Seminário sobre
- representação AUTO - biografia - retrato CEHUM, Braga 3 de Fevereiro 2012
João Barrento O EU, O OUTRO, O HÁ: Pessoa, Celan, Llansol
JOÃO BARRENTO Ensaísta e tradutor. Professor (aposentado) de Literatura Alemã e Comparada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Publicou livros de ensaio, crítica literária e crónica, e traduziu literatura e filosofia de língua alemã do Barroco à actualidade, com destaque para grandes edições de Goethe, Musil e Walter Benjamin. Colaborou no jornal "Público" desde a fundação (1990) até 2006, e na maior parte das revistas literárias portuguesas. Foi vice-presidente do PEN Clube Português (19902006) e é actualmente Presidente da Direcção do Espaço Llansol, responsável pelo espólio de Maria Gabriela Llansol. Recebeu os principais prémios literários portugueses (para ensaio, crónica e tradução), a Cruz de Mérito Alemã (1991) e a Medalha Goethe (1998). Llivros de ensaio, crónica e teoria: Fausto na Literatura Europeia. Lisboa, Apáginastantas, 1984 (com VV. Autores); O Espinho de Sócrates. Modernismo e Expressionismo. Lisboa, Presença,1987; A Poesia do Expressionismo Exp ressionismo Alemão Alem ão, Lisboa, Presença, 1989; Goethe. Vida, Obra, Época / Goethe em Portugal . Lisboa, Círculo de Leitores, 1991; A Palavra Transversal. Tra nsversal. Literatura Liter atura e Ideias Ide ias no Século XX . Lisboa, Cotovia,1996; Uma Seta no Coração do Dia. Crónicas. Lisboa, Cotovia,1998; Nelken und Immortellen. Portugiesische Literatur der Gegenwart [Cravos e Sempre-Vivas. A literatura portuguesa contemporânea]. Berlim, edition tranvía,1999; A Espiral Vertiginosa. Ve rtiginosa. Ensaios Ensa ios sobre a cultura cult ura contemporânea contemp orânea. Lisboa, Cotovia, 2000; Umbrais. O Pequeno Livro dos Prefácios. Lisboa, Cotovia, 2000; O Poço de Babel. Para uma poética da tradução literária. Lisboa, Relógio d’Água, 2002; Ler o Que Não Foi Escrito. Conversa inacabada entre Walter Benjamin e Paul Celan. Lisboa, Cotovia, 2005; A Escala do Meu M eu Mundo. Lisboa, Assírio & Alvim, 2006; O Arco da Palavra. Ensaios. S. Paulo, Editora Escrituras, 2006; Na Dobra do Mundo. Escritos llansolianos. Lisboa, Mariposa Azual, 2008; O Género Intranquilo. Anatomia do ensaio e do fragmento . Lisboa, Assírio & Alvim, 2010; O Mundo Está Cheio de Deuses. Crise e crítica do contemporâneo. Lisboa: Assírio & Alvim (2011);
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RESUMO: Tentemos um simulacro de resumo. Leio na capa do «Ípsilon» (suplemento do Público) de 15 de Abril de 2011: «O meu nome é Philip Roth e escrevo livros»! Tipicamente americano, este gesto de se autonomear e, com alguma ingenuidade, atribuir a esse «nome próprio» a escrita de livros (ou, na origem desta postura, com John Ford, de filmes). Na Europa, o nome e a sua ligação directa à escrita foi sempre muito mais problemático, que o mesmo é dizer, a questão da identidade foi sempre um problema – etimologicamente: um promontório a ultrapassar, algo que é lançado para além de si e nos lança para além de nós. O problema da identidade e a identidade como problema estão presentes na literatura europeia desde muito cedo (e já na forma antiga do «diálogo», que, na filosofia ou na literatura, atenua desde logo a afirmação excessiva do Eu, ao desdobrá-lo em personae, e situando-o em contexto dialógico): encontramo-lo no uso do pseudónimo ou do nome literário desde os Cancioneiros medievais; em formas «dramatizadas» como o chamado Rollengedicht alemão do século XVIII, em que o poeta se esconde por detrás de uma ou mais personagens; no jogo das máscaras e da impessoalidade em todos os momentos pré-modernos do século XIX, dos Romantismos (o alemão e o inglês, em particular com Hölderlin e Keats) aos poetas que mais explicitamente preparam e antecipam a modernidade, ou já a constituem: Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, mas também Robert Browning e os seus «monólogos dramáticos»; e, naturalmente, na maior parte dos autores dos Modernismos, Valéry ou Eliot, Gottfried Benn ou Pessoa, para só mencionar alguns, e poetas. No mesmo dia e no mesmo jornal – e destaco este caso pelo contraste radical com o americano Philip Roth –, o escultor português Rui Chafes, que na sua área específica, se alimenta exemplarmente de algumas daquelas tradições, instado a falar de si e da «sua» obra, assume um gesto, mais europeu, de «pudor» de si e do nome, falando exclusivamente através daqueles que o formaram (que constituiram a sua identidade artística, e são parte intrínseca dela), a começar por um dos seus mestres maiores, o escultor alemão Tilman Riemenschneider. Rui Chafes começa por afirmar: «Nasci em 1266 numa pequena aldeia que já não existe, na Francónia, Baviera...», e nunca sairá deste registo distanciado. A partir destes dois exemplos podemos colocar a questão de fundo, que abordaremos em primeiro lugar de um ponto de vista teórico, e depois documentaremos com três exemplos bem diferentes. Este gesto, quase compulsivo, dos criadores para dizer: «Eu sou Outro/Outros» explicar-se-á talvez pela própria natureza desse acto criador: nada nasce apenas a partir de um Eu (empírico ou transcendental), o processo é sempre mais complexo. Nenhum Eu se constitui sem um Outro, a #
identidade só é compreensível em relação com uma, ou várias, alteridades. Isto é sabido há bastante tempo, e hoje pacífico. Mas, no caso da literatura, a vertente específica do problema é desde logo determinada por um aspecto particular, que tem a ver com a mediação da linguagem verbal . «Não temos a linguagem, é ela que nos tem a nós» (Karl Kraus); «Não meu, não meu é quanto escrevo...» (F. Pessoa); «Eu não sou eu nem sou o outro...» (Mário de SáCarneiro), etc. Ou seja: há um para-além-da-linguagem que o sujeito (de escrita, e também de fala: veja-se o final do Tractatus de Wittgenstein) não controla. E é esse além-de que move a escrita. Por isso, sobretudo desde os Romantismos, é mais forte a consciência dos limites, deste estar aquém-de (das capacidades expressivas da linguagem), que afecta necessariamente o sujeito e a sua identidade. Instalam-se formas várias de cepticismo e «perspectivismo» (com especial destaque, e incidências literárias, no caso de Nietzsche) e impõe-se a ideia da não-coincidência do Eu consigo e com a linguagem (consigo, isto é: com o seu si(-mesmo)/soi/Selbst : mas, que(m) é esse si(-mesmo), que não se confunde com o Eu?). A literatura moderna, e alguma contemporânea, porá então em causa a mesmidade-do-ente que se manifesta no terreno particular do Ser da Literatura, implícita no próprio conceito de id(em)-entidade. Discutiremos isto com a ajuda de alguns filósofos: Heidegger (e a identidade como «co-pertença»), Ricoeur (e a diferença entre identidade e ipseidade), Levinas (e a noção do Há), José Gil (e o caso particular de Pessoa). E veremos, com três exemplos concretos (de poetas, ou não: Fernando Pessoa, Paul Celan e Maria Gabriela Llansol), como nos casos mais radicais de oscilação identitária, de autores nos quais se agudiza a relação com a linguagem enquanto matéria visceral, para lá das suas funções meramente comunicativas ou representativas, são diversas, na sua relação com a escrita, as «saídas» encontradas para o «dilema do nome» (desconhecido da multidão daqueles que, na literatura, dizem «Eu» aproblematicamente): a. Em Fernando Pessoa , através da dissociação e dramatização do Eu , que leva a que toda a sua Obra (incluindo a ortónima) seja uma construção heterónima (ou heterógrafa); b. Em Paul Celan (ou Ossip Mandelstam), pela anulação trágica do Eu, rasurado pelo próprio movimento aniquilador da História, mas afirmando-se pela via de uma poesia absoluta, em que um Isso, a própria voz da linguagem, fala a partir das ruínas da barbárie sem nome; c. Em Maria Gabriela Llansol, por uma tripla via: discursiva (a das vozes que falam no seu texto); genológica (a das formas ou géneros, particularmente o caso singular da «autobiografia» transformada em «signografia»); e filosófica, que implica um salto do plano do Eu para o do «Há», do registo pessoal/impessoal para a escrita à $
distância de si e do nome, fora do social, da História e da memória pessoal, e perto do Aberto (Rilke) – no espaço do Há sem Eu, uma espécie de líquido amniótico ou de murmúrio do Ser que produz a energia que se liberta no acto de escrita e leva quem escreve para fora de si.
