* EMÍLIO BOSSI *
*** JESUS CRISTO NUNCA EXISTIU *** P UBLICADO
ORIGINALMENTE COM O
PSEUDÔNIMO
“M ILESBO ”
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* EMÍLIO BOSSI *
*** JESUS CRISTO NUNCA EXISTIU *** P UBLICADO
ORIGINALMENTE COM O
PSEUDÔNIMO
“M ILESBO ”
*** (T R A D U Ç Ã O D E A U G U S T O D E C A S T R O – 1900) E DI T O R A J O Ã O C A R NE I R O - L I S B OA (T R A D U ÇÃ O D E T H O M A Z D A F O N S E C A – 1909) A L M AN A C H E N C YC L O P E DI C O I L US T RA D O - L I SB O A
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E MÍLIO BOSSI (1870 - 1920)
Estátua em Bruzella - Suíça
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TEMA
“De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos conservou documento algum, prova alguma, demonstração alguma”. Assim começa um dos ensaios mais polêmicos e surpreendentes dos anos 1900. O advogado Emílio Bossi desmonta minuciosamente, ponto a ponto, com extrema habilidade e rigor, qualquer vaga ideia que a nossa cultura possa ter a respeito de um personagem chamado Jesus Cristo. Seria ele filho de Deus? Este não é um argumento de pesquisa histórica e, consequentemente, nem deste ensaio. Viveu ele realmente, ainda que somente como pessoa física? Bossi declara um categórico NÃO demostrando taxativamente, com provas e mais provas, que não há nenhum traço de evidência ou sequer sombra de suspeita da possível existência deste homem chamado Jesus. Este ensaio mordaz de 1900 (Raramente reimpresso) é uma viagem através dos mecanismos meméticos da evolução cultural; mostra como as religiões mais primitivas e os rituais mais antigos evoluíram para o que hoje se chama "verdade revelada". 5
SUMÁRIO TEMA...........................................................................................................................................5 PERFIL DO AUTOR..................................................................................................................7 INTRODUÇÃO............................................................................................................................9 PRIMEIRA PARTE – CRISTO NA HISTÓRIA...................................................................14 CAPÍTULO I.................................................................................................................................. O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.......................15 CAPÍTULO II................................................................................................................................ AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.......................21 CAPÍTULO III................................................................................................................................ PROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO....................................27 CAPÍTULO IV................................................................................................................................ JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA..................................................................33 SEGUNDA PARTE – CRISTO NA NÉVOA.........................................................................42 CAPÍTULO I................................................................................................................................. A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA..........................................................................43 CAPÍTULO II................................................................................................................................. JESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL...............................49 CAPÍTULO III............................................................................................................................... A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE......................57 CAPÍTULO IV............................................................................................................................... CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO TESTAMENTO..........................................................................................................................64 CAPÍTULO V................................................................................................................................ CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO............................77 CAPÍTULO VI................................................................................................................................ ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO.......................................84 CAPÍTULO VII............................................................................................................................. A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA..................................................................................92 TERCEIRA PARTE – CRISTO NA MITOLOGIA............................................................105 CAPÍTULO I................................................................................................................................. CRISTO ANTES DE CRISTO..............................................................................................106 CAPÍTULO II................................................................................................................................ A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL..............................115 CAPÍTULO III............................................................................................................................... ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES............................................124 CAPÍTULO IV............................................................................................................................... CRISTO É UM MITO SOLAR............................................................................................130 QUARTA PARTE – FORMAÇÃO IMPESSOAL DO CRISTIANISMO ........................139 CAPÍTULO I................................................................................................................................. A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO.....................................................................................140 CAPÍTULO II................................................................................................................................ A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO...............................................................................152 CAPÍTULO III............................................................................................................................... O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO...................................................................................160 CAPÍTULO IV............................................................................................................................... FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO.........................................................167 CAPÍTULO V................................................................................................................................ COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO..............................................178 CONCLUSÃO.........................................................................................................................191 6
PERFIL DO AUTOR
Emilio Bossi nasceu em Bruzella (cidade do Cantão suíço de Ticino) em 31 de dezembro de 1870, filho de um arquiteto, Francisco, e de Emilia Contestabile. Iniciou seus estudos no Liceu de Lugano e bacharelou-se em direito na cidade de Genebra. Empreendeu carreira no jornalismo e ganhou fama como um grande polemista com o pseudônimo de Milesbo. Foi adversário inflexível do clericalismo e defensor acérrimo da italianidade de Ticino. Travou duras batalhas contra os "menatorroni" (desonestos) da vida pública. Colaborou com o jornal "O Dever" desde 1891 e foi seu diretor em 1920 e editor de 1896 a 1902. De 1915 a 1920 dirigiu A Gazeta Ticinense. Foi diretor do semanário Nova Vida em 1893 e fundou o jornal Ideia Moderna em 1895. Em 1906 fundou e editou A Ação, órgão do Extrema Radical. Foi deputado do Grande Conselho (1905-1910, 1914-1920), do Conselho Nacional (19141920) e do Conselho dos Estados (1920). Como tal, dirigiu o
Departamento do Interior (191014). De 1905 a 1910, ocupou o cargo de juiz de instrução substituto. Liberal radical, foi com Romeo Manzoni, o flagelo implacável da política "oportunista" e das "transações" de Rinaldo Simen. Em 1897 foi um dos fundadores da União Social Radical Ticinense, uma associação que, além das reformas sociais defendia, propugnava a escola neutra e a separação entre Igreja e Estado. Com Manzoni foi o líder carismático da Extrema Radical, fundada em 1902 após uma violenta polêmica com a corrente de Simen. Em seguida à sua entrada no Conselho de Estado, Bossi foi forçado a se adequar à lógica das negociações. Em consequência, a Radical Extrema desaparece como grupo autônomo. Morreu 27 de novembro de 1920, em Lugano. Jesus Cristo Nunca Existiu foi publicado simultaneamente em 1904 em Milão (Milan Editorial da Companhia) e em Bellinzona, Suíça (El. elm. Colombi e C.). Também em Milão foi reedita7
do em 1905 e 1906. Revê a luz em 1951 em Bolonha, pela Lida, com um apêndice de Andre Lorulot. Finalmente, em 1976, se encontra publicado em Ragusa pela La Fiaccola. Não se conhece outras edições.
Bibliografia 1899 - Sobre a Separação Entre o Estado e a Igreja. 1900 - Jesus Cristo Nunca Existiu 1909 - A Clerezia e a Liberdade 1916 - Vinte Meses de História Suíça
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INTRODUÇÃO
Uma nova primavera agita a vida humana: é a primavera da idade positiva, que se inaugura sob um duplo aspecto. De um lado, o aspecto moral, que jaz sob uma forte camada de gelo e trevas invernais. As novas ideias, fecundadas pelo saber positivo, encontram obstáculo fatal ao seu desenvolvimento no conjunto das falsos conceitos formados pela educação religiosa, que sobrevive na forma inercial, como muito bem diz Haeckel, e está em contraste com tudo que à ciência vem descobrindo, contraste que se manifesta nas Mentiras Convencionais da Nossa Civilização descritas por Max Nordau, e no Século Hipócrita, descrito por Mantegazza. E de outro lado, no campo da ciência positiva, que demoliu e desfez para sempre a bagagem da superstição, do dogma e do apriorismo escolástico, para fecundar com a potente energia do progresso material as veias do corpo social, o pensamento libertado, a autonomia da razão humana, a ciência positiva armada do método experimental. O que é verdade aqui é erro ali; é bem aqui, o que é mal ali; o
que é relativo e progressivo aqui, continua absoluto, necessário e imóvel ali; o que constitui aqui a base do progresso e do conhecimento, ali está excluído, porque é a fé que reina soberana; o que aqui alenta os ânimos para o progresso e a liberdade, ali está esmagado, porque é a autoridade que domina. Já é tempo de restabelecer a unidade do mundo moral e do mundo material, do pensamento e da ação, do ideal e da realidade, porque a vida é una, e as leis que governam o mundo físico e o mundo moral são idênticas. Basta, para isso, aplicar à ciência moral, ainda na infância, os métodos que fizeram triunfar a ciência positiva, isto é, a liberdade na investigação, o experimentalismo como instrumento e o racionalismo como sistema. É preciso desconsiderar todas as crenças tradicionais e abandoná-las ao seu destino, conservando somente as que resistam à crítica; aquelas que, apenas com a experiência e o exame, trabalhem na construção de um novo edifício moral, com atividade e voz cada vez mais intensa e febril, e que deve coroar o soberbo, o esplêndido e imortal edifício 9
das descobertas positivas de útil aplicação que a ciência vem levantando, para que, da união desses dois monumentos, nasça um novo templo: o Templo da Humanidade. Animados por essas ideias, direcionamos esta nossa modestíssima obra ao exame dos dois mil anos de crença em Jesus Cristo, partindo do ponto em que já chegaram a crítica histórica, a exegese bíblica, a ciência mitológica e a teoria da evolução aplicada à investigação das origens naturais do Cristianismo. Deste exame, empreendido unicamente por amor à Verdade e sem qualquer inclinação teológica ou antiteológica, conclui-se que Cristo nunca existiu. A crítica histórica já tinha notado o silêncio da História sobre Cristo, e assinalava como suspeitas as passagens dos poucos historiadores profanos daquele tempo sobre a sua existência histórica, enquanto que a exegese bíblica já tinha reduzido o Antigo Testamento a uma obra apócrifa composta pela casta dos sacerdotes para edificação dos fieis. Outro tanto vinha fazendo a respeito do Novo Testamento, ratificando muito pouco do que se quer fazer passar por histórico. Por outro lado, a ciência mito-
lógica, ajudada pela filosofia, pela arqueologia e pelas descobertas dos viajantes, tinha afirmado que as lendas, os mitos, as narrações e os preceitos do Antigo e do Novo Testamento não são mais do que variações feitas sobre as lendas, mitos, narrações e preceitos da mesma natureza, anteriores ao Cristianismo, sobretudo da China, Judeia, Pérsia, Mesopotâmia e do Egito. Estas investigações e esta crítica, para não citar as primeiras seitas heréticas nem os protestos da filosofia pagã, especialmente de Celso, que, em parte, abalaram a Igreja Triunfante, começaram com a Renascença italiana, continuaram com a Reforma e chegaram ao seu apogeu na França com os filósofos do século XVII e na Alemanha com os críticos e os sábios do século XIX. O estudo acerca do Cristianismo tinha chegado a este ponto quando a Inglaterra aperfeiçoou e estabeleceu cientificamente, com Darwin e Spencer, a Teoria da Evolução, que, levando em conta a evidência das leis da Natureza, do pensamento e da história, se apresentava como o grande argumento, a lanterna mágica que explica e interpreta o curso das relações humanas e nos faz 10
compreender o progressivo desenvolvimento das instituições e da sociedade. E mesmo quando não tinha ainda sido reduzida a sistema científico, a Teoria da Evolução foi aplicada com muita antecedência por Vico, Leibnitz e Condorcet, à historia em geral, e, especialmente por Tindall, ao próprio Cristianismo. Tindall, há dois séculos no seu Cristianismo Antigo Como o Mundo, tinha precedido já os mais avançados entre os modernos, demonstrando que o Cristianismo não era produto de nenhuma revelação, mas apenas o resultado necessário da influência de um conjunto indecifrável de fatores diversos na determinação da essência, extensão e eficácia do sistema religioso cristão; que este era consequência dos fatos que o precederam e do ambiente em que nasceu, quando a humanidade estava ainda subjugada em suas dores, juízos, aspirações e esperanças mais ou menos quiméricas; que ele, enfim, desapareceria, quando todas as circunstâncias a que devia a existência fossem totalmente transformadas. Porém, só quando a Teoria da Evolução dominou efetivamente no campo da natureza, é que conseguiu vencer a tradicional e
fetichista veneração ao Sagrado entre os Sagrados, ao Cristianismo. Foi então que os espíritos positivos, não podendo mais admitir nada de sobrenatural na ciência moral, como tampouco se admitiu nas ciências físicas, se dedicaram a explicar naturalmente a origem e o desenvolvimento do Cristianismo. Esta foi a obra primordial de Ernesto Havet. O resultado da crítica histórica, bíblica e mitológica, e o da aplicação da teoria da evolução ao Cristianismo, foi reduzir-se ou inutilizar-se a pessoa de Cristo, enquanto, pelos fins do século XVIII, Dupuis e Volney, fundamentados na teologia comparada e na explicação solar do mito dos Deuses Redentores, negavam com poderosas razões, reveladoras de uma grande cultura, a existência humana de Cristo. Essas razões, porém, não foram aceitas pela crítica, não porque não fossem justas, mas porque esta não estava ainda suficientemente amadurecida. O mesmo sucede com os mitólogos que vieram, depois, com todas as provas, acumuladas, da identidade mitológica de Cristo com Cristna, Buda, Mitra, Horus, etc., ou seja, com os Deuses Redentores da antiguidade. Esses mitólo11
gos não ousaram negar em absoluto a pessoa de um Jesus hebreu, contentando-se uns com rodeá-lo com um engrandecimento lendário e uma divinização mitológica, e outros com ambas. E como nesse exame todos partiram de um ou vários pontos de vista parciais e unilaterais, em vez de se apoiarem e completarem reciprocamente, destruíram a obra comum, criticando-se uns aos outros nos pontos controversos, e acabando por se eliminarem mutuamente. Enquanto que a interpretação evolucionista baste para explicar a origem e a formação do Cristianismo, com o aditamento das preciosas informações postas à sua disposição pela mitologia comparada, a presença de Jesus continua como um último obstáculo à completa explicação do cristianismo segundo o método científico, mesmo que excluindo a sua presença e considerando que a crítica bíblica e histórica tenham reduzido as fontes da crença em Jesus à sua mais ínfima expressão. Posto isto, os últimos mistérios, únicos pontos obscuros que permanecem sem explicação no cristianismo - e não são poucos são os que derivam da pretendida existência do Cristo.
Como conciliar, dada a sua existência, a missão de conservar o mosaísmo, que ele se atribui ainda que o mosaísmo fosse apócrifo, bastava que Jesus acreditasse nele para que se arrogasse tal missão - com a missão oposta, de o destruir, o que, por outro lado, se lhe atribui? Como explicar o fato de Jesus, nascido e criado entre hebreus, filho de um obscuro artista, ignorando a literatura grega, segundo atestam mesmo os seus pretendidos discípulos, conhecer os livros de Platão, conforme o pretende Celso, em resposta a igual pergunta de Orígenes, que, por outro lado, não pensa sequer em conciliar o fato da ignorância helênica de Cristo com o fato de ele, no quarto Evangelho especialmente, falar como um discípulo de Platão, como se fosse um Fílon? Ernesto Renan, o grande romancista de Cristo porém, infundamentado, perante a observação de Celso, não responde melhor do que Orígenes: Reconhecemos no cristianismo - diz ele - uma obra excessivamente complexa para que possa ser trabalho de um só homem. Acreditamos, pelo contrário, que nela tenha colaborado a humanidade inteira... Jesus ignorava o nome de Buda, 12
de Zoroastro, de Platão. Não leu nenhum livro grego, nenhum sutra búdico, e, não obstante, reunia em si mais de um elemento, que, sem que ele próprio o suspeitasse, procedia do budismo, do parsismo e da sabedoria grega - intervenções que se realizavam por canais secretos, por essas simpatias existentes entre as diversas partes da humanidade. Quando homens do valor e da inteligência de Renan se veem obrigados, ante a incompatibilidade de Jesus com a explicação do Cristianismo, a recorrer aos citados argumentos só cabíveis num faquir hindu, num astrólogo medieval ou num médium do espiritismo ilusionista, e quando se pensa no amor infinito que Renan põe no seu personagem, é permitido duvidar de que a pessoa de Cristo seja histórica. Esta dúvida que em nós surge, em virtude da absoluta impossibilidade de se explicar satisfatoriamente o Cristianismo e os próprios Evangelhos, sem lhes tirar a pessoa de Cristo - desde que não se creia na sua divindade, pois à fé nada pode parecer estranho ou impossível - reforça a suspeita que nos levou a examinar de perto a questão da existência histórica do Cristo e a con-
cluir pela sua negativa. Tal é o fruto da presente obra que oferecemos a público sem nenhuma pretensão literária, com o único fim de contribuir para divulgar o racionalismo entre o povo em lugar de fazer uma obra de grande erudição. Além disso, este livro não vem dizer nada de novo. É apenas um trabalho de síntese, de integração e de lógica, no qual organizamos os resultados obtidos pela crítica e pela erudição. E, assim, como os resultados de uma ciência ou, de uma determinada ordem do investigações completam os resultados obtidos por outra ciência ou por outra ordem de investigações, aqui também, do concurso dos diversos elementos da verdade, surge a conclusão lógica de que Cristo nunca existiu. Esta conclusão é, por outro lado, o ponto de partida necessário para os futuros progressos da ciência, neste campo. Seja qual for o juízo emitido sobre o presente trabalho, tenhase sempre em conta que é obra de um profano que se propôs aplicar o bom senso natural à crítica do Cristianismo. Emílio Bossi - Milesbo 13
Primeira Parte
Cristo na História
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CAPÍTULO I O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO
De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos conservou documento algum, prova alguma, demonstração alguma. Cristo nada escreveu1. É certo que Sócrates também nada escreveu, limitando- se ao ensino oral. Mas, entre o Cristo e Sócrates, há três diferenças capitais: a primeira consiste no fato de Sócrates não ensinar nada que não fosse racional, humana, ao passo que Cristo pouco tem de humano, e esse pouco ainda misturado com muita coisa milagrosa; a segunda diferença deduz-se da circunstância de Sócrates ter passado à história só como personagem natural, enquanto Cristo nasceu e foi conhecido apenas como pessoa sobrenatural; a terceira, enfim, baseia-se em Sócrates ter por discípulos pessoas históricas, cuja
existência é notória, como Xenofonte, Aristipo, Euclides, Fédon, Ésquilo e o divino Platão, ao passo que, dos discípulos de Cristo nenhum é conhecido, a não ser se dermos crédito a documentos de pura fé, totalmente suspeitos. De sorte que, pelo fato de Sócrates nada escrever, não se pode concluir que ele não existiu, ao passo que é permitido admitir legitimamente, pelo menos a título de probabilidade, que Cristo, que teria vivido cinco séculos mais tarde, nada deixou escrito. Cristo não só nada escreveu, como nenhuma linha foi escrita a seu respeito. Sem levar em conta a Bíblia que, além de não dar nenhuma prova sobre a personalidade real do Cristo, ainda demonstra o contrário. Dos muitos autores profanos que foram contemporâneos de Cristo, nenhum nos deixou o menor vestígio acerca dele. Os únicos autores leigos que lhe mencionaram o nome – Flávio Josefo,Tácito, Suetônio e Plínio – ou foram interpolados e falsificados, como aconteceu aos
1
A pretensa carta ao rei Abgaro provouse que foi uma piedosa fraude. Orígenes e Santo Agostinho, para não irmos mais longe, excluem-na, declarando, por um modo formal, que Cristo nunca escrevera coisa alguma. Além disso, a própria Igreja em tal ponto concorda, pois não a inclui entre os documentos canônicos, como teria feito, se, porventura, ela tivesse alguma aparência de autenticidade. O mesmo pode dizer-se da carta de Pilatos a Tibério. 15
passant e, ao enumerar as seitas do seu tempo, não cita a dos cristãos. A Mishná, diz ainda Renan, nada fala sobre a nova doutrina; os personagens dos dois Gemaros, como se qualifica o fundador do Cristianismo, não nos levam além do quarto ou quinto século3. Um escritor hebreu, Justo de Tiberíades, que narrou a história dos hebreus desde Moisés até fins do ano 50 da era cristã, não cita sequer o nome de Cristo, segundo atesta Fócio. Juvenal, que fustigou com a sátira as crenças do seu tempo, fala extensamente dos hebreus, mas não dedica uma única palavra aos cristãos como se eles não existissem4. Plutarco, nascido 50 anos depois de Cristo, historiador eminente e consciencioso, que decerto não poderia ignorar a existência de Cristo e dos seus prodígios, nem uma só vez alude, em suas numerosas obras, quer ao chefe da nova fé, quer a seus
dois primeiros, ou, como os dois restantes, falaram de Cristo apenas etimologicamente para designarem seus seguidores e a superstição que tomou o seu nome. Escreveram muito tempo depois, sem o terem conhecido, sem darem provas da sua existência, e em termos tais que só servem para comprovar que ele nunca existiu. Ernesto Renan, o mais célebre dos cristólogos, que cometeu o erro de fazer da Vida de Jesus uma biografia quando não passa de uma engenhosa lenda, vê-se obrigado a reconhecer o silêncio da história em volta do seu herói. Ele escreve que os países gregos e romanos nunca ouviram falar de Cristo. Mesmo com os movimentos sediciosos provocados pela sua doutrina e as perseguições de que foram alvo os seus discípulos, ainda assim o seu nome não aparece nos autores profanos durante o primeiro século depois da sua morte, sequer indiretamente. No judaísmo, Jesus não deixou impressão duradoura. Fílon, que morreu no ano 50, nada sabe acerca dele. Josefo, nascido no ano 37 e que escreveu até fins do primeiro século, narra a sua condenação em algumas linhas2 en 2
tir que a passagem de Josefo foi alterada por mão cristã. Porque, só alterada? Como veremos, foi interpolada. 3 Renan, Vida de Jesus, vol. IV, cap. XXVIII 4 Stefanoni, Dicionário Filosófico, a voz de Jesus
Que o próprio Renan anota para adver16
discípulos. Cesare Cantù, a quem a crença mais cega e indigna de um historiador vedou os olhos, mistura fatos históricos com as invenções mais absurdas do cristianismo. Desiludido da sua fé pelo silêncio de Plutarco, consola-se dizendo que Plutarco é sincero na crença das suas divindades e que por isso, em nenhuma das obras que escreveu sobre moral se refere aos cristãos5. Sêneca, que por seus escritos cheios de máximas perfeitamente cristãs faz duvidar se foi cristão ou teve relações com os discípulos de Cristo, no seu livro sobre as crenças, extraviado ou destruído, dado a conhecer por Santo Agostinho, não diz uma única palavra acerca de Cristo, e, falando dos cristãos, aparecidos já em muitos pontos da terra, não os distingue dos hebreus, a quem chama de um povo abominável6. Mas sobretudo expressivo e decisivo é o silencio de Fílon acerca de Cristo. Fílon, que contaria de 25 a 30 anos, quando apareceu Cristo, e
que morreu alguns anos depois deste, nada sabe ou diz acerca dele. Como escritor distintíssimo que foi, ocupou-se especialmente de estudos sobre filosofia e religião, e, por certo, não esqueceria Cristo, seu compatriota de origem, se Cristo realmente tivesse aparecido sobre a face da terra e levado a cabo uma tão grande revolução do espírito humano. Uma circunstância de grande relevo torna mais eloquente o silêncio de Fílon em torno de Cristo: é que todos os ensinamentos de Fílon podem passar por cristãos, de tal sorte que Havet não hesitou em chamar a Fílon um verdadeiro Padre da Igreja. Por outro lado, Fílon se preocupou especialmente em conjugar o judaísmo com o helenismo tomando do Antigo Testamento as partes mais edificantes, depois de distinguir o sentido alegórico do literal, enxertando na árvore da religião hebraica o misticismo dos neoplatônicos alexandrinos. Deste modo, chegou a formar uma doutrina platônica do Verbo ou Logos, que tem muita afinidade com a do IV Evangelho, na qual o Logos é precisamente o Cristo. Pois bem:
5
C. Cantù, História Universal, Época VI, Parte II 6 Ernest Havet, O Cristianismo e suas Origens. O Helenismo, tomo II, Ch. XIV 17
não é isto uma grande revelação? Fílon, que vive no tempo de Cristo, que já é célebre antes do nascimento dele, e que morre ainda alguns anos depois; Fílon, que realiza com o Judaísmo a mesma transformação, helenização e platonização idêntica à que os Evangelhos promovem, sobretudo o IV; Fílon, que fala do Logos ou do Verbo do mesmo modo que o IV Evangelho, porque não cita Cristo uma única vez sequer em suas numerosas obras? Porventura, não prova este fato eloquentíssimo que Cristo nunca foi pessoa histórica e real, mas sim pura invenção ou criação mitológica e metafísica, para o que contribuiu mais do que ninguém o próprio Fílon, que escreveu, como se fosse um cristão, sem saber nada de tal nome, que fala do Verbo sem conhecer o Cristo, e que ensina a mesma doutrina atribuída Cristo? Se Fílon pôde falar do Verbo e escrever como se fosse um cristão, antes de Cristo, sem nada saber e nada dizer acerca dele, não indica isto que o Cristianismo se elaborou sem Jesus e por obra precisamente e principalmente do mesmo Fílon, que não diz uma única palavra acerca da
pessoa humana, da existência material e histórica de Cristo? Em suma: se Cristo um dia existiu, como explicar a incompreensível anomalia de que Fílon não fale dele? Por outro lado, Fílon, o Platão hebreu, alexandrino, contemporâneo de Cristo fala de todos os acontecimentos e de todos os personagens principais do seu tempo e do seu país, sem esquecer Pilatos. Conhece e descreve os essênios estabelecidos junto de Jerusalém nas ribeiras do Jordão. Foi como delegado a Roma para defender os hebreus no reinado de Calígula, o que faz supor nele um profundo conhecedor das coisas e nomes da sua terra. Se Cristo tivesse existido, Fílon certamente ver-se-ia obrigado a, no mínimo, a referir-se a ele. O silêncio de todos os escritores contemporâneos acerca de Cristo tem sido, nestes últimos tempos, objeto da mais atenta consideração por parte da verdade histórica, embora alguns escritores liberais tenham-no avaliado de maneira leviana e superficial. Salvador explica o fenômeno apoiando-se em débil vestígio deixado em Jerusalém pelo filho 18
de Maria7. O próprio Stefanoni não pode explicar o fenômeno sem reduzir o nascimento de Cristo e toda a sua vida a proporções demasiadamente mesquinhas, circunscritas aos limites de uma ocorrência comum8. Mas esta explicação é inadequada. Nós não conhecemos mais do que um único Jesus: o dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. Este personagem não deixou nenhum vestígio em Jerusalém, contra o que pretende Salvador; sua vida não foi mesquinha, em oposição ao que supõe Stefanoni, ao contrário, a vida de Cristo, segundo a Bíblia, foi de tal forma rumorosa e extraordinária que nenhum outro Ser Humano viveu algo semelhante. Jesus deu causa a alvoroços públicos, a prisão, a um processo, a um drama judicial seguido de morte trágica. Realizou prodígios maravilhosos, desde a visita dos anjos até as estrelas que marchavam para indicar o lugar do seu nascimento aos soberanos vindos da Ásia expressamente para o visitar; desde a degolação dos inocentes às discussões que
sustentou aos doze anos com os doutores; desde a multiplicação do número e a transformação da natureza dos elementos à cura dos enfermos e à ressurreição dos mortos; desde. a dominação dos elementos às trevas e terremotos, que assinalaram a sua morte até à sua própria ressurreição. Ora, perante um personagem tão extraordinário e acontecimentos tais que atrairia a atenção das pessoas mais indiferentes e excitaria a curiosidade dos cronistas, analistas e historiógrafos, o silêncio da história é absolutamente inexplicável. Inverossímil e singularíssimo, como acertadamente notou Dide9. Este silêncio constitui, por irrespondível, uma grande presunção contra a existência histórica e real de Cristo. Outros elementos críticos nos provam que só a inexistência de Cristo pode explicar o silêncio da história em volta dele, e que, por sua vez, este silêncio demonstra aquela não existência. O mesmo silêncio da História acerca de Jesus revela-se também a respeito dos apóstolos, sobre os quais não existem outros documentos senão os eclesiásti-
7
J. Salvador, Jesus Cristo e sua Doutrina, tomo I, livro II. 8 Luigi Stefanoni, lugar mencionado também na Histótia Crítica das Superstições, Vol II , Cap. I.
9
A. Dide, O fim das Religiões, Paris, Flamarion, pag. 55. 19
cos, destituídos de todo o valor provativo, pois que nô-los apresentam, não como homens naturais, mas como personagens sobrenaturais, ou pelo menos, taumaturgos, o que vem a dar na mesma10. Os únicos fatos históricos que se atribuem aos apóstolos, tais como a viagem de S. Pedro a Roma e as suas disputas com Simão Mago, o encontro de S. Pedro com Jesus e o famoso Quo vadis, Domine?, morte de S. Pedro e outros fatos, são narrados exclusivamente em livros decla-
rados apócrifos pela própria Igreja. Outro tanto pode afirmarse de José e de Maria, progenitores de Cristo, e bem assim de seus irmãos e de toda a sua família. Todas estas circunstâncias aumentam a significação do silêncio da história em volta de Cristo, circunstâncias que adquirem maior valor quando se vê que Cristo, Maria e os Apóstolos são puras criações místicas.
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Emilio Ferriére, no seu excelente livro Os apóstolos demonstra a impossibilidade de S. Pedro ter estado em Roma, impossibilidade esta confirmada pelo silêncio dos mais antigos escritores da Igreja, até á segunda metade do século IV. Porém, o autor comete o equívoco de tomar como fonte histórica os Atos dos Apóstolos, escolhendo as poucas notas que estes nos deixaram, como se fossem notícias verdadeiras. A simples consideração de que nada do que narram os Atos está conforme com qualquer dos autores profanos deveria bastar para nos pôr em guarda a respeito desta fonte, que não pertence de modo algum à Bíblia porque, até na compilação dos livros canônicos da Bíblia, a Igreja teve o astucioso cuidado de se descartar de todos os documentos que falavam de Cristo, Maria ou dos Apóstolos que pudessem ser facilmente impugnados pela crítica histórica, evitando, assim, o perigo de se pô-lo a descoberto desde o seu princípio. 20
CAPÍTULO II AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO
não o abandonaram nem mesmo depois de morto. Vivo e ressuscitado, reapareceu no terceiro dia da sua morte como o haviam predito os santos profetas, e realizou muitas outras coisas milagrosas. A sociedade cristã que ainda hoje subsiste, tomou dele o seu nome11. Salvador, Renan, Stefanoni e vários outros escritores nada dizem acerca da possibilidade de terem sido alteradas as palavras de Josefo, o que se compreende em autores que, embora não creiam na divindade de Jesus, abrigam em si a crença nesse Cristo Homem, mais ou menos extraordinário, do qual se originou o Cristianismo. Porém, uma análise criteriosa levará à convicção de que a passagem de Josefo relativa a Jesus foi interpolada. O texto está perdido no meio de um capítulo, sem conexão alguma com o assunto que o precede e o que lhe sucede, intercalado nos relatos de um castigo militar infligido ao populacho de Jerusalém e dos amores de uma matrona romana
Os únicos autores profanos que falaram de Cristo reputados como testemunhas da sua existência foram Tácito, Suetônio e o historiador hebreu Josefo. Vamos, pois, examinar um a um estes testemunhos para vermos que, não só não constituem prova da existência de Cristo, como também são novas demonstrações do contrário. De todos os historiadores citados, o único que poderia ter valor de prova pela sua qualidade de historiador hebreu é Josefo, ainda que tenha vivido e escrito muitos anos depois do período que se considera como sendo o da vida de Cristo. Josefo fala de Cristo apenas casualmente nestas poucas linhas: Naquele mesmo tempo, nasceu Jesus, homem sábio, se é que pode se chamar de homem pois realizou obras admiráveis, ensinando aqueles que queriam inspirar-se na Verdade. Não só foi seguido por muitos hebreus, como também por alguns gregos. Era o Cristo. E, tendo sido denunciado a Pilatos pelos principais da nossa nação, este fê-lo crucificar. Os seus partidários
11
Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro XVIII, cap. III 21
com um cavalheiro que obtém os seus favores fazendo-se passar por uma personificação do Deus Anúbis. Além do mais, estes dois eventos históricos são relacionados entre si. Estão interligados porque o historiador, ao relatar o segundo, chama-lhe de outro acidente deplorável, donde se depreende que esse outro acidente deplorável só pode estar relacionado com o primeiro, do motim popular e a consequente repressão. A passagem intercalada entre esses dois acontecimentos não pode ser atribuída a Josefo porque rompe bruscamente o fio da narração, e o autor revela-se, em toda a sua obra, mestre na arte de colocar cada coisa em seu lugar12. Além disso, na referida passagem, Josefo fala de Cristo como o faria um bom cristão, pois considera-o um ser sobrenatural e relaciona-o com as predições dos profetas. Como pôde Josefo empregar semelhante linguagem, isto é, acreditar na divindade de Cristo sem ser cristão e continuando hebreu? É tanta a evidência que até o erudito padre Gillet se vê
obrigado a reconhecer que Josefo não pôde falar daquele modo, como o faria um cristão, e que, por conseguinte, deve ser considerado apócrifo e intercalado o texto referido13 Além disso, constitui-se em prova direta e definitiva desta interpolação o fato de S. Justino, S. Cypriano, Tertuliano e Orígenes, em suas numerosas e ardentes polêmicas contra os hebreus e pagãos, não citarem esta passagem de Josefo. Orígenes declara que Josefo não reconhecia Cristo14 na pessoa de Jesus, o que não diria se o personagem citado por Josefo fosse conhecido no seu tempo. Em suma: por consenso de todos os críticos sensatos e competentes, esta passagem de Josefo foi julgada interpolada por uma piedosa fraude dos cristãos primitivos. Cita-se, ainda, outra passagem de Josefo (Livr. XX, cap. 9), na qual, falando na condenação de Thiago, acrescenta: Irmão de Jesus, chamado o Cristo. Aqui Josefo se contradiz porque fala de Cristo como de um homem qualquer, demonstrando que não crê 13
Larroque, Exame crítico das doutrinas da religião cristã. Prim. Part. cap. IV. 14 Contra Celso, livro 1, § 47.
12
A. Peyrat, História elementar e crítica de Jesus. Conclusão. 22
na sua divindade, ao passo que noutro lugar mostra acreditar nela. Esta contradição se esclarece ao se considerar interpolada ou desfigurada a passagem anteriormente relatada. Mas, na realidade, não há critério fixo para aceitar a primazia de uma ou de outra das duas passagens contraditórias, de forma que, não só uma exclui a outra, como as duas se excluem mutuamente. Apenas que na última, a interpolação foi feita com maior astúcia do que na primeira, pois nela Josefo fala como hebreu que era, o que se explica por ser anterior à primeira, já que existia no tempo de Orígenes e exigiu maior prudência. A última passagem não é e não pode ser considerada autêntica pela simples, óbvia e indeclinável razão de que, se Josefo houvesse tido efetivamente notícias de Jesus, chamado o Cristo, não teria deixado de se explanar muito mais sobre a sua vida, tratando-se de um homem que tomara uma parte tão grande, tão notável, tão extraordinária, tão original e culminante na história do seu país. Se alguma dúvida ainda restou sobre a prova definitiva de que a passagem de Josefo acerca de Jesus foi interpo-
lada, nada mais nos resta do que ler Fócio, que declara formalmente que nenhum hebreu jamais falou de Cristo. Vejamos, agora, Tácito. A passagem deste historiador, que pode apresentar-se como testemunho a favor da existência de Jesus, é a seguinte: Nero, sem grande alarde, submeteu a processo e a penas anormais aqueles que o vulgo chamava cristãos, por causa do ódio que lhes votava por suas feitiçarias. Quem lhes deu o nome foi Cristo, a quem Pôncio Pilatos, no reinado de Tibério, condenou ao suplício. Apenas reprimida, esta perniciosa superstição (o cristianismo) fez novamente das suas. Não na Judeia, de onde provinha todo o mal, mas na própria Roma, para onde afluíam de toda a parte os sectários, cometendo as ações mais audaciosas e vergonhosas. Por testemunho dos que os puniam e pela opinião pública geral, (os cristãos) eram incendiários e professavam ódio extremo ao gênero humano15. Nunca se cometeu uma falsificação mais evidente em detrimento do grande historiador romano, falsificação esta que se 15
Tácito, Anais, livro 15, § 44.
23
estende a todo o texto. Enquanto Tácito afirma que o vulgo chamava assim aos cristãos porque eram odiados por suas feitiçarias, o falsificador fálo contradizer-se nas linhas que logo se seguem, e nas quais pretende que os cristãos procediam de Cristo. Tal contradição é impossível num escritor da envergadura de Tácito, e resulta da interpolação das palavras que se referem a Cristo, porque a etimologia dada por Tácito ao nome dos cristãos é somente a que corresponde à sua opinião favorável dos cristãos, expressamente posta e mantida em todo o trecho em que ele fala dos mesmos16.
Outra circunstância, que prova a interpolação, encontra-se na passagem do mesmo Tácito, oportunamente revelada por Ganeval17 e onde o eminente historiador romano (Liv. II, § 85) diz que foram expulsos de Roma os hebreus e os egípcios, que formavam uma única superstição. Neste ponto, é evidente que Tácito não faz proceder da Judeia os cristãos, mas do Egito, destruindo assim a pretendida origem etimológica dos cristãos de Cristo, origem essa que o obriga a defender na passagem que vimos de examinar. deparamos sempre com o motivo pelo qual Tácito colocou naquela passagem o per flagitia invisos, que não teria, em tal caso, relação alguma com o resto do texto, ao passo que estaria em seu lugar na filípica que dedica, mais à frente, aos cristãos. Pelo contrário, este trecho estaria perfeitamente no seu lugar, mesmo como está porque tem relação com o trecho seguinte, em que Tácito fala dos cristãos, admitindo nós a interpolação do período intermédio em que se faz dizer a Tácito que o nome de Cristãos vem de Cristo. Mas, deixemos na dúvida essa questão etimológica: resultaria daí que Tácito deu testemunho histórico de Cristo? De modo algum. Ainda nesta hipótese, não teria feito mais que citar o que os cristãos diziam, especialmente nos tribunais, para dar a conhecer a pretendida origem histórica da sua superstição. 17 Ganeval, Luiz – Jesus, perante a história, nunca existiu. Cap. IV – Genebra. Livraria Veresoff etc... 1874
16
Nota da segunda edição. “quos per flagitia invisos vulgus Christianos appellabat”. (que, odiados por seus crimes, eram popularmente conhecidos como cristãos). Os nossos anticríticos caíram sobre a tradução desta passagem de Tácito com tanta disposição quanto é certo terem a insânia de crer que, enfraquecido assim o nosso argumento, ficava comprometida a seriedade do livro. À falta de melhor juízo, pensaram que, atacando este argumento, feriam o próprio calcanhar de Aquiles. Pois bem: queremos deixar na dúvida a questão de saber se Tácito quis dar ao nome dos cristãos a origem da aversão que inspiravam com suas feitiçarias. Queremos admitir que não haja relação alguma etimológica, pelo menos aparente, entre o homem e o assunto. Mas, nesse caso, 24
De maneira que os que falsificaram esta passagem esqueceram-se de falsificar aquela onde Tácito ignora Cristo, absolutamente, e onde afirma, como em seu lugar demonstraremos, que o Cristianismo não procede de Cristo, mas sim da fusão do hebraísmo, do orientalismo e do helenismo, realizada no Egito. Mesmo que não se quisesse admitir esta fraude, o testemunho de Tácito não provaria de modo algum a existência de Cristo, visto que ele o cita unicamente para dar a origem etimológica do nome dos cristãos. Não se pode admitir que Tácito tenha escrito acerca de Cristo da forma enganosa com que o fizeram escrever, pois se Cristo tivesse realmente existido, sabendo-o ou conhecendo-o, o historiador teria falado certamente muito mais a respeito dele, nunca limitando-se a falar de um homem extraordinário, em poucas palavras, ditas a correr e entre incidentes ocasionais18 .
A passagem de Suetônio é ainda mais breve e mais contraditória. Roma – diz ele, falando do reinado de Cláudio – expulsou os judeus que, instigados por Cresto, promoviam contínuos tumultos19. Ponhamos de lado a diferença entre Cresto e Cristo20 para analisarmos a dificuldade a que dá origem a pessoa aludida por Suetônio. Se era Cristo, como acreditar que tenha sido expulso de Roma onde nunca esteve? E, se esteve em Roma, como podia ele viver ainda no tempo de Cláudio, se Tácito nos diz que foi crucificado no reinado de Tibério, que precedera o de Calígula e este o de Cláudio? Em vista disto, forçoso é reconhecer que os dois testemunhos, de Tácito e Suetôdo caminho e que outros, mais competentes do que nós, têm apoiado a interpolação de Tácito. 19 Suetônio, Vida de Cláudio, cap. 25. 20 Esta questão etimológica não é tão desprezível assim, como Larroque e outros consideraram. Ganeval pretende que o nome de Cristo,empregado pelos cristãos nos séculos I e II em Roma, e nos livros sybillinos no Egito seja uma derivação do nome de Cresto, aplicado a Serápis, Bom e Agathos. Ainda, segundo ele, Cristo é uma pura e simples transformação do Deus morto e ressuscitado do Egito.
18
Alfredo Taglialatela, no Rinnovamento di Roma de 23 de julho de 1904, n. 30, faz saber que Hochart sustentou a interpolação de Tácito com muito mais veemência do que nós o fizemos. Ignoramos a crítica de Hochart e lamentamos muito. Mas somos gratos ao sr. Taglialatela, pela, sua informação, que vem a confirmar que não estamos fora 25
nio, a respeito de Cristo, se excluem e se eliminam mutuamente. O testemunho de Plínio, o Moço, então é quase estranho ao debate. Numa carta enviada a Trajano, fala em Cristo21, não como pessoa de quem se pretende demonstrar existência história, mas como divindade simbolizadora da adoração dos cristãos. Pela mesma razão, teria aludido a Brahma, falando dos brahmanes, para indicar o objeto do seu culto, sem com isto querer demonstrar a existência de Brahma. Em suma: Plínio falou de Cristo só etimologicamente, sem emitir opinião alguma sobre a sua existência. Portanto, fora os testemunhos de Suetônio e de Plínio por impertinentes à questão, e demonstrada a falsificação do que se atribui a Josefo e a Tácito, o que fica das pretendidas provas históricas da existência de Cristo? Nada, absolutamente: apenas a prova do contrário. Teriam sido necessárias as falsificações para provar a existência de Cristo se esta fosse real? As falsificações só foram fei-
tas para ocultar verdade. E como as falsificações deviam ter sido praticadas para fazer crer na existência de Cristo, temos de deduzir, logicamente, que ele nunca existiu, pois não seria necessário falsificar a história para nos provarem a sua existência.
21
Todos comigo invocaram os Deuses e ofereceram incenso e vinho à tua imagem, maldizendo o Cristo. (Plinio Epist. 97, liv. X. 26
CAPÍTULO III PROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO
A história não só ignora Cristo, não só prova que os autores profanos que dele falaram foram neste ponto falsificados, mas até, existem outras provas históricas que demonstram a sua não existência. Chamamos de históricas a estas provas porque são fatos verídicos, certos e positivos, porque são testemunhos concretos e válidos de escritores e de determinadas escolas, ao passo que as provas que apresentaremos a seguir, ainda que valiosas, não têm o mesmo valor histórico por serem deduções exegéticas da bíblia e da mitologia comparada, extraídas de documentos próprios da fé cristã e da história das crenças humanas. Ganeval reuniu grande número dessas provas na sua obra Jesus, Perante a História, Nunca Existiu, excelente pela sua convicção e séria pelo seu propósito, obra que merecia melhor sorte apesar das suas repetições provenientes da falta de sistematização e da unilateralidade da tese que vê em Cristo uma transformação pura e simples de Serápis, tese que poderá ser justa mas, por falta de documentação suficiente, pode
não ser correta mas somente provável, muito provável, mesmo porque, Serápis é certamente o deus que tem mais analogias com Cristo. No nosso entender, Ganeval não desenvolveu adequadamente a sua tese. Foi infeliz ao lhe introduzir elementos análogos aos da mitologia dos outros povos orientais. Deveria ter percebido que, apesar de certas expressões simbólicas referentes à cópula, como Serápis, Cristo não é tanto a encarnação alegórica do Phallus como o é do Sol. Entretanto, façamos-lhe a devida justiça, reconhecendo que descobriu a verdade da lenda de Cristo e dos relatos da história, quando é certo que, antes dele, só Dupuis e Volney abordaram a tese da mitologia comparada. Entretanto, as provas se acumulam, e os recentes trabalhos convergem todos para a demonstração definitiva desta verdade. As provas históricas contra a existência de Cristo provém dos hebreus, dos pagãos e até de alguns cristãos primitivos e padres da Igreja. Parecerá estranho, mas é assim, como veremos. 27
O hebreu alexandrino Fílon, no seu livro sobre os terapeutas, relata que estes viviam como verdadeiros cristãos, que abandonaram bens e família para se dedicarem ao ascetismo, que tinham livros religiosos e seguiam as máximas de seus pais. Eusébio, na sua História, (liv. II, cap. X e XVII) confirma isso afirmando que os livros de que fala Fílon eram os Evangelhos e os escritos dos Apóstolos, e declara que os terapeutas citados por Fílon são os cristãos solitários.22 O que se conclui destes documentos é que o cristianismo é muito anterior a Fílon. Portanto, se os Evangelhos e os escritos dos Apóstolos já existiam antes de Fílon, e se Fílon nasceu 25 ou 30 anos antes de Cristo, vê-se logo que a existência dos cristãos é anterior a Cristo. E isto se confirma pelo fato dos judeus e egípcios, que formavam uma única superstição – os cristãos, no dizer de Tácito – terem sido expulsos de Roma
duas vezes no tempo de Augusto e uma terceira no tempo de Tibério, no ano 19 da nossa era. Estas expulsões desmentem implicitamente a existência de Jesus, pois tiveram lugar antes de se falar do nome cristão, referindo-se evidentemente à superstição judaico egípcia - que se confunde com o cristianismo - nascido da fusão do judaísmo com o orientalismo egípcio, com vestígios muito próximos do neoplatonismo alexandrino 23. Outro padre da Igreja, S. Epifânio, confirma as palavras de Fílon e de Eusébio. Segundo ele, os terapeutas do Egito citados por Fílon, que habitavam junto do lago Mareótides, são os cristãos24 que tinham o seu Evangelho e os seus Apóstolos. Fílon falou dos cristãos, como sendo muito anteriores a si próprio, atribuindo-lhes um Evangelho e vários Apóstolos. Isto exclui absolutamente a existência de Cristo, pois este teria nascido quando Fílon já con23
Não é exagero dizer que não existia ainda a palavra cristão quando já existia a superstição judaico cristã. De fato, o cristianismo existiu algum tempo antes do seu nome. Este só foi elaborado e criado muito depois, pelo processo de diferenciação. 24 S. Epifânio, Cont. er., p.120. In Ganeval.
