presentes três atores: a criança, o texto Cachorro Ciclista e o pai. Ao nal, depois de encontrarmos juntos muitas informações relevantes ao texto, à pequena e a mim, ela ainda me disse: “Viu, é assim que se lê!”. Com essa descrição, posso armar que nossos professores do primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental, assim como também os professores de Educação Infan-
til e do Ensino Médio, estão buscando construir um ensino de leitura mais próximo da realidade necessária à sociedade atual. As crianças não aceitam mais tratamentos su perciais para o texto, em que perguntas de copiação são apresentadas para que pre encham um espaço mecanicamente, construindo uma inaptidão à leitura, formando leitores que se tornem eleitores apenas, que saibam ler o que as instâncias ideológicas superiores desejam que leiam para poder votar no candidato certo. Pelo contrário, elas trazem para a sala de aula suas leituras do mundo externo à escola e desejam que nós professores possamos ajudá-las a desenvolver a leitura de modo ecaz. Para compreender como esse processo de leitura se efetiva na sala de aula, auxiliando o professor de Ensino Fundamental a conhecer, entender, ensinar e desenvolver a
leitura nas crianças, este livro apresenta uma série de capítulos que discutem muitos aspectos que envolvem o ensino e a aprendizagem de leitura, permitindo ao aluno de Educação a Distância estudar e compreender melhor a realidade da educação bra sileira atual, nos seus aspectos teóricos e práticos. Os textos foram produzidos por 10
professores-pesquisadores envolvidos diretamente com a formação do leitor, abordan do questões sobre a língua e a literatura empregadas no Brasil, a partir do olhar da leitura na escola. Dessa forma, este livro está organizado em uma sequência que permite ao aluno ler os capítulos em uma ordem que lhe facilitará os processos de compreensão e de ensi no e aprendizagem da leitura, a partir de referências às situações de ensino de língua materna. Assim, sugerimos a leitura de cada capítulo na ordem de suas apresentações. O capítulo Conceitos e leitura, de Renilson José Menegassi (UEM) e Cristiane Ma linoski Pianaro Ângelo (Unicentro), apresenta uma visão panorâmica dos conceitos de leitura trabalhados no Brasil. O texto discute a leitura a partir de quatro perspectivas diferentes, que envolvem variadas posições da Linguística, da Linguística Aplicada e de suas vertentes de pesquisa: a perspectiva do texto; a perspectiva do leitor; a perspecti va interacionista; a perspectiva discursiva. Cada conceito é explicado a partir de exemplos que elucidam e caracterizam suas posições teóricas. Ao nal, o capítulo ressalta a importância de o professor conhecer os conceitos que perpassam a escola brasileira, para dominar e aplicar a posição teórico-prática que embasa muitas atividades de lei tura atuais propostas nos materiais didáticos empregados em sala de aula. O capítulo Estratégias de leitura , de Renilson José Menegassi (UEM), apresenta o que são estratégias de leitura a partir da concepção interacionista de leitura, discutin do sua relação com o ensino. Para elucidar o processo, é oferecido um exemplo de leitura com as estratégias em uma história em quadrinhos, para ilustrar como proceder ao ensino de estratégias de leitura juntamente com alunos. Além disto, o texto também apresenta uma discussão acerca das estratégias de compreensão que ocorrem no pro cesso de leitura, enfatizando-se o antes, o durante e o depois na leitura. O capítulo A produção de sentidos na aula de leitura, de Lílian Cristina Buzato Rit ter (UEM), apresenta as análises de aulas de leitura efetivadas no Ensino Fundamental, reetindo acerca dos porquês de procedimentos metodológicos tradicionais se mani festarem tão presencialmente na sala de aula. Para isto, a autora descreve e traz partes de gravações realizadas durante aulas de leitura, que demonstram a formação do leitor no sistema educacional brasileiro, ou como ela mesma emprega: “a formação de um pseudo-leitor”. Durante a discussão dos procedimentos tradicionais empregados pela professora, o capítulo caracteriza de forma objetiva os pontos que todo professor deve atentar durante o planejamento, a execução e a avaliação de suas aulas de leitura. Ao nal, mantendo a objetividade como sua característica, a autora apresenta os aspectos metodológicos adequados à sala de leitura. Além de apresentar o que tradicionalmente se faz em sala e o que seria o ade quado a uma aula de leitura, a autora convida o leitor, um professor em formação 11
LEITURA E ENSINO
universitária, a reetir sobre sua própria prática de leitura e de docência de leitura, que é o princípio básico de qualquer transformação: a auto-reexão. O capítulo Avaliação de leitura, de Renilson José Menegassi (UEM), apresenta uma discussão relativa ao que é a avaliação formativa em leitura, enfocando-a como um instrumento para a formação do leitor na escola. Também são apresentadas várias atividades relacionadas à avaliação de leitura, em uma perspectiva interacionista, que podem ser utilizadas em sala de aula. Dois pontos são enfatizados no texto: a discussão relativa à produção de perguntas na avaliação de leitura e a reexão sobre a leitura em voz alta na sala de aula de Ensino Fundamental. O capítulo Literatura para crianças: a narrativa , de Rosa Maria Graciotto Silva (UEM), aborda um panorama sobre a Literatura Infantil, abrangendo as fábulas, os contos de fadas, as histórias de Monteiro Lobato e de autores mais atuais, como Ana Maria Machado. Destacamos a maneira didática da autora que, em sua exposição, con ta a história da Literatura Infantil, sendo coerente com as análises de narrativas que evidencia ao longo do texto. Além de elucidar os caminhos da Literatura Infantil, a autora apresenta uma comparação analítica da história de Chapeuzinho Vermelho, envolvendo autores da Literatura Universal e da Literatura Brasileira. Também mostra ao leitor como analisar uma obra de literatura para crianças a partir de reexões refe rentes à história Menina bonita de laço de ta , de Ana Maria Machado. Percebemos que o texto é rico em informações, mostrando a importância da Literatura Infantil na formação e no desenvolvimento do leitor no Ensino Fundamental. O capítulo A leitura de poesia na escola, de Mirian Hisae Yaegashi Zappone (UEM), apresenta a poesia como uma forma de ler, sentir e fruir o mundo, sempre a partir da
formação do leitor na escola, muitas vezes esquecida e não compreendida como traba lho de leitura e formação do cidadão brasileiro. Assim, no decorrer do texto, a autora explica a importância de se ler poesia para e com os alunos do Ensino Fundamental, enfatizando os modos como ela foi e é lida na escola brasileira. Para ilustrar uma aná lise de como proceder ao trabalho com a poesia em sala de aula, o texto apresenta, inicialmente, um poema de Carlos Drummond de Andrade, Os Cantores Inúteis, em
que analisa cada um dos procedimentos literários necessários a sua leitura. Além disso, a autora especica minuciosamente a produção de leitura de poesias infantis a partir de dois exemplos comentados de poemas: Pagodeira, de José Elias, e Aula de leitura, de R. A zevedo, em que analisa, junto com o leitor, cada elemento necessário ao conhe cimento do professor para o trabalho de leitura de poesia com o aluno. O capítulo Perguntas de leitura, de Renilson José Menegassi (UEM), discorre sobre como as perguntas de leitura, empregadas como instrumentos de avaliação, são consi deradas em cada uma das perspectivas de leitura empregadas em sala de aula, sempre 12
através de exemplos recolhidos de situações naturais de ensino de língua materna. Também discute uma proposta de trabalho de produção de perguntas de leitura a par tir da concepção interacionista, em que se consideram a ordenação e a sequenciação das questões, com o objetivo de levar o leitor a um desenvolvimento no seu processo de leitura. Ademais, o texto também enfoca a importância de se ter respostas comple tas às perguntas, para que a relação leitura-escrita se estabeleça de forma natural e dialógica na sala de aula. A partir da leitura e estudo dos capítulos apresentados, o aluno de Educação a Dis-
tância conseguirá compreender o processo de leitura estudado e proposto atualmente no Brasil, possibilitando-lhe conhecimentos necessários à implementação de ensino e aprendizagem de leitura mais condizente à realidade em que atua ou atuará, ofere cendo-lhe uma série de conceitos, exemplos e reexões que auxiliam na compreensão de seu próprio processo de leitura, enquanto leitor e professor, para permitir uma compreensão mais apurada do processo de leitura dos alunos. Neste sentido, após a apresentação deste livro, é possível voltarmos à questão que o abre: Para que ler?, res pondendo que é para formar leitores-cidadãos competentes (note que é uma palavra só, pois espera-se que juntas formem um ser humano melhor) que levem o Brasil e os brasileiros a uma melhoria na educação, e, consequentemente, à constituição de um futuro certo às nossas crianças. Renilson José Menegassi Organizador
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Conceitos de leitura Renilson José Menegassi / Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
A história do ensino de leitura na escola brasileira demonstra que vários conceitos de leitura perpassam pelas salas de aulas. Aqui, são expostos os principais conceitos trabalhados no ensino de língua materna, para que o professor em formação saiba identicar, no material didático, no planejamento das aulas e nas práticas cotidianas da sala de aula qual conceito de leitura está subsidiando o ensino na situação especíca em que se encontra. O desenvolvimento de teorias sobre leitura está atrelado ao desenvolvimento da própria Linguística, como a ciência que estuda a linguagem humana articulada, no caso a fala e a escrita. A princípio, o objeto de investigação eram as unidades isoladas da língua, como os fonemas, os sons, as palavras, as frases; com o desenvolvimento das pesquisas das ciências da linguagem, enfocando aqui todas as vertentes que surgiram a partir da Linguística, como a Psicolinguística, o Gerativismo, a Sociolinguística, a Pragmática, a Linguística Aplicada, a Análise do Discurso, a Linguística Textual, para ci tarmos apenas algumas, o foco foi alterando-se até chegar à concepção de texto como unidade comunicativa e às condições sócio-históricas-ideológicas em que o texto é produzido, proposta em voga na atualidade como característica principal do conceito de leitura difundido nas escolas brasileiras. Kato (1986) apresenta, ainda que sumariamente, um panorama das tendências que exerceram inuência no modo de se conceber a leitura ao longo do século XX. Na lin guística estruturalista, pensa-se a leitura como decodicação, palavra que na teoria da leitura signica passar do código escrito para o código oral, isto é, ler na escrita a pala vra casa e produzir na fala a palavra [ caza], com som de [z], sabendo-se que se escreve com s, em uma transposição da palavra escrita para a palavra falada. Acredita-se que, uma vez realizada essa decodicação, de palavra em palavra, chega-se sem problemas ao conteúdo, isto é, o leitor apenas decodicando a palavra, conseguiria, por um dis positivo mágico existente em seu cérebro, juntar todas as palavras, mesmo as que não conhece, dando ao texto um conteúdo como o pretendido pelo autor que o produziu. Durante muitos anos esse foi o conceito de leitura difundido nas escolas brasileiras. 15
LEITURA E ENSINO
Um segundo conceito surge quando se constata a importância do conhecimen to lexical do leitor para identicar a palavra, ou seja, o conhecimento vocabular das palavras que o leitor tem na memória sobre a língua que utiliza no dia a dia. O leitor é considerado, a partir daí, como “antecipador da palavra que vai ler” (KATO, 1986, p. 61), uma vez que já tem internalizada na memória a palavra, basta antecipar o seu signicado no contexto em que ocorre. Na linguística gerativista (uma das correntes da Linguística, conhecida como Gerati vismo ou Transformacionalismo, que pregava o conceito de geração de palavras, frases e sentenças pelos indivíduos falantes de uma língua a partir de mecanismos especícos de aquisição de linguagem daí advém o nome gerativismo-geração), a preocupação desloca-se para o nível da sentença. Os investigadores começaram a perceber que não basta o leitor conhecer previamente a palavra, mas que é preciso considerar o contexto linguístico em que a sentença é produzida, onde ocorre a palavra no texto. Entretanto, logo se observa que o contexto de se estudar o texto a partir da sen tença apenas não parece suciente. Surge, então, a linguística textual, que se opõe às correntes anteriores ao tomar como objeto particular de investigação não mais a palavra ou a frase, retiradas, muitas vezes, de seu contexto de produção, mas sim o
texto – unidade básica de manifestação da linguagem (não podemos esquecer que o homem não produz apenas palavras isoladas; ele produz textos, que podem ser expressos apenas por uma palavra). Por exemplo, ao passar pelo pátio da escola, você observa dois alunos juntos, sem dizer uma palavra um ao outro; de repente, um de les vira para o colega e diz em alta voz: -Sai!; essa única palavra carrega em si todo um texto, em função da situação em que foi produzida, da intenção do aluno que a disse ao colega e do aceite que este teve a respeito do texto emitido. Neste sentido, a preocupação para a linguística textual volta-se para os princípios de constituição do texto (o que faz com que o texto seja um texto, que são os elementos já comentados: a situação, a intenção, o aceite, enm, o contexto de sua realização). Além disso, dentro dessa perspectiva textual, outra corrente surgiu, considerando que havia necessidade de se levar em conta as informações textuais e extratextuais (aquelas que não estão di retamente na matéria do texto, porém são consideradas no contexto de sua produção
e de sua recepção em função da posição social do autor e do leitor) que interferem na construção do signicado. Diz-se construção e não mais decodicação, porque se compreende que o signicado não está nos dados linguísticos do texto, mas provém do leitor, de suas experiências, da sua capacidade de predizer e conrmar as hipóteses. Por sua vez, a pragmática, outra corrente linguística que inuencia os estudos atu ais sobre a linguagem articulada do homem, aparece sublinhando a leitura como um processo de interação entre o leitor e o texto. Nesse processo, o leitor, através das 16
informações explícitas e implícitas que o texto fornece, procura alcançar os objetivos e as intenções do autor. Então, diferentemente de outras tendências linguísticas preocu padas exclusivamente com que o texto diz, a Pragmática atenta-se ao por que o autor diz o que diz. Cabe salientar, ainda, a inuência da análise do discurso no modo de pensar a
Conceitos de leitura
leitura, pois ela traz para o bojo das discussões a historicidade na constituição do dis-
curso, isto é, considera-se para o estudo o momento sócio-histórico de leitura tanto do autor quanto do leitor. Nessa perspectiva, o texto sozinho não faz sentido, ele precisa de um leitor, que tem uma história de vida, que vive em uma determinada camada da sociedade, que tem crenças e culturas certas, as quais são trazidas para o texto no mo mento da leitura. Esse conceito nega a intencionalidade do autor simplesmente, como se propunha nos conceitos anteriores, já que, para ela, é a ideologia que determina a conguração dos sentidos. Portanto, a pergunta que deve ser feita é “Como o texto signica?”, e não mais a pergunta tradicional: “O que o autor quis dizer no texto?”. Em uma perspectiva psicolinguística, Solé (2003) constata que, embora as formula ções teóricas que atribuem um papel importante ao leitor e a seu conhecimento prévio estejam ganhando destaque, as posturas que dão ênfase ao texto e que veem a leitura como um processo de identicação de sinais grácos ainda persistem na concepção escolar de ensino de leitura, não podendo ser desconsiderada. Desta forma, “coexis tem”, no domínio das pesquisas e da prática escolar, diferentes perspectivas de leitura que, doravante, são objeto de um estudo mais aprofundado: a perspectiva do texto, a perspectiva do leitor, a perspectiva interacionista e a perspectiva discursiva. Os pressupostos teóricos que amparam cada uma dessas diferentes perspectivas de leitura envolvem uma visão diferente do que consiste o ato de ler e orientam e/ou justicam determinadas propostas didáticas em torno da compreensão da leitura, e da formação e do desenvolvimento do leitor na escola brasileira.
A PERSPECTIVA DO TEXTO Os estudos de leitura sob a perspectiva do texto centralizam-se no sistema linguísti co, correspondendo às teorias de decodicação – de base estruturalista (corrente teó rica que propunha o estudo da língua a partir da sua estrutura, isto é, tudo deveria ser estudado e produzido a partir de uma estrutura certa, já marcada na língua), portanto uma visão imanentista da língua, com uma nalidade especíca que reduz o estudo da língua a um m único – que concebe o ato de ler como um processo de decodicação de letras em sons, e a relação destes com o signicado. Um dos teóricos que melhor representa essa acepção é Gough (1976 apud KLEIMAN, 1989), através de seu “modelo de processamento serial”, o qual tem como objetivo apresentar a sequência de eventos 17
LEITURA E ENSINO
que ocorrem em um segundo de leitura, com vistas a sugerir a natureza dos processos que unem esses eventos. Para Gough, o leitor não é um adivinhador, pois ele caminha pela sentença, letra por letra, palavra por palavra. É como se a simples identicação dos sinais grácos garantisse a leitura eciente, reduzindo-se a língua a uma simples identicação de letras, de palavras, de frases. Assim, a concepção de leitura sob a perspectiva do texto constitui um modelo de
processamento ascendente (“bottom-up”, em inglês, como é muito conhecido na li teratura sobre leitura), isto é, um processamento que vai do texto para o leitor, como se ascendesse, considerando-se a posição do texto que normalmente está abaixo dos olhos. Esse modelo supõe que o leitor parte dos níveis inferiores do texto para suces sivamente compor as diferentes unidades linguísticas (as letras vão formando palavras, as palavras frases e as frases parágrafos) e chegar aos níveis superiores do texto. De acordo com Colomer e Camps (2002), nesse processo o leitor decodica os signos, oraliza-os mesmo que na forma subvocálica (em voz muito baixa, quase inaudível, como se estivesse rezando muito baixo), ouve-se pronunciando-os, recebe o signi cado de cada unidade e une-os uns aos outros para que a sua soma lhe apresente o signicado global. Leffa (1996) acrescenta que a visão exerce um papel fundamental nessa acepção de leitura. O leitor recebe o signicado através dos olhos. Seu raciocínio é conduzido pelas informações que entram pelos olhos. Bezerra (2003) expõe que essa abordagem teórica inuencia no ensino de língua materna desde os primeiros anos de escolaridade até o nal do Ensino Médio. Os pro cessos ascendentes de leitura alicerçam os métodos de alfabetização que se preocu pam com letras, sílabas, para se chegar às palavras e só então poderem ser lidas; estão na base de propostas de leitura dos textos apresentados nos manuais didáticos, os
quais solicitam respostas a um questionário com perguntas prontamente identicadas no texto; estão na orientação que se dá ao aluno para que ele consulte um dicionário ao encontrar no texto alguma palavra desconhecida; e estão, também, na postura de professores que, por exemplo, solicitam ao aluno leitura em voz alta, para aprender a decodicar com rapidez e entonação adequada. São exemplos dessa concepção: • Perguntas prontamente identicadas no texto: Quais são as personagens da história lida? João e Maria Onde eles foram deixados pelo pai? Na oresta • Consulta ao dicionário: No texto aparece a palavra ‘impressão’; procure no dicionário o que ela signica.
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• Leitura em voz alta: Leia o texto em voz alta para o seu professor e os colegas. Lembre-se de dar uma entonação adequada, pois eles estão prestando atenção em sua leitura.
Conceitos de leitura
Kleiman (1996) também examina algumas práticas escolares fundamentadas na concepção ascendente. Uma delas observa o texto como um conjunto de estruturas gramaticais que apresenta signicado e função independentemente do contexto em que se inserem. Desta forma, orienta-se o aluno para uma leitura gramatical, já que o texto torna-se pretexto para a proposição de diversas atividades gramaticais como, por exemplo, encontrar sujeito e predicado, retirar substantivos, copiar palavras do texto. Acredita-se, portanto, que o aprendizado da teoria gramatical confere ao leitor maior competência na leitura do texto. Por exemplo, Retire do texto dois substantivos masculinos singulares. Menino e gato. Copie do texto um substantivo masculino, um feminino e um masculino plural. Cachorro, menina, meninos. Outra prática aponta o texto como um conjunto de palavras que são o veículo das mensagens e informações. Nessa perspectiva, o aluno é orientado “para uma leitura de palavras: ‘Vamos ler palavra por palavra para depois interpretar’ , como é também comum solicitar um produto mensurável desse processo de domesticação das palavras ‘Qual a mensagem do texto?’ (KLEIMAN, 1996, p. 18), em que o professor
pode, por meio das respostas que surgem dessa pergunta, avaliar o que os alunos compreenderam do texto que está trabalhando. Nessa atividade, surge um problema muito sério: como um aluno pode encontrar a mensagem do texto logo após a sua leitura silenciosa ou em voz alta, sem antes poder conversar, interagir com os colegas e o professor sobre o conteúdo que acabou de ler? Aqui, a leitura tem a função especíca de servir como avaliação, como mensuração de uma decodicação, normalmente oral, para saber se o aluno “entendeu” o texto, isto é, se ele consegue “repetir as ideias do texto”, para mostrar sua leitura. Assim, observamos que não há leitura com o objetivo de produção de sentido, apenas de identicação do conteúdo do texto, em um pro cesso mecânico. Ainda a visão de leitura como uma atividade de decodicação encontra sustentação na prática escolar. Dessa forma, enfatiza-se “uma série de automatismos de identica ção e pareamento das palavras do texto com as palavras idênticas numa pergunta ou comentário” (KLEIMAN, 1996, p. 20). Quer dizer, para o aluno responder a uma per gunta referente ao conteúdo do texto, basta passar os olhos pela superfície linguística 19
LEITURA E ENSINO
e encontrar partes que repitam as palavras presentes na pergunta. Por exemplo: Quantos anos Marina fará? 10 anos. O que terá na sua festa de aniversário? Bolo, balões, brigadeiro e refrigerante. A perspectiva do texto na leitura tem fomentado várias críticas também de outros
autores. Leffa (1999) aponta três razões principais: ênfase no processamento linear da leitura; defesa da intermediação do sistema fonológico da língua para acesso ao signicado; valorização das habilidades de nível inferior, como reconhecimento de letras e palavras. A prática demonstra que não se lê uma enciclopédia da mesma maneira que se lê um romance, como não se lê um manual de instruções para montar um aparelho eletrônico do mesmo modo que se lê um poema. Há diferentes modos de ler, confor me variam os gêneros e os suportes textuais e os objetivos do leitor. Portanto, ape nas eventualmente ocorre extração linear de signicados, isto é, de maneira explícita como está no texto. Colomer e Camps (2002) esclarecem que não há necessidade de ler em voz alta para captar o signicado do que se lê. Testes comprovam que se lê um texto em um tempo muito mais breve do que exigiria sua exposição oral, mesmo que fosse subvocá lica (com voz muito baixa, como se estive rezando, movimentando os lábios, produzin do um ruído de voz apenas). A possibilidade de leitura compreensiva de um texto, de maneira silenciosa, apenas com os olhos, situa-se mais ou menos em 400 palavras por
minuto, enquanto a emissão oral no mesmo período restringe-se a cerca de 250 pala vras por minuto, muito mais lenta do que na leitura silenciosa. As autoras acrescentam que na escola a ênfase na leitura em voz alta e a exigência de exatidão fazem com que o aluno se habitue a decifrar mecanicamente, sem procurar entender e construir o
sentido, o que prejudica a sua formação e o seu desenvolvimento como leitor. Outra crítica que se pode impingir à perspectiva textual refere-se à crença de que o texto possui um signicado completo, exato e único, não precisando do leitor. Ja mais o texto oferece a totalidade de informações; o autor o constrói somente com a informação que julga necessária para que o leitor entenda, eliminando tudo que não é preciso explicitar. Isso exige que o leitor, levando em conta seus conhecimentos, inra de maneira contínua. Como são diferentes as experiências de vida e os conhecimentos de mundo de cada leitor, diferentes também serão os signicados gerados por dife rentes leitores, como ainda serão diferentes os signicados gerados por um mesmo leitor ao ler um mesmo texto em situações diferenciadas de leitura. Por exemplo, o texto Carroça Vazia, quando foi produzido, tinha uma intenção pelo autor para uma 20
signicação. Agora, ao ser lido nessa situação de ensino e aprendizagem, permite vá rias possibilidades de leitura:
Conceitos de leitura
Carroça vazia Certa manhã, meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no bosque e eu aceitei com prazer. Ele se deteve numa cl areira e depois de um pequeno silêncio me perguntou: - Além do cantar dos pássaros, você está ouvindo mais alguma coisa? Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi: - Estou ouvindo um barulho de carroça. - Isso mesmo, disse meu pai, é uma carroça vazia. Perguntei ao meu pai: - Como pode saber que a carroça está vazia, se ainda não a vi mos? - Ora, respondeu meu pai, é muito fácil saber que uma carroça está vazia por causa do barulho. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz. Tornei-me adulto e, até hoje, quando vejo uma pessoa falando de mais, gritando (no sendo de inmidar), tratando o próximo com grossura inoportuna, prepotente, interrompendo a conversa de todo mundo, querendo demonstrar que é a dona da razão e da verdade absoluta, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai dizendo: “Quanto mais vazia a carroça, mais ba rulho ela faz...”.
(Wallace Leal V. Rodrigues. E, para o resto da vida... Matão,SP : Editora O Clarim, s/d.).
Certamente, ao ler o texto, o leitor deve ter formado em sua mente a imagem de uma pessoa que conhece que se aproxima da “carroça vazia” descrita. Essa imagem não é igual à do colega ou à do professor, por mais que se tenha pensado na mesma pessoa. Dessa maneira, na perspectiva da leitura como decodicação, o leitor apenas poderia ler o texto em voz alta e esperar pelo professor para determinar o seu enten-
dimento, sem poder expor o signicado que produziu a ele.
A PERSPECTIVA DO LEITOR Enquanto a perspectiva textual sustenta que a construção do sentido ocorre de modo ascendente – sobe do texto ao leitor, em uma maneira metaforicamente sim-
ples de dizer – a perspectiva do leitor defende que o sentido é construído de modo descendente (em inglês, “top-down”, como encontramos na literatura da área), isto é, vai do leitor ao texto, em uma visão inversa ao processamento ascendente. Desta forma, a obtenção do signicado não se dá através de um procedimento linear, palavra por palavra, mas se dá sempre por força da contribuição do leitor, dos conhecimentos
armazenados em sua memória, isto é, dos conhecimentos prévios. Portanto, ler, nessa perspectiva, é atribuir signicado ao texto, o que corresponde à concepção de leitura 21
LEITURA E ENSINO
defendida por estudiosos da leitura (GOODMAN, 1987; SMITH, 1999) orientados pela psicologia cognitivista. Para Goodman (1987), o que o leitor é capaz de compreender depende daquilo que conhece e acredita a priori , ou seja, antes da leitura. Diferentes pessoas lendo o mesmo texto apresentam variações no que se refere à compreensão do mesmo, por que variam os seus propósitos, seus conhecimentos prévios – aqueles conhecimentos armazenados na memória do leitor ao longo de sua vida – suas atitudes, seus esque mas conceptuais, a cultura social de cada uma. Por exemplo, no material didático é frequente encontrar-se um exercício como este antes da leitura do texto: Antes da leitura do texto ‘O gato siamês’, suscitar uma discussão com os alunos sobre a presença de gatos em suas casas e o que acham desses animais.
Essas contribuições, que são geradas na discussão inicial, quando se ativam os co nhecimentos prévios do leitor, são utilizadas durante toda a leitura e cabe ao leitor
empregar uma série de estratégias para avaliar e controlar a própria compreensão. São as estratégias de seleção, predição, inferência, conrmação, autocorreção e vericação que também são apregoadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998). A discussão mais detalhada acerca das estratégias de leitura está no capítulo Estratégias de Leitura, neste livro. Ao ler o texto, o leitor seleciona o que lhe convém, visto que nem tudo o que está escrito é igualmente útil. Escolhem-se alguns dados, chamados relevantes, e despre zam-se outros, que são desnecessários para a consecução do objetivo a ser atingido. “Se os leitores utilizassem todos os índices disponíveis, o aparelho perceptivo caria sobrecarregado com informação desnecessária, inútil ou irrelevante” (GOODMAN, 1987, p. 17), o que certamente dicultaria a compreensão, impossibilitando a leitura. Nesse âmbito, se uma pessoa precisa saber como deve tomar o medicamento que lhe foi receitado e tem em mãos a bula do remédio, deverá ler apenas aqueles dados referentes à posologia, isto é, à maneira como deve ser tomado o remédio; os demais – referentes à composição, a informações técnicas – são simplesmente ignorados, pelo menos nesse momento. Para que seja possível a compreensão do material expresso, é preciso que o leitor inferencie, isto é, “complemente a informação disponível utilizando o conhecimento conceptual e linguístico e os esquemas que já possui” (GOODMAN, 1987, p. 17). Por exemplo, ao tomar o jornal e ler a manchete “Rebelião na Penitenciária de Piraquara” , imediatamente o leitor aporta ao texto outras informações que fazem parte de seu re pertório de conhecimentos prévios. Devido a seu conhecimento de mundo, adquirido 22
através da leitura das notícias veiculadas pelos jornais, rádio e televisão pelas revistas,
Conceitos de leitura
ele sabe que rebelião é causada por pessoas que estão detentas, tornando-se desneces sário um título como “Pessoas detentas por crime causam rebelião na penitenciária de Piraquara” . Portanto, ao inferir, o leitor avança mais fácil e rapidamente na leitura e permite que o texto torne-se mais conciso, manifestando uma característica pertinente ao leitor competente que a escola busca formar. Também a partir do conhecimento prévio de alguns aspectos do texto – superes truturas, títulos, subtítulos, cabeçalhos e ilustrações – o leitor é capaz de predizer o
que virá na leitura do texto. Retornando ao exemplo anterior, ao deparar-se com a manchete “Rebelião na Penitenciária de Piraquara” , é possível que o leitor antecipe algumas das informações que estarão presentes no texto, tais como: funcionários do presídio e/ou familiares dos detentos tornaram-se reféns; pode haver mortos ou feri dos, além de destruição de partes do interior do presídio; a polícia deve ter promovido negociações, a m de acabar com a rebelião. Além disso, conhecendo a estrutura de uma notícia, o leitor espera encontrar o lide, ou seja, as respostas às perguntas: Quem? Quando? Onde? O quê? Como? Por quê? , que aparecem logo após o título da notícia. O ato de levantar inferências, selecionar e antecipar exige do leitor o uso de duas outras estratégias: conrmação ou autocorreção. Caso conrme suas hipóteses, o lei tor avança sem problemas na leitura; caso não conrme, é necessário que repense as inferências e hipóteses anteriormente levantadas, formule outras e retome as partes anteriores do texto para fazer os devidos ajustes. No exemplo seguinte, podemos vis lumbrar como o leitor conrma as hipóteses levantadas no texto: Após ler o texto, as hipóteses que você levantou antes de sua leitura foram conrmadas? Quais foram encontradas no texto?
O uso dessas e outras estratégias pressupõe um leitor muito ativo, que utiliza o mí nimo necessário dos índices do texto. Isto levou Goodman (1987, p. 11) a caracterizar a leitura como “um jogo psicolingüístico de adivinhações”. Smith (1999) tenta evitar a palavra adivinhação, pois esta, sendo associada ao comportamento impensado e imprudente ou às tentativas de obter algo sem o devido esforço, acaba por ganhar uma conotação negativa para muitos pais e professores. O autor prefere utilizar o termo previsão – eliminação de opções improváveis – já que este faz referência a uma atividade hábil, ao uso do conhecimento prévio para ante cipar o futuro. Smith assinala que “a leitura depende mais daquilo que está por trás dos olhos – da informação não-visual – do que da informação que está diante deles” (1999, p. 38), isto é, o leitor jamais se prende, exclusivamente, aos sinais impressos 23
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na página, mas utiliza os conhecimentos e habilidades que já dispõe para construir signicados. Leffa (1999, p. 26) acrescenta outro pressuposto básico da perspectiva do leitor: “O conhecimento prévio está organizado na forma de esquemas”. Os esquemas formam uma “rede de conhecimentos” que são armazenados de forma extremamente organi zada na memória do leitor e que são acionados quando ele processa o texto. À medida que amplia ou se altera o conhecimento de mundo do leitor, os esquemas automodi cam-se. Por exemplo, o professor tem em sua memória um esquema de ‘aula’. Nesse esquema estão conhecimentos como plano de aula, conteúdo, texto a ser trabalhado, exercícios, tempo da aula, uso do quadro de giz, posição das carteiras dos alunos, participação dos alunos etc. Ao ler este texto sobre conceitos de leitura, o professor está ampliando seu esquema sobre ‘aula de leitura’, uma vez que o texto apresenta uma série de informações que analisa os conceitos de leitura que perpassam as aulas de leitura da escola brasileira. Neste sentido, o esquema armazenado na memória está se modicando, ampliando-se, possibilitando ao leitor produzir novos signicados às leituras que fará a partir da leitura deste artigo. Embora seja atribuído um papel altamente ativo ao leitor, porque ele atribui signi cado, faz previsões, seleciona informações, inferencia, confere, corrige hipóteses sobre o texto, a perspectiva do leitor também tem sido alvo de muitas c ríticas, principalmen-
te pelo fato de descartar os aspectos sociais, conar exageradamente nas adivinhações do leitor e por considerar, nas propostas de ensino, qualquer interpretação de texto realizada pelo aluno. Isto é um problema, pois muitas vezes o aluno aciona um es quema impertinente sobre o conteúdo do texto lido, construindo uma compreensão inadequada à leitura. Segundo Leffa (1999, p. 28), Na medida em que privilegia o processo sobre o produto, a perspectiva do leitor representa uma evolução sobre a abordagem anterior com ênfase no texto. Na medida, porém, em que ignora os aspectos da injunção [imposição, exigência] social da leitura, consegue ver apenas parte do próprio processo que tenta descrever, produzindo-se, então, uma visão limitada da leitura.
O leitor-atribuidor caracteriza-se pela rapidez com que processa o texto – já que não lê a mensagem na íntegra –, pela facilidade de apreender as ideias gerais do texto, pela pouca importância que dá às palavras desconhecidas – uma vez que elas podem ser ignoradas ou deduzidas pelo contexto. Também é o leitor que tira conclusões apressadas, que faz excessos de adivinhações sem procurar vericá-las, que deixa de processar informações secundárias importantes para a compreensão global do texto (KATO, 1990). São exemplos enunciados de exercícios como esses:
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• A partir da leitura do texto, a que conclusão você chega sobre a moral da história? • Explique, em poucas palavras, o tema e o título do texto. • O nal do texto é pessimista ou otimista? Justique sua resposta.
Conceitos de leitura
Nesses exercícios, comuns no material didático, o aluno-leitor deve responder a
partir das atribuições que fez ao texto, a partir de suas adivinhações, o que o leva a perceber que, quanto mais adivinhar, melhor vai agradar ao professor, pois passará a ideia equivocada de que é um leitor competente. Na concepção de leitura como atribuição, o professor é o facilitador da aprendiza-
gem, cabendo-lhe propiciar os momentos e o material. Diante da convicção de que é preciso valorizar a leitura do aluno, toda e qualquer interpretação passa a ser consi derada como legítima. Se a interpretação do aluno não corresponde à do professor, prevalece a interpretação do aluno, já que é ele o leitor. Por exemplo, no exercício a seguir são oferecidas duas possibilidades de leitura para a inferência produzida a uma expressão que consta no texto: Com a expressão ‘o nosso querido amigo patrão’, o autor: ( ) dá a entender que o patrão era um amigo de todos; ( ) refere-se ao patrão de maneira irônica, isto é, fala de uma coisa para dar a entender outra, fazendo pouco caso.
Assim, o leitor pode optar pela leitura, mesmo que a expressão, no texto, seja mar cada pela ironia: como a leitura do aluno prevalece, o professor acaba aceitando que a primeira opção, quando escolhida pelo leitor, é permitida, mesmo que seja oposta à signicação apresentada no texto. O conceito de leitura como atribuição, centrado primordialmente no leitor, assim como o conceito de leitura como decodicação, centrado no texto, são conceitos co muns na escola, com os quais o professor e os alunos se deparam constantemente. Ambos apresentam pontos positivos e negativos ao trabalho com leitura, tudo depen de de como o professor vai trabalhar a leitura com os alunos.
A PERSPECTIVA DA INTERAÇÃO LEITOR-TEXTO Na perspectiva interacionista, ocorre a inter-relação entre processamentos ascen-
dentes e descendentes na busca do signicado. Deste modo, o ato de ler passa a ser visto como um processo que integra tanto as informações da página impressa – um processo perceptivo – quanto as informações que o leitor traz para o texto – um pro cesso cognitivo. Isto implica reconhecer que o signicado não está nem no texto nem na mente do leitor; o signicado torna-se acessível mediante o processo de interação entre leitor e texto, produzindo-se, assim, um processo de interação, não mais um
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LEITURA E ENSINO
produto de leitura que se centra em um só dos participantes: o texto ou o leitor. Stanovitch (1980 apud LEFFA, 1999), em sua abordagem que cou conhecida como interativo-compensatória, considera que a leitura envolve diferentes níveis de conhecimento (lexical, sintático, enciclopédico etc.) e que esses níveis interagem entre si com a participação maior ou menor na construção dos sentidos, dependendo da
contribuição dos outros níveis de conhecimento. Caso o leitor apresente uma deci ência em um desses níveis, ele tentará compensá-la apoiando-se em um outro nível, o que permitirá inferir o signicado do vocábulo que não conhece. Por exemplo, se o leitor ler o enunciado: “A taxonomia produzida pelas pesquisas permite classi car os leitores em vários níveis” e apresentar deciência na compreensão da palavra ‘taxonomia’, ele terá a seu dispor as demais informações para construir, através do acionamento do processamento descendente, ou seja, das informações que possui na sua memória sobre as palavras que compõem o enunciado, um signicado possível ao texto. Assim, ao ler as palavras ‘produzida’, ‘pesquisas’ e ‘classicar’, o leitor, através de seu processamento cognitivo, vai reuni-las, produzindo um novo signicado: ‘as pesquisas produzidas classicaram os leitores’, o que lhe permitirá processar no texto um signicado à palavra ‘taxonomia’, como classicação. Portanto, com esse trabalho de compensação, o leitor consegue entender que o enunciado oferecido para leitura refere-se à classicação de leitores produzida pelas pesquisas em leitura. Caso o leitor saiba pouco sobre um determinado conteúdo, deverá utilizar mais o processamento ascendente para compensar a incapacidade de realizar predições a
respeito do conteúdo. Por exemplo, no enunciado: “O mesoderma ventral produz os mesotélios...”
o leitor, não tendo domínio do conteúdo apresentado, pode realizar uma compen sação na leitura, utilizando-se do processamento ascendente, isto é, aproveitando-se
do material linguístico oferecido no texto para construir signicado. Ao iniciar a lei tura, encontra a primeira proposição que lhe causa estranheza: ‘mesoderma ventral’. Analisando as palavras, o leitor consegue perceber que há termos conhecidos que podem, através da análise do texto, facilitar a compreensão. Assim, observa que derma signica pele, meso, meio e ventral refere-se a ventre, formando uma primeira imagem mental de que se trata de uma pele do meio do ventre. Em seguida, dá continuidade à leitura, sempre buscando a compensação de sua deciência de compreensão no processamento ascendente. Dessa forma, percebemos que ambos os processamentos são usados de maneira a compensar a leitura. É claro que esse procedimento é empregado pelo leitor que já apresenta uma competência maior em leitura, contudo, ele é perfeitamente possível 26
de ser ensinado aos alunos, independentemente do nível de ensino em que está. Sobre isto, Meurer (1988, p. 265) alerta que “a interdependência equilibrada en tre a informação contida no texto e os conhecimentos prévios do leitor é a condição
essencial para a compreensão”, isto é, os leitores não devem se apoiar em um dos níveis de informação unicamente em detrimento de outro. Desse modo, se o leitor prende-se em demasia aos elementos textuais, poderá não perceber a mensagem em seu aspecto global. Se, pelo contrário, ignora o texto e acredita exageradamente em suas hipóteses, predições e inferências, sem procurar conrmá-las no texto, poderá realizar uma interpretação tendenciosa. Por conseguinte, as causas da diculdade de compreensão, de acordo com Vidal Abarca e Martinez Rico (2003, p. 139), não devem ser atribuídas ao leitor ou ao texto em separado, “mas na inadequação entre o texto e o leitor e, mais concretamente, no processo no qual se conjugam ambos os elementos, isto é, as inferências”. Fulgêncio e Liberato (1996) conceituam a inferenciação como um processo de construção de pontes de sentido, de integração entre as informações visuais ofereci das pelo texto e os conhecimentos do leitor. Esse processo exige um tipo especial de conhecimento semântico-pragmático: as expectativas. Os autores utilizam o seguinte exemplo para ilustrar os conceitos: “João matou Maria. Amanhã vou visitar João na cadeia”. São as inferências e expectativas que possibilitam que as frases sejam proces sadas não como blocos desconexos, mas como duas sentenças relacionadas entre si. Assim, a partir do conceito (que também é um esquema que está na mente do leitor) “assassinato”, o leitor ativa outros relacionados a essa noção: “assassinatos são crimes, punidos por lei; as transgressões à lei são passíveis de punição; uma das formas de punição é colocar o infrator na cadeia”. Espera-se, portanto, que o assassino seja pre so. Fundamentado nessa expectativa, o leitor pode inferir que João está preso porque matou Maria. Em resumo, os conceitos presentes no texto evocam uma cadeia de conhecimen-
tos prévios, que estão presentes na memória do leitor, entre os quais as expectativas, que são a base para o estabelecimento de inferências, para as conexões que conferem coerência e signicado ao texto, sempre a partir da interação do leitor com o texto. Vários outros autores – Colomer e Camps (2002), Kleiman (1996; 2000), Silva (1991), para citarmos os mais tradicionais – posicionam-se em favor de uma perspec tiva interacionista e trazem importantes contribuições para as pesquisas e o ensino da leitura. Colomer e Camps (2002) apontam que a nalidade natural de qualquer ato habitu al de leitura é a compreensão. Há diversos fatores que podem interferir na compreen são da leitura. As autoras, assinalando o ponto de vista do leitor, dividem-nos em dois 27
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grupos: a) o objetivo da leitura; e b) os conhecimentos prévios. O propósito da leitura determina o modo como o leitor abordará o texto e o grau de exigência compreensiva. Assim, ler uma obra literária com a intenção de realizar um trabalho acadêmico; para em um futuro próximo realizar uma prova de vestibular; ou com o desejo de distrair-se, exige comportamentos diferentes durante o processamen to do texto: uma leitura mais lenta e cuidadosa nos dois primeiros casos, uma leitura mais rápida e seletiva no último caso. Os conhecimentos prévios podem ser descritos e agrupados em dois itens: conhe cimentos sobre o escrito e conhecimentos sobre o mundo. Os conhecimentos sobre o escrito envolvem o conhecimento da situação comunicativa (que objetivo tem a co municação; onde e quando se produz; que relação reete o registro linguístico de que o escritor se utiliza); os conhecimentos morfológicos, sintáticos, semânticos, paralin guísticos e o conhecimento da estrutura textual. Colomer e Camps (2002) advertem que, na escola, é comum ocorrer situações em que os alunos: a) lêem sem o menor interesse, pois o texto não lhes acrescenta nada de novo; e b) situações em que a leitura é irrealizável, porque os alunos não dispõem de nenhum conhecimento sobre o tema e não conseguem relacionar a informação do texto com nenhum esquema conceitual prévio. Então, o equilíbrio entre o dado (as in formações já conhecidas) e o novo (as novas informações proporcionadas pelo texto) é condição essencial para a compreensão. Kleiman (2000) expõe que o caráter interacional da leitura pressupõe a gura do autor presente no texto através das marcas formais – por exemplo: operadores e co nectivos lógicos, expressões modalizadoras (talvez, evidentemente...) adjetivações, nominalizações – que atuam como pistas, necessárias para que o leitor refaça o trajeto delineado pelo autor durante a produção do texto. Deve haver, então, “um acordo de responsabilidade mútua” (KLEIMAN, 2000, p. 67) entre autor e leitor, pois ambos precisam cuidar para que o contato seja mantido, embora possam existir divergências de opiniões e interesses. Se o leitor vai ao texto com pré-concepções, podem ocor rer embaraços na compreensão quando estas não correspondem àquelas que o autor apresenta, pois, nesse caso, o leitor, absorto em suas ideias, não consegue reconstruir o quadro referencial através dos mecanismos formais. Dessa maneira, a tendência é que o leitor imponha ao autor, de modo não explícito, como em um diálogo face-aface, porém, próprio desse processo idiossincrático, informações relacionadas as suas crenças e opiniões, apesar de as pistas não permitirem essa conclusão. Kleiman (1996, p. 92) enfatiza ainda que a intencionalidade é constitutiva da inte ração: “processar o texto é perceber o exterior, as diferenças individuais superciais; perceber a intenção, ou melhor, atribuir uma intenção ao autor , é chegar ao íntimo, à
personalidade através da interação” (grifos nossos). Nessa perspectiva, o leitor pode se
Conceitos de leitura
aproximar das intenções do autor, atribuir possibilidades de intenções – por isso, ler
é construir e não reconstruir sentido –, mas não chegar ao íntimo, conforme propõe a pesquisadora. A autora indica para a escola um trabalho de “conscientização lingüística crítica” (p. 94), isto é, o trabalho de vericar não apenas como a linguagem funciona no texto, mas também como ela está a serviço das intenções do autor. Ao atribuir in tencionalidade, o leitor percebe-se como sujeito e percebe também o outro – o autor
– como sujeito. Silva (1991) postula que o processo de interação texto-leitor é um trabalho idios sincrático (próprio de cada leitor particular), visto que as experiências, a história dos leitores nunca são iguais. Então, torna-se praticamente impossível que duas ou mais pessoas façam uma leitura igual, destacando as mesmas ideias. Em termos de ensinoaprendizagem, Silva (1991, p. 50) enuncia que, nas tarefas de leitura, o professor pre cisa criar situações que permitam ao aluno “constatar determinados signicados, ree tir coletivamente sobre eles e transformá-los”, isto é, ler as linhas, as entrelinhas e além das linhas. Dessa forma, durante a constatação, o leitor percebe o sentido primeiro do texto; na reexão, ele conclui que há mais sentidos para o texto; na transformação, ele gera mais sentidos para o texto. Portanto, ao ler, o sujeito-leitor constrói um “outro” texto, produto de sua história de vida, de seu repertório de experiências, dos seus conhecimentos, sempre a partir da interação com o texto, consequentemente, com o autor do texto que se apresenta no discurso efetivado no material linguístico lido. Para exemplicar, retomamos o texto Carroça Vazia e apresentamos as atividades produzidas para ele, a partir da perspectiva interacionista.
Carroça vazia Certa manhã, meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no bosque e eu aceitei com prazer. Ele se deteve numa clareira e depois de um pequeno silêncio me perguntou: - Além do cantar dos pássaros, você está ouvindo mais alguma coisa? Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi: - Estou ouvindo um barulho de carroça. - Isso mesmo, disse meu pai, é uma carroça vazia. Perguntei ao meu pai: - Como pode saber que a carroça está vazia, se ainda não a vi mos? - Ora, respondeu meu pai, é muito fácil saber que uma carroça está vazia por causa do barulho. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz.
