PENSAMENTO FREUDIANO
I. ENSAIOS DE TEORIA PSICANALÍTICA Parte 1: melapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente Jl. ENSAIOS DE TEORIA PSICANALÍTICA Parte 2: narcisismo, sublimação, fantasma, ato e tempo
111. P~CANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA IV. 0 ATO PSICANALÍTICO
V. AS ESTRUTURAS CLÍNICAS
JOELBIRMAN
PENSAMENTO FREUDIANO 111
Psicanálise, Ciência e Cultura
Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro
Copyright © 1994. Jod Birman Dircitr-> para esta edição contrutados com Jorge 21\har Editor Ltua. Rua México, 31 sobreloja 20031-144- Rio de Janeiro. RJ Tel.: (021) 240-0226 - Fru~: (021) 262-5123 Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação. no todo ou em parte, constitui "iolü\ftO do copyright. (Lei 5.988) !994 Composição eletrônica: DeskSys lnfomlática Llda. Impressão: Tavarr~ ~ Tri~tl\o Lttla.
ISBN 85-71 10-292-9 (JZE,RJ) CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos F.ditor(s de Li.\' TOS. RJ Birman, Jocl. 1946 D52 1p Psicanálise. ciencia e cultura/Jod Dirman. - Rio de Janeiro: Jor&
CDD- 150.195 CDU- 159.964.2
Sumário
Introdução . . . . . . . . . . . . . .
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A direção da pesquisa psicanalítica
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Os impasses da cientificidade no discurso freudiano e seus destinos na psicanálise . . . . . . .
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Leituras sobre a cientific idude da psicanálise . . . .
54
A filosofia e o discurso freudiano: Hyppolite, leitor de Freud .
66
Desejo e promessa- encontro impossível . . . . .
78 97
Psicanálise e política: uma introdução metodológica Sujeito freudiano e poder: Tragicidade e paradoxo
111
O sujeito na diferença e o poder impossível . . . .
118
A ética da psicanálise e a moral n:1s instituições psicanalíticas
145
Sujeito, valor e divida simbólica .
161
A morte entre a ética e a violência
175
Notas . . . . . . . .. . . . . . .
185
Para Daniela
Introdução Fronteiras, limites e confins da psicanálise
I Este.Jivro se constitui de onze ensaios psicanalíticos sobre djferentes temas: ciência, filosofia, política, ética, religião e. economia. Sua finalidade ê o estabelecimento de um diálogo interdisciplinar da psicanál.ise com algumas das ciências humanas. Nossa pretensão, forjada paulatinamente nos últimos anos, como s:e evidencia pelos momentos diferentes nos quais os ensaios foram escritos, foi a de construir uma interlocução fecunda da psicanálise com outras disciplinas, centmda em alguns temas que são também especiais para estes saberes. Contudo, pela dispersão temporal dos ensaios agora reunidos e também por uma questão de metodologia, não temos absolutamente a intenção de esgotam1os os diferentes campos teóricos em pauta. Ao contrário, nosso propósito é explicitar alguns tópicos, operando na fronteira da psicanálise com outros saberes, de fomta a construir problemáticas que proporcionem uma interlocução interdisciplinar. O estabelecimento deste diúlogo se tornou possível por razões de ordem teórica. Nos últimos anos, impôs-se pouco a pouco em nosso campo intelectual, e em escala internacional, um paradigma interdisciplinar de • pesquisa, de maneira que diferentes saberes procurem sair do seu isolamento para dialogar com disdplinas próximas, que trabalham com temáticas comuns e. similares. A resultante deste processo de interlocução foi a constituição de novas problemáticas de pesquisa, que se ordenaram nas fronteiras de diferentes disciplinas, e a retomada de temáticas antigas que se renovam · pela interlocu-ção entre diversas disciplinas. . Neste con.texto, a vsicanálise foi permanentemente convidada a se inserir nestes espaços dialógicos. No que se refere ao Brasil, isso era uma novidade, já que até os anos 60 a psicanfllise era excluída desse diálogo. Além disso,. em-fuj'lção de seu isolamento, a psicanálise se posicionava como auto-suficiente, evitando se colocar num .campo que implicava confrontos 7
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PS ICANÁI.I S I~. C! ÊNC IA E CUL TU I~ A
inevitáveis. Porém, a implantação de espaços interdisciplinares, como um modelo plural de inwstiga~·ão de certas temáticas, acabou por s~: impor como um estilo de pesquisa do qual a psicanálise não podia se excluir, com o risco de comprometer o seu prôprio c:unpo collceitu:ll.
/1 Assim, no se inserir no di:'ilogo interdisdplínar, a psicanálise passa a responder às mesmas queslões de outras Jisciplin:1s que participam de uma interlocução desta onlem, ou seja, os limiles de sua incursão na exterioridade do campo clássico de suas referências, a legitimidade de seus movimentos para a periferia de seu campo e o rendimento eonceilual dessas incursões. Isso acarreta pergunt:ts inc vit!iveis para os diferentes saberes que aceitam o desafio interdisciplinar: seriam teoricamente rigorosas estas pesquisas, isto é, pode r-se· ia falar sobre temas em princípio estranhos aos campos empíricos de referên<:ia de uma dada disciplina'! Se e~ta indagação inicial é respondida de muneiru ufirmativa, u questão que se impõe em seguida é sobre a possível • extensão da interdísl:iplinaridadc e sobre os se u ~ I imites, d~ forma a se manter o rigor conceitual das prol>lem(ttk:as construídas. Vale dtzer, até que ponto é possível a extensão do <.'ampo dt! uma uada disciplina, sua elasticidade? Podemos JepreenJer de t:tis indagu\·ões que o que se encontra em p:luta são problemas de frontl!iras, que tr:u;am t<\Jitos limites possíveis quanto perfilam opacidades entre as diferentes Jisciplinus. Portanto, o que sequestiona são os poros das fronteirus ex.istt.!ntes e mesmo os espaços onde fronteiras nfio foram ainda tr:.•~·ud:•s, uma ~spécie de terra de ninguém ainda não ocup:1da pelos s;~bercs cstabcb:itlos. É import:utte dcs ta~·ar que est1 metáfora espacial sobre as fronteiras não pr~isa ser pensatla segundo o mes, não podendo, pois, falar a~usívamente do que queira e da maneira que: quci1~1 . Porém, 4u:mdo o movm1ento de salda se
JNT JWDUÇÃO
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realiza, com a sua contrapartida lógica de retomo e de refleltão sobre os seus fundamentos, a disciplina em pullla torna-se não apenas mais consistente, como também incrcn)enlu a potencialidade de seus conceitos em função das novas ligações estabelecidas pela problemática outra que pôde construir. Nesta perspectiva, o problema dos limites se transforma na questão dos confins, para nos vuler da bela imago:m de Pontalis quando se refere à remodelaçiio clín ic-a do campo psi<:analítico. 1A metáfora dos confins remete aos espaços inexplorados até ent:io por uma d:1da disciplina, mas onde não existe ainda uma b~u-reira estabelecida, interditada, impossível de ser ultrapassada. Por isso mesmo, a incursão é potencialmente possível e l~gítima. Mais do que isso, a explora\·ão dos confins é absolutamente cructal num momento da história das tlisciplinas, pois é justamente através de tal exploração que as di sciplinas podem apresemur suas possibilidades conceituais e se tomar teoricamente mais consistentes. Além disso, esta é a condição de possibilidade das disciplinas enunciarem algo de novo e de inédito. Vale dizer, a ex.plora,·uo dos L:onfins se impõe no campo dos desdobramentos necessários para o desenvolvimento teórico e empírico dos saberes existentes. . A interdisciplinarid:1de não implica aqui a identidade tleobjeto te6rico. , · Assim, se diferentes saberl!s tmbal halll sobre um mesmo tema, não significa que tenh:un o mesmo objeto teóri<.·o. Entret•mto, foi esta leitura da inlerdls· ciplinaridade que se propagou nos anos cinqüenta e sessenta, o que não se mostrou historicamente fecundo, pois impl ic~u subordinações hierárquicas entre as disciplinas e impasses epislemológicos inevitáveis. O que se impõe agora é outra interpretação da pesquisa interdisciplinar, através da qual os diferentes saberes realizem recorres no campo de um d:1doproblema, recortes que se estruturamm m1s linhas de fon;:• ·dl! seus objetos teóricos e de seus con<.·eitos fundamentais. Pam marcar esta ruplllra interpretativa, alguns autores preferem se referir, nesta modalid:u.le de pesquisa, à idéia de lransdisciplinaridade em \'ez daquela de illterdisciplinaridnde.2 Portanto, é o problema escolhido pelos diferentes saberes que será o canal par.1 o diálogo entre as disciplinas, enquunto essas impõem a construção de problemáticas pela mediaÇão de seus conceitos específicos. Com isso, pode-se realizar a produ~·ão de conhecim~nto, a constituição de positividades inéditas e a elabor
/I/ Foi nessa d'Ír\.'\·ão teórica
Assim, forJill as exigências intcmas da psi~·aniilise e as questões que foram
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PSICA NÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
se impondo para a construção de outras problemáticas que estimularam a produção destes emaios ao longo dos anos. Com isso foi possível pensar em temáticas importantes, abordadas por outros campos do saber, da perspectiva dl:l psicanálise. Dessa maneira se realizou um outro recorte destas temáticas, que se remodelam inesperadamente quando recebem a incidência da leitura psicanalílica. Abordamos, portanto, algumas temflticas trabalhadas por outras disciplinas, as quais se espc<.:iticaro no recorte psicanalítico que propomos, assumindo uma certa singularidade. Podemos enumerar as seguintes questões destacadas nos ensaios: o poder, a crença, o valor, a ética, a violência e a cientificidade. A leitura psicanalítica retoma esses temas a partir do lugar da função sujeito em psicanálise, nos seus pressupostos teórico e metodológico. A leitura da problemútica do poder pela psicanálise implica o destaque das dimensões de força e de representaçlio, que se fundamentam numa le.ilura pulsional do poder. Dessa forma, este recorte remete para a oposição .entre guerra e política, entre força e ret6rica, de maneira a buscar com essas equivalências um diálogo possível da psicanálise com a filosofia política. A crença coloca que:;tões níticas para a leitura psicanalítica do sujeito, na medida em que se contrapõe à ordem do desejo. Desta maneira, o diálogo enlre psicanálise e religião tem como fi o condutor a oposição entre os registros do desejo e da crença. Com isso, é possível indicar como se constituiu historicamente a oposição entre a medicina e a religião, fundada na diferença entre a cum e a salvaçüo, para argumentar em seguida de que fonna o campo psicanalítico, fundamentado no sujeito de sejante, indica uma ruptura radical com as ordens médica e religiosa. A reflexão sobre o valor, ao nos remeter para a regulação das trocas econômicas e para o que sustenta a equivalência entre as mercadorias, pertenceria ao registro da economia política. Entretanto, o intercâmbio de mercadorias se reali:w entre sujeitos, onde o valor se funda no corpo e se exlrai do corpo do sujeito. Com isso, o sujeito se inscreve no circuito da circulação social e simbólica dos valores, através dos gozos e das perdas de seu corpo. Neste contexto, apresentam-se modalidades diferentes de correlação de valores no sujeito, o que regula suas relações com os oulros sujeitos e com as coisas. Po1tnnto, os circuitos do desejo, do gozo e da perda estão pennanentemente em pauta nos processos de troca, de maneira que é sobre o corpo do sujeito que o valor incide e do qual é retirado. Enfim, as modalidades de circulação do valor no sujeito nos fazem defrontar com uma reflexão sobre a incidência do valor de uso e do valor de troca no sujeito, de fonn~ a representá-los numa tópica psíquica du subjetividade, com ~s suas con~e qOências inevitáveis nos registros ético e político.
INTRODUÇÃO
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A ética é uma dimensão essencial do campo psicanalítico, mas que perpassa ao mesmo tempo o conjunto das pr.iticas sociais. A ética se impõe justamente porque existem sujei!Os diferentes em pauta no campo social, com interesses diversos e conflitantes, que exigem uma modalidade de regulação de suas diferenças. A retlexão sobre os fundamentos desejante e pulsional da ética é inevitável no campo psicanalítico, pois é nas bases da ética e de seus impasses para o suje ito que se funda a experiência psicanalítica. Portanto, a delimitação da problemática da ética na psicanálise, como diferenciada do campo da moral e remetendo pum u âesortlem do campo pulsional, é um caminho fecundo pamque se estabeleça uma interlocução enlre a psicanálise, as ciências humanas e as prí1ticns sociais. A violência, nos registros do social e do político, é uma das temáticas cruciais onde a leitura Ja ética pela psicanálise se impõe como fundamental na atualidade. No contexto brasileiro. o diálogo da psicanálise com as ciências humanas é fundamental, se considemm1os a condição de descalabro ético em que vivemos já há muito tempo. As exigências de tal diãlogo são cada vez mais propícias para que se possa repensar nas modalidades perversas com que se reveste a violência no Brasil. Por este viés, se recoloca também em cena o diálogo entre psicanálise e política, pois a leitura pulsional do funcionamento do poder e o esvuzirunento da retórica face à força nos indicam um caminho possível pam pensarmos na relação da subjetividade com o poder. A cientificidade da psicanálise é uma problemática que marcou não apenas a constituição da psicanillise como um campo do saber, mas também norteou suas relações sempre tensas, com a filosofia e as demais ciências. Afinal de contas, qual é o estatuto epistemológico do saber psicanalítico? Nossa finalidade nos ensaios que procuram te matizar esta problemática é não apenas retomar os argumentos e os contra-argumenlos que constituíram este campo teórico, marcado pela polêmica, assim como seus desdobramentos e superações na atualidade. Procuramos seguir, ao mesmo tempo, uma lógica epistemológica e histórica na exposi~·ão, pam delinear a constituição desta problemática e sua superação. Na atualidade, a questão da cientificidade da psiçanálise deixou de ser o índice de um impasse epistemológico, como se apresentou durante décadas, pois os fundamentos do debate teórico sobre a c~ntificidade se tnmsformaram . Assim, indicamos de maneira esquemática como, através da exploração das fronteiras e dos confins da psicanálise, é possível estabelecer um diálogo desla com as ciêncins hurnan:1s e a ti losofia, e retomar reflexivamente para os fundamentos da psicanfílise. Por isso mesmo é que iniciamos este livro com um ensaio sobre a direção da pesquisa em psicanálise, indicando as possibilidades e os impasses da pesqu isa psicanalilica, maneira de delinear e de lraçnr os fundamentos teóricos deste campo teórico de investigação.
A direção da pesquisa psicanalítica 1
/. Em busca de
un~a
direção
Quais as questões que nos são colocadas pelo campo da pesquisa em psicanálise? É possível extrair desse campo multifacetado uma problemáti· ca, isto é, uma direçüo teórica segura que possa nos oferecer uma reflexão rigorosa da pesquisa psicanalítica? Sem dúvida, diversas questões se apresentrun imediatamente a nós para serem tematizadas, indicando a multiplicidade deste campo e a sua complexidade. Além disso, esse campo se caracteriza por sua diferenciação interna, pois essas questões se configuram como heterogêneas, considerando tanto suas dimensões quanto suas abrangências teóricas. Em função disso, faremos inicialmente um inventário de temas que nos parecem pertinentes, sem a pretensão de sermos exaustivos, para indicar a complexidade do campo de pesquisa em pauta. Entretanto, não pretendemos desenvolver neste ensaio a totalidade desses temas, mas somente de tinir uma direção rigorosa para a pesquisa em psicanálise, coerente com os pressupostos freudianos desse saber.
li. lnventârio inicial Consideremos um gntpo inicial de indagr~ções. Existe a possibilidade de se empreender a teorização dos conceitos psicanalíticos, sem que se coloque em cena, em contrapartida, as referências fundamentais da experiência • psicanaliticd! Ou, dito de outra maneira, é possível pensar na existência da teoria psicanalítica na exteriorid:1de da clínica, fundada na transferência? Qual a consistência epistemológica da teoria em psicanálise sem o correlato dessa experiência? Essas diversas perguntas se articulam aqui como um bloco teórico e indicam o caminho crucial da indagação neste ensaio, pois a
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PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
problemática que se enuncia é se existe pesquisa psicanalítica sem que se considere, de fonna direta ou indireta, as exigências fundamentais da experiência psicanalítica. Deste bloco inicial de questionamentos deriva um segundo conjunto de indagações, intimamente relacionado ao anterior. Assim, a pergunta básica é se é possível pensar na existência de uma psicanálise dita "pura", a que se contraporia uma modalidade "aplicada" de psicanálise. Os termos "puro" e "aplicado" podem se deslocar e se inscrever em diferentes contextos de referência, desde que consideremos a teoria e a experiência clínica como pólos destacados para nossa reflexão. Se considerannos a teoria como o pólo representativo da "pureza" em psicanálise, então a clínica seria da ordem da "impureza", isto é, uma das aplicações possíveis do "ouro puro" da teoria psicanalítica. Com isso, a experiência analítica seria uma modalidade menor de metal face ao brilho grandioso da teoria, de forma que a clínica seria apenas o "cobre" aplicado da psicanálise, para continuannos a nos valer de metáforas freudianas retiradas da química e da metalurgia.2 Poder-se-ia até mesmo dizer que, mesmo sendo uma das aplicações da "pura" teoria, a clínica seria indubitavelmente a sua aplicação mais importante. De acordo, este desdobramento teórico é indiscutível. Porém, isso não tnmsformaria absolutamente o lugar subsidiário e hierarquicamente infe rior da clínica frente à teoria, pois esta representaria o "ouro puro", enquanto aquela seria o "cobre", a "impureza" da liga misturada. Desloquemos radicalmente o valor relativo desses pólos em contraste. Assim, poderíamos dizer que a clínica representaria a psicanálise em estado ''puro" e que a teoria seria necessariamente subsidiária da clínica, seu lugar epistemológico sendo definido como o da reflexão sobre as vicissitudes da experiência analítica. Entretanto, a teoria não seria hierarquicamente inferior à clínica analítica, nem tampouco a aplicação da experiência psicanalítica, mas seu correlato e contraponto, na medida em que encontraria na clínica o • seu lugar possível na perspectiva epis1emolôgica. Contudo, a extensão e inserção da teoria psicanalítica em outros campos empíricos, sem que se produzam as mediações essenciais, corresponderia a uma aplicação da teoria psicanalítica. Evidentemente, a questão oUlra que se impõe, a prutir destes blocos anteriores de indagações, diz respeito ao que se define como clínica e experiência psicanalíticas. O discurso freudiano tinha uma representação relativamente clara sobre a clínica, quando estabelecia a oposição entre a • psicanálise "pura" e a psicanálise "impura", que seria modificada para se inserir na assistência médico-social mais abrangente.3 Nesta oposição entre o "ouro" e o "cobre", Freud sublinhava a existência da pureza psicanalitica que se contrapunha à psicoterapia como o seu resíduo de impureza. Não
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALÍTICA
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obstante, essa última centrada na transferência teria eficácia clínica. Desta maneira, se coloca a questão crucial sobre o que se define como a experiência psicanalítica, seus fundamentos e suas operações metodológicas, assim como se essa experiência admite a diversidade em sua materialização clínica. Enunciamos propositahneme diversas oposições e dua1ismos que perpassam o campo psicanalítico em sua estrutura: teoria/experiência psicanalítica, psicanálise "pura"/psicanálise "aplicada", experiência psicanalítica/clínicas psicanalíticas. Estas oposições delineiam um espaço teórico produtivo visando um pensamento crítico sobre alguns dos problemas colocados pela teoria e pela pesquisa psicanalíticas. Para o encaminhamento desta leitura crítica vamos considerar a psicanálise, por uma exigência de rigor, como representada pelo conjunto de enunciados do discurso freudiano, pam apreender como esse discurso delineava a problemática da pesquisa psicanalítica.
111. Em que consiste a pesquisa psicanalítica? Vamos centr-dr nossa leitura no comentário de fragmentos importantes do discurso freudiano, inseridos num contexto histórico de grande produtividade teórica e de relativo isolamento de Freud dos seus discipulos. em função da eclosão da Primeira Orande Ouem1. Referimos-nos aos anos 1914-19 17, período em que Freud realizou a elaboração teórica de "Para introduzir o narcisismo" ( 1914)4 e dos ensaios metapsicológicos (1915-1917). Quanto a esses últimos vamos nos restringir ao texto "As pulsões e seus destinos" ( 1915), ensaio inaugural da "Metapsicologia".5 Na primeira parte de "Para introduzir o narcisismo", Freud nos coloca duas grandes questões teóricas: l. Qual seria a relação entre o narcisismo e o auto-erotismo, considerando-se que esse seria o "estado da libido" na origem da história do sujeito'~ 2. Admitindo-se a existência de um investimento primário da libido no ego (libido do ego), por que ainda seria necessário admitir a existência de pulsões do ego que .não fossem libidinais? Se, como propunha então 1ung, Freud admitisse a existência de apen·as uma energia psíquica indiscriminada, de someme uma modalidade de energia, não escaparia de todas as dificuldades colocadas pela distinção entre pulsões do ego e libido do ego, e entre libido do ego e libido do objeto?6 À primeira indagação Freud responde, de forma inequívoca. que "é necessário admitir que não existe desde o começo, no indivíduo, uma unidade comparável ao ego; o ego deve sofrer um desenvolvimento. Mas as pulsões auto-eróticas existem desde a origem; alguma coisa, uma nova ação psíqui-
ca, deve vir pois se acrescentar ao auto-erotismo para dar forma ao narcisismo".1
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PSICANÁLISE. CI ~NCIA E CULTURA
Portanto, mediante este fragmento, o discurso freudiano repudia qual· quer concepção biológica sobre o eu e a~mite q~1e e~sa í~stâ~~ía psíquica deve corresponder a uma aquisição posterwr na h1stóna do md1v1duo, a uma construção complexa que se constituiria lógic~ e histori:a~ente após .o auto-erotismo .. Neste coute.xto, o discurso freudJano .constitui a sua teona sobre o eu, sublinhando Freud a exigência de tematização desse conceito pela primeira vez na sua obrn, apesar de já 1er circunscrít~ a instância do ~u co~o pólo defensivo no conflito psíc1.1ico desde "O proJeto de uma ps1colog1a cientifica'.s e dos ensaios sobre as psiconeuroses de defesa.9 Assim, o eu se consliluiria a parlir do outro, como enuncia Freud no final da segunda parte do ensaio sobre o narcisismo. 10 Por isso mesmo, o ~u seria um ego ideal, uma projeção e an tecipaçã~ do ego da~ fi~uras ~a~nta1~i com a finalidade de conservação e de re produ\·uo de seu propno narctstsmo. Além disso, o ego narcísi~·o, construído por um conjunto de identificaç~s a partir do outro, seria antes de mais nada um ego corporal. Desta ma?e1ra, a concepção do corpo no discurso freudiano surge como um dos destmos do narcisismo, como se fom1Uiou em 1923 no ensaio "O ego e o id''. 12 É a maneira como Freud enc:uninhn a segunda de suas questões, centro da problemática deste ensaio, que deve reter aqui a nossa atenção. Para isso, vamos citar o seu argumenro em toda sua extensftp: Intimado a responder de rnandra decisiva à segunda andonar a ouscrvn\i\u por estéreiS debates teóncos; e, entrelan 10, nl\o s~: pouc fu gi r u um:1 tt'ntati va de cluc idaç11o. Seguramente, representações como libido do e-go, energia das pulsõc~ do ego etc .•.nllo sao nem particularmen te clams de :1prccn
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALITJCA
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neuróticos e psicóticos. A distinçllo, nn libido, de uma parte que é própria ao ego e de umn outra que se liga aos objetos, é a cor.seqOência inevitável de wna primeira hipótese que separava as pulsões sexuais e ns pulsões do ego. Esta separação me foi imposta pela análise das puras neuroses de transfertncia (histeria e neurose obsessiva). E tudo o que cu sei é que todas as tentativas para elucidar estes fenômenos por outros meios fraca.ssaram radicalmente. Na ausência completa <.le uma teoria d:IS pulsões, qualquer que seja a sua orientaçiio, nos é permitido, ou an tes imposlo, fazer primeiro a prova de não importa qual hipótese, sustemando-a com conseqüência att que ela se subrraia ou se verifique.U
Este texto é bastante esclarecedor sobre os critérios teóricos que orientam o discurso freudiano em sua pesquisa. Não deixa de ser espantosa a desenvoltum com que Freud define a dire\'Üo da investigação psicanalítica. Duas formulnções fundamentais são realizndas neste fragmento freudiano: I. A oposição entre a "teoria especulativu" e a "ciência construída sobre a interpretação da empiria"; 2. Em seguida, Freud remete a representação da "empiria" em psicanálise ao funcionamento psíquico das neuroses e das psicoses, particularmente ao campo das neuroses de transferência, isto é, ao campo da analisibUidade.
Quais os fundamentos e as implka~·ões teóricas dessas formulações enunciadas pelo discurso freudiano'? F:.ll'emos um breve comentário sobre a leitura freudiana da pesquisa psi<:unalitica, baseando-nos para isso na interpretação dessas formulações.
IV. Psicanálise, ciência e filosofia No que conceme ao primeiro tópico, o que Freud esrabelece é possivelmente a oposi\·ão entre a ti losofia e a ciência, isto é, as representações que o discurso freudiano constrói sobre esses diferentes campos do saber. Assim, o discurso frl!udiano enuneia que a fílosofia se define como um tmbnlho teórico centrado na "especul:t\·ão", que, mesmo quando renlizado de forma rigorosa, é desvinculado das exigências de el:iboraçi'io dos da~os empfricos. Em contraposição, a ciência estaria estreitamente vinculada à elllJlirj.a, tendo porranto um l;ampo de referência bem circunscrito e restrito. Seria por esta referência ao universo da empiria que o discurso freudiano pôde enunciar que os conceitos psicanalíticos poderiam ser enunciados e modificados conforme as vicissitudes das exigências emplricas. Enfim, o discurso freudiano pode afirmar que o fundamento da ciência é a "observação" e não a constmção dos conceitos para a elaboraçlío da "teoria especulativa".
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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
É preciso sublinhar aqui, antes de mais nada, que o discu!I"So freudiano se inscreve num contexto bem preciso da história das ciênci:as, no qual a . emergência teórica do Círculo de Viena pretendeu estabelecer proposições rigorosas para de unir o discurso da ciência em contraposição ao discurso da metafísica. Para isso, seria necessário considerar a oposição radical emre as proposições com sentido (discurso científico) e as proposições sem sentido (discurso metafísico). O critério de sentido se basearia na possibilidade de verificação dos enunciados das proposições, de maneira que a exigência de 14 verificação remetesse imediatamente aos fatos de ordem experimental. Além disso, é preciso destacar a retomada, pelos cientistas, da filosofia de Kant, na segunda metade do século XIX na Alemanha, em contraposição à filosofia de Hegel. Enquanto o discurso kantiano permitiria fundamentar o discurso científico pelos limites impostos à metafísica, o discurso totalizante 15 do hegelianismo seria o paradigma da realização da metaflsic:a . Portanto, a filosofia kantiana permitiria fundar a oposição teórica entre as proposições com e sem sentido, enquanto que o discurso hegeliano silenciaria esta oposição fundamental ao se constituir como um sistema panlogista e como 16 uma modalidade de We/tanschauung. É o reconhecimento deste contexto teórico e histórico que nos permitirá circunscrever a dimensão de alguns dos enunciados freudianos. Assim, o discurso freudiano articulou o trab.alho psíquico, pressuposto no discurso filosófico, ao funcionamento psíquico da paranóia e da esquizofrenia. Tratase de uma leitura metapsicológica, evidentemente, mas que pressupõe inequivocamente o solo histórico e epistemológico da filosofia alemã da virada do século. Desta maneira, o di se urso filosófico seria marcado estruturalmente pelo "excesso de interpretação" face ao que seria oferecido pelo real como fenômeno (paranóia). Ou então o discurso filosófico evidenciaria um distanciamento da realidade comum e a constmção de uma outra ordem do real (esquizofrenia). Assim, em Totem e Tabu, o discurso freudiano enuncia que, se a . histeria é quase uma obra de arte e a neurose obsessiva é quase um sistema 17 religioso, a paranóia é quase um sistema filosófico. Evidentemente, nestás proposições o quase indica a identidade metapsicológica entre os diferentes discursos, mas também insinua suas diferenças intransponíveis, pois é claro que a paranóia não é uma filosofia, nem a histeria uma obra de arte. Pela mediação dessa diferença anuncia-se a presença da operação psíquica da sublimação, que é a condição de possibilidade para a passagem entre .a primeira e a segunda parte dessas proposições. Da mesma forma, no ensaio metapsicológico sobre "O inconsciente"; a mesma proximidade é tecida entre a psicose e a filosofia. Com efeito, o trJbalho psíquico da esquizofrenia é superposto agoro~ ao da 'filosofia, pois ·
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALÍTICA
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em ambos se indica a não discriminação me.tafsicológica entre a repre7 sentação de palavra e a representação de coisa. 1 Portanto, na leitura metapsicológica, os filósofos e os esquizofrênicos confundem as palavras com as coi~as, manejando o universo lingüístico como se fosse o uni verso das coisas.
V. Metapsicologia e o arbítrio na interpretação A oposição entre psicanálise e filosofia no discurso freudiano impõe uma indagação sobre o estatuto da metapsicologia nesse discurso, isto é, sobre a identidade e a diferença da psicanálise em relação à filosofia e à psicologia. Assim, a metapsicologia não se identifica absolutamente com a psicologia, na medida em que esta pretende realizar o e!ltudo da consciência e a psicanálise se funda na pesquisa do inconsciente. Centrada no inconsciente, a psicanálise pretende ultrapassar o registro....d.a consciência e se aproximar do funcionamento das pu lsões. V aIe dizer, a psicanálise não é uma psicologia das faculdades e do eu, baseada na introspecção, mas pretende ser uma analitica do sujeito, centrada na palavra e na escuta, baseando-se para isso na interlocução psicanalítica. Pretende-se, com isso, a transformação da economia libid inal e do funcionamento pulsional do sujeito. Enfim, no discurso freudiano, a psicanálise é inseparável de uma prática de transformação do sujeito, de um aro que tenha uma incidência radical em sua economia pulsional. Porém. a genealogia da palavra e do conceito "metap~logia" nos remete para a palavra "metafísica", de onde o discurSo freud1ano retirou a palavra e pôde construir o conceito. Assim, se com Freud a psicanálise pretendia construir uma outra modalidade de psicologia, fundada no inconsciente e nas pulsões, o discurso freudiano não se construiu absolutamente para isso se baseando nos cânones de cientificidade estabelecidos pelas ciências naturais e pela psicologia introspectiva. O que o discurso freudiano realizava efe~ivamente eram operações de interpretação, baseadas na escuta dos analisantes, de onde construía as suas hipóteses metapsicológicas sobre o psiquismo. Mas, o que era o saber da interpretação, o seu estatuto epistemológico, no início do-século? Mui tas coisas, evidentemente. Porém, seguramente nada era mais distante dos cãnones estabelecidos de cientificidade do que um saber da interpretação. Sua superposição aos campos da arte e da filosofia eram freqüentes, de maneira que não se reconhecia rigor científico para os saberes fundados na· interpretação. Assim,· a psicanálise se constituiu como um saber da interpretação. Freud, ·para isso, baseou-se nos discursos dos historiadores e dos gramáticos alemães, 19 que representavam n.o século XIX a história, a Lrngua e a cultura
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segundo um modelo evolucionista.20 Portanto, apesar da pretensão de Freud, que perdurou em boa parte tle sua obra, de adequar o discurso ps icanalltico às exigências ins tituídas de c ientificidade, suas diversas tentatjvas foram eminentemente fracassadas. A psicanálise não se construiu absolutamente co.rno um discurso científico-natural, pois ns suas operações metodológicas estavam próximas das que eram utilizadas no campo dos saberes da história e da linguagem. É bastante revelador da transformação de ideais epistemológicos no percurso do discurso freudiano sublinhnr agora o limite técnico da operação de rememoração na experiência analítka, indicado já por Freud em 1914,2 1 e o seu reconhecimento cabal dos processos de repetição. Destacada inicialmente no registro clínico, a compulstio de repetiçcio pnssa a ser delineada em . seguida como a problemática fundamental da experiência psicanalíüca, estando na origem da constitui~ão do concei to de pulsão de morte. 21 O que estava em causa nessa ruptum teórica do discurso freudiano, entre outras coisas, era o limite imposto à exigência de verijicaçiio das hipóteses metapsicológicas, pela rememom~·ão do analisante na experiência psicanalítica. Com efeito. a exigência de cientificidade das hipóteses metapsicológicas no discurso freudiano se e\·idenciava na demanda de verificação, que se realizaria mediante o processo de rememora~ão do analisante.23 Para além de qualquer outro efeito subjetivunte no analisante, implicado na experiência 24 da rememoração, a e;r.igência dessa última na economia teórica do discúrso freudiano se fundava na regulação epistemológica do saber psicanalítico, na medida em que era através <.la rememoração dos analisantes que a figura do analista poderia validar/invalidar as suas proposições interpretativas e metapsicológicas. Sabemos com que cautela teórica Freud introduziu posterjormente no discurso psicanalítico o conceito de construçito,25 inscrevendo então de forma sistemática no método analítico um instrumento de trabdho que já se encontrava em aç::!o desde "O Homem dos Lobos",26 pe·lo menos. A cautela excessiva de Freud se deviu justnmente ao limite ostensivo que este instrumentoclínico colocava pura os processos de rememomçãoe de verificação na cena psicanalítica. Desta maneira, se a rememon1ção da figum do analisante pemlite a verificação pontu~1l da interpretação do anal ista, com a construção o psicanalista se defronta rad icalmente com o que e~~.iste de arbitrariedade na função do intérprete. Esse arbitnírio da interpretação coloca um limite fundamental na representação empirista do saber psicanalítico, deslocando e sse saber do campo do detenni nismo para o campo do indeterminismo, no qual o conceito de pulsão como 11exigência de trabalho"27 para o psiquismo se desdobra na compulsão de repetição e no conceito de pulsão de morte.211
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VI. Interpretaçcío,filosofia e bruxaria '
Nesta perspectiva. um saber da· interpretação seria uma modalidade de discurso teórico bem próximo da "especulação" da filosofia. Portanto, seria uma forma de saber que poderia se transfonnnr, a qualquer momento, num sistema delironte de interpretaçào. Esse risco mortal se colocava como uma ameaça latente no interior do discurso freudiano, orientando sempre as estratégias constitutivas desse discurso desde o final do século XIX. Com efeito, sabemos que, desde a elaboração do "Projeto de uma psicologia científica"- como nos revela a sua correspondência com Fliess - , Freud questionava a lógica das hipóteses metapsicológicas sobre o psiquismo, preocupado que estava com o rigor científi.;o de suas referências teóricas e de seus meios de verificação empírica. 29 A anatomia fantasmática do· psiquismo, que orientava sua construção teórica, obcecava Freud com dúvidas de tal ordem, exatamente porque não sabia por onde passava a ruptura entre a teoria e o delírio. Por isso mesmo, Freud era obrigado a repassar sempre o que já escrevem, reler minuciosamente seus manuscritos, buscando n convicção e a certeza de que estaria no registro da ciência, e não no registro do delírio. 30 A não publicação desta obra magistral por Freud, que é um motivo de perplexidade para os psicanalistas desde os anos cinqüenta, indica que, pelo menos para ele, a obra estava mais próxima de um sistema delirante do que de um discurso científico. Evidentemente, a tentativa de interdição por Freud de qualquer publicidade para esta obra e de sua correspondência com Fliess. quando Mnrie Bonaparte se apossou posteriormente desses escritos, deve-se ao fato de que exisliam nesses últimos indícios de sua e;r.periência transferencial com Fliess. Porém, o temor revelado pelo estilo delirante desses textos inscreve-se também no campo tmnsferencial da relação de colaboração científica entre Freud e Fliess. A não adequação d
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função de sua dimensão "especulativa" e dos impasses colocados na verificação de suas hipóteses metapsicológicas. Por isso mesmo, sempre que Freud ·realizava um grande passo, forjando um novo conceito f1,mdamenlal, como o de pulsão de morte em "Além do princípio do prazer", ele sublinhava que estava no campo da "especulação", para deixar livres QS seus discípulos da obrigação de aco mpanhá· lo em sua ruptura com a empiricidade e as impossibilidades de verificação experimental. 33 . Porém, nesta mesma direção de le itura é preciso destacar agora a existência de outra metáfora forjada pelo discurso freudiano . Trata-se da superposição instigante entre as representações da metapsicologia e da bruxaria. Com efeito , em "Análise com fim e análise sem fun" 34 a metapsicologia é identificada com a bruxaria, justamente quando Freud alude à " bruxa metapsicologia", recorrendo então ao Fausto de Goethe. Da mesma forma como·em "Além do princípio do prazer", a evocação da metapsicologia cemo bruxaria se realiza num momento do texto onde se faz necessária a invenção de uma no va interpreta~·ão . teórica e a ruptura com uma leitura estabelec ida, isto é, quando Freud empreende uma "especulação". Não podendo inserir a psicanáHse no registro da ciência então estabelecido, e criticando ao mesmo tempo a psicologia consciencialista em sua pretensão de fundame ntar um saber da interpretação, Freud é obrigado a procurar referenciais teóricos no território exterior ao da ciência. Por isso mesmo o discurso freud iano encontra-se com os registros teóricos da bruxaria e da alquimia. Estabelece-se·então , pelo mesmo movimento identificante, a cumplicidade entre psicanálise e filosofia, pela superposição entre as representações da interpretação e da "especulação". Nada mais distante, portanto, do que a inscrição da psicanálise no campo da ciência e , em contrapartida, a facilidade para sua aproximação possível com o território da mística. Foi nesta perspectiva que o discurso freudiano pôde enunciar, em "Uma neurose demoniaca do século XVII", a aproximação da psicanálise com a demono logia, assim como a oposição entre a psicanálise e o discurso da ciência. Este contraste espetacular se ordena no discurso freudiano pela formulação prec isa de que, se a " teoria demonológica" da loucura na Idade Média foi substituída pela " teoria somática" da "ciência exata" na modernidade, a psicanálise representaria historicamente a restauração da verdade da demonologia face aos cânones positivistas da medicina moderna, assim co~o- ~seu resgate le~itimo face às pretensões positivistas da psiquiatria no terntono da loucura? . Portanto, ex ilado do campo da ciência pelas exigências positivistas de seus cânones e pelo ideal de verificação empírico de seus enunciados, apenas ficava para o discurso freudiano, como saber da interpretação, a possibilidade
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de encontrar a sua identidade teórica no campo dos saberes que foram excluídos da cidade da ciência e da n1zão com a revolução científica dos séculos XVII e XVIII. Desta maneira, a psicanálise se encontrou com o ideário teórico do Renascimento, silenciado definitivamente do mundo da cientificidade justamente porque a prática da ·interpretação constituía-se como uma de suas ferramentas fundamentais de trabalho. Com isso, a psicanálise foi identificada à demonologia e à alquimia, saberes que unificavam os territórios terrestre e celeste do cosmo pelos procedimentos da interpretação, e não pela leitura causul do universo infinito definido pela e xtensão?6 Porém, no século XIX e com a asce nsão triunfante da razão cientificista, a filosofia como metafi sica também foi excluída do universo da razão e da significação. Com o neopositivismo do Círculo de Viena, o discurso filosófico passou a ser representa~ o como enunciando proposições sem sentido, isto é, proposições que não poderiam ser verific adas empiricamente. Foi neste contexto que o discurso freudiano fo i identificado com a filosofia, pois sendo ambos considerados moda lidades de interpre tação, o que estes saberes realizavam seriam .formas de "especulação". Enfim, considerando a primazia desse último registro teórico e histórico, no qual psicanálise e filosofia foram identificadas como interpretação e "especulação", é que podemos interpretar como o discurso freudiano se aproximou num momento posterior dos saberes pré-científicos, mediante a prática da interpretação.
VIl. Experiência psicanalítica e empiriafreudiana Empiria ou "especulação"? Afinal de contas, onde se insere o discurso freudiano? Alguns de seus enunciados revelam uma pretensão teórica em construir um saber centrado na emp iria e na verificação. Porém, o que se destaca da leitura meticulosa de um outro conjunto de enunc iados deste d iscurso enigmático é a "especulação" e a bruxaria alq uimista. Com isso, a metapsicologia e a interpretação freud ianas não se sustentam sempre nos ideais da veriticaçào e da empiria, encontrando-se pois com a arbitrariedade do intérprete, mesmo quando se trn ta de e nunciar algo sobre os conceitos fundamentais da psicanálise. Enfim, podemos sublinhar que o impasse está colocado aparentemente no fund amento da leitura freudiana da psicanálise. Para sairmos deste impasse e encontrarmos a direção teórica da pesquisa psicanalítica, vamos continuar a investigar o texto freudiano. Nesta perspectiva, pretendemos realçar os pressupostos teóricos que se anunciam no preâmbulo da metapsicologia freudiana, onde em "As pulsões e seus
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destinos" se realizam alguns comentários epistemológicos sobre a construção teórica da psicanálise. Assim, vamos citar um longo frag1uento deste ensaio de Freud: freqüentemente escutamos a scguin~ cxigéncia: _uma cil!nda ~ve set construída sobre conceitos fundamcntms claros e 01Udamente de f rnidos. Na rtalidade, nenhuma ciéncia, mesmo a mais exata. começa por tais definições. O verdadeiro começo di! toda ativid ~de cicntlfica con~iste ~tes na descriçno de fenômenos, que sl!o em segu1tla or
logia: o de pulsão.l1 Nesse texto, Freud retoma basi<::unente os mesmos tópicos destacados em seu ensaio sobre o narcisismo, indicando, porém, os caminhos por onde se realiza sua "especulaçiio'' teürica. Assim, mostra como submete o "material da experiência" its "idéias abstraias", que funcionam de fonna apriorística, para empreender suas ''tlescric.·ões dos fenômenos". Ess_as "idé i~s abstratas" são considcr:~das "convencionais". não se consu!Jstuncaando po1s · as ""d' · abstmtas" - " e"r~u ~n~>r Iação" como um a priori da razão. Assam, 1 eaas - podem ser descamadas, posteriormente ou não, na medida em q~ _se apresentem como importnntcs ou ineficazes pa~a a ela~raç ão da e~lptna. Portanto, o estntuto dos conceitos fundamentaiS no dtscurso freudaano é convencional.
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É nesta perspectiva que Freud se propõe a desenvolver o conceito de pulsão (Trieb) em psicunálise, conceito fundamental da sua metapsicologia, solo constitutivo dos demais conceitos metapsicológicos (recalque e inconsciente). Para isso, estabelece uma grade de oposições conceituais para enunciar os conceitos de pulsãoe de psiquismo: excitação e estímulo; interior do organismo e exterior do organismo; força de impacto constante e força de impacto momentâneo; fuga impossível da força e fuga possível da força. Com isso se estabelece a exigência de satisfação da pulsão, a necessidade de sua regulação pelo princípio do prazer. Tudo isso leva Fr!!ud a definir o psiquismo como um "aparelho de domínio de excitações", com a finalidade básica de descarga das excitações pulsionais e o evitamento de que essas atinjam o nível energético zero. Assim, o discurso frl!udiano pode enunciar que a lógica do psiquismo ind ica a sua ruptura com a lógica do organismo, pois sublinha o modo pelo qual a idéia de "domínio de excitações" revela algo que tmnsborda com as idéias do aparelho nervoso e de reflexo. 38 Portanto, o conceito do psiquismo como corpo não se identifica ao conceito de organismo neurofuncional. O que o discurso freudiano realiza agui, em sua tentativa de enunciar o conceito de pulsão? Frellll lan\·a mão dos conceitos de Fechner, da fisiologia, da psicofísica e da termodinâmica, para se aproximar da construção teórica do psiquismo como objeto científico, sendo esse o seu referente fundamental. Porém, o psiquismo com que se defronta o discurso freudiano não é um psiquismo artilicializado num bboratório, seja de neuro-anatomia, de neurotisiolog ia ou de psicologia introspectiva. O psiquismo freudiano é um. psiquismo que fa la, não urua fu la solitilria, mas inserida num circuito de interlocução.
O psiquismo com que tmbalha a psicanálise é o psiquismo de um sujeito concreto gue fala para um outro de maneira constante e que tem no outro o seu pólo fundamen wl de refen!ncia. Então, como intérprete e como dispensador de objetos de satisfação pulsional. o sujeito procura no outro o reconhecimento de seus desejos e de suas demandas, de forma que sem o outro o sujeito simplesmente não se constituiria como tal. Portanto, a constn1~·ilo do conceito do psiquismo no discurso freudiano se fun.da •1o reconhecimento da existência de um sujeito falante, que demanda a um outro uma ajuda vital de ordem terapêutica. Essa demanda de ordem terapêutica indica o seu desejo da ordem do reconhecimento por um outro sujeito, que pode realizar este pedido pelo reconhecimento de seu desejo mediante a reconstrução de sua história. Este é o quadro fundamental da empiria freudiana, onde se estabelece uma experiência ao mesmo tempo intersubjetiva e alteritária entre sujeitos, considerados como seres fitlantes lançados no circuito da interlocução. No
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ensaio do narcisismo, no fragmento citado anteriormente, Freud sublinhava essa referência empírica da psicanálise, ao destacar a sua relação com as neuroses de transferência e o ounpo tranill.rMciol da experiência psicaoJlític a. Essa referência, contudo, é originária no discurso freudiano, e não um acréscimo tardio da e)(periência psicanalítica, na medida em que o campo transferencial desta experiência constitui o solo epistemológico da psicaná• lise, sendo portanm fundante do discurso freudiano. Assim, desde os momentos constitutivos da psicanálise, quando Freud trabalhava com a catarse, a hipnose e a sugest ão, fonnulou-se no discurso freudiano o conceito de que o "tratamento psíquico" se realizava no campo da fala?~ Neste contexto, o discurso freudiano pretendeu superar o dualismo entre corpo e psiquismo mediante a categoria de linguagem, pois a fala poderia agir nas diversas enfermidades do corpo e do espírito, já que era a mediação entre estas diferentes modalidades do ser. 40 Assim, foi pela es::,na de u~sujeito que fala para um outro, de suas dores insuportáveis, e que pede o reconhecimento vital de seus impasses, que se constituiu a experiência psicanalítica. Foi pela elaboração teórica dessa experiência que se constntiu a metapsicologia freudiana e um saber centrado na interpretação. Portanto, foi no campo dessa experiência transferencial, pretendendo realizar a escuta interpretante de uma história desejante e procurando viabilizar os destinos das intensidades pulsionais no psiquismo, que se constituiu o campo da empiria freudi ana. Nesta perspectiva, a experiência psican alítica é a base da pesquisa em psicanálise e é e la que tomece os e ixos fundamentais para seu • norteamento no registro teórico. Por isso mesmo, foram os impasses dessa e)(periência cruc ial que não apenas fundaram o discurso freud iano, mas que orientaram as transformações da metapsicologia freudiana. Esta sempre foi a direção da pesquisa psicanalítica, se considerannos o discurso freudi ano como o paradigma 1e6rico do saber psicanalítico. É nesta medida somente que Freud pôde estabelecer os conce itos fundamentais da psicaná lise como "concepções" para a leitura da experiência psicanaIHica, mas ao mesmo tempo se descartar de les, construindo novos conceitos e hierarquizando seus antigos conceitos nos novos contextos que se apresentavam, tendo como d ireção de suas indagações teóricas os impasses colocados pelo processo psicanalítico. Portanto, o d jscurso freudiano pôde ser reinventado con tinuamente no longo de cinco décadas de investigação, justamente porque refazia a leitura de seus conceitos fundamentais, con fo rme os impasses indicados pela experiência psicanalítica, não se agarrando pois escolnsticamente a esses e nunciados provisórios de s ua teoria.
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V/11. Norteamento do inventário inicial
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' Considerando que a e)(periéncia psicanalítica é o ~ue define a direção da pesquisa freudiana em psicanálise, podemos re tomar agora de maneira esquemática'alguns dos tópicos mencionados na introdução deste ensaio. Em primeiro lugar, não existe psicanálise "aplicada", pois o campo teórico da psicanálise e da metapsicologia se funda na experiência analítica ' centrada na transferência. Por isso mesmo, não existe aplicação da psicanálise na exterioridade da experiência da transferência, sendo esta que define a espessura e o diapasão trágico da interlocução psicanalítica. Por isso mesmo, a oposição pura/aplicada não faz qualquer sentido para a psicanálise, " sendo um resquício teórico da le itura freudiana realizada pela psicologia do ego, quando se pretendeu tn\nsformar a psicanálise num setor da psicologia geral, em que essa última era representada como um saber geral da adaptação e voltada para a adaptação entre o organismo e o meio ambiente. Da mesma forma, a experiência psicanalítica admite diversas· possibilidades de clínica, desde que nesta diversidade sejam reconhecidas as condições epistemológicas e éticas para a construção do espaço psicanalítico, isto é, uma experiência centrada na fala, na escuta e regulada pelo impacto da transferência. Esta diversidade clínica se justifica não apenas pelas diferentes formas de func ionamento psíquico que se apresentam para a escuta analítica, mas também pela diversidade de espaços em que a experiência psicanalítica é possível. Estamos pressupondo com esta leitura que a psicanálise não se identifica absolutamente com o exercício virtuoso de uma técnica pois esta é extremamente variável, conside rando-se evidentemente a invariabilidade de seu método. Enfim, existem técnicas diferenciadas em psicanálise que, como espécies, correlacionam-se com o método psicanalitico como sendo o seu gênero. Portanto, a pesquisa em psicanálise se funda na experiência psicanalí- • tica mesmo quando se concentra na elaboração teórica de questões aparentemente bastante distanciadas deste espaço fund amental de referência, isto é, q uando trabalha na e laboração de conceitos metapsicológicos. A leitura do discurso freudiano revela inequivocamente que era essa a direção imprimida à pesquisa analítica em sun constituição teórica e histórica. Da mesma forma , foi a través de sua articulação rigorosa neste solo epistemológico que o discurso freudiano pôde estabelecer uma relação dial6gica frutifera com os · demais campos do saber, indicando com isso a sua curiosidade inesgotável e os "múltiplos interesses da psicanálise".41 · '
Os impasses da cientificidade no discurso freudiano e seus destinos na psicanálise 1
I. Cientificidade, ética e poder Neste ensaio pretendemos traçar algumas das linhas de desenvolvimento teórico que marcaram a relação polê mica da psicaná lise com o discurso da ciência. Com este objetivo vamos demarcar inicialmente as fronteiras da problemática epistemológica colocada no discurso freudiano, me- · diante a formulação de suas questões cruciais. Estas evide nciam o modelo de ciência a que esta va submetida a psicanã Iise no contex.to histórico de sua constituição e o seu contraponto, isto é, o modelo de cientificidade construído pela psicanálise com os critérios teóricos possibilitados pela constitu ição do seu objeto teóri~.:o. Esta duplicidade e até mesmo a opos ição de registros conceituais, teve e fei tos fundamentais no desenvolvimento do saber psicanalítico e na representação de sua cientificidade pela razão cientifica.. Assim, a pretér\Silo de Freud em inscrever a psicanálise no universo da c iência esteve sempre presente ao longo de seu percurso teórico, em seus primórdios e nas mllltiplas reformulu~·ões cruciais que imprimiu à psicanálise no itinerário de sua peS
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culturais em que se inscreveu e se difundiu a psicanálise no Ocidente, pois a ava1iaçã0' de sua cientificidade c a modalidade de cientificidade representada pelo saber psicanalítico estiveram também na dependência estrita do univer· so cuiiUral vigente. Com efeito, entre os anos quare nta e sessenta, a tradição anglosaxônica discutiu a cíentitic idade da psicanálise pelo caminho teórico • norteado pela filosofia neopositívista e pelo cientificismo naturalista, enquanto a tradição francesa tematizou a questão pela mediação da fenomenologia e da hermenêutica. Assim, na tradição teórica anglo-saxônica, a cientificidade da psícanúlise permaneceu sempre como uma questão polêmica e o saber psicanalítico nunca teve um lugar garantido na cidade da ciência. Já a tradição francesa reconheceu a legitimidade da pretensão freudiana de cientificidade da psicanálise, desde que se consi- 1 derasse esta no registro da expcri~m:ia psicanalítica, e não no discurso da metapsicologia. Nos anos sessenta e setenta, o campo teórico desta problemática se modificou, pois a questão da cientiliciúade da psicanálise passmu ..o.cupar um lugar secundário no novo contexto histórit.:o. Assim, a questão da cientificidade foi descolocada pelas questões é tica e política, que passaram a se inscrever no primeiro plnno dos debates. Essa conjuntura históricu emergente correspondeu ao deslocamento do lugar social da psicanálise nos Estados Unidos, já que, de saber fundamental de referência nos campos da psiquiatria e da psicologia, a psicanálise começou a ser substituída paulatinamente por outros saberes do psiquismo. Em contrapartida. esse foi o momento cnu:inl do desenvolvimento da psica· nálise francesa e de sua expansão no t·enário internacional, onde, sob a liderança teórica incontestável t.le Lacan, a psicanálise realizou a sua difusão social na França.' Foi nessa conjuntura que o saber psicunalítit·o, como um discurso com ' a pretensão intelectual de se inscrever no fogos da ciência. se deslocou para outro lugar simbólico, onde pretendiu ser reconhecido como uma ética. Evidentemente, não como uma ética qualquer e muito menos como uma moral, mas como uma ética elo cleseju. Na perspectiva desta ética, o sujei!o do inconsciente funda no desejo, d~ m:meira que o sujeito é fundamentalmente desejante. Foi neste contexto histórico também que se representou o lugar crucia l da psicanálise nu histó.-ia da loucura no Ocidente e sua incidência na constituição das modernas tíguras da subjetividade. De forma complementar, se representou a sun inser~·ão nns modernas tecnologias do poder, de maneira a se perfilar um novo horizonte oe leituras teóricas sobre a ps icanálise.