22
Alfred Maury, no estudo da história do começo do cristianismo contido em seu livro Crenças e Lendas da Antiguidade, chama isso de uma má interpretação de Eusébio. Mas não explica as razões. Enquanto que ele próprio, algumas linhas antes, cita Filon entre aqueles que têm servido de guia para Eusebio. 28
tava 25 a 30 anos, e Fílon não poderia esquecê-lo já que se ocupava dos cristãos. Além disso, sabe-se que os Evangelhos atuais não apareceram senão muito tempo depois de Cristo, de modo que não pode ser a eles que Fílon alude falando dos livros (os Evangelhos, segundo Eusébio) e dos terapeutas (os cristãos, segundo Epifânio). O testemunho de Fílon contra a existência de Cristo é tanto mais formidável quanto o mesmo Fílon contribuiu intensamente para a formação do cristianismo25. Fócio opina que é dele que procede a linguagem histórica da Escritura. Ainda mais: Fílon escrevera um tratado, um verdadeiro Evangelho acerca do Deus Bom (Serápis) – livro que foi destruído – e cujas alegorias deviam ser tão semelhantes às dos
Evangelhos que logo se atribuíram a Cristo. Não faltou também um falsificador cristão que ousou dizer a Orígenes que, no seu Evangelho sobre o Deus Bom, Fílon falara de Jesus sem escrever o seu nome 26. E se este Evangelho de Fílon acerca do Deus Serápis, Evangelho um século anterior ao dos cristãos, era essencialmente semelhante aos que depois vieram a ser os Evangelhos cristãos, ficamos na dúvida sobre se ele quis fazer crer, falando de Serápis, o Deus morto e ressuscitado do Egito, que se referira a Cristo (ainda que o falsificador diga: sem o nomeá-lo). Logo, temos de reconhecer que Fílon foi um dos fundadores dessa crença que depois se converteu em cristianismo, que escreveu um Evangelho mais tarde atribuído a Jesus, que Fílon não
25
Nota da segunda edição. Parece haver aqui uma contradição, visto termos afirmado que o Cristianismo é anterior a Fílon, e dizermos mais adiante que foi ele o seu principal fundador. Se entendermos que a multiplicidade de crenças que formam uma doutrina, uma fé, um sistema complexo de dogmas, máximas e ritos é produto da colaboração de varias gerações, de vários séculos e de muitos sábios, até que encontre o seu precípuo expositor, este tem direito a ser considerado o seu fundador. Assim, pode dizerse que Marx é o fundador do socialismo, embora. este já existisse séculos antes, em vias de formação.
26
Eis a passagem de Orígenes interpolada: "No livro III de sua obra Sobre o Deus Bom, Filon escreve um episódio alegórico sobre Jesus, ainda que não citando seu nome” (Contra Celso). Ganeval demonstra que o nome de Jesus foi interpolado na obra de Orígenes. Se Fílon tivesse escrito sobre Jesus, citaria a ele e não a Ágatos, que era o deus Serápis. A falsificação é tanto mais evidente quanto é certo que Fílon e Orígenes nem conheceram nem nunca falaram de Jesus. 29
conheceu e nem citou em seus trabalhos. Posto isto, o silêncio de Fílon acerca de Jesus não só prova que este nunca existiu, como autoriza e legitima a hipótese – que no desenvolver deste trabalho será corroborada por outras provas 27 – de que Fílon foi o principal fundador do cristianismo. Os seus copiadores não fizeram mais do que introduzir o nome de Jesus em lugar do de Serápis, substituindo o Deus Bom dos egípcios por outro Deus morto e ressuscitado, que é Jesus28. Em qualquer dos casos, fica evidente que Fílon escreveu um Evangelho sobre Serápis, o qual logo pôde adaptar-se a Jesus, donde, segundo Fócio, se derivaram os Evangelhos posteriores. É igualmente certo que Fílon descreveu os Terapeutas como muito anteriores a Cristo, tendo já os 27
seus Evangelhos e os seus Apóstolos; que estes Terapeutas eram os cristãos primitivos, e segundo Eusébio e Epifânio, existiram muito antes de Cristo e, enfim, que o mesmo Cristo nunca existiu. Pondo de lado as inúmeras provas que Fílon nos fornece29, vejamos as que nos dão cristãos autênticos e de valor perante a Igreja – S. Clemente Alexandrino e Orígenes – cujos testemunhos são tanto mais concludentes, quanto é certo terem contribuído poderosamente para a difusão do cristianismo. S. Clemente Alexandrino e Orígenes, este último falecido no ano 254, negam a encarnação, e, por conseguinte, a existência de Cristo. Assim se depreende da análise feita pelo patriarca Fócio que, falando do livro das Disputas de S. 29
Dide, na obra já citada, põe em destaque um diálogo com Trifon, de Justino mártir, no qual o hebreu Trifon nega a existência e a aparição de Cristo sobre a terra, dizendo: se Jesus nasceu, em algum ponto da terra, esse ponto é completamente desconhecido. Faz notar que Celso, cuja obra foi destruída, não nega a existência de Cristo. Celso, porém, que viveu no século II não cuidou de tal assunto, visto que a sua tese era outra, e que esta se limitou a refutar o cristianismo, valendo-se para isso dos próprios livros da nova religião.
Veja-se, Parte IV, Cap. II.
28
Um eloquente testemunho citado por Ganeval para denunciar a origem egípcia dos Evangelhos está nas alegorias do jumento e dos porcos. Especialmente deve se notar a parábola do filho pródigo, que se faz guardador de porcos, e o milagre dos demônios arrojados dos possessos para os porcos. Tanto um como o outro destes episódios estão totalmente deslocados na Judeia, mas não no Egito, onde o porco era a imagem da dissolução e símbolo do demônio. 30
Clemente, afirma que nele o autor declarara que Logos, o Verbo, nunca encarnara (p. 286, in Ganeval, c. II e III) e, analisando os quatro livros dos Princípios, de Orígenes, mostra-nos que este falava de Cristo segundo a lenda e que, a respeito da encarnação do Salvador, opinava que o mesmo Espírito se encontrava em Moisés, nos profetas e nos apóstolos, o que leva Fócio a declarar escandalizado que neste livro Orígenes escreveu muitas blasfêmias30. A nós só importa constatar que a forma pela qual se exprimem S. Clemente e Orígenes, falando do Verbo, do Cresto e do Salvador, exclui absolutamente a existência de Cristo, pois nenhum deles assim falaria se Cristo tivesse sido um homem real e verdadeiro. E nem nós poderíamos pormenorizar mais, visto que esses livros foram todos destruídos. Ganeval cita ainda os testemunhos de S. Irineu, Papias e S. Justino, o primeiro dos quais afirma que o Deus cristão não é homem nem mulher; o segundo cita fragmentos do antigo Evangelho egípcio, e o último, falando do Logos (Cristo), afirma que é uma emanação de Deus produ-
zida como as projeções dos raios do Sol. Como se vê, as três opiniões concordam em negar a existência de Cristo. E trata-se de santos e teólogos célebres, insuspeitos de aversão contra o cristianismo, do qual foram os principais e mais autorizados propagadores. Cita ainda Ganeval, apoiandose em Fócio, as opiniões de Eunomius, Agápio, Carmim, Eulógio e outros cristãos primitivos, que todos eles formaram do Cresto um conceito que exclui a sua existência material e corpórea. E finalmente lembra o juízo do S. Epifânio acerca das mais antigas seitas heréticas dos Marcinitas, Valentinianos, Gnósticos, Simonianos, Saturnilianos, Basilidianos, Nicolasianos e outros, dos quais deduz que o Deus Redentor dos cristãos é Horus, filho da Trindade egípcia, convertido mais tarde em Serápis. A estas seitas mencionadas por Ganeval, que negavam a existência do Verbo, deve juntar-se especialmente a dos Docetistas, impugnadores da realidade de Cristo, que Salvador31 refuta no livro Jesus Cristo E A Sua Doutrina, citando o quarto Evan31
Salvador, Jesus Cristo E A Sua Doutrina, livro II, cap. II.
30
Fócio, in Ganeval 31
gelho que destaca o golpe de lança que fez manar sangue e água do corpo de Cristo, e que isto provaria a sua realidade. A existência desta seita é particularmente importante, porque no dizer de S. Jerônimo 32, foi contemporânea dos Apóstolos. E, caso não fosse bastante o que já foi dito, tínhamos Cerinto, Cerdon, Taciano, e os Ebionitas, todos eles impugnadores da existência de Cristo, e, sobretudo, Saturnino, que segundo o abade Pluquet, viveu nos tempos e nas paragens onde Cristo realizou os seus milagres, apesar de ter-lhe negado, ele também, um corpo natural. A negação da existência de Cristo por parte dos primeiros heréticos, alguns dos quais viveram no tempo e no lugar onde teriam residido Cristo e os Apóstolos, é prova histórica evidente de que eles nunca existiram. Um testemunho valiosíssimo, apresentado também por Ganeval, é o do imperador Adriano que tendo feito uma viagem a Alexandria no ano 131 declarou que o Deus dos cristãos era Serápis e que os devotos de Serápis eram aqueles a quem chamavam bispos dos cristãos. Sua opinião está de
acordo com todos os documentos conhecidos daquela época. Época em que não existiam ainda os atuais Evangelhos, em que Tácito nos revela que os hebreus e os egípcios formavam uma única superstição, em que Fílon tinha já escrito sobre o Deus Serápis, de tal fôrma que facilitava a qualquer falsificador cristão o ensejo de fazer crer que se referia a Cristo, e em que havia já falado acerca dos cristãos primitivos – os Terapeutas – segundo a confissão de Eusébio e Epifânio, apresentando-os como muito anteriores a ele, que por sua vez, era anterior a Cristo. Época em que, segundo S. Epifânio e Fócio, muitas seitas cristãs continuavam adorando a Horus como Deus Redentor, Filho da Trindade egípcia. Época em que S. Clemente de Alexandria e Orígenes escreveram negando Jesus e falando de Cristo – nesse tempo Cresto, segundo a lenda – tudo isto por confissão do próprio Fócio33. 33
Ganeval cita, entre as provas Históricas contra a existência de Cristo, a linguagem de S. Paulo e daquele apóstolo Apolo chamado também Cresto, que nos Atos dos Apóstolos prega o cristianismo sem ser cristão. Provas graves, sem dúvida, por emanarem dos próprios documentos da fé, e de que falaremos, quando tratarmos da Bíblia.
32
Contra os luciferianos, cap. 8, in Estefânio, Dicionário Filosófico. 32
CAPÍTULO IV JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA
Não só a história permanece muda a respeito da pessoa de Cristo; não só se demonstrou que os autores históricos que dele falam foram nesse ponto falsificados; não só existem provas históricas contra a existência de Cristo, mas até se prova que a História nunca o conheceu, não podendo sequer conservar-nos a sua fisionomia humana. Cristo não é pessoa histórica; é Deus, somente Deus, mais ou menos antropomorfizado. A própria etimologia nos indica: Jesus significa Salvador, Cristo significa Ungido. Na própria Bíblia e no Antigo Testamento, o nome de Messias ou de Cristo aplica-se a certos reis pagãos: a Cyro, segundo Isaías (XLV, 1) e ao rei de Tyro, segundo Ezequiel (XXVIII, 14). Aplica-se, também, a todo o povo e a todos os seus membros, como se vê nos Salmos. Jesus Cristo quer dizer, pois: O que foi ungido Salvador. A própria etimologia demonstra que se não trata de uma pessoa histórica. Em que ano, nasceu Cristo? Difícil e tenebrosa questão!
Quase todos os que dela têm se ocupado concordam em que o seu nascimento não coincide com a era vulgar. Durante os primeiros seis séculos, depois da sua pretendida existência, um monge, Dionísio o Pequeno, não alude à era cristã, fixando o seu princípio, ou seja o nascimento de Cristo, no ano 753 da fundação de Roma, data julgada errada em pelo menos 6 anos, ainda que este erro não possa ser facilmente demonstrado. E é compreensível: nada é mais difícil de ser demonstrado do que aquilo que não existe. Calvisio e Moestlin contam até 132 variantes e Fabrício cerca de 200. Nada há que demonstre exatamente o dia do seu nascimento. Uns falam em 6 ou 10 de janeiro; outros dizem 19 ou 20 de abril, 20 ou 25 de março, e alguns optam por dias e meses inteiramente diversos. No Oriente celebrou-se o nascimento de 1o a 8 de janeiro e no Ocidente, no dia 6 do mesmo mês. João Crisóstomo, no ano 375, falava em 25 de dezembro como um uso introduzido no Oriente. 33
Em Roma, fixou-se o nascimento de Cristo em 25 de dezembro. Isto antes do ano 354, segundo se vê num calendário de Bucer, daquela época34. Estas mudanças de datas foram interpretadas no sentido de querer a Igreja colocar o nascimento do novo Deus em relação com os dos Deuses Salvadores e especialmente com o do Deus Invicto, ou seja Mitra, que em Roma se solenizava com grande pompa, espetáculos e luminárias no dia 25 de dezembro, tendo os cristãos conferido ao seu Cristo os atributos místicos daquele deus Sol, cuja ressurreição os pagãos celebravam. Esta hipótese não excluiria a existência de Cristo, mas deporia muito em favor da sua divinização. Não obstante, fica destruída pelo fato de estar em relação com outras tantas datas mitológicas: por exemplo, a festa do achado de Osíris, que tinha lugar a 6 de janeiro (Creuzer, Symbolik und Mithologie). Por aqui se vê que a formação do mito foi laboriosa e longa, pois a Igreja primitiva fez todo o possível para colocar o nascimento de Cristo além do solstício do inverno, a fim de afastar
toda a suspeita de um novo mito em nada diferente do dos Deuses Redentores que nasciam somente em 25 de dezembro. E não só se ignora o dia e ano em que Cristo nasceu, como também o lugar onde nasceu. Segundo algumas profecias, deviam ser em Nazaré, e, segundo outras, em Belém, visto que devia descender de Davi. O segundo e o quarto evangelistas nada dizem a tal respeito. O primeiro e o terceiro, se bem que falem dele, todavia contradizemse, visto que um faz de Belém a sua residência habitual, ao passo que o último, só por casualidade, numa narração de viagem inverossímil e impossível, o faz passar por Belém. Além disso, falam do assunto, relacionando-o com as profecias, o que lhes tira todo o interesse e seriedade histórica, convertendo-se em fontes suspeitas pela sua preocupação apologética que os desqualifica perante a crítica. Mas, a História, que não conhece o nascimento de Cristo, nem a data e nem o local, também desconhece em absoluto a sua vida, a sua morte e todas as demais circunstâncias que, segundo os Evangelhos, acompanharam uma e outra. Assim também a famosa de-
34
Bianchi-Giovini, Crítica do Evangelho, livro II. 34
relações.35 Enfim, não há uma única notícia acerca da sua pessoa física. Cristo foi alto ou baixo? Barbado ou imberbe? Moreno ou loiro? Feio ou formoso? Ninguém o disse, jamais, de um modo fixo e positivo, porque ninguém nunca o viu. Tertuliano o descreve como feio, conforme uma profecia de Isaías, estando nesse ponto de acordo com a Igreja do Oriente. Santo Agostinho, porém, e com ele a Igreja Latina, querem que Jesus tenha sido formoso. Estas duas opiniões foram a origem das diversas imagens de Cristo, barbado ou imberbe. As disputas
golação dos inocentes, a não menos famosa Estrela dos Magos e os próprios Magos, a morte trágica do Cristo e os terremotos e trevas que a acompanharam que, apesar de serem acontecimentos de excepcional importância, nem sequer foram notados pelos contemporâneos, nem ainda por aqueles que deviam ter sido testemunhas oculares dos mesmos fatos. O silêncio da história sobre tais acontecimentos supõe algum motivo mais grave e significativo que um simples desconhecimento histórico: supõe a invalidação da veracidade dos únicos livros que narram tais coisas, isto é, dos Evangelhos. Mas, há mais: Cristo, ainda que relatado pelos Evangelhos, nunca realizou qualquer ato pequeno ou grande, desses que todos os Homens fazem durante a vida. Por exemplo: não tomou parte na Política do seu país e do seu tempo; nem uma única vez foi importunado pela justiça apesar da sua vida de vagabundo; não levou a cabo ato ou sacrifício algum do culto. Nenhum dos homens históricos, como Pilatos, Hannaz, Caifaz e outros, que deviam ter tido relações com Jesus, deixou algum vestígio dessas pretendidas
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Anatole France, em sua pequena obra prima O Procurador da Judeia, imagina, ao tempo de Vitélio, um encontro às margens do golfo de Baia entre Lélio Lâmia, patrício romano exilado por Tibério, e Pôncio Pilatos. Lâmia perguntou a Pôncio, a quem conhecera em Jerusalém quando era procurador na Judeia, se ele se lembrava de um taumaturgo da Galileia chamado Jesus. “Pontius Pilatus fronça les sourcils et porta la main à son front comme quelqu'un qui cherche dans sa mémoire. Puis, après quelques instants de silence: Jésus? murmu-t-il, Jésus de Nazareth? Je ne me rappelle pas”... "Pôncio Pilatos franziu as sobrancelhas e levou a mão à fronte como alguém que busca em sua memória. Então, após alguns instantes de silêncio, murmurou: Jesus? Jesus de Nazaré? Não me recordo” ... 35
duraram até ao século XVII, depois do que, prevaleceu o modelo atual de Cristo com cabeleira espessa e barba farta. O sudário, que deveria ser um retrato da face de Cristo, pois foi estampado pelo contato direto com o seu rosto, representa-o de barba abundante. O sudário, porém, não é documento fidedigno, ou porque existem outros igualmente autênticos, ou porque os evangelistas não estão de acordo sobre este ponto, e mesmo porque há estátuas e afrescos de Cristo em que ele aparece, até fins do ano 326, completamente imberbe. Por isso, o escritor Moy, que tratou este assunto com muito interesse e consciência, conclui, e com razão: Desde que se queira tocar em alguma coisa real na vida de Jesus, não se encontra mais do que contradição e incoerência. Se porém, alguma coisa há de indiscutível é essa do aspecto físico de Jesus... Para nós, a ausência total de informações precisas sobre sua aparência é uma prova certa de que ninguém jamais o viu36. E, se ninguém o viu, claro está que ele nunca existiu. Tudo o que se pretende saber 36
de Cristo, e não é pouco, provém das fontes cristãs, isto é, dos Evangelhos que não só não nos fornecem prova alguma da existência histórica de Cristo, como até nos confirmam a sua não existência. Do tudo o que anteriormente se disse deduz-se que nada, absolutamente nada se sabe do Cristo Homem por meio da História, que é a única fonte incontestável em que devemos acreditar, sempre confirmada pelos monumentos arqueológicos. Neste ponto, os que escreveram sobre a Vida de Jesus fracassaram inteiramente. Apenas um ou dois, como Strauss e Renan, conseguiram salvar o seu nome, graças ao seu talento e engenho. Os cristólogos, ou não fizeram mais do que escrever romances, como Renan, ou se fizeram trabalhos sérios, foi apenas na parte crítica, como Strauss. Estes puderam salvar um fragmento, um traço da pessoa histórica de Cristo sem que, todavia, critério algum de demarcação os fizesse separar o real do fantástico, e sem perceberem que essa pretendida realidade tinha o mesmo aspecto evangélico de tudo quanto eles reconheceram antes como fantástico.
Moy, Adoradores do Sol. 36
pende da fé em coisas, das quais uma parte é absolutamente fictícia, a outra incerta e somente uma parte mínima verdadeira (e veremos ainda que essa parte mínima não existe) essa pretensão, dizia, é tão absurda que hoje nem vale a pena refutá-la37. Poucas páginas antes, o mesmo Strauss dizia: Há quem não o queira ouvir nem acreditar, mas todo aquele que se ocupar sincera e seriamente deste assunto saberá tão bem como nós que na História, poucos grandes homens há sobre os quais estejamos tão mal informados como a respeito de Jesus38. Ernesto Havet, confrontando a certeza que se tem da existência de Sócrates com a incerteza da existência de Cristo, diz: Sócrates é uma pessoa real, Cristo é um personagem ideal. Conhecemos Sócrates por Xenofonte e Platão, que o conheceram e escreveram sobre ele, na própria Atenas, entre os atenienses com os quais vivera, e logo após a sua morte. Ver-se-á pelo contrário, que todos os que falaram de Jesus não o conheceram (Havet poderia ter acrescentado que
Por conseguinte, não perderemos mais tempo com os cristólogos e nem com os críticos que, embora eliminando uma ou outra parte do Novo Testamento, pretendem conservar a pessoa histórica de Cristo. O nosso trabalho consistirá, pois, cingindo-nos à lógica, e indo até as últimas consequências, em refutar indiretamente o sistema ilógico dos cristólogos. Antes, porém, de prosseguir, recolhamos algumas das conclusões a que chegaram os críticos mais autorizados, que tentaram a impossível tarefa de escrever a vida de Jesus. Strauss, depois de ter dito que tudo pode admitir-se como provável na vida de Cristo – coisa impossível, como veremos – conclui sua obra colossal sobre a Vida de Jesus: dizendo – Mas esta verossimilhança, vizinha da certeza (tão pouco deixou de subsistente, da história de Jesus, e mesmo esse pouco se reduz a uma verossimilhança vizinha da certeza) não vai até muito longe... Poucas coisas são devidamente averiguadas e mesmo aquelas a que de preferência se aferra a ortodoxia – as milagrosas e sobre humanas – nunca aconteceram. A pretensão de que a salvação dos homens de-
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Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad. franc. de Nefftzer e Dolfuss, v. 2, p. 418 e 419. 38 Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad. franc., v. 2, p. 415 e 416. 37
nem mesmo estes foram conhecidos...), dirigindo-se a homens que ainda o conheciam menos; que escreveram meio século depois (esta versão é a ortodoxa, porém, nada garante que os Evangelhos não sejam muito posteriores à data fixada pela tradição) em países que não eram o seu e em língua que não era a sua. Esses não escreveram mais que uma lenda: Jesus é um personagem que não tem história, não tem biografia. Não se fala de seu aspecto nem se indica a sua idade. Sem dúvida que não era casado, porquanto pertença àqueles que se faziam eunucos para reino dos céus, o que não tiveram o cuidado de nos fazer saber em termos bem explícitos. Nada se diz acerca dos seus costumes nem dos detalhes da sua vida. Dele só se contam as suas aparições, em sua boca só se põem oráculos. Tudo o mais fica envolto em trevas, trevas que são precisamente a substância das coisas divinas... Numa palavra, os que os falam de Sócrates são testemunhas; os que nos falam de Jesus não o conhecem, imaginam-no39. Miron nos, diz, nada conhecemos da vida de Jesus. Os redato-
res dos Evangelhos e os primeiros autores eclesiásticos, recolhendo as tradições correntes na comunidade cristã, poderiam adquirir algum fragmento da verdade; porém, como assegurá-lo ante tantos elementos mitológicos e legendários? Uma vida de Jesus é, por conseguinte, impossível40 . Enfim, Renan, o próprio autor da Vida de Jesus, mesmo sob a impressão de fantasia do seu romance e depois de reconhecer que há bem pouco o que dizer da vida de Cristo, acrescenta: Jesus foi realmente um homem celestial e original, ou um sectário hebreu parecido com João Batista? Queremos acreditar que o personagem real oferece em si algum traço do personagem ideal. A nossa admiração não desapareceria, ainda mesmo quando a ciência nada pudesse dizer de certo e chegasse forçosamente às negações. Quem sabe se Jesus aparece à nossa vista disfarçado com humanas fraquezas somente porque o vemos de muito longe, através da névoa da lenda? Quem sabe se aparece na história como o único homem irrepreensível só porque faltam os
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Ernest Havet, Le Christianisme et ses origines, tom. I, p. 166-168.
Miron, Jésus réduit à sa juste valeur, Genève, 1864, p. XIII. 38
meios para o criticar? Ai de mim! Creio, com sinceridade que, se o tocássemos, como no caso de Sócrates, encontraríamos também a seus pés um pouco do lodo terrestre. Quem sabe se, neste caso, como nas demais criações do espírito humano, o admirável, o divino, o celestial não seriam reivindicados com iguais e legítimos direitos pela humanidade? Em geral, a boa crítica deve desconfiar dos indivíduos, evitando entregar-se a eles. Quem cria é a massa, porque a massa possui, num grau de espontaneidade eminentemente superior, os instintos morais da natureza humana. A beleza de Beatriz pertence a Dante e não a Beatriz; a beleza de Cristna corresponde ao gênio hindu e não a Cristna, assim como a beleza de Jesus e de Maria é obra do cristianismo e não de Jesus e de Maria41. Renan não precisava ter dado mais do que um passo para esclarecer a sua dúvida. De Cristo só se disse bem porque, como afirma Havet, não foi pessoa histórica, mas ideal. Mais adiante veremos que Renan foi bem sucedido ao revelar uma intuição admirável: atribuir o tipo do ho-
mem ideal, personificado em Cristo, à humanidade e não a Cristo, visto ser um ideal humano a criação e personificação do mesmo. Este ideal, porém, não se encontra na Bíblia, onde deveria estar, se Cristo tivesse existido. Pelo contrário, se Cristo aparece em nossa cultura, inocente e limpo de toda a mancha, não é por obra da Bíblia nem de Cristo, criação humana, impessoal, coletiva, mas pela fantasia da coletividade e do espírito dogmático dos que o criaram42. Das palavras de Renan deduzse, além disso, outra consequência, que ninguém ainda notou. Se a beleza de Cristo é criação do espírito humano, como claramente ele o deixa compreender, também a sua própria pessoa, pela mesma lógica e pelo mesmo critério, poderia ser, como efetivamente é, uma criação do espírito humano. Dide, no seu louvável livro acerca do fim das religiões, aten42
Aqueles que, tirando de Cristo a qualidade sobrenatural que nele é tudo, pretendem conservá-lo ainda como pessoa humana, fato absolutamente incompreensível, não só o expõem a um amesquinhamento histórico, como o levam a absorver pechas que o tornariam indigno. Nós, se lhe executamos os funerais, salvamo-lo ao menos da crítica humanista fazendo-o subir da terra ao céu.
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La liberté de discussion , tomo III, p. 468-469. 39
Jean Jaurés44. E assim, poderíamos continuar aduzindo citações da mesma natureza, até encher pelo menos todo um volume; porém, é melhor repetir com Virgílio: ab uno disce onmes – por umas coisas tiramos as outras (Em bom português: Uma coisa pucha outra). Não podemos,contudo, esquecer Labanca, cuja obra – Jesus Cristo – tem o mérito de reunir todos os resultados até agora obtidos pela crítica a propósito deste assunto. Labanca impugna a possibilidade de uma biografia científica de Jesus, quer pelas múltiplas questões contra a autenticidade de todos os pontos dos Evangelhos, quer pela evidência que se observa na falta de um fim qualquer biográfico, mas simplesmente de propaganda. A respeito da vida de Jesus, Labanca, omitindo o sobrenatural, observa que nada mais fica do que um resíduo pequeníssimo, quase reduzido a zero45.
do-se às tentativas de Channing e dos unitários que negam absolutamente todo o caráter sobrenatural a Cristo, mas se obstinam em considerá-lo como homem, exclama: Mas quem é este Cristo? De que Cristo se trata? Onde se encontra? Sucede com ele o mesmo que com todos os entes legendários: quanto mais se procura, menos se encontra. A tentativa de lançar à historia e arrancar das trevas da teologia uma personalidade que, até a idade de trinta anos, é absolutamente desconhecida, e que depois dessa idade só nos aparece em milagres, ora absurdos, ora ridículos, é uma pretensão tão difícil que, à priori, pode se dizer impossível43. E, mais adiante, o mesmo autor, falando da Vida de Jesus, do padre Didon, faz ver que este autor ortodoxo, para escrever a biografia de Jesus, se vê constrangido a preencher com hipóteses a enorme lacuna da vida do seu Deus, provocando, desse modo aos seus leitores esta reflexão: Então, quase nada se sabe sobre a vida de Cristo? Pergunta que também se fez um dos mais notáveis leitores do livro do padre Didon, o líder socialista francês, 43
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Jean Jaurès, L'action socialiste , p. 122. 45 Labanca queria se colocar entre os que clamaram pelo fracasso da interpretação lógica do mito de Strauss, mas, adverte Dide, a Vida de Jesus de Strauss, é e continua sendo o livro mais completo, o mais arguto e o mais consistente dentre todos os que foram publicados sobre o mesmo tema que, sem ele não existiria ... E ao mesmo
Dide, La fin des religions, p. 316. 40
Breve demonstraremos que nem mesmo esse resíduo pequeníssimo fica, e que, se alguma coisa resta de Cristo, mesmo na própria Bíblia, é a prova de que jamais existiu um homem que se chamasse Jesus Cristo. Entretanto, fechemos esta primeira parte, com a confissão dos próprios cristólogos: Cristo não é pessoa histórica46.
tempo, acrescentamos nós, a interpretação mitológica de Strauss será a única parte duradoura de sua obra. 46 O último momento da crítica alemã foi marcada pelo livro de Harnack: A Essência do Cristianismo. Mas, além dele não dizer nada de essencialmente novo, comete o erro de fazer uso da apologia e da teologia em seu trabalho, o que tira a objetividade histórica e racionalista necessárias numa obra séria de crítica. T. Armani, ocupando-se do livro de Harnac, publicou um opúsculo pela Cooperativa Tipográfica Parmense, no qual distingue com perspicácia, a pessoa de Cristo da sua personalidade preexistente nas profecias, o que seria suficiente para explicar o cristianismo sem a pessoa mais ou menos histórica de Cristo. 41
Segunda Parte
Cristo na Névoa
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*(As edições antigas citam “nebbia”; as mais recentes, “bibbia”.) 42
CAPÍTULO I A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA
Demonstramos que Cristo não é pessoa histórica, porque a História, a verdadeira, não o conhece nem dele fala. Vamos demonstrar, agora, que a própria Bíblia, única fonte que dele nos fala, nada prova a seu favor, antes confirma a nossa tese. Cristo nunca existiu! Para o nosso propósito, não é preciso refazer a crítica bíblica nem repetir os profundos e invencíveis argumentos de um Strauss e de toda a rica constelação de teólogos e de sábios, verdadeiros especialistas na matéria! Bastar-nos-á fazer coisa diversa de uma inútil repetição, demonstrar que o exame, mesmo superficial, da Bíblia ou só do Novo Testamento, que se ocupa de Jesus, não descobre a fisionomia de um homem, mas sim de um Deus. Não nos ocuparemos do Deus: esse abandonamos aos piedosos cuidados dos seus ministros católicos, que o crucificaram e nele martelam a toda a hora. Abandonamo-lo aos cuidados dos seus ministros protestantes que, para o salvarem das ruínas
que transtornaram o Olimpo, o despojam dos atributos divinos para o conservarem ao menos como homem – um homem quase divino que justifique o culto que lhe tributa a Humanidade. Iremos mais além do que os críticos que nos precederam, não porque tenhamos mais talentos, mas porque a lógica tem, antes que a crítica, as suas justas consequências e conclusões a fim de que a verdade triunfe e brilhe. E, se bem que seja pequeníssima a parte do Cristo histórico que quiseram salvar depois de terem destruído a rica cultura mitológica e lendária47, demonstraremos que Cristo não podia ter existido, porque a sua existência seria a negação da própria humanidade. Por conseguinte, dos Evange47
Para uns, Cristo foi pessoa histórica, mas ampliada até as proporções de lenda. Para outros, a lenda foi substituida por uma pessoa mitológica justaposta à pessoa histórica. Para nós, ele é inteiramente mítico. A propósito, lenda e mito são coisas diferentes. A lenda tem sempre um fundamento verdadeiro e humano, mas exagerado até ao inverossímil, ao sobrenatural. O mito, pelo contrário, não tem origem em fatos verdadeiros: é apenas criado pela imaginação humana. 43
lhos, dos Atos e das Epístolas dos Apóstolos escolheremos apenas o que nos for preciso para demonstrar a inconsistência histórica de Cristo. Deveríamos talvez começar por pesar a autoridade do Novo Testamento, para ver qual valor de prova tem a respeito das coisas que narra. Veremos porém que a Bíblia, antes de provar o que nos conta, a si própria deve provar. Não é nosso objetivo recompilar do princípio ao fim tudo quanto a crítica histórica tem estabelecido a respeito da autenticidade dos referidos livros sagrados do cristianismo. Quanto ao Antigo Testamento, basta observar que é tão pouco verídico e autorizado que tornou legítima a hipótese de ter sido alguns século anterior à época assinalada para o aparecimento do cristianismo. Maurice Vernès, numa antevisão genial e muito convincente assegura que aquilo que os livros do Antigo Testamento narram são, em geral, de feitura sacerdotal e profética, sem caráter algum histórico, mas apenas simbólico e teológico48. Se tal é o resultado da exegese bíblica, pelo que respeita ao An-
tigo Testamento, lógico é que tal consequência se aplique também ao Novo Testamento, pois este, do princípio ao fim se apoia naquele. Estamos convencidos de que a crítica chegará um dia a confirmar esta hipótese, porque é dentre todas, a mais racional. Por agora, basta saber que o edifício bíblico se fundamenta todo em terreno duvidoso, incerto e vago. De qualquer dos modos, a crítica já demonstrou o Novo Testamento não apresenta os requisitos necessários para autenticar a veracidade do que diz. Todos os livros do Novo Testamento são anônimos. Cingindo-nos aos Evangelhos, as palavras precedidas pelas frases consagradas, segundo Mateus, segundo Marcos, etc., não só não provam que foram realmente dos Apóstolos ali citados, mas até indicam que foram redigidos por outros. Ignora-se, em absoluto, a época precisa em que os Evangelhos foram escritos. A referência mais antiga que temos sobre este ponto é de Papias, bispo de Yerápolis, que se supunha martirizado no tempo de Marco Aurélio (161 - 180). O seu livro, porém, não
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Maurice Vernès, Les résultats de l'exégèse biblique, Paris, Leroux, 1890. 44
chegou até nós49 De seu testemunho relativo a Marcos e a Mateus, conserva-se apenas alguns fragmentos em Irineu e Eusébio, que demonstram não se referir aos atuais Evangelhos. Os testemunhos dos Evangelhos, que datam do III e IV século, que fé podem eles merecer? O que é indiscutível, é que nenhum dos Evangelhos foi escrito no tempo em que Jesus Cristo viveu; e que nunca se tiveram à mão os pretendidos originais, mas sim e apenas, cópias dos mesmos e cópias das cópias. Quem nos garante, pois, que tais originais tenham existido? Tudo são trevas nos dois primeiros séculos do cristianismo. Maury, em presença de uma tão grave circunstância, emite duas opiniões: a primeira diz que os cristãos primitivos escreveram muito pouco; a segunda, que os documentos escritos naquele tempo se perderam, por uma deplorável fatalidade. E supõe mais verossímil esta segunda hipótese. E nós também
E como sabemos que as seitas nasceram com o cristianismo, que todas elas se esforçavam para que prevalecessem os seus respectivos pontos de vista, e que, desde o século II, as obras abundam e com elas as falsificações mais audaciosas50, é lógico supor-se que todas aquelas que andaram errantes até se perderem, representaram opiniões contrárias às que mais tarde triunfaram no concílio de Niceia (325) e que, convertida em soberanas e despóticas, fizeram desaparecer os documentos contrários. De sorte que os documentos cristãos que prevaleceram em Niceia têm autoridade desde o IV e quando muito desde o III século. É evidente que, se não a prejudicassem, a Igreja não teria destruído os livros nos quais se consignavam as controvérsias das seitas primitivas e que tão bom serviço podiam prestar à crítica, quando já Celso no II século se vangloriava de haver refutado o cristianismo, servindose unicamente dos próprios livros cristãos. Em tudo vemos, neste ponto,
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Seria casualidade? Seria estratégia? Ganeval insiste tratar-se de uma das muitas fraudes habitualmente usadas na formação do cristianismo, de acordo com a sua hipótese a que Pápias aludiu referindo-se às origens egípcias do cristianismo
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Não é injúria que se faz, é confissão do próprio S. Jerônimo. Veja-se Peyrat na sua História Elementar E Crítica De Jesus. 45
o anonimato e a falta de certeza, principais características dos livros do Novo Testamento, que bastariam para lhes tirar toda a autoridade. Mas, há mais. Os Evangelhos atuais não foram escolhidos pela Igreja com critério que revelasse maior autoridade nesses que em outros muitos Evangelhos que então andavam em voga: destes foram escolhidos quatro ao acaso, diz Santo Irineu, porque quatro eram as regiões do mundo e quatro os ventos. E não é tudo. Antes do concílio de Niceia, a Igreja e os próprios Santos Padres serviam-se indiferentemente dos Evangelhos, que mais tarde foram declarados apócrifos, porque era igual a autoridade de todos. E mais ainda. A Igreja conservou muitas lendas que se encontram apenas nos Evangelhos apócrifos. No Novo Testamento achamse mesmo passagens que se referem a lendas contidas unicamente nos referidos Evangelhos apócrifos. Resumindo: anonimato, incerteza nos originais, seleção ao acaso e falta de critério na pretensa autenticidade conferida pela Igreja aos Evangelhos atu-
ais – eis aí ao que se reduz a autoridade do Novo Testamento! Como se tudo isto fosse pouco, outras circunstâncias a diminuem ainda mais. Entre elas, as numerosas alterações a que estiveram sujeitos os Evangelhos atuais, devido à inépcia dos copistas, e especialmente à falsificação das diversas seitas. Isto nos explica, como diz Baur, a manifesta contradição das doutrinas englobadas no Novo Testamento, em luta contínua entre si. Temos, por outro lado, a diversidade dos exemplares sobre os quais se fez a tradução do Novo Testamento em língua latina – diversidade tão grande e tão grave, que S. Jerônimo temia passar por falsário ao constituirse em árbitro para escolher entre a profusão de tantos e tão diversos exemplares dispersos pelo mundo. E declarava ter-se visto obrigado a acrescentar, trocar e corrigir.51 Juntemos ainda a demonstração feita já pela crítica, relativa à falta específica de autenticidade em não poucas partes do Novo Testamento. O último argumento contra a validade dos livros do Novo Tes51
Praef. In Evang. Ad Damas.
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tamento está no fato das irreparáveis contradições e das discordâncias numerosíssimas que ainda hoje contém, para não falar nos seus erros, na sua imoralidade e absurda puerilidade, apesar de a Igreja ter declarado que foram inspirados, palavra por palavra, pelo Espírito Santo! Isto posto, pode, acaso, uma pessoa séria, não obcecada pela fé, admitir, não já a autenticidade, mas ao menos a veracidade e seriedade do Novo Testamento como argumento de prova acerca do que ele narra? Stefanoni, contudo opina que a crítica os deve ter em conta, ao menos porque representam tradições dos tempos em que foram produzidos, porém admite que, sobre a base de tais livros não se pode reconstituir a vida nem a doutrina de Jesus sem se escreva um romance, enquanto declara que os escritos revelados não podem fazer fé na história, nem esta pode, em nossos dias, explicar com verdadeiro critério os primeiros rudimentos da origem da nossa idade. Observamos, pelo que a nós se refere, que em primeiro lugar, este não é mais que um dos muitos argumentos que concorrem em favor da nossa tese e, em segundo lugar, que nos achamos em face de uma
matéria tão excepcional que, assim como na crítica normal poderia optar-se pelo partido mais sensato, isto é, pela dúvida, na questão que debatemos é preciso ir até ao fundo, até a negação de tudo quanto afirmam e impõem como divino, livros que, tais como os Evangelhos, são destituídos do todo o fundamento. Além disso, os Evangelhos são um milagre contínuo, tanto na ordem física, como na ordem moral, e, tratando-se de coisa sobrenatural, parece lógico que concorram provas pelo menos tão certas autênticas como as que acompanham os fatos comuns. Porém, nada disso acontece e, em parte alguma deles surge a menor prova. E, ao passo que estes livros do Novo Testamento nada demonstram do que afirmam, na história profana não ha um único sinal, um único documento que apoie ou venha em auxílio dessas narrações evangélicas. Em tais circunstâncias, quem não verá que tudo quanto ali se conta é filho da imaginação, para não dizer da impostura sacerdotal, e que nada, absolutamente nada, pode salvar-se do que por tantos séculos nos impuseram por modo extraordinário e sem autoridade alguma? 47
Não censuremos os críticos positivos e os autores que nos precederam e nos desbravaram o terreno, por não terem chegado à conclusão a que nós chegamos: o preconceito duas vezes milenar que tem maltratado nossas mentes, arrastando-as para esse erro com tal força inercial que nem os mais destemidos puderam se libertar dele de um só golpe. Aqui, mais do que em nenhum outro campo, comprova-se que natura non facit saltus (a natureza não dá saltos). Não devemos, porém, negar à critica o direito de chegar a conclusões que não são mais do que consequências necessárias das próprias premissas. Portanto, se o fato de serem clandestinos os livros do Novo Testamento não pode bastar, por si só, para legitimar a conclusão da não existência de Cristo, a crítica deve, dada a natureza teológica e sobrenatural dos referidos livros, ter muita cautela no aceitar qualquer parte, por mínima que seja, do que neles se conta. Em todo o caso, o certo e indiscutível é que a Bíblia, em lugar de servir de prova do que relata, tem necessidade de comprovar-se a si própria. Esta afirmação está, de resto, reforçada
com a autoridade de Santo Agostinho, que, discutindo com Os Maniqueus, faz esta confissão capital: Não acreditaria nos Evangelhos se a isso não me visse obrigado pela autoridade da Igreja52.
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Citação da Peyrat, História E Crítica Elementar De Jesus, pag. 70, 3a edição, Paris, Levy Frères, 1864. 48
CAPÍTULO II JESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL
Os milagres de Cristo – eis a pedra de toque de todos os teólogos. Se Cristo existiu realmente, se foi pessoa humana, como se explicam esses milagres? Ainda que hoje os milagres, contanto que não sejam fenômenos psicológicos, e a maior parte dos de Cristo não o são nem podem sê-lo, se negam facilmente53. Ora, na vida de Jesus, tudo são milagres, a ponto de o não conhecermos senão através do milagre. A este respeito, os teólogos e críticos, especialmente os da sábia Alemanha, começaram a fazer distinção entre os três primeiros Evangelhos, chamados sinópticos, e o quarto, de João. Dizem que este último fala de Cristo, como Platão falou do Logos, deduzindo-se daí que a concepção de Cristo, segundo o quarto Evangelho, é puramente metafísica. De modo que se chegou a supor tal Evangelho como uma tentativa feita, muito tempo depois dos três primeiros, a fim
de salvar a divindade de Cristo, da crítica dos pagãos, divindade comprometida com as incongruências dos Evangelhos Sinópticos em certas passagens em que o elemento humano sobrepuja o divino. Assim, abandonaram à crítica o quarto Evangelho, agarrandose aos três primeiros para salvarem ao menos o homem. Esta tentativa não é mais do que uma concessão que, desde logo, se viu ser de mau gosto, pois que se encaminha a um fim mais teológico do que à primeira vista parecia. O protestantismo liberal e o racionalismo espiritualista viram a tempo o perigo da crítica naturalista, isto é, viram que, caídos os milagres, caída estava toda a concepção divina de Cristo, visto serem os milagres a única prova da sua existência. Eis como se explica a tentativa de despojar Cristo da divindade e dos milagres para poder salvá-lo como homem. Salvar a Cristo como homem é o mesmo que salvar o cristianismo, como disse Hartman, pois que, admitindo que Cristo haja realmente
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Gaetano Negri, com sua pena magistral, corta fundo na questão dos milagres. Veja sua Crise Religiosa, pp 77-83, Milão, Dumolard, 1878. 49
existido, o cristianismo deve proceder dele. E esta seria a prova do cristianismo, como cristianismo seria a prova de Cristo. Um salvaria o outro. Na verdade, que homem poderia criar toda uma nova civilização, a não ser que fosse, em todos os aspectos um homem extraordinário? Lançado o divino pela porta afora, ei-lo que entraria renovado pela janela a fim de envolver com a sua auréola a loira cabeça tradicional do Nazareno. Assim o compreendeu Renan que, no seu sentimentalismo místico e transcendental pôs a Bíblia à prova para dela arrancar uma biografia fantástica de Jesus, que é um verdadeiro romance, e ainda que ele tenha fugido da teologia, restituindo Cristo à humanidade, no fundo não faz mais do que prolongar a vida do cristianismo. De sorte que, em vez da excomunhão e do vitupério dos crentes, merecia ser colocado entre os Padres da Igreja. O sobrenatural e divino, que na Bíblia rodeia Jesus em meio dos milagres e que atualmente se reduzem a nada assim como Cristo e o Cristianismo, foram restituídos a Cristo pelo grande professor da Sourbonne, fazendo dele um
personagem real e histórico, de uma grandeza sobre-humana. Para Renan, Cristo não é já o Deus que desce à terra para se fazer homem, mas simplesmente um homem que da terra sobe ao céu para se endeusar. Em cada passagem do seu romance, aparece esta metamorfose do homem em Deus. As suas próprias palavras - chamado por Deus indicam claramente. Se Cristo, segundo Renan, alcança o ideal da humanidade, que importa que seja a consequência direta de Deus, à maneira de uma encarnação, ou que seja um enviado extraordinário de Deus, um homem tão elevado que até do céu abre as suas portas à humanidade ? Com as concepções dos teólogos, Cristo-Deus não podia viver nem reinar nesta idade positiva, mas Renan fez mais e melhor que todos eles: tentou salvar Cristo como homem. Mas salvar o homem, e um homem de tal natureza, era salvar cristianismo, era personalizar a adoração da Humanidade por um homem ideal, era manter o culto da humanidade pelo Cristo, quer descendo do céu à terra, quer subindo da terra ao céu . “Fazer do Cristo um sábio, fora de todas as proporções que 50
a história fornece, não será isso, de algum modo, substituir um milagre por outro?54” Camilie Mauclair, em uma correspondência de Paris para o jornal italiano Avanti, em 7 de setembro de 1903, escrevia o seguinte, que confirma a nossa tese: “Renan intentou prestar à Igreja um serviço capital. Creio que o teria pensado de antemão, e só pela estupidez crassa da mesma Igreja, esse serviço não foi agradecido ao escritor. Não considero a Vida de Jesus, de Renan, uma obra perfeita. Creio mesmo que não é grande coisa. Mas, seja corno for, é impossível concluir pela não revelação, e portanto, pela não divindade de um homem sublime. Qual foi, de resto, o intento do escritor? Destruir o dogma, é certo, mas conservar a moral evangélica, que ele considerava a melhor e a mais conforme com a evolução social de um século em que a ciência, segundo a expressão do seu amigo Berthelot, aspira à direção material e moral da sociedade. Qual era o serviço que Renan pretendia prestar à Igreja Católica? Convencê-la de que devia abandonar o dogma divino, con-
siderando-o um simples simbolismo, e separar os Testamentos, conservando só a moral cristã, para não andar mais em choque constantes com o espírito científico, apresentando-se, no mundo, como sendo a depositária de uma moral de justiça. Não se tratava de um suicídio da Igreja, nem de urna negação pública da revelação que equivalesse a uma bancarrota. Tratava-se apenas de uma transformação hábil, que permitiria a Igreja o esquivar-se a um conflito direto com, a ciência. Para esta inteligente transformação, Renan apresentava a fórmula conveniente, com a sua fina inteligência, astuta e insinuante. Estava embebido do catolicismo e era um conciliador, infinitamente diplomático entre o dogma e a crítica. Certamente, Renan esperava que a Igreja aceitasse esta solução elegante do problema de antinomia entre a ciência e a Fé. Toda a vida deplorou que não o quisessem compreender. Se a Igreja a tivesse o aceito, teria adquirido uma força enorme. Teria podido conservar as suas cerimônias, com um sorriso significativo, como quem lhes não desse senão o mero valor histórico e alegórico.