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LEITURA E ENSINO Tornei-me adulto e, até hoje, quando vejo uma pessoa falando demais, gritando (no sendo de inmidar), tratando o próximo com grossura inoportuna, prepoten te, interrompendo a conversa de todo mundo, querendo demonstrar que é a dona da razão e da verdade absoluta, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai dizendo: “Quanto mais vazia a carroça, mais barulho ela faz...”.
(Texto veiculado na Rede Mundial de Computador – Internet).
a) A partir da leitura do texto, o que é uma carroça vazia? b) A explicação oferecida pelo autor do texto, no último parágrafo, fez você se lembrar de alguém que se enquadra nas características descritas? Determine quais características mais lhe chamaram a atenção. c) O que signica a última frase do texto, a partir da imagem da pessoa que você formou na mente?
Com essas atividades, o leitor poderá interagir com o texto, produzindo seus signicados, indo além das linhas do texto. Desse modo, o leitor percebe o sentido primeiro do texto, aquele oferecido pelo autor, através de uma história entre pai e lho; contudo, também reete sobre o signicado que o texto lhe permite concluir, transformando-o, gerando novos sentidos. Se considerarmos que cada leitor formará uma imagem mental diferente do texto lido, as respostas às atividades propostas certa mente permitirão também que se manifestem interações diversas para o texto. A visão de leitura apenas como atividade mental, isto é, como interação das fontes
de conhecimento armazenados na memória do leitor, vem sendo questionada pelas pesquisas atuais. Hoje, reconhece-se a leitura também como uma atividade social, com ênfase na presença do outro, daquele que é interlocutor do leitor. Acredita-se, então, que o signicado não está nem no texto, nem no leitor, mas nas convenções de inte ração social em que se dá a leitura (LEFFA, 1999). É só tendo o domínio das práticas sociais em que os diferentes textos estão inseridos, ou seja, conhecendo-se as circuns tâncias e o momento em que são produzidos, por quem e para quem são escritos, que o leitor terá condições de se apropriar do sentido e da função do texto. Moita Lopes (1996) também aponta limitações da perspectiva interacionista, visto que esta não leva em conta os aspectos sociais e psico-sociais. O autor sugere que essa abordagem seja complementada com intravisões de análise do discurso, isto é, que seja vericado o processo de negociação do signicado entre os partícipes de uma interação comunicativa – leitor e autor – posicionados social, política, cultural e
historicamente. Para Moita Lopes, ler é envolver-se em uma interação com alguém em momento sócio-histórico especíco. No entender de Coracini (1995, p. 15), a perspectiva interacionista consiste em um 30
prolongamento da abordagem ascendente, à medida que ela vê ainda o texto como objeto autoritário, pois é em sua leitura literal que o leitor encontra as marcas para inferir signicados não literais:
Conceitos de leitura
Se é o texto que predetermina, ou seja, autoriza um certo número de leituras (através das chamadas inferências autorizadas) e impede ou impossibilita ou tras, então, o texto é ainda autoridade, portador de signicados por ele limita dos, ou melhor, autorizados: o texto teria, assim, primazia sobre o leitor, que precisa, com competência, apreender o(s) sentido(s) nele inscrito(s).
Assim, na visão de Mascia (2005, p. 47): embora o aspecto social passe a ser cogitado, pois o leitor aciona o texto a partir de conhecimentos prévios, socialmente adquiridos, o texto é autoritário, pois só são aceitas as leituras que fazem parte de um ‘núcleo comum’, tolhendo qualquer outra.
A partir dessas críticas, a autora indica outra abordagem que dê conta dos aspectos históricos, sociais e ideológicos envolvidos no processo de produção da linguagem: a perspectiva discursiva.
A PERSPECTIVA DISCURSIVA Na perspectiva discursiva, não se lê um texto como texto, mas como discurso, ou seja, levando-se em consideração as condições de produção. É a análise do discurso de orientação francesa (abreviadamente: AD), disciplina edicada por Michel Pêcheux nos ns dos anos 60, que orienta e justica esse modo de pensar o ler. A AD opõe-se às tendências linguísticas preocupadas exclusivamente com o normativismo, a que se seguem pensamentos como: Este texto está em conformidade com as normas da língua? Quais as normas próprias a esse texto?, e/ou com o conteudismo das análises de texto: Que signicação contém esse texto? Quais as ideias principais contidas neste texto? O que o autor quis dizer? A AD, como “estudo da discursivização” (FIO RIN, 1990, p. 175), isto é, como o estudo do processo de constituição do discurso, desloca-se para o Como este texto signica? Neste sentido, podemos dizer que a AD se exime do papel de julgar o que é ou não uma leitura adequada. Seu interesse está em explicitar os movimentos, o percurso que o sujeito faz para ler como lê, por isso as críticas de Coracini e Mascia ao conceito interacionista de leitura. Ressaltamos que, na perspectiva discursiva, que texto e discurso não se confun dem. O discurso apresenta-se como efeito de sentidos entre os locutores (PÊCHEUX, 1990) ou um processo de signicação em que estão presentes a língua, a história e o sujeito, interpelado pela ideologia da sociedade, sem liberdade discursiva. O texto organiza a discursividade. Portanto, deve ser visto na relação com outros textos, com os sujeitos, com as circunstâncias de enunciação, com a exterioridade, com a memória 31
LEITURA E ENSINO
do dizer (ORLANDI, 2001). O texto é a materialização do discurso. Para a AD, os sentidos não estão somente nas palavras, mas na relação com o que está fora do texto, nas condições em que eles são produzidos. As condições de pro dução compreendem, essencialmente, os sujeitos e a situação (o contexto imediato e o contexto sócio-histórico-ideológico) de ocorrência dos enunciados. Ferreira (1998, p. 203) faz uma comparação interessante para explicar que na AD o exterior é parte integrante do interior: Como se estivéssemos frente a um quadro de um pintor: a moldura, a luz, o ambiente, a parede em que está colocado são elementos que compõem junto com a tela os efeitos de sentido que vão produzir para o observador. Com outra moldura, sob diferente luz, em nova parede, a signicação seria outra.
Neste sentido, ao abordar o texto, o leitor precisa considerar as circunstâncias de produção, pois estas são constitutivas dos sentidos. Nas palavras de Coracini (2005, p. 27): [...] não vemos ou não lemos o que queremos (de forma independente) a qual quer momento e em qualquer lugar, assim como não podemos dizer ou fazer o que quisermos em qualquer lugar e a qualquer momento: há regras, leis do momento que autorizam a produção de certos sentidos e não de outros.
As condições de produção são acionadas pela memória discursiva. Esta se refere aos sentidos já ditos por alguém, em algum lugar, em outros momentos, mesmo mui tos distantes, e que são reavivados para sustentar cada nova palavra e trazer novos efeitos de sentidos. Como prioriza Orlandi (2000, p. 33), “todo dizer, na realidade, se encontra na conuência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). É desse jogo que tiram seus sentidos”. Isto equivale a armar que o dis curso é composto também pela historicidade, pela relação com outros discursos. Ao sujeito leitor cabe o papel de vericar “o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro” ( p. 33). Portanto, a AD rompe os efeitos de evidência e expõe o olhar do leitor à opacidade do texto. O que pode e o que deve ser dito é designado a partir de um “lugar” marcado em uma dada conjuntura, isto é, a partir de uma formação discursiva. Não se pode dizer qualquer coisa, em qualquer lugar, em qualquer momento. Assim, por exemplo, no interior de uma instituição escolar, o lugar do professor, do diretor, do aluno, da merendeira está marcado por determinadas propriedades diferenciais. A hipótese de Pêcheux (1990) é a de que esses lugares estão representados no interior dos processos discursivos. Outro exemplo: a palavra ‘liberdade’ tem sentidos diferentes para um pre sidiário, para um aluno, para um padre. Isto porque diferentes formações discursivas determinam efeitos de sentido diferenciados. Orlandi (2001, p. 62) acrescenta que “há 32
uma história de leitura de texto e uma história de leitores”, ou seja, o mesmo leitor lê o mesmo texto de maneiras diferentes em momentos e em lugares distintos, e o mesmo texto é lido de maneiras diferentes, em diferentes épocas, em diferentes circunstân cias, por diferentes leitores. Para Coracini (2005, p. 30):
Conceitos de leitura
[...] todo discurso já traz em si a denição – mais, ou menos, precisa – de lugares ou de posições subjetivas a serem ocupados por este ou aquele indiví duo, segundo as relações políticas e sociais e, portanto, ideológicas admitidas e construídas num dado momento histórico-social, num dado discurso – sempre em formação -, determinantes da(s) verdade(s) a ser(em) assumida(s). É claro que essas posições podem sofrer modicações, mas jamais repentinas: muitas vezes, passam imperceptíveis, até que algum acontecimento as evidencie.
Pêcheux (1990, p. 83) salienta que os lugares sociais não estão meramente re produzidos no interior dos processos discursivos, mas ocorre uma espécie de “jogo de imagens de lugares sociais”; isto é, intervêm no discurso uma série de formações imaginárias, que “supõe, da parte do emissor, uma antecipação das representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia do discurso”. As formações imaginárias designam: a) a imagem que o locutor tem de si mesmo (Quem sou eu para lhe falar assim?); b) a imagem que o locutor tem de seu interlocutor (Quem é ele para que eu lhe fale assim?) ; c) a imagem que o locutor julga que o interlocutor tenha do locutor (Quem é ele para que me fale assim?) ; e) a imagem que o locutor faz do referente (De que eu lhe falo?) etc. Orlandi (2001) expõe que, através das imagens, o sujeitoautor projeta-se no lugar de seu interlocutor e, assim, orientado pelo mecanismo de antecipação, constitui, na textualidade, um leitor virtual. Quando o leitor real aborda o texto, depara-se com um outro leitor aí constituído, com o qual deve se relacionar. Dessa maneira, o texto construído pelo leitor real quase nunca corresponde ao texto produzido por um determinado autor. Daí ser inútil buscar as ideias principais bem como as intenções do autor; estas, no entender de Coracini (1995), são sempre cons truções, produto da interpretação de um dado leitor em um dado momento e lugar. Autor e leitor, inseridos em um contexto sócio-histórico-ideológico, são, então, produtores de sentidos. A produção de sentidos se dá em circunstâncias sempre no vas. Por isso, não é o texto que determina as leituras, mas a posição a partir da qual fala o sujeito. Lê-se sempre a partir de uma formação discursiva. Há tantas leituras quantas forem as formações discursivas. Retomando o texto “Carroça Vazia” , você, na posição de aluno do curso de Edu cação a Distância, está passando por uma situação nova em sua vida, que determina um contexto sócio-histórico-ideológico marcado por circunstâncias novas, que o faz produzir sentidos diferentes na leitura do texto, comparando-se aos momentos que 33
LEITURA E ENSINO
vivia anteriormente. Assim, a partir dessa posição social, histórica e ideológica pela qual está passando, suas leituras produzem sentidos direcionados por essa perspecti va. Desse modo, ao ler o texto “Carroça Vazia” , é possível que você esteja formando na mente a imagem de uma pessoa e de suas características, diferentemente do que visualizava antes de iniciar o curso. Isto signica que a imagem que você formou de si e dos outros com que se relaciona foi modicada: consequentemente, você também está produzindo novos sentidos aos textos lidos. Muitas vezes, a pessoa que você viu na imagem que o texto “Carroça Vazia” possibilitou construir foi alterada em função de seu contexto sócio-histório-ideológico, pro duzindo novos sentidos, novas características, novas visões, novos olhares à pessoa. É justamente essa possibilidade de ressignicar as leituras e as coisas que a perspectiva discursiva propõe como leitura. Possenti (1996) apresenta críticas à perspectiva discursiva. O autor defende que a AD – que prioriza o processo histórico de produção, a memória discursiva – deve incorporar os fatores pragmáticos – processo interpessoal de produção e compreen são e o conhecimento partilhado – para a análise dos textos ou discursos, elementos
discutidos pelo conceito interacionista de leitura. Neste sentido, para Possenti, o fun cionamento do texto necessita dos seguintes fatores: a) material linguístico; b) fatores históricos e psicanalíticos – os discursos prévios; c) fatores pragmáticos – o papel do próprio falante na análise dos fatos da linguagem, isto é, o saber do falante. Podemos propalar, então, que, segundo o autor, a perspectiva do discurso peca ao desconside rar os aspectos cognitivos e os conhecimentos do leitor.
OS CONCEITOS DE LEITURA NA SALA DE AULA Embora as pesquisas e os teóricos apontem vários conceitos de leitura em voga nas salas de aula brasileiras, conforme podemos observar neste texto, é possível que muitas estabeleçam contatos em suas características, que permitem o aproveitamento daquelas pertinentes à situação de ensino desejada. Dessa forma, é certo que o pro fessor pode enquadrar-se, ou até mesmo visualizar-se em um ou em outro conceito, contudo, a prática demonstra que a maneira mais adequada de trabalho com a leitura com os alunos ainda é o ecletismo teórico, isto é, o aproveitamento das características dos conceitos de leitura que são úteis à situação em que professor e alunos estão inte ragindo, para produzir-se sentidos, em função das leituras estabelecidas para o texto trabalhado. Ritter (1999, p. 22-23), em estudos sobre a leitura em ambiente escolar, propõe uma articulação entre os enfoques cognitivista e discursivo, as perspectivas do leitor, do texto e do discurso, resultando em uma perspectiva cognitivo-discursiva para o 34
ensino da leitura. A autora questiona:
Conceitos de leitura
Ora, se o que se quer é formar leitores críticos, “desconados”, que consigam chegar ao implícito, às entrelinhas de um texto, resgatando a dimensão so ciocultural da leitura, como podemos considerar o papel ativo desse sujeito,
sem concebê-lo enquanto ser social e histórico? Como admitir suas histórias de leituras, sem levar em conta suas experiências relevantes, seus conhecimentos anteriores?
Essas indagações evidenciam a necessidade de se considerar tanto os conhecimen tos enciclopédicos do leitor, ou seja, os conhecimentos prévios armazenados em sua
memória de leitura (aquela que se constrói ao longo dos anos, em todos os ambientes sociais possíveis), como as condições sócio-históricas da produção da leitura, proposta pelas perspectivas interacionista e discursiva, em uma construção mista de teorias que se poderia denominar interacionista-sócio-discursiva. Em uma perspectiva mais abrangente, a partir da consideração da leitura como um conceito interacionista-sócio-discursivo, Dell’Isola (1996), ao investigar as condições de interação sujeito/linguagem na leitura, analisa o ato de ler sob três enfoques: a) a leitura como habilidade fundante do ser humano; b) a leitura como prática social; c) a leitura como ato de co-produção. As reexões a partir desses enfoques contribuem para solidicar a perspectiva de ensino de leitura em sala de aula de maneira mais próxima de como a linguagem humana é entendida e estudada atualmente. O primeiro enfoque sugere que a leitura inaugura o indivíduo como sujeito huma no, compreendendo-se “sujeito” como sujeito sujeitado a algo e sujeito agente sobre algo. De acordo com Dell’Isola (1996, p. 75), o sujeito, como agente da interação texto-leitor, ‘faz uma leitura textual com todo o seu ser: olhos, ouvidos, sentimentos, pensamentos e a sua bagagem so ciocultural. Como paciente, como aquele que se sujeita ao processo interativo, o leitor constitui-se, representa-se, identica-se e projeta-se no texto’.
Assim, a leitura é, em primeiro lugar, uma habilidade que dá ao leitor a condição de revelar-se como ser humano. Essa condição é levada para a sala de aula e não pode ser desconsiderada no momento da leitura. A leitura também consiste em uma prática social porque o sujeito leitor e o sujeito autor revelam na leitura marcas da individualidade e do lugar social de onde provêm. Então, estabelece-se, durante o ato de ler, uma relação de intersubjetividade entre lei-
tor e texto, determinada sempre pelo contexto de sua realização. Neste sentido, essa relação pode simplesmente ser direcionada pelo professor, quando este não tem o co nhecimento dos vários conceitos de leitura. Por isso, é fundamental ao professor saber quais os conceitos de leitura que perpassam o sistema educacional brasileiro, para po der identicar e saber orientar o aluno de maneira adequada na construção da leitura. 35
LEITURA E ENSINO
Dell’Isola (1996) ainda conceitua a leitura como ato de co-produção do texto. Isto porque o texto nunca está acabado, pois apresenta espaços lacunares que serão preen chidos de acordo com as condições sociais, ideológicas, culturais, históricas e afetivas do leitor, como propõe a perspectiva discursiva de leitura. Sendo assim, considerando as leituras e as reexões apresentadas para o texto “Carroça Vazia” , o leitor pode produzir do mesmo texto diferentes leituras, passíveis de variação de mo-
mento para momento, pois a relação leitor/mundo/contexto também é passível de mudanças (as novas experiências pessoais interferem nas impressões que se têm sobre a realidade, sobre o modo de ver, de estar e viver no mundo) (DELL’ISOLA, 1996, p. 73).
Essa reexão permite reconhecer que: a) toda leitura envolve uma produção – e não uma extração, simplesmente – de sentidos, constituídos a partir do saber do leitor
e das circunstâncias da leitura; b) tanto “os ditos” como “os não ditos” fazem parte do texto; assim, saber ler signica perceber a incompletude do texto e desfazer os efeitos de transparência; c) cabe ao leitor perceber as estratégias de manipulação presentes no texto, o que o torna um sujeito ativo – e não um sujeito passivo, tal como propõem as teorias da decodicação – uma vez que ele pode perceber a ideologia presente no texto, questioná-la, julgá-la e colocar-se contra. Assim, ao nal deste texto, ca marcada a existência de vários conceitos de leitura que são discutidos e praticados no ensino de leitura nas escolas brasileiras. Não pode mos negar suas existências, o que devemos é saber que existem, que co-existem, que podem ser aproveitados para a formação e o desenvolvimento de leitores competentes.
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LEITURA E ENSINO
Proposta de Atividade 1) Realizar o levantamento das características de cada conceito de leitura apresentado no artigo, caracterizando como o leitor é determinado em cada um deles. 2) Procurar nos livros didáticos exemplos de atividades de leitura que representam cada um dos conceitos estudados.
Anotações
40
2
Estratégias de leitura Renilson José Menegassi
AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA O trabalho com estratégias de leitura no Ensino Fundamental é extremamente re levante para a formação de um leitor competente, que consiga ler qualquer texto da sociedade, compreendê-lo e fazer uso de seus conhecimentos para conseguir transitar pelo corpo social em que convive. Assim, os princípios básicos do letramento são aqui considerados, para que o professor proponha um trabalho de leitura em que o texto social seja lido, analisado, reetido e utilizado como meio para o desenvolvimento da leitura com os alunos. Para que esse desenvolvimento ocorra, faz-se necessário o trabalho com as estraté gias de leitura em sala de aula, a partir do material didático que se tem em mãos e tam bém através de textos que são trazidos para a escola e retirados do convívio normal da sociedade em que o aluno e o professor vivem. Com essa armação, instaura-se uma certeza: é preciso ensinar estratégias de leitura aos alunos no Ensino Fundamental. Com esse ensino, o aluno aprende a desenvolver sua leitura com mais facilidade e de
maneira mais adequada. Estratégias são procedimentos conscientes ou inconscientes utilizados pelo leitor para decodicar, compreender e interpretar o texto e resolver os problemas que en contra durante a leitura. Um procedimento, “com frequência chamado também de regra, técnica, método, destreza ou habilidade, é um conjunto de ações ordenadas e nalizadas, isto é, dirigidas à consecução de uma meta” (COLL, 1987 apud SOLÉ, 1998, p. 68). Nesse ponto, é necessário que façamos distinção entre estratégias e técnicas. Menegassi (1992, p. 159) considera que as técnicas, como um procedimento de ação ordenada, são sempre aprendidas através de instrução ou observação. Já as estratégias são decorrentes da aprendizagem das técnicas ou da criação espontânea do leitor. Ou seja, após aprender certas técnicas, o leitor cria ou adapta estratégias de leitura a partir dos conhecimentos adquiridos com aquelas; também é capaz de criar estratégias espontâneas que o tempo e a maturação na leitura propor cionam, sendo um fato que ocorre tanto com o bom quanto com o mau leitor.
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LEITURA E ENSINO
Ao se ensinar aos alunos a técnica de sublinhar textos, por exemplo, os procedimentos são apresentados de modo ordenado, demonstrando como as ações para
a realização da técnica são efetivadas. Ao aprendê-la, o leitor, considerando-se sua maturidade no trato com a leitura, pode desenvolver estratégias próprias, que lhe possibilitam um melhor tratamento com o texto ou uma má conduta na leitura. Assim, o leitor, a partir dos procedimentos determinados pela técnica de sublinhar, vai desen-
volver sua própria estratégia de sublinhar textos, que é diferente de leitor para leitor. Isto signica que cada leitor tem desenvolvido suas estratégias próprias de leitura, que podem, dependendo da tarefa e do texto, ser ecazes ou não. Dessa forma, o que se tem como certo é que o ensino das estratégias se efetiva na sala de aula a partir das condutas que o professor proporciona aos alunos.
O ENSINO DE ESTRATÉGIAS DE LEITURA Ao considerarmos as estratégias como procedimentos, partimos da ideia de que de vem ser ensinadas aos alunos, para que os conteúdos do ensino sejam aprendidos de maneira mais adequada, tornando o trabalho do professor e do aluno mais propício. As estratégias não amadurecem sozinhas, nem se desenvolvem, nem emergem, nem aparecem no aluno só porque o professor deseja. Elas precisam de um princípio de ensino, que conforme discutimos anteriormente, pode ser apresentado a partir da instrução de técnicas ou mesmo de estratégias certas de leitura de textos. Elas reque rem, por parte do professor, um conhecimento mínimo de trabalho com o texto, pois
cada texto requer uma leitura especíca, já que os textos que circulam na sociedade não são lidos sempre da mesma forma. Cada texto requer uma estratégia de leitura, em função de sua especicidade, de seu conteúdo, de sua forma. É certo que muitos tex tos são lidos com a mesma estratégia, porém seu emprego é diferenciado pelo leitor. Dessa forma, o ensino das estratégias é necessário porque se pretende “formar leitores autônomos, capazes de enfrentar de forma inteligente textos de índole muito diversa, na maioria das vezes diferentes dos utilizados durante a instrução.” (SOLÉ, 1998, p. 72). Neste sentido, a formação de um leitor competente necessariamente passa pelo ensino de estratégias de leitura, pela prática em textos sociais, pelo de senvolvimento de uma autonomia no leitor para escolher a estratégia certa ao texto trabalhado. A formação de leitores competentes, autônomos, possibilita ao aluno a capacida-
de de aprender a partir dos textos que lê, isto é, a cada novo texto o leitor aprende novos conhecimentos, novas estruturas, desenvolve novas estratégias; ele aprende a aprender. Para que isto seja possível, é necessário que esse leitor interaja com o texto, compreendendo-o; estabeleça relações entre o que lê e os conhecimentos prévios que 42
tem armazenado na memória sobre o tema discutido no texto; questione o conheci mento aprendido, conseguindo realizar associações com o que já tinha na memória, com as novas informações que se formou em sua mente, permitindo sua utilização em
Estratégias de leitura
outros contextos sociais diferentes da escola, onde está aprendendo a trabalhar com o
texto. Enm, o aluno aprende na escola o trabalho com as estratégias de leitura, para, posteriormente, usufruir desse procedimento na leitura de textos que encontra no cotidiano social em que convive, não se restringindo o trabalho com o estudo do texto somente à sala de aula. Isto é formar um leitor competente!
O LEITOR E AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA São quatro as estratégias fundamentais para realizar a compreensão a serem desen volvidas nos alunos, para o trabalho em todos os textos: seleção, antecipação, inferência e vericação. Elas foram sistematizadas a partir de estudos realizados por pes quisadores em Psicolinguística, como Goodman (1987) e Smith (1991), e apresentadas como referência a orientações no trabalho com leitura nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997, 1998). Muitas outras estratégias são consideradas no proces so de ensino, porém essas quatro são as principais, pois essa classicação foi resultado de muitas pesquisas desenvolvidas nas últimas quatro décadas em todo o mundo. Para entender o que signicam, apresentamos as suas denições e exemplos que ex plicitam seu funcionamento durante o processo de ensino e aprendizagem de língua. A) Seleção: São ações que possibilitam ao leitor ater-se somente ao que lhe é útil para a compreensão do texto, desprezando-se itens considerados irrelevantes. Ao ler uma revista, um jornal, o leitor inicia a leitura pela seleção dos textos que estão ali dispostos. Primeiro, o leitor folheia todo o periódico, lendo cada título e observando as guras que acompanham o texto. Se o título lhe chamar a aten ção, despertando interesse, ele acaba lendo o lide, aquela parte introdutória da matéria jornalística que resume o fato objetiva e sinteticamente, respondendo as questões: o quê, quem, quando, onde, como e por que sobre o assunto do texto. Entretanto, o leitor não lê a reportagem, ele continua a folhear a revista ou o jornal, selecionando o que irá ler após a investigação preliminar. Nessa se leção, o leitor determina quais textos lhe servem para leitura naquele momento de sua vida. Feita a seleção inicial, lança-se à leitura dos textos escolhidos. A seleção é um importante recurso para a escolha de textos e também de suas
ideias relevantes. Assim, ao ler um texto, o leitor não se aproveita de todas as infor mações ali constantes. Ele seleciona o que lhe é pertinente em função de seu objetivo 43
LEITURA E ENSINO
de leitura. Por isso que o ensino que se efetiva em sala de aula sobre as estratégias de leitura deve ser consciente de seu processo, para não causar danos na leitura do aluno,
a partir da internalização de procedimentos inadequados ou, até mesmo, a falta deles. B) Antecipação: São predições que o leitor constrói sobre o texto que está lendo, possibilitando-lhe a antecipação do conteúdo, mantendo a atenção no objetivo determinado inicialmente. O leitor, durante a leitura do texto, cria hipóteses e previsões sobre os signicados a partir das informações explícitas e implícitas constantes no texto. Essas antecipações podem ser comprovadas ou não. Ao serem comprovadas, o leitor sente maior segurança nas estratégias que esco lheu, dando prosseguimento à conduta iniciada, pois está no caminho certo. Por outro lado, ao ter suas predições não comprovadas, ele é obrigado a rever seu procedimento, reavaliando o uso das estratégias, readequando-as ou, até mesmo, trocando de estratégia, escolhendo uma que lhe possibilite uma anteci pação mais eciente.
No exemplo comentado na estratégia de seleção, o leitor, ao realizar a seleção de texto em um jornal ou em uma revista, inicia a sua leitura. De imediato, a partir da lei tura do título, o leitor já antecipa algumas previsões sobre o conteúdo do texto. Ao ler o lide, o leitor pode comprovar ou não sua predição iniciada no título, possibilitando a
continuação da estratégia escolhida ou a sua readequação. Ao adentrar à leitura do tex to, o leitor vai, gradativamente, comprovando suas antecipações e, se são adequadas, continua a produzir novas predições, dando prosseguimento à leitura. Entretanto, se suas antecipações não são comprovadas, o leitor, conscientemente, procura adequar uma nova estratégia à leitura realizada, mostrando sua capacidade e competência no trato com o texto. C) Inferência: São ações que unem o conhecimento que não está explícito no tex to, porém possível de ser captado, com o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto. Na verdade, é uma ponte de sentido que o leitor cria com o texto lido, construindo uma nova informação, que não existia antes no texto, nem no leitor.
Ao ler um texto, o leitor aciona os conhecimentos prévios que tem armazenado em sua memória sobre o tema. Nesse momento, o leitor complementa o texto a partir de atribuições baseadas nas pistas textuais oferecidas pelo autor que produziu o tex to, considerando-se, é claro, os conhecimentos do leitor que são evocados durante a 44
leitura. Assim, a imagem da ponte de sentido se constrói, pois ela une o texto e os seus signicados implícitos, com o leitor, que explicita esses signicados. No exemplo que está sendo utilizado para explanação das estratégias, o leitor, ao ler um título de reportagem como: “Menino de 1 ano é morto com tiro na cabeça no colo da mãe”, aciona alguns conhecimentos prévios que lhe permite criar certas inferências:
Estratégias de leitura
Título: “ Menino de 1 ano é morto com tiro na cabeça no colo da mãe” Inferências possíveis de construção: - O menino e a mãe foram vítimas de violência; - O menino teve morte instantânea, devido ao tiro na cabeça e a sua idade; - A mãe do menino também foi atingida pela bala, que pode ter perfurado a - cabeça do menino e alcançado alguma parte do corpo da mãe; - A bala que atingiu o menino era perdida de um tiroteio; - A bala que atingiu o menino pode ter sido disparada por um conhecido; - A mãe pode ter atirado no próprio lho. As inferências construídas foram resultados da união dos conhecimentos prévios do leitor, relativos ao assunto do texto, com as informações que o texto apresenta. Todas as inferências destacadas são perfeitamente possíveis de serem construídas. Du rante a leitura do texto, o leitor verica as possibilidades levantadas através das infe rências que construiu na antecipação da leitura, comprovando-as ou descartando-as. D) Vericação: A conrmação ou não das antecipações e das inferências realizadas se constrói no processamento da leitura do texto. É justamente a estratégia de vericação que mais controla a ecácia das estratégias escolhidas pelo leitor. A cada conrmação das predições levantadas e das inferências realizadas, mais seguro o leitor se sente, possibilitando-lhe uma melhor construção de sentido para o texto trabalhado. Por outro lado, caso a vericação mostre que suas hi póteses de signicado estão inadequadas, cabe ao leitor alterar as estratégias, possibilitando uma escolha mais adequada ao texto trabalhado.
No exemplo comentado, após ter antecipado o conteúdo do texto com a leitura do título e do lide e construído inferências a partir do título, o leitor adentra ao texto e busca comprovações de suas predições e inferências, no intuito de vericar se seus objetivos de leitura, que foram predeterminados pelas estratégias anteriores, foram alcançados ou não. 45
LEITURA E ENSINO
UMA LEITURA COM AS ESTRATÉGIAS DESCRITAS Para ilustrar a utilização das estratégias de leitura descritas, apresentamos uma his tória em quadrinhos retirada da revista Cascão, nº 132, de janeiro de 1992, da Editora Mauricio de Sousa. Para facilitar a demonstração do ensino das estratégias, optamos por apresentar a história em partes, discutindo a construção das estratégias em cada um dos quadrinhos, que no todo formam a história, que está na íntegra no nal deste texto. Essa segmentação é apenas didática, para elucidar a maneira como as estraté gias ocorrem no leitor. É claro que ela pode ser também utilizada com o aluno, para ensinar-lhe o desenvolvimento das estratégias, contudo não pode ser empregada fre quentemente como procedimento de leitura nos textos trabalhados em sala de aula, já que a fragmentação não é parte da concepção de leitura que sustenta o estudo das estratégias. Observemos os quadrinhos:
Inicialmente, apresenta-se o nome da personagem da história A TURMA DO PENA DINHO e o seu título: CONTANDO HISTÓRIAS . Antes de entrar no texto propriamente, questiona-se: 1) Quem é a personagem principal do texto?
R.: O Penadinho e sua turma. 2) Quem é o Penadinho?
R.: É um personagem fantasminha da turma do Mauricio de Sousa. 3) Que tipo de história apresenta-se com a Turma do Penadinho?
R.: História de fantasmas. 4) Que história espera-se que será apresentada?
R.: Uma história sobre fantasmas.
Com esses questionamentos anteriores ao texto, tem-se início ao processo de 46
leitura do texto com as estratégias de seleção, antecipação e inferência, conduzidas pelas perguntas iniciais. A estratégia de seleção acontece quando o leitor seleciona, entre os conhecimentos que possui sobre história em quadrinhos, o que as revistas de Mauricio de Sousa publicam e, dentre elas, o que apresentam as histórias do Pe nadinho. Nesse momento, inicia-se o processo de acionamento dos conhecimentos prévios, que possibilitarão as demais estratégias. A estratégia de antecipação permite ao leitor levantar a hipótese de que a história trata de algo envolvendo fantasmas, como, por exemplo, a contação de uma história pelo Penadinho ou uma das histórias vividas por sua turma.
Estratégias de leitura
A leitura do segundo quadrinho quebra a hipótese levantada pelo leitor. Nesse momento, inicia-se a estratégia de vericação, que comprova ou não a predição anterior. Ao observar que a história começa com os três porquinhos, a linha de raciocínio do leitor é rompida e as expectativas são readequadas. Assim, o leitor passa a construir novas antecipações e inferências. Com a readequação, o leitor passa a esperar uma história que trata dos três porquinhos, uma história da lite ratura infantil, que apregoa o conhecimento prévio das crianças. Portanto, novas antecipações e inferências passam a ser construídas, na expectativa do sentido que será produzido agora.
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Nesse quadrinho, o leitor comprova sua antecipação de que a história trata dos três porquinhos e do lobo mau. Assim, ao ler “... QUE VIVIAM A CORRER DO LOBO!” , o leitor já conrma, através da estratégia de vericação, que sua leitura é coerente e possibilita a criação de outras antecipações: a) o lobo vai aparecer; b) o lobo vai correr atrás dos porquinhos; c) o lobo vai destruir as casas de dois porquinhos; d) o lobo não consegue destruir a casa de tijolos do terceiro porquinho etc.
A leitura do quarto quadrinho convalida a predição realizada no quadrinho anterior, passando ao leitor a sensação de segurança e conança na leitura que está efetuando. Nesse quadrinho, os porquinhos correm para a casa de palha, como era esperado pelo leitor, ao acionar seus conhecimentos prévios sobre a história. Nesse momento, além da estratégia de vericação, a estratégia de antecipação passa a ser construída, em um contínuo processo paralelo. Observamos que as estratégias ocorrem concomitante e 48
recursivamente, isto é, juntas e uma recorrendo a outra. Assim, o leitor antecipa que o lobo vai destruir a casa de palha em que se encontram os porquinhos.
Estratégias de leitura
A segurança do leitor está cada vez mais em progressão, levando-o à conança de já saber o nal da história. Ao ler que o lobo realmente soprou a casa de palha e os por quinhos caram desprotegidos, o leitor convalida sua leitura e antecipa que a próxima ação é a corrida à casa de madeira e sua destruição pelo lobo. Nesse momento, é interessante que o professor retome o nome da personagem da história da revista em quadrinhos, Turma do Penadinho, para questionar o leitor sobre a relação possível entre a história narrada e o personagem Penadinho. Essa postura permi te ao aluno selecionar, dentre os vários aspectos possíveis, informações que construíram predições possíveis para a continuação e/ou término da história dos três porquinhos.
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Com a leitura do texto escrito “VAMOS PRA MINHA CASA DE MADEIRA! É MAIS RE-
SISTENTE!” , o leitor já sabe que a história mantém a coerência que há na sua memória de histórias infantis e antecipa a nova ação: a destruição da casa de madeira pelo lobo.
Comprovada a antecipação, o leitor vê a casa sendo destruída pelo sopro do lobo e os porquinhos atordoados com o fato. Como esperado, o leitor dá continuidade à construção de predições com a ideia de que a próxima casa a ser buscada pelos porquinhos é a de tijolos.
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Mais uma vez, a antecipação é vericada e comprovada. Agora, o leitor já sabe a continuação da história: os porquinhos correm para a casa de tijolos e o lobo vai tentar destruí-la, como fez com as anteriores. Com essa certeza em mente, o leitor prossegue a leitura, tendo a nítida noção do que espera.
Estratégias de leitura
A quebra das expectativas domina o leitor, produzindo-lhe uma sensação de rompi mento de sentidos. Ao ler que o lobo está com um veículo de guindaste com uma bola de destruição, o leitor espanta-se e tem, a partir da estratégia de vericação, a não com provação das predições sobre a leitura da história dos três porquinhos e sobre o qua drinho que foi apresentado. Nesse instante, por um processo muito rápido, entra em jogo a estratégia de seleção de informações, buscando readequar a leitura, trazendo uma releitura da história infantil, à luz da modernidade, exposta no quadrinho. Ao ver o guindaste de destruição, inicia-se o processo de construção de inferências, quando o leitor possivelmente redimensiona sua leitura, não mais esperando o nal comum. No quadrinho, encontram-se a casa de tijolos, o guindaste e o lobo dirigindo o veículo, em direção à casa, com um riso sarcástico, demonstrado pela expressão “HE, HE, HE!” , pronto para derrubar a casa. As inferências produzidas aqui demonstram várias possibilidades de leitura: a) o lobo mudou a tática tradicional; b) o lobo foi mais esperto do que os porquinhos; c) o lobo vai destruir a casa de tijolos; d) os porquinhos carão surpresos com a estratégia do lobo. Todas essas inferências, necessariamente, são vericadas nos próximos quadrinhos.
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A leitura da onomatopeia “CRÁS” conrma algumas das inferências produzidas,
que se tornaram antecipações e, agora, conrmações: a) a tática do lobo foi ecaz; b) o lobo foi mais esperto do que os porquinhos; c) a casa de tijolos foi destruída; d) os porquinhos caram sem proteção. Nesse momento, o leitor passa a construir um novo sentido à leitura, redenindo suas estratégias. Assim, as antecipações do leitor não são mais sobre a história tradi cional, são predições produzidas sobre inferências, não mais sobre conhecimentos prévios certos. Dessa forma, surgem novas antecipações, como: a) os porquinhos es tão em perigo; b) o lobo pegará os porquinhos; c) os porquinhos caram machucados pela destruição da casa; d) os porquinhos correram para outro lugar. Na ansiedade de comprovar as antecipações realizadas pela inferência, o leitor prossegue a leitura.
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Com a imagem do lobo avançando vorazmente, o leitor convalida algumas das hipóteses: 1) o lobo conseguiu destruir a casa de tijolos; 2) os porquinhos estão desprotegidos; 3) os porquinhos serão atacados. Em consequência, novas inferências são produzidas: a) o lobo vai comer os porquinhos; b) os porquinhos fugirão do lobo; c) os porquinhos procurarão outra proteção; d) os porquinhos foram comidos pelo lobo.
Estratégias de leitura
O rompimento da sequência lógica deixa o leitor com as expectativas refeitas, o que redireciona seus objetivos de leitura, evidenciando-se, assim, uma característica do leitor competente.
A leitura do último quadrinho faz com que o leitor retome o nome da personagem Turma do Penadinho, relacionando-a ao resultado do ataque do lobo. Assim, é possível observar no quadrinho os fantasmas dos três porquinhos, um fantasminha sentado em uma pedra, ouvindo histórias contadas pela Morte, personagem constante da história de fantasmas, também sentada em uma pedra, todos dentro de um cemitério, compro-
vado pelos túmulos que aparecem à esquerda e direita. O inesperado m da história comprova algumas das antecipações e inferências produzidas pelo leitor: a) o lobo comeu os porquinhos; b) os porquinhos morreram. Contudo, também ressignica a história dos três porquinhos, permitindo ao leitor a construção de um sentido não esperado, pelo menos sem a articulação inicial entre o nome “ A TURMA DO PENADI NHO” e o título da história em quadrinhos “CONTANDO HISTÓRIAS” . O trabalho com as estratégias de leitura de seleção, antecipação, inferência e ve ricação é necessário à medida que facilita ao aluno-leitor aprender como funciona o processo de leitura e, principalmente, tomar consciência das estratégias que fazem 53
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parte desse processo, permitindo-lhe uma melhor manipulação dos recursos cogniti vo-linguístico-discursivos que estão presentes no texto lido. Além dessas estratégias, o leitor também pode fazer uso de práticas de estratégias de leitura que lhe ajudem na compreensão de diferentes gêneros textuais, que se ma nifestam em diferentes momentos do processo de leitura.
AS ESTRATÉGIAS DE COMPREENSÃO: ANTES, DURANTE E APÓS A LEITURA A construção da compreensão de um texto, de acordo com a descrição proposta
na literatura especializada da Psicolinguística e da Linguística Aplicada – exposta na bibliograa nal – lança mão de estratégias que ocorrem antes, durante a após a lei tura. Essas estratégias, reunidas às estratégias descritas no item anterior, permitem ao leitor um melhor trabalho na produção dos sentidos do texto, permitindo-lhe alcan-
çar a compreensão de maneira mais eciente. Assim, o conhecimento das etapas que ocorrem antes, durante e depois da leitura permitem ao leitor dominar o processo,
levando-o a tornar-se um leitor competente. A distinção das estratégias de leitura em três etapas é, de certa maneira, articial, pois, no conjunto da leitura, o leitor não se preocupa se está efetivando uma pré-
leitura, uma leitura interna e uma pós-leitura do texto; ele simplesmente lê e busca a compreensão textual. Muitas vezes, ao realizar uma estratégia antes da leitura, já se está produzindo signicados que são imediatamente comprovados ou refutados durante a leitura. Em outras, as estratégias durante e após a leitura se confundem em uma só. Para melhor compreender cada uma dessas etapas, as estratégias são descritas separadamente, por uma questão didática.
Antes da leitura As estratégias trabalhadas antes da leitura envolvem três pontos que ocorrem jun tos, porém para sua compreensão são apresentados separadamente. O primeiro ponto a se observar com o trabalho antes da leitura é a motivação para a tarefa, juntamente com a determinação de objetivos para a leitura. Na escola, as lei turas são feitas de maneira articial, pois são trazidos textos da sociedade que são lidos em locais certos, com público determinado e objetivos marcados, os quais, no am biente escolar, são articialmente lidos, sem consideração do contexto natural/social de sua compreensão. Neste sentido, para minimizar essa articialidade, é necessário que o aluno seja motivado para ler e normalmente essa motivação é apresentada pelo professor, o mediador do processo. Arma-se que é normalmente o professor, porque, muitas vezes, a motivação vem oferecida no material didático utilizado em sala de aula,
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que acaba conduzindo a forma de motivação para a leitura. O professor, no papel de mediador, incentiva o leitor à leitura do texto a partir de exposição oral sobre o conteúdo a ser tratado no texto, a partir de recursos audiovisu ais que possibilitam construir um objetivo claro para a leitura, efetivando-se, com isso, uma situação que se aproxima do real, como ocorre na sociedade. Na condução da motivação e, consequentemente, na construção do objetivo, as relações do leitor com a língua escrita são enfatizadas, para mostrar-se a importância
Estratégias de leitura
da leitura para a formação do cidadão na sociedade atual e como ela possibilita meios
mais pertinentes à ascensão sociocultural e econômica. Todos esses recursos neces sariamente são realizados via oralização dos sentimentos do aluno sobre a escrita,
ou seja, na discussão inicial, antes mesmo de adentrar ao texto, sobre o conteúdo já identicado do texto. Muitas vezes, a motivação se mescla com a construção do objetivo, já que, na práti ca, elas não se separam. É importante ressaltar que, ao tratar-se do objetivo de leitura, parte-se do princípio de que ele é construído pelo professor juntamente com o aluno, tendo por referência o texto a ser lido. Isto signica que os objetivos impostos são, na maioria dos casos, formas de cerceamento da formação do leitor competente. O segundo ponto a ser observado é a ativação de conhecimentos prévios sobre o conteúdo do texto, antes de ele ser lido. O leitor, nos anos iniciais de sua escolariza ção, está em plena construção de conhecimentos, está produzindo conhecimentos
constantes que subsidiaram a compreensão das leituras realizadas em sala de aula. Assim, nessa etapa do processo de leitura do texto, é necessário que se avalie o nível de conhecimento prévio do aluno, para, inclusive, detectar possíveis manifestações de
problemas de compreensão textual. Dessa forma, de acordo com Solé (1998), são necessárias algumas conduções nessa etapa: A) “Dar alguma explicação geral sobre o que será lido. Não se trata tanto de explicar o conteúdo, mas de indicar sua temática aos alunos, para que possam relacioná-la a aspectos da sua experiência prévia” (p. 105). – A explicação ofere cida ao aluno não deve conter manifestações que conduzam à produção de um sentido marcado no texto, assim o leitor não construiria o seu próprio sentido, mas aquele que foi orientado durante a explicação inicial, que deveria servir para conhecer, construir ou ampliar o conhecimento prévio do leitor. A indi cação da temática, nesse momento, permite ao aluno recuperar na memória informações que já tenha sobre o conteúdo que será lido no texto, orientando, inclusive, a atenção e o objetivo de leitura; B) “Ajudar os alunos a prestar atenção a determinados aspectos do texto que podem ativar seu conhecimento prévio” (p. 105). – Essa estratégia de leitura ensina ao aluno que o próprio texto traz informações que lhe permitem acionar conhecimento prévio sobre o seu conteúdo. Assim, o professor, ao chamar a atenção para as guras, ilustrações, títulos, subtítulos, enumerações, início e
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nal do texto, as mudanças de letras e tipos grácos etc. (considerando-se a diversidade dos gêneros textuais e suas diferenças), está auxiliando o aluno a saber do que trata o texto e estudá-lo antes mesmo de sua leitura; C) “Incentivar os alunos a exporem o que já sabem sobre o tema” (p. 106). – Essa estratégia é o inverso da primeira, exposta no ponto a). Aqui, a explicação do aluno substitui a explicação do professor e é, possivelmente, mais calcada
nas experiências próprias dos alunos sobre o tema. Essa discussão oral expõe o conhecimento prévio do aluno, permitindo ao professor detectar o nível de
conhecimento internalizado sobre o conteúdo do texto, possibilitando-lhe uma conrmação, reavaliação e/ou readequação do procedimento a ser empregado com o aluno. Nesse processo de interação, o aluno-leitor atualiza seu conheci mento prévio, ampliando-o a partir da incorporação das ideias dos colegas e do professor sobre a temática discutida, como diria Bakhtin (1992), é o momento em que as palavras alheias tornam-se palavras próprias. Na verdade, a leitura e a interação do leitor com o texto instauram-se exatamente nessa etapa, em que o professor torna-se um mediador, em que ele se coloca como um elemento intermediário nessa relação, que deixa de ser direta (texto-leitor) e passa a ser mediada pelo professor (texto-professor-leitor), no entendimento de Vygotsky (1988) sobre mediação.