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IJ. Fisicalismo? Desde os seus primórdios, a psicanálise foi radicalmente criticada pela sexologia, pela psiquiatria e pela psicologia, que colocavam em ques!Ao o rigor teórico de suas construções intelectuais. Indagava-se sobre sua cientificidade através de uma série de perguntas lançadas ao discurso freudiano. Seriam teoricamente sustentáveis os argumentos freudianos sobre a etiologia sexual das neuroses e sobre a existência do psiquismo inconsciente? As hipóteses freudianas poderiam ser experimentalmente verificadas e enun· ciadas em linguagem quantitativa, como se exigia então para a validação e reconhecimento de qualquer formulação científica? O campo clínico da experiência psicanalit ica e sua eficácia terapêutica na resolução dos sintomas das neuroses poderiam ser considerados como critérios seguros de positividade para a construção da psicanálise como um discurso científico? Essas questões polêmicas perpassaram a relação do discurso freudiano com a racionalidade científica do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX. A psicanálise foi sistematicamente criticada, pois suas hipóteses teóricas não se estruturavam pela experimentação e pela verificação devidamente controladas, estando submetidas ao saber e às peripécias acidentadas da prática psicoterápica. A experiência clínica era imprevisível em seus efeitos terapêuticos, apesar dos bons resultados registrados pelo discurso freudiano na resoluçõo das neuroses. Não existia uma previsibilidade dos resultados terapêuticos, apesar da constituição paulatina de uma teoria-dos impasses na psicoterapia. Além disso, as hipóteses psicanalíticas eram consideradas excessivamente -abrangentes em suas for,nulações e impossíveis de serem submetidas a um processo qualquer de mensuração e de quantificação. Nessa perspectiva, o discurso freudiano foi inserido no campo da estética, e não no campo da ciência, pois, com a abrangên~ia excessiva de seus enunciados teóricos e a sua leitura qualitativa dos fenômenos mentais, a psicanálise não teria qualquer consistência científica. Evidentemente, desde os seus prim6rdios.2 a metapsicologia freudiana levou em conta a importância crucial da leitura quantitativa do psiquismo, o que se desdobrou posteriormente no desenvolvimento sistemático da dimensão econômica na metapsicologia.3 Porém; a .questão da intensidade das pulsões era um enun· ciado teórico e não se desdobrava na prática da menstlração. • A experiência clínica em considerada sem condições necessárias para o conrrole rigoroso de seus efeitos terapêuticos e de .seus procedimentos metodológicos. Com efeito, apesar do esforço teórico do discurso freudiano em discriminar conceitualmente a psicanálise e a sugestão,4 e de enunciar a
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positividade teórica do campo da transferência até mesmo pela leitura sistemática de seus impasses terapêuticos,5 o espaço psicanalítico não era representado efetivamente por seus críticos como um verdadeiro espaço ,....
experimental. Assim, os enunciados teóricos do discurso freudiano poderiam ser representados como interessantes e bastante sugestivos para a imaginação ávida de novidades de seus leitores, mas sua cientificidade era fundamental· mente discutível. Os enunciados psicanalíticos eram fascinantes e até mesmo sedutores, mas não se ordenavam na lógica do discurso cientifico dominante e em suas exigências de verificação. O discurso freudiano, portanto, era representado como inscrito no registro da estética, e não no registro teórico da ciência. Em 1896, o sexologista Kmfft-Ebing afirmou que o discurso freudiano sobre as neuroses era um "conto de fadas científico",6 após assistir à conferência inaugura l em que pela primeira vez Freud apresentou sistematicamente a sua teoria da sedução sexual como condição fun· <.lamentai das neuroses. 7 Da mesma forma, Stern e Liepman, num comen· tário crítico sobre A interpretação dos sonhos, então recém-publicada, se referiam à obra como uma "produção artística". 8 Na mesma linha de comentários, Havelock Ellis considerou a psicanálise um discurso estético, e não uma produção científíca.9 . Freud procurava responder incisivamente aos seus respeitados críticos de diferentes maneiras, enunciando sempre positivamente a cientificidade da psicanálise. Para isso, baseou-se inicialmente nos pressupostos do fisicalis· mo e da termodinâmica, que se constituíam então o paradigma 10 da cientiticidade no campo das ciências da natureza. Tendo iniciado o seu percurso científico na pesquisa básica, nas áreas da anatomia e da fisiologia do sistema nervoso,11 Freud dominava perfeitamente a linguagem e as hipóteses hegemônicas no campo das ciências da vida. 12 Podemos acompanhar a utilização dessa linguagem fisicaJista ao longo do discurso freudiano, que pretendia apresentar a psican~i se mediante ·a retórica dentificista de seu contexto histórico. Assim, desde o Projeto de uma psicologia científica, o discurso freudiano evidenciava a demanda de se enunciar para a comunidade científica na linguagem do fisicalismo, para que a psicanálise pudesse ser reconhecida como uma ciência. 13 Dentre outras. razões, Freud não quis publicar esta obra magistral da psicanálise, na medida em que revelava os impasses radicais de inscrever de forma coerente as hipóteses psicanalíticas no discurso do fisicalismo. A mesma intenção teórica e u-mesn]a opçilo retórica se recolocaram no capitulo metapsicológico deAimerpretaçcio .dos sonhos, 14 se bem que de· forma mais nuançada e transformada. Nos ensaios metapsicológicos de
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1915, I.S odisc~rso freudiano desenvolveu os pontos de vista tópico, dinâmico e econômico da metapsicologia, upropriando-se da retórica fisicalista. Por· tanto, seria mediante esra retórica que o uiscurso freudiano espera va caucionar o seu modelo originí1rio do aparelho psíquico, a teoria da sexualidade e a sua leitura sobre a etiologia das neuroses. Essa apropriação da retórica fisicalista e essa exigência de cientificidade perpassaram o discurso ti·eudiono como uma totalidade, continuando presentes nas obras mais tardias de Freud, npesardos impasses que o modelo
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Ill. História, senticlo e linguagem O discurso freudiano formulou, desde os seus primórdios. e de maneira incontestável, que as neuroses se inscreviam na ordem do sentido e na order.n • do história, isto é, que os sintomas das neuroses revelavam uma significação que poderia ser descoberta pelo procedimento da psicanálise, e que este sentido se inscrevia no tempo da história do sujeito. A introdução dos registros da significação· e da história na leiturd dos sintomas marcou a ruptura teórica do discurso freudiano com n interpretação médica da loucura, pois descartou desde o início os registros somático e anatômico do lugar epistemológico de paradigma no campo da psicopatologia. A loucura se fundaria então na história do sujeito, não sendo portanto. um efeito de perturbações no psiquismo produzidas no registro do corpo biológico. A produção da loucura se realizaria no psiquismo de maneira positiva, inscrevendo-se no psiquico os seus mecanismos de estruturação e de reestruturação, não sendo entlto necessário recorrer a uma ordem d~ causalidade inscrita no corpo anatômico e na desregulação fisiológica do organismo. Por isso mesmo, além de ser da ordem da história, a loucura é da ordem da significação, puis a concepção do sentido dos sintomas articula-se • intimamente com a idéia de história e de tempo da subjetividade. Foi nesse sentido que o discurso freudiano pôde enunciar, desde seus primórdios, que "é. sobretudo de reminiscências que sofre o histérico",16 sublinhando assim que é no registro da memória que se constituem os sintomas e. o.s.o(dro~nto do sujeito. Ao destacar a dominância do registro da memória na produção das neuroses, o di~curso freudiano articula de maneira indissolúvel a categoria de sujeito com os registros da significação e da história, considerando impossível a separm;ão entre sujeito, sentido e historicidade. Da mesma forma, em A psicoterapia da histeria, escrito logo em seguida, o discurso freudiano evidenciou a sutil tessitura da significação no campo do psiquismo e no registro da memória, onde se articularam intima· mente as coordenadas do sentido e da tempora!idade. Esta articulação foi enunciada através de mecáfoms bastante reveladom.s da historicidade do sujeito: a estratijicaç
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conceito de defesa entre os anos 1894 e 1896. 18 Então, com a universaHzaçilo do conceito de defesa na totalidade do campo da psicopatologia, o discurso freudiano esboçou a sua concepção de sujeito fundado nos registros da significação e da história. Esta concepção de sujeito, fundada no sentido e na história, foi a condição de possibilidade paro a construção do conceito de inconsciente. Pela mediação deste conceito, pôde-se sustentar não apenas a significação completa dos sintomas neuróticos, como também se deslocou o registro psfquico no qual a indagação do sentido se realizaria. Com efeito, a pesquisa freudiana passou a centrar a busca da significação no registro da linguagem • e não no registro da consciênciu, ou seja, o sentido dos sintomas estaria ausente do campo da consciência, mas se inscreveria no psiquismo inconsciente e se revelaria pela fala. Ponanto, a reminiscência remeteria para um outro registro do psiquismo que estaria além da consciência, que foi denominado inconsciente. Nessa perspectiva, o discurso freudiano sobre o psiquismo se chocava com a representação de cientificidade então vigente, baseada no fisicalismo. Além disso, como se colocava no discurso freudiano uma critica à concepção conscienciulista de sujeito, o saber psicanalítico se chocava também com esta concepção de sujeito estabelecido numa certa tradição • filosófica. Na verdade, estas duas questões se articulavam como séries teóricas da mesma problemática, já que o discurso freudiano sobre o sujeito fundado na linguagem e não no ser da consciência colocava uma questão fundamental para o discurso da ciência então dominante e para o discurso filosófico. · Com efeito, a concepção de sujeito fundado na consciência se constituiu na tradição ocidental com a tilosotia de Descartes, que também fundou o discurso dá ciência moderna no sécu lo XVII. 19 Assim, o sujeito da consciência fundado no coglto cartesiano e a cientiticidade baseada no registro da extensão matematizável do mundo são as duas faces da mesma problemática. Estabeleceu-se com isso uma separação absoluta entre o registro do sujeito (res cogitans) e o registro do mundo (res extensa), mediante a qual se constituiu um critério de cientificidade baseado no modelo detenninista da "' causalidade mecfinica, em que a subjetividade se restringia ao registro do pensamento. A ceneza da existência de sujeito se fundava no ato do pensamento, após o desntio sistemático de todas us certezas ensinadas pela tradição, mediunte a d(tvida hiperbóli<.:a. Portanto, as concepções de sujeito e de ciência constituídas nesta tra<.li~·ão se estabeleceram sob o pressuposto da ruptura absoluta entre o Jlltltldo do corpo e o mundo do espfrito, que marcou de maneira indelével a trudi~·ão teórica do Ocidente no século XVIII e também, por um bom tempo, no século XIX.
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Por isso mesmo, no momento histórico em que o discüiSO freudiano fonnulou uma outra concepção de sujeito fundado na linguagem e na história, que se chocou com a concepção de sujeito centrado na consciência, colocouse também em questão a cientificidade deste discun;o, isto é, se ele não estaria inscrito no campo da ciência. Então, a psicanálise poderia ser um discurso muito interessante e sedutor nas suas hipóteses teóricas, mas seria um discurso estético, e não científico. Isso também se enunciou, de maneira crucial, na tradição teórica de então,namedidaemqueodiscursofreudianocolocouemquestãoodualismo cartesiano entre os registros do corpo e do espírito. Com efeito, o discurso freudiano fonnulou, apontando como a problemática fundamental de sua pesquisa, a pergunta de çomo é possível que o registro do corpo se articule • no registro do sujeito, isto é, como o corpo se inscreve no sujeito e se trll,llsfonna numa presença. Em seu percurso teórico, o discurso freudiano desenvolveu e sistematizou esta questão por dois caminhos simultâneos, constituindo os conceitos de pu/stio20 e de corpo erógeno. 21 . A pulsào foi definida como uma "exigência de trabalho" imprista ao P.siquismo em função da articulação do registro psíquico no registro corporal. E esta "exigência" contínua, imposta ao psíquico pela pulsão, que exige um "trabalho" pennanente do psiquismo de domínio da pressão (Drang) pulsional. Este dominio da força da pulsão passa necessariamente pelo outro, que, como lugar onde incide o impacto pulsional, é a condição de possibilidade para o oferecimento de objetos de satisfação para a pulsão e da interpretação da exigência pulsional. Dessa maneira, a pulsão constrói o seu circuito de sajisfação peta mediação do corpo do outro que, como instância simbólica, • pennite também a ins.crição da força pulsional num sistema de nomeaçilo e ele interpretação. Enfim, seria nesse percurso que a força pulsional se inscreve no universo simbólico através de seus "destinos", entre os quais o sujeito do incxmsciente é um dos momentos cruciais.22 Seria nos desdobramentos desse mésmo percurso que o corpo eróge110 se constituiria na história do sujeito, mediante a transformação da força pulsional no circuito pulsional, pela incidência do desejo do outro nesta força da pulsão. Assim, seria o investimento do outro, pelo oferecimento de objetos _ele satisfação e pelos cuidados realizados no corpo d9 demandante, que transfonnaria a pulsão em pulsão sexual, possibilitando a constituição do corpo erógenoP Este teria uma dimensíio auto-erótica24 e outra que seria nardsica,25 residindo esta distinção na dependencia dos diferentes momentos cruciais do circuito da pulsão. De qualquer maneira, seria por este "trabalho" • de transformação e de simbolizaçdo da força pulsional, no contexto do investimento do outro, que as pulsões se ordenariam em diversas m-ganizações sexuais ao longo da história sexual do sujeito.
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Essa complexa construção teórica realizada pelo discurso freudiano só se tornou possível na medida em que. pela psicanálise, se constituiu um campo inédito de experiência psfquica para a individualidade, que produziu uma ruptura epistemológica no campo da psicologia clássica. Com efeito, na medida em que a psicologia clássica se restringia à pesquisa do caJJlpo.da
representação, centrada na consciência e com a utilização do método da
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introspecção, a psicologia renovava o pressuposto do cartesianismo, pelo qual o psiquismo se reduzia à interioridade da consciência. Dessa fonna, o sujeito se reduzia ao registro do eu e s:e delinhva pelos processos intelectuais de reflexão, pelos quais o entendimento era o que se destacava como ponto crucial da investigação: penso, logo sou. Assim,. o discurso freudiano deslocou o estudo do psiquismo do campo da representação no registro da consciência e passou a questionar a representação no registro do discurso. Entretanto, este discurso era considerado em estado prático, isto é, como um discurso reenviado por um sujeito para outro sujeito. Com isso, constituiu-se um campo intersubjetivo fundado na interlocução, estruturando-se uma experiência psíquica centrada no diálogo. Portanto, o discurso freudiano realizou um duplo deslocamento metodológico para a construção da ruptura epistemológica com a psicologia clássica, o que provocou efeitos teóricos e clínicos fundamentais, pela possibilidade entreaberta de uma oura fonna de experiência psíquica: I. DeslocaJ11ento da pesquisa da representação centrada na consciência para a sua investigação no registro da linguagem; 2. A representação inserida na linguagem foi estudada considerando a linguagem em estado prático, inscrita no circuito de trocas com o outro. Vale dizer, a linguagem foi investigada como interlocução e discurso, no campo dialógico com o outro. Para que esse duplo deslocamento metodológico fosse possível, Freud se baseou na recente tradição clínica que pretendia solucionar terapeuticamente o sofrimento psíquico das neuroses com as técnicas da hipnose e da sugestão. Charcot e Bemheim representavam estas duas tradições clínicas, consideradas por Freud pertinentes para a pesquisíl das neuroses. O que estas técnicas tinham em comum é que em ambas o sujeito era colocado no diálogo com o outro, de maneira que a individualidade e a enfennidade eram inscritas no campo dialógico da investigação. Entret~nto, freud radicalizou essa experiência dialógica e pôde des· tacar a dimensão da interlocução nela presente, pois colocou o paciente numa posição mais ativa, face ao terapeuta, do que aquela que ocupava nos contextos da hipnose e da sugestão. Além disso, o diálogo não se reduzia ao relato dos sintomas, mas se realizava também na comunicação das experiên-
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cias que perpassavam a história da individualidade. Então, foi a radicalização da dimensão de interlocução da hipnose e da sugestão, assim como o descentramento do diálogo do plano dos sintomas, que constituiu as condições de possibilidade para a construção do espaço psicanalítico. Portanto, a transferência como marca da experiência analítica se constituiu por esta
série de novas direções metodológicas na experiência clínica, centradas no diálogo. . Nessa perspectiva, formulou-se no discurso freudiano a concepção de que o sujeito é necessariamente dialógico, isto é, uma modalidade de sujeito que se constitui apenas pelo outro e através do outro. O que implica enunciar que não existe qualquer possibilidade de representar o sujeito como uma mônada fechada, como uma interioridade absoluta, pois a. interioridade subjetiva remete sempre para. a exterioridade do outro. Portanto, o conceito de sujeito do inconsciente só pode se constituir no quadro experimental onde se destacaram os registros da intersubjetividade e da alteridade, fora do qual o sujeito é figurado como uma interioridade abstrata e pensante, como apregoava a psicologia da consciência e das faculdades dos séculos XVIJ, XVIII e XIX. Para isso, o discurso freudiano preparou a sua ruptura epistemológica desde o estudo sobre as afasias, quando enunçiou pela primeira vez que o psiquismo era antes de mais nada um aparelho de linguageTTL26 O conceito • · de aparelho de linguagem foi o antecessor imediato do conceito de aparelho psíquico, enunciado no Projeto de uma psicologia cientíjica.21 Foi neste contexto que o discurso freudiano funcionou como uma crítica do c~ia- •. nismo,pois deslocou a pesquisa do psiquismo da interioridade da consciência para o registro dialógico da linguagem. Ponanto, é preciso destacar que, se a psicanálise criou uma concepção original do sujeito fundado na história e na significação, isso foi o efeito epistemológico de um sujeito investigado nos campos do discurso e da interlocução, sendo pois construído um sujeito de ordem estritamente intersubjetiva. A descoberta freudiana, portanto, se realizou pela constituição de um conjunto de inovações teóricas que estabeleceram uma ruptura epistemológica com a tradição dominante na psicologia desde o século XVII e que colocaram questões cruciais para a filosofia consciencialista. Não obstante, o discurso freudiano se enunciou freqüentemente, sobretudo nas suas obras metapsicológicas, na linguagem fisicalista que era dominante no
discurso científico das décadas iniciais desle século. Foi esta oposição de enunciados teóricos no discurso freudiano, onde se contrapõem a gramática da significação e a retórica cientificista, que dominou a discussão·epistemológica da psicanãlise no período pós-freudiano, nos anos quarenta e cinqüenta. ·
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PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
IV. A refutação da cientificidade Para
es.b~ar este de.bate epistemológico, sublinhando as modalidad~s de
aprop~wç~o ~ de
rernrerpretaçtio de que foi objeto o discurso freudiano.
é prec1so md.Jcar de fonna sumária os espaços sociais e as tradições cullurals onde se mscrev.eu ~ movir~ent~ ~sicana.lítico no Ocidente. Isso porque esta cartografia da d1fusao da ps1canal1 se nos mdica algumas das coordenadas que nortearart_l este debate, fome1.:endo as razões pelas quais se destacaram ce~as m.dagações teóricas, a insistência em algumas questões e a he~em?~Ja conJUntural de certos modelos de cientificidade na história da ps1canahse. . A psicanálise obteve a sua primeira grande difusão social nos Estados Un~dos, a~ós a sua constituição na Europa, a partir dos anos trinta. Desaparecl~a Austria e da Alemanha, com a ascensão do nazismo, a psicanálise subSIStiu na E~ropa, em pequena escal~, apenas na Inglaterra e na França. ~s Estados U?Jdos foram a terra prometida da psicanálise, onde se radicaram dwersos anal1stas que fug iram do terror nazista. As décadas de quarenta e cinqüenta COJTesponderam ao periodo da grande e~pans~o da psi~análíse no território norte-americano. Nesse contex!o, a ps!caná!Jse amencana deteve o domínio incontestável no cenário mtemac1~nal ~ ~ co~ seqiiente hegemonia política na Associação Internacional d~ Ps1can_ahse~ JUStamen.re ~o~ue os Estados Unidos eram o país que poss.uJa o ma1or numero de InStituições de transmissão da psicanálise e de a?ahstas em todo o mundo. Entretanto, no início dos anos sessenta, esta d1fusão ~omeçou a encontrar obstáculos s ignificativos, indicando o declínio • progress1vo da psicanálise na cultura norte-americana.28 . A difusão d~ psicanálise nos Estados Unidos teve efeitos epistemológ•~os .fun.damen1a1s, se considerurmos a sua incorporação pelos discursos da ps1qu•atna e da psicologia, provocando a perda de sua autonomia teórica. In7orpo':~a pela psiquintr_ia e pela medic ina, transformou-se numa prática IW'Oter:np•ca centrada n~ 1deal da cura e numa prática social de orientação pre~~ntlva. ~~s~ manem1, a psicanálise inscreveu-se no grande projeto • pollt1co e sanu~·~ norte-amencano de produção da saúde meittal, que se desenv.olveu p~•?c1palmente nos anos cinqüenta e sessenta, perdendo..seu potencial de critica da medicina e da psiquiatria e transformando-se numa 29 e~peciali_dade médica: Por outro lado, a psicanálise foi apropriada pela P~~L" o ~ og1a norte-amencana, que pretendia transforrná·la numa "verdadeira" c1encJa, de ba~e fisicali ~ta e q_uantitativa. Enfim, em qualquer destas incor· pomções teóncas, a ps1canáhse perdeu a sua especificidade como saber ~paga~do ~s fronteiras epistemológicas de seu objeto e de seu método d~ mvesllgaçao.30
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Foi nesse contexto histórico que se realizaram os grandes debates sobre a cientificidade da psicunúlise, nas décadas de quarenta e cinqüenta. A afirmação da niío cientificiJude da psic:málise, na tradição norte-americana, se constituiu-sobretudo porque o modelo de ciência em pauta era fundado na filosofia neoposítivista. Assim, o discurso freudiano foi examinado apenas nas proposições de seu discurso metapsicológico, onde foi exigida a validação empírica de suas pretensas fonnulações fisicalistas. Desta maneira, pretendeu-se a verificação experimental com critérios empíricos das proposições freudianas, através de pesquisas centradas no registro do comportamento e do uso sistemático de mensuração. Portanto, a tradição filosófica neopositivista exigia da psicanálise a realização de um modelo ideal de c ientificida~e, de que o discurso freudiano ficava muito aquém. As proposições teóricas da psicanálise não eram empi· ricamente verificáveis segundo este modelo de cientificidade e, por isso, o _discurso freudi ano não eru considerado como inscrito no campo da ciência. Da mesma fom1a, a leitura de Popper também não reconhecia o estatuto . científico da psicamílis{, postulando que nilo seria possível construir no discurso freudi ano os argumentos pam a sua refutação. Assim, aconteceria com a teoria psicanalíti<:a, nos discursos de Freud e de Adler, o mesmo que se daria com a teoria marxista: a impossibilidade de refutação. Isso porque ambas não circunscreveram de fonna consistente os seus limites epist~.mológicos, produzindo sempre os mesmos argumentos para justificar os seus impasses. 31 Enfim, uma teoria q ue pode sempre explicar tudo e não define os seus limites epistêmicos de validade não poderia ser considerada uma teoria científica. Nos Estados Unidos, a denominada psicologia do ego constituiu-se como uma modalidade de discurso científico da psicanálise, mediante o qual procurou-se incorporar estas críticas provenientes da filosofia neopositivista. A psicanálise foi então transformada numa região da psicologia geral, sendo esta representada como uma derivação do saber biológico e centrada na pesquisa dos processos gerais de adaptaçlio do indivíduo às exigências de seu meio amb.iente. 32 Esta foi a resposta teórica da psicanálise norte-americana às exigências de cientificidade que lhe foram lançadas pela filosofia neoposítivista, que acabaram também por descaracterizar a especificidade teórica e a autonomia epistemológica do saber psicanalítico.
V. Ciência e interpretação Deslocando-nos agora da tradição norte-americana da psicanálise e dos discursos sobre a cientiticidade, dominantes na tradição anglo-saxônica, podemos destacar um debate inteiramente diverso sobre o estatuto científico
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do saber psicanalítico. Apesar de sua inserção periférica no movimento analítico nos anos trinta e quarenta, a tradição francesa desenvolveu um discurso sobre a cientiticidade da psicanâlise que estabeleceu um corte radical com a tradição norte-americana baseada na filosofia neopositivista. Na tradição francesa, a cientificidade da psicanálise foi enunciada positivamente, porém foi representada como um saber da interpretação e como uma prática hermenêutica. Nessa leitura do discurso freudiano, a metapsicolqgia, nos seus enunciado:; fisicalistas, e os enunciados do modelo cientificista presentes no discurso freudiano foram criticados e colocados em segundo plano, pois a nlCionalidade psicanalítica seria definida por sua dimensão interpretativa. Esse caminho teórico de Ie itura da psicanálise foi o efeito, nesse campo específico, de uma fonnulaçfio mais abrangente sobre o discurso da ciência, que funcionou historicamente <:orno uma crítica radical da concepção positivista de cientiticidade. Esta fonnulação teórica abrangente foi enunciada por Dilthey, que visava a fundamentação das ciências do espírito face às ciências da natureza, e pelo discurso filosófico da fenomenologia. Assim, baseando-se nas proposições da filologia e da história, que desde o início do século XIX começaram a s!stematizar os seus procedimentos de pesquisa. Dilthey pretendeu distinguir epistemologicamente as c_iências da natureza (Narurwissenchaft) e as ciências do espírito (Geisteswis~.tlchaft). Para isso. enunciou algumas proposições epistemológicas que marcaram de maneira indelével o debate sobre a ciência no final do século XIX, onde era dominante o discurso positivista sobre a cientificidade. Foram destacadas as seguintes diferenças: 1. Enquanto as ciências da natureza procurariam estabelecer relações de causalidade entre os fenômenos, as ciências do espírito pretenderiam • apreender relações de sj_gnijicaçli(J no campo do discurso; .2. As ciências da natureza, ponanto, se concretizariam peJo procedimento metodológico da explicação, enquanto as ciências da cultura adota· . riam o caminho metódico da compreensão; 3. As ciências da natureza seriam marcadas pelosjdeais teóricos do • d~terminismo ~ do universalismo, enquanto as ciências Qa cultura consid~ rariam as idéias de incerteza e de contexto; 4. Com isso, o lugar epistemológico do intérprete seria fundamental no campo das ciências do espírito, pois as suas escolhas seriam decisivas para direcionar as interpretações 110 éontexto de polissemia dos discursos. O que não ocorreria, evidentemente, com a suposta neutralidade do naturalista observando os fenôme-nos, no cmnpo das ciências da natureza.33 Nessa perspectiva, Dihhe.y realizou a crítica sistemática do ideal positivista de ciência, _que se materializou no discurso do cienti{icismo
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r::Úur&lista do Século XIX. procurando realizar no campo das ciências do espírito a revolução copemicana empreendida por Kant no campo das ciências da natureza. Assim, da mesma fonna como Kant realizou a "critica da razão pura", baseando~se na física de Newton,3 4 Dilthey se propunha a realização da "crítica da mzão histórica". Weber retomou a via teórica indicada por Dilthey, para fundamentar as ciências históricas pelo método da compreens âo, constituindo o campo da sociologia compreensiva.3s Da me-sma forma, podemos destacar que Weber seguiu; em sua leitura teórica do campo da científicidade, a crítica da concepção positivista e naturalista da ciência, o que colocava o campo das ciências do espírito em permanente desvantagem face às ciências naturais. Com isso, as ciências históricas não poderiam jamais se deslocar do tempo da pré-história da ciência e se inscrever no registro da ciendficidad~. Finalmente, a filosofia fenomenológica realizou ao mesmo tempo a crítica ao ideal de ciência do natumlismo positivista, de forma a destacar o lugar do sujeito na produção do discurso científico. Com isso, enfatizou as dimensões históricas do sujeito e d~1 ciência, de maneira a indicar o lugar fundamental do intérprete no campo da produção científica. Portanto, foi no campo teórico dessas diferentes tradições críticas que a psicanálise foi retomada pela tradição francesa como um saber fundado na interpretação. Para isso, o modelo de cientificidade fisicalista foi criticado no discurso freudiano, para que se pudesse sublinhar o registro hennenêutico que se encontraria presente na psicanálise.
VI. Mélllpsicologia e interpretação A partir da década de I 920, est;1be leceu-se progressivamente na tradição francesa uma oposição radical entre o modelo naturalista de cie~tificidade> presente em alguns dos enunciados freudianos, e o modelo da experiência psicanalítica, centrado na escuta, na interpretação e na transferên~ia. Esses dois modelos seriam teoricamente incompatíveis, não existindo entre eles qualquer possibilidade de solução de eonlpromisso. A psicanálise como saber precisaria, portanto, depurar-se de seu modelo naturalista de cientificidade, a fim ·de se desenvolver em suas potencialidades teóricas como saber da interpretação. Esta seria exigênCia fundamental a ser realizada por uma • epistemologia da psicanálise. Esta problemática teórica foi condensada da seguinte maneira: enquanto as coordenadas interpretativa e intersubjetiva da experiência psicanalttica permitiram ao discurso freudiano retirar a psicologia das abstrações da filosofia clássica- pela constituição do sujeito propriamente dito, fundado no discurso é na interlocução-, a metapsicologia freudiana formulava-se
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como uma represenração fisicalista do psíquico, onde est.e era representado inclusive como uma mônada, em estado de isolamento em relação a outros psiquismos. No discurso freudiano, portanto, os registros interpretativo e fisicalista do psiquismo eram amagõnicQs. Esta leitura marcou de maneira indelével o desenvolvimento teórico da·psicanálise francesa até o fmal dos anos sessenta. sendo mediante esta oposiçüo ue modelos que se puderam reconhecer a fecundidade e a inovação do discurso freudiano na tradição da psicologia (modelo da interpretação), bem como criticar os seus impasses teóricos (modelo fisicalista). . Podemos reconhecer em Politzer a posição de inaugurador desta vertente teórica da leilura da psicanálise, com a p'ublicação de sua Crírica dos fundamentos (/a psícolof,ia, no final dos anos vinte. 36 Nesse contexto histórico, em que na França 7 imperava a crítica radical da psicanálise e o 38 discurso freud iano tinha sido incorporado pela troúição neuropsiquiátrica, P~r foi indiscutivelmente o primeiro autor a reconhecer a ino.vação te.órica representada pelo discurso freudiano na história da psicologia. · Em sua pesquisa teórica sobre as condições de possibilidade para a constituição de u&na "psicologia concreta" e que se opusesse sistematicamente à balofa psicologia das t:'lculdades baseada na introspecção.-Politzer deslacou a importância crucial representada pela psicanálise, pelo behaviorisrno e pela psicologia da fonna para esta produção teórica. Esses diferentes discursos teóricos representavam o encaminhamento JruÜs fecund o para a construção da "psicologia concreta", pois inseriam o-psiquismo de maneira holista em contextos reais da ação.39 A psicanálise, porém, estava em destaque dentre as tendências principais da psicologia contemporânea. pois, além de inserir o psiquismo num contexto de ação, o psiquismo foi representado a partir do sujeito. Assim, centrodo na linguagem e no diálogo, Q sujeito no discurso freudiano foi · Ífl$Crito na relaç-;'ío com o outro, através do conceito de transferência. Dessa maneira, a psicanálise configurou o sujeito em "situações dramáticas", revelando o alcance fundamental da categoria de "drama" no campo da "psicologiaconcreta".40 Seria no contexto dramático da relação e do diálogo com o outro que se revelariam as questões do sujeito no discurso freudiano. Apesar desta evidente modernidade teórica nos regist~s dramático e dialógico, o discurso freudiano encontraria o seu maior obstáculo ao revestir a sua inovação teórica com u linguagem fi sicalista da metapsicologia. Com efeito, para PQiitzer o grande impasse epistemológico do" discurso freudiano foi o de pretender apresentar a sua descoberta científica com a retórica e os valores da "psicologia cl:\ssica'.', comprometendo o desdobramento das possibilidades teóricas da psicanálise. Por isso mesmo, a pretensão da crítiça epistemológica seria n de libertar a psicanálise do seu cientif1eismo fisicalis-
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ta, para que ela pudesse se desenvolver como uma concepção dramática do sujeito.41 • Num outro registro, essa mesma oposição teórica de modelos foi retomada por Dalbiez, quando estube.leceu a contraposição radical entre o "método" e a "doutrina" no discurso freud iano. Com efeito, a psicanálise revelaria a sua inovação teórica pela metodologia que forjou, onde a relação com o outro através do diálogo estaria no primeiro plano, mas a sua "doutri· na" seria falsa pelas hipóteses pulsionnis e a linguagem cientificista pela qual se enunciou. Portanto, numa perspectiva teórica bastante próxima da leitura de Polilzer, Dalbiez propunha a separação radical entre o "método" e a "doutrina", de forma a se preservar o "método" de pesquisa da psicanálise, mas de se descartar inteiramente da "doutrina" freudiana,42 como sendo um entulho. Os primeiros ensaios de locnn se inseriram na mesma tradição teórica, na medida em que sublinhavam enfaticamente a inovação teórica do discurso - freudiano pela estrutura da experiência psicanalítica e realizavam a crítica sistemática da metapsicologia freudiana. Nessa crítica inicial formulada por Lacan. fica patente que a metapsicologia revela a retórica fisicalista a ser descartada no discurso freud iano, enquanto a descoberta freudiana se daria com a construção da experiência psicanalítica centrada na fala e na transferência. 43 Entretanto. na leitura de l acan a experiência psicanalítica é apresentada de maneira primorosa, pois se sublinham os efeitos transferenciaís da experiência na decomposição das identificações constitutivas do psiquismo. Da mesma forma, a interpretação psicanalítica é enunciada em seus efeitos estruturantes sobre o sujeito, na e l ucida~ão dos enigmas e impasses de· sua história. Nesse contexto, fica claro que a intenção de lacan é pretender demonstrorque o processo psicanalítico é regulado por uma lógica irrefutãvel e_rigorosa, constituindo-se uma verdadeira experiência científica. apesar de não se enunciar pela retórica fisicalistu. . AJõ~.im, a psicanálise seria um saber da interpretação que se constituiu no campo da . expedência intersubjetiva. Estas seriam as marcas episte- • mológicas de sua cientificidade. Para encaminhar sua demonstração teórica, lacan se sustentou na filosotia fenomenológica (Husserl e Hegel), na psicologia da forma e na etologia, para realizar uma releitura de Freud,44 que se apoiou principalmente na segunda tópk'a45 e na segunda teoria das pulsões.46 Contudo, o registro energético da metapsit.:ologia freudiana foi descartado por Lacan, que enfatizou o registro interpretativo da psican6lise. Em 1953, l acan tr.msformou as suas referências teóricas na releitura do discurso freudiano, deslocando-se de uma teoria centrada na categoria de imaginário para uma teoria centrada na categoria de simbólico. Para isso, Lacan se aprimorou na utilização dos saberes lingüistico e antropológico,
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mediante os discursos teóricos de Saussure47 e de Lévi-Strauss. 48 A psicanálise, contudo, continuou a ser fundada no campo da interpretação, destacando-se agora o conceito de significante e a categoria de história para representar o sujeito do inconsciente como uma estrutura.49 Enfim. o registro econômico da metapsicologia freudiana continuou a ser descartado pela releitura de Freud realizada por Lacan nos anos cinqüenta, de maneira que era no campo simbólico. na ordem diacrítica dos significantes que o campo psicanalítico continuou a se fundar corno saber da interpretação. Nos anos sessenta, Lacan indicou os limites teóricos desta leitura da psicanálise, justamente porque a dimensão econômica da metapsicologia freudiana exigia uma outra modalidade de solução teórica. Foi só então que o conceito de pulsão (Trieb) passou a ser tematizado no discurso lacaniano,50 colocando de maneira crucial os limites epistemológicos da psicanálise como saber da interpretação e O!i impasses de sua cientificidade. Nessa viragem, a psicanálise começou a ser pensada como uma prática, inscrevendo-se no ~ discurso da ética, e não no discurso da ciência, como veremos adiante.
Vl/. O sujeito do inconsciente Foi nessa conjuntura histórica que a filosofia francesa começou a estabelecer um diálogo crítico e permanente com a psicanálise, considerando os desenvolvimentos teóricos anteriores. As décadas de quarenta e cinqüenta foram bastante férteis na produção de argumentos críticos lançados ao discurso freudiano, correspondendo no registro do discurso filosófico ao florescimento da psicanálise francesa, com as inovações teóricas de Lacan. Nesse contexto, ainda se colocava em cena a problemática da cientifi· cidade, onde se contrapunham as retóricas do fisicalismo e da interpretação. Porém, a leitura da psicanálise como saber interpretativo recebeu uma inflexão decisiva, apesar de se inscrever ainda no mesmo registro, pois o que se colocava em pauta agora em o estatuto teórico do sujeito do inconsciente. · Essa questão ocupava uma posição fundamental na pesquisa de Lacan desde os seus primórdios, como indicamos anteriormente, mas transfonnouse então no centro do debate teórico sobre a consistência epistemológica da psicanálise. A leitura realizada por Lacan do discurso freudiano constituiu, evidentemente, o campo de interlocu\·ão privilegiado desse vigoroso debate intelectual da filosofia com a psicanálise. Essa polêmica teóriça sobre o estatuto do inconsciente (oi marcada pela incidência, crucial para a tilosofia françesa, desde os anos trinta, da fenome nologia e da filosofia existen<:iul. Assim. através dos discursos de Husserl, Hegel e Heídegger. a filosofia se renovou na França. fazendo o seu acerto de
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contas com a poderosa tradição cartesiana:51 Com efeito, estes discursos funcionaram como instrumentos de crítica à herança cartesiana. Por isso mesmo, foi colocado em pauta o estatuto conceitual do inconsciente, pois era o ser do sujeito fundado na consciência da filosofia de Descartes que estava no centro ~o debate. O dualismo entre os registr:os do corpo e do espírito foi radicalmente questionado em sua pertinência, de maneira a se desenvolverem com muita riqueza teórica as problemáticas da linguagem e da intersubjetividade na reflellão sobre o sujeito. Nestas circunstâncias, o estatuto do sujeito do inconsciente tornou-se uma questão fundamental para a filosofia. Inscrevendo-se na tradição filosófica orientada por Husserl e Heidegger, pela qual procurava fundar o sujeito na rehu;ão com o outro em situações existenciais, Sartre considerava insustentável o conceito psicanalítico de inconsciente. Para ele, o inconsciente se reduzia à posição de "má fé" do sujeito, podendo pois ser enunciado como uma figura existencial da consciência, que se inscreveria na relação dialética do suje ito com outros sujeitos.52 Da mesma fonna, marcado pela herança filosófica de Husserl e procurandose deslocar dos impasses teóricos colocados pela filosofia da consciência, Merleau-Ponty indicou desde o início de seu percurso a necessidade de tematizar a abertura originária da consciência para o mundo e para o outro. Nesse contexto, o estudo da percepção ocupou um lug~r central em sua pesquisa.53 Apesar de a categoria de consciência implicar a idéia de intenção da fenomenologia de Husserl, isto é, a consciência ser sempre consciência de algo que a transcende e estar inserida num corpo, a consciência ainda é o campo da referência fundamental da fenomenologia de Merleau-Ponty. Vale dizer, mesmo sendo consciência perceptiva, ainda é no campo da consciência que se realizam as indagações teóricas de Merleau-Ponty. A categoria de inconsciente não poderia ter lugar nesta concepção filosófica, de maneira que, no momento inaugural deste discurso, o pensamento freudiano foi criticado em seu fundamemo, s4 sendo considerado um modelo mecanicista de psicologia. Entretanto, no desenvolvimento de seu percurso, Merleau-Ponty realizou uma aproximação efetiva com o discurso freudiano, conferindo um lugar consistente ao conceito de inconsciente. Passou, então, a tematízar o corpo como "carne", de forma que o registro do inconsciente passou a ser identificado ao "sentir" mesmo da coisa, pelo corpo do sujeito.55 O que implicou a transfonnação fundamental do cogito cartesiano no pensamento de Merleau-Ponty. que do "eu penso" de Descartes se transfonnou no "eu quero", nessa ontologia do corpo. Enfim, o inconsciente foi tematizado no registro do desejo, na apropriu~·ão sensível e erótica, pelo corpo, das coisas constitutivas do mundo.
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No contexto de uma pesquisa abrangente sobre a hennenêutica no campo das ciências humanas, Ricoeur realizou a sua leilura sobre Freud, retomando a tradição iniciada por Politzer e Dalbiez. A pretensão de Ricoeur era renovar a oposição estabelecida por Dilthey entre ciências da natureza e ciências da cultura, fazendo uma releitura das ciências da cultura pelo caminho epistemológico de saberes hennenêuticos. Para isso, estabeleceu uma investigação no universo dos símbolos, delineado pelas diferentes ciências humanas, onde a construção da categoria de interpretação e a constituição da hermenêutica como saber filosófico se colocaram como questões primordiais. Assim Ricoeur procurou demonsrrar, em sua leitura sistemática de Freud, que as exigências cientificistas da energética, no discurso da metapsi· cologia, estavam subsumidas à retórica da interpretação. Dessa mane i· ra, o discurso freudiano seria a construção de um saber da interpretação e a psicanálise se inscreveri
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medida em que o lugar primordiul desse encontro foi a fenomenologia de Hegel e o campo da inters ubjetividade, onde esta se fundava na dialética do senhor e do escravo. Entretanto, esse encontro se revela também na leitura de Hyppolite da problemática evidenciada pelo discurso freudiano, no qual a articulação entre a filosofia da natureza e a filosofia do espírito remete para a demanda de se pesquisar o conceito de pulsão no discurso freudiano. Foi para a elaboração desse conceito freudiano que o discurso de Lacan teve que se voltar de maneira sistemátka. qunndo procurou desenvolver a categoria de real na psicanálise e sair dos impasses colocados pela hegemonia do registro simbólico. Como logo veremos, foi por este viés também que Lacan passou a representar a psicanálise como uma prática inscrita no discurso da ética e não mais no discurso da ciência.
Vlll. O inconsciente como objeto da psicanálise Antes de seguirmos esse desdobramento teórico da epistemo logia da psica· nálise, é preciso destacar uma formuluçüo importante sobre a c ientificidade da psicanálise, enunciada na década de sessenta e que teve em Althusser seu maior representante teórico. Nessa formulaçiio, a psicanálise se constituiria efetivamente como um discurso científico, na medida em que produziu um objeto te6rico, art icu lado de maneira coerente por um método de investigação e por uma técnica. Esse conjunto delinearia a psicanálise legitimamente como uma ciência.59 Esse discurso epistemológico sobre a psicanálise pressupõe um modelo rigoroso de cientificidade, em que se enuncie de maneira positiva as condições de uma epistemologia regional e se realize a crítica sistemática da filosofia positivista da ciência. Além disso. pressupõe a existência de uma ruptura teórica entre o objeto do discurso c ientífico e o objeto do discurso do senso comum, delineando a historicidade do discurso científico. . A epistemologia de Althusser inscreve-se na tradição francesa da filosofia da ciência, que se inicia na década de trinta com Bachelard e que teve em Canguilhem um de seus mais em inentes herdeiros. Enquanto Bache· lard constntiu uma imensa obra epistemológica centrada na análise dos d iscursos da química e da física modernas/,o a pesquisa de Canguilhem se 61 baseou no exame sistemático da biologia e da medicina. A epistemologia anunciada por G. Bachelard destacava o advento do discurso cientítico pela constituição de um objeto teórico, que se produzia medinnte a reulizaçào de um cone epistemológico com o universo do senso comum. O universo do senso comum se organizava como sendo de ordem prê-científica, empreendem.Jo-se alruvés ...te pr~ticas técnicas e sociais, regu· ladas por valores idcológi<.:os, LI~ acordo com a linguagem de Althusser.
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Dessa maneira, a constituição de qualquer discurso científico marcaria uma descontinuidade na história, na medida em que pela invenção de seu objeto teórico e seu correspondente no campo conceitual se inscreveria uma nova forma de representação do mundo. Além disso, a descoberta científica únplicaria a reinvenção da linguagem, no processo teórico de uma representação original do mundo. Esse discurso epistemológico se realizou através de uma crítica radical da filosofia positivista da ciência, que teve uma incidência fundamental na França desde a sua formulação por Comte no século XIX, representando de fato e de direito uma ruptura com a tradição positivista. Com efeito, nessa tradição teórica formulava-se que a verdade era uma essência substantiva, inscrita desde sempre no mundo das coisas, e que o trabalho da ciência seria o desvendamento progressivo dessa verdade absoluta. Não se enunciava nesse contexto a diferença entre o objeto natural e o objeto científico, que se superpunham em uma perspectiva científica norteada pela pesquisa de fatos como reveladores da verda<;le. O discurso científico, portanto, não seria uma construÇ'dO contra as representações ideológicas, tampouco uma invenção conceitual. Por isso, a filosofia positivista fonnulava a não-historicidade interna do objeto da ciência, de maneira que a relação deste com a linguagem era meramente exterior. . A leitura da ciência realizada pelo positivismo revelaria portanto que a história era extrínseca ao discurso científico, pois a história da ciência se restringia ao relato das descobertas, na biografia dos cientistas, na organização das sociedades científicas etc. Não existia uma história da ciência fundada na construção de novos conceitos e de novos objetos teóricos, isto é, daquilo que marcaria um novo tempo na história do saber. Em contrapartida. a leitura de Bachela.rd construiu uma idéia absolutamente original da história da. ciência, onde os impasses e os obstáculos teóricos para a emergência do discurso científico se destacam no primeiro plano da construção histórica. Com isso, a história da ciência foi fonnulada como sendo pois uma história eminentemente epistemológica, de forma que a epistemologia de um certo saber nortearia a construção de sua história conceitual e de seus . obstáculos.62 Nessa perspectiva, inauguraram-se as condições de possibilidade para a concepção de diferentes discursos científicos, considenmdo para isso a diversidade de seus· objetos teóricos e de seus métodos específicos de indagação do real. Assim, os diferentes discursos científicos produziriam os seus métodos e suas técnicas de acordo com a especificidade teórica de seus objetos. Desponta, então, uma epistemologia regional, em que se reconhece a diversidade dos diferentes discursos científicos pela diferenciação de seus objetos teó ricos.63
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Dessa maneira, não seria possível a comparação teórica entre diversos discursos científicos, pois seria impossível a comparação de regimes epistemológicos diferentes. Rigorosamente, não eJtistiria o discurso da ciência como se formulava no positivismo, mas discursos das ci2ncias, o plural destacando sua diversidade e difereAc;a epistemológica. Já no contexto da concepção positivista, o discurso da ciência era enunciado no singular, o que destacava ·um modelo ideal de cientificidade ao qual todos os discursos teóricos, com a pretensão de se inscrever no fogos da ciência, deveriam se adequar de fonna sistemática. Assim, a física foi enunciada como a ciência por excelência, a realização desse modelo ideal de c ientificidade no qual deveriam se basear os demais discursos teóricos para se transformarem em discursos científicos propriamente ditos. Transfonnada pela tradição positivista da ciência em modelo ideal de cientificidade ao longo do século XIX, a física era vislumbrada em seus procedimentos experimentais e em sua linguagem matematizada como o ideal de qualquer discurso pretensamente científico. Dessa maneira, constituiu-se o fisicalismo como ideal de cientificidade, o que marcou de maneira indelével a concepção de Freud sobre o discurso da ciência, onde. ele procurou inscrever a psicanálise a qualquer custo na retórica da cientificidade. Foi no campo dessa tradição epistemológica que Althusser enunciou a cientificidade da psicanálise. Não seria a adequação ao ideal do fisicalismo que defmiria a inserç·ão da psicanálise no campo da ciência, uma vez que este ideal seria exterior ao discurso psicanalítico. Este é que deveria definir seus · critérios teóricos próprios, de acordo com as exigências epistemológicas de seu objeto teórico. Pot1anto, a psicanálise se constituiria como uma ciência, na medida em que enuncia a existência de seu objeto teórico: o inconsciente. Seria a construção coerente deste objeto teórico no discurso psicanalítico que revelaria a sua cientiticidade. Além disso, a construção deste objeto teóric.o se inscreve no carnpo da experiência psicanalítica, centrada na transferência e na interpretação, onde se articulam as exigências do método analítico para a realização do proçesso psicanalltico. . Aithusser fuz á critica não apenas das exigências fisicalístas da preten· são de déscaracierizar a cientificidade da psicanálise, como também das tentativas de apropriação indevida da psicanálise pelos discursos filosóficos, sublinhando a originalidade teóricu da psicanálise exatamente naquilo que constituta problema para o reconhecimento desta pela fil osofia. Assim, o inconsciente seria o objeto teórico da psicanálise, mediante o qual esta teria realizado o corte epistemológico com n tradição dn psicologia da consciência e com o discurso da filosofia consciencialista, possibilitando com isso uma nova leitura do psiquismo e das perturbações psíquicas.64
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Portanto, Althusser enuncia a cientificidade da psicanálise através do conceito de inconsciente, reafirmando emão pela positividade deste sua crítica incisiva à leitura da fenomenologia existencial sobre a psicanálise. , Evidentemente, a leitura de Allhusser, centroda no conceito de inconsciente, é o contraponto filosótico do trabalho teórico realizado por Lacan, no qual o inconsciente fundado na linguagem foi enunciado como o conceito funda· mental da psicanálise.65 A leitura de Ahhusser foi a contrapartida epistemo· lógica do discurso de Lacan sobre a psicanálise centrada no simbólico, onde o inconsciente foi representado como uma estrutura constituída por um conjunto diacrítico de significantes e a psicanálise se realizaria clinicamente no campo da fala e da linguagem.
IX. Desejo e ética na psicanálise A fundamentação epistemológica da psicanálise, realizada de maneira primorosa por Althusser, não retirou o discurso psicanalítico do campo da interpretação e da in ter~ubje t iv idade. Ao contrário, no desdobramento da leitura estrutural de Lacan sobre o simbólico, constituiu o campo da interpretação em psicanálise com maior rigor teórico e afastou de maneira radical qualquer tentativa de se pretender fundar a cientificidade da psicanálise segundo os cânones do tisicalismo. Porém, com o desenvolvimento teórico e histórico da psicanálise como um saber fundado na interpretação, a questão da cientiticidade da psicanálise foi sendo colocada paulatinamente em segundo plano. A introdução de categorias fenomenológicas e existenciais na releitura do discurso freudiano, por diferentes comentadores de Freud, teve em contrapartida o efeito de relativizar a impot1ância da questão da cientificidade da psicanálise. O que não implicou absolutamente a destituição do seu valor teórico e o seu reconhecimento pelas demais ciênc:ins humanas. Ao contrário, foi no contexto histórico desse dt!b:~te rigoroso qut! a psicanálise se t..ansfonnou num pólo pennanente de questões cntciais para o discurso filosófico e que este não permaneceu incólume iis questões colocadas pela psicanálise para a racionalidade filosófica. Além disso, a pesquisa teórica de Lacan passou a encontrar obstáculos significativos para unia leitura da psicanálise centrada no ~gistro simbólico. A experiência clínica colocava questões intransponíveis para esta leitura, pois permaneciam impasses na experiência psicanalítica que eram irredutí~ veis à interpretação teórica pelo registro simbólico. Foi nesse contexto que Lacan passou a introduzir a categoria de real na psicanálise, como uma tentativa de interpretur estes efeitos pslquicos irredutíveis à interpreta\'ão teórica pelo simbólico e pelo imaginário. Esses
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efeitos psíquicos indicavam a demanda de reconhecimento de que existia algo no psiquismo que não se transformava imediatamente em símbolo e que existe sempre um resíduo no psiquismo que não era assimilável pelo sistema de simbolização. Com isso, se reconheciam os limites do registro do simbó· /ico em psicanálise e a necessidade de se reconhecer efetivamente a dimensão econômica no psiquismo destacada pelo discurso freudiano, sem que isso implicasse o discurso fisicalista e o cientificismo em psicanálise. Assim, Lacan passou a realizar a leitura da energética em psicanálise e a tematizar pela primeira vez o conceito de pulsão.66 Nesse contexto, foram possíveis a elaboração do conceito de fantasma com maior rigor e a constituição do conceito de objeto a como objeto causa do desejo. Com isso, a experiência psicanalítica foi repensada em suas coordenadas constitutivas e o lugar do analista foi representado de fonna instigante.67 A economia da satisfação pulsional e os seus impasses se colocaram no primeiro plano da experiência psicanalítica, e a pr:.ítica da interpretação ficou subsumida nos destinos e nos obstáculos do circuito pulsional. Nessa perspectiva, a psicanálise foi enunciada como um discurso inserido no campo da ética e não no campo da ctência, na medida em que indica os impasses pam a inscrição da pulsão no campo da simbolização. Nesse processo de tmns forma~·ão da pulsão, do registro da força para o registro do símbolo, sobra sempre um resto, um residuo, que é a condição de possibilidade para a reprodução do próprio circuito da pulsão.68 Assim, enunciando-se como uma ética do desejo, que não se restringi· ria mais ao campo do discurso da ciência, a psicanálise seria t~ma experiência singular que funcionaria como a condição de possibilidade para que o sujeito acedesse ao desejo singular de sua história e pudesse ao mesmo tempo se encontrar com os impasses cruciais de suas exigências pulsionais. Enfim, abordou-se aqui a desistência e a recusa da psicanâlise de se inscrever no Jogos da ciência, apesar do reconhecimento incontestável de suas contribuições teóricas para as demais ciências humanas e para a filosofia, e a sua pretensão de se enunciar como uma prática clfnica fundada na ética do desejo e nos impasses das pulsões nos caminhos para a sua satisfação.
X. Saber, desejo e poder A problemática da cientiticidade recebeu uma crítica contundente no contexto da epistemologia e da tilosofia francesas, através da constituição da arqueologia do saber e da genealogia do poder empreendidas no percurso teórico de Foucault desde o inicio dos anos sessenta. A ·crítica de Foucault ao discurso da ciência e a seus impasses teve efeitos importantes no campo psicanalítico, não apenas porque a questão da cientificidade em então ~le-
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vante para aquele campo, mas porque a psicanálise foi uma problemática crucial que perpassou toda a obra de Foucault. Em contraposição à tradição epistemológica francesa pela qual se formou ~ foi marcado, Foucault realizou uma crítica ao discurso da epistemologia, abandonando em suas pesquisas o estudo dos conceitos e dos objetos teóricos das ciências. Seus estudos, portanto, não se inserem mais no campo da história das ciências, no sentido cunhado pela tradição de BacheIard e
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O efeito histórico desse processo foi a perda de qualquer poder de verdade da loucura, que passou n ser representada como "ausência.de obra".1 4 Entretanto, a não-verdade da loucura se constituiu pelo poder absoluto de verdade da ciência, de maneira que a Razão se construiu na tradição do Ocidente pela tentativa de silenciar o universo da Desrazão. Nessa arqueologia da loucura, a psicanálise é figurada de maneira dupla e ambígua pois, além de ser enunciada como herdeira da tradição médico-psiquiátrica do século XIX, retoma a tradição da loucura do Renascimento. Com efeito, Foucault sublinha a pretensão freudiana de reconhecer a verdade da loucura, onde a loucura seria a fonna de o sujeito dizer a verdade de sua história e poder assumir a verdade de seu desejo. Enfim, Foucault ret~ma positivamente a psicanálise como um saber da interpretação, pois sena a restauração da loucura como poder de verdade pela interpretação que estaria no fund amento do discurso freudiano. Posteriormente, a leitura de Foucault da psicanálise se transformou, com a passagem da arqueologia do saber para ·a genealogia do poder. O imponante agora seria a inserção da psicanálise numa série de teénotogias de produção da subjetividade e da sexualidade, que desde o século XVIII disciplinaram os corpos no Ocidente. A psicanálise seria uma das tecnologias que se inser~ram nesta estratégia de normalização, onde as yerdades que ela pode enunc1ar sobre o sexual e o desejo se inscrevem lambém· nesse dispositivo social de normalização dos corpos.n Esse último discurso de Foucault sobre a psicanálise como uni poder de normalização do sexual é o contraponto histórico e temático do discurso de Lacan da psicanálise como uma ética do desejo. Para ambos, portanto, não é mais a problemática da cientificidade da psicanálise que está em pauta nos anos setenta, mas as probl~máticas da ética, do poder e do desejo. . . Enquanto para Lacan enunciar a psicanálise como uma ética do desejo 1mphca encontrar uma alternativa possível para a psicanálise como saber, na exterioridade do registro da ciência, para Foucault os seus enunciados sobre o poder nonnalizador da psicanálise implicam indicar a sua impossibilidade histórica e os seus impasses. ·
Leituras sobre a cientificidade da psicanálise 1
I. A transformação de um paradigma A questão da cientificidade do d iscurso freudiano sempre se colocou como uma problemática crucial na história dn psicanálise, impondo-se essa indagação do interior do movimento psicanalítico e de sua exterioridade, representada pelos discursos da filosofia e de diferentes campos cient1ficos. Desde os primórdios da psicanálise, essa questão se apresentou de maneira premente, quando Freud e seus principais discípulos sustentaram a legitimidade da inserção do saber nascente no registro da razão cient1fica. Essa pretensão do campo psicanalítico enconcrou oposições gigantescas, oriundas dos discursos epistemológico e científico. A problemática que se colocava no calor do embate era sobre o estatuto teórico e o fundamento do saber psicannlhico, caso esse não pudesse se inscrever no campo da razão cient1· fica. Este apaixonante debate teórico prosseguiu durante décadas, sempre recomeçando o embate entre os opositores. Enrretanto, desde os anos sessenta a sua chama vem se apagando progressivamente, de fonna que atualmente a questão da cientificidade da psican:Hise não é mais considerada uma questão primordial, colocando-se de maneira secundária nos campos da filosofia e da psicanálise. Neste contexto, a psicanálise foi reconhecida como uma modalidade de saber legítimo, sem <1ue isso implicasse necessariamente em qualquer reivindicação sobre a sua cientificidade, por parte dos analistas, e sobre seu reconhecimento como ciência, por parte da filosofia. Em suma, a questão da cientificidade não fu ncionava mais como um critério absoluto de valor nos campos filosófico e cultural, para o reconhecimento da legitimidade de qualquer modalidade de saber. Podemos depreender então que se processou uma transfonnação radical no paradigma regulador dos campos da epistemologia e da filosofia, onde a questão da verdade se deslocou do registro da ciência e migrou pnra um 54
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território simbólico regul~1do pelos registros da linguagem, da ética e da po/itica. O que se coloca agora como wna problemática teórica crucial não é a indagação sobre o que é a verdade, as suas certezas e a sua irrefutabilidade, mas como se realizam a sua produção, a sua recepção e a sua reprodução no espaço sociaL O que está em pauta é o agenciamento sócio-político e lingüístico da verdade, as suas formas de difusão no tecido social e as modalidades de sua apropriação como certeza irrefutável. Assim, além de consider:umos que durante este século a psicanálise conquistou um lugar no mundo, nas tradições culturais do Ocidente, onde foi reconhecida como uma modalidade legítima de saber e pôde se difundir no tecido social, existe também nesta não-cobrança atual sobre a cientificidade da psicanálise uma evidente transfonnação do paradigma teórico que regula a leitura dos saberes. Esse paradigma, centrado anterionnente no registro da cientificidade, constituído numa longa tmdição iniciada no século XVII e que se desenvolveu muito desde o século XIX, desloca-se agora para os registros da linguagem, da ética e da política. Como não poderia deixar de ser, pois a psicanálise se desenvolveu teoricamente t:unbém no diálogo com o que lhe em exterior, o saber psicunniÚico foi marcado em sua leitura pela incidencia desses diferentes paradigmas. Se inicialmente a questão de sua cientificidade obcecava os teóricos, essa exigencia, agora, se não caiu inteiramente por term, passou a ocupar um lugar secundário no campo do debate teórico sobre a psi<.-análise. O que pretendemos esboçar neste ensaio é a incidência de diferentes modelos de ciemift eültule no discurso psi<.·analítico, assim como o desloca· mento da questão da cientilicidade de um lugar centml, no debate atual sobre a psicanálise. Inicialmente, vamos definir alguns impasses sobre a cientifi· cidade, que se desenvolveram no campo do discurso freudiano. Em seguida, indagaremos como a psicanálise pretendeu se transformar numa ciência empírica, apresentando a si própria impasses para a verificação de suas hipóteses metapsicológicus. O passo seguinte será indicar como se pretendeu transfonnar a psicanálise num saber do sujeito e da interpretação, quando encontrou maiores possibilidades de desenvolvimento. Finalmente, veremos como este debate se desloca na atualidade e de que modo a questão da cientificidade tende a ser silenciada.
11. Impasses epistemológicos no discurso freudiano A relação do discurso freudiano com â problemática da cientificidade foi marcada pelo paraâo.r.o pois, se inicialmente Freud pretendeu constituir a psicanálise como uma ciência rigorosamente natuml,2 a impossibilidade
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desse projeto teórico foi se impondo pouco a pouco em seu percurso intelectual. Assim, apesar d a exigência de cientificidade para a construção rigorosa da psicanálise, baseando-se para isso nas ciências naturais e em sua demanda de quantificação, o d iscurso freudiano se desenvolveu de fato e de direito como uma ciência da cultura, centrado na categoria de interpretação.3 Este paradoxo acompanhou todo o desenvolvimento histórico do discurso freud iano, sendo esta duplicidade de modelos epistemológkos um dos responsáveis pelos desdobramentos históricos que marcaram a epistemologia da psicanálise em diferentes tradições culturais. Assim, se a tradição anglo-americana sempre pretendeu que a psicanálise fosse uma ciência empírica, submetida aos processos objetiváveis de verificação, a tradição francesa procurou fundá-la como um saber da interpretação. Antes de esboçarmos em linhas gerais essas diferentes tradições epistemológicas da psicanálise, vamos sublinhar as contrndições presentes no discurso freudiano sobre essa questão. . Fonnado como pesquisador no cnmpo da neuro-anatomia e como médico neurologista, num contexto cultural marcado pela filosofia da natu· reza e pelo positivismo científico, Fre ud pretendia que a psicanálise se constituísse como uma ciência natur.tl, segtl;lrlo o modelo quantificável da fisiologia. Posteriormente, a constituiçllo do Círculo de Viena, com sua leitura crítica da metafísica e procurando fundar a especificidade do discurso científico, teve uma incidência cn1cial no estabelecimento dos cãnones de cientificidade do discurso freudiano. Com efeito, se a psicanálise pretendia sé constituir como uma ciência seria necessário que a sua constmçào teórica fosse realizadacomproposições com sentido, isto é, proposições que pudessem ser verificadas como fatos da experiência. Caso contrário, seriam as suas proposições sem sentido, inscr~ vendo-se então no campo da metaflsica. Se o discurso freudiano procurava construir a metapsicologia com a linguagem dominante das ciências da época - a fi siologia, a termodinâmica e a psicofís ica - . em contr.lpanida o que se constituía era uma modalidade de saber centrado na interpretação e na existê ncia da transferência. O discurso freudian o procurava superar este impasse epistemológico, enunciando a c:xigênciu de rememoração no processo analítico como o critério fundamental de verificação de suas hipóteses metapsicológicas e clínicns.4 . Entretanto, as contradições teóricas se avolumavam no d1scurso freudiano. Nilo podendo construir propo:;ições empíricas irrefut.áveis, ide. õltificava freqOentemente n ps icnnúlise à prúticu da "especulação",5 superpondo-se então com a tilosotit ·Assim, como uma modalidade de saber da interpreta-
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ção, a psicanálise se aproximava perigosamente da filosofia e poderia se transformar em uma v isão de mundo. Este era o risco primordial da metatlsica, pois, misturando as representações de palavra e as representações de coisa,6 perdia os limites sobre o que poderia dizer com rigor sobre os objetos do mundo. Era este o terror das proposições sem sentido. Na tradição cientifica alemã da segunda metade do século XIX- em que predominava a crítica ao projeto panlogista e totalizante de Hegel? ao lado de uma proposta teórica de retomada da filosofia de Kant, por representar a crítica da metafísica - ,8 qualquer signo de "especulação" e de não verificação das proposições teóricas indica va o descaminho da razão científica e o retomo à metafísica. Evidentemente, essa possibilidade era aterrorizante para Freud, que pretendia que a psicanálise fosse reconhecida conio um dis· curso científico. Não obstante, no discurso freudiano, a psicanálise como metapsicología se identificava freqüentemente com a metafísica, e mes• mo com a bruxaria.9 Podemos }lpreender pela leitura do discurso freudiano um duplo conjunto de enunciados teóricos, pelo menos. O discurso freudiano não é unívoco e homogêneo quanro a isso, mas plurivoco e heterogêneo. Por isso mesmo, é um discurso polêmico no que conceme à questão da científicidade. Pelo primeiro conjunto de enunciados teóricos pode·se sublinhar a existência da exigência episremológica, no discurso freudiano, de que a psicanálise fosse fundada como uma ciência rigorosa, de base empírica e verificacional, como as ciências naturois. Entretanto, pela presença simultânea de um segundo conjunto de enunciados, não apenas se reconhece a impossibilidade deste projeto epistemológico, como também se anuncia e se realiza a construção de um sa.be r da interpretação. Sublinhando a dimensão hennenêutica da psicanálise e inscrevendo-a no campo das ciências da cultura, o discurso freud iano acaba por inserir a psicanálise na tradição da filosofia e da mística. ~ Porém, nos momentos teóricos do discurso freudiano em que os paradoxos e as impossibilidades de anicuJação entre estes diferentes modelos epistemológicos se impuseram de maneira t1agrante, como quando construía a "Metapsicologia", Freud tenta contornar o obstáculo pela afirmação de que os conceitos fundamentais de qualquef ciência são "convencionais", podendo, pois, ser constituídos e substituídos confonne o desenvolvimento e os desdobramentos do seu campo empírico. 10 Por isso mesmo, os conceitos "especulativos" da psicanãlise poderiam ser propostos para ordenarem o campo empírico e serem descartados em seguida, em função das novas exigências desse campo.