54
Vacherot, A Religião, pag. 100. 51
Teria podido aceitar a ciência e ficar com a moral publica.. E, assim, que grandeza para a moral de Cristo, de quem os modernos anarquistas se dizem continuadores, se se tivesse admitido realmente o seu martírio de homem, desembaraçando o catolicismo de toda o estorvo judaico do Antigo Testamento e de toda a insustentável metafísica dos livros sagrados. A Igreja inimiga de Cristo, a Igreja politiqueira não compreendeu a ocasião que Renan lhe oferecia. No seu empenho de repelir todos os escritores que podiam servi-la com fé e engenhosidade como Lammenais, Vil-liers de l'Isle-Adam, Ernesto Hello, Barbey d'Eurevilly e Verlaine, a Igreja repeliu também Renan. Preferiu as banais imagens policrômicas às obras primas da arte religiosa. A Vida de Jesus colocava-a em um dilema difícil, em urna escabrosa encruzilhada: a Igreja negou-se a caminhar pela senda do futuro encerrando-se no dogmatismo. Perdeu, assim, o último ensejo que teve de se modernizar. E. Gustave Tery, no Ação, de 6 de agosto de 1903, depois de citar várias passagens de Renan nas quais ele demonstra sua
grande veneração por Jesus, disse o seguinte: Para dizer a verdade, se a Igreja não tivesse cometido a imprudência de protestar com uma indignação ultrajante, e este foi um erro fatal, a piedosa exegese de Renan poderia servir prodigiosamente aos interesses do cristianismo. O vetusto poeta soube polir a velha imagem do Nazareno, escurecida e manchada por dezoito séculos de ignorância, erros e mentiras, além de livrá-la dos ritos e catecismos, das fórmulas e teologia. Ele lavou Jesus das injúrias e sujeiras católicas; E num lance genial, fez o homem sem diminui-lo, uma vez que já o tinha engrandecido como ente sobrenatural. Ao escrever A Vida de Jesus Renan devolveulhe a vida e o fez descer uma segunda vez sobre terra ... O protestantismo liberal, que pretendeu seguir o mesmo caminho, não faz obra de destruição, mas sim de conservação religiosa. Faz o mesmo que o aeronauta, quando arroja o lastro da nacela para que esta não caia e o arraste em sua queda. Só que esses salvadores do Cristo Homem não estão de acordo com a lógica, nem com a verdade histórica,. 52
Não estão com a lógica porque, como justamente observa Vacherot, a ultima fórmula à qual se agarrou o protestantismo liberal, e nós acrescentaremos o racionalismo espiritualista, é a supressão da personalidade histórica de Cristo e de tudo quanto dele se conhece, porque é a única que não pode ser demonstrada nem pela filosofia, nem pela crítica moderna55. Não estão de acordo com a verdade histórica, porque o Cristo da Bíblia, de toda a Bíblia, é uma pessoa inteiramente sobrenatural. O próprio Strauss, o maior dos críticos desta escola, vê-se obrigado a reconhecer que, a intrusão do princípio sobrenatural e a concepção dogmática do Cristo tornam impossível uma biografia de Jesus. Procurou eliminar todo o sobrenatural da vida de Jesus, sacrificando o Cristo dogmático para salvar o Cristo histórico, partindo do conceito de que, se os antigos encontraram digno do homem não considerar como estranho à humanidade tudo quanto é humano, a divisa dos modernos deve ser eliminar como estranho tudo o que não é humano e natural. 55
Não repetiu o erro de quebrar a cabeça e violentar o bom senso para explicar racionalmente os milagres de Cristo, irremediavelmente condenados pela ciência, limitando-se simplesmente a eliminá-los da parte histórica, considerando-os como mitos justapostos, não contrários, porém, à pessoa histórica de Cristo, para conservar, este à humanidade e à história. Isto, porém, era faltar abertamente à logica e à verdade histórica, como o próprio Strauss confessa, sem disso dar conta, ao deixar escapar da sua escrita estas palavras, que dizem mais do que um livro inteiro: - Sob este ponto de vista, pode se dizer que a ideia de uma Vida ou de uma Biografia de Jesus foi a fatalidade de toda a teologia moderna. Esta continha em gérmen todo o destino e a contradição que lhe pressagiava o resultado negativo. Ela era a ratoeira em que a teologia do nosso tempo tinha necessariamente de cair e perder-se56. Esta fatalidade da teologia devida, como vimos, à preocupação de salvar o cristianismo, à qual ele mesmo se mostrou obediente, não o salvou da contradição e do resultado negativo. Ain56
Obr. cit., pp. 382-383. 53
Op.cit., tom. I, p. 4.
da que a única base para falar de Cristo esteja nos Evangelhos e estes, além de serem uma base suspeita por emanarem da fé, quando não das imposturas sacerdotais, nos representam Cristo apenas como pessoa sobrenatural. Além disso, se vão despojar parte do Evangelho do seu caráter histórico para o converter em puro mito, porque não aplicar e estender então o mesmo critério à interpretação de todo o livro? Como distinguir o que deve se tomar ao pé da letra, do que deve ser tomado no sentido figurado? O real, nesse caso, torna-se insustentável, e o livro perde todo o seu valor histórico 57 porque, quem quer raciocinar sem preconceitos e de boa fé vê-se obrigado a reconhecer que os Evangelhos só nos mostram Cristo pelo sobrenatural. E, em Cristo, tudo é sobrenatural: milagres e potência milagrosa, a sua própria pessoa, a sua missão e ainda a natureza e o propósito dos livros que dele falam. Os Evangelhos sinópticos e o quarto Evangelho não são de natureza diferente senão no seu grau maior ou menor. Se nos si-
nópticos está mais afirmado o elemento humano de Cristo, este elemento não é menos fabuloso do que os seus milagres porque não se referem a um homem determinado mas ao Redentor, a um determinado Redentor. A pessoa de Cristo, nos primeiros, é a mesma que nos dão os livros hindus sagrados falando de Cristna e de Buda, os persas de Mitra, os egípcios de Horus e mais tarde de Serápis. Há sempre, em todos eles, um Redentor. A única diferença entre os Evangelhos sinópticos e o de João está em que a concepção de Cristo nos três primeiros é uma cópia mais genuína dos Deuses Redentores das religiões orientais, onde o elemento antropomorfo é mais engenhoso, enquanto que o quarto Evangelho se ressente da influência dogmática e metafísica do helenismo, antes do neoplatonismo alexandrino. Mas, tanto nos sinópticos corno em João, Cristo é sobrenatural, não já por seus milagres, mas também pela sua mesma essência. Assim como Cristo, também Maria, sua mãe é sobrenatural e está, portanto, fora da Humanidade, pois o concebeu de modo
57
Mirou, Jesus Reduzido Ao Seu Justo Valor, pag. 233. 54
milagroso e o deu à luz, ficando sempre virgem. Têm querido ver nos dogmas, relativos à mariolatria, superstições católicas. E de fato, assim é. O catolicismo - dizemos de uma vez para sempre - não fez mais do que desenvolver logicamente o Cristianismo, inclusos, claro está, os autos de fé. A virgindade de Maria não é tão estranha ao cristianismo como a sua concepção milagrosa. Maria é a mãe de um Deus, e a mãe de um Deus não pode ser manchada com as fraquezas da natureza humana. Não podia, portanto, ficar grávida de Cristo, por obra de um homem, assim como não podia morrer. As outras virgens, mães dos Deuses Redentores, tinham-na já precedido e prefigurado. O sobrenaturalismo de Maria confirma, por sua vez, o sobrenaturalismo do Cristo. Todos os Evangelhos dão a conhecer um Cristo, e esse Cristo é um Deus, mais antropomorfo nos sinópticos, menos antropomorfo em João. Não é licito escolher dos Evangelhos apenas a parte milagrosa, para reduzir à sua mais ínfima expressão a parte que contém os elementos humanos e biográficos.
Não! Em Cristo nada há de humano, excetuando o seu antropomorfismo, que não é próprio dele mas de todos os Deuses Redentores. Em todos os Evangelhos, Cristo não só faz milagres, mas ele próprio é um milagre. Nasce por milagre e morre para poder realizar o último milagre, ressuscitando. Veio ao mundo para salvar os homens: a sua missão é sobrenatural. Assim, e não de outra maneira, falam de Jesus os Evangelhos. Estes não só se não prestam à biografia, como reconhece Strauss, mas nem sequer à eliminação do elemento sobrenatural, que cerca a divina pessoa de Cristo. Cristo não é uma pessoa individual; é uma encarnação divina. Todos os seus feitos são dogmáticos. Todas as suas palavras tinham já sido escritas antes dele as pronunciar. Não podemos explicar humanamente o sobrenatural dos Evangelhos, coisa absolutamente impossível, nem eliminá-lo, coisa não menos impossível, sem eliminar os próprios Evangelhos, o próprio Cristo e até o cristianismo. Limitar-nos-emos, apenas, a reconhecer a existência deste so55
brenatural, inseparável da pessoa do Redentor. Isto basta para a nossa tese. Cristo pertence ao céu. E ao céu o restituímos. Se Cristo, porém, é pessoa absolutamente sobrenatural, se é Deus, claro está que não é, não foi, nem pode ser homem, evidentemente.
Não nos ocuparemos, pois, dos seus milagres, nem sequer para os enviar à mitologia. Faremos alguma coisa mais do que até agora se tem feito:demonstraremos que nada de humano se pode referir a Cristo. E demonstrá-lo-emos com, a própria Bíblia na mão.
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CAPÍTULO III A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE
O que deveria ter aberto os olhosaos mais precavidos, e demonstrar a todo o mundo a enorme mistificação de que a humanidade tem sido vítima, durante vinte séculos, julgando que Cristo realmente existiu, é a linguagem que emprega a Bíblia, falando do seu protagonista. A Bíblia, esta Bíblia, que é o único livro que fala de Cristo, pode pretender fazer-nos crer que Jesus tenha existido como homem, nem mais nem menos que os demais homens? De nenhum modo! A vida, o pensamento, a ação, a palavra, a doutrina de Cristo, não existem sequer nos Evangelhos, a não ser enquanto são preditos pelos profetas, previstos pelo Antigo Testamento e pregados pela lei antiga. Nem um gesto, nem um dito, nem um fato de Cristo se narra nos Evangelhos, que não estejam em relação com a Escritura. De maneira que as próprias palavras dos Evangelhos o dizem, com uma ingenuidade extremamente infantil que Cristo fez isto porque tal profeta o predisse; Cristo fez aquilo para que
se cumprisse a Escritura. A começar pelo seu nascimento milagroso. Os Evangelhos dizem-nos que tal acontecimento teve lugar em virtude das palavras do profeta (Mat. I, 22). Se nasce em Belém, é porque está também escrito pelo profeta (Mat. II, 5). Se foge para o Egito, é porque se cumprem as palavras do profeta: Chamei meu filho para o Egito. (Mat. II, 14). Se Herodes ordena a degolação dos inocentes, é para que se cumpram as palavras do profeta Jeremias (Mat. II, 17). Se volta à Galileia e vive em Nazaré, é para que se cumpram as profecias, segundo as quais devia chamar-se Nazareno: (Mat. II, 23). Se Jesus encontra em seu caminho a João Batista, é porque o profeta Isaías o havia predito. (Mat. III, 3). Se o diabo o tenta, e se Jesus vence a tentação, é porque as Escrituras o haviam predito. Do mesmo modo, o diálogo entre Satanás e Cristo se funda nas próprias palavras dos livros do 57
zendo: Como poderiam cumprirse as Escrituras, que dizem ser conveniente que assim suceda? (Mat. XXVI, 54). Jesus diz que não foi preso pelas multidões quando se sentava junto delas para ensinar no templo, a fim de se cumprirem as Escrituras (Mat. XXVI, 56). Se Judas o atraiçoa e recebe em paga trinta dinheiros, é para que se cumpra o que disse o profeta (Mat. XXVII, 9). Se, após crucificado, os soldados dividem a túnica, isso sucede em cumprimento do que predissera o profeta (Mat. XXVII, 35). Se manda comprar uma espada, é para que se cumpra também a profecia, segundo a qual seria confundido com os malfeitores (Luc. XXII, 36, 37). Cingindo-nos aos seus Apóstolos, Jesus demonstra que tudo o que lhe sucede é por que convém que todas as coisas escritas acerca dele na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos sejam cumpridas. E acrescenta: Como também era mister que o Cristo padecesse e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia. (Luc. XXIV, 44, 46) . Até na Cruz, se Jesus pede de beber, é para que se cumpra a
Antigo Testamento (Mat. IV, I10). Se Jesus vai a Cafarnaum, é para cumprir uma profecia de Isaías (Mat. IV, 14). Se prega que não façamos aos outros o que não queremos que nos façam , é porque assim esta escrito na lei e nos profetas (Mat. IV, 12). Se cura os endemoninhados, é em cumprimento do que lhe diz o profeta Isaías (Mat. VII, 17). Se fala de João Batista, é para dizer que é aquele de quem está escrito: É Elias que devia vir (Mat. XI, 10, 14) . Se cura as multidões e lhes proíbe que o divulguem, cumpre-se o que predisse o profeta Isaías (Mat. XII, 17). Se tem de permanecer sepultado três dias, é porque Jonas esteve três dias no ventre da baleia (Mat. XII, 40). Se fala em forma de parábolas para não ser compreendido, cumpre-se a profecia de Isaías (Mat. XIII, 14). Se manda buscar um jumento e um jumentinho, fá-lo para cumprir o que lhe, diz o profeta (Mat. XXI, 4). Quando Jesus está a ponto de ser preso no horto de Getsemani, recusa-se a que o defendam, di58
Escritura (João. XIX, 27) . E, bebido que foi o vinagre, disse: Tudo se cumpriu. E só então, quando viu que nele se tinha realizado a Escritura, inclinou a cabeça e entregou o espírito (João. XIX, 30). Enfim, se não lhe quebram as pernas na mesma cruz, e se lhe abrem o peito com a lança, é, disse João, em cumprimento da Escritura (João. XIX, 32 – 37). E basta de exemplos, que não são os únicos em que os Evangelhos obrigam a fazer e dizer a Cristo apenas o que estava escrito no Antigo Testamento. Mais adiante, demonstraremos que tudo é símbolo em Cristo, ainda mesmo que os Evangelhos o não digam explicitamente, e ainda que não citem as respectivas passagens do Antigo Testamento, e que não veio ao mundo e não procedeu senão para executar o plano teológico preconcebido no Antigo Testamento. Neste ponto da nossa obra, apenas quisemos deduzir da linguagem dos Evangelistas a confissão de uma circunstância capitalíssima: Cristo não disse nem foi ele próprio mais do que aquilo mesmo que Escritura ordenou que fosse e que fizesse. Não nos dirá nada esta cir-
cunstância essencialíssima ? Não significará isto, claramente, que Cristo nunca existiu, tendo-o inventado os Evangelhos para cumprimento das Escrituras? Pode-se volver e revolver a questão, mas a única conclusão plausível a que se chega é a que nós acabamos de indicar. Despojai Cristo da sua realidade histórica, e tereis explicada a questão das profecias: deixai-a subsistente, e a questão das profecias será humanamente insolúvel. Pois bem: como hoje é simplesmente absurdo pensar que possam existir profetas e profecias e que possam realizar-se ponto por ponto, minuciosamente e a distância como devia ter ocorrido com Cristo, havemos de concluir que: ou as profecias foram inventadas, ou Cristo foi inventado para o relacionarem com as profecias. Estando a primeira hipótese desmentida pela história e pela circunstância indeclinável de que, em tal caso, as profecias e a sua realização não tivessem deixado nada a desejar, resta-nos somente a segunda, a de que Cristo foi inventado para a realização em si das profecias, hipó59
tese que resolve toda a dificuldade inerente a tal assunto, porque nos fornece a chave para explicar o fato de tantas profecias serem sofísticas a fim de poderem aplicar-se a Jesus, pois não estavam devidamente relacionadas para se conciliarem numa só pessoa. A mesma hipótese explica o fato, que tantos trabalhos custou aos críticos, das faltas e inexatidões de não poucas profecias, cuja realização os Evangelhos anunciaram pois pode acontecer que existissem ao princípio e logo fossem extraviadas nas numerosas vicissitudes da Bíblia, ou antes fossem alteradas depois. Fora disso, bastaria que houvesse sido essa a crença dos evangelistas, quer dizer, que tivessem acreditado que as referidas profecias, imaginárias ou exatas, existiram e foram tal qual eles pensavam, para justificar o seu trabalho de adaptação a Cristo de tão decantadas profecias. Esta solução elimina também radicalmente uma série de outros absurdos encontrados na Bíblia, devido a este plano armado para aplicar Cristo às profecias, porque demonstra que a causa de tantas discordâncias e de tantos contrassensos se fundamenta no
fato dos evangelistas, preocupados em escrever acerca de um Cristo imaginário, estudarem somente a forma de o pôr em harmonia com as exigências dogmáticas do assunto, descuidando de adaptá-lo à circunstância da narração e do meio ambiente. Os positivistas e os racionalistas, não podendo aceitar a pretensão teológica de que Cristo fosse Deus, e que, portanto, a sua vida tivesse sido profetizada por homens inspirados pela vontade divina, mas, não chegando a negar a existência humana de Cristo, esbarravam ainda com o insuperável obstáculo de explicar esse Jesus-Homem, sem o concurso das causas sobrenaturais que negavam. Ante este problema tão heterogêneo, tiveram de submeter os seus neurônios a verdadeiras torturas, como aconteceu com Míron, ou de realizar um tours de force, como aconteceu com Larroque, ou ainda de serem ilógicos, como aconteceu com Salvador, Strauss e Havet, explicando complicadamente uma parte do problema sob o ponto de vista da concepção simbólica e dogmática, e abandonando a outra ao caos em que se envolveu a pessoa humana de Cristo. Não se atrevendo a saltar o 60
fosso, caíram nos contrassensos da própria Bíblia ao passar da teologia para o naturalismo,. Por exemplo: Renan vê nas profecias de Isaías um raio do olhar de Jesus58 e pensa que este se julgava o espelho no qual todo o espírito profético de Israel tinha lido o futuro59. Só em um ponto adverte que nas últimas palavras de Jesus se nota a intenção de manifestar claramente o cumprimento das profecias60. Nem vale a pena discutir a hipótese de que Cristo acomodasse a sua própria vida às prédicas e se exaltasse a ponto de realizar o profetismo hebraico. Não só concorre contra semelhante hipótese o fato, já por outros notado, de que, para proceder assim, Cristo deveria ter vivido com o Antigo Testamento na mão, mas também a circunstância da sua adaptação às profecias começar com o seu nascimento e não acabar senão com a sua morte. Fica excluído completamente neste caso, qualquer fenômeno de autossugestão, tanto mais que se trata de uma vida em absoluto milagrosa, o que nunca deverá
se esquecer. Salvador combate a opinião dos filósofos, que fazem de Cristo um reformador religioso e social, dizendo que, para que esta opinião fosse fundada, seria preciso que a sua morte fosse unia consequência involuntário e quase acidental dos seus esforços, enquanto que esta formava, pelo contrário, o seu princípio e o seu fim confessados, os quais ele procurava com ardor, em um interesse dogmático e místico. Salvador esteve aqui verdadeiramente inspirado e poderia ter conhecido toda a verdade se não perdesse o caminho que seguia, terminando no lugar comum de que a vontade de morrer, firme em Cristo, provinha de uma ordem de convicções e de um entusiasmo conforme com as ideias da sua época e com a interpretação oriental dos livros sagrados dos hebreus. Já vimos contra que obstáculos vão bater este lugar comum. Mas permanece de pé a preciosa confissão de Salvador, que segue imediatamente, depois da passagem citada, e onde diz que, a não ser pela morte que desejava, nada ficaria de Cristo, porque nem os seus dogmas nem a sua moral são frutos da sua inspiração.
58
Vita di Gesù , vol. I, c. IV, trad. it. di De Boni, Milano, Daelli, 1863. 59 Id., vol. I, c. XVI. 60 Id., vol. IV, c. XXV. 61
Não há termo médio: ou aceitamos a revelação, em conjunto, ou repelimos a natureza humana do Cristo, entregando-o inteiramente à teologia. Esta está no seu papel, quando diz que as profecias provam a existência de Cristo, o qual se converte, em virtude desta afirmativa, em uma personificação mais ou menos completa daquelas. Assim o compreendeu Scherer sem que por isso chegasse à consequência lógica que o fato supõe, quando escreve que Jesus nem é um filósofo, nem o fundador de uma nova religião, mas sim o Messias; que a chave da vida de Jesus é o cumprimento das profecias messiânicas; e que esta ideia messiânica é o centro dos fatos evangélicos, a razão de ser histórica de Jesus61. Cristo, portanto, não veio ao mundo senão para cumprir as profecias, e, como isto não é uma ação humana, equivale a dizer que Cristo veio ao mundo apenas como um símbolo, isto é, que Cristo nunca existiu. Hoje não precisamos mais negar que o Antigo Testamento revela o Cristo. O sobrenatural já nos não preocupa.
Este testemunho da missão de Cristo com relação às profecias é a própria razão de ser de Cristo pois, caso contrário, este já não seria o Messias que os crentes pretendem, por não corresponder exatamente aos vaticínios. Realmente, esta maneira de ser de Jesus - assim o diz Dide, com exata ponderação dos textos, ainda que não chegue a consequências lógicas - torna o mesmo Jesus e os seus apóstolos indiferentes á Humanidade. Quando lemos com imparcial atenção o Novo Testamento, não podemos deixar de reconhecer que o sistema narrativo dos escritores apostólicos exclui todo o interesse e toda a emoção. A vida de Jesus e as aventuras dos Apóstolos desenrolam-se como se fossem uma cena teatral, em que tudo está apontado, previsto e indicado, antecipadamente. Não é a Humanidade vivendo, pensando, sofrendo, agitando-se. Se Cristo e os seus realizam isto ou aquilo, executam este ou aquele ato, é porque era preciso que se cumprisse esta ou aquela profecia62. Por isso, temos de escolher, definitivamente: Ou Cristo existiu, e então é Deus, ou não é
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Mélanges d'histoire religieuse. La vie de Jésus, pp. 99 e seg. (in Vacherot, La Religion ).
62
A. Dide, La fin des religions, p. 370, Paris, Flammarion, 1902 62
Deus, e então nunca existiu, porque o Cristo da Bíblia é o único Cristo conhecido, e porque na própria Bíblia ele não é mais do que um personagem sobrenatural e simbólico. Impõe-nos a lógica que o aceitemos tal qual ele é na Bíblia, isto é, como Deus, a não ser que se ponha de parte, sem mais considerações, a sua pretendida realidade histórica, da qual não se escapa. Quando se reconhece que Jesus era o Messias e que não tem nenhum outro caráter, não se pode humanizá-lo conservando a humanidade e deixando que a divindade se volatilize: um Messias profetizado e um Deus Redentor não é e não pode ser um homem. Não é licito dividir-lhe a sua natureza em divina e humana e reduzir à expressão mais simples a sua figura humana para o salvar do exílio a que os Deuses, hoje mais do que nunca, estão confinados, segundo afirmou o grande profetizador de Epicuro. Do contrário, violentaríamos o bom senso, atentando contra ele, e atormentaríamos nossa mente sem resultado algum, por maior que fosse o valor de quem tal fizesse, como sucedeu com Strauss. E nós, atacando cada vez de mais perto os Evange-
lhos, em breve veremos que, do naufrágio de Cristo nada de humano pôde se salvar. Veremos que não é possível escrever a biografia de Cristo, que ele não pode ter biografia, já que não teve existência humana. É claro que não seguiremos passo a passo a narração bíblica e nem a linha dos doutos especialistas na matéria. Reuniremos alguns dos elementos essenciais que concorrem para que qualquer existência humana seja real e vital, elementos esses que faltam a Cristo de modo tão contraditório e absurdo que excluem toda a possibilidade de ter existido um homem em tais condições pela contradição que não o permite. No entanto, completaremos a demonstração de que Cristo está na Bíblia, apesar desta o não dizer explicitamente, apenas como sendo um personagem puramente e completamente simbólico, elaborado com os dados subministrados pelo Antigo Testamento: verdadeiro ídolo, combinação de materiais preexistentes nas tradições e nos textos religiosos do hebraísmo, modificado e alimentado com a concepção mitológica do Oriente como se fora um mosaico. 63
CAPÍTULO IV CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO TESTAMENTO
Do exame bíblico que empreendemos, resultará que Cristo é um mito, como já resulta, implicitamente, a demonstração de que é estranho à história. Este resultado, porém, mais evidente se torna na parte que consagraremos à mitologia. Aqui em pleno campo bíblico, provaremos que o mito Cristo foi adaptado, mais ou menos felizmente, das alegorias do Antigo Testamento. O próprio Evangelho, como acabamos de ver no capítulo precedente, oferece-nos, a esse respeito, uma prova evidente, com a linguagem simbólica que emprega para pôr em relação as palavras e os feitos de Cristo com o Antigo Testamento. Vamos ver agora que, mesmo que os Evangelhos não digam com toda a clareza, nada há neles, e portanto em Cristo, que não seja decalcado do Antigo Testamento. Até a denominação de Evangelhos é tirada de lá, precisamente de uma palavra do profeta Isaías, traduzida em grego63. A sua significação de boa nova é
também simbólica, porque alude à realização das esperanças do Israel. O numero dos livros do Novo Testamento, junto ao dos livros do Antigo forma segundo afirma seriamente Cantu, sem atentar à consequência, o número místico de setenta e dois64. Jesus nasce de uma virgem, porque este caso se encontra já em Isaías (VII, 14), e é prenunciado por Isaac, José e Sansão. O anjo Gabriel é já conhecido no Antigo Testamento. Cristo nasce em Belém, porque isso foi profetizado por Miqueias (V, 2) em virtude de ter sido aquela terra o berço de Davi. As genealogias atribuídas a Jesus são inteiramente simbólicas. Não reproduziremos aqui a demonstração de Strauss, mas para ela remetemos os leitores que queiram se informar. (Nova Vida de Jesus, vol. II, pag. 8 e seg.). O anjo, que aparece aos pastores, anunciando-lhes o nascimento do Salvador é tirado de
63
64
Salvador, op. cit., lib. II. 64
C. Cantu Hist. Univ. Ep. VI, cap. 33.
Isaías (IX, 2 e VII, 14). A divina sabedoria, o Verbo divino que se encarna em Jesus, encontra-se nos Provérbios e em Siraco. As próprias palavras dos Evangelhos são tiradas destes livros do Antigo Testamento (Strauss, obr. cit. II. 53 e seg.) A estrela, que dirige os Reis Magos, vindos para adorar Jesus, corresponde à estrela alegórica, mencionada nos livros de Moisés (Num. XXIV, 17.) Os Reis ou Magos que vêm da Ásia, trazendo ouro e incenso, a glorificar o Eterno, encontramse também em Isaías (LX, 1-6). A degolação dos inocentes, absolutamente fantástica, foi imaginada para justificar a fuga da Sagrada Família para o Egito, lendo-se no profeta Oseias que o menino Jesus devia ser chamado por Deus ao Egito (XI-1) e por outro lado, a fim de que se verificasse a profecia de Jeremias sobre o pranto de Raquel, pelo assassínio de seus filhos (Jer. XXX11-15, 16, 4, 10, 28). A presença de Jesus no templo, a cena de Simeão e Ana e a circuncisão têm por objeto demonstrar o cumprimento das leis de Jeová em Cristo e a profecia de Simeão, segundo a qual a oposição dos hebreus contra
Cristo fazia parte do plano divino (Strauss, ob. cit. 84, 85): Jesus de volta do Egito, habitou em Nazaré, para que pudesse chamar-se o Nazareno, conforme tinham vaticinado os profetas. A cena do menino Jesus, disputando no templo com os doutores, foi criada por analogia com Moisés e Samuel, assim como o restante da adolescência de Jesus. A propósito das palavras deste a sua mãe, ditadas pelo coração, Strauss observa outra reminiscência do Antigo Testamento, como a do cap. II, v. 19 de Lucas; o mesmo fizera Jacob com José (Strauss, obr. cit. Pag. 90 e seg.). João Batista foi criado segundo as profecias de Malaquias (III,1,5, 18 e IV, 2, 5) e de Isaías (XL, 1,10, 27, 31 e XLI, 1). A anunciação e o nascimento do precursor, João Batista, foi copiado do Antigo Testamento (Strauss, obr. cit. vol. II pag. 43). A natureza simbólica de Cristo provém também de João Batista, que o apresenta como um cordeiro que assume os pecados do mundo65 e afirma que Jesus, vindo depois dele, existia já antes dele (João, I, 29, 26, 15, 30). Já vimos que a história das 65
Isaia LIII, 4 e seg.
65
tentações de Jesus remete explicitamente ao Antigo Testamento. Também o número de dias (40), que Jesus passou no deserto era tradicional e sagrado entre os hebreus. Assim: o dilúvio durou 40 dias; empregaram-se 40 dias para embalsamar o corpo de Jacob; Moisés viveu 40 anos na corte de Faraó, 40 anos no deserto de Madian e 40 anos governou o povo de Israel; os ninivitas jejuaram 40 dias e os hebreus andaram 40 anos errantes no deserto; Moisés e Elias tinham jejuado 40 dias. Além disso, Elias tinha viajado pelo espaço e o Espírito transportara Ezequiel de um ponto para outro. Temos, portanto, que à maneira deles, obrigaram Jesus a jejuar 40 dias; como a Abraão, fizeram-no tentar no deserto e, como a Elias e a Ezequiel, obrigaram-no a andar pelo espaço. Abandonado Jesus em Nazaré, ei-lo que parte para Cafarnaum, a fim de cumprir o anunciado pelo profeta (Mat. IV, 13, 14) e (Luc. IV, 23, 31). Cafarnaum ficava na Galileia, cuja região o evangelista descreve com as mesmas palavras do profeta Isaías: Como um país que jazia nas trevas (Mat. IV, 16). Quando os Evangelistas nos
dizem que Jesus escolheu doze apóstolos não fazem mais do que cumprir à risca o consignado no livro dos Números (I, 4,16), correspondendo os doze apóstolos às cabeças das doze tribos. E quando atribuem aos doze apóstolos outros 72 discípulos, não fazem senão copiar a seleção de 72 homens, feita por Moisés entre os anciãos do povo. O modo por que os apóstolos seguem Jesus imediatamente e sem o conhecerem é por demais simbólico, e a sua significação explica-se desde logo. O mesmo numero de 153 peixes, tirados milagrosamente da água pelos apóstolos, pode entender-se, segundo S. Jerônimo, em relação com as 153 espécies de peixes que então conhecidas, e significa, segundo este padre da Igreja, que todas as classes de homens são pescados para a sua salvação66. O nome de Pedro, dado ao chefe dos Apóstolos, simbolizava no hebraísmo a fé inabalável e indestrutível, tanto que Moisés havia feito da pedra o sinal alegórico de Jeová67. A mesma ideia simbólica, re66
Com. in Ezequiel, 47. Deut. XXXII, 4, 15, 18, 30, 31. Samuel e II Reis XXII, 2, 3; XXIII, 3. 67
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presentada pelas chaves confiadas ao chefe dos Apóstolos, se encontra no Antigo Testamento68. Finalmente, a companhia de pessoas de má fama que rodeiam Jesus para escândalo dos Escribas e Fariseus, (Marc. II, 16) foi copiada da figura de Davi que tinha se colocado à frente de uma turba de 400 desgraçados (I Reis, cap. XXII, 2). Os milagres de Cristo fazem parte do programa profético: Então, serão abertos os olhos aos cegos e abertos os ouvidos dos surdo. Então, o coxo 69 saltará como um cervo e a língua dos mudos cantará 70. É verdade que em Isaías não figuram as narrações dos leprosos nem as ressurreições dos mortos, mas esses dois gêneros de milagres acham-se nas lendas dos profetas. Eliseu curara um leproso, e junto com Elias, ressuscitam um morto cada um71. O
mesmo Jesus cita a cura de Naamã, realizada por Eliseu (Lucas IV, 27). A cura da mão dissecada é tirada literalmente do Antigo Testamento (Livro 1 dos Reis, XIII, 4 e seg.). A piscina de Betesda, que a História não conhece, com os seus cinco pórticos, simboliza os cinco livros de Moisés. A cena do endemoninhado que, não podendo ser curado pelos Discípulos, melhora nas mãos de Jesus72, é igual a cena de Geazi, servo de Eliseu,73 que não tinha sabido fazer voltar à vida o filho de Sumanita, ressuscitando-o o próprio Elias. Em ambos estes casos, Strauss faz notar a diferença de poder, que existia entre os Discípulos e o Mestre. A cura do filho do Centurião, realizada por Jesus à distância74, é parecida com a cura de Naamã, operada também de longe por Eliseu: o Messias não podia ser inferior em poder ao profeta do
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.. “et dabo clavem domus David super humerum ejus: et aperiet et non erit qui claudiat, et claudet, et non erit qui aperiet” (Isaia XXII, 22). Porei sobre o seu ombro a chave da casa de Davi; ele a abrirá e ninguém a fechará, ele a fechará e ninguém a abrirá. 69 A figura dos coxos que saltam, repetese literalmente nos Atos dos Apóstolos (III, 7 e seg.) 70 Isaia XXXV, 5 ss. 71 I dos Reis, XVII, 17; II dos Reis, IV,
10 e seg. As palavras de Jesus após ressuscitar o rapaz de Nain, são reprodução textual do Antigo Testamento, quando Elias ressuscita o filho da viúva de Sareta. 72 Mat. XVII, 14-29; Mar. IX, 14-29; Luca XI, 37-43. 73 II Re IV, 8 ss. 29-37. 74 Mat. VIII, 5-13; Luca VII, 1-40; Giov. IV, 46-54. 67
Antigo Testamento. Jesus acalmando os ventos e as ondas é uma imitação de Jeová ordenando ao Mar Vermelho que se afaste para dar passagem ao Povo Escolhido. Melhor ainda: Hengstenberg achou uma outra figura idêntica à de Jesus que também acalma a tempestade para salvar os Apóstolos que corriam perigo na sua barca. Trata-se do Salmo CVII (v. 25, 28-30). Jesus que caminha sobre as águas imita Jeová, que no Antigo Testamento está poeticamente representado, viajando sobre elas75. Pedro, que pretendendo andar sobre as águas está prestes a se afogar, merecendo de Cristo o famoso Homem de pouca fé, porque duvidaste? - sendo por ele salvo, revela a mais perfeita semelhança com outro episódio do Antigo Testamento onde se diz, na Epístola aos Hebreus (XI, 29), que se os israelitas passaram o Mar Vermelho, foi por terem fé, ao passo que os egípcios se afogaram. O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes é decalcado igualmente sobre o Antigo Testamento por uma parte, quando se refere ao maná que os he-
breus recebem no deserto e por outra, no que diz respeito aos milagres, perfeitamente análogos, de Elias e de Eliseu76. O milagre da transformação da água em vinho tem seus precedentes no Antigo Testamento: Moisés fizera brotar água da rocha e transformara em sangue toda a água do Egito. Se em Jesus a água se muda em vinho e não em sangue, é porque no Antigo Testamento aquele é o símbolo deste e ainda do próprio sangue expiatório do Messias. A maldição da figueira que não produzia frutos precoces é tirada de Oséas77 e de Miqueias. A cena da Samaritana, junto do poço, é uma imitação poética das cenas de Jacó e Raquel, de Eleazar e Rebeca na fonte. Nem mesmo a cena dos vendilhões expulsos do templo é original: Jesus não faz senão transportar duas sentenças do Antigo Testamento, uma de Jeremias (VII, 11) que diz que o templo não se há de converter em covil de bandidos, e outra de Isaías (LVI, 7) em que se chama ao templo casa de oração. A cena da transfiguração é co76
Salmo CVII, 4-9; I Re XVII, 7 ss.; II Re XXXVIII, 42-44. 77 IX, 10.
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Isaia XLIII, 16; Salmos LXXVII, 20; Giob. IX, 8. 68
piada do Antigo Testamento. Moisés subira ao Monte Sinai, levando consigo, além dos 72 anciãos, Aarão, Nadab e Abim; uma nuvem cobre a montanha durante seis dias, e por fim, no sétimo, Jeová aparece em meio da nuvem e chama Moisés, a quem chegam os resplendores da divina auréola. De volta da montanha, encontra o povo adorando o bezerro de ouro e encolerizase. Jesus sobe também a uma montanha anônima em companhia de três pessoas, que são por assim dizer, o comitê diretor dos Apóstolos; lá torna- se resplandecente como Moisés; a mesma nuvem luminosa entra em cena. Descendo do monte Jesus encontra o jovem possesso, que os seus discípulos não puderam curar, e o seu primeiro sentimento é de cólera pela impotência contra o demônio. Com Jesus no monte, comparam-se Moisés e Elias: o primeiro para tornar mais evidente a relação que vai do primeiro ao segundo salvador; o segundo em virtude da profecia de Malaquias, segundo a qual Elias deveria voltar em pessoa antes do Messias, uma vez que a sua substituição por João Batista deixaria uma lacuna. . Tanto no Sinai como na mon-
tanha da transfiguração, quem fala é a nuvem; no Êxodo é o mandato de Moisés; no Evangelho, segundo o sentido modificado, é testemunho de Deus aos discípulos acerca de Jesus. Mais ainda: estas palavras estão copiadas do Antigo Testamento,78 acabando a frase com o mesmo vocábulo que serve de conclusão à passagem do Deuteronômio, onde o legislador promete a Israel um profeta semelhante a si próprio, dizendo-lhe: Escutaio79. A entrada de Jesus em Jerusalém foi adaptada às profecias de Isaías80 e de Zacarias81. E para que a adaptação a este último fosse literal, o evangelista fez viajar Jesus ao mesmo tempo sobre uma burra e um jumentinho, no curto espaço que vai de Betfagia a Jerusalém. Tendo sido mal interpretada a passagem do profeta e havendo-se repetido duas vezes a palavra jumento, o 78
Is. XLII, 1; Salmo II, 7. Matt. XVII, 5. 80 LXII, 11. 81 Zac. IX, 9. - Salvador, citando textualmente uma passagem de Zacarias na qual a entrada de Cristo em Jerusalém é antecipada e minuciosamente descrita, astutamente observa que todas as imagens relativas à sua entrada em Jerusalém não custaram nada para a imaginação da tão grande e rica nova escola (a cristã). 79
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as85. Quando porém, lhe perguntam se ele é o Messias, já se não cala, proclamando que o é, para que se realize aqui o Antigo Testamento86. Os ultrajes e maus tratos infligidos a Jesus, foram previsto expressamente por Isaías87 Os trinta dinheiros da traição de Judas e o seu gesto de atirálos fora no Templo são tomados à letra do oráculo de Zacarias88. A compra do campo de sangue com os dinheiros da traição, o remorso e o arrependimento de Judas, a sua morte prematura e o gênero dessa morte, a anasarca e a cegueira, tudo isso se encontra em vários textos do Antigo Testamento89. Todo o plano, e até mesmo os detalhes da história da crucificação foram copiados pelos evangelistas do capitulo LIII de Isaías e dos Salmos XXII e LXIX. Além disso, João preocupado a mostrar em como Jesus é o verdadeiro Cordeiro, acrescenta o hissope, que no Êxodo90 se emprega no sacrifício do cordeiro
evangelista julga que o referido fragmento se deve entender como se os jumentos fossem dois. A traição de Judas foi adaptada do episódio da traição de certo comensal de Davi, e a declaração de Jesus, durante a ceia, corresponde a idêntica revelação do rei salmista82. As palavras Sou eu que o quarto evangelista, mais teológico do que os sinópticos, põe na boca de Jesus no momento em que este avança para os soldados que o vêm prender - palavras que os fazem cair por terra - são as mesmas que pronunciou Jeová, e, por conseguinte, copiados do Antigo Testamento83. A prisão de Cristo como delinquente são relacionadas pelos próprios evangelistas Marcos e Mateus com as predições dos profetas. A fuga dos Apóstolos equivale ao cumprimento da profecia de Zacarias84. Se Jesus não responde à pergunta do sumo sacerdote, relativa ao depoimento das testemunhas, é para que se veja nele o cordeiro conduzido ao suplício sem lamentações, em cumprimento literal da profecia de Isaí-
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LIII, 7. Salmo CX, 1; Daniele VII, 13. 87 L, 6. 88 XI, 13. 89 Strauss, op. cit., II, XC. 90 Êxodo, XII – 21, 22. 86
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Salmo XLI, 10. Deuter. XXXII, 39; Isaia XLIII, 10 ss. 84 XIII, 7. 83
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pascal. Se Cristo escolhe a Páscoa para ser crucificado, é porque a sua missão é exatamente a do cordeiro pascal, sacrificando-se na dita época para salvar a humanidade do pecado original. Seja-nos permitido lastimar aqui a grande soma de energia empregada por todos aqueles que, querendo defender a existência humana de Cristo, quebraram a cabeça para explicar aquilo que se vê ser totalmente inadmissível, a não ser que despojassem Cristo de toda a realidade histórica, isto é, a mudança do dia do seu sacrifício, como se esse dia fosse histórico e não simbólico, e ainda como se tal mudança houvesse tido outro fim que não fosse o de mudar o dia da Páscoa hebraica, assim como já tinham mudado o símbolo, substituindo o cordeiro material pelo cordeiro simbólico. Os dois ladrões entre os quais Jesus é crucificado relacionamse, segundo o próprio Marcos, com a profecia de Isaías91. Mateus e Marcos põem na boca de Jesus as palavras: - Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? No Salmo XXII,
versículo 2, lê-se textualmente: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? As palavras Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem, são postas na boca de Jesus para realizar o que Isaías tinha dito do enviado de Deus, que colocado entre malfeitores e carregado com os pecados de todos, suporta ainda o peso da sua iniquidade92. O profeta Zacarias dissera que os habitantes de Jerusalém veriam Jeová trespassado por uma lança. Dali a necessidade de ferir Jesus com a lança, para que, quando ele regressasse às nuvens do céu, fosse possível ver-lhe a ferida (Daniel, VII, 13). Mas Jesus não era só aquele a quem feriram. Era também o cordeiro de Deus, e, precisamente, o cordeiro pascal, de quem se tinha escrito: Não se quebrará nenhum dos seus ossos. Daqui também a necessidade de não lhe quebrarem as pernas, como aos dois ladrões. Isaías dissera que o servo de Jeová morreria entre ricos e malfeitores93. Quanto aos malfeitores, lá estão os dois ladrões, que os evan92
91
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Isaías (LIII - 12). 71
Isaías (LIII - 12). Isaias, LIII, 9.