O terceiro ponto refere-se à produção de previsões e à formulação de perguntas sobre o texto a ser lido. A partir da estratégia de estudo dos elementos textuais, como títulos, parágrafos, ilustrações, alteração de letras etc., é possível iniciar a produção de previsões sobre o texto, que podem ou não ser conrmadas. Essas predições podem ser elencadas por escrito, no quadro, no papel, ou simplesmente pela oralidade. Nes se momento, o processo de atenção do leitor eleva-se, readequando-se os objetivos iniciais, o que lhe possibilita ‘mergulhar com mais profundidade’ no texto e na sua compreensão. Juntamente com as previsões, pode ocorrer a formulação de perguntas, não que seja uma regra, pois as perguntas podem surgir das previsões e vice-versa. É natural que elas se mesclem, muitas vezes, sem que o leitor tenha consciência se está formu lando perguntas ou previsões. Os benefícios dessa estratégia permitem observar que o leitor recorre ao conhecimento prévio que tem sobre o tema; toma consciência do que sabe sobre o conteúdo do texto; determina objetivo certo. Por outro lado, as previsões não são necessariamente conrmadas durante e após a leitura, assim como as pergun tas não são sempre respondidas. Como podemos observar, o emprego de estratégias antes da leitura é ecaz e, con forme Solé (1998, p. 114), tem algumas nalidades marcadas: A) “Suscitar a necessidade necessidade de ler, ajudando-o [o leitor] a descobrir descobrir as diversas uti lidades da leitura em situações que promovam p romovam sua aprendizagem signicativa; B) Proporcionar-lhe [o leitor] os recursos necessários para que possa enfrentar com segurança, conança e interesse a atividade de leitura.
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C) Transformá-lo [o leitor] em todos os momentos em leitor ativo, isto é, em alguém que sabe por que lê e que assume sua responsabilidade ante a leitura, apontando seus conhecimentos e experiências suas expectativas e questionamentos.”
Estratégias de leitura
O exemplo de análise de leitura da história em quadrinhos, empregando as estra tégias de leitura discutidas na seção anterior, considera as estratégias utilizadas antes da leitura. Ao reler as análises e comentários ali descritos, vislumbram-se todas as es tratégias aqui apresentadas.
Durante a leitura Durante o processamento da leitura do texto, o leitor lança mão de certas estraté-
gias de leitura que lhe permitem obter maior compreensão, exigindo-lhe, por conse quência, maior esforço de leitura. Assim, várias estratégias conuem para que o leitor consiga compreender o texto. Essas estratégias podem ser divididas em seis: formulação de previsões; formulação de perguntas; esclarecimento de dúvidas; resumo de ideias; avaliação do caminho per corrido e realização de novas previsões; relacionamento da nova informação adquirida do texto ao conhecimento prévio armazenado. Todas Todas elas, assim como as demais estra tégias já estudadas, ocorrem concomitante e recursivamente. A formulação de previsões expande expande o processo iniciado na etapa anterior anterior à leitura efetiva do texto. Essa predição continua a existir, como visto na análise da história em quadrinhos do Penadinho, durante o processo de leitura, direcionando e readequan do o objetivo do leitor. Junto dela há o processamento de perguntas, em que o leitor constrói indagações às ideias que são apresentadas no texto, ao mesmo tempo em que busca resposta para sua conrmação ou não. Assim, como na etapa anterior à leitura, as perguntas auxiliam na manutenção do processo de atenção do leitor e no monitora mento do objetivo de leitura. Por conseguinte, surge a estratégia de esclarecimento de dúvidas, as quais resultam dos confrontos que o leitor encontra com o texto durante a sua leitura. Essas dúvidas auxiliam no sentido de construir novas previsões, novas perguntas, de avaliar os resultados das antecipações, das inferências, das respostas às perguntas levantadas. Dessa forma, vericamos um processo de interação do leitor com o texto, em que o diálogo se mantém de maneira ativa, com os papéis de leitor e (autor) de texto bem delimitados e conuindo para a produção de novos sentidos ao texto lido. Esse momento é extremamente idiossincrático, de revelação própria do leitor, em que con segue interagir com o texto a sua maneira, mentalmente, sem que haja interferências externas, como a do professor ou de outra pessoa. E o leitor deve ser conscientizado 57
LEITURA E ENSINO
desse processamento, para reetir sobre as estratégias possíveis de utilização e assumir progressivamente o controle do seu processo de leitura. Outra estratégia empregada durante a leitura é o resumo das ideias do texto lido. Esse procedimento permite ao leitor formar uma síntese do conteúdo do texto, que vai lhe fornecer subsídios para o trabalho posterior, na etapa que envolve os proce dimentos após a leitura. Dentre as possibilidades de utilização do resumo, o leitor pode fazê-lo mentalmente, pode anotar suas observações em folha à parte ou até mes mo diretamente no texto lido, o importante é que, durante a leitura, o leitor consiga sistematizar as ideias de forma a resumi-las, como procedimento de compreensão e
posterior vericação. A avaliação do processo durante a leitura permite ao leitor analisar se as escolhas
de estratégias que está fazendo são pertinentes e se a compreensão do texto está ocor rendo de maneira parcial, gradual ou total. Denidos os resultados, o leitor passa a construir novas predições, a partir da comprovação ou não, readequando seus objeti vos. Salientamos Salientamos que que essas estratégias são são muito recorrentes, sempre sempre sendo retomadas para que o processo de leitura possa seguir à frente. Ainda no processo de construção da leitura, o leitor relaciona as novas informações
que são apresentadas no texto ao conhecimento prévio que já possui, ampliando-o ou, até mesmo, construindo novos conhecimentos. Um ponto a destacar durante a leitura é a atividade de compartilhar informações
(SOLÉ, 1998), discutir o texto e seu conteúdo. Em sala de aula, a atividade comparti lhada é uma situação conjunta entre professor, texto e alunos, destinada a comparti-
lhar os conhecimentos desses três elementos do processo discursivo em sala de aula. Na troca de informações, o aluno compreende e emprega estratégias úteis de leitura e aprende com sua leitura, com a leitura do professor e a dos colegas, numa troca de ideias que possibilita um processo interativo muito adequado à construção do conhe cimento. Para o professor, é um excelente momento para realizar a avaliação formativa da leitura dos alunos e do processo ali destacado. É uma maneira de avaliar a capacida de de leitura dos alunos e o trato que demonstram ter com o texto trabalhado. Em todo o processo envolvido durante a leitura do texto, o professor se põe como mediador, mediador, servindo como modelo de ensino no processo de leitura aos alunos, a partir
da exposição de como é o seu próprio processo. Assim, o aluno, observando os proce dimentos do professor, professor, passa a produzir os seus, até alcançar um nível de competência que o caracteriza como leitor ativo. Como já ressaltamos anteriormente, todas as estratégias aqui descritas foram cons truídas na leitura da história em quadrinhos do Penadinho, Penadinho, já analisada.
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Depois da leitura
Estratégias de leitura
Para a maioria dos leitores, incluindo-se aí professores e alunos, essa etapa é a mais
importante. Na verdade, não se pode considerá-la como a mais importante, ela é parte de um processo, uma vez que, na maioria das vezes, não se consegue estabelecer um limite claro entre o que acontece antes, durante a depois da leitura. Por exemplo, a estratégia de formular perguntas e responder é empregada nas três fases do processo e, na maioria dos casos, não se observa uma denição precisa de sua posição no pro cesso, isto é, não se obriga que que restrita às etapas anterior ou posterior à leitura. O que se tem como certa é a necessidade de que, independente da fase, a compreensão seja uma habilidade ativa no leitor. Uma estratégia necessária nessa fase é a identicação da(s) ideia(s) principal(is) do texto lido, que conrma a compreensão do leitor, demonstrando seu estado no processo de leitura. Assim, ao terminar a leitura do texto, cabe ao leitor saber relatar, mesmo que seja só para si, qual a ideia principal do texto, que pode aparecer através da identicação de enunciado(s) importante(s) do texto, muitas vezes de maneira ex plícita ou implícita, ou estar diluída em todo o texto, exigindo maior competência do leitor na identicação. Dessa forma, podemos questionar ao leitor sobre qual a ideia mais importante que o autor pretende explicitar e obtermos muitas respostas diferentes, c onsiderando-se as diferenças nas leituras dos leitores, seus conhecimentos prévios, objetivos e realidades
de leitura. Essa profusão de ideias não é mostra de confusão de leitura, ao contrário, é mostra dos sentidos construídos no texto, todavia uma observação mais atenta verica que esses sentidos se aproximam, na sua exposição em enunciados, da ideia principal do texto, que é alcançada pelos leitores. É certo que as ideias que fugirem à coerência textual não podem ser consideradas como principal e mostram a diculdade de com preensão do leitor. Neste sentido, uma readequação das estratégias se faz necessária. Cada texto apresenta uma ou mais ideias principais que são alcançadas a partir do trabalho com uma leitura ativa, em que o leitor identica, nos parágrafos e no corpo do texto, qual a ideia mais relevante, que está diluída em todo o texto. Para isto, o leitor deve ser atento à estrutura textual e discursiva do texto, isto é, à forma e ao con teúdo do texto, para conseguir analisá-lo e apresentar sua proposta de ideia principal. Essa estratégia pode ser realizada a partir da construção pessoal do leitor, de maneira individual; da discussão com o professor, na interação entre texto-professor-leitor/alu no; da discussão em conjunto com todos os alunos da sala, numa estratégia de leitura compartilhada, em que se levanta em conjunto a ideia principal do texto. É claro que essa estratégia também pode servir ao professor como forma de avaliação de leitura. Voltando à história em quadrinhos do Penadinho, observamos que ideia principal é 59
LEITURA E ENSINO
construída ao longo da leitura do texto e pode ser identicada como sendo a história dos três porquinhos mortos pelo lobo mau, que surpreende o leitor por ser uma apre sentação diferente da história tradicional. Para chegar-se à ideia principal, o leitor pode lançar mão de várias outras estra tégias, como, por exemplo, sublinhar as partes principais do texto que achar impor tante; grifar palavras importantes, que se repetem no texto, que, unidas, formam um enunciado representativo da ideia principal; fazer pequenas anotações que resumam os parágrafos; identicar, nos parágrafos, o que são exemplos e explicações, levando o leitor a encontrar a ideia do parágrafo. Além disso, o leitor pode produzir, ao nal da leitura, um resumo escrito, que pode ser construído a partir do emprego da estratégia de formular e responder perguntas. Todas essas estratégias são produzidas depois da leitura, colocando o leitor em situação de trabalho com o texto. Para todas as estratégias comentadas, necessariamente o professor propõe e con duz o ensino, servindo como modelo de leitor competente, para que seus alunos possam ter uma referência determinante em leitura. Dessa forma, tem-se por princípio que as estratégias de leitura são ensinadas para se auxiliar na formação de alunos leito res competentes, que saibam manipular os textos da sociedade e consigam, a partir de suas leituras e produções de sentidos, tornarem-se cidadãos, compreender, interferir e
alterar a sociedade à sua volta, para a construção de uma sociedade melhor.
Referências
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MENEGASSI, R. J. Estratégias metacognitivas no processo de leitura. Unimar, Marília, v. 14, n. 2, p. 155-166, out. 1992.
Estratégias de leitura
SMITH, Frank. Compreendendo a leitura : uma análise psicolingüística da leitura e do aprender a ler. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. SOLÉ, I. Estratégias de leitura . Tradução de Claudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1998. VYGOTSKY; L.S. A formação social da mente. 2. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1988.
Sítios na internet www.alb.com.br – Associação de Leitura do Brasil. www.escrita.uem.br – Grupo de Pesquisa “Interação e Escrita”, Universidade Estadual de Maringá. www.lecturayvida.org.ar – Associação Internacional de Leitura.
Proposta de Atividade 1) Escolha uma história em quadrinhos, leia-a e descreva as estratégias de leitura necessárias a sua compreensão. 2) Procure, no material didático utilizado em sala de aula, um texto oferecido para leitura e analise se as estratégias de leitura apresentadas neste capítulo são sugeridas como pers pectiva de trabalho. Caso não sejam, reorganize as atividades de leitura do texto a partir das estratégias discutidas.
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Anotações
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A produção de sentidos na aula de leitura Lilian Cristina Buzato Ritter
Este capítulo tem a intenção de fazer você reetir sobre aspectos teóricos e práticos do ensino da leitura, especialmente nos 1º e 2º ciclos do Ensino Fundamental. Por isso, inicialmente, retomamos ideias já apresentadas e discutidas em capítulos ante-
riores, pois pensar em nossas ações pedagógicas inclui o questionamento relativo às razões dessas ações: por que faço o que faço? É neste sentido que se arma: “a toda metodologia subjaz uma teoria”. Então, como um prólogo ao diálogo que pretende mos estabelecer com você, apresentamos o aporte teórico de nossa proposta de traba lho com a leitura em situação escolar.
CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E DE LEITURA A concepção de linguagem adotada neste capítulo funda-se na noção de aconteci mento, tornando essencial para sua análise o processo de produção de discursos e,
consequentemente, o uso social da linguagem passa a ser objeto de estudo. Anterior mente a essa concepção de linguagem, não se extrapolava o nível da frase; também não se focalizava o uso linguístico, o implícito, o relacionamento entre os interlocu tores, o contexto, os elementos extra-linguísticos. Levando-se em consideração esses aspectos, a linguagem passa a ser vista como lugar de interação humana, não cabendo mais uma visão monológica e imanente da língua sob a perspectiva formalista que separa a linguagem de seu contexto social. A linguagem é uma atividade humana cujas categorias observáveis se modicam no tempo e apresentam um funcionamento profundamente interdependente
do tipo de contexto social em que ocorrem. [...] Não se trata mais de entender a língua como um objeto aceito a priori, um acervo imutável depositado na memória coletiva, uma herança ou um mecanismo inato ao cérebro do falante, mas trata-se de concebê-la como uma forma de ação, um modo de vida social, no qual a situação da enunciação e as condições discursivas são determinantes de sua função e, logo, de seu signicado e de sua interpretação (GARCEZ, 1998, p. 46-47).
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Correlata a essa concepção de linguagem, redene-se a concepção do sujeito como constitutivo na e pela linguagem. Geraldi (1996) arma que admitir a “constitutivida de” do sujeito e da linguagem implica admitir nossa “incompletude”, nossa “insolu bilidade” e o “caráter aberto” das categorias com as quais opera o processo de consti tuição. Desta forma, “o sujeito constitui-se nos processos interativos de que participa, elegendo o uxo de movimento como seu território” (p. 132). Analogamente, ativida des de leitura e escrita, consideradas como forma de interação, são espaços também
de constituição do sujeito. Portanto, o reconhecimento do outro e dos recursos ex pressivos utilizados não bastam para que ocorra a interação. É preciso ultrapassar esse reconhecimento para se chegar à compreensão e por isso, “[...] toda leitura e escritura são sempre co-produções materializadas na seqüência textual” (p. 132). Enquanto a natureza da língua, na visão tradicional, é abstrata e homogênea, para a interacionista é concreta e heterogênea. Se, tradicionalmente, o objetivo de ensino é a competência linguística, agora o alvo passa a ser a competência discursiva e, enquanto para se atingir o primeiro tipo de objetivo a metodologia é direcionada para o domínio do código, para o segundo é direcionada para o uso da língua em situações concretas. Portanto, atualmente, o objetivo do ensino da língua materna é dar condições para que o aluno tenha domínio pleno das atividades verbais: ler criticamente, escrever para alguém ler, falar para auditórios diferenciados, com objetivos explícitos e dentro da modalidade adequada, reetir sobre a própria linguagem. Só se concebe o estudo da língua em um contexto de uso, de funcionamento, de interação social, no qual seus usuários sejam sujeitos. Similarmente, a leitura, uma das práticas do ensino da língua materna, também pode estar em dois pólos. O primeiro, segundo a visão tradicional, concebe a leitura somente como decodicação, como uma reprodução daquilo que o autor diz. É a leitura linear, a qual preconiza um único sentido ao texto e vê o aluno como um ser passivo, um receptáculo de informações, contribuindo para formar pseudo-leitores,
carentes de reexão e crítica. O segundo, de acordo com a visão sociointeracionista, concebe a leitura como uma prática discursiva. É a leitura como produção de sentidos, pois o sentido também está à parte do texto, podendo-se chegar a uma pluralidade de leituras. O leitor é, aí, um sujeito ativo, um produtor dos sentidos do texto, pois o ato de ler pressupõe uma (re)construção de sentidos. O que interessa aqui é a leitura crítica que, de acordo com Silva (1997, p.152), pressupõe a “constatação, a reexão e a transformação de signicados, a partir do diálogo-confronto de um leitor com um determinado documento escrito”. Nessa condição, o leitor crítico trabalha na recons trução do que foi dito (baseando-se na palavra do autor e nas suas próprias contrapa lavras), na denição do como se disse, acabando por inferir o que historicamente essa conguração textual construiu (GERALDI, 1993). 66
A LEITURA NO DISCURSO OFICIAL: IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS Nesta reexão sobre a leitura em situação escolar, não podemos deixar de lado a posição ocial sobre o seu ensino, pois, teorica e ocialmente, é a posição da escola e do governo. Um dos representantes ociais em relação ao ensino de língua materna em nosso país são os Parâmentros Curriculares Nacionais (PCN). Chamamos atenção para a importância desse documento no que diz respeito à implementação de dire trizes curriculares ociais brasileiras para o enfoque dos textos e de seus usos em
A produção de sentidos na aula de leitura
sala de aula, não nos interessando, nesse momento, analisar criticamente esse tipo de
discurso. O documento é permeado por diversos aportes teóricos, como, por exemplo, os da Linguística Textual, da Psicologia Cognitiva, da Análise do Discurso, dos Estudos da Enunciação, e entre todas essas contribuições há uma convocação para a noção
bakhtiniana de gênero discursivo. Produzir linguagem signica produzir discursos. Signica dizer alguma coisa para alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico. Isso signica que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso, não são aleatórias, mas decorrentes das condições em que esse discurso é realizado. [...] O discurso, quando produzido, manifesta-se lingüisticamente por meio de textos. Assim, pode-se armar que o texto é o produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo signicativo e acabado, qualquer que seja sua extensão. ]...] Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente es táveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elemen tos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. [...]. Os gêneros são determinados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos (BRASIL, 2000, p. 25-26). Se o objetivo é que o aluno aprenda a produzir e interpretar textos, não é possí vel tomar como unidade básica de ensino nem a letra, nem a sílaba, nem a pala vra, nem a frase que, descontextualizadas, pouco têm a ver com a competência discursiva, que é questão central. Dentro desse marco, a unidade básica de ensi no só pode ser o texto, mas isso não signica que não se enfoquem palavras ou frases nas situações didáticas especícas que o exijam (BRASIL, 2000, p. 35-36).
Tais passagens dos PCN fazem forte apelo ao gênero como objeto de ensino, indi cando o lugar do texto como materialização de um gênero e, logo, suporte de apren dizagem de suas propriedades. A partir daí, problematizamos as consequências disso para o ensino da prática de leitura, aspecto que não é discutido no documento. À teoria de Bakhtin (1997) é inerente o fato de que, ao produzir um enunciado, o sujeito enunciador faz uso de um gênero característico de um evento comunicativo. Para Dolz & Schneuwly (2004), do ponto de vista do uso e da aprendizagem, o gêne ro é um “megainstrumento” que mediatiza as atividades de linguagem, dando-lhes forma e materialidade. Na situação escolar, há um desdobramento que se realiza no 67
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momento em que o gênero passa a ser, ao mesmo tempo, instrumento pelo qual as práticas de linguagem materializam-se e também objeto de ensino e aprendizagem. Uma das diculdades enfrentadas é o aluno encontrar-se em um espaço do “como se”, “em que o gênero funda uma prática de linguagem que é, necessariamente, em parte, ctícia, uma vez que é instaurada com ns de aprendizagem” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 76). Nesse desdobramento, em prol da objetivação, os gêneros são considera dos desprovidos de qualquer relação com uma situação de comunicação autêntica e, na tradição escolar, o que se faz é submetê-los a uma classicação de tipo estrutural, cujo objeto de ensino são sequências relativamente estereotipadas, o que se conven cionou como “tipologias textuais” – descrição, narração e dissertação. Passamos, então, a discutir as diferenças existentes entre os conceitos “gêneros discursivos” e “tipologias textuais”, com o objetivo de mapear caminhos possíveis para as práticas escolares. Em relação a esse aspecto, destacamos: Na medida em que o conceito de linguagem e de ensino privilegiados envolvem indivíduo, história, cultura e sociedade, em uma relação dinâmica entre p rodu ção, circulação e recepção de textos, os conceitos de gêneros discursivos e tipo logias textuais, feitas as devidas diferenças e observado o diálogo constitutivo que os une, contribuem para um trabalho efetivo com a língua e a literatura, tanto no que diz respeito a suas estabilidades quanto instabilidades, provocadas pelas coerções do uso nas diversas atividades humanas em diferentes momen-
tos históricos (BRAIT, 2001, p. 16).
Compreendemos essa armação da seguinte maneira: os conceitos “tipologia tex tual” e “gênero discursivo” não devem ser compreendidos pelo viés da exclusão. Não se trata de excluir um conceito pelo outro, mas de compreender que, em sala de aula, ao se enfocar o texto em seu funcionamento e em seu contexto de produção/leitura, a noção de gênero constitui-se como um instrumento melhor do que o conceito de tipo para favorecer o ensino de língua materna, porque evidencia as signicações mais do que as propriedades formais que dão suporte a funcionamentos cognitivos. Assim, forma e conteúdo têm importância, mas o que se faz essencial entendermos é que são determinados apenas dentro do enquadre do funcionamento social e contextual do gênero. Sendo assim, a opção de trabalhar com o texto como unidade básica do ensino, e que assume o trabalho com os gêneros como uma opção adequada e eciente para a formação de leitores e produtores de textos, deve se preocupar em contemplar os as-
pectos constitutivos da enunciação (entendida aqui como o momento histórico, social da produção do discurso), os quais nos remetem à noção de adequação, tal como su gere Garcez (1998). Essa noção, por sua vez, inclui os elementos do contexto da situ ação comunicativa como as diferentes imagens construídas sobre o interlocutor, sobre 68
o lugar social ocupado pelos interlocutores, sobre as instituições sociais nas quais o texto circula, sobre os portadores, tudo isso articulado às características do momento histórico da produção, aos objetivos estabelecidos e ao gênero no qual o texto é pro duzido. Portanto, no campo da compreensão textual, trata-se mais de considerar a na -
A produção de sentidos na aula de leitura
tureza interativa do processo de produção de sentidos do texto, despertando no aluno a réplica ativa, ou seja, dar-lhe condições para desenvolver uma atitude de reação ao
texto, do que ensinar-lhe a reproduzir sentido. Isso porque, no enfoque bakhtiniano, faz parte da natureza da palavra querer ser ouvida, buscar sempre a “réplica do diálo go”, instaurando assim, o caráter dialógico da linguagem, já que o discurso sempre se organiza em função do “outro”.
A LEITURA EM SITUAÇÃO ESCOLAR: UM ESTUDO DE CASO Geraldi (1993) arma que a primeira preocupação pedagógica, ao se planejar uma atividade de leitura, deve girar em torno da seguinte pergunta: para que o texto entra na sala de aula, ou, “para quê se lê o que se lê?” ( p. 168). A essa pergunta, ele denuncia que, na escola, o texto de leitura se presta a responder ao que está previamente xado, transformando-se em um “meio de estimular operações mentais e não um meio de, operando mentalmente, produzir conhecimentos. Não há perguntas prévias para se ler. Há perguntas que se fazem ”porque se leu” ( p. 170). Não se estabelecem relações interlocutivas quando se lê na sala de aula e isso constrói uma legitimidade ancorada na autoridade; em outras palavras, o professor lança mão somente de sua autoridade para conduzir a prática da leitura escolar. Isso acaba por supercializá-la, uma vez que se lê porque o professor manda, porque está valendo nota ou ainda para o profes sor poder usar o livro didático. E aí a leitura torna-se um objeto de ensino e não de aprendizagem. Muitas pesquisas comprovam que a escola deixa a leitura à deriva, ensinando ape nas comportamentos mecânicos, alfabetizando segundo modelos tradicionais e não formando verdadeiros leitores. Congura-se, então, uma situação de crise na escola, cujo desao é a formação de leitores críticos, posto que a leitura não é mais vista como mera decodicação, nem o leitor como o alfabetizado, mas como um agente produtivo nesse processo. Corroborando esse quadro, Silva (1989) enfoca a crise “da leitura na escola”, discorrendo acerca da relação triangular que deve existir entre o leitor, o texto e a realidade social, chamando a atenção do professor para o enfraquecimento ou mes mo o apagamento dessa relação no âmbito escolar, no qual a prática de leitura torna-se uma atividade com um m em si mesma, priorizando a memorização e repetição das ideias dos textos, sem a passagem do texto para o contexto, com ênfase no signican te. De acordo com este autor, a “leitura escolarizada” é trabalhada dentro da seguinte 69
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ambivalência: avalanche de textos (leitura em grandes quantidades, com cobranças e sem orientação) e “cretinização do leitor” (não-expansão do repertório de leitura do aluno). Assim, forma-se, em relação à leitura, um agente passivo, um “ngidor” de leitura, um “pseudo-leitor”. Com o objetivo de problematizarmos essa questão, e com o intuito de provocar mos sua reexão sobre alguns questionamentos vitais para nossa formação como professor (qual o sentido, para o aluno, de realizar as tarefas solicitadas por nós, professores? Por que professor e aluno fazem o que fazem? Até que ponto podemos considerar que nossas ações pedagógicas, com relação à promoção da leitura na esco la, são atravessadas pelas demandas sociais?), apresentar uma análise de cinco horasaula ministradas para o 3º ciclo do Ensino Fundamental, em uma escola pública do Paraná (RITTER, 1999). Nessas aulas, a proposta de trabalho era para os alunos lerem dois artigos jornalísticos, que mantinham certo vínculo temático, já que abordavam questões de relacionamento do homem com o seu meio, retirados de uma coleção didática não adotada na escola, a qual se constituiu como fonte de pesquisa da pro fessora da turma. Ela se utilizou de diferentes recursos como forma de “chamar a atenção dos alunos para a leitura dos textos” . Foram lidos oralmente, antes da lei tura do primeiro texto, uma parábola, e antes do segundo texto, como recurso visual, o mapa das regiões geográcas do Brasil. Reetindo a esse respeito, convém relembrarmos a visão de Geraldi (1993), para quem essa motivação exterior camua uma concepção de leitura que se legitima na autoridade, apagando a relação interlocutiva entre leitor e texto. Se o aluno fosse ao texto por vontade própria, ou desejo intrínseco, e não para cumprir tarefas que lhe são impostas, não seria necessário “motivá-lo” para a leitura. Tanto é insatisfatório o recur so a essa “motivação” que, em nenhum momento, durante as aulas, a voz do aluno foi realmente solicitada, cando sua participação restrita a monossílabos. Em seguida, a professora distribuiu o primeiro texto em uma folha mimeografada, cuja leitura os alunos rejeitaram, reclamando da sua extensão. Isso, de antemão, nos revela uma das imagens que o aluno tem em relação à leitura na escola: desinteressan te, cansativa, penosa. Após a distribuição, a professora estabeleceu um objetivo para as leituras, procedimen to que, segundo ela, “serve para o aluno avaliar a sua compreensão em relação ao texto”. Essa posição da professora é endossada pelos príncípios psicolinguísticos, nos quais o co nhecimento especíco do motivo da leitura realmente permite ao leitor monitorar a sua própria compreensão do texto. Entretanto, essa estratégia, que poderia ser considera da interessante, perdeu, em parte, sua validade, pois a professora explicitou o tema de
cada texto, em seguida. 70
Terminada a fase de apresentação dos textos e dos comentários da professora sobre eles, passou-se à leitura oral dos alunos. Nesse momento, enfatizou a mecanicidade do ato de ler, demonstrando interesse pela decodicação perfeita, marcada especial mente pela boa entonação, dicção, pontuação que, segundo Carbonari et al. (1997), se caracteriza como a leitura oral instrumental, pois se presta à mera emissão de voz. Conforme a professora, essa atividade tem o objetivo de “praticar a leitura para se ler com melhor uência” . Porém, a leitura oral parece também exercer a função de auxi liar no controle da disciplina da turma, já que sua solicitação, muitas vezes, foi feita aos alunos que não prestavam atenção nas aulas. Depois da leitura oral, em ambos os casos, foi feita a numeração dos parágrafos.
A produção de sentidos na aula de leitura
Para a professora, essa prática é o momento de os alunos perceberem e analisarem
aspectos relacionados à coesão e à coerência textuais. Entretanto, em todo o restan te das aulas essa numeração foi esquecida, a não ser para localizar alguma ideia ou informação pontuada pela professora durante a explicação do texto ou o estudo do
vocabulário. Passou-se, a seguir, à leitura silenciosa, que teve como objetivo, no texto 1, localizar palavras desconhecidas, dando início ao estudo do léxico, via dicionário. Conforme a professora, esse tipo de estudo auxilia o aluno no entendimento do texto e faz com
que ele aprenda os signicados das palavras. Isso nos revela a concepção de que a compreensão está atrelada ao reconhecimento das “palavras desconhecidas” , fazendo emergir, mais uma vez, a decodicação como objetivo principal. Quanto à ordenação das atividades, parece-nos incoerente a solicitação da leitura silenciosa posteriormente à oral. Se o que realmente interessa à professora é a decodi cação, a leitura silenciosa seria a etapa mais ecaz para isso, já que é o momento do contato individual com o texto. Então por que é negado ao aluno esse momento de reconhecimento do texto, esse primeiro contato solitário? Observemos a justicativa da professora: P: “bom... a oral antes da silenciosa...ãh: porque primeiro tem que ter uma com preensão global do texto e depois a individual... há uma melhor compreensão... a sua relação é maior com o texto...aí é só você que está lendo... na leitura oral coletiva não tem profundidade... às vezes o aluno não presta tenção... a silen ciosa faz o aluno entender melhor o texto”.
Nessa justicativa, há incoerência entre a fala e a prática da professora. Primei ramente, de acordo com suas palavras, a leitura oral deixou de ter como objetivo o
treino da leitura uente, como justicado anteriormente. Conforme a fala de agora, ela se presta à “compreensão global” do texto. Em segundo lugar, logo após armar que a leitura oral fornece uma compreensão global do texto, a professora diz que é a leitura 71
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silenciosa que proporciona uma relação maior com o texto, no âmbito do signicado, pois é através dela que “o aluno entende melhor o texto” . Se é assim, por que, em sua prática, privilegia a oralização do escrito, em detrimento da leitura silenciosa? Na verdade, a compreensão, para a professora, é única, linear e ocorre no momento da oralização do texto. Essa ilusão não é só compartilhada pela professora, mas também pelo aluno. Daí o entusiasmo e a ansiedade dos alunos em realizar essa tarefa. Vale a pena destacarmos que a leitura oral coletiva não foi realizada em nenhum momento das observações, fazendo-nos concluir que a professora vê como sinônimos a leitura oral individual e a oral coletiva. Essa metodologia: leitura oral, numeração de parágrafos, trabalho com o vocabu lário revela-nos uma concepção tradicional de texto como um conjunto de vocábulos
a decifrar. Especicamente, o “estudo do vocabulário” , para o aluno, reduziu-se ao levantamento das palavras desconhecidas, e para o professor, à transmissão dos seus signicados, via material didático. Grigoletto (1995) postula que tal comportamento cristaliza uma concepção dos papéis do aluno e do professor na sala de aula: este de tém o saber, aquele recebe o conhecimento. Ao ser questionada sobre a sua concepção de leitura, a professora a caracterizou como um “instrumento de aprendizagem” . Ela a vê como um instrumento de comu nicação, “organizador de ideias” , e de apropriação da gramática, o que nos remete à abordagem tradicional de ensino, para a qual ler equivale a decifrar um código, uma vez que o sentido se encontra somente nas palavras. Justica-se, assim, na prática, essa listagem de vocábulos e a oralização do texto escrito, visto que a leitura se inicia com a decodicação das letras e palavras, e acaba com a constatação do conteúdo do texto. Na sequência das aulas observadas, houve uma abordagem do texto 1 por partes, localizando as ideias principais de cada parágrafo. Ao explicar essa abordagem, a pro fessora arma: P: “[...] eles têm que participar, a gente tem que avaliar a oralidade deles... nossa... porque eles participam...você notou? Chama mais a atenção... você ler e explicar o texto é diferente do que você pedir para o aluno falar...”
Nessa fala, percebemos que o objetivo não é interagir, construir signicados, agir, conhecer a história de leitura do aluno. Novamente instala-se a articialidade no dis curso pedagógico, que apresenta como objetivo maior a aferição da oralidade do alu no. Além disso, tal prática corrobora a concepção de leitura linear, que estabelece o sentido centrado todo no texto. Essa leitura é conduzida, muitas vezes, pela utilização de perguntas retóricas, como um recurso linguístico de argumentação: P: “então quer dizer que a vespa e a abelha... as duas utilizam o néctar... não é?... é... só que uma produz alguma coisa? faz alguma coisa para os outros? é isso?” A: xx “é....”
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Para avaliar a compreensão do aluno, a professora pediu, após a leitura tópica, um resumo oral do texto:
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P: “quem poderia resumir o texto para mim? por que era para prestar atenção... teve gente que não estava nem aí com o texto e nem aí com a leitura... agora eu quero saber de vocês... o que VOCÊS entenderam...”
Nesse contexto, essa atividade teve, evidentemente, o objetivo de castigar, pois já se pressupunha a falta de capacidade do aluno para resumir o texto. Apesar de querer avaliar a leitura do aluno, a professora não cedeu espaço a ele para colocar suas im-
pressões, as quais foram explicitadas por um aluno, monitorado pela professora. Não houve a pergunta real “o que vocês entenderam?” , mas sim uma condução de raciocínio, como podemos observar: A: “[...] cada um faz a sua função... a abelha suga o néctar da mesma forma como a vespa, mas só a abelha produz o mel... a vespa não...” P: “hum... hum... e vocês acham que as pessoas que franzem a testa né.... são aquelas que gostam de prejudicar os outros.... que gostam de fazer maldade... elas são felizes?” A: xx “não...” P: “de acordo aqui com o autor, como são essas pessoas”? A: xx “são uma sombra...” P: “são tristes?” A: xx “elas convivem com elas mesmas...” P: “qual a maior vítima dessas pessoas?” A: xx “ela mesma...”
Em seguida, ao questionar a turma sobre a adequação do título ao texto, a profes sora revelou reconhecer o título como uma categoria, uma parte central signicativa do texto e utilizou tal conhecimento como um critério de compreensão da leitura; fato positivo à compreensão, haja vista que leva o aluno a sumarizá-lo. Quando questionada sobre o que é ser um bom leitor e quais os critérios utilizados para essa avaliação, basicamente a professora armou que o bom leitor é aquele que percebe a intencionalidade do texto: P: “[...] todo texto tem uma intencionalidade ... o autor escreve pra alguém .. né ... esse alguém tem que perceber porque que ele escreveu .. né ...”
Embora reconheça o “para quem” no processo da leitura, ou seja, o interlocutor, a
ênfase maior está no autor do texto, já que o bom leitor é aquele que descobre o que o “autor quis dizer” . Esse critério revela-nos que aqui a linguagem é concebida como “expressão do pensamento” (GERALDI, 1997), por isso há somente uma leitura legí tima. A professora considera o aluno que percebe essa “intencionalidade” como um leitor crítico. Mesmo utilizando termos ou expressões mais atuais da pedagogia do en sino da leitura, como “intencionalidade” , “espírito crítico” , “para alguém” , podemos 73
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assinalar que a professora tomou supercialmente esses termos, transferindo-os ina dequadamente para a sala de aula, tornando a sua prática pouco eciente ao objetivo de desenvolver o espírito crítico no aluno, porque a leitura para no que o “autor quis dizer” , não chegando ao nível do implícito, na contrapalavra do leitor, no que o leitor pode ler e dizer. A abordagem do texto 2 foi um pouco diferente: após a numeração dos parágrafos, ele foi explicado pela professora. Apenas após a explicação do texto fez-se a “leitura silenciosa” , que também estava a serviço do “estudo do vocabulário” , ou seja, para destacar as palavras cujos signicados eram desconhecidos. Diante disso, nos questionamos acerca da razão que levou a professora a insistir em trabalhar com o léxico do texto depois da “compreensão” , pois se o aluno já “com preendeu” , não tem sentido trabalhar com o vocabulário. Realizado nesse momento, o “estudo do vocabulário” não foi um auxiliar para a produção dos sentidos, como justicado pela professora, porque enfocou o resultado em lugar do processo, e só ocorreu por fazer parte de um ritual, de uma pró-forma. Esse procedimento pode vir a ser um reexo do tipo de proposta que o livro didático normalmente traz em relação ao vocabulário. No início da aula seguinte, após o “estudo do vocabulário” , a professora entregou aos alunos algumas questões escritas como tarefa sobre a compreensão do texto. Essas questões foram copiadas do livro didático do qual os textos haviam sido retirados. Elas se caracterizaram como perguntas que não ultrapassavam o nível linear da leitura. Elas requeriam que os alunos voltassem aos textos e copiassem as informações solicitadas. A professora avaliou essa atividade como auxiliar na compreensão e produção textuais, funcionando mais como um exercício de escrita e um reforço dos aspectos do texto
levantados nas aulas. Ao copiar os exercícios de compreensão do livro didático e corrigi-los de acordo com as respostas fornecidas por esse material, a professora assumiu, mesmo que in conscientemente, a leitura ali produzida e preconizou essa leitura ao aluno, apagandose como sujeito e negando esse papel também ao aluno. Entretanto, antes da correção dessas questões, foram destacados alguns aspectos do texto que ainda não haviam sido explorados. Para tanto, ao texto foram trazidas atualidades e o aluno ganhou voz: P: “e::: tem uma parte aí que ele diz assim... é preciso votar bem... o que vocês entendem por isso”? A: “então... é porque tem político assim... que são muito... tem muita ganância e todo dinheiro eles não usam pro povo eles usam para eles...” P: “isso”... então o que são bons candidatos para vocês? [....] “e quem leu a revista Veja desse mês... tem uma reportagem lá... [...]” A: “eu lembro que a professora de História falou... [...]”
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Conforme a professora, essa “atualização” é importante para desenvolver o espíri-
to crítico do aluno. Assim, nesse momento da aula, que denominamos contextualiza ção, a participação do aluno se fez qualitativamente e a produção de sentido ocorreu pela intertextualidade, pela reexão, pelo relato de experiências dos alunos. De acordo com Geraldi (1993, p. 171):
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atitudes produtivas na leitura é que fazem da leitura uma produção de sentidos pela mobilização dos ‘os’ dos textos e de nossos próprios ‘os’ que podem ser recuperadas de nossa história de leituras externas à escola”. Propiciou-se, então, uma abertura, uma partilha de sentidos, pois, tanto a professora como
os alunos, zeram emergir os sujeitos reais, transformaram a sala de aula em um lugar real de interação. Nesse momento, o objetivo de formar leitores crí ticos entrou em sintonia com essa prática de ensino de cunho interacionista e
promoveu-se uma atividade positiva à formação de leitores.
Quando questionamos a professora acerca da importância da contextualização na leitura de um texto, ela nos deixou transparecer o posicionamento teórico de que contextualizar é trabalhar com textos atuais. Logo, o contexto é visto como o “acontecimento, o fato cotidiano” . A noção de situacionalidade, que se refere à adequação do texto à situação discursiva na qual se apresenta, restringe-se à atualidade de um tema, não abrangendo uma análise das condições de produção do texto, mas atua como um critério de seleção de textos, o que, segundo a fala da professora, é “algo que estimula mais o aluno a ler” . A valorização da leitura de textos atuais presente no discurso da professora, na prática, nem sempre é observada, em virtude dos textos utilizados nas aulas analisadas
não serem textos atuais. Como já enfatizamos anteriormente, a “contextualização” cou a cargo de um momento em que o aluno ganhou voz, emitindo opiniões, contan do casos particulares, trazendo o senso comum à sala. Não houve o trabalho de análise das condições de produção do texto e a contextualização resumiu-se à contraposição do tema do texto a fatos atuais. Sua prática, portanto, é sustentada pela visão teórica de que contextualizar é “atualizar” o texto. Manifestando-se em relação às condições oferecidas dentro da escola, para que o seu trabalho com a leitura seja ecaz, a professora considera-as negativas pela falta de material atualizado para leitura (revistas, jornais, livros) e pela falta de apoio pedagó gico à procura desse tipo de material. Para ela, dessa forma, a escola não é um lugar favorável à leitura, o que a torna cansativa e, às vezes, até desnecessária. Os reconheci dos temas de interesse dos alunos não se encontram ao seu alcance, devido à falta de apoio pedagógico para a coleta de material. Então, a professora divide com a escola a responsabilidade de formar leitores, bem como o ônus de um provável insucesso. Se, de acordo com a interpretação da professora o material didático existente é 75
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insuciente e a cobrança da leitura ali presente é supercial, por que, mesmo “consciente” dessa supercialidade, a professora retirou do livro didático os exercícios de interpretação ao trabalhar com o texto 2? Na realidade, a professora demonstrou co nhecer o discurso sobre o ensino de língua materna que circula no meio acadêmico, no qual muitas pesquisas apontam que o material didático não deve ser a única fonte para o trabalho em sala, porque as obras didáticas exploram, na maioria das vezes, a leitura linear. Contudo, sua prática legitima a leitura do autor do livro didático, pois, conforme analisamos, o objetivo da leitura é “descobrir o que o autor quis dizer” . Coracini (1995) considera esse um fator de complexidade na aula de leitura, já que o professor incorpora a voz do autor do livro didático com total isenção e objetividade. Como atividade nal, a sala foi organizada em pequenos grupos e a professora so licitou a cada grupo uma produção textual, a partir de manchetes e ilustrações sobre meio ambiente, ecologia, trazidas de casa. Novamente, segundo a professora, o objetivo da solicitação dessa produção textual foi desenvolver o espírito crítico do aluno, e para ela, o trabalho em grupo é mais pro dutivo nesse aspecto. Cada grupo se reuniu para escrever seu texto, que nasceria do ma terial trazido por eles. A professora passava de grupo em grupo e os auxiliava, conforme surgiam as dúvidas. Ao terminar os textos, a sala montou um grande painel denominado “jornal ecológico”, no qual foram expostas notícias, curiosidades, críticas, histórias em quadrinhos e regras de como preservar o meio ambiente escritas pelos alunos. Não nos interessa aqui analisar as condições de produção dessa escrita em situação escolar, mas destacamos que, nesse momento, consideramos o aluno como sujeito enunciador do processo, porque o material escrito é uma leitura sua sobre o tema e o texto ganha o status de expressão criadora do seu pensamento. A partir do momento em que os membros de cada grupo se puseram a discutir sobre o material trazido e os textos que estavam sendo redigidos, contrapuseram-se leituras, trocaram-se expe riências, instaurou-se a interação. Colocando-se como leitores da palavra do outro, reconstruíram interpretações. Portanto, a nosso ver, essa foi outra atividade produtiva desenvolvida, ao lado da contextualização, para a formação de leitores críticos. Entretanto, apesar de a professora ver nessa atividade o “fechamento” dessas aulas de leitura, percebemos que a produção textual não se apoiou na leitura dos textos trazidos à sala, mas sim no material trazido pelos alunos. Cria-se a impressão de que essa produção de texto se constitui em um elemento à parte dentro desse conjunto, pois não se propi ciou aos alunos a relação do contexto anterior ao material coletado por eles. Outra desarticulação ocorreu quando da exploração temática e estrutural dos tex tos lidos. Apesar de ter armado preferir trabalhar com mais de um texto referente ao mesmo tema, em nenhum momento a professora contrastou os textos. Então, embora
tenha se mostrado consciente da relação temática existente, não aproveitou isso para
a análise, deixando transparecer, mais uma vez, a sua visão fechada, única, em relação aos textos. A nosso ver, essa fragmentação segue o modelo do próprio material didáti co. Citando Carbonari et al.(1997), de modo geral, os elementos dentro de uma unida -
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de didática são marcados pela descontinuidade, pelo desvinculamento, concebendo,
assim, o conhecimento como algo compartimentalizado e fragmentado. Quando questionadas sobre a função e a importância da aula de leitura, a professo ra relatou que os objetivos dessa aula são tornar o aluno mais apto a ler e a desenvol ver o espírito crítico. No entanto, vimos que as atividades realizadas legitimaram uma única leitura, não dando espaço para o surgimento de outras. Fica a impressão de que a leitura dos textos serviria, na verdade, somente para se expor um tema, ignorando-os como materialização de gêneros discursivos. A abordagem dada aos textos consistiu em uma abstração que desconsiderou as condições de produção desses textos, colo cando-os a priori de seus eventos comunicativos. Certamente, a prática pedagógica da professora é determinada não apenas por uma inconsistência teórica, mas também pela atuação de forças externas, de imagens inte riorizadas. De forma geral, percebemos que essa metodologia adotada explicita um imaginário discursivo no que diz respeito, dentre outras coisas: • ao lugar que os alunos ocupam como “receptáculos” das informações transmi tidas pelo professor; • ao lugar que a professora ocupa como a detentora do poder, do saber e do fazer; • ao que signica aprender/ensinar a ler como forma de se veicular informações aos alunos, fragmentando o processo de leitura, enfocando ora somente o autor do texto, ora somente o texto em si; • à concepção de texto como objeto fechado, acabado, estático; • à concepção de linguagem como “expressão do pensamento”, o que legitima a neutralidade e transparência textuais; • à sala de aula como lugar de transmissão de conhecimentos; Portanto, caracterizamos essa metodologia de leitura como ainda fortemente anco rada na abordagem tradicional, para a qual ler signica decodicar o texto, reprodu zindo linearmente um signicado. Contudo, acreditamos que o mais importante nesse olhar crítico é termos proporcionado à própria professora um momento de reexão em torno de sua prática. Ao retornar-lhe as análises das aulas, ela nos revelou: P: “ãh:: bom... primeiro eu gostaria de te dizer que eu gostei muito de participar do seu trabalho... quer dizer... no começo quei com receio... meio sem jeito”
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E: “por quê?” P: “é que eu... eu pensei que você fosse avaliar e nada mais... sabe... do tipo de crítica mesmo...” E: “como assim?” P: “ah... quando eu li a sua análise eu vi que não era só... só errado e certo.. você também quis mostrar o porquê...” E: “então você achou válido este retorno?” P: “olha... eu achei muito válido esse retorno... sabe... pra mim foi um desper tar... né... melhorar na vida... no prossional..”. E: “você acha que a partir dessa sua experiência pode ocorrer alguma mudança?” P: “já mudou... porque é uma preocupação... porque eu vi que existem melho res métodos e a gente tem que tentar buscar novos caminhos... na realidade essa pesquisa foi um cutucão...” E: “uhumm... tá...” P: “sabe... era como se não fosse eu... eu me vi incoerente na prática e com necessidade de maior conhecimento teórico...”