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111. O naturalismo na psicanálise Esta duplicidade de modelos epistemológicos inscreve-se em diferentes tradições filosóficas e psicanalíticas. A difusão e a expansão da psicanálise em difecente.s undições culturais c.lo O~idente · tiveram como um de seus efeitos inevitáveis a sua recepção, incorporação e interpretação segundo os paradigmas sociais vigentes. Isso significa que o discurso freudiano foi objeto de leituras teóricas diferenciadas e que, de acordo com as categorias símbólicas dominantes nessas tradições culturais, privilegiaram-se detenninadas dimensões desse discurso no lugar de outras. A questão da cientificidade foi retomada de diferentes maneiras nesses diferentes contextos culturais, explorando sempre, porém, as virtualidades imanentes ao discurso freudiano. A tradição anglo-amerkana da psicanálise realizou a sua leitura do discurso freudiano nele destacando o seu ideá rio neopositivista de cientiftcidade. Vale dizer, a psicanálise deveria se adequar aos cânones de verificação experimental, construindo as suas proposições teóricas de forma a possibilitar esta verificação, se quisesse ser reconhecida como inscrita no campo da razão científica. Em contrapartida, a tradi~·ão francesa realizou uma leitura da psicanálise baseada no modelo da interpretação. procurando construir uma teoria do sujeito em psicanálise. Portanto, nessa última tradição teórica o discurso freudiano foi retomado no campo do pensamento hennenêutico. Consideremos inicialmente a tradição anglo-americana da psicanálise. Pretendemos destacar esquematicamente algumas das linhas de força que foram constitutivas do discurso psi~an:1lítico, assim como as principais críticas epistemológicas à psicanálise, tendo a questão da cientificidadecomo o eixo teórico fundnmental para a leitura crítica. Na teoria psicanalíticn, n denominada psicologia do ego, desenvolvida nos Estados Unidos por Hartmann, Kris e Lowenstein,11 foi indiscutivelmente o projeto teórico mais importante para que a psicanálise se constituísse como um saber científico, centrado no modelo empírico de verifiCação experimental. O modelo epistemológico da cientificidade natural regulava a construção desse projeto teórico. Pam isso, a psicanálise não era considerada como um saber autôt1omo, circunscrito por um objeto teórico-especifico, mas deveria corresponder a um ten·itório no interior do campo mais abrangente da psicologia geraL Portanto. a psicanálise era reconhecida como uma modalidade da psicologia. não tendo fitce a essa qualquer especificidade teórica. Nesta perspectiva, a psicologia era representada como uma teoria adaptativa do OJianismo e do indivíduo, estudundo as relaçoos do organismo/indivíduo com o seu meio ambiente. Neste contexto, a psicanálise se
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fundaria na biologia e na etologia, construindo-se teoricamente como uma concepção desenvolvimentista do ego, centrada no crescimento e no amadurecimento conseqüente de suas funções adaptativas às exigências diversificadas do meio ambiente. No campo teórico assim delineado, foi possível representar a existência de um ego livre de conflitos, não marcad.o pela incidência do narcisismo e da sexuação, denominado de região autônoma do ego. Para a realização desse projeto teórico, a psicologia do ego precisava transfonnar a metnpsicologia freudiana, para torná·la conceitualmente verificável e quantificada pela pesquisa empírica. Em suma, seria preciso retirar da metapsicologia freudiana a sua dimensão "especulativa", como o escandaloso conceito de pulsão de morte, para transfonná-la numa teoria operacionalmente verificável e testada pela pesquisa empírica. Desta maneira, o discurso psicanalítico foi utilizado, no exterior do espaço analítico e trans~e~ rencial, para a realização de pesquisas empíricas que pennitissem não apenas comprovar a validade de suas hipóteses rnetapsicológicas, mas também pennitir o seu desenvolvimento em outros contextos. Com isso, tematizou-se a oposição entre a psicanálise "pum" e a psicanãlise "aplicada", a primeira encontrando na clínica psic.."analítica o seu modelo ideal e a segunda provocando seu deslocamento para outros contextos experimentais. Apesar dos evidentes esforços teóricos da psicologia do ego para transfonnar a psicanálise numa ciência rigorosa, segundo os critérios epistemológicos da ciência natural, a filosofia da c iência vinculada à tradição neopositivista não reconheceu a validade teórica dessa pretensão. Indiscuti· velmente, foi de Nngel a crítica recente mais importante desta pretensão do discurso psicanalítico em ser trnnsfonnado numa ciência rigorosa, pois a 12 metapsicologia psicanalítica .não pem1itiria a sua validação empírica. Portanto, os conceitos fundamen tais da psicanálise, que consubstanciavam a base teórica da concepção do aparelho psíquico, não ernm passíveis de validação experimental e, conseqiíentemente, a psicanálise não poderia se inscrever no campo da razão científica. Entretanto, esse embate teórico já fora apontado e se iniciara hã várias décadas, com as críticas de Wittgenstein e de Popper à ciemificidade da psicanálise. Para Wittgenstein, a psicanálise nüo poderia se inscrever no discurso científico, , na medida em que as suas proposições seriam sem sentido, isto é, não seriam passíveis de serem veriticadas pela validação empírica,13 enquanto que, para Popper, a não cientifiCidade da psicanálise se fundaria em sua impossibilidade teórica em prouuzir argumentos para a sua refutabilidade. 14 Com as fil osofias de Popper e de Wittgenstein nos defrontamos com duas epistemologias fundamentnis da modernidade, que criticaram rad ical·
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mente a psicanálise como ciência, e que tiveram um impacto gigantesco na cultura anglo-saltônica. Cabe recordar, porque isso é historicamente impor~ tante, que ambos os autores se fonnaram filosoficamente no Círculo de Viena, ape'sar de suas diferenças de perspectivas teóricas.
IV. Sujeito e interpretação na psicanálise A tradição francesa da psicanálise caracterizou-se pela tentativa sistemática de fundamentar uma leitura do discurso freudiano como uma ciência da
cultura e não como uma ciência da natureza. Seria preciso destacar que os enunciados do discurso freudiano deveriam ser considerados como se inscrevendo em relações de sentido e não em relações de causalidade. Neste contexto, a psicanálise se caracterizava do ponto de vista epistemológico como um saber da interpretação. Por isso mesmo, no campo dessa leitura teórica, destaca-se a questão da linguagem como a problemática fundamental do campo psicanalítico, articulada com a questão do sujeito. Nesta perspectiva. estabeleceu-se uma oposição fundamental na leitura crítica do discurso freudiano pela tradição francesa, onde se contrapunham radicalmente nesse discurso os enunciados metapsicológicos e os enunciados hermenêuticas. Nessa oposição considerava-se que os enunciados metapsicológicos eram tributários de uma leitura causalista do psiquismo, enquanto os enunciados hennenêuticos seriam decorrentes de uma leitura interpretativa. Estabeleceu-se, então, uma hierarquia teórica entre os escritos freudianos, de fonna que se os escritos metapsicológicos não eram desprezados teoricamente, eram, contudo, submetidos à grade de interpretação regulada pela perspectiva hennenêutica. Portanto, criticava-se a metapskologia freu~ diana pela presença massiva de pressupostos teóricos do mecanicismo fisicalisla, destacando-se, em contrapartida, o método de descoberta anunciado no discurso freudiano, fundado no espaço psicanalítico e na prática da imerpretação. Enfim, a solução teórica do impasse seria a retirada de qualquer autonomia epistemológica da metapsicologia, através de sua inserção no quadro teórico de um snber da interpretação. A genealogia teórica dessa linha de pesquisa encontra inequivocamente na leitura crítica de Politzer, empreendida sobre o discurso freudiano, a sua origem histórica e epistemológica. Em seu já clássico Crítica dos fundamentos da psicologia, publicado em 1928, Politzer·enfatizava o seu projeto teórico de constituição da "psicologia concreta", que já se encontrava em andamento, com o desenvolvimento da psicanálise, do behaviorismo e da psicologia da fonna. A denm:ninada "psicologia concreta" já se anunciava em estado de esboço teórico, daí o seu não acabamento, pelas realizações
LEITURAS SOilRE A CIENTIFlCIDADE DA PSICANÁLISE
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desses diferentes discursos psicológicos. Entretanto, preçisava ser pensada em seus fundamentos epistemológicos para se constituir como urna teoria coerente e marcar o seu rompimento com a denominada "psicologia clássica''. 15 Entretanto, a psicanálise se destacava na modernidade face aos demais discursos psicológicos, na medida em que constitufra não apenas uma leitura do sujeito centrada na linguagem, mas porque também construiu um espaço dialógico com a cura psicanalitica. Com isso, possibilitava a colocação em cena do sujeito concreto. Neste contexto, enunciou-se o conceito de drama como o correlato do sujeito concreto, falando para um outro, delineando então a sua existência em uma situação dramática. 16 . Se esses pressupostos indicavam a originalidade teórica da psicanálise, em sua colaboração impar para a construção da "psicologia concreta" e para a crítica da psicologia introspectiva, o discurso freudiano através da construção da metapsicologia corresponderin a um retorno à "psicologia clás.: sica". Isso porque a metapsicologia freudiana empreenderia uma leitura pretensamente causalista e mecanicista do psiquismo, que não corresponde ao seu grande avanço teórico, isto é, um método de interpretação do sujeito, centrado nas categorias de drama e de significação. 17 Enfim, o discurso metapsicológico seria uma espécie de obstáculo epistemol6gico18 para o desenvolvimento da psicanálise, cuja ruptura teórica com a "psicologia clássica" se realizou justamente pela constituiçiio de um método de interpretação fundado no sujeito. Em 1936, Dalbiez retoma, com outros conceitos, a mesma direção teórica definida pela leitura de Politzer, mas mantendo a mesma estrutura cótica. Assim, ao opor método psicanalítico (experiência analítica e interpretação) e doutrina psicanalitica (metapsicologia), destacava que a inovação freudiana se. fundava no campo do método de interpretação, enquanto que a doutrina metapsicológica não apresentava qualquer consistência teórica.19 Nos anos quarenta e cinqüenta, o existencialismo sartriano20 e a filosofia fenomenológica21 de Merleau-Ponty criticaram a psicanálise em seu registro metapsicológico, argumentando que essa leitura do psíquico era mecanicista, tendo como conseqüência nefasta a coisificação e a objetivação do sujeito. Em contrapartida, destacavam a inovação frelftfiana em sua leitura interpretativa do psíquico. Porém, a dimensão interpretativa da psicanálise deveria ser retomada em outras bases teóricas, ao se eliminar a metapsicologia freudiana, Se destacando aqui as categorias de existência, de íntencionalidade e de intersubjetividade. Da mesma fom1a, a oposição teórica entre metapsicologia e interpretaçio estava presente na leitura que Ricoeur empreendeu do discurSo freudiano nos anos sessenta, em sua pesquisa sistemática voltada para a
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construção de uma hennenêutica geral. 22 Assim, Ricoeur indicava a existência de uma contradição interna ao discurso freudiano, polarizado entre a energ_ética ~metaps!cologi_a) e o s~ntido (interpretação).2:r O campo teórico ~a ps1canáhse, porem. sena defimdo de fato e de direito como um saber da Interpretação, de maneira que as suas proposições energéticas deveriam ser cons1deradas num contexto eminentemente hermenêutica. Ape_sar de intelectualmente inspirado nessa tradição teórica, marcada pela opostçã~ entre metapsicologia e interpretação, Hyppolite pretendeu superar ess~ 1mpasse e ~ssa duplicidade de modelos de cientificidade pre~ntes no dtsc~rso freudtano. Assim, em vez de se descartar da metapsicologJa ~a.ra sub1mhar a henn~nêutica freudiana, Hyppolite enunciou que a duphc1dade de modelos ep1s!emológicos presentes no discurso freudiano indicava um problema teórico. Nesta perspectiva, formulou que tal duplici· dade revelava uma problemática teórica enunciada pelo discurso freudiano, através da qual~ procurava resolver o impasse entre os regisiJ'os da natureza e da .cu~tura. D1to de outra maneira, o discurso freudiano pretende~ se conslJ!utr como uma problemática que articulasse a filosofia da natureza e a filosofia ~o espírito, on<.le .a metapsicologia se inscreveria na primeira vertente teónca e a hennenéuuca na segunda. 24 Se o discurso freudiano solucionou e.ssa articulação é outra questão. mas seria essa a problemática teórica constituída pela psicanálise.
V. Linguagem e psicanálise ~ crítica de Hyppolite sobre a epistemologia do discurso freudiano já se mscreve no cont~xto histór~co da psicanálise francesa, marcada por um
grande desenvolvunento re6nco, que encontrou indiscutivelmente na pesquisa de Lacan a sua maior referência e inventividade conceitual. Interlocutor destac~dC: no pe~~rso intelectual de Lacan, tendo a filosofia de Hegel como a medtaçao mats Importante deste diálogo, Hyppolite já indica um outro momento histórico nas relações entre a filosofia e a psicanálise na França. Da mesma forma, Sartre e Merleau-P0111y também realizaram esta interlocu~ão. da filosofia ~om a psicanál i~e, tendo na figura de I,.acan o seu dialogante mdtreto, na me~1da em que ~altzaram us suas leituras críticas da psicanálise qua~do Lacan JU desenvolvta a sua interpretação do percurso freudiano. As med1ações teóricas aqui se realizaram através da filosofia de Husserl e de Heidegger, sem falar no lugar estratégico ocupado pela filosofia hegeliana. Entretanto, não há qualquer dúvida de que os ensaias de Hyppolile revelam uma ruptura importante. no diálogo entre a filosofia e a psicanálise, justamente porque a fHosofta se mostra lllU is penneáveJ ao impacto do discurso
LEITURAS SOBRE A CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE
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freudiano, podendo repensar em seus termos as proposições teóricas da psicanálise. Desde o início de seu percurso teórico na psicanálise, Lacan retomou em seus tennos a oposição conceitual traçada por Politzer entre metapsicologia e saber da inteipretação, em que critica os impasses epistemológicos da metapsicologia freudiana e ressalta a impmtãncia da psicanálise como saber da inteipretação. O que Lacan desenvolveu de maneira brilhante foi uma teoria do método psicanalítico que dispensaria a metapsicologia freudiana, principalmente em seu regisuo econômico. Em contrapartida, empreendeu a consiJ'ução rigorosa do método da interpretação e do funcionamento do dispositivo psicanalítico. Neste contexto, destacam-se as categorias de sujeito, sentido e in terlocuçiio, deI ineando-se o campo psicanalítico pelos eixos da linguagem e da imago. Desta maneira, baseando-se em Hegel, Husserl e Heidegger. assim como na psicologia d.:l forma e na etologia, Lacan propõe uma leitura do sujeito em psicanálise fundada na interpretação, onde o registro econômico da metapsicologia freudiana é descartado.25 Apesar da mudança radical em alguns de seus referenciais teóricos nos anos cinqüenta, com a introdução da lingüística de Saussure e a concepção de simbólico de Lévi-Strauss, a estrutun1 do discurso teórico de Lacan manteve a mesma posição crítica face à metapsicologia e fundou com maior rigor o campo freudiano c:omo um saber da interpretação. Neste contexto, a psicanálise foi definida como "o campo da fala e da linguagem", marcado pelas incidências do símbolo e pelo domínio do registro simb61ico, de maneira que o conceito de inconsciente foi <.letinido como "transindividual" e ordenado "como uma linguagem". 26 Foi neste momento tl:!óri<.:o e histórico que a cientificidade da psicanã· lise, segundo os cânones de um saber da interpretação, atingiu o seu apogeu e o iluminisma.psicanalítico foi alçado ao seu maior esplendor teórico. Assim, Lacan pretendeu fundar epi.stemologicamente a psicanálise na lógica · do significante, base teórica para a construção do conceito de inconsciente e da teoria psicanalítica d
VI. A étka e a política "los anos sessenta essa solução reórica já indicava as suas contradições e as suas impossibilidades, relacionadas possivelmente com os impasses apresentados no ato psicanalítico. Com isso, Lacan retomou o registro econômico da metapsicologia freudiana. trabulhando então, pela primeira vez em sua
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obra, o conceito de pulsão. Com a introdução do conceito de pulsão e a articulação correlata do regis1ro do real em psicanálise, o que está em questão é o projeto da psicanálise ser uma c iência. Com efeito, o que Lacan passa a enunciar é que a psicanálise é uma ética e não uma ciência. Como desdobra· mento teórico desta fomlulação surge a concepção de que no campo freudiano o inconsciente é é tico e não ôntico. 28 A inflexão final do discurso de Lacan marcou de forma contundente a ruptura interna da psicanálise com os cãnones de cientificidade, deslocandose a sua fundamentação do registro da ciência para o da ética. Entretanto, é possivel indicar tantbém esta mudança de paradigma, no exterior da psicanálise, no campo da filosofia e da história dos saberes. A leitura de Foucauh da psicanâlise é e loqüente na abordagem dessa mudança de paradigma que fundamentava a emergência histórica e o desenvolvimento do d:scurso psicanalítico. Assim. desde os anos sessenta, Foucault procurou inscrever a psicanálise no campo da política e da ética, colocando indagações cruciais para a sua fundamentação como ciência. Para isso. realizou uma arqueologia da loucura na história do Ocidente, destacando a constituição da psiquiatria e da psicanálise na produção moderna da loucura. Sem entrar aqui nos pormenores dessa monumental pesquisa, cabe ressaltar como Foucault diferenc ia a psicanálise da psiquiatria, exatamente porque a psicanálise pern1itiria que a loucura fosse reconhecida como verdade, ao inserir o louco no campo tmnsferencial e intersubjetivo da experiência psicanalírica.29 Neste contexto, é evidente o compromisso teórico de Foucault com a tradição interpretativa da psicanálise, como mostra o lugar que concedeu à questão da linguagem e da verdade no discurso freudiano. Além disso, é evidente o impacto teórico na sua leitura de algumas das concepções de Lacan. Não obstante, Foucault já circula num outro paradigma teórico, pois já não trabalha mais no campo definido pela oposição ciência versus nãociência, mas na construção histórica de práticas discursivas imantadas nos registros político e ético. Foi em sua genealogia da sexualidade no Ocidente e na construção de saberes sobre o sexual que o paradigma político se desenvolveu de fonna mais contundente, paro fundar a constituição da psicanálise. ~om efeito, Foucault passa a criticar radicalmente o modelo estrutural de Lacan e a lógica do significante, além da concepção do desejo em psicanálise. Ao desejo lacaniano. Foucauh contrapõe a vontade de poder de Nietzsche, inserindo então a psicanálise no dispositivo de poder da modernidade, como uma das formas privilegiadas de produção do sujeito.30 Assim, apesar de suas diferenças teóricas evidentes e da impossibili· dade de sobrepor essas duas leituras da psicanálise- Lacan pretende fundar
LEITURAS SOURE A CIF.NllACIDADE DA PSICANÁLISE
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uma ética do tlesejo e Foucault um:t ética na ••ontatle ele poder -,é nítido o deslocamento do ·pan.tdiglil:t teórico que regula a leitura da psicanálise. Com efeito, em ambos se destaca o deslocamento teórico do debate do campo 48 ciência para os campos da ética e da Política. Podemos dest:&e.nr também que a le itura de Deleuze sobre a psicanálise indica o mesmo deslocamento de paradigma teórico. 31 É nesse terreno que se joga agora os destinos teóricos da psicanúlise, tícando como evocação do passado a consideração da cientificidade da psicanálise como lugar privilegiado para a sua fundamentação teórica.
A filosofia e o discurso freudiano: Hyppolite, leitor de Freud
I. Renovação na leitura de Hegel Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu e1n 1968, contando com a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no campo da filosofia francesa, desde professor para o curso secundário na província até os postos mais avançados do magistério. Assim, ensinou na Universidade de Strasbourg ( 1945-1948) e na Sorbonne ( 1949-1954). Em seguida, foi diretor da École Nonnal Supérieure, onde ficou até 1963, quando então assumiu a posição de professor do Collêge de France, onde pennaneceu até sua morte.2 A obra que nos legou é admirável em diferentes dimensões. Ela se caracteriza não apenas por sua multiplic:idade- com Hyppolite demonstrando um pleno domínio do idealismo alemão e da filosofia modema3 -.como tanlbém pela originalidade de sua leitura de Hegel. Como especialista em Hegel, traduziu para o francês Afenomenologia do espírito,4 e nos ofereceu como tese um comentário magistral desta obm,5 que desde então constitui uma das fontes fundamentais para a formação de intelectuais interessados na filosofia de Hegel. Nesta retomada de pensamento de Hegel, o que caracteriza a interpretação de Hyppolite é o lugar fundamental atribuído ao discurso hegeliano na filosofia moderna. Vule dizer, Hegel n;io é considerado apenas um filósofo importante do século XIX dentre vários outros, que dada a sua relevância exige dos comentadores da história da lílosofia a realização da exegese de seu discurso. Pelo contrário, a filosofia hegeliana seria nesta leitura a matriz da filosofia moderna. Com efeito, pam Hyppolite o<.·ampo de incidência da filosofia de Hegel é mais abrangente, pois as problem:íticas teóricas delineadas pelo pensamento de Hegel encontram-se no fundamento da filosofia moderna. Assim, em sua leitura, as grandes tendências do pensamento moderno encontraram as 66
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suas origens nas problemáticas constituídas pOr Hegel e, ·por isso mesmo, estabeleceriam um diálogo pemlaneote com o discurso hegeliano, seja este realizado de maneira direta ou indireta. · No que tange à tradição filosófica francesa, a intrOdução do discurso hegeliano assumiria uma feição pm1icular e deveria ter um- efeito decisivo, além da característica a que nos referimos acima. Com efeitO:, para Hyppolite, os pressupostos da filosofia hegeliana permitiram introduzir a dímens4o histórica na leitura dos problemas filosóficos, perspectiva de abordagem que estaria ausente na história da filosofia na França de Descartes a Bergson.6 Autor fundamental na retomada histórica dos estudos hegelianos na França, ao lado tle Jean Wahl7 e Alexandre Kojeve,8 Hyppolite foi também a mediaçãofundamental para o e:itabelecimento de um diálogo fecundo entre a filosofia e a psicanálise. Esta arti~ulação entre filosofia e psicanálise foi possibilitada,por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo "retomo a Freud" promovido pela investigação de Lacan desde os anos cinqüenta. Evidentemente, este encontro teórico entre Hyppolite e Lacan não foi fortuito, pois apesar de enunciarem discursos diferentes e se inserirem em campOs diversos do saber, ambos se fundamentaram na filosofia de Hegel. Por isso mesmo, este encontro se inscreve na história da filosofia francesa, que desde os anos trinta retomou o pensamento de Hegel e construiu as bases teóricas para uma nova interpretação do seu discurso.9 Neste contexto, se empreendeu a releitura da filosofia de Hegel por J. Wahl, A. Kojêve e J. Hyppolite, na quul foi atribuído destaque especial aos textos iniciais de Hegel e principalmente A fenomenologia do espírito. 10 Nesta obra, a dialética do senhor e do escravo 11 ocupou uma posição fundamental para a elucidação do pensamento hegeliano e para a exegese da totalidade de seu discurso filosófico. Assim, mediante o destaque atribuído à dialética do senhor e do escravo, é sublinhada no discurso hegeliano a dimenstio dramática que marcuria a constituição do sujeito e não, como na leitura de outros comentadores do seu pensamento, a construção de um sistema filosófico, que teria realizado com sua lógica o ápice de sua reflexão teórica.
1/. A dialética hegeliana no ''retorno a Freud" Foi neste caminho metodológico e no campo desta problemática filosófica que se introduziu Lacan na pesquisa psicanalítica. Com efeito, a leitura de Hegel, mediada pela interpretação de Kojeve, 12 foi uma das condições de possibilidade para que Lacan empreendesse a releitura renovadora de Freud. Desde os anos quarenta, os escritos teóricos de Lacan revelam as marcas das fonnu!ações de Hegel, principalmente nos ensaios sobre o estádio
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do espelho, 13 a causalidade psíqt_•ica 14 e a agr~ssividnde. ~ D~sde então .foi se intensificando a presença do <.ltscurso hegelwno na teonzaçao promov1da P<>r Lacan, de fonna a se transformar numa refe~ncia p~adigmática q~e norteia a sua leitura da psican{•lise. Mesmo com a 1ntroduçao do referencial teórico da lingüística, possibilitado pelu antropologia estrutural .com .a mediação de Léví-Strauss 16· 17, a relerência hegeliana ainda n~rteou o ho~1zonte teórico de Lacan por muito tempo e orientou a sua rele1tura do d1scurso freudiano. Evidentemente, nlgumas problemáticas delineadas pela filosofia de Heidegger também or.ientanun a pesquisa de·Lncan deste período. mas a . incidência de Hegel produziu marcas indeléveis em ~u discur~. · Desde o seminário sobre a ungústul, 18 a perspecuva Jacamana, dehnead~ a partir de Hegel, começou a relevar alguns impasses teóricos importantes. que exigiram que Lacan repensasse a totalidade de seu proces~o. Aproble· má rica do real no discurso teórico dt: Lm:an começou progressivamente a se constitui-r e a indi,·ar um novo espaço 1eóri~o para a investigação psicanalí· tica. Assim, foi a !.!~l imitação do campo de simbolização possível no sujeito e na psicanálise que intpôs um limite ;\ abordagem de Lacan, ~té então norteada por Hegel. Entretanto, esses impasses teóricos não implicaram a recusa dos instrumentos conceituais entreabe11os pela filosofia de Hegel, mas significaram a sua retomada num plano de maior complexidad~, o~e se impusseram alguns limites que a psic.:un:ílise coloca para a dJalétJca hegeliana. . Neste contexto o "retorno u Fremi" renlizado por Lacan fo1 empreendido também através'de A fenomenologi(l do espírito, na qual Lacan igualmente destacou a relevúncia da dialética do senhor e do escravo. fio condutor na exegese de Hegel que orientou a tilosotia francesa nesse momento histórico. . . . Fundando-se nestn leitura do discurso de Hegel é que Lacnn conshtu1u um conjunto dê conceitos originais no c~unpo teórico da psicanáli~, como por exemplo o conceito de estúuio do espelho, e~tabele~e.ndo d1~erenç~ fundamentais com o que Wullon descrevera com mu11a argucul na ps1colog1a da criunça.' 9 Da mesma forma, retirou rm.licalmente as conseqüênci?s que esta perspectiva teórica entreabria para a retomada da problemática do narcisismo no uiscurso freudiano. Finalmente, mostrou não apenas a relevância, mas tambén~ a incidência destes conceitos no campo do processo psicanalítico, possibilitando então uma nova leitura da lógica q~e sustenta o ato psicanalítico. Nesta releit um de Freud, medi atia peln dialética do senhor e do escravo, o processo analítico se apresenta remodelado em. alguns de seus .traços fundamentais. Embora múltiplos, estes traços un1ficam-se num SIStema coerente, que revela a minuciosa articulação interna forjada por Lacan a 1
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partir das categorias filosótic:ts de Hegel. Não pretendemos tematizar a totalidade destes traços neste contexto, mas somente nos referir a alguns deles, considerando o momento inicial da pesquisa teórica de Lacan. Fundando-se no c.:onceito de estúdio do espelho, caracterizado como uma estrutura do sujeito e não apenas como um momento do desenvolvimento psicogenético da crian~·a - considerado então como uma dimensão constitutiva do ego e que desti na o sujeito à alíenação num outro, o qual é simultaneamente estruturant~ do sujeito20 - , Lacan pôde promover a releitura da agressividade em psic.:~múlise. Nesta perspectiva, a agressividade se apresentaria no confronto narcísico delineado entre subjetividades, sendo então uma experiência intersubjetira. O que implica afirmar que a agressividade não é um resíduo eliminável na estrutura do sujeito, que seria produzida pela "fn1stração" de uma " necessidade" instintiva que conduziria necessariamente o sujeito à regressão e conseqüentemente à agressão. A agressividade é uma dimensão fundamental na estrutura do sujeito, na medida em que este se constitui mediante a sua alienação num outro, que lhe oferece o suporte para a sua constitui~·ào. Enfim, a agressividade se apresenta . necessariamente no processo analítico, na medida em que neste conceito o sujeito é confrontado com a posir;ilo alienante que o constitui enquanto tal e diante do desejo de re<:onhecimento pelo outro.21 Por isso mesmo, o fenômeno clínico que Freud denominava de transferência negativa apreSt!nta-se desde o início de qualquer experiência de análise, estando na origem e no fundamento de qualquer processo analítico. Assim, a transferência negativa não seria um fenômeno secundário, atípico e portanto eliminável deste processo, como um resíuuo, uma vez que o confronto narcísi<.·o da figura do analisallle com a figura do analista produz no analisante uma fer ida narcísica Lh!cisiva, pois coloca em questão a sua auto-suficiência e sua demnnda de reconhecimento pela figura do analista. 22 Em uecorrência dest:1remodel:t\'ào do campo da experiência psicanalítica, o conceito de pulsão de morte foi repensado numa perspectiva dialética. Destn fornHl, Lat·~m empreendeu a t·ríticn da concepçilo biológica deste conceito fundamental da teoria psic:malítil"a, retinmdo-o do registro biológi· co e inserindo-o na dialética da intersubjetividade.2 3 Ao introduzir o con~eito Je re;tl em psicanálise, Lacnn pressupunha uma crítil:a anterior ao conceito freudiano de princípio de realidade. Assim, fo rmulou a existência de um campo psíqu ico inserido num "além do princípio de real idade"2 ~ como um p>~radi~mu 1eórico que seria anãlogo ao ••aJém·do princípio do prazer'' de Freud.h Fundamentado nesta critica, Lacan pôde retomar o conceito de real na psictul!\lise tendo como referência o discurso hegelimio, isto é," num contexto teórico que define inicialmente a oposiçllo entre o real e o racional, para afirmar em seguida que é da contradição entre
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o real e o racional que o real é transformável e inserido no registro do simbólico.26 Evidentemente, o que Lacan formulou posteriormente como o registro do real revela uma grande distância em relação à problemática teórica desse momento, pois a posteriori o registro do real revela o que é impossível de siinbolização para o sujeito. 27
111. Afilosoftafrancesa e a psicanálise Foi neste contexto histórico, caracterizado pela grande renovação teórica da psicanálise francesa, na qual o discurso de Hegel ocupou uma posição fundamental, que Hyppolite estabeleceu o diálogo inicial entre a filosofia e a psicanálise·. _ . Até então, a psicanálise era uma forma de saber que nao era devidamente considerada na tradição francesa, não apenas no campo da psiquiatria como também no campo da cultura em geral. A incorporação da psicanálise pela medicina, pela psiquiatria e pela cultura francesa foi bastant~ lenta, sendo o movimento surrealistn a e:tceção mais destacada nesta conJuntura histórica. 28 Não é um acaso, certamente, que Lacan tenha sido ao mesmo tempo influenciado pelo surrealismo, publicundo alguns artigos em revistas do movimento, e a figura fundamental na renovação da psicanálise francesa. Nesta perspectiva, pode ser considerado a personagem histórica que realizou a mediação entre a novidade teórit:a representada pelo discurso freudiano e a psiquiatria francesa.''9 Entretanto, seria necessária a supemção de alguns obstáculos fundamentais no contex 10 da cultura francesa desse período para que a psicaná30 lise pudesse ser incorporada e legitimada como uma modalidade de saber. Por ora, vamos subl inhar a existência de dois obstáculos que interessam à explicitação de no:;so tema, não pretendendo dizer co,1n isso que tenham sido os únicos. Antes de mais nada, o valor que a sociedade francesa atribuía à sua tradição cultural e à sua diferença face a outras tradiçõe~ n~s p~~eira~ décadas do século XX. A implicaçao disso no que concerne a ps1canahse fo1 decisiva em sua incorpor~ção pela cultura francesa, pois Freud realizou uma descoberta fundamental no campo do saber, que teve uma intluência imensa ao longo do século, trabalhando a partir dos impasses colocado~ pel.as investigações neuropntológicns e hipnóticas de Charcot nocampoda h1stena. Com isso, a França se viu privada de uma descoberta decisiva no campo do contemporfineo e teve no discurso de Pierre Janel, Uf!l d~s hetde~ros privile~iados de Charco!, um obstáculo importante para a d1fusuo da pSICanálise. 1
saber
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Evidentemente, esta questão detine upenos uma dimensão que ordena a oposição feita ao discurso freudiano pela psiquiatria francesa, principalmente se considerarmos a rivalidade enrão existeote dos franceses com os paises de língua alemã. Para ser incorporada por esta tradição cultural, a psicanálise teria que se apresentar como uma "psicanálise à francesa", segundo a interpretação reveladora formulada por Smimof.32 Esta não foi a única oposição importante para a incorporação do discurso freudiano na Fnmça e talvez nüo representasse o impasse decisivo. Além disso, a tradição cartesiana da filosofia francesa. definida pelo paradigma do consciencialismo, foi Olllm impossibilidade fundamental n~te processo. Para Freud, a filosofia da consciência sempre representou o mator obstáculo para a compreensão da psicanúlise e à sua conseqüente incorpora· ção como uma fom1a legítima de saber. Freud não dizia ironicamente que era preciso superar o "sintoma" consciência se quiséssemos reconhecer algo que nos enuncia o discurso psicanalítico~3 Nesta perspectiva, o ensaio freudiano "As resistências à psicanálise" foi escrito originalmente em francês para ser publicado num.a revista francesa. Freud definia, assim, de forma reveladora, duas modalidades maiores de "resistência" à psicanálise: a medicina e a filosofia da consciência. 34 Evidentemente, isso não é um acaso, tendo este ensaio destinatários precisos na conjuntura fmncesa. Por isso mesmo, fazia-se necessária uma refonnulação nos fundamentos da filosofia da consciência para que o discurso psicanalítico pudesse ser incorporado ao contexto cultural da França. Nessa perspectiva, a introdução da filosofia de Hegel, da filosofia de Husserl e da filosofia de Heidegger foi a condição de possibilidade para essa transformação teórica, na medida em que inseriram a problemática da consciência no contexto da relaÇ"ioentre diferentes consciências, de fonna que a problemática do sujeito passou a ser interpretada no campo da intersubjetivídade. Com isso, a cortstítuição da consciência passa necessariamente pela história que funda o ser da consciência na relação com outras consciências. Enfim, a consciência fundada na história é man:ada fum.lamentalmenle pela tempora/ülade. . Nesta transfonnação histórica da problemática da consciência, no conte:tlo intelectual francês, diversos autores ocupar.lm uma posição fundamental. Dentre esses encontram-se os maiores teóricos da filosofia francesa desse período, como Sartre, Merleau-Ponty, Hyppolite etc ... Para quase todos, a psicanálise represemavo, em alguma medida, uma indaga,ão para a reflexão filosófica. Esta indagação podia ser teoricamente s.oluciouada, apresentar impasses complicados ou ser defmitivamente descartada pelo discurso filosófico, pouco importa, mas a problemática do inconsciente colocada pela psicanálise não podia mais ser desconhec ida como acontecia,
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ou recusada pura e simplesnieme. Es1a mudân\'a teórica indica a refonnulação histórica que se processou no cont~xto úa filosofia france.sa. Não vamos re
ainda permanecem utuai:;. Por isso mesmo. o diálogo de Hyppolite com o discurso freudiano continua <~tual, apesar do contexto histórico em que se constitui e de suas ref~r~nc i as pr~isas ao campo intelectual da filosofia · · francesa.
TV. Uma leitura jilosójica de Freud Como dissemos, o diúlogo de Hyppo\ite com a psicunálise se realizou através de Lncnn, sendo através dessa mcdia\'ão que se tomou possível unra leitura tilo'sófica de freud. Em contrapartidgia de llusscrl. :i filosofia existcndal de 1-Icid?gger e cl'e Sartre t:un~m ot·upariÍill um lugar importante ·nesse dialogo com a pskanúlise, eml>ori1 se situassem em posição secund:'1rhi face à inn ~u~nda de· Hegel. ·
A FltOSOf.'IA E O DISCURSO FREUDIANO
Podemos agora acompanhar o esforço teórico de Hyppolite para articular as proximidades e as d iteren~:as entre o projeto intelectual da psicanilise e o projeto da analíti<.:a existencial. A referência ao campo intelectual francês se encontra aqui presente, pois se o pensamento de Heidegger ocupa o lugar de paradigma da filosolía existencial, o debate com Sartre se realiza de modo direto e indireto, na medidn em que este realizou críticas importantes a.o discurso psicanalilico neste t:ontexto bistórico40• 4 t. Da mesma fonna, Hyppolite estabeleceu alguns contrapontos entre Freud e Bergson, indicando as diferenças entre seus projetos teóricos:u Outra refetência fmn<:esa importante, retomada criticamente por Hyppolite, é a distin~·ão estabe lecida por Dalbiez entre método e doutrina em psicanálise. Porém, enquanto Dalbiez enfatizavws tk fh:ud. Tcm·se o sentimento de uma dcsl.'oocrta J>Cill.:\ll;t, <.l~ umtr;cl>alho em profundidade que não cessa jamais de colocar em qucst<1o scu.s próprios resultados p:tra abrir novas pcrspccliv:1s .~~
Em seguida. 6·prct·iso destaca~· merodologic&miente que a problemática da psicanálise se insere no con ll'Xto da filosofia contemporânea, isto é, â
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matéria-prima com que tmbalha a psicanálise é análoga à matéria-prima processada pela fenomenologia e a filosofia existencial. Por isso mesmo, são internas as relações da psicanálise l'Om as grandes tendências do pensamento contemporâneo, pois a psican(t)isc :><.: revela também como uma filosofia da existência e do destino hwnanos:
... Eu partia da convicçl1o de que a filosofta contemporânea era inseparável da psicanálise, que a fenomenologia ex.istcricial e a analítica existencial se inspiram nela, e da convicçl\o igual de que a psicantíl~se era também uma filosofia da existência c do destino humano. Esta conv JCÇ1io se ancorou em mim pc lu leitura menta das obras de Freud e a meditação sobre.as obras dos filósofos atuais. Dito de outra maneira. eu encontrava um clima comum, problemas comuns...4s Nessa perspectiva, Hyppolite reconhece que Freud não é somente um médico que desco briu uma nova moda Iidade de tempêutica para a.s neuroses, nem apenas um neurologista criativo e um psicólogo talent_o~o , ~as "um fil ósofo de primeira grandeza, ou antes um destes homens de gemo (tao raros) • ..46 que desvelam, descobrem uma v1a nova... . Porém, se a problemática delineada pelo discurso freud1ano nos relatos clínicos se insere no campo da filosofia, é preciso que a descoberta de Freud se apresente como um "método concreto e fecundo, ~ue é mais a descoberta de uma problemática do que um sistema acabado". 7 Assim, se o método freudiano não é um sistema fech
... Para apreciar a sign ificar;ão filosóticn da obra fr~u.diana é nec~ssário não temer ir além de ccrms fórmulas do Mestre, c CJtphcJtar um sentido que ele formulou nitidamente. Assim se manifcstarti o carâter altamente filosófico desta cJtploração e desta obra.4l! Consideremos, então, a dualidade de modelos que ordenam e per· meiam o discurso freudiano, onde pod~:mos depreender a contraposição no psiquismo entre representuções da nature.za e da ~igni~caçã?, isto é •. entre a ordem da causalidade e a ordem do sentJdo. Assun, e prectso considerar a existência da "linguagem positivist;l" de que Freud se serve pennanente-1 •1 ' ·o cam·tnho" ,49 mente em seus textos, mas que e, ...1nauequaua para o seu propn pois o que a psi<:análíse busca pemwnentemente é a "relação entre ~íntomas, sonhos, acontecimentos da vida psíquica e sentidos ocultos que sao a fonte dos acontecimentos" .50 Qual a razão dessa inadequação? Ora, esta inadequação se coloca porque Freud utiliza freqüentemente um modelo "positivista", de caracterís-
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ticas energéticas, para a representação do psíquico, que se contrapõe ao el'.ame minucioso no plano da significação que ele realiza na interpretação dos sintomas e das outms formações do inconsciente. Assim, existiria um contraste e mesmo uma contradi~·ão entre o "materialismo da energia" e a "análise intencional". 51 Apesar de Freud sempre se manter metodologica~ mente no registro da significação, ele "jamais abandonarã completamente esta representação energética".52 Nesse contexto, Hyppolite estabelece um princípio metodológico importante para a leitura do discurso de um autor, pois não impõe ao texto de Freud um modelo a priori, mas considera a dualidade de registros como o índice de uma questão importante,
... ~ necessário evitar. talvez, trair Freuo escolhendo um:~ interpretação contra a outra, pois ele pretendeu uma espécie de síntese à qual niio pôde chegar, e existe uma originnlidndc neste misto, na recusa de separar uma fllosofia da natureza e uma tilosofia do cspfrito. Vai-se sempre em Freud de uma imagem naturalista a uma compreensão, c vice-versa...53 Assim, onde Dalbiez destacava a oposição entre método e doutrina psicannllticos, Hyppolite sublinhava a tentativa de Freud em articular uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito. Evidentemente, pretensão teórica não realizada por Freud, mas reveladora da problemática que esse constituiu e indicou panl superar o dualismo entre o corpo e o espírito. O conceito de pulsão (Trieb) - onde se perfila a oposição entre força e representação54 - . que ocupa o centro du teorização freudiana, indica que foi esse caminho teórico que Freud desenvolveu em sua pesquisa e que encontrou diferentes impasses que o conduziram à transfonnação de sua representação do psiquismo. Porém, é no campo da interpretação do sentido da experiência do sujeito que se revela a riqueza do método psicanalítico. Hyppolite destaca como Freud constituiu um método fecundo para a hennenêutica do sujeito, que ultrapassa bastante o horizonte de um cientificismo estreito onde se pretende inseri-r o projeto freudiano. Foi trilhando esse caminho metodológico que Hyppolite valorizou as minuciosas interpretações forjadas por Freud, baseadas na experiência intersubjetiva da clínica psicanalítica, para explicar a constituição do sujeito. Assim, as descrições clínicas legadas por Freud foram retomadas por Hyppolite como indicadores seguros de uma aventura intelecuml que Freud se permitiu percorrer e foram a condição de possibilidade para uma rel1exão origin:tl sobre o sujeito no pensamento contemporâneo. Neste contexto, A interpretação
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foi articulada de maneiro sistcm:1ti<:n a interpretação do sentido que ordena a e~periência do sujeito. Assim, se é por esse viés llll!todológico que o discurso freudiano colocou a problemática da constituição do sujeito pela interpretação do sentido da sua história e do seu des~jo, Hyppolite se pennite retiror daí então as conseqüências teórit·us indic.:ad:1s pelo c:uninho freudi ano. Se estas conse· quências nem sempre foram explicitadas pelo discurso freudiano, foram contudo indicadas e é isto
Assim , n e xpcri~ncia dram:'1 til·a de l·onstitt•i~·fto do ·sujeito em A {ellomenologia d o espíriw é interpretada pdas L·ategorias do processo psicanalí-
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tico, na qual se destaca a tragédi:t de Édipo, tal como este foi descrito por Freud em A interpretaçlio dos sonhos. Estabelece-se então uma analogia entre as problemáticas do sujeito na psicanálise e nn filosofia de Hegel: ... é num esplrito que não é tiio diferente d11quele da psicanálise freud iana nestes textos, que nós ensaiaremos encarar, por uma interpretaçlo propriamente retrospectiva, a fenomenologia de Hegel. Reler assim a Fenomell()logia consistiria a encarar a tom Iidade dcst:l obra ~o diflci I c sinuosa como a verdadeira tr:1gédia de! Édipo da totnliuadc do espirito humano, com talvez es1a diferença que o desvclamcnto t"tnal - o que Hegel denomina "saber absoluto"- permanece arnbiguo e enigmático:''
A categoria de intersubjetividade ocupa uma posição estrat~gica na leitura de Hyppolíte, sem a qual não s~riu possível interpretar o percurso do sujeito ~o ato psicannlít ico e na "fenomenoloiia do espírito". Assim, é necessário não apenas a presen~·a mas também a antecipaç1io, lógica e histórica, de um sujeito para que um outro sujeito possa efetivamente se constituir. Com efeito, a passagem da consciência natural para a consciência de si .somente seria possivel pela media~·ão de uma outra consciência que polnnzn o processo dramático e pemlite à primeira consciência a experiência de uma série de figuras descritas por Hegel em sua obra. Da mesma forma, o ato psicanalítico é inscrito neste contexto dramático, no qual a figura do analista ocupa um lugar que é a condição de pos.sibilidade que pennite o acesso da tigura do nnalisante à posição de sujeito. Então, as figums dromáticas, mediante as quais o sujeito se representa e se apresenta no longo do processo analítico são análogas às figuras descritas por Hegel no percurso da consciência em A fenomenologia do espírito. Com isso, a dimensão metafísica da psican(rlise se esbÔça com traços bem delineados para Hyppolite. Com efeito, Hyppolite sublinha no que existe de mais fundamental no discurso freudiano, que é u des<:oberta do processo psicanalítico centrado na transferência, uma "inquietação filosófica fundamental de Freud, que se dissimula atrás de uma lécni<.:a terapêutica". 59 Por isso mesmo, é preciso repensar o que significa a idéia de '\·ura" pela psitanftlise e indagar se se trota de uma modalid:1de de ..lerapêutka", pois na perspectiva freudiana a problemática da "cura" assume uma dimensão metafísica, implicando o acesso do sujeito à vertlade de sua história e do seu desejo.60 Enfim, a questão da "cura" pela psicanálise desembo,·a na problemátka da verdade, a questão filosófica por excelência.
Desejo e promessa- encontro impossível O discurso freudiano sobre a religião* ..No principio era a açlo" S. Frcud, Totem e Tabu I
1. Leitura metodológica A relação entre a psicanálise e a religião pode ser investigada de diferentes pontos de vista, se considerarmos a perspectiva das diversas ciências humanas que poderiam assumir esta problemática como objeto
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impõe, então, é uma interpretação dessa variação histórica. Da mesma fonna, as leituras que a religião realizou da psicanálise não são idênticas, mas apresentam oscilações significativas, na medida em que o discurso religioso passou· de uma repulsa absohna da psicanálise para um reconhecimento relativo; como, aliás. se realizou com outras fonnas de discursos. Nesta leitura, privilegiaremos o pólo .. psicanálise", de maneira a circunscrevennos a interpretação psican:11ítica da religião. Delimitando mais ainda o objeto deste ensaio, nossa pretensão é traçar de modo esquemático a leitura empreendida por Freud do discurso religioso, pois a pers~va pós-freudiana se distanciou fundamentalmente das linhas definidas em seus primórdios, como .indicaremos de passagem nesta apresentação. Além disso, é preciso destacar que o discurso religioso, que é o referente do discurso freudiano, é aquele representado pela tradição judaicocristã, pois foi com esta tradição religiosa que a psicanálise se confrontou em seus primórdios, tanto na cultura européia,quanto na norte-americana. Enfim, falar em religião para a psicanálise, remete necessariamente para ~sta tradição religiosa. Uma leitura mais ac urada dos escritos freudianos talvez revelasse neste discurso uma diferenciação face à tradição judaico-cristã, de fonna que esta se diversificaria nas suas várias forma~·ões ético·religiosas. Nesta pers· pectiva, a ética freudiana com sua obstinação pela verdade e sua reverência pela lei simbólica se mostraria mais próxima do judaísmo e até mesmo do protestantismo do que do catolicismo, sendo este talvez o foco privilegiado da crítica freudiana. Entretanto, não vamos explorar neste ensaio esta problemática, que se abre para o campo da ética.
TI. Memória e reminiscência Mesmo definindo o objeto especítico deste trabalho, vamos enfatizar estas variações discursivas entre psicanálise e religião, à guisa de introdução, pois são do maior interesse histórico, na medida·em que nos indicam a diferença e a proximidade entre estas fonnas de saber nos primórdios do movimento analítico e na atualidade. Se na perspectiva freudiana a psicanálise assumia uma postura crítica face ao discurso religioso, na atualidade mantém uma relação de razoável coexistência pacífica. Não queremos dizer com isto que no discurso freudiano não se reconhecia a relação do sujeito com o universo do sagrado, o que seria uma grossa bobagem, mas que na atualidade os psicanalistas não consideram mais uma impossibilidade radical a convivência do sujeito com a psicanálise e com a religião, ou mesmo que seja psicanalista e crente de wna fé religiosa. A indagação que se impõe aqui é o que se processou com
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a psicanálise para que se realizasse esta transfonnação radical no registro dos valores. · · · Da mesma fonnn, ns religiões católica e protestante repudiavam ini·cialmente a psicanálise. considenmúo o seu discurso um atentado moral aos valores fundwnenlais du· cristandaJe.- Por lsso·mesmo, seria uma práiica potencialmente perigosa ao rebanho ue fiéis. Considerada pansexualista, a psicanálise era represe nta~a como uma amença pnra a instituição familiar e promoveria, pottanto, n desordem social. . Tematiz:mdo il problem!íti1:a da sexualidade em sua relação com os valores morais fundnmentnis - retirando a sexu:liidade do registro biológico, formula.ndo a exislência J a sexualidade infantil e fundando a ética numa matéria-prima cuja origem é sexual - e desdobrando a sua teoria numa prâtica clínica que incidia em indivíduos singulares, a psicanálise era representada como umn arne:wa à cstnllum da "moral sexual civilizada" e ao interdito cristão de não se falar no sexual. Enlim, se o sexual é um "mal" necessário, este deveria se limitar à sua função de reprodução da espécie, não sendo aberta qualquer possi bi Iidade para que o sexual se fu noasse no principio do prazer e muito menos no além do principio do prazer, pois com isto reinaria a desordem social. Até os anos cinqüentu, a psicanálise era representada pela religião como signo da desordem, que niio somente a crilica\·a enquanto ameaça de dissolução dos bons costumes, como também proibia que seus fiéis se submetessem u um processo analítico. Os padres
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grupo de inlelectuais. A uifusão do movimento analítico em outros países europeus se processava, ruas ú in~:orporação tle novos adeptos se realizava também enlre pessoas oriund:ts dn comunidade jm.laica: Knrl Abraham (Aiemnnhn), Erncst Jone:; (Inglaterra), S(mdor ferenczi (Hungria) etc., para nos referirmos às figums mais eminen1es. Esta referência étnica do grupo originário era uma fonte permanente de preocupação para Freud, que 1emia que a psicanálise fosse representada como umn "ciência judaica".~ Por isso mesmo, o engajnmenlo de Jung no movimento analí1ico foi um acomccimcnto da m:lior relevância no percurso freudiuno, pois representava não apemts uma figura importante no pensamento psiquiátrico de entfio - ao lado Jo seu mestre l31euler, eminência teórica do discurso psiquiálrico em língua alemã, trabalhando ambos no hospital Burghõlzli de Zurique- como lambém significavtt a abertura do movimento psicanalítico para a Suíça protestante. Através de Jung, a psicanálise não só se retirava do gueto judaico. inserindo em seu movimento figuras de outras fomtações étnicas, corno se aproxima va t<~mbém do maior centro psiquiátrico europeu do início do século. Enlim, através de simpatizantes como Jung e Bleuler, Freud obtém o p:tssaporte uefinitivo parn não permanecer restrito ao mundo vienense e judaico, projetmdo a psicanálise na Europa e iniciando o seu reconhecimento internacional. Além da imporlância Jas pesquisas psicop:llológicas de Jung e de seu brilhantismo intelecwal, pois não nos esqueçamos de que Freud escolheu-o como seu ht!rdeiro na direção do movimento psicanalítico intermt<.:ionu1,7 é evidente que o apego afelivo e as conciliações políticas de Freud com Jung se deveram" estas razões. Porém, é preciso considerar que Freud teve 11 coragem sufidcntc para romper com Jung, quando este passou a realizar articuht~·ões da pskanálise com a psiquiatria e com os pressupostos da ética protestunle. insustenlá veis para as concepções do discurso psicanalítico. Esta problemática por si só e.'(igiria toJo um desenvolvimento, para indicar as relações orgânicos exi st~ntcs p
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Pvrém, desde os anos quarenta se transfonnou progressivamente o lugar da psicanálise no espaço social, sendo atribuídos a esta reconhecimento e prestígio, que produziriam possivelmente alguma fonna de confusão em Freud que talvez se perguntasse se a psicanálise que adquiriu tanta reputação social ainda é a mesma que ele constituiu. Não dizia Freud, quando ia realizar sua primeira viagem aos Estados Unidos para proferir conferência na Clark University,9 que os americanos ainda não sabiam, mas que estava levando a "peste" para eles? Assim, os anos quarenta e cir.qlienta marcaram a grande epopéia da psicanálise nos Estados Unidos, regi:;trando-se em seguida o seu esvaziamento progressivo. 10 Nos anos ses.senta e setenta o movimento psicanalítico se expandiu na França, principalmente com Lacan, 11 e após este período começa a dar sinais de retra<;ão. No l3rasil, o processo foi mais tardio, realizando-se sua difusão nos anos setenta. Não cabe discutir aqui as razões da ascensão e da relativa queda de prestígio da psicanálise, mas somente indicar que, com o prestígio que adquiriu a instituição psicanalítica, ela se beneficiou da própria modernização de valores dos quais a psicanálise foi um dos instmmentos sociais de remodelação. Neste contexto, o discurso religioso não repele mais a psicanálise como outrora, mas convive com esta reconhe<.:endo-a como uma modalidade de saber que existe no espaço social. Isto não implica o apagamento das diferenças fundament:tis que existem entre a psicanálise e a religião, pois em certas tendências do pensamento católico continua a existir uma hostilidade latente face à psicanálise. Recentemente o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro não apontou a relaÇão ex istente entre a expansão da violência no contexlo urbano e a cultura permissiva possibilitada pela psicanálise? t2 Porém, na economia interna de nosso ensaio, estas questões são importantes somente como uma forma de introdução, servindo para nos aleriar quanto a um possível equívoco de pressupor qualquer superposição entre as concepções psicanalítica e religiosa do sujeito e do mundo, pois estas são essencialmente divergentes. Nessa perspectiva,· pretendemos agora destacar alguns argumentos cruciais do discurso psicanalítico, mediante os quais Freud pretendeu empreender a crítica da i/usao religiosa e assimtlar a diferença fundamental que · existiria entre a psicanálise e a religião.
/li. A cura e a salwtçlio A correspondência emre Freud e o pastor Ptister, mantida de fonna sistemática entre 1909 e 1938, constituí talvez o arquivo discursivo mais importante para baliz.annos a relação entre os discursos psicanalítico e
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religioso. considerando que algumas das teses fundamentais deste debate foram assumidas na vivucidade de um diálogo amigo e cordial, em que os interlocutores assumiram posições discordantes. Assim, Freud pontuou as impossibilidades colocadas pela inserção da psicanálise na prática pastoral, atividade de Pfister, enquanto este indicava as modificações que imprimia no discurso psicanalítico para direcionar a sua prática pastoral de "salvador de almas". 11•14 Destacaremos apenas o comentário de alguns fragmentos desta correspondência que remetem ao que é estrutural na crítica que Freud realiza do discurso religioso, de tünna a podermos retomar outras referências do discurso freudiano sobre a religião. Assim, numa carta datada de novembro de 1928, quando a discussão com Pfister já estava num tom acalorado e se acentuavam as diferenças existentes entre as éticas psicanalítica e religiosa, Freud fonnulou a relação surpreendente que estabelecia entre as suas duas últimas obras, "A questão da análise leiga" 15 e "O futuro de uma ilusão".t6 Pela primeira, pretendia proteger a psicanálise con1m os médicos, e pela segunda protegê-la dos padres: Nilo sei se você apr~cndeu bem o elo secreto que existe entre a antílise para os não-médicos e a ilusão. No primeiro, pretendo proteger a análise contra os méJicos. no outro, contra os padr~s. Gostaria de conceder-lhes um estatuto que ainda não eJ~iste, o estatuto de pastores de almas seculares que nllo teriam necessidade de ser médicos e não teriam o direito de ser sacerdotes.t7
O que é notúvel neste fragmento da correspondência é, antes de.mais nada, que Freud aa1icula a medicina e a religião num mesmo conjunto e as opõe em bloco à psicanálise. O que implica afimtar, por um lado, a especificidade do campo psicanalítico face aos campos médico e religioso, que se desdobra evidentemente numa indicação de diferentes formas de racionalidade. Por outro, Freud destaca enfaticamente a existência de uma ética particular que deveria nortear a prática da psicanálise, onde os analistas seriam "pastores de nlmas seculares". Evidentemente, as racionalidades terapêutica e religiosa não são idênticas e, considerando certos aspectos, até mesmo opostas. A oposição se funda na diferente relação que a medicina e a religião estabelecem com o discurso científico. A medicina pretende se basear nas diferentes ciências e se instrumentaliza em sua prática em discursos científicos, o que não é o caso da religião que se funda na fé. Com efeito, mesmo quando se baseia nas aquisições fornecidas pelo discurso científico, o que é inevitável numa cultura penneada pelos valores do cientificismo, a religião orienta-se fundamentalmente pela fé e pela crença.