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BIBLIOGRAFIA BREVE: Literatura primária: - Fernando PESSOA: qualquer edição da Poesia; textos teórico-críticos como «Carta a Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos» ou «Apontamentos para uma estética não-aristotélica») - Paul CELAN: Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética. Trad. de João Barrento e Yvette Centeno. Lisboa, Livros Cotovia, 1993 (2ª ed. 1996) A Morte é Uma Flor . Poemas do espólio. Trad. de João Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1998 Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Trad. de João Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1996 - Maria Gabriela LLANSOL: Os Diários: Um Falcão no Punho [1985]. 2ª ed. Lisboa, Relógio d’Água, 1998 Finita [1987]. 2ª ed. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005 Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa, Relógio d’Água, 1996 Onde Vais, Drama-poesia? Lisboa, Lisboa, Relógio d’Água, 2000 Cadernos e outros manuscritos inéditos do espólio Teoria/Crítica: - João BARRENTO, O Espinho de Sócrates. Expressionismo e Modernismo . Lisboa, Presença, 1987 - João BARRENTO, A Palavra Transversal. Literatura e ideias no século XX . Lisboa, Livros Cotovia, 1996 - João BARRENTO, A Espiral Vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contemporânea. Lisboa, Livros Cotovia, 2001 %
- João BARRENTO, Na Dobra do Mundo. Escritos llansolianos . Lisboa, Mariposa Azual, 2008 - Eduardo Prado COELHO, «Literatura e testemunho», in: Literatura e Pluralidade Cultural . Actas do 3º Congresso Nacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Lisboa, Edições Colibri, 1998, pp. 37-42 - Bruno C. DUARTE (Organ.), Hölderlin. Lógica Poética . Lisboa, Vendaval, 2011 - José GIL, O Devir-Eu de Fernando Pessoa . Lisboa, Relógio d’Água, 2010 - Manuel GUSMÃO, «Se ela é Heathcliff, quem sou eu?»; e «Anonimato e alterização», in: Uma Razão Dialógica. Ensaios sobre literatura, a sua experiência do humano e a sua teoria. Lisboa, Edições Avante, 2011 - M. HEIDEGGER, Identität und Differenz [1957]. Ed. francesa: Identité et différence, in: Questions I. Paris, Gallimard, 1968 - E. LEVINAS, Ética e Infinito [1982]. Lisboa, Edições 70, 1988 - E. LEVINAS, Le temps et l’autre. Paris, Fata Morgana, 1979 (ed. ut.: El Tiempo y el Otro. Barcelona, Paidós, 1993) - António MARQUES, Perspectivismo e Modernidade. Lisboa, Vega, 1993 - F. NIETZSCHE, Sujeito e Perspectivismo. Introd. e notas de António Marques. Lisboa, D. Quixote, 1989 - Paul RICOEUR, Soi-même comme un autre . Paris, Seuil, 1990
&
TEXTOS
Autor | auto-retrato | autor-e-tra(c)to:
* Nota: Latim re-tracto (ou re-trecto)/ -avi/ -atum: v. tr. 1. Tocar de novo em; manejar de novo; retomar... 2. Retocar, corrigir, rever (obra, lei) 3. Trazer de novo à memória Também, fig.: Retirar, revogar, retra(c)tar, recuar, recusar-se a...
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ALGUMA TEORIA: Mestre Eckhart : Um mestre diz: O ser do anjo depende inteiramente do intelecto de Deus. Coloca-se a questão: onde se encontra propriamente o ser da imagem – no espelho, ou naquele de onde ela sai? Ela está mais propriamente naquele de onde ela sai. A imagem é em mim, de mim, para mim. Enquanto o espelho se encontra exactamente defronte do meu rosto, encontra-se aí a minha imagem; mas se o espelho cair, a imagem desaparecerá. O ser do anjo depende de estar presente o intelecto de Deus, no qual ele se reconhece. (Sermão 10, Quasi stella matutina…) !