Seu depoimento mostra a importância desse estranhamento em relação a nossas próprias ações, pois é essa atitude que cria condições para desmisticações, quebra do estado contínuo, no qual nós, professores, estamos imersos, e para a vontade de reaprender, de “buscar novos caminhos” emergir. Até então, ela não enxergava suas próprias contradições e o estranhamento de si mesma é que lhe proporcionou a reexão em torno de sua inconsistência teórica quanto ao ensino da leitura. Demonstrou ainda não reconhecer a existência das outras forças, sociais, culturais, e até mesmo históricas, que moldam a sua imutabilidade pe dagógica, porque não teceu comentários sobre isso. Desta maneira, assumimos a necessidade de o professor se ver como um ser ina-
cabado, incompleto, que necessita de uma “realimentação” , já que a sua formação continua ao longo de sua vida prossional. Nessas condições, é fundamental que a produção cientíca assuma a posição de co-autora das transformações pedagógicas, permitindo ao professor momentos de revisitação, de estranhamento, de reexão em relação a sua prática. Então, conhecedor das circunstâncias históricas e socioculturais que denem sua conduta, ele tem reais condições de apreender aparatos teóricos.
MODOS DE PENSAR E DE FAZER O ENSINO-APRENDIZAGEM DA LEITURA Em função desse contexto de crise “da leitura na escola”, Perrotti (1993) considera que promover a leitura isoladamente não basta mais, visto que se deve pensá-la dentro do processo de produção cultural da sociedade e da escola. É por esse motivo que os PCN (BRASIL, 2000) orientam para a compreensão da leitura como uma prática social complexa, e isso requer sua inserção, na sala de aula, em uma situação de leitura “para valer”, como defendem Jolibert et al. (1994). Voltados ao 1º e 2º ciclos, estes autores fa zem propostas para tornar o processo da leitura signicativo no contexto escolar. Para tanto, defendem a necessidade de se lerem textos reais, funcionais, já que o objetivo 78
das aulas de leitura é a criação de situações de leitura “para valer” , uma vez que “não
se lê para aprender a ler” (exceto nas atividades de sistematização), lê-se sempre por um interesse imediato. A vida cooperativa na sala de aula e a prioridade conferida à elaboração conjunta de projetos de leitura são o que garantem o seu aprendizado:
A produção de sentidos na aula de leitura
Fazer viver uma aula cooperativa é efetuar uma escolha de educador. Signica acabar com o monopólio do adulto que decide, recorta, dene ele mesmo as tarefas e torna asséptico o meio. É fazer a escolha de um processo que leva a turma a se organizar, gerir seu espaço, seu tempo e seu orçamento (JOLIBERT et al., 1994, p. 20).
Nessa perspectiva, a prática da leitura constitui-se também objeto de aprendizagem, uma vez que não se vai mais ao texto de forma gratuita, mecânica. Estabelece-se uma atitude produtiva em sua relação, respondendo objetivos de realização imediata e pro-
vocando necessidades reais nos alunos. Recongura-se o papel do aluno, que antes, passivo, só lhe cabia “entender”, “responder”, “executar” tarefas sem sentido para ele; agora, trata-se de um sujeito cheio de perguntas próprias, que busca os textos com ob jetivos próprios, com vontade de “querer saber mais” (GERALDI, 1993). Você pode estar se perguntando o que isso signica para a sua prática, ou melhor, para a prática de qual quer professor. Tentamos esclarecer, primeiramente, com um recorte do próprio PCN: Signica trabalhar com a diversidade de objetivos e modalidades que caracteri zam a leitura, ou seja, os diferentes “para quês”- resolver um problema prático, informar-se, divertir-se, estudar, escrever ou revisar o próprio texto – e com as diferentes formas de leitura em função de diferentes objetivos e gêneros: ler buscando as informações relevantes, ou o signicado implícito nas entrelinhas, ou dados para a solução de um problema (BRASIL, 2000, p. 54-55).
Em relação a essa diversidade de modalidades de leitura e aos procedimentos que elas requerem do leitor, Geraldi (1993) exemplica quatro alternativas para a “entrada” do texto na sala de aula: a) ir ao texto em busca de respostas às perguntas formuladas (leitura-busca-de-informação); b) ir ao texto para escutá-lo (leitura-estudo-do-texto); c) ir ao texto para usá-lo na produção de outras obras, outros textos (leitura pretexto). Nesse momento, faz uma ressalva quanto à existência de pretextos ilegítimos, por exemplo, a utilização do texto para a mera incorporação taxionômica de conceitos da
gramática tradicional; d) ir ao texto de maneira despojada (leitura-fruição). O mais interessante é observarmos que as alternativas apontadas por ele consti tuem-se em diálogos com o texto e, como tal, exigem o reconhecimento do outro: “porque lendo a palavra do outro, posso descobrir nela outras formas de pensar que, contrapostas às minhas, poderão me levar à construção de novas formas, e assim su cessivamente” (GERALDI, 1993, p. 171). Pelo exposto até aqui, muito produtivo para nossa formação é nos inquirir sobre a nossa própria relação com os textos e os tipos 79
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de relações que propomos aos alunos: será que, ao ler um texto, colocamo-nos nessa relação de diálogo, ou nos mantemos no limite de reprodução de informações? As atividades de leitura que desenvolvemos em sala de aula criam condições para o esta belecimento dessa postura dialógica com os textos? Somos capazes de aceitar e escutar leituras diferentes e dialogar com os alunos sobre os textos? É por isso que não podemos mais aceitar um único sentido fechado para o texto, porque o signicado depende da história de leitura do leitor, a qual é marcada pela ex periência, pelo trabalho do outro (autor) em escolher, conforme as palavras de Geraldi (1993), as “estratégias do dizer”. Nesse momento, você pode estar se perguntando se essa transposição didática (transformações a que um conceito de conhecimento é submetido com o objetivo de ser objeto de ensino e aprendizagem) é algo fácil de se conseguir. Respondemos que não, porque nossa própria formação não nos ensinou sermos questionadores, desconados em relação ao que está posto, escrito nos textos. E agora esse é o desao do professor de língua materna: desenvolver nos alunos es tratégias e posturas que não fazem parte de nosso paradigma sobre o ato de ler, mas que representam, em uma sociedade desigual como a nossa, um dos caminhos para a inclusão social do aluno, de acordo com o que nos ensina Foucambert: Compreende-se bem que, numa sociedade economicamente desigual, uma sociedade que funciona a partir da exploração do trabalho humano, uma so ciedade estruturada em torno de lutas de classe, a questão do domínio dos instrumentos de pensamento é determinante, domínio que se resume, na reali dade, ao seu consco por uma minoria que se arroga o direito de dizer como o mundo é, pode ser, deve ser. Assim, essas linguagens são também instrumentos tanto de opressão quanto de emancipação. Eles, são, desse modo, considera velmente enfraquecidos. A humanidade vive, em sua grande maioria, abaixo de seus meios no plano intelectual, porque a dominação organiza a impossibilidade de pensar um mundo diferente, fecha-se na conservação do que adquiriu e faz da manutenção de uma desigualdade legitimada (chama-se isso de equida de) o objetivo de todo sistema de ensino (FOUCAMBERT, 2004, p. 6).
Desta forma, um dos caminhos para que a prática da leitura na escola se torne “um instrumento para pensar o mundo, construir visões de mundo” (FOUCAMBERT, 2004, p. 6), são os projetos de leitura, que vêm ao encontro dessa perspectiva dialógica do ensino e aprendizagem da língua materna, pois desenvolvidos de maneira coletiva, têm como objetivo a realização de uma atividade de linguagem, como, por exemplo, a organização da festa junina da escola, a apresentação teatral em um evento, a comemo ração de nal do ano letivo. Observemos que tais atividades são muito frequentes em nossas escolas, mas, na grande maioria das vezes, não são aproveitadas como situações para contextualizar a necessidade de ler. Em relação à elaboração de projetos leitura, uma opção possível é o professor, ao início do ano letivo, discutir suas propostas com os alunos, solicitando deles sugestões 80
de trabalho que visem à exploração de textos escritos, e incluí-las conforme as necessi dades do grupo, em seu planejamento. Para isso, é necessário que o professor conceba sua aula sob a perspectiva da cooperação, citando novamente Jolibert et al. (1994). Tratando das condições gerais para a formação de leitores, Foucambert (1994, 1997) propõe a “desescolarização” da leitura, ressaltando a necessidade da promoção do desenvolvimento da leitura social; é preciso “leiturizar” nossos alunos, ou, em outras palavras, é preciso priorizar a urgência de se ter coisas para compreender, transformar, conquistar, ultrapassar. Metodologicamente, o ponto de apoio para essa “leituralização” é o trabalho que prioriza a diversidade, tanto das modalidades quanto dos modos de recepção dos textos. Paralelo a isso, a confrontação entre pontos de vista, a antecipação do por que ler, a análise do funcionamento da escrita do texto e a produção de textos sustentam uma prática que promove o ensino da leitura. Denido o “para que” se ler (e essa decisão é também coletiva, uma vez que envolve toda a comunidade escolar, e às vezes, dependendo da natureza do projeto, extrapolase os muros escolares), chamamos sua atenção para o “como” ler . A partir de agora, não temos o objetivo de fornecer “receitas”, mas sim discutir procedimentos orienta dores para uma prática inclusiva de leitura. Torna-se importante para nossa reexão pontuarmos que, a partir dos princípios até aqui defendidos, concepções do professor como o único detentor do saber; do aluno como ser passivo e vazio de conhecimento; da sala de aula como o único espaço de aprendizagem; do conhecimento como um dogma a ser ensinado; da leitura como mera decifração e extração de informação, são postas como inválidas, pois o que se busca é a construção de um professor mediador, provocador. Então, quais caminhos trilhar? É na tentativa de mapear possibilidades para a prática de leitura na escola que continuamos nosso diálogo.
A produção de sentidos na aula de leitura
ASPECTOS METODOLÓGICOS DO PROCESSO GERAL DA AULA DE LEITURA Se tomarmos como princípio que a língua se materializa nos gêneros, o interessan te é conseguirmos colocar nossos alunos em situações de produção de linguagem, ou seja, em uma situação mimética em relação à situação original de produção do gênero, e, com isso, trabalhar simultaneamente a escrita, a leitura e as reexões sobre a língua (metalinguísticas). Assim, ao nos referirmos à “aula de leitura”, não estamos propondo uma dicotomização dessas práticas, mas sim direcionamos nossa atenção para uma das
fases de nossa ação pedagógica, a compreensão textual. Embora as reais condições sócio-históricas do nosso sistema de ensino legitimem o livro didático, essa realidade não deve neutralizar a posição de sujeito-ativo que aluno e professor devem assumir no processo ensino-aprendizagem. Exemplo de uma prática simples, mas que alarga bastante essas limitações, é o professor escolher 81
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juntamente com os alunos quais textos do livro didático adotado serão materiais de trabalho e complementar essa escolha com textos não-didáticos que podem ser sugeri dos pelos alunos. Outra possibilidade é o aproveitamento de textos presentes no livro didático adotado, em função dos projetos de leitura a serem desenvolvidos
Em relação à adoção de livro didático, o que não podemos deixar de fazer é analisar as propostas de trabalho oferecidas pelo manual, pois a incoerência e a desarticula ção ainda são características de muitas coleções. Assim, o material utilizado nas aulas deve ser preparado pelo professor para que ele assuma a posição de um dos sujeitos do processo e essa preparação deve incluir: a especicação dos objetivos pedagógi cos dominantes das aulas; uma análise prévia das características dos textos que serão trabalhados, a partir do que requer a noção de gênero discursivo; a antecipação de possíveis aspectos nos quais a análise deverá se aprofundar; a delimitação da estrutura da aula em trabalho coletivo, em grupo, dupla etc. A bibliograa relativa aos procedimentos metodológicos concernentes ao momen to especíco da compreensão textual, em situação escolar, tem apontado três momen tos para essa organização: o momento do antes, do durante e do após a leitura do texto. As propostas esboçadas abaixo procuram promover a articulação entre aspectos cognitivos, os quais foram discutidos de maneira aprofundada em capítulos anteriores, e discursivos do processo de produção de sentidos dos textos. O PROCESSO GERAL DE UMA AULA DE LEITURA
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Antes da leitura: Preparação para o encontro com o texto
Avar o conhecimento prévio dos alunos, via aplicação de estratégias de pré-leitura (tema, especicidades do gênero, da pologia textual).
Durante a leitura: Encontro com o texto.
Promover a compreensão textual: momento de confronto, de discussões, em que o professor assume uma postura de insgador. Muito interessante é a aplicação de estratégias de compreensão que permitem o professor e aluno formular previsões sobre o texto a ser lido (leitura lacunar), esclarecer possíveis dúvidas sobre o texto que está sendo lido (inferenciação). Além disso, elaborar exercícios de carac terização de gêneros discursivos, abordando não só as caracterísicas linguísco-textuais, mas também as discursivas, via análise das condições de produção (reer sobre quem disse, quando, por que, para quem e como disse).
Após a leitura: Extrapolamento do texto
Promover a reexão sobre o processo: professor e alunos assumem uma postura de reexão. Muito produvo é a aplicação de estraté gias após-leitura, como avidades de levantamento de ideia princi pal (qual é a ideia mais importante que o autor pretende explicar com relação ao tema?), do tema (do que trata o texto?) e elaboração de resumos, diagramas, mapas semâncos. Além disso, desenvolver o pensamento críco do aluno, via análises contrasvas, comparavas, contextualizadas, sensibilizando o aluno para os efeitos de sen dos provocados ao se usar tal materialidade linguísica (por que este texto foi escrito dessa forma? E se vesse que ser produzido em situações diferentes? Em outro gênero?).
Enm, como já havíamos enunciado antes, o objetivo não é fornecer “receitas”, mas instaurar condições para a construção de possíveis caminhos que tornem o professor e o aluno sujeitos do processo ensino-aprendizagem por meio de um contínuo re-fazer e re-pensar, ambos vivenciando a polissemia própria da linguagem.
A produção de sentidos na aula de leitura
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A produção de sentidos na aula de leitura
http:www..ple.uem/br/defesas/pdf/lcbritter.pdf – Dissertação de Mestrado da autora. http:www.escrita.uem.br – Grupo de Pesquisa Interação e Escrita (UEM/CNPq).
Proposta de Atividade 1) O objetivo deste exercício é fazer você experienciar o estranhamento de sua própria ação pedagógica, com a intenção de iniciar um processo de reexão: grave aulas em que você te nha planejado trabalhar a compreensão textual. Caso não atue em sala de aula, grave aulas de outro professor. Como se você fosse produzir um diário, descreva essas aulas gravadas e anote suas impressões sobre elas, levando em consideração: a) série em que ministrou a aula; b) conte um pouco sobre o perl da turma; c) como iniciou a aula; d) como você selecionou o material de leitura: quais gêneros selecionados, qual a justicativa dessa escolha, como você caracterizou os textos selecionados, quais os desaos que seus alunos terão que transpor para a compreensão dos textos; e) quais atividades foram desenvolvidas; f ) qual foi a organização geral das aulas, ela foi desenvolvida nas etapas descritas como antes, durante e após leitura; g) que tipo de trabalho foi desenvolvido: em dupla, em grupo, individual; h) como foram trabalhados os exercícios: as atividades de leitura levaram em consideração os elementos da situação comunicativa dos gêneros selecionados; i) qual a reação dos alunos; como eles atuaram durante as atividades propostas; j) em qual concepção de leitura o trabalho está fundamentado: como foi a postura do professor, qual foi o papel do aluno nessas aulas, os sentidos foram reproduzidos, construídos, co-construídos; l) para que serviram as aulas: explique se ela contribuiu para a formação de leitores críticos.
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Anotações
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Avaliação de leitura Renilson José Menegassi
A AVALIAÇÃO COMO INSTRUMENTO PARA FORMAÇÃO DO LEITOR O entendimento da avaliação de leitura como um instrumento na situação de ensi no de língua materna é primordial para compreendermos que, através dela, podemos contribuir para a formação de um leitor competente, como designam os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997). Não podemos deixar de compreender que os princípios da avaliação são os mesmos em qualquer disciplina, ou seja, conhecer o que o aluno aprendeu e saber o que foi efetivamente internalizado pelo ensino oferecido. Assim, com as novas concepções de ensino de língua, envolvidas aí também as novas concepções de leitura, de escrita e seus respectivos ensinos podemos pensar que a avaliação de leitura deve ser vista sob parâmetros diferenciados daqueles da visão tradi cional. Pela abordagem tradicional, a leitura era avaliada sob duas perspectivas: prova da leitura oral, incluindo a pronúncia das palavras e a velocidade de leitura do aluno, que demonstrava uma adequada relação da letra (o grafema) com o som; e prova com questionário fechado de perguntas de compreensão sobre um texto. Esses instrumen tos demonstraram-se, ao longo dos anos, como não ecazes na formação do leitor com petente esperado pela sociedade, já que não ultrapassavam os limites do texto. Atualmente, discute-se o que se tem denominado avaliação formativa de leitura (SOLÉ, 1998; COLOMER; CAMPS, 2002). Essa avaliação, denida no seio da concepção sócio-interacionista de linguagem, a qual concebe a língua como uma realidade sóciohistórica, a partir de bases do socioconstrutivismo, propõe não mais uma avaliação de um produto pronto, centrada exclusivamente ao nal do processo de leitura, no qual se pode “estabelecer um balanço do que o aluno aprendeu” (SOLÉ, 1998, p. 164), como se fosse a averiguação da somatória dos conhecimentos que o aluno guardou na memória (o que não signica ‘aprender’), uma mensuração do saber declarativo do aluno, que ele pode expor de maneira a declarar o que aprendeu. A partir de seus instrumentos diversicados, a avaliação formativa, que, aqui, é o foco da atenção como avaliação de leitura,
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tem dupla função de, por um lado, informar aos alunos, como
avançaram e em que ponto se encontram no processo de aquisi ção de conhecimentos e, por outro lado, dar subsídios aos pro-
fessores para que possam ajustar os resultados da avaliação, se os objetivos previstos estão sendo alcançados ou não (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 172). Para a adoção dessa concepção de avaliação de leitura, o professor precisa ter cons-
ciência de que o aluno não é mais avaliado apenas ao nal de um mês ou um bimestre de aulas. Ele é avaliado como leitor em formação, no decorrer do processo em que o conteúdo está sendo ainda ensinado, não como leitor pronto, maduro. Assim, a avalia ção torna-se um processo contínuo que averigua o que está acontecendo na situação de ensino e aprendizagem, envolvendo, neste sentido, o aluno, o professor, o material didático, os textos e as condições de produção da leitura. Para tanto, de acordo com Colomer e Camps (2002), alguns aspectos são observados: A) “a avaliação deixa de ser um instrumento nas mãos do professor e passa a en volver também o aluno no controle de seu próprio processo” (p. 172). Nessa perspectiva, o aluno tem consciência de que está sendo avaliado para lhe per mitir a apresentação dos resultados de sua aprendizagem, evidenciando-se as suas diculdades e, consequentemente, as maneiras de superá-las. Obser vamos que não se aponta apenas o problema, mas também se conduz o aluno a tomar consciência dele, mostrando qual o caminho para superá-lo; B) “o reconhecimento da aprendizagem como uma construção do próprio alu no implica uma mudança na utilização dos instrumentos de avaliação, que perdem seu habitual sentido sancionador” ( p. 172). Nesse aspecto, o erro do aluno deixa de ser visto como determinante de má compreensão e passa a ser
encarado como uma fonte de informação do estágio atual de compreensão do processo de leitura, demonstrando, inclusive ao professor, as diferenças
individuais de cada aluno, quebrando a crença da homogeneidade de apren dizagem em sala de aula. A partir dessa noção, o erro é um forte indício das hipóteses que o aluno levanta sobre o texto lido. Assim, a avaliação de leitura deixa de ter o caráter sancionador que a concepção tradicional lhe conferiu, pressuposto a partir de um único instrumento de avaliação: a prova mensal/ bimestral. Na concepção formativa, os instrumentos de avaliação se diversi cam, sendo aplicados ao longo do processo de aprendizagem, permitindo ao aluno o controle de sua aprendizagem, consequentemente, a consciência dos seus modos de ler, de aprender; 88
C) “a integração da avaliação no processo de ensino-aprendizagem comporta a diversicação dos instrumentos de observação e medida” (p. 173). Nessa perspectiva, incluem-se:a observação dos conhecimentos prévios do aluno sobre o tema da leitura; o uso real dos conhecimentos armazenados, ou seja, o que o aluno já sabe fazer com aquele conhecimento prévio na sua vida; a diversicação de exercícios produzidos especicamente para caracterizar as facilidades e as diculdades de cada aluno-leitor, objetivando o acesso à cons ciência do processo; a produção de momentos avaliativos diversicados, não estanques a um período determinado do mês.
Avaliação de leitura
A partir desses aspectos, segundo Solé (1998), a avaliação formativa possibilita ao professor e ao aluno, ambos enquanto leitores do mesmo texto, enquanto coprodutores de sentido, em situação de ensino e aprendizagem: • observar a situação real de leitura, com suas peculiaridades próprias do mo mento, que se diversica a cada texto, a cada momento; • observar a si próprio, enquanto leitor, para tomar consciência de seu proces so de leitura; • observar o resultado da própria atuação na leitura, analisando as estratégias empregadas (seleção, antecipação, inferência e vericação), criando, assim, um processo consciente do uso de estratégias durante a leitura, podendo modicar esse uso conforme as necessidades da leitura e do texto; • permitir ao professor analisar: o funcionamento do seu planejamento para o trabalho com a leitura junto aos alunos; o interesse do aluno; a posição de compreensão do aluno; a clareza das informações oferecidas aos alunos; a clareza de informações oferecidas pelos alunos; o nível das informações e do conteúdo oferecido aos alunos, assim como sua compreensão; • tomar decisões como: se o professor continua a intervenção da mesma ma neira; a readequação dos procedimentos de leitura com o aluno; descobrir por que um aluno se perdeu no processo; recapitular pontos importantes; propor desaos que sirvam como objetivos de leitura; reiniciar o processo de maneira diferente, após constatar que o procedimento inicial foi inadequado. A partir desses pontos, o critério básico para a avaliação formativa, entendida como
o rompimento com o critério principal da avaliação tradicional, é a noção de “diversi cação de instrumentos avaliativos”. Desta maneira, não se pensa mais em uma prova única que inclua todos os pontos ensinados aos alunos, que são mensuráveis nesse es tilo de instrumento. Pensa-se na construção de instrumentos que avaliem os diferentes 89
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componentes e momentos da leitura, que permitam o acompanhamento do processo de ensino e aprendizagem da leitura tanto pelo professor, quanto pelo aluno.
ATIVIDADES PARA AVALIAÇÃO FORMATIVA DE LEITURA Os instrumentos de avaliação de leitura, comuns à escola, como questionários fe chados, provas, resumos, relatórios e discussões não podem ser relegados, porque no decorrer da história educacional demonstraram suas ecácias, considerada a con cepção de ensino de língua a que estava ligada. O professor consciente e ponderado não relega os instrumentos já marcados pela escola; pelo contrário, ele os utiliza, readequando-os à nova realidade proposta, no caso aqui defendido a da avaliação formativa de leitura, incorporando, criando, produzindo e aplicando novos instru-
mentos, conforme as necessidades se manifestem. Além das atividades conhecidas, Colomer e Camps (2002) sugerem algumas outras que podem ser incorporadas à avaliação escolar, com o objetivo de analisar o processo e o controle da leitura do aluno, que são aqui citadas e comentadas: • a análise dos erros cometidos durante uma leitura em voz alta – essa atividade permite ao professor detectar quais procedimentos deve tomar para melhorar a leitura do aluno, não para denegrir sua postura frente à atividade; para i sto, o professor deve saber que a leitura em voz alta é uma estratégia própria que não deve ser utilizada unicamente como maneira de avaliar a compreensão do leitor,
já que nem todos os leitores que a utilizam conseguem compreender o texto ao mesmo tempo que o lêem em voz alta; • a análise das autocorreções realizadas pelo próprio leitor – durante a leitura, seja em voz alta ou silenciosa, o aluno demonstra certos indícios de autocor-
reção, os quais indicam o seu nível de consciência sobre os erros que comete e os quais arruma no momento em que se produzem; a partir dessa atividade, o professor consegue identicar o nível de consciência do processo de leitura que o aluno possui, permitindo a produção e o planejamento de atividades que auxiliem na manutenção dessa consciência e na superação dos problemas apontados pelo aluno-leitor; • o nível de consciência do leitor sobre seus erros e autocorreções durante a leitura em voz alta – determinar o nível de consciência do aluno e permitir que ele tome essa consciência faz com que o processo de leitura tenha sentido para o aluno e para o professor. É preciso lembrar que, em situação de ensino e aprendizagem, a consciência, por parte do leitor, é um fator primordial para a adequada construção de conhecimentos; • a hipótese levantada pelo leitor para preencher os espaços que exigem 90
inferências no texto – essa atividade exige por parte do aluno uma explicação oral ou escrita da hipótese que levantou para construir a inferência no texto. Assim, ao esclarecer como descobriu, como chegou à inferência textual, o aluno está utilizando-se de uma estratégia metacognitiva, isto é, uma estratégia que faz uso da linguagem verbal para explicar conscientemente como procedeu para compreender o texto, na verdade, é uma explicação oral de sua compreensão. Por ela, é possível que o professor identique o percurso de leitura e detecte o procedimento que o aluno emprega na leitura dos diversos textos que lhe são oferecidos. Por exemplo, observemos as piadas:
Avaliação de leitura
1. - Desculpe, querida, mas eu tenho a impressão de que você quer casar comigo só porque eu herdei uma fortuna do meu tio. - Imagina, meu bem! Eu me casaria com você mesmo que tivesse herdado a fortuna de outro parente qualquer! 2. Perguntaram ao português: - O que é um homossexual? - É um sabão para lavar as partes. (POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas. Campinas/SP: Mercado de Letras, 1998.) Ao ler esses dois textos, o leitor é convidado a explicar a graça que há em cada pia da. Nesse momento, o professor consegue avaliar o nível de inferência e compreensão do leitor, pois ao explicar oralmente, o aluno está expondo o seu processo de com-
preensão e a maneira como constrói o conhecimento pela leitura. É um procedimento avaliativo importante, já que, além de mensurar a capacidade compreensiva do leitor, também se está avaliando o nível de argumentação oral do aluno, o seu discurso oral, podendo, inclusive, orientar o trabalho do professor para os pontos que devem ser atacados para melhorar a exposição oral dos alunos; • as estratégias adotadas pelo leitor para localizar, explicar ou corrigir erros en contrados no texto, propositadamente oferecidos pelo professor – nessa ativi-
dade, são alteradas algumas partes do texto deliberadamente pelo professor, para avaliar o nível de atenção do aluno e solicitar, posteriormente, explicações
orais ou escritas sobre os procedimentos empregados para localizar, explicar e 91
LEITURA E ENSINO
corrigir a inadequação encontrada; • a utilização de textos completos, não apenas fragmentos textuais – essa é uma estratégia importantíssima para ser seguida em situação de ensino de leitura. Durante muito tempo, o material didático oferecido ao aluno trazia fragmentos de textos, muitas vezes sem um mínimo de coerência entre as partes recortadas, para sugerir ao aluno a leitura da obra que se apresentava. Ao considerar-se que no seio da sociedade não se trabalham com fragmentos de textos, mas sim com textos completos, é presumível que a escola, como uma das instâncias sociais, também deva trabalhar com textos na íntegra. É lógico que, em alguns momentos, o fragmento cabe bem como exemplo, desde que seja explicado o procedimento da utilização desse fragmento. Recomenda-se trazer aos alunos o máximo possível de textos na íntegra, para que, além de conhecer todo o senti do do texto, o leitor em formação possa também manuseá-lo como se procede
naturalmente na sociedade; • a realização de situações de leituras próximas das situações reais da sociedade – o articialismo comum às situações de leitura na sala de aula deve dar lugar à criação de situações de leituras mais próximas possíveis de situações reais. É certo que as situações de leituras sociais não são trazidas na íntegra para o am biente escolar, porém, elas podem ser apresentadas próximas da realidade, em uma tentativa de se minimizar esse articialismo inerente à escola. Neste senti do, as avaliações de leitura, por si só, devem ser as mais próximas das situações reais de leitura que o conteúdo ensinado exige. Desse modo, produzir situações de avaliação de leitura que se assemelhem ao que o aluno encontra na socieda de em que vive é muito importante. Para isto, durante o período antecedente à avaliação, várias situações são construídas com o aluno, para que se aproprie dos procedimentos necessários. Ao chegar o momento da avaliação, que tam bém pode ser uma das situações corriqueiras de sala de aula, o aluno não se sentirá despreparado; ao encontrar, na sociedade, uma situação de leitura que exija dele uma posição de leitor competente, estará pronto para enfrentá-la; • o controle das diferenças do progresso individual dos alunos, nos diferentes tipos de leitura – ao se considerar que, no Ensino Fundamental, os alunos são crianças em fase de aquisição e início de desenvolvimento da linguagem escrita, está-se tratando também de aquisição e desenvolvimento da leitura, necessaria mente. Assim, cabe ao professor considerar cada aluno em seus aspectos indi viduais e não uniformizar o processo de leitura como se fosse coletivo, como
se o conjunto de alunos tivesse o mesmo procedimento de aquisição e desen volvimento da leitura. Neste sentido, acompanhar, através de anotações, de um 92
chário, os diferentes progressos individuais dos alunos permite ao professor identicar em que tipo de leitura o aluno está progredindo, em qual está com problemas, quais os procedimentos e estratégias que já domina etc., tendo, com isso, uma classicação ecaz da avaliação de cada leitor e, por consequência, da classe como um todo; • a consideração das possíveis diferenças interpretativas para um mesmo texto – esse ponto marca a interação entre o leitor e o texto, consequentemente com seu autor, a partir da mediação do professor. O texto, com seu signicado
Avaliação de leitura
oferecido pelo autor, apresenta-se ao leitor para ter sentidos construídos em
um processo dialógico que se inicia com as possíveis interpretações que o leitor realiza sobre o que lhe foi oferecido. Nesse momento, a participação do profes sor como mediador de leitura é importantíssima, porque ele orienta o diálogo do aluno com o texto, mostrando que toda leitura coerente é passível de ser aproveitada e considerada, na discussão em sala de aula; • a exploração do conhecimento prévio do aluno com questões que não tratem exclusivamente do signicado do texto, apenas do seu tema – nessa atividade, o professor consegue identicar, a partir da discussão inicial com o aluno, o nível de conhecimento prévio do leitor sobre o assunto do texto. Toma-se cuidado, nesse momento, para não direcionar, através das discussões antecipatórias, um sentido para o texto, mostrando ao aluno como se deve ‘compreender’ o tema apresentado. Na verdade, nessa fase de pré-leitura, o professor já efetiva uma avaliação inicial, para saber qual procedimento tomará no decorrer da leitura e no após para auxiliar e vericar a compreensão do aluno; • a síntese de textos, como construir títulos ou resumos a textos oferecidos para leitura – nessa atividade, oferecem-se aos alunos textos para a produção de
sínteses que, em uma perspectiva formativa de avaliação, demonstram a capaci dade de o leitor compreender e sintetizar o conteúdo do texto. Neste sentido, utiliza-se uma máxima da Psicolinguística, que propõe: ‘quem compreende, sin tetiza informações’. Essa é uma atividade própria da sociedade, pois ao assistir a um lme, ler um texto no jornal, na revista, um livro, normalmente o leitor é chamado a sintetizar o que leu para manifestar sua compreensão; • o levantamento das informações que se lembra imediatamente após a leitura e aquelas que demandam algum tempo depois – em um processo de avaliação de leitura, nem todas as informações são aproveitadas imediatamente após a leitura do texto; muitas delas são utilizadas em momentos posteriores, que são recuperadas da memória para que se concretize a compreensão do texto. De tal modo, em uma avaliação formativa, o levantamento das informações que estão 93
LEITURA E ENSINO
armazenadas na memória deve ser objeto de investigação com instrumentos que mensurem um tipo de leitura que seja voltada à realidade social, que faça signicado ao leitor, demonstrando seu uso efetivo na sociedade, não apenas para a produção de um momento único, que serve somente para mostrar que tem armazenada a informação solicitada. Cada uma dessas atividades pode ser apresentada em diferentes instrumentos de
vericação, dependendo do texto e do objetivo de leitura oferecidos ao aluno. Marcuschi (2001; 2004), ao discutir sobre a compreensão como um processo “criador, ativo e construtivo que vai além da informação estritamente textual” (2001, p. 56), apresenta sugestões de trabalho com a compreensão leitora, com o objetivo de “propor alternativas para o tratamento textual no contexto de nossas atividades discursivas” (MARCUSCHI, 2004, p. 49); são atividades de compreensão que podem ser realizadas tendo por objetivo as leituras produzidas no cotidiano da sociedade. É possível observarmos que muitas das sugestões de Marcuschi se assemelham às de Colomer e Camps (2002), por isso são aqui comentadas, tendo-as como possibilidades de atividades de avaliação formativa contínua, não somente especícas a um momento avaliativo. As sugestões do autor são citadas e comentadas para melhor compreensão: • “Identicação das proposições centrais do texto” – o levantamento das ideias centrais do texto permite construir uma ideia mais concreta das possíveis in-
tenções do autor, já que nem todas as informações estão diretamente expostas no texto, devendo ser observadas a partir da inferência textual. Nesse ponto, é possível um levantamento, em forma de listagem, de enunciados que formem um panorama do conteúdo básico do texto. Além disso, a partir dessa identica ção, o leitor consegue levantar as explicações oferecidas pelo autor e produzir também exemplos que elucidam essas explicações; • “Perguntas e armações inferenciais” – a produção de um conjunto de per guntas que reúna várias informações sobre o texto, exigindo do leitor busca, construção e produção de conhecimentos a partir das informações oferecidas
pelo texto e as que ele tem em sua memória, dá origem à inferência textual. Como arma Marcuschi (2001, p. 56), “inferir é produzir informações novas a partir de informações prévias, sejam elas textuais ou não”. Assim, através de perguntas e armações inferenciais, o leitor costuma “acrescentar ou eliminar; generalizar ou reordenar; substituir ou extrapolar informações” (MARCUSCHI, 2004, p. 49), produzindo novos sentidos ao texto, isto é, avaliando, generali zando, comparando, associando, reconstruindo, particularizando informações,
como se faz cotidianamente na sociedade; 94
• “Tratamento a partir do título” – a leitura de títulos em jornais e revistas é uma estratégia que consente ao leitor identicar o tipo de informação que o texto veicula, permitindo, inclusive, conhecer um pouco do que é tratado no texto. Isto é possível porque o título é um resumo do texto, nem sempre preciso, já que, muitas vezes, encontram-se títulos diferentes para o mesmo tema, em jornais diversos. Dessa maneira, a partir dessa atividade, é permitido ao leitor lançar hipóteses sobre o conteúdo do texto, que são conrmadas ou não pos teriormente. Outra atividade que se pode realizar é a comparação de títulos
Avaliação de leitura
diferentes para a mesma temática, em uma tentativa de explicação de suas cons-
truções. Além disso, são possíveis outras maneiras de trabalho com títulos: a) atribuição de títulos a textos oferecidos ao leitor, em que possa demonstrar a compreensão do texto a partir da síntese que apresenta no título produzido; b) justicativa de escolha de títulos diferentes para a mesma temática, permitindo a exposição das compreensões diversas dos textos trabalhados, comparando-os. O trabalho com o título do texto é uma forma de compreensão e percepção de como se constrói “um universo contextual e ideológico para os textos mesmo antes de lê-los” (MARCUSCHI, 2001, p. 57); • “Produção de resumos” – o trabalho como resumo assemelha-se à atividade de síntese proposta por Colomer e Camps. No cotidiano da sociedade, o resumo é uma mostra de compreensão constante, já que se resumem os lmes assistidos, o conteúdo de um livro lido, uma notícia de jornal, uma conversa etc. Reforçan do o que já foi apresentado, para que se efetive um resumo, é necessário que o texto tenha sido compreendido; • “Reprodução de um texto em um gênero textual diferente” – a transformação do conteúdo lido de um texto em outro texto, seja oral ou escrito, é uma ma neira de avaliação que exige do leitor uma produção textual. Essa prática já é presente na avaliação tradicional. A diferença proposta pela avaliação formativa é que o gênero textual escolhido para a reprodução deve ser próximo da rea lidade social do leitor, um texto que seja realmente empregado pelo aluno no seu cotidiano social. Nesse âmbito, solicitar a um aluno que transforme um texto poético em prosa necessita de denições precisas sobre o gênero em que o aluno produzirá o texto em prosa, não basta apenas reproduzir a leitura num
gênero textual diferente do que foi lido, é preciso ter noções claras sobre o es tilo formal do gênero escolhido, o público alvo que o lê e o nível de linguagem que deve ser empregado nesse novo texto. Além disso, essa atividade é uma boa sugestão para “tratar integradamente a produção e compreensão de texto” (MARCUSCHI, 2001, p. 57); 95
LEITURA E ENSINO
• “Reprodução do texto em forma de diagrama, mapa etc.” – a representação de um texto escrito em forma de diagrama, mapa ou outra forma visual exige do leitor a capacidade de compreender e transformar a leitura em um tipo de
visão do texto que estabelece raciocínios e relações esquemáticas e formais. Essa atividade não é tão simples para ser produzida, pois ao leitor é exigida uma capacidade de síntese e transformação de um código verbal escrito em um código visual esquemático. A sugestão pode ser empregada em textos de várias disciplinas que possibilitam a reprodução visual pretendida. É uma forma de produzir relações interdisciplinares e um diálogo entre os diversos professores das disciplinas, facilitando o trabalho dos alunos e dos docentes; • “Reprodução do texto oralmente” – essa sugestão já foi apontada anteriormen te, contudo ela merece destaque porque está sendo esquecida como um trata mento de produção textual em sala de aula. No cotidiano da sociedade, o texto mais empregado pelos falantes, que são também leitores, é o texto oral. Sendo assim, uma forma de capacitar o aluno à participação social e sua transformação como cidadão é o trabalho com a reprodução da leitura em forma de texto oral. Após ler o texto, o leitor o reproduz, isto não quer dizer descrevê-lo, utilizandose de seu estilo próprio de linguagem, porém sob orientação certa do professor quanto à postura oral e à coerência na exposição das informações. Todas as sugestões de atividades aqui propostas e comentadas podem ser rea lizadas em sala de aula pelo professor, servindo como instrumentos da avaliação
formativa, requerendo do professor e do aluno uma posição como co-autores na leitura e, consequentemente, levando à formação e desenvolvimento de um leitor competente.
AS PERGUNTAS NA AVALIAÇÃO DE LEITURA As perguntas apresentadas pelo professor, em sala de aula, quando do trabalho com textos diversos, orientam a leitura dos alunos, muitas vezes direcionando a sua
compreensão. É certo que as perguntas são o instrumento de avaliação mais empre gado pelo professor. Nesse contexto, considerá-las no processo de produção de lei tura é considerar, também, o estudo da compreensão do texto efetivado pelo leitor. Em uma pesquisa com crianças em meios iletrados, Terzi (1995) percebeu que o tipo de pergunta utilizado pelo professor e a maneira como é empregado inuenciam na aquisição e no desenvolvimento do processo de leitura dos alunos, isto é, o dire cionamento através das perguntas apresentadas, tanto na oralidade como na escrita, possibilita levar os alunos a uma gama variada de progressos em leitura. Por sua vez, 96
esse desenvolvimento é a premissa para o despertar de um leitor crítico, que interage com o texto que lê, ou de um leitor inerte, que apenas realiza uma leitura a partir da direção apresentada pelas perguntas. As perguntas que direcionam a compreensão da leitura normalmente são presentes nos livros didáticos, que, na maioria dos casos, trazem os textos já interpretados atra vés dos enunciados da questão, não exigindo muito raciocínio do aluno. O professor assume o papel de intermediário, uma vez que ele serve de mediador entre o livro didático (na verdade, o texto trabalhado) e os alunos. Esse deslocamento de papéis
Avaliação de leitura
é resultado do tipo de escolha de trabalho realizado em sala de aula pelo professor,
como atesta Matencio: Uma opção de trabalho que reduz-se ao uso do livro didático não pode ser con siderada como centrada no professor ou no aluno, mas sim nas propostas do
livro: professor e alunos têm papéis deslocados. A opção por uma das propos tas determina o tipo de interação entre professor e alunos, porque determina também uma boa parte do texto construído para a aprendizagem (1994, p. 97).
Nessa opção tradicional de trabalho e de avaliação de leitura, o professor não
interage com os alunos, já que não constrói perguntas próprias que possibilitam a interação do aluno com o texto, em sala de aula ou fora dela; ao contrário, somente o emprego das perguntas propostas pelo material didático, ou construídas a partir des se modelo, não propicia condições para que a criatividade e a criticidade do professor e dos alunos se instaurem na sala de aula. É certo que, em muitos casos, as perguntas do livro didático auxiliam o professor, todavia, o apego exacerbado não demonstra ser completamente benéco. Uma situação intermediária, em que se usem perguntas do livro didático e em que professor e alunos criem novas perguntas, demonstra-se mais salutar. Neste sentido, Molina postula que: Perguntas não devem ser utilizadas com o objetivo exclusivo de avaliação, para classicar o aluno. Elas são, e como tal devem ser usadas, importantes guias para o raciocínio do aluno. Devem ser usadas para ensinar, antes que se pense em cobrar o que, muitas vezes, nem chegou a ser ensinado (1992, p. 55).
Para demonstrar como essa tradição é tão forte na sala de aula, reproduzimos um
exercício de leitura retirado de Menegassi (1995), em que o texto é “lido” e as pergun tas “respondidas” sem a mínima compreensão. Leia o texto abaixo e responda às questões:
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LEITURA E ENSINO Era uma vez dois trafelnos, Mirimi e Gissitar. Os dois trafelnos eporavam longe das perlogas. Um masto, porém, um dos trafelnos, Mirimi, felnou que ramalia rizar e aror uma perloga. Gissitar regou muito. Ele rurbia que Mirimi não rizaria mais da perloga. Gissitar felnou, felnou, regou, regou, mas nada. Mirimi estava leruado: ramalia rizar e aror uma perloga. No masto do fabe, Mirimi rizou muito lonto. No meio do fabe, proceu Gissitar e os dois rizavam ateli. Gissitar não ramalia clenar Mirimi. 1. Quem eram os dois trafelnos? 2. Onde eporavam? 3. O que aconteceu, um masto? 4. No 5º período, a que se refere o pronome “ele”? 5. Quem felnou? 6. Mirimi estava leruado para quê? 7. O que aconteceu no masto do fabe? 8. Por que Gissitar rizou com Mirimi?
As questões de números 1 a 7 são respondidas perfeitamente, sem qualquer proble ma, já que basta seguir a sequência do texto para que as respostas sejam produzidas: 1) Quem eram os dois trafelnos? R.: Mirimi e Gissitar. 2) Onde eporavam? R.: Longe das perlogas. 3) O que aconteceu, um masto? R.: Um dos trafelnos, Mirimi, felnou que ramalia rizar e aror uma perloga. 4) No 5º período, a que se refere o pronome “ele”? R.: Gissitar. 5) Quem felnou? R.: Gissitar. 6) Mirimi estava leruado para quê? R.: Ramalia rizar e aror uma perloga. 7) O que aconteceu no masto do fabeti? R.: Mirimi rizou muito lonto.
Por outro lado, a questão 8, Por que Gissitar rizou com Mirimi?, não permite uma resposta, pois como não houve compreensão do texto, ela não consegue ser respon dida. As demais questões são literalmente respondidas com cópias de partes do texto, 98
não exigindo qualquer trabalho ou reexão do aluno, do leitor em formação. Assim, percebemos nesse exercício que a avaliação de leitura realizada através das perguntas tinha como concepção a extração de partes do texto, a simples decodicação. É certo que esse tipo de atividade é necessário dentro da formação do leitor; con tudo, a manutenção constante dessa prática leva o aluno a criar uma visão inadequada
Avaliação de leitura
do tratamento com leitura, inclusive construindo uma inaptidão ao trato com o texto,
levando o leitor a se negar, com o tempo, a mergulhar no texto, já que as questões avaliativas que lhe foram oferecidas sempre tiveram como princípio a cópia de partes do texto. Em uma perspectiva sócio-interacionista, tendo como abordagem teórico-metodo lógica a avaliação formativa de leitura, as perguntas orientam o aluno na produção dos sentidos do texto trabalhado, através do diálogo entre o professor, o aluno-leitor e o texto, permitindo a construção de conhecimentos que amparam essa interação. Para exemplicar o procedimento de avaliação com perguntas, exploramos o texto de Pedro Bandeira, tendo os alunos de 2ª série do Ensino Fundamental como referência. Grande ou pequeno?
Se eu me meto na conversa, para ouvir do que é que falam os adultos e os parentes, lá vem bronca da mamãe: “Não, não, não! Já para fora! Você é muito pequeno para ouvir nossa conversa”. Mas seu eu faço algum errinho, qualquer coisinha malfeita, ou alguma reinação, lá vem bronca do papai: “Mas você não tem vergonha? Isso é coisa que se faça? Você já está muito grande Para coisas como essa!” Anal, quem é que eu sou?
Ou eu sou muito pequeno, ou sou grande até demais! Ora, tenham paciência! Deixem-me crescer em paz! (BANDEIRA, Pedro. Mais respeito, eu sou criança! 2. ed. São Paulo: Moderna, 2002. p. 13).
A) Perguntas que buscam respostas diretamente em partes do texto: - A personagem principal da história é um menino ou uma menina? Como você consegue provar sua resposta? 99
LEITURA E ENSINO
- O que essa personagem personagem fazia que sua mãe não gostava? - Por que a mãe não não deixava a personagem personagem principal principal ouvir ouvir a conversa dos adultos? adultos? - Como era a atitude do pai pai quando quando a personagem cometia algum erro? B) Perguntas que exigem do leitor a produção de inferências textuais: - Por que a personagem cou na na dúvida dúvida se é pequeno pequeno ou ou grande? grande? - O que você pensa pensa que a personagem personagem quis dizer com a fala “Ora, tenham tenham paciência! Deixem-me crescer em paz!”? C) Perguntas Perguntas que levam o leitor a reetir sobre o tema do texto a partir de expe-
riências de sua vida, criando uma interpretação textual: - Como você você imagina imagina que a personagem personagem se metia na conversa dos dos adultos? adultos? - Que tipo tipo de erro, de malfeito, de reinação reinação você você imagina que a personagem fazia para o pai dar uma bronca? br onca? D) Perguntas que relacionam o tema do texto com a vida do leitor: - Já aconteceu aconteceu com você alguma alguma situação situação semelhante semelhante a da personagem? personagem? Como você se comportou? comportou? - Você se acha uma pessoa grande ou pequena? - Faça uma uma lista de coisas que uma criança pode pode fazer sozinha e outra lista de coisas que deve fazer somente acompanhada por um adulto.