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Ce11ameme, encontramos na oposir;ão ciência/crença um dos alicerces fund amentais da crítica freudiana da religião. Assim, a exigência da comprovação empírica e da demonstração da verdade referenciada pelos critérios da razilo científica é uma das dimen~ões essenciais da crítica freudiana do discurso religioso. Nesta perspcçliva, Freud é um dos herdeiros do pensamento do século XVIIJ, pautando-se em sua indagação teórica como um verdadeiro discípulo do Iluminismo, como lhe classifica Pfister com muita perspicácia. 18 Entretanto, é prec isocin:unscrever esta questiio nos termos em que ela se formula no discurso freudiano. Assim. a psicanálise pretende realizar uma critica contundente da ilusão humana, considerando-se que a ilusão do sujeito não se funda na lógica do mtendimento mas na lógica do desejo, como foi assinalado por Frcud em "O futuro de uma ilusão". 19 A ilusão não se restringiria à idéia de um erro do intelecto, mas seria produzida pela pretensão do desejo de lJliC ulgo seja aquilo que não pode ser. Portanto, ciência e crítica da ilus;jo constituem aspectos da mesma problemática no d isL·urso freudiano, trtH;~111do as fronteiras do campo da ética psicanalítica, onde esta se funda no desejo. Emão, o sujeito marcado pela experiência analítica <.! e veria estar abeno ao questionamento de suas certezas e de suas ilusões, pois aquilo que o instigu no processo desta experiência é a indagação sobre os destinos do seu desejo e, por isso mesmo, daquilo que orienta a S!ia produ\·tlo ilusória. Esta formulação se npresenta eventualmente nos escritos freudianos sob um sabor evolucionistu e positivista. Assim, Freud retoma em Totem e tabu uma interpretação então em voga. de cunho evidentemente evolucionista, segundo u qual a humanidade teria passndo de uma idade originalmente mágica para a idade cientítica. pela mcdia~·ão da idade religiosa. A insegu· rança do homem diante tla natm-eza, pela imponderubilidade desta e pelo desconhecimento humano das for\·as que a regem, colocaria necessariamente .o homem frente à demanda de upcl:lr pam o mundo do além, justifi cnndo então o período religioso da história da humanidade. Neste contexto, o domínio do homem sobre a natureza pela conqqista da ciência seria a condição de possibilid:tde de sua emancipa~·iio, tanto das intempéries da natureza quanto do mundo c.Jo além, ~tbrindo-se então para o sujeito a possibilidade de constru~·ão de sua história.20 . Evidentemente, quando se s~rve desta construção mítica, Freud está preocupado em repensar a retomada deste puradigma no registro da constituição da subjetividmle. Assim, çada infante reviveria esta epopéia em sua constituição como sujeito, tendo tjue apelar e se sustentar em figuras parenlais que seriam necessariamente onipotentes, diante do desamparo fundamental (Hiljlosiglceit) que camcteriza sua posição origin:íriu.21 Mediante
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esta construção positivista do udvento da idade da ci!ncia na história, é a estruturação do sujeito que se enuncia no discurso freudiano, onde o sujeito conquista o domínio sobre a imprevisibilidade de seu corpo, do mundo e do Outro, superando assim o seu desamparo originário. Porém. destacando a oposição c iêncialcrença no contexto da lógica do desejo como o critério fundamental a ser considerado na crítica freudiana da religião, mesmo assim Freud reuniu a medicina e a religião num conjunto que se contrapõe à psicanálise. Portanto, a aproximação que o pensamento freudiano realiza entre os discursos médico e religios.o não se baseia neste critério diferencial, pressupondo outro fundamento comum. Que fundamento seri~• este'! A problemútica do desejo e da ilusão nos oferece ainda o instrumento crítico onde o discurso freudiano pretende manter a sua diferença ética e su<~ especifkidade teórica face à medicina e à religião. É preciso agora uma outr~1 inflexão nesta problemática, para destacar como os discursos médico e religioso po<.lem se encontrar num certo ~eg istro, apesar de se distinguirem num outro. · Nessa perspe<.:tiva, podemos delinear a questão considerando a dimensão de promessa que, de maneira implícitu e explícita, orienta a medicina e a religião em suas tl iferentc s práticas sodais. Então, é na promessa de um bem, de um valor tr.msceJt:utc,l)UC:: os discursos médico e religioso direcionam as suas práticas-o que não é o caso da psicanálise, que pretende apenas que o sujeito se encontre com o seu desejo. Enfim, enquanto a psicanálise não pretende prometer nada ao sujeito
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se constituiu pela anatomia patológica.23 Com isso, a idéia da morte adquiriu a posição de ser operador conceitual da idéia de vida. Assim, com Bichat a vida se definiu como o "conjunto de forças que se opõem à morte", vida e morte consideradas como os alicerces da medicina moderna.. Mais do .que isso, foi realizada uma inversão crucial entre estas categorias, pois com a anatomo-clínica é a idéia de morte que adquire a posição de valor epislemoló_gico fundamental, regulando então a concepção de vida. 24 E no contexto dessa leitura nrqueológica da constituição da medicina moderna que Foucault p
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diano- principalmente em seu percurso final iniciado nos anos vinte, que se materializou na formulação da ex istêncía da pulsão de morte e de um além do princípio do prazer3 t - evidenciá as impossibilidades colocadas para o sujeito de sustentar as ilusões ilimitadas de seu narcisismo. Então, o sujeito é confrontado com os limites de sua existência e com o horizonte possibilitado por sua história. Foi nesse contexto também que Freud escreveu grande parte de suas assim denominadas obras sobre a cultura. O que não é um acaso, certamente, pois foi apenas nesta virada cn1ci:1l de seu pensamento que as impossibilidades existenciais do sujeito se colocavam com maior vivacidade para a sua indagação teórica. Porém, além dessa rnzão, que é da ordem do fat o, colocase também uma rnzão da ordem do direito, porque é nas formações imaginárias da cultura que o sujeito encontra ns condições de possibilidade para formentar as ilusões de seu narcisismo. Forma de racionalidade que pretende delinear a singularidade do sujeito desejante, a psicanálise constitui uma modalidade de ética bastante original na modernidade, e (.'UjOS pressupOStOS diferenciais indicadOS até agora apenas esboçam a sua oposição üs diferentes éticas que fundam as promessas rel igiosn e terapêutica.
IV. Unidade e multiplicidade no sujeito Assim, é na tematização de uma ética fundada no desejo que podemos delinear a questão que contrapõe a psicanálise e a religião. A problemática do desejo indica ponlos cruciais que perpassaram o debate de Freud com Jung e com o discurso religioso em geral, pois assinala, por um lado, o lugar ocupado pela sexualidade e o seu correlato que é a perversão polimorfa infantil no discurso freudiano e, pelo outro, a concepção de sujeito que é descentrado do ego e do exercício da sua vontade. Esses pressupostos da psic;lOálise são cmTelatos, exigindo, por isso mesmo, que a sua articulação se esboce ao mesmo tempo. Assim, uma das formulações originais do pensamento freudiano é de que a individualidade não é uma unidade cemmda no eu - como é, aliC1s, a pretensão da instância psíquica do ego - mas uma multiplicidade de estruturas psíquicas e de pulsões que estabelecem entre si uma rehtção de c:onjlito. Este conflito é estrutural, o que impl ica dizer que o indivíduo" nunca se apazigua numa hannonia estável. Esta é apenas momentllnea, na medida em que o conflito impõe ao indivíduo um desequilíbrio constante. É a diversidade pulsional que submete o indivíduo a este desequilíbrio estrutural, desordenando a instância do ego e impondo ao sujeito um trabalho
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permanente de simbolização, para que a hannonia perdida possa ser restabelecida.32 A multiplicidade e a diversidade pulsionul revelam que o ser da pulsão é parcial por nuturezn, mas ~1s pulsões estabelecem entre si relações provisórias em unidaJes maiores e que estas se rompem nos fragmentos originários. num processo regulado pelo uin:unismo libidinaJ. 33 Considerundo esta multiplil:iuude de materiais do psiquismo, que se representa pelu diversidade dos ammjos possíveis entre as pulsiíes, é que o método do:: decifrnmento consiJ1JÍuo por f.reud toi denominado de psico-análise. Com efeito, como revela n metMo1~1 da ciência química de onde esta palavra se derivou, este método pretcnue ser uma wwlítica das pulsões, de fonna que o objeto do disçurso psicanalítico se fumla nas impossibilidades que se colocam para o sujeito quando as pulsões sexuais d~vem se inscrever no U11iverso da palavra. Enfim, é n;t ru1icula<;ão do <:orpo erógeno e do verbo que se apresen1am OS diferentes JeslÍllOS que podt:m se <.·o locar p:lnl as pulsões sexuuis. Foi no campo desta problemfuica quo:: se delinearam as diferenças b<ísicas entre Freud e Jung. Para este, sempre foi problema reconhecer a existência da p~rversidade pol Í111orfa infantil, da multiplicidade pulsional, do complexo de Ed ipo e do sujeito descentrado da instância do ego. Por isso mesmo, Jung procurou desscxualizar o ser da pulsiio- com a fonnulação de que o !nvestim~1~10 pulsional ~ realizado por uma energia psíquic_a em geral e nao pela !Jbtc.lo· 4 - medtante a qual a concepção da sexualu.lade identilicada com a genitalidade toi restabeleciua. Em conseqüência, com o primado da genitalidadc, o sexual não é mais representado como uma multiplicidade de pulsõl!s que buseam o prazer, pois o sexo visaria a reprodução. Com isso, a unidad~! do indivíJuo no registro do ego é reswumda pela inva lida~·ào da teoria da ti i,·ersidaJ e pulsional. Na prátint c:línica, 110 registro do CIH:aminhamento do proce.<>so psicanalítico, a concep,·ão uc Jung promove uma inwrsão metoJolôgica significativa, pois enfatiza a importâm:ia da opl!ração do:: :>in lese face à operação de análise, na medida em que o funcion>uJJ ento dl!sta de maneira isolada seria moralmente perigoso.35 Enfim, est:l consiucra\·ão de ordem metodológica é o desdobramento nec:ess~rio do restabelecimento da unidade do indivíduo na instância do ego e da uni fic:ac;:io da diversidade das pulsões no registro da genitalid:tde. ' Nesta perspecti v :~, f.reud rl!spondi:ll ao pastor Plister numa carta datada de 19 18, quando este se mostrava excessiYamcnte preocupado com os efeitos moralmente danosos da analítira das pulsões e realçava com Jung a importância da síntese, que mctoc.lologi<.:amente o que importava para a figura do analista era a descon.stru,·ão pulsional e que a síutcse uas pulsõcs cabia ao analisnnte:
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Na ttcnica psicanalíticau:lo ~ necessário um trabalho especial de sfntese; disto. o indivíduo se encarrega mdhor do que nós.J6
O pressuposto ético-religioso desta perspectiva de síntese das pulsões é bastante evidente, pois o que esti1em questão nesta demanda de síntese pelo analista é a imposição de uma norma de regulaçlio da sexualidade. A importância disso é que esta proposição continua sendo bastante atual na crítica que o discurso católico dirige à psicanálise , pois o que se questiona é a oposição entre um sujeito delinido como multiplicidade descentra<.l a e um sujeito uno e totalizado. Assim, no discurso de recepção do V Congresso Internacional de Psicoterapia e Psicologia Clínica, Pio XII sublinhava o dever, contra a perspectiva "psico-analítica", de apreender "o homem como
unidade e totalidade psíquka".n
V. O sujeito e o Outro Então, se é verdade a importância da concepção de um sujeito múltiplo e descentrado no debate da psican:.ílise com a rel igião, podemos retomar agora outras indicações deste pressuposto fu ndame ntal no disc urso freudiano. Esta concepção teórica foi delineada pelo d iscurso freudiano desde os seus primórdios, ao fundar a tópica do inconsciente,38 sendo rigorosamente representada em A imerpretaçt1o dos ~·onlws:-9 e formali zada nos escritos metapsicológicos de 1915.40 Assim, na oposiçi'io entre diversas instâncias psíquicas- inconscienrclpré-cons~:icnte/consciente - , Freud circunscreveu a distribui1;ão tópicu do psiquico em diferentes registros, que estabelecem entre si rela~·ões de <.:ontlito mediados pela censura. Foi na segunda tópi~a que esta oposição conflitante entre registros psíquicos se reve lou de m;meira mais dramática c indicou também de forma evidente a posição restrita ocupada pelo ego na pretensa hegemonia exercida sobre o psiquismo. Com deito, quando o psiquismo é uistribuído entre os registros do id, do ego e d'o supcrego, não :tpenas a heterogeneidade das instâncias se revela de moúo mais patente, corno também o ego se apresenta em sua dependênci:t rad ic~tl f:u.:e aos demais r(!gístros psíqu icos e face à realidade. Em O ego e o id, ensaio em que f-reud fonnalizou a então inovadora concepção uo psiquismo, a Jikrença da psicanálise frente à psicologia clássica -que conferi" ao ego :t hcgcmonin compl~ta sobre o indivíduofoi reprcselll:tda por uma mct:'ifora polí tic.·;~. Com efeito, o ego foi figurado como sendo um monarca constitucion:tl face ils llem:1is instâncias psíqu icas
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e às exigências da realidade, a quem deve se submeter para o estabelecimento de suas decisões e de suas açõcs.41 Nessa tópica, o pólo da realidade se apresenta como constitutivo do psiquismo do l>-ujeito, sendo representado pelo Outro face ao qual o infante se submete para se constituir como sujeito no registro simbólico. Assim, o Outro é a mediação necessária pela qual as pulsões como força (Drang) devem atravessar para se inserirem no uni verso da representação e, então, se inscreverem em representantes-representação.42 Além de revelar com maior nitidez a perda de hegemonia do ego sobre o psiquismo, é importante ressaltar nesta mudança de tópica a ênfase maior atribuída por Freud à dimensão econômica do psiquismo. Assim, a economia energética das pulsões passa a ocupar um lugar mais relevante na metapsicologia freudiana do qu~ no quadro teórico anterior. O que implica dizer que a questão da pulsüo como força se apresenta corno um tópico crucial. Com isso, a problemática da inscriçüo da força pulsional no universo da representação se impõe como um problema teórico fundamental e como uma questão clínica básica no contexto do ato psicanalítico. Com efeito, como estrutura psíquica a instância do id é mais abrangente do que o registro do inconsciente, pois além de inserir este como resultado das inscrições das pulsões no universo da representação, indica o pólo eminentemente pulsional do psiquismo. 43 Portanto, Freud destaca na segunda tópica a existência de um registro psíquico marcado pela economia das pulsões, sem apresentar qualquer representação. Em contrapartida, é esta força da economia pulsionul que impõe ao sujeito um trabalho permanente de inscrição da "pulsionalidade" no seu domínio. Assim, o registro do id é o campo por excelência da pulsão de morte (Tanatos), definida por Freud como o espa<;o psíquico da desintricação, da existência da pulsão em estado puro, que se regula pela lógica da descarga imediata. Então, a pulsão de morte se encontra na exterioridade da linguagem, não estando inscl'ita no universo da representação. Portanto, o ide a pulsão de morte são os herdeiros conceituais, 11este contelltO do discurso freudiano, da perversidade polimorfa infantil e das pulsões parciais que foram introduzidas por fremi desde Três ensaios sobre a teoria da sexuali·
dade. 44 Delineada pela figura do silêncio e como :.mtipalavra, por sua ellterioridade ao registro da línguagem, 45 a pulsão de morte se impõe ao sujeito "como uma medida de exigência de trubalho que é imposta ao psíquico, em conseqüência de sua ligação ao corporal",46 como formulava Freud como uma das características básicas da pulsão. Entiio, mediante o Outro, a pulsiio de morte se inscreve no universo da representação pelo trabalho de ligação empreendido pela pulsi1o dn vida (Eros).
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Porém, por esta "elligência de trabalho" permanente que impõe ao psiquismo, a pulsão de morte coloca o sujeito diante de seu desamparo fundamental. Este desamparo é estrutunal, o que implica afirmar que não é superado sem vestígios como um estágio genético-evolutivo do desen· volvimento do indíviduo. mas permanece como algo insistente que submete o sujeito a um trabalho pennanence de simbolização, pela dimensão traumá~ tica que caracteriza o impacto pulsionaiY Por isso mesmo, em seu percurso teórico final, a angústia foi tematizada por Freud como se inserindo numa estrutura de antecipação e de sinalização do perigo, pela qual se evidencia o impacto pulsional na economia do sujeito, para evitar a experiência do traumatismo psíquico. 48 . Evidentemente, este desamparo fundamental é tanto maior quanto mais precoce é o indivíduo no tempo de sua história, pois nestas condições a individualidade não dispõe de meios instrumentais de simbolização para realizar este dominio do impacto pulsional. Neste contexto, podemos formular que a estruturação do sujeito representa a aquisição, por este, de instru~ mentos de simbolíza\~ão pam empreender o domínio e a ligação das pulsões. Porém, apesar deste trabalho de inscrição das pulsões no universo da representação, permanece sempre uma diferença na estrutura psíquica entre a capacidade de simbolíza~,·ão do sujeito e a força do impacto das pulsões que caracteriza a estrutura do desamparo fundamental. Em função de sua prematuraçào biológica e psiquica o infante demanda necessariamente a presença das figuras parentais, para que possa sobreviver e realizar a ordenação do seu psiquismo. Esta ordenação se empreende nos registros imaginário e simbólico, mas o processo encontra a sua dominância no registro simbólico. Assim, através das figuras parentais se realiza um trabalho insistente de investimento libidinal do corpo natural e de interpretação da experiência pulsional do infante, que desta maneira vai estabelecendo de modo progressivo o domínio e a ligação das forças pulsionais. Enfim, a resultante deste processo é a simbolização primordial, onde as forças pulsionais se inscrevem no universo da representação. Portanto, a inserção do infante no universo da representação se realiza mediante o Outro que ocupa a posiçflu de intérprete, no qual o infante se aliena para se humanizar e se t·onstituir como sujeito. Desde o "Projeto de uma psicologia científica", Freud já destacava esta exigência fundamental da interpreta<;ão pelo Outro pam a constituição do sujeito. 49 Nesse contexto interpretativo estão condensadas diversas formulações psicanalíticas, mas que vwnos separar nos seus vários momentos e registros teóricos, para melhor destacar a suu m1iculnijiio conceitual. Assim, vejamos: LO sujeito não se constitui somente de fonna intrinseca, mas principalmente de maneiro e.'Ctdnseca, mediante o Outro;
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2. O que implica dizer que a concepção de sujeito elaborada pelo discurso freudiano é fundada na intersubjetivülad~. isto é, o sujeito se constilui necessariamente através Je um outro sujeito; 3. Esta constituiçiio do sujeito através do Outro se realiza nos registros do corpo erógeno e ôu representu~·ão, de maneira que sem este eixo da alteridade a sexuação do corpo e o advento do sujeito nos processos de simbolização seriam impossíveis; 4. A constituição Jo sujeito no registro do corpo erógeno se realiza através da figura materna, que "perverte" a economia natural do corpo infantiL Vale dizer, sem o investimelllo erógeno do corpo natural do infante pela figura materna não existe qualquer possibilidade de constituição do corpo erógeno e da dinâmica pulsional, como afinnava Freud desde os Trê.r ensaios sobre a teoria clal'e.nwlidaclc;50•51 5. Porém, se este in\'estimento erógeno é fundamental para a constituição do sujeito e pan1 u sua abertura ao universo da sexuação, esta "perversão" ua economia du ~:orpo naturul do infante é a condição de possibilidude de sua e:~periênt·ia traumiltica origimíria e do seu desamparo fundamental, pois é o que produz a pulsa\"iiO do sexual; 6. Finalmente, frente 11 esta força pulsional provocada pelo investimento erógeno na suu mlllt ipl ic idade e di vcrsidade, o Outro como intérprete realiza o trabalho de liga~·i\o pela inscrição da força pulsional no universo da representação. Nesta perspectiva, u sedu~·ão originúria e a interpretação primordial são representadas no psiquismo do sujl!ito como reuliz<~ções das figuras parentais. Então, é através destas figuras que o infante realiz~ a sua alienação primordial e pode se ~:oustituir como sujeito. Porém, a releváncia da interpretação pelo Outro é fundamental para que o infante possa dominar o impacto da pulsiio sexual e promover" sua inscri~·ão no unh:erso simbólico.
VI. Palavra e aro É neste contexto que o discurso freudiano pode assumir como uma fonnulação legítima para a psicanálise o preceito básico do Evangelho de Sllo João, no qual se afirma que "no princípio era o Verbo", onde o primado para a constituição do sujeito e do mundo é conferido à linguagem. Com efeito, a palavra primordial é vei<:ulada pelas figuras pnrentais que se apresentam na ex.periênria do sujeito como sendo os suportes do registro simbólico e do Outro. Pam Freud, :~s tiguras dos pais e seus representantes seriam os ''d~uscs" primordi;~is do infante, que lhe iniciam na cartografia secreta do corpo e lhe ensinam a acidentada geografia do mundo, de forma a marcarem o infante de maneira indelével em sua estrutura psíquica
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e na ordenação simbólica do mundo. Por isso mesmo, nos primórdios da ordenação psíquica do infante os pais siio representados como figuras onipotentes, sendo os con·elatos da onipotência que permeia a organização narcísica do ego ideal.~2 Porém, é preciso que posteriormente o sujeito possa desarticular definitivamente na sua estrutura psíquic
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sua onipotência e revela simultaneamente que o poder que lhe era atribuido lhe transcende, na medida em que é a palavra que funda a relação entre os diferentes sujeitos no registro simbólico. Esta questão é encaminhada por Freud no final de Totem e tabu, quando se precipita como conclusão deste ensaio magistral que "no princípio era o ato".S4 As!>im, o discurso fre udiano assume como um postulado psicanaHtico o apotegma fáustico enunciado por Goethe.55 Esta fomlUiação concisa do Fausto se contrapõe literalmente ao primado atribuído ao verbo no Evangelho de São João, de maneira que na prioridade ontológica conferida ao Verbo ou ao ato se estabelece uma oposição entre diferentes concepções do sujeito e do mundo. Com efeito, a prioridade atribuída ao ato sobre o verbo significa para Goethe, antes de mais nada, a ruptura com o primado conferido à palavra divina na tradição do Cristianismo e o anúncio de um universo constituído inteiramente pelo homem. Assim, como :mífice do mundo, o sujeito se abre para a constituição de sua história, impulsionado pelo seu desejo e instrumentado pelas ciências constn1ídas pelo homem. Na tessitura poética do Fausto, ordena-se uma transgressão fundamental do sujeito, que se materinliza no discurso dramático pelo pacto com o diabo em troca da aquisição da ciência. Por isso mesmo, esta transgressão é um ato instaurador de uma outra ordem do mundo, representando um pecado crucial face aos valores da ·tradição do Cris.tianismo e do universo divino. Porém, é por esta transgressão que o sujeito abre as portas para um outro mundo e assume inteiramente a sua condição de sujeito, pois passa a construir a sua própria história pela ciência por ele constituída, trocando então a segurança divina pelo fruto proibido do saber. Enftm, ao perder a segurança sust~ntada pelo verbo divino o sujeito deve arcar agora com o seu desamparo fundamental, onde o desejo inuicando a sua falta ê o que lhe impulsiona na busca do saber. Portanto, ao assumir o upotegma fáustico enunciado por Goethe no discurso psicanalítico, F.reud está fonnulando que para que o 1nfante possa desc.obrir a ~struturo1 uo v~:rbo na sua l:Onstitui~ãv eminentemente simbólica e-possa assumir os riscos do seu próprio desejo, é-preciso que ele rompa com a "proteção divina" fomecida pelas ftguras parentais. Desta maneira, considerando a oposição entre as categorias da pré-história e da história,56 o sujeito pode se deslocar do registro da pré -história para o da história, podendo viver entllo o dest.jno traÇado pelo seu desejo. . ·. Porém, esta mudança di! posi~·ão do sujeito face ao registro simbólico e às ftgllras parentais é confli tivll, pois impõe ao sujeito o reconhecimento tio seu desamparo fundamentnl,e da castração, pam assumir então a direção do·seu desejo.
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Por isso mesmo, a promessa de salvação e a promessa de cura cons· titucm uma sedução bastante fácil para o indivíduo, pois, apesar de ser alienante para o sujeito, oferece a este um apaziguamento ilusório face ao desamparo fundamental, camullando a angústia de castração. Portanto, a religião oferece um curto-circuito ao sujeito, pois lhe promete a ilusão de escapar d~s impossibilidades colocadas no desamparo pela alienação na cert~za infalível da crença. Promessa que sem dúvida protege o sujeito, na med1da em que lhe afasta uo que é imprevisível no desejo. Nesta perspectiva. Freud formulou que a experiência psicanalitica se distinguia das práticas terapêuticas baseadas na hipnose e na persuasão, pois estas, como práticas penneadas pela promessa, não apenas se fundam como principalmente permanecem restritas no registro da sugestão. Entretanto, para o discurso freudiano a sugestão é um efeito decorrente da transferência, fundando-se na sua tessitura libidinal. A psicanálise não pretende curar pela transferência, mas se submete aos seus efeitos como sendo um desdobramento inevitável do processo analídco. Por isso mesmo, impõe-se no ato psicanalítico a exigênci!l de interpretação da transferência, para explicitar assim a lógica que a C-'\trutura e para poder decifrar então a verdade singular da história do sujeito. 57 Enfim, se a suge~tão, como efeito produzido na transferência, não é articulada na ordem da interpretação, a ilusão de salvação e a ilusão de cura podem se realizar como promessa e se materializarem como ato no dispositivo terapêutico.
VI!. Pastores de almas seculares? ~pe_sar de pretender se fundar na
verdade do desejo e não se colar a qualquer tlusao, O futuro de uma ilus(io foi ca:iticado por alguns discípulos diletos de Freud, na medida em que a perspectiva entreaberta neste ensaio revelava uma nova modalidade de crença baseada no ideal da ciência. Vale dizer, para estes discípulos, Freud teria acreditado nas promessas promovidas pela ilusão cientificista. Assim, Pfister respondeu aos postulados de O futuro de uma ilusdo com um ensaio intitulado A ilusüo de um futuro, apontando que a dominação do homem sobre a ordem natural não implicava absólutamente o domínio da ilusão humana. 58 Da mesma forma,num comentário lapidar sobre este escrito freudi ano,-Reik destacava a ilusão cientificísta que perpassa as considerações de Freud.59 Evidentemente, tal problemática é fundamental pnrn as considerações finais deste comen tário, pois assin:da que qualquer modalidade de saber que não seja originariamente religioso pode ser perfeitamente inserido pelo
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indivíduo na lógica da fé e du crença. Assim, apesar da rude e interminável crítica que teceu das ilusões humanas e da escuta sutil para captar as artimanhas do desejo, a psicanálise também pode ser recuperada para os registros da promessa e da salvação. Este desdobramen to se realizou historicnmente com tendências importantes do movimento psi<:analítil:o pós-freudiano, quando a psicanálise foi institucionalizada numa grunde burocracia centralizada, na qual as hierarquias e os rituais institucionnis apresentam semelhanças espantosas com a instituição religiosil. Neste contexto, o tlíscurso psicanalítico se transformou nos seus valores fundamentais. sendo marcado com as características de religiosidade e por promessas de sa l va~·üo pela cura, onde os analistas passaram a acreditar que potliam prometer algo e oferecer aos seus analisantes o ideal da cura como salvação. Com isso, o discurso psicanalítico afastou-se mdicalrnente do projeto freudiano, e p:m.:elas significativas do movimento analítico acreditaram até mesmo ser possível a construção de uma ordem social baseada nos supostos valores da psicanálise. Pura isso, artkularam-se como instituição com os discursos médico e psiqui{nrico para renovar os instrumentos de poder da sociedade disciplinar. Conseguir:un assim reulizar parcialmenle, pela psiquiatria preventivista, o pesutlelo que utcrroriznvu Frcud como um pressentimento sombrio sobre o fulllro da psicanálise: Nossa civilizn\·llo exerce umu prcss!lo quase intolcrfiVcl sobre nós, ela pede um corretivo. É inscnSilto esperar da psican:llisc que elo seja ch:~mada, apesar de todas ii S diliculóildes que 11prcscnta, para oferecer um dia aos homens semelhante corretivo'! Talvez um amcrk:ano tcrâ um dia a idéia de emprcgm umn pnrtc óc seus bilhões para fazer a educação analítica de seus social wurkusc construir um cx<'! rcito par:l a lutll contra as neuroses, filhas de nossn c ivil iza~·ilo!
Ah! Ah! Uma nova l'Sp<'!dc tk " Ex~ rcito da Sal vação"! Por que não'! Nossa imagin:wilu nilo pode ttnbalhar senil o segundo modelos. A on<.la de prosNitos que inv;~d ir então a Europa deveria evitar -
Victút, onde a
Nesta perspectiva, psicnn:'dise e re!igiüo convivem mais facilmente na atualidade do que nos primórdios do movimento analítico, pois a transformação realizada nos fundmnentos do Jiscurso psicanalítico e a remodelação realizada nos seus valores na dire<,·fio ue reulizur promessas de salvação retiraram da psic:múlise o seu potencial crítico das ilusões do sujeito.
Psicanálise e política: unta introduçüo metodológica1
I. A psicanálise e o discurso toflllizante da polfrica A relação cJa psicanálise e da políticn jú foi objeto dos mais acalorados debates ao longo da história da psicanúlise. Essas discussões sempre se pautaram pel:1 controvérsia, num embate marcado pela paixfio dos interlocutores, principulmente por parte daqueles que reivindicavam da psicanálise um engajamento político mais definitlo e que a criticavam por sua pretensa "neutralidade". Dizia-se, assim, que esta postura da psicnnúlise seria reveladora de uma evidente posi<;ão política, isto é, a sua "neutralidade" seria a assunção de um lugnrdefinido no campo político e indicaria a sua ideologia. Além disso, como complemento dt!stus atribuições, a psicanálise ocuparia uma posição "clitista", seja pelos custos que estariam implicados em sua prática seja pela sua longu tlum~·flo. Com esta fonmtl:wão le vantei um número de questionamentos que não silo estranhos a nossos ouvidos, mas qu<: cYidcnci:.un, contudo, um enredamenta de diferentes problemas e planos de ;má lise. Porém, estas questões foram enunciadas freqiie!ntemente desta maneiru e, numa certa medida, ainda o são. Por isso mesmo. resolvi partir deste lugar comum p:u11me interrogar sobre esta problenllíticiL Nesta con tig ura~·üo discursiva, cabe perguntar inicialmente quem é o referente destas atribui\'Ões: a psicamílise, enquanto campo específit·o de saber'! Ou a imaitu i~·ão psicana!itica? Ou, então, os psicanalistas, ou par~·elas destes, enquanto ngentes sociais'? Sublinhar a existência destes diversos referentes, que se encontram fundidos nestas atribuições, implica assinalar que existe uma formulação totalizante sobre a relação da psicanúlise coma política que t·abe col
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remos configurar algumas tem6ticas. Porém, não anteciparemos respostas, até mesmo porque não as temos de antemão, mas vamos nos indagar sobre alguns pontos. Enfim, nosso esforço será o de circunscrever um campo pertinente de questões e não o de fonnular respostas apressadas. Assim, vejamos. O que se sublinhava era o estilo totalizante que caracteriza o discurso enunciado anteriormente sobre a relação da psicanálise com a política. Este discurso ocupa um lugar histórico muito importante nas colocações sobre o que é o "político" e o "apolítico" na psicanálise e define, pela própria exigência de totalização que lhe é inerente, as regras pelas quais uma certa prática soc ial é considerada politicamente como "positiva" ou · "negativa". O que significa dizer que este discurso totalizanle sobre a política .· · se desdobra num discurso ético sobre as práticas sociais, hierarquizando-as,. e ntão, segundo o seu sistema de valores. · Ora, este discurso tolalizante sobre a prãtica política é o que foi incisivamente questionado desde os anos sessenta, pela e mergência· de um conjunto de movimentos sociais que não se adequavam à exigência de totalização detinida por este discurso. Estes movimentos são represen· lados por minorias sociais. éticas e sexuais, que apresentam configurações específicas em suas lutas contm o poder e que não se adequam a este • estilo totalizante de engajamento político. A questão destes movimentos sociais não se coloca como sendo a conquista do aparelho do Est:tdo, mas a da busca de reconhecimento de suas diferenças sociais, é ticas e sexuais, isto é, da afirmação da legitimidade destas difere nças, para que a posse destes emblemas pelos agentes sociais não implique a diminuição do seu valor social. Estes movimentos sociais tiveram uma enorme tmnscendência his· tórica, pois através deles se materializou uma outra concepção do ato polilico. Com efei10, a importância que tiveram tais movimentos consistiu em indicar a existência de uma grande multiplicidade de lugares sociais onde se realizava o confronto com o poder, de maneira que a oposição conquis·
tar/não conquistar o aparelho de Estado deixou de ser o critério absoluto para se dizer algo sobre as conse()iiências da prática política, oposição esta que norteava o julgamento anterior sobre tal prática. A crítica ao discurso totalizante foi uma das condi~·ões de possibilidade para a emergência de outros movimentos sociais a nível instiLm:ional que não existiam anteriormente, ou que, então, não eram reconhecidos como pertencentes ao registro político. Assim, os discursos críticos às práticas médica e psiquiátrica se organizaram nesta conjuntura histórica, da mesma forma como certos movi· mentos críticos face à instituição pedagógica. Portanto, a consideração da especificidade de cenas príaticas sociais colocava, em contrapartida, a demanda para o exame de problemas políticos particulares que lhe seriam
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inerentes. Enfim, constituição de análises teóricas sobre os micropoderes, com as pesquisafde Foucault,2•3•4 se realizaram também nesta conjuntura. Neste contexto, a relação da psicanálise e da política vai ser repensada, perdendo então o estilo totalizante anterior em que esta questão era fonnulada do modo caricato que esbocei inicialmente. Assim, pensar agora esta relação / implica sublinhar devidamente as questões particulares ao campo psicanall· tico e não considerar· a política usando como parâmetro as exigências do discurso totalizante. Comecemos por remontar esquematicamente algumas linhas teóricas que circunscreveram esta problemática na perspectiva do discurso totalizante, pois, apesar deste se encontrar historicamente questionado, ele é ainda bastante presente no nosso espaço social e seus antigos arg umentos se apresentam revestidos com novas formas.
Il. Psicanálise ou politica? Examinemos com mais vagar as formulações encaminhadas na introdução. Quem afirmava, no campo da política, que a psicanálise não era uma fonna engajada de pensamento e que sua posição de " ne utralidade" correspondia a um evidente posic ionamento ideológico? Evidentemente. um interlocutor de fác il localização histórica e que te ve um impacto decisivo na constituição de uma representação crítica das esquerdas brasile iras sobre a psicanálise. De fato, esta fonnulação se origina de uma particular tradição marxista e que denominaremos de stalinista. Então, primeira afirmação deste debate: tal fonnulação não se origina do pensamento da esquerda em geral, mas de um setor decisivo da mesma que se constituiu com a tradição stalinista. Partindo desta matriz ideológica, poderemos achar, se quisennos, uma série de variantes discursivas que encontram neste núcleo a fonte para as suas enun· ciações. Procuraremos delinear alguns contornos desta matriz discursiva. Durante décadas a psicanálise foi literalmente execrada pelo pensamento marxista oticial como sendo uma ideologia pequeno-burguesa, por se preocupar apenas com os con tl itos psíquicos das ind i v id ~ai idades e não conferir, assim, o devido lugar aos grandes problemas sociais que acionavam as massas proletárias em seu confronto com a burguesia. Este foi o padrão ideológico que dominou o pensamento marxista desde o início dos anos trinta até a década de sessenta, isto é, o período dominado pela orientação stalinista no movimento comunista internacional. Esta foi a marca indelével que o stalinismo imprimiu nas relações oficiais do marxismo com a psicanálise, encontrando-se presente como um mandamento dumnte quatro décadas na tradição política ocidental. Antes da
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hegemonia stalinista, contudo, emm diferentes as relações da vanguarda da ~vol~ção vitoriosa com a psicanálise. Com efeito, se recordannos as expenêncJ~S de Vem Schmidt nos anos vinte e a liberaHzação dos costumes sexua1s na. União Soviética, no período lenínista pós-revolucionário, poderemos reg1strar a presença do pensamento freudiano como um referencial ideológico importante, dentre outros, que orientava as mudan~as.5 Porém, a . orientação stalinista obstruiu qualquer consideração pela inovação trazkia pela psicanálise ao fechar, simultaneamente, de fonna definitjva o desenvolvimento das po tencialidades da Rússia pós-revolucionária no que concerne ao lugar da subjetividade e .d a sexualidade. Neste contexto a psicanãlis7 foi estigmatizada como um movimento pequeno-burguês, qu; se preocupana apenas com a problemótica do indivíduo. Sabemos atualmente o significado e os efeitos desta virada sta linista não apenas no que se refere ã leitum do pensamento de Marx, mas também no que representou de re forço das estruturas totalitárias do Estado soviético e. da bur?cracia partidária. Diante dessas instâncias, qualquer exigência de smgulan~ad~ manifestada ~elas individualidades era considerada ilegítima, sendo atnbutda a um desvto pequeno-burguês e a um virtual desencaminhamento na construção do Estado socialista. Enfim, o terrorismo anti-subjetivo atingiu as raias do absurdo, e a exclusão de qualquer legitimidade possível a ser conferida no discurso freudiano deve ser analisada considerando esta conjuntura histórica. A transformação do pensamento de Politzer sobre a psicanálise, antes e_após os anos trinta, revela esta mudança na ideologia marxista que assmalamos. Assim, na "Crítica dos fundamentos da psicologia" o discurso fr:ud_iano é. rec~nh.eci,~o, por P~litzer, na sua inovação epistemológica face ã p~1colog1a class1ca , na med1da em que retirou a psicologia dos impasses t~óncos criados pela inexistência da categoria de sujeito e a conseqüente d1s~lução de seu objeto numa intinidade de faculdades psíquicas. A psicanálise é valorada como o primeiro empreendimento teórico que colocou o "d~am~ ~tumano:· como eixo epistemológico para a construção do saber psJcologiCO. Por 1sso mesmo, e la é destacada como um dos fundamentos para a constituição de urna "psicologia concreta".6 Mesmo considerando as críticas fonnulauas à metapsicologia freudia· na, que revelaria o reaparecimento do antiquado instrumental de conceitos da "psicologia diíssica", Politzer pontuava o que existia de fundamental no ~iscurso freudiano, apresentando os seus argumentos, inclusive, com um gra~de sabo r de modernidade. Com efeito, o destaque conferido pela psicann!Jse ao "drama humano", como eixo fundantc do seu saber, abre o horizonte para se pensar o aro psicanalítico como fundado na relação intersubjetiva, na qual a experiência transferencial e a 1.:línica psicanalítica são colocadas no
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primeiro plano da constn1ção epistemológica da psicanálise. Porém, nofinal dos anos trinta, Politzer jf1 se afastara destas formulações iniciais, atribuindo outra valoração ao pensamento freudiano e passando a enfocá-lo numa perspectiva d iversa. 7 .8 É inquestionável a relevflncia hist6ricn que teve o pensamento inicial de Pol itzer na renovação da pskanúlise frnocesa.9 Desde os anos trinta Lacan já se referia a esta Jeitum do uiscurso freudiano, 10 no qual o objeto da psicologia centrado no "dr.ama humano" foi o eixo epistêmico por onde a inrersubjetividade na experiência analítica foi repensada. Posterionnente, a perspectiva fenomenológi<.:n que oriemava a leitura de Politzerda psicanálise seria criticada pelos discípulos de Lu;an, que iriam assinalar a estreiteza de sua concepção de sujeito, na qual este é situado como existindo apenas na primeira pessoa e não como um sujeito que po<.le ocupar as mais diversas posições no plano fantasm(atico. 11 Porém, se ressaltamos a importância desta tradição teórica é porque foi através dela que se realizou um corte importante na interpretação stalinista da psicanálise e que teve efeitos importantes, na passagem dos anos setema, na rel:~çiio qu~ as esquerJas brasileiras estabeleciam com a psicanálise. Com efeito, foi pela retomada da trilha entreaberta por Politzer, mas por sua supemção numa perspectiva lacaniana, que Althusser reconsidera a importância da psicanálise para o marxismo. Assim, a psicanálise é novamente valorada como uma inovn~·ão epistemológica digna de destaque, com todas as çonseqüências ideológicas que as revolwjõcs científicas têm o poder de engendra r na perspectiva teórica de A lthusser. Desta maneira, a especificidade epistêmica do campo psicanalítico seria aquilo que lhe confere vigor com~ pensamento crítico, contrariamente às diversas tentativas que furam realizadas para a anexação da psicanálise a outras formas de saber, como a medicina. a psiquiatria, a psicologia, a antropologia e a filosofia. Enfim, Althusserreabre as relações da psican;ílisecom o marxismo, retirando a psicanálise do limbo em que fora colocada pela ideologia stalinístnP Considerando esta ve1tente do pensamento marxista podemos sublinhar uma primeira linha de tangcnciamento da psicanálise com a política. Assim, na tradição stalinista o saber psicanalítico é recusado como uma totalidnde,.dclínean
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ou a política revolucionária, na medida em que a psicanálise seria colocada como uma forma de ideologia que serviria aos interesses das classes dominantes. Porém, é preciso que nos indaguemos sobre algumas categorias desta forma de pensamento para a qual o realce dado à problemática do sujeito funciona como obstáculo teórico-prático à problemática da sociedade. Assim, a tradição stalinista pregaria o retorno a uma fonna de discurso que permeava o horizonte ideológico do século XIX, no qual se contrapunha as categorias de "indivíduo" e de "meio social" como se fossem duás essências absolutas que não se interpenetravam, de maneira que valorar metodologicamente o pólo do "indivíduo" implicava retirar o peso correSjpondente do pólo "meio social". e reciprocamente. Entretanto, um dos méritos do discurso freudiano foi o de procurar superar esta dicotomia esquemática, dialetizando as relações entre "indivíduo" e "sociedade" e assinalando as marcas indeléveis que a ordem cultuntl produz necessariamente na comstituição de qualquer subjetividade. Assim, se para o pensamento freudiano o sujeito se constitui através do outro e a partir do outro 13 - enquanto este é o intérprete de seus movimentos pulsionais originários, de maneira que a subjetividade se funda efetivamente como um sujeiw-interpretaçcio - , a ordem da cultura estará presente na construçüo de qualquer subjetividade. Desta maneira, o sujeito se constitui como ser de conjlito entre as onlens da natureza e da cultura, tendo que arcicular para a sua fundação as demandas destas séries contrapostas. A formulação freudiana em o Mal-estar na cívílízação se constitui a partir desta problemática central da interpretação psicant~lítica do sujeito, estando este definitivamente posicionado como um impossível ponto de articulação absoluta entre a natureza e a cullura. Então, o sujeito é condenado ao "mal-estar" que a sua existência cultural lhe coloca, sendo isso o que define. a dimensão trágica do pensamento freudiano. 14 Enfim, se esta tese não define com clareza uma política psicanalítica freudiana, ela implica, contudo, afirmar incisivamente a impossibilidade de harmonia absoluta entre o sujeito e a cultura, relação esta sempre destinada ao conflito para o suj~ito. Portanto, não existiria esta relu~·ão maniqueísta de exclusão absoluta entre as categorias de "indivíduo" e t.le "sociedade" na démarche freudiana, como estava pressuposta na ideologia stalinista. Com o discurso freudiano, a individualidade já é marcada pela cultura em suas modelagens pulsionais. Vale dizer, a individualidade é configurada a partir de uma ordem simbólica que lhe confere a base de sua org
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que a questão do sujeito fosse formulada de maneira diversa e a psicanálise pudesse ser represent~1da pelo marxismo numa outro perspectiva. Posteriormente, esta problemática foi reaberta pela tradição marxista, principalmente com Althusser, úialetizando a relação de mútua exclusão entre política. e psicanáli:\e, de modo a conferir a esta um valor crítico que fora retirado por esta tradição. Contudo, o caminho teórico de Althusser é eminentemente epistemológico, reconhecendo a especificidade do objeto teórico da psicanálise e do seu método de interpretação. Entretanto, a política não é tematizada diretamente COJ no uma questão, como algo que a psicanálise tivesse acesso ao seu pensar e ao seu fazer, se bem que as críticas indiretas aos preconceitos stalinistns sobre a psicanálise por Athusser atribuem a esta um lugar pos itivo no campo ideológico, como um saber científico sobre a subjetividade, retimndo-a, entiio, do limbo em que fora colocada pelo stalinismo. Enfim, nos anos sessenta já se reconhece a particularidade epistêmica do campo psicanalítico e a originalidade de sua experiência, não se exigindo então da psicanálise aquilo que ela niio é e não pretende ser. Este seria um dos resultados deste percurso teórico-crítico, onde não se pretende demandar da psicanálise aquilo que ela não pode oferecer, sem que isto implique que ela seja consi
l/I. A psicanálise na política Com isso reencontramos uma outra vertente da tradição marxista que reco· loca numa perspectiva diferente a relaçiio da psicanálise com a política. Porém, também aqui esta relação se caracteriza pela totalização. Se na tradição stalinista o discurso totaliznnte atribuía um lugar negativo à psicanál ise na política revolucionária, nesta outra a totalização adquire o caráter posit ivo, isto é, de conferir sentido à psicanálise somente quando esta se vincular à desmistificaçiio da fals~1 cons<:iência. Portanto, nesta outra tradição a relação da psicanálise e do marxismo não é de exclusão mas de complementaridade, de forma que o discurso psicanalítico se transforma num instrumento fundamental du política, exatamente porque pennitiria assinalar os mecanismns pelos quais as ideologias se enraízam nas subjetividades. Refiro-me à tradi<;iio freudo-marxista alemã dos anos trinta que encontrou em Reich e Fromm os seus teóricos. Esta tradição se constituiu na conjuntura da ascensão do nazismo, no qual a problemática que se colocava de modo dramático era <.le saber como e por que as classes dominadas aceitavam o lugar de opressão política e de exploração econômica a que eram submetidas, :apesar dos sinais evidentes do processo de dominação revelados
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pela análise du realidude social. Assim, a problemática da ideologia foi o espaço teórico desta articula~·ão da psican(tlise com a política, de maneira a se designar para a psicanálise o lugar de explicar os efeitos e os mecanismos subjetivos deste processo de dominação, v:lle dizer, as bases intrapsíquicas em que se enraízam as formações ideológicas. Assim, as ideologius seriam parcialmente determinadas por certas configurações intrapsíquicas e modelariam socialmente as individualidades para atender às demandus da produção social. Neste contexto, o conceito de caráter se constitui no discurso teórico pura designar como e onde se insere na estrutura subjetiva o campo das idt::o logias, e a sociedade capitalista nos seus diversos tempos históricos poss ibilitaria o desenvolvimento de certas e struturas caracteriológicas para legitimar o processo de dominação. A institu ição familiar e outros aparelhos ideológicos do Estado seriam os canais por onde se realizaria a produção das subjetividades domintldas, e que ençontraria na regulaçilo da sexualidade o seu ·ponto fundamental de impacto. Sabemos do alcance que tiveram estas noções no discurso teórico e na prática política lle Reich; algumas lle las, inclusive, adquiriram uma grande importância para a teoria da técnica psicanalítica. Assim, a oposição caráter genital/caráter pré-geniwl conslituíu·se como um conceito fundamentnl, da mesma forma corno os efeitos destu oposição para o encaminhamento do processo :malítico. 15 Comudu, por mais brillinntes e atraentes que sejam as múltiplas an:ílises de Rckh para a intt:rpretaçfso de algumas características da ideologia fascista, 16•17 exislia uma evidente pretensão de totalização conferida ao discurso psicamllítico e na qual este perdia a especificidade do seu campo epistemológico de v:didade, isto é, a relação intersubjetiva no espaço analítico.. Então. ncsL
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pretensão totalizante da psicanálise. Em contrapartida, o caráter é interpretado numa perspectiva sociológi<:a e inserido em longos períodos históricos, sendo considerado como um efeito das fonnações ideológicas, principalmente através da família nas suas relações com as demandas da produção social. Nesta tradição marxista, portanto, a psicanúlise não é excluída como uma totalidade, mas, ao contrário, é restaurada como um instrumento que pemlitiria explicar ce11as fonnas que assume a dominação social, considerando as vias pelas quais as ideologiús se corporificam nos indivíduos pela promoção de certas formações caracteriológicas. A noção de "caráter sado. masoquista" elaboradu por Erich Fromm é um outro exemplo eloqüente disso. Entretanto:a especificidade do discurso psicanalítico foi rompida neste movimento, pela constituição de um discurso totalizante que definiria a t'mica forma legítima para a sua existência. Enfim, a psicanálise se transforma numa modalidade de libertação da sexualidade, sobretudo com Reich, forma de possibilitar a circulação da libido que, represada pela couraça caracteriológica, romperia com as bases do processo de dominação e, portanto, com a "psicologia de massas do fascismo". As equações esquemáticas do freudo-marxismo dos anos trinta, isto é, a relação direta do caráter com as ide olog ias e as suas articulações com as estruturas de produção e de poder, foram rompidas pelo pensamento crítico dos anos cinqüenta e sessenta. Assim, se n:t ideologia stalinista o mecanicismo teórico se colocava na antiquada oposição " indivíduo" versus "meio social" e se o freuc.lo-m:irllismo proc urou superar esta oposiç-Jo absoluta pela mediação do conceito de caráter, o met·anícismo permaneceria nesta última formulação na tentativa de articulac,·ão diret:t entre caráter e ideologia, pois isso se realizava sem considemr os diferentes registros teóricos que estavam em pauta e os diversos discursos que deveriam dar conta destes objetos. Com efeito, consillernr a cultura como constituidora llo sujeito, como pretendia Freud, não implicava que se poderia instrumentar uma prática policica a partir das marcas simbólicas imprimidas na subjetividade. Enfim, existiria aí um snh o mortat no plano da teoria que se desdobraria ilum "voluntarismo" no plano da prática po lítica. · O mérito qlle tiveram algumas das formulações tios teóricos da Escola de Frankfu11 fo i o de romper com a artit·ula\•ão uireta entre caráter e ideologia dos autores dos anos trinta. O com:eito de caráler foi substituído pelo de personalidade, 'nmi·canJo assim a continuidade e a diferença entre estas tradições. Com ns pesqliis
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da personalidade a partir dos aparelhos ideológicos do Estado não foi recusada, mas formulada com maior complexidade, considerando-se com maior rigor a nova etapa do modo de pi'Odução capitalista, numa reflexão sobre as novas formas histórit:as de socialização e o impacto que provocam sobre a estrutura da personalidade. 19 O pensamento marxista da Escola de Frankfurt também se caracteriza pela exigência de total izaçfio, numa crítica da cultura produzida pelas fonnas avançadas do capitalismo e seus efeitos çonstitutivos sobre as individu· alidades. Porém, este discurso totalizante é relativo se comparado com a tradição anterior, justamente porque caberia conferir o devido lugar à subje· ti vidade e à calegoria do particular na crítica da cultura contemporanea,20 marcada pela massificação e a unidimensionalidade (Marcuse). A psicanálise é valorada na medida em que constitui um saber sobre o particular numa ordem social que tende ao apagamento da diferenciação subjetiva, e o seu anacronismo histórico constituiria em contrapnrtida a sua grandeza.21 Porém, encontra-se novamente presente aqui a exigência de totalização da psicaná· lise, pois o seu discurso é investido como um instrumento crítico da cultura e ao qual se atribui um grande poder de libertação social. Assim, o discurso freudiano é revulorizndo em seu potencial ideológico quando cabe conferir ao particular e à subjetividade um lugar decisivo na desmistificação de uma ordem social massificante, mas que, parndoJtalmente, delineia e possibilita a satisfação das necessidades humanas como em nenhum outro momento histórico. Em contrapartida, esta sociedade de abundância, se regula a produçiio das necessidades e a satisfação dos desejos humanos, torna cada vez mais opaca, para a apreensão dos indivíduos, a maquinaria sofisticaua que os controla. A resultante disso é o silenciamento da subjetividade que se apaga em seus traços diferenciadores. O discurso analítico é, então, por um lado, convidado a fornecer explicações críticas para as formas pelas quais as individualidades são adaptadas e perdem o seu rosto nesta ordem social e, pelo outro, como aquele que aponta para a utopia de um mundo liberto destes mecanismos. Nesta perspectiva, a psicanálise é inserida num processo totalizante da crítica da cullllra e tia ideologia comemporaneas e, com isso, se perdem as marcas específicas do seu campo de positividade. Apenas com Habennas a especificidade de seu campo é considerada com maior rigor, quando ele inclui a transcendência da relação intersubjetiva da cura psicanalítica como um pólo epistemológico fundamental na teoria crítica da cultura. Porém, para isso, a descoberta freudiana é reimerpretuúa numa teoria complexa dos atos lingüísticos e da interação comunicativa, de maneim a responder às exigências mais amplus do consenso e da li bertaçiio 'soci
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IV. Os efeitos políticos da psicanálise Ao longo deste percurso constatamos, de maneiras diferentes, a exigência de totalização que foi demandada da psicanálise ao se tentar a sua articulação com as temáticas da política e da ideologia. Esta totalização foi negativa, como no caso da tradição stalinis.ta que gerou uma série de preconceitos face à psicanálise que nos acompanham até o presente, como positiva, como na tradição freudo-marxista e na Escola de Frankfurt. Porém, em todas estas tradições não se considera devidamente a especificidade do campo analítico, exatamente por esta demnnda de totalização. Ora. a relação da psicanálise com a política acaba por ficar equivocada por este cnminho teórico, tal a amplidfto que se exige na articulação do ato psicnnalitico e da prática política . Isto porque, com Freud, a psicanálise não 'pretende ser nem uma metatlsica da subjetividade nem uma metafísica do social, apresentando-se mnbus estas démarclti!S como formas ilusórias do desejo humano que revelariam um projeto de "snlvução da humanidade".23•24 Assim, a psicanálise freudiana não pretende ser nem um processo de "salva· • ção" do sujeito 'nem apresenta um projeto de "regeneração social", advindo daí, em parte, o "mal-estar" que ela socialmente ainda provoca quando assim exercida, que seria a contrapartida do "mal-estar:• que ela revela no sujeito pelos conflitos com a cultura que lhe constitui.25 Porém, nesta perspectiva a psicanálise não seria apolítica como poder· se-ia pensar, nem tampouco libertadora absoluta da sexualidade e das amar· ras do poder. O que a psicanálise encontra no fundamento de qualquer sujeito é a luta interminável deste contra as imposições da ordem cultural, pelas marcas que esta impõe na org
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possibilidades que são abertas pam as soluções subjetivas de acordo com a infinidade das articulações pulsionais. A p:>ican{ll ise freudiana pretende de linear a singularidade do sujeito e a verdade de sua lzistório e, por isso mesmo, inaugura para cada subjetividade uma experiência particular em que não cabem soluções nonnativas, isto é, preestabelecidas no discurso tcóril.'o. Então, não existe norma para a resolução de qualquer processo analítico e p ara o encaminhamento de qualquer estrutura edipiann, estanuo u figura do an;~Jista entregue à mesma contingência diante da figura de qualquer analisante, vale dizer, sem normas absolutas que definam a sua pr:ítica e a sua té<:n ica. É, portanto, nesta tentativa do unali sta ocupar um lugar singular na re!ação intersubjeti va e possi bi lira r aemergência da "experiência da loucura" no analisando que a psican(llise frcudiunn representa uma ruptura com o saber . '/, .. . pssqu~::ltnco, porque nesta poss~·üo a ti,gura do analista não é detentora de nenhum saber absoluto sobre o psiquismo do outro. estando submetido às mesmas injunções que o seu analisante. A síngularização exigida na relação an~lítica implica ambos os protagonistas de maneira tão radical que não extste a presença de nenhum discurso normativo a que o psicanalista possa apelar com a fina l idad~ de se proteger do impacto desta experiência. Enfim, a figura do annlista reencontraria em si mesma e nos outros a quem analisa o mesmo conflito interminóvel entre o desejo e as normas, que nunca se apazigua de maneirn delinitivn. Assim, primei r~• conclusão n ser retirada sobre os efeitos políticos deste modelo freudiano da psicanálise: u singularização das figuras implicadas na relação intersubjetivu funcionaria como obstáculo a um discurso nonnatívo sobre a subjetividade e a cura, o que retira qualquer sujeito deste lugar de detentor de um suposto saber absoluto sobre o outro. Como desdobramento desta proposiç:1o, podemos nlimwr que qualquer tliscurso totalizante é colocado em questão e, portunto, u críti~·a ;, psiquiatriwção da "experiência da loucura" é constituti va do espaço psicanalítico. Ao descrever estas <:aracter ís tica~ Jo discurso freudiano não tenho qualquer ilusão de que é desta maneira que a psicanálise está sendo exercida na atualiuade. Pdo contrúrio, o que se registra c::~ua vez mais desde os anos quarenta, com o processo de insti tucion:lliza~-ão da psicanálise, é a assunção de um modelo no 'rual o analista "sabe" o que é melhor para o paciente, de que a psícanúlise possuiria um saber absoluto sobre o psíquico que pode ser aplicado 1io outro na reta~·ão analític1. Os destinos do prazer e da dor seriam perfeitamesite regulaJos neste discurso. Portanto, riesta normalização dl) sn~e.r psi~analílk!o a figura do analista não está mais implicada enquanto SuJeito smgular no ato psicanalítico. m:.s é detentora impessoal de um discurso que seria a fonte pur(l a prol.hr~·ão de interpretações.