Walter Benjamin: TRATADO, AUTOR(IDADE), IDENTIDADE: [...] Se a filosofia quiser conservar a lei da sua forma, não como propedêutica mediadora do conhecimento, mas como representação da verdade, então aquilo que mais importa deve ser a prática dessa sua forma, e não a sua antecipação num sistema. Tal prática impôs-se em todas as épocas para as quais foi evidente a essência não delimitável do verdadeiro, sob uma forma propedêutica que pode ser designada pelo termo escolástico do «tratado», porque ele reenvia, ainda que apenas de forma latente, para os objectos da teologia, sem os quais não é possível pensar a verdade. Os tratados serão doutrinários no tom que assumem, mas a sua índole profunda exclui aquele rigor didáctico que permite à doutrina afirmar-se por autoridade própria. E também eles renunciam aos meios coercitivos da demonstração matemática. Na sua forma canónica, eles aceitam um único elemento doutrinal – de intenção, aliás, mais educativa que doutrinária –, a citação da auctoritas. A representação é a quintessência do seu método. Método é caminho não directo. A representação como caminho não directo: é esse o carácter metodológico do tratado. A sua primeira característica é a renúncia ao percurso ininterrupto da intenção. O pensamento volta continuamente ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é o modo de ser específico da contemplação. De facto, seguindo, na observação de um único objecto, os seus vários níveis de sentido, ela recebe daí, quer o impulso para um arranque constantemente renovado, quer a justificação para a intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico não (
perde a sua majestade pelo facto de ser caprichosamente fragmentado. Ambos se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt ) se deixa apreender apenas através da mais exacta descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material ( Sachgehalt ). Tanto o mosaico como o tratado, na fase áurea do seu florescimento no Ocidente, pertencem à Idade Média; (aquilo que permite a sua comparação é, assim, da ordem do genuíno parentesco.[...] («Prólogo epistemológico-crítico» de Origem do Drama Trágico Alemão . Lisboa, Assírio & Alvim, 2004. = Obras Escolhidas, vol. I. Edição e tradução de João Barrento).
NOME E SER: Sou eu aquele que se chama W. B.? Ou chamo-me simplesmente W. B.? Esta é, de facto, a questão que conduz ao mistério do nome próprio, muito correctamente formulada num fragmento póstumo de Hermann Ungar: «O nome está ligado a nós, ou somos nós que estamos ligados a um nome?» Sou eu aquele que se chama W. B., ou chamo-me simplsmente W. B.? Estas são as duas faces de uma moeda, mas a segunda está gasta, enquanto a primeira traz ainda o brilho da cunhagem. Essa primeira versão torna evidente que o nome é objecto de uma mimese. Mas a sua natureza particular é a de não se revelar no que há-de vir, mas sempre e apenas no que já foi, ou seja, no que foi vivido. O hábito de uma vida vivida: é isso que o nome guarda, mas também prenuncia. O conceito de mimese implica, para além disso, que o domínio do nome é o da semelhança. E como a semelhança é o organon da experiência, isso significa que o nome só pode ser reconhecido em contextos de eperiência. Só através deles a sua essência, que é essência de linguagem, se tornará reconhecível. [...] O reconhecimento pelo nome está mais plenamente desenvolvido na criança, porque a faculdade mimética se reduz com a idade na maior parte das pessoas. (O Livro das Passagens, fragmentos Qº,1 e Qº, 24-25)
(E ainda, de W. Benjamin: «Doutrina das semelhanças» e «Sobre a faculdade mimética») )
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Friedrich Nietzsche: SUJEITO, VERDADE, CONHECIMENTO , PERSPECTIVISMO : ... não duvides: tu és feito! a cada momento! A humanidade confundiu em todas as épocas o activo e o passivo, e esse é o seu eterno lapso gramatical. (Aurora, III, 120)
Fragmentos póstumos: O eu contém também uma multiplicidade de seres (como no rebanho) – não há contradição nisto! Pode também ser visto como uma pluralidade de forças... [KSA, 10,165]
A hipótese de um sujeito unitário talvez não seja necessária; talvez seja igualmente permitido admitir uma multiplicidade de sujeitos, cuja interacção e luta entre si estejam na base do nosso pensamento e, em geral, da nossa consciência. Uma espécie de aristocracia de «células», às quais cabe o exercício de um domínio? Algo assim como pares, habituados a governar e que sabem mandar? As minhas hipóteses: O sujeito como multiplicidade; [...] O efeito é sempre «inconsciente»; a causa, deduzida e imaginada, e projectada, segue-se no tempo; [...] A única força que existe é análoga à da vontade: um ditar ordens a outros sujeitos, que, em consequência disso, se transformam; A permanente transitoriedade e inconstância do sujeito, «alma mortal»; o número como forma de perspectiva. [KSA, 11, 650] O «eu» (que não coincide com a gestão centralizada do nosso ser!) é bem apenas uma síntese abstracta. Daí a absoluta inexistência de um agir motivado pelo «egoísmo». [KSA, 12, 32]
O carácter interpretativo de todos os acontecimentos. *+
Não existe nenhum acontecimento em si. O que acontece é um agrupamento de fenómenos seleccionados e reunidos por um ser interpretador. [KSA, 12, 38] «Eu», «Sujeito» como linha do horizonte . Inversão do olhar perspectivista. Seguindo o fio condutor do corpo. O protoplasma que se divide: 1/2 + 1/2 não é = 1, mas = 2. Com o que fica anulada a crença na alma-mónada. A conservação de si mesmo tão-só como uma das consequências da extensão de si mesmo. E o «si mesmo» ( Selbst )? [KSA, 12, 91-92] O homem toma-se por causa, por autor – tudo o que acontece relaciona-se predicativamente com um sujeito qualquer. [KSA, 12, 101] Se o nosso «eu» é o único ser segundo o qual nós fazemos ser e compreendemos tudo – muito bem! –, torna-se então pertinente a dúvida sobre se não se tratará de uma iIusão de perspectiva: a da unidade aparente em que, como numa Iinha do horizonte, tudo converge e se encadeia. Seguindo o fio condutor do corpo, revela-se uma extraordinária multipIicidade; é metodicamente permitido utilizar como fio condutor para a compreensão do fenómeno mais pobre o fenómeno melhor estudáveI e mais rico. Finalmente, supondo que tudo esteja em devir, o conhecimento só é possíveI com base na crença no ser. [KSA, 12, 106] O nosso vício de considerar como um ser um sinal auxiliar da memória, um axioma, uma fórmula abreviada, e, finalmente, como uma causa; dizer, por exemplo, do relâmpago: «ele brilha». Ou também a palavrinha «eu». Uma espécie de perspectiva na visão é logo posta como causa da visão: tal foi o artifício na invenção do «sujeito», do «eu»! [KSA, 12, 162] Contra o positivismo, que se fica pelo fenómeno de que «há apenas factos», eu diria: precisamente o que não existe são factos, mas tão-só interpretações . Não podemos verificar a existência de um único facto «em si»; talvez seja um absurdo pretender semelhante coisa. «Tudo é subjectivo», direis vós, mas isso é já interpretação; o «sujeito» não é nada de dado, mas algo que é acrescentado, algo que **
é metido por detrás. Será afinal necessário pôr ainda o intérprete atrás da interpretação? Isso é já efabulação, hipótese. Se a palavra «conhecimento» tem ainda algum sentido, o mundo é susceptível de conhecimento, mas é diferentemente interpretável, não tem qualquer sentido atrás de si, antes inumeráveis sentidos – «perspectivismo»... [KSA, 12, 315] O conceito de substância é uma consequência do conceito de sujeito, e não inversamente. Se renunciarmos à alma, ao «sujeito», desaparece o pressuposto para a admissão de uma «substância» em geraI. Obtêm-se graus do ser , perde-se o Ser. Crítica da «realidade»: a que conduz «a maior ou menor realidade», a gradação do ser em que acreditamos? O nosso grau do sentimento de vida e de poder (lógica e conexão do vivido) dános a medida do «ser», da «realidade», da não-aparência. Sujeito: tal é a terminologia da nossa crença numa unidade subjacente a todos os diferentes momentos de mais alto sentimento da realidade; entendemos esta crença como efeito de uma causa – acreditamos na nossa crença ao ponto de, graças a ela, imaginarmos a «verdade», a «realidade», a «substancialidade» em geraI. «Sujeito»: tal é a ficção que nos leva a pensar que muitos estados semelhantes são em nós o feito de um mesmo «substratum»; mas fomos nós quem primeiro criou a «analogia» entre estes diferentes estados. A equiparação e a preparação destes últimos é que é propriamente o facto, não a analogia (esta deverá, pelo contrário, ser negada). [KSA, 12, 465} (KSA= Kritische Studienausgabe / Edição Crítica das Obras Completas, volume e nº de página) !