As questões sugeridas avaliam avaliam quatro pontos pontos especícos: A) a compreensão do texto a partir do estudo textual de suas partes; B) a construção de novas informações informações a partir do estudo do texto, sem sair de seus limites; C) a relação da temática apresentada no texto texto com as informações que o leitor pos sui em sua memória sobre a questão, levando-o a construir novas informações à leitura que está produzindo; D) o relacionamento da temática do texto com a vida do leitor, possibilitando-lhe possibilitando-lhe uma interpretação das informações, consequentemente, a produção de novos sentidos. Com esse procedimento de avaliação de leitura, é possível observar-se a interação
que se estabelece entre o leitor e o texto, mediada pelo trabalho do professor.
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UMA NOTA SOBRE A LEITURA EM VOZ ALTA É tradição, na escola, o emprego da leitura em voz alta como um recurso para avaliar avali ar a leitura do aluno. Essa concepção de avaliação instaurou-se no meio escolar através da leitura dos clássicos da literatura, como um meio de exposição oral que levava aos alunos uma literatura de boa qualidade, que possibilitava a formação de um leitor com petente. Além disso, como a sociedade brasileira tem uma formação cristã, e nos cultos cristãos lê-se a Bíblia em voz alta para os éis, seja pelo sacerdote, pelo celebrante ou pelos éis, tornou-se prática na sociedade essa leitura, estendendo-se, consequente mente, à escola, através dos primeiros professores em solo brasileiro: os jesuítas. Dessa maneira, através da leitura em voz alta da Bíblia e dos clássicos da literatura portuguesa,
Avaliação de leitura
posteriormente da brasileira, instaura-se na escola a tradição de ler em voz alta para se
avaliar a leitura do aluno. Até que ponto essa leitura leitura em voz voz alta é ecaz para para avaliação avaliação de leitura? leitura? Como com provar que o aluno que leu em voz alta compreendeu o texto? O que a leitura em voz alta avalia? Essas questões não são para questionar a prática de leitura em voz alta na sala de aula; são, na realidade, para reexão e compreensão do processo que ocorre na sala de aula e sua adequação à realidade atual dos alunos. Na sociedade atual, há lugares determinados para leitura em voz alta. Por exemplo, lê-se em voz alta nos templos religiosos, nos tribunais, nas conferências e apresentações acadêmicas, ao ter uma letra de música à mão etc. O número de eventos sociais em que a leitura em voz alta ocorre é muito menor do que o de eventos em que a leitura silenciosa se manifesta. Desta forma, por que, na escola, todo texto escrito deve ser lido pelo aluno em voz alta? Tradicionalmente, essa leitura é uma manifestação material, no sentido do som que sai do ser humano – sua voz, que comprova a realização da leitura. É ler com a voz, com a boca. Não signica efetivamente que o leitor tenha compreendi do o que leu. No entanto, para os padrões tradicionais, houve leitura. Foi recorrente, ao nal do primeiro ano do Ensino Fundamental, a antiga primeira série, um teste de leitura oral, em que se oferecia ao aluno um texto mimeografado que deveria ser lido em voz alta pelo aluno. Quanto menos erros de pronúncia, menos equívocos com a pontuação, melhor seria o resultado da leitura, o que levava a criança à aprovação para a segunda série. Muitas vezes, o professor sabia que a criança não havia compreendido nada do que tinha acabado de ler; entretanto, a regra era certa: leu em voz alta corretamen corretamente, te, passou no teste de leitura, leitura, por por consequência, consequência, é promovida promovida à sé rie seguinte. Em um determinado momento da sociedade, isto foi procedente, pois era a visão de alfabetização que se tinha e a noção de concepção de leitura apregoada. Não se imprime uma noção de erro aqui, porque foi um método de trabalho aceito pelas autoridades educacionais e pelos professores, consequentemente, por toda a sociedade 101
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no período vigido, por isso não cabe uma crítica negativa a esse procedimento, cabe, sim, conhecer e entender o contexto de sua realização. Esse mesmo procedimento ainda existe em muitas escolas brasileiras, estendendo-
se do primeiro ano do Ensino Fundamental a todos os demais anos da formação básica. Não obstante, o momento educacional vivido neste início de século mostra uma necessidade de rever práticas cristalizadas e repensar seus procedimentos em função das
exigências sociais atuais. Hoje, faz-se necessário mais a compreensão do texto lido do que sua oralização em voz alta. Requer-se muito mais a compreensão compree nsão e a reexão do que foi lido, para sobrevivência social, do que a simples leitura em voz alta. Neste sentido, não propomos abolir a leitura em voz alta na sala de aula, pelo con-
trário, sugerimos um lugar certo para esse procedimento, que não sirva como principal referência de avaliação em leitura, lei tura, mas sim uma das maneiras de avaliação do texto lido. li do. A criança, criança, ao iniciar iniciar seu processo processo de leitura, leitura, lê quase tudo com com a voz, manifest manifestando ando ao mundo externo que sabe ler, que já é parte da cultura letrada, que está em pleno ‘rito de passagem’ para a cidadania. Durante certo tempo, essa leitura se manifesta como interessante, já que a criança descobre que pode dar ‘voz aos símbolos escritos’, que pode mostrar para todos que ela sabe “ler”. É um momento importantíssimo na vida social social da criança, criança, da família, família, da escola. escola. Contudo, Contudo, essa essa estratégia estratégia de leitura leitura não não deve deve se internalizar na leitura de todos os textos. Há textos que são para serem lidos com os olhos, não com a boca. Assim, é necessário que a criança seja ensinada a passar da leitura em voz alta para a leitura silenciosa. Esse momento deve ser de descoberta, em que ela possa conhecer o seu próprio processo de leitura e apropriar-se do novo proce dimento, desenvolvendo suas próprias estratégias. Essa passagem ocorre diferentemente de leitor para leitor, considerando-se seu nível de amadurecimento sociocognitivo e emocional. Há crianças que conseguem descobrir que podem ler silenciosamente já no primeiro semestre do primeiro ano do Ensino Fundamental. Outras demoram mais, passando, inclusive, do segundo ano. Por isso, não é possível uma generalização. O procedimento para a passagem e apresentação dessa nova estratégia de leitura é simples. Primeiro, pede-se à criança que leia um texto que ela gosta que não seja para avaliação de conteúdo; por exemplo, uma revista em quadrinhos. Nessa leitura, o pro fessor e a criança observam que a leitura se efetiva através da voz. Após essa percepção, solicita-se à criança que leia o próximo quadrinho sem o uso da voz, apenas ‘com os olhos’. Ela irá perceber que é possível ler, sem que seja apresentado um produto vocal para a leitura. Nesse instante, solicita-se à criança que observe que sua leitura silen ciosa é acompanhada de uma ‘voz mental’, que substitui a voz produzida pela boca. A partir dessa passagem, passagem, o leitor inicia uma nova etapa em sua formação, passando passando à 102
consciência de que a leitura silenciosa é mais rápida, permitindo-lhe produzir inferên cias e sua compreensão é pessoal, não conduzida pelo exterior. Posteriormente, as lei turas alternam-se entre silenciosa e voz alta, até chegar à consciência de que não precisa da leitura em voz alta constantemente. Com isso, determina-se que a leitura em voz alta não é uma medida ecaz para a mensuração da compreensão do texto. Há empregos certos para a leitura em voz alta na sala de aula, consequentemente, há maneiras apropriadas para sua avaliação. Para compreender essa questão, levantamos alguns pontos sobre a utilização da leitura em voz alta em sala de aula: a) treinamento da leitura – se o professor deseja que seus alunos leiam em voz alta,
Avaliação de leitura
ele deve, necessariamente, capacitá-los para isto, oferecendo-lhes técnicas vocais
de leitura, de postura e de conduta, que possibilitem um real procedimento de leitura em voz alta; b) seleção de textos – nem todo texto serve para leitura em voz alta na sala de aula. O professor deve selecionar apropriadamente os textos que necessitam de expressão oral. Um exemplo é o poema O relógio, de Vinícius de Moraes: O relógio
Passa, tempo, tic-tac Tic-tac, passa, hora Chega logo, tic-tac Tic-tac, e vai-te embora Passa, tempo Bem depressa Não atrasa Não demora Que já estou Muito cansado Já perdi Toda a alegria De fazer Meu tic-tac Dia e noite Noite e dia Tic-tac Tic-tac Tic-tac... (MORAES, Vinícius. A Arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970. p. 28).
Nesse poema, o aluno, através da leitura em voz alta, percebe a sonoridade exis-
tente, que lhe oferece um sentido apropriado dos movimentos do tempo e do relógio, com seu passo marcado e o tempo passando. Para que conduza uma boa leitura em voz alta desse poema, cabe ao professor 103
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orientar o aluno nos procedimentos necessários à execução da leitura em voz alta, que, necessariamente, passa pela compreensão do texto inicialmente, ou seja, pela leitura silenciosa. Por outro lado, o texto Os entregadores de pão não caberia a uma leitura em voz alta, com muita ecácia: Os entregadores de pão Se você estuda de manhã, com eu, deve acordar cedo, não acorda? No ve rão é gostoso, eu até acordo sozinha, antes da minha mãe chamar. Ah, mas no inverno, naquelas manhãs escuras e geladas, quando a cerração atrapalha o nascimento do sol, como é duro sair da cama, não é? Bom, imagine então se todos os dias você tivesse que estar de pé, pronta pra trabalhar, às duas e meia da madrugada! Está pensando que é piada, é? Pois não é, não. É a essa hora que começa a vida dos meninos que a professora conheceu lá na cidade de Pedreira: Osmar, de 13 anos, Marcelo, de 14, e Júlio César, de 12. Eles formam o trio de entregadores de pão do seu Luiz, um senhor aposentado que é dono de uma perua e entrega pães para uma padaria. (AZEVEDO, Jô; HUZAK, Iolanda; PORTO, Cristina. Serafina e a criança que trabalha. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002. p. 27).
Nesse texto, evidencia-se a necessidade de uma leitura silenciosa, em que o leitor vai formando uma imagem da descrição apresentada pelo narrador, levando-o à pro dução de sentido do texto. Isto não impede que ele seja lido em voz alta em alguma situação especíca, todavia é pertinente que sirva para uma leitura silenciosa; c) apresentação em público – o desenvolvimento da oralidade na escola não está condicionado à construção de discursos coerentes sobre determinado tema, também se apega à apresentação de textos lidos em público. Para isto, faz-se ne cessário um trabalho que mostre ao aluno como se portar frente a um público, dando sentido à leitura que faz; é o caso de apresentações em feiras de ciências, normalmente conduzidas na escola. Outra questão sobre a leitura em voz alta é o reconhecimento de sua função como mediadora entre o autor e a plateia que ouve o texto; isto mesmo, ‘ouve o texto’, e o sentido que o leitor está lhe atribuindo no momento da leitura em voz alta. Depen dendo da entonação produzida ao texto, o leitor conduz seu ouvinte a criar um estado
emocional prazeroso ou inadequado. Ainda cabe estabelecer uma distinção entre a leitura em voz alta, já discutida, e
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a oralização da leitura. Entendamos por oralização da leitura a discussão que se faz sobre o texto lido silenciosa ou oralmente, iniciando-se um diálogo entre os leitores, tendo o texto como um mediador desse diálogo. Desse modo, após a leitura, o leitor
Avaliação de leitura
expõe a sua compreensão sobre o texto, criando vínculos com o autor e estabelecendo
um processo de interação com seus interlocutores, que, em situação de ensino, são o professor e os colegas de sala. Na verdade, é o processo que dá origem à leitura com partilhada (SOLÉ, 1998), consequentemente, à produção de vários sentidos, enrique cendo a leitura em sala de aula. É um momento adequado para se proceder à avaliação de leitura do texto trabalhado. Desta forma, todo o processo deve ser considerado: o aprendizado das técnicas ensinadas; a escolha do texto; a leitura em voz alta e sua entonação, em função do texto e dos interlocutores; a discussão gerada em sala; a ex pressão de leitura de cada aluno; a participação dos leitores na discussão; os sentidos produzidos durante a discussão. A reunião dessas etapas possibilita mostrar ao aluno a leitura em uma concepção de trabalho, em que o diálogo dá origem ao trabalho de relacionamento do leitor com o texto, do leitor com o professor, do leitor com os co-
legas de sala, em um contínuo processo de construção de conhecimentos. A leitura em voz alta é uma forma de avaliação em leitura, porém não deve ser con-
siderada como a primeira e a mais importante.
Referências
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Sítios na internet www.alb.com.br – Associação de Leitura do Brasil www.escrita.uem.br – Grupo de Pesquisa “Interação e Escrita”, Universidade Estadual de Maringá www.lecturayvida.org.ar – Associação Internacional de Leitura
Proposta de Atividade 1) Encontre um texto que apresenta perguntas voltadas para a avaliação tradicional de leitura. Analise as atividades e explique por que são consideradas tradicionais.
2) Escolha um texto a ser trabalhado com alunos do Ensino Fundamental, produzindo per guntas de avaliação de leitura a partir da abordagem de avaliação formativa de leitura, como exemplicado no texto de Pedro Bandeira. 106
Anotações
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Literatura para crianças: a narrativa Rosa Maria Graciotto Silva
Desde sua gênese, por volta das últimas décadas do século XVII, a literatura in fantil tem-se voltado, de forma enfática, à formação de seu recebedor em potencial: a criança. Atestam essa intenção as primeiras obras destinadas ao público infantil, como as fábulas de La Fontaine, publicadas entre 1668 e 1693, e os contos de fadas de Char les Perrault, vindos a público em 1697. Densamente imbuída de caráter educativo, a produção literária dessa época cumpria as funções do texto literário, já apontadas por
Horácio (1989), no século I a.C., em que à literatura cabe o papel de unir o útil ao agra dável, a função de deleitar e, ao mesmo tempo, a de instruir instr uir o leitor. Transcorridos Transcorridos três séculos de existência do gênero, intensicaram-se os estudos a seu respeito, buscando respostas para indagações como essas: O que é literatura infantil? Qual o sentido que a leitura do texto literário pode ter na vida da criança? Para que ler literatura? Como ler literatura? Entendendo a leitura do texto literário como uma interação entre autor, autor, texto e leitor, é nosso objetivo abordar essas questões, focalizando o gênero infantil desde a época de sua formação, com as fábulas de La Fontaine e os contos de fadas de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Com relação à literatura infantil brasileira, detemo-nos nas fábulas de Monteiro Lobato e em contos de fadas da contemporaneidade. contemporaneidade. Como exemplo de literatura de boa qualidade e que atende aos anseios do leitor-criança, trabalhamos com a narrativa Menina bonita do laço de ta, da laureada escritora brasileira Ana Maria Machado, com o intuito de evidenciar o valor
artístico da obra e sua potencialidade humanizadora.
A LITERATURA INFANTIL EM SUA GÊNESE: FÁBULA E CONTO DE FADAS A FÁBULA A fábula é um gênero gênero narrativo muito antigo, antigo, que sempre manteve sua importância importância através dos tempos. No mundo ocidental, Esopo, escravo grego que viveu no século VI a.C., tornou-se um fabulista fabulista muito conhecido, conhecido, criando narrativas curtas, protagoni protagoni zadas principalmente por animais, com o intuito de mostrar verdades e, assim, fazer
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críticas a pessoas e acontecimentos de seu tempo. Depois de Esopo, outro fabulista famoso foi Fedro, escravo romano do imperador Augusto e que recriou as fábulas de Esopo, adaptando-as para a realidade da época em que viveu, o século I d.C. Narrativa curta, em versos ou em prosa, a fábula traz como marca importante,
principalmente para esses dois fabulistas, a presença da moralidade, que poderá vir no início ou no nal da narrativa (embora, às vezes, apareça tanto no início como no nal). Essa moralidade encerra uma verdade, que é de conhecimento de uma cole tividade, e que o fabulista irá trabalhar, construindo uma estrutura, em geral, assim corporicada: 1) Situação inicial: o narrador apresenta as personagens, focalizando-as no mo mento em que ocorrem os fatos. As indicações de tempo e de espaço restrin gem-se ao estritamente necessário, como a indicação de um córrego, onde um cordeiro está a beber água ( O lobo e o cordeiro ), ou a de uma árvore, em que um corvo está empoleirado ( O corvo e a raposa ). 2) Ação: uma das personagens dá início à ação, lançando um questionamento à outra (pode ser solicitando ajuda, fazendo uma provocação, desdenhando o oponente, entre outras possibilidades). 3) Reação: a outra personagem responde ao questionamento, concordando ou não com o solicitado. Nesse diálogo, as personagens não dizem o que querem de forma clara, usam o subentendido, dizem uma coisa querendo dizer outra, são muito astutas ou impõem o poder da força bruta, como na fábula O lobo e o cordeiro. A sequência de ação e de reação poderá ser breve ou se prolongar, esgotando os recursos de persuasão das personagens. 4) Situação nal: é a representação do resultado consequente à série de ação e reação das personagens. É quando ocorre a conrmação da verdade proposta pela fábula, momento em que o narrador enfatiza o ensinamento, a lição de vida que a fábula busca busca transmitir. transmitir.
As fábulas de La Fontaine No século XVII da era cristã, La Fontaine retoma, na França, as fábulas do grego Esopo (540 a.C.) e do romano Fedro (10 a.C. a 69 d.C.). O autor publicou 12 livros de fábulas, centralizando os eventos em personagens, em geral animais antropomor zados, havendo, entretanto, narrativas protagonizadas por seres humanos, vegetais, seres inanimados e, também, por divindades que se associam na representação de situações que reetem ações próprias do convívio humano. La Fontaine, ao dedicar seu primeiro livro de Fábulas ao pequeno Delm da França, na época com seis anos, deixa evidente a nalidade educativa de sua obra, ao se 110
dispor a recriar as fábulas de Esopo, armando que “a leitura de suas obras espalha na alma, sem que se sinta, as sementes da Virtude, ensinando-nos a nos conhecer sem que disto nos apercebamos, crendo até que estejamos fazendo outra coisa inteiramente diversa” (LA FONTAINE, 1989, v. 1, p. 30). Evidenciando que a preocupação com textos apropriados à criança advém de tem pos antigos, La Fontaine recorre a Platão (428-347 a.C.), que em sua República recomenda que as fábulas, por conterem sabedoria e virtudes, deveriam ser contadas para as crianças, desde a mais tenra idade, junto mesmo com o leite materno (LA FONTAI NE, 1989, v. 1, p. 37). As considerações de La Fontaine mostram que as fábulas contêm elementos essenciais para a formação da criança. Ao mesmo tempo em que cativam o ouvinte/leitor, ouvinte/leitor, essas histórias centralizam-se na transmissão de um ensinamento, uma lição de vida, uma verdade de cunho geral, a qual La Fontaine denomina “a alma” da fábula, em torno da qual o fabulista estrutura o “corpo”. As fábulas teriam, assim, a função de formar “o juízo e os costumes”, tornando a criança “capaz de grandes coisas”. Além do ensinamento moral, estariam expondo o próprio homem, pois
Literatura para crianças: a narrativa
somos a síntese do que há de bom e de mal nas criaturas irracionais. As fábulas, portanto, são um quadro onde cada um de nós se acha descrito. O que elas nos apresentam conrma os conhecimentos hauridos em virtude da experiência pelas pessoas idosas e ensina às crianças o que convém que elas saibam. E como estas são recém-chegadas neste mundo, não conhecem ainda os outros habi tantes, nem se conhecem a si próprias. Não devemos deixá-las nessa ignorância senão durante o menor tempo possível. Elas têm de saber o que é um leão, o que é uma raposa, e assim por diante, porquanto às vezes se compara o homem a um desses animais. Para isto servem as fábulas, pois é delas que provêm as primeiras noções desses fatos (LA FONTAINE, 1989, v. 1, p. 39).
Segundo Portela (1983, p. 133-137), a atribuição de comportamentos, qualidades e características destinadas aos animais não se fundamenta em conhecimentos cientí cos, mas sim na observação popular. E, por isso mesmo, a associação entre o compor tamento do homem e o do animal não tem validade absoluta, apresentando variações
pertinentes à mesma época ou a tempos distantes. Portela cita, como exemplo, o lobo que ora representa a prepotência ( O lobo e o cordeiro ), ora a ingratidão humana ( O lobo e o grou ), ora a ânsia de liberdade liberdade ( O lobo e o cão ) e, ainda, a “grossura “grossura e sandice” quando divide a cena com a raposa. Em La Fontaine, há uma variedade signicativa do mundo animal representado nas fábulas. Vejamos o gênio inventivo desse fabulista na criação de algumas dessas narrativas: O cavalo e o asno Neste mundo é preciso um ao outro ajudar: se teu companheiro expirar,
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terás de carregar se u fardo. Ao lado de um cavalo assaz mal-educado,
seguia um asno triste e sobrecarregado. Sem carga ia o cavalo, e o asno em passo tardo. Temendo sucumbir sob o peso excessivo, o asno pede ao cavalo colaboração: — “Alguns fardos, apenas, não te cansarão, e eu poderei, assim, chegar à aldeia vivo.” O cavalo não deu atenção ao pedido, e o asno, mais à frente, morreu exaurido. Veio então o arrependimento,
pois, além da carga pesada, lá se foi ele para a estrada,
levando a pele do jumento. (LA FONTAINE, 1989, v. 1, p. 387-8).
A moralidade dá início à narrativa, mostrando a necessidade de um ajudar ao outro, para depois não ter serviço dobrado. Para dar corpo a essa verdade, o fabulista preferiu criar a fábula em forma de versos. Primeiramente o fabulista mostra qual é a situação dos animais: o asno está sobre carregado com uma carga muito excessiva; o cavalo, por sua vez, nada carrega. Vem, em seguida, uma conversa entre os animais, em que o asno solicita a ajuda do cavalo e este não o atende. Resultado: o asno morre e o cavalo tem de levar, além de toda a carga, também a pele de seu companheiro. Nessa fábula, os animais estão representando uma situação de vida condizente ao
do convívio humano. Por isso é que se diz que os animais apresentam-se antropomor zados (pensam e agem como seres humanos) e que a narrativa é alegórica, isto é, deixa de ser uma simples história de animais, para representar uma outra, em que cada ani mal poderia ser substituído por uma pessoa (adulto, criança), deixando evidente uma lição, um aprendizado. Desta forma, nessa fábula, o leitor deverá apreender que assim como a solidariedade deveria estar presente no convívio dos animais, a sua presença é
essencial entre os humanos. Em sua grande maioria, as fábulas centralizam-se em animais, em geral em número de dois, que se opõem pela presença e/ou ausência de determinadas qualidades e/ou defeitos (força física, astúcia, ingenuidade, autoridade, etc.). Entretanto, há fábulas que põem em destaque o próprio homem, como ocorre nessa fábula de La Fontaine: A galinha dos ovos de ouro A cobiça excessiva põe tudo a perder. Para o provar, vou recorrer
à conhecida fábula de uma galinha que apenas botava ovos de ouro.
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Seu corpo deveria conter um tesouro.
Literatura para crianças: a narrativa
Querendo ver o que ela lá dentro continha, seu dono a degolou e, abrindo-a, constatou que ela era igual às outras — e o sonho acabou. Bela lição para os tratantes
que só desejam lucro fácil e polpudo: de uma hora para outra podem perder tudo,
cando mais pobres do que antes! (LA FONTAINE, 1989, v. 1, p. 329-330).
A verdade de conhecimento geral, a alma da fábula, dá início à narrativa: “A cobiça excessiva põe tudo a perder”. Para dar corpo a essa verdade, La Fontaine se vale da fábula esópica da galinha que botava ovos de ouro. Nesse tipo de narrativa, o narrador não se detém em descrições desnecessárias, focalizando apenas o momento em que ocorre a ação. No caso dessa fábula, trata-se do instante em que o dono da galinha mata a ave, abre-a e constata que ela é igual a todas as galinhas, desfazendo, assim, o sonho de encontrar um tesouro em seu interior. Não há, aqui, o diálogo com discurso direto, formado pela sequência de ação e reação. O narrador relata o sucedido, usando o discurso indireto sem, portanto, o registro da fala da personagem. De forma sintéti ca, o fato narrado comprova a verdade inicial, cumprindo as características desse gêne ro ccional: narrativa breve, em prosa ou verso, que de forma alegórica encerra um en sinamento, uma lição de vida, geralmente explícita no nal, em forma de moralidade. La Fontaine, ao recriar as fábulas do grego Esopo (1999), nem sempre fez uso explícito da moralidade. Mas, no exemplo em questão, colocou-a no início e no nal, deixando bem nítida a lição a ser apreendida pelo leitor. Gênero narrativo em destaque na época do surgimento da literatura infantil eu ropeia, a fábula também angaria, no Brasil, um lugar privilegiado, como veremos a seguir.
As fábulas de Monteiro Lobato Se La Fontaine foi um grande fabulista na França do nal do séc. XVII, no Brasil esse mérito coube a Monteiro Lobato (1882-1948), que recriou as fábulas, especicamente as de Esopo e de La Fontaine, publicando-as a partir de 1922. É bom lembrar que Lo bato foi o grande inovador na literatura infantil brasileira. Em 1920, com a publicação de A menina de narizinho arrebitado, trouxe novos ares à literatura, dando início à saga do Sítio do Picapau Amarelo, criando obras, entre 1920 a 1944, que o imortali zaram. Dona Benta, a avó das crianças Lúcia (Narizinho) e Pedrinho; Tia Nastácia, a serviçal negra; a boneca Emília e o sabugo Visconde de Sabugosa constituem-se o polo 113
LEITURA E ENSINO
de personagens que transitam de obra a obra. É o que acontece em Fábulas, obra que concretiza o propósito que Lobato já anunciara em 1916: o de “vestir à nacional” as fábulas de Esopo e La Fontaine, adequando-as à realidade brasileira, como relata em carta a seu amigo Godofredo Rangel: Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo com as moralidades. Coisa para crianças. Veio-me da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos — sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos ca no subconsciente para ir-se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa (LOBA TO, 1972, p. 245-46).
O talento e a arte concretizam-se no conjunto de 74 fábulas que compõem a men cionada obra. Entre elas encontramos a recriação das fábulas de La Fontaine, vistas anteriormente: O cavalo e o burro Cavalo e burro seguiam juntos para a cidade. O cavalo, contente da vida, folgan do com uma carga de quatro arrobas apenas, e o burro — coitado! gemendo sob o peso de oito. Em certo ponto o burro parou e disse: — Não posso mais! Esta carga excede às minhas forças e o remédio é repartir mos o peso irmãmente, seis arrobas para cada um. O cavalo deu um pinote e relinchou uma gargalhada. — Ingênuo! Quer então que eu arque com seis arrobas quando posso bem continuar com as quatro? Tenho cara de tolo? O burro gemeu: — Egoísta! Lembre-se que se eu morrer você terá que seguir com a carga das quatro arrobas mais a minha. O cavalo pilheriou de novo e a coisa cou por isso. Logo adiante, porém, o burro tropica, vem ao chão e rebenta. Chegam os tropeiros, maldizem da sorte e sem demora arrumam com as oito arrobas do burro sobre as quatro do cavalo egoísta. E como o cavalo refuga, dão-lhe de chicote em cima, sem dó nem piedade. — Bem feito! — exclamou um papagaio. Quem o mandou ser mais burro que o pobre burro e não compreender que o verdadeiro egoísmo era aliviá-lo da carga em excesso? Tome! Gema dobrado agora.
(LOBATO, 1983, p. 43)
A fábula O cavalo e o burro, de Monteiro Lobato, apresenta algumas diferenças
com relação ao texto de La Fontaine: é mais extensa, em forma de prosa e a moralidade não inicia a narrativa, sendo depreendida da fábula como um todo. A estrutura é típica desse gênero narrativo. O narrador apresenta a situação, for necendo informações necessárias sobre os dois animais: o cavalo que leva uma carga de quatro arrobas e o burro sobrecarregado com oito arrobas. Logo a seguir ocorre o 114
diálogo entre os dois animais, em que o burro solicita o auxílio do cavalo e este lhe nega qualquer ajuda. O resultado assemelha-se ao da fábula de La Fontaine: o burro morre e o cavalo, além de levar mais oito arrobas, ainda leva chibatadas. A inserção do comentário feito pelo papagaio (inexistente na fábula de La Fontaine) intensica as consequências sofridas pelo cavalo, motivadas pela sua falta de solidariedade. O comentário de Dona Benta, que vem após a fábula, traz esclarecimentos para as crianças do sítio e, consequentemente, também para o leitor:
Literatura para crianças: a narrativa
— Isto aqui — disse Dona Benta — vale como lição do que é a falta de solidariedade. — Oh, que comprimento de palavra! — exclamou Narizinho. Que é solidarie dade, vovó? — É o egoísmo bem compreendido, minha lha. É o reconhecimento de que temos de nos ajudar uns aos outros para que Deus nos ajude. Quem só cuida de si, de repente se vê sozinho e não encontra quem o socorra. Aprendam. — A coisa é bonita — comentou a menina - mas a palavra é feia e comprida
demais. So-li-da-ri-e-da-de... (LOBATO, 1983, p. 43).
Ao recriar as fábulas de La Fontaine, Lobato promove modicações, adequando-as ao público em potencial a que se destinam. Além de torná-las mais dinâmicas com a inserção de diálogos, as fábulas ganham um toque de humor, que se revela nas ati tudes das personagens ou, até mesmo, na escolha do nome das personagens, como observamos na fábula: A galinha dos ovos de ouro João Impaciente descobriu no quintal uma galinha que punha ovos de ouro. Mas um por semana apenas. Louco de alegria, disse à mulher: — Estamos ricos! Esta galinha traz um tesouro no ovário. Mato-a e co o mandão aqui das redondezas. — Por que matá-la, se conservando-a você obtém um ovo de ouro de sete em sete dias? — Não fosse eu João Impaciente! Quer que me satisfaça com um ovo por semana quando posso conseguir a ninhada inteira num momento? E matou a galinha. Dentro dela só havia tripas, como nas galinhas comuns, e João Impaciente, logrado, continuou a marcar passo a vida inteira, morrendo sem vintém. Quem não sabe esperar, pobre há de acabar (LOBATO, 1983, p.49-50).
Com Lobato, a fábula A galinha dos ovos de ouro recebe uma nova roupagem: a linguagem torna-se coloquial e há o acréscimo de uma nova personagem — a mulher que serve de contraponto para conter a impaciência do marido. A inserção do diálogo entre João Impaciente e sua mulher dinamiza a história, tornando-a mais próxima do interesse do público-leitor. O ensinamento contido na fábula sintetiza-se na moralidade inserida no nal da narrativa: “Quem não sabe esperar, pobre há de acabar”. O grande achado de Lobato diz respeito à inserção das fábulas no universo ccional 115
LEITURA E ENSINO
do Sítio do Picapau Amarelo, fazendo com que Dona Benta seja a leitora das fábulas para um público determinado: Tia Nastácia, as crianças Narizinho e Pedrinho, junta mente com a boneca Emília e o sabugo Visconde de Sabugosa. Após a leitura de cada fábula, as crianças solicitam esclarecimentos a Dona Benta sobre o que não entende ram e passam a discutir e reetir sobre a moralidade em questão, tentando entender e trazer para o mundo em que vivem a alegoria que permeia a narrativa: — Eu, se fosse o fabulista — disse Pedrinho — mudava o título dessa fábula. Punha O PALERMA. Só mesmo um palerma como esse João Impaciente podia fazer uma coisa assim. Dona Benta não concordou. — Ah, meu lho, isso de esperar não é fácil. Quantas vezes você mesmo não perdeu uma coisa que muito desejava por excesso de impaciência por não ter tido a sabedoria de esperar... — Ainda ontem, vovó, ele quase pegou uma saíra das raras — ajuntou Narizi nho. Mas não esperou que ela entrasse bem, bem, bem, na armadilha. Puxou o cordel antes do tempo. Pedrinho também é palerma às vezes, por falta de paciência. Eu sim, sei esperar. — E por isso mesmo não pegou aquela pulga que estava em sua cama — disse Emília. Ficou esperando que a pulga parasse de pular e a pulga anal sumiu. A especialidade de Emília era pegar pulgas (LOBATO, 1983, p. 50).
Com esse recurso, Lobato intensica a dupla função da fábula: divertir e educar. Recriando no mundo ccional um ambiente doméstico em que uma avó dispõe-se a entreter seus netos com pequenas histórias, Lobato recupera a marca da oralidade das fábulas de Esopo, assim como fornece um modelo de trabalho com o texto literário,
promovendo o encontro da obra com seus leitores. Neste sentido, a interação da obra com seus ouvintes/leitores acontece no desenro lar da leitura das fábulas e se encontra sintetizada de forma exemplar nos comentários
nais, quando Dona Benta, após a leitura da última fábula Liga das Nações, verica em que medida seus interlocutores apreenderam e entenderam as fábulas apresenta das. Tal procedimento repercute nos leitores que são solicitados, concomitantemente, a revisarem a leitura realizada. Com a intervenção de Pedrinho, aspectos estruturais desse gênero narrativo são colocados em pauta. Para ele, além de conterem sabedoria popular, reetida nas moralidades, as fábulas possuem o mérito de serem “curtinhas”. Narizinho, por sua vez, se prende à sabedoria que emana desse tipo de texto: Para mim, vovó, as fábulas são sabidíssimas. No momento a gente só presta atenção à fala dos animais, mas a moralidade nos ca na memória e de vez em quando, sem querer, a gente aplica “el cuento”, como a senhora diz (LOBATO, 1983, p. 58).
A boneca Emília mostra como as fábulas revelam o mundo ao seu redor, relacionan-
do-as às pessoas do convívio cotidiano: 116
Eu acho que as fábulas são indiretas para um milhão de pessoas. Quando ouço uma, vou logo dando nome aos bois: este mono é o tio Barnabé; aquele asno carregado de ouro é o Coronel Teodorico; a gralha enfeitada de penas de pavão é a lha de Nhá Veva. Para mim fábula é o mesmo que indireta (LOBATO, 1983, p. 58).
Literatura para crianças: a narrativa
Visconde de Sabugosa, o sábio sabugo de milho, fornece o fecho do entendimento que obteve sobre o mundo das fábulas: Na minha opinião, as fábulas mostram só duas coisas: 1º.) que o mundo é dos fortes; e 2º. que o único meio de derrotar a força é a astúcia. Essa Liga das Nações, por exemplo. Os animais formaram uma liga, mas que adiantou? Nada. Por que? Porque lá dentro estava a onça, representando a força e contra a força de nada valeram os direitos dos animais menores. Bem que a irara fez ver o direito desses animais menores. Mas nada conseguiu. A onça respondeu com a razão da força. A irara errou. Em vez de alegar direito, devia ter recorrido a uma esperteza qualquer. Só a astúcia vence a força (LOBATO, 1983, p. 58).
Como observamos, Lobato fornece um modelo de leitura do texto literário, em que Dona Benta faz o papel de professora e as demais personagens do sítio o papel de alunos. As fábulas são lidas e discutidas. Algumas verdades são aceitas, outras são contestadas, demonstrando que a leitura realizada é crítica, que os integrantes do sítio não aceitam passivamente o conteúdo das fábulas. Todas as verdades passam pelo cri vo da reexão e do debate e, com isso, o texto literário realiza seu potencial transfor mador. Antes da leitura das fábulas, o pessoal do sítio tinha um determinado nível de conhecimento. Após a leitura das fábulas, seguindo os passos propostos por Lobato, o conhecimento do mundo expandiu-se em quantidade e em qualidade. Nessa perspectiva, o leitor se vê projetado no ambiente das fábulas e no ambiente do sítio e, seduzido pela tagarelice de Emília e pelo humor que se estabelece nos di álogos, tem suas dúvidas esclarecidas e, com isso, alarga seus conhecimentos e seus horizontes de expectativas. Levado para a sala de aula, esse gênero narrativo será enriquecedor se o professor, à moda de Lobato, abrir a possibilidade de discussão das “verdades” contidas nas fábu las. Dessa forma, estará propiciando aos alunos o exercício da reexão e, consequen temente, o aprimoramento da leitura crítica. Uma atividade que poderá ser desenvolvi da, dinamizando o entendimento do que é uma fábula, é a recolha de “verdades” que existem, hoje, na comunidade em que as crianças vivem, ou, em sentido mais amplo, na comunidade universal. A partir das verdades apresentadas e selecionadas pela tur ma, o professor e os alunos poderão procurar fábulas já existentes de Esopo, Fedro, La Fontaine e Monteiro Lobato, levando-as para serem lidas e discutidas em sala de aula. Explorado esse gênero, o professor poderá apresentar outros tipos de narrativa, com histórias mais longas e que também centralizam os eventos em animais, embora 117
LEITURA E ENSINO
não sejam fábulas. Como sugestão, indicamos a leitura de Os colegas, de Lygia Bojunga Nunes. Essa obra, publicada em 1972, narra a história de cinco animais (dois cachor ros, uma cachorrinha, um coelho e um urso) que se unem em busca de uma vida me lhor. O alto grau de qualidade literária do texto, aliado à escolha dos animais, ao tema da solidariedade, à linguagem que é coloquial, sem deixar de ser poética, resulta em uma obra que cativa o leitor, enredando-o cada vez mais na leitura do texto literário. Além das fábulas que obtiveram um lugar de destaque no cenário da literatura infantil, desde o seu surgimento, no nal do séc. XVII, um outro gênero narrativo ganhou notoriedade, chegando a ser considerado até como sinônimo de literatura infantil. Trata-se dos contos de fadas, que não foram, em sua origem, escritos para as crianças, mas que ganharam destaque na mesma época em que a literatura infantil encontrou terreno fértil para o início de sua história. Como bem lembra Zilberman (1982, p. 11), a emergência do gênero literário infantil explica-se historicamente “na medida em que aconteceu estreitamente ligada a um contexto social delimitado pela presença da família nuclear doméstica e particularização da consolidação pueril en-
quanto faixa etária e estado existencial”. De “adulto em miniatura” a criança passa a ser considerada como um ser frágil, necessitando de proteção sistemática e constan te. Diante desse quadro, duas instituições são conclamadas ao exercício de mediação entre a criança e a sociedade: a família e a escola. E é nesse contexto que a literatura é solicitada a exercer, também, sua função mediadora. Entretanto, a literatura para crianças, ainda incipiente, carecia de obras especícas para atender a esse público emergente. Nesse âmbito, os contos de fadas, com a presença do maravilhoso, reve lando um ambiente mais representativo do mundo dos jovens do que o das crianças, começam a sofrer adaptações e se constituem, juntamente com as fábulas, as primeiras
narrativas para crianças.
Os contos de fadas: Perrault, Irmãos Grimm e Andersen Oriundos da adaptação dos contos folclóricos recolhidos junto à classe social mais oprimida na Europa Feudal como camponeses, tecelões e mendigos (CADEMARTORI MAGALHÃES, 1982, p. 140), os contos de fadas revelam um mundo maravilhoso em que seres prodigiosos como fadas, duendes e bruxas compartilham do cotidiano das pessoas, sejam elas pertencentes à realeza, ou simplesmente integrantes do povo. Lembrando as Parcas da mitologia greco-romana Cloto, Láquesis e Átropos, entida des mitológicas que presidiam a vida dos humanos desde o nascimento até a morte, as fadas, concretizando sua etimologia (do latim, fata, fatum: destino), mostram-se envolvidas com os seres humanos, atuando como mediadoras, suprindo necessidades,
gerenciando bons e maus momentos daqueles a quem lhes coube apadrinhar. Desta 118
forma, se a bruxa ou qualquer outra identidade má opõe obstáculos à consecução do desejo do herói, a fada surge para providenciar a superação de tais obstáculos e, consequentemente, possibilitar a realização do sonho almejado. Corroboram essas imagens oníricas os contos que passaram de geração em geração, chegando aos dias atuais, enlevando crianças e adultos como: A bela adormecida, A gata borralheira, Branca de Neve e tantos outros. Indagações sobre a origem dos contos de fadas têm suscitado inúmeras pesqui sas que, embalde os esforços, não determinam com precisão onde, quando e porque esses contos surgiram pela primeira vez. Nazira Salem (1970, p. 146), reportando-se a um congresso realizado em Copenhague (1958) com o objetivo de determinar a origem dos contos de fadas, informa que os mesmos deveriam ter vindo das Índias e do Oriente, chegando ao norte da Europa através das transmissões orais feitas de paróquia a paróquia. Tendo como berço a Pérsia, segundo Jesualdo (1982, p. 120), ou a região habitada pelos Celtas, conforme Nelly Novaes Coelho (1981, p. 87), os contos
Literatura para crianças: a narrativa
de fadas, sendo transmitidos oralmente através dos tempos, consolidam-se no adven-
to da literatura impressa. E é especialmente com o escritor francês Charles Perrault (1628-1703) que os contos ganham notoriedade. Bebendo na fonte da tradição oral ou buscando inspiração nos contos de Giovanni Boccaccio ( Decameron, 1348–53), Gio vanni Francesco Straparole ( Piacevoli Notti, 1550) e em Giambatista Basile ( Pentameron, 1634-36), Charles Perrault envereda por essa literatura de gosto popular, embora desprestigiada pela crítica literária de seu tempo. Pertencente à Academia Francesa de Letras desde 1671 e autor de obras como Paralelos entre antigos e modernos (4 volumes, 1688-1698), Homens ilustres que apareceram na França durante o século XVII (2 volumes com 102 biograas, 1696-1701), Memórias (de seu nascimento até 1687), Poema da pintura (1691), Apologia das mulheres (1694) é, entretanto, com Contos da mamãe gansa (1697) que Perrault ganha fama e projeta seu nome como marco da literatura infantil. Assumindo a autoria dos contos em versos ( A paciência de Griselda, 1691 , que se junta a Pele de burro e Os desejos ridículos, 1694) e dei xando a autoria dos contos em prosa, Contos da mamãe gansa, para seu lho Pierre Perrault Darmancour (1678-1700), Charles Perrault possibilita a especulação sobre a real autoria desses contos. Controvérsias à parte, o certo é que os contos de fadas, que foram originalmente dedicados às “mademoiselles” da corte, passaram a fazer parte do acervo da então emergente literatura para crianças, encontrando solo fértil para sua disseminação. Hipóteses que justiquem a receptividade e a proliferação dos contos de fadas não faltam. Podemos cogitar que por resultarem da recolha de contos de oralidade, já te riam, antecipadamente, um público cativo e afeito a esse tipo de histórias. Outro fator 119
LEITURA E ENSINO
preponderante seria com relação à presença do maravilhoso, elemento pertinente ao “romance precioso”, tão em voga no século XVII. Podemos pensar, ainda, que o caráter educativo dos contos de fadas, quer seja para a transmissão de valores éticos e mo rais, quer de concepções de mundo, estaria em consonância tanto com a literatura de alguns contemporâneos de Perrault, como La Fontaine (1621-1692) e Fenèlon (16511715), que produziam obras marcantemente instrutivas e moralizantes, quanto com a recém-criada literatura infantil que, aliada à escola, era eminentemente pedagógica em seus primórdios. O propósito de “instruir divertindo” teria, ainda, como respaldo, os contos folclóricos voltados para a transmissão de moralidades louváveis e instrutivas, como salienta Perrault no prefácio de seus contos em versos (PERRAULT, 1977, p. 14). A respeito do aspecto moralista e educativo dos contos de Perrault, o historiador
Robert Darnton (1986, p. 21-93) ressalta que os contos folclóricos franceses não seriam propriamente moralizantes, como os queria Perrault, mas buscavam mostrar o mundo aos camponeses, fornecendo meios de como enfrentá-lo. Ao evidenciar que os valo res éticos veiculados nos contos condicionam-se a comportamentos morais da época,
Darnton procede à análise de alguns contos extraídos da tradição popular, entre eles O gato de botas e O pequeno polegar, que exploram um tema recorrente na cultura francesa: o da astúcia. O gato, representando por excelência uma série de trapaceiros, realizaria, a contento, o dito de que “o mundo é composto de tolos e velhacos dizem: melhor ser velhaco do que tolo” (p. 92). Acrescentando à fragilidade física o atributo da inteligência, personagens astutas como o gato ( O gato de botas ) ou o lho caçula ( O pequeno polegar ) logram êxito em suas missões ao derrotar oponentes que aliam a força bruta à estupidez. Se os contos da tradição oral, sob a perspectiva de Perrault, são tidos como um meio apropriado de instruir as crianças ainda não “susceptíveis de apreciar as verda des sólidas e destituídas de ornato” (PERRAULT, 1977, p. 15), na visão de Darnton as histórias narradas pelos camponeses, além de revelarem o modo de ver, sentir e de interpretar o universo, mostram-se boas não só para pensar, mas também para ensinar como proceder e agir em determinadas situações de vida, seja para burlar a opressão, seja para ascender na escala social. Se as duas perspectivas constatam o propósito de instrução presente nos contos folclóricos, tal função cresce desmesuradamente quan do esses contos, saindo da oralidade e do anonimato, transladam-se para a escrita sob
o jugo de um determinado autor. E isto se torna patente nos Contos da mamãe gansa, quando moralidades em forma de versos fecham cada uma das histórias. A moralidade, marca pertinente às fábulas, passa a integrar os contos de fadas de Charles Perrault. Esse acréscimo dá ao conto um elemento que não lhe é próprio, induzindo o leitor a um determinado entendimento da história. Dessa maneira, o 120
conhecido conto Chapeuzinho Vermelho, após o nal, em que o lobo devora a meni -
na, vem em forma de versos a seguinte moralidade:
Literatura para crianças: a narrativa
Assim se vê que a pequenada Meninas, principalmente,
Sendo gentis e engraçadas, Mal andam em dar crédito a toda gente. Depois não é de estranhar
Se o lobo vier e as papar. Eu digo o lobo, pois os ditos Nem todos são iguaizinhos: Há uns que são mais mansinhos, Quietos, ternos, sossegados, Os quais, brandos, recatados, Vão perseguindo as donzelas Até casa, e às vezes até se deitam com elas. Quem não vê, pois que os lobos carinhosos De todos são decerto os mais perigosos? (PERRAULT, 1977, p. 99-100).