na luta de Moisés contra os taumaturgos egípcios. Salvador prova que o Apocalipse é uma pura cópia dos profetas, principalmente de Ezequiel e Daniel. Os evangelistas falam de Jesus, dando-lhe três denominações sobrenaturais ou metafórica, além de Cristo e Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus. Pois bem: tudo isso não faz mais que confirmar o seu caráter simbólico. Filho e descendente de Davi, devia ser o Messias, segundo a teologia hebraica. A expressão - Filho de Deus - já era usada no Antigo Testamento para designar, não tanto ao povo de Israel95 , mas aos reis do mesmo, como Davi e Salomão96 e aos seus mais dignos sucessores97. A expressão Filho do Homem se encontra em Ezequiel, que lhe dá a significação de homem honrado com as mais altas revelações de Deus98 e em Daniel, onde significa, precisamente, o Messias que virá nas nuvens do céu, segundo se lê em Mateus (XXIV, 30, XXVI, 64).99
gelistas fazem morrer a seu lado; quanto aos ricos, fizeram com que o rico José de Arimateia enterrasse Jesus. Isaías dissera também: Que fazes aqui? Para que fizeste abrir aqui um sepulcro para ti? Porque se abriu um sepulcro num lugar alto, designando uma morada na pedra? 94. Isto é o que o evangelista faz dizer a Jesus junto ao sepulcro de José de Arimateia, aberto na rocha. Jesus ressuscita porque isso está previsto no Salmo XVI (9 ss.) e em Isaías (LIII, 10-12). Finalmente, sobe ao céu onde está sentado à direita de Deus, em cumprimento do versículo 1 do salmo CX: O Senhor diz ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como um escabelo a teus pés. Se quiséssemos continuar em citações, reconstituiríamos, ponto por ponto, o Novo Testamento sobre o Velho. Para o nosso fim, porém, bastam os pontos capitais. Acrescentaremos, no entanto, que a festa do Pentecostes esta tomada à letra do Antigo Testamento (Deut. XVI, 9-11; Num. XXVIII, 26). A luta de Pedro e Paulo contra Simão o Mago tem seu motivo simbólico 94
95
Ezequiel IV, 22; Oséas XI,1; Salmo LXXX, 16. 96 II Salmo VII,14, Sal. 89, 27). 97 Salmo II, 7. 98 II, 1, 3, 6, 8; III, 1, 3, 4, 10, 17, etc. 99 VII, 13
Isaias, XXII, 16. 72
Não há, pois, nos Evangelhos, nada que já não estivesse no Antigo Testamento: nada há de novo debaixo do Sol, como dizia Salomão. Todos as designações de Cristo tinham já sido usados no Antigo Testamento, mais ou menos metaforicamente, enquanto que no Novo Testamento adquiriram o carácter sobrenatural próprio de um mito. Para aqueles que acreditam que Cristo era um homem a dificuldade é insolúvel, porque, queiramos ou não, Cristo está falando apenas de si mesmo como o Messias que havia de vir, mesmo nos sinóticos e precisamente nessa passagem de Mateus (XXII, 41). A única solução racional é que Strauss dá: Jesus quis mostrar a superioridade de Davi, do qual era descendente de acordo com a carne ou a lei, enquanto procedia de Deus como espírito. Essa dificuldade sempre foi o tropeço da cristologia que queria o impossível: Fazer de Cristo um ser humano inconsistente com as leis da natureza e da história. Assim sendo, surge a seguinte pergunta: Qual das alegorias aplicadas a Cristo no Antigo Testamento e nos próprios Evangelhos era verdadeira
A pergunta não é sem sentido porque, mesmo no caso de nenhuma das duas ser verdadeira, haveria um meio de se sustentar a tese de que Cristo poderia ter existido, pois se os evangelistas lhe aplicassem por equívoco alegorias indevidas, ainda assim, nada disso se oporia à realidade da existência de Jesus. Por outras palavras: mesmo quando se objetasse que Cristo não foi mal imaginado para ser mal adaptado às pretendidas alegorias do Antigo Testamento, que então não seriam alegorias, estas foram mal imaginadas para serem mal adaptadas a este personagem que, não obstante, não deixaria de ser histórico. Enfim! Já não precisamos de cansar-nos muito para demonstrar que efetivamente as alegorias do Antigo Testamento precederam a Cristo, se não cronologicamente, pelo menos na mentalidade daquele meio em que ele foi criado. Porque, ainda mesmo que o Antigo Testamento, nas passagens de onde saiu a concepção do Cristo, não contivesse verdadeiras alegorias mas unicamente expressões poéticas, imagens e figuras retóricas, coloridas com a ardente fantasia oriental dos profetas, isto não desmentiria o 73
fato indiscutível de que os hebreus tinham costume, desde tempos imemoriais, de explicar o Antigo Testamento por meio de alegorias, antes que em suas mentes nascesse a ideia do Cristo. Em breve, faremos esta demonstração, que pertence à História100. Notemos que Fílon - que não foi colocado entre os padres da Igreja por não ter falado no Cristo, e a quem destruíram os livros porque demonstravam que o cristianismo nasceu sem Jesus Fílon tinha já posto em alegoria o Antigo Testamento. Fócio, como já vimos101, opina que a linguagem alegórica da Escritura procede do próprio Fílon. A nós, basta saber que o método de interpretar o Antigo Testamento estava já em uso entre os hebreus alexandrinos102, antes da
época assinalada à vida de Cristo. Basta que essa fosse a ideia e o espírito dominante daquela época para aplicar a adaptação do mito do novo Redentor, imaginado pelo exemplo dos outros Deuses Redentores, às alegorias que se encontravam ou se julgava encontrar no Antigo Testamento. E que tais foram a ideia e o espírito dominante naquela época - o que deu nascimento ao Cristianismo, entenda-se - isso confirma-se, de um modo que não admite réplica, com os primeiros padres da Igreja, principalmente com os que nasceram e viveram no mesmo ambiente de Fílon, do qual foram verdadeiros discípulos. Entre eles contam-se Clemente d'Alexandria103 e Orígenes104 que, como vimos,105 são discípulos e seguidores de Fílon, até mesmo na negação da existência histórica de Cristo. Mas para o provar, não precisamos sair da Bíblia. S. Paulo atribui constantemente um duplo sentido à Escritura106, acompanhando as opiniões de Santo
100
Ernest Havet, O Cristianismo E Suas Origens - O Judaísmo, tomo III, 421 ss., Paris, Lèvy, 1878. 101 Primeira parte, cap. III 102 Não é irrelevante a circunstância de que os simbolistas Hebreus fossem alexandrinos. Porque esta condição explica perfeitamente a passagem da doutrina, da moral e do culto do Antigo Testamento, que no judaísmo é fechado e nacionalista, para o cristianismo do Novo Testamento, que é um judaísmo mais suave e espiritualizado por influência do helenismo e, sobretudo, da filosofia ne-
oplatônica, que inspirou a famosa Escola alexandrina 103 Havet, op. cit., III, pp. 433-434. 104 Peyrat, op. cit., pp. 183 ss. 105 Parte I, c. III. 106 I Cor., IX, 9; X, 1 e ss.; Gal. IV, 21 ss.; Col. II, 16, 17; Eb. VIII, 5; IX, 1 ss.; X, 1. 74
Ambrósio, Santo Agostinho e S. Gregório107. Além disso, a interpretação alegórica foi obra dos mesmos hebreus, do tempo em que a ideia de Cristo tomou corpo. Tem-se querido ver, nos quadros proféticos, apenas a imagem de um Messias régio e guerreiro, que devia fazer renascer o esplendor do reinado de Davi, quando é precisamente o contrário. Porque o verdadeiro plano da paixão de Cristo, está precisamente na imagem famosa de Isaías108. Uma imagem não exclui a outra; os hebreus porém acabaram por confundi-las. As provas dolorosas do cativeiro de Babilônia e a dos romanos, acabaram por lhes levar a persuasão de que a época sonhadora de uma nova glória de Davi se afastava cada vez mais, e só então convieram que as dolorosas provas de Cristo (personificação de Israel) e a sua própria morte (Daniel, IX,26) não eram outra coisa mais do que o caminho para chegar à gloria, colocada mais tarde no outro mundo. De modo que a ideia da ressurreição, estranha primeiramente ao judaísmo, confunde-se logo com os povos orientais, encon107 108
trando o seu apogeu no Antigo Testamento109, ao se adaptar ao mito do Redentor, que morre e ressuscita. Este é, como demonstramos com os próprios Evangelhos, o plano dos cristãos: adaptar o novo mito às profecias do Antigo Testamento. Todas as crenças do Evangelho, como tão justamente observa Havet, foram, portanto, sonhos hebraicos, antes de serem dogmas cristãos. Mais certa e precisa é ainda a proposição inversa, isto é, que não foi o Antigo Testamento que preparou o Novo, mas sim este que se adaptou àquele. Está explicado como puderam existir profetas e um Messias vaticinado. Não pode ser doutra maneira, a não ser que admitamos o sobrenatural, mas, nesse caso, a filosofia não tinha mais a fazer do que retirar-se. Se Cristo foi adaptado ao Antigo Testamento, nada fez nem disse que não estivesse já escrito na lei; se a sua própria vinda e a sua morte tiveram lugar em tudo, segundo as profecias; se os evangelhos faltaram a este plano preconcebido, tanto antes do seu nascimento como antes da sua morte, excluindo toda a possibilidade de autossugestão em Cris-
Peyrat, op. cit., pp. 184-188. Isaias LII, 13 ss.
109
75
S. Paulo, I Corintios , XV, 4 ss.
to; se enfim, Cristo nada fez que não fosse sobrenatural ou predeterminado, mística e teologicamente, quem se atreverá a sustentar ainda que ele foi pessoa real e histórica, um homem, um ser limitado e terrestre? Não, Cristo não foi um homem. Foi um Deus. Cristo não existiu, não viveu
vida própria. Foi apenas uma criação teológica, dogmática e mitológica. Tal é o testemunho da Bíblia, única fonte que nos fala de Cristo, e que, em lugar de nos subministrar as provas da sua existência, apenas é uma demonstração constante da sua inexistência.
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CAPÍTULO V CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO
Mateus e Lucas dão a Jesus duas genealogias diversas110. Devendo Jesus nascer, segundo muitas profecias, da estirpe de Davi, Mateus pretende demonstrar que se cumpre o vaticínio, fazendo descender José, pai de Jesus, da linha de Davi. Por outro lado, porém, o mesmo Mateus afirma que Jesus fora concebido por obra do Espírito Santo111. Parece, pois, que se Jesus foi concebido desse modo, não podia descender de Davi, ao passo que, descendendo de Davi, por via de José, não podia de modo nenhum ser concebido por obra do Espírito Santo. Quanto ao ano em que Jesus nasceu, há contradição formal entre Mateus e Lucas, os únicos evangelistas que dele falam. Confrontando as circunstâncias históricas com que os dois relacionam o nascimento de Jesus, depreende-se de um modo incontroverso que o Cristo de Mateus devia ter pelo menos 11 anos quando veio ao mundo o Cristo de Lucas112.
Em Mateus, José e Maria partem de Belém sem irem a Jerusalém e fogem para o Egito precipitadamente depois da adoração dos Magos, para salvarem Jesus da degolação dos inocentes, ordenada por Herodes113 Pelo contrário, em Lucas, José e Maria vão publicamente ao templo de Jerusalém, onde tem lugar a cena de Simão e Ana, e depois, em vez da fuga para o Egito, voltam tranquilamente para Nazaré114 É assim que a narração de Lucas não só contradiz materialmente a de Mateus, mas até exclui, implicitamente, a famosa degolação dos inocentes, narrada por aquele. O fato de levarem Jesus ao templo de Jerusalém, onde é publicamente reconhecido por Simão como o Messias não se harmoniza, em ponto algum, não digo já com a fuga para o Egito, mas ainda mesmo com a matança dos inocentes, pois que, em tal caso, Herodes teria podido apoderar-se dele, sem tocar em um cabelo de nenhum outro menino.
110
de Lucas sobre o censo do Cirino, vid. Strauss, obr. Cit. II. 48. 113 Mat. II, 13, 16. 114 Lucas, II, 22, 39.
Mat. I, 1-17; Lucas III, 23-38. Mat. I,20-23. 112 Ferrière, Paganismo dos hebreus, apêndice nº 2. Quanto ao erro histórico 111
77
A infância de Jesus é completamente ignorada por Marcos e João, a quem só põem em cena aos trinta anos, fazendo-o, por assim dizer, cair do céu nas margens do rio Jordão, onde recebe o batismo pelas mãos de João Batista. Mateus, depois de o fazer nascer milagrosamente, fugir para o Egito e regressar a Nazaré nunca mais fala dele, até á idade de trinta anos. Só Lucas fala da discussão que Jesus aos 12 anos de idade teve no Templo com os doutores da lei115. Lucas, narrando este episódio cai em contradição consigo mesmo, porque diz que os pais de Jesus, tendo-lhe perguntado quando o encontraram no Templo, por que os abandonara, e ele lhes respondera que fora para ocupar-se das coisas de seu Pai, não o compreenderam. É absurdo que os pais de Jesus não compreendessem a resposta, desde que, segundo o mesmo Lucas, Jesus tinha nascido milagrosamente como, também, pelo mesmo motivo, se não deviam inquietar com o extravio de Jesus. Cingindo-nos agora aos três Evangelhos sinópticos, vemos que Jesus começa e continua a sua missão na Galileia, e só para a realizar, só para cumprir o ob115
jetivo das suas pregações é que vai a Jerusalém, onde é quase inteiramente desconhecido, a ponto dos habitantes perguntarem uns aos outros quem ele era. Já o quarto Evangelho o faz viver quase só na Judeia mas ir várias vezes a Jerusalém, onde realiza os principais atos da sua vida. Segundo João116, João Batista declara formalmente não conhecer Jesus quando este se lhe apresenta para receber o batismo. Mas segundo Lucas117, João Batista conhecia Jesus desde o ventre de sua mãe Isabel, onde saltou de prazer quando Maria a visitou. E, segundo Mateus118, tanto Batista conhecia Jesus quando o batizou, que até recusou fazê-1o, a princípio, cedendo apenas às repetidas instâncias de Jesus. Entretanto, Batista, que segundo todos os evangelistas, se dera a conhecer como precursor de Jesus, batizando-o com o concurso da pomba celestial e da voz do Eterno, reconhecendo-lhe explicitamente o caráter de Messias119, não se faz cristão e continua a pregar por conta própria. Depois, quando é preso e encarcerado, envia da prisão a Jesus 116
João, I. 33. Lucas, I, 41-44. 118 Mateus, III,14. 119 Mat, III-13-17; Marc. I-7-11; Luc.III16, 21, 22; João, I, 29-34. 117
Lucas, II, 41-50. 78
dois dos seus discípulos, encarregando-os de lhe perguntarem: És tu, porventura, o que há de vir, ou temos ainda de esperar por outro?120. Jesus declara que João batista é o profeta Elias121, mas este mesmo João Batista declara que não é tal o profeta Elias122. As tentações de Satanás contra Jesus não vêm mencionadas no quarto Evangelho, que as excluiu sistematicamente, encadeando os novos detalhes da vida de Jesus - desde o batismo até ao primeiro milagre - com as mais rigorosas indicações do tempo (ao segundo dia, ao terceiro dia, etc.) de modo que não passaria por alto os quarenta dias que ele permaneceu no deserto e as respectivas tentações. Igualmente João, que era o discípulo amado de Cristo e que, portanto, não podia ignorar os detalhes da vida dele, nada nos diz acerca das coisas praticadas pelo Mestre com os endemoninhados. Demonstrado está assim que, excetuando o quarto evangelista os outros três se contradizem a cada a linha, quer relatando a história das tentações quer contando os exorcismos de Jesus.
Da citação dessas contradições, como em geral de tudo o que se refere aos milagres, faremos graça para nossos leitores, por que não é necessária sequer para nossa demonstração. Lucas faz-nos saber que os samaritanos acolheram Jesus com hostilidade e que João, que o acompanhava, vendo isto, se encolerizou sobremaneira123. Por sua vez, o mesmo João, que estava com Jesus e que tanto se revoltou com a ação dos samaritanos, no seu Evangelho conta que quando Jesus passou por Samaria os samaritanos lhe fizeram uma excelente recepção, pedindo-lhe que ficasse com eles e proclamando-o Salvador do Mundo124. Sobre o episódio da mulher que unge Cristo, todos os evangelistas relatam o caso diversamente, sendo portanto, contraditórios125. Quanto à ultima ceia, que constituiu um fato capitalíssimo para o cristianismo porque nela teria Jesus instituído o mistério da Eucaristia, nem mesmo aí os Evangelhos se harmonizam. Os três primeiros colocam a última 123
Lucas, IX-51-56 João, IV-9, 39-42 125 Mat. XXVI, 2-13 Marcos, XIV, 1-9; Luc. VII, 36-40; João XII, 1-8.
120
124
Mat. X, 2-3. 121 Mat. XI-14. 122 João I-21. 79
ceia no dia de Páscoa126, enquanto João a coloca antes da Páscoa127. Além disso, os primeiros fazem Jesus instituir nesta ceia o mistério da Eucaristia128 ao passo que João, absorto pela ideia eucarística (CapítuloVI) narra a última ceia com inúmeros pormenores, mas sem dizer uma única palavra acerca dessa mesma ideia eucarística, sendo ele de resto, o único que teria valor testemunhal, pois assistiu a ela desde o princípio. Repitamos aqui, pois vale a pena, que essa contradição, na qual muita tinta tem sido gasta inutilmente pelos estudiosos, não pode ser explicada exceto pela nossa dedução na qual, Cristo sendo um mito, e exatamente o mito do cordeiro pascal qui tollit peccata mundi é ele mesmo o alimento da ceia pascal. Só que nos três Evangelhos Sinópticos, mais antropomórficos, ele precisa dizê-lo explicitamente, enquanto que no quarto, ao invés da instituição do sacramento ser feita pela boca do Agnus Dei, o mistério se cumpre
pelo seu próprio sacrifício. Estas contradições dos Evangelhos mais uma vez confirmam o nosso modo de ver, pois só considerando Cristo como um mito, precisamente o mito do Cordeiro Pascal, qui toilit pecata mundi, se pode resolver esta complicação. Durante a última noite, passada no horto de Getsemani, Jesus afastou-se dos seus discípulos, a pouca distância, segundo os sinópticos. Os discípulos dormiam, Jesus levou consigo apenas Cefas e os dois filhos de Zebedeu. Chegado ali, Cristo cai por terra, com o rosto unido ao chão, e assim ora por largo tempo, permanecendo triste até à morte e conformando-se, enfim, com a vontade divina129. Pela sua parte, o quarto evangelista, que deveria ser a testemunha íntima desse episódio tão comovedor, nada diz a tal respeito, apesar das minúcias com que relata os episódios dessa noite. Além disso, enquanto os três primeiros nos apresentam Jesus no Monte das Oliveiras, em estado de profundo abatimento, a ponto de suar sangue130, o quarto põe
126
Mat. XXVI, 17-20; Marc, XIV, 12-8; Luc. XXII, 7-15. 127
129
Matt. XXVI, 36 ss.; Marco XIV, 32 ss.; Luca XII, 39 ss. 130 Matt. XXVI, 36-39; Marco XIV, 3236; Luca XXII, 41-44.
João XIII, 1.
128
Matt. XXVI, 26-28; Marco XIV, 2224; Luca XXII, 19-21. 80
na boca de Jesus discursos cheios de tranquilidade131; e ao passo que nos primeiros evangelistas o beijo de Judas denuncia Jesus aos seus inimigos,132 no quarto é o próprio Jesus que vai ao encontro dos seus inimigos, com tranquilidade e segurança, dizendo aos soldados que o rodeiam: Eu sou o Cristo133! Passemos por alto as contradições relativas à hora em que Jesus foi julgado pelos sacerdotes na presença do povo, ao seu interrogatório, ao momento em que é maltratado e injuriado, ao episódio da devolução de Pilatos para Herodes só conhecida por Lucas, ao depoimento das testemunhas, ao Cirineu, que João não cita, à beberagem dada a Jesus, à altivez dos dois ladrões, à inscrição colocada na cruz (diferente em cada um dos quatro evangelistas), à exclamação e palavras ditas antes de morrer, ao golpe de lança no peito, à quebra das pernas, ao embalsamamento, à natureza do sepulcro e ao tempo em que esteve sepultado, contradições estas de detalhes, mas tão numerosas, que preciso se torna citá-las sumaria131
mente. Repararemos apenas nas contradições mais graves que acompanharam a sua morte. Segundo Mateus (XXVII, 45) Marcos (XV, 33) e Lucas (XXIII, 44) desde a hora sexta até àquela em que, Jesus devia ter exalado o último suspiro, isto é, do meio dia às três da tarde, toda a terra se cobriu de trevas. Além disso, segundo Marcos (XV, 25) Jesus teria sido crucificado, à hora terceira do dia, ou fosse às nove. Pelo seu lado, João (XIX, 14) diz que, à hora sexta, ou fosse ao meio dia, não só Jesus não estava ainda na cruz, mas nem mesmo o tinham ainda condenado à morte. A essa hora, Pilatos mostrava-o aos hebreus, dizendo: Eis aqui o vosso Rei. Pois bem: se no dizer dos primeiros, desde o meio dia até às três, toda a terra se cobriu de trevas, ao passo que, segundo João, precisamente neste tempo, tiveram lugar a saída para o Gólgota e a crucificação, devemos concluir que João faz desenrolar todos os sucessos na mais densa escuridão, circunstância esta que não o impede de ver tudo o que se vai passando, assim como sucedia aos demais espectadores.
João, Cap. 14, 15, 16, 17 e 18.
132
Matt. XXVI, 47-50; Marco XIV, 4346; Luca XXII, 47. 133 João, XVIII, 2-8. 81
As contradições, que se seguem à ressurreição não nos prenderão muito a atenção, porque saem do campo da razão para entrarem no do sobrenatural, que é por outro lado, um dos critérios de condenação da veracidade da Bíblia. Pelo contrário, interessam-nos sobremaneira as contradições que a mesma Bíblia põe na boca e no procedimento de Cristo, enquanto fala e procede como homem. Na célebre sentença, em que glorifica a pobreza, Jesus fala, na opinião de Lucas, dos pobres, em sentido concreto, ou seja daqueles que sofrem materialmente fome e, sede134, ao passo que, segundo Mateus, falava indistintamente dos pobres de espírito e dos que têm fome e sede justiça135. Quanto aos publicanos, Jesus os trata ora com afeto136, ora com ódio e desprezo137. Acerca das boas obras, Cristo diz ao mesmo tempo que devem138 e não devem139 ser conhe-
cidas pelos homens. Em conformidade com o primeiro modo de ver, ordena ao endemoninhado de Gheraseni, curado por ele, que divulgue o milagre140 e de acordo com o segundo ponto de vista recusa terminantemente fazer milagres, insulta quem lhes pedem141 e ordena àqueles a quem cura e aos que assistem, que não divulguem nada142 . No que diz respeito ao uso da força física, da resistência, em suma, da violência, Cristo não só as recomenda como as pratica143, e ainda aconselha o seu emprego144. Quem não é por mim é contra mim, diz Cristo em Mateus145 e em Lucas146. Em Marcos, porém, diz: Quem não é contra nós, conosco está147. A contradição não pode ser mais grave. Segundo Mateus148 Marcos149 140
Marco V, 19. Matt. XIII, 28-41; XVI, 1-4;Marco VIII, 11-12; Luca, XXIII, 7-9. 142 Matt. VIII, 2-4; IX, 27-30; XIII, 15; XVIII, 9; Marco I, 40-44; VIII, 22-26; IX, 8; Luca IX, 36. 143 Lucas XXII, 36; João, II, 15. 144 Mat. V, 39; XXVI, 52. 141
134
Lucas, VI, 20 ss. Mateus, V, 3-10. 136 Matt. XVIII, 17. 137 Mat. IX, 10-12; XI, 19; Marcos II, 15-17; Lucas V, 29-31; VI, 34; XVIII, 9-14; XIX, 2-10. 138 Matt. V, 16. 139 Matt. VII, 1, 2. 135
145
Mateus XI, 30. Lucas X, 23. 147 Marcos IX, 38, 39, 40. 148 Mateus V, 25; VIII, 49. 149 Marcos I, 44. 146
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e Lucas150 Jesus ordena os sacrifícios, mas em parte alguma da Bíblia se vê que ele tome parte em qualquer desses sacrifícios. A principal, a mais irrespondível das contradições, é a que se refere á missão de Cristo. Segundo Mateus151, Jesus diz que não veio para abolir a lei nem os profetas, e segundo Lucas152 diz que, tanto estes como aquela, tiveram já o Seu tempo! À vista de tão extraordinárias contradições, quem se atreverá a dizer que Cristo seja um personagem histórico e real? Mesmo sem levar em conta o anteriormente exposto? Quem não vê aí a mão criadora das diversas escolas metafísicas e teológicas, denunciadas pela diversidade de planos e de doutrinas na composição de um mesmo mito?
150
Lucas V, 14. Mateus, V, 17, 18, 19. 152 Lucas, XVI, 16. 151
83
CAPÍTULO VI ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO
Fiéis ao nosso propósito de não nos ocuparmos do elemento sobrenatural contido na Bíblia, não faremos caso dos muitos absurdos ali disseminados no que se refere a Cristo-Deus e taumaturgo Se quiséssemos sair do nosso tema, pouco nos custaria fazer ver o absurdo da religião cristã, examinada em seus delírios sobrenaturais. Falta revelar o principal, onde se prova que esta religião é exclusivamente teológica e não obra de um homem histórico. Eis as concepções fundamentais sobre as quais se funda o cristianismo: Um Deus proíbe ao primeiro casal humano que coma do fruto que lhes daria a conhecer o bem e o mal. Eles porém desobedecem e são castigados, embora nenhuma culpa tenham, visto que antes de comerem esse fruto não sabiam distinguir entre o bem e o mal. Contudo, Deus não só castiga os autores do fato, inocentes, como se vê, mas todos os seus descendentes, que em nada foram participantes desse mesmo fato.
Para salvar a Humanidade dessa pretendida falta, Deus recorre a outra vítima, sendo certo que, para isso, bastaria um ato simples da sua vontade. Esta vítima, também inocente, é o seu próprio Filho, o qual, se era Deus, não podia morrer, e se era homem, não podia ressuscitar. Enfim, para cúmulo de imoralidade, para que esse Deus fosse morto, faltava quem o matasse. Assim, obrigando um povo a um deicídio, Deus condena este povo à infâmia, tanto mais imerecida, quanto era uma necessidade determinada pelo próprio Deus a fim de realizar o seu plano. E toda esta série de imoralidades para salvar, não a Humanidade inteira, mas apenas aqueles que vierem ao mundo depois de Cristo, e ainda destes, só uma pequena parcela, pois que o mundo, passados vinte séculos, ainda é bem pouco cristão. E mesmo dos que são cristãos, só se salva uma pequeníssima parte, aqueles predestinados por Deus, como se ouve todos os dias pela voz autorizada da Igreja. 84
Isto tudo demonstra incontestavelmente que Cristo é, sim, uma invenção dos teólogos. Queremos averiguar, serena e conscienciosamente, se existiu o homem chamado Cristo, e para isso, nos cingiremos à Bíblia apenas enquanto fala humanamente, ou antes, naturalmente, pondo em destaque os absurdos acerca de Cristo-Homem, e ainda dentre esses, analisaremos apenas os mais salientes. Comecemos pela forma como os apóstolos seguem a Jesus, forma que é de todo o ponto, inverossímil. Segundo Mateus153 e Marcos154, quando Jesus convida aos que desde logo são seus discípulos para que o sigam, estes abandonam imediatamente o ofício e a família sem refletirem, sem lhe pedirem a menor explicação, sem saberem quem era Jesus, ignorando enfim, o que viria a ser deles. Aqui, a Bíblia quer evidentemente revelar a importância da vocação, cuja explicação será muito teológica, mas tira ao fato toda a importância e verossimilhança humana. Em Mateus, como vimos no 153 154
capítulo precedente, Jesus declara que não veio para abolir a lei de Moisés, mas sim para cumpri-la. Ora, que valor pôde ter semelhante declaração e, por conseguinte, toda a obra de Jesus, se hoje é certo e sabido que os livros atribuídos a Moisés são apócrifos? No capitulo XII de João, Jesus fala à multidão, que o recebe em triunfo, em gritos de Hosana, proclamando-o rei de Israel (V, 13), atestando que ressuscitou Lázaro (V, 17) e julgando-o filho de um anjo (V, 29). Pois bem: apesar do que essa multidão, num entusiasmo que tocava as raias da loucura fez, disse e viu, muito mais do que o suficiente não só para crer em Jesus mas também para se converter, apesar disso, o evangelista diz que essa multidão não só não se convenceu (V, 37) como assim que o Mestre terminou de falar, foi embora se esconder. (V, 36). Larroque, perante tamanho absurdo, diz que não se pode explicar senão como uma distração do narrador. Esta é uma das provas mais apreciadas do caráter simbólico e de nenhum modo histórico, que a própria Bíblia atribui a Cristo. Por isso, imediatamente depois, o Evangelista explica os motivos de tal estra-
Mateus, IV, 18-22. Marcos, I, 16-20. 85
nheza, dizendo que esses fatos (V. 38) aconteceram para que se cumprisse a palavra do profeta Isaías, que dissera: Senhor, quem acreditou no que dissemos? A quem foi revelado o braço do Senhor? (V. 39) Por isso não podiam crer, porque outra vez dissera Isaías: (V. 40) Cegou-lhes os olhos e endureceulhes o coração, para que não vejam com os olhos e não entendam com o coração, e se convertam e eu os sare. (V. 41) Isto disse Isaías... Tudo isto confirma que a Bíblia faz proceder Jesus só para cumprir o prescrito no Antigo Testamento. Ora, deste modo, que ninguém me venha com afirmação de que os livros bíblicos são narrações históricas. Segundo Mateus155 quando Jesus entrou em Jerusalém, a multidão procedeu como se o conhecesse e venerou-o como se tratasse-se de um grande personagem, correndo ao seu encontro, festejando-o, adornando as ruas com bandeiras e palmas e exclamando: Hosana ao filho de Davi! Bendito seja o que vem em nome do Senhor! E aos que perguntavam quem era, respondia a multidão: Este é Jesus, o Profeta de Nazaré, de Galileia. 155
E foi assim que ele pôde realizar, sem que ninguém o estorvasse, a façanha da expulsão dos vendilhões do templo. Pois bem: segundo Mateus e os outros evangelistas sinópticos, Jerusalém não conhecia ainda então Jesus. Será preciso repetir aqui novamente, que esta contradição absurda não se explica senão recorrendo à necessidade de cumprir-se uma profecia (neste caso, a de Zacarias) que impunha ao evangelista a obrigação de dizer que Jesus fora acolhido pelos habitantes de Jerusalém com extraordinárias manifestações de alegria, sem reparar que isto comprometia ou invalidava a sua narração? Será preciso concluir, de novo, que é abertamente simbólico o sentido da narração bíblica? Segundo os quatro evangelistas, da prisão de Jesus à sua ressurreição, compreendendo neste espaço de tempo o processo e a devolução de Herodes a Pilatos, a saída para o Calvário, a crucificação, a morte, o enterro e o tempo que permaneceu sepultado (três dias, embora incompletos) não se passaram mais que três dias incompletos! É isto possível? Respondam os que tenham um pouco de bom senso.
Mateus, XXI-8, 11. 86
A parte da Bíblia referente a Pilatos é simplesmente impossível e inexplicável, a não ser que se admita a nossa tese. Pilatos estava convencido da inocência de Jesus e até intentou salválo156, apesar de abandoná-lo aos judeus, depois de consentir os ultrajes dos soldados no Pretório e de o haver preterido a um prisioneiro da pior fama. Como explicar uma tão grave incoerência ? João faz supor que Pilatos temeu um castigo de César por não ter condenado à morte quem, proclamando-se Rei dos Judeus, devia necessariamente passar por sedicioso. Mas, neste caso, não se explicaria a sua consideração por Jesus, tanto mais que era um governador prevaricador e tirano, segundo o testemunho do contemporâneo Fílon. Outros supõem que esta narrativa fora inventada quando o cristianismo se infiltrava no mundo romano, pela necessidade de agradar a Pilatos e de lançar sobre os Judeus toda a responsabilidade da parte odiosa da lenda. Mas, se por um lado, a responsabilidade dos judeus estava predestinada pelo profetismo, por outro não se pode explicar a 156
atribuída a Pilatos pela Bíblia, senão recorrendo á invenção da morte de Jesus. Só assim o absurdo em questão se explica satisfatória e racionalmente, pois para condenar e crucificar publicamente a Jesus era preciso a aquiescência de uma autoridade competente. Mas, como atribuir a este magistrado a responsabilidade pela condenação de um inocente? Daí a necessidade, para os evangelistas, de não fazer depender diretamente de Pilatos a responsabilidade de um ato odioso, que sem ele, não poderia acontecer Haveria nos Evangelhos absurdos que seriam imorais, ou se querem, imoralidades que seriam absurdas, porque ofuscam e mancham sem necessidade o caráter de Cristo, se não fosse evidente a sua razão de ser e a sua origem simbólica e mitológica. Citemos, por exemplo, o conselho dado por Jesus aos seus companheiros para que fugissem ante os seus inimigos (Mateus, XXIV, 16, 17 Lucas, XXI, 20), no que ele imita a Jeremias. A ordem, dada por Jesus aos seus apóstolos para que não saúdem a ninguém quando viajar (Lucas, X, 4) é copiada, grosseiramente da que Eliseu deu ao seu servo, por determinados motivos que
Luc. XXIII; João, XIX. 87
não existiam aqui. E o conselho, consignado no capítulo XIV de Lucas, dado por Jesus aos comensais para que não se coloquem nos primeiros lugares a fim de que o dono da casa os não faça passar aos últimos, e para que, pelo contrário, se coloquem nestes, a fim de que aquele os brinde com os primeiros são lições de hipocrisia e de orgulho citadas para dar cumprimento a esta máxima do Antigo Testamento: Aquele, que se exalta será humilhado e o que se humilha será exaltado. (Job, 22, 29; Sal. 18, 27; Prov. 29, 23; 35, 67). Cristo falava em parábolas, para que não o entendessem os que o ouviam, dirigindo-as não só aos inimigos e aos predestinados, mas também, e em mais de uma ocasião, aos seus discípulos157. Este seria o maior absurdo, porque os mais instruídos ficariam desorientados, incapazes de compreender a razão porque se expressava de tal modo, se não lhe explicassem os próprios evangelistas, advertindo que Cristo o fazia para cumprir a profecia de Isaías, segundo a qual ouviriam e não entenderiam, olhariam e não veriam158. Isto explica realmente o senti157 158
do simbólico dos processos de Cristo, dignos de um desequilibrado, mas por outro lado, demonstra a Bíblia que Cristo não é pessoa real que procedesse naturalmente; pelo contrário, é um ser fantástico, um verdadeiro fantoche que se move só quando e como o controlador quer. Não se diga, por favor, que faltamos ao respeito a um objeto de grande veneração, pois muitas outras palavras bem mais duras teremos de empregar para definir semelhante maneira de proceder, zombando do mundo, se não fosse por nossa interpretação simbólica e mitológica que desculpa de tais ações o objeto da adoração dos cristãos, demonstrando que não foram cometidas por ele, que nunca existiu, mas inventadas por aqueles que o criaram, impelidos pela necessidade de cumprir um plano teológico. No versículo 35 do capítulo XXIII de Mateus, Jesus censura os hebreus por terem derramado o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem mataram entre o templo e o altar: a crítica demonstrou que não existiu qualquer personagem com tal nome e em tais circunstâncias. Só existiu um Zacarias, filho de Baruch, que se encontrava em
Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18. Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18. 88
Jesus de noite159, que tem com ele uma entrevista, que mais tarde defende Cristo das acusações dos seus correligionários160 e que, morto Cristo, praticou piedosas curas sobre o cadáver do mestre161, este Nicodemos não se fez cristão. De modo que se torna a dar o caso de João Batista (que também não se fez cristão). Mas, o golpe de misericórdia na própria Bíblia, para literalmente destruir, aniquilar e dissipar em absoluto a pretendida existência de Cristo é dado quem o diria! - por dois dos seus discípulos: Apolo e S. Paulo. Apolo! Quem é este Apolo? – indagaria Dom Abbondio (personagem do romance Os Noivos, de Alessandro Manzoni) - que não figura no número dos apóstolos? A própria Bíblia o vai dizer. Leiamos pois o capítulo XVIII dos Atos dos Apóstolos: - 24. E veio a Éfeso um Judeu de nome Apolo, natural de Alexandria, homem eloquente e muito douto nas Escrituras. - 25. Era instruído no caminho do Senhor, falava com fer-
idênticas circunstâncias ao citado por Jesus, menos a diferença do nome do pai, que é Baruch em lugar de Baraquias, diferença de resto fácil de explicar. Mas o caso é que o assassinato deste Zacarias foi cometido no ano 67 da nossa era, segundo o historiador Josefo, isto é, muito tempo depois da época em que os cristãos colocam Jesus. De sorte que, ou este falou por falar ou se referiu, como tendose já realizado, a um sucesso que deveria ocorrer muito tempo depois dele. O primeiro termo do dilema resolve já a questão, e o segundo demonstra que os Evangelhos foram escritos muito tempo depois da época assinalada a Cristo, e que os seus autores não foram muito escrupulosos em respeitar a verdade histórica, antes muito pelo contrário, criaram o mito, pondo-lhe na boca palavras absurdas, sem se darem conta do que estas deveriam, numa época de menos credulidade, denunciar as suas imposturas e invenções. Uma das figuras bíblicas que demonstra a inconsistência histórica da narrativa é a de Nicodemos. Este rico fariseu, membro do Sinédrio, descrito pela Bíblia como pessoa de bons costumes e boa fé, que vai procurar
159
João III,1. João VII, 50 ss. 161 João XIX, 39. 160
89
vor de espírito e ensinava com diligência sobre Jesus, tendo somente conhecimento do batismo de João. - 28. Porque, com grande veemência, convencia publicamente os judeus, mostrandolhes, pelas Escrituras, que Jesus era o Cristo. Não é estranho que um judeu falasse para converter os outros ao cristianismo, enquanto pela sua parte, se conservava judeu? E, como se isto ainda fosse pouco, a Epístola I aos Coríntios diz-nos que este Apolo era igualado a ninguém menos do que a Cristo.162. Vejamos S. Paulo. Este apóstolo, próximo já do final da sua carreira, depois de ter exercitado o seu apostolado Cristão, comparece perante o rei Agripa, declara-se Fariseu e sustenta que a seita dos Fariseus é a mais severa do que a sua religião163. Por consequência, S. Paulo não fala de Cristo como de uma personalidade histórica, mas como de uma tese teológica 164. Para ele, Jesus é um ser misterioso, sem pai, sem mãe, sem genealogia, que se mostra aos ho162
mens como encarnação de uma divindade, para cumprir um grande sacrifício expiatório. Mas, como se realizou esta encarnação? O apóstolo não o diz. Não fala nunca dos parentes de Jesus, nem sequer de Maria. Não nos diz quando veio ao mundo, o que fez e como o fez, quando e como foi crucificado165... Mas, há mais. Segundo os Atos dos Apóstolos (XXXVIII, 15 e ss.), quando Paulo e os seus companheiros chegaram a Pazzuoli tiveram uma boa acolhida da parte dos seus irmãos ali estabelecidos, saindo muitos outros a recebê-los em todo o percurso, de Pazzuoli a Roma. Chegado a esta capital, Paulo convocou os principais judeus que lá viviam, para, diante deles, se justificar da acusação que lhe faziam, de ter ofendido em Jerusalém o povo e os ritos dos padres. E, na Epístola aos Romanos (1-8), Paulo escreve que a fé dos cristãos de Roma tinha adquirido grande fama em todo o mundo, e promete encerrar-se em seu seio depois de cumprida a sua missão de ir a Espanha saudar um grande número de filiados. Como explicar-se o fato da-
Epístola I aos Coríntios, I, 12; III,4 -
5. 163 164
Atos, XXVI, 5 Dide, op.cit., p. 93.
165
90
Peyrat, op. cit., p. 338.
queles hebreus da Itália, tão íntimos de Paulo - fato relativo às justificações da sua própria fé hebraica - e a crença do mesmo apóstolo acerca da sua obrigação de se justificar perante eles? E como explicar o fato inegável segundo o próprio Paulo, da difusão do cristianismo por todo o mundo, cuja pregação Paulo apenas começava agora? Evidentemente, não há explicação possível, a não ser que admitamos que a narrativa dos Atos dos Apóstolos e da Epístola aos Romanos é uma fábula, ou que os cristãos existiam já muito antes da época assinalada a Cristo. Ou seja: que o cristianismo já era um fato muito tempo antes de Cristo, sem necessidade dele. A primeira hipótese não será admitida pelos cristãos. Por isso, deverão admitir forçosamente a segunda, como nós a aceitamos, porque concorre para demonstrar a nossa tese adaptando-se perfeitamente aos resultados da crítica, como já vimos em Eusébio, que admite serem cristãos os terapeutas do Egito de que Fílon já tinha falado, e como vimos em Tácito, que faz dos hebreus e dos egípcios uma única superstição, e como veremos ainda ao ocuparmo-nos das doutrinas de
Fílon, dos Essênios e dos Terapeutas. Naturalmente, só nos basearemos nestas incongruências da Bíblia em razão da sua flagrante evidência para deduzirmos uma conclusão forçosa, de maior importância do que a que os textos consentem. Por outras palavras: estes absurdos, inconcebíveis em um livro que se propõe proclamar a existência de Cristo bastam só por si, para nos persuadirem do contrário. Estes fatos adquirem um valor excepcional porque provam o contrário do que a Bíblia se propõe a provar, ou pelo menos, invalidam o que ela pretende fazer crer, sem que possam passar por exceções, pois originam-se da própria Bíblia e nela se apoiam. Isolados, estes fatos talvez tenham pouca credibilidade, mas, no entanto, não podem ser ignorados diante do acúmulo de outros elementos de prova que temos e daqueles que ainda aduziremos contra a existência de Cristo. Como se vê, a mesma Bíblia, proporciona ajuda e apôio à nossa demonstração. 91
CAPÍTULO VII A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA
A Bíblia fornece-nos uma prova ainda maior que todas as aduzidas até agora contra a existência de Cristo. Esta prova está precisamente na sua moral. Essa moral, que os apologistas ergueram até aos céus e agora a crítica vai ponto a ponto destruindo, ao desfazer as ilusões criadas em torno da lenda e da idealidade humana - essa moral é a prova mais firme e segura de que Cristo não existiu, porque a moral que os Evangelhos lhe atribuem não pode ser obra de um homem, mas apenas a de uma teologia determinada, porque é excessivamente sectária e irrealizável para que pudesse ser ensinada e praticada por um homem. É completamente oposta às preocupações teológicas e metafísicas de uma seita. Há, por certo, máximas realmente morais o boas nos Evangelhos, mas que não podem entusiasmar um espírito positivo, por místico que seja, se bem que esta parte boa da moral cristã, sem a qual o cristianismo não teria podido desenvolver-se não é cristã - como mais adiante veremos.
As máximas - não faças a outrem o que não queres que te façam e faze aos outros o que desejas que te façam - não são uma criação de Cristo ou dos Evangelhos porque preexistiam já no Antigo Testamento, onde estavam desde a moral metafísica das religiões orientais, principalmente da búdica e da zêndica ou persa. Suprimindo todas estas máximas que não pertencem ao cristianismo e são, além disso, prova contrária à existência de Cristo, o resto da moral evangélica é condenável sem remissão, e seria bastante para execrar o homem que a criasse, se fosse obra de um só homem. E vemos a Humanidade, que cresceu nas doces ilusões de que o Cristo fora a personificação de todas as perfeições humanas, concentrando nele toda a idealidade... A Humanidade, tornada adulta, deve reconhecer que, na sua adolescência, foi vítima de uma enorme mistificação. Os que neste ponto se encontram da verdade verão porque motivo determinados cristãos da 92
nossa época, como Tolstoi e certos reformadores alucinados pela lenda, julgando-se talvez continuadores de Cristo se regozijam em manter as antigas ilusões, opostas a toda a evidência, a todo o conhecimento sereno e crítico do assunto. Um dos fenômenos mais extraordinários da nossa época, rico de ensinamento é o fato de apelarem para Cristo, tanto os revolucionários como os déspotas. E têm razão uns e outros. Algumas vezes, Cristo prega a resignação. São Paulo chega a proibir que se reclame e faça justiça (I-Cor. VI-7) e declara que, emanando de Deus todo o poder, serão por ele condenados todos os que oponham resistência (Rom. XIII, 1-2). Isto é para os déspotas. Para os revolucionários e para os próprios anarquistas, Cristo não só exalta a pobreza, mas até considera o governo como um abuso, e todo o magistrado como um natural inimigo dos homens e de Deus (Mat. X, 17 e 18 Lucas XIII, 11). Não é porventura, edificante essa duplicidade do cristianismo? Não serão ingênuos os que baseiam as suas esperanças e os seus privilégios numa moral tão absolutamente contraditória?