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Assim, o discurso psicanalítico se tnmsforma inevitavelmente num discurso pedagógico e a experiência intersubjetiva se estagna no espaço analítico, modelando-se numa re/aç(ío interpessoal, isto é, uma relação entre egos. Esta mudança da psicanálise é histórica, correspondendo à transformação da lógica psicanalítica na lógica do saber psiquiátrico, vale dizer, à incorporação da psicanálise no campo do saber psiquiátrico e que seria o correlato epistemológico do processo social de institucionalização da psicanálise. Neste c onte~ to, a psican(llise adquire um enorme poder social, sendo o seu discurso o que possibilitou a modernização da psiquiatria e de setores significativos da prática médica, através das quais se investiu um enorme poder de controle das redes sociais na sociedade modema.29•30 Portanto, este modelo curativo-nonnativo da psicanálise corresponde a uma inserção da psicanálise num lugar destacado nus redes de controle do espaço social. Nesta perspectiva, os efeitos políticos do ato psicanalítico que sublinhamos anteriormente, pela crítica ao discurso normalizador, se voltam agora para a crítica da prútica analitka tal como esta se encontra institu[da de
maneira dominante na mo<.lernidade. As relações da psicanálise com a poHtica se esboçam agora de maneira concreta, considerando a especifici· dade do ato psicanalítico em sua contraposição ao discurso nonnativo-totalizante que se inseriu na prútica analítica. Assim, a manutenção do que existe de mais fundamental no ato psicanalíti<:o implica, antes de mais nada, um trabalho sistemático para deslocar a tigura do analista deste lugar de detentor de um discurso normativo pelo qual se silencia niio apenas a sua singularidade como também a do analisante, de onde o analista profere regras sobre o psíquico do outro que impossibilitam qualquer delineamento de uma singularidade e produz no analisante um processo de ideologização "confor· mista". A crítica à "neutralidade" analítica encontra aqui o lugar de enunciação de sua verdade, quando o analista se esconde num suposto saber e evita o contato com as experiências originais a que está exposto o seu narcisismo em cada relação analítica. Como desdobramento da questüo da nonnatização do ato psicanalítico, coloca-se em pauta o processo de fonnação analítica. Com efeito, se a psicanálise se apaga cada vez mais como· experiência intersubjetiva, a figura do analista pnssa a trabulhur com um suposto código de verdades sobre o psíquico do outro, a responsabilidade deste complexo processo sócio-histórico acabando por recair sobre as instituições analíticas, pelo modo que estas promovem a transmissão da psicanálise. Podemos formular aqui interrogações genér;~as que retomam o que formu lamos anteriormente sobre a inserção da psicanálise no interior da psiquiatria. Assim, que compromissos interinstitucionais e intru-institucionais foram constituídos pela instituição psicanalítica de maneira a configur:1r este desvio normalizador na
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transmissão da psicanálise? Quais foram os lucros- econômico, ideológico e de preslígio social - que a instituição analítica obteve para funcionar em grande parte como um obstáculo à tmnsmissão da psicanálise?31 Ainda como decorrência dessa questão colocam-se em discussão algumas características do ritual psicanalítico e as condições instituídas de seu contrato, isto é, as exigências definidas institucionalmente para a circunscrição da prática analítica. A oposição psicanálise/psicoterapia analítica se coloca aqui de maneira frontal. Assim, se a psicanálise é uma relação intersubjetiva, o que cauciona a definição de sua prática por uma norma fixa sobre o número de sessões? Por que a prática analítica se define pela existência de três ou quatro sessões semanais, que qualquer outra regulari· dade, inferior a esta, se define como sendo uma forma de psicoterapia analítica? Ora. por que a regularidade das sessões não pode ser adaptada às circunstâncias de cada indivíduo, considerando as condições deste objetiva e subjetivamente? Ou será que esta oposição psicanálise/psicoter.tpia analítica não visa estabelecer hierarquias econômicas e sociais no campo psicoterápico. pretendendo fot1alecer o poder das instituições analíticas e reproduzir as diferenças sociais nos demandantes? Procurar resolver os impasses assistenciais pela crítica do modelo psicanalítico é certamente uma prática importante, desde que nos entendamos bem sobre qual é o modelo analítico que está em pauta: o modelo instituído. em que psicanálise funciona como uma prática de normalização? Ou será que se pretende, assim, fortalecer este modelo burocrático e promover ao lado disso a universalização das ditas psicoterapias analíticas, consideradas como um produto inferior no mercado de bens simbólicos? Desta maneira, se existe uma tendência dominante no campo da saúde mental, da qual a instituição analítica partic ipa de forma ativa, que visa promover as psicoterapias normutivas para increme ntar a demanda de psiqu iatrização do social, gostaríamos não apenas de poniUar criticamente este proce sso como também de repensar o mode lo instituído de prática analítica. que acaba por contrapor a psicanálise "nobre" e a " vulgar" psicoterapia analítica. Enfim, estas figuras se inserem numa mesma eshutum de discurso e não podem ser consideradas como essências mcionais que se fundamencam de maneira absoluta. Na perspectiva de repensar as relações da psicanálise e da política a partir das questões colocadas nô espaço analítico, é preciso que nos indaguemos também sobre um conjunto de atos que o analista realiza na cura analítica. Assim se colocaria em discussão a maneira pela qual se fixa o preço das sessões, o direito aos recibos doe imposto de renda e pequenas decisões unilaterais que ape nas be ne ficiam o analista, que são realizados entre nós com muita tranqü ilidade sem que se considere de vidamente os seus efeitos no processo analítico.
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Sujeito freudiano e poder: tragicidade e paradoxo 1
I. A conjunção entre sujeito e poder Enunciar qualquer proposição sobre a problemática definida pela relação entre psicanálise e poder é destacar. logo de início, que estamos face a uma conjunção afinnativa. na qual a possibilid:uJe da disjunção entre estes termos ·apenas se coloca no horizonte positivo da inscrição do sujeito do inconsciente no registro do poder. Vale dizer. no discurso freudiano o poder é uma instância simbólica e um lugar real que está no fundament ·,da constituição do sujeito, pois é fa~e.a.o poder que o sujeito primordialmente se ordena e se • desordena seguidamente para a produção de sua singularidade. Portanto, é apenas no diálogo e no confronto com o lugar do poder que o sujeito realiza a sua produção e a sua reprodução como sujeito da diferença. O que implica dizer que para o discurso fre udiano o sujeito não se restringe ao registro da inferioridade, pois este tem como contraponto necessário o registro da exterioridade.2 Assim, o suje ito freudiano se inscreve nos registros do pensame nto e da ação, estando subme tido aos impe· rativos da linguagem e do gozo. Por isso mesmo, é um suje ito encarnado e comprome tido com os destinos do mundo, pois as incertezas trágicas destes destinos remetem para a sua condição fund ame nta l de sujeito. Portanto, em não sendo o sujeito da interioridade absoluta :...._ como o sujeito da consciência do cogito cartesiano3 e o suje ito da psicologia clássica fundado na introspecç1io4 - e o sujeito do protestantismo - que paga as suas dívidas para com Deus nas cavilações obsedantes de sua consciência e na rígida moral do trabalho5 - . o sujeito do inconsciente pressupõe o registro da exterioridade não apenas para a sua fundação como também como território para a sua fruição. Este registro da exteriori.du<.le não se representa apenas pelo conjunto de coisas e de objetos, pela mediação llos quais se articula o sujeito para o gozo e a satisfação de seus d~sejo~. mas também se tlgura pelopóloalteritário 111
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do Outro. É o Outro como linguagem e <:o mo ser que é o contraponto fundante do sujeito, pois é pela mediação do Outro que a multiplicidade de coisas e de objetos do mundo se orden:-1 para o sujeito como um conjunto significativo para o seu desejo. Da mesma forma. é pela mediação do Outro que se articula a relação entre os diferentes sujeitos, de maneira a se delinear o horizonte para o confronto e para a apropria\·üo das coisas e dos objetos do mundo. Por isso mesmo, a problemátit·a do poder é interna ao campo freudiano, não existindo pois qualquer exterioridade possível entre psicanálise e poder, na medida em que a constitui\·ão do sujeito é mar<:m.la por sua inscrição no campo do poder.
li. Parado.ro e tragicidade Contudo, a relação do sujeito t·om o poder é marcada pela contradição, pois o sujeito tende a perder a sua mar<.:n distintiva face aos outros sujeitos pela sua inscrição num sistema de poJcr. Diante da universalidade do código simbólico de um datlo sistema de poder, num território circunscrito do espaço social, o sujeito se apresenta de m:1neiru anônima e perde a sua diferença simbólica frente aos demais sujeitos. Em funç·ão disso, apesar de se constituir positivamente e atinnutivumente nu sua relação com o poder, o sujeito também se rebela contra o poder para a produção e a reprodução de sua singularidade. Desta m:meira, o sujeito afirma a sua condição de sujeito da diferença, contrapondo-se ativamente à universalidade do código simbólico e impondo pda sua negatividade face a este as marcas da sua singularidade. Vale dizer, além de ser contraditória, a rela~·ão do sujeito com o poder é marcada pelo paradoxo, pois ao mesmo tempo que o sujeito se constitui no e pelo pólo alteritítrio do poder. sem o qual não existiria, o sujeito estabelece um contraponto face ao poJcr, para afirmar a sua l'Ondição <.:amo sujeito da diferença e corno singulariJ ade. É esta dimcns:io de paradoxo, que marca a relação do sujeito com o poder, que podemos depreender do período tardio e teoricamente maduro da obr.1 freud iana. Com efeito, em Mal·eswr na civi/izaçâo o discurso freudiano sublinha que apesar do s ujeito s~ ins<.:rever e estar imerso na cultura para se constituir como sujeito, esta irucrsão é nmrcac.la por um " mal-estar" que é estrutural, já que não pode ser jamais u\trapassado.6 Pelo contrário, na medida em que a civiI iza\·iio progride tecnologicamente e aumenta o domínio do homem sobre a natureza, aumentam também em contrapartida as exigências da cultura sobre os diversos suje itos e se produz um incremento do "mal-estar". Entim, o progres~o <.: ivilizatório não é um antídoto seguro para a satisfação psíquica c para o g1>20 erógeno, na meuida em que não fornece · possibilidades para a aquisi~·ào J:r " felicidade" humana.
SUJEITO FREUDIANO E PODER: TRAGICIDADE E PARADOXO
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Da mesma forma, as figuras e argumentos desenvolvidos por Freud em Psicologia das massas e análise do ego, ulém de indicarem a impossibilidade
de separar os registros do sujeito e do social, evidenciam também a impossibilidade do sujeito ser <.:ompletamente absorvido pela sociedade e pela cultura? Com efeito, algo no sujeito insiste no seu contrJponto frente às exigências so<.:iais, embora seja impensável a constitu i~·ão do sujeito na exterioridade das relações com os outros. Por isso mesmo, a. r~l aç:io do sujeito com. a sociedade e a cullura é marcada pela tmgicidade, pois se a inscrição nestes registros é a e x ig~m: ia fundamental para n constituição do sujeito, nem por isso o sujeito se deixa absorver inteiramente e marca continuamente a sua diferença simbólica. Neste contexto, o discurso freudi ano pode enunciar que o homem não é um ..animal de massa", mas um "uni mal de horda", enfatizando a existência de um abismo insuperúvel entre o sujeito e a sociedade, apesar de que sem a referência ao Outro n5o existe também sujeito.8 Para isso, o discurso freudiano se vale de uma célebre passagoem de Sd10penhnuer, em que este indica pela metáfora do porco-espinho a ex.ígência de mediações e de intervalos nas relações inter-humanas: <.:omo cntr< os porcos-c·spinhos, a reunião humana é problemáti<.:a, exigindo uma certa distflm.:ia entre os sujeitos, já que uma aproxima\' ão excessiva produz eriçamcnto, viol~n<.:ia e repulsão, provocada pela ameaça de aniquilamento.9 Portanto, o sujeito freudiano e u associação humana são delineados pelo discurso freudiano de maneira tr(tgica, na medida em que se o sujeito apenas se constitui como tal pelu mediaçiío da associação entre os homens, algo insiste no sujeito que se contrapõe ativamente a esta absorção, para manter a sua singularidade. A tmgkiJade Ja posição J o sujeito é a revelação do parado;>;o constitutivo do seu ser, pois a manutenção do sujeito da diferença delineia o horizonte de desarmonia nas rduçõcs entre os sujeitos.
/li. Pulslio e sujeito O que se impõe ngora à nossa indaga~·üo é a razão deste parndoxo que funda a relação do sujeito <:om o poder. A metapsicologia freudi:1na possibilita o encaminhamento desta questão pelo enunciado do conceito de pulsão. Ass im, a delínição do <.:on<:eito de pulsão no discurso metapsicológico de 1915 é pontual: ...o conceito de "'pulsiio" npar~c~ como um conceito·li;nitc entre o psíquico e o som:uico, como o rcpr~s~ntantc psíquico dns excitações provenientes do interior do corpo c atingindo nu psiquismo. como uma medida de · ell.igência de trabalho qu\' é imposta ao ps!quico em ·conscqoencia de sua ligllção aocorpora1. 111 ·
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Não pretendemos realizar aqui a exegese sistemática deste enunciado, pois já a empreenuemos em outros contextos, 11 mas somente sublinhar o que interessa à nossa discu~si\o presente. Assim, o discurso freudiano explícita a existência de duas dimensões que são constitutivas do ser da pulsão, dimensões essas que se contrapõem mivamente no sujeito e que podemos destacar pelos seguintes pares tlc opostos: quantidatle versus qualidade, força versus represcntw;ão, energia l'ersus símbolo. O que é patente na elabornção freudiana do conceito é que a pulsão, rigorosamente falando, não é somática e permanece na exterioridade do psiqu ismo, 12 pois este é figurauo como um s istema articulado de representações: inconsciente/pré-conscientdconsciente. 13 Antes de mais nada a pulsão é "exigência de trabalho", isto é, for~-a e "pressão" (Drang). A sua inscrição no universo da representação se realiza pela mediação do Outro, que possibilita objatos de s:1tisfação para a pulsão e um sistema de interpretação que regula o oferecimento dos objetos. É somente mravés do Outro que a pulsão se inscreve em representnntcs no universo da representação (representantes-representação da pulsüo), constituindo-se então os diferentes destinos da pulsão no universo da representação: inversão no seu contrário, retorno sobre a própria pessoa, recalque e sublimação. 14 Portanto, o sujeito do inconsciente se constitui apenas pelo circuito da pulsão no campo do • Outro, sendo então um efeito e um destino da pulsão neste circuito. Desta mnneira, existe um nbismo entre os registros da pulsão como força e como representação. A passagem de um registro para o outro exige um "trabalho" de simbolizn\'flo, para que a tmnsposição se realize. São as condições de possibilidade de satisfação da "pressão" pulsional pelo (ferecimento de objetos. proporcionadns pelo Outro, que definem a efetividade da tmnsposiçào entre os diferentes registros. A absorção da "pressão" pulsional pela insl·riçuo simbólica possibilita a ordenação do sujeito, impondo ao mesmo tempo um limite para a descarga da pulsão. Pela inscrição a pulsão pen.le a mobilidade absoluta. passando a circular num circ"ito restrito, estabelecitlo pelas,regras do simbolismo e pelo objeto de satisfação que foi oferecído pam o domínio da "pressão" pulsional. Enfim, por esta perda de mobilidatle absoluta da pulsão o sujeito advém e se inscreve no registro da castração. Não obst<:lllte, a "pressão" insiste, pois a pulsão é uma força constante e persiste a "exig€ncía de trabalho". Com isso, as articulações realizadas pela ordem simb6Jica são permanentemente desarrumatlas e impõe-se a demanda de novos armnjos de rcla,ào entre as representações. Conseqüentemente, introduz-se desta maneira um potencial de incerteza para o sujeito, que procura restabelecer permanentemente a orJem no contexto da desordem, para evitar o caos no sistema de representações.
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Assim, o contraponto entre a absorção da "pressão" pulsional pelo simbólico e a desarrunuu;lío contínua pro
IV. Encontro marcado Assim podemos remeter a oposição freudiana força/representação para algumas das polaridades fundamenrais da filosofia política. Nesse discurso podemos sublinhar quatro oposições, pelo menos, para a delimitação da problemática do poder. Antes de mais nada, falar do poder é enunciar a oposição entre força e polÍiica, na qual a. política seria a maneira fundamental na ~gulação das • relações de forçn entre os homens. Reconhece-se aqui a inevitabilidade da foi\' a e da violência que estariam presentes nas relações inter-humanas, mas aquelas deveriam receber um limite inequívoco para promover a sua inscrição nas trocas sociais. A política realizaria o agenciamento destas relações, sendo figurada pela retórica e pela negociação. De fonnacomplementar, pela
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soberania que passa a materializar, o Estado moderno representaria a única instância social que deteria o monopólio legítimo da força, para manter a ordem social. 18 A oposição politica!força se desdobra na polaridade entre política e guerra. Esta oposic,;ão se c:onstituiu no discurso da filosofia política clássica, principalmente entre os teóricos do contrato social, 19 e pressupõe que de maneiras diferentes. segundo os diversos autores, o estabelecimento do Estado como instância política soberana regularia as relações primordiais de guerra entre as irldividualitlades e se instiruiria como lugar de garantia das relaçõ~s contratuais. Assim, se as suposiçucs antropológicas e as soluções enuncradas pelos diversos teóricos do contratualismo são evidentemente diferentes, a oposi ç~o polític:u/guerra e a passagem do estado de natureza das individualidades para o estudo político se encontmm no centro desta reflexão teórica. A formalização de Hegel também se inscreve no eixo desta polaridade, se bem que de maneira diferente, pois com Clausewitz o discurso hegeliano enuncia a guerra como a continua~·ão da política e esta regularia as relações de força inerentes às relações inter-humanas. 2 Foi no campo definido por esta oposição que MarK também representou a política no eixo sustentado pela guerra entre as classes, enunciando a luta de classes como sendo a categoria básica de sun lílosofia da hist6ria.21 Neste contexto, podemos destacar que as duas polaridades anteriores desdobram-se nas oposições ordem/desordem e regra/força, onde estas diferentes polaridades evidencinm cntegorias fundamentais para se pensar na problemática do poder. Estas quatro oposi\·ões detinem alguns dos eixos do discurso da filosotia política, com a finalidade de traçar a cartografia da questão do poder. Podemos sublinhar ugora como nn problemática do poder se destaca a problemática da morte, sendo esta o limite permanentemente evocado para a força e para a violência, de maneira a tornar possível as relações inter-humanas no espaço social. Com efeito. o terror da morte das individualidades é o cootraponto insistentemente recordado para a inserção dos agentes sociais nos universos da ordem e da regra, que apenas assim seriam capazes de estabilizar as relações de disputa entre os homens. Portanto, é face ao temor da morte e ao valor atribuído à continuidade da vida, que transcendem como valores ao registro da natureza e se inscrevem no registro simbólico, que se centram estes diversos discursos sobre o poder. Assim, foi no centro da oposiçiio entre a vida e a morte que o discurso fre~diano se inseriu para pensnr a problemútica do poder. Não porque Freud quisesse e se propusesse a pensar a questiio do poder diretamente, e se apresentasse como um autor do campo da fil?sofia política, mas sim porque
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a fonnulação da questão do sujeito n partir dos impasses das pulsões colocava a psicanâlise inevitavelmente frente aos efeitos do poder na constituição da subjetividade. Foi no espaço delineado entre a força e o símbolo que o discurso freudiano inscreveu o sujeito dn diferença e fundou a ética da singularidade da psicanálise. Po r isso mesmo, Freud teve que se defrontar com algumas polaridades fundamentais do discurso da filosofia política sobre o poder, como um enconlro rnarcndo pelo uestino e pela história de maneira inevitâvel.
O sujeito na diferença e o poder impossível1 "No enlanto, quase parece que analisar u ja a terctira destas profissões impossíveis, nas qiwis poúe·se de saída estar certo de um sucesso insuflei< nte. As duas outras, conlu:ciclas há muito tempo, são educar e governar". (S. Fre ud. Análise c:om fim e análiJe sem fim)
I. A bruxa enfe itiçada Os efeitos na psicanálise uc: :;ua difusão uo :>ocial são dissonantes com os pressupostos do discurs:> freudiano. Diferente do estilo pessimista e da ética trágica que perpassnm o discurso freudiano, a moderna psicanálise é marcada pelo otimismo e pela euforia na crença em promover a felicidade humana. Este é o reconhecimento inicial que precisa ser realizado para que possamos • delinear a problemática da política no discurso freudiano. Freud imaginou que estava levando a peste para os Estados Unidos, quando embarcava para as célebres conferencias na Universidade Clark2 e iniciava a epopéia americana da psicanúlise. A memória histórica nos evidencia que os norte-americanos pestificaram a psicanálise contra o disçurso freudiano. Esta mutação foi logo reconhecida por Freud, 3 que o destacou em diferentes momentos de sua obra ..~ A psic:rn:Hise foi transformada numa visão de mundo (Wetwnschauung), numa moral para a mo<.lelagem da individualidade às múltiplas exigênci
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tica e análise terapêutica. Desta muneirc1, a instituição analítica passou a regular o ensino, a transmissão e os critérios para a seleção de candidatos ao oficio de psicanalisar.6 Neste contexto, a psicanálise se instituiu como uma moral de regulação das individualidades numa ordem social altamente competitiva, em que se prometia a felicidade pela uquisiç:io de seus modelos de subjetividade, para a ascensão do indivíduo num espaço marcado pela grande mobilidade social. Par-a isso, transformou-se o pe1fil do movimento psicanalítico, que passou a empreender uma estratégia de normalização das relações humanas e que teve como condição de possibil idade a norn1alizaçiio dos analistas pela instituição psicanalítica. Nos anos quarenta e cinqüenta alguns psicanalistas eminentes, de diferentes tradições históricas e teóricas, dest~tcõJram os efeitos perversos na transmissão da psic~múlise que se articulava com essa reestruturação do campo analítico: Balint.7 Gitelson.8 N~u.:ht9 e Lacan. 10 O XVIII Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Londres em 1953, foi o cenário onde se encenanun alguns desses impasses. Da· mesma fom1a, A. Freud destacou a existência de tais efeitos perversos sublinhando a diferença entre a geração heróica dos analistas e a recente safra institucionalizada, onde imperavam os padrões de normalização sociaL 11 Enfim, o efeito fundamental deste processo social foi a tr;msfonnação que incidiu na construção da identidade do psic
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l'SI CANÁ U SE. Cli:NCIA E CULTURA
disso, o estatuto teórico incerto da psicnnálise entre os campos da ciência, da política e da ética colocou problemas fundamentais para as demais ciências humanas, que estabeleceram desde então um diálogo produtivo com a psicanálise, que ninda permanece em curso. A legitimidade social C'onquista<.la, porém, pela psicanálise, com base no reconhecimento de sua argúcia clínica e teórica, não consegue explicar a espantosa potencialidade de sua expansão no social. Assim, se o reco· nhecimento da psicanálise é a condiç·fio de possibilidade para uma difusão social, isso não se constitui•em condição :mficiente para a realização do processo de sua difusão. Para essa produção é preciso algo a mais, pois não é regulada apenas pelas potencialidatle s do discurso freudiano . Com efeito, a difus(10 social <.la psican!ílise ocorreu apenas em poucos lugares do mundo ocidental, enquanto em outros tal processo decididamente não aconteceu, apesar de ter existido o reconhecimento teórico do discurso psicanalítico. As razões para isso silo múltiplas e complexas. Não pretendemos discuti- tas aqui,'" mas apenas mapear essn diversidade para circuns· crever a problem(llica em pauta. Assim, nos Estallos Unidos, " difusão da psi<.:análise no social ocorreu entre os anos quarcnt;~ e sessent:l, quanllo se iniciou seu desinvestimento progressivo e o investimento em outr..1s formas de psicoternpia. 15 Da mesma forma, o boom psi<:analítico na r-rança se iniciou nos anos cinqüenta, tendo na figura de Lacan seu grande profeta. 16 DeseJe o início dos anos oitenta, porém, é crescente o desinteresse pela psican(tlise, que se evidencia na queda vertiginosa da dcnwnda paru unúlise. Na Ingluterra nuncu chegou a acontecer essa forma de difusão da psicanálise no social. apesar da reconhecida importância internacional que teve a sua instituiçüo e o prestígio de alguns de seus teóricos (M. Klein, A. Freud, D. Winnicor). Desde os anos cinqüenta, registra-se uma difusão maciça da psicanálise na América Latina, tendo inicialmente na Argentina e posterionnente no Brasil os seus cenários de florescimento. Por isso mes111o, u Assot:iação Internacional de Psicanálise e a intema<:ionnl lacaniana disputam no momento a hegemonia na América Latina, buscando ao sul do Equador a possibilidade de uma difusão política que não ex iste mais nos EsLados Unidos e na Frnnça. O que caracteriza a difusão da psicanúlise no social. diferindo do seu reconhecimento tcóriço e lcgitimidildc, é seu investimento como o grande mito da modernidade, o que somenle a~:onteceu em nlgumas formações soc iais num período circunsniro de tempo. Desta maneir.1, a psicanálise se instituiu como uma visrio de mundo, como um ~:ürr:ma ~om a potencialidade de interpretar qualquer dimensão d;t existllnria humana. É possível, portanto, encontn.1r respostas prontas e embalsamadas no discurso psicanalítico para qualquer uma das m a zel a~ hurnanitS. Enfim, num esti lo totalizante, a psica-
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nálise se institui como uma moral, capaz de oferecer um código fechado onde as individualidades encontram um mapu com direções infalíveis para seus percursos na incerteza da existência.
Il. A excentricidade da bruxaria Quando a psicanálise, porém, se transfonnn numa moral laica, não é mais freudiana, pois perde com isso a medida do seu lugar social e poder. Com efeito, o discurso freudiano atribuía à psicanálise um lugar de excentricidade no espaço social, excentricidade relativa, evidentemente, na medida em que criticava sistematicamente a poss ibilid~tde de sua trdnsfonnação num sistema moral com a pretensão totalitária de interpretação do mundo. 17 Por isso mesmo, nos últimos tempos, Freud empreendeu uma crítica sistemática da Weltanschauttn8 religiosa. tilosófica, política e médica, quando já começava se esboçar a transformação da psicamí lise num sistema moral. Nessas criticas, o discurso freudiano indicava que o sujeito.se fundava na jinitude e na incompletude, procurando destacar que a psicanálise não dispunha de meios para promover a salvação do homem, 18 pois pela experiência psicanalítica o sujeito era conduzido para o reconhecimento dos seus limites. Assim, se a psicanálise procurava ser uma das realizações culturais do sonho prometéico tia ciêncin. pretendendo ampliar o domínio humano sobre o universo das coisas e indicando para isso algumas pistas para o acesso à realidade psíquica, a possibilidade de:;se domínio foi sempre fo rmulada como sendo relativa. No discurso frcutliano, porém, esse relativismo não se deve apenas a mzôes de ordem llistóric:l -em função da precariedade do conhecimento científico :;obre o psiquismo e que pudesse ser corrigida no futuro pelas novas descobertus - mas a razões de ordem estrutural do psiquismo, na medida em que, com a dcsl·oberta tio inconsciente, o indivíduo perdeu o poder absoluto tle domínio sobre as coisas e sobre si mesmo. Por isso mesmo, o discurso freudiano pôde formular que a descoberta do inconsciente pela psicanálise representou a terceim grande humilhação no amorpróprio da humanidade, 19 pois da mesm:t forma como a teoria heliocêntrica de Copémico descentrou a Tern1 do sistema planetário20 e a teoria evolucionista de Darwin reduziu o homem ao :;eu devido tamanho na escala animal,21 o inconsciente descentrou o sujeito da consciência e destacou seus limites fundamentais .2 2 Portanto, a jinitude e a incomplemde humanas foram destacadas no discurso freudiano na çrítica dil religiiio, quando se reconhece que habitamos um mundo sem Deus e sem heróis, onde a figura do pai não é mais uma referência absoluta. 23 Esses mesmos atributos do sujeito, contudo, se reencontram na crícica freudiana da ciéncia, pois com o reconhecimento do
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inconsciente perdem-se tumbém as certezas advindas do conhecimento da realidade material e se avolumam ns incertezas oriundas da realidade psíquica. Da mesma fonna, a crítica da onipotênda do discurso da filosofia clássica apresenta-se sob a forma d.o,desenv.olviment.o.das ilusões da consciência.24 Finalmente, a crítica ao discurso da medicina se coloca pela formulação da inexistência da cura absoluta e da stllvaçiío pela tera~utica médica, pois a denominada cura psicanalítica pretende ser apenas a descoberta, pelo sujeito, da verdade singular de sua história pelo reconhecimento do seu desejo.25 Nesta perspeçtiva, a psicanálise seria a terceira grande humilhação na auto-estima da humanidade ao longo de sua história. pelo descentramento decisivo que promoveu do s ujeito em relação à consciência e ao pretenso domínio absoluto do indivíduo sobre o mundo, sublinhando os limites do sujeito e do discurso da ciência na sua legiferação sobre o universo das coisas.. Por isso mesmo, a psicanálise provoca resistências viscerais 26 mesmo quando parece enfeitiçar com suas verdades. A existência de fascínio pelas verdadês do inconsciente, porém, deve nos alertar para a mise-en-scene do eng~o. pois o inconsciente nos remete pnru p horror e as incertezas do gozo. E a certeza desse enfeitiçamento que os analistas não podem deixar de registrar, sendo para o reconhecimento dessa obv iedade que as gargalhadas estridentes da bruxa metapsícológica nos enviam. Enfim, o discurso freudiano ~pre senta a psicanálise como unta prática inserida nas fronteiras das possibilidades humanas, pois coloca o sujeito frente ao reconhecimento do território do impossível.
1/l. O imposJivel Freud fonnulou literalme1üe que psicanulisar era um empreendimento da ordem do impossível, ufinn:Jndo que educar e governar eram práticas sociais inseridas também nas fronteiras do impossí ve I, 27 "nas quais pode-se de saida estar certo de um sucesso insuficiente".28 Assiin; se para o discursá freudiano psicanalisar, educar e governnr são experiências iascritas nos limites do impossível, isso indica inicialmente uma unidade e uma identidade dessas práticas, apesar de suas diferen~·as. A enumeração destaca, porém. também a especificidade da psicanúlise na sua distinção com a pedagogia e a política, evidenciando que psicanalisar niio é ensinar como ser homem nem como se governa os homens. Esta fornm !ação indica que psicanalisar é uma experiên· cia impossível mas que se insere entre dois pólos fundamentais que delineiam o horizonte do impossível, considernndo o lugar fundamental ocupado pelo ensino e pelo governo nas sociedades humanús. Ao lado de outras pn\ticas sociais complementares, a edticação pretende algo mais do que ensinar, pois se propõe a construir o sujeito de acordo
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com as regras estabelecidas numa tradição cultural e num espaço social detenninados. Pelas práticas pedagógicas, pretende-se a produção de um ser-de-cultura, onde o sujeito é marcado pelo ethos e pelo habitus que regulam seu corpo e suas relações com os outros. 29 Em contrapartida, podemos fonnular esquematicamente que a política pretende realizar a gestão dos homens, regulando as ·relações de força entre os indivíduos, os segmentos e os grupos sociais. Foi nesta perspectiva que Weber fonnulou •que o Estado representa o "monopólio da coação fisica legítima",30 e que Marx representou a história em tem1os políticos como ..luta de classes" e o Estado como o lugar para o exercício da força pela classe dominante.31 Enfun, a categoria de força permeia es1as diferentes concepções e se coloca como sendo o outro da política. · Para o discurso freudiano, o que torna quase impossível as práticas da educação e do governo é o reconhecimento de que existe no psiquismo algo que se opõe radicalmeme à completa absorção do sujeito pelo Outro, pelas regras e pela linguagem, mantendo-se esse algO como extrínseco ao diálogo e à ordem simbólica. Esse algo a mais existente no psiquismo foi enunciado no discurso freudiano de diferentes maneiras, na dependência do momento do percurso. teórico: o inconsciente, o sexual, o id, a pulsão e a pulsão de morte. Não estamos dizendo que tais conceitos sejam idênticos, pois foram invenções realizadas por Freud para solucionar impasses teóricos e clínicos, em momentos diversos Ja sua obra. Apesar de suas diferenças, entretanto, destacaram esse algo a mais existente no psiquismo, que se opõe à submissão total do sujeito à ordem simbólica e ao diálogo com o outro. Portanto, é o reconhecimento desse algo a mais o que coloca a experiência da psicanálise nos limites do impossível, pois é a existência desse algo que pode conduzir o sujeito aos linútes da loucura e pam as fronteiras de sua singularidade, podendo conduzi-lo a uma existência sem saída e possibilitar·ao sujeito uma posição de diferença radical face a qualquer outro. Isso evidencia que a psicanálise trabalha com uma matéria-prima explosiva onde atravessa per· manentemente uma região perigosa, pois são muito tênues as fronteiras entre o possível e o impossível, já que está em questão o que é fundamental no sujeito. A leitura que o discurso freudiano realizou da educação e da política foi evidentemente parcial, pois interpretou os impas5
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A interpretação freudiana da política é essencialmente metapsicológi-
ca, sendo apenas deste lugar teórico que Freud pode enunciar qualquer coisa sobre a política e os impasses do exercício do governo. No discurso fremliano existe uma formulação sobre a política que é paradigmática, pois se enuncia que o poder é um lugar de representação do • impossível. Daí porque o excn:kio do poder, isto é, a govemabilidade, é desequilibrado por essência e não por mero acidente de percurso, na medida em que não existe qualquer possibilidade Je que a totalidade dos indivíduos, inseridos numa dada ordem social, se satisfaça igualmente nas suas demandas ao poder e seja contemplada pelo poder de acordo com seu desejo. A conseqüência dessa tese é que a gueJTa é a estrutura permanente que permeia as relações inter-humanas e sociais, podendo se realizar abertamente ou existir em estado latente. Desta maneira, a política é a prática social que pretende administrar estas relações bélicas constantes numa li alia orllem social e nas relações entre diferentes ordens sociais. Quando esta gestão se transforma numa atividade impossível, a guerra latente se transfonr~. numa guerra real. Portanto, se a . ~ d a po I'JtiC<~ . como pretend.ta li· ege I,32 Clausewt.,z33 e • guerra e' a contmuaçao 34 Lenin, o pamdoxo se evíllencia na medilla em que a política é a tentativa de gestão da guerra, que está sempre prestes a explodir com a maior crueza nas relações humanas, caracterizando um pennanente desequilíbrio nas relações sociais. · É a demonstração desta tese do discurso freudiano sobre a política e o poder que pretendemos esboçar em seguida.
IV.Incompletude,finitude e morte O esboço do campo psicanalítico delineado nas fronteiras do impossível, destacado inicialmente pelas categorias de finitude e de incompletude do sujeito, remete a conceitos fundamentais do discurso freudiano: a angústia de castração e a ordem simbólica. Esses conceitos são fundamentais para se pensar na constituição do sujeito no discurso freudiano, como sendo radicalmente sujeito do inconst·iente. O conceito de inconsciente no disct:rso freudiano corresponde à realização de uma produ~·ão psíquit·a, sendo um dos destinos possíveis das pulsões, onde Freud destaca diversas operações estruturais na gramática da . pulsão: o retorno sobre a flróprin pessoa, a passagem do ativo ao passivo, o recalque e a sublimação. .; O sujeito do inconsciente somente se constitui com a operação do recalque, que é um destino particular das pulsões, implicando um processo complexo e intrincado de inscrição da força (Drang) pulsional no universo da representação (Vorstellung).36
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Para a construção do conceito de sujeito do inconsciente, como um
destino pulsional, o discurso freudiuno se funda em dois pressupostos heterogêneos e opostos para representar a ordem humana: o corpo pulsional e a ordem simbólica. O corpo pulsiona! remete para o universo anárquico das pulsões, onde elas existem como forças e são parciais. As pulsões existem na exterioridade do psiquismo, sendo este detinido pela inserção e a modelagem das pulsões pela ordem simbólica. Pela definição freudiana, "o conceito de pulsão aparece como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico das excitações oriundas do interior do corpo e chegando ao psiquismo, como uma medida de exigência de trabalho ~ue é imposta ao psíquico em conseqüência de sua ligação ao corporal". 7 O que implica dizer que a puls:io não é uma força nem somática , nem psíquica. mas um ser de passagem entre a ordem da natureza e a ordem da cultura. É a inscrição da pulsào como força no universo da representação que delineia o horizonte para os diferentes destinos da pulsão e para os acidentes de percurso que se colocam necessariamente nessa inscrição. Assim, se a pulsão passa pelo Omro como itinerário obrigatório para a regulação da demanda de satisfação, na medida em que é no campo do Outro que se perfila o horizonte dos objetos de satisfoção, o efeito disso é a divisão do psiquismo (Spaltung) entre o pólo energético da pulsão e sua inscrição como repre· sentação através do Outro. Est:1 divisão estrutural do psiquismo destaca a incompletude do sujeito e sua alienação fundamental, pois é somente através do Outro que ele pode se constituir como sujeito e a pulsão pode realizar um percurso para a satisfação da pressão. Além disso, a divisão indica a finitude do sujeito, pois para sua constituição é necessário o apelo ao Outro, indicando o limite de suas possibilidades. No discurso freudi:mo, a angústiu de castração se insere numa série de angústias, que são equivalentes e regul:tdas pelo valor da perda.38 A perda evidencia a incompletude e a finitude do sujeito, pois ele demanda algo que lhe falta como condição para sua satisfação possível. A pulsão, como força constante e como exigência de trabalho permanente, indica a incompletude humana que lança o sujeito na pulsação interminável para obter, através do Outro, uma completude supostamente perdida (trauma do nascimento).39 Os objetos parcil1is, destacados pelo discurso freudiano (seio, fezes, pênis, corpo matemo, bebê), 40 são represemações i11ravés das quuis o sujeito evidencia a sua falta no circuito du pulsão e medi:mte us quais anseia restaurar o paraiso perdido da sua completude. Os objetos purciais, contudo, revelam também o . campo do Outru, pois é utravés do investimento libidinal do Outro que certas partes do corpo erógeno se destlu.:am e se inscrevem numa circulação intersubjetiva, como aquilo que é demandado e oferecillo como dom de
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satisfação, de maneira n direcionar os possíveis arranjos do circuito da pulsão com a finalidnde de realizar a possível satisfa~·ão. Assim, se os objetos parciais são equivalentes, isso indica não uma identidade essencial, mas gue eles remetem para uma mesma operação de busca de s~tisfação e de completude através do Outro, operação essa que se refrata e se reconstitui nos diferentes estitgios da história do sujeito: desmame, controle das fezes, diferença sexual. 41 O fundo comum que perpassa essas diferentes formns e regula os diversos circuitos pulsionais é, porém, o anseio do retorno no corpo materno como sendo n representação paradisíaca da completude, isto é , o lugar mítico onde não teria existido falta e onde o gozo se marcava na estrutura do ser. A angústia de cnstntçiio se destal'a na série das angústias de perdas e o phallus se destaca como objeto parcial justamente porque está no fundamento do <:omplexo de Édipo, que marca a diferença de sexos e a descontinuidade das gerações. onde u relação com a ordem simbólica se insere no primeiro plano da experiência psíquiça. A angústia de castração é a marca fundamental da incomplt!tude humana e o efeito primordial pelas transgressões do sujeito dos interditos que fundam a ordem simbólica. A figura do pai é a representação da ordem simbólica, a mediação fundamental para que a pulsão como força constante se inscreva no universo da representação, de maneira que o corpo possa se escrever <:omo símbolo. Assim, a figura do pai como representação da ordem simbólica é a mediação que se imerpõe entré a figura materna e a figura do infante, reiterando pura a mãe a transcendência da ordem simbólica e introduzindo o infante nessa ordem. A figura putema é a interpolação que se instaura entre o C
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os filhos. 43 Portanto, nesta representação freudi:ma, n ordem da cultura é uma sociednde fraterna, onde os irmãos <:omo iguais trabalham em conjunto, na qual a circulação da linguagem é o contrnponto ao lugar vnzio da figura do pai. Nesta perspectiva, a constituição do sujeito do inconsciente marcado pela finitude tem como solo fundante a figura da morte, na medida em que é a morte da figura da onipotência originária que é a condição de possibilidade para a const ituição da linguagem e do símbolo. A metáfora da morte é uma outra maneira de enun<:i:lr a angústia de castração como fundante do sujeito, pois indica um limite intransponível para a onipotência do gozo na descarga imediata das. pu lsões e estabe Ieee um intervalo que toma possível a inscrição da força pulsional no uni verso da representação. Destaca, porém, ao mesmo tempo, que o lugar do poder absoluto não tem figurante pennanente, pois a ordem da c.:ulLura se constitui como linguagem pela destruição de quem pretendeu algum dia o<:upar o lugar absoluto da posse dos be11s materiais e da totalidade dos corpos, matéria-prima para o gozo permanente. Enfim, no discurso freudiano, a ordem da cultura é fraterna, sendo pois uma associação entre pares que devem se comungar nas suas diferenças, tendo o lugar vazio do poder absoluto como a estrutura de fundo que regula sua reunião, suas intercessões e interdições.
V. Sujeito e cultura Assim, não ex.iste no disc:urso freudiano quulquer possibilidade de se pensar na exterioridade das categorias do sujeito e cultura, pois a constituição do sujeito impl ica o Ouu·o represenwdo pela cultura, sendo o sujeito definido radicalmente pela alteridnde no <:ampo social. O discurso freudiano, porém, indica ao mesmo tempo a existêm:ia Je ulgo no registro do corpo que não se inscreve como sujeito, pois não se absorve no Outro e impõe uma insistente diferença no campo do social. Existe·, portanto, uma desarmonia que é constitutiva da relação entre suje itos na cu h ura, onde o corpo pulsional marca permanentemente sua diferença face aos outros corpos no espaço social. O discurso freudiano nos coloca então diante de um paradoxo, afarmando ao mesmo tempo que o sujeito é impossível fora do campo do Outro e que existiria uma desarmonia fundamental entre o corpo e a cultura. Mas se consideramos que a pulsàl) é essenciulmente for~a. existente pois na exterioridade dá ordem simbólica e, por isso mesmo, exigindo um trabalho para sua inScrição no simbóli<:o, o paradoxo se desv;me<:e. pois indica a exterioridade radical da pulsiio face ao universo do diálogo e da negociação, matéria-prima do impossível.
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Vamos caminhar com mais suavidade na leitura destas proposições, explicitando um poul:O mais a primeira formulação para retomam1os em seguida a outra. Assim, seria ingênuo pensar na separação absoluta entre as categorias de sujeito e de sociedade no discurso freudiano. pois nesse o sujeito é imediatamcnlc:: rcprésentado no campo da intersubjetividade, implicando sempre outros sujeitos. Em venlade,esla separação é a leitura realizada
pelo pensamento individualista elo discurso freud iano, pois naquele o social é representado como uma ugrcgaç
... o ego, na sua relação com a ação, tem. por assim dizer. a posiç!o de um monarca constitucional, s~m •• san)'àu do
regularmente como moúclo, sustentáculo c adversário, e desse fato a psicologia inúividunl ~ também, d~ imediato e simuhancamente. uma psicologia social, nesse sentido ;unpliado mas perfeitamente j ustificado.45
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Nesta perspectiva, a oposiçiio não seria entre indivíduo e sociedade, mas entre "atos psíquicos sociais e narcís icos", dependendo pois do registro psíquico onde se inserem os objetos possíveis de satisfação no circuito pulsional: As relações do indivíduo com seus pais e com seus irmãos e irmãs, com seu objeto de amor. com o seu professor e com o seu medico, portanto todas as relações que constitulram até o presente o objeto privilegiado da investigação psicanalítica, podem ter a pretensão de ser consideradas como fenômenos ·sociais e se opõem enliio a alguns outros processos que denominamos nnrcísicos., nos quais a s;uisfação pulsionada subtrai à influência de outras pessoas ou renuncia a isso. A oposição entre os atos pslquicos sociais c rutrcísicos- lllculcr diria, t:llvez: nutísticos - se situa pois, exatamente no interior mesmo do domfnio da psicologia individual e não é de natureza para separar cssn de uma psicologia social ou psicologia das massas.46
Portanto. Freud enuncia a existência de níveis diferentes do circuito pulsional, onde o Outro está implicado ou descartado, e que a força puls ional se inscreve no verso da representação ou existe em estado puro, pois na leitura metapsicológica o indivíduo funciona simultaneamente em registros diferentes. O que implica alinnnr que o sujeito é de ordem intersubjetiva, exigindo a referência a outros sujeitos para sua constituição. Além da presença de outros sujeitos, porém, o corpo pulsionnl se polariza face a uma alteridade estmtural, onde o Outro é representado pela linguagem, lugar onde se articula o sujeito do inconsciente pela inscrição das forças pulsionais. Enfim, é a ordem da linguagem que realiza a mediação possível entre os diferentes sujeitos, materializado:; na sua tessitura pela morte da figura onipotente do pai e do poder absoluto. Podemos retomar agora a segunda f ormu!ação, que indica va o aparente paradoxo no discurso freudiano. Assim, a pesnr do sujeito do inconsciente ser constituído pelo Outro e ser de estatura imersubjetiva, existe algo a mais no aparelho psíquico que não é hannônico com a cultura e não se absorve na ordem da linguagem, produzindo com isso a diferença mínima e insofi smável na relação do sujeito com o corpo. O corpo e o erotismo não são absorvidos inteiramente pelo Oulro e tnmsforma
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para realizar a costura impossível entre o universo da força e do mundo da representação. É evidente que esta costura não se realiza necessariamente, na medida em que o percurso deste intervalo estã sujeito a impasses e mesmo a obstáculos intransponíveis, já que não é um processo regulado por determinismos naturais. A heterogeneidade entre a ordem pulsional e a ordem simbólica é o que funda a possibilidade dos impasses e obstáculos, de fonna que as pulsões podem ter diferentes destinos no mundo da representação. 47 Esta diferença mínima entre o eu sinto e o eu devo no imperativo categórico freudiano é o que pode permitir que o sujeito constitua um estilo singular de e11:istência, marcando de maneira radical sua diferença face a qualquer outro sujeito, mas é o que pode conduzir também à impossibilidade absoluta dessa constituição subjetiva e à produção limite de modalidades diferentes de experiência do sujeito nn cultura, o que é fundamentalmente perpassado pelo conflito, não existindo então qualquer possibilidade de superação absoluta da diferença estrutural entre o corpo e a ordem simbólica. O abismo entre essas ordens é intransponível, de forma que quanto maior forem as exigências do Outro maior será também o mal-estar na <.:ultura,48 já que com isso o eu . sinto marcará seu intervalo intran~ponível frente ao eu devo e demarcará o território do impossível. É em função deste fundamento <.:onflitivo da subjetividade que a idéia de cura no discurso freudiano não se identifica com a demanda de adaptação do sujeito no social, pois essa exigência pressupõe uma harmonia impossível entre o universo das pulsões e o mundo simbólico. Por isso, a experiência psicanalítica é infinita,49 não existindo costura possível que anule o intervalo estrutural entre a ordem pulsional e a ordem da representação, retirando para sempre o sujeito do mal-estar na cultura. A existência ueste conflito estrutural entre o corpo pulsional e a ordem simbólica nos permite destacar a di mensão teórica do conceito de pulsão de morte, pois essa seria a forma radical da existência da pulsão, isto é , a pulsüo como força constante e como exigência absoluta de gozo pela descarga total. A pulsão ue morte é a modalidade de existência do pulsional que não se inscreve no círculo do Outro sob a forma de representantes (represemnnte·rt!prese ntayão e representante afelivo), não se simbolizando e se opondo a qualquer simbolização, pois pretende a realização da completude e do gozo absoluto; pela descarga imediata e sem qualquer mediação. Por isso mesmo, a pulsão de morte fo i repre· sentada no discurso freudiano pelu figura retórica do silêncio, como uma modaliuade de anti-reprcsentavão, 50 já que o silêncio é a ausência de palavras, apesar du existência de ruídos e barulhos desarticulados que delineiam o cnmpo do si lêncio.
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Esse discurso foi enunciado detinitivamente por Freud no final do seu percurso, na obra Mal-estar na cultura, quando expôs inicialmente a desarmonia fundamental entre o psiquismo e a ci~ilizaífo, em fu.nção d.a existência da pulsão de morte como poder de destru tção. Em segutda, o d1scurso freudiano considerou que o desenvolvimento histórico da civilização, pelas demandas crescentes que impõe às individualidades, promove o incremento do conflito psíquico pelas renúncias que exige do corpo pulsional.52 As diferentes técnicas inventadas pela humanidade, ao longo de sua história. para se desviar destas renúncias ou para melhor absorvê-las pela racionalização, se mostraram impotentes, revelando em última instância os impasses que a civilização impõe pam o sujeico. 53 A resultnnte maior disso é o mal-estar na cultura que se incrementa com o desenvolvimento civilizatório e impõe renúncias crescentes ã subjetividade. Enfim, a produção da violência e da agressividade é o correlato necessário do processo civilizatório, no registro intersubjetivo, ao mesmo tempo que o seu outro, o masoquismo. Neste contexto, esboça-se o horizonte possível onde se insçrevem as categorias de política e de poder no discurso freudiano, pois, inserido na ordem social permeada estruturalmente pelo mal-estar, o sujeito incompleto e finito pretende não apenas marcar sua diferença absoluta frente aos demais sujeitos, mas também buscar realizar sua completude dionisíaca de qualquer maneira, rivalizando com os outros sujeitos para a conquista dos precários objetos de satisfação e dos espaços de produção desses objetos. Qualquer solução pretensamente igualit:íri:J, definida a priori por uma instância de planejamento da produção e da distribuição da riqueza da soberania absoluta, se apresenta como impossível, jCt que a demanda dos diferentes sujeitos é singular e a regulação da satisfação é estruturalmente desigual. Daí porque a descrenÇa freudiana na solução socialista, tal como ela se perfilava nos anos trinta, com o discurso stalinistn da pós-Revolução Russa e da construção do Estado sov iético. 54 Assim , as relações entre os homens se apresentam como um estado permanente de guerra, já qúe impera u disputa pelos objetos limitados de satisfação e o confronto de forças é um obstítcu lo poderoso à hannonia sociaL Neste campo de forças, o exercício do governo é uma prática social nos limites do impossível, sendo a política a tentativa de gestão, pennanentemente recomeçada, da guerra insistente que penneia as relações inter-huma· nas pela posse dos objetos de prazer. Por isso mesmo, como prática social, a politica se inscreve nas bordas do impossível, pois pretende legislar nas fronteiras de um t~rritório que indica a oposição ativa do sujeito à absorção pela ordem simbólica.
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VI. Massa, horda e poder Esta formu!ação sobre o impo~sível na polí;ica, constituída pela oposição entre os reg1stros do corpo puls10nal e da ordem simbólica foi tematizada de outras maneir:a no discurso freudiano. Nós indicamos ante~ionnente que para F~e~d a .~po~~çã~ fun~amen!al,; nlio se encontrava entre a "psicologia in. diVIdunl ~a pstcolog1a socJal , mas entre os registros social e narcísico.ss A econo~•a e as figu~as do narcisismo vão nos pennitir indicar agora, num outro reg1stro mel~psJcológico, o que tematizamos até agora pela oposição entre o corpo puls•onal e a ordem simbólica. No discurso freudiano a economia do nurcisismo se materializa em figums fund~mencais, que revelam diferentes relações com o Outro e com o ~razer, co.nsJderando este como o valor de regulação da subj~·ti vidade: o ego 1deal e o 1deal do ego. Assim, enquanto no ego ideal o eu se coloca como sendo o seu próprio ideal, não exis]indo então qualquer instância transcendente no estabelecimento do ideal. no ideal do ego o eu se submete a um valor transcendente que funciona como mediação entre os sujeitos. O que implica dizer que a alteridade ~omo .v~lor en contra~se presente apenas no registro do ideal do ego, onde ex1ste etehvnmente o cumpo da intersubjetividade o que não ~or:e no e?o ide?J.S~S7 A decon·ência. disso é que o ideal do ego e'o superego · S;ã~ mstílncJas ps1qutcas que se constituem pela elaboração do complexo de Ed!~· enquanto que o ego ideal, apesar de se ordenar nas fronteiras da estrutura edtptana, está inscrito na exterioridade do complexo de Édipo. Po~t anto, podemos dizer que o ideal do ego implica a incidência e o reco~ hec1mento da ordem simbólica nu relação do sujeito com o seu corpo pulslonal e com o outro, enquanto que no ego ideal existe a incidência mas n.ão ~ ~econh.ecimento da ordem simbólica. Existe, então, meuiação pelo stmbol1~0 no tdea.l do ego, mas essa mediação se encontra ausente no registro ~o ego 1deal. A ~tfe~ença de sexos e as identificações secundárias apenas se mscrevem no pstqUJsmo com o ideal do ego e com o complexo de Edipo. É neste contexto apenas que o sujeito reconhece a paternidade como fundada ?a fig~ra da morte, promovido pela castração da müe fática e da onipotência mfant1l co~o. representa\·ões do ego ideal, e a palavr.t pode então circular entre os SUJeHos como maneira de inscrição da diferença subjetiva e da ordenação do diálogo. O conc.eito d~ narcisismo das pequenas diferenças, introduzido por Freud em Ps1co!ogw das massas e análise do ego,58 é uma outra maneira pa~a s_e tematiza~ a problemática do mal-estar na cultura para a subjetividade, po1s e pelo cammho do narcisismo uas pequenas diferenças que os corpos estabelecem relaç~s de oposiçilo entre si, pura se distinguirem radicalmente e para o estabelecimento de fonnas diversos de dominação. Peta tentativa de
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domlnio sobre o corpo do outro, o sujeito pretende extrair os objetos passiveis para a promoção do gozo (ego ideal), mas é pelo obstáculo permanente que é interposto para essa violação predatória que se constitui também um sistema de diferenças entre os sujeitos (ideal do ego), inscre vendo aeconomia do narcisismo num espaço intersubjetivo regulado por valores transcendentes ao gozo imediato e absoluto. Na tematização deste conceito, o discurso freudiano destaca como o narcisismo das pequenas diferenças transcende o campo da individualidade e se inscreve no campo d:ts diversidades inter-humanas: família, grupos sociais, segmentos sociais, classes sociais e estados. 59 Seria pela oposição das unidades da mesma espécie entre si que se constituiria e reproduziria a própria identidade das unidades no cnmpo do confronto, marcando cada uma delas sua diferença pam com as demais,60 numa guerra permanente de posições.61 Então, como no discurso hegeliano,62 a guerra tem no discurso freudiano uma efetiva dimensão estruturante das diferentes identidades, pois permite a constitui~o e a remodelaçüo in tini ta das unidades inter-humanas. Ao lado disso, porém, a guerra tem também sua dimensão destrutiva, pela ânsia de dominio sobre o outro que promove e pela pretensão de cada uma das unidades em confronto de impor o seu sistema de valores como superior ao dos outros. É esta leitura teórica que pennite a Freud representar metapsicologicamente a massa e enunciar que o homem é um animal de horda. Assim, na orgltnizaçiio da massa, a singularidade subjetiva se apaga, as diferenças se anulam, as subjetividades se tornam homogêneas diante do imperativo • categórico do eu devo representado pelo líder carismático. Em função disso as subjetividades. quando dissolvidus no corpo da massa, se tomam capazes de realizar atos para os quais estariam incapazes se estivessem sozinhas. O . poder: carismático da palavra do líder é o catalisadorda organização da massa e de suas ações, homogeneiznndo a~sim a massa pela constituição simultânea de objetivos e inimigos comuns. A fusão, porém, das singularidades num bloco compacto tem um limite estrutural infalivel, caso o carisma do líder não consiga ~nunciar fin alidades comuns e inimigos na exterioridade da massa para manter sua economia narcísi<:a, pois caso contrário a violência implode no campo da organização de massa pela mise-en-scene do natcisismo das pequenas diferenças que se insinua entre as singularidades. Seria portanto neste sentido que o homem é um :tnimal de horda e não um animal de massa, pois existiria ulgo no sujeito que se opõe radicalmente à sua absorção completa ~lo simbólico e indica a sua diferença em algum momento do processo. ' A massa apresenta uma organização complexa e polarizada, numa leitura metapsicológica. Assim, elliste o agrupamento homogêneo dos iguais, que se contrapõe à figura do líder como agenciador da massa. O Uder
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representa o ideal do ego, mas frente 11 esse centro destacado as indivi~ dualidades perdem momentaneamente suas diferenças face ao ideal maior. A organização da massa se fun!.laria na crença. do grupo no carisma do seu líder, na crença no seu poder onipotente. Qualquer mácula nesta representação, porem, é capaz de produzir a fratura da organização, levando a massa ao pânico, à desorganização e à debandada geral. Além disso, a figura do líder deve ter uma habilidade especial para manter uma distância mínima entre seus liderados, permitindo a existência de diferenças, pois senão o narcisismo das pequenas diferenças pode implodir a organização coletiva.64 Enfim, este é o paradoxo da figum do líder e que indica os limites estruturais d.o seu poder, destacando a dimensão impossível do seu governo sobre os homens, pelos impasses colocados à satisfação das demandas heterogêneas da massa. A fascinação da massa pela figura do líder se alimenta da promessa de compleJ.ude que ele anuncia e que se superpõe à demanda das individualidades por esse bem supremo. Esta é a leitura freudiana da existênci~ da transferência positiva, .mas também é a construção teórica para a interpretação das experiências do hipnotismo e da sugestão.65 Entretanto, a fascinação se rompl abruptamente na massa pelo desequilíbrio libidínal produzido pelo narcisismo das pequenas diferenças, que impõe as <.liferenças mínimas das singularidades entre si e de cada uma delas com a figura do líder. Neste momento o líder perde seu carisma -e poder onipotente, de forma que sua possibilidade de exercício de governabilidade é radicalmente colocada em questão. Na experiência psicanalitic.a esta transformação se apresenta na mudança do registro da transferência. em que esta, de positiva, se transforma em negativa,66 . Neste çontex to, se a figum dglfder contornar o impasse pela imposição autoritária d.o seu poder e de sua força, .a massa pode ainda se submeter por um certo tempo, acreditando.novamente na promessa da completude.que lhe é oferecida. Rebela-se, porém, em seguida, de . maneira glob.al e local, destituindo o líder que já perdeu seu curisma, pela dinâmica do narcisismo das pe9uenas diferença$. E preciso dest!}car que a leitura freudiana da organização metapsicológica das massas indica um pamdoxo imponante, que se desdobra numa série de efeitos .e indica questões fundnmemais. Com .efeito. Q poder se apresenta, por um lado, como um lugar impossível de $Cr ocupado de maneira absoluta e soberana por qualquer um, pelos impasses que sublinhamos, mas, por outro, a leitura indica que o poder é um lugar ft}ndarnental para o sujeito, pois é pelos efeitos irradiantes da sua estrutura que se produzem.as singula· ridades e as pequenas diferenças subjetivas. . Como se fundamenta este paradoxo? Freud construiu uma teoria para soh,1cionar os impasses de.tal paradoxo, e.nunci~ndo que o lugar da figura do
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Jíder deve ser mantido Como Ulll lugar vazio, na médida em que é um lugar impossível de ser.oc-upado integmlmente por qualquer figura humana. Esse é o lugar do pai morto, da reminiscência da onipotência humana, que deve ser limitada para que se constitua a ordem simbólica como o seu outro, condição de possibilidade para o mediação entre os sujeitos pela linguagem. Dito de outra maneira, o vazio nesse lugar soberano indica a existência de um mundo sem Deus, mundo secularizado pela ciência e dominado pelo poder dos homens. Nesse mundo desencanta!.lo.os.bomens devem inventar suas formas de saber e reinventar permanentemente seus discursos, para estabelecer o diálogo entre si e remÇJdelar a paisagem do universo. O lugar vazio do Deus inexistente, porém, indica também a demanda interminável de simbolização a que está destinado o sujeito, condição indispensável para a transformação do universo das coisas, reinvenção permanente das formas de relações inter-humanas e a constituição da experiência da nist6ria. Esta formulação foi inaugurada em Totem e tabu, obra que se encontra nos primórdios do percurso freudiano sobre o poder e sobre os limites da simbolização humana. ·
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V/1. A lei e a morte Vamos esboçar esta problemática, retomando a constituição da teoria do poder em Totem e tabu onde a morte e o poder absoluto se colocam como categorias fundamentais , destacando o di se urso freudiano uma série de temas que são centmis no discurso da filosofia política sobre o poder. · No capítulo final de Torem e labu fomm introduzidos no discurso freudia67 no a figuro da morte do pai primordial e o mito da horda primitiva. Depois de enunciada pela primeira vez, a nnrrutivu desse mito retomará posteriormente e~ diferentes momentos do discurso freudiano, para destacar a transcendência fundadora da morte do pai p::u11 o sujeito, a culpa primordial na ordem humana, 68 e a conseqüente constitui~•io da cultura, da sociedade e da história humana. Freud nos relata uma experiência primordial que estaria nas fronteiras da natureza e da cultura, demarcando a constitui~ão do sujeito, da sociedade e da história. A narrativa é marcada pela construção mítica, na qual se evidencia a ausência ún comprovação hi~t6rica fornecida pela memória da humanidade. Trata-se, por1anto, d~ um mito das origens. Qnde o que funda a narrativa é a reminisc€ncia do sujeito e não a ordem da memória, reminis· cência essa que se revela pela experiência da.repetição que se apresenta no · processo psicanalítico. De acordo com e~su paráboln, teria existido algum dia uma figura pntema que detinhn o poder absoluto sobre as riquezas e os bens de prazer~ usufruindo (.le maneira soberana da totalidade dus forttes de gozo. O pa1
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primordial era o detentor da totalidade dos bens materiais e das mulheres, mesmo as que fossem as suas tilhas. Essa figura paterna ameaçava com a morte quem se insurgisse contr.t o seu poder soberano, mesmo os que fossem os seus filhos. Enfim, teria existido na horda primitiva um estado de coisas caracterizado pela onipotência absoluta em detrimento de todos os outros, onde imperava a ausência de qualquer lei, à qual, como instância transcendente, todos devessem se submeter em condição de igualdade e que definisse as interdições fundamentais da ordem humana: o incesto e a morte. Os demais homens da horda, filhos do pai primordial, sentiam-se prejudicados pela ordem existente, pois não poderiam desfrutar de qualquer forma de prazer sexual e usufruir das benesses da riqueza. Sendo, porém, cada um deles mais fraco que o pa i, não podiam desafiá-lo, pelo temor do aniquilamento. A solução para esse impasse foi encontrada quando os mais fracos resolveram se associar para combater o pai gigantesco, reunindo suas forças precárias e constituindo então uma força hercúlea para desafiar o pai. Desta maneira, o pai primordial foi assassinado pela associação dos irmãos, que constituíram um pacto em que ninguém poderia ocupar o lugar da figura pacema e exercer o poder tirJni(;o sobre os demais. Assim, ter-se-ia constituído o lugar do pai como um lugar vazio e virtual, onde se erigiu um totem simbolizando a sua presença e simultaneamente destacando a sua ausência. Nesta posição, regulada pela oposição entre presença e ausência, a figura paterna não é evidentemente uma figura real mas um simbolo, delimitando um espaço potencial onde se funda o poder. A patemidmle como símbolo do poder remete para a experiência da morte. A figura da morte, porém, reenvia pam a onipotência absoluta e para o poder soberano, que recebem com a associaçcio hu!llana um limite violento para suas existências. No discurso freudiano, po1tanto, existe uma articulação orgânica entre a morte, o símbolo e a ordem social, pois é a morte da figura soberana do pai primordial que é a condição de possibilidade para a associação entre iguais, pela mediação da linguagem e pelo estabelecimento do pacto simbólico. Foi neste sentido que Freud retomou no tina! de Totem e tabu o apotegma faustiano ''no principio era ação", 69 pois seria o assassinato do pai primordial a condição de possibilidade paru a constituição da ordem simbólica e para a instituição de um pacto social que regularia a relação de troca entre os iguais. Entretanto, a associação entre iguais que se reconheceram como fracos, visando com isso a mone da figura do pai primordial, seria o operador fundamental desse conjumo de tr.tnstonnações constitutivas da ordem simbólica.· A produção e a presença da figura do totem seriam a representação do pai morto, destacando a experiência primordial para a emergência da ordem social e da cultura, indicando o limite traçado par:t a onipotência originária como condição de possibilidade para a constituição da ordem simbólica. A
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morte seria o destino infalível para qualquer um dos participantes da associação humana que pretendesse ras urar o pacto simbólico e exercer o poder absoluto. Portanto, com o estabelecimento da ordem simbólica se define ao mesmo tempo o limite absoluto, isto é, a morte e a castração, para qualquer um que tenha a pretensão de ocupur o lugar da figura do pai, para gozar de maneira absoluta com a totalidade das mulheres e das riquezas. Enfun, estabelece-se a proibição do incesto como o interdito fundamental da ordem humana e da cultura, intimamente ligado à figura da morte e ao limite face à onipotência primordial que se marca no corpo. Quando o discurso freudiano retoma a essa problemática em O ego e o id, para tematizar a constituição do sujeito nas suas identificações primordiais, a figura do pai morto é enunciada com a mediação fundamental para que sejà possível ao proto-sujeito a experiência da perda dos objetos das pulsões: seio, fezes, pênis.1° Freud formula que, ·sem a mediação do pai morto, não existe qualquer possibilicf·lde de impor limites intransponíveis às exigências do gozo pulsional e conseqüentemente à emergência do desejo, pois esse se constitui apenas pela perda limitadora do gozo pulsional. Evidentemente, essa seria a condição de possibilidade para a constituição do sujeito como desejante. Porém, a figura do pai primordial estaria inscrita num registro além da diferença sexual, não sendo nem pai nem mãe, nem homem nem mulher, pois não seria marcada pela diferença sexual, sendo então a sua morte o limite imposto à sua onipotência, de onde deriva genealogicamente no psiquismo a identificação primária e posteriormente a diferença sexual.7 Assim, o discurso freudiano sobre o poder enuncia que é impossível a ocupação eterna do lugar absoluto do poder, pois o preenchimento infinito desse lugar de máxima onipot~ncia tem como conseqüência inevitável ·a morte de quem tem a pretensão em ocupá-lo. Essa é a condição de possibilidade para a existência de um mundo sem Deus e para a constituição de uma sociedade democníticu, em. que.o lugar do.podernão é ocupado..etemamente por nenhum mortal e onde a soberania é distribuída em diversos domínios do poder político regu.lu.nneme re;r~~aliada pela ordem social. Por isso mesmo, esse lugar é para se manter vazio, pois é seu vazio que é a condição de possibilidade da ordem simbólica e do seu correlato que é a ordem social. Da mesma forma, a política e a história apenas se constituem como efeitos privilegiados da produção deste espaço potencial, do vazio do poder absoluto. Entim, seria esse vazio que possibilitaria a constituição dos interditos fundamentais da ordem humana, em que a figura da morte seria o operador primordial, pois impõe um limite absoluto para a onipotência originária, possibilitando a constituição da linguagem e da ordem social.