O propósito educativo destaca-se, ainda, no prefácio da obra, quando o autor, identicando-se como P. Darmancour, deixa claro que o leitor de suas obras faz parte de uma elite que tem como objetivo conduzir o povo e, por isso, necessita conhecê-lo. Conhecimento tido como imprescindível e que os contos poderiam bem cumprir tal nalidade (PERRAULT, 1977, p. 81-82). Imbuídos dessa missão, os três contos em versos ( A paciência de Griselda, Os de sejos ridículos e Pele de burro ) e os oito em prosa ( A bela adormecida, Chapeuzinho vermelho, Barba Azul, O Gato de botas, As fadas, A gata borralheira, Riquete do topete e O pequeno polegar ) procuram dar conta de sua tarefa educativa, perlando personagens detentoras de características exemplares para o bem ou para o mal, de forma que as primeiras sejam motivo de imitação e, as segundas, de rejeição. Assim é que princesas e moças do povo deslam beleza, bondade, paciência, docilidade, obediência, entre os atributos necessários para quem sonha encontrar o “príncipe encantado”. Ao passo que às feias, orgulhosas, rudes, desobedientes e ambiciosas cabe o castigo da rejeição social e, às vezes, a morte, como se observa em As fadas. Detendo o perl do Bem, do Belo e do Verdadeiro, as personagens usufruem dos benefícios advindos da intervenção de um mediador, que através da magia auxiliamnas a vencer os obstáculos, possibilitando-lhes receber o prêmio merecido, em geral, a ascensão social obtida pelo casamento com príncipes ( A gata borralheira, As fadas ) ou princesas ( O gato de botas ). Assim, com raras exceções, em que O pequeno polegar seria um exemplo, as personagens primam pela inércia de suas ações e pela dependên cia do auxílio externo, o que reetiria, tendo em vista os contos da oralidade, os an seios frustrados de uma camada social oprimida e inerte diante das agrúrias advindas 121
LEITURA E ENSINO
de um tempo de guerra, fome e miséria. Entretanto, sobrepondo-se a esse vínculo com os contos folclóricos, a inatividade das personagens estaria em consonância, principal mente, com as expectativas da educação endereçada aos jovens burgueses. Cademar tori Magalhães (1982, p. 140) pondera a esse respeito, enunciando que os contos de fadas, provindos de uma classe social inferior, estariam adequados à educação da elite, exatamente por conrmarem valores por ela almejados: “ensinam a reagir na forma conformada do sonho toda vez que os impulsos estão em desacordo com a sociedade.” Sob esse prisma, os contos de fadas, procurando esmaecer a rebeldia latente nos contos populares, reveladora das tensões conituosas entre os senhores feudais e seus vassalos, dão ensejo a que valores que levem à submissão e ao conformismo sejam cul tuados por aqueles que anseiam pela ascensão social, sem despender esforço algum. É o que ocorre, exemplarmente, em O gato de botas , quando o lho mais jovem do moleiro transforma-se de plebeu em aristocrata e casa-se com a lha do rei, graças à intervenção astuta e ardilosa de um gato. Ou, em As fadas , quando a lha mais nova de uma viúva é agraciada, por uma fada, com o dom de transformar cada palavra pro ferida em or ou pedra preciosa, como prêmio pela sua doçura, honestidade e beleza. E, como prenda maior, o casamento com um príncipe. Desta forma, as situações viven ciadas pelas personagens, reetindo-se em seus possíveis leitores, poderiam levá-los a procedimentos idênticos aos das personagens, conformando-os a um determinado papel social. Cumprindo a nalidade de “instruir divertindo” e adaptados ao gosto e às necessidades da elite privilegiada, os contos de fadas romperam as barreiras do espaço e do tempo, sendo cultuados por autores que ajudaram a xá-los na memória de crianças, jovens e adultos de lugares e épocas distintas. É assim que na Alemanha, procedendo à recolha dos contos da oralidade, os irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm publicam, em 1812, Histórias das crianças e do lar que, reeditadas e acrescidas de novas histórias, contam, por ocasião da quinquagésima edição (1857), com um rol de 181 contos. Dentre esses contos, lembramos: Chapeuzinho vermelho, Cinderela, Branca de neve, Rapunzel, A pastora de gansos, Os músicos de Bremen, João e Maria, entre outros. Se em alguns contos permanece a apologia ao conformismo e à submissão, já de tectados nos contos de Perrault, em outros se percebe a mudança de tal propósito. Isto ca claro no conto A inteligente lha do camponês (GRIMM, 1996) que se situa ao lado oposto de Griselda, de Perrault. Enquanto neste a mulher é levada a se anular, mostrando-se totalmente submissa ao autoritarismo do marido, pois somente assim se
tornaria digna de crédito, em A inteligente lha do camponês a mulher, passando por situações semelhantes às de Griselda, consegue superar as provas que lhe são impos tas, recorrendo à própria astúcia e inteligência. Por sinal, a astúcia que já aparecera em 122
Perrault ( O gato de botas) , como um meio capaz de propiciar a ascensão social, surge também nos Irmãos Grimm. Entretanto, aqui as personagens mostram-se mais batalha doras, obtendo sucesso, em vários contos, por mérito próprio, como se obser va em A inteligente lha do camponês e também em O alfaiate valente , em que o herói, um pequeno e frágil alfaiate, usando de esperteza, enfrenta e vence um gigante e outras difíceis provas, para assim merecer a lha do rei como sua esposa. Seguindo a trilha de sucesso dos Irmãos Grimm, o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) (1805-1875) publica, publica, em 1835, os os Contos contados para crianças, buscando inspiração nos contos que ouvira em sua infância. Ao sucesso da primeira coletânea, somam-se outras que resultam em um total de 156 histórias, a maioria sendo resultan te da inventividade do autor. Diferenciando-se de seus antecessores, os contos de Andersen (1996) não privile giam o auxílio mágico na resolução dos conitos. E com isso as personagens, em geral, surgem sofredoras, incapazes de superar em vida os obstáculos a elas interpostos. É o caso de Os sapatinhos vermelhos, O soldadinho de chumbo, A pequena vendedora de fósforos e A sereiazinha em que, inertes diante do destino cruel, as personagens, resig nadamente, encontram na morte o lenitivo para seu sofrimento. Assim, a submissão e o conformismo apregoados nos contos de Perrault e Grimm tornam-se mais intensos, uma vez que o herói, sentindo-se isolado e tendo como oponente o próprio mundo em que está inserido, só encontra um caminho a ser trilhado: o da resignação.
Literatura para crianças: a narrativa
Os contos de fadas e a formação do leitor Congregando elementos sedutores advindos do mundo maravilhoso e reprodu zindo um universo destituído de marcas de tempo e espaço, os contos con tos de fadas per-
petuados por Perrault, Grimm e Andersen integraram-se denitivamente à literatura infantil, passando a ser considerados como um meio adequado não só para a formação do jovem burguês, mas da criança em geral. E isto tem suscitado questionamentos, angariando partidários que se posicionam a favor da imutabilidade dos contos tradi cionais e outros que evidenciam a necessidade de mudanças. Embora a criança esteja praticamente ausente no cenário dos contos de fadas, quer de Charles Perrault, quer de outros que lhe seguiram, pondera-se que o universo representado nas histórias estaria em consonância com aquele vivenciado pela criança. Encontrando reetidas no universo ccional situações problemáticas ou de carência, as crianças conseguiriam, na opinião de Bruno Bettelheim (1980, p. 11-28), uma solução satisfatória para pro blemas semelhantes existentes na vida real. Por outro lado, referindo-se a essa possi bilidade dos contos de fadas serem representativos do mundo da criança, Zilberman (1982, p. 43) vale-se dos estudos de Richter e Merkel para evidenciar que os contos de 123
LEITURA E ENSINO
fadas poderiam, sob uma perspectiva renovadora, abdicar das imposições ideológicas constantes nos contos tradicionais, tornando-se um meio acessível de entendimento
do mundo real. Atendendo a essa prerrogativa, a literatura infantil tem contribuído com obras que ressaltam o propósito de renovação do gênero, como se observa em um número signicativo de autores da literatura infantil brasileira contemporânea, que se voltam para os contos de fadas dispostos a inseri-los no contexto da atualidade. Desta forma, ao lado de edições primorosas dos contos de Charles Perrault, Irmãos
Grimm e Hans Christian Andersen, que atestam a continuidade encantatória encantatória dos con tos de antigamente, perlam histórias não menos encantadoras de autores como Ana Maria Machado ( História meio ao contrário ), Ruth Rocha ( O reizinho mandão, O rei que não sabia de nada, A volta do reizinho mandão ), Fernanda Lopes de Almeida Almeida ( A fada que tinha ideias, Soprinho ), Marina Colasanti Uma ideia toda azul, Doze reis e Colasanti ( Uma a moça no labirinto do vento ), Chico Buarque de Holanda ( Chapeuzinho Chapeuzinho amarelo ), Pedro Bandeira ( O fantástico mistério de Feiurinha ) entre outros escritores brasilei ros propensos não só a promover inovações quanto à forma, mas, principalmente, a criar situações que possibilitem à criança o conhecimento de si mesma e do mundo em que vive.
Chapeuzinho em três tempos: Perrault, Grimm e Chico Buarque Chapeuzinho Vermelho, história conhecida tanto do público adulto como do infan til, pode nos servir de exemplo das transformações sofridas por uma obra através da
ação do tempo. Charles Perrault, ao publicar essa história em 1697, recolheu-a da tradição oral, mas promoveu algumas modicações, atenuando a violência da versão popular, que se encontra registrada em Darnton (1986). Nesta, o lobo, ao chegar à casa da avó de Chapeuzinho, mata a velha, corta-a em pedaços e coloca seu sangue em uma garrafa. Quando Chapeuzinho chega, ela é induzida pelo lobo a comer a carne e a beber o sangue (como se fosse vinho). Em seguida, a menina retira sua roupa, peça por peça e vai jogando-a no fogo, pois, segundo o lobo, não irá mais precisar dela. Nua, deita-se com o lobo e é devorada por ele. Em Perrault (1977), não há menção ao canibalismo; entretanto, o nal é o mesmo: avó e neta são devoradas pelo lobo. Em 1812, os Irmãos Grimm publicam na Alemanha uma série de contos, provindos da oralidade. Os dois estudiosos ouviram dos camponeses histórias que er am contadas de geração para geração. Após mais de cem anos, Chapeuzinho Vermelho Vermelho já não apre senta um trágico m, pois surge um caçador que abre a barriga do lobo e de lá retira a avó e Chapeuzinho. Se as personagens são as mesmas (com o acréscimo do caçador), a estrutura da narrativa mostra-se diferente. 124
Em Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault há uma situação inicial de equilí -
brio, em que o narrador apresenta a protagonista em estado satisfatório: a menina é amada pela mãe e pela avó. Em seguida, a mãe solicita à lha visitar a avó e levar-lhe algumas guloseimas, pois está adoentada. Chapeuzinho sai de casa e, no caminho, encontra-se com o lobo, que é a força adversa, o elemento que trará a desarmonia. Enganada pelo lobo, a menina diz para onde vai, indicando-lhe o caminho. O lobo chega primeiro à casa da avó, devora-a e se deita na cama. A menina, ao chegar à casa, estranha a aparência da avó e faz comentários, admirando o tamanho dos braços, per nas, orelhas, olhos e dentes da suposta avó. Em seguida, é devorada pelo lobo. O nal da história indica uma situação de desequilíbrio e não satisfatória para a personagem principal. Esse tipo de narrativa, com um nal trágico, quase não é encon trado na literatura infantil. E isto já se verica desde a versão dos Irmãos Grimm (2002) que apresenta uma situação inicial de equilíbrio, similar à de Perrault, com o acréscimo da advertência da mãe para que a lha não se afaste da trilha, indo direto para a casa da avó. Chapeuzinho sai de casa, encontra o lobo (força adversa), diz-lhe para onde vai e segue o conselho do lobo, indo pelo caminho mais longo. O lobo, ao chegar à casa da avó, devora-a e ca esperando Chapeuzinho. Esta chega e é também devorada pelo lobo. Entretanto, nesse conto, há uma força auxiliar, uma personagem que irá ajudar a protagonista. É o caçador, que salva a menina e sua avó. A situação nal é de equilí brio e superior à do início da narrativa, pois aqui se acrescenta o aprendizado. Todos Todos estão felizes e Chapeuzinho aprendeu que deve obedecer à mãe. Essa é a versão mais conhecida pelas crianças de hoje; entretanto, há outras versões que não procedem diretamente da oralidade, como Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque. Publicado em 1979, esse conto de fada renovado recupera o conto tradicional, adequando-o para a realidade do século XX. O vermelho, cor da vivacidade, é substituído pelo amarelo, representativo do medo que acompanha a menina. Em forma de versos, o narrador apresenta a situação inicial, descrevendo a menina que é amarelada de medo. Tudo o que a rodeia lhe causa medo e seu medo maior é o do lobo dos contos de fadas. O primeiro momento da narrativa é, portanto, de desequilíbrio, pois a protagonista da história encontra-se em uma situação insatisfatória. Como nos contos anteriores, ao sair de casa, Chapeuzinho encontra-se com o lobo. Porém, nesse caso, ocorre o inesperado. Chapeuzinho, ao se deparar com o seu medo maior, encontra meios para enfrentar e superar esse medo. E o recurso utilizado foi o do ludismo, a brincadeira com as palavras. Repetindo muitas vezes a palavra lobo, esta se transforma em bolo. O lobo, percebendo que a menina não lhe tem medo, começa a tremer como um pudim, que, por sinal, não é a sobremesa preferida da menina. Superado esse medo, os outros vão também se dissipando e a menina menina se transforma transforma em uma criança muito dona dona de si. si.
Literatura para crianças: a narrativa
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LEITURA E ENSINO
Comparando as três narrativas, observamos que, na primeira, a menina encontra um oponente (força adversa) que facilmente a domina, pois é uma menina ingênua, que desconhece a maldade ou mesmo a noção de perigo. No recôndito do lar encon trava-se protegida, mas fora do lar e longe do olhar materno, não soube ou não sabia como se proteger e, assim, sucumbiu. Na segunda narrativa, a dos Irmãos Grimm, a menina recebe conselhos da mãe, porém os esquece ao se deparar com o lobo. No entanto, ao lado da força adversa, ocorre uma força auxiliar, na gura do caçador, que elimina o lobo e salva a pequena e sua avó. A advertência da mãe é lembrada pela menina e, consequentemente, serve como um aviso para o leitor, alertando-o para as possíveis consequências da não-obediência. Já na terceira narrativa, a de Chico Buarque, a menina apresenta-se sozinha, sem o amparo e o amor da mãe e da avó. Sai de casa, depara-se com o lobo e não encontra uma força auxiliar externa que a possa ajudar; só tem a si mesma. Diante disso, transforma-se de caça em caçador e torna-se uma vencedora. A renovação proposta por Chico Buarque encontra ressonância em outros escrito res que investem em personagens mais ativas, questionadoras, em busca de soluções para as diculdades encontradas, sem a intervenção de uma fada madrinha. Neste sentido, parodiando histórias antigas, desfazendo o maniqueísmo reinante nos contos tradicionais, alterando a sequência narrativa e, principalmente, modican do o perl das personagens, os contos de fadas renovados promovem a criança, que passa a centralizar os eventos de forma dinâmica, buscando soluções para suas ca rências, superando, enm, a apatia e o conformismo que impregnaram a maioria dos heróis do passado.
LITERATURA INFANTIL: FINS ARTÍSTICOS OU PEDAGÓGICOS? Observando o trajeto histórico dessa modalidade literária, torna-se incisivo o papel da escola, quer pela atuação do professor que seleciona as obras e estabelece critérios metodológicos para o seu uso em sala de aula, quer pela consecução da meta primor dial da escola, que é a de propiciar à criança as condições de letramento, possibilitan do-lhe, assim, o acesso ao mundo da leitura e da escrita. Não restam dúvidas de que o estreitamento dos laços entre literatura e escola con tribuiu, nesses trezentos anos, para a divulgação e consolidação da literatura para as crianças. Todavia, tal associação possibilitou o surgimento de obras notadamente pe dagógicas, revelando-se como modelos de formação moral ou de didatismo, servindo como pretexto para o ensino de gramática, ciências, geograa, história e outros mais, tal como ocorre em Através do Brasil , obra publicada em 1910, em que os autores, Olavo Bilac e Manuel Bomm, marcam no prefácio a nalidade dessa literatura levada 126
à escola:
Literatura para crianças: a narrativa
o nosso livro de leitura oferece bastantes motivos, ensejos, oportunidades, con-
veniências e assuntos, para que o professor possa dar todas as lições, sugerir todas as noções e desenvolver todos os exercícios escolares, para boa instrução
intelectual de seus alunos do curso médio, de acordo com os programas atuais e com quaisquer outros que se organizem com a moderna orientação da Pedagogia (BILAC; BOMFIM, 1948, p. vi-vii).
Para dar conta de seu propósito, o livro relata a história de dois irmãos, Carlos e Alfredo, órfãos de mãe e que estudam em um colégio em Recife. O pai, que é enge nheiro, deixa os lhos sozinhos na cidade, pois recebeu a incumbência de trabalhar na construção de uma estrada de ferro no interior do Estado. Como o pai não retorna, e sabedores de que se encontra doente, os lhos fogem do colégio à procura do pai. É o motivo necessário para que a narrativa se desenvolva, focalizando aspectos geo grácos, históricos e culturais de todos os lugares por onde os dois irmãos passam. A narrativa procura cativar o leitor pelo aspecto da cção para, em seguida, deter-se em informações e mais informações, o que torna o texto enfadonho e cansativo. O pragmatismo presente nessa obra e em outras similares evidencia diretrizes es sencialmente adultocêntricas, valorizando o ponto de vista do adulto em detrimento ao da criança. Se a proliferação desses textos gerou críticas depreciativas, menorizando o gênero e, de certa forma, alijando-o do reduto da arte, por outro lado, houve, nesses três séculos de existência, o surgimento de obras contestadoras que, libertando-se dos liames redutores de literariedade, conseguiram a valorização do gênero e, consequen temente, a sua inserção no mundo privilegiado das obras de arte. No âmbito da literatura infantil brasileira, o rol de bons escritores é extenso e, entre os contemporâneos, duas escritoras se destacam, tendo sido agraciadas com o prêmio Hans Christian Andersen, uma medalha internacional que é considerada o prêmio Nobel da literatura infantil e que a cada dois anos é conferida pela IBBY ( Internacional Board on Books for the Youth ). Trata-se de Lygia Bojunga Nunes, laureada em 1982 pelo conjunto de obras publicadas a partir de 1972, e Ana Maria Machado, premiada no ano 2000. Seguindo os passos do mestre Monteiro Lobato, considerado o verdadeiro criador da literatura infantil brasileira, as obras dessas autoras privilegiam o ponto de vista infantil, apresentando-se à criança como um meio de acesso ao real, possibilitando-lhe a ordenação de suas experiências existenciais e o conhecimento de si mesma e do mundo que a cerca. Cria-se, dessa forma, um universo ccional em que a criança é levada a sentir prazer ao ler e, ao mesmo tempo, é chamada a reetir criti camente sobre a realidade em que vive, uma vez que se vê projetada no texto. Caracacterizando-se como gênero a partir do recebedor especial a que se destina, a literatura infantil visualiza dois caminhos possíveis. Primeiramente, atendendo a sua 127
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gênese histórica, inclina-se para a preparação intelectual e moral das crianças, cami nhando paralelamente aos ditames da pedagogia escolar. Por outro lado, impondo-se como arte e, com isso, rompendo os liames das normas tradicionais, volta-se para a
função formadora que é inerente a toda obra de arte literária, realizando o que o críti co Antonio Candido denomina humanização: processo que conrma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício de reexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o anamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres,
o cultivo do humor (CANDIDO, 1989, p. 117).
Nessa perspectiva, a literatura auxilia o leitor na decodicação do mundo em que está inserido, colaborando no processo de superação de suas carências. Para Zilberman (1982, p. 86), a função formativa da literatura realizar-se-á neste sentido humanizador, desde que a obra oriente-se para o recebedor, valorizando-o no relato enquanto personagem e leitor implícito. Desta forma, o estudo da representação da personagem-criança nas obras literárias torna-se de suma importância, uma vez que o lugar que lhe é destinado na narrativa, assim como a seleção de procedimentos utilizados pelo escritor na composição de seus caracteres e de sua trajetória, são indi cativos da valorização do ponto de vista infantil ou do ponto de vista do adulto. Isto avulta de importância quando se pondera que a ação desenvolvida pelo herói serve como indicativo da situação do recebedor, fornecendo-lhe meios que o auxiliem em seu crescimento interior ou, ao contrário, negando-lhe tal possibilidade pela opressão advinda do mundo adulto. Assim, o lugar projetado para o leitor implícito redunda, concomitantemente, na projeção de um lugar para o leitor real, gerando, com isso, a manipulação não somente de um ser ctício, mas de um ser humano real: a criança.
O PROCESSO DE SEDUÇÃO E FORMAÇÃO DO LEITOR EM MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA
A renovação que se inicia nos idos dos anos 60 e que “explode” nos anos 70 do século XX revela uma literatura infantil brasileira amadurecida e que se manifesta com textos que ora promovem a fusão entre realidade e fantasia, ora se atêm ao realismonaturalista, ou, ainda, dão uma nova roupagem aos contos de fadas, ao romance po licial, às histórias de aventuras ou de cção cientíca. Em comum, apresentam a ca racterística de centralizar os eventos na personagem-criança, buscando a sua inserção no mundo de hoje. Entre esses autores, encontra-se Ana Maria Machado, com uma obra que prima pelos procedimentos estilísticos selecionados, pelo ludismo com as palavras e pelos artifícios empregados para criar um ambiente propício ao contador de histórias, promovendo o encontro do narrador com seus ouvintes. 128
Em Contracorrente, obra publicada em 1999 e que reúne alguns artigos e palestras de Ana Maria Machado, a autora relata, em A ideologia da leitura (p. 59-68), a gênese
Literatura para crianças: a narrativa
do conto Menina bonita do laço de ta, que surgiu motivado por uma brincadeira
que fazia com sua lha Luísa, fruto do seu segundo casamento. Quando nasceu, a me nina ganhou um coelhinho branco de pelúcia, semelhante à cor de sua pele, também muito branquinha. A mãe, juntamente com os outros dois lhos, inventava respostas engraçadas para uma pergunta que norteava a brincadeira: “Menina bonita do laço de ta, qual é seu segredo pra ser tão bonitinha?” As soluções encontradas “caí no leite, porque comi arroz demais, porque me jogaram muito talco, porque meu irmão passou pasta de dentes em mim, porque me pintei de giz...”, além de provocarem o riso, resultaram, ao nal, em uma pequena história. Incentivada a escrevê-la, Ana Maria Machado transforma a “menina linda e loura” em uma “menina linda e negra”, mais adequada à realidade brasileira. Publicada pela primeira vez em 1984 na Revista Alegria, da Editora Abril, o conto logo foi editado em forma de livro pela Editora Me lhoramentos e, mais recentemente, pela Editora Ática. Premiado no Brasil e em outros países como Venezuela, Colômbia, Argentina, Suécia, o conto foi encontrando leituras ideológicas distintas, reetindo a cultura de cada país. Ana Maria relata situações en graçadas e surpreendentes a esse respeito. O depoimento de uma professora negra em Wisconsin (Estados Unidos da América), armando que seus alunos “adoraram se reconhecer como bonitos e donos de um padrão invejável de beleza, capaz de obsecar
um amiguinho branco”, assim como o da vendedora negra em Belém (Brasil), que se apresentou à escritora dizendo-lhe: “Muito prazer, eu queria conhecer você. Eu sou a Menina Bonita de Laço de Fita” são relatos que reiteram a grata recepção dessa obra, principalmente quando levada para o recinto da sala de aula. Já se tornou comum ouvirmos professores entusiasmados relatarem como essa história encanta os alunos, promovendo, como arma a própria Ana Maria Machado, a “aceitação democrática da diferença”. Entretanto, se há vozes acolhedoras, há outras discordantes. Na Dinamarca, o con to foi contra-indicado, pois ao sugerir que brancos e negros vivam em paz, isto seria um elemento de “desmobilização da luta e uma incitação ao conformismo”. Em Wis consin, se a professora negra encantou-se com a história, uma outra (branca e loura) achou espantosa a aproximação de uma criança negra a um coelho, símbolo de pro miscuidade sexual, situação que seria ofensiva aos negros. Recepções tão controvertidas são denunciadoras de visões de mundo diversica das, de ideologias diferenciadas que entram em sintonia ou em discordância com a ideologia que emana do texto literário. Expostas algumas possibilidades de leitura do conto Menina bonita de laço de ta, 129
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vejamos a história em si, observando o lugar que é destinado à personagem-criança e, consequentemente, ao seu leitor. Em Menina bonita de laço de ta, a aproximação com o leitor processa-se a partir
do título construído com dois segmentos de cinco sílabas cada um, versos em re dondilha menor, que estabelecem um ritmo que se torna melodioso pelo efeito da repetição de determinados sons (/i/, /t/) e pela rima ( bonita / ta ). Versos de cinco sílabas poéticas (redondilha menor) e de sete sílabas (redondilha maior) têm presença constante na poesia para crianças, assim como nas trovas e quadrinhas populares, pois propiciam rápida memorização, além de cativar o leitor/ouvinte pela melodia. A sedução do leitor, inserida no título, tem sua continuidade com o início da nar-
rativa, quando o narrador promove o resgate da oralidade dos contos primitivos. Ao “Era uma vez” segue-se a descrição de uma personagem, cuja imagem transcende da realidade visível (ser) para um plano superior e maravilhoso (parecer): Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feito apos da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva. Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de ta colorida. Ela cava parecendo uma Princesa das Terras da África ou uma Fada do Reino do Luar (MACHADO, 1984, p. 3).
Frases curtas, predominância de orações coordenadas e dos verbos ser e parecer, muitos adjetivos, comparações e metáforas mostram a imagem de uma menina encan tadora que parece ser a protagonista. Entretanto, pela sequência narrativa percebe-se que se trata de uma personagem mediadora, aquela que tentará auxiliar o herói na resolução de sua carência. O herói é um coelho branco que deseja “ter uma lha pre tinha e linda” como a menina: Do lado da casa dela, morava um coelho branco, de orelha cor-de-rosa, olhos
vermelhos e focinho nervoso sempre tremelicando. O coelho achava a menina a pessoa mais linda que ele tinha visto na vida. E pensava: “Quando eu crescer, quero ter uma lha pretinha e linda como ela...” Por isso, um dia, ele foi até a casa da menina e perguntou: – Menina bonita do laço de ta, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? (MACHADO, 1984, p. 3).
Na resolução da intriga, o narrador promove a valorização das personagens: o co elho, por sair à procura de solução para seu problema, e a menina, por encontrar respostas criativas em seu papel de força auxiliar: A menina não sabia, mas inventou: – Ah, deve ser porque eu caí na tinta preta quando era pequenina... O coelho saiu dali, procurou um vidro de tinta preta e se jogou nele. Ficou
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bem negro, todo contente. Mas aí veio uma chuva e lavou todo aquele pretu me, ele cou branco outra vez. Daí alguns dias, voltou lá na casa da menina e perguntou: – Menina bonita do laço de ta, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? (p. 4).
Literatura para crianças: a narrativa
O insucesso da primeira tentativa não desanima o herói, que volta a inquirir a me nina por mais três vezes, recebendo sempre soluções que são ingênuas e engraçadas (café, jabuticaba, feijoada): A menina não sabia, mas inventou: – Ah, deve ser porque eu tomei muito café quando era pequenina... O coelho saiu dali e tomou tanto café que perdeu o sono e passou a noite toda fazendo xixi. Mas não cou nada preto. Por isso, daí a alguns dias, voltou lá e perguntou: – Menina bonita do laço de ta, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia, mas inventou: – Ah, deve ser porque eu comi muita jabuticaba quando era pequenina... O coelho saiu dali e se empanturrou de jabuticaba até car pesadão, sem con seguir nem sair do lugar. Mas não cou nada preto, o máximo que conseguiu foi fazer muito cocozinho preto e redondo feito jabuticaba. (MACHADO, 1984, p. 4-5).
A sequência narrativa que se repete particulariza-se por alguns elementos que chamam a atenção. Primeiramente, a pergunta que, a exemplo do título, cativa pelo ritmo melodioso, pela rima, repetição de sons e que também pode ser desmembrada em versos de cinco sílabas: “Menina bonita / do laço de ta / qual é teu segredo / pra ser tão pretinha?” Em segundo lugar, pode-se argumentar que a repetição da pergunta funciona como um refrão, suscitando no leitor a curiosidade pela resposta que será “inventada”. O mesmo processo repetitivo encontra-se na fala da menina: “Ah, deve ser porque eu [...] quando era pequenina [...] e, também, na fala do narrador: “O coelho saiu dali [...] mas [...] por isso / daí [...] voltou lá e perguntou”. Em Texturas (MACHADO, 2001, p. 119), Ana Maria Machado fornece pistas do processo de sua criação literária, apontando a curiosidade como elemento capaz de
seduzir e prender a atenção do leitor. Assim é que a curiosidade está presente na caracterização das personagens, pois tanto o coelho quanto a menina são curiosos, ávidos por novidades e sempre propícios a saciarem o desejo crescente de conheci-
mentos. Isto se torna latente nas várias tentativas do coelho em elucidar o mistério da cor da menina, não esmorecendo ante os enganos e as frustrações advindas de soluções não adequadas. O segredo e o desvendamento desse segredo tornam-se o centro de atenção das personagens, enredando o leitor de forma lúdica, nas tramas desse mistério. Rompendo com a expectativa de uma quarta sequência narrativa, e de que a respos ta inventada continue a não ser adequada à resolução do problema, surge uma nova 131
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força auxiliar, a mãe da menina: Por isso, daí alguns dias voltou lá e perguntou: – Menina bonita do laço de ta, qual é o teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia e já ia inventando uma história de feijoada quando a mãe dela, que era uma mulata linda e alegre, resolveu se meter, deu uma gargalhada e disse: – Artes de uma avó preta que ela tinha... (MACHADO, 1984, p. 5-6).
O recurso à voz adulta evidencia dois fatos: primeiro, a imaturidade da criança que, embora criativa, carece de experiência existencial e conhecimento de vida e, segundo, que o adulto detém esse conhecimento e pode compartilhá-lo com a criança. Entre tanto, a ingerência do adulto não cerceia a criança, pois o narrador teve o cuidado de apenas sugerir a resposta, deixando espaço para a reexão, quer da personagem, quer do leitor: “– Artes de uma avó preta que ela tinha...”. A assertiva da mãe leva o coelho a reetir e a encontrar a resposta tão procurada, bem como a colocá-la em prática: Aí o coelho, que era meio bobo mas não era bobo demais, viu que a mãe da menina devia estar dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre é mesmo com os pais, os avós, os tios e até com uns parentes meios tortos. E se ele queria ter uma lha pre tinha e linda como a menina, tinha era que procurar uma coelha bem preta. Não precisou procurar muito. Logo encontrou uma coelhinha da cor da noite que achava aquele coelho branco uma graça. Foram namorando, casando e tiveram uma ninhada de lhos, que coelho quando desanda a ter lhote não pára mais. Tinha coe lho pra todo gosto: branco bem branco, branco meio cinza, branco malhado de preto, preto malhado de branco e até uma coelha bem pretinha. Já sabe, alhada da menina que morava na casa ao lado (MACHADO, 1984, p. 6-7). Assim é que o coelho se casa com uma coelha “cor da noite” e tem vários lhos. Entre eles, uma coelha pretinha, tão encantadora quanto a menina. À valorização da criança acresce-se novamente a valorização do adulto. A história termina com o registro da aprendizagem adquirida e transmitida para a outra geração: E quando ela saía de laço colorido no pescoço, sempre encontrava alguém que perguntava: – Coelha bonita do laço de ta, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? E ela respondia: – Ah, foram os conselhos da mãe da minha madrinha... (MACHADO, 1984, p. 7).
Buscando minimizar a participação do adulto, a sua contribuição no processo de
apreensão de uma dada realidade detém-se em dar “conselhos”, que poderão, even tualmente, ser seguidos ou não. Aqui os conselhos não só foram aceitos pelo coelho 132
como o ensejo de sua continuidade se insere na fala da coelhinha. Tal procedimento do narrador viabiliza a reexão de que, no mundo da criança, o adulto tem o seu papel reservado. Se a criança é incentivada a deixar a passividade e a buscar, através de seus próprios meios, soluções para suas carências existenciais, o
Literatura para crianças: a narrativa
adulto poderá ajudá-la na superação desses obstáculos, orientando-a com seus conhe-
cimentos e experiências. Os recursos formais colocados em prática por Ana Maria Machado (o ludismo com as palavras, as constantes repetições, as marcas de oralidade) evidenciam que o dis curso estético gera gratuidade, proporcionando o prazer de ler e que, ao mesmo tem po, cria espaço para a participação do leitor, convidando-o à reexão dos assuntos abordados. Assim é que a inserção da menina em primeiro plano, com uma descrição longa e pormenorizada, tem sua razão de ser. O leitor é levado a se encantar por essa menina tão linda que mais parece uma princesa ou uma fada. Para comprovar a viabilidade dessa sedução, o narrador insere o herói, que é coelho e é branco, diferente, portanto, na espécie e na cor, e que se mostra também embevecido por essa menina encanta dora. No nal a situação se inverte. É a coelhinha pretinha que acha aquele coelho branco uma graça. Assim a “democratização do diferente” alcança a realização plena com o casamento do coelho branco com a coelha negra, redundando na consequente miscigenação da prole.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Reportando-nos às Fábulas de La Fontaine, aos Contos de Fadas da tradição oral e aos da contemporaneidade, assim como ao conto Menina bonita do laço de ta de
Ana Maria Machado, constatamos que cada uma dessas obras revela-se como constru tora de conhecimento, congurando e dando sentido a uma determinada realidade, visualizando mundos diversicados, em épocas diferenciadas. Expondo o leitor aos seus segredos, cada obra, a sua maneira, é educativa. Diante disso, se não há como fugir da ideologia, se todo texto reete uma determinada visão de mundo, se todo texto é educativo, que procedimentos devem ser levados em consideração por aqueles que se sentem responsáveis pela formação de leitores? Ana Maria pondera que se a leitura passa pela mediação de adultos, tanto na família como na escola, é admissível
que se vá inltrando na criança posicionamentos que o adulto considera importantes, sejam eles de conformismo, submissão, autoritarismo ou o seu inverso. As soluções apontadas pela autora atêm-se a três procedimentos. O primeiro diz respeito à prefe rência por textos literários, que tenham valor artístico, isto é, que tenham qualidade estética, que o livro “tenha um potencial rico, com muitas signicações que seja um 133
LEITURA E ENSINO
exemplo de criação original e não estereotipada” (MACHADO, 1999). O segundo pro cedimento em defesa do leitor, seja para defendê-lo do autoritarismo do autor ou dos adultos – mediadores da leitura –, seria o desenvolvimento da capacidade de leitura
crítica, em que o leitor passa de uma leitura horizontal para uma leitura verticalizada, desvendando os segredos, o que está nas “entrelinhas”. E um terceiro passo seria uma “dieta diversicada de leituras” que propiciasse o diálogo das contradições, em que um texto discordasse do outro, sugerindo outras alternativas; ocorrendo, portanto, uma pluralidade de visões de mundo. A par desse diálogo enriquecedor em que o livro deixaria “de ser um ponto de chegada para se transformar num ponto de partida permanente para outras leituras do texto e do mundo” (MACHADO, 1999), Ana Maria Machado aponta a curiosidade e o exemplo como os dois pés que deveriam conduzir as crianças à descoberta da leitura. A esse respeito, a autora lança instigantes questionamentos, envolvendo aqueles que estão mais próximos dos pequenos, no caso, os pais, a família, os professores. “Entre vacas e gansos – escola, leitura e literatura”, um dos ensaios de Texturas (2001 p. 113125), Ana Maria Machado enfatiza que para despertar a paixão é necessário que haja professores que sejam realmente leitores e que falem apaixonadamente de suas leitu ras, pois assim estarão revelando um segredo para as crianças: o amor pela literatura. Andersen) e contos de fadas contemporâneos (Lúcia Machado de Almeida, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Pedro Bandeira, entre outros) e verique como ocorre a representação da criança e em que medida esses contos promovem a interação com o público leitor a que se destinam, servindo como um meio de acesso ao real e de abertura de horizontes de expectativas.
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Literatura para crianças: a narrativa
Proposta de Atividade 1) Proceda a um estudo contrastivo entre fábulas de Esopo, La Fontaine e Monteiro Lobato que abordem um mesmo tema, vericando semelhanças e diferenças nos recursos utiliza dos pelos fabulistas quanto à estruturação das fábulas e em sua função de transmitir uma verdade, uma lição de vida. 2) Selecione contos de fadas tradicionais (Charles Perrault, Irmãos Grimm, Hans Christian Andersen) e contos de fadas contemporâneos (Lúcia Machado de Almeida, Ana Maria Ma chado, Ruth Rocha, Pedro Bandeira, entre outros) e verique como ocorre a representação da criança e em que medida esses contos promovem a interação com o público leitor a que se destinam, servindo como um meio de acesso ao real e de abertura de horizontes de expectativas.
Anotações
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Anotações
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A leitura de poesia na escola Mirian Hisae Yaegashi Zappone
SOBRE COMO SE TEM LIDO E COMO SE PODE LER POESIA NA ESCOLA Certamente, há muitos modos de ler poesia. Podemos lê-la apenas como forma de memória e recitação em festejos escolares e outros, como exercício ou treino para os olhos do leitor, de forma que consigamos maior rapidez na decodicação das palavras, consistindo, portanto, um exercício mecânico de leitura. Podemos, ainda, indagar so bre o sentido de um poema; podemos, simplesmente, apreciá-lo pela forma sonora e rítmica que possui ou mesmo juntar essas duas últimas formas de ler, buscando para o texto os sentidos que dele podemos produzir. Ao reetir sobre a leitura da poesia, neste capítulo temos o objetivo de discutir alguns modos de leitura do texto literário efetuados ao longo da história da educação literária e que se reetem negativamente no ensino de literatura e de poesia até hoje. Como contra ponto a esse modelo de leitura, apresentaremos ao professor a leitura de um poema em
que são trabalhados os aspectos que se consideram fundamentais no discurso literário e que, portanto, podem ser observados na leitura de poemas em sala de aula. Na escola contemporânea, a leitura de poesia, como vimos anteriormente, tem sido relegada a um segundo plano, já que os textos referenciais constituem o grande ma terial de leitura. Seja em função dos Parâmetros Curriculares ou mesmo das diretrizes educacionais, o que observamos nos livros didáticos é uma profusão de textos como bulas, cartas, receitas, cartazes e outros, já que a tentativa é aproximar, cada vez mais, as práticas de leitura da escola das práticas de leitura efetuadas fora da escola. Segundo pesquisa realizada com professores de várias regiões do Brasil, na qual estes narravam práticas de leitura escolar, os textos mais utilizados para leitura n o Ensino Fundamen-
tal são narrativas infanto-juvenis. A poesia enquanto gênero textual representa um percentual muito pequeno dos textos selecionados pelos professores para leitura em sala de aula (ZAPPONE, 2001). Esse apagamento da poesia na escola deve-se, em parte, ao caráter utilitarista da sociedade burguesa de moldes capitalistas da qual a escola faz parte, mas também é 139
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consequência dos modos de ler poesia praticados na escola brasileira ao longo dos anos. Em pesquisa sobre o ensino de literatura e língua no Brasil, a partir do levanta mento e análise dos programas de ensino do Colégio Pedro II, escola secundária da eli te brasileira, Razzini (2000) evidencia que a leitura de textos literários, e especialmente da poesia, seguiu, durante décadas, um princípio pragmático: lia-se com a intenção de aprender com os autores consagrados a escrita, a gramática e, em alguns momentos, civismo, geograa e regras de convívio social. Razzini (2000) faz um levantamento dos programas do Colégio Pedro II durante os anos de 1838, ainda no período colonial, até o ano de 1971 e observa quanto foi duradoura a manutenção da disciplina Retórica e Poética e tardia a introdução da lite ratura nacional nos programas do referido colégio, passando a ser estudada apenas em 1857. Esse olhar histórico sobre o ensino da literatura permite-nos constatar o quanto o apagamento da poesia relaciona-se com a história de sua leitura na escola brasileira, já que o Colégio Pedro II pode ser compreendido como uma espécie de “espelho da nação”, como enfatiza Razzini (2000), pois era uma instituição modelar, cujos progra mas e práticas de ensino eram reproduzidos em outras instituições de ensino do país. Sendo assim, é interessante vericar quais eram os modos de leitura efetuados nessa escola-modelo no vasto período de 135 anos, o que abarca, praticamente, quase um terço da história. No período entre 1838 a 1857, são apenas anotadas aulas de “Retórica, Poética e Literatura Nacional”. A partir de 1858, é possível observar a ênfase em algumas atividades de leitura, tais como a produção de composições a partir da leitura de autores clássicos, da literatura nacional e da literatura portuguesa, além da frequente atividade de declamação de poetas e prosadores, como sumariza Razzini (2000) na apresentação do programa do ano de 1870: Retórica e Poética – leitura e apreciação literária dos clássicos, estilo. História da literatura em geral e Especialmente da Portuguesa e Nacional, com posição de discursos e narrações, declamação (RAZZINI, 2000, p. 251).
A partir do ano de 1881, podemos observar, nas aulas de Português, a inclusão de autores brasileiros contemporâneos (do séc. XIX) como modelos para escrita: “Leitura e recitação de trechos de prosadores e poetas brasileiros do século atual: exercícios ortográcos, gramática e composição.” (RAZZINI, 2000, p. 256). Para as aulas de litera tura, no mesmo ano, registramos: Retórica, Poética e Literatura Nacional: estilo, teoria e histórico dos diferentes gêneros de prosa e de poesia, análise de estilo, composição, declamação. Português e história literária: traços gerais e lingüística e principais períodos literários das línguas vivas e mortas (RAZZINI, 2000, p. 256).
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A partir de 1891, cam evidentes as atividades de leitura e recitação de trechos de prosadores e poetas brasileiros, a partir dos quais se estudava gramática e se propu nham exercícios de composição como se vê em no programa de português desse ano:
A leitura de poesia na escola
Leitura e recitação de trechos de prosadores e poetas brasileiros e portugueses, exercícios ortográcos, revisão da gramática, composição. Leitura e recitação de trechos de prosadores e poetas brasileiros e portugueses, exercícios cacográcos, revisão da gramática, composição (RAZZINI, 2000, p. 257).
A partir dessas indicações dos programas do Colégio Pedro II, a leitura literária era reduzida a uma estratégia de ensino de língua (gramática), e como modelo de escrita. As principais práticas de leitura dos textos literários observadas eram a leitura de excertos, entendendo-se por leitura a oralização dos textos, com vistas a uma boa
recitação dos mesmos. Embora tal forma de leitura da literatura enfatize o caráter apenas mecânico da leitura associada a uma abordagem historicista, já que tematiza va os períodos de “evolução” literária, bem ao gosto determinista do século XIX, ele predominou, sem grandes alterações, até as primeiras décadas do século XX, quando se observa outro objetivo para a leitura de textos literários na escola brasileira: os ob jetivos civilistas e pedagogizantes, como podemos notar nos programas de português, após a reforma do ensino proposta por Gustavo Capanema em 1942: Leitura ( Far-se-á em trechos, em prosa e em verso, que tenham por assunto principal a família, a escola e a terra natal. Gramática e outros exercícios (voca bulário, ortograa e redação) Leitura (Far-se-á por assunto principal a paisagem e a vida em cada uma das re giões naturais do Brasil. Gramática e Outros Exercícios (vocabulário, ortograa, redação e versicação) Leitura (Far-se-á que, sempre subordinados à ideia geral de amor ao Brasil, tenham por assunto principal a conquista da terra, o melhoramento dela e a atualidade brasileira. Leitura (Far-se-á, por já aspirar a constituir uma iniciação literária, em excertos da literatura brasileira e portuguesa, distribuídos em três classes: cartas, prosa literária e poesia) (apud RAZZINI, 2000, p. 264).
Nas décadas seguintes, durante os anos de 1951 a 1971, nota-se um prolongamen to desse modelo de ensino de literatura associado ao ensino de língua, com ênfase no conhecimento historicista dos períodos literários. Entretanto, nota-se que os textos literários não são mais lidos como exercícios de recitação e existe uma tentativa de
lê-los de maneira diferenciada, como se pode inferir pelo registro das atividades de “interpretação” e “análise literária”: Curso Ginasial - Leitura e interpretação de excertos breves e fáceis de prosado res e poetas brasileiros dos dois últimos séculos, Redação, Gramática. Curso Colegial – Leitura, interpretação, análise literária, comentário gramatical e estudo lológico de textos de autores brasileiros e portugueses. Composição
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LEITURA E ENSINO
(prosa e verso), Gêneros literários, Literatura Portuguesa (fases clássicas, ro mantismo, realismo e naturalismo, parnasianismo e simbolismo, fase contem-
porânea) (RAZZINI, 2000, p. 266).