Não se verá que semelhante moral não pode ser obra de um só homem ? Mas, nem as classes dominantes, nem a casta sacerdotal, que além da ilusão, tem interesse em perpetuar a mistificação de 2 mil anos - nem elas sequer poderiam impedir que a luz da razão ofusque a moral evangélica... Poucos séculos há que esta luz começou a brotar das inteligências e, a não ser pelo receio que há em dizer à Humanidade verdades tão amargas, de a privar tão bruscamente de uma ilusão que, por isso constitui uma grande força moral - na hora presente a crítica já teria, não só arrojado dos altares este último ídolo, mas até o teria já precipitado na Geena. O que, porém, até hoje se não fez, faz-se, deve fazer-se agora, porque a Verdade não reconhece compromissos nem fraquezas humanas e porque a lógica não se sente satisfeita se não chega até as últimas consequências. A ciência, de resto, não tem que se preocupar com consequências. Pois bem: enquanto a crítica trabalhe na demolição do ídolo cristão e das ilusões de uma moral superior, que o torna respeitável mesmo a alguns incrédulos, e enquanto destrua o velho erro 93
de acreditar na existência de Cristo, mudando em execração a veneração, tantas vezes secular, da Humanidade, por este ideal de perfeição por ela mesma criado - nós, pelo contrário, poupemos à Humanidade a dor de lhe destruirmos o objeto da sua maior veneração, demonstrando-lhe que os defeitos da moral cristã não são imputados àquele Cristo, que nunca existiu, mas sim à teologia que o criou. E entenda-se bem que, em nós não influem preocupações de nenhuma índole estranha à verdade: nem a finalista daquele que crê, nem a utilitária do nosso sistema. Nada diremos da primeira, porque não nos compete, e acerca da segunda, advertiremos que queremos aproveitar para a nossa tese os defeitos desumanos da moral cristã que entram a fazer parte do nosso quadro, atraídos pela força irresistível da Verdade. Os defeitos da moral cristã são tão evidentes que muitos católicos eruditos, não podendo negá-los e não querendo decidirse a abandonar a fé, colocamnos entre as provas da divindade desta religião, raciocinando como o hebreu Abraão que, tendo visto em Roma as torpezas da
corte pontifícia se fez cristão dizendo que se esta religião pôde triunfar e subsistir, apesar de tanta corrupção é porque tinha a proteção do céu. Citemos, como exemplo, Nicolau Tomásio, que disse: Soldados pagãos, contratistas gerais, mulheres a quem o mundo chama perdidas, um homem que mente e atraiçoa o seu amigo, outro que protege os que se dedicam a lapidar inocentes. Eis os eleitos de Cristo! Esses querem que a história dos seus prodígios e das suas virtudes registre entre os antepassados do Salvador do mundo um fornicador, uma meretriz, uma adúltera, um rei traidor e homicida. Estes pensamentos humilham o espírito mas abrem o coração à severidade para nós mesmos e à caridade para com o próximo166. Se os Evangelhos abundam em máximas desumanas, tantas e de tal calibre que, um homem real desta terra não teria ousado concebê-las e muito menos pregá-las sem ir para um manicômio ou cárcere, não é evidente que tal circunstância depõe contra o caráter histórico daquele homem e a favor da sua criação puramente mitológica, simbólica 166
Nicolau Tomásio Roma e o Mundo, seç. V, cap. XVI. 94
Em Lucas168 exprime-se assim: se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e irmãos e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Em Mateus169 (VIII, 21-22) a alguém que lhe pedira autorização para sepultar seu pai Jesus diz-lhe: Segue-me e deixa que os mortos enterrem os seus mortos. Em Lucas170 lê-se - Eis aqui um que diz: Seguir-te-ei, senhor, mas primeiro, deixa-me ir dispôr do que tenho em minha casa.Jesus lhe disse: Quem põe a mão no arado e olha para trás, não é digno do reino de Deus. Em Mateus171 Jesus aconselha os seus discípulos a praticarem a castração voluntária, para que se façam dignos do reino dos céus. Quem não odeia a sua própria vida, não pode salvar-se, diz Jesus em Lucas172. E em João173: Quem amar a sua vida, perde-la-á, e quem a odiar neste mundo, conserva-laá na vida eterna. Jesus aconselha também a que
e sobretudo teológica? Especialmente se essa circunstância entra coerentemente num processo de provas análogas que se confirmam umas às outras? Vamos, porém a fatos, para nós mais eloquentes. A moral evangélica, tiradas algumas máximas boas que não são suas pode dividir-se em duas grandes categorias: a das máximas irrealizáveis ou desumanas e a das máximas sectárias. E não se diga que tais máximas sejam puramente virtuais, porque tanto as humanas são sectárias, como as sectárias são desumanas, pois umas e outras têm por fundamento comum o caráter teológico, que denuncia a sua origem impessoal e a sua formação sistemática e eclesiástica. Comecemos pelas máximas irrealizáveis ou desumanas Em Mateus167 Cristo discorre deste modo: Não julgueis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas sim a espada. Vim trazer a discórdia do filho contra o pai, da filha contra a mãe, da nora contra a sogra. Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, e quem ama seu filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim. 167
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Lucas, XIV, 26. Mateus, VIII, 21-22. 170 Lucas, IX, 61- 62. 171 Mateus, XIX, 12. 172 Lucas, XIV, 26. 173 João, XII, 25. 169
Mateus, X, 34-37. 95
não trabalhem; a que se não preocupem com a comida, com a bebida, com os vestuários; a que não pensem no dia de amanhã: que imitem as aves do céu, que não trabalham e os lírios do campo, que não se cansam nem fiam174. Prefere Maria, que troca os labores domésticos pelo ascetismo, a Marta que por si só, há de realizar todos os trabalhos da casa175. Quer que o homem viva na mais absoluta pobreza, na indigência mais miserável: Em Lucas,176 diz ele: Nenhum de vós que não renuncie a quanto tenha pode ser meu discípulo. A própria dignidade humana não lhe merece a mais insignificante consideração. Em Mateus177 ele diz: Não resistas ao mal. E se alguém te ferir na face direita, apresenta-lhe a outra. E aquele que quiser demandar-te em juízo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. E ao que te obrigar a ir carregando mil passos, vai com ele outros dois mil a mais. Não é mister grande engenho nem muita eloquência para provar que esta moral não é realizá-
vel, por desumana, isto é por contrária às leis biológicas e sociológicas, incompatível com a conservação e progresso da espécie humana. Basta expô-la que por si própria se condena. Passemos agora às máximas sectárias da moral evangélica. O amor pregado pelos Evangelhos não se dirige a todos os homens, mas apenas aos hebreus. Jesus ordena aos seus discípulos que preguem o seu Verbo unicamente aos hebreus, e proíbe-os de entrarem na cidade dos gentios e dos samaritanos178. Diz que os doze apóstolos se sentarão em doze tronos para julgarem as doze tribos de Israel179. Portanto, a sua missão limita-se única e exclusivamente aos hebreus: é um mesquinho nacionalista! Tanto assim é, que ele próprio responde à Cananeia, que lhe pedia a cura de sua filha: que fora enviado só para Israel. Acrescentando não ser justo tirar o pão aos filhos para o deitar aos cães180. E, quando em João181 pronuncia a sua última prece, declara que pede só pelos que nele creem.
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Mateus, VI, 24-34. Lucas, X, 39-42. 176 Lucas, XIV, 33. 177 Mateus, V, 39 - 4.
Mateus, X, 5-7. Mateus, XIX-28. 180 Mateus, XV, 22- 26. 181 João, XVII, 9-20. 96
que não tem, até o que não tem lhe será tirado186 que mandou ceifar os que não lavraram, fazendo-lhes desfrutar do que outros lavraram187; que dos pobres será o reino dos céus, sem outro mérito mais do que a sua pobreza, ainda que sejam vagabundos; que os ricos serão castigados, só por suas riquezas, embora sejam bons188. A mesma inspiração é reconhecida pelas parábolas do convidado castigado sem culpa189 e do filho pródigo190. O dogma da predestinação encontra-se, pois, na Bíblia, erigido em verdadeira doutrina de S. Paulo191 e se constitui num retrocesso em relação ao politeísmo greco-romano, que punha a justiça e a Humanidade acima dos próprios deuses, quando eles não respeitavam as leis da natureza e da consciência. O caráter, a origem, o próprio fim teológico da moral evangélica estão comprometidos pela cir-
Mais imoral e não menos sectário ainda é o dogma da predestinação. Ninguém pode vir a mim - diz Cristo - se o Pai, que me enviou, não o trouxer182. Por isso, declara que adotará a parábola com os que não forem seus discípulos, para que não compreendam as suas palavras e não possam se salvar183. Este dogma imoral, ou sectário, se assim querem, foi posto de propósito na parábola do dono de casa, que representa Deus, o qual chama, ele, próprio, a diversas horas os operários da sua vinha, pagando-lhes depois a todos por igual. E aos que censuram a sua parcialidade, responde, em Mateus:184 Não terei eu direito de fazer do que é meu o que entender? Os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos; por isso, muitos serão os chamados e poucos os eleitos. E sempre, deste modo, e segundo esta preocupação teológica, ensina que todo aquele que se exalta será humilhado e o que se humilha será exaltado185; que àquele que tem ser-lhe-á dado e terá em abundância, e àquele
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Mateus, XIII, 12; Marcos IV, 25; Lucas VIII, 18. 187 João, IV, 38. 188 Lucas VI, 20; XVIII, 25; Mateus, XIX, 24, 25 e 26; Marcos X, 25. 189 Mateus, XXII, 8-13. 190 Lucas, XV. 191 Gal. II, 16-21; III, 10-25; I Tim. I, 9; Rom. III, 14-16; VIII, 29-30; IX, 11-12, 47 ss.; XI, 6; Ef. II, 5, 8, 9; II Cor. IV, 3, 4; II Tes. II, 10-12; I Tim. II, 25; I, 9; Filip . II, 13.
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João, VI, 44. Lucas, VIII, 10. 184 Mateus, XX, 1-6. 185 Lucas, XIV, 11. 183
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te teológica194 e em, muitos lugares cita a máxima referida, transtornando toda a ordem moral e baseando esta nas práticas do culto e nas crenças. Muitos são os exemplos do Antigo Testamento que podemos aduzir. Limitar-nos-emos a citar a instituição do bode expiatório (Levítico, XVI) e a da água de purificação. Em geral, todo o espírito, que anima a Bíblia, se baseia na moral religiosa. A Bíblia não mede o mérito ou demérito das pessoas, sob o ponto de vista das boas ou más ações, mas apenas segundo a sua devoção. Aqui temos, entre muitos outros, o exemplo de Achab. Nos capítulos que lhe são consagrados no Antigo Testamento, este rei de Israel é acusado de ímpio e tratado com a maior aspereza, apesar de não ter cometido as iniquidades de Davi e de Salomão, tão injustamente exaltadas pela Bíblia. Pelo contrário, Achab é um bom rei, humanitário, generoso, magnânimo. Mas poupou a vida ao rei da Síria, Benadad, que não acreditava no Deus da Bíblia, e por isso conquistou o ódio da casta sacerdotal.
cunstância desta moral se basear, não nas boas obras, mas exclusivamente na crença e no culto. Ensinava Cristo, além disso, que: Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado192. Esta máxima está em relação com a outra, onde Jesus diz aos discípulos que os que não escutarem suas palavras serão tratados no Dia de Juízo mais severamente do que os habitantes de Sodoma e Gomorra193. Donde se deduz que, para a moral evangélica, são preferíveis os delinquentes vulgares, contanto que sejam crentes, aos incrédulos, ainda que sejam honrados. Esta moral só pode ser teológica. Está relacionada com a moral de todo o Antigo Testamento, que como já demonstramos, é obra quase exclusivamen192
Marcos, XVI, 16. Em outros lugares Cristo prega a moral independente do culto. Esta é outra das inúmeras contradições irreconciliáveis, que provam que ele não é pessoa real, mas um objeto de especulações da mais disparatada das escolas teológicas. Veremos ainda, no tempo oportuno, que Cristo ou melhor, o Evangelho, não era original, uma vez que essa doutrina era proveniente do profetismo. 193 Mateu, X, 13-15; Marcos, VI, 8; Lucas, IX, 3.
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Vernès, op. cit.
trare, Cristo, ou antes, os que escreveram com a máscara do seu nome, proclamaram a legitimidade da perseguição religiosa195. Até os Evangelhos propriamente ditos são a pura expressão da evidência absoluta em prol desta perseguição. No capítulo XIX de Lucas, versículo 27, Jesus põe na boca de um dos personagens das suas parábolas, que é ele próprio, as seguintes palavras: E quanto àqueles meus inimigos que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e tira-lhes a vida na minha presença. Segundo Mateus196 e Lucas197, Jesus disse que todos os que não estavam com ele, estavam contra ele, palavras estas que querem significar, necessariamente, que o cristão deve ter por inimigo aquele que não é cristão. No capítulo VII de Mateus, Jesus adverte os seus discípulos de que se guardem dos falsos profetas, que são semelhantes às arvores que dão maus. Frutos. E acrescenta que toda a árvore que não der bom fruto, deve ser cortada e arremessada ao fogo198. No capítulo XV de João, Jesus
Temos porém, Davi e Salomão que cometeram toda a espécie de iniquidades, mas favoreceram a casta sacerdotal: logo a Bíblia os elevou até às nuvens. Mais ainda: Ehu, o infame Ehu, era dado à leitura dos sacerdotes. Bastou isso para que a Bíblia o enaltecesse. Veremos ainda mais tarde, dois imperadores, Juliano e Constantino: o primeiro foi um modelo de virtudes, mas nada quis com o cristianismo. Foi o bastante para passar à história com um nome infamante. O segundo, que foi um miserável, assassinando a própria família, é enaltecido pela Igreja, só por têla favorecido. Mas o coroamento deste sistema é a eternidade das penas pregada pelo manso cordeiro de Nazaré (Mateus, XXV, 41-46; XVIII, 8) e o aturar ao inimigo nesta vida: não vos vingueis do vosso inimigo, mas dai lugar à ira; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça. (Epístola aos Romanos XII, 20). Mas onde sobretudo se manifesta o caráter sectário, teológico e verdadeiramente sacerdotal da moral evangélica é na instigação às perseguições religiosas. Não só com o famoso compelle in-
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Lucas, XIV, 16-24. Mateus, XII, 30. 197 Lucas, XI-23. 198 Mateus, 15-19 196
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diz, textualmente: Eu sou a verdadeira videira, e meu pai é o lavrador. Toda a vara que não der fruto em mim, ele a tirará.. . Eu sou a videira, vós outros as varas. O que não permanecer em mim, será arremessado fora, como a vara; e secará, e será enfeixado e atirado ao fogo, e arderá. S. Paulo, repetindo a doutrina dos provérbios (XXIV, 17, 18; XXV 21-22) aconselha que se dê de comer ao inimigo que tenha fome e de beber ao que tenha sede, para amontoar sobre a sua cabeça carvões acesos, isto é, para que Deus o possa castigar infinitamente199. (Epístola aos Romanos XII, 20). As máximas da moral evangélica explicam-se perfeitamente sob o ponto de vista teológico, isto é, da intolerância irmanada com o preconceito religioso. A Igreja Católica encoleriza-se contra os que lhe recriminam as suas perseguições religiosas e autos de fé, porque o fundamento destes encontra-se na própria moral evangélica. É na Bíblia que se encontram as primeiras execuções e apologias da intolerância, com o auto de fé realizado por S. Paulo em Éfeso, onde queimou, grande numero
de livros, cujo valor, segundo os Atos dos Apóstolos, se elevava a 50000 dinheiros de prata200. E o apóstolo João testemunha que o que se revolta e não permanece na doutrina de Cristo não possui a Deus, e quem o não segue, não deve ser recebido em casa e nem sequer saudado201. Por fim, é ainda o mesmo Cristo dos Evangelhos que leva a cabo a instituição da excomunhão, colocando entre o número de adversários da igreja aqueles que com ela não se conformam202. Aqui, Jesus, falando da Igreja, delata a fábula, porque a Igreja não podia ainda existir no seu tempo, pois que só devia ter vindo depois dele e por ele. Daqui se depreende que os Evangelhos foram escritos quando a Igreja estava já constituída, pondo-se na boca de Jesus o que ele não pudera ter o dito, inventando-se, por isso, sem o menor escrúpulo. Em tese geral, pode afirmarse que o Antigo Testamento não é mais do que a escola das perseguições religiosas. Citemos, como exemplo, as perseguições seguintes Moisés faz exterminar por ordem de Deus 24.000 israe200
Atos, XIX, 19 João, II, Ep. 9, 10, 11. 202 Mateus, XVIII, 17. 201
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Epístola aos Romanos XII, 20. 100
litas, que tinham sacrificado perante o Deus Baalpeor, e ordena a carnificina de todos os moabitas, incluindo mulheres e crianças, só porque tinham induzido os israelitas à apostasia. Bastava o fato de alguém excitar a que se adorassem deuses estranhos para ser castigado com a morte. E o excitador devia ser morto, precisamente, por seu pai, por seu irmão, por sua esposa ou por um seu amigo. O livro dos Judeus não é mais do que uma alternativa perpétua de apostasias por parte dos hebreus e de horríveis castigos por parte do Deus bíblico. Elias manda exterminar 850 profetas de Baal. O profeta Eliseu ordena atrozes perseguições religiosas. Josias é bom visto por Deus, em razão das suas perseguições ferozes contra os outros cultos. Nos Salmos, as perseguições religiosas são exaltadas, invocadas e abençoadas por Deus. Jeremias pede o extermínio dos infiéis. Outro tanto se lê em Isaías. O Eclesiastes é do mesmo parecer. Nos Macabeus, o sumo pontífice Mattatias estrangula um herege sobre um altar. De tudo isto se vê que a Igreja Católica imitou bem os exem-
plos de violência e de intolerância da Bíblia. Fazendo-se perseguidora e inquisitorial seguiu apenas a Bíblia judaico cristã tanto nas palavras quanto no espírito. Pregando a intolerância e a perseguição religiosas, Cristo, ou antes, a casta sacerdotal que o inventou, não faz mais do que manter a tradição do Antigo Testamento, onde as excitações ao ódio teológico e às perseguições dos incrédulos, encontram se a cada passo. Mas, ao mesmo tempo, deixou a descoberto a origem meramente teológica do mito que deu lugar a Cristo, por mais que seja próprio da casta sacerdotal minar as máximas fundamentais da moral humana para impor o domínio daquela sobre esta, animada pelo preconceito religioso, arvorando-se única e exclusiva depositária da verdade absoluta. A origem teológica da moral evangélica se evidencia ainda em outra passagem importante dos livros do Antigo Testamento: a constante preocupação da Bíblia a favor dos privilégios da casta sacerdotal da qual ela é, por assim dizer, a carta magna, a lei fundamental. Para se convencer, basta ler os exemplos muito persuasivos da 101
Bíblia em favor desses privilégios sacerdotais: Levítico (VI, 26, 29; VIII, 31; X, 13, 14; XXV, 23; XXVII, 30-32) e sobretudo, Números, XVIII. Tendo os filisteus tomado a Arca do Senhor, o deus da Bíblia mata-os como quem mata moscas, pelo que eles resolvem devolvêla aos israelitas. Durante a viagem, a Arca Santa faz um parada entre os betsamitas, que a recebem com alegria e holocaustos. Mas, em meio desta adoração, o deus da Bíblia faz morrer 50.070 pessoas, simplesmente porque se tinham atrevido a guardar a Arca (I Reis, VI, 13, 15, 19). Uza é fulminado só porque ousou segurá-la para não que ela não caísse (Paral. XIII, 9, 10). Estes e outros exemplos, como o de Samuel que destrona o rei Saul demonstram bem que a Bíblia não é, de modo algum, uma obra histórica, mas apenas uma obra teológica da casta sacerdotal e que as teocracias da Idade Média são seus frutos genuínos. As ações que os Evangelhos atribuem a Cristo respondem também, em parte, ao espírito sectário da teologia, e, por outra, à preocupação constante da vida pós-terrena que torturava constantemente o pensamento dos seus inventores.
Recusa-se Cristo a receber sua mãe e seus irmãos, que tinham ido procurá-lo, dizendo que os seus únicos parentes são os seus discípulos203. Quando, aos doze anos, deixou a casa de seus pais, estes, fartos de pesquisas e cheios de vivas inquietações, encontramno, ao cabo de três dias, em Jerusalém, e Jesus responde secamente às doces advertências deles: Por que me procurais?204 Quando nas bodas de Canaã, sua mãe lhe observa que os comensais já não têm vinho, responde brutalmente: O que há de comum entre mim e ti, mulher?205. Quando seus irmãos o convidam a ir a Jerusalém, pela Festa do Tabernáculo, diz que não, mas apenas eles partem, logo parte também, às ocultas206. Em muitos casos, entretém-se, enganando os que lhe falam, falando ele, por sua parte, para não ser compreendido207 Outras vezes, atribui a si próprio uma missão obscurantista208 203
Mateus, XII, 46-50; Marcos II, 3135; VIII, 20-21. 204 Lucas, II, 41-49 205 João II, 1-10. 206 João,VII-2-10. 207 João, II-21 III, IV, VI. 208 João, IX-39. 102
Outras, enfim, insulta sem razão alguma, os escribas e fariseus209, porque se fazem batizar embora reconheça que são partidários da lei de Moisés, aconselhando que se faça tudo o que ela ensina210. Declara que estes estão irremissivelmente condenados ao inferno, a fim de que todo o sangue inocente derramado sobre a terra, desde Abel a Zacarias caia sobre eles211, sustentando assim a doutrina da reversão de penas, condenadas pelos próprios profetas212. Quando Pedro teve notícia do fim que levava Jesus, fez voto de que tal não sucedesse. Porém, Jesus o apostrofou, chamandolhe Satanás213. Na parábola do mordomo infiel, aprova o furto (Luc. XVI,19), apoiando-se S. Irineu no versículo 9 do capitulo XVI de Lucas, para justificar aos Israelitas, que no Antigo Testamento, por conselho do Deus da Bíblia e de Moisés (Êxodo III, 21-22) tinham roubado aos egípcios os seus vasos de ouro e prata e suas vestimentas.
Falando pacificamente ao povo, encoleriza-se de improviso, chamando hipócritas aos ouvintes, sem que motivo algum justifique tal mudança de sentimentos214. Faz-se manter pelas mulheres dos outros215 Cerca-se de gente faminta216 e vagueia com os seus discípulos sem respeitar a propriedades alheias217 Faz atirar ao mar uma manada de porcos, sem pensar no prejuízo causado aos seus donos218. Ordena aos apóstolos que não saúdem ninguém quando em viagem219. Ele prega, em suma, o egoísmo220, a hipocrisia e a vaidade221. Poderíamos continuar indefinidamente, demonstrando que o caráter e a doutrina moral de Cristo são sempre conforme a Bíblia, coisa bem diversa daquele ideal de perfeição que a Humanidade formou. Mas, para que continuar? 214
Lucas, XII, 56. Lucas VIII, 1-3. 216 Marcos II, 16. 217 Marcos II, 23. 218 Mateus VIII, 28-34; Marcos V, 1-20; Lucas VIII, 26-39. 219 Lucas X, 4. 220 Lucas XIV, 12-14. 221 Lucas XIV, 10. 215
209
Mateus, III-7. Mateus, XXIII, 2,3. 211 Mateus, XXIII, 13-36. 212 Jeremias. XXXI, 29-30; Ezechiel XVIII, 19-20. 210
213
Mateus, XVI, 22, 23; Marcos VIII, 32-33. 103
Basta-nos ter provado que a moral de Cristo não é, não pode ser a moral de um homem, mas sim a de uma seita teológica ou precisamente, da casta sacerdo-
tal preocupada, não com a Humanidade e com a realidade da vida, mas sim de preferência, com o interesse da Igreja e com a salvação da alma.
104
Terceira Parte
Cristo na Mitologia
105
CAPÍTULO I CRISTO ANTES DE CRISTO
Se Cristo nunca existiu, como e por que foi inventado ou imaginado? A esta pergunta responderá o presente capítulo do nosso trabalho, onde exporemos uma nova e luminosa prova contra a existência humana, real e objetiva de Cristo. Além disso, se demonstrarmos que outros personagens análogos, senão idênticos a Cristo, o precederam na história das ideias humanas ou nos tempos dos conceitos representativos. Se provarmos que os predecessores de Cristo, os mesmos que deram a este todos os elementos da sua vida, do seu pensamento e da sua missão não foram mais do que simples mitos, teremos demonstrado também que Cristo não é apenas uma cópia, mas um mito igual, de onde se concluirá logo que nunca existiu, a não ser na imaginação daqueles que têm acreditado nele. Começaremos por passar uma rápida vista sobre a vida e milagres dos Deuses Redentores, que precederam Cristo e da qual veio o mito cristão, pois Cristo não é mais que a repetição do mesmo tema.
A antiga Índia teve mais de um Deus Redentor. Porque nessa região, onde o maravilhoso e o sobrenatural têm a sua origem, o Deus Redentor Vischnú encarnou nove vezes, tomando forma humana para redimir a Humanidade do pecado original. Para o nosso trabalho só é interessante a oitava e nona avatar ou encarnação de Vischnú, que na oitava assume a pessoa de Cristna e na nona se encarna como Buda. Cristna, o Redentor hindu, nasce de uma virgem, a virgem Devanaguy, e a sua vinda está vaticinada nos livros sagrados hindus (Atharva, Vedangas, Vedanta). O mesmo Vischnú, o Deus bom e conservador aparece a Lakmi, mãe da virgem Devanaguy, para lhe revelar os futuros destinos daquela que estava para nascer e para lhe indicar o nome que devia impor à mãe do Redentor, recomendando-lhe, finalmente, que não una sua futura filha em matrimônio com pessoa alguma, atendendo a que se deviam cumprir os desígnios de 106
Deus222. Isto teve lugar uns 3500 anos antes da era vulgar e no palácio do rajá de Madura, pequena província da Índia oriental. A menina recebe ao nascer o nome de Devanaguy, conforme o que estava escrito. O rajá teve um sonho em que se viu expulso do trono pelo filho que nasceria de Devanaguy. Por esta razão, o tirano de Madura faz encerrar Devanaguy numa torre e soldar a porta para evitar toda a possibilidade de fuga, colocando ainda um valente guarda à vista da prisão. Tudo porém foi inútil. A profecia de Poulastya, não podia ser impedida: E o espírito divino de Vischnú atravessou as paredes para se unir a sua amada. Certa noite, enquanto a virgem orava, uma celeste música veio de improviso deleitar os seus ouvidos, iluminou-se a prisão e Vischnú apareceu diante dela com todo o esplendor da sua divina majestade. Devanaguy foi ofuscada pelo
espírito de Deus que queria encarnar-se, e concebeu. Na noite do parto e enquanto o recém-nascido exalava os primeiros vagidos, um vento fortíssimo desmoronou o muro da prisão e a Virgem foi transportada com o filho, por um mensageiro de Vischnú, à uma cabana de pastores pertencente a Nanda. O recém-nascido foi chamado Cristna. Quando os pastores souberam do depósito que tinha-lhes sido confiado prostraram-se diante do filho da Virgem e adoraram-no. O tirano de Madura, sabedor do parto e da fuga de Devanaguy encolerizou-se em extremo e ordenou uma matança geral de todos os meninos, nascidos nos seus Estados durante a noite em que Cristna tinha vindo ao mundo. Um pelotão de soldados sai imediatamente para o aprisco de Nanda, mas Cristna escapa milagrosamente daquele ameaça. São quase inenarráveis os episódios dos primeiros anos de Cristna, que saia sempre vitorioso dos perigos e ciladas que lhe armavam os que queriam a sua morte, fossem homens ou diabos. Aos dezesseis anos, Cristna
222
No poema hindu Maha Bhárata encontra-se outra anunciação, que parece ter servido do modelo à do Batista, tão semelhante ela é. A deusa solar Sâvitri deu um filho a Asvapatis, piedoso rei de Masdras, velho e sem prole que se lamentava de não ter descendência e se entregara por 18 anos a contínuas penitências e frequentes exercícios de piedade. 107
abandona os seus parentes e começa a percorrer a Índia, pregando a sua doutrina. É o tempo dos seus grandes milagres: ressuscita mortos, cura leprosos, restitui a audição aos surdos e a vista aos cegos. Proclama-se a segunda pessoa da Trindade, isto é, Vischnú, descido à terra para salvar o homem do pecado original. Os povos acudiam em massa avidamente para o ver e ouvir os seus ensinamentos, adorando-o como a um Deus e dizendo: Este é realmente o Redentor prometido a nossos pais. A sua moral é pura, elevada e completamente altruísta. Rodeia-se de discípulos que devem continuar a sua obra. Ensina por meio de parábolas. Um dia, em que o tirano de Madura enviara muitos soldados contra ele e seus discípulos, estes, tomados de pânico, quiseram fugir, especialmente Ardjuna, chefe dos discípulos, que parecia abalado na sua fé. Cristna, que estava orando perto, ouvindo os seus lamentos foi ter com eles, repreendendo-os pela sua pouca fé, aparecendo-lhes com todo o esplendor da divina majestade e com o rosto de tal modo iluminado que
nem os discípulos puderam resistir a tanta luz. Em seguida a esta transfiguração, os discípulos chamaram-lhe Jezeus, que quer dizer nascido da pura essência divina. De outra vez em que se encontrava com os discípulos, acercaram-se dele duas mulheres da pior condição que lhe derramaram perfumes sobre a cabeça e o adoraram. Quando Cristna compreendeu que tinha chegado a hora de abandonar a terra e voltar ao seio de quem o tinha enviado separou-se dos discípulos proibindolhes que o seguissem e, transportando-se às margens do Ganges mergulhou no rio sagrado. Em seguida ajoelhou-se, e orando esperou a morte. Nesta posição foi atingido por uma flecha e pregado a uma árvore. O que o matou foi condenado a vaguear eternamente sobre a terra. Quando se espalhou a notícia da morte do Redentor, os seus discípulos correram a recolher os sagrados despojos; estes porém, tinham já desaparecido, porque ele ressuscitara e subira ao céu. A nona encarnação de Vischnú é aquela em que aparece 108
como Buda223. Foi revelada em sonhos à sua mãe a grandeza do filho e o ascendente que teria sobre todos os seus semelhantes. Escolhe, para nela nascer, uma casta principesca, assim como Cristo escolheu a de Davi, e desce à terra. Isto acontecia 628 anos antes de Cristo. Por ocasião do seu nascimento, sucedem coisas maravilhosas: uma luz deslumbrante iluminou dezesseis mil mundos, os cegos viram, falaram os mudos, andaram os paralíticos, os prisioneiros recuperaram a liberdade; uma doce brisa refrescou e animou a terra, mananciais fresquíssimos rebentaram do seu seio, as florestas abriram-se em corolas multicores e dos céus choveram lírios de aromas inebriantes. De suas altíssimas moradas, saíram espíritos para vigiar o palácio onde devia nascer a criatura e desviar dele e de sua mãe todos os males. Tão logo nasceu, pôs-se de pé, e diante dos espíritos e dos ho-
mens maravilhados, aparece no céu uma estrela brilhante, acodem reis a adorá-lo, e da terra, surge a famosa árvore Bo, sob cuja sombra deveria transformar-se em Buda: Aquela árvore tem as folhas continuamente em movimento, com o que se quer significar o estremecimento comemorativo da sagrada cena de que foram testemunho, à semelhança do que dizem os sírios, acerca das folhas da trêmula, que incessantemente se agitam em memória da crucificação de Cristo, de cuja árvore se diz ter sido feita a cruz. Entre os que cheios de gozo vão visitar a maravilhosa criatura, fala-se principalmente de um velho, muito semelhante ao nosso Simeão, que em troca da sua vida devota recebeu o dom das profecias. E, embora o seu espírito se alegrasse pelo futuro reservado a esse menino, não podia deixar de chorar pensando que, em virtude dos seus anos não poderia assistir aos triunfos dele. A mãe de Buda chama-se Maya ou Maïa, e concebera-o de um modo maravilhoso, fora de toda a relação conjugal. Quando morreu, foi por suas virtudes, recebida no céu, onde habitam os Nat.
223
Ao nascer, foi chamado de Guatama, nome da tribo a que pertencia sua família; Sâkya-Muni, o mentor espiritual dos Sâkya; Siddârtha, nome imposto por seu pai e significa Aquele no qual se cumpriram os desejos, e, posteriormente, Budda, que significa O iluminado, palavra derivada do radical budh (saber) 109
Buda era belo e dotado de extraordinária inteligência, maravilhando os doutores pela sua sabedoria. Por fim, abandonou o teto paterno para levar a cabo a sua missão. Enquanto jejuava no deserto, à sombra da árvore, por um período de 49 dias (7x7) foi tentado várias vezes pelo demônio, sempre saindo vitorioso. Pregou pela primeira vez em Benares, convertendo à fé grandes e pequenos. A sua moral, como veremos, é muito superior à de Cristo. O mais célebre dos seus discursos ficou sendo chamado, em virtude do local onde foi pronunciado, de o Sermão da Montanha, precisamente como o de Cristo. Depois da morte, aparece aos discípulos, em forma luminosa, com a cabeça circundada de uma auréola. Buda teve também um discípulo traidor, Devadatta. Não deixou nada escrito. Os seus discípulos, porém reunidos em conselho geral recolheram todas as suas doutrinas. Entre esses discípulos, houve dois de natureza diametralmente oposta: um sério e crente em absoluto e cheio de zelo; outro dulcíssimo por natureza e predileto
de Buda. O mesmo que Pedro e João, discípulos de Cristo. Buda, como Cristo, revoltouse contra o poder soberano dos sacerdotes. Como os cristãos, os budistas estão divididos em varias seitas. No budismo encontram-se todas as práticas religiosas do cristianismo. E tanto é assim que, quando os missionários católicos se encontraram pela primeira vez com os monges budistas, acreditaram numa tentação do diabo, o qual teria sugerido a esses monges as práticas católicas, sem pensarem que os imitadores não podiam ter sido os budistas, muito mais antigos que os cristãos. Até no seu Papa (Dalai Lama) e na sua infalibilidade, os budistas precederam os cristãos. Mas, não antecipemos o plano da nossa obra e continuemos narrando a história dos Deuses Redentores, precursores de Cristo. Do pouco que já dissemos se depreende, com evidência que não pode ser maior, que na Índia houve uma encarnação do Deus Redentor, 3.500 anos antes de Cristo, e outra seis séculos anteriores, também, e que em seu Jezéus Cristna e em seu Buda exis110
Maury225, em Mitra realiza-se a união da ideia física da passagem das trevas para a luz, com a ideia moral da união do homem com Deus. Mitra, chamado também Senhor, nasce de uma virgem, numa gruta. Como Cristo, que nasce num estábulo, também de uma virgem. O dia em que nasce Mitra é o mesmo em que, depois, nasce Cristo: em 25 de dezembro, isto é, no solstício do inverno. Este dia era o da festa principal da religião dos Magos, segundo Freret e Hyde. A mãe de Mitra continua virgem depois do parto. Na esfera dos magos e dos caldeus, o signo zodiacal da Virgem, tem junto desta um menino e um homem, que parece ser o suposto pai da criatura. O nascimento de Mitra anuncia-se astrologicamente por uma estrela, que aparece do Oriente, e pelos magos que lhe levam perfumes, ouro e mirra. Mitra, que nasce em 25 de dezembro, como Cristo, morre como ele, no equinócio da primavera. E, como ele também, teve o seu sepulcro, ao qual iam
tem já quase todos os elementos do mito cristão, aos quais se assemelham extraordinariamente. Quanto mais avançarmos na breve resenha dos Deuses Redentores que precederam Cristo, mais claramente veremos que na época em que foi concebido este mito (de Cristo), não foi preciso inventar nada para conformá-lo tão bem quanto foi configurado. Vejamos agora Mitra, o Deus Redentor da Pérsia, que como observa Stefanoni, é um ponto de passagem entre o avatar, encarnação hindu, e a encarnação cristã. A diferença característica entre os dois antropomorfismos não é, na realidade, muito sensível. Ocorre porém, considerar que na encarnação hindu é a divindade única e absoluta que toma da forma humana, sem vínculo algum de inferioridade com o pai celestial, ao passo que a encarnação cristã se distingue pela procedência do filho do pai. E nos livros sagrados da Pérsia, o Deus Redentor transforma-se em patrono de Ormuz, quase igual a Deus. Mitra é precisamente o intermediário entre Deus e os homens, como diz Plutarco224. Além disso, como nota
225 224
Crenças e lendas da antiguidade, c. Mitra.
Sobre Isis e Osiris, c. 46. 111
os seus iniciados derramar lágrimas. O escritor cristão Firmico conta que os sacerdotes levavam ao túmulo, de noite num andor, a imagem de Mitra, cerimônia que eles acompanhavam com cânticos fúnebres. Acendia-se o círio sagrado (círio pascal), ungia-se com perfumes a imagem do Deus e um dos sacerdotes declarava solenemente que Mitra tinha ressuscitado e que as suas penas tinham remido a Humanidade. Outra parte da vida de Cristo na mitologia persa, já tinha sido aplicada a Zoroastro. O reverendo dr. Mills, eminente teólogo e sábio cristão não pode deixar de se render à evidência, declarando e reconhecendo que a tentação de Cristo figurava já na mitologia persa, como tentação de Zoroastro, e acrescenta: Nenhum súdito persa, que passeasse pelas ruas de Jerusalém, poderia deixar de reconhecer imediatamente este maravilhoso mito. Mais adiante veremos a surpreendente semelhança entre os mistérios persas e os cristãos, semelhança tão extraordinária, que S. Justino, não podendo negá-la nem sabendo explicá-la com razões favoráveis à ortodoxia, acusava o diabo de ter revelado aos persas os mistérios do cristianis-
mo, antes do nascimento de Cristo. Continuemos com a resenha dos Deuses Salvadores. Os egípcios tinham também o seu Deus Salvador em Horus, convertido depois em Osiris ou simplesmente Serápis226. Horus também nasceu de uma virgem no solstício do inverno e morreu no equinócio da primavera para depois ressuscitar como Cristo. Horus estava exposto no solstício do inverno sob a imagem de uma criatura à adoração dos fiéis, porque então, diz Macróbio, o dia era mais curto e este Deus não passava de um débil menino: o menino dos mistérios, cuja imagem os egípcios tiravam de seus santuários todos os anos e em um dia determinado (25 de dezembro ). Deste menino proclamava-se mãe a deusa de Sais, na famosa inscrição: O Deus que pari é o Sol. O deus Horus teve também a sua fuga, levado pela virgem Ísis, montada sobre um jumento. O mesmo mito foi aplicado no Egito ao rei Amenófis III, que convém recordar aqui por ser um 226
Segundo a lenda egípcia, no dia em que nasceu Osiris uma voz gritou do alto do céu, que tinha nascido o Senhor de todo o mundo. (Plutarco, De Isis e Osiris, XIII O evangelista Lucas (II, 11) apenas copiou a lenda egípcia. 112
documento da maior importância para demonstrar que, dezoito séculos antes de Cristo, os mistérios que se encontram no Evangelho de Lucas (c. I e II) já eram conhecidos. Trata-se de um quadro pintado numa das paredes do templo de Luxor, no qual se veem as cenas da Anunciação, da Concepção, do Nascimento e da Adoração. Este quadro foi reproduzido por G. Massey no seu livro Natural Genesis227. Na primeira cena, o Deus Yath, o Mercúrio lunar (anjo Gabriel) saúda a virgem e lhe anuncia que ela dará à luz um filho. Na cena seguinte, o Deus Knept (o Espírito) produz a concepção. Na cena da adoração, o menino recebe as homenagens dos deuses e as oferendas de três personagens (os Magos). Também Baco nasceu no solstício do inverno, depois de morto desceu aos infernos e ressuscitou, e a cada ano se celebravam os mistérios da sua paixão no equinócio da primavera. Chamava-se Salvador, como Cristo, e como ele, realizava milagres curando enfermos e prevendo o futuro. Na sua infância, ameaçaram matá-lo, como Herodes a Jesus, em uma emboscada. No
templo de Baco operava-se o milagre da mudança de água em vinho, tal qual fez Jesus nas bodas de Canaã. Igualmente, Adônis, cujo nome significa meu senhor, tinha as suas festas que duravam oito dias (adonias), quatro de luto pela sua morte e quatro de alegria pela sua apoteótica ressurreição. Uma verdadeira semana santa sem lhe faltar nem mesmo os santos sepulcros, onde as mulheres executavam lamentações fúnebres em torno do deus morto. Apagavam-se todos os círios, menos um (o pascal) que se escondia no altar, para de novo ser mostrado no dia da ressurreição. Depois, o deus morto ressuscitava e o luto dava lugar à alegria. Estas festas continuaram a ser celebradas no mundo antigo, especialmente entre os fenícios, durante mais de cinco séculos, antes de se transformarem nas da paixão de Cristo. Um dos rasgos característicos dos Deuses Redentores é a sua descida aos infernos, durante o tempo em que estão mortos. Também antes de Cristo e em idênticas condições, Baco, Osíris, Cristna, Mitra e Adónis, aproveitam o tempo em que estavam mortos para fazer nova visita aos defuntos. (Dupuis, Ori-
227
Citado por Malvert in Ciência e Religião. 113
gem de Todos os Cultos, V, 204348). Poderemos continuar a resenha dos Deuses Redentores, de idênticos caracteres e notórios representantes do Sol: como Ati na Frígia, Belenho entre os Celtas, Joel entre os germanos, Fo entre os chineses, etc.
Até agora temos demonstrado suficientemente que, quando Cristo foi concebido, já tinham existido muitos Cristos antes dele. O leitor, neste ponto, deve por si próprio tirar suas conclusões e deduzir consequências espontâneas e naturais.
114
CAPÍTULO II A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL
Neste ponto poder-se-ia objetar que Cristo não foi copiado dos Deuses Redentores dos outros povos, porque, como nós próprios já admitimos228, Cristo é um mito adaptado às alegorias do Antigo Testamento. Mas esta dificuldade logo desaparecerá assim que se prove que nem mesmo o Antigo Testamento é original, e que ele, ou antes a sua mitologia, se limita a uma cópia das mitologias orientais. De sorte que, se por um lado, Cristo é uma cópia dos Deuses Redentores do Oriente, e por outro, o mesmo Antigo Testamento, do qual Cristo depende, é pura cópia das mitologias orientais, teremos que, enquanto Cristo deriva dos Deuses Redentores, o mesmo Antigo Testamento, a que Cristo se adapta deriva das mitologias orientais criadoras dos mitos dos Deuses Redentores. Em outras palavras: sem o pecado original, que serve de base ao Antigo Testamento não teria acontecido a Redenção, que serve de base ao Novo. Logo, se o 228
pecado original deriva das mitologias orientais, com mais razão derivará Cristo, porque Cristo está para os Deuses Redentores, assim como o Novo Testamento está para as mitologias orientais, e por sua vez, Cristo está para o Antigo Testamento assim como os Deuses Redentores do Oriente estão para as mitologias orientais. Neste capitulo, demonstraremos que a mitologia do Antigo Testamento é uma imitação das mitologias precedentes. A mitologia do Antigo Testamento baseia-se nestes conceitos fundamentais: Deus, a Criação, a queda dos anjos, o Éden, Eva, a Serpente e o Pecado Original, o Dilúvio, a Torre de Babel, os Anjos e os Demônios, o Paraíso e o Inferno, os Patriarcas, um legislador inspirado e os Profetas. Pois bem: esta mitologia não é original, porque outros povos a tiveram, muito antes dos hebreus. As origens filosóficas do Deus hebreu são comuns com as dos outros deuses semíticos: Jahveh, Jahouh. Jeová nasce de Eloa, Ilou, Jahouh, Jahoh, que
Segunda Parte, cap. III, IV. 115
são os nomes de Deus tirados de vários povos semíticos. Sobre o Deus hebraico tiveram incontestável influência os outros deuses alheios ao grupo semita, como Ahoura Mazda, persa, e Jeová, hebraico, que é - Aquele que é. A criação tem lugar no Gêneses, como em todos os livros sagrados de todos os povos mais antigos. No Zend-Avesta, dos persas, o Ser Eterno cria o Céu e a Terra, o Sol, a Lua e as Estrelas, em seis Períodos, e o homem, como no Gêneses, aparece no último229. Contando o dia de repouso temos sete dias ou períodos, número tido por sagrado nas nações antigas porque provinha da primitiva adoração do Sol, da Lua e dos cinco planetas e das fases lunares, que tinham lugar de sete em sete dias Assim como a lenda da criação, a do fim do mundo também foi adaptada a partir das mitologias orientais. Volney explica que isso aconteceu pela interpretação equivocada das tradições astronômicas persas e caldeias. De acordo com estas, o mundo seria composto de um total de
12.000 revoluções (em torno do Sol) divididas em duas revoluções parciais, das quais uma seria a idade do bem, que terminaria após seis mil anos, e a outra, a idade do mal, que terminaria depois de outros seis mil anos. Como se vê, fazem uma alusão à revolução anual do planeta, composta de 12 meses, cada um dividido em 1.000 partes e os dois períodos de inverno e verão, cada um dividido em 6 meses, ou 6000 partes. Esta divisão, inicialmente apenas astrológica, foi posteriormente tomada em sentido concreto e interpretada como se o mundo fosse durar 12.000 anos, divididos em 6.000 anos de felicidade e outros 6.000 de infelicidade. Supondo que aqueles até então passados fossem os anos de infelicidade, conforme cálculos atribuídos aos 70 eruditos judeus, os cristãos acreditavam que o fim do mundo, ou dos 6000 anos estava próximo, tanto que nos Evangelhos Cristo anuncia o iminente fim daquela geração. Sabe-se como essa crença abalou a autoridade da Igreja cristã nos primeiros séculos, tanto que, depois do ano mil, foi relegado o cumprimento da profe-
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A ordem da criação persa é idêntica à do Gênesis (Hyde, Valney etc.) Notável e a circunstância de que nos livros sagrados dos etruscos também se encontra a mesma tradição. 116
cia do Apocalipse, o que não conseguiu salvar o prestígio dos livros sagrados cristãos quando se percebeu que a Profecia dos Evangelhos colocada na boca de Cristo não se concretizara. A lenda do fim do mundo, como se encontra na Revelação é uma cópia idêntica da lenda dos livros sagrados da Índia, que têm as mesmas imagens e os mesmos fenômenos que no do Apocalipse. Não é a toa que se imagina que o pretenso autor do Apocalipse esteve na Ásia e o tenha escrito após o seu retorno. A descrição do fim dos tempos, tanto no cristianismo, como na religião zêndica é que o mundo será consumido pelo fogo, aceso por um cometa. Em seguida, o zêndico Messias, precedido por dois profetas (Elias e Enoque, na mitologia judaica), virá ao mundo para destruir o império das trevas e julgar os vivos e os mortos. Apenas no mazdeísmo é que mesmo os ímpios serão limpos e perdoados. Na criação hindu, segundo as leis de Manu, o universo estava submerso nas trevas, como no Gêneses, quando o invisível Brahma as dispersou e criou as águas, imprimindo-lhes o movimento.