J. W. Goethe: Como irei eu partilhar A vida entre fora e dentro, Se a todos tudo quero dar, Para viver sob um só tecto? Toda a vida tenho escrito Como penso, como sinto, E assim, meus caros, me divido, Sou sempre um só, e não minto. (J. W. Goethe, Poesia (=Obras Escolhidas, vol. VIII). Edição e trad. de João Barrento. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993) *"
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Friedrich Hölderlin: NOTAS AO É DIPO Seria bom, para assegurar aos poetas, também entre nós, uma existência na polis, elevar a poesia ao nível da µ!"#$! [mekhané = criação artística] dos Antigos, ressalvando naturalmente as diferenças dos tempos e dos espíritos. Também a outras obras de arte, quando comparadas com as dos Gregos, falta o rigor; na verdade, até agora elas têm sido mais julgadas pelas impressões que causam do que pela lei do cálculo que as informa e por outros processos que nelas produzem o belo. À poesia moderna falta sobretudo escola e o lado artesanal [...]; ela precisa de princípios e fronteiras mais seguros e genuínos. E disto faz parte a referida lei do cálculo. [...] Depois, há que dar atenção ao contexto em que se relacionam o conteúdo particular e o cálculo universal , o desenvolvimento e a matéria a fixar; e ao modo como o sentido vivo, que não pode ser medido, e a lei do cálculo são postos em relação. [...] Tudo isto é, na poesia trágica, mais equilíbrio do que mera sucessão de momentos. O transporte trágico, é, de facto, vazio, e o menos articulado. Assim, tornase necessária, no desenvolvimento rítmico da imaginação, que é o lugar onde se manifesta esse transporte, a intervenção daquilo a que, na métrica, se chama cesura, a pura palavra, a interrupção anti-rítmica... NOTAS À ANTÍGONA A regra, a lei do cálculo da Antígona, relaciona-se com a do Édipo como o pé métrico acentuado (___´___) com o não acentuado (___`___) [...] É uma das diversas sucessões nas quais imaginação, emoção e raciocínio se desenvolvem segundo uma lógica poética . [...] A poesia trata as várias faculdades humanas de tal modo que a apresentação destas várias faculdades constitui um todo, e a interacção das partes autónomas dessas diversas faculdades se poderá designar, em sentido superior, o seu ritmo, ou a sua lei do cálculo . (F. Hölderlin, Sämtliche Werke und Briefe . Ed. M. Knaupp. Munique, Hanser, 1992, pp. 309-10, 369) !
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John Keats: Shakespeare possuiu em alto grau essa capacidade negativa que acontece quando um homem é capaz de existir no meio das incertezas, mistérios, dúvidas, sem nenhuma irritável busca de factos e razões. (Carta a George & Tom Keats, 21/27? de Dezembro de 1817)
Quanto ao carácter poético em si mesmo (quero dizer, aquele tipo de carácter a que eu, se alguma coisa sou, pertencerei; um tipo que se distingue do sublime wordsworthiano centrado no eu; que é uma coisa em si e existe sozinho) – esse carácter não é ele mesmo, não tem identidade própria (self ), é tudo e nada. Não tem carácter, desfruta da luz e da sombra, vive ao sabor de humores, maus ou bons, altos ou baixos, ricos ou pobres, elevados ou mesquinhos. Tem tanto prazer em conceber um Iago como uma Imogénea. Aquilo que choca o virtuoso filósofo delicia o poetacamaleão. (Carta a Richard Woodhouse, 27 de Outubro de 1818) !
Hugo von Hofmannsthal : A Carta de Lord Chandos
Esta é a carta que Philipp, Lord Chandos, filho mais novo do Conde de Bath, escreveu a Francis Bacon, mais tarde Lord Verulam e Visconde St. Albans, para se desculpar junto deste seu amigo pela sua total renúncia à actividade literária. [...] Para ser breve: nessa altura, num estado de permanente embriaguez, toda a existência me aparecia como uma grande unidade . Não me parecia haver oposição entre o mundo do espírito e da matéria, nem entre seres delicados e brutos, entre arte e não-arte, solidão e convívio. [...] O meu caso é, em poucas palavras, o seguinte: perdi completamente a capacidade de pensar ou falar coerentemente sobre o que quer que seja. A princípio foi-se-me tornando impossível tratar um tema superior ou mais geral, servindo-me para isso das palavras que toda a gente usa fluentemente sem reflectir. Sentia um inexplicável mal-estar ao pronunciar as palavras «espírito», «alma» ou «corpo». Sentiame interiormente incapaz de emitir um juízo sobre os assuntos da Corte, os *$
acontecimentos no Parlamento ou qualquer outra coisa [...], porque as palavras abstractas, de que a língua tem de se servir naturalmente para emitir qualquer juízo, se me desfaziam na boca como cogumelos apodrecidos . [...] Não pode calcular como tudo me parecia improvável, me soava a falso, parecia estar a esboroar-se. O meu espírito compelia-me a ver numa proximidade transfiguradora todas as coisas que se referiam numa conversa: fazia agora com os homens e as suas acções o mesmo que fizera uma vez ao observar com uma lupa o meu dedo mínimo, que parecia um campo cheio de sulcos e covas. Não conseguia já ver as pessoas com o olhar simples do hábito. Tudo se desagregava, se fazia em pedaços e estes em pedaços menores, e não havia nada que pudesse abarcar-se com um conceito. As palavras isoladas boiavam à minha volta, coagulavam em olhos que me olhavam fixamente e que eu era obrigado a fitar também: são redemoinhos que me causam vertigens ao olhar lá para dentro, que giram incessantemente, e lá no fundo está o nada. [...] («Ein Brief», Der Tag (Berlim), 18-19 de Outubro de 1902. Texto mais desenvolvido em: J. Barrento, ed., Literatura Alemã. Textos e Contextos. II – O século XIX . Lisboa, Presença, 1989, pp. 310-314) !