Com a reforma de ensino proposta pela Lei 5.692/71, criaram-se as “Diretrizes e Bases” da educação nacional, transformando as etapas do ensino primário e colegial em Ensino Fundamental e o ensino secundário em 2o Grau. É nesse momento que aparece nos programas do Pedro II a disciplina de Comunicação e Expressão. A modernização dos nomes não implicou, entretanto, grandes mudanças nos mo dos de se ler literatura na escola, pois como evidencia o exame de livros didáticos
dessa década e da década seguinte (anos de 1980), os modos de ler literatura ain da baseiam-se em um modelo historiográco, muitas atividades de leitura propostas voltavam-se para aspectos gramaticais dos textos e muito ainda podemos encontrar do aspecto pedagogizante divulgado nos programas de décadas anteriores. Essa sumária história da educação literária no Brasil objetiva mostrar que, longe de trabalhar o aspecto lúdico, ccional, a escolarização sofrida pelo texto literário o levou a ser um adjuvante no processo de ensino de outros conteúdos, sobretudo de aspectos gramaticais e pedagógicos. Assim, cou de lado ou para um segundo plano a leitura do texto em si mesmo, para a descoberta de seus signicados, para o processo comunicativo que ele pode instaurar com o leitor ao tematizar inúmeros aspectos da vivência humana. Desse modo, ler um conto, um romance ou uma poesia na escola transformou-se em sinônimo de atividade didática quase sempre enfadonha. Olhando para essa história, um caminho que se aponta para a mudança desse para digma de leitura do texto literário é o da leitura que se faz por prazer, da leitura lúdica e, principalmente, da leitura que produz sentido para o leitor. Leitor algum poderá apreciar a leitura quando ela serve apenas de pretexto para a realização de atividades didáticas ou para ensinar algo que a criança supostamente não sabe e deve aprender: como ser educado, como escrever corretamente a graa das palavras ou localizar os substantivos ou os advérbios etc., só para ilustrar alguns exercícios de leitura do texto literário em livros didáticos. No entanto, essa outra forma de ler, que procura um sentido, que se faz para com preender um objeto estético necessita de certo preparo: ela deve ser aprendida, pois o objeto estético, categoria na qual se insere a poesia, não se revela facilmente ao leitor. A poesia, enquanto objeto estético criado por uma organização especial das palavras precisa ser vista e lida a partir de todos os seus índices de sentido que vão dos aspectos sonoros (mais evidentes) até os aspectos sintáticos, de grande importância, mas pou cas vezes objeto de atenção. J. Culler (1999) propõe que um poema seja entendido sob duas diferentes 142
perspectivas: a) como uma estrutura feita de palavras, como um texto, enm, como uma construção verbal; e b) como um evento, ou seja, como um ato do poeta que es creve, ou como uma ação do leitor – a de ler, ou mesmo, como um evento da história literária. Se destacamos a primeira perspectiva, o poema pode ser investigado em sua es trutura de composição, vericando-se de que forma a organização entre as palavras, as escolhas lexicais, semânticas ou sintáticas atuam para produzir certos sentidos. En quanto uma forma de construção verbal especíca, interessa ao leitor saber como os traços semânticos e os não-semânticos da linguagem, tais como sons, ritmo, forma grá ca do texto e outros produzem signicação ou geram certos efeitos de sentido. Logo,
A leitura de poesia na escola
ao observarmos o poema desse modo, torna-se fundamental atentar para os aspectos
linguísticos do texto e para o modo como eles se articulam, já que uma característica fundamental da literatura é a integração da linguagem. Por outro lado, se entendemos o poema como um evento – no caso como um ato
de um poeta – Culler (1999) propõe que se evidencie a distinção entre o AUTOR que escreve o poema e o FALANTE ou VOZ que fala no poema. Tal distinção é signicativa, porque estabelece a relação de ccionalidade instaurada pela criação poética. De fato, não podemos confundir o autor textual com o falante ou com o “eu” criado no poema e cuja voz nele se caracteriza. A elocução ou voz que emerge em um poema possui um status ou uma condição determinada: ela é criada pelo autor e congura/projeta um “eu” cujos sentimentos, emoções ou visão de mundo estão caracterizados no texto. É comum nos estudos de teoria literária esse eu ccional ser nomeado como “ eu-lírico”, como denominaremos doravante. Outro importante dado acerca da caracterização do eu-lírico diz respeito ao tipo de relação que ele estabelece com o mundo. Tal relação é denida sempre em função da afetividade e da emotividade do eu-lírico, o que torna uida e fugaz a relação entre esse sujeito e os objetos ou fatos caracterizados em sua fala. Por essa razão diz-se que, nos textos poéticos, a atitude fundamental do eu-lírico é o não-distanciamento , ou seja, não há um distanciamento claro entre o eu que fala e as coisas das quais fala. Neste sentido, podemos enunciar que, nas poesias, o que se observa é uma fusão entre o sujeito (eu-lírico) e o mundo, seja tal mundo referente ao passado, ao futuro ou ao presente. Por isso, também podemos armar que, nos textos poéticos, há uma predo minância da função emotiva da linguagem, ou seja, ela é produzida para expressar os estados de alma de um sujeito inventado pelo poeta. Ao compreender que o eu que fala em um poema se refere a um eu criado, torna-se fundamental para a leitura do texto poético a caracterização dos seguintes aspectos: 1) a identidade desse falante, interessando descobrir quem ele é; 2) do que ou de quem 143
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ele fala; e 3) como ele se coloca em relação ao que fala ou como se posiciona em rela ção ao objeto de sua fala, tal como propõe Culler: “Interpretar o poema, portanto, é uma questão de deslindar, a partir das indicações do texto e de nosso conhecimento geral sobre os falantes e situações comuns, a natureza das atitudes do falante.” (1999, p. 77). Como se pode inferir pela indicação do autor, para deslindar o poema, portanto,
é preciso acionar conhecimentos de ordem textual (conhecimentos linguísticos, co nhecimento sobre os textos), mas também e, fundamentalmente, o conhecimento que o leitor possui sobre a vida, sobre os relacionamentos humanos, sobre os sentimentos
humanos, sobre a sociedade em geral etc. Compreendida desta forma, a leitura de um poema congura uma atividade bem mais complexa do que a simples decodicação gráca das palavras com nalidade recitativa ou declamatória, prática de leitura utiliza da durante mais de um século na escola brasileira. Concebendo os textos poéticos a partir das observações feitas anteriormente, pas-
samos à leitura de um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado Os Cantores Inúteis, publicado em 1980 no livro A Paixão Medida: Os Cantores Inúteis1 Um pássaro autista no quintal caçoa de meu verso modernista. Anal, fez-nos ambos o universo aprendizes ao sol ou à garoa. A canção absoluta não se escreve,
à falta de instrumento não terrestres. Aos mestres indagando, mal se escuta pingar, de leve, a gota de silêncio. Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico,
vence o mítico amor nossa vaidade: Os amantes que passam distraídos e surdos a tais cantos discordantes,
a melodia interna é que os governa. Tudo mais, em verdade, são ruídos.
Ao observarmos a conguração gráca do texto, vemos que se trata de um tipo especíco de composição poética chamada soneto, vastamente utilizado por poetas de várias épocas e estilos. O soneto é formado por duas estrofes (conjunto de versos) de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos) e, comumente, seus
1 ANDRADE, C. D. Os cantores inúteis. In: BARBOSA, R. C. Literatura comentada: Carlos Drummond de Andrade: seleção de textos, estudos biográco, histórico e crítico por... São Paulo: Nova Cultural, 1988.
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versos possuem entre dez ou doze sílabas métricas, sendo o último verso denominado “chave de ouro”, visto concluir o texto com uma ideia central ou de natureza funda mental para sua compreensão. No texto de Drummond, os versos possuem um ritmo regular, nos quais podemos vericar dez sílabas métricas em cada verso. As sílabas métricas são sílabas diferentes das sílabas gramaticais, porque sua contagem (escansão) é regida pelo aspecto da so noridade. As sílabas métricas são contadas até a última sílaba tônica do verso, desconsi derando-se a(s) última(s) sílaba(s) átona(s). No caso do poema acima, o primeiro verso pode ser assim escandido 2: Um / pás / sa / ro / au / tis / 2 3 4 5 6 1 Ca / ço / a / de / meu / ver / 2 3 4 5 6 1
A leitura de poesia na escola
ta / no /quin/ tal 9 7 8 10 so / mo / der / nis / ta 8 9 7 10
Como a última sílaba do segundo verso é átona, ela não é considerada como sílaba métrica. Como podemos perceber, ambos os versos, como todos os demais do poema, quando escandidos, são compostos por 10 sílabas métricas, o que os caracterizam como decassílabos. Ao ler os versos do texto, notadamente os versos acima, observa mos que, ao lermos o texto em voz audível, a sexta e a décima sílabas recebem uma ênfase sonora maior, concedendo ao texto o que os teóricos chamam de ritmo poético. Esse padrão de acentuação de certas sílabas dos versos que pode ser sintetizado atra vés da expressão ER 10 (6,10), ou seja, um padrão no qual se tem versos decassílabos, nos quais a sexta e a décima sílabas são acentuadas, como acontece em todos os versos do poema em questão. Além do ritmo e da regularidade métrica obtidos por meio desses recursos musi cais, o poema possui também outro dado relacionado à sonoridade. Trata-se das rimas, cujo aparecimento nos poemas se dá mais comumente ao nal dos versos. No caso do poema de Drummond, elas aparecem no interior dos versos, como podemos perceber
através das seguintes combinações sonoras na primeira estrofe (autista/modernista; quintal/anal) e na segunda (absoluta/escuta; terrestres/mestres). Como é facilmente observável, ao construir o poema, Drummond trabalha não
só com aspectos linguísticos, relacionados diretamente ao verbal, mas também com
2 Sobre a escansão de poemas e outros aspectos pontuais obre poesia, consultar: GOLDSTEIN, N. Versos, sons e ritmos . São Paulo: Ática, 1986. D’ONOFRIO. S. Elementos estruturais do poema. In:______. O texto literário: teoria e aplicação. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
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aspectos relacionados à musicalidade, uma das características também especícas do gênero lírico, ao qual pertencem todos os poemas de extensão menor. Entretanto, mais signicativo do que saber nomear tais recursos, interessam os sentidos provo cados por sua utilização no poema. Ora, se nas poesias há um eu que se caracteriza e que cria um modo particular de ver e sentir o mundo, em uma primeira impressão, po demos hipotetizar que o eu-lírico tencione criar uma atmosfera musical para o texto, associando sua fala à música, pois como notamos, são muitos os recursos sonoros por ele utilizados. Como a literatura implica em uso integrativo da linguagem, essa ideia poderá ser conrmada com outros aspectos do texto. Se, como pressupõe Culler (1999), na leitura de um poema é preciso descobrir a identidade do eu-lírico, o texto apresenta alguns indícios sobre tal aspecto. Inicialmen te, ele se apresenta na primeira pessoa do singular, como podemos vericar através do uso de um pronome possessivo na primeira estrofe ( meu verso modernista) e através de um pronome pessoal ( Eu, pretensioso), no primeiro terceto. Além de apresentar-se de forma explícita, inferimos que o eu-lírico se trata de um poeta, porque se apre senta como autor de um verso de características modernistas. Além desse dado sobre sua identidade, esse eu-lírico vê a si próprio como alguém vaidoso, pouco modesto e pretensioso. Na primeira estrofe, observamos que o eu-lírico apresenta uma situação especíca na qual podemos perceber dois sujeitos (o eu-lírico e um pássaro autista) que são apresentados em uma relação de conito instaurada por uma disputa artística, já que o pássaro autista rivaliza seu canto musical com o canto poético do eu-lírico (o poeta modernista). O sintagma pássaro autista pode ser compreendido de forma menos ou mais conotativa: pode corresponder a um pássaro, um animal, efetivamente, como pode congurar uma metáfora (gura de linguagem na qual um termo é livremente substituído por outro em virtude da semelhança entre eles), por meio da qual o eulírico pode estar se referindo à gura dos poetas parnasianos, exímios cantores, já que seus textos eram muito ricos em recursos sonoros e formais. Nesse caso, a segunda possibilidade ganha mais pertinência, já que tal pássaro empreende a ação de “caçoar” da produção poética do eu-lírico, fato que pode ser relacionado à crítica histórica que os poetas parnasianos dirigiram aos poetas modernistas quando de sua estreia no cenário literário brasileiro. Entretanto, depois de apresentar essa situação de rivalidade, o eu-lírico não se
mostra atingido pela atitude crítica do pássaro e, ao contrário, passa a discorrer sobre a criação poética, colocando a si próprio e seu rival como aprendizes, sob circunstân cias menos ou mais favoráveis como vemos no terceiro e quarto versos da primeira estrofe: Anal, fez-nos ambos o universo/aprendizes ao sol ou à garoa . Esses versos 146
são construídos com uma forma sintática inversa, o que caracteriza outra gura de lin guagem chamada hipérbato. Na ordem direta, os versos constroem a seguinte oração: O universo fez-nos, ambos, aprendizes ao sol ou à garoa. A palavra universo ganha um sentido especial no texto, visto que nessa oração desempenha a função de sujeito, de alguém responsável pela ação de criar, de fazer e
A leitura de poesia na escola
de atribuir ao eu-lírico e ao seu oponente certos atributos, como se nota pelo verbo
fazer acrescido do pronome oblíquo nos ( fez-nos). Logo, “universo” consiste metáfora de natureza, de criador ou de ordem. Ou seja, o caráter aprendiz de ambos (poeta e pássaro) congura uma espécie de destino traçado por forças (natureza, criador, universo) que transcendem qualquer tipo de esforço pessoal ou artístico que estes possam desempenhar para serem bons poetas. Nesses dois versos, assim como em toda a segunda estrofe, percebemos uma atitu de reexiva por parte do eu-lírico, já que sua fala é marcada por um discurso disser tativo que tematiza a atividade criadora. Tal discurso torna-se mais evidente nos dois primeiros versos da segunda estrofe: A canção absoluta não se escreve,/ à falta de instrumentos não terrestres. Para um poeta, a grande missão seria escrever uma canção absoluta, ou seja, um poema que pudesse expressar todos os sentidos e sentimentos humanos plenamente. Entretanto, o eu-lírico mostra-se completamente consciente de que a composição dessa canção consiste um objetivo inalcançável, já que não dispõe de instrumentos não terrestres , ou seja, de ferramentas ou de meios transcendentes para produzi-la. Para o eu-lírico, nem mesmo os mestres (os grandes poetas da his tória literária) possuem tais instrumentos transcendentes, pois, ao serem indagados, respondem com o silêncio, como podemos inferir pelos dois últimos versos dessa estrofe: Aos mestres indagando, mal se escuta / pingar, de leve, a gota de silêncio . Neste sentido, percebemos que a primeira estrofe pode ser vista, de forma glo bal, como a apresentação da disputa entre dois sujeitos – o poeta e seu oponente, o
pássaro autista. A segunda, por sua vez, caracteriza-se por uma atitude reexiva do eu-lírico, na qual este disserta sobre o ato criador. As duas últimas estrofes ou os dois últimos tercetos apresentam uma situação nova diante do quadro da disputa entre os sujeitos do texto: trata-se de um momento em que, diante de uma cena especíca – a passagem de um casal de enamorados –, o eulírico constata quão impotentes são os esforços de criação literária diante da canção mais viva e intensa representada pelo amor do casal que diante deles passa. Todavia, como poesia é discurso poético, caracterizado pela atenção voltada para o próprio texto, é interessante observarmos como tais ideias são propostas pelo poema. Nos dois primeiros versos do primeiro terceto, o eu-lírico já apresenta uma consta-
tação, como notamos por meio da oração armativa: Eu, pretensioso, e tu, pássaro 147
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crítico, vence o mítico amor nossa vaidade que se apresenta em uma forma sintati camente inversa. Em ordem direta, poderíamos dispô-la da seguinte forma: O mítico amor vence nossa vaidade (a de um pretensioso como eu e a tua, de pássaro crítico ou judicioso). De forma direta ou inversa, trata-se tal armativa de uma constatação do eulírico de que ele e seu oponente são suplantados em sua atividade musical ou poética por uma força maior, a do mítico amor. Interessante observar que, para compor esse verso, o eu-lírico reforça as qualidades especícas de si próprio e de seu opositor, atra vés da presença de dois apostos (Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico ), o que permite inferirmos que há uma intenção de reforçar essas características dos sujeitos, a saber, a presunção de um e a criticidade de outro, sumarizadas por meio do substantivo vai dade, com o qual o eu-lírico matiza a atitude desses dois sujeitos criadores. Depois de apresentar tal constatação, o eu-lírico a explica após os dois pontos colo cados no nal no segundo verso do primeiro terceto. Esse sinal de pontuação indica, nesse caso, um esclarecimento que vem exposto pela apresentação de uma situação especíca, evidenciada nos três próximos versos do texto: Os amantes que passam, distraídos / e surdos a tais cantos discordantes, / a melodia interna é que os governa . Novamente, o texto é apresentado em ordem indireta, a m de se conseguir certos recursos sonoros, relacionados à metricação e ao ritmo. Devemos notar que os três versos constituem dois segmentos de sentido: [ os amantes que passam distraídos e surdos a tais cantos discordantes] e [ a melodia interna é que os governa]. Esses dois segmentos apresentam-se em uma relação de complementaridade, pois no segundo segmento o verbo governar possui como complemento o pronome os, cujo referente é constituído pelos dois versos anteriores. Inferindo-se tais relações entre os elemen tos linguísticos do texto, o mesmo texto poderia ser apresentado em outra ordem: “A melodia interna é que governa os amantes que passam distraídos e surdos a tais cantos discordantes.” Desse modo, a explicação ou exemplicação dada pelo eu-lírico para a armação de que o mítico amor suplanta os esforços de criação de si próprio e de seu opositor cam mais explícitas. Os amantes que surgem diante do eu-lírico e do pássaro crítico encontram-se totalmente absortos por uma “melodia interna”, que congura uma me táfora de amor. Ao mesmo tempo, encontram-se tão envoltos por esse sentimento que passam alheios às disputas entre os poetas contendedores. Por isso, enlevados pelo amor, produzem, por meio da própria vivência, a mais rica melodia, impossível de ser cantada, em sua plenitude, por poeta algum. Nesse contexto, ao apresentar a passagem desse casal de amantes, o eu-lírico expõe uma importante, mas dura lição a ser aprendida pelos cantores-poetas que disputam pela excelência: a representação de qualquer sentimento é sempre muito menor do
que sua própria vivência. É essa ideia que aparece sintetizada no último verso, a chavede-ouro do texto: Tudo mais, em verdade, são ruídos . Devemos notar que o grau de certeza apresentado para essa armativa é aumen tado pela locução adverbial em verdade, o que indica a total adesão do eu-lírico ao fato ilustrado pelo casal de amantes. Para ele, também, composição alguma é capaz de representar sucientemente o sentimento vivenciado por quem ama. Ao percebermos esse posicionamento do eu-lírico, é possível constatar que, embora ele se apresente como alguém pretensioso, seu posicionamento reexivo indica, inver samente, uma atitude de modéstia e humildade ante o ato criador, porque reconhece, ao mesmo tempo, os limites humanos impostos à arte e a supremacia do sentimento amoroso. Associando-se esse posicionamento à questão da sonoridade do texto, apre sentada no início desta leitura, podemos inferir que a utilização de recursos sonoros e rítmicos no texto é intencional: ao tematizar a criação poética, o eu-lírico faz um poema musicalmente perfeito (todos os versos possuem 10 sílabas métricas com ritmo semelhante), portanto, um poema formalmente de grande qualidade. Entretanto, seu conteúdo aponta para o fato de que nem toda a perfeição técnica é capaz de suplantar a poesia da vida, presente na experiência dos amantes que passam diante do eu-lírico. Desse modo, a musicalidade do texto, que se caracteriza como um aspecto não-semân tico, produz um sentido especíco quando associada com outros elementos do texto. Neste sentido, o tema apresentado no texto é, ao mesmo tempo, metapoético, haja vista que se trata de um texto poético que remete ao próprio ato de criação, tema cons tante em muitas composições literárias, e lírico-amoroso , porque tematiza, de modo geral, a supremacia do amor.
A leitura de poesia na escola
Embora esta tenha sido uma leitura rápida do poema de Carlos Drummond de An-
drade, ela é ilustrativa dos aspectos apresentados por Culler, que entende a leitura dos textos poéticos não como exercícios de pronúncia ou de recitação, mas como formas de produzir-se sentido para as porções de linguagem articuladas de forma integrativa por meio de seus aspectos semânticos, sintáticos, lexicais e outros traços não-semânti cos, como sua conguração ou sua sonoridade. Ler poesia, portanto, implica em construir sentidos para o texto nela materializa do, a partir da observação de todos os aspectos anteriormente mencionados, buscan-
do associá-los ao(s) provável(eis) posicionamento(s) que eles podem indicar sobre o eu que neles fala e se constrói de forma ccional. Exercício que pressupõe colocar em suspenso as perspectivas do leitor e substituí-las, temporariamente, por aquela(s) apresentada(s) pelo sujeito ccional do texto poético que constitui, sempre, outra perspectiva do mundo, dos seres, dos sentimentos, permitindo ao leitor uma amplia-
ção de sua percepção sobre a vida. 149
LEITURA E ENSINO
AS ESPECIFICIDADES DE PRODUÇÃO E DE LEITURA DA POESIA INFANTIL A leitura do poema de Carlos Drummond de Andrade ilustra alguns aspectos gerais a serem observados na leitura de textos poéticos, a saber, a organização sintá tica, as escolhas lexicais, semânticas, a sonoridade, a conguração espacial do texto e outros. Ao visar a um público especíco, o professor de Educação fundamental, objetivamos a apresentação da leitura de um texto mais denso, porque o leitor visa do é o adulto. Nesta seção, propomos leituras de textos poéticos cujo destinatário é a criança, público com o qual trabalha o professor. Por essa razão, procuraremos, também, discutir as especicidades dos textos voltados para o público mirim. A poesia infantil, assim como os demais gêneros voltados para a infância ou ju ventude, constitui um bem cultural demarcado por alguns aspectos que lhes são in trínsecos e que o faz oscilar entre uma literatura trivial ou arte literária, dependendo do tratamento que lhe concede seu produtor. A oscilação da literatura infantil entre arte ou mero bem de consumo relaciona-
se diretamente à própria origem dos textos voltados para a infância e juventude. Nascidos juntamente com a pedagogia, eles foram durante muito tempo vistos como instrumento pedagógico a serviço da ideologia dominante, a m de transmitir à criança os valores burgueses necessários para introduzi-la na sociedade capitalista à qual ela deveria estar adaptada. Por isso, a caracterização do texto como arte ou como instrumento pedagógico depende fundamentalmente de seu produtor, que pode se engajar com este ou com aquele objetivo. Outra característica importante que pode inuenciar o valor dos textos volta dos para as crianças e jovens reside em seu caráter comunicacional assimétrico, ou
seja, trata-se de um tipo de produção que conta com interlocutores em situação de desigualdade, pois quem escreve o texto é, quase sempre, um adulto e quem o rece be, quase sempre, uma criança. Esses dois agentes do processo da leitura possuem distinções cognitivas, emocionais, educacionais, históricas, linguísticas entre outras muito acentuadas, o que equivale a armar que, em muitos casos, o processo de interação entre ambos pode ser demasiadamente marcado pela perspectiva do adul-
to, o que colocaria o destinatário do texto em uma situação de desigualdade e até de menorização, o que condiciona o texto a uma nalidade pedagógica que, quase sempre, acaba extraindo-lhe o valor estético. Para diminuir ou ao menos amenizar tal assimetria, os autores da literatura in-
fanto-juvenil recorrem ao que Lypp (apud ZILBERMAN, 1985, p. 50) chama de adap tação: “todos os meios empregados pelo autor para estabelecer uma comunicação com o leitor infantil podem ser resumidos sob a denominação de adaptação”. Tal 150
adaptação pode ser observada em vários aspectos dos textos, como aponta Klinberg (apud ZILBEMAN, 1985, p. 51-52) e de seu uso adequado e criativo é que depende o resultado artístico do texto.
A leitura de poesia na escola
Nomalmente, não há limites para os temas ou assuntos tratados pelos textos
voltados para o leitor mirim; entretanto é necessário que se façam adaptações dos mesmos a m de que sejam tratados na perspectiva de compreensão do seu desti natário. O estilo do texto também deve ser pensado em função do leitor mirim. Por isso, aspectos como vocabulário e estrutura sintática devem ter nível de complexi-
dade organizado em função do público a que se destinam. Devem ser evitados pa drões de linguagem que acenem certos infantilismos, tais como o uso constante de diminutivos ou construções sintáticas repetitivas e muito simplicadas. Com relação à forma do texto, o produtor deve atentar para o gênero escolhido. Tratando-se de um poema ou uma narrativa ou mesmo de um texto dramático, devem ser evi-
tados recursos formais que impeçam o leitor de compreender o texto. Assim, por exemplo, em um poema, devem-se evitar formas muito longas ou o uso de guras de linguagem muito complexas. Em uma narrativa, os grandes desvios temporais ou digressões podem ser substituídos por recursos mais simples. Finalmente, com relação à materialidade , os textos voltados para o público infantil recorrem farta mente a meios materiais diferenciados, seja pelo uso da ilustração, seja pelos recur-
sos empregados no próprio canal (tipos de papel, projeto gráco, formato etc.) que constituem signicado juntamente com o texto verbal e transformam-no em objeto de dupla linguagem: a visual e a verbal. Na escolha do texto a ser trabalhado na escola, é importante que o professor atente para a adaptação proposta pelo autor, a m de selecionar textos nos quais os objetivos pedagógicos e utilitários não sejam a tônica a dissolver a beleza e o encan to do texto. Por isso, os textos devem ser observados, também, sob o aspecto da qua lidade estética, ou seja, dos traços que distinguem o discurso literário que já foram anteriormente mencionados, a saber: a ccionalidade, a linguagem empregada de modo integrativo, a linguagem trabalhada como objeto que tem por nalidade a fei tura do próprio texto (caráter estético), todos visando à adesão apreciativa do leitor. Os elementos de adaptação até aqui apresentados podem ser observados em todos os tipos de texto escritos para o público infantil e juvenil. Com relação à po esia infantil, podem-se observar alguns recursos especícos: 1- utilização de metros mais populares, como a redondilha maior e menor (versos de sete e cinco sílabas métricas, respectivamente); 2- presença constante de rimas soantes – aquelas que apresentam semelhança sonora completa entre as sílabas métricas dos nais de ver sos; 3- tematização de assuntos relacionados à vivência infantil, como brincadeiras, 151
LEITURA E ENSINO
temas escolares, vida ou comportamento de animais, fatos prosaicos do cotidiano,
natureza, situações domésticas etc.; 4- presença constante do humor; 5- forte presen ça de musicalidade (repetição de consoantes e vogais, 6- uso de poemas-adivinhas. Embora esteja circunscrita a algumas demarcações devido ao fato de ser adaptada ao público a que se destina, a poesia escrita para a infância tem encontrado soluções atraentes e apreciáveis, sobretudo nas formas que lhes têm dado os autores contem porâneos, cuja produção é vasta e deve ser conhecida pelo professor a m de evitar o que Soares (2001) chama de escolarização inadequada da poesia, seja nos livros didáticos seja na prática escolar. Por escolarização inadequada da poesia pode-se entender o uso que se faz desse tipo de texto com objetivos pedagógicos, repetindo-se as práticas de leitura apre sentadas na parte dois deste texto, quando se tratou da história de leitura de textos literários na escola. Além de alterações relacionadas à mudança de suporte do livro de poesia para os livros didáticos, Soares (2001) chama atenção para outras práticas escolares inadequadas recorrentes em relação à poesia: a) alteração dos gêneros dos poemas que são transformados em textos em prosa, desrespeitando-se a forma em verso tal como foram originalmente criados; b) a leitura de poemas como se fossem textos referenciais, informativos; c) utilização dos textos poéticos como porções de linguagem a serem analisadas em seus aspectos gramaticais, ortográcos ou le xicais, tais como exercícios que solicitam destacar, nos poemas, seus adjetivos ou substantivos ou qualquer outro aspecto gramatical; d) utilização descontextualizada da poesia, ou seja, apresenta-se aos leitores apenas partes das mesmas, de modo
incoerente e fragmentado, sem que o leitor possa ter acesso ao texto completo; e) seleção inapropriada de textos e autores que, quase sempre, são restritos aos mesmos nomes e textos ( Ou isto ou aquilo , de Cecília Meirelles, A arca de Noé, de Vinícius de Moraes, para citar alguns exemplos de textos que se repetem frequen temente em livros didáticos); f ) desenvolvimento de atividades de leitura que não se voltam para o texto, para seus aspectos de textualidade, de literariedade, enm, para seu(s) sentido(s). Estudada, lida e “praticada” desta forma, a poesia na escola tem tido pouco a oferecer para seus leitores, que dicilmente conseguem perceber suas particula ridades. Os aspectos de ludicidade, de sonoridade tão típicos desse tipo de texto passam quase despercebidos durante a execução dessas atividades, que têm mais servido para distanciar o leitor dos poemas do que fazê-lo distrair-se e evadir-se através deles. Tendo em vista esse quadro negativo em relação à leitura de poesias e conhecen do a importância da leitura literária na escola, é preciso que o professor opte por 152
outras práticas de leitura que possam ajudar a formar, efetivamente, leitores que possam passar da superfície do texto, perceber suas peculiaridades e, sobretudo,
A leitura de poesia na escola
construir para eles sentidos. Sem uma prática que leve a esses objetivos, a leitura da poesia e de outros gêneros literários continuará a fazer parte de uma história em que o aluno não constrói memória, nem história de leitura, já que os textos que lê nunca fazem sentido e, por isso, não contribuem para a formação do próprio leitor. Tendo como apoio os elementos já apresentados na parte dois sobre a leitura da poesia, seguem-se alguns textos poéticos de autores da literatura infantil brasileira. Pagodeira “Lá vem o Juca-ca de perna torta-ta dançado a valsa-sa
com a Maricota-ta.” Lá vem o Zeca-ca de cara chata-ta dançando samba-ba
com a Renata-ta. Lá vem a Quica-ca de dentadura-ra
dançando roque-que com seu Ventura-ra
Lá vem o Doca-ca espinhela dura-ra
dançando tango-go com a Ternura-ra Lá vem o Braga-ga perna engessada-da dançando rumba-ba com a Imaculada-da
Lá vem a cidade-de num sobe e desce-ce
pondo o que pode-de no tal pagode-de. JOSÉ, Elias. Pagodeira. In: ____. Segredinhos de amor . São Paulo: Moder na, 2002. p. 20.
O texto é dotado de uma musicalidade bastante típica, aurida das canções popu lares, cujo modelo é apresentado na primeira estrofe e que é destacada por aspas pelo eu-lírico, que a toma, ao utilizar esse recurso, como um modelo para as demais estrofes que constrói. Nesse modelo, tem-se a predominância dos versos de seis sílabas métricas, que são bastante populares e dotados de musicalidade marcante, o que os fazem ser facilmente memorizados. Escandidos, os versos possuem, todos, o seguinte esquema métrico: 153
LEITURA E ENSINO
Lá / vem / 1 2 De / ca / 1 2 Dan / çan / 1 2 com / a / 2 1
o 3 ra 3 do 3 Re 3
/ Ze / ca / ca 4
5 6 / cha / ta / ta 4 5 6 / sam / ba / ba 4 5 6 / na / ta / ta 4 5 6
As últimas sílabas de cada verso são consideradas na contagem métrica, pois ao se rem repetidas, tornam-se tônicas. O ritmo é produzido pela alternância repetida entre sons fortes e fracos, como vemos acima, na marcação das sílabas em negrito. Dessa forma, são acentuadas as segundas, quartas e sextas sílabas de cada verso, obtendo-se um esquema rítmico que pode ser assim sumarizado ER 6 (2, 4, 6), ou seja, o texto possui um esquema rítmico com seis sílabas métricas nas quais são acentuadas as síla bas 2, 4 e 6. Como um poema é sempre um texto no qual a linguagem se encontra organizada de modo integrativo, esse aspecto da musicalidade deve ser associado a outros do texto. Com relação ao seu possível sentido, o que podemos inferir é que houve uma in tenção de produzir-se certo ritmo e que a música é algo fundamental no texto. De fato, a ilustração trazida pelo texto original é bastante complementar a essa musicalidade, porque traz uma série de casais, vestidos com trajes de cores diferentes, dançando ao lado de instrumentos musicais, o que cria a ideia de que se trata de um grande baile. Além de possuir uma estrutura musical semelhante, as seis estrofes que compõem o poema possuem, também, a mesma estrutura sintática. Tal estrutura é composta, invariavelmente, pelos seguintes elementos, como se nota, por exemplo, pela quarta estrofe: Primeiro verso: destaca-se um sujeito (Doca) e sua ação, por meio do verbo in transitivo (vem) e de um adjunto adverbial de lugar (lá), Segundo verso: ressalta-se o modo como o sujeito se apresenta (espinhela dura),
dando-se ênfase a um atributo que possui (ter espinhela dura); Terceiro verso : salienta-se outra ação praticada pelo sujeito, além da ação inicial
de vir (dançando tango); Quarto verso: apresenta-se um complemento nominal (com a Ternura) indican -
do-se a parceira de dança de Doca.
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Todas as demais estrofes do poema são construídas por meio da mesma estrutura. Portanto, seus sentidos diferem apenas pelo conteúdo semântico, pois os personagens apresentados pelo eu-lírico são diferentes em cada estrofe (Juca, Zeca, Quica, Doca, Braga e cidade). Cada um deles possui um atributo (perna torta, cara chata, dentadura, espinhela dura, perna engessada, sobe e desce) e cada um deles dança ritmos dife rentes, com parceiros diferentes (valsa/Maricota, samba/Renata, roque/Ventura, tango/ Ternura, rumba/Imaculada). Observando tais dados, o que podemos inferir é que o eu-lírico cria, nesse poema, uma espécie de baile de todos os ritmos, nos quais po demos visualizar vários casais dançando. Todos os casais são introduzidos no suposto baile através da expressão “ Lá vem ”, por meio da qual são apresentados os parceiros de dança.
A leitura de poesia na escola
Entretanto, embora se trate de um baile, os atributos destacados de cada perso-
nagem não condizem apropriadamente com a ação de seus possuidores, pois eles chegam ao suposto baile para dançar, mas a qualidade que o eu-lírico deles destaca, na verdade, poderia ser um empecilho para a prática da dança ou para a participação
de um baile (ter espinhela dura, perna engessada, cara chata, usar dentadura etc.). No entanto, os personagens movem-se apesar dos impedimentos apresentados por sua condição física. Evidentemente, seus movimentos podem dar margem à graça, porque os ritmos que dançam exigem, certamente, uma destreza que ca limitada pelos atribu tos/defeitos de cada um. Assim, o texto ganha um tom de brincadeira, visto colocar em situação de mofa ou de brincadeira cada um dos personagens desse baile. Esse aspecto da zombaria associa-se com o próprio título do texto “Pagodeira”, que vem de pagode que signica, segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, “ divertimento, brincadeira, bambocha, pândega ” (FERREIRA, 1995, p. 474). Logo, pagodeira seria o lugar onde se pode encontrar o pagode, a brincadeira, e os casais que dançam mesmo com os problemas físicos de seus parceiros. Há, também, outro sentido dicionarizado de pagode que signica “ reunião informal onde se cantam ritmos populares, principalmente, samba ” (idem, ibidem). Se tomarmos tal sentido, o título do texto pode estar fazendo menção, também, ao lugar onde acontece o baile e onde dançam os casais apresentados em cada estrofe. Há, por tanto, dois sentidos literais para a palavra Pagodeira que estão presentes no texto. En tretanto, o eu-lírico parece propor, também, que esse termo ganhe outro signicado, ou seja, ele potencializa os sentidos dessa palavra, criando uma gura de linguagem chamada metáfora, na qual uma palavra associa-se a um outro sentido que não lhe é comum. No caso desse texto, a metáfora é construída a partir de algumas inferências que se podem fazer a partir da última estrofe do texto. Em todas as estrofes do texto, o eu-lírico cria certos personagens. Na última estrofe, 155
LEITURA E ENSINO
diferentemente, o personagem é a cidade que, ao invés de dançar certo ritmo, é apre sentada ao realizar a ação de descer e subir. Entretanto, uma cidade não realiza essas ações. Quem as realiza são seus habitantes. Logo, a palavra cidade está apresentada no texto em uma relação associativa com os moradores, os habitantes, constituindo uma
gura de linguagem denominada metonímia. Os verbos subir e descer também são metafóricos, porque indicam não apenas que a cidade pode ter aclives e declives, mas que seus habitantes estão sujeitos ao êxito, à fartura e também às intempéries, ao infortúnio, como se observa, de forma geral, na própria vida. Assim, ao apresentar como personagem a cidade, na última estrofe, vemos que o eu-lírico expande a abrangência do suposto baile em que gu ram os personagens de cada estrofe (Zeca, Quica, Juca etc.). Na verdade, todos esses personagens deixam de ser personagens do baile e passam a ser os personagens da vida cotidiana, os personagens da cidade que vivenciam, como o Braga, o Doca, ou o Zeca, seus dramas diários que oscilam entre a felicidade e o infortúnio. Pode-se inferir, dessa relação, outra relação metafórica: os defeitos físicos de cada personagem signi cam efetivamente um problema físico, mas podem signicar, também, uma diculdade existencial, social, material daqueles que vivem nesse mundo cheio de altos e baixos como nessa cidade metafórica criada pelo eu-lírico. Como vemos, o poema pode ser lido por meio de duas linhas de raciocínio: uma de caráter mais literal e outra, de forma mais conotativa, metafórica, no qual todos os elementos do texto remetem a um signicado mais amplo do que aquele com o qual normalmente se olham as palavras nele utilizadas. Assim, poder-se-ia falar de um senti do literal e de um sentido alegórico, tal como se observa no quadro abaixo: TEXTO
SENTIDO LITERAL
SENTIDO ALEGÓRICO
Pagodeira
Lugar onde se dançam certos ritmos, casa de dança.
Cidade, mundo, a vida de todos nós.
Personagens (Zeca, Doca, Braga, Quiçá etc.)
Personagens que frequentam o baile ou a casa de dança.
Pessoas comuns, os seres humanos em geral.
Atributos (perna torta, cara chata, espinhela dura etc.)
Defeitos físicos que limitam a dança dos ritmos e causam o tom engraçado e lúdico do baile.
Fatos que condicionam a ventura ou o infortúnio na vida de todos os seres humanos.
Ao entender um poema como um ato de fala de um sujeito, o eu-lírico, como
propõe Culler (1999), interessa, ao lê-lo, perceber qual a identidade desse eu-lírico e saber do que ele fala e como se posiciona diante do referente de sua fala. No caso do texto em questão, Pagodeira, de Elias José, percebemos que o eu-lírico é um eu ccional que, embora não se apresente no texto através da primeira pessoa, falando de si de modo explícito, tematiza a existência humana, evidenciando um modo muito 156
particular de concebê-la. Para ele, a vida pode ser comparada a um grande baile, em que nem sempre tudo é harmônico, pois todos possuem seus problemas, suas dicul dades, mas é preciso aprender a dançar (viver) não obstante tais problemas e saber lidar com as situações-problemas a m de que a vida não seja um peso, mas um grande baile. Voltando ao início desta leitura, podemos associar a musicalidade marcante do texto aos sentidos até aqui discutidos. A música e o ritmo são modos de enfatizar a noção de dança tão necessária para a constituição de sentido do texto. Nesse âmbito, ao invés de vivenciar a vida de modo pesaroso, é possível investi-la de graça, de música e de movimento, como podemos inferir através da grande me táfora de vida como baile proposta pelo poema. Na verdade, trata-se de uma forma otimista e lúdica de ver a vida. Por isso, ao se referir a uma dada situação ccional – a pagodeira – para onde vão vários personagens, o eu-lírico cria uma cena prosaica que referencia tanto a galhofa dos dançarinos, quanto o modo otimista de se olhar vida. Dessa forma, esse poema que se pretende simples, reveste-se de outros sentidos que possibilitam ao leitor não só uma leitura lúdica em função do ritmo e da cadência do texto, mas também uma perspectiva pessoal do eu-lírico sobre como olhar a vida.
A leitura de poesia na escola
Por isso, a literatura pode cumprir uma de suas funções, a de permitir ao leitor um
conhecimento maior sobre a vida, sobre os seres e sobre o mundo. A análise de outro poema pode auxiliar a explicitar um pouco mais o modo como
se está concebendo a leitura neste texto: Aula de leitura A leitura é muito mais
Do que decifrar palavras. Quem quiser parar pra ver Pode até se surpreender: vai ler nas folhas do chão,
se é outono ou se é verão; Nas ondas soltas do mar,
Se é hora de navegar; E no jeito da pessoa,
Se trabalha ouse é à-toa; Na cara do lutador,
Quando está sentindo dor; Vai ler na casa de alguém O gosto que o dono tem; e no pêlo do cachorro, se é melhor gritar socorro; e na cinza da fumaça,
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LEITURA E ENSINO
o tamanho da desgraça; e no tom que sopra o vento, se corre o barco ou vai lento; e também na cor da fruta, e no cheiro da comida, e no ronco do motor e nos dentes do cavalo, e na pele da pessoa, e no brilho do sorriso, vai ler nas nuvens do céu, vai ler na palma da mão, vai ler até nas estrelas
e no som do coração. Uma arte que dá medo é a de ler um olhar,
pois os olhos têm segredos difíceis de decifrar. AZEVEDO, R. Aula de leitura. In: ______. Dezenove poemas desengonçados. São Paulo: Ática, 1999. p.41-2.
O texto possui uma conguração gráca bem especíca: inicia e termina com quar tetos, ou seja, estrofes de quatro versos. Entre elas, são apresentados treze dísticos ou estrofes de dois versos. O texto é composto, portanto, por quinze estrofes. Há, no texto, um eu-lírico que, como no texto analisado anteriormente, não fala de si, mas volta seu olhar para certo tema. No caso, trata-se da leitura. Assim, vemos a intenção do eu-lírico de discorrer sobre como ele compreende essa atividade humana. Além disso, ao intitular o texto Aula de leitura, percebemos uma intenção formativa ou didática na relação que eu-lírico estabelece com o interlocutor do texto. Entretanto, o tom didático que poderíamos encontrar no texto é dissolvido quando, na primeira estrofe, o eu-lírico propõe que o próprio interlocutor ( quem quiser ) reita sobre o ato de ler a partir de experiências do cotidiano. Logo, não se trata de apenas transmitir informações sobre a leitura, mas de fazer pensar sobre ela. Ainda nessa estrofe, antes de convidar seu interlocutor para reetir sobre a leitura, o eu-lírico introduz uma concepção explícita de ler: A leitura é muito mais / do que decifrar palavras. Essa concepção de leitura pressupõe que ler seja atividade que su plante, transcenda a mera atividade mecânica de decodicar letras e sons, juntando-as em palavras. Todavia, o eu-lírico não discorre nessa estrofe sobre quais outras ativida des estão pressupostas no ato de ler. Apenas arma que sua concepção de leitura é 158
mais ampla do que a atividade de decifração e que a observação dos fatos que apontará posteriormente podem exemplicar isto, como podemos observar pelos dois últimos versos da primeira estrofe: Quem quiser para pra ver/ pode até se surpreender: O último verso é concluído com um sinal de pontuação especíco, os dois pontos, que indicam, gramaticalmente, a introdução de uma explicação do que foi dito ante riormente, ou seja, os versos que se seguem deverão mostrar porque o interlocutor se surpreenderá ao perceber que ler é muito mais do que decifrar palavras. Assim, após essa primeira estrofe, são apresentadas outras treze estrofes nos quais o eu-lírico demonstra sua tese inicial de que ler não é apenas decifração de símbolos grácos. Das treze estrofes seguintes, oito abordam certos elementos da natureza e da
A leitura de poesia na escola
vida humana, a saber, as folhas do chão, as ondas do mar, o jeito das pessoas, a cara de
um lutador, a casa de alguém, o pelo de um cachorro, a cinza da fumaça. Sobre cada um deles, o eu-lírico propõe uma leitura ou um modo de se extrair des ses elementos da natureza certo efeito de sentido. Por exemplo, na segunda estrofe, sobre as folhas do chão, diz ser possível inferir a partir delas a estação do ano em que se está: vai ler nas folhas do chão, / se é outono ou se é verão . Da segunda até a nona estrofe, o eu-lírico constrói dísticos (estrofes de dois versos) de conguração sintática semelhante, nos quais podemos observar um sujeito (personagens que quiserem comprovar que ler é mais do que decifrar palavras), uma locução verbal (vai ler), um adjunto adverbial de lugar (nas folhas do chão, nas ondas, na casa de alguém etc.), uma oração subordinada substantiva objetiva direta (se é outono ou se é verão, se trabalha ou se é à-toa etc.). Nos versos cinco a nove, a locução verbal está elíptica, ou seja, não aparece no verso, mas está pressuposta: ( vai ler ) na cara do lutador, / quando está sentindo dor . Nessas oito estrofes assim conguradas (estrofes dois a nove), o eu-lírico propõe certos sentidos para cada um dos elementos da natureza ou da vida humana, como se
vê no quadro abaixo: FATOS DA NATUREZA OU DA VIDA
SENTIDOS POSSÍVEIS/ INFERÊNCIAS
Folhas do chão
Estações do ano
Ondas soltas do mar
Tempo adequado para navegação
Jeito da pessoa
Aspectos sobre seu caráter
Cara do lutador
Sentimentos com relação à luta
Casa de alguém
Estilos e preferências
Pêlo do cachorro
Animosidade
Fumaça
Tamanho e duração do fogo
Tom do vento
Velocidade da embarcação
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LEITURA E ENSINO
Ao propor que seja possível inferir desses elementos da vida e da natureza esses sentidos, o eu-lírico acaba por apresentar uma concepção de leitura que é relacionada à atividade de inferência, de observação do leitor para as quais concorrem a experi ência de vida do mesmo e sua capacidade de observação da vida. Logo, exemplica, através dessas estrofes, a ideia anunciada no primeiro quarteto do poema. Após a apresentação desses exemplos, introduz os dísticos seguintes (estrofes 10 a 14), cuja estrutura sintática está diferente dos dísticos anteriores. Nelas, além do sujeito elíptico, há outro elemento oculto: as orações subordinadas objetivas diretas. Como elas funcionam enquanto complementos para a locução verbal vai ler e não são apresentadas nos versos, pressupõe-se que o eu-lírico as tenha ocultado para que o lei tor possa completá-las, usando sua experiência de vida e sua capacidade de observação da vida. Ao proceder desta forma, percebemos que o eu-lírico pretende transformar sua “aula de leitura” em uma verdadeira ocina, na qual os aprendizes têm oportuni dade de vivenciar, efetivamente, a tese por ele apresentada. Para compreender esses dísticos, é preciso que o leitor contribua com seu conhecimento da vida e do mundo para dar sentido aos versos. No quadro abaixo, discorremos acerca de algumas possi bilidades de sentidos possíveis para cada um dos elementos apresentados nos dísticos
que compõem as estrofes 9 a 14: FATOS DA NATUREZA OU DA VIDA
SENTIDOS POSSÍVEIS/ INFERÊNCIAS
Cor da fruta
Sabor, época de maturação
Cheiro da comida
Sabor
Ronco do motor
Potência do carro
Dentes do cavalo
Idade
Pele da pessoa
Longevidade, estado de saúde
Brilho do sorriso
Amistosidade ou antipatia
Nuvens do céu
Clima
Palma da mão
Atitude no trabalho
Estrelas
Clima
Som do coração
Estado de espírito (entusiasmo, tristeza, etc.)