Criou logo uma série de divindades subalternas, chamadas anjos, presididas por Mohassura. Este, movido por um desenfreado desejo de reinar induz os anjos à rebelião contra o Criador, de quem se afastara. Siva foi encarregado de os expulsar do céu superior, e precipitá-los nos globos inferiores (inferno). Brahma criou o homem e a mulher, dando-lhes a consciência e a palavra, tornando-os superiores a tudo que tinha criado, só inferiores aos Devas e a Deus. Ao homem chamou Adima (Adão, o primeiro homem) e à mulher Heva (Eva, a que completa a vida). Colocou-os em um paraíso terrestre em meio de uma esplêndida vegetação; ordenou-lhes que se unissem, procriassem e o adorassem por toda a vida, e proibiu-lhes de deixar o paraíso terrestre (Ceilão). Eles desobedeceram e logo o encanto da Natureza desapareceu. Brahma os perdoou, mas expulsa-os daquele lugar de delícias, e condena-lhes os filhos a trabalhar, prevendo que se tornarão maus influenciados pelo espírito do mal que invadira a Terra. Consola-os, porém dizendo que lhes enviará Vischnú, que se encarnará no seio de uma mu117
lher, para redimir o gênero humano do pecado. Na mitologia persa, Ormuz promete ao primeiro homem e à primeira mulher a felicidade eterna, desde que se mantivessem bons. Mas um demônio com a forma de serpente é enviado por Ariman. Nesse demônio acreditam, pois os persuade de que Ariman é o distribuidor de todos os bens, e começam a adorá-lo. O demônio levou-lhes alguns frutos, que logo comeram, desaparecendo imediatamente a felicidade de que gozavam. Expulsos desse lugar, começaram matando animais para se alimentarem, cobrindo-se com as peles dos mesmos. E no coração destas infelizes criaturas humanas, nasceu o ódio e a inveja e foram malditos, eles e suas gerações. Uma particularidade digna de nota é a semelhança entre o paraíso terrestre persa com o Éden do Gêneses. O paraíso persa chama-se Eren, em vez de Éden, tendo havido corrupção de uma letra na passagem da lenda persa para a hebraica. Em outros paraísos terrestres há os mesmos rios. A árvore tem doze frutos, que correspondem aos 12 signos do zodíaco e aos 12 meses do ano
durante o qual o Homem passa alternativamente por períodos de bem e de mal, de luz e de trevas, de calor e de frio. O Gêneses não faz menção deste número, mas fala do Apocalipse. Para finalizar. No nome do anjo posto de guarda no jardim, vê-se a semelhança da cópia com o original: No Zend-Avesta ele se chama Chelub enquanto que no Geneses é Cherub (Querubim) Os hebreus tomaram igualmente, dos persas, durante o seu cativeiro nas margens do Tigre e do Eufrates, a ideia da imortalidade da alma e da vida futura, e, consequentemente, a mitologia dos anjos e demônios. Os próprios nomes dos anjos (dividido em 7 ordens como as 7 órbitas dos planetas), - Gabriel, Miguel, Rafael, Querubins, Serafins, Tronos (Ofanins) e Dominações - foram copiados das religiões persa e caldaica. O vocábulo Satã significava entre os hebreus, diz Bianchi-Giovini, um homem inimigo. Foi só depois do desterro do Babilônia é que foi usado com o significado de anjo do mal. Mesmo Asmodeu, que no Antigo Testamento foi causa de perturbações histéricas em mulheres 118
(Tobias, III,8; VI,14) foi copiado do Aeshmodaeva persa, o deus da concupiscência. O Paraíso e o Inferno provêm dos mitológicos orientais. Paraíso, em persa, significa jardim. O Paraíso e o Inferno, já figuravam na mitologia dos hindus, persas, egípcios, gregos (Elísio), romanos (Tártaro), gauleses e escandinavos. Mas esses povos não conheceram a eternidade das penas. Isso estava reservado para ser proclamado pelo manso cordeiro de Nazaré. Quanto ao Purgatório, a Bíblia não o conhece, nem no Antigo nem no Novo Testamento. A Gregório devem os cristãos as primeira menção do Purgatório, cuja ideia foi talvez tirada de Platão, que dividiu as almas em três classes: as puras, as curáveis e as incuráveis. Os Vedas contam também a lenda do Dilúvio230. Os filhos de Adima e Heva tornaram-se tão numerosos e tão maus, que chegaram a negar à Deus e suas promessas. Então, Deus resolveu castigá-los, mandando-lhes o Dilúvio. Só se salvou Vaiwasvata, por causa das suas virtudes. O
senhor mandou-o avisar do que sucederia, que construísse um barco onde se encerraria com sua família, um casal de todas as espécies animais e exemplares de todas as plantas. Quando o Dilúvio findou, Vaiwasvata desembarcou no cimo do Himalaia. A narrativa caldaica é ainda mais importante porque explica melhor a origem do Gêneses. Essa lenda foi recentemente decifrada nas tábuas encontradas na ruína de Ninive, onde se encontrou toda a mitologia, de que a hebraica não é senão cópia. O Deus Ilu adverte Xisultrus de que em breve um dilúvio destruirá todo o gênero humano, e manda-lhe que escreva uma história de todas as coisas, que enterrará na cidade do Sol. Também lhe ordena que construa uma embarcação na qual se recolherá com sua família e os seus amigos, um casal de cada espécie animal com alimentos para todos. Para saber se as águas tinham já descido, fez sair do barco, por três vezes, algumas aves que à terceira vez não voltaram, sinal evidente de que encontraram terra seca, onde pousar. A nave dá sobre a montanha e ele sai com os seus. As memórias caldaicas das
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Regnaud no livro, Como Nascem os Mitos, demonstra a precedência da lenda védica sobre a semítica (pp. 59 e segs.). 119
Tábuas de Nínive, falam também da lenda da construção da torre de Babel. Os primeiros habitantes da terra, orgulhosos de sua força e poder começaram a depreciar os deuses, levantando no lugar onde ficava Babilônia uma torre que chegasse até ao céu. A certa altura, porém, os deuses, auxiliados pelos Ventos, derrubaram o edifício e confundiram a linguagem dos homens, que até então falavam uma só língua. A Bíblia fala de dez patriarcas que viveram antes do dilúvio, e morreram com idade muito avançada; A tradição caldaica fala também de dez monarcas que reinaram 432.000 anos; Nos contos árabes, chineses, hindus e germânicos fala-se de dez personagens igualmente míticos que viveram antes do período histórico. Também foram dez os primitivos reis da tradição sagrada persa e dez heróis da Armênia. Dos dez patriarcas hebreus, ressalta-se especialmente Abraão pelo seu famoso sacrifício. Pois bem: não é mais do que uma cópia da lenda do patriarca Adgigatha que se lê em Rhamatsariar, livro das profecias hindus. Adgigatha é um homem justo, predileto de Brahma, sem filhos até que este faz sua mulher con-
ceber de um modo milagroso. Um dia, Brahma ordena-lhe que sacrifique o filho, e se bem que tal ordem lhe apunhale o coração, dispõe-se a obedecer, quando Brahma, tomando a forma de pomba lhe aparece ordenando-lhe que guarde o filho e acrescentando que este viveria longo tempo, porque dele devia nascer a Virgem que conceberia de gérmen divino. As modernas investigações no Egito vieram pôr a descoberto a historieta de José e da mulher de Putifar, que foi tirada do romance egípcio os Dois irmãos. O legislador da Bíblia é, enfim, um copista fiel das antigas mitologias. Aqui, cedemos a palavra a Jacolliot231: Um homem chamado Manu dá à Índia leis políticas e religiosas. O legislador egípcio recebe o nome de Manes. Um cretense vai ao Egito para estudar as instituições que pretende implantar em seu país, e a história confirma nos anais o seu nome: Minos. E finalmente, o libertador da casta dos escravos dos judeus que fundou uma nova comunidade se chama Moisés. 231
La Bible dans l'Inde, Vie de Iezeus Christna (1869) 120
"Manu, Manes, Minos, Moisés, aqui estão quatro nomes que dominaram o mundo antigo. Os quatro aparecem nos primórdios de quatro povos diferentes para representar o mesmo papel, cercados pela mesma aura misteriosa de grandes sacerdotes e legisladores, fundadores de sociedades sacerdotais e teocráticas. Sabemos que um precedeu aos demais. Manu foi o precursor, disto não resta a menor dúvida, vendo a semelhança de nomes e de identidade das instituições que eles criaram. Manu, em sânscrito, significa o Homem por excelência, o legislador. Manes, Minos e Moisés, evidentemente vêm da mesma raiz sânscrita. As variedades leves de pronúncia são consequência da diversidade de línguas que se falava no Egito, na Grécia e na Judeia. Será muito fácil provar que os três últimos são a continuação de Manu, e quando se averígua, como já se fez, que a Índia é a origem de todas as lendas da antiguidade, não se estranhará dizer que a Bíblia nasceu na Alta Ásia. Será mostrado que as influências e as memórias dos berços da civilização, continuando
através dos tempos fizeram dar ao legislador judeu que queria regenerar o mundo, um nome similar ao de Jezeus Cristna que tinha, de acordo com tradições indianas, regenerado o mundo antigo. O Egito, pela sua posição geográfica, seria necessariamente um dos primeiros países colonizados pela emigração indiana a receber a influência desta antiga civilização que chegou até nós. Verdade evidente quando se estudam as instituições do Egito, totalmente baseadas nas da Alta Ásia, e das quais não se tem como negar a procedência. Jacolliot faz em seguida o paralelo entre as instituições do Egito, do Antigo Testamento e da Índia para demonstrar que as primeiras são uma simples cópia da última e que Moisés e Manes são plágios de Manu. Ao que acrescentaremos que também já está demonstrado e provado incontestavelmente pela exegese e a crítica literária da Bíblia que os livros atribuídos a Moisés não podem ser de sua autoria. Malvert afirma que Moisés é o nome do Deus solar Masu. Esta etimologia concorda com a de Jacolliot. A origem do nome pouco importa, de resto. O im121
portante é saber-se que Moisés também é um mito. Pigault-Lebrun faz o seguinte paralelo entre Baco e Moisés: Os antigos poetas fazem nascer Baco no Egito; Moisés também; Baco é exposto ao Nilo, como Moisés; Baco é transportado ao monte Nisa, Moisés ao Sinai uma deusa ordena a Baco que destrua um povo bárbaro. Moisés recebe a mesma ordem. Baco passa o Mar Vermelho a pé enxuto, Moisés também. O rio Horusnte suspende o curso em homenagem a Baco, e o Jordão em favor de Josué; Baco ordena ao Sol que pare, Josué igualmente. Dois raios luminosos surgem da cabeça de Baco, o que também sucede a Moisés, raios que as crianças confundem com cornos. Baco faz nascer da terra uma fonte de vinho Moisés, tocando em uma rocha, faz brotar água. Além disso, a assiriologia demonstrou que a história de Moisés foi copiada, em parte, da do rei arcadiano Sargon, que nasceu em um lugar deserto, foi colocado por sua própria mãe num cesto de vimes, lançado ao rio e recolhido e educado por um estranho, depois do qual foi rei mil e tantos anos antes de Moisés, como diz o reverendo
Bown. Nem mesmo o profetismo é invenção judaica. Aqui também o judaísmo copiou a Pérsia, que, em tempos remotos supos que a história do mundo era uma série de períodos cada qual presidido por um profeta. Cada profeta tinha sua Kazar, que era um reinado de mil anos (quialismo ou milênio). E no suceder destas períodos é composta a trama dos acontecimentos que prepararão o reino de Ormuzd. Ao final dos tempos, terminada a época dos quialismos, virá o paraíso. Na Bíblia judaico cristã, os personagens correspondem também a outros entes mitológicos, por exemplo Elias que, com sua carruagem de fogo e seus cavalos flamejantes, reproduz o Apolo grego. Sansão e Jonas são cópia do mito pagão de Hércules, que também, como Jonas, permanece encerrado três dias no ventre de um monstro marinho e que, como Sansão, também significa pequeno sol. Assim provamos que a mitologia do Antigo Testamento não é original, mas uma cópia de mitologias anteriores. Tanto basta conhecer esta para conhecer 122
aquela. Poderíamos reforçar isso com uma maior abundância de documentos de fontes mitológicas de outros povos, mas seria uma excessiva preocupação erudita que nada acrescentaria à nossa demonstração Em conclusão: se o Antigo Testamento não é original, quem não vê em Cristo, que está indissoluvelmente ligado à mitologia do Antigo Testamento, uma cópia das antigas alegorias? Para mais completa persuasão do leitor, recordaremos que a descoberta das inscrições cuneiformes feitas nas escavações de Babilônia, resolveram para sempre este ponto de história mitológica, pondo acima e fora de toda a discussão, o nosso ponto de vista. Quer dizer que a criação, a queda de Adão, o próprio decálogo, o dilúvio, a semana de sete dias o descanso dominical, o próprio descanso de sábado e um grande número de prescrições rituais, morais e penais foram para o Antigo Testamento depois da civilização caldaica. O decálogo de Moisés foi copiado de uma recopilação de leis
do rei Hamurabi, oito séculos anterior a Moisés. Na tábua recentemente descoberta em Susa, pelo sábio assiriólogo Morgan, o rei Hamurabi esta representado no ato de receber das mãos de Deus (o deus Sol) um livro das leis, cena que prova que a de Moisés no Sinai é uma cópia. As leis de Hamurabi contem, além do decálogo que depois foi copiado pelo legislador hebreu e atribuído a Moisés, as ferozes prescrições penais do Deus Pai dos cristãos, entre elas a pena de Talião. Sobre as revelações devido a estas descobertas surgiu na Alemanha um debate significativo. O prof. Friedrich Delitzsch divulgou que, numa sua conferência pública a que assistiram o imperador Guilherme II e sua consorte imperial, este o tinha cumprimentado. O mundo ortodoxo na Alemanha reprovou o imperador como um adesista a um sistema que destrói a revelação, a divindade de Cristo, a religião e, consequentemente... os privilégios que a religião, a base do direito divino e força conservadora por excelência, desfrutava...
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CAPÍTULO III ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES
Passamos em revista vários Deuses Redentores anteriores a Cristo e dos quais ele é uma simples cópia. Para que seja completa a nossa demonstração e persuada a todos é preciso demonstrar a origem e significado destes Deuses que, de origem humana e significação naturalista são a transfiguração de um mesmo mito, coisa que foi já magistralmente demonstrada por Dupuis e Volney, cujos sistemas podem ser atacados, mas não seriamente refutados e a cujas obras remetemos os que quiserem profundar o assunto232. Ainda que a primitiva humanidade tenha podido passar do fetichismo ao politeísmo e deste ao monoteísmo, segundo a comum opinião dos mitólogos, especialmente de Girard de Rialle, encontramos ainda na época religiosa, que é a que mais nos interessa, que o culto da Humanidade tem por origem principal o Sol. O Sol é o manancial da vida do Universo; a sua luz é a fonte
de toda a beleza o movimento que origina é a causa de todo o bem. Ele e só ele é o verdadeiro, o Belo, e o Bom: é uno e trino. A primeira adoração da Humanidade dirige-se ao ministro máximo da Natureza, ao distribuidor de todo o bem, à luz incriada e eterna, à força fecundante do universo. Do Sol deriva a primitiva ideia de Deus. As próprias investigações dos orientalistas estabeleceram que até mesmo a etimologia da palavra Deus procede de um atributo do Sol, de Devv e da raiz divv, que em sânscrito significa, precisamente, o luminoso. Da raiz divv se derivam quase todos os nomes da suprema divindade dos povos europeus: desde o theos dos gregos ao disvas dos lituanos, do deus latino ao dia irlandês, até ao dieu dos franceses, ao dio italiano, ao dios dos espanhóis, etc. A ideia de Deus é, pois, originária do simples conceito do Sol, este corpo luminoso que tão grande influência exerce na vida do homem e de toda a natureza. Por outro lado, como o Sol é inacessível aos homens, estes
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Ciência e Religião de Malvert e Os Adoradores do Sol de Moy, que tratam a questão sob o ponto de vista mitológico e evolutivo. 124
não podem usufruir diretamente os seus benefícios, a não ser por meio do fogo ou seja a acumulação do calor solar nas plantas, não se remindo de seus males, até ao dia em que o Fogo foi descoberto pela ação de dois lenhos cruzados. E, descendendo, por assim dizer, do Pai Celestial, trouxe ao homem a sua proteção, dando-lhe alimentos, metais, utensílios, armas, meios enfim, de defesa e de saúde. Eis aí a origem da antiquíssima veneração dos homens pela cruz, desde que o Fogo, filho do Sol e consubstancial com ele, salvador da Humanidade que tanto lhe deve, se produz por meio de uma cruz de madeira, obra de carpintaria, na qual se realizava, ao contato do Espírito, ou do ar, o mistério do Salvador da Humanidade nascido de Maya. Daí o mito de Perseu, que faz baixar o fogo do céu à terra; o de Prometeu, que o rouba do céu para salvação da Humanidade, sendo por isso condenado a permanecer no Cáucaso com os braços em cruz, e sobretudo, o mito hindu da Trindade primitiva de Savistri, Agni e Vayu, que indica claramente a sua origem, isto é: o Sol, o Fogo e o Ar. No rito védico, celebrava-se
todos os anos o nascimento de Agni, no solstício do inverno, (25 de Dezembro) isto é, na época que coincide com o renascimento anual do Sol. Há os sacerdotes que sobre o altar derramam um licor sagrado, o espirituoso soma. Há a unção e Agni toma o nome de Unto (em grego Crisnos, Cristo). A oferta do pão e do vinho fazia-se ao fogo sagrado, sobre o altar. Agni é também o mediador da oferta, o sacrificador que a si próprio se oferece como vítima. Os sacerdotes e os fiéis recebiam, cada um, uma partícula da oferta (hóstia) e a comiam como um alimento onde estivera Agni, Esta antiga Trindade, composta do Sol (Savistri) o pai celeste; do Fogo (Agni) filho e encarnação do Sol, e do Espírito (Vayú) o sopro do ar, ficou como dogma fundamental das religiões de origem ariana. Agni se transforma em Agnus. O Fogo é substituído pelo Cordeiro, que também era imagem de Deus Redentor. No cristianismo, também o Cordeiro ocupou na cruz o lugar de Cristo durante seis séculos, até que o Concílio Quintesexto de Constantinopla (692 dC.) o mandou substituir pelo corpo de 125
Cristo.(cânone-82)233. Naturalmente, com o tempo e o significado da linguagem, ao passar do próprio para o figurado, do físico para o moral - sábia observação de Valney, que serviu de base ao sistema de Muller - a antiga fonte do mito foi se esgotando, ou melhor, foi se transformando. O gérmen primitivo, e ideia fundamental, essa, porém, fica sempre. Só esta chegou à compreensão das outras forças físicas, remontando- se à concepção das ideias morais. Porém, ainda mesmo que pelo processo do tempo e origem naturalista do mito perdesse ou mudasse o significado, e ainda que se fizesse mais antropomorfo, se indianizasse - jamais se perdeu o conceito fundamental que, servindo de base às religiões, isto é, que o Deus criador foi o Sol, e que o filho, em quem tinha encarnado para salvar a Humanidade era ainda e sempre o Sol, seja direta, seja indiretamente, com o caráter de fogo.
É assim que, apesar do desenvolvimento que logo tomou a teologia, a origem do mito não desapareceu nunca de todo. Ainda mais: os próprios desenvolvimentos teológicos do tema, fizeram-se sobre a base das revoluções da Natureza, e especialmente do Sol. A vida dos Deuses Redentores é a descrição da vida do Sol. Nascem todos no solstício de inverno, e precisamente, em 25 de dezembro, quando o Sol, que parece próximo a extinguir-se, volta a renascer. É a criatura, o infante. E todos eles morrem para ressuscitar na primavera, quando o Sol recupera todo o seu poder e esplendor, triunfando das trevas do inverno, do mal, de Tiffon, de Siva, de Ariman, de Satanás. Cristna, Mitra, Horus, Apollo, Adonis, como Cristo, todos nascem em 25 de dezembro e ressuscitam no equinócio da primavera. O Deus do dia foi, pois, personificado no Deus Criador, primeiro e Redentor depois, e submetido a todas as peripécias humanas. Que isto sucedera a respeito dos Deuses Redentores da antiguidade, não há a menor dúvida, porque a própria antiguidade o deixou escrito em caracteres claros e com palavras ex-
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...para que a arte da pintura simbolize diante os olhos de todos, aquEle que é perfeito, decretamos de agora em diante se deve representar nos ícones ao cordeiro, Cristo Deus nosso, que tomou os pecados do mundo, em sua natureza humana no lugar do antigo cordeiro. 126
plícitas. Platão e Aristóteles admitiam a adoração do Sol e dos astros, e Anaxágoras testemunha a existência desta adoração, quando, para a demolir, dizia que o Sol não era mais do que urna pedra inflamada. Para Heródoto, como para Estrabão, o mediador do mazdeísmo, o Deus Redentor persa, Mitra, que tem por emblema a luz, não é outra coisa mais do que o Sol, e Quinto Cúrcio diz que os persas invocavam Mitra ou o Sol, como a urna luz eterna. Segundo Plutarco, os mistérios Mitra foram levados ao Ocidente, e em seguida a Roma, por piratas sicilianos, fato sucedido até o ano 68 da nossa era. Pois bem: em Roma, Mitra era adorado pura e simplesmente como o Sol, e a própria Roma nos dá disso uma prova na formula Deo Soli invicto Mitrac, usada sempre nas inscrições latinas, consagradas ao deus redentor dos persas. Um escritor bizantino, Niceto, diz-nos que Mitra era, por uns, considerado como sendo o Sol e por outros, como sendo o Fogo. Um padre da Igreja, Julio Firmico Materno vê em Mitra a personificação humana do Fogo. Archelau, bispo de uma cidade
da Mesopotâmia, na disputa que sustentou até 277 com Maneton, identifica completamente Mitra com o Sol. O pretendido Dionísio, o Areopagita, vê em Mitra um deus de tríplice forma, isto é, concebido segundo as relações das estações. O próprio S. Jerônimo quer encontrar no nome de Mitra um anagrama do numero 365, que tantos são os dias do ano. S. Paulino, bispo de Nola, deixou-nos, nos seus versos, uma descrição dos mistérios de Mitra, nos quais o esplendor deste Deus solar se opõe às trevas da noite, durante a qual era adorado. Windischmann reuniu outros testemunhos, pelos quais se vê que Mitra é, com efeito, o Sol. Nas moedas de Karneki, rei indo-escita, que vivia no princípio da nossa era, Mitra aparece como o Sol, circundado de um risco radiante. O Deus solar Mitra era representado com a cabeça rodeado pelo disco solar, com a mão direita levantada ao alto e um globo na esquerda. Sob este aspecto se representou sempre Cristo. Em Roma, o Deus Mitra acabou por converter-se em divindade preponderante chamanda Senhor, como indica uma medalha cunhada no reinado de Aureliano. O monote127
ísmo, ou melhor, o prototeísmo Cristão, pode dizer-se que tinha já nascido, quando todos os povos do império romano designavam o Sol sob a denominação de Dominus ou Senhor. Esta evolução foi facilitada pelo culto de Mitra, o Sol invencível, que o imperador Juliano chamava o pai comum dos homens. Por isso, os Cristãos concentraram todos os seus esforços em combater Mitra, que era o mais poderoso adversário da encarnação Cristã do Deus Sol. No Egito, o Sol era gerador do universo, o criador dos seres e das coisas, e, como na índia, chamava-se o Pai Celestial. Era o principio ativo e luminoso, que a antiga inscrição de um dos obeliscos egípcios, transportados a Roma, ao Circo Máximo, definia assim: O grande Deus, o justo Deus, o todo esplendente. Era o princípio universal, o fluido luminoso, ígneo, sutilíssimo,que enche o universo. Os seus monumentos eram representados como um globo alado, encimado com uma coroa ondulada. Em toda a América ficaram sinais evidentes do antigo culto do Sol. Na Índia, na China, no Japão, toda a mitologia é a representação antropomórfica das for-
ças da Natureza, e sobretudo da principal, o Sol. O globo alado do Sol não era só dos egípcios, mas também dos persas e dos fenícios. O Sol está representado geralmente nos monumentos assírios e caldaicos, onde tinha altares por toda a parte. A cidade de Sipara era-lhe consagrada, e nos seus templos, ardia continuamente fogo em sua honra. Na Síria, na cidade de Edessa, havia um templo consagrado ao Deus Sol, assim como em Palmira. Na Grécia, achamos o globo alado sobre o Caduceu. Orfeu considerava o Sol como sendo o maior dos Deuses. Em Homero, lê-se que Agamemon, apostrofando o Sol, lhe chamava o que tudo vê e ouve tudo. Belenho, dos gauleses, é uma personificação do Sol. Entre os romanos, não só Apolo e Baco eram personificações do Sol, mas também Júpiter, segundo Juliano. Macróbio, na obra acerca das Saturnais, prova que os nomes de Apolo, Baco, Adonis, etc., não eram senão as diversas denominações do Sol entre várias nações, e reduz toda a antiga teologia ao culto do Sol. O Deus Redentor, portanto, 128
era não só a personificação, o mito do Sol, mas era também o culto primitivo, direto e concreto do Sol, como também era o antigo sabismo ou heliosísmo, que
transmitiu os seus sinais, apesar da sua transformação em mito antropomorfo e em símbolo teológico.
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CAPÍTULO IV CRISTO É UM MITO SOLAR
passar os homens sob o império da luz, não pode ser senão um Deus solar, copiado de tantos mitos heliostáticos em que abundavam as religiões do Oriente. No céu da esfera armilar dos Magos e dos caldeus, via-se um menino colocado entre os braços da Virgem celestial, a mesma a que Eratóstenes dá o nome de Isis, mãe de Horus. A que ponto do céu correspondia esta Virgem da esfera e o seu filho? Na meia noite de 25 de dezembro, quando nasce o Deus do ano, o novo Sol, o Cristo pela parte do Oriente e no mesmo ponto onde se levantava o Sol no primeiro dia. É um fato independente de todas as hipóteses e de todas as consequências que possamos deduzir, que o 25 de dezembro, na hora precisa da meia noite, no século em que aparece o cristianismo, a constelação celeste, que se erguia no Oriente, e cuja ascensão marcava a abertura da nova revolução solar, era a virgem das constelações zodiacais. E é também um fato que o Sol, nascido no solstício do inverno entra nesta constelação e derrama os seus raios
Agora, mais do que nunca, estamos no direito de concluir que Cristo nunca existiu, sendo um puro mito solar. O silêncio da história acerca dele, a sua inexistência como pessoa terrestre, o seu caráter exclusivamente sobrenatural, e, especialmente, a sua afinidade ou identidade com os mitos solares que o precederam, autorizam- nos a tirar esta conclusão. Temos, porém, muito mais com que robustecer o argumento, porque existem provas ainda mais diretas e convincentes. - Um Deus nascido de uma virgem - diz Dupuis - no solstício do inverno e ressuscitado na Páscoa, no equinócio da primavera, depois de ter descido aos infernos; um Deus que leva atrás de si um cortejo de doze apóstolos, correspondentes às doze constelações234 e que faz 234
O número 12 é comum a todas as religiões de origem heliostática, dos adoradores do Sol. Os romanos tinham 12 grandes deuses, cada um dos quais presidia a um mês. Os gregos, os egípcios e os persas também tinham 12 grandes deuses, como os Cristãos 12 apóstolos. O chefe destes deuses guardava a barca e a chave do tempo, como Jano entre os romanos e Pedro entre os Cristãos. 130
de fogo na época da nossa festa da Assunção, ou reunião da mãe com o filho. É indubitável que a virgem, que alegoricamente pode ser mãe sem deixar de ser virgem, realiza as três grandes funções da virgem mãe de Jesus, seja no nascimento de seu filho, no seu próprio ou na reunião de ambos no céu. Que isto seja um fato positivo, prova-se depois com iguais citações dos astrólogos antigos, a quem devia ser mais familiar do que a nós a ciência dos caldeus. Conta como nas tradições dos persas, dos caldeus, dos egípcios, de Hermes e de Esculápio, aparece uma jovem chamada em persa Seclenidas de Darzama, e que em árabe se escreve Adrenedefa, isto é, Virgem casta, pura e imaculada, de formosa aparência, de longas tranças e ar modesto. Tem entre as mãos duas espigas, está sentada num trono e amamenta um menino a quem alguns chamam Jesus é nós o Cristo. O Sol, reparador dos males que o inverno causa, nascendo no solstício, deve permanecer ainda três meses nos signos inferiores, na região atribuída ao mal e às trevas, antes de rebaixar o limite do equinócio da primavera, que assegura o seu
triunfo sobre a noite. Durante este tempo, convém que esteja exposto a todas as calamidades da sua vida mortal... A teoria de Cristo foi, como a sua biografia, tirada inteiramente dos Vedas. É o Deus (o Sol), que oferece o seu único filho (o Fogo) para salvação dos homens. Cristo repete todas as circunstâncias dos outros Deuses Redentores que o precederam. Nem mais nem menos235. Logo, estes Deuses Redentores, por confissão dos escritores pagãos, dos próprios padres da Igreja e dos primeiros escritores cristãos como Heródoto, Plutarco, Macróbio, Atanásio, Lactâncio e Julio Firmico, não representavam mais do que o Sol. Impõe-se, pois, forçosamente, a consequência lógica de que Cristo é também um mito solar. Este fato deduz-se, de maneira evidentíssima, da própria Bíblia, de alguns autores cristãos que têm expressões e conservam 235
Segundo Bianchi-Giovini, (Crítica dos Evang. 1ibr.IV, cap. VII) na Pérsia costumavam escolher, na festa chamada em caldeu Suchaia, um condenado à morte, vestiam-no de rei, colocavam-no no trono davam-lhe liberdade, em seguida, passados cinco dias, despojavam-no das vestes, açoitavam-no e crucificavam-no. 131
usos, cuja significação tem íntima relação com a adoração do Sol e que denunciam, por conseguinte, a origem e a natureza solar do mito cristão. Já no Antigo Testamento (Salmo IV e XVIII) encontramos o Sol identificado com Deus. Deus estabeleceu os seus arraiais no Sol. Vai de um extremo ao outro do céu e nada se subtrai à sua vista. Sobre vós, que temeis o meu nome, se levantará o Sol da Justiça, e a vossa vida estará nos seus raios. João diz no seu Evangelho que o Verbo era a lei, a luz e a vida, a luz que ilumina os olhos de todos os mortais, a luz do mundo. Onde, porém, a Bíblia revela melhor a origem heliostática de Cristo é quando lhe chama cordeiro, o Agnus Dei qui tollit peccata mundi. O Apocalipse, sobretudo deleita-se representando Cristo sob a forma de cordeiro. Do mesmo modo, a Igreja Católica, até 680, venerou Cristo sob a figura simbólica de um cordeiro. Foi no quintesexto Sinodo de Constantinopla (Cânone 82) que esse cordeiro foi substituído pela figura de um homem crucifica-
do, mas nem por isso desapareceu: subsiste nos escritos e nas ladainhas eclesiásticas, bem como na arte Cristã. Orígenes escreve que era necessário adorar os astros em razão da sua luz espiritual e não da sua luz sensível. Tertuliano tenta defender os cristãos da acusação que lhe faziam de adorarem o Sol, dizendo que, apesar das aparências em contrário e dos sinais exteriores da veneração pelo Sol, não é ao astro que se dirige o culto cristão: Outros, com maior razão ou verossimilhança, creem que o nosso Deus é o Sol. Esta ideia provém, aparentemente, de que nos dirigimos para o Oriente, para orar. Se dedicamos à alegria o dia do Sol é por urna causa estranha ao culto deste astro. Não obstante, o próprio Tertuliano reconhece que o dogma da ressurreição do Deus cristão é idêntica à da religião persa. Clemente de Alexandria escreve que o Verbo veio ao nosso conhecimento por meio da madeira. (Evidentemente alude ao fogo produzido pela madeira). João Crisóstomo, falando, nas suas homilias, da descida de Cristo aos infernos, chama-lhe, o 132
sol da justiça, que leva a luz. Sinésio chama a Cristo o tipo sensível do sol intelectual. Descreve-o saindo do inferno como um astro nascido das trevas noturnas, precedido da lua, seguindo o rasto luminoso do sol. Firmico Materno também o descreve, na descida ao inferno, brilhando como o Sol. O primeiro dia do calendário é ainda hoje, consagrado ao Sol, como o seu nome o indica. Domingo vem de dominas, o Senhor, como se chamava o Sol na época em que nasceu o Cristianismo. Além disso, outros dias do calendário expõem em favor do culto solar, porque conservam os nomes correspondentes à lua e aos cinco planetas. Clemente de Alexandria conservou-nos um fragmento de S. Paulo, ou a ele atribuído, em que se aconselha a leitura de livros sibilianos, dos gregos e dos Istaspes. A autoridade dos livros sibilianos ainda hoje é reconhecida pela própria Igreja no Dies irae, onde se cita a Sibila como testemunha de que o mundo será destruído pelo fogo. Estes mesmos livros eram frequentemente citados com a autoridade canônica dos antigos teólogos.
Algumas das seitas primitivas, que pelos conhecimentos científicos têm o mesmo valor que o tronco de onde provêm, conservaram a sua origem solar do culto Cristão. Os maniqueus, por exemplo, diziam que o Sol era o próprio Cristo. Assim o atestam Teodoro e Cirilo de Jerusalém. Segundo S. Leão, os maniqueus colocavam Jesus na substância luminosa do Sol e da Lua, a qual não faz mais do que refletir a luz daquele. Os saturninos acreditavam que a alma tinha a substância do Sol, do calor sideral, e portanto, que deixa o corpo na terra, voltando a sua origem. A Igreja conserva-nos ainda, no culto, várias provas de que Cristo é um mito solar. Por exemplo: a festa da Páscoa não cai nunca em dia certo, variando, segundo as circunstâncias e alternativas astronômicas, e isto não seria possível se Cristo fosse um personagem histórico, pois em tal caso seria fixo e incontestável o dia da sua morte. O Santo Sacramento tem a forma do disco luminoso do Sol, conforme as antigas tradições das religiões heliostáticas. No ostensório católico, vê-se a Lua representada no mesmo centro, que se chama precisamente a Lúnula: está rodeada de seis pla133
netas, representados também nos seis círios, que no altar rodeiam o Santo Sacramento. O Santo Sacramento explicase, no uso comum, do mesmo modo que o Sol. Todo ele é extraordinariamente semelhante ao budismo. Malvert cita um curioso documento que, confundido com o simbolismo cristão, não revela menos a sua verdadeira origem solar. É o abanador. No simbolismo cristão, encontra-se o berço em que repousa o menino recém-nascido, sobre a palha, junto da virgem sua mãe, e em companhia do boi, do jumento místico dos Vedas e, finalmente, do abanador, verdadeiro contrassenso numa cena que se passava em pleno inverno, se não fosse uma reprodução inconsciente, porém exata, do primitivo mito védico, onde cumpre uma função importante: a de manter viva, na palha, a primeira chispa do Fogo. Este detalhe simbólico passou à liturgia primitiva, onde o abanador se agitava durante a missa, desde a ablução à comunhão, prática conservada na Igreja romana até o século XIV. Também se observou, durante largo tempo, o costume de se voltarem para o Oriente, durante as preces, bem como o de cons-
truírem as igrejas na mesma direção, de modo que a luz do Sol viesse ferir o disco de ouro do Santo Sacramento, colocado em frente da porta do templo. O mesmo uso do culto solar se encontra também no antigo rito do batismo em que o catecúmeno se voltava primeiro para o ocidente, a fim de repelir de si Satanás, símbolo das trevas, e depois para o Oriente, jurando então fidelidade ao seu novo Senhor. Uma congregação de irmãos adoradores do Santo Sacramento e que subsistiu até á revolução francesa de 1789, tinha o nome de Irmãs do Sol. Por muito tempo, a Igreja representou o Padre Eterno, o Deus Pai, sob a imagem do Sol. Malvert demonstra as transformações sucessivas destas representações. As primeiras versões eslavas dos Evangelhos, do século nono, traduziram a palavra ressurectio por Veskres, que, literalmente significa ascensão do fogo. Todas as nossas cerimônias do sábado santo e especialmente, do fogo novo, do famoso círio pascal, não tem outra significação, nem outra origem que o triunfo do Sol sobre as trevas, que têm 134
lugar no equinócio da Primavera, pela Páscoa. Em muitas orações deste ofício reproduzem quase literalmente os hinos védicos. A palavra Alelúia (de all (elevado) e oulia (brilhante) era o grito de alegria que pronunciavam os antigos persas, adoradores do Sol, quando, pela Páscoa, celebravam a sua volta. Enfim, o barrete dos bispos católicos, que toma o nome do Deus Sol dos persas - mitra, usava-se já entre os magos ou sacerdotes de Mitra, o Deus Sol, simbolizando, pela sua forma piramidal, precisamente o Sol, ou se assim querem, seu filho o Fogo, que sobe aos céus para se unir ao pai, como o prova a forma dada às pirâmides do Egito, aos obeliscos messiânicos e druidas e aos carros piramidais da Índia. Pouco a pouco, com a completa personificação do símbolo, nada mais fácil do que fazer desaparecer os vestígios da origem heliostática de Cristo, a ponto de serem hoje bem poucos os sinais que se conservam de tal origem. Mas os poucos que restam são de uma eloquência tão extraordinária, que não admite réplica, e se por si só não bastassem para afirmar a conclusão da não exis-
tência de Cristo, unidos às provas precedentes adquirem valor de documento definitivo, como provenientes que são, do mesmo culto interessado em fazê-lo desaparecer. Crer, por conseguinte, que Cristo existiu, equivale a crer que tenham existido Mitra, Adônis, Apolo, Baco, Jezéus Cristna e Horus, também conhecido por Serápis. Este último, segundo o imperador Adriano, se chamava Cristo e era adorado pelos cristãos. E a todos estes se tinha dado existência humana, lugar de nascimento e morte, sendo adorados pelos respectivos fieis. O perspicaz Luciano riu, com grande fundamento, da pretensão das diversas religiões em querer elas, unicamente, adorar o Sol, dando-lhe cada uma nome e existência peculiares ao país respectivo, com caracteres especiais, enquanto a divindade permanecia sempre a mesma e era comum a todos236. Não tem maior valor a opinião dos que creem na existência de um hebreu chamado Jesus, de que logo brotou essa exuberante vegetação do mito e da poesia oriental, da alegoria e da rica 236
Segundo Justino mártir, o hebreu Trifon tinha já negado Cristo. E como já vimos, muitas seitas antigas o negaram. 135
imaginação da lenda, apoiandose na razão de que o nome de Jesus era muito vulgar entre os hebreus. Com igual motivo se poderia dizer que existiram Hércules, Apolos, e sobre todos, Josués e Jasones, nomes que têm a mesma raiz de Jesus, só porque muitas pessoas se chamavam assim237. Não, o Jesus da Bíblia surgiu da mitologia; nem sequer é legendário, é completamente mitológico. Quem pretender sustentar o contrário não o poderá provar, ao passo que nós, como já se viu, provamos que é mitológico por sua origem, natureza e significado. É certo que não podemos jamais provar de um modo positivo, dada a distância e tenebrosidade dos tempos, como e por meio de quem se criou o mito de Cristo. Para isso concorreu, de certo, a obra do cristianismo nascente, destruindo todos os documentos que se opunham à sua propagação. Por outro lado, sabe-se também, por ventura, por quem e
como foram criados os mitos dos Deuses Redentores que precederam Cristo e que, como ele, foram acreditados, seguidos e adorados por tantos milhões de seres humanos e durante tantos séculos? Em um tempo em que reinava uma tão densa noite de ignorância, era de resto, bem fácil dar corpo a todos os mitos e lendas. Os tempos eram propícios para toda a criação mística, porque nunca época alguma foi mais atacada pelo sobrenatural. Tudo então era Deus, tudo então era celestial238. O politeísmo helênico tornarase muito humano, e muito acessível à critica e não contentava de modo algum os que buscavam a forma de resolver o grande problema da vida futura e sobrenatural. Não só na mitologia assíriopersa, mas em todas as divindades orientais que invadiram a Europa e que, por muito tempo 238
Os jornais americanos trazem notícias detalhadas acerca de um certo Dovie, que tendo-se feito passar pelo próprio profeta Elias ressuscitado, conseguiu atrair crentes e fundar uma nova cidade, Sião, com 10.000 habitantes, todos seus sequazes, de quem ele é o papa rei. E isto acontece perto de Chicago, em pleno século XX. O que não seria antigamente!
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Segundo Volney, nos livros sagrados persas e caldáicos, dava-se ao Sol o nome Jes ou Cris, representado por um menino que nasce da virgem das constelações. De Cris fizeram os hindus Cristna e os cristãos Cristo. 136
ainda, dominaram o império romano, encontraram-se a nova linfa de que muito necessitavam para alimentar o seu misticismo. Os tempos estavam realmente em sazão para que se realizasse uma nova encarnação da divindade. Nem o elemento milagroso podia prejudicar o crédito do novo Deus porque nunca, como então, o milagre esteve, tanto em voga. Sabe-se de um Dositeu, que por seus milagres e prodígios foi confundido com o Messias e seus sequazes - entre os quais se contavam trinta discípulos, correspondentes aos dias do mês julgando-o descido do céu. Apolônio de Tianeo fez por si próprio milagres atribuídos a Cristo e desapareceu também, deste baixo mundo de uma maneira milagrosa239. Simão, chamado o Mago, realizou os mais espantosos milagres, sendo sempre seguido e acreditado pelo populacho. Heródoto, como hoje o nosso bom Cantu, conta cheio de fé e com a maior seriedade os mais estu-
pendos milagres daqueles tempos tão supersticiosos e crédulos. Na Vida de Vespasiano, de um historiador sério, como é Suetônio, lê-se este fragmento: Enquanto presidia o tribunal, um indivíduo do povo cego e outro paralítico acercaram-se dele, rogando-lhe que os curasse, pois Serápis lhes tinha prometido, em sonhos, ao cego, que recuperaria a vista se lhe cuspisse o imperador e ao paralítico, que andaria se ele lhe tocasse com um pé. Não crendo que tal pudesse realizar-se, não ousava Vespasiano fazer a experiência, até que, tendo-o exortado os amigos, este se decidiu, em presença de todos, a tentar a prova que teve o mais completo êxito240. Tácito241 e Dion242 confirmam estes milagres de Vespasiano. Mesmo na sociedade culta, a incredulidade só era aparente: a crença no sobrenatural tornavase, contudo, mais intensa pelo fato de que, tendo-se afrouxado a fé nos deuses falsos, sem que a substituísse o conhecimento das leis naturais, a incredulidade re-
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A vida de Apolônio foi escrita por Filostrato até o ano 200 da nossa era e ainda naquele tempo o autor acreditava a sério em todos os milagres do seu herói, o que prova as disposições dos espíritos de então.
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Edição Teubneriana, Leipzig, 1893. pag. 229. 241 Histórias, IV, 81. 242 LXVI, 8. 137
dundou em crenças ainda mais estupendas, que impressionavam a imaginação em maior grau do que os milagres de que se riam os augures. Naquele tempo a loucura, o escândalo da cruz, não podia deixar de assentar bem, de produzir os seus efeitos, no mundo greco-romano, na positiva civilização Ocidental. Orgulhamo-nos, por conseguinte, de ter demonstrado aos espíritos apaixonados que Cristo nunca existiu e de ter introduzido a dúvida no ânimo dos mais crentes. Na parte que segue, demonstraremos que o cristianismo não foi criado por Cristo, mas que já existia, em seus elementos constitutivos, na época em que determinadas condições psicológicas, políticas, históricas e do meio
ambiente, os uniram em corpo mais ou menos orgânico, dando vida, não ao fato novo - cristianismo, mas à nova forma - cristianismo. Por isso a grandeza histórica do efeito cristianismo, se bem que não é de valor intrínseco, servirá para demonstrar que Cristo não existiu, porque uma só pessoa é causa muito inferior a um efeito tão grande. Não, esse Cristo, seja qual for o valor que lhe seja dado, não pode ter produzido, em contrário do que a Bíblia diz, um tão considerável movimento na sociedade humana. Por isso, o cristianismo foi obra impessoal e criação coletiva de vários séculos, de distintas doutrinas, de muitos eruditos e de diversos povos.