Emmanuel Levinas O HÁ Ph. N. – [...] O primeiro livro em que exprime o seu pensamento é uma pequena obra intitulada De l’existence à l’existant . Escreveu-o durante a guerra, di-lo no seu prefácio, no «stalag». De que trata? E.L. – Nela se trata do que chamo o há. Não sabia que Apollinaire tinha escrito uma obra intitulada Il y a. Mas a expressão significa aí a alegria do que existe, a abundância, um pouco como o es gibt heideggeriano. Pelo contrário «há», para mim, é o fenómeno do ser impessoal: «il» ( il y a). A minha reflexão sobre este tema parte da reflexão sobre a infância. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida: a criança sente o silêncio do seu quarto de dormir como «sussurrante». Ph. N. – Um silêncio sussurrante? E. L. – Algo que se parece com aquilo que se ouve ao aproximarmos do ouvido uma concha vazia, como se o vazio estivesse cheio, como se o silêncio fosse um *%
barulho. Algo que se pode experimentar também quando se pensa que, ainda que nada existisse, o facto de que «há» não se poderia negar. Não que haja isto ou aquilo; mas a própria cena do ser estava aberta: há. No vazio absoluto, que se pode imaginar, antes da criação – há. Ph. N. – Evocou, há momentos, o es gibt , o «há» alemão, e a análise que Heidegger dele faz como generosidade, porque neste es gibt há o verbo geben, que significa «dar». Para si, pelo contrário, não há generosidade no «há»? E. L. – De facto, insisto na impessoalidade do «há»; «há» como «chove» ou «é de noite». E não há nem alegria nem abundância: é um ruído que volta depois de toda a negação do ruído. Nem nada, nem ser . Emprego, por vezes, a expressão: o terceiro excluído. Não pode dizer-se deste «há» que persiste, que é um acontecimento do ser. Não se pode também dizer que é o nada, ainda que não exista nada. De l’existence à l’existant tenta descrever esta coisa horrível, e, aliás, descreve-a como horror e desvario. (Ética e Infinito. Diálogos com Philippe Nemo [1982]. Lisboa, Edições 70, 1988)
** O EXISTIR SEM EXISTENTE Voltemos uma vez mais a Heidegger. É conhecida a sua distinção – a que já recorri – entre Sein e Seiendes, ser e ente, e que por razões de eufonia prefiro traduzir por existir e existente, sem dar a estes termos um sentido especificamente existencialista. Heidegger distingue os sujeitos e os objectos – os seres que são, os existentes – da sua acção de ser enquanto tal. Uns traduzem-se por substantivos ou particípios substantivados, o outro por um verbo. Esta distinção, proposta desde o início de Ser e Tempo, permite dissipar certos equívocos da filosofia no decurso da sua história, que partiam do existir para chegar ao existente que possui plenamente o existir, Deus. Esta distinção heideggeriana é para mim o que há de mais profundo em Ser e Tempo. Mas trata-se, em Heidegger, de uma distinção, e não de uma separação. O existir contempla-se sempre no existente, e o termo heideggeriano Jemeinigkeit [a qualidade daquilo que a cada momento é especificamente meu] exprime precisamente isso no caso desse existente que é o homem, o facto de que o existir é sempre possuído por alguém. Não creio que Hidegger pudesse admitir um existir sem existente, porque o consideraria absurdo. [...] Como aproximar-nos desse existir sem existente? Imaginemos o retorno ao nada de todas as coisas, seres e pessoas. Encontramo-nos então com o puro nada? Por detrás *&
desta destruição imaginária de todas as coisas não resta nada, a não ser o facto de que há. A ausência de todas as coisas converte-se numa espécie de presença: como o lugar em que tudo se fundiu, como uma atmosfera densa, plenitude do vazio ou murmúrio do silêncio. Por detrás desta destruição das coisas e dos seres está o «campo de forças» do existir impessoal. Algo que não é sujeito nem substantivo. O facto de existir que se impõe quando já não há nada. É um facto anónimo: não há nada nem ninguém que albergue em si essa existência. É impessoal como «chove» ou «faz calor». Um existir que resiste seja qual for a negação que pretenda anulá-lo. Irremissível existir puro. (Le temps et l’autre. Paris, Fata Morgana, 1979) !
DOS AUTORES: Paul Celan Elogio da distância
Na fonte dos teus olhos vivem os fios dos pescadores do lago da loucura. Na fonte dos teus olhos o mar cumpre a sua promessa. Aqui, coração que andou entre os homens, arranco do corpo as vestes e o brilho de uma jura. Mais negro no negro, estou mais nu. Só quando sou falso sou fiel. Sou tu quando sou eu. Na fonte dos teus olhos ando à deriva sonhando o rapto. Um fio apanhou um fio: separamo-nos enlaçados. *'
Na fonte dos teus olhos Um enforcado estrangula o baraço.
Conta as amêndoas
Conta as amêndoas, conta o que era amargo e te mantinha desperto, conta-me entre elas: Procurei os teus olhos quando os ergueste e ninguém te olhou, estendi aquele secreto fio por onde o orvalho que imaginaste escorreu para os jarros guardados pela palavra que nenhum coração acolheu. Só aí entraste plenamente no nome que é o teu, te dirigiste para ti a passo firme, vibraram livres os martelos na armação dos sinos do teu silêncio, veio de encontro a ti o que escutaste, envolveu-te também o braço da morte, e fostes a três pela noite fora. Torna-me amargo. Conta-me entre as amêndoas.
Fala também tu
Fala também tu, fala em último lugar, diz a tua sentença. Fala – Mas não separes o Não do Sim. Dá à tua sentença igualmente o sentido: dá-lhe a sombra. *(
Dá-lhe sombra bastante, dá-lhe tanta quanta exista à tua volta repartida entre a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite. Olha em redor: como tudo revive à tua volta! — Pela morte! Revive! Fala verdade quem diz sombra. Mas agora reduz-se o lugar onde te encontras: Para onde agora, oh, despido de sombra, para onde? Sobe. Tacteia no ar. Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil! Mais subtil: um fio, por onde a estrela quer descer: para em baixo nadar, em baixo, onde pode ver-se a cintilar: na ondulação das palavras errantes.
Stretto
[...] Sou eu, eu, estava entre vós, estava aberto, era audível, toquei-vos, a vossa respiração obedeceu, sou eu ainda, mas vocês estão a dormir. [...]
*)
Salmo
Ninguém nos moldará de novo em terra e barro, ninguém animará pela palavra o nosso pó. Ninguém. Louvado sejas, Ninguém. Por amor de ti queremos florir. Em direcção a ti. Um Nada fomos, somos, continuaremos a ser, florescendo: a rosa do Nada, a de Ninguém. Com o estilete claro-de-alma, o estame ermo-de-céu, a corola vermelha da purpúrea palavra que cantámos sobre, oh sobre o espinho.
Mandorla
Na amêndoa – o que está na amêndoa? O nada. Está o nada na amêndoa. Aí está e está. No nada – quem está aí? O Rei. Aí está o Rei, o Rei. Aí está e está. Madeixa de judeu, és imortal. "+
E os teus olhos – para onde estão voltados os teus olhos? Os teus olhos estão voltados para a amêndoa. Os teus olhos, para o nada estão voltados. Para o Rei. Assim estão e estão. Madeixa de homem, és imortal. Amêndoa vazia, azul real.