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VI/l. A morte, a piedade e o social Freud enuncia o mito da horda primitiva como um fragmento discursivo retirado de Darwin. A problemútica que se encontra presente na leitura freudiana, porém, transcende a n:fcrência biológica, reenviando para o arquivo discursivo da filosofia moral e política do século XVIII. Parece-nos que o discurso freudiano retoma uma questão central da filosofia política clássica, imprimindo uma leitura psicanalítica. Na filosofia do contrato social era fundamental delinear as condições de possibilidade
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manutenção do valor fundamental·desse direito que seria a vida. Então, para
a manutenção da vida díante da ameaça de morte, cada um dos indivíduos teria alienado uma parcela do seu poder a um soberano, que ~assaria a mediar pela lei as diferenças e os atritos entre as individualidades. 2 Em contrapartída, Rousseau atribuiu à piedade face ao outro, no contexto da rivalidade bélica pela sobrevivência, o valor fundamental que faria com que cada individualidade renunciasse ao seu poder absoluto e constituísse uma ordem social pela associação com os outros. Seria, então, a recusa de matar e de destruir o outro que faria com que cada individualidade estabelecesse um limite ao seu poder absoluto, alienando uma parcela do seu direito natural para que tomasse possível a constituição da ordem social que . regularia a relação entre os indivíduos.73 A primeira questão a ser respondida aqui é se é possível indicar a presença do pensamento de Hobbes e de Rousseau em outras passagens no discurso freudiano, já que quando Freud enuncia a existência do mito da horda primitiva em Totem e tabu, sua referência direta é Darwin. Em seguiqa, é preciso destacar a modalidade de apropriação realizada por Freud dos discursos de Hobbes e Rousseau, sublinhando a interpretação freudiana da problemática da filosofia política clássica. . Assim, a referência a Hobbes é bastante óbvia no discurso freudiano. principalmente, com a formula~·ão da existência da pulsão de morte na segunda teoria das pulsões, pois avolumam-se as referências no texto freudiano à máxima do Leviatã: "o homem é o lobo do homem... Com efeito, no • Mal-estar da cultura o imperativo da élica cristã centrada no paradigma do "amor ao próximo" é criticado como sendo psiquicamente insustentável, ao que Freud contrapõe o imperativo élico "o homem é o lobo do homem", retirado da filosofia moral de Hobbes, como mais condizente com a lógica da pulsão de morte.74 A marca da tragicidade da é.tica freudiana no final do seu percurso teórico é fundada no reconhecimento desta verdade, que se baseia na lógica mortífera do nru·cisismohumano e nos desdobramentos da pulsão de morte como pulsão de destruição. A primeira teoria freudiana do sadismo, porém, é marcada pelo pensamento de Rousseau, pois Freud formula na sua teoria das pulsões que. estruturnlmente, o sadismo é anterior uo masoquismo e que a transfonnação do sadismo originário em masoquismo seria realizada pela expe,rj~ia psíquica da piedade. Vale dizer, seria pela piedade ao outro, onde é extravasada a descarga da pulsão de domínio,7s para não destruir o outro, que o proto-sujeito desinveste da violência sádica originária e retoma a violência sobre si mesmo, estabelecendo então a diferença originária entre dentro e fora, para se constituir como sujeito numa experiência marcadamente mascr quista.76 Em contrnpartida, na segunda teoria das pulsões, Freud estabelece
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PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULnJRA
o primado do masoquismo sobre o sadismo, na medida em que a pulsão de morte~ originária e não uma derivação do sadismo. de forma que o protosujeito prefere promover a morte do outro para não desaparecer na autodis. solução pelos efeitos da pulsão de morte em estado puro.71 Nesta perspectiva, podemos fonnular que, na passagem da primeira para a segunda teoria das pulsões, o discurso freudiano se deslocou de um paradigma que o aproll.imava de Rousseau para um outro que o aproximava de Hobbes, indicando com isso os limites impostos ao operador teórico da piedade e a incidência do conceito de pulsão de morte. Desta fonna, o discurso freudiano sublinhava a passagem do imperativo ético do cristianismo; que enunciava que se "deve amar ao próximo como a si mesmo", para o imperativo ético de Hobbes, pelo qual"o homem é o lobo do homem". A descoberta freudiana da economia do narcisismo, com as suas múltiplas derivações no aparelho psíquico pelas djversas estruturas ideais e a articulação de algumas dessas estruturas com a economia da pulsão de morte, desempenhou um lugar fundamental na transformação no imperativo ético que regulava o discurso freudiano. . . Podemos deslacar ainda, porém, a presença de um outro md1cador teórico desta problemática do discurso freudiano. Com efeito, a primeira teoria das pulsões é definida pelo conflito entre as pulsões sexuais (libido) e as pulsões do ego (interesse), na qunl us pulsões sexuais apontam para um pólo hedonista da natureza que seria regulado pelo pólo social dos interesses do ego, que interditaria a natureza paradisíaca do homem.11 A resultante disso seria inevitavelmente o conflito psíquico implantado na inserção do sujeito na ordem social, de forma que "a moral sexual civilizada" teria necessariamente como ·conlnlpartida "a enfennidade nervosa dos tempos modemos".711 Enfim, esta seria uma oulnl referência teórica importanle de uma temática deslocada do discurso de Rousseau no pensamento freu· diano, deslocada porque Rousseau nllo fala da sexualidade na abordagem dessa temática, mas que nos indica que Freud tinha acesso à problemática teórica do arquivo discursivo da filosofia ~lítica do século XVIII. Esta é a questão crucial-que pretendemos destacar neste comentário. Não estamos dizendo que Freud é um comentador de Rousseau e de Hobbes, nem tampouco que Freud seja um teórico que utilizou sistematicamente as categorias e as temáticas da filosofia política clássica. Em contrapartida, queremos afinnar que a retomada do mito darwinista da horda primitiva no discurso freudiano passa pela pmblemática da <.:onstrução da ordem social e da ordem polftica, que se encontra presente nestes autores fundamentais da filosofia política e moml do século XVIII. A leitura freudiana de Darwin, portanto, nlio é naturalista, na medida em que a preocupação de Freud 6
O SUJEITO NA .OIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL
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sublinhar como o pacto simbólico é ao mesmo tempo um pacto social e um pácto político, marcando a passagem do registro da natureza para o registro da cultura pela morte do pai primordial, pela constituição da lei e pela instituição da associação entre os homens. Nesta perspectiva, foi a problemática teórica da filosofia política clâssica, retomada no discurso freudiano de maneira específica pela teoria das pulsões, que definiu a direção crucial que Freud imprimiu na leitura do discurso de Darwin sobre o mito da horda primitiva, onde foi inserida uma série de temáticas que estavam ausentes do discurso de Darwin e que se encontravam presentes na interpretação freudiana. O que implica dizer que a 1eoria freudiana do sujeito, ern que a ordem simbólica é o seu outro, tem como correlato uma concepção psicanalílíca sobre a ordem social e o poder, na medida em que na sua teoria o sujeito não pode ser representado como uma mônada isolada na exterioridade da ordem simbólica, da ordem social e da ordem política. Enfim, no discurso freudiano o pacto simbólico implica ao mesmo tempo o pacto social e o pacto político. Estabelecida, porém, esta problemática teórica similar e algumas das filiações teóricas presentes no discurso freudiuno sobre o sujeito e o poder, é preciso deslncar agor.J esquematicamente algumas das diferenças entre estes teóricos, para não suponnos que se trale de referenciais teóricos idênticos. Pretendemos sublinh:tr com isso a especificidade da leilura freudiana sobre o poder, marcando sua diferença nesse campo de semelhanças. Assim, no discurso teórico de Hobbes e de Rousseau, é importante o referencial da filosofia da consciência, mesmo que não se possa considerar esses autores como inseridos na tradição cartesiana. A referência, porém, ao ser da consciência é fundamental nos discursos filosóficos de Hobbes e Rousseau, onde a categoria de contmto social é um conceito crucial para que se possa representar a passagem da idéia de indivíduo em estado isolado para sua inscrição nos registros social e político, pois essa transfo1111ação que implica renúncias e perdas pura o indivíduo no estado de natureza passa necessariamente pelo câlculo e pela deliberação do eu e da consciência. Em contrapartida, o discurso freudiano formula que a associação entre os innã.os é o efeito da culpa pelo assassinato da figura paterna e não um contraio soc1al deliberado pela escolha livre e autônoma da consciência. Trata-se, en1ão, de um paclo originário mediante o qual se ordena ao mesmo tempo o sujeito e o social, nlio existindo pois qualquer subjetividade antes do estabelecimento do paclo simbólico. Desta maneira, o 4õujeito se conslitui no registro do inconsciente tendo a ordem simbólica como o seu Outro, não existindo pois no discurso frçudiano as categorias da consciência e do eu como instâncias psíquicas autônomas, que seriam decisivas para a escolha e a deliberaçüo.
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IX. O poder, a verdade e a morte O que se destaca, porém, como a questão comum entre o discurso freudiano e o discurso da filosofia política clássica, mesmo considerando suas diferenças fundamentais, é a problem~tica da morte. Para estes teóricos seria impossível pensar na questão do poder sem inserir a temática da morte, sendo a morte a questão crudul que se encontra como a fonte primordial do poder e em tomo da qual o poder se organiza como dominação. Essa relação orgânica entre a morte e o poder transcende o quadro da filosofia política clássica onde ela foi anunciada e marca o discurso da modernidade sobre o poder, indicando ao mesmo tempo como a enunciação da verdade é regulada pelas relações de força. Desta maneira, o discurso freud iano sobre o poder se inscreve no horizonte teórico entreaberto na modernidade, onde se desenvolveram de maneira decisiva as relações entre a morte, o poder e a verdade. Assim, a problemática dn morte é fundamental na reflexão hegeliana sobre o poder e sobre o sujeito, pois seria n ameaça da morte do senhor que define a aceitaçilo do escravo de sua condição de escravidão e o reconhecimento simultàne·o da posí1;ão de dominação do senhor. Seria, porém, pela dialética do trabalho que o escravo subvertia a condição de dominação absoluta do senhor, retirando-o de sua posição soberana e tirânica, de forma a se deslocar da condição de coisa e receber o reconhecimento de si mesmo mediante o trabalho.80 Existiria então para Hegel uma tensão radical entre a morte, o poder e o trabalho, entre os quais se teceria por oposição a construção do sujeito, da razão e do espírito, que imprimem limites decisivos à onipotência tirânica do senhor, sustentada na dominação e na ameaça da morte. Marx retoma essa problemática hegeliana mediante a categoria de luta de classes e realiza a construção de uma teoria da história, reinterpretando a dialética hegeliana do senhor e do escravo no contexto da luta de classes, onde ind ica que a luta de classes seria regulador da história e das transformações sociais e políticas da história da humanidade. 81 Desta maneira, não existiria no discurso de Marx qualquer possibilidade de se pensar a problemática da verdade na exterioridade do campo socinl construído pelas relações de força entre os homens, sendo pois n prob lemntica da morte e da dominação política o que regularia a enunciuçiio da verdade. Numa outra ordem de discurso, Nietzsche estabeleceu também a relação íntima que existiria entre o poder, a morte e a verdade, pois a verdade se fundaria na relação de força do intérprete, de maneira a se estabelecer a relação entre o dizer e quem diz, , quando diz e como diz.82 Foi estabelecendo a relação orgânica entre estas temáticas e categorias que Foucault empreendeu a sua leitura da modernidade, onde articulou as categorias de verdade e de interpreta\·âo, marcando a diferença radical que
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSiVEL
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existiria entre a concepção de interpretação da Idade clássica e a moderna concepção de interpretação. Assim, enquanto na Idade clássica a verdade teria um referente último que a fundaria, um ponto absoluto de origem para onde se dirigiria o trabalho da interpretação, na modernidade não existiria a crença num ponto absoluto de origem, pois a interpretação é sempre interpretação, na medida em que a we.te.nsa verdade é já resultante de uma " interpretação anterior e não uma origem absoluta. 83 Para Poucault, essa rransformação na concepção de interpretação da Idade clássica para a modernidade indica n passagem da semio/ogia para a hermtnêutica, pois nesta a verdude já é interpretação, sendo isso que se poderia depreender das diferentes modalidades de hermenêutica em Freud, Marx e Nietzsche. Com efeito, no contexto do discurso desses diferentes autores, como a verdade já é interpretação e não origem absoluta para a construção da interpretação, a i'nterpretação se perfila no horizonte como um trabalho interminável, mas onde a verdade se ordena regionalmente e se precipita como evidência pela sua rcgulução por relações de força: a se~ua. Iidade em Freud, as relações de prodw;ão e a luta de classes em Marx, a força vital em Nietzschc. 84 Portanto, a leitura de Foucault indica a construção da hermenêutica da modernidade como fundada na relação orgânica entre verdade e interpretação sem ponto absoluto de origem, destinando a interpretação a um trabalho intermináveI na qual, contudo, aquilo que se apresenta pretensamente como verdade originúria seria a ordenação regional de relações de força. Enfim, parece que Foucault aponta inequivocamente para uma relação de fundação entre verdade e energética, saber e poder, onde a categoria de força como poder seria o elemento decisivo na ordenação momentânea e regional da verdade. Assim, seria a dimensão da força que perpassa permanentemente a totalidade das relações entre os homens fiO espaço social que funda a concepção de poder na sua rela<;ão com as problemáticas da verdade e da morte. Nesta perspectiva, seria o domínio momentâneo nas relações de força no espaço social que regularia o regime dn distribuição regional do poder e da produção de verdades. Por isso mesmo, Foucault pode enunciar que a guerra é a cond ição bãska que permeia as relações inter-humanas, rndicalizando a articula!fiiO entre a guerra, a morte e o poder que foi introduzida na filosofia política clússica e desenvolvida pela tradição filosófica do século XIX. Nesta perspectiva, a política seria a continuação da guerra, estando o exercício da governabilidade permanentemente ameaçado pela emergência da guerra, na medida em que é a força que regula as relações entre os homens. Por isso mesmo, não é a guem• que é a continuação da política, mas de maneira inversa seria a política a tentativa de administrar a guerra que atravessa as relações humanas no espaço sociul. Enfim, Foucault não se
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PSlCANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
inscreve no pólo da tradição teórica de Clausewitz, de Hegel e de Lenin, que afi~avam que a guerra seria u continuação du política com outros meios, po1s para Foucauh a política seria u continuação da guerra.85.86
X. A força e a retórica A p~lítica c?mo forma de_ n.tediação das relações entre os homens no esp.açQ socJal, med1ante o exerCICIO da govemabilidude, é freqüentemente representada pela palavra retórica, instrumento fundamental de. negociação, de persuasão e de dissuasão nos confrontos de força existentes no campo social. A palavra, porém, também se insere numa lógica de tinida pelas coordenadas das relações de poder, não sendo pois constituída somente por significantes puros na exterioridade das relações tle for~·u. Por isso mesmo, o lugar do poder indica as fronteiras do impossível, pois não existiria na modernidade um lugar da verdade qt~e fosse exterior aos investimentos e aos desinvestimentos regulados pela relações de força. Ao mesmo tempo, porém, o poder é u~ lugar fundamentul na delimitação da cartografia do espaço social, na ' medtda. em que é en~ .tomo das múltiplas distribuições do domínio do poder que se mserem os diferentes agentes sociais em estado !alente de guerra. O J>
A ética da psicanálise e a moral nas instituições psicanalíticas•
I. Recortes da ética P
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PSlCANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
desejo, sendo este o seu fundamento epistemológico e ético. Entretanto, a assunção do sujeito como desejante tem como corolário o reconhecimento da sua singularidade, isto é, do sujeito na sua alteridade e na sua diferença essencial face a qualquer outro sujeito. No que conceme uo segundo desenvolvimento teórico, é preciso considerar que a ética em pauta não se refere a uma instituição qualquer, mas à instituição psicanalítica. Assim, não é possível pensar a questão da ética na instituição analítica, sem considerar qunl a finalidade primordial desta instituição e o seu objetivo social. Desta maneira, partimos da pressuposição de que a instituição analítica deve ser um lugar social que constitua as condições de possibilidade para a produção e a reprodução da psicanálise. Para isso, a instituição analítica deve funcionar como um espaço simbólico que permite o estabelecimento de relações de troca entre os analistas. onde essês possam comunicar as suas experiências clínicas, nos impasses que essas colocam e nas possibilidades que indiçam para o desenvolvimento do saber psicanalítico. Portanto, a ética na instituição psicanalítica deve se referir necessariamente a uma instância ideal de regulaçilo da experiência psicanalítica, a que todos os seus membros estão submetidos na medida em que são agentes desta experiência. Por isso mesmo, a ética na instituição analítica coloca como exigência básica a indagação sobre a modalidade das relações institucionais existentes entre os seus membros, em que se pergunt:\ permanentemente se o agenciamento das relações institucionuis constitui us condições de possibilidade para a produção e a reprodução da psicanálise. Porém, se a finalidade da instituição analítica revela a sua ética, o objetivo social evidencia a sua política. Assim, se o objetivo social da instituição analítica é a produç·ão e a reprodução social da psicanálise, sob a forma da constituição de novos anal ist~ts e da difusão da psicanálise no espaço social, este objetivo político deve ser subordinado à ética da psicanálise. Com efeito, não interessa às exigências da ética da psicanálise que essa se difunda socialmente de qualquer maneira e produza novos analistas para a reprodução social da instituição analítica sem considerar os imperativos éticos do discurso psicanalítico. Portanto, se a política está subordinada à ética no encaminhamento dos processos de produção e de reprodução sociais da instituição analítica, esta passa n se regular por outros valores que aqueles definidos pela ética da experiência psicanulítica e se institui uma "perversão" fundamental du ética da psicanálise na institui\·iio analítica. O que implica dizer que a ética na· instituição analítica deve ser homogênea à ét.ica da psicanúli~e. pois a instituição psicanalítica deve ser um lugar simbólico para a gestão social da psicanálise. Assim, não pode existir qualquer ruptura entre a ética que funda a experiência analítica e a ética que
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A ÉTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL
regula as relações na instituição psicanalítica, senão ~sta não pode funcionar como instância de regulação simbólica entre os analistas. Em decorrência desta articulação interna entre a ética da psicanálise e a ética da instituiçilo analítica, podemos enunciar, como um pressuposto teórico desta leitura, uma formulação que existe desde os primórdios da psicanálise: a psicanálise não se et~sina, ~as se tran~mite. Assim, falar em rransmissao, e não em ensino da pstcanâltse, é enuncear que esta somen~ se insere no sujeito pela experiência psicanalítica fundada na tra~sfe~ncta e não pelo caminho do saber universitário. Por isso mesmo, a 1~scn~ã? do sujeito na psicanálise tem uma dimensão é~icn fun~amental, ~IS ~ logtc~ .e a singularidade do sujeito recebem marcas mdel~vets na e~penêncta an.a!J~t· ca. Portanto, a instituição psicanalítica, que realiza a quest~o da tran~mt_ssao da psicanálise, tem uma responsabilid:.~tle cruciol nos destmos posstvets da ética da psicanálise.
li. O psiquismo e suas oposições Podemos formular que o saber psicanalítico se constitui nos seus primórdios, com 0 di se urso freudiano, com a formulação da existência de uma polaridade estrutural que seria fundante do psiquismo. Esta ~o!aridade seria nã~ apenas produtora, mas regularia também as suas cond1çoes ~e reprodJiç~o como psiquismo. Vale dizer, o psiquismo se funda ~um regtstro_essenctalmenle conflírivo, que se encontra presente nas suas ongens e nos dtversos momen· tos de sua história. Esta proposição se upresentou inicialmente no discur:o fr~udia.no como referida diretamente ao registro clínico, como uma equaçao ehológtca, e conseqüentemente como uma modalidade de solução tera~utica das psiconeuroses, baseadas no conflito psíquico entre o sexual e o nao-sexu~t. Porém, a formulação de que as anomalias do psiquismo se fund~ noconfltto psíquico, que assume diferentes figurações conforme a modahdade de neu· rose em pauta,2 se tmnsfonnm~ paulatinamente na ~pção de que as anon:alias do psiquismo são fonnas merentes ao ser do pstqu1co e não ~~as exceçoes 3 justamente porque a estrutum do psíquico é essenc..:iaJmente oonflttJVa. Desta maneira, se o sujeito não se restringe ao ser da consctenc1a, transcendendo mesmo a esse registro e se funda no registro inconsciente, o sujeito se revela como essencialmente dividido. 4 O pensamento freudiano manteve a representação dividida do sujeito ao longo do seu desenvolvimento teórico, apesar das trnn~fo~mações metap~ic_ológjcas ~a figuração do psiquismo realizadas na primetra e na segunda toptcas. Por 1sso ~esmo, Freud não podia concordar com a denominação ~osogrâfíca de '_'esqu1zofre· nia" atribuída a uma certa modalidade de pstcose, e prefenu, contra a •A
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psiquiatria, a
PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA denomina~·ão
de "parnfrenia", exatamente porque não teria
sentido designar uma enfermidade como a "doença da divisão", quando na psicanálise o sujeito é representado como essencialmente dividido (Spa/tung).1
Nesta perspectiva, o conflito psíquico é estrutural no discurso freudia· no, perpassando esse de maneira ininterrupta, mesmo considerando as suas inúmeras refonnulações. Podemos atirmar que o processo teórico da existência de uma polaridade estruturulno psiquismo é o eixo fundamental para a construção das diversas oposições teóricas que se estabeleceram ao longo do discurso freudiano. Ness~ts oposições, cada um dos tennos não vale enquanto tal, como elemento e como substancialidade, mas somente enquanto referido ao outro pólo da oposi\-'fiO e no contexto maior do conjunto de oposições d<;> sistema teórico qui! sustenta cuda par de opostos. Para exemplificar o que estamos enunciando, recordemos algumas dessas oposições conceituais: inconsciente/pré-consciente/consciente; representa~ão de coisulrepresentação de palavra; processo primário/pro· cesso secundário; energia livre/energia ligada; pulsão sexuaVpulsào de auto-conservação; pulsão de viua/pulsüo de morte etc. Nesta cartografia sumária de oposições conceituais podemos registmrque cada um dos termos, de cada par de oposições, nilo tem qunlquer significação como elemento isolado, mas apenas quando ref~rido uo outro. Da mesma forma, cada par de opostos não tem quulquer signiticnção considerado em si mesmo, mas se funda no campo do conjunto das oposições. Este campo funciona como um sistema propriamente dito, na medida em que as partes somente existem e têm significação quando subsumidas ns regras da totalidade. Esta totalidade como sistema está presente nos registros tópico, dinâmico e econômico da metapsicologia freudiana,8 que estabelecem entre si relações de isomorfia, de maneira que os pares de opostos ins<:riws num registro remetem aos pares de opostos inscritos nos outros registros metapsicológicos. Esta rede sistêmica de oposições,conceituais e a correlata polaridade constituinte do psiquismo remetem para uma oposição básica que se encontra no fundamento da metapsicologia freudiana, isto é, a oposição entre o corpo pulsional e a ordem simbólica.
Ill. Pulscio, polaridade e ambigüidade A oposição entre o corpo pulsional e a ordem simbólica se enuncia no discurso freudiano na forma de definir o ser da pulsão. Esta se define como uma polaridade entre a energia e a inscrição da energia no campo da representação, como· a polnridnde entre a quantidade e a qualidade. Vale dizer, a pulsão é definida como a oposição entre a "exigência de ltabalho"
A ÉTICA DA I'SICANÁLISE E A MORAL
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imposta ao psíquico pelo corpo e a ordem simbólica como interpretante da energética da pu!são. Esta polaridade estmtural se apresenta na ambigüi~ade do discurso freudiano na definição do ser da pulsão•.em que esta é enunc1ada tanto como força quanto como energia inscrita no campo representacional. Desde o Projeto de uma psicologia cienlífica podemos registrar as condições de possibilidade para a constituição do.conceito de p~lsão, principalmente na ênfase conferida por Freud na leatura da quantJdade e na exig«!!ncia econômica para o func ionamento do psiquismo.9 Porém, este conceito se enunciou nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde jâ podemos surpreender a existência da an~ bigü idade na .sua definíç~o. Assim, vamos sublinhar como o uascurso freud1ano conceatuava a pulsão em 1905: Por pulsiio nós designamos o representante psíquico de uma fome contínua de cxcita\·ão proveniente do interior do organismo, que diferenciamos da ''excitaçiio" extc:rior e descontínua. A puls11o está no limite dos domínios
ps!quico e· tlsico. A concep\·ão mais simples, e que pnr~ce se impor inicialmente, seria que as pulsõcs niíu possuem qualquer qunltdadc por el~s mesmas. mas que existem somente como quantidade suscetível de produzir um certo trab<~lho na vida psíquica. 10
Desta maneira, podemos depreender Ja detinição enunciada por Freud que a pulsão ê ao mesmo tempo uma "excitação" e um "representante pslquico", uma "exigência de trabalho" ao psiquismo e um "trabalho" no campo das representações, uma "quantidade" e uma "qualidade". É na oscilaçao entre dois pólos diversos e irredutíveis que é enunciado o ser da pulsüo. É a esta oscilação que nos referimos como a ambigüidade do discurso . freudiano sobre a pulsão. Dez anos depois o discurso freudiano retoma a definição do conceato de pulsão, no contexto dos escritos metapsicológicos, em A s pufsões e seus destinos. Podemos depreender neste ensa io a mesma ambigüidade que sublinhamos ac ima: ... O conceito de "pulsl\o" nos ;~parc.:ce como um conceito-limite entre o psíquico e o somfilico, como o representante p~íquic? ~as excitações, provenientes Llo in~crior Llo corpo e ch.egando à v1da p~1qu1ca, como ~ma medida de exigê-nc1a <.le twl>:llho que~ unposta ao psiquJco em conseqUên· cia de sua ligllç-ào ao corpoml. 11
Assim, permanece no discurso freud iano a ambigüidade entre os registros econômico e representacional da pulsilo, de maneira que o registro dinâmico onde se inscreve o contlito psiquico se apresenta como uma derivação imediata desta polaritlatle constitutiva do ser da pulsão. Nesta perspectiva, esta ambigüidade não é uma imprecisão do discursa. freudiano
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na definição do conceito melapsicológ ico fundamental, pois indica o espaço teórico e ontológico onde se inscreve a pulsão. Com efeito, a pulsão seria in·edutível ao registro biológico e ao registro psíquico, se enunciando como uma outra forma de existência. Portanto, a pulsão seria uma modalidade de existência entre o somático e o psíquico, inserindo-se na fronteira entre a ordem da natureza e a ordem da linguagem, apresentando-se como um ser de passagem entre a ordem natural e a ordem simbólica. É fundamental destacar esta polaridade e esta ambigüidade no conceito de pulsão, pois é deste lugar teórico que derivam as demais polaridades do psiquismo enunciadas no discurso freudiano. Evidentemente, isto não poderia ser diferente, na medida em que a pulsão é o conceito fundamental da metapsicología freudiana. do quul são construídos os demais conceitos metapsicológicos. Não é um :tcaso certamente que os ensaios metapsicológicos de 1915 comecem com um escrito sobre a pulsão, a partir do qual são construídos os demais conceitos metapsicológicos. isto é, o recalque e o inconsciente. Esta posição teórica primordial designnda para o conceito de pulsão, com a polaridade estrutural inscrita no seu ser, delineia o campo epistemológico da psicanúlíse. Com efeito, esta se esboça como discurso teórico e conio experiência clínica num terriiório limítrofe, inserido entre o corpo natural e o corpo simbólico, sendr, iJOÍs a psicanálise irredutível aos domínios do somático e do psíquico. É esta posição de passagem entre os registros natural e simbólico que define o ser da pulsão, que indica o campo epistemológico da psicanálise. Esta é a especificidade teórica e ética do discurso psicanalítico. Nesta perspec tiva, o sujeito do inconsciente como um dos destinos das pulsões é a resultante de um processo cle produção da diferença no campo definido por esta polarização estrutural. Nesta produção da diferença, a loca lização e as condições do Outro, no pólo simbólico do campo polarizado, são condições fundamentais pura a transformação da pulsão como energética para a pulsão como representação, isto é, para a inflexão do ser da pulsão do pólo da quantidade pam o da qualidade.
IV. Sujeito da diferença e singularidade É a possibilidade de produçiio da diferença, no campo polarizado entre a energética e a representação, que constitui o sujeito como singularidade. Esta formulação define também a especificiclade do discurso ps icanalítico sobre o sujeito.
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Com efeito, se a psicanálise pretende ser uma experiência íntersubjetiva fundada na transferência e centrada na singularidade do sujeito, realizando-se pelo reconhecimento do seu desejo na reconstrução de sua história, é fundamental para isso que o discurso psicanalítico possa fundat o sujeito nas condições de possibilidade de sua produção como diferença. Vale dizer, é a "exigência de trabalho" que o corpo pulsional demanda à ordem simbólica e a interpretação realizada pela ordem simbólica desta "exigência de trabalho" que constituem as condições de possibilidade para a produção do sujeito como diferença. Assim, o sujeito da diferença em psicanálise se funda na consideração de duns questões cruciais: 1. A pulsão como "exigêncía de trabalho" imposta ao psíquico, como "força constante", tem o poder de produzir rupturas nos circuitos estabelecidos de significação e de satisfação que o sujeito estabeleceu com o seu corpo e com os outros. Po11anto, se a pulsão na sua p:ucialidade e multiplicidade 12 é a representação do caos e da Jesordem, ela tem o poder de desarrumar permanentemente a ordem da representa<;ão estabelecida pelo registro sim· bólico. Por isso mesmo, o impacto constante du desordem impõe uma "exigência de tmbalho" ao simbólico sob a forma de um processo de interpretação, cuja resultante é a singularização do sujeito e a sua produção como diferença; 2. Porém, apesar do registro simbólico ser um universo ordenado que regula a desordem do corpo pulsional, a ordem simbólica é uma rede de oposições de represent:~ções, na qual cada termo não vale por si mesmo, mas • somente no contexto da totalidade das representações. Assim, a ordem simbólica é constituída por um si~Lema diacrítico, onde se estabelece também um campo de diferenças, de maneira que a "exigência" de diferença possibilitada pelo corpo pulsional se inscreve num campo representacional marcado pela diferençn. Enfim, a produçflo da diferença encontra as suas condições de possibilidades nos registros pulsional e simbólico, e na passagem do primeiro para o segundo registro. Nesta perspectiva, o sujeito do inconsciente é e!>senciahnente sujeito ' da diferença, tanto porque udvém do universo pulsional da desordem que desarticula a ordem estabelecida no registro do ego, quanto porque as pulsões se inscrevem corno diferença num registro que é potencialmente diferenciado na sua estmtura diacrítica. Freud enunciava no ensaio Al· puil-ões e seus destinos que o inconsciente e o recalque são derívac;ões do universo caótico das pulsões, 13 ramificações na tessitura simbólica da energética da pulsão como "força constante". Porém, se o re~·••k1ue originário, que inscreve a mobilidade da energia e a fixação da pulsão na representação, é a condição de possibilidade
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PS ICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
do inconsciente, 14 o sujeito do inconsciente se estabelece no intervalo entre as inscrições como sujeito da diferença. É o sujeito do inconsciente como diferença e como singularidade que é o produto primordial do campo psicanalítico, pois é com a sua produção e com a sua reprodução que se constituem o discurso teórico e a ex~eriência clínica na psicanálise.
V. Ética, moral e sujeito desejante 1
A ética da psicanálise se funda no reconhecimento do sujeito da diferença, no reconhecimento da singularidade do sujeito. Portanto, quando se formula que a ética da psicanálise é uma ética do desejo, fundada no desejo e não no "bem supremo", como enuncia Lacnn, 15 o que se encontra em pauta é uma concepção do sujeito como diferença e como singularidade. Para elaborarmos um pouco mais esta interpretação que estamos encaminhando é preciso nos atermos agora na leitura dos significantes "singular" e "singularidade". Assim, "singular" é o que é "único", opondo-se ao que é "pluml" e "múltiplo". 16 O significante "singular" é representado positivamente quando se faz referência no discurso a uma "personalidade singular", isto é, uma indi vidualidude "especial", "rara" e "extraordinária". 17 Esta atribuição é retomada negativamente nas referências de uma "singularidade" pessoal nos registros da "excentricidade" e da "extravafância", onde a individualidade é representada como "esquisita" e "bizarra". 1 Em qualquer destas acepçõe::; o "singular" represenla uma ruptura com a concepção de lei, se bem que a ruptura se refere ao campo definido pela universalidade da lei, como no discurso da cosmologia, em que a "singularidade" se refere "à região do espaço-tempo onde as conhecida~ leis da física sucumbem e a curvatura do espaço se torna ínfinita".' 9 De~ ta maneira, a concepção da singularidade indica a marcação de uma descontinuidade no campo do contínuo, a produção de algo que é heterogêneo num campo definido pela homogeneidade. a irrupção de algo que é diferença no campo do mesmo. Por isso, se produziria na singularidade a emergência de algo que é (mico e não a pluralidade do múltiplo, rompendo pois com a regularidade da lei, mas considerando esta como o campo que é pressuposto para indicar a irrup~·ão do que é único. Retomando estas indica,·ões semíinticas no registro da subjetividade, podemos sublinhar que :t ruptura diferencial rcalizuda pelo que é singular no campo do mesmo envolve um risco fundamental, pois o atributo da unicidade pode se desdobrar negativamente nn "esquisitice" e na "extravagância", (lU então positivumente. como na emergência de um ser "especial" e "raro". Dito ~e outra muneira, podemos enundar (JLie o risco presente no ato de singulan zaçl'í o para a subjetividade é que este pode conduzir o sujeito para a
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"excentricidade" da loucura e para o "exibicionismo" vazio, ou então pos~ síbilítar ao sujeito a constitui~·ão de um estilo original de existência e a produção de uma obra. Nesta perspectiva, o singuhtrnão se opõe ao universal, mas o pressupõe 1 na sua fundação como condíçüo de possibilidade para a sua constituição, pois é no percurso pelo uni versa I que o que é particular se constitui como singular. Assim, o particular é o que se encontra na exterioridade do universal, o que não passou pela prova crucial de seu confronto com o universal, para ser por este marcado e colocar naquele a sua nmn:a indelével como singularidade. Enfim, a singularidude não se opõe uo universal mas ao campo do mesmo, na medida em que o ato de singul:u·iza~·ão do sujeito pressupõe uma ruptura com o mesmo no seu percurso e no seu afrontamento mortal com o universo. Esta sumária exegese filológica dos significantes "singular" e "singularidade", na sua articulação com as categorias de universalidade e de particularidade, é fundamental de ser realizada pois nos coloca no campo da tradição filosófica alemã pós-bntiana onde se fonnou Freud, na qual foi buscar freqüentemente, de maneira din:la e indireta, as fontes de sua inspiração e de sua linguagem. Nesta tradição teórica foi estabelecida a diferença conceitual entre os campos du moral e da ética, onde se conferia à ética uma exigência de totalização inexistenle na moral, de forma que a moral deveria ser submetida à ética. Emão, enquanto a moral fica circunscrita ao registro da individualidade (Schelling) e "ao domínio da intenção subjetiva" (Hegel), a ética supõe a "sociedade de seres morais'' (Schelling) e o "reino da moralidade" (Hegel). 20 Assim, enquanto a moral se estabelece no registro da particularidade, • onde a universalidade s~ impõe como uníver~alidade abstrata, na élica se constitui uma singularidade pelo diálogo efetivo do sujeito com a "sociedade dos seres morais" e o "reino da moralidade". A singularidade é o resultado do percurso dramático de uma individualidade particular no campo da universalidade, cuja resultante é um sujeito, onde se interpenetram de forma orgânica o particular e o universal. Desla fonna, é na ética que o sujeito se singulariza face a uma lei univers<~l . de maneira que é no registro da ética • que se pode delinear um lugar pos:;ívcl para o sujeito, onde este seja marcado pela imposi~·ão da lei moral universalizante corno exigência tle existir numa comunidade de iguais, mas intlicantlo ao i11esrno tempo como o sujeito é (mico no campo transccdcll(e do universal. Podemos subiinhar então como o sujeito do inconsciente, como sujeito •· da diferença e como singularidade, é a enuncia<;ão de um sujeito ético, constituindo-se no campo teórico desta problemática. Com efeito, o sujeito do inconsciente se fun<.l a no confronto das pulsões com o universo da ordem (lei moral), não podendo pois se constituir tanto na descarga das pulsões, na
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medida em que sucumbiria inteiramente, quanto ser devorado pelas exigências do Outro sob o risco de se estruturar no registro da psicose. Desta maneira, para que o sujeito do inconsciente se constitua, é fundamental que se singularize face à universalidade da ordem simbólica, inscrevendo nesta a energética das pulsões e ttansforri1ando estas em desejo. Enfun, o sujeito do inconsciente se estabelece como sujeito desejante, delineando o seu lugar de existência corno diferença apesar do constrangimento universalízante a que é submetido pelas exigências da lei moral. É este paradoxo que constitui o campo do saber e da experiência psicanalílica, de maneira que a ética da psicanálise deve ser a manutenção permanente deste paradoxo pelo reconhecimento de suas exigências fundamentais, pois sem estas condições tle possibilidade não existiria o sujeito do inconsciente, como singularidade e como sujeito do desejo. Portanto, a ética da psicanálise não é exterior ao campo psicanalítico, pois este campo tem critérios internos fundamentais para a regulação do discurso e da experiência psicanalíticas. Entim, a ética da psicanálise não se representa como um código normativo que deveria regular a prática clínica dos analistas, mas algo que se funda nas próprias condições de produção e de reprodução do objeto teórico da psicanálise, isto é, o sujeito do inconsciente como desejo, singularidade e diferença.
VI. A finalidade ética da instituiçüo psicanalítica As instituições analíticas são organizações sociais constituídas com a finalidade da transmissão da psicanúlise, na medida em que esta não se ensina apenas como uma modulidnde de discurso teórico, como se realiza nas demais fomtas de saberes teóricos, através da tradição da cultura universitária. Assim, se o domínio do saber teóri<:o e do manejo conceitual adequado do discurso psicanalítico deve se constituir em dimensões fundamentais do ensino e da pesquisa em psic:málíse, estes domínio e manejo estão subordinados ao primado da experiência psicanalítica, que é o campo por excelência da transmissão da psicanálise. Assim, é a introdução de uma individualidade no processo psicanalítico, onde será submetida aos efeitos da lógica da transferência no campo de uma experiência intersubjetiva, que indica o caminho primordial onde se realiza a lnmsmissão da psicanálise. Portanto, o ensino teórico se subordina às exigências éticas delineadas pelas coordenadas desta experiência primordial. Com isso, enunciamos urna proposiçüo que se desdobra em duas conseqüências fundamentais, nos registros ético e epistemológico. Primeiro, que não exi:ste qualquer fonna de domínio do discurso teórico em psicanálise que autorize ao exercício du ato psicanalítico, isto é, que possibilite a alguém
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o estabelecimento do processo analítico. Com efeito, se a experiência psicanalítica se funda no lugar e no desejo do analista, este desejo apenas pode se constituir pela experiência analítica. Portanto, nenhuma modalidade de domínio teórico do discurso psicanalítico, por maior que seja a sua mestria conceitual, pode possibilitar o acesso ético a este lugar simbólico e ao desejo do analista. Em segundo lugar, é preciso considerar que as transformações cruciais operadas no discurso psicanalítico, ao longo da história da psicanálise. que se constituíram como novos paradigmas conceituais21 se basearam sempre numa nova leitura da éxperiêncin psicanalítica, fundada transferencialmente na escuta de outras estrutur.1s psíquicas. Assim, desde Freud, que inaugurou o saber psicanalítico centrado nas psiconeuroses, até M. Klein (psicose). Lacan (paranóia) e Winnicott (estados limites), as transformações teóricas significativas se basearam sempre em subversões da escuta no registro da experiência psicanalítica. Portanto, se nos registros ético e epistemológico a transmissão da psicanálise se funda na experiência psicanalítica, baseada na intersubjetividade da transferência, instituição psicanalítica como espaço simbólico de gestão socjal da transmissão da psicanálise deveria ser um lugar que sustentasse a possibilidade de reconhecimento do sujeito da diferença. Desta maneira, as instituições analíticas deveriam funcionar como espaços simbólicos que dessem respaldo para que uma prática clínica fundada no reconhecimento do sujeito da diferença pudesse ser efetivamente sustentada, pois a produção do sujeito como singularidade é o valor ético fundamental que regula a experiência psicanalítica e a protluçiio de novos psicanalistas. Assim, a instituição psicannlítica deveria ser o lugar onde os analistas se encontrassem para que, no reconhecimento de suas diferenças, pudessem constituir um espaço simbólico que possibilitasse sustentar a tragicidade da experiência psicanalítica, no que esta implica de impasses e de obstáculos cruciais para a produção do sujeito da diferença. É neste sentido que a instituição analítica deveria se regular por uma prática a que se subordinaria a política na psicanálise, pois a reprodução social da psicanálise e da instituição analítica implicam a reprodução da matéria-prima que lhe é essencial, isto é, do sujeito da diferença. ·
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V/1. O horror pela diferença Porém, nada mais distante desta exigêm:ia do que o funcionamento das instituições analíticas. O exame superficial destas revela o escândalo ético, se considerarmos como valor o imperativo da diferença e da singularidade. Nas instituições analítit·as impera n impossibilidade de convivência com a
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difere~ça, onde esta impossibilidade atinge níveis de horror, pois o que se regtstm é uma verdadeira inrolerência, no sentido mais literal desta palavra. Com efeito, a diferença nas instituições analíticas não é reconhecida co~o u~. valor que p~ssibil.ita o .desenvolvin~ento da teoria e da prática pstcanaht1cas por cammhos maud1tos, na med1da em que permita a constituição de uma alteridade e de uma interlocução legítimas. Pelo contrário, o • an~ncio ~~qualquer diferença é interpretado como uma ameaça à instituição pstcanahttca, apesar de ser enum.:iuc.Ja em termos do discurso analítico, pois introduz uma escuta diversa, uma valoriza~·ão diferencial de certos acontecimentos e uma direção singularizada do processo analítico. Podemos mesmo dizer que a impossibilidade de reconhecimento da diferença e a intolerância nas instituições analíticas se encontram presentes na totalidade do campo, perpassando os gmpos vinculados à Associação Internacional de Psican:ílise e as instituições l:Jcanianas. Em ambas, a emergência de qualquer diferença produz como efeito a produção de uma acusação, visando o silenciamcnto do interlocutor, onde se questiona a pertinência psicanalítica da diferença enunciada: "isto que se diz. é psicanálise mesmo? Do que se fala, afina! de <:ontas?" Neste contexto, um outro enunciado importante que é acionado diz. respeito à reprodução instiiUcional: "quem está falando?" Nós sabemos que o sistema hiertirquiço nas instituições analíticas é diversificado, conforme as instituições e o seu campo de pertinência. Porém, mesmo nas instituições representadas como mais "libemis," a hierarquia existe, baseando-se em critérios políticos poderosos: lfuem pode psicanalisar futuros analistas, quem pode supervisionar, quem pude ensinar etc... Evidentemente, existem analistas clinicamente mais experientes do que outros, assim como os que são mais t~lentosos .para o en~in.o e para a pesquisa. Entretanto, esta diferença simbóhc.a no. regzstro do d1 re 1to nfio autoriza u produção de um sistema hierárquico no reg1stro do fato institucional, pois implica enunciar que um analista vale mais do que um outro. ' Com efeito, num saber fundado no reconhecimento da diferença não é P?ssível. eswbe!ecer qualquer hierarquia de valor entre analistas, pois a hter.mtuta é a anulação cabal de que são todos iguais apesar de diver!iOS e • difer~ z:_tes: Desta maneira, no campo psicanalítico somente pode existir a opos1çao fundamental entre ser e não ser analista, pois é a passagem de uma figura para a outra que é simbolicamente significativa, estabelecendo-se uma ruptura cntcial. Enfim, não é possível instituir uma hierarquia entre ser mais e ser menos analista, já que é um absurdo para a ética t.lo sujeito da diferença. Da mesma forma. a rela~·üo entre as instituições analíticas revela a mesma intolerJ.ncia e o hot1·or pela diterenç·a. É preciso considerar aqui que
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o campo psicanalítico brnsileiroestá polarizado entre as instituições inseridas na Associação Internacional de Psicnnálise e no campo lacaniano. Esta representação do campo analítico não está sendo pensada como uma inserção formal nestes donúnios, mas como participação num certo ideário ideológico. O que implica dizer que existem instituições analíticas que se inscrevem nestas tradições simbólicas, sem que isso represente qualquer modalidade de compromisso em termos organizacionais. Assim, se as instituições analíticas se inserem na mesma tradição simbólica (Associação Internacionnl de Psicanálise e campo lacaniano) existe um reconhecimento mínimo entre elas, já que com isso se trabalha para a reprodução social da sua tradi ~·ão simbólica. Porém, a relação entre instituições inseridas em diferentes tradições é a do não reconhecimento absoluto. Então, o outro, o estrangeiro para o campo de uma dada tradição simbólica, é representado sempre como não sendo analista, pois indicando a diferença para o campo em pnuta é considerado como um impostor e wn cllarlatão. Entim, é neste contexto que se enuncia de maneira pejorativa que uma dada tradição simbólica não realiza a "verdadeira" psicanálise, mas apenas uma modalidade de psicoterapia. Os objetivos desta estratégia do não reconhecimento de uma outra tradjção simbólica são muito pouco nobres, pois o QUe está em pauta não são valores psicanalíticos, mas critérios políticos visando a reprodução no social de uma dada tradição e o aniquilamento social da sua rival. Assim, o que se pretende com a atribuição soei<~\ de quem é psicanalista e quem não tem legitimidade para isso é a conquista de prestígio social para uma dada tradição simbólica à custa da outra, considerando o que está implicado concretamente neste ganho de poder: difusão no social, com a produção e a reprodução conseqüentes do mercado da clínica e da fonnação psicanalíticas. Porém, se diante dos adversários de uma outra tradição simbólica as instituições vinculadas a uma mesma tradição se compõem taticamente, organizando-se como um exército para a manutenção dos seus domínios e movimentando-se com a perspectiva imperialista de se expandir para os territórios dos seus rivais, no interior das instituições de uma dada tradição simbólica o processo de reconhecimento da diferença é marcado por impasses cruciais. Isso porque o confronto mortifero se estabelece também no interior das instituições analíticas vinculadns a uma mesma tradição simbó· lica, na medida em que existem nestas instituições diferentes sistem4s àe filiaçiio. Os representantes destes sistemns de tiliação não estebelecem entre si relações de reconhecimenlo_de suas diferenças, mas de luta de prestigio, na. qual se pretende reafirmar a identidade do seu sistema de filiação e aniquilar a legitimidade dos demais sistemas·de filiação em pauta.
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VIII. Filiaçâo, morte e castração Examinemos a lógica fundante dos sistemas de filiação nas instituições analíticas de maneira sumária, mas de fonna cuidadosa, para indicar alguns dos impasses que podem se produzir na sua funcionalidade e que conduzem a relações moníferas no contellto das instituições psicanalíticas. Assim, qualquer instituição analítica se apresenta composta por diferentes grupos, que se originaram em psicanalistas diversos inscritos em tradições diferentes da psicanálise, e que constityem diversos sistemas de filiação. A simbolizuçiio possível de um dado sistema de filiação implica o reconhecimento da morte do seu criudor pelas criaturas que dele se origina· ram, de maneira que a sua presença absoluta como figura do analista possa se transformar na sua ausência. Desta mttneira, se indicaria o lugar do analista como o espaço primordial do vazio, n.üo sendo pois facultado a ninguém a sua ocupação de modo absoluto e eterno. Neste sentido, o lugar do analista é o /.ugar do mor/o, condição primordial para a constituição do~ processos de simbolização e do süjeito da diferença. En11m, o lugn~ do analistá se • institui como espaço simbólico onde se constituem permanentemente o discurso e a experiêncill psiclmalíticas. Contudo, para isso é fundamental que o analista possa reconhecer a sua posição como simbólica, onde como tigura exerce a função psicanalítica, sendo a mediação d~ uma experiência intersubjetiva que se funda em algo que lhe transcende. Portanto, o analista não pode deter o poder absoluto ~obre o lugar que ocupa, sobre as coord~nadas do discurso psicanalítico que detém temporariamente na experiência analítica e conseqüentemente o controle sobre os destinos simbólicos de sua linhagem na psicanálise. O discurso freudiano delimitou o lugar simbólico da figura do analista em diferentes registros teóricos. Pretendemos destacar aqui somente dois desses ·registros, que estão intimamente relacionados ao que estamos sublinhand'o agora. Assim, referindo-se à morte do pai da horda primitiva em Totem e tabu, 22 Freud ent~1tizou a problemática ética da morte do pai como se inserindo nas origens de qualcjuer processo de simbolização e na conStituição d'o· si~teJúa de tiliação: De forma complementar, emAs pulstJes e seus destinos 23 e ein Para introduzir o narcisismo, 24 Freud sublinhou a dupla ex istência d~ su)e ito na sua articulação com o sexual, em que no primeiro registro ele é o·seu ·próprio fim e no segundo o indivíduo é assujeitado a uma cadeia de filiação que lhe é trails<:edente. Portanto, entre o sexual como "substfincia mortal" c como "substância imortal" se estabelece uma polaridade·estruturnl no psiq"uismo, no qúal o ego representa o registro da "niorta• ljdade'' e o sujeito do incónsciente se irlscreve no registro da "imortalidade". E neste segu'n<.lo registro que a reproduçilo sexttnl se 1ransfom1a em reprodu~
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ção simbólica, em que a morte do pai primordial e a emergência da filiação se articulam de maneira básica, constituindo a dívida simb_ó/ica como o valor fundante da ética na psicanálise. Entretanto, nas instituições analíticas ellistem impasses no processo de sim boi ização.dos sistemas de fi liaçilo, que conduzem à luta de prestígio entre os representantes dos diferentes sistemas de filiação. Neste contexto, cada qual pretende representar a "verdadeira" psicanálise frente às "falsas" psica· nálises, não se estabelecendo qunlquer possibilidade de reconhecimento das diferenças. São diversas as razões deste imbroglio simbólico, mas pretendemos destacar somente urna de las que nos parece crucial. Ela se funda na impossibilidade da mone simbólica da figura do analista, fundador de uma linhagem. numa dada instituição analítica. Este impasse evidencin a impossibi lidade de simbolização do fim de análise, da angústia de castração e de morte da figura do analista. Assim, se produzem efeitos mortíferos na sua linhagem, não se realizando a transformação da posição do analista do registro da presença para o da ausência. Com isso, não se realiza efe ti vame me a morte simbólica do pai e o reconhecimento do seu valor mítico, na medida em que a figura do analista permanece num eterno presente, sem j:unais desaparecer na sua descendência. O que pretendemos dizer com isso? Que existe um obstáculo fundamental ao reconhecimento da diferença na instituição psicanalftica que se enralza nos destinos da transferência na experiência analítica primordial dos futuros nnalistas..Vale dizer, um dos obstáculos éticos nas instituições analíticas se funda em impasse no registro da " liquidaçào" da transferência, na medida em que a figura do anali$tU não admite o seu limite e a sua morte possfvel, impossibilitando com isso efetivamente o tim da análise de seus analisantes, <."'m sua transfomm\'ào de presença em ausência. Desta maneira, não se realiza na ellperiência analítica o processo simbólico da diferença e não se empreende a tnmsmissão crucial da psican(llise, isto é, do sujeito como singularidade. . Vamos enunciar isso com mais vagar. }. experiência analítica se COilStitui na medida em que o htgar do analista é investido pelo analisnnte como ponador de um pretenso saber sobre o desejo, o gozo e a morte. A figura do analista preenche esta fun~·ã9 qoe lhe é atribuída. Evidentemente, este saber é ilusório, o que condu~iu Loc.'ln a denominar o lugar do analista de "sujeito suposto saber". Porém, é um engodo necessário para o estabelecimento da experiência rum!ítica, sendo l'onstitutivo du lógica da transferência. O encaminhamento do processo analítico se realiza na direção' de destronar a figura do analista deste lugar sngrndo, de representação do saber absoluto. Com isso, se produz. nu figura do nnulisante a decepção e a desilusão de que ninguém pode ocup:•r este lugar absoluto, que qualquer humano está. aquém desta figuração. E o reconhecimento da perda deste lugar, numa
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experiência depressiva, que constitui a condição de possibilidade para o sujeito poder reconhecer a figura do analista como relativa e a relatividade de qualquer sujeito. É esta relatividade q ue é constitutiva do sujeito da diferença, estebelecendo a distância ubissal entre quo:Jiquer sujeito singular e o lugar do intérprete absoluto. A experiência analítica deve produzir o reconhecimento simbólico de que não existe a figura do intérprete absoluto, pois este é um lugar simbólico com o qual dialogamos permanentemente, para nos produzirmos e reproduzirmos corno sujeitos da diferença. Com isso, passamos a dialogar com este lugar da ausênciu, como a condição de possibilidade para o discurso. Enfim, o novo analista que se engendrou pela lógica deste processo simbólico passa a investir agora na continuidade da psicanâlise, onde a promoção de outras experiências analíticas e da teoria psicanalítica são indicadores de sua dívida simbólica com a psicanálise. ·
IX. Eu sei, mCls mesmo assim... Entretanto, no campo da instituição analítica este processo simbólico encontra obstáculos cruciais, quundo se coloc:un de maneira frontal as angústias de castração e de morte da fLgma do analista, do seu sistema de fil iação e da sua instituição de referêncii.l. Neste contexto, a reprodução crucial do seu lugar institucional, de sua linhagem e da sua instituição analítica são obstáculos intransponiveis pam que a figura do analista se desloque de sua posição de saber absoluto. Porém, a hierurquia institucional é a outra face da mesma questão, pois é a enunciação cabal de que o sujeito da diferença não é o valor fundamental que circula nas insrituições analíticas. Neste registro institucional, a psicanálise deixa de ser uma ética da di(erença e se transforma numa moral , onde os seus adeptos passam a falar o mesmo discurso, sem constituir qualquer estilo singular, e passam a reverenciar os mesmos cultos. Assim, de uma ética a psicanálise·se transforma numa moral fundad~t nos efeitos m01tíferos do superego,25 onde a inventividade singularizante dos analistas se silencia na reverência sacralizante da instituição analítica e da sua linhagem. Com isso, a psicanálise se transfonna numa seita fundamentalista, onde o enunciado de qualquer diferença e o exercício da çrítica são imediatamente transformados num "ataque" à psicanálise, pois o funcionamen to institucional se inscreve num registro eminentemente nan:ísico. Enfim, este é o efeito mortífero mais importante que a.-. instituições anillílicas produzem na psicanálise, pois desta maneira a experiência psicanalítica não pode produzir o sujeito da diferença como o seu valor fundamental, sendo isso então um impasse crucial para a transmissão da psicanálise.