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Quarta Parte
Formação Impessoal do Cristianismo 139
CAPÍTULO I A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO
Se um ponto de apoio resta ao cristianismo, esse ponto é a crença na originalidade e perfeição da moral, atribuída a Cristo. Acerca da sua pretendida perfeição, já vimos a que se reduz; provaremos agora que, o que ela tem de bom, não é em nada original. Uma das glórias usurpadas pelo cristianismo é a de ter redimido a condição da mulher. É completamente falso. Eva, no Antigo Testamento é obra em segunda mão: foi tirada duma costela do homem. É ela que introduz o mal no mundo, e o Deus Judeu-cristão condena-a, por fim, a parir com dor e sujeita-a ao homem. (Gen. III 16). Todo o Antigo Testamento é um contínuo envilecimento e servidão para a mulher. Quando esta tem uma filha sofrerá mais que quando tem um filho. O seu voto é calculado em grau muitíssimo inferior ao homem. (Levit. XII, 2-5 XXVII, 1-7). Passagens que envilecem a mulher são, entre outras da Bíblia, as dos Num. V, XXI; Êxodo XXI, 4; Deut. V, 21; Ecles. VII; etc., etc. Isto sem contar os in-
cestos e as poligamias, que abundam em todas as suas páginas. O Novo Testamento não a trata melhor. S. Paulo, baseando- se em que foi tirada do homem, conclui que ela deve sujeitar-se ao mesmo (I Ep. Cor. XI, 3, 7, 9) A mesma ideia se repete em I Tim. II, 18; Col. III, 18, Pedro III, 1, 6). Os padres seguem a Bíblia. Tertuliano chama-lhe a porta do demônio, que quebrou o segredo da árvore proibida, e outro declara-a mais amarga que a morte. O celibato e a virgindade são a condenação do amor e da maternidade, isto é, das principais e mais sagradas funções que a natureza confiou à mulher. Poderíamos intitular este capítulo, mistificação cristã, porque, tendo de provar que a moral cristã não é original no que tem de bom, forçoso será provarmos que é inferior, em muitos pontos, à das religiões orientais, que a precederam, inferior mesmo, sob este aspecto, ao judaísmo, e especialmente, inferior à civilização greco-romana. Comecemos pelas religiões 140
orientais. Confúcio, 500 anos antes, pregava já o preceito de não fazer aos outros o que não queremos que nos façam. Mêncio, outro filósofo chinês, repetia o mesmo preceito 300 anos antes de Cristo. O brahmanismo hindu pregava também a mesma máxima. Buda repete o mesmo conceito e sublima a moral até fazer dela uma caridade universal, que abarca toda a Natureza e não apenas a Humanidade. A moral budista é imensamente superior à cristã, porque o amor do próximo pregado por esta não ultrapassa os confins do país nem as valas da seita. A moral budista tem ainda outra vantagem sobre a do pretendido Cristo: a de admitir a livre investigação da verdade, ao passo que, nos Evangelhos, em vão se procuraria uma palavra em favor da ciência. Na índia, a caridade para com o próximo florescia e fecundava as instituições de hospitalidade e casas de beneficência, cinco séculos antes do advento do cristianismo. Zoroastro, o fundador do mazdeísmo ou religião persa, tinha já pregado o outro preceito, atri-
buído mais tarde a Jesus, o preceito da caridade positiva, isto é, o de fazer ao próximo o que desejaríamos que nos fizessem; e ao passo que o cristianismo devia pregar depois, o dogma iníquo da eternidade das penas, a religião persa, pelo contrário, admitia que os malvados, depois de certo período de expiação, seriam purificados e reabilitados, desfrutando também a bem aventurança dos bons. Ainda mais: enquanto o Cristo dos Evangelhos condena o trabalho e reserva a felicidade suprema para a mendicidade miserável, Zoroastro santifica o trabalho, especialmente o dos campos, enaltecendo-o e dando-lhe muito mais mérito do que aos rogos e orações. A moral dos egípcios continha, igualmente, além dos preceitos de boa moral dos Evangelhos, máximas mais elevadas e mais práticas para bem viver. No famoso capítulo CXXV do Livro dos Mortos, o morto faz, perante o tribunal de Osíris, uma dupla confissão: negativa, de que não fez mal a ninguém, e positiva, de tudo quanto fez de bom. Não enganei. Não menti no Tribunal. Não cometi fraudes contra os homens. Não atormentei as viúvas. Não exigi aos trabalhado141
res mais trabalho do que o que podiam fazer. Não promovi nenhum desastre. Não fiz chorar ninguém. Não fui preguiçoso. Não fui negligente. Não me embriaguei. Não dei ordens injustas. Nunca fui indiscreto. Nunca abri a boca para intrigas. Não lancei mão de coisa alguma, em prejuízo de outrem. Não matei nunca. Não mandei jamais assassinar à traição. Não meti medo a ninguém. Não disso mal de ninguém. Não deixei que a inveja roesse o meu coração. Não levantei falsos testemunhos. Não tirei o leite da boca dos que mamavam. Não provoquei abortos. E na segunda: Fiz aos Deuses as oferendas que lhes eram devidas. Reconciliei-me amorosamente com a divindade. Dei de comer ao faminto, de beber ao sedento,vesti o nu e dei barca ao que não podia continuar viagem. Daqui se vê, pois, que no Egito, muitos e muitos séculos antes do cristianismo, se pregava uma moral caritativa e misericordiosa, e não só isso, mas também a justiça. Pitágoras, que sob muitos aspectos, pertence à civilização oriental, ensinara muito antes de Cristo, a perdoar aos inimigos,
aconselhando a maneira de fazer as pazes com eles. O Cristo dos Evangelhos nada forneceu à moral das religiões do Oriente: pelo contrário, delas tirou tudo, delas aprendeu tudo, e neste ponto, bem teriam andado aqueles que copiaram o seu mito, copiando também os bons conceitos daquelas religiões. A moral do Evangelho porém, reduz-se apenas a uma cópia servil do Antigo Testamento... A afirmação parecerá estranha aos crentes, dada a mistificação de vinte séculos que o cristianismo arraigou nas mentes, mas a verdade é que nem sequer tem o mérito da novidade. Há muitos anos já que se provou que o Evangelho era a reprodução da parte boa - e nem sempre - do Antigo Testamento. Salvador, Rodriguez, Dukes e Cohen demonstraram por forma que não admite réplica, que toda a pregação moral de Cristo, sem excluir o famoso Sermão da Montanha se formou, palavra por palavra, com as citações do Antigo Testamento. O preceito amarás ao próximo como a ti mesmo, que caracterizou a doutrina moral e social de Cristo, achava-se já no Levítico (XIX, 18). 142
E o melhor é que os próprios Evangelhos, pondo esse preceito na boca de Jesus, indicam a sua procedência, que seja dito de passagem, devia ter já há séculos aberto os olhos à Humanidade, se não o impedissem a escravidão do pensamento e o preconceito teológico. O preceito que proíbe pagar o mal com o mal, encontra-se nos Provérbios (XX, 22; XXIV, 29). O preceito não faças aos outros o que não queres que te façam, lê-se já no livro de Tobias (IV, 16). Os profetas Jeremias e Ezequiel tinham já condenado a parte do Antigo Testamento que castiga os filhos pelos pais, estendendo o amor do próximo mais além do que os confins da Judeia. Nisto, é o cristianismo inferior ao judaísmo, pois, como já provamos, Cristo foi nacionalista e não eximiu os filhos das culpas dos pais. Sábios hebreus, mais modernos ainda, como Antígono de Soco, Jesus filho de Sirach e Hillet, tinham já aconselhado, antes do cristianismo, o perdão das ofensas e a doçura de caráter. Tinham também condenado a vingança. Oséas, Isaías, Jeremias e os
Salmos tinham já preconizado uma religião menos formalista e menos hipócrita no que respeitava às práticas exteriores do culto: mais espiritual, numa palavra. Os ataques contra os potentados da terra e a defesa dos fracos, encontram-se em Isaías, Jeremias, Amós e Sofonias. A pureza do pensamento e o amor especial para com os pobres e os oprimidos, veem-se, em termos comoventes, no livro de Job. As bases da igualdade foram lançadas, em termos mais positivos que os do Evangelho, por Fílon, o hebreu alexandrino, filósofo e teólogo, racionalista e místico ao mesmo tempo. Os que, diz ele, exaltam a nobreza como sendo um grande bem, merecem ser duramente reprimidos. A verdadeira distinção não pertence senão aos homens de inteligência e de justiça, ainda que sejam filhos do escravo, nascido em nossa casa ou comprado com o nosso dinheiro (Tratado da nobreza). Porque és tão orgulhoso e te julgas superior aos outros? Não são todos os teus parentes feitos do mesmo modo e não pertencem à mesma terra? Não bastaria a vida de um homem para narrar os bene143
do medo do outro mundo243, e sobretudo, da preocupação na crença do fim próximo do mundo, fazendo desta sentença toda a sua moral: A vida não é mais do que uma preparação para a morte. A civilização greco-romana, que depois foi em parte assimilada pelos padres e doutores do cristianismo teve uma moral elaborada pelos seus sábios, pelos seus literatos e filósofos, ao lado da qual a cristã fica ofuscada. A demonstração disso já a fizeram Denis (Histoire des theories et des idées morales dans l ´antiquitè) e Havet (obra citada): não faremos, por isso, senão recordar algumas das máximas mais salientes daquela época de ouro do pensamento humano. Na Odisseia vemos a divindade protegendo o fraco e o desgraçado; o pobre e o infeliz são recomendados ao respeito e à piedade do próximo, ainda que sejam culpados. Hiparco, filho de Pisistrato, manda gravar pelos caminhos públicos: Caminha na senda da justiça; não enganes o amigo.
fícios da igualdade. Esta é a fonte dos maiores bens que podem existir: a boa vontade e a amizade entre os homens. No Universo produz a unidade; na cidade a democracia bem regulada; no corpo a saúde; na alma a honestidade e a virtude (De victim. Offer.; de creat. principiis). No que se refere ao desprezo pelas riquezas, ao bem estar social e ao celibato, também o cristianismo é inferior ao judaísmo. Mais ainda: essa mesma inferioridade não lhe pertence. Nem mesmo as virtudes negativas são originais nos Evangelhos, pois provêm dos essênios. Outros pretendem que vêm dos Terapeutas, não importa. O que é positivo aqui é esta parte da moral cristã ter já existido antes do cristianismo,. A parte boa do essenismo relativa ao cultivo da terra e à abolição da escravatura não foi imitada por Jesus nos Evangelhos, pois condena o primeiro e passa em silêncio a segunda. Os essênios hebreus tiveram outra superioridade sobre a moral evangélica: a de ser a sua moral puramente humana, como a dos estoicos, enquanto que a parte boa da evangélica era tirado do ascetismo, do misticismo,
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Neste ponto, ainda o politeísmo greco-romano é superior ao cristianismo. Comparem-se os poemas de Homero e Virgílio com o tenebroso poema de Dante. 144
No teatro de Atenas havia máximas que sobrepujavam, em muito, as melhores do Evangelho. E Sócrates? Havemos de falar dele? Apenas para inverter as palavras de Rousseau, segundo as quais se a vida e morte de Sócrates são de um sábio, a vida e morte de Cristo são de um Deus. Sócrates não tremeu nem chorou diante da morte! Grande era a liberdade concedida aos escravos em Atenas, onde eram tratados com doçura e humanidade244. A filantropia e a anistia são palavras que vieram de Atenas; a sociabilidade era ali viva e intensa e a civilização ateniense, cheia de humanidade, de equidade, de costumes aprazíveis, de razão e de ciência, de letras e artes, era um verdadeiro foco de luz que iluminava o mundo anti-
go. Xenofonte fala em favor dos escravos, das mulheres e dos prisioneiros de guerra, da exaltação dos humildes e da humilhação dos exaltados, etc. Hisócrates promete, como os cristãos, aos que praticam a piedade e a justiça, não só a paz nesta vida, mas esperanças melhores na outra. Em Platão, encontramos todo um sistema de máximas cristãs. Condena o suicídio e a voluptuosidade; recomenda a humildade, a castidade, o pudor; detesta a riqueza: Ser bom e rico ao mesmo tempo, é impossível. Proíbe a vingança e proclama o desprezo dos sentidos, ao passo que exalta a alma etc. Não está aqui, por ventura, toda a moral cristã? Em Platão se encontra, finalmente, o Pater Noster atribuído a Cristo. Aristóteles, espírito mais positivo, confunde a virtude com a justiça e chega a dizer que a comunidade repousa mais no amor do que na justiça, e enfim, antecipando-se a Dante, que a justiça suprema é o amor. Recomenda que se não exponham ao público imagens indecentes, em respeito às crenças, e quanto a certos deuses obscenos, quer que só os
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Diz-se geralmente que o cristianismo aboliu a escravatura. Nada menos verdadeiro. Para os que assim pensam vejam a Bíblia Exod. XXI, 21, 24 e 27 Levit. XXV, 44 e 45 Proverb. XXIX; Eccles. XXXIII, 28; XLIII,5. - S. Paulo, epist. aos Epes. VI, 5,9 Fim. VI. 1,2. Os padres da igreja, S. Inácio, S. Isidoro, João, S. Crisóstomo, S. Agostinho, Bossuet e Bouvier santificaram a escravidão e a Igreja praticou-a e serviu-se dela. Os últimos partidários da escravatura foram os maçons católicos. E a sua abolição deve-se à obra do livre pensamento. 145
padres os adorem. É certo que admite a escravatura; mas se esta fraqueza é imputada ao filósofo, do homem sabe-se que deixou em testamento, a liberdade aos seus escravos. Ensinou também que a comunidade tem obrigação do instruir todos os seus filhos, e a este respeito, o espírito positivo da moral aristotélica sobreleva em muito o espírito nulo e decadente da moral evangélica. Nem sequer o cinismo é estranho à formação da moral cristã. Diógenes, que foi um ateu moderno em toda a acepção da palavra condenou o matrimônio, a família e a pátria, como depois vieram a fazer os monges cristãos. Grande parte da moral cristã deve-se ao estoicismo, para o qual não ha mais que um bem, a virtude, nem mais que um mal, o pecado. Devemos especialmente aos estoicos a concepção da fraternidade humana universal, que ultrapassa as fronteiras de cada pátria em nome da universalidade da raça, do Logos e do Verbo. Eis aqui a essência do cristianismo, mas com uma diferença: é que este não procura a perfeição da alma pela própria virtude, mas unicamente para salvá-la,
para obter um prêmio na outra vida. Além disso, enquanto os estoicos amavam a liberdade política, os cristãos não se preocupavam com ela. Aqui, evidentemente, os cristãos copiaram a parte pior do epicurismo, que ensinava a indiferença para com a vida pública. Mas Epicuro tinha também ensinado que o escravo é um amigo de condição inferior, e recomendava que não se lhe tocasse. A propósito da podridão que assolava a sociedade antiga, e aos pretextos dos cristãos em atribuir ao cristianismo, contra todas as evidências, o mérito de tê-la erradicado, Ernest Havet escreveu uma página maravilhosa que, ao contrário do nosso hábito, reproduzimos na língua original para que não se perca a sua veemência. C'est oublier bien facilement escreve ele então no prefácio de sua obra imortal - que le monde d’après le Christ a conservé longtemps les mêmes misères; que l’empire byzantin a au moins égalé l'autre en scandales et en horreurs; que même sous la chrétienté moderne, la Rome des papes a été quelquefois aussi impure et aussi sanglante que celle des Césars; que la torture 146
coup”245. O grego Gelon, na Sicília, tratando com os cartagineses, determinara que estes não imolassem mais vítimas humanas aos seus deuses.
a duré jusqu'à la Révolution française, et que l'esclavage dure encore. Car il n'y a pas de plus grand exemple des illusions que peuvent se faire les croyants, que leur obstination à faire honneur au christianisme et à l'église de l'abolition de l'esclavage; quand il est certain que l'esclavage antique a subsisté dans l'empire chrétien comme dans l'empire païen, qu'il a duré assez avant dans le moyen âge, que le servage existait encore en France à la veille de la Révolution; que l'esclavage des noirs s'est établi sous le règne de l'Église, qu'il persiste encore aujourd'hui dans deux États, et que ces États sont catholiques; qu'il n'a commencé à tomber que depuis le dix-huitième siècle, c'està-dire depuis que les Églises menacent ruine; et qu'à l'heure qu'il est, la Papauté, qui condamne si facilement et si imprudemment tant de choses, n'a pu encore se résoudre à le condamner. L'Église a régné dix-huit cent ans, et l'esclavage, la torture, l'éducation par les coups, bien d'autres injustices encore ont continué tout ce temps, de l'aveu de l'Église et dans l'Église; la philosophie libre n'a régné qu'un jour, à la fin du XVIII e siècle, et elle a tout emporté presque d'un seul
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“É fácil esquecer que o mundo depois de Cristo conservou durante muito tempo as mesmas misérias. Que o Império Bizantino era, no mínimo, igual aos outros em escândalos e horrores. Que, mesmo na cristandade moderna, a Roma dos papas foi tão impura e sangrenta como a Roma dos Cesares. Que a tortura durou até a Revolução Francesa, e que a escravidão ainda existe. Porque não há maior exemplo de ilusão possível do que a determinação dos crentes em atribuir ao cristianismo e à Igreja Católica a abolição da escravatura, quando é certo que a escravidão antiga sobreviveu no império cristão tal qual no império pagão, e que, subsistindo ainda na Idade Média, a servidão sobrevive na França até às vésperas da Revolução. Que a escravidão negra foi criada durante o reinado da Igreja e ainda persiste em dois estados, e que estes Estados são católicos. Que ela só começou a diminuir depois do século XVIII, o que significa dizer, depois que a Igreja Católica passou a perder força e começou a ruir. E que até o presente momento o Papado, que condena tão facilmente e tão descuidadamente tantas coisas, ainda não teve a dignidade de a condenar. O cristianismo tem reinado por mil e oitocentos anos, e a tortura, a escravidão, a catequese forçada e muitas outras injustiças vigoraram durante todo esse tempo por obra da Igreja e na Igreja. A filosofia livre não reinou mais que um dia, no final do século XVIII, e quase levou tudo de um só golpe”. 147
O vitæ tuta facultas Pauperis, angustique lares, o munera nondum Intellecta Deum! A moral de Sêneca é por tudo e sobretudo cristã a ponto dele recomendar que sejamos superior às paixões, insensíveis à dor e ao prazer, e indulgente quanto à punição; Aconselha a generosidade e a bondade para com os escravos e chega até a dizer que todos os homens são iguais. Fala do céu como os cristãos e diz que todos somos filhos do mesmo pai. A sua pátria é a mesma dos Cristãos: o mundo todo 247. Mas a sua moral era superior em muitos pontos à do cristianismo, porque ele quer que o fim da nossa vida seja a felicidade de todos, ao passo que o altruísmo cristão se limita aos eleitos sendo por isso discriminatório e tem por fim o prêmio do céu, mascarando um egoísmo. Sêneca quer suprimir a pena de morte, enquanto que o cristianismo a conserva. Finalmente, prega a tolerância até para com os culpados, que diz ele, em lugar de serem perseguidos, devem ser con-
Em Cícero, encontramos um verdadeiro sacerdote cristão. Muitas das suas sentenças, à parte da tão citada Charitas generes humani, podiam ser recolhidas pelos livros cristãos para edificação religiosa. Basta recordar a importante carta de Santo Agostinho, na qual este santo recomenda a leitura de Cícero, pela sua moral pura, declarando que a da Igreja não é diversa daquela. Virgílio dizia: maxima debetur puero reverencia246. Lucrécio ensinava que o fraco deve encontrar apoio em todos. Horácio mostra-se cheio de sentimentos viris e delicados, ao mesmo tempo. A dignidade humana, sobretudo, domina o seu coração. A moral de Valério Máximo é já de todo cristã: tem um livro sobre a continência, um sobre a pobreza, um sobre a paciência e outro sobre a castidade. A exaltação da pobreza precedeu o cristianismo na própria Roma, sendo a sua grandeza objeto da saeva paupertas, de Horácio. Opes irritamenta malorum, pensava Ovídio. E Lucano cantava: 246
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Entendamo-nos. Foi só o cristianismo de Paulo que tirou a pátria ao cristão. Cristo, esse era um acérrimo judeu nacionalista.
Deve-se à crença a máxima reverência. 148
vertidos248. Não falamos já na admirável filosofia de Epiteto e de Marco Aurélio, tão cheias de caridade e fraternidade. Observa-se, geralmente, como diz Havet, que os filósofos do mundo greco- romano foram mestres de moral, e consoladores, como deviam ser depois os sacerdotes cristãos, com a diferença que aqueles não estavam constituídos em casta privilegiada, nem impunham o seu dogma pela força. É tempo de concluir. Vimos que a moral cristã se formou independentemente do pretendido Cristo e que já existia, no que tem de bom, antes do cristianismo. Isto é consolador para a Humanidade, pois demonstra que a moral humana não é monopólio de uma seita, mas obra da mesma Humanidade. E daqui pode concluir-se que ela é tão antiga quanto a Humanidade racional. Por conseguinte, não só não é precisa a presença de um Cristo para explicar esta moral, mas até a preexistência desta moral contribui para excluir o Cristo. Porque, em todo o caso, o que fica claro é que a pretendida moral cristã não foi inventada nem revelada pelo suposto Cristo, 248
visto já existir antes dele e sem ele. Pelo contrário, o advento do cristianismo é até um princípio de decadência, sobretudo moral, decadência que explicaremos melhor, quando tratarmos da formação psicológica do cristianismo. Apresentaremos agora, para mostrar a completa inferioridade do cristianismo em face ao politeísmo e ao judaísmo, o seu espírito anticientífico e dogmático que, agregando o imobilismo aos erros de então, sufocou a liberdade de pensamento, fonte de todo o progresso intelectual e moral. Na verdade, colocando a Bíblia, com a sua cosmologia errada e pueril, e seus muitos erros científicos como uma emanação da verdade divina, não é de estranhar que se repute infalível tudo o quanto nela é dito, mesmo no domínio científico, porque Deus não pode errar e portanto, a ciência não poderia avançar para além das Colunas de Hércules da Bíblia. A liberdade de pensamento foi banida para plagas longinquas porque é inadmissível o debate de ideias numa igreja que se arvora depositária da verdade divina absoluta, preocupada apenas com o zelo religioso.
De ira, livr. I, cap. XIV. 149
Sabe-se quão funestos foram os efeitos que daí derivaram. Citamos como exemplo, a perseguição a Galileu, quando a mesma descoberta já havia sido anunciada na Grécia por Hiceta e Aristarco de Samos, (conforme Theophrastus) sem que eles tivessem sofrido qualquer tipo de constrangimento A grandeza principal da Grécia é devida à liberdade de pensamento e de palavra que ali se desfrutava, liberdade que foi a causa do rico florescimento do gênio, teorias e sistemas, e por isso foi tão produtiva. Quando o cristianismo surgiu, o mundo greco-romano já tinha proclamado, especialmente pela boca de Lucrécio, a inflexibilidade das leis naturais, e mesmo Hipócrates, quatro séculos e meio antes do tempo assinalado para Cristo, já mostrava as causas naturais de fenômenos atribuídos à obsessão; Assim, o cristianismo representou um inegável retrocesso sobre os princípio científicos que já tinham sido reconhecidos pelos pensadores gregos. No campo do conhecimento, o cristianismo infelizmente seguiu o judaísmo do Eclesiastes, que condena abertamente a ciência,
ainda que o Talmude reconheça a liberdade de opinião e de interpretações heterodoxas. Com tais princípios, o cristianismo foi fatal para o progresso da , ao qual a liberdade de pensamento é tão necessária quanto o oxigênio para os pulmões. Mas ainda mais fatal para o progresso e a ciência, foi o cristianismo por seu ascetismo e seu distanciamento deste mundo, que o fez negligenciar todas as artes e estudos para melhorar a vida presente, considerada como uma mera peregrinação para uma outra vida, verdadeira, eterna, a única importante para os alucinados crentes no além. Gaetano Negri sintetizou admiravelmente o imobilismo da Igreja Católica com estas palavras: O cristianismo tomou, de um lado, o antropomorfismo da divindade hebraica e o conceito de criação e de governo do universo que encontrara nos textos sagrados de Israel, e de outro, o espiritualismo helênico, originário da escola de Alexandria. Fundiu tudo, por obra do Concílio, num vasto sistema teológico baseado inteiramente em entidades metafísicas, para em seguida dizer: esta é a verdade, quem duvidar será amaldiçoado e per150
seguido. Impôs à raça humana, como verdade absoluta, o que não era nada senão um produto mutável e passageiro de um momento da evolução intelectual. Pôs a ferros o pensamento e condenou-o a viver por séculos e séculos na falsidade. A antiga civilização, decadente desde as
invasões e posteriormente sufocada por completo, disseminou por toda extensão do mundo a mais intensa barbárie. O cristianismo quis e soube como imobilizar a humanidade por muitos séculos. (Negri G., A Crise Religiosa, p. 64, Milão, Dumolard, 1878).
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CAPÍTULO II A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO
pédia (430 - 355aC): Disse Ciro ao morrer: Eu nunca pude persuadir-me de que a alma, que vive enquanto está num corpo mortal se extinga desde que sai dele e que perca a faculdade de raciocinar, abandonando o que é incapaz de raciocínio. Outros povos, como o egípcio, o indiano, o escandinavo e o gaulês, acreditavam já na imortalidade da alma. Os hebreus não adotaram esta crença senão depois que se desenvolveu o comércio e relações que tiveram no desterro com as nações situadas além do Eufrates. O dogma da ressurreição dos corpos é um dos principais do Zend-Avesta, e segundo Zoroastro, o fim do mundo devia preceder aquele grande acontecimento que seria anunciado pelos profetas Ascedermani e Ascedermat e realizado pelo Messias persa. Os dois primeiros substituíram-nos os judeus por Enoch e Elias e o terceiro pelo seu Messias. A doutrina dos Evangelhos era já, por conseguinte, um fato consumado antes do pretendido Cristo.
Depois de concluirmos que a mitologia judaico-romana e o mito de Cristo eram anteriores ao cristianismo e ao judaísmo, provaremos em seguida que nem sequer a doutrina cristã é original, formando-se primeiro e fora do pretendido Cristo. Veremos pois de que modo se formou aquela concepção metafísica e teológica de Cristo, que obscureceu por tantos séculos a sua origem mitológica. Três pontos, principalmente e podemos até dizer unicamente - nos restam ainda a analisar, para completar os dogmas capitais da doutrina cristã: a imortalidade da alma, a ressurreição e dogma do Verbo. O dogma da imortalidade da alma encontra-se na religião persa, tal como foi adaptado à religião cristã. Os sequazes de Zoroastro (1700 a 1000 aC) acreditavam que a alma se formava pura e imortal com o livre arbítrio e que devia ser recompensada ou castigada, segundo os seus méritos ou deméritos. O dogma da imortalidade da alma era já conhecido dos persas, antes mesmo de Zoroastro, segundo se vê pelas seguintes palavras da Ciro152
E quanto à doutrina do Verbo, encontramo-la no Egito, onde o Deus supremo gera Kneph, a palavra semelhante a seu pai; e da união do Verbo com o seu divino autor, nasce o Deus do fogo e da vida Fta, que vivifica todos os seres. Porfírio cita um oráculo de Serápis assim concebido: Deus é antes, depois e ao mesmo tempo, o Verbo e o Espírito com um e outro. Isto prova que os elementos da doutrina cristã preexistiam muito tempo antes daquele movimento que lhes deu nova organização, novo nome e nova forma. Para sermos mais completos, rebuscaremos as origens no próprio judaísmo e helenismo 249. Neles encontraremos ainda mais do que o que procuramos. Tem-se dito que o cristianismo, apoiado no judaísmo, introduzira, ele só e primeiro que tudo, a unidade de Deus. Nada mais falho de provas. O judaísmo conhece outros deuses. Além disso, ainda mesmo que Jeová fosse o único deus dos hebreus, o cristianismo ajunta a Trindade, que decerto não era uma novidade, nem para as reli-
giões orientais nem para o mesmo politeísmo greco-romano, pois que, se tinham um grande numero de divindades inferiores, rapidamente copiadas pelo cristianismo, nos seus anjos e santos tinham a sua Trindade e os seus deuses redentores, como já vimos, e sobretudo, tinham um Deus supremo, que em nada era inferior ao que logo foi o Deus Pai dos cristãos. No mundo romano, o próprio Cantu admite (Hist. Univ. cap. VI) que o politeísmo se restringira quase à crença num Deus único, a Júpiter e Apolo, sendo este, apenas um mediador entre Deus e os homens, a fim de por intermédio dos oráculos, revelar a sua vontade, e como salvador da Humanidade, que encarnou e viveu escravo na terra, submetido aos padecimentos para expiação do gênero humano. Máximo de Tiro assegurava que, fosse qual fosse a forma, todos os povos acreditavam num só Deus, pai de todas as coisas. O mesmo dizia Prudêncio o povo tinha sempre na boca as expressões - Deus o sabe, Deus o abençoe, se Deus quiser. Os próprios oráculos falavam de Deus no singular. Eusébio, Agostinho, Lactâncio, Justino, Atenágoras e outros
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Veja-se a tal respeito Salvador, obr. cit. Havet, obr. cit. e M. Nicolas - Doutrinas religiosas dos Judeus. 153
apologistas do cristianismo, reconheciam também que a unidade de Deus era admitida pelos antigos filósofos e formava a base da religião de Orfeu e de todos os mistérios gregos. Além disso, sabe-se que o que produziu o êxito do Deus hebraico, fazendo-o comum a todos os cultos, foi um puro acidente de tradução, tendo a versão grega da Bíblia substituído o nome de Deus hebraico pelo de Senhor (em latim Dominus), que era o nome dado á divindade suprema (o Sol) por todos os cultos, naquela época de evolução religiosa em que nasceu e se propagou o cristianismo. O amor de Deus não é invenção cristã encontra-se já no Antigo Testamento, para não falar dos gregos, como atesta Planto, nem dos essênios, como observa Fílon. E a invenção do Pai Celeste, que se pretende achar em Jesus, pertence também ao Antigo Testamento, especialmente em Isaías (LXIII, 15). São de Ezequiel as palavras em que Deus declara não querer a morte do pecador, mas que se converta e viva (XVIII, 23; XXXIII,11). O versículo de Paulo (Gal. III, 11 e seg.) segundo o qual o justo viverá da fé, encontra-se já em Habacuc (II, 4).
Porém, os elementos metafísicos da doutrina cristã procedem da filosofia grega, especialmente de Platão. Deste deriva igualmente a doutrina metafísica do Verbo, tendo-o Platão, por sua vez, tirado do Egito250. Platão foi o verdadeiro propagandista, - não dizemos criador porque a procedência é toda do místico Oriente - da metafísica cristã. Foi ele que popularizou a Trindade e o Logos, que propagou a distinção entre a alma e o corpo, subordinando este àquela, que fez desta terra um deserto, que reduziu, em suma, a sistema filosófico a decadência moral, que faz dos sentidos uma prisão e do mundo um mal, fazendo consistir a felicidade nos delírios metafísicos. Também a intolerância religiosa, tirou-a o cristianismo das escolas místicas e espiritualistas da Grécia. Cicero e Sêneca, no mundo romano, escrevem como perfeitos padres da Igreja. Tanto que o primeiro converteu e inspirou S. Agostinho na teologia, e o segundo foi suspeito de haver tido relações filosóficas com algum dos apóstolos. Seria supérfluo repetir aqui a demonstração, que 250
Convém recordar que já antes de Platão, Heráclito falara do Verbo, do mesmo modo por que o faz o Evangelho. 154
já é do domínio da filosofia e se conta entre as verdades experimentais adquiridas. De todo o modo, a Idade Média, sinônimo de cristianismo, oferece-nos dela uma prova plena, porque nos conservou as obras daqueles autores, graças à afeição que por eles teve, excetuando o Hortêncio, de Cícero, provavelmente suprimido para evitar aos cristãos uma desairosa situação, pois que com ele se poderia provar que o cristianismo foi anterior a Cristo251. Poremos também de lado as provas que poderíamos tirar da cultura helênica, em demonstração de que o cristianismo, ao menos na sua parte filosófica, ou antes metafísica, procede da lenta elaboração dos materiais daquela cultura, pois temos pressa de chegar à parte culminante da demonstração da nossa tese, que é a filosofia dos judeus alexandrinos, os verdadeiros artífices do dogma cristão252.
Com os judeus alexandrinos cristaliza o Oriente o espiritualismo helênico de Platão e o judaísmo, criando não só a doutrina cristã mas o mesmo Cristo, ou antes, o Cristo metafísico, com o nome de Verbo. E de toda a sua doutrina, só faremos referência à parte relativa ao mesmo Verbo, única que importa a nossa tese, acrescentando ainda aquele famoso ponto de intersecção ideológica, de que nasceu a doutrina do Verbo que se faz carne, também sem que ainda existisse o nome de Cristo. Importa recordar aqui a seita dos terapeutas do Egito, que eram os israelitas descontentes das práticas religiosas públicas do seu povo, os quais tinham abandonado o culto nacional do templo e do sacrifício, retirandose à vida contemplativa, longe do comércio dos homens: que estabeleceram a comunidade de bens, tendo o matrimônio como um impedimento, querendo libertar a alma da tirania do corpo, obediente a uma severa disciplina, abolindo os prazeres dos sentidos, aconselhando a caridade, a
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Havet prova que o cristianismo existia todo, pelo menos em gérmen, no helenismo. Só lhe faltava a exaltação dos humildes e infelizes, que foi buscar, como vimos, ao judaísmo profético. 252 Segundo Havet, as principais palavras da doutrina cristã são de origem grega: dogma, mistério, símbolo, catecismo, presbítero, bispo, diácono, monge, teologia, invisível, criatura, corruptível, afeição, etc. Esta observação é dig-
na de ser notada, porque as palavras são o símbolo da ideia, e por sua vez, influem sobre as ideias e estas sobre os costumes, sobre as religiões e sobre os acontecimentos e porque em todo o caso provam a verdadeira origem das ideias. 155
beneficência e as preces em comum, condenando o juramento, exaltando a pobreza e o celibato, praticando a abstinência, etc. Eram semelhantes aos essênios da Palestina, outra seita análoga, mas não idêntica, pois esta admitia o trabalho na agricultura e nos diversos ofícios. Importa igualmente recordar aqui a opinião de Eusébio, segundo a qual os terapeutas, de que falava Fílon, como se fossem há muito uma seita cristã, eram os cristãos: opinião esta que demonstra, com uma evidência incontestável, que o cristianismo existia já antes do pretendido Cristo. É certo que a critica impugna a afirmação de Eusébio. Mas com que fundamento? Que razão ficará que justifique a objeção feita pela crítica à afirmação de Eusébio, se suprimirmos a fonte suspeita da Bíblia? A opinião de Eusébio é fundamentada em fatos, e segundo eles, os terapeutas eram já em ação, verdadeiros cristãos. E tanto assim é, que o próprio Strauss, um dos que combatem a opinião de Eusébio, se vê obrigado a confessar que a semelhança e o parentesco dos essênios e terapeutas com o cristianismo primitivo, tem dado sempre
muito que pensar. Para os essênios e terapeutas praticarem toda a moral e doutrina cristã, só lhes faltava a doutrina da encarnação do Verbo. Foi esta a obra dos hebreus alexandrinos. Os principais autores hebreus alexandrinos, de que nos ocuparemos neste lugar são Aristóbulo253 e Fílon, principalmente Fílon, aquele Fílon que deixamos noutro ponto do nosso trabalho, quando explicava, em alegoria o Antigo Testamento. Este Fílon, a quem Havet chama o primeiro dos padres da Igreja, nós o consideramos como o verdadeiro fundador do cristianismo, o criador do Verbo, o criador de Cristo, apesar de nunca ter falado em Cristo, e precisamente, por isso mesmo... Fílon discorre acerca do Verbo, não no sentido de Salomão ou do Livro da Sabedoria, não à maneira de Heráclito, de Zenon e de Platão, mas sob o influxo da mitologia egípcia, de tal modo que devia servir, depois, de base ao cristianismo, não faltando senão o nome de Cristo e a aplica253
Que foi o primeiro hebreu alexandrino que tentou a fusão do hebraísmo com o helenismo. Vid. Vacherot, His. crit. da escola de Alexandria. Introdução, libr. II.. 156
ção do antropomorfismo dos Deuses Redentores orientais ao seu Verbo, para completar a fusão do Oriente (espécie egípcia) com a Judeia e a Grécia, e a transformação de tantos materiais, tantas vezes fundidos numa nova religião254. Já Salomão tinha distinguido a sabedoria divina de Deus, fazendo dela o instrumento da criação. Por isso, o Livro da Sabedoria define a natureza deste princípio intermediário, transformando o pensamento vago de Salomão sobre a sabedoria, na doutrina do Verbo propriamente dito. No Eclesiastes, de Jesus de Sirac, a doutrina do Verbo é ainda mais precisa: A sabedoria vem de Deus, e com ele esteve sempre. Foi criada antes de todas as coisas, e a voz da inteligência existe desde o princípio. O Verbo de Deus, no mais alto do céu, é a fonte da sabedoria. E aqui já nós estamos muito perto da linguagem do quarto Evangelho255.
Fílon porém, dá o Verbo feito humano. Segundo ele, Deus é inefável e inacessível à inteligência humana que, mesmo ajudada pela graça divina não chegaria até ele, se Deus não descesse até ela e se não se lhe revelasse. Nesta revelação, Deus não se mostra aos homens na sua figura invisível, mas mostra a sua imagem, o Verbo. Este Verbo, em Fílon, é alguma coisa mais que em Platão. Em Filon, dado o principio da essência impenetrável de Deus, que não pode proceder à criação do mundo nem comunicar com os homens criados sem a obra de um mediador, o Verbo convertese precisamente neste Mediador. Para Fílon, o Verbo não é só a palavra, mas a imagem visível, a figura de Deus. Ele é o ungido por Deus, o tipo ideal da natureza humana, o Adão celeste. Nesta última denominação, que devia ser mais tarde empregada, no mesmo sentido, por S. Paulo, crê Vacherot que está precisamente contido o princípio de uma grande doutri-
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Vacherot, na sua obra a Religião, notando a perfeita identidade da teologia do quarto Evangelho com a do Verbo platoniano e alexandrino, deduz que não deve duvidar da origem grega do Verbo cristão. 255 No livro da Sabedoria, está já nitidamente professada a divisão da alma e do
corpo, bem como o dogma da vida futura e imortalidade da alma. S. Jerônimo, que traduziu do grego o livro da Sabedoria, declara que tal obra não existia em hebraico e que os antigos escritores a atribuíam ao filosófo hebreu Fílon. É uma circunstância bem digna de reparo. 157
abandonará à sua fraqueza e impotência. Fílon faz mais ainda: oferecenos a eucaristia, a ceia, o que, em linguagem científica, chamamos teofagia. Dá ao Verbo os nomes de pão da vida, de pão por excelência, indispensável (aos fieis) para se alimentarem257. Poderíamos continuar o exame da doutrina de Fílon, que é absolutamente cristã, tanto na teoria do Verbo como na da Trindade e no seu misticismo, de tal modo que o cristianismo não teve que acrescentar mais do que palavras, deixando incólume a substância. Ao nosso plano, porém, importa que nos detenhamos aqui, porque, buscando a formação da doutrina Cristã antes do pretendido Cristo e sem ele, alguma coisa mais encontramos: a doutrina cristã de onde nasceu Cristo. Não foi, pois, Cristo que criou o cristianismo. Foi o cristianismo que criou Cristo. Este Fílon, que fala como
na - a da encarnação do Verbo de Deus sob a fôrma humana256... O mesmo Fílon diz que, se Deus criou o homem à sua imagem, não é a ele a quem pode comparar-se, mas ao Verbo de Deus. De modo que, observa Vacherot, o Verbo de Fílon é particularmente o tipo da natureza humana. Com Fílon, pois, o Verbo de Platão deixa de ser uma pura entidade abstrata para se converter em princípio de vida, para se encarnar. Mais ainda: em Fílon, o Verbo converte-se em filho de Deus, que, por sua vez, é pai de todos os homens, que por isso são filhos do mesmo pai. Porque, se o Verbo divino é o tipo da Humanidade, também o pai o é, e todos os homens são seus filhos: filhos do Verbo, antes de serem filhos de Deus... Melhor ainda: segundo Fílon, o Verbo, mediador entre o criador e a criação intercede junto do Eterno pela mísera Humanidade, e além disso, interpreta as ordens de Deus aos homens... Assegura ao criador que a criatura será fiel à lei suprema, fora da qual não será coisa alguma, e, por outro lado, assegura à criatura que o criador não a
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Hic est panis, cibus quem doclit Deus animibus ut se pascant. Verbo ipsius atque sermone. Nam hic est panis datus nobis ad viscendum vedelecit verbum hoc... Audiat igitur anima vocem Dei, quod um solo pane vivet homo fact us ad unaginem, sed omni verbo quod procedit ore Dei (Philo. Legis, alleg. III).
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Vacherot, Escola de Alexandria, Introd. livro II, Fílon. 158
cristão, que funda o cristianismo - embora o nome da nova seita não apareça ainda em suas obras - e que, além disso não conhece Cristo, de quem forçosamente devia ser contemporâneo, não será, porventura, a mais formosa e contundente prova de que Cristo nunca existiu? Numa palavra: se recordarmos o que escrevemos no princípio deste trabalho, isto é, que os discípulos imediatos de Fílon, Clemente Alexandrino (depois colocado no número dos santos!) e Orígenes não falavam de Cristo como homem; se recordarmos que o próprio S. Paulo fala de Cristo como do Adão celeste, à
maneira de Fílon; se acrescentarmos o fato bem notório de que, em geral, os primeiros padres da Igreja se não interessaram pela humanidade de Cristo, considerando nele apenas o Verbo e o filho de Deus, estaremos autorizados a declarar que, mais do que nunca, fica demonstrada inteiramente a nossa tese, e a pedir à ciência que retifique as opiniões seculares acerca de Cristo, e que, de pessoa humana, como foi julgado durante mais de quinze séculos, o faça voltar ao que foi em suas origens: uma pura entidade abstrata, uma criação mitológica e metafísica da Humanidade.
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CAPÍTULO III O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO
Em realidade, este capítulo não era preciso ao nosso assunto; mas, para que se veja que o cristianismo não trouxe novidade alguma ao mundo e que não é necessária a presença de Cristo para explicar a religião cristã, lançaremos uma rápida vista às práticas religiosas, às cerimonias e à parte exterior ou social das religiões que precederam a cristã, as quais nos provam que também o culto cristão antecedera o cristianismo, salvo algumas leves modificações, de forma, que a diversidade dos tempos e dos povos explicam. Escusado é dizer que nos limitaremos aos cultos antigos que passaram para o cristianismo. A tese, pois, e esta: as práticas das antigas religiões foram copiadas pela cristã. A religião de Brahma coloca a casta sacerdotal acima da sociedade: só ela é que tem conhecimento das coisas santas, só ela pode ler os Vedas, oferecer sacrifícios, ensinar a religião e apropriar-se das esmolas depositadas nos templos; as terras dos brahmanes são as únicas isentas de impostos.
O sumo sacerdote não pode casar-se e é venerado como um Deus, podendo fazer cessar os açoites o as calamidades públicas. Na religião de Buda, os bonzos devem ser bem tratados, providos dos respectivos mosteiros e do necessário para viver. Também estes não se casam. O Dalai-Lama é o seu papa, isto é, o vigário de Deus e o sucessor de Fo, considerado infalível como o católico. No budismo era antiquíssima a prática de celebrar concílios, a fim de condenar e evitar os erros infiltrados na religião, bem como a de enviar missionários a outros países. Também o budismo, especialmente no Tibete, abundava em mosteiros, uns para homens, outros para mulheres, sendo numerosíssimos os irmãos258. 258
No livro célebre de Andrea Dickson White, História da luta entre a ciência e a teologia na cristandade, cap. XX, vem descrita a missão que em 1839 o padre Huc, lazarista francês realizou na China. Por ela se vê que tudo quanto há no cristianismo - cerimonia, ritos, símbolos, moral, - tudo ali o encontrou ele, realizado, prático, perfeito, superior. O missionário, a vista disto, ficou confundido, mas logo a sua fé encontrou uma 160
Na religião dos persas aparece a divisão hierárquica do clero em várias ordens e a ele pertence a décima parte das rendas dos cidadãos. Os magos persas deviam ser puros e abster-se de todo o trabalho manual. No Egito, os sacerdotes formavam a primeira casta da nação tinham o poder de eleger os reis e limitar a sua conduta; os seus alimentos eram fornecidos pelas classes inferiores, a quem arrendavam as terras dos templos; só eles tinham o direito de instruir e oferecer sacrifícios. Nada de novo, pois, debaixo do sol, como diria Salomão, no que se refere ao sacerdócio cristão: tudo estava já em prática nos povos mais antigos. Inseparáveis dos sacerdotes são as profecias, os oráculos, os sortilégios, os prodígios, os exorcismos, porque a sua missão seria inútil, se não tivessem, ou
não julgassem ter, algum poder oculto sobre a Natureza, para interesse das necessidades humanas. Pois bem: os brahmanes indianos tinham o poder de paralisar, com maldições e malefícios, a ação insidiosa de Mahadeva, e possuíam certas plantas e licores, a que atribuíam virtudes milagrosas. As expiações são o alimento ordinário das religiões anteriores ao cristianismo, de modo que a cristã não faz mais do que copiar. As mortificações dos indianos jamais foram excedidas, mesmo pelos mais ferozes ascetas da Idade Média. Uns arrastam cadeias de ferro por toda a vida; outros trazem sobre as carnes agudos espinhos de ferro; estes caminham sobre carvões acesos; aqueles passam a vida inteira imóveis; um penitente faz em dez anos a peregrinação de Benares, medindo com o corpo o espaço que o separa... E quantos se deixam despedaçar debaixo das rodas dos carros que conduzem os deuses! No budismo, há certas épocas do ano destinadas ao jejum, à abstinência de carnes e a muitas práticas austeras, entre as quais a de se transportarem aos templos, de joelhos.
explicação: que Satanás, antecipando-se ao cristianismo, revelara ao budismo essa ordem de coisas divinamente constituída. A Igreja romana, porém, não aceitou tal explicação. O cardeal Antonelli e todas as autoridades da Roma papal, vendo o perigo que essas revelações traziam em pleno século XIX, proibiram a circulação do livro do padre Huc, mas foi debalde, porque, a esse tempo, já ele se tinha espalhado em todo o mundo, em diversas traduções. Padre Huc, nunca mais fui enviado a fazer missões. 161
E, como estes, os egípcios, os gregos e os romanos. Os votos são comuns a todas as religiões, exceto à de Confúcio. O voto de castidade, sobretudo. Encontra-se na Índia, no Egito, na Grécia, em Roma, onde o colégio das vestais era um verdadeiro convento as jovens romanas, que entravam aos seis anos, para lá permanecerem até aos quarenta, faziam voto de não deixar extinguir o fogo sagrado e de conservar a virgindade. Se alguma delas violava este último compromisso, era sepultada viva e o amante condenado à morte. Acerca dos sacrifícios, já vimos como eles se usavam nas religiões antigas. Os budistas, por exemplo, oferecem a Deus pão e vinho, que representam o corpo do Agni, e os bonzos, antes da cerimônia, abençoam o povo. A missa é completamente pagã, até nos mais pequenos detalhes litúrgicos. O sacerdote, vestido de branco, purificava o templo e os fiéis com agua benta. A cerimônia era acompanhada de hinos ao Sol e ao Fogo, de onde procedem os nossos Kyrie-eleison, etc. Em seguida, tinha lugar a
imolação da vítima que, com o tempo, foi substituída pela hóstia259. O sacerdote, antes de fazer a libação do vinho sagrado, (a palavra libação provém de ser o vinho oferecido a Líber, Baco) lavava as mãos. O Lavabo é uma oração antiga, que remonta a Orfeu. As galhetas para as libações, uma para deitar a água nas mãos e outra para o vinho, já existiam tal como hoje. O celebrante, ora ajoelhava, ora se levantava, erguia as mãos ao céu, estendia-as sobre a hóstia, voltava-se para os circunstantes, queimava incenso, oferecia pão e vinho à divindade, invocando-a três vezes no Sanctus e no Agnus dei. Por fim, despedia os assistentes. Em Roma era com as palavras - ite míssio est de onde veio, por corrupção, o ite missa est. A elevação do cálice é de origem ariana. Os persas tinham a sua euca259
Pretende-se que a cristianismo acabasse com os sacrifícios sangrentos. Nada menos verdadeiro. O uso de não imolar homens estava já há muito em prática, e até mesmo o de animais já tinha acabado, quando triunfou o cristianismo. A hóstia de pão era já usada entre egípcios e romanos. 162
ristia, tal como os católicos. Pelo que se refere às orações, o cristianismo está muito longe das religiões que lhe serviram de modelo. Os budistas tinham já a sua coroa - convertida pelos cristãos no rosário - de que se serviam colocando os dedos entre os grãos e escrevendo num papel o número dos recitados. Na religião de Zoroastro é prescrita a oração fervorosa, com pureza de pensamentos, palavras e obras. A oração humilde, acompanhada de sincero arrependimento era considerada superior a todo o existente. O pater, o credo e o confiteor, eram as mais importantes orações dos persas. Na Grécia, a oração fazia-se pela manhã e à noite, ao nascer e ao pôr do sol. Os fiéis iam para o templo de olhos baixos e ar suplicante beijavam o chão e ficavam de joelhos. E na Etrúria era já costume antigo rezar com as mãos juntas. Os romanos tinham duas espécies de orações: as execrações que se dirigiam contra os deuses, por ocasião das calamidades, e as súplicas, que eram pedidos de graças. A confissão auricular já se praticava no brahmanismo, e os
confessores empregavam as mesmíssimas formas dos atuais sacerdotes católicos. A confissão era também usada pelos persas. Os hábitos ou vestimentas sacerdotais são tirados das antigas religiões, em todos os seus detalhes. A sotaina procede dos sacerdotes de Mitra, bem como a estola, onde estavam representados os signos do zodíaco. 0 uso de rapar toda a barba, era próprio dos sacerdotes, desde a maior antiguidade, e significava um grande sacrifício, pois às barbas se atribuíam certas virtudes. O barrete preto, ou tricorne, é igual ao que usavam os sacerdotes de Júpiter, em Roma. O solidéu negro, o báculo, o anel de ouro, as sandálias, o manto branco, a tiara, são cópia dos costumes sírios e babilônicos. Já falamos das festas da Natividade e da Páscoa; acrescentaremos as mais importantes, como são, por exemplo, a comemoração dos defuntos e a primeira comunhão, todas elas anteriores ao Cristianismo. As peregrinações eram já praticadas pelos indianos. As ladainhas são antiquíssimas. Malvert, no livro a que já nos referimos, confronta as la163
dainhas da Virgem Maria com as das virgens-mães, que a precederam, e vê nelas a origem das próprias palavras da ladainha da Virgem. As procissões remontam igualmente à mais remota antiguidade. Ovídio e Apuleyo descrevem procissões em honra de Juno e Diana, em tais termos, que poderiam aplicar-se às de nossos dias. Havia também o costume de adornar as ruas quando passava a procissão, figurando nela altares, incenso, promessas, crianças vestidas de branco e sacerdotes de cabeça raspada, relíquias sagradas, etc. As preces públicas eram em Roma a Ambarvalia, e tinham também lugar em maio, através dos campos, pedindo para eles a proteção divina. No solstício do verão, celebrava-se a festa do Sol, que o cristianismo converteu na de João. Os budistas levavam estandartes nas procissões, uso que passou para Igreja romana, sem alteração alguma. No budismo, os fieis eram chamados à igreja pelo toque de campainhas e no vestíbulo de todos os templos gregos havia água lustral.