ESTÁS PARA ALÉM de ti, para além de ti está o teu destino, de olhos brancos, fugido a um cântico, algo se aproxima dele, que ajuda a arrancar a língua, também ao meio-dia, lá fora. (in: Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética. Trad. de João Barrento e Yvette Centeno. Lisboa, Livros Cotovia, 1993, 2ª ed. 1996)
NO INACLARÁVEL abre-se uma porta, dela caem em escamas as manchas da camuflagem, repassadas de verdade.
COM O VENTO PELAS COSTAS morro e apago-me na grande monção — é então que verdadeiramente vivo. "*
NÃO TE ESCREVAS entre os mundos, ergue-te contra a variedade de sentidos, confia no rasto das lágrimas e aprende a viver.
A morte
A morte é uma flor que só abre uma vez. Mas quando abre, nada se abre com ela. Abre sempre que quer, e fora de estação. E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes. Deixa-me ser o caule forte da sua alegria. (in: A Morte é Uma Flor . Poemas do espólio. Trad. de J. Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1998)
De: Arte Poética. ‘O Meridiano’ e outros textos (Ed. e trad. de J. Barrento. Lisboa, Livros Cotovia, 1996): O
POEMA ABSOLUTO ? IMPESSOALIDADE , DISSONÂNCIA ,
«GRAU
ZERO DA EXPRESSÃO »,
DIALOGISMO:
A poesia alemã segue, julgo eu, caminhos diferentes dos da francesa. Trazendo na memória o que há de mais sombrio, tendo à sua volta o que há de mais problemático, por mais que actualize a tradição em que se insere, ela já não consegue falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda esperar dela. A sua linguagem tornou-se mais sóbria, mais factual, desconfia do «belo», tenta ser verdadeira. É portanto [...] uma linguagem «mais cinzenta», uma linguagem que, entre outras coisas, também quer ver a sua «musicalidade» situada num lugar onde ela já ""
não tenha nada em comum com aquela «harmonia» que, mais ou menos despreocupadamente, se ouviu com o que há de mais terrível, ou ecoou a seu lado. Apesar de não prescindir de uma plurivalência da expressão, o objectivo dessa linguagem é o do rigor. Não transfigura, não «poetiza»: nomeia e postula, procura delimitar o campo do que é dado e do que é possível. É claro que o motor nunca é aqui a própria linguagem, mas sempre e somente um eu que fala a partir do ângulo particular da sua existência, para o qual é importante definir um perfil e uma orientação... («Resposta a um inquérito da Librairie Flinker, Paris», 1958)
O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrfafa, lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo. Para onde? Em direcção a algo de aberto, de ocupável, talvez a um tu apostrofável, a uma realidade apostrofável. Penso que, para o poema, o que conta são essas realidades. [...] («Alocução na entrega do Prémio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen», 1958)
[...] o poema fala! Mantém viva a memória das suas datas, mas – fala. É claro que fala sempre e apenas em causa própria, a mais própria que se possa imaginar. Mas penso [...] que desde sempre uma das esperanças do poema é precisamente a de, deste modo, falar também em causa alheia – não, esta palavra já a não posso usar agora –, é a de, deste modo, falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro. [...] É certo que o poema – o poema hoje – mostra (e isso, segundo creio, só indirectamente tem a ver com as dificuldades – que não devemos subestimar – da escolha das palavras, com o mais acentuado declive da sintaxe ou o sentido mais desperto da elipse), o poema mostra, e isso é indesmentível, uma forte tendência para o emudecimento. Ele afirma-se (permitam-me, depois de tantas formulações radicais, mais esta), o poema afirma-se à margem de si próprio; para poder subsistir, evoca-se e recupera-se incessantemente, num movimento que vai do seu Já-não ao seu Ainda-e-sempre. Este Ainda-e-sempre não pode ser outra coisa senão uma fala. Não linguagem sem mais, portanto, nem provavelmente tambem «co-respondência» ( Ent-sprechung ) no plano da linguagem. "#
Ele é antes linguagem actualizada, liberta sob o signo de um processo de individuação radical, é certo, mas que ao mesmo tempo permanece consciente dos limites que lhe são traçados pela linguagem, das possibilidades que se lhe abrem na linguagem. Esse Ainda-e-sempre do poema só pode ser encontrado na poesia de quem não se esquece de que fala sob o ângulo de incidência da sua existência , da sua condição criatural . Então o poema seria – de forma ainda mais clara do que até agora – linguagem, tornada figura, de um ente singular , e, na sua essência mais funda, presença e evidência. O poema é solitário. É solitário e vai a caminho . Quem o escreve torna-se parte integrante dele. Mas não se encontrará o poema, precisamente por isso, e portanto já neste momento, na situação do encontro – no mistério do encontro? O poema quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro, de um interlocutor. Procura-o e oferece-se-lhe. Cada coisa, cada indivíduo é, para o poema que se dirige para o Outro, figura desse Outro. A atenção que o poema procura dedicar a tudo aquilo com que se encontra, o seu sentido apuradíssimo do pormenor, do perfil, da estrutura, da cor, mas também das «comoções» e das «alusões» – tudo isso, ao que penso, não é nenhuma conquista do olho que diariamente concorre com aparelhagens cada vez mais perfeitas (ou com elas corre), é antes uma forma de concentração que tem presentes todos os nossos dados. «A atenção» – permitam-me que cite aqui, seguindo o ensaio de Walter Benjamin sobre Kafka, uma frase de Malebranche –, «a atenção é a oração natural da alma». O poema torna-se – e em que condições! – o poema de um sujeito que insiste em ser um sujeito de percepção, atento a todos os fenómenos, e interrogando e apostrofando esses fenómenos: e torna-se diálogo, muitas vezes um diálogo desesperado. Só no espaço desse diaálogo se constitui o que é apostrofado, e se concentra à volta do Eu que a ele se dirige e o nomeia. Mas essa entidade apostrofada, como que transformada em Tu pela nomeação, introduz também nessa presença o seu Ser-outro. Até no aqui e agora do poema – e o poema dispõe sempre apenas deste único e pontual presente –, até nesta imediaticidade e proximidade ele deixa falar aquilo que é mais próprio dele, desse Outro: o seu tempo. Quando assim falamos com as coisas, confrontamo-nos sempre com a questão de saber de onde vêm e para onde vão elas: uma questão «em aberto», «que não leva a "$
conclusão nenhuma», que aponta para um espaço aberto e vazio e livre – estamos muito longe, «Iá fora» . O poema, creio, procura também este lugar. O poema? O poema com as suas imagens e os seus tropos? Minhas Senhoras e meus Senhores, de que falo eu realmente quando, a partir desta direcção, nesta direcção, com estas palavras, falo do poema? Do poema? Não, daquele poema. Mas eu falo afinal do poema que não existe! O poema absoluto – não, é mais que certo que não existe, não pode existir, tal coisa! Mas existe, isso sim, com cada verdadeiro poema, com o mais modesto dos poemas, aquela irrefutável pergunta, aquela inaudita exigência. E as imagens, que seriam então? Aquilo que foi apercebido, que tem de ser apercebido, uma única vez, de todas as vezes, como coisa única e só agora e só aqui. E assim o poema seria o lugar onde todos os tropos e metáforas querem ser levados ad absurdum. («O meridiano», 1960; pp. 55-59) !