Como podemos notar, o eu-lírico supõe que a leitura seja uma atividade que trans cenda o código verbal, aplicando-se a todos os fatos da vida. Por isso, propõe ao leitor que se possam ler os mais variados elementos ou fatos da vida e da natureza, como se mostrou nos quadros anteriores, já que, de acordo com sua conguração ou estado, a eles podem ser atribuídos diferentes signicados. Finalmente, na última estrofe – o último quarteto – o poema reveste-se de certo 160
mistério, pois o eu-lírico refere-se à leitura de um elemento da natureza humana ainda não mencionado em outra estrofe. Trata-se do olhar humano. O tom de mistério é construído pela utilização das palavras medo, segredos e decifrar que são facilmente associáveis à ideia de enigmas e misteriosidades. Nessa estrofe, observamos, ainda, uma mudança temática. Até as estrofes anterio res, o tema era a própria leitura, ao passo que, nesta, o tema é o olhar humano que, diferentemente de outros elementos, não se entrega facilmente à decifração do leitor, pois é dotado de segredos, ou seja, pode enganar seu leitor através de artifícios como a dissimulação. Além disso, os segredos podem, ainda, estar relacionados à própria natureza humana, já que os seres humanos, os indivíduos, enm, os sujeitos são com plexos e estão em constante estado de mudança, dicultando sua compreensão ou sua “leitura”, como propõe o eu-lírico. Assim, o eu-lírico naliza sua aula de leitura, apresentando e demonstrando a seu interlocutor uma concepção de leitura que amplica o sentido de decifração, tipica mente trabalhado na escola, e associa tal atividade à capacidade de observação, de inferência e de associação que o leitor pode fazer a partir dos índices linguísticos (ver bais) e não-verbais que são oferecidos para o leitor por meio dos textos. Além disso, procura reetir sobre a própria natureza humana, chamando atenção para o fato de que, entre todos os objetos ou elementos legíveis, o ser humano é o mais complexo,
A leitura de poesia na escola
pois, diferentemente de tudo, não se deixa ler facilmente, pois sua marca é exatamente
a incompletude, a diferença, a complexidade. Como notamos pelos poemas aqui analisados, a poesia infantil, longe de ser apên dice conteudístico de aulas de gramática e de língua portuguesa, constitui rico mate rial para o exercício da leitura que, como propõe o texto de Ricardo Azevedo, leva o leitor a reetir, a associar ideias, fatos; a inferir, a relacionar dados, enm, a pensar e fazer ligações entre aquilo que vê nos textos e tudo o que vê e vive na vida, procurando neles sentidos e signicados. Longe disso, a leitura será apenas decifração, exercício de recitação, coisa para grego ver. Como o que sonhamos é uma escola pra valer, a pro posta apresentada aqui é a de uma leitura da poesia que ensine a brincar, a perceber a linguagem em suas várias possibilidades, a sentir e a signicar.
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LEITURA E ENSINO
Referências
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Sítios na internet http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaObraForm.do Biblioteca digital http://www.tigrealbino.com.br> - Revista de poesia infantil.
Proposta de Atividade Bisazinha Minha avozinha, tão franzidinha,
quem te secou? Foi o vento meu netinho. foi o vento que ventou... E o seu cabelinho,
assim tão branquinho, quem branqueou? Foi a vida, meu netinho,
foi a vida que durou... E as suas mãos, bisazinha,
tão arqueadas, quem enrugou? O trabalho, meu netinho, o trabalho que ocupou...
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E a sua vidinha, tão compridinha
quem foi que levou? Foi o tempo, meu netinho,
Foi o tempo que passou...
Apresentamos algumas questões que podem auxiliar o trabalho do professor com esse texto em sala de aula: 1) Leia o texto com seus alunos. Procure fazer mais de uma leitura do mesmo, alternando leitura do professor, leitura silenciosa dos alunos e leitura oral de vários alunos (cada um pode ler um verso ou dois alunos lerem as falas do bisneto e avô etc.). O i mportante é que o texto seja lido mais de uma vez. 2) Procure observar no texto os aspectos de interlocução. Quem fala nele? Quais são as vozes que se escutam? 3) Há, claramente, no texto, um diálogo entre dois “eus”. Chame a atenção dos alunos para quem são eles e para como suas falas se diferenciam gracamente no texto. Observe a construção das estrofes para discutir essa questão. 4) Recupere a história de leitura dos alunos e procure associar o diálogo proposto pelo texto a outro diálogo conhecido da literatura infantil (especicamente do conto Chapeuzinho Vermelho). Que semelhanças e diferenças há entre os dois textos? 5) Trabalhe com os alunos os tercetos (as estrofes de três versos do poema), que representam a fala do neto, vericando quais aspectos da vida ou aparência da bisavó são observados pelo garoto. 6) Do mesmo modo, trabalhe os dísticos (estrofes de dois versos) e veja como a bisavó compreende o seu próprio processo de envelhecimento. 7) Leve os alunos a realizar inferências, relações entre as falas do menino e da bisavó. Por que a voz da criança é construída em forma de interrogações e a do adulto, já envelhecido, é construída em forma de armativas? 8) Peça para os alunos observarem os aspectos sonoros do texto, grifando, por exemplo, as rimas do texto, os sons parecidos etc. 9) Trabalhe a temática desenvolvida no texto, a saber, o processo de envelhecimento dos seres humanos e relacione-o com o modo lúdico trabalhado no poema. Verique, com os alunos, se a perspectiva apresentada no texto é uma visão otimista ou pessimista da
velhice. 10) Peça aos alunos para discutirem o que acham sobre a velhice, sobre o fato de envelhecer, sobre quem eles consideram idosos etc.
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Anotações
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Anotações
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Perguntas de leitura Renilson José Menegassi
CONSIDERAÇÕES INICIAIS As práticas de avaliação de leitura escolar empregam vários instrumentos, dentre eles, destacamos as perguntas de leitura para determinado texto, procedimento muito comum nas salas de aulas, nem sempre com determinações teórico-metodológicas denidas e certas pelo professor. Assim, para o trabalho com a construção de per guntas, devemos levar em consideração alguns quesitos essenciais, denidos a partir da literatura sobre leitura, com pressupostos na Linguística Aplicada, articulando-se a algumas denições enunciativas de linguagem da teoria bakhtiniana: a) o conceito de leitura escolhido; b) a metodologia de trabalho com a leitura, em função do conceito denido; c) o objetivo da leitura; d) o gênero textual escolhido; e) a ordenação e a se quenciação das perguntas oferecidas ao texto; f ) a produção escrita do gênero textual resposta, advindo das perguntas oferecidas para avaliação de leitura. Dessa forma, esses quesitos são discutidos a partir de exemplicações de orde nação de perguntas produzidas para o gênero textual poesia, demonstrando como esse procedimento auxilia o aluno-leitor na produção de sentidos ao texto lido, assim
como, também, na produção escrita do gênero textual resposta. Além disso, ressalta mos que os critérios de ordenação e sequenciação de perguntas estão relacionados ao conceito de leitura, permitindo um trabalho de desenvolvimento cognitivo mais ecaz no aluno-leitor, a partir da conscientização do professor sobre as determinações teórico-metodológicas envolvidas nesse processo. Os registros aqui analisados foram coletados através dos projetos de pesquisa “Prá ticas de avaliação de leitura e a formação do leitor” e “Manifestações de constituição da escrita na formação docente”, nanciados pela SETI/Fundação Araucária, desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisa Interação e Escrita (UEM/CNPq – www.escrita.uem.br), na Universidade Estadual de Maringá. 167
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A LEITURA NA SALA DE AULA A história do ensino de leitura na escola brasileira demonstra que várias concep ções1 de leitura perpassam pelas salas de aulas. Aqui, expomos as principais concep ções trabalhadas no ensino de língua materna, para que possamos identicar, no ma terial didático, no planejamento das aulas e nas práticas cotidianas da sala de aula,
qual concepção de leitura está subsidiando o ensino na situação especíca em que se encontra. Desse modo coexistem, no domínio das pesquisas cientícas sobre leitura, principalmente a partir dos estudos da Linguística Aplicada e da prática escolar, dife rentes perspectivas de leitura, cujos focos de trabalho se concentram: - no autor; - no texto; - no leitor; - na interação autor-texto-leitor. Os pressupostos teóricos que amparam cada uma dessas variadas perspectivas de leitura envolvem uma visão diferente do que consiste o ato de ler e orientam e/ou justicam determinadas propostas didáticas em torno da compreensão da leitura, da formação e do desenvolvimento do leitor na escola brasileira. Aqui, utilizamos como suporte teórico Dell’Isola (1996); Goulemot (1996); Kleiman (1993); Koch e Elias (2006); Menegassi e Ângelo (2005 – primeiro capítulo deste livro); Rojo (2009); Solé (1998).
A LEITURA COM FOCO NO AUTOR Nessa concepção, o texto é visto como um produto lógico do pensamento, como uma representação mental do autor que vai para o papel, nada mais cabendo ao lei tor senão “captar” essa representação mental materializada, juntamente com as in tenções (psicológicas) do produtor, Desta forma, o leitor exerce um papel passivo de apenas ser um “receptor” das informações que o texto apresenta (KLEIMAN, 1993; MENEGASSI; ANGELO, 2005). O autor é visto como um “ego” que constrói uma representação mental na escrita, no texto, e deseja que seja “captada” pelo leitor da maneira como
1 Entendemos por “concepção” um conjunto de práticas efetivadas nas salas de aulas, que sistematizam as várias maneiras como o trabalho com a leitura é realizado. Por outro lado, o termo “conceito” dene um conjunto de características teóricas propostas pela Linguística Aplicada, através de vários modelos de leitura (LEFFA, 1996). Assim, “conceito” está relacionado às teorias sobre leitura, enquanto “concep ção” está relacionada às perspectivas metodológicas de trabalho com a leitura em práticas de linguagem socialmente situadas, como as de sala de aula.
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foi mentalizada, sem modicações. Assim, não cabe ao leitor levar sentidos ao texto, apenas identicando qual o signicado pretendido pelo autor.
Perguntas de leitura
A leitura, nessa concepção, é entendia como atividade de captação das ideias do
autor, sem se levar em conta as experiências e os conhecimentos do leitor, ou seja, a interação autor-texto-leitor não se estabelece. O foco de atenção é, pois, o autor e suas intenções, e o sentido está centrado no autor, bastando tão-somente ao leitor captar
essas intenções. Como o aluno-leitor nem sempre tem estratégias amadurecidas para isso, ele lança mão de duas estratégias próprias, comuns à sala de aula: A) tenta identicar no texto lido alguma parte da pergunta que lhe foi oferecida, buscando recortar uma possível resposta do lugar no texto em que se encontra a informação solicitada; B) apresenta uma resposta generalizante, aguardando que o professor a convalide ou explique a resposta “certa”, a partir de sua própria produção de sentidos. Nesse caso, o professor, como autoridade e representante ocial do autor, ma nifesta seus sentidos ao texto e o aluno os toma como verdades absolutas e
inquestionáveis. Em ambas as estratégias, o aluno é impedido de produzir sentidos próprios ao texto, porque a informação que lhe é solicitada, através da concepção de leitura com foco no autor, é a de repetição, reprodução, não sendo permitida a réplica, no sentido
bakhtiniano de responsividade ativa (BAKHTIN, 2003), isto é, no sentido de produção de uma leitura própria, em que as ideias e as palavras do leitor possam ser manifestadas através de respostas a perguntas de leitura. São exemplos de perguntas de leitura dessa concepção encontradas em materiais didáticos e em avaliações produzidas em sala de aula: - O que o autor quis dizer com ...? - Segundo o autor, ... - Para o autor do texto, ....
A LEITURA COM FOCO NO TEXTO O texto, nessa concepção, é visto como simples produto da codicação de um emissor, no caso, o autor, a ser codicado pelo leitor, bastando a este o conhecimento do código utilizado. Nesse contexto, o princípio explicativo de todo e qualquer fenô meno e de todo e qualquer comportamento individual repousa sobre a consideração do sistema linguístico e social. A leitura é uma atividade que exige do leitor o foco no texto, em sua materialidade e linearidade linguística, uma vez que “tudo está dito no texto”, não precisando sair 169
LEITURA E ENSINO
dele, já que as informações armazenadas pelo leitor não são consideradas. Se, na con cepção de leitura que tem o foco no autor, cabia o reconhecimento das intenções do autor, nessa concepção cabe apenas ao leitor o reconhecimento do sentido das pala-
vras e estruturas do texto. Em ambas, porém, o leitor é caracterizado por realizar uma atividade de reconhecimento, de reprodução de informações textuais. Assim, a leitura é caracterizada como sendo passiva e de simples reconhecimento de palavras e ideias
e o papel do leitor é o de extrair conteúdo do texto (KLEIMAN, 1993; KOCH; ELIAS, 2006; MENEGASSI; ANGELO, 2005). Essa concepção de leitura tem uma perspectiva ideológica denida. Quanto mais o aluno responde perguntas de identicação textual, menos desenvolve a capacidade de produção de sentidos, consequentemente, não amadurece posição crítica frente aos textos que circulam em seu grupo social, na sociedade como um todo e na pró pria escola em que se encontra. Ela é uma concepção necessária à formação do leitor, contudo sua manutenção como estratégia de ensino de leitura não permite o desen volvimento desse leitor. São exemplos de perguntas de leitura também encontrados nos materiais didáticos e nas avaliações aplicadas em sala de aula: - Retire do texto a frase que expressa a ideia de.... - Em qual parte do texto pode-se encontrar uma referência a... - Procure no texto as palavras que se referem a... Das muitas avaliações escolares, reproduzimos três delas, para mostrar como a con cepção de leitura com foco no texto é amplamente empregada pelos professores. São todas avaliações aplicadas nas séries iniciais do Ensino Fundamental I. 2ª Série LEIA O TEXTO E RESPONDA ÀS PERGUNTAS:
A MAIOR BOCA DO MUNDO A maior boca do mundo não é
Boca de gente nem de bicho! A maior Boca do mundo, que é maior que a Do sapo, que é maior que a do tubarão, Que é maior que a do hipopótamo, que É maior que a do jacaré, que é maior Que a da baleia... É a boca da noite. 170
Qual o título do texto? Quais os animais que aparecem no texto? Qual é o animal do texto que começa com a letra h? Qual é o maior animal que aparece no texto? Qual é a palavra de cinco letras que se repete sete vezes no texto? Quais são as vogais da palavra noite? Quais são as consoantes da palavra jacaré? Qual é a maior boca do mundo? Quais as palavras com ão do texto?
Perguntas de leitura
Nessa avaliação, as perguntas dirigem-se ao estudo textual para levar ao aluno à identicação de informações no texto, em função do momento escolar em que se encontra. Na 2ª série, 3º ano, no ciclo de nove anos, o aluno está em pleno processo de formação como leitor, por isso as perguntas com foco no texto são pertinentes, permitindo-lhe a apropriação do código escrito e o desenvolvimento do trabalho com a leitura, a partir de perguntas ao texto. 3ª Série A CASA DE DONA RATA Uma casa com goteira pode causar um grande problema. Veja o que aconteceu na casa de Dona Rata em dias de chuva. Na casa de Dona Rata,
Tem uma enorme goteira. Quando chove, ninguém dorme, Acordado, a noite inteira. A goteira é tão grande Que molha a sala e a cozinha, Quarto, banheiro, dispensa E mais de vinte ratinhas. Dona Rata contratou
Um ratão para o conserto: - De que adianta eu subir, se o telhado não tem jeito? - Não tem jeito, seu Ratão
Explique então esse caso. 171
LEITURA E ENSINO
- Sua casa, dona Rata, Não tem telha nem telhado. a) Quem é o personagem principal da poesia A Casa de Dona Rata? b) O que tem na casa de Dona Rata? c) Quando chove, o que acontece na casa de Dona Rata? d) Quais são as partes da casa de Dona Rata que cam molhadas por causa da goteira? e) Para que Dona Rata contratou o Ratão?
Já a avaliação da 3ª série, 4º ano, deveria apresentar evolução na qualidade das perguntas, isto é, não deveriam ser apenas com o foco no texto, considerando-se o nível de maturidade cronológica e linguístico-discursiva dos alunos. Notamos que as perguntas para o gênero textual escolhido, uma poesia com característica narrativa, não evoluíram em relação às oferecidas na 2ª série, em uma nítida mostra de como a manutenção dessa estratégia avaliativa não permite ao aluno o desenvolvimento no trabalho com a leitura. 4ª Série PIADINHA O Joãozinho estava vendo um álbum antigo e perguntou para a mãe: - Mãe, quem são esses dois aqui na foto? Essa moça de branco e esse cabeludo de bigode ao lado dela? E a mãe explicou: - Sou eu e seu pai! - Esse é que é papai? – perguntou o menino, assustado. – Então quem é esse careca que mora com a gente? a) Qual é o título do texto? b) Que outro nome você daria a história? c) Quantos parágrafos possui o texto? d) Quem são os personagens da história? e) Quem é o autor do texto? f ) Com quem Joãozinho estava conversando? g) Quais eram as características do pai do menino antes e agora? h) O que o menino estava vendo?
Na avaliação da 4ª série, 5º ano, observamos as mesmas perguntas das séries ante riores, todas com foco no texto. Dessa forma, ca evidente que o trabalho de leitura com o foco exclusivamente no texto não leva os alunos ao desenvolvimento como
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leitor, atrelando-os à aprendizagem somente, isto é, à fase de formação 2. Em todas as avaliações, as perguntas são construídas com o objetivo especíco de serem respondidas com a identicação de informações no texto, não com o objetivo de
Perguntas de leitura
levar e permitir ao aluno a produção de sentidos, possibilitando-lhe desenvolvimento
em leitura. Além disso, elas não apresentam ordenação e sequenciação lógicas, permi tindo a produção de sentidos possíveis aos textos trabalhados. Há, apenas, a apresenta ção aleatória das perguntas, sem a preocupação de agrupá-las de maneira a permitir ao leitor uma sequenciação pertinente de trabalho de interação com o texto lido. Os professores produtores dessas avaliações desconhecem as concepções de lei tura possíveis de trabalho em sala de aula, muito menos apresentam consciência de que há necessidade de ordenar e sequenciar as perguntas, auxiliando o aluno-leitor na compreensão e interpretação do gênero textual oferecido na avaliação.
A LEITURA COM FOCO NO LEITOR Nessa concepção, o leitor é o foco central da leitura, pois ele atribui signicado ao texto a partir dos conhecimentos prévios armazenados em sua memória, que se forma também na escola e, principalmente, fora dela. Assim, a obtenção do signicado de um texto se dá sempre por força do leitor e de seus conhecimentos prévios, isto é, valem
as informações que o leitor trouxer para o texto, não as que o texto fornece através das pistas linguísticas-discursivas. Por estar centrada no leitor, essa concepção aceita diferentes compreensões de um
texto, porque há diferentes leitores, com diferentes conhecimentos prévios. Isso mos tra que os sentidos do texto são construídos de modo descendente, isto é, descendo da mente do leitor para o texto (KLEIMAN, 1993; KOCH; ELIAS, 2006; MENEGASSI; ANGELO, 2005). Dessa forma, o leitor: A) seleciona o que lhe convém na leitura; B) joga com os implícitos do texto; C) produz inferências; D) usa estratégias de seleção, predição, inferência, conrmação, autocorreção e vericação; E) faz da leitura um jogo de adivinhações; F) faz perguntas ao texto lido (MENEGASSI; ANGELO, 2005).
2 Sobre conceitos e a relação entre aprendizagem e desenvolvimento, remete-se aos capítulos 4 e 6 da obra “A formação social da mente”, de Vygotsky (1988), que explicita muito bem essas diferenças. Baquero (2001) também apresenta uma leitura ampliada a partir dos conceitos vygotskianos.
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LEITURA E ENSINO
Entretanto, essa concepção descarta os aspectos sociais em volta do leitor, con-
ando exageradamente nas “adivinhações” que produz, assim, acaba por considerar qualquer signicado apresentado por ele como possível, dando origem a um vale-tudo na leitura, o que pode ser perigoso, pois, daí, pode-se originar a leitura errada. São exemplos de perguntas de leitura dessa concepção: - Na sua opinião, ... - Comente sobre ... - O nal do texto é feliz ou triste? Justique sua resposta. - Explique, em poucas palavras, o que é ... - A partir da leitura da fábula, a que conclusão você chega sobre a moral da história? As respostas possíveis para essas perguntas são muito abertas, congurando-se no que Marcuschi (2008, p. 271) classica como perguntas “subjetivas” e “vale-tudo”: Subjetivas: “Estas P [pergunta] em geral têm a ver com o texto de maneira apenas supercial, sendo que a R [resposta] ca por conta do aluno e não há como testá-las em sua validade. A justicativa tem um caráter apenas externo.” Vale-tudo: “São as P que indagam sobre questões que admitem qualquer resposta, não havendo possibilidade de se equivocar. A ligação com o texto é apenas um pretexto sem base alguma para a resposta.”
Qualquer resposta é possível nessas perguntas, bastando apenas ao aluno acionar seu conhecimento prévio sobre o enunciado da questão. Por exemplo, na pergunta “O nal do texto é feliz ou triste? Justique sua resposta.”, retirada de uma avaliação sobre o conto de João e Maria, há a possibilidade de se responder de maneiras diversicadas: “O nal do texto é feliz ou triste?”
A) É feliz porque eu gostei. B) É feliz porque João e Maria conseguiram voltar para casa. C) É triste porque a bruxa foi castigada. D) É triste porque João e Maria descobriram que seus pais eram pobres. E) Não é feliz nem triste, porque a história acabou bem para João e Maria. F) Não sei, porque não gostei da história. Essas estratégias dos alunos mostram que também a concepção de leitura com foco no leitor não leva o aluno ao desenvolvimento como leitor competente e crítico, apenas manifesta a continuação do processo de formação do leitor, sem ampliações
nos seus horizontes de leitura.
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A LEITURA COM FOCO NA INTERAÇÃO AUTOR-TEXTO-LEITOR Nessa concepção, autor e leitor são sujeitos ativos que dialogam, que se constroem e são construídos no texto, que é considerado o próprio lugar da interação e da cons tituição dos interlocutores (BAKHTIN, 2003; GERALDI, 1993; KOCH; ELIAS, 2006). Nesse âmbito, os participantes desse processo dialógico, no caso o leitor e o autor, se encontram no texto, que é o lugar em que a interação verbal se constitui. Desse modo, há lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis quando se tem o contexto sociocognitivo dos participantes da interação como pano de fundo. Apesar da possibilidade de produção de vários sentidos ao texto, este, por sua vez, dentro de seus limites linguísticos-discursivos, e claro da enunciação em que se encontra, delimita os sentidos possíveis, não permitindo o vale-tudo na leitura, como ocorre possivelmente na concepção do leitor. Isto signica que o texto delimita o que pode ser lido, os sentidos que podem ser produzidos para ele.
Perguntas de leitura
Nessa perspectiva, o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos,
no caso o autor e o leitor, e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, por tanto, uma atividade interativa altamente completa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo, como, por exemplo, os conhecimentos
prévios que o leitor tem sobre o assunto, sua posição social no grupo a que pertence e suas concepções ideológicas, que são levados ao texto, durante o processo de pro dução de sentidos (ROJO, 2009). Em uma representação esquemática, essa concepção seria: TEXTO
LEITOR-ALUNO
PROFESSOR
O texto apresenta informações ao leitor-aluno, que, por sua vez, também leva ao texto seus conhecimentos prévios sobre o tema apresentado, produzindo-se uma in-
teração, com características idiossincrásicas, isto é, próprias do leitor, únicas, pessoais. Nesse processo, há um diálogo entre o texto e o leitor, em que ambos fornecem infor mações a cada um deles, iniciando-se o processo de produção de sentidos, em função
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LEITURA E ENSINO
dos aspectos sócio-histórico-ideológicos presentes tanto no texto, quanto na situação de recepção de leitura. O mesmo acontece com o texto e o professor, que também é um leitor, porém com conhecimentos prévios diferentes, caracterizando-se, assim, outra interação idiossin-
crática, pois como leitor o professor faz sua própria leitura do texto, diferente do que o leitor-aluno realiza, já que ambos têm história de vida diferentes, com posições e relações sociais diversas, assim como suas constituições ideológicas são diversas. Ambos, professor e leitor-aluno, também produzem interações durante o processo
de leitura. Nessa etapa, não se discute apenas a leitura de um ou de outro, mas sim os sentidos que ambos produzem juntos sobre o texto, uma vez que a situação co municativa estabelecida na sala de aula conduz a esse procedimento. Essa interação é representada pela seta mais escura, centralizada, ligando a relação do professor com o aluno-leitor ao texto. Nessa perspectiva, professor e leitor-aluno dialogam e constroem juntos sentidos para o texto, tendo o texto como o lugar da interação, no qual são constituídos como interlocutores. Neste sentido, não vale apenas a leitura do profes sor, ou a do leitor-aluno, muito menos somente a do texto e, consequentemente, do seu autor. Valem os sentidos que são produzidos para o texto, a partir da interação estabelecida pelos participantes da situação comunicativa, da enunciação ali denida. É certo que essa situação comunicativa estabelece os níveis possíveis de leitura, determinando, inclusive, os sentidos possíveis de serem produzidos. Dessa forma, não é qualquer sentido que vale nessa interação, pelo contrário, somente aqueles que são pertinentes à enunciação marcada.
Perguntas de leitura em um texto Para exemplicar como as perspectivas descritas sobre leitura são empregadas na sala de aula, observemos o texto Aviso e as perguntas produzidas a partir de cada uma das concepções descritas. O exemplo foi retirado de material didático coletado pelos Projetos de Pesquisas, sendo pertencente ao seu banco de registros. Aviso
Chega uma hora na vida Em que tudo o que mais quero É poder car sozinho. Sozinho para pensar. Sozinho para entender. Sozinho para sonhar. Sozinho para tentar me encontrar ou me perder. Índia não tem lho no mato? Elefante não morre sozinho?
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Por que será Que eu não posso Ficar quieto no meu canto?
Perguntas de leitura
Vou pendurar um cartaz
Bem em cima da minha cama: SILÊNCIO! JOVEM CRESCENDO! (TELLES, Carlos Queiros. Sementes de sol. São Paulo: Moderna, 1992.) Foco no autor 1) Qual o desejo da personagem do poema? R.: O desejo da personagem do poema é car sozinho. 2) Por que o autor do texto expressou seu desejo em forma de poema? R.: ????? 3) Qual a intenção do autor ao expressar “SILÊNCIO! JOVEM CRESCENDO!”? R.: ????
A resposta à pergunta 1 é um pareamento de informações, em que o leitor vai ao texto, encontra o lugar em que está a informação solicitada e a transfere. Por outro lado, as demais perguntas não apresentam respostas de pareamento com o texto. Elas, na verdade, não são encontradas ali, permitindo que várias possibilidades sejam levan tadas, uma vez que não se tem pistas no texto para saber o porquê de o autor expressar seu desejo em forma de poema e qual a sua intenção ao expressar a frase. Foco no texto 1) Destaque no poema as rimas existentes. R.: Sozinho para pensar. Sozinho para entender. Sozinho para sonhar. Sozinho para tentar me encontrar ou me perder. 2) Qual o sexo da personagem do poema? Quais palavras do poema compro vam isto? R.: O sexo da personagem do poema é masculino e as palavras que comprovam isso são “sozinho” e “quieto”. 177
LEITURA E ENSINO
3) Em que estrofe há verbos no innitivo?
R.: Na segunda estrofe. Nas três perguntas, o leitor busca as respostas diretamente no texto, sem necessida de de interação e produção de novos sentidos. São todas respostas que co piam partes de informações textuais. Foco no leitor 1) Qual a sua opinião sobre o jovem do poema? R.: ??? 2) O que signica para você car sozinho?
R.: ??? 3) Quais os momentos em que você deseja car sozinho?
R.: ???
Para as três perguntas, qualquer resposta serve, basta apenas o leitor apresentar uma simples possibilidade de sentido. Foco na interação autor-texto-leitor 1) Por que o título do poema é “Aviso”?
R.: O título do poema é “Aviso” porque o personagem avisa, através de um car taz que pendurará em cima de sua cama, que deseja car sozinho. O aviso que pendurará é “SILÊNCIO! JOVEM CRESCENDO!” 2) Por que o jovem do poema quer car sozinho?
R.: O jovem do poema quer car sozinho para pensar, entender, sonhar, tentar se encontrar ou se perder. 3) Ele sempre quis car sozinho?
R.: Ele nem sempre quis car sozinho, pois chega uma hora na vida em que tudo o que quer é car sozinho. 4) O que ele fará ao car quieto no seu quarto?
R.: Ao car quito no seu quarto, ele irá pensar, entender, sonhar, tentar se en contrar ou se perder.
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5) Quem lerá o cartaz que o jovem pendurará? R.: Quem lerá o cartaz que o jovem pendurará são as pessoas que entram em seu quarto, como: pai, mãe, irmãos, empregada, amigos etc.
Perguntas de leitura
6) Quando você quer car sozinho?
R.: Eu quero car sozinho quando ..... / Eu não gosto de car sozinho. 7) O que você faz quando deseja car sozinho?
R.: Quando eu desejo car sozinho eu vou para meu quarto./ Eu não faço nada porque não gosto de car sozinho. O número de perguntas produzidas na perspectiva da interação autor-texto-leitor é muito maior do que nas demais concepções. Isto acontece porque, no texto, há uma gama de implícitos que somente a interação do leitor com o autor, através do texto, possibilita a construção de sentidos possíveis. Ao analisarmos especicamente as perguntas exemplicadas com o foco na inte ração, observamos que elas auxiliam o aluno-leitor na produção de sentidos do texto trabalhado em sala de aula. Assim, saber produzir e organizar as perguntas, a partir das concepções de leitura, permite ao professor efetivar seu papel de mediador no
processo de ensino e aprendizagem. Além de produzir perguntas que tenham enfoque no autor, no texto, no leitor e na interação autor-texto-leitor, é preciso saber que elas são caracterizadas em três classicações possíveis, a partir dos estudos de Solé (1998), que propõe: perguntas de resposta literal, perguntas de resposta para pensar e buscar e perguntas de resposta de elaboração pessoal. Dessa forma, as perguntas são divididas em: A) Pergunta de resposta textual - São perguntas cujas respostas se encontram literal e diretamente no texto. Observa-se que não são perguntas de cópia, em que o leitor deve apenas parear as informações do comando com a localização das respostas no texto, em que basta ao leitor copiar um trecho do texto e transferi-lo como sendo a resposta. São perguntas que fazem o leitor buscar as respostas no texto, contudo, elas não trazem cópias de partes do texto, isto é, não trazem em sua construção sintática pistas textuais para o aluno identicar simplesmente no texto o que se está pedindo, como tradicionalmente se faz nas avaliações de leitura. São perguntas que exigem do aluno a compreensão do seu enunciado e um trabalho efetivo de interação com o texto, para que a res posta seja produzida. Das perguntas apresentadas como exemplo para o texto “Aviso”, são classicadas como perguntas de resposta textual: 179
LEITURA E ENSINO
1) Por que o título do poema é “Aviso”? 2) Por que o jovem do poema quer car sozinho? 3) Ele sempre quis car sozinho? 4) O que ele fará ao car quieto no seu quarto? Todas as respostas a essas perguntas são retiradas literalmente do texto, porém as perguntas não são cópia, pois o aluno-leitor deve realizar um trabalho de interação com o texto para produzir as respostas. Por exemplo, na primeira pergunta, 1) Por que o título do poema é “Aviso”? R.: O título do poema é “Aviso” porque o personagem avisa, através de um cartaz que pendurará em cima de sua cama, que deseja car sozinho. O aviso que pendu rará é “SILÊNCIO! JOVEM CRESCENDO!”
Para respondê-la, o leitor vai ao texto e encontra que o título “Aviso” está no início e o cartaz em que o aviso se encontra está na última frase. Assim, ao interagir essas informações, o leitor produz um sentido certo para responder a questão. O mesmo acontece com as demais perguntas, como a terceira, por exemplo: 3) Ele sempre quis car sozinho?
R.: Ele nem sempre quis car sozinho, pois chega uma hora na vida em que tudo o que quer é car sozinho. Aqui, o leitor deve voltar ao texto e perceber que, no seu início, o personagem informa que “Chega uma hora na vida/ Em que tudo o que mais quero/ É poder car sozinho.”. Com essa informação o leitor produz inferência de que o personagem nem sempre quis car sozinho, levando-o ao sentido de que nem sempre quis car sozinho. B) Pergunta de resposta inferencial – São perguntas cujas respostas podem ser deduzidas a partir do texto, isto é, elas estão ligadas ao texto, mas exigem que o leitor relacione os diversos elementos do texto lido, produzindo algum tipo de inferência. Assim, a resposta não está no texto; está na relação do texto com as inferências produzidas pelo leitor, que deve construir uma resposta a partir da relação “pensar sobre o texto e buscar resposta fora dele”. Exemplo: 5) Quem lerá o cartaz que o jovem pendurará? A resposta para esta pergunta não está literalmente no texto “Aviso”. A pergunta remete a uma parte do texto:
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“Vou pendurar um cartaz Bem em cima da minha cama: SILÊNCIO! JOVEM CRESCENDO!”
Perguntas de leitura
O leitor constrói a resposta a partir de inferências que produz. Assim, quem lerá o cartaz poderia ter como resposta: Quem lerá o cartaz que o jovem pendurará são as pessoas que entram em seu quar to, como: pai, mãe, irmãos, empregada, amigos etc. Essa resposta é construída a partir da relação que o leitor faz com o texto e as informações que possui em seu conhecimento prévio sobre a situação ali marcada. Assim, a resposta traria várias possibilidades para quem lerá o cartaz: pai, mãe, irmãos, empregada, amigos etc., pois são essas pessoas que normalmente entram no quarto de um jovem e seriam elas que leriam o cartaz ali pendurado. Dessa forma, a partir da inferência produzida sobre a informação do texto, quem lerá o cartaz que o jovem pendurará, o leitor produz sentidos tendo a interação como elemento principal de sua
leitura. C) Pergunta de resposta interpretativa – São perguntas que tomam o texto como referencial, porém, as respostas não podem ser deduzidas exclusivamente dele,
exigindo a intervenção do conhecimento prévio e da opinião do leitor, numa nítida produção de sentidos a partir dos signicados do texto. As perguntas remetem o leitor a elaborar uma resposta pessoal. Contudo, não vale qualquer resposta. A produção de sentidos está necessariamente atrelada às perguntas anteriores – de resposta textual e inferencial, que levam o aluno-leitor a ra ciocinar sobre o que está lendo e articular o tema do texto à sua vida pessoal. Para isso, suas respostas não estão ligadas ao texto, mas sim, às experiências de sua vida pessoal, criando uma interpretação textual própria, com manifestações idiossincráticas. Exemplos do texto “Aviso”: 6) Quando você quer car sozinho? 7) O que você faz quando deseja car sozinho?
Nessas perguntas, as respostas não são encontradas no texto. Elas são produzidas a partir da elaboração pessoal do leitor, sobre os conhecimentos e experiências de sua vida, contudo, são relacionadas ao tema discutido no texto “Aviso”, que é o desejo de car sozinho. Assim, as respostas são variadas, em função dos sentidos ali produzidos 181
LEITURA E ENSINO
Notemos que elas são apresentadas em uma ordem nal, depois que as demais per guntas levaram o aluno-leitor a trabalhar com o texto (perguntas de resposta textual), a construir inferências (perguntas de resposta inferencial), chegando à possibilidade de produzir sentidos próprios ao tema discutido (perguntas de resposta interpretati va). Essa estratégia demonstra como a construção, a ordenação e a sequenciação de perguntas é uma noção essencial à prática de avaliação de leitura.
Construção de perguntas e produção de respostas Nesta seção, analisamos a construção, a ordenação, a sequenciação de perguntas e a produção de respostas a um poema, como exemplicação. Grande ou pequeno? Se eu me meto na conversa, para ouvir do que é que falam os adultos e os parentes,
lá vem bronca da mamãe: “Não, não, não! Já para fora! Você é muito pequeno para ouvir nossa conversa”. Mas seu eu faço algum errinho, qualquer coisinha malfeita, ou alguma reinação, lá vem bronca do papai: “Mas você não tem vergonha? Isso é coisa que se faça? Você já está muito grande Para coisas como essa!” Anal, quem é que eu sou? Ou eu sou muito pequeno, ou sou grande até demais! Ora, tenham paciência! Deixem-me crescer em paz
(BANDEIRA, Pedro. Mais respeito, eu sou criança ! 2. ed. São Paulo : Moderna, 2002. p. 13).
Com a leitura do texto, é possível levantar as seguintes perguntas: • Por que a mãe chamou a atenção do menino? • Que tipo de conversa o menino ouviu para ser chamado a atenção? • Você já foi chamado a atenção por ouvir conversa de adultos? • Por que o menino levou advertência do pai? • Que coisas o menino fez para ser advertido? • Você já fez coisas para ser advertido pelo pai? • Qual é a dúvida do menino? • Quando o menino se sente grande ou pequeno? 182
• Você já se sentiu grande ou pequeno para algumas atitudes?
Perguntas de leitura
Analisando essas perguntas dentro da classicação discutida, temos: a) Perguntas de resposta textual: • Por que a mãe chamou a atenção do menino? • Por que o menino levou advertência do pai? • Qual é a dúvida do menino? b) Perguntas de resposta literal: • Que tipo de conversa o menino ouviu para ser chamado a atenção? • Que coisas o menino fez para ser advertido? • Quando o menino se sente grande ou pequeno? c) Perguntas de resposta interpretativa: • Você já foi chamado a atenção por ouvir conversa de adultos? • Você já fez coisas para ser advertido pelo pai? • Você já se sentiu grande ou pequeno para algumas atitudes?
Observamos que as perguntas obedecem à sequenciação das informações apresen tadas pelas estrofes do poema: Primeira estrofe: Por que a mãe chamou a atenção do menino? – 1ª estrofe Que tipo de conversa o menino ouviu para ser chamado a atenção? – 1ª estrofe Você já foi chamado a atenção por ouvir conversa de adultos? – 1ª estrofe Segunda estrofe: Por que o menino levou advertência do pai? – 2ª estrofe Que coisas o menino fez para ser advertido? – 2ª estrofe Você já fez coisas para ser advertido pelo pai? – 2ª estrofe Terceira estrofe: Qual é a dúvida do menino? – 3ª estrofe Quando o menino se sente grande ou pequeno? – 3ª estrofe Você já se sentiu grande ou pequeno para algumas atitudes? – 3ª estrofe
As perguntas obedecem a uma sequência de informações que levam o leitor a 183
LEITURA E ENSINO
pensar sobre o texto, produzir inferências e construir interpretações. Além disso, as respostas também se apresentam relacionadas, em função do trabalho apresentado
pelas perguntas. Primeira estrofe: 1) Por que a mãe chamou a atenção do menino? R.: A mãe chamou a atenção do menino porque ele se mete na conversa dos adultos e parentes. 2) Que tipo de conversa o menino ouviu para ser chamado a atenção? R.: O menino foi chamado a atenção por ouvir conversas sobre sexo, briga de casais e fofocas de adultos etc. 3) Você já foi chamado a atenção por ouvir conversa de adultos? R.: Eu já fui chamado a atenção por ouvir conversas dos meus pais sobre a briga dos meus tios.
Após esse trabalho, as respostas das perguntas são orientadas em uma pergunta que resume o tema discutido na parte do texto analisado. Assim, ao nal desse bloco de questões, o leitor recebe outra pergunta, cuja resposta reune as informações das respostas anteriores, fazendo-se as adaptações linguísticas necessárias, destacadas no exemplo: 4) Do que trata a primeira estrofe? R.: A primeira estrofe trata da mãe que chamou a atenção do menino porque ele se mete na conversa dos adultos e parentes. Ele foi chamado a atenção por ouvir conversas sobre sexo, briga de casais e fofocas de adultos etc. Por exemplo, eu já fui chamado a atenção por ouvir conversas dos meus pais sobre a briga dos meus tios.
Na produção textual da resposta, observamos que há algumas características mar cadas, que são desenvolvidas a partir da ordenação e sequenciação de perguntas oferecidas: 1) Armação inicial, retirada do texto:
A primeira estrofe trata da mãe que chamou a atenção do menino porque ele se mete na conversa dos adultos e parentes. 2) Explicação sobre essa armação:
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Ele foi chamado a atenção por ouvir conversas sobre sexo, briga de casais e fofocas de adultos etc.
Perguntas de leitura
3) Exemplicação dessa explicação, a partir de elementos da vida pessoal do
leitor: Por exemplo, eu já fui chamado a atenção por ouvir conversas dos meus pais sobre a briga dos meus tios.
Essa estrutura é típica do gênero textual resposta argumentativa, a partir das no ções de construção de parágrafo ditadas por Garcia (1992) e Serani (1998). Assim, ao mesmo tempo em que produz as respostas às perguntas, o leitor também está desenvolvendo a produção escrita de um gênero necessário a sua formação e desen volvimento como leitor na escola. O mesmo procedimento foi empregado para as demais estrofes, obedecendo-se as mesmas características descritas: Segunda estrofe: 1) Por que o menino levou advertência do pai? R.: O menino levou advertência do pai porque cometeu alguns errinhos, coisinhas malfeitas e reinação. 2) Que coisas o menino fez para ser advertido? R.: O menino é advertido quando chuta o cachorro e bate no irmão menor. 3) Você já fez coisas para ser advertido pelo pai? R.: Eu já z coisas para ser advertido pelo meu pai, como: sai de casa sem autori zação e risquei a porta do guarda-roupa. 4) Do que trata a segunda estrofe? R.: A segunda estrofe trata sobre o menino que levou advertência do pai por que cometeu alguns errinhos, coisinhas malfeitas e reinação. Ele é advertido quando chuta o cachorro e bate no irmão menor. Eu já z coisas para ser ad vertido pelo meu pai, como sair de casa sem autorização e riscar a porta do guarda-roupa.
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LEITURA E ENSINO
Terceira estrofe: 1) Qual é a dúvida do menino? R.: A dúvida do menino é saber se ele é grande ou pequeno. 2) Quando o menino se sente grande ou pequeno? R.: O menino se sente grande quando faz coisas que ele acha certo, porém os pais acham que não. Ele se sente pequeno quando faz coisas que não gosta e os pais acham que está certo. 3) Você já se sentiu grande ou pequeno para algumas atitudes? R.: Eu já me senti grande quando salvei meu irmão de um cachorro bravo e pe queno quando puxei meu irmão menor de cima da mesa e ele caiu e se machucou. 4) Do que trata a terceira estrofe? R.: A terceira estrofe trata da dúvida do menino em saber se ele é grande ou pe queno. Ele se sente grande quando faz coisas que acha certo, porém os pais acham que não. Sente-se pequeno quando faz coisas que não gosta e os pais acham que está certo. Eu já me senti grande quando salvei meu irmão de um cachorro bravo, e pequeno quando puxei meu irmão menor de cima da mesa e ele caiu e se machucou.
Como última etapa desse procedimento, reunimos todas as informações das res postas em uma só pergunta: Do que trata o texto? R.: A primeira estrofe trata da mãe que chamou a atenção do menino porque ele se mete na conversa dos adultos e parentes. Ele foi punido por ouvir conversas sobre sexo, briga de casais e fofocas de adultos etc. Por exemplo, eu já fui punido por ouvir conversas dos meus pais sobre a briga dos meus tios. A segunda estrofe trata sobre o menino que levou advertência do pai porque cometeu alguns errinhos, coisinhas malfeitas e reinação. Ele é advertido quando chuta o cachorro e bate no irmão menor. Eu já z coisas para ser advertido pelo
meu pai, como sair de casa sem autorização e riscar a porta do guarda-roupa. A terceira estrofe trata da dúvida do menino em saber se ele é grande ou pequeno. Ele se sente grande quando faz coisas que acha certo, porém os pais acham que não. Sente-se pequeno quando faz coisas que não gosta e os pais acham que 186
está certo. Eu já me senti grande quando salvei meu irmão de um cachorro bravo, e pequeno quando puxei meu irmão menor de cima da mesa e ele caiu e se machucou.
Perguntas de leitura
Nessa produção textual, cada um dos parágrafos apresenta as características levan tadas: armação + explicação + exemplicação. É certo que esse trabalho deve ter como objetivo o desenvolvimento do aluno como leitor e produtor de textos, sem,
contudo, permanecer nesse procedimento por muito tempo, uma vez que, como con sequência, produz-se um estruturalismo denido para a produção textual, que não atende ao trabalho criativo que deve ser realizado cotidianamente na sala de aula, na produção de gêneros textuais. Dessa forma, salientamos que essa proposta de trabalho é para a fase que ocorre entre a formação e o desenvolvimento do leitor na escola, não como uma estratégia permanente de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A escolha da concepção de leitura inuencia no tratamento metodológico dado à avaliação de leitura, consequentemente, à produção de perguntas ao texto lido. Assim, aqui discutimos uma classicação de perguntas de leitura, tipicadas em textual, infe rencial e interpretativa, que auxiliam no trabalho de formação e desenvolvimento da leitura e na produção do gênero textual resposta argumentativa. A partir dessa caracterização, discutimos, também, a necessidade, durante o pro-
cesso de construção de perguntas, de que sejam levadas em conta a ordenação e a se quenciação dessas perguntas, para orientar o leitor na produção de sentidos e também na relação do tema tratado no texto com sua própria vida. Dessa forma, as respostas escritas a essas perguntas devem considerar a organização composicional do gênero resposta, que observa a estrutura armação textual + explicação + exemplicação, que conduz à produção textual escrita que, além de resumir o texto trabalhado, tam bém exige do leitor uma posição crítica sobre a questão. Com isso, a proposta de tra balho se mostra ecaz entre a fase da formação e do desenvolvimento do leitor, para que aprenda a tornar-se um leitor crítico, a partir da concepção de leitura com foco na interação autor-texto-leitor.
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LEITURA E ENSINO
Referências
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SERAFINI, M. T. Como escrever textos. 9. ed. São Paulo: Globo, 1998.
Perguntas de leitura
SOLÉ, I. Estratégias de leitura . Porto Alegre: Artmed, 1998. VYGOTSKY; L. S. A formação social da mente. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
Sítios na internet www.alb.com.br – Associação de Leitura do Brasil www.escrita.uem.br – Grupo de Pesquisa “Interação e Escrita”, Universidade Estadual de Maringá www.lecturayvida.org.ar – Associação Internacional de Leitura
Proposta de Atividade Produza uma sequência de perguntas ao texto “O vizinho do lado”, seguindo as orientações propostas neste capítulo. O VIZINHO DO LADO
Não suporto o meu vizinho! Imagine que o danado,
Se eu pudesse, agora mesmo
com a cara mais lavada, passa pela minha frente
ou melhor: mudava ele pra bem longe, na verdade.
me mudava da cidade,
como se eu não fosse nada. Não suporto o meu vizinho! Não suporto o meu vizinho! Roda pelo bairro todo, sem prestar nem atenção,
e se esquece que uma vez lhe emprestei o meu pião. Não suporto o meu vizinho! É um moleque egoísta, pedalando assim a esmo,
não quer nem saber dos outros, pois só pensa em si mesmo. Não suporto o meu vizinho!
Ele tem cara de bolo, De embrulho sem barbante,
De bocó e de pateta! Ah, moleque feio e tolo! Pensa que é muito importante só porque tem bicicleta. Não suporto o meu vizinho! E eu só vou mudar de idéia de uma forma bem completa, se o danado do vizinho
me emprestar a bicicleta...
BANDEIRA, Pedro. Cavalgando o arco-íris . 3. ed. São Paulo: Moderna, 2002. p. 10-11.
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