Sujeito, valor e dívida simbólica: Notas introdutórias sobre o dinheiro 1 na metapsicologiafreudiana
I. /nterdisciplinaridade na economia Problema estrutural na sociedade br.tsileira há pelo menos trinta anos, já estabilizado por sua pennanência no espaço social e quase naturalizado no imaginário social pela longa duração, a intiação,_em sua c~onicidade, desafia a criatividade teórica dos economistas e denunc1a dr:unattcamente, nos seus efeitos sociais, os impasses das soluções técnicas. Ao incidir sobre parcela significativa das individualidades inseridas no espaço social, a intla~ão produz um impacto devastador que se evi~en~ia na deterioração p~~resstva das condições de exist~ncia da grande matorta da população brastletra. Isso indica que os problemas suscitados pelo valor da moe~a: numa dada formação social, afetam a existência humana em diferentes regtstros, transcendendo em muito a dimensão das relações econômicas. Assim, o processo social da produção de mercadorias, as suas troc_as entre os agentes econômicos e a circulação da moeda nun~a formaçã.o s?C•al não se restringem a uma questão meramente econôtmca, mas tndtcam seguramente outros registros par.\ a sua. real.izaçiio ~a c~n~ social e par~ a sua indagação teórica. Entretanto, nos (tltunos a~os, m~tttu m-se .na soct:d_ade brasileira a crença de que a disciplina econômtca tena as condtções teoncas para solucionar as questões e os impasses produ~idos ~la infl~ção. O Estado brasileiro, utHizando-se de diferentes governos, tnvesuu mass1vamente nessa possibilidade, a ponto de promover um incre~ento pr~gressiv?.do poder dos economistas nas suas instfi ncias fundamentais de dectsão pollttca. Parece-nos que é a crítica dessa posição política e teór~ca que co~sti~i o elemento motivador deste encontro acadêmico. Com efetto, a reahzaçao de um seminário interdisciplinnr sobre a intlnção é o reconhecimento caba!, pelos organizadores, de que este não é simpleSJ~e nte u~ p;ob_lema econômico, mas implica outras dimensões fundnmentms da ~xt_stencta humana. Por isso mesmo os registros social, político, cultural e subJellvo foram destacados 161
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como capazes de fornecer indicações cruciais, de diferentes maneiras, para que se possa pensar na ihserçiio e na circulação da moeda na ordem social. Conseqüentemente, os mesmos registros teóricos podem oferecer caminhos que nos possibilitem indagar não apenas sobre as causas, mas também sobre as modalidades de existência e os efeitos da inflação na sociedade brasileira.
/1. Ceticismo e horror na brasilidade Para muitos economistas brasileiros, a disciplina econômica tem as soluções técnicas para a inflação vigente no poís, e há muito tempo essas soluções já circulam no mercado simbólico das idéias no Bmsil. Esta formulação é uma maneira concisa de dizer que os obstnculos existentes para a superação da inflação não se encontram basicamente nas téc nicas econômicas, mas em outros registros que regulam a coexistência humana no espaço social brasileiro. O que significa que a solução tecnocrática da inflação vem sendo questionada por segmentos da comunid:1de dos economistas. Além disso, esse tipo de solução tecnocrática da int1ação entrou em crise, em rota de colisão com a sociedade brasileira. Esperamos que essa crise seja definitiva e resol utiva, em face dos efeitos mortíferos da inflação pela desestruturação produzida na tessi tura do social. Não vamos nos referir aqui aos efeitos desestrutura ntes 11ue podem ser d estacados pela leitura dos indicadores econômicos, pois falia-nos competência para isso. Em contrapartida, destacaremos outras indicações que nos permitem realizar uma leitura sumária do imaginário :;ocial. Ne:;se contexto, a desestruturação se revela por alguns signos privilegiados que se encontram presentes na nossa experiência cotidiana e que se representam na midia. Antes de mais nnda, a violência, que se tr.msfonnou nos últimos anos num atri buto básico e na marcu registmda da sociedade brasile ira. A violência perpassa as relações soe iais de mnne ira abrangente e em diferentes níveis de complexidade, transformando-se em nlgo naturalizado, frente ao qual a população brasileira se "acostuma" e se "confonna", tendo em vista a impossibilidade de o Estado estubelecer um limite rigoroso e eficaz que o regule de forma segura. Em seguida a impunidade, que se desenvolve e se di versifica em face da não regulação da violência. Inserindo-se de fom1a universal em diferentes grupos sociais, apesar das suas divers:ts modalidades de agenciamento e de operacionalização na tessitura do social, a impunidade é escandalosa na sua exibição pública c n11 certeza da ausência de limites para a sua reprodução diversificada - razão pela qual ela representa outro lado da violência e o corolário para o incremento monstruoso des ta última.
SUJEITO, VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA
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A morte pe rde a sua dimensão trágica- marca que ~mpre a distin~iu nos registros individual e coletivo- dada a sua banalidade. Com efe1to, resultante da articulação entre a violência e a impunidade, a mortes: inscreve na cena social como algo ro tineiro. e não como uma ruptura crucial. com a ordem da vida. Dessa maneira, nos últimos anos, passamos a conv1ver de forma progressiva com uma representação naturalizada da m?~· A conseqüência crucial desses signos nas relações soc1a1s é o horror, que impregna a totalidade das trocas inter-humanas. O horror se trans!'o.nna em presença terrorífica no im::~ginário social a tal ponto que o cotad1an0 brasileiro se apresenta a todo momento como um pesadelo e como a Jnunciação iminente do caos. . . . . . Com isso, a dimensão disruptiva da extstênc1a se mater1~hza no registro dos acontecimentos e pode se realizar..co~~ ato a qualquer ms.tant~. Enfim, o cotidiano brasileiro se transforma na cromca da morte anunc1ada . Pela operação imaginária do horror, a desesperança se estabelece como a forma básica de humor da brasi lidade, enraizando-se em grupos sociais cada vez mais abrangentes e tomando-se o seu estado de ânimo fundamental. Como desdobramento dessa melancolia, que impregna os ideajs no imaginãdo social, a desesperllnça se revela na inseguranç_a assustadora da população brasileira quanto ao presen~e e ao futur~ da na~ao. Com isto 0 ceticismo se transfonna no discurso éuco que maas se difunde no esp;ço urbano, na descrença crescente do valor do ~rus co~o n~çã~. . Nesse contexto a emigração passa a se enunc1ar no unagmân o soctal como uma alternativa: como uma modalidade de "salvação" para a existência das individualidades. Apresenta-se, no Primeiro Mundo, em larga escala como uma possibilidade real diante dos impasses intran~ponív~is colocad~s no horizonte de nossa experiência social. A solução emtgratóna e a velocidade com que vem se processando em diferentes regiões do pai~ nos ú~tim~s anos. é un:ta novidade de. fato no cenúrio brasileiro e na memóna da h1st6na nacional. . . . . De diferentes manein1s, esfacela-se no imaginário socaal a crença difundida de que "o Brasil é o país do futuro" e de que "o sertanejo ê um · forte", isto é, de Q\!~ a população brasile ira é capaz de sup?rtar qualq~er desgraça e ainda assí1 n acredita r na grandeza e no futuro d~ pats como naçao. A ·inviabilidade do Brasil está colocada na ordem do dta e. na pauta dos debates, pois já se pergunta ent coro. de forma in.audita, ~e o B~il "pode d~ certo", de fato, como nação e se a crença que tsso sena poss1vel não tena passado de um sonho cole Li vo. . _ . Assim, a crise econômica se articula com as d1men.soes polít1ca e social, que se sustenwm de maneirn insofismável. Podemos d•z:rque ~~)ores particularistas conslituí.rnm modalidades autoritárias de relaçoes pohttcas e
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rearticularam os laços sociais de maneira tal que tomaram inviável qualquer fonna de solução tecnocrática. É o modelo político que se construiu no pais e o correlato estilo de modernizaç{ío que se imprimiu na ori:...nização desse modelo que se encontram na base da crise brasileira. Vale dizer, a economia poderá até voltar a crescer significativamente nos tempos futuros e o processo inflacionãrio ser regulado, mas a crise brasileira transcende o registro economicista. Na realidade, existem marcas indeléveis produzidas na tessitura das relações sociais e políticas que perpassam estruturalmente a c rise nacional e que não serão apagadas apenas por correções de rumo da economia. Certamente essas marcas exigirão dos cientistas sociais e políticos bastante imaginação teórica para que possam surgir alternativas viáveis para os impasses da brasilidade.
!li. E a. psicanálise com isso? A crise brasileira é também uma crise de valores, como indicamos acima ao sublinhar alguns de seus efeitos no imaginário social. Esses efeitos penneiam a totalidade da estrutura social, interpondo-se de tal fonna nas relações institucionais e no funcionamento político que as soluções tecnocráticas se apresentam como insuficientes para dar conta da magnitude da questão em pauta. É nesse registro que se colocam os efeitos simbólicos e reais da crise brasileira sobre a subjetividade. Conseqüentemente, uma leitura psicanalítica sobre o dinheiro se impõe nesse contexto, para que se possam destacar alguns elementos da relação do sujeito com o dinheiro. Não há dúvida, todavia, que a colaboração da psicanálise a essas discussões é limitada. infinitivamente menor que as leituras que podem ser empreendidas pelas dife.rentes ciências sociais e a ci!ncia política. Essa limitação se deve a extensão e consis~ncia teóricas do campo psicanalítico, que se centra na relação do sujeito com o seu corpo e com os outros sujeitos para enunciar suas fonnulações teóricas sobre o psiquismo. O recorte teórico que o discurso psicanalítico pode realizar é o de sublinhar a relação do sujeito com o dinheiro nos registros simbólico e real, tendo como correlato a relação com o seu corpo e com os demais sujeitos. Nesse sentido. tomaremos como objeto de nossa leitura a ação da circulação do dinheiro sobre o sujeito, sobre o corpo, sobre o gozo e no circuito de trocas com os outros sujeitos. É por esse viés que se poderão delinear alguns efeitos da cri~ bras iIeira e da inflação - enquanto estas supõem uma problemática de valores- sobre a subjetividade. Com base nessa perspectiva, enunciar qualquer proposição que articule inflas:ão e vida cotidiana, na leitura psica·
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nalítica, implica a análise de como o dinheiro se.·ín.st're no psiquismo e, em conseqüência, q ue significação pas's a a ter para subjetividade. Portanto, esta leitura pressupõe a formulação de uma metapsicologia do dinheiro, isto é, as modalidades de incorporação, de circulação e de metabolização do dinheiro pelo psiquismo.
N . Metapsicologia e psicologia A metapsicologia é o nome cunhado por Freud para designar a especificidade da leitura teórica, realizada pela psicanálise, dos processos e atos psíquicos.2 Esse tenno Se identifica com a concepção de teoria em psicanálise, em que as dimensões positiva e mítica se articulam de mane;.ra orgânica. Assim, a metapsicologia evidencia, por um lado, a cientificidade do discurso psicanalítico e , por outro, o que na leílura psicanalítica é irredutível a uma concepção positiva de ciência. Nessa segunda dimensão, a psicanálise como saber da interpretação foi representada pelo discurso freudiano como uma fonna de "m itologia" e mesmo como uma modalidade de "bruxaria",3 justamente porque não seria passível de ser verifícaua empiricamente pelos procedimentos da experimentação científica. No discurso freudiano se enuncia que a metapsicologia é uma leitura do psiquismo baseada nos pontos de vista tópico (lugares psíquicos), din4mico (jogo de forças entre as representações mentais que funda a teoria do conflito no psiquismo) e econômico (intensidade dos investimentos das representações psíquicas).4 Essa formulação toma evidente qu~ o "ap~relh~ psíquico" não se restringe ao campo das representações mentaiS, mas mclu1 também na sua estrurum as dimensões de conflito e intensidade.5 A leitura freudian~ do psiquismo considera, portanto, que este trans· cende não apenas o campo da representação mental, mas que também é marcado por uma divisão estrutural constitutiva da subjetividade. A subjetividade é concebida como sendo estruturalmente clivada (Spaltung), de maneira que o sujeito na psicanálise é figurado como sendo marcado por uma desannonia fundamental, que não é um acidente patológico no seu percurso histórico, mas a sua fonna originária de constituição. A palavra metapsicologia indica que a psicanálise pretende se~Au~a modalidade de saber do psiquismo que transcende o campo da conscJencla e do eu- da certeza e da verdade - , no qual a filosofia clássica, desde Descartes, inseriu o sujeito.6 Com Freud, o psiqu ismo passou a revelar o que existia de fundamental para o sujeito justamente nos momentos de ruptura da continuidade da consciência, quando a subjetividade era balançada nas suas certezas e a dúvida demolia subitamente as verdades construídas pacientemente pelo eu. Portanto, é nos fenômenos residuais da consci!ncia e
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do eu - em que as fonnações do inconsciente rompem a continuidade do ser da consciência e a performance utilitarista do eu é subvertida na sua funcíonalídade- que o sujeito se enuncia na sua verdade mediante o sooho7• o lapso8 e o humor. A psicanálise é uma metapsicologia, pois pretende sei' uma interpretação do psiquismo que transcenda o ser da consciência e do eu, destacando a dimensão inconsciente da subjetjvidade. Pretende ser uma le itura do psiquismo q ue vá mais "além" du consciência, em direção ao registro do inconsciente e das pulsões. Esse é o sentido primeiro da palavra metapsicologia, pois o prefixo grego "meta" quer dizer "além de". Contudo, esse signific-ado se artkula, num outro registro, com uma crítica da psicologia como metatlsica da consciência e com uma crítica da metafísica como análise do ser da consciência, já que no discurso freudiano a palavra metapsicologia constitu~ se como uma derivação da palavra metafísica10• Enfim, como crítica da psicologia da consciência e da metafísica centrada na .consciência, a psicanálise pretende ser uma interpretação do psiquismo fundada no inconsciente e nas pulsões, que coloque em questão as certezas do eu e a consciência como verdade.
V. Sujeito do inconsciente e alteridade Enunciar que o psiquismo, pam :t p.>icanálise, se funda no inconsciente é formular, em decotTência, uma outra proposição fundamental: o psiquismo não se restringe à interioridade, como era a sua concepção na psicologia clássica.,11 A psicologia clássica, centrada na consciência, considerava o psiquismo como o universo da privacidade absoluta da individualidade, e a exterioridade, o seu Outro. Se o sujeito era representado de maneira solipsista, como uma mônada interiorizada no campo da consciência, ficava ditlcil resol ver o impasse de como uma mônada poderia ter uma abertura para a relação com o Outro. Por isso mesmo, o método de investigação da psicologia cláss ica se baseia na introspééçào, em que o eu e a consciência do indivíduo buscam infinitamente a sua verdade pelo exame do campo de representações. Em contrapartida, para o discurso freudiano, o psiquismo é interioridade e exterioridade ao mesmo tempo, não sendo possível enunciar qualq uer coisa sobre o registro interno sem que se formule algo sobre o registro externo. Isso porque o psiquismo é antes de mais nada diálogo com o Outro, encontrando na ordem da linguagem o campo para a sua produção e para a sua reprodução como fenômeno. Assim, a psicanálise como ~todo se funda no falar e no escutar, que balizam a experiência psicanalítica, pois é mediante o diãlogo e os efeitos do sujeito sobre os outros sujeitos que se constituem as marc.as de sua verdade. Aexperiência psicanalítica fundada na
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transferência e na fala é justo o oposto da experiência psicológica centrada na cohsciência, já que a primeira supõe um sistema de trocas entre sujeitos e a segunda pressupõe um psiquismo que não implica qualquer outro. Na definição Jacaniana do inconsciente como uma ''realidade transiod ividual",12como um registro psíquico que transcende não apenas o eu como também a interioridade absoluta, as oposições in temo-ex temo, dentro-fora e indivíduo-sociedade se relativizam, perdendo qualquer conotação substanc ialista, pois passam a se referira um sujeito que é coostitutivamente abertura para o mundo. Por isso mesmo, o sujeito em psicanálise pressupõe a cultura para a sua cons tituição, sendo a cultura como ordem simbólica a condição de possibilidade do sujeito. Enquanto ser dialógico o sujeito é alreritârio na sua estn uura, pois o sujeito do inconsciente é constituído pelo Outro. Enfim, o inconsciente é o conjunto de efeitos do Outro no psiquismo e o diálogo do sujeito com o Outro mediante esses mesmos efeitos psíquicos.
VI. Sujeito do inconsciente, circuito da satisfação pulsional e dfvida simbólica Se o sujeito se consti1ui a partir do Outro, sem o qual o i ncons~iente é impensável como registro psíquico, anuncia-se então uma outra d1mensão crucial dessa questão: a dívida simbólica que o sujeito estabelece com o Outro como resultante da sua constituição como sujeito. A dívida simbólica é o que possibilita que as individualidades inscritas na mesma cultura e no mesmo universo lingüístico passem a compartilhar ·dos mesmos valores, apesar da diferença entre as subjetividades e a diversidade nas suas modalidades de existência. A oívidu simbólica é a condição de possibilidade para o sistema de trocas entre os sujei tos e para a demanda de reconhecimento que marca estruturalmente qualquer sujeito. Enfim, é o que possibilita a com>· 13 t ituição de um pacto simb6lico entre os diferentes sujeitos, permitindo entlo que estes estabeleçam entre si laços sociais e o horizonte possfvel para a coexistência política. Na leitura que encaminhamos, o registro simbólico não se restringe apenas à ordem da linguagem. apesar de encontrar nesta o seu eixo de referenda fundamental, mas se apresenta também nas ordens política e social. São essas diferentes ordens, transcendentes ao corpo do proto-sujeito, q ue pennitem no sujeito se constituir a partir do Outro, sendo originariamente corpo pulsional. Não pretendemos nos alongar nesse tópico, mas destacar o que 6 relevante para a questiio em pauta. Pura que se possa conceituar o inconsciente, o discurso freudiano pressupõe um conceito anterior, que é o de pulsão (Tritb), o que significa dizer que, paro que se possa constituir o sujeito do
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inconsciente, o ser da pulsão é o seu fundamento. O inconsciente é uma transformação realizada pela ordem simbólica sobre o ser da pulsão, de maneira que é um dos destinos da pulsão na ordem simbólica. 14 Recordemos a definição de pulsão, enunciada pelo discurso freudiano em As pulsões e seus destinos, no contexto da maturidade teórica da psicanálise:" ... o conceito de 'pulsão' nos aparece como um conceito-Jjrnite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico das excitações, saídas do interior do corpo e atingindo o psiquismo, como uma medida da exig!ncia de trabalho que é imposta em conseqüência de sua ligação ao corporal". 1j Essa definição indica que a pulsão não se insere nem no registro somático nem no psíquico, portanto não se inscreve nem na natureza nem na cultura. Seu espaço de e}(istência encontm-se entre o somático e o psíquico. Com isso, o discurso freudiano propõe a existência do pulsional como um terceiro registro entre a ordem da natureza e a ordem simbólica. É inevitável, porém, que a pulsão se inscreva no campo do Outro e no registro simbólico, pam que se possa encontrar formas de satisfação e se estruture então num circuito regulado pelo princípio do prazer. Originalmente, a pulsão é apenas força (Drang) e sua tendência imediata é para a descarga total da e}(citação, para que o corpo pulsional possa expulsar o "excesso" de excitabilidade e encontrar o estado de apaziguamento pela · imobilidade. Em Além do princípio elo prazer, o discurso freudiano passou a definir a pulsão como sendo originariamente pulsão de morte 16 e que se regularia pelo principio do nirvana (descarga da excitabilidade até o nlvel zero e não para o nível mínimo, como na regulação prazer-desprazer). 17 Evidentemente, se o corpo pulsional fosse deixado a si mesmo, o seu destino seria a morte, pela descarga total da pulsão regulada pelo princípio do nirvana. Para que a existência psíquica se torne possível, é necessária a intervenção do Outro, que passa a oferecer objetos de satisfação para que a pulsão como força possa se estruturar num circuito regular. Nesse processo, é constituído um desvio crucial do movimento imediato para a descarga, para o movimento media to da satisfação, marcando o deslocamento do "aparelho psíquico" da regulação pelo princípio do nirvana para a sua regulação pelo principio do prazer. É com essa intervenção fundamental que o circuito da pulsão se ordena, passando a se fixar em objetos de satisfação e tendo na satisfação o seu alvo. Vale dizer, a satisfação é a possibilidade do circuito pulsional se reproduzir como circuito e não retomar a via originária da descarga. Enfim, a satisfação é o que pennite a constituição do sujeito como desejante, tendo corno fundo a iminência da morte produzida pela descarga pulsional. As condições de possibilidade desse desvio estruturante são o Outro e a ordem simbólica, pois, para que a força pulsional possa encontrar objetos
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de satisfação, é necessária a nomeação empreendida pelo Outro. Na verdade, é em função da interpretação da "e}(igência" pulsional promovida pelo Outro que é oferecido simultaneamente em ato um objeto de satisfação para fixar o circuito da pulsão. Portanto, a "exigência de trabalho" da pulsão é a condição de possibilidade para a realização de "trabalho" no Outro e na ordem simbólica, em que a pulsiio se inscreve sob a forma de seus representantes: representante-representação e afeto. 18 Foi nesse sentido ·q ue o discurso freudiano enunciou os destinos da pulsão na ordem simbólica, que são as diferentes fonnas de ordenação da força pulsional no circuito de satisfação, de que o sujeito do inconsciente se constitui. A "inversão no contr-:irio", o " retomo sobre a própria pessoa", o "recalque" e a "sublimação" são os caminhos dessa promoção de trabalho pela ordem simbólica, 19 de maneira que a pulsão como força nela se inscreve . e o sujeito do inconsciente pelo recalque se constitui. A constituição do sujeito do inconsciente pressupõe, assim, a ordenação do circuito de satisfação da pulsão. Por isso mesmo, ele é um sujeito do desejo. Além disso, suas condições de possibilidade são o Outro e a ordem simbólica, sem os quais o corpo pulsional ficaria restrito à descarga nirvânica e à morte. Enfim, o advento do sujeito e sua reprodução como desejante implicam a dívida simbólica, pois apenas assim o sujeito do inconsciente pode se constituir no seu enfrentamento com a morte.
VII. Valor de troca e valor de uso A inscrição do dinheiro na subjetividade se realiza no contexto da divida simbólica e do pr~esso de reconhecimento. O dinheiro é uma das modalidades de troca que o sujeito maneja na relação com os outros sujeitos para o reconhecimenco do seu lugar simbólico. Evidentemente não é a única modalidade possível de troca entre sujeitos, mas é certamente uma forma impor~ tante numa ordem social centrada no mercado. Neste, a subjetividade obtém o reconhecimento de seus emblemns simbólicos mediante a produção e a troca de bens materiais e simbólicos,' que se realizam pela circulação econômica da moeda. Porém, a produção e a troca de bens somente resultam em efeitos na economia libidinal da subjetividade na medida em que são emblemas simbólicos para que o sujeito seja reconhecido por outros sujeitos. Isso porque está presente neste enunciado a formulação de que o desejo primordial de qualquer sujeito é o desejo de reconhecimento. Se o desejo de reconhecimento é crucial para o sujeito, isso indica que, parn o discurso freudiano, o sujeito é o contrário da figura da auto-suficiência e da onipotencia narcísica,
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pois é desde sempre marcado pe1-a falta e precisa do reconhecimento do Outro para poder se reproduzir como sujeito. Foi essa falta radical que o di~curso freudiano enunciou sob a forma das figuras da perda e da castmção, indicando assim que a falta do sujeito · jamais se preenche e que sua carência do Outro é uma vocação hwnana. Por isso, estabeleceu a equivalência simbólica dos diferentes objetos parciais (corpo matemo, seio, fezes, pênis e criança), constituídos nos diferentes momentos da história libidinal do sujeito, cotno formas de gozo e tentativas sempre malogradas para o preenchimento dessa falta estrutural.20 Da mesma forma, as diferentes produções humanas e a moeda- como símbOlo social de equivalência dessas produções - se inscrevem na mesma cadeia de objetos parciais, na qual o sujeito busca preencher a sua falta e obter interminave lmente o reconhecimento do Outro como sujeito. Com isso se evidencia que, no discurso freudiano, o dinheiro não é representado como um meio de aquisição para o preenchimento de necessidade, mas para a satisfação de desejos. Com efeito, para a psicanálise, a subjetividade não está centrada na leitura naturalista das necessidades vitais, em que a individualidade busca se preencher pelo cálculo utilitarista de prazeres com a aquisição de bens que responderiam às suas necessidades reais, pois o que está em questão é o sujeito desejante. Para este, é o seu reconhecimento pelo Outro que ocupa um lugar estratégico na sua reprodu· ção como sujeito do desejo. Por isso o sujeito se inscreve num circuito de trocas intersubjelivas, única maneira de saldar a sua dívida simbólica. Considera-se, assim, que o acesso do sujeito ao prazer é regulado pelo reconhecimento e pelo pagamento da dívida simbólica, já que a experiência do prazer implica o reconhecimento do sujeito. Numa ordem social baseada no mercado de bens materiais e simbólicos, o dinheiro como instrumento de troca é uma forma básica para a oblenção do prazer, ao qual a moeda constitui uma via privilegiudu de acesso, uma v~z que permite o reconhecimento do sujeito. Entretantp, se sublinhamos até agora a tigura da moeda como vàl~r de troca, devem~ s des1acur o seu contraponto, isto é, o dinheiro como valor de uso. A qualquer nwmento o sujeito pode perder o sentido do dinheiro como valor de troca, que possibilila o reconhecimento entre os sujeitos, e acreditar que a posse do dinheiio em si é o bem supremo. Nesse processo, o sujeito procuranp(lgar a ~uu condição tr:ígica como sujeito da falta e empenha-se na cren~a de lJUC pode construir a sua auto-suficiência absoluta medinnle .a posse do.dinheiro, considerudo o bem supremo. Quando isso ocorre, o d\nheiro ~e trunsfonna num valor em si, um valor de uso que pode ser goz.ado pelo ~ujei10 na su;1onipotência. Assim, existe aqui uma transgres-·. são,crucial nu Jun~·ão simbólica do dinheiro para o sujeito, transformado por
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este num fetiche, isto é, num objeto de adoração para a obtenção do gozo auto-suficiente, o bem supremo pura a subjetividade. Estabelece-se então o gozo fetichista.
Na subjetividade, o dinheiro circula num campo imantado entre dois pólos, definindo economias líbidinais absolutamente diferentes, já que, em uma, a sua regulação se realizu pelo valor de uso, e na outra, pelo valor de troca. Examinemos o contraponto entre essas fonna.s de economia libidinal, nas quais o valor e o prazer têm destinos bastante diversos. Na economia libidinal regulada pelo valor de uso, a subjetividade supõe que o dinheiro em si é a fonte do poder, como se a sua posse pudesse lhe oferecer os meios de acesso à total idade d:ls riquezas e dos prazeres, como se o sujeito pudesse "compmr" o gozo e o seu reconhecimento como subjetividade. O dinheiro se transfomm no bem supremo, de fonna que se destaca o caráter perverso do gozo fe tichista. Nesse tipo de economia, a subjetjvidade não espera o reconhecimento pelo que é e pelo que poderia ser, mas pelo que tem, supondo que a apropria\ão da riqueza em si pudesse de fato impor ao Outro o seu poder. A subj~tividac.le funciona como se pudesse prescindir do Outro e fosse absolutamente auto-suficiente. O sujeito supõe que é o detentor do seu ideal, regulando-se apenas pelo ego ideal e não se submetendo a qualquer ideal que o tmnscenda. 21 Foi nesse registro libidinal que o discurso freudiano caracterizou o prazer da analidade e o erotismo presente no caráter anal. 22 Em contrapartida, na economia psíquica regulada pelo valor de troca, o sujeito supõe que o reconhecimento pelo Outro é fundamental para saldar a sua dívida simbólica. Por isso mesmo, demanda ao Outro o seu reconhecimento, já que este se legitima pei
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auto-suficiente e detentora do bem supremo. Na economia psíquica do valor de troca, o sujeito está submetido à lei simbólica que regula as relações
inter-humanas e funda a ética dapolis. Porém, na economia libidinal do valor de uso, a subjetividade não reconhece qualquer lei simbólica, pois acredita ser a fonte da lei e quer impor de forma absoluta as suas exigências ao Outro em todas as circunstâncias. Na economia psíquica do valor de troca, o desejo do sujeito se inscreve no campo dialógico e se regula pela falta, enquanto que .no psiquismo sustentado no valor de uso não existe qualquer negociação poss ível e a retórica se anula nas relações inter-humanas, pois o sujeito não quer perder jamais. Portanto, na primeira possibilidade, o pacto simbólico da polis está em processo de reprodução pennanente, enquanto que, na segunda, o pacto simbólico é transgredido continuamente, já que para incrementar a maisvalia do seu gozo o sujeito manipula o corpo do Outro para dele extrair sua riqueza e seu prazer. Enfim, us econom ias psíquicas em pauta são absolutamente excludentes e se regulam por lógicas libidinais opostas pois, pela economia psíquica do valor de uso, a polis humana e o pacto simbólico são solapados no seu fundamento e, p!lr'ü não perder jamais, o sujeito devora o Outro para o incremenro do seu gozo. No contexto de severa crise social, a economia psíquica do valor de troca tende a ser sopuluda pela do valor de uso, pois o que está em pauta de maneira dramática é a possibilidade de morte para o sujeito e de desaparecimento para o seu sistema de filiação. Quando a crise assume caráter prolongado, como é o caso brasileiro, esse processo de solapamento se toma ainda mais destruidor, intletindo a dominância do prazer para o pólo da perversão. O desequilíbrio duradouro entre essas posições identificatórias provoca uma severa fragmentação nu tessiwra psíquica, de maneira que as relações interhumanas passam a ser reguladas pela lógica da guerra, e a retórica política não mais gerencia a polís de fonna eficaz. ··
Vlll. O estilo macabro na brasilidade É nesse contexto mais ubrnngente que s.e delineia de forma trágica a impos· sibilidade de pagamento da dívida simbólica. Essa impossibi lidade coloca o sujeito no limite do seu eclipse pois, pelo não-pagamento da dív ida. ele não pode ser reconhecido pelo Outro. Com isso, pennanece numa posição psíquica de falta radical, já que nào se anuncia no seu horizonte qualquer possibilidade de resgate, defrontando-se com experiências psíquicas-limite: a culpa, a depressi\o e o mnsoquismo. Isso porque a pulsão de morte encontra-se em condições de descarga absoluta, em estado de desintrincação, na medida em que não está regulada pela pulsão de vida.
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As conseqüências da crise brasileira sobre a subjetividade são devastadoras, pois a impossibilidade de regulação da dívida simbólica se impõe, já que o Outro não oferece mais a l'ondi<;ào pam a reprodução do sujeito como desejante. Com isso, o sujeito é arrancado do espaço de trocas inter-humanas e deslocado para as fronteiras
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cruel que regula o gow perverso, quando a simbolização se anula na sua possibilidade de produzir diferenças, e o corpo do outro se transforma apenas num fetiche para a realização do festim canibalístico das individualidades. O cenário brasileiro se delineia com esses traços macabros, pois as marcas psíquicas que são esmaecidas na dominância do registro do ideal do ego se apresentam de forma caricata na hegemonia do ego ideal. Além disso, o estilo macabro da brasilidadc destaca-se nesse cenário em função da escala devastadora em que a totalidade do prOÇesso se realiza. Nesse contexto, o ceticismo e a perda de confiança no Brasil como nação são pontuações étkas que ressoam melancolicamente, como uma nostalgia da posição desejante do sujeito.
A morte entre a ética e a violência1· Notas introdutórias sobre a "cultura da violência"
/ . Percurso na violência O que se pretende dizer com a expressão cultura da violência? Certamente, a temática não se refere à constataçao da existência da violência em qualquer cultura, já que f orça e vioUncia são constitutivas do sujeito inserido nas relações humanas, não existindo. portanto, qualquer ordem política sem a presença daquelas. Com efeito, o problema que sempre se colocou para a filosofia política foi de como mantê-las em limites compatíveis com a ordem social, já que a partir de um certo limiar o exercício da força e a existência da violência no espaço social colocam uma impossibilidade crucial para a manutenção e a reprod ução da ordem social. Nesta perspectiva, a filosofia se preocupou, desde a sua constituição na Antigüidade entre os gregos, nn suu reflexão sobre a ética e a política, com a questão do melhor regime político possível (Monarquia, Oligarquia e Democracia), na qual a indagação sobre o que era mais compatível com à existência da polisse conjugt~va com a preocupação do que poderia melhor desenvolver as suas potencialidades, isto é, possibilitar o desdobramento de suas instituições políti~~<~s de maneira a não implicar a violência ética das virtualidades humanas. Da mesma forma, desde os séculos XVII e XVIn a filosofia política clássica pretendeu representaras condições de possibilidade para o estabelecimento do pacto político e da soberania, na qual a indagação sobre os princípios de legitimidade do poder se harmonizava com as preocupações sobre a violência na política e a ilegitimidade no exercício do poder. Portanto, se a fo rça e a violência são dimensões constitutivas das relações humanas e se o problema que sempre se delineou na tradição do Ocidente foi o de como detinir os limites seguros para essas dimensões que possibilitassem s imultaneamente a reproduçn:o da ordem social, a questão inaugural que se impõe neste artigo é a de se perguntar sobre o traçado desses limites, para procurar definir a articulação possível entre as idéias de cultura 115
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e de violê~cia. D~sta p~blemática deriva uma segunda indagação, intima~ente ~rt1culada a antenor: como. essa relação pode atingir a fronteira do tmpossJvel, onde certas formas de vio lência conduzem a cullura a impasses fundamentais. Assim, pretendemos ez~camínhar de maneira esquemática esta dupla . mdagação, procurando temutJzar algumas das questões que nos são colocadas por essas indagações. Portanto, esse trabalho pretende ser um comentário da expressão cultura da violência.
li. Formas de violência e ordem simbólica Vamos iniciar este percurso teórico com n formulação de que a .;io!ência é um g.ênero que admite múltiplas espécies que precisamos diferenciar. Assim, constderando <.:om Bourdieu a diferen~·a entre violência simbólica e violência concreta, podemos atirmnr que qualquer cultura se funda na violência sim~61ica~ que .define a submissão de seus membros a um conjunto de códtgos s1mbóhcos. Contudo, apesar de simbólica, essa modalidade de violência é arbitrária, já que pela diversidade de culturas existentes constatase que diferentes códigos simbólicos produzem culturas diversas. não se pod~ndo formular entre essas qualquer hierarquia de valor. Nesta perspecuva, as transgressões pelo niiC' •econhecimento da ordem simbólica de uma dada cultura configuram uma situação de violência concreta.2 Estas transgressões foram estudadas desde o século XIX, pelas ciências sociais, como "patologias sociais". Dessa maneira, a violência concreta indica uma descontinuidade, uma ruptura com a ordem simbólica delineada no contexto de uma_dada tradição cultural, sendo um conceito antropológico que fot constru sdo tendo a ordem simbólica como paradigma para a sua constituição. A escolha que realizamos nesta leitura do sistema teórico de Bourdieu ~ara tr.tçar a fronte ira entre modalidndes diferenciadas de violência, é reJa~ t1vamente arbitrária. Com efeito, existem diversos discursos teóricos no campo das ciências sociais que prerendem, mediante o uso sistemático de seus conceitos, fundar a possibilidade historicamente efetiva da violência nas práticas sociais. nas suas múltiplas espécies. Assim, podemos formular sem qualquer risco de engano que us teorins mais consistentes sobre o sociaJ constituídas desde o século XIX, procurnrrun estabelecer os limites ent~ essas modalidades de violência. Vale dizer, qualquer discurso sistemático nos campo.s da sociologia, da antropologia e da política, sempre pretendeu fundar a d1ferença entre as modalidades legftima e ilegítima de violência sem considerar aqui a consistência dos indicadores escolhidos, no context~ de cada um ?e~ses. disc ursos, p11ra traçnr uma fronteira segura entre esses campos da V1olenc 1a e o valor c.le suns realizações teóricas.
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Neste contexto, não pretendemos arbitrar qual seria, entre as diversas teorias sobre o social, a mais consistente para interpretar os fenômenos da violência, pois não somos competentes no campo das ciências sociais. Ass im, lançar mão da leitura de Bourdieu é importante na medida em que é possivel definir o lugar onde se insere, no discurso sobre o social, a problemática psicanalítica da subjetividade, j á que no discurso de Bourdieu a cultura é definida como um sistema simbólico e na psicanálise o sujeito do inconsciente se funda na ordem simbólica. Evidentemente, a fom1a pela qu·al o discurso teórico de Bourdieu representa os processos de socialização primária e secunJária,3 artit.:ulando-os com a instauração de um ethos e de um sistema de habitus. 4 não se superpõe aos pressupostos do discurso freudiano sobre o sujeito. Porém, estabelece o campo de uma problemática onde se toma possível o diálogo trnnsdisciplinar entre sociologia, antropologia e psicanálise, mesmo considerando que essas diferentes disciplinas realizam recortes no campo dessa problemát ica que lhes são específicas. Entretanto, é preciso cir<.:unscrever historicamente a constituição do discurso sociológico, destacando como desde as suas origens a problemática desta fronteira , entre fonnas diferentes de violência, foi uma questão crucial para o estabelecimento de um snber sobre o social e para a nossa representação do social. Assim, na nrqueologia de Foucault a representação moderna do social, constituída na aurora do século XIX. foi construida pela mediação do discurso da medicina, que traçou marcas indeléveis entre o normal, o anormal e o palológicos. Essas categorias tiveram simultaneamente um efeito analítico e um campo de incidência nos espaços do corpo, do psiquismo, das relações humanas e do social, não existindo pois qualquer possibilidade de desarticulá-las dessas múltiplas referências na sua matriz histórica originária_ Com efeito, a medicina que inaugura a modernidade é ao mesmo tempo medicina do soe: ia! e JllCU ic ina científica da indiv idualidade, sendo como higiene social uma medicina de reorganização do espaço urbano, pretendendo incidir nos registros Jo corpo e da moral, como medicina somática e medicina mental.6 Nesta perspectiva, o discurso sobre o social é o correlato da constituição de uma nova tessitura das relações entre os homens, permeada pelas
exigências de normaliwçcio e das práticos de disciplinas, em que a modela· gem dessas práticas sociais tivemm no discurso médico o seu paradigma.7 Foi no campo entre:1berto por esta leitura crítica que Deleuze pôde formular que o social, como nós o representamos nn modernidade, é uma invenção recente, constituída na viragem do século XVJII para o século XIX. 8 Da mesma forma, foi no contexto dessa mt:sma problemática - a emerg@ncia de uma nova representuçüo do social onde inexiste qualquer critério de totalização e que é pulverizado por um conjunto de mônadas individu-
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alizadas -.mas proveniente de uma outra tradiçiío teórica, que o norte-americano Rieff pôde fonnul ar que a sociologia se constituiu justamente no século. XIX pretendendo se indagar sobre esta tmnsfonnaç-ao radical na tradição do Ocadente e pam restaurar uma nova representaç-.lo da comunidade.9 . A~sim~ foi no solo de um espaço social penneado pelas estratégias da rnedicahzaçao e regulado pelas práticas de nonnalização que se desenvolveram .no séc.ulo XIX as ciências humanas. O que implica dizer que a arqueolog1a do d1scurso sociológico e das demais ciências humanas somente pode ser r~al i zada consider.ando como seu solo fundador a arqueologia do saber médiCO e a g~mt:ulogia do poder da medicina sobre o espaço sociaJ, anco~d? na normal iznçüo dos corpos e do campo moral. Com efeito, o lugar estrategico ocupado pelas categorias de normal e patológico, no discurso ina~gural da sociologia com Durkheim, indica isso. Da mesma fonna, a pos1ção fundamental desempenhada pela problemática da anomia nesse discurso teórico remete para essa mesma questão, onde se pretendia discrim!n~ e~tre os campos legitimo e ilegítimo da violência, na medida em que a cnmmalidade ernuma preocupação centml na construção dessa problemática. 10 . Para Donzelot, teórico fonnado na tradição inaugurada por Foucault, os dtscursos da sociologia e da psicanálise se constituíram no final do século XIX tendo como condição de possibilidade as práticas de medicalização do social. Porém, esses discursos teóricos procuraram relativizar a oposição abs~luta en.~ nonnal e patológico, .tal como estava então instituída pela trad1ção med1ca. estabelecendo mutLzações e variações qualitativas entre esses pólos. Portan1o, a sociologia e a psicanálise representaram ru~turas marcantes com o discurso e as práticos de normalização da medicina. 1 Por iss~ mesmo, é possível deli~eat entre esses saberes um campo possfvel para o diálogo sobre a problemática que se encontra em pauta, apesar das diferenças evidentes no campo de seus objetos teóricos, pois ambos se estabeleceram pelo recorte específico que realizaram nos campos do nonnal e do patológico. Enfim, retomando o encaminhamento in icinl desta problemática podemos afinnar que não é um acaso que ns transgressões, que materializam o exercício da violência concreta, fossem denominadas de "patologias soei ais" desde o início do século XIX, pois se evidencia com isso a sua origem médica pela palavra "patologia" e a ruptura com essa tradição pelo tenno "social".
li/. Sujeito e projeto identificatório Assim, ~eline;~ndo como possível a relação de colaboração transdisciplinar entre ps1canálise e ciências sociais, podemos estabelecer esquematicamente agora a dialética entre violência concreta e violência simbólica indicando a inserção da subjetividade nessa problemática.
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Podemos formular que a violência concreta ser:i representada na sua periculosidade numa hierarquia de valores, considerando se a transgressão incide em alguma região pontual da ordem simbólica ou se atinge os seus pressupostos. Vale dizer, existem interdições básicas numa dada ordem simbólica cuja transgressão subverte o fundamento da cultura, que utiliza então dispositivos repressivos violentos para reafirmar ritual mente os pressupostos do seu sistema simbólico. São esses pressupostos que fundam o discurso ético de uma dada cultura. A língua ocupa uma posi~·ào fund amental na constituição da ordem simbólica, mas se ar1il·ulando com os registros político e social para estabelecer os valores do campo cultural. Evidentemente, esses valores são históricos, da mesma forma que as regras que constituem a gramãtica da ordem simbólica e ns molhtlidades de repre ssão que reafimuun os seus pressupostos fund:uncntais. Nns írltimas décadas o Ocidente foi radicalmente transfonnado nos seus valores, o que nos aponta efetivamente para a historicidade desses e suu conseqüente arbitt~Lrie<.lade. Na constituição úa subjctividadl!, pela leitura psicanalítica, a ordem simbólica é o pólo fundamental de ulteridade que funda o psiquismo no registro da representaç::io, de forma a se contr..lpor ao pulsional, de maneira que se o corpo pulsional representa o caos, caracterizado pela multiplicidade de pulsões parciais, a ordem simbólica é a instância legiferante que regula a anarquia do corpo pubional. Foi nesse sentido que o discurso freudiano enunciou u existência das pulsões e de seus destinos, pois esses destinos indicam a regulação da força (Drnng) pulsional pela ordem simbólica, a putsão no campo da representação (Vorstellung). 12 Portanto, a "inversão no seu contrário", o "retorno sobre a própria pessoa", o "recalque" e a "subli· mação.. n indicam a gramática da montagem pulsional e o itinerário obrigatório de qualquer pulsão no processo de sua inscrição no universo da representação. O que implica dizer que, pam a produ~·iio e a reproôuçào do psiquismo, é fundamental a consistência da ordem simbólica, permitindo que o sujeito se constitua não como identidnde mas como um projeto identificatório. Isso porque o sujeito é dividido, marcado estruturalmente por uma clivagem (Spaftung) que não pude ser jamais suturada, constituído por uma série , I I • . . . !4 ue .I ve marcas resu1I:Jntes .uas mscnçoes pu Is1omus, mo d o que o projeto identifíc:llório é necessariamente assintótico e nunca se materializa muna identidade plena e definitiva. Ponunto, esse projeto é a resultante da inscrição das pulsões no universo da representação, pela mediação da ordem simbólica, tendo como cenário constitutivo a relação do sujeito com o Outro e os objetos de s:uisfação oferecidos pelo outro no circuito da pulsão.
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A conseqüência teórica d isso é que, como o psiquismo para a psicaná· lise é concebido como fund amentalmenle inconsciente e atravessado por um amontoado disperso de identificações, a não consist.1ncia da ordem simbóli·
ca, que sustema o projeto identifica tório, pode conduzir o psiquismo ao limite do colapso. Esta é a condi~ão de possibil idade para a explosão da violênc ia concreta e para o seu contraponto esm uural que é a experiência masoquista devastadora. Com efeito, as estrut uras psíquicas carac terizadas pela dominância surpreendente de comportamentos madços de passagens ao ato e pela mise-en·acte de fa ntasmas, pela t1agelação mortífera do corpo até limites in imagináveis, indicam uma fragilidade marcada do projeto identificatório, pois a individualidade não encontra uma o rdem simbólica consistente onde possa se constituir como subjetiviuade. Neste contexto, as p ulsões se defrontam com um obstáculo radical p:tra a sua inscrição no universo da representação, somente restanuo como possibi lidade para o sujeito a descarga brutnl sobre o corpo do outro e sobre o próprio corpo do indivíduo. Assim, se o exercício da violência concreta sobre o corpo do outro é a única ailernaliva de que d ispõe o sujeito para se referenciar pela especularidade e pela dominação brutal da subjetividade do outro, a violentação masoquista do próprio corpo revela a impossibilidade para o suje ito desse procedimento para a dominação da angústia e a conseqüente submissão incondicional ao poder do outro, numa reversão fundamental do pe rcurso das pulsões. Portanto, na ausência do pólo alterit:írio legiferante, o sujeito é atingido no seu valor nardsico básico, isto é, na r~pre sentação do seu corpo, já que não pode mais ge rir as fo ntes possíveis de satisfaçüo, pela perda de seus instrumentos de interpret:t\'ão fundauos na ordem simbólica. Por isso mesmo, na ausência de urn projeto identi ticatório, manifesta-se com bru talidade a violência concreta, como a única possibilidade q ue dispõe o sujeito para a sobrevivênc ia narcísica do corpo, para não sucumbir na mortificação masoquista.
IV. Culwra da violência? Porém, não deve ser apenas disso que se fala quando se coloca a questão da cultura da violência, na medida e m que a possibilidade da transgressão está colocada ern qualquer teoria do simból ico que pretenda ser corrente e consistente. Assim, essa expressiio aponta para um outro referente que devemos dest ac~1r, pois ind k a um::t forma de cultura q ue não apenas produz a vio lência c.:omo uma virlualidadc como também desta se al imenia, como se processa nas culturas bactcrio lógicHs o nde se promove artificialmente o crescimento de co lônias de bactérias. O que está em pauta aqu i é algo
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inteiramente difere nte , já que e xistiria uma produção planificada da violência concreta e falar e ntão em cultura da violência é enunciar a existência de um sistema de produção da violência que estaria integrado no campo da cultura. Nós sabemos que a expressão cultura da violência e seus correlatos, como "subcultura da violência" e "subcultura do crime", são utilizados freqüentemente na lítemtura antropológica. Existem inclusive múltiplas monografias sobre essas temáticas, onde se apresentam ricas etnografias destes campos marginais da sociedade, que são da melhor qualidade acadêmica. Da mesma forma, encontramos no campo da investigação antropológica o uso de expressões próximas a essas, como "subcultura da droga", "subcultura da prostitui\'i'ío", '\ubcultura da doença mental", "subcultura do· homossexualismo" etc... Esses estudos antropológicos pretendem circunscrever com isso a investigação de certos grupos e segmentos sociais que se pautam nos seus comportamentos sociais por regras e códigos específicos, de forma a conferir essas denominações para o campo de pesquisa de seus objetos. Não estamos questionando a validade disso absolutamente, que está inclusive consagrado pelo uso, mas apenas queremos explorar aqui uma indagação limite. Vale dizer, o que pretendemos é radicalizar uma reflexão, conduzindo ao seu limite uma indagação sobre esta problemática, onde se pergunta sobre a compatibilidade absoluta entre as idéias de cultura e a de violência concreta. Portanto, é preciso se ind~•gar agom se uma cultura que organiza um sistema planitic:tdo de violência não indica os limites de sua ordem simbólica, revelando uma crise fundamental de seus pressupostos éticos. Vale dizer, reconhecer a existência no espaço social de um campo concreto da violência que não seja regulado pelos mecanismos simbólicos da cultura, onde aquele campo adquira autonomia, não implicaria afirmar que os valores b:.ísicos da ordem simbólica se encontram numa crise de fundamentos? Poder-se-ia argüir contra isto que a modernidade se caracteriza pela existência deste sistema de produção da violênt·ia, não implicando a sua existência na sua autonomia da ordem social e na implosão do psiquismo. Essa foi a ousada interpretação realizada por Foucault em Vigiar e punir, ao sustentar que a gestão do social desde o século XV IH não se realizaria apenas por mecanismos jurídico-políticos, mas também por procedimentos disciplinares denominados de polícia. Com isso, o t:ootrole social se realizaria por tecnologias de normalização. L'ondição histórica de possibilidade para a constituição das ciéncia:o humanas. Enti m, u formação dessas disciplinas teóricas estaria inserida num campo de práticas sociais voltadas para a disciplinarização e para o e xercíc io de poder concreto sobre os corpos,
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instituindo recortes específicos para a mobilidade dos indivíduos no espaço social. 13 Neste contexto, a violênc.:ia seria não npenas produzida mas regulada nas suas particularidades por mecanismos concretos que transcendem a ordem da lei. O social seria uma tessitura co•úplexa de corpos e de relações entre corpos, inteimmente permeado pelo jogo de forças e pelo confronto permanente entre forças, estando pois num estado constante de desequilíbrio. Porém, Foucauh não se eximiu de sublinhar as conseqüê nci~s de sua hipótese teórica, já que a polícia proprÍlllllCnte dita estaria diretamente vinculada à produção social da violência concreta e da criminal idade, não sendo pois uma instituição apenas de defesa social contra aquelas, mas um pólo fundamental para a sua produção organizada. 16 Na sua obra seguinte sobre a história da sexualidade. Foucault desdobrou esta pesquisa de maneira genial, indi<:ando em A vontatle de saber a conseqüência mnis radical de sua hipótese de trabalho, articulando de fonna brilhante as problemátit·ns da violência e da produção da sexualidade na inauguração da modernidade. 17 Com efeito, na leitura de Foucault teria se constituído no Ocidente desde o século XVllluma "implantação perversa" da sexualidade, t-a através de uma política minuciosa de controle social dos corpos para direcionar a sua eficácia eróge na e produtiva. O que implica dizer que a representação do social instituída na modernidade corresponde como resultante à constitui<;ão de um projeto político "perverso". onde os corpos das individualidades foram mapeados nos seus menores detalhes e capturados em seus movimentos infinitesimais para se inserirem no projeto de produção e de reprodução da riqueza das nações. Na nossa leitura, a psit·análise se constitui no final do século XIX tendo como condição histórica de possibilidade esta "implantação perversa" da sexualidade e do corpo im.lit·ada por Foucault. tendo então o discurso freudiano destacado os impasses em que se encontra o sujeito na modernidade, para a real iza~·iio dos seus desejos, face a essa "implantação perversa" do sexua1. 19 Certamente, não é um uci.lso que o discurso freudiano tenha sido denominado de ..punsexualista" no início do século XX, na medida em que realizou uma crítica radical das categorias de degeneração e de perversão que foram estabeleddns pelos discursos dn psicopatologia e da sexologia, procurando destal·ar u ·'st.'xualidudc perverso-polimorfa" infantil e o auto-erotismo como a fonte originÍiria da erogenei<.lade. 20 Enfim, o discurso freudiano nos Três ensaios sobre (I teoril1 da se.~ualidade funcionou como instância crítica e unticriminulizante do se)(ual, tul como foi instituída pela "implantação perversa" da sexualidade desde o século XYJI1. Por isso mesmo, o desenvoh·imento posterior da investigação de Foucnuh exigiu o contmponto para a multi pl icillude das tecnologias do poder
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e da produção da violência, sob a fonna de mecanismos de subjetivação. Podemos registr.tr aqui que essa nova direção da pesquisa de Foucault revela a necessidade te6ríc.:a de estabelecer um pólo de regulação simbólica do sistema social na sua leitura da modem idade, para estabelecer alguma fonna posstvel de alteridade no funcionamento "perverso" do poder. Assim, a investigayão foucaultiuna sobre o poder se desdobrou, em as "l;~nologias do sei f', 2 "O uso dos prazeres"22 e "O cuidado de si",23 no estudo SIStemático dos sistemas éticos· ela subjetivaç(io, onde se definiu a condição de possibilidade da governabilidacle na ~uticulação entre as fonnas de poder e as modalidades de subjetivução. Esta interpretação formula que a ordem do corpo (força) é regulada pelas ordens social e política, representadas pela metáfora do guerra, mediante uma ética dos processos de subjetivação.
V. lnterdiçt7o tia morte e discurso ético Desta maneira. a expressão cultura da violência indica uma contradição fundamental entre os seus termos. Por isso mesmo, quando esta expressão se inscreve na linguagem e se refere a práticas sociais, como as que ocorrem atualmente no Brasil e onde existe um fenômeno de explosão brutal da violência em todas as suas modaI idades, isso indica uma ruptura fundamental nas ordens social e simbólica. Com efeiro, a violência concreta perpassa a totalidade do tecido social, com transgressões grosseiras da ordem simbólica e na absoluta impunidade, se materializando de diferentes maneiras conforme a diversidade dos grupos sociais. Registra-se nas classes médias e populares n difusão de mecanismos simbólicos de identificação com o agressor, na medida em que as instâncias sociais responsáveis pela gestão da ordem política, a começar pelo Estado. transgridem com os fundamentos da ordem simbólica. Evidentemente, este quadro social catastrófico somente se toma possível quando não se reconhece muis certos pressupostos da ordem simbólica, como o dirt!ito à vida e a intercliçcio tia morte. Com efeito, quando se passa a assassinar cruelmente crianças em massa, a estuprar brutalmente crianças e adolescentes em proporções assustadoras. a matar velhos indefesos para roubar uma n inhar.ia, a difundir a criminal idade na inffinc ia de maneira qúase infinita e desorganizada, onde se encontra o reconhecimento social pelo direito à vida e a interdiçào da morte? Porém, quundo u ordem socinl passa a naturalizar n convivência com a morte em estndo bruto, com a fome em proporções aterradoras, com o abandono de cri11nças. com a pilhugem do outro para sempre levar a melhor, não nos inserimos mais no universo do reconhecimento recíproco e do confronto onde se reconhece n existência de diferenças legitimas. mas no
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registro do aniquilamento. Com e teito, na uialét ica hegel iana do senhor e do escravo a dominaç:lo se baseia na imposição da vontade do senhor sobre o escravo e não na mone desse, que tem af.ossibilidade de se libertar e de ser reconhecido pela mediação do trabalho.2 Entretanto, no quadro brasileiro da cultura da violência o que está em pauta é a possibilidade do aniquilamento, existindo de fato uma política de genocídio, que se concentra evidentemente em certos grupos e segmentos sociais, mas que tem efeitos abrangentes que perpassam a toralidnde do espaço social e incidem nos pressupostos básicos da ordem s imbólica. Neste contexto, a lógica da cultura da violência no Brasil é a da guerra pela subsistência, motivada pela superpopulação em relação às fontes de subsistência, como foi formulada por Maquiavel para distingui-la da guerra política. 2>Da mesma forma, a guerra permanente que permeia as relações entre os homens na cultura da violência não se restringe à representação da guerra como prática social para redefinir e ritualizar a identidade política de uma nação, tal como foi louvada por Hegel no início do século XIX como pertencente ao registro J a política,26 onde regras sociais definem uma ética para o confronto. Portanto, na cultura da vio lênda a única possibilidade entreaberta para o indivíduo de certos grupos sociais é a de matar para sobreviver, enquanto é possíve l evidentemente, pois o sujeito lica restrito à manutenção do seu corpo narcísico na falência de um projeto identificatório fundado na ordem simbólica. Enfim, como o que está em questão é a ruptura dos pressupostos da ordem simbólica, a emergência de profetas messiânicos e de governantes perversamente moralistas é saudada ilusoriamente pela massa desesperada brasileira como uma promessa de salvação.
Notas
Introduçüo I. Pontalis, J.B. "Bomcs ou confins", in Nouvelle revue de psychanalyse, n2 30, Paris. Gallimard. 1974, p. 5-16. 2. Birman, J. "A prosa da psicanâlisc·-. in E maios de teoria psicanalitica, parte 1,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993. p. 31-32.