Maria Gabriela Llansol
É-me impossível dizer eu. Nós, talvez. Mas dizer todos, «com esta que escreve incluída», é melhor. A, aquela, esta, a. (Um Arco Singular. Livro de Horas II . Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 169)
Herbais, 13 de Junho de 1982 O dia escureceu, e principiou a chover. É Herbais, na Bélgica. Entro num dia de semana que aprecio, sem interrupções da parte de fora, sem o ruído das máquinas agrícolas na Praça, com uma cena informe latente desenhada em todo o pensamento, acção, ou ante-escrita. Noto que eu não espero para escrever, nem deixo de escrever para passar pela experiência que produz a escrita; tudo é simultâneo e tem as mesmas raízes, escrever é o duplo de viver ; poderia dar, como explicação, que é da mesma natureza que abrir a porta da rua, dar de comer aos animais, ou encontrar alguém que tem o lugar de sopro no meu destino. (p. 73) a verdade como matéria a verdade não é subjectiva, nem objectiva mas o contorno final e acabado da vida de cada um; a resposta dada, com recta intenção, ao justo apelo. Perguntar «quem "%
sou» é uma pergunta de escravo; perguntar «quem me chama» é uma pergunta de homem livre. (p. 130) (Um Falcão no Punho . 2ª ed. Lisboa, Relógio d’Água, 1998)
«Quais são as quatro confidências de que falou?» […] A primeira confidência é que nada somos _____ («Não se irrite»). O eu como nome é nada. Há um lugar de escravidão. A segunda confidência é que os nosso actos, mesmo a transumância ou a transplantação do azul da jarra, são menores do que nós. Há um torvelinho de intensidades a chamar-nos: são os anjos de Rilke, ou as legiões de querubins evanescentes, de Walter Benjamim. A terceira confidência é que não há contemporâneos, mas elos de ausências presentes; há um anel de fuga. Na prática, é uma cena infinita — o lugar onde somos figuras. A quarta confidência é sobre o desejo e a repulsa da identidade. Há um lugar edénico. («Não, não diga nada»). De facto, deram-nos um nome, o nome por que nos chamam, mas não é um consistente — é um verbo. O nosso verbo, por exemplo, é escrever . (pp. 47-48) Algures, escrevi que sempre gostei de escrever num lugar onde se arrecadam objectos e mercadorias porque a escrita é um armazém de sinais __________. ou a sua cena; estou a ver, entre o ver e o estar à espera de ver, o armazém desses sinais, num grande ou num pequeno espaço — e o meu companheiro filosófico entra e diz: — Este é o armazém dos sinais de Rilke; este é o armazém dos sinais de Hölderlin; este é o armazém da sua Dickinson; este é o armazém dos sinais de Fernando Pessoa. — E, no fim, murmura sem qualquer surpresa minha: — Este é o armazém dos meus sinais. (p. 140) A vida da carta faz um relato minucioso dos acontecimentos presenciáveis, tentando a biografia. Eu esquivo-me a essa maneira de pensar, e tento outra via_________ des-dato e reúno numa estreita proximidade os nós do visível para que a sua força se não disperse. Se a via da vida me esquecesse __________ e eu, para finalizar, encontrasse outra perspectiva, esta morada não seria, como todas "&
as vidas, um terreno vago no mapa, mas um lugar na geografia do há dos mundos, essa carta das cores onde se pode ver o contorno de um país que uma dada luz realça. (p. 88) — É realmente extraordinário termos nascido numa dada signografia do há em que a nossa biografia se cruza (e tantas vezes se confunde) com a geografia dos mundos. (p. 141) A CONFIDÊNCIA DA RAPARIGA QUE SAIU DO TEXTO:
____________ durante estes meses procurei uma geografia — não uma biografia , e muito menos uma ficção —, sobre as relações deslumbradas e doridas entre escritores. Parti em busca da natureza da relação escritural de obras — a do Vergílio e a minha — que não sendo, de facto, construídas nos mesmos pressupostos, acabam por chocar, cada uma com a sua velocidade própria, com o mundo, a sua significação e a sua evanescência. A certa altura, escrevi mesmo que essa geografia era, antes e sobretudo, uma signografia-sobre-o mundo. Para a desenhar saí, por vezes, do texto________ a escritora aceitando ser a rapariga que se veste de azul: ser alguém que olha o texto depois de. De fora. Não a partir da vida ou da existência, mas de outro ponto de vista. O texto que ando a escrever vai para trinta e cinco anos começou por ser pequenas narrativas de estranheza e identificou- se, em seguida, com a sequência das cenas fulgor do entresser . Quis agora olhá-lo do ponto de vista do luar libidinal . O mundo existe, e o Vergílio morreu. Não procurei criar uma realidade em que o mundo deixaria de ser in-conforme, libertando-nos da nossa rebeldia que é distância e responsabilidade, ou reconciliando-nos num abraço final como se tudo tivesse sido um equívoco, nem criar a suposição de que ele morreu mas como se, de facto, não tivesse morrido. Não. O que procuro é ver onde a continuidade do há se fractura , onde muda de registo e de sinais, e se há possibilidade de o dizer sem esperança, nem impostura. «Sem esperança», quer dizer sem ilusão garantida. Quando nos apercebemos de que o há é há, não somos só parte dele. Acrescentamos-lhe um ver criador_____ criamos, modificando-lhe a paisagem. Nenhum traço se perde, mesmo que tenda a apagar-se. O que hoje me cabe é ver sinais, e projectá-los com toda a força de impacto de que dispuser. Sobrepondo-os e entendendo as consonâncias que desenvolvem entre si. Deixar-me orientar pelo sentido melódico que lhes ouço e aceitar a significação ou senso que resulta, se resultar. Recomeçar o ver todos os dias, tentar que a energia que "'
me gasta me dê mais energia, procurá-la nos filamentos mais ténues do real que tenho à mão, não recear servir-me do estranho que o meu corpo sente e pensa. (pp. 167-168) (Inquérito às Quatro Confidências. Diário III. Lisboa, Relógio d’Água, 1996)
... há dias que decidi separar-me de todos os meus companheiros para pintar, e primeiro tive que cobrir a parede de branco para recomeçar, porque não nos dão mais paredes este mês; no entanto, toda a tinta está à minha disposição, e na impossibilidade de pintar sem espaço, peguei na vela acesa e com ela iluminei os baldes sucessivos e fiz jogos; nunca pensei em pintar-me; uma simples pincelada em mim mesma, e ficaria coberta... (Anotação na última página da edição francesa do Zaratustra , de Nietzsche. Exemplar da biblioteca de Maria Gabriela Llansol, Lovaina, Junho de 1968)