A direção da pesquisa psicanalítica L Conferencia reulizada no 1nstiuno de Filosofia de Ciências Sociais da Unjversidade Federal du Rio de Janeiro. na "Semana de Estudos de Epistemologia e Psicnnãlise", organizada pelo Dcpartamcmo de Filosofia, em 28 de abril de 1992. 2. Evidentemente, estamos nos valendo. de maneira propositalmente deslocada, das metMoras utilizadas por Frcud oum ensaio de 1918. Nesse momento se colocou em Budapeste, no Congresso Internacional de Psicanálise, a questão da extensi!o clinica da psicuntllise para uutros contextos menos rigorosos para o seu exercido terapêutico. Vale dizer, o que se impunha como questlo era a "popularização" da prãtica analítica, proposta por Fcrcnczi. Sobre isso, vide: Freud, S. "Les voies nouvcllcs de la therapeutique psychanalytique" ( 1918), in La technique psychanalytique. Paris, PUF, 1972. 3.ldem. 4. Freud, S. "Pour introdu ire !c narcissismc" (1914). in La vie se.ruelle. Paris, PUF, 1973. 5. Freud, S. "Pulsiuns ct dcstins dcs pulsions" (1915). in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1969. 6. Freud. S. "Pour imroduire le narcissisme", in La vie sexuelle, p. 84. 7. Idem. O grifo t: nosso. 8. Frcud, S. "Esquisse d'une psychologíc scientifique" (1915), in LA naissance de la psychanalyse. Paris, PUF, 1913. 185
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9. Freud. S. "Les psychonévroscs de dHense" ( 1894), in Nb rose, psychose er perverslon. Paris, PUF. 1973: "Nouvcllcs remarques sur les psychon~vroses de d~fense" ( 1896), idem. 10. Freud, S. "Pour introduire le narcissisme", in La vie sexuelle, p. 96. 11. Idem, p. 96-99. 12. Preud, S. "Lc moi et Je ça" ( 1923 ), cap. 11, in Essais de psychanalyse. Paris, Gallimard, 1981. 13. Freud, S. " Pour introduire le narcissisme", ín La vie se.xue/fe, p. 84-85. O grifo~ nosso. 14. Sobre isso, vide: Bouvercssc, J. "La théorie et l'observation dans la philosophie des scicnces du positivisrne logique", in Chntelet, F. Le )()f siecle. Histoire de la philosophie, voi. 8. P11ris, Hachctte, 1973, p. 76- 134; Meotti, A. "EI empirismo lógico", in História i/c/ pensamieii/(J fi/Qsófico y científico, vol. VII. Barcelona, Ariel, 1984. p. 22 1·276. 15. Lôwith, K. De Hegel à Nietzsche. Paris. Gallimard. 1969. 16. Hyppolite. J. "Lc tragiquc et Jc rmionncl d:ms la philosophie de Hegel", in Figures de la pe11sée phi/Qsophique, vol. J. Paris, PUF, 197 1. p. 254-261 . 17. Freud, S. Totem et Tabou ( 1913), ca.p. 2. Paris, Payot, 1975. 18. Freud, S. "L'inconscicnt" ( 1915), tópico VII, in Mltapsychologie. 19. Sobre isso, vide: Knufmunn, P. "Freud: la lhéorie frcudienne de la culture", io Chntelet, F. Le x.x< siecle. His/Qire de la philosophie, vol. 8, p. 17-55. 20. Foucnult, M. Les 1110/s et les choses. ll parte, cnp. VIII. Paris, Callimard, 1966. 21. Freud, S. "Remémoration, r~pétition ct éluborution" (1914), in La technique psychanalytique. 22. Freud, S. "Au-c.Jclà du príncipe llu plaisir" ( 1920), in Essais de psychatUJiyse. Paris, Gnllimarc.J, 19M I. 23. Sobre isso, ville: Chcrtok, L .. Stcngcrs, I. O coração e a razão. A hipnose de Lavoisier a Lacan, caps. I c 11. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990. 24. Lacan, J. "Fonction ct chump llc la paroIc ct du languge en psychanalyse" (1953), il parte, in Éaits. Paris, Scuil, 1956, p. 254·258. 25. Freud. S. ·~constructions in anulysis" ( !937), in The Standard Edition of the complete psychological worlcs of Sigrnun<.l Frcuó, vol. XXII. Londres, Hogarth Press, 1978. 26. Freud, S. "Extrait de l'histoirc d'unc ncvrose infnntile (L'homme aux 1oups)", in Clnq psychanalyses. Paris, PUF. 1975. 27. Freud, S. "Pulsions et destins dcs pulsions", in Métapsychofogie, p. 17. 28. Freud, S. "Au-delà du príncipe du plaisir", in Essais de psychanalyse. 29. Frcud, S. ''Lettrcs à Wilhclm Flicss, notes et pluns"( 1887-1902), in La tUJissance de la psychanalyse, p. I 07. 30. Idem. 31. Idem, p. 143·144. 32. 1dem. 33. Freud, S. "Au-dclà du principc du plaisir", in Essais de psychanalyse, cap. IV, p.
65. 34. Freud, S. "Analysis terminablc and intl'tmi n.•b~c" ( 1937), S.E.• vol. XXIII. 35. Freud, S. "Une névrosc <.lémoniaque au XVIlcmc siecle" (1823), in Euais de psychanalyse appliquée. Paris, Gallimard, 1933.
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NOTAS
.xvre,
36. Sobre isso, vide: Koyré, A. Mystiques, spirituels. alchil~ist~s du sie~le a/femand. Paris, Gallinwrd, I 971; Koyré, A. Du monde à I umvers mfim. Paras, Gallimard, 1973. . 37. Freud, S. " Pulsions et destíns dcs pu lsions", io Métapsycht?logie, p. 11-12. O gnfo é nosso. 38. Idem, p. 12·20. 39. Freud S. "Psychical (or mcmnl) trcatmcnt" ( 1891), in S. E., voi.II. 40. Freud: S. 011 Aphasia (1891 ). New York, lnternatlonn1 Universities Press, 1953. 41. Freud, S. "The claíms uf psycho·ana1yse to scicntific interest" (1913), in S. E.• vol. XIII.
Os impasses da cien tificidade no discurso freudiano e seus destinos na psicanálise 1. Desenvolvimento de uma conferência realizada em setembro de 1989, na Escola Nacional de Saúde Pública, inscrioa no seminário "Histórin da Ciência e SaOde Coletiva". 2. Turkle, S. Jacques Lacan. La /rrupció11 dei psicoanálisis en francia. Buenos Aires, Paidos, 1983. 3. Freud, S. "Esquissc d'une psychologie scicntifiquc" (1895), 11parte, in La tUJissance de la psychanalyse. Paris, PUF, 1973. 4. Sobre isso. vide: Frcud, S. "Pulsions ct dl!stins dcs pulsions" (\ 91.5), in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968; Frcud, S. "L'inc~n~cient", 2!!-_cap.• idem.. 5. Sobre isso, vide: Frcud, S. "De la psychotMrap1e (1905), an La tec?mque psychanalytique. Paris. PUF, 1972; "La dy~amique ~u transfc.rt" <.1912), adem. 6. Freud, S. "Frngmcnt d 'une annlyse d'hysréne (Dom) ( 1905), tn Cmq psyclwna· lyses. Paris, PUF, 1975. . " . . ... 7. Sobre isso, v ioc os comentários de J. Strachey. m Thc aettology of hystena m S. E., vol. li!. Londres, Hogarth Prcss. 1978. 8. Freud, S. "The Aetiology of li isterill'' ( l 896), idem. 9. Jones E. La vie et i' oeuvre de Sigmuml Freud. vol. l. Pnris, PUf, \969, p. 396. 10. Freud, S. "Dclnsions anc.J dre
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19. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Lcs psychonévroses de défense" (I 894), in Névrose, psychose et perversion. Paris. PUF, 1973; "Nouvelles remarques sur Ics psychonévroscs de défcnse" (1896), idem. 20. Sobre isso, vide: Descartes, R. "Discours de la méthode pour cond uire sa raison et chercher la vérité dans lcs scienccs" (1633), in Oeuvre et letrres de Delcartes. Paris, Gallimard, 1949; ~scancs, R. "Méditations. Objections et réponses" (1641), idem. 21. Sobre isso, vide: "Pulsions et dcstins des pu!sions" (1915), in Métapsychologie. 22. Freud, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité, 2~ ensaio. 23. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Pulsions et dcstins dcspulsions", inMétapsychologie; "La rcfoulemcm" ( 19 I 5), irc, 1989. 31. Idem. 32. Popper, K. Conjecwres and Rt![utations. Londres, Routledge and Kegnn Paul 1963. ' 33. Sobre isso, vide: H:~rtmmm, H. Essays on Ego Psych.ology. Nova York:, International Universitics Prcss, 1976: Hanmann, H., Kris, E., Lowcnstein, R.M. Papers on Psychoanaly1ic Psydw!ogy. Nova York, lntcrnntional Universities Press, 1964. 34. Dilthey, J. lmroducción alas ciendas de/ espirilu. Mntlri Revista de Occidente 1966.
.
•
35. Kant, E. Critique de la raison pure (1781). P:1ris, PUF, 1971. 36. Sobre isso, vide: Wcbcr, M. Essais sur lu théorie de la science. Paris, Plon, 1965. 37. Politzcr, G. Critique desfondc•lllcnts de la psydwlogie (1928). Paris, PUF, 1968. 38. Freud, S. "The rcsistnnccs to psycho·analysis" (1925), in S. E., vol. XIX. Londres, Hoganh Press, 1978. 39. Roudincsco, E. Histuire d,: la psyâumalyse en France, vo!. 2. Paris, Scuil, 1986. 40. Politzer, G. Cri fique des [onde lll!Jl/S de lu psychologie. Introdução. 41. Idem, caps. I c I I. 42.Jdem, cnps. 111, IV c v. 43. Dal_biez, R. Lu mt!thode psychunaly1ique erla doctrine freudienne, vo!s. I e 11. Parrs, Dcsdée de llrouwcr, 1936. 44. Sob~c isso, vide: U1<.:an, 1. "A u·dl! 1~ d u princ ipe de rcalité" ( 1936), in Écrits. Paris, Sctul, I 966; ''Lc stadc du miroir conunc fornwtcur de la function du Je" (1949) ' idem; "L'agressivité cn psychanalysc" (1948), idem..
NOTAS
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45. Sobre isso, vide: Lacan, J. De la psychose paranoíaque dans ses rapports avec lapersonnalité, suivi de premiers écrirs sur laparanoi"a ( 1931, 1932, 1933). Paris, Scuil, 1975. 46. Freud, S. "Au-delà du príncipe du p!aisir" (1920), in Essais de psychanalyse. Paris, Gallimard, 1981. 47. Freud, S. "Lc moi et lc \'11" (1923), idem. 48. Saussure. F. Curso de língüúticu geral (1916). São Paulo, Cultrix, 1974. 49. Lév i-Strauss, C. Les structures elémemaires de la parenté (1949). Paris, Mouton, 1969. 50. I .acan, J. "Fonction et champ de la paroIc et du llmgr1geen psychanalyse" (1953). in Écrits. 51. Lacan, J. Les quatre concepts fundamemaux de la psychanalyse. L e Séminaire, livre XI (1964), caps. X-XV. Paris, Scuil, 1973. 52. Birman, 1. "A li!osotia c o lliscurso freudiano." Hyppolite, leitor de Freud, in Hyppolite, J. Emuios de psicanálise e filosofia. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre, 1989.
53. Sanre. J. P. L' Être et /e néant. Paris, Gallimard, 1943. 54. Merlcau-Ponty, M. Phénomenologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945. 55. Merleau·Ponty, M. La structure du comportement, cap. 111. parte 111, 3. Paris, PUF, 1942. 56. Sobre isso, vide: Merlcnu-Ponty, M. "N:IIure et Jogos: Je corps humain" (19591960), in Résumés de cours (Coll~ge de Frnnce, 1932-1960). Paris, Gallimard, 1968; Mcrlcau-Ponty, M. Le vr'sible e1 /'invísible. Pélris, Gallimard, 1964. 57. Ricoeur, P. De 1' interprétution. EmJis sur Freud. Paris, Seuil, 1965. 58. Idem. 59. Idem. 60. Althusscr, L. "Frcud e Lu<.:an" ( 1964), in Posições-2. Rio de Janeiro, Graa\, 1980, pp. 111- 116. 61. Sobre isso, vide: Bnchclard, G. O novo espíri1o científico (1934). Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968; Dm:hclard, G. La formatíon de l' esprit scientijique (1938). Paris. Vrin, 1975, 9! ediç11o: Bachclnrd, G. L' Engagement rationa/iste. Paris. PUF. 1972. 62. Sobre isso, v ide: Cangu ilhcm, G. L e normal ele pathologique (1943). Paris, PUF. 1966; ÉIUdes d' histoire et de philosophie des scíences. Paris, Vrin, 1968; La formution du concept de rejlexe uux XVI/e e XV/Jit siecles. Paris. PUF. 1955. 63. Sobre isso, vide: Cnnguithcm, G. "L'objct de J'histoire dcs sciences", in Études d' histoire et de philosophie des sciences, p. 9-23. · 64. Fichnnt, M., Ptchcux, M. Sur I' lristoi1·e des sciences. Paris, Maspero, 1969. 65. Althusser, L. ';Freud e L11can". in Pvsições-2. 66. Lacan, J. "Fonction et champ de 111 paro!c ct du langage cn psychanalyse" ( 1953), in Écrits. 67. Lncan, J. Les quarre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Le Séminàire, livre XI. 68. Lacan, J. L' Envers de la psychunalyse. Le Séminaire, livre XVII (I %9-1970). Paris. Seuil, I991. 69. Lncan, J. L' Éthique de la psychanalyse. Le Séminaire, livre VIII (1959-1960). Paris, Seuil, 1986.
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PSICANÁLISE, CIÉNCIA E CULTURA
70. Foucault, M. L 'A.rchéo logie du sa voir. Paris, Gallim:trd, 1969. 71. Fouc:ault, M. Lel· mots et les dwses. Pnris, Gallimard, 1966. 72. Foucauh, M. Surveiller .:1 punir. Paris, Gnllim:trd, 1976. 73. Fouc:auh, M . lliltoire de lafolic c) l'üge classique. Paris, Gallimard, 1972. 74. Idem. 75. Idem. Vide os :migos no apêndice da obm original. 76. Foucnult, M. La vo/unré de savuir. 1/iswire de la sexualiri I. Paris, Gallimard, 1976.
Leituras sobre a cientiflcidade da psicanálise 1. Aprescnut~·il o realizada no Instituto de Filosofia c de Ciências Sociais da Universidade F~:dc ral do Rio de J;mt'iro. em 30 ~abril de I992, na mesa-redonda sobre
"A Cicntilil:idatlc da Psican:ílisc", inserida na "Semana de Epistemologia e Psicanftlisc", orgnnil.:ttla pelo Dep:1rramcnto de Filosofia. 2. Freutl, S. " Esqui~sc tl'unc psydtologic scicntifil(Ue" (1895). I! parte, in La naissance de la psychanalyse. P01ris. PUF, 1973. 3. Sobre a oposiçllo entre c i~ncias n:u urais c ciências da cultura. vide: Dilthey, W. Jnrroduc:ci6n a las dencius de/ espiritu. Madri. Revista de Occidente, 1966. 4. Sobre isso, vide: Chcrtok, L.. S tcngc~. I. O coração e a razão. A hipnose de Lavoisier a Laca11, caps. I c 11. Riu tle Junl!iro, Jorge Zahar Editor, 1990. 5. Frcud. S. "Au-dcl;) du príncipe du pluisir" ( 1920), cap. IV, in Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981. 6. Frcud, S. "L' incons<.:icnt" ( 19 15), parte VIl. in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968. 7. Hyppolitc, J. •;Lc trag iquc ct lc rationnl'l ds. 19
NOTAS
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15. Politzer, G. Critique desjorulements de la psychologie ( 1928). Introdução. Paris, PUF. 1968. 16. Idem, caps. I e 11. 17. Idem, caps. III e IV. . . 18. Sobre isso, vide: Bachelard. G. IA jornuJtion de l' esprit scientifique. Pans, Vrm, 1975. ~edição. 19. Dalbiez, R. La mérhode psychana/ytique et la doctrine .freudienne, vols. l c li. Paris, Desolée de Bronwer. 1936. 20. Snrtre, J. P. L' ltre et le néant. Paris, 1943. · 21. Merleau Ponty, M. La srructure du comportement (1942). Paris, PUF, 1972, p. 191-195. . 22. Ricoe ur, P. Le conflit des interpritations. Essais d' herméneutique. Paris, Seu!I, 1969. , 23. Ricoeur, P. De l'interprétation. Essais sur Freud. Paris, Seuil, 1965. 24. Hyppolite, J. "Philosophie et psych:malyse" (1959), in Figures de la pensee philosophique, vol. l, p. 406-442. 25. Sobre isso, vide: Lacan, J. "Au-delà du príncipe de rcalité (1936), "Le stade du miroir comme fonnateur de la function du Je" (1947) e "L'agressivité en psychanalyse" ( 1948), in Écrits. Paris, Scuil. 1966. , 26. Lacan. J. "Fonction et champ de la paro Ic ct du langage en psychanalyse ( 1953), idem. 27. Althusser. L. " Freud e Lacan" ( 1964), in Posições- 2. Rio de Janeiro. Graal, 1980. 28. Lacan. J. Les quarre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Le séminilire.livre XI. Paris. Seuil, 1973. 29. f
A filosofia e o discurso freudiano: Hyppolite, leitor de Freud 1. Publicadooriginalm.ente em: Hyppolite,J. Ensaios da psicanálise e filosofia. Rio
de Janeiro. Taurus-Timbre. 1989. 2. Ferrater Mora, J. Diccionáriodefilosofia, vol. 2. Madri, Alianza Editorial. 1982, ·p. 1585. . 3. Hyppolite. J. Figures dt la pensée plrilosophique, vol. l e H. Pan~, PUF, I ~71. 4. Hegel, E.W.E. La phénomino/ogie de I' espirit, vols. I e 11. Par1s, Monta1gne, 1941. . . .. 5. H yppolite~ J. Geneses tt structure de la phlnom/nologie de I' espirit de Hegel.
Paris, Montaígne, 1946. . .. . 6. Hyppolite, J. Jn troduction à la philosophie dt Hegel (1948). Pans, Seud, 198_3. 7. Sob~· isso, vide: Hyppolite, J. "Hegel et Kierkegaard dans la pensée frança1se contempbralne" (1955), in Figures de la pensü philosophique, vol. I, p. 197;
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PS ICANÁLISE,C l~NCIA E CULTURA
Hyppolite, J. " 'La phénomcnologie' de Hegel et la pcnsée française contemporaine", idem, p. 233-234. 8. Kojcvc, A.lnlrodut'Jion à la 11!''/ure de Hegel. Paris. Gallimard, 1947. 9. Sobre isso, vide: llyppolite, J. "'La phénoménologic · de Hegel etla pensée française contemporaine", in Fisures de la pensée phi/osophique, vol. I, p. 23) -241 ; Koyré, A. "Rnpport sur l'érm dcs études hégélicnnes en Frru1ce" (1930), in Etudes d'histoires de la pensée philosophíque. Paris, Gallimard, 1971, p. 225-251. tO. Idem. I L Hegel. G. W.E. La phénoménologie de /' ésprit, vol. 1, p. 145- 154. 12. Roudioesco, E. Histoire d11 la psychunalyse en France. vol. 2, 1! parte, ca.p. 4, 5. Paris, Seuil, 1986. (História da psicanálise na França. vol. 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.) 13. Lacan, J. " Le stndc du miroir rornrnc fonnatcur de la fonction du Je telle qu 'elle nous est rév~lée dans J'c!lpcricncc psychanalytiquc" (1949), ín Écrits. Paris, Seuil, 1966. 14. Lacan. J. "Propos sur la causalité psychiquc" ( 1946), idem. 15. Lncan, J. "L':Lgrcssivit~ cn psych:tnalysc" (1948), idem. 16. Uvi-Strauss, C. " Introdução à obra de Marcci.Mauss", in Mauss, M. Sociologia e Antropologia. vol. 11. S!'to Paulo, EDUSP, 1974. 17. Lév i-Strauss, C. Les strut·tures elémtmlares de la parenté (1949). Paris, Mouton, 1967. (A.r estruturas elemenwres do parentesco. Petrópolis, Vozes, 1976). 18. Lacan, J. L' angoisse. Le Séminaire, vols. 1 e 2. Pllris, 1962.1963, mimeografado. 19. Wallon, H. Les origines áu caractere chez I' enfam (1934). Paris, PUF, 1973. 20. Lacnn, J. "Le stade du miroircomme formateurdc la fonction du Je telle qu'elle nous est révélé~ dans l'cxpériencc psychanalytiquc", in Écrils. 21. Lacan, J. "L'agressivité cn psychnn:llyse", idem. 22. Idem, p. 107. 23. Idem, p. 101-106. • 24. Lacan, J. "Au-dch\ du príncipe de rcalité" (1936), in Ecríts. 25 . Freud, S. "Au-dclà du principc du plaisir" (1920), in Essais de psychaiUJlyu . Paris. Gal!imard. 1981. 26. Laca o, J. "Fonction et champ de la parolc ct du langage en psychanalyse" (1953), parte 111. in ÉcriiS. (Escritos. Siio Paulo, Perspecti va, 1978). 27. Lacan, J. Encore. Le Séminaire, vol. XX. Paris. Seuil, 1975. (Mais, ainda. O Seminário, livro 20, Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1985). 28. Roudinesco. E. Hiswir~ d~ la psychat1alyse en France, vol. 2, }!parte. cap. I. 29. Idem. 30. Sobre isso, vide: Smirnof, V. " De Vienne à Paris", in Nouvelle revue de psycha· IUJiyse, n. 20. Paris, Gnllimard, 1979. 31. Sobre isso, vide: Prévost, C.M. Janet, Freud et la psychologie clinique. Paris, Payo[, 1973. 32. Smirnof, V. "De Vienna i\ Paris", in Nouvelle revuede psychanalyse, n. 20. 33. Freud. S. "L'inconscicot" (1915), in Métaphychologie. Paris, Gallimard, 1968. 34. Freud, S. "The resistanccs to psycho-analysis" (1925), in The Standard Editlon of the complete psychqlogical works of Sigmund Freud, vol. XIX. Londres, Hognrth Press. 1978. 35. Sobre Isso, vide: Foucault, M. Historie de la folie à l'âge clas.siqut. Paris, Gallimard, 1972 (História da loucura na idade clássica. Silo Paulo, Perspectiva,
NOTAS
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1978); Deleuze, G. e Guattari, F. L' Anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris, Munuit, 1972. (O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Lid>Oa, Assfrio e AI vim, s/d); Ricoeur, P. De/' interpretation. Essais surFreud. Paris, Seuil, 1965 (Das interpretações. Ensaios sobre Freud. Rio de Janeiro, !mago, 1977); Foucault, M.La volontédu savoir. Paris,Gallimard, 1976. (História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1977.) 36. Hyppolite, J. "Comrnentaire parlé sur la 'VemCinung' de Freud" (1955), in Figures de la pensée philosophique. vol. I. 37. Lacan, J. us écrits techniques de Freud. u Séminaire, vo\. 1. Paris, Seuil, 1975. (Os escritos 1écnicos de Freud. O Seminário, livro l. Rio de Janeiro, Zahar Editores. 1983). 38. Lacan, J. "lntroduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la 'Vemeinung' de Freud", in Écrits, p. 369-380. 39. Lacan, J. "Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la ' Vemeinung' de Freud", idem, p. 381-399. 40. Hyppolite, J. "Psychanalyse et philosophie" (1955), in Figures de la pensée philosophique, vol. I. 41. Hyppolite, J. "L'existence humaine et la psychanalyse" (1959), idem. 42. Hyppolite, J, idem, p. 398-399. 43. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalyse" (1959), idem, p. 409-410. 44. Hyppolite. J. ''Psychannlyse et philosophie", idem, p. 373-374. 45. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalyse", idem. p. 406. O grifo ê nosso. 46. Hyppolite, J, idem, p. 407. 47. Hyppolite, J. "Psychanalyse et philosophie", idem, p. 374. 48. Idem, p. 374-375. 49. Idem, p. 380. 50. Idem. 51. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalysc", idem, p. 409. 52. Idem, p. 408. 53. Idem. p. 409-410. 54. Freud, S. "Pulsions et destins des pulsion" ( 1915), in Métapsychologie. 55. Freud. S. L'lnterpretaJion des rêves (1900). Paris, PUP, 1976. 56. Hyppolite. J." ' Phénornéoologie' de Hegel et psychana1yse" (1957), in Figures de la pensée philosophíque, vol. I, p. 213. 57. ldt:m, p. 2 13. 58. ld~m. p. 2 14. 59. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalyse", idem, p. 409. 60. Idem, p. 408.
Desejo e promessa - encontro impossível 1. Moura, J.C. (org.) Hélio Pellegrino: A Deus. Petrópolis, Vozes. 1988. 2. Roudinesco, E. Histoire de la psychanalyse en France, vol. 2, 2! parte. Paris, Seull. 1986, p. 206-218. 3. Amoroso Lima, A. Freud. Rio de Janeiro, Centro D. Vital, 1929.
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PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
4. Mezan, R. Psicanálise,judaismo: ressonâncias. Cnmpinas, Escuta, 1987. 5. Binnan, J . "Psicanálise e judaísmo", in Tempo psicanalítico, vo\. X, n. 3, Rio de · Janeiro, 1987. 6. Sobre isso, vide: Freud, S., Abraham, K. Correspondance. Paris, Gallimard I969. Examine principnlmentc as Citrtas referentes aos anos 1907·1908; Freud: S., Jung, C.G. Corresptmdance, vol. I. Paris, Gallimnrd, 1975. 7. Sobre isso, vide: Freud, S., Jung, C.G., idem, p. 73; Freud, S. On the Hiltory ()j the Psychoana/ytic Movemenr, in The Swndard Edition ofthe Complete Psycho1ogica~ Wor~s ofS.igmuod Freud, vul. XIV. Londres., Hogarth Press, 1978, p. 43. 8. S?bre Jsso, v1de: B1rmnn, J. Freud e a experiênciapsicafi(J/ítica, 1! parte, cap. JV. ~10 de Janeiro. Taurus-Timbre, 1988. 9. Freud, S. Five Lee1ures on Psicho-analysis (1909), in S. E., vol. XI. I O. Rajchman, J. "Psychanalysc à l' amcric;1ine", in Critique, n. 333. Paris, Minuit, 1975, p. 160·174. li. Turkle, S. Jacques Lacun. Lt1 irrrtpción de/ psicoanálisis en Francia. Buenos Aires, Paidós. 1983 . 12. Sobre isso, vide: O Globo. Rio de Janeiro, 29/8/1987; Nicl , C.A. "O freudismo do Cardeal e a 6ticu dos psicanalistas". in Birman, J., Nicéas. C.A. (Coord.) A ordem do sexual. Rio de Janeiro. 13. Freud, S. Correspondance avec le pasreur Pjister ( 1909-1936). Paris Gallimard 1966. • • 14. P~ra o ~omcntário desta correspondencia, com a seleção de alguns fragmentos, v1de: B1rman. J. "Sobre u correspondência de Frcud com o pastor Pfisler", in Religião e sociedade, n. I 1/2. Rio de Janeiro, Campus, 1984. 15. Freud. S. The Question ofLay Anuiysis (1926), in S.E., vol. XX. 16. Freud. S. The Future uf an Jiusion ( 1927}, idem, vol. XXI. 17. Freud S. Correspondam:e avec /e pasreur Pjisler, p. 183. 18. Freud, S. Correspondunce de Sigmund Freud avec le pasteur Pfister, p. 167. 19. Freud, S. The Future oj an llu~·ion, in S. E., vol. XI, p. 30·31. 20. Freud, S. Totem e tabu, caps. 2 e 3. 21. Freud. S.lnhibition, symptôme et angoisse ( 1926). caps. VIII,1X e X. Paris. PUF, I 973. 22. Foucault. M. Naíssance de la dinique, caps. 11, 11\ e IV. Paris. PUF. 1975. 23. Idem, cap. Vlll. 24. Idem, p. 147·149. 25. Canguilhem. G. "Essai sur quclques problêmcs concernant le nonnal et le patho!ogique" (1943), in Le normal et /e pathologique. Paris, PUF, 1975. 26. Foucauh, M. Naissunce de la cliniq11e. p. 148. 27. Foucnult, M. ÜJ mots et fes choses, caps. 111, V e VI. Paris, G:~llimard, 1966. 28. Sobre isso, vidc: FouCtl u.lt, M. " A vmladc ~: ns form:•sjuridicas", in Cadernos da PUCI RJ, n. 16. Rio de Janeiro, 1974; Foucault, M. Surveiller et punir. Paris, Gnllimard, 1975. 29. Foucault. M. Naissance de lu clinique, c<1p. VI, p. 35·36. 30. Freud, S. The Furure ojun llllsivn, in S.E., vol. XXI, p. 30·31. 31. Frc~d, S. "Au·ddi\ du príncipe du plaisir" (1920), in Essais de psychanalyse. Pans, Pnyot. 198 1. · 32. Freud, S. "Civiliz:uion and lts Descontents" (1930), in S.E., vol. XXI.
NOTAS
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33. Freud. S. "Pulsion et destins llcs pulsions" (1915), in Métapsychologíe. Paris, Galimard, 1968. 34. Jung, C. G. "The Thcory of Psychoanalysis" ( 19 13), in The Col/ecred Work.f of C. G. Jung, vol. 4, Routledgc & Kegan Pnul, 1974. 35. Freud. S. "Lcs voies nouvelles de la thémpeuliquc psychanalytique" (1912), in La technique psychanalyrique. Puris, PUF. t9n. 36. Freud, S. Correspondance de Sigmund Freud avec le pasreur Pjisrer, p. 104. 37. Sobre isso, vide: Gratton, H. Psydwnalyse d'hier e/ d'aujourd'hui, cit.'ldo por Assoun, P. L. "Freud aux priscs avcc I' ideal", in Nou~·e/le revue de psychanalyse, n. 27. Paris, Gallimanl, I 983, p. 120. 38. Frcud, S., Breucr, J. ÉIUdes stlr /' hystérie ( 1895). Paris, PUF, 197 t. 39. Frcud, S. L'lnierprélatÍoll des rives (1900), cap. VIl. Paris, PUF, 1976. 40. Freud. S. " L' Inconscicnt" ( \915). in Méwpsychologie. 41. Freud, S. "Lc moi et lc ~·a" ( 1923), in Essais de psyc:hanalyse, p. 271. 42. Freud, S. "Pulsions ct dcstins dcs pul~ions" ( 1915). in Mérapsycho/ogíe. 43. Freud. S. "Lc moi ct h: \':t", C
Psicanálise e polftica: uma introduç
I. Conferencia pronunciada
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PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
para sustentar algtlmas afirmativas e situar alguns conceitos. Publicado originalmente em Tempo psicanalítico, vol. IX, n. I. Rio de Janeiro, Sociedade de Pslcanãlise Jrucy Doylc, 1986. 2. Foucault, M. "A verdaue e as forml'ls jurldicas", 4! e 5!conferências, in Cadernos da PUCIRJ, n. 16. Rio de Janeiro, 1974. 3. Foucault, M. Survei/ler c/ punir, 3! parte, caps. I, 11 e 111. Paris, Oallimard, 1975. 4. Foucault, M. Microjísica do poder. Rio de Janeiro, Ornai, 1979. 5. Sobre isso, vide: Rcich, W. A revolução sexual. Rio de Janeiro, Zahar, 1974. 6. Politzer, O. Critique desfondemcnts de la psychologie (1928). Paris, PUF, 1968,
caps. I e 11. 7. Idem, caps. 111 c IV. 8. Politzer, O. "Les fondemcnts de la psychologic", in Ecrits 11. Paris, Sociales, 1969.
9.1dem. IO. Ll'lcan, J. "Lcs comp Ic xcs fam ili:1ux dans la form<~tion de I' indi vidu ", in Encyclopédie frança/se sur la vie me111ale, vol. 111. Paris, 1936. 11. Laplanche, J. Leclaire, S.L.: lnconscie111: une élltde psychanalytique, L 12. Althusser, L. "Freud ct Lnc:ln" ( 1964-1965), in Positions. Paris, Sociales, 1976. 13. Freud, S. "Le moi ctle çu" (1923). caps. 11 e 111. in Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981. 14. Frcud, S. "Civilizmion imd its discontcnts" (19:30), in TI1e Standard Edition of thecornplete psychulugil:al wurksofSigmund Frcud, vol. XXI. Londres, Hogarth Prcss, 1978. 15. Rcich, W. L'Analysecaractérie/le, ).!!. e 2.!!. pllrtcs. Paris, Pnyot, 1971. 16. Rcich, W. Til e mass psychology offaâsm. Londres, Condor, 1972. 17. Rcich, W. Li:>ten, little man! Londres. Condor, 1972. 18. Reich, W. Reich par/e de Fr~:ucl. Paris, Payot, 1972. 19. Sobre isso, vide: Rouanct, S.P. Teoria crítica e psicanálise, 2! pane, cap. 8. Rio de Janeiro, Tempo Bwsilciro, IY83. 20. Idem, 2! parte, caps. 4 c 6. 21. Jdcm. 22. Habcrmas, J. Connaisscnce el inlérêl, 3ª pm1c, caps. lO, li c 12. Paris, Oallimard, 1976. 23. Sobre isso, vide a discussão de Prcud com Pfister: Freud, S. Correspondance de Sigmund Freud w•ec te pasteur Pjisu:r ( 1909-1939). Paris, Gallimard, 1966. 24. Birman, J. ''Sobre ;t correspondência de Freud com o pastor Pfister", in R eligião e sociedade, n. 1112. Rio de Janeiro, Cmnpus, 1984. 25. Frcud, S. "Civili:wtion ;md lts Discontcnts" ( 1930), S.E., vol. XXI. 26. Foucault, " Nietzsdlc, P:cml, Marx", in Nietzsdut. Cahicrs de Royaumont, Phi· losophic n2 VI. 1'11ris, Miuuit, I%7, p. 183·200. 27. Foucault, M. Histoire til: la fulie u /' llge chmique, 3! par1e. Paris. Oallimard, 1972. 28. Birman, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro, Oraal, 1979. 29. Birman, J. "Demanda psiquiátrica c sal>er psicannlitico", in Figueira, S. (coord.), Sociedade e doença mer.tal. Riu de Junciro, Cmnpus, 1978.
NOTAS
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30. Birman, J. Enfermidade e Loucura. Sobre a medicina das inter-relações. Rio de Janeiro, Campus, 191!0. 31. Sobre isto, vide: Birman, J. "Em casn de ferreiro... espeto de pau", 4!. parte, in Cerque ira, O. (org.) A ,·rise da psicanálise. Rio de Janeiro, Oraal, 1982.
Sujeito freudiano e poder: tragicidade e paradoxo 1. Este texto é condensação das proposições principais que apresentamos oralmente
no seminf1rio "Encontros com Hélío Pellcgríno", na mesa-redonda intitulada "Teoria e Poder", realizada em 14 de noveml>ro de 1991. 2. Sobre isso, vide: Politzcr, O. Crítique des fondements de la psychologie ( 1928). Paris. PUF, 1968. • 3. Descar1cs. R. "Mé<.litutions. Objcctions ct réponses" (1641). in Oeuvres ellettres de Descartes. Paris, Gallimard, 1949, p. 160·175. 4. Politzer. O. Critique des fondements de la psycholog!e. 5. Wcber, M. L' Ethique protestante etl' esprit du capitalisme. Paris, Plon, 1964. 6. Freud, S. Ma/ais e dans la civilisation ( 1930). P&tris, PUF, 1971. 7. Freud. S. "Psychologie des foulcs et analyse du moi" (1921), in Essais de psychanalyse. P
19. Sobre isso, vide: Hobl>cs, T. Léviathan. Traité de la matiere. de lo forme et du pouvoir de la république ecclesicmique et civile ( 1651 ). Paris, Sirey. 1971; Rousseau. J.J . OiH·ours sur I' origine etles fondements de l'inegalilé parmi les hommes. Paris. Au!Jicr Montaigne. IY71; Locke,J. "Segundo tratado sobre o governo". in Os pensadores, vol. XVIII. São P<~u lo, Abril, 1973. 20. Sobre isso, vide: Philoncnko, A. "Ethique t:t guerre dans la pensée de Hegel", in Essais sur la phi/asophie de la guerre. Paris, Vrin, 1988. 21. Mnrx, K.. Engels, F. L' ldéologie a/lemande. Paris, Socíales. 1968.
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PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
O sujeito na diferença e o poder impossível 1. Publicado originalmente em: Revista de psicanálise do Rio de Janeiro, vol. l. n. l.·Rio-dc Janeiro, I y<) I. 2. Frcud. S. "Fivc Lecturcs on Psycho·An~•lysis" ( 1910), in The Standard Edilion of the Complete Psycbologicnl Works of Sigmund Freud, vol. XI. Londres. Hoganh Prcss. 1978. 3. Sobre isso. vide: frcud. S.• Ju ng. C.G. Correspondance (1906-1914), vol. 11. p. 287-90. Paris, Gallimard, I \175. 4. Sobre isso. vide: Frcm.l, S. ''On thc l-listory of thc Psycho-Analylic Movement" (1914). in S.E.. vol. X IV; "Thc Question ofL:1y Annlysis" (1926), idem. vol. XX; "Annlysis Tcrminul>lc und lntcrminaulc" (1\137). idem, vol. XXIII. 5. Freud. S. "11Jc Qucstion of u Wclwnschauug", in '·Ncw lntroductory Lcctures on Psycho·Ana!ysis" (I \133), Confcr~ncia XXX V, idem, vol. XXII. 6. Birman. J. Fre111/ e a e.rplll'iêncht psicwwlítica. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre, 1989. 7. Idem. 8. Bnlint, M...On thc Psycho·Annlytic Training System" (1947), in lnternational Journa/ oj Psycho·Anolysis, vol. XX. Lle and lntcrminable" (1937). in S.E., vol. XXIII. 14. Birman, J. "rrcud c os des tinos ua psican(tlise" e "A critica freudiana no cinqücntcnflria de sua morte", in Birman, J.. Damiiio, M.M. Psicanálise: oficio imposs(vel? p. 216·8. Rio de Janeiro. Campus. 1990. 15. Idem, p. 218·27. 16. Castcl, P., C:\Slel. R., Lovcll, A. La société psychiatrique avancée. Le modele americain. Paris. Grassct, 1979. 11. Turke, S. Lacan, J. La irrupdón dd psic()(uuílise en Francía. Buenos Aires. Puidós, 1983. 18. Freud, S. "Tile Qucstion of" Weh:mschauuh". in ''Ncw lntroductory Lectures on Psycho-An:~lysi s", in S.E., vol. XXII. 19. Frcud, S. "Civilization und Discontcnts" (1930}, idem, vol. XXI. 20. Frcud, S. "Une difticulté de la psychanalyse" ( 1917), in Essais de psychanalyse appliquée, p. 141. Paris, Gallimard, 1975. 21.ldcm,p. 141-2. 22. Idem, p. 142·3.
NOTAS
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23. Idem, p. 143-7. 24. Freud, S. "Thc Futnre of an lllusion" ( 1927), in S.e., vol. XXI. 25. Sobre isso, viuc: Frcud, S. "L'lnconscient" (19 15), caps. I e 11, in Métapsycho· logie. Paris, Gallimard. 1968; Frcull. S. "The Resist.1nces lo Psycho-Analysis" (1925), in S.E., vol. XIX. 26. Freud. S. "The Qucstion of Lay Annlysis". idem. voi. XX. 27. Freud, S. "Une difficulté de la psychanalyse", in Essais de psychanalyse appli·
quée. 28. "No entanto, quase parece que analisar seja a t.crccira destas profissões 'imposstveis'. nas qWlis pode-se de salda estar certo de um sucesso insuficiente. As duas outras, conhecidas há muito tempo. são educare governar.", in Freud, S. "Anatysis Teminab\e aud lntcrminable", vol. XXII I, p. 248. 29. Idem. 30. Bourdieu. P., Passeron, J.C. La reproduction. Paris, Minult, 1970. 31. Weber. M. Economie et Sociéti, J! parte, cap. I, 17, p. 57. Paris, Plon, 1971. 32. Marx, K.• Engels, F. L'ldéo/ogie allemumle. Paris, Socinles. 1968. 33. Sobre isso, vide: Philonenko, A. "Ethique ct guem: dnns la pensée de Hegel". in Essais sur la philosophie de la gum·e. Paris, V r in, 1988. 34. Sobre isso, vide: Philonenko, A. "Tolstoi et ClnusewíLZ", idem; Aron. R. Penser lfJ guerrt, C/ausewitz, vol. I. Paris, Gallímar
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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
Paris, 1936; Lncan, J. "Le stade du miroir commc formateur du Je" (1949), in Écrits; Lacan. J. "Remarque sur Je rapport de Daniel Lagache: psych:malyse et structure de la personalité", idem. 59. Freud, S. "Psychologie des foules et analyse du moi", cap. VI. in Essais de psychanalyse.
60. Idem, p. 163-6. 61. "Segundo testemunho da psicanálise, quase toda relação afetiva Intima de alguma duração entre duas pessoas - relação conjugal, amigável, parenta! e filial contém um fundo de sentimentos negativos c hostis, que só escapa à percepção em conseqüência do recalque. Isso é mais evidente cada vez que um associado se altera com os colegas, que um subordinado resmunga contra o seu superior. A mesma coisa se produz quando as pessoas se reúnem em unidades mais importantes. Cadn vez que duns familias se avaliam por um casamento, cada uma delas se considera, à custa da outra. como a melhor c a mais distinta. De duas cidades vizinhas. cadttotuna se torna a concorrente invejosa da outra; o minúsculo cantão se lança sobre o outro... GruJ)Os étnicos estreitamente aparentlldos se repelem reciprocamente..." Frcud, S., illcm, p. 162-3. 62. Gramsci, A. Maquiem:/, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1968. 63. Hegel, G.\V.P. La phénomeno/ogie de I' esprit ( 1807), voi. li, p. 42. Paris, Aubier, 1941. 64. Sobre isso, vide: Freud, S. "Psychologie des foules et analyse du moi", caps. IV, V, VII, VIII c X, in Essais de psychanalyse. 65. Idem. 66. Idem, caps. IV c VIII. 67. Idem, caps. VII c VIII. 68. Frcud, S. "Totem and Taboo", cap. IV, in S. E., vol. XII. 69. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Psyd10logh: dcs foulcs c analyse du moi", cap. X, in Essais de psydwnalyst~; "Lc moi c lc ça", cnp. 111, idem; Freud, S. "Moses and Monotheism: Thrce Essays" ( 1938), in S.E.. vol. XXII L 70. Freud, S. "Totem e Talx>o", cap. IV, idem. 71. ..... Isso nos conduz liO mtscimcnto do ideal do ego. pois atrás dele se oculta a primeira c a mais importante idctllil1ca~·ão do indivíduo: a identificação com o pai da pré-história pessoal." Frcud, S." Le moi et Ie ça", in Essais de psychanalyse, p. 243. 72. "Talvez seria mais prudente dizer identificação aos pais pois, antes do conhecimcnlo certo da difcren~·a de sexos, da falta do pênis, ao pai e a mãe não se concedem um valor diferente.", idem, p. 243. 73. Hobbes. T. Lévialhan. Traité de la maliére, de la forme et du pouvoir de la républíque ecdesiastique et civile ( 165! ). I! pane. Pris. Sirey, 197 L 74. Rousseau, JJ. Diswurs sur I' inégalite parmi les hommes. Paris, Aubicr Montaigne, 1973. 15. Freud. s. "Civilit<~tion and lts Discontcnts", in S.E.• vol. XXI. 76. Freud. S. "Thrcc Essays on thcory of Scxuality"(!905). idem, vol. VIl, p. 193. 77. Freud, S. "Pulsions et dcstins dcs pulsions", in Métapsychologie. 78. Freud, S. "Le prob!emc économiquc du masochisme" (1924), in Névrose, psychose et pervesion. Paris, PUF, I 973.
NOTAS
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79. Freud, S. "Le troublc psychogcne de lu vision dans la conception psychanalyti· que" (19 10), idem. 80. Freud, S. "La morale scxucllc civilisée et la maladie nerveuse des temps modernes" (1908). in La vie sexuel/e. Paris, PUF, 1969. 81. Hegel, G.W.F. La phénomtmologie de I' esprü (1807), cap.IV, vol.l. 82. Marx, K. Engels, F. L' ídéologie al/emande. 83. Sobre isso. vide: Foucault, M. "Nictzsche, Freud, Marx", in Nietzsche. Cahiers de Royaumont. Philosophie nº- V I. Paris, Minuít, 1967. 84. Idem. 85. Idem. 86. Foucault, M. "Naissance de la prison", in Surveiller el punir. 3! parte. caps. I e IL Paris, Gallimard, 1975. 87. Foucaulc, M. Lll volonté du savoir. Histoire de la sexualité, vol. I. Paris, Gallimard. 1976.
A étictl da psicanálise e a moral nas instituições psicanalíticas I. Este ensaio ~ o desenvolvimento da apresentação oral que realizamos na mesaredonda intitulada "A ética nn inslituição psicanalltica", organizada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, em novembro de 1990. Publicado originalmente em Revista de psicologia e psicanálise, n. 3, Rio de J3neiro, Instituto de Psicologia da Universidade do Rio de Janeiro, 1991. 2. Sobre isso, ver: Freud. S. "Lcs psychonévroses de défcnse" (1894), in Nivrose, psychose et perversion. Paris, PUF, 1973; Freud. S. "Nouvelles remarques sur les psychonêvrosc de défensc" ( 1986), idem. 3. Freud, S. L' lnterpréJaJion des r€ves ( 1900), cap. VIl. Paris, PUF, 1976. 4. Idem. 5. Freud, S. "L' Inconscient" (I 915), in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968. 6. Freud, S. "Le moi et le ','a" (1923), in Em~is d~: psychanalyse. Paris, Payot, 1981. 7. Freud. S. ''Remarques psychan:tlitiqucs sur l'autobiographie d'une cas de para· noia (Dementia Par:moidcs)". Lc presídent Schreber (1911), in Cinq psychonalyses. Paris. PUF, 1978. 8. Freud. S. "L'inconscient" ( 1915), in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968. 9. Frcud. S. "Esquisse d'une psychologic scicntifiquc" (1895). t! parte, in IA naissance de la psychanalyse. Paris, PUF. 1973. 10. Freud, S. Trais essais sur la Jhéorie de la sexualité (19Q5), j! parte. Paris, Gallimard, 1962, p. 56. I L Freud. S. "Pulsions ct dcstins dcs pulsions" ( 1915), in Métapsychofogie, p. 18. 12. ldem, p. 20·25. 13. Idem, p. 25. 14. Freud, S. "Le refoulement" ( 1915). idem. . 15. Lacan, J. L' E1hique de la plychanalyse. Le Séminaire, livre VIl. Paris, Seuil,
1986.
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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
16. Bunrque de Hohmda Ferreira, A. Nvvv dicionário da lingua portuguesa, 2! cd. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1986. p. 1591. 17. Idem. 18. Idem. 19.ldem. 20. Sobre isso, vide: Lalande, A. Vocabttfaire technique et critique de la philosophie. Paris, PUF, 1976, 12!cd., p. 305-306. 21. Sobre a categoria de paradigma na epistemologia e na história das ciências, ver: Kuhn, T.S. A esll·utura das rel·oluçües científicas. Silo Paulo, Perspectiva, 1975.
22. Freud, S. To/em elfabou (1913), cnp. IV. Paris, Payol, 1975. 23. Freud, S. "Pulsions ct destins des pulsions", in Métapsycho/ogie, p. 22-23. 24. Freud, S. "Pour introdu ire le nnrcisismc" (I 914), in IA vie sexuelle. Paris, PUF, 1973, p. 85-86. 25. Sobre os efeitos mortíti!ros do super-ego nas instituições de formação psicanalfticn, ver: Balint, t-.1. "On the psychoanalytic training system", in lmerru;uional Joumal of Psychoa~talysis, vol. 20. Londres, 1948; "Aoalytic training and trainíng annlysis", i<.lcm. vol. 35. Londres, 1954.
Sujeito, valor e divida simbólica 1. Publicado originalmente em Cultura da inflação. Rio de Janeiro, Relume-Duma·
rá. 1993. 2. Freud, S. "L'lncon.scicnt" ( 1915), cap. 11, in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968. 3. Frcud, S. "Analysis T.:rminablc and lntcrminable" (1937), in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. XXIII, Londres, Hogm1h Prcss. 1978, p.225. 4. Frcud, S. "L 'lnconsci~lll", cap. 11. 5.1dcm. 6. Descartes. R. '·Mé<.litations. Objl'Ctions ct réponses" (1641). in Oeuvreselleures de Descanes. Pilris, Gallimard. 1949, p.l60-175. 7. Frcud, S. "The lntcrprctation of Drcams" (1900), in S.E., vols.IV e V. 8. Freud, S. "Thc Psychopathologie of Evcryday Lifc" (1901), id. ib., vol. VI. 9. Freud, S. "Jokes and their Relirtion to 1h~ Uru.:onscious'' ( 1905), id. ib., vol. VIII. 10. Carta de Frcud a Flicss. 2 úc ltl>ril de 1986. contida em "Lettres à Wilhelm Fliess
- N01es ct plilns" ( ~~~7- I902), in La 11ai:isanl'e de la psychanalyse. Paris, PUF, 1973, p. 143·144. 11. Politzer, G. Critique dcsfolldemems tle la psy,·hulugie (1928), caps. l e 11. Paris, PUF, 3! etl., 1968. 12. Lncan, J. "Fonc1ion el champ de la parolc et du langage en psycanalyse" (1953), in Écrits. P
NOTAS
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16. Freud, S. "Au-ddil du príncipe du plaisir" (1920), in Essais de psychanalyse. Paris. Payot. 1981. 17. Freud, S. "Le prol>lcme économiquc du masochisme" (1924). in Nivrose, psychose et perversion. Paris, PUP, 1978. 18. Freud, S. "L' lnconscicnt", cap. I11. in Mélapsyclwlogie. 19. Freud, S. "Pulsions e1 deslins dcs pulsiuns", id. ib., p.25. 20. Freud, S. "lnhibitions, symptome ctangoísse" (1926), cap. VII-X. Paris, PUF, 1973. 21. Freud. S. "Pour in1roduirc lc narcissisme" ( 19 14), in La vie sexuelle. Paris, PUF,
1973. 22. A esse respeito, vide: Freud, S. "Caract~re et erotisme anal" (1908) e ''La disposition à lc névrosc obsessíonclle" (1913), in Névrose, psychose et perver· sion. 23. Freud. S. "Pour ímroduire le narcisisme", in La vie sexue/Je.
A morte entre a ética e a violência I. Este texto é o desenvolvimento de um trabalho inicial que foi apresentado no scminflrio "Rio de todas as cri$cs", na sessão sobre "Cultura da violência", organizado pelo Instituto Univ.:rsitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) e realizado em agos1o de 1990. Como o seminário linha uma perspectiva ttansdisciplinar. a kitum psicanalítica que empreemkmos da questão da violência pretendeu realizar um diálogo efetivo com :•s outras disciplinas, do campo das ciências suciuis, presenles m1 discussão. Nesta versão atualizada, o trabalho m<~ntcve o seu caráter condensado c o estilo ágil de um escrito que é adequado para uma int\!rvcn\·ão oralnunu1 mesa-redonda, onde pretendíamos esboçar uma hipótese da leitura sobre a probkmática da inserção da subjetividade na produçllo e na reprodução da violência. na qual o sujeito em questão foi tematizado na perspectiva da psicanálise. Contudo, para este livro realizamos transfonnnções substantivas no corpo inicial do trabalho para dcstncar melhor algumas de nossas formulações, mcdianlc um breve dcscnvolvim.:JIIo, assim como indicamos em notas de pé de página as referências bibliogrfllicas mais importantes presentes no texto para fornc~.:er ao leitor um pcn:urso possível de leitura. 2. Para a leitura rigorosa <.lestes I.:O!KeiiOS podem ser consultadas as seguintes obras: Bourdieu, P. Esctctisse d'rme tluJorie de lu prutique, Gcnêve, Droz, 1972; Bourdieu, P.. Passcron, J.C. La nJpruduction. Paris, Minuit, 1970. 3. ldcn1. 4. Idem. 5. Foucauh. M. Naissancc de la c:linique. Pilris. PUF, 1975, 4!! ed. 6. Sobre isso, vi
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t>SICANÁLISE. CIENCIA E CULTURA
9. Rieff, P. O triunfo da ttrapêutica. Sno Paulo, Brasiliense, 1990. 10. Ourkheim, E. L~s regles de la mithode sodolugiqu(. Paris, PUF, 1973. 11. Donzelot, J. "Lc troisi~me âgc de la r~prcssioo", in Topique, n. 6. Paris, PUF, 1971. 12. Frc ud, S. "Pulsions ct dcstins eles pu lsions" ( 191 5), in Métapsycholagie. Paris, GaHimard, 1968. 13. ldcm. 14. Preud, S . "L ' lnconscicnt" ( 19 15), idem. 1S. Foucault, M. Sunocil/t:r et Punir. 16. Idem. 17. Poucauh, M. La vo/anté de savoir. J/iswire de la sexualité, I. Paris, GaiJimard. 1976. 18. Foucault, M. -L' Impl :m ~atioo pcrvcrse", in La volonté d~ savoir, cap. IJ, 2. 19. Sobre isso. vide: llirman, J. Frcud e a experiênâa psicanalítica, 2! parte. A constituição da psicanálise I. Rio de Janeiro. Tuurus -Timbre, 1989. 20. Freud, S. Truis ~ssais sur la théurie de la se.rualité (1905). Paris, Gallimard, 1962. 21. Foucault, M . "Ti.-cnulogics of thc Sclt' 1" in M:utin, L.H.• Gutman, H .• H utton. P.H. Technolagies aftlle Self. Lonüres, Tavistoc!c Publications, 1988. 22. Foucnult, M. L' usag e des plaisirs. flistoire de la se.walité. 2. Paris, Gallimard, 1984. 23. Foucault, M. Le souci de soi. IJistoire de la sexualité, 3. Paris, Gallimard, 1984. 24. Hegel, G.W.F. La phb wménologie de /' esprit (1807), cap. IV, A, vol. I. Paris, Aubier Montaigne, 1941. 25. Machiavel, N. "Discours sur la prcmi~rc d~cade de Tite-Live",livro 11, cap. VIl, in Machinvcl, N. Oeuvres ,·ompleles. Pm·is, Gnllimard, 1952, p.533. 26. Hegel, G. W.P. La phbwmi11ologie de I' esprit, vol. 11, p.42.
PS ICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA Este livro, Jerceiro volume de P.ensamento freudiano, constitui-se de onze ensaios psicanaHticos sobre diferentes temas: ciência, filosofia, política, ética, religião e economia. Sua finalidade é estabelecer um diálogo interdisciplinar da psicanálise com algumas das ciências humanas, construindo uma interlocução fecunda com outras disciplinas e centrando-se em alguns tópicos especiais desses saberes. Contudo, ao circunscrever com rigor suas escolhas e possibilidades metodológicas, o autor não tem absolutamente a intenção de esgotar os diferentes campos leóricos em pauta. Ao contrário, seu propósito é explicitar algumas questões que operam na fronteira da psicaná'lise com outros saberes, de forma a cernir problemáticas que proporcionem uma interlocução interdisciplinar. O estabelecimento deste diálogo tornou-se possível por razões de ordem teórica e histórica. Nos últimos anos, vem se impondo paulatinamente no campo intelectual um paradif(ma interdisciplinar de pesquisa, de maneira que diferentes saberes procuram sair de seu isolamento para dialogar com disciplinas próximas, que trabalham com temáticas comuns ou similares. A resultante desse processo de interlocução foi a constituição de novas problemáticas e de recortes inéditos no real, que se ordenaram nas fronteiras de diferentes disciplinas, e a retomada de temáticas antigas que se renovam pelo diálogo entre estas diversas disciplinas. A psicanálise não poderia ficar de fora desse universo de interlocução sem o risco de se excluir do lagos dialógico e mesmo de se este· rilizar em sua produção conceitual. Isso por· que, na leitura crítica de Jocl Birman, a fecundidade teórica da psicanálise sempre se revelou em sua história, quando ousou explorar os
limites e até mesmo os confins de seu território epistemológico. Isso feito, o discurso psicanaHiico podia retornar a seu espaço anterior de referência e empreender a reflexão critica de seus fundamentos. A pesquisa interdisciplinar, portanto, oferece à psicanálise a oportunidade de repensar suas referências fundamentais e de se enriquecer
conceitualmente através da exploração das fronteiras e confins de seu território. É através de um percurso instigante, marcado pela diversidade de seus temas, que esta obra nos convida a revisitar o pensamento freudiano. . JOEL BIRMAN é psicanalista; doutor em filoso-
fia pela USP; professor-titular da UFRJ, lecionando no mestrado de teoria psicanalítica do Instituto de Psicologia; e professor-adju~to da UERJ, onde leciona e é pesquisador no mes· trado e no doutorado em saúde coletiva do Instituto de Medicina Social. Colaborador assíduo de várias publicações especializadas, é autor de A psiquiatria como discurso da moralidade ( 1978), Enfermidade e loucura (1980) e A constituição da psican.álise, obra dividida em dois volumes: Freud e a experiência psicanaUtica ( 1989) e Freud e a interpre· tação psicunalítica (199 1). Trabalha atualmente na obra Pensamento freudiano, cujo primeiro volume publicado é Ensaios de teo· ria psicanalítica.
Cap11: Gustavo Meyer
PENSAMENTO FREUDIANO JOEL BIRMAN
Planejado em cinco volumes, Pensamento freudiano tem por objetivo sustentar e desenvolver uma leitura da psicanálise tendo como referência básica o discurso freud iano. Os volumes I e 11 - Ensaios de teoria psicanalítica, partes 1 e 2 - abordam a concepção da metapsicologia e seus conceitos fu ndamentais: metapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente e sexualidade, na parte 1; narcisismo, sublimação, fantasma, ato e tempo, na parte 2. No volume III -Psicanálise, ciência e cultura - o campo teórico para o diálogo possível da psicanálise com outros saberes e práticas sociais é analisado, discutindo-se a cientificidade do discurs0 freudiano e suas relações no campo interdisciplinar da filosofia, política, ética e religião. Os volumes IV - O ato psicanalítico - e V -As estruturas clinicas - efetuam, respectivamente, uma leitura do ato psicanalítico e seus press upostos, e o estudo de algumas estruturas clínicas presentes no discurso freudiano.
IJZ·El Jorge Zahar Editor