O diário, «a minha vida» e a sua objectividade: «não é a primeira vez que a minha própria vida me aparece do exterior .» Decidi hoje dividir este diário, não por anos e por dias, mas por versículos; um diário pode ser mais objectivo do que uma vida pessoal – adjectivo que me faz pensar em Pessoa... (Espólio de M. G. Llansol, caderno 1.11, p. 221 [1981]; também Um Falcão no Punho, p. 62)
Partícula 13 — A raiz está escondida Era Hölderlin a responder-me, sem que eu lhe respondesse. «para sobreviver há uma sobreposição de notas pessoais _____ de pessoas _____ que tenho de ouvir _____ e essas pessoas devem girar constantemente nas suas múltiplas faces _______ de que eu recebo algumas, e afasto outras. Formam assim um ser inexistente mas não imaginário, que as contém a todas. Que as contém, não, que as destrói, extraindo-se a parte de que o sol necessita para ver o humano. "(
Esta a técnica mais simples de construir o texto , e que lhe cria a repugnância do autobiográfico.» (Os Cantores de Leitura . Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p. 32)
... cada vez eu, eu maior do que eu, espaço, tempo e terra; constituo uma travessia, um acto perpendicular de alguém que marcha em nós... (p. 79) O tapete encarnado é para o lápis o pé do lápis. O pé do lápis não é, no entanto, quem eu sou, nem o que se diz, pronunciando-o. [...] O quarto ameaçado tornase a ouvir, e eu vejo que o relâmpago de «escrevo, mas não sou escravo », se dirige, sozinho, para a secretária do escritório, e derruba todos os inúteis auxiliares de escrita... (pp. 115-116) (Um Beijo Dado Mais Tarde. Lisboa, Edições Rolim, 1990)
... por detrás das histórias, por detrás da magia do «era uma vez...», do exótico e do fantástico, o que nós procuramos são os estados do fora-do-eu, tal como a língua o indica, ao aproximar existência e êxtase, ao atribuir ao ser uma forma vibrátil de estar. Na realidade, todos nós domos feitos, criados, longe, à distância de nós mesmos. E se, há muito, se fala da morte do romance e, apesar disso, se continua a escrever romances, é porque dessa escrita a vibração definitivamente se ausentou, e porque outras formas de arte se apropriaram, com êxito, das suas técnicas narrativas. (Lisboaleipzig 1. O encontro inesperado do diverso . Lisboa, Edições Rolim, 1994, p. 118-119)
A narrativa que a estas páginas vai estando subjacente não precisará, finalmente, de ficção. Será um livro póstumo, ou um livro antigo, e chamar-se-á, referindo-se a uma mulher, Biografia. Não por eu ser escritora, ou uma mulher que dá testemunho; mas por ter nascido ser vivo… (Finita . Diário 2, 2ª ed. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, pp. 220-221)
Legente, que diz o texto? Que ler é ser chamado a um combate, a um drama. Um ")
poema que procura um corpo sem-eu , e um eu que quer ser reconhecido como seu escrevente. Pelo menos. Esse o ente criado em torno do qual silenciosamente gira toda a criação. O luar libidinal é o nome que dou, hoje, a esse compromisso. Uma jubilosa difusão do caminhante pelas ruas, a escrever cópias da noite. Fugir ao destino do vate. Fugir à mediocridade da autobiografia . (p. 18)
Falo de fulgor porque a falta de claridade é essencial. A escuridão é propícia ao medo, ao pensamento e ao projectar. O descoberto e o escondido confundem-se, trocam de rosto. Entram em simetria. Quando o meu há é todo o há que existe. (p. 34) (Onde Vais, Drama-poesia? Lisboa, Relógio d’Água, 2000)
IV As oliveiras surgem subitamente numa colina, e aumentam o texto. Confirmam a paisagem constituída por colinas livres. O meu acorde com a substância é vê-las, o das colinas é serem uma bandeja de oliveiras colocadas sobre um pano/chão castanho, desenhado a verde — e o do infinito é perder-se neste lugar. Planície agora a quatro mãos, uma casa insonora abandonada, um livro projectado na imagem da casa. O que ouço é devastação, abandono. Penso no que escrevo por estar olhando os atributos — no comboio que nos transporta —, como puros frutos de um há que nos pode deixar aflitos. Algumas oliveiras num planalto, o céu e a vegetação rala formam linguagem no meu olhar. E escrevo como Há. V Eu é o outro que eu vejo em mim . Um lugar não desmultiplicado, uno, amplo, criando sempre maior e mais amplitude, vivendo incansavelmente por dentro da natureza até a trazer à superfície onde se apoia o inteligente deslumbramento que olha o homem novo sentado ao piano. […] É preciso voltar a dizê-lo. Vestido, não tinha qualquer qualidade musical. Dentro da música, está nu na sua qualidade de interpretante desse há que nos pode deixar jubilosos. (O Jogo da Liberdade da Alma. Lisboa, Relógio d’Água, 2003, pp. 15, 17)
Uma série ininterrupta de aguaceiros de neve permanece lá fora e uma espécie de pânico atingiu a minha vibração habitual, que rompe. Se os aguaceiros estivessem a traçar a minha autobiografia, eu veria como ela forma um tecido de linhas solidárias. #+
De facto, como digo ao Grande Maior, eu sempre desejei que houvesse um ponto de coincidência de todo o espaço, de todos os factos, de todas as espécies, de todos os reinos. Apenas do Há, entenda-se. (Parasceve. Puzzles e ironias. Lisboa, Relógio d’Água, 2001, p. 42)
Há algo maior do que eu, ou seja, diferente de mim, que escreve e mantém a Obra, é uma consciência muito mais vasta do que aquela que poderia ser a fonte do meu corpo; é uma serenidade muito maior do que aquela que tenho dia a dia. (Espólio de M. G. Llansol, caderno 1.12, p. 386 [1982])
Tenho vontade de trabalhar numa grande narrativa que seja ininterrupta e incorrupta. A face dessa profusão de seres deixados a outros, que substituirá a minha face e memória. (Espólio de M. G. Llansol, caderno 1.13, p. 84 ÷1983])
Poderíamos construir outro corpo a partir Do pensamento com imagens e emoções de Menor engano. Inscrever na química que Nos vai lembrando memórias de um corpo Onde não estejamos biologicamente tanto. Lembrar à fantasia que tudo o que não sou É eu. Salpicá-lo de respiração conjunta com As árvores. Pedir ao mito que os livros não Se enredem nas silvas por destino. Saber que Luar é este que vem de fora, ir procurando. Desenhar, porque não?, o seu centro num Ponto que pronto se desloca. Poderíamos. (O Começo de Um Livro É Precioso. Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, estância 110)
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