Os cânticos e a música eram também já usados nas cerimônias religiosas dos gregos e romanos. O mesmo diremos dos círios e das lâmpadas, que se acendiam para honrar a luz, princípio gerador do Sol e dos astros. O culto das imagens é antigo como o homem. Tem-se dito que o cristianismo foi o primeiro e único a aboli-lo. Plutarco, porém, recorda que os tebanos não representavam Deus sob forma alguma e o próprio Numa admoestou os romanos para que não fizessem imagens materiais dos deuses. Mas até o cristianismo acabou por adotar o culto das imagens, e caso curioso, muitas vezes sucede que as imagens dos deuses antigos são objeto da devoção dos cristãos, com uma simples mudança de nome. Das cerimonias que acompanham o nascimento, importa recordar a dos indianos, que lavavam o menino em água benta, dando-lhe em seguida o nome de um gênio, que se convertia em seu protetor, menino que ao fim de quatro meses era oferecido ao Sol, cortando-lhe os cabelos em forma de coroa para imitar o disco daquele astro. Nas dos persas, o mobed (sa164
cerdote) batizava a criatura, espremendo- lhe na boca, com algodão, o suco da árvore chamada hom - cerimônias que passaram todas para o cristianismo. Entre os indianos, quando a criança chegava à idade de oito anos, começava a recitar o hino ao Sol, e pouco depois, ia à escola do Gurom ou diretor espiritual, que lhe ensinava os Vedas. Entre os persas, a criança devia, aos quinze anos, preparar-se para as cerimônias do Zuzodi ou iniciação na religião e só então era purificada e conduzida ao templo. O mesmo sucedia entre os egípcios. Acerca do matrimônio, as cerimônias que a ele presidiam eram quase as mesmas, assim como na morte. Entre os indianos, a extrema unção consistia em banhar as mãos do enfermo em urinas de vaca. Como se vê, esta ligeira resenha das principais cerimônias do culto das religiões pré-cristãs, embora parecesse, a princípio, estranha ao nosso tema, deu, contudo, em resultado mostrar que, ainda aqui, a religião cristã nenhuma necessidade teve de criar coisa alguma porque todos os elementos do seu culto pree-
xistiam já nas várias religiões, das quais ela os copiou. É certo que nos podem observar que nos Evangelhos nada se encontra referente ao culto, mas isto é ainda um fato que depõe a nosso favor, pois não só prova que quem escreveu os Evangelhos se não preocupava com o culto, porque evidentemente praticava já um, mas também que o que depois foi culto de uma ou outra seita cristã não se tinha ainda adotado, ou antes diferenciado dos precedentes, com caracteres distintos, porque primeiro devia criar-se o novo Deus e a crença nele mesmo. Sob este ponto de vista, as contendas e lutas entre as várias seitas cristãs, relativas a este ou àquele ato do culto são verdadeiras sandices e perdem todo o valor, já que todas elas beberam da mesma fonte oriental, o mito do Deus Redentor, encarnado no novo Deus. Importava à nossa argumentação demonstrar que nem para criar o culto cristão era preciso a existência e a obra do pretendido Cristo, tanto mais que, do exame do culto, tiramos para a luz, esplêndidas e irrefutáveis provas da origem e natureza mitológica de Cristo. Concluiremos, pois, dizendo, 165
com Stefanoni, que em vários pontos da sua admirável obra estabelece com grande lógica e sólida argumentação a pergunta se Cristo realmente existiu: A nova época (a do nascimento do Cristianismo) estava, por conseguinte, irrevogavelmente preparada. Nem cataclismos, nem quebras de tradições a iniciaram; veio lenta, insensível, quase inesperada, a erguer as inteligências a uma nova ideia. Não iniciou, mas completou o trabalho de vários séculos. O cristianismo não foi, pois, obra de um só homem nem de poucos anos, mas o resultado de largo trabalho de vários povos, o conjunto dos progressos gerais de cada um, feitos em todos os tempos. E, ainda que a fé ensine que a nova religião foi consequência da divindade novamente revelada, a História, fundamentada em documentos pode afirmar com toda a segurança que o cristianismo existia antes de Cristo260.
260
Stephanoni, História Crítica das Superstições, vol. 1, cap. XVI. 166
CAPÍTULO IV FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO
O haver demonstrado que todos os elementos que formaram o cristianismo já preexistiam nos vários cultos e escolas filosóficas, que o precederam, não bastaria ainda para explicar a razão por que vieram a fundir-se num único corpo de doutrinas e crenças, dando origem a uma nova religião. Esta razão deve ser procurada fora dos materiais da nova religião, da qual forma a parte objetiva; esta razão não pode ser mais do que o estado subjetivo dos ânimos, nos tempos e lugares onde o cristianismo se foi elaborando, paulatinamente, como difusa nebulosa que, pelas mesmas leis de gravidade que regem o Universo, deu princípio a um novo núcleo de atração em torno do qual vieram gravitar as forças psíquicas da evolução humana. E aqui surge de novo a observação de que hajam sido vãos todos os esforços que se têm tentado para determinar o momento preciso da origem histórica do cristianismo por parte das inteligências positivas, que com justa razão, não podem reconhecer o milagre, afirmando que o nascimento de uma religião não pode
ser uma coisa palpável, concreta, determinada ou determinável, mediante meios diretos e experimentais de observação, mas sim o produto de um processo lento e quase imperceptível em suas fases, de um trabalho absolutamente interno, imponderável, indefinível e indeterminável, do conjunto das capacidades humanas. Quando se apresenta como um fato completo e consumado na cena da história, não pode dizerse, com justiça, qual seja a sua fonte, porque as suas origens perdem-se na noite dos tempos, e especialmente, naquele mistério, quase impenetrável - porque, inadvertido quando se difunde, está já difundido e consistente quando se dá por isso - da filiação das ideias e dos sentimentos, que constituem a causa verdadeira da formação de uma religião nova. Mas, se não podemos determinar o verdadeiro momento da história em que surgiu o cristianismo, podemos, em compensação, fixar a sua causalidade e determinar, precisamente, o processo da sua formação. Este meio é a psicologia que avalia os 167
fenômenos morais com o estudo das condições do meio ambiente. Sem pretendermos descrever a fundo a formação psicológica do cristianismo, daremos contudo, deste fenômeno, uma explicação suficientemente clara, até mesmo sob o ponto de vista positivo e evolucionista. Diz-se, e é mesmo um lugar comum arraigado na persuasão de todos, até de muitos positivistas, e que só se explica pela grande força da tradição, que o cristianismo fora um progresso moral, devido à necessidade de pôr termo à corrupção do paganismo. Pois bem: ainda com risco de sermos apedrejados, contra essa infundada crença nos revoltamos, só porque é infundada, e em nome da verdade e como homenagem à justiça, devida também aos homens que tiveram a desgraça - ou a fortuna - de viver antes do cristianismo, declaramos que a causa psicológica do advento do cristianismo foi um princípio de decadência e não de progresso. E desde já passamos a demonstração, deixando que falem os fatos para que, num argumento de tanta monta não figure a retórica em linhas de combate.
O cristianismo, que foi o encontro dos hebreus e dos gregos no Egito, crisol onde se realizou a fusão do Oriente com o Ocidente - consumado organicamente em Roma - absorveu de todos esses povos, como expoente comum e denominador de suas diversidades étnicas, o conjunto daquelas lágrimas das coisas de que falava então, precisamente, o poeta latino. O cristianismo fez a sua aparição quando hebreus, gregos e romanos tinham perdido a liberdade, a felicidade e a esperança de reconquistá-las no mundo presente; veio quando a felicidade de viver, própria da antiguidade primitiva, que teve o seu apogeu na Grécia, foi destruída pela reflexão e pela prática dolorosa da vida, dando lugar ao tédio, às desilusões trazidas pelas contínuas adversidades, aquela dor universal das coisas, que tornava a existência inexplicável e intolerável ao mesmo tempo, porque com a cultura, tinha também aumentado o sentimento da intolerância dos males que afligiam os homens e os povos. Como diz Gaetano Negri, incomparável filósofo e artista: E não podendo o homem renunciar à felicidade, não tem mais que um meio para sair de sua 168
miserável condição o de transportar esta sua felicidade da vida terrena para a vida transcendental, a de admitir a adversidade no mundo presente, para a substituir, se assim pode dizerse, pela esperança da felicidade no mundo futuro. Esta foi, justamente, a doutrina do cristianismo261. A ciência experimental não tinha ainda nascido, e a Humanidade, combalida, não tinha então outro remédio contra os males desta vida, além da esperança na vida futura. O cristianismo foi pois, uma doutrina nascida da decadência. Foi por conseguinte, a religião da decadência262. A sorte do povo hebreu, continuamente escravizado por uma e outra dominação, desiludido nas suas esperanças de voltar aos tempos felizes e à glória, tinha preparado aquela literatura da dor, que deveria consolar os humildes e os aflitos e ser um poderoso elemento para a forma-
ção e difusão do que mais tarde se chamou cristianismo. O advento desta filosofia da dor, da resignação e do desprezo da vida presente precedeu igualmente as mais graves calamidades públicas na Grécia e em Roma. Platão - o primeiro padre précristão da Igreja - escrevia precisamente quando os destinos de Atenas decaíam a olhos vistos. As ruínas morais da pátria não fizeram senão dar maior incremento à filosofia de Platão, àquele misticismo que, destacando-se da vida real por sua brutalidade, sem liberdade nem justiça, em si mesmo se concentrou, como em último refúgio. Encaminhada assim, a filosofia grega chegava por um lado à Egesia, que aconselhava a morte voluntária como meio mais seguro para alcançar o repouso da alma, a paz sem inquietações, e por outro lado, ao Livro do Luto, do acadêmico Crantor, modelo das consolações. Não andavam melhor as coisas de Roma, no século anterior ao advento do cristianismo. Este século, que depois de ter reduzido tantos povos à dominação de Roma, submete a mesma Roma ao domínio de um só,
261
Gaetano Negri, Crise Religiosa. Emíle Zola, com sua vista de águia penetrou até a íntima essência do cristianismo, ao escrever: É do negro pessimismo da Bíblia que é preciso libertar o mundo, espantado e esmagado há dois mil anos, vivendo apenas para a morte; e nada é mais caduco nem mais mortalmente perigoso que o velho Evangelho semita aplicado ainda como único código moral e social. 262
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inaugura-se sob os auspícios de uma interminável guerra entre cimbros e tentões; vê levantarem-se todos os povos da Itália contra Roma; assiste às guerras entre Mário e Sylla; admira Espártaco, que à frente dos escravos fez tremer os senhores; horroriza-se com a organização geral e terrível dos piratas; na África, na Espanha, na Bretanha, vê cenas de ferocidade e de luta; assiste às guerras de Mitrídates e dos partos no Oriente, às fações de Pompeu, de César, de Bruto, de Antônio e de Augusto, que dividiram e ergueram em armas o mundo que Roma dominava. É então que desabrocha um grande mal estar para a vida, nada se esperando já da liberdade nem da lei; o suicídio converte-se numa salvação, e a morte é considerada, não como o termo, mas como o objetivo da vida é a filosofia da desolação, que inspira a Tusculane de Cícero. E como a arte é o termômetro moral do tempo, nós vamos encontrá-la em Horácio, pessimista até ao ascetismo263. E esta era a disposição dos espíritos, antes de Augusto. O que não seria depois, nos sucessores, sob Tibério e Nero?
Daquele ambiente não podiam sair senão almas cristãs, como Sêneca. E eis porque, naquela época, começa a fazer à sua aparição misteriosa o nome cristão e com ele o objeto. A filosofia converte-se em religião, e esta na religião do sofrimento e da morte nesta vida, para gozar na outra o paraíso. Vejam se naquele ambiente não deviam surgir e tomar forma concreta, as esperanças messiânicas dos hebreus, anunciando o fim próximo do mundo, a ressurreição e a palingenésia universal! Vejam se, ao antimoralismo daquele tempo, não era necessário o ultramoralismo oriental, segundo a feliz antítese de Renouvier264, para que, a fim de curar um excesso, viesse um excesso contrário, e a fim de curar um mal viesse outro mal - um outro mal que, desgraçadamente, permaneceu no corpo social enfermo e debilitado, sem que tenham conseguido ainda expulsá-lo as repetidas renascenças do naturalismo filosófico e do experimentalismo científico. Por outro lado, enquanto a moral degenerava, as crenças na antiga divindade esfumavam-se
263
264
Paulo Orano, O Problema do Cristianismo.
Citado por Benoit Malon no livro Questões Ardentes. 170
até desaparecer de todo. Se a fé diminuía, não era tanto obra do livre exame, mas do encontro entre os vários cultos e a crítica recíproca. Sobretudo, devia ter sido de uma grande influência e contato com os persas, pois não tendo os seus deuses estátuas nem altares, animando o seu culto apenas o elemento puramente espiritual, os gregos seriam levados a meditar sobre o grosseiro antropomorfismo dos seus deuses. Isto não quer dizer que à antiguidade clássica faltassem espíritos liberais e críticos racionalistas: Anaxágoras, Epicuro, Demócrito, Protágoras, Diágoras de Melos, Lucrécio, etc., são nomes que o moderno livre pensamento pode colocar entre os seus membros honorários. Já, além disso, o estoicismo encontrara a verdadeira explicação da origem das religiões nos mitos, nos quais a imaginação dos antigos, desconhecedora das leis da Natureza, intentara explicar os fenômenos naturais. Já Evemero de Messina estabelecia a teoria de que os deuses não eram mais que grandes homens ou reis divinizados, teoria que esteve muito em voga até os nossos dias, e que ainda hoje é verdadeira para certas tradições
secundárias, e que no seu tempo, devia ter exercido uma influência demolidora sobre as religiões constituídas. A incredulidade entra nas consciências de tal modo, que até Virgílio admirava Lucrécio nos famosos versos: Foelix qui potuit rerum cognoscere causas. (Feliz. aquele que foi capaz de aprender as causas das coisas ) E o próprio Séneca, o cristão Séneca, escrevia o não menos famoso verso em que faz acabar tudo com a morte. Estava portanto batido o politeísmo. Na sociedade culta era moda ser incrédulo. Não se cria em milagres, nem pouco nem muito, e a idolatria, essa era só para o vulgo. A crítica religiosa tinha chegado, com Cicero, até á negação absoluta da divindade, nos seus diálogos sobre Deus e sobre a adivinhação, apesar das precauções que toma ao apresentar a ideia. Mas esta crítica, numa época em que faltavam a liberdade e a ciência experimental, não podia conduzir à negação absoluta, embora fosse excessivamente atrevida e adiantada para o maior numero dos homens daquele tempo. 171
Ainda assim, conseguiu, em certas ocasiões, destruir a fé nos vários Deuses, se bem que para a concentrar no Deus ignoto de Sócrates, de Eurípedes e do douto e grave Varrão. 0 povo greco-romano não se julgava incrédulo, embora houvesse perdido toda a fé nas desacreditadas divindades ocidentais; estava agitado, mais que nunca, por uma intensa febre de crer, especialmente no maravilhoso, no místico, na novidade, em alguma coisa que adormecesse a inteligência amodorrasse os sentidos. Dominava o ceticismo filosófico. O espírito febrilmente agitado procurava um ponto, um leito onde repousar. E não conhecendo ainda a ciência experimental, caminhava, delirando, em busca de uma nova fé. O neopitagorismo e, mais tarde, o neoplatonismo, não foram mais que esboços de tais tentativas. A superstição recrudescia. Diodoro tinha já invejado a tranquilidade que os caldeus desfrutavam em suas crenças religiosas, imóveis e livres da crítica. Na desagregação política e na desconsolação pela liberdade perdida, quando nem leis nem poderes, nem costumes basta-
vam a reforçar a fé debilitada, a Humanidade entregava-se de corpo e alma aos sonhos do sobrenatural, como para se agrupar em torno da última âncora de salvação. A impotência geral sentia a necessidade de um jugo, na ordem espiritual, como na ordem temporal. Os próprios poetas eróticos, Ovídio e Tíbulo sobre todos, fazem-se eco da devoção dominante nos espíritos do tempo. Por fim, Sêneca mostra acreditar na astrologia, no fim do mundo e numa nova palingenésia. Chega a falar no reconhecimento que se deve ao Sol e à Lua. Lucano mostra-nos a alma de Pompeu subindo ao céu, onde se senta entre as almas santas, contemplando de lá o nosso mundo miserável e o despojo mortal que nele deixou. Também em Virgílio se revela a crença na palingenésia universal; o nascimento de um menino sugere-lhe o cumaeum carmen, sonhando, de olhos abertos, na fé do apocalipse sibilino. O grande número de dogmas e religiões concentrados em Roma favorecia, mais que tudo, esta altitude dos espíritos, predispondo-os para aceitar a doutrina religiosa que mais autoridade mostrasse pela necessidade universal 172
da unidade religiosa e de submissão a uma crença, que acalmasse os espasmos da incerteza, da confusão e do caos. Os espíritos estavam fatigados, cansados de pensar, e ansiavam o repouso. A unidade do mundo, preparada por Alexandre e consumada em Roma, onde se realizava a paz universal, na universal escravidão, e a universalidade da língua grega, convertida em veículo e em ponto de contato moral das mais diversas nações, como Roma viera a ser o centro e ponto de contato material dos diversos povos, conduziram todas as inteligências à concepção do homem universal, que não fosse apenas um cidadão de Atenas, de Alexandria, de Jerusalém ou de Roma, e sim homem humano, segundo a justa expressão de Strauss, como a multidão das religiões (gaulesa, caldaica, persa, egípcia, hebraica, etc.) conduz os espíritos a buscar a sua fusão e confusão numa crença única, cujo centro seja o Deus supremo e único e a periferia toda a Humanidade. Que religião seria essa? O único obstáculo estava na seleção. Acusava-se o público do ultramoralismo das religiões orien-
tais, que vieram, com todas as outras, estabelecer-se em Roma. E destas, as que mais se disputavam o domínio dos espíritos eram a persa e a hebraica, helenizada especialmente por Fílon, sobre as doutrinas de Platão por um lado, sobre as dos terapeutas por outro. Os mistérios egípcios, com o Deus Redentor Serápis e sua Virgem Mãe Ísis, tinham igualmente conquistado grande influência, mas acabaram por se confundir com os dos hebreus, provavelmente por estes se terem impregnado daqueles, tirando deles o mito do Deus Redentor, que depois viria realizar, às mil maravilhas, o sonho do Messias, com quem podia confundir-se. Mitra, sobretudo, conseguiu por muitos anos conquistar a supremacia. Pelo ano 68, antes da época assinalada ao nascimento de Cristo, introduziram-se em Roma os mistérios de Mitra, alcançando um êxito prodigioso e conseguindo milhares de adeptos. Mitra, que já era adorado na Pérsia, na Armênia e na Capadócia, teve em Roma, durante dois séculos, a preferência dos devotos. No tempo de Adriano, o seu culto era tão popular, que um escritor grego, Paládia, compôs um tratado especial, a que Porfí173
rio faz referências. O seu culto torna-se quase geral nos últimos séculos do paganismo, em Roma, onde a sua iniciação misteriosa feria as imaginações, provocando a criação de muitos monumentos, baixo-relevos e inscrições em sua honra, descobertos e recolhidos no nosso tempo. A vitória definitiva, porém, essa devia caber aos hebreus. (Breve se verá porque falamos de hebreus e não ainda de cristãos). Os hebreus tinham começado a exercer determinada influência sobre os ocidentais, especialmente no Egito, onde, por suas contínuas emigrações, estabeleceram numerosas colônias, segundo atestam os escritores hebreus Josefo e Fílon, sobretudo quando Alexandre leva 40 mil deles para Alexandria e quando, 150 anos antes da nossa era, ali se foi estabelecer Onia, fundando um templo ao Deus israelita. Foi principalmente em Alexandria que, por meio das traduções dos seus livros sagrados, feitas em grego, começaram a ser conhecidas as suas crenças, rebaixando as gregas, alexandrinas e egípcias. Passaram logo a Roma, depois
das guerras de Pompeu, que conduziu consigo alguns milhares de prisioneiros. Antes disto, porém, já eles exerciam em Roma uma influência considerável, a ponto de, já no tempo de Cícero, terem no Senado alguns amigos, segundo diz Plutarco. Já no ano 22, reinando Tibério, teve lugar um Senatus-consultus contra os hebreus e os egípcios, que segundo Tácito, formavam em Roma uma única superstição. Assim, pois, os hebreus, mais que nenhuma outra religião, levavam a Roma aquilo de que Roma, e com ela todo o mundo, tinha necessidade, isto é, a crença no fim do mundo, seguida da ressurreição ou palingenésia universal, a exaltação da pobreza, dos humildes e dos doentes e também a exaltação do misticismo religioso, que então chegava ao cúmulo, porque sendo uma enfermidade, esta irrita-se, especialmente nas horas de sofrimento e prostração, tanto na vida dos povos como na dos indivíduos. A crença no fim próximo do mundo e numa regeneração da vida, trazida da Pérsia para o mundo latino, era geral naquela época, desde a Índia a todo o Mediterrâneo, e no Ocidente, Plutarco, Lucrécio, Ovídio, Vir174
gílio, Lucano e Sêneca tinham se tornado seus intérpretes. Os livros do Novo Testamento, discordante em quase tudo, andavam de harmonia neste ponto sobre que gravitava a crença na próxima vinda do Messias. A religião judaico-cristã vinha aqui dar um destino a esta crença, e por conseguinte, devia ser a predileta naquele ambiente exaltado, que também era o mais bem disposto para que esta se pudesse arraigar nele e estenderse rapidamente, como uma mancha de azeite sobre uma superfície plana. O que mais devia contribuir para o culto do cristianismo,era a tendência eminentemente popular do judaísmo, tendência que, tanto na literatura como nas figuras ideais dos seus personagens, era extremamente sugestiva e de molde a que os humildes, os oprimidos e os deserdados se convertessem em massa à nova fé. Este elemento, passado do judaísmo ao cristianismo, explica como e porque essa mesma moral e essa mesma doutrina, assim como a filosofia greco-romana, há tanto professada de maneira sublime, só se tornaram populares, só se generalizaram por intermédio da nova religião.
Com a diferença de que, com a religião cristã, aquela filosofia, em lugar de uma redenção, foi uma ilusão pior que o mal, foi uma decadência que retardou a reivindicação que prometia, colocando-a mais longe, na vida futura, pregando nesta vida a resignação e a miséria, como sendo de direito divino e como meio meritório, a uns para exercer a caridade, a outros para dar motivos a que os primeiros a exercessem, tornando-se dignos do reino dos céus. Sob este ponto, foi moroso o triunfo do cristianismo, porque prometia a felicidade só com a esperança, separada de toda a ação e iniciativa, fonte única de todo o verdadeiro progresso moral e material. Estas eram, realmente, as armas da vitória, o in hoc signo vinces daquela época, em que o sentimento da revolta contra a miséria e a opressão se tinha generalizado e selecionado pela força das coisas e das doutrinas filosóficas, que para tal fim convergiam. As aspirações morais, mais profundamente sentidas naquela época, juntavam os hebreus o culto a um Deus Redentor, que nesse tempo era provavelmente Serápis, adotado por eles no Egi175
to, como veremos, e que viera substanciar e materializar o Verbo de Fílon, encarnando-o num deus feito homem; um Deus Redentor que tinha os mesmos atributos de Mitra, de Horus, de Apolo, e em geral, dos Deuses Redentores, já conhecidos e adorados por todos os povos. Os propagandistas mostravam, na propaganda, tanto fanatismo como o mesmo público, segundo afirma Horácio e a história confirma, achando nas mulheres um dos meios de propagação mais eficazes, de que se serviram. Assim, Pomponia Graecina comparecia no ano 57 perante um tribunal, acusada de judaísmo, e a famosa Popea, amante e depois esposa de Nero, protegia os hebreus nos momentos difíceis. Ajuntemos a isto o atrativo da comunhão dos sexos nesta religião, comunhão que, na instituição dos ágapes, chegou ao extremo de se beijarem na boca e dormirem no mesmo leito, por pretendido espírito de mortificação, abusos cuja autenticidade está fora de toda a dúvida, e que tornaram necessária a imposição de limites a tão misteriosa intimidade, filha da exaltação erótica, que acompanha sempre a exalta-
ção mística das crises religiosas, como se vê pela história. Agora pergunta-se: em que época começaria Cristo a ser humanizado? Não é fácil determiná-lo com precisão, embora isso seja indiferente à psicologia. Recordaremos, no entanto, de novo, que a invenção de Jesus não pode ser obra dos hebreus, mas dos romanos, não já pela parte favorável atribuída a Pilatos, contra a lógica das ideias, que corresponde à logica dos fatos, mas pelo papel odioso, inverossímil e absurdo que os Evangelhos as igualam aos hebreus: o papel de deicidas. Repugna à inteligência e ao coração supor que uma calúnia tão atroz, que por tantos séculos devia pesar sobre um povo, só porque se negou a acreditar na mentira da vinda do Messias, possa ter sido inventada pelos hebreus, inovadores e expatriados. Não: essa calúnia só pode ter sido elaborada pelo cristianismo romano, ao formar-se o catolicismo czarista e teocrático, em cujo auxílio acudia um novo Deus para melhor consolidar o seu poder; Deus que era preciso fabricar na expectativa messiânica dos hebreus, sobretudo depois da destruição de Jerusalém e dis176
persão dos hebreus, em que começavam a passar as gerações e os testemunhos, que poderiam desmenti-lo. O momento histórico aproximado, em que foi inventada a fabula de Cristo, constitui uma questão por completo supérflua para o nosso objetivo.
Nessa fusão histórica e psicológica de raças, doutrinas, religiões e aspirações cosmopolitas, de que surge o cristianismo, foi isso um efeito do meio ambiente e do estado relativo dos ânimos. Mas, deixemos isso, que afinal, pouco tem com o nosso assunto, já suficiente e exuberantemente demonstrado.
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CAPÍTULO V COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO
Exposto o meio ambiente em que se produzira o cristianismo, não fica, porém, de todo explicado o grande fenômeno de unificação que gerou o cristianismo. Naquelas condições criadoras do meio e por sua vez, do estado de ânimo geral que deveriam operar a transformação da civilização greco-romana, só vemos agir causas mecânicas e inconscientes - em relação do efeito produzido com seu involuntário concurso - causas que explicam a preparação subconsciente e evolutiva do fenômeno, mas nunca a sua determinação definitiva. Isso foi obra de causas conscientes e de vontades ativas, que neste capítulo indicaremos rapidamente. Estas forças ativas, coordenadoras, conscientes, determinadas e determinantes foram a Igreja e o Estado. Primeiro, aquela só, e contra a vontade deste; depois com este e por meio deste; e finalmente, contra este. Quando, onde e como se formou o primeiro núcleo, a primeira organização da Igreja cristã? O que existiu primeiro: o clero, a casta sacerdotal ou o cristi-
anismo? Foi o cristianismo que gerou o clero cristão, ou este que gerou o cristianismo? Veio primeiro o sacerdote, ou veio primeiro a missa, como diria Guerrazzi? Desgraçadamente - e dizemos desgraçadamente porque a história verdadeira da Igreja seria também a da origem precisa do cristianismo - temos de nos resignara confessar a ignorância da história sobre este ponto, tanto mais que os únicos documentos que sobre tal assunto existem, como a História de Eusébio, que também é a primeira e só data do ano 313, são documentos interessantes. O que, porém, está evidentemente provado é existir já a Igreja antes da redação dos Evangelhos, e os próprios Evangelhos nos dão provas disso, tais como as palavras de Cristo, quando diz que se deve considerar o herege, que não obedece à Igreja, como publicano e fariseu, e quando fala em levar a própria cruz, em sentido metafórico, o que não poderia nunca ter dito antes que a pretendida paixão de Cristo se tivesse difundido e fosse acolhi178
da com aquele caráter de autoridade que pressupõe uma organização. E como a Igreja era anterior aos Evangelhos, com que ela fabricou o novo Deus Redentor, é lícito deduzir que a casta sacerdotal presidira desde o princípio à formação e difusão da nova religião. E também é certo que, desde o princípio da nova seita, se encontra a Igreja hierarquicamente organizada sobre a imagem da teocracia hebraica e conforme a associação grega e o colégio romano, de cujos nomes principais se apropriou (clero, bispo, presbítero, diocese, etc.). Dada assim a existência da Igreja, já temos uma das causas mais poderosas e eficazes da difusão do cristianismo, porque ao ideal, o clero juntou o próprio interesse, estímulo e aguilhão especialíssimos para a ação. Acerca da contradição entre a organização de uma nova Igreja e a pregação do próximo fim do mundo, só diremos que pode muito bem existir, como tantas outras que formam grande parte do trama da vida dos povos, ainda que aquela fosse de gravidade, própria para fazer duvidar da boa fé do clero cristão e até mesmo da origem da nova seita.
E a constituição do cristianismo em teocracia, conciliando-se com a moral evangélica, é outra daquelas contradições lógicas, que parecem formar o substractum da psicologia dos povos, e que provavelmente estão determinadas pelo trama dos mais diversos e vários interesses das diferentes classes sociais. Pela presença, certamente, duma nova casta sacerdotal, assistimos desde o principio do cristianismo a este duplo caráter da sua política ser a um tempo rebelde à autoridade constituída, e instrumento de submissão à mesma; caráteres que terminaram ambos por fazer parte da doutrina da Bíblia, na qual, como já vimos, estão em desacordo, tanto como na vida da Igreja. Estas duas doutrinas, que à primeira vista parecem inconciliáveis, não o são. Quando a Igreja quer, concilia-as admiravelmente, em seu interesse. O que a Igreja quer é a sujeição do povo ao poder civil, quando este trata dos interesses dela mas quando se ocupa dos interesses próprios, então passa a outra doutrina, armando a mão dos Ravailac e dos Clement inspirando a justificação do regicídio, que se não encontra apenas nos doutores jesu179
íticos, mas também nos diplomáticos como S. Thomaz de Aquino. A primeira destas doutrinas serviu à Igreja cristã para fazer prosélitos nos pontos da terra, povoados de nações vencidas, de povos reduzidos à escravidão e escravos ansiosos pela emancipação, que a filosofia helênica e romana há muito defendia e fomentava. A segunda doutrina serviu-lhe - se bem que nem sempre - de proteção contra o medo do governo romano, para quem a religião era questão de Estado e pedra de escândalo. Este segundo elemento da doutrina cristã, muito mais que o elemento revolucionário popular, foi o que produziu, em princípios do reinado de Constantino, o triunfo do cristianismo265. Este desprendimento dos ânimos, que os fez abdicar da própria independência, em mãos de uma nova teocracia lançou-os depois nos braços do despotismo político. A restauração foi religiosa e política ao mesmo tempo. Augusto, restabelecendo a or-
dem, restabelecia a religião. E quando chegou o tempo de Constantino, o hipócrita, este aproveitou-se habilmente da doutrina da resignação e da submissão aos princípios - instrumentos do direito divino - ensinada pela Igreja cristã, para colocar simplesmente esta nova religião no lugar da antiga religião romana, restaurada por Augusto, porque a nova era também uma sanção para o Estado e um instrumento de servidão. Esta e só esta pode ter sido a razão da pretendida conversão de Constantino266, muito mais que a de apagar os remorsos de sua consciência de assassino, apegando-se a uma religião que tinha o poder de lavar toda a culpa, conforme lhe lançavam em rosto os pagãos267. Constantino, encurtando as disputas internas da Igreja cristã, que tinham marcado o largo período da lenta formação durante o qual esta vinha elaborando e aperfeiçoando os seus dogmas mediante a discussão das várias 266
Que a conversão de Constantino fora uma hábil manobra de oportunismo político, ele próprio o confessa na carta em que, falando da disputa com Arrio, apelida de mesquinha, vã, inútil, indigna de discussão e de resposta, etc. (Eusébio, livr. II, cap. LXIV.) 267 Zósimo, l50.
265
Ninguém como Bakounine viu a reciprocidade das relações entre o Estado e a Igreja, para exploração do fenômeno religioso. O seu livro Deus e o Estado é, neste ponto, admirável. 180
seitas cristãs, entre si e em luta com o paganismo, Constantino, dizemos iniciou o famoso Concílio de Niceia, no ano 325, de onde data a consolidação do cristianismo. Sem a conversão de Constantino ao cristianismo, é provável que este não chegasse nunca a triunfar, não já pela sua pretendida268 doação, que arrancava ao poeta gibelino de Florença a famosa invectiva: Ai! Constantino de quanto mal foste a causa! Não tanto pela tua conversão, mas pelo rico dote Que de ti arrancou o primeiro Papa mas porque facilitou ao cristianismo a maneira de impôr-se com violência. Só por meio da força, auxiliado pelos embustes do clero e outras circunstancias fortuitas como a mudança da capital do império de Roma para Bizâncio, o que permitiu à Roma dos Césares converter-se na Roma dos Papas e a invasão dos bárbaros,
que desorganizou o império, deixando a Igreja em pé, sobre as suas ruínas, pôde o cristianismo triunfar e estabelecer a tirania das consciências ao lado da tirania temporal dos princípios, à espera do tempo em que pudesse empunhar as duas espadas, as duas tiranias, que fez pesar sobre a pobre humanidade até a esmagar e horrorizar com a fogueira, a tortura, o cárcere, o desterro, a inquisição, os índex, a censura, a confiscação, as guerras de extermínio dos heterodoxos, os tribunais de exceção e capitis diminutio dos hereges, dos cismáticos e dos hebreus. O cristianismo conquistou o mundo com a violência, e só com a violência pôde tê-lo sujeito por tantos séculos. E Por violência, não entendemos só a da força bruta, mas também, a legal, a moral da opinião e, sobretudo, a patológica da servidão intelectual, que foi a mais poderosa arma da Igreja católica, e que chegou à sua perfeição doutrinal na fórmula jesuítica perinde ac cadaver.269 Mas isto não basta para che-
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A Doação de Constantino é apócrifa e não foi redigida antes da metade do século sexto. Esta falsificação foi demonstrada inequivocamente por Lorenzo Valla, que provou também a falsidade da Carta de Cristo a Abgaro, tal como fez o próprio cardeal Nicolan de Cusa com as Decretaes de Isidoro e com os escritos atribuídos a Dionísio, o Areopagita.
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Disciplinado como um cadáver. Loyola escreveu a constituição jesuíta que deu origem a uma organização rigidamente disciplinada, enfatizando a absoluta auto-abnegação e a obediência ao Papa e superiores hierárquicos. (NE). 181
gar à liberdade, a fórmula da liberdade de consciência das constituições modernas, no sentido cavouriano da Igreja livre no Estado livre. É mister a separação, sem a supremacia do Estado; é necessário enfim, que a liberdade dirigida por livres pensadores tenda sobretudo a emancipar com a mais intensa propaganda intelectual, psicológica e sociológica aqueles a quem a crença católica faz escravos da superstição, inabilitando-os para desfrutar a liberdade de pensamento. Com muitíssima razão disseram V. Alfieri e Filippe De Boni que a liberdade é incompatível com o catolicismo e onde este impera não pode nascer nem conservar-se pura a liberdade. A mais perigosa das teocracias é aquela que o padre exerce sobre as consciências. Com aquisição do favor imperial, o cristianismo preparou-se para a grande luta contra o paganismo, que só logrou aniquilar passada uma larga série de anos, com leis repressivas e perseguições de todo o gênero. Por dois modos a Igreja insinuou aos imperadores a ela convertidos, a persuasão de empregarem a violência contra o paganismo: ora transformando em
demônios os deuses pagãos e em práticas de magia os ritos dos seus sacrifícios, ora fazendo-lhes crer que as cerimônias dos pagãos eram uma permanente conspiração contra a vida do soberano e obrigando-os, desta maneira, a declará-los culpados de delitos de lesa-majestade. Por este processo, os bispos obtiveram o duplo efeito de induzir os imperadores a exterminarem o paganismo, a ferro e fogo, e ao mesmo tempo, de se esconderem por detrás do braço secular, lançando sobre este toda a responsabilidade e odioso da perseguição. Para fazer passar por magia os ritos do paganismo, bastava respeitar os decretos anteriores contra a magia: assim se alcançava o fim desejado, sem dar a conhecer que se inaugurava uma nova perseguição. Os primeiros decretos de Constantino não fizeram, em aparência, mais do que sancionar leis severas contra a magia; mas, na realidade, feriam de morte o paganismo. Com os imperadores, Constâncio, Constante, Valério e Teodósio, a perseguição deixou cair a máscara que a cobria, dirigindo-se diretamente contra o paganismo. Basta examinar as leis 182
gente, para cujo cativeiro não é salvaguarda a honra de muitos méritos. Sob o império de Valério, o próprio nome de filósofo era um titulo de proscrição. Libânio e Jamblico foram acusados como tais, e só o veneno os pode libertar de pior suplício. Deste modo, o terror operava simuladas conversões mas, apenas voltava a tranquilidade, a maioria dos convertidos abraçava a antiga crença. Para impedir isso, Teodósio decretou uma lei, que despojou do direito de testar aos pagãos que voltassem ao seu culto. Dez anos depois, a mesma lei era renovada, e declarando infames os apóstatas do cristianismo, concedia que se ultrajasse a sua memória e se rasgassem os seus testamentos. Outra lei proíbe toda a espécie de sacrifícios pagãos. O culto dos deuses, proscrito da cidade, refugiara-se nos campos. Teodósio arremete contra ele até no ultimo refúgio, ordenando a confiscação do campo onde se consumasse um sacrifício. Não se permite ter nem usar outro nome que o dos cristãos católicos; proibido em absoluto aos apóstatas, não já o direito de
contidas no Códice Theodosiano, com o titulo de paganis, sacrificiis et templis para compreender todo o alcance e gravidade daquela odiosa perseguição destinada a exterminar o paganismo. Um decreto imperial começou por proibir os sacrifícios pagãos. Em 353, Constâncio e Constante promulgam este decreto: Decretamos que, em todo o lugar e em toda a cidade sejam fechados os templos (refere-se aos pagãos) que ninguém possa entrar neles e que aos ímpios se negue o direito de delinquir (isto é, adorar outros Deuses). Queremos que todos se abstenham de fazer sacrifício. Se alguém fizer semelhante coisa, será morto com a espada vingadora. Decretamos que os bens do executado vão para o fisco e queremos que sejam castigados os governadores das províncias que se mostrarem negligentes na repressão dos delitos. Guiado pelo clero, Constantino manda matar, na Tebaida, todos os sequazes do antigo culto270. João e Valentiniano I imitam o rigor de Constâncio. Por toda a parte, escrevia Zózimo, reina o pranto e o desespero; as prisões regurgitam de 270
Amiano Marcelino, lib. XXI. cap. XI. 183
testar, mas até o de vender; pena de fogo contra quem abraçar religião contrária, com a respetiva confiscação de bens; autorizada e permitida a delação; ordem para derrubar todos os templos pagãos; destituição de todos os cargos públicos para aqueles que se não conformarem; desterro, pena de morte, confiscação dos bens, para quem continue ainda realizando sacrifícios pagãos; desterro e excomunhão contra quem ouse discutir as afirmações da Igreja e dos sacerdotes; proibição aos hereges de receberem bens; privações de todo o direito civil para os não católicos; expulsão dos soldados de todas as legiões, que se encontrem em igual caso; pena de morte contra o possuidor de qualquer livro, que contradiga o Concilio de Niceia. Uma só fé para todos: a de Niceia. Tais são, além doutras, as prescrições dos imperadores cristãos, combinados para exterminarem o paganismo e consolidarem o cristianismo, impondo silencio a toda a heresia. A Igreja é que tinha a seu cuidado atear o fogo nos seus concílios, secundava os imperadores na obra de destruição por ela sugerida; excitava as turbas cristãs a cometerem excessos contra os
pagãos - violação das sepulturas dos pagãos e roubos dos seus bens - excessos tais, que até os mesmos imperadores, entre eles Valentiniano, se vêm obrigados a proteger, momentaneamente, as vítimas da perseguição. Para melhor armar o braço secular, os bispos dão a entender aos imperadores que as calamidades públicas são devidas à impiedade dos que se não convertem ao cristianismo. O clero tinha, além do fisco, o direito de se apossar dos bens dos perseguidos, falando-lhes de assuntos respeitantes ao sacrilégio e tratando de delatar contravenções à lei da fé271. Mal os irmãos tinham qualquer possibilidade de se assenhorearem de um campo, acusavam o seu proprietário de ter sacrificado aos deuses, pedindo que contra ele se mandasse a soldadesca. O clero cristão consegue toda a sorte de privilégios e imunidades, aproveitando-se arteiramente daquela época de terror para se dedicar à obra fraudulenta de falsificação e destruição dos livros que poderiam revelar as mentiras e farsas demasiadamente visíveis da nova religião, e que de algum modo poderiam 271
Libânio, Oração em favor dos templos. 184
esclarecer suas origens; obra de falsificação que, em verdade, começara com o mesmo cristianismo e se praticara em grande escala por todas as seitas, que haviam concorrido para formar a nova religião. O próprio S. Jerônimo confessa que, traduzindo Orígenes, não teve em conta senão o que lhe pareceu útil, eliminando tudo o que julgou nocivo, escusandose com a desculpa que o mesmo fizeram S. Hilário e S. Eusébio. Confessou isso no prefácio que fez ao livro de Eusébio. (De Loicis Ebr.) Celso acusava os cristãos de terem falsificado os oráculos sibilinos e a ciência justificou a acusação de Celso. Macróbio foi falsificado para justificar o martírio dos inocentes; foram inventados esses números escritos, que a própria Igreja viria depois declarar apócrifos. Foram falsificados Josefo e esses outros autores que já vimos. Foram até inventados documentos atribuídos ao pai de Matusalém, ao bisavô de Noé e de Enoc. Mas, sobretudo, foram gravíssimas as falsificações realizadas pelos apologistas e historiadores
do cristianismo primitivo, como Atanásio, Basílio, Crisóstomo, Eusébio, etc. Orígenes chegou até a inventar uma teoria para justificar essas falsificações, distinguindo as feitas com bom fim, das feitas com má intenção. O pior de tudo porém foi a destruição das obras que poderiam ter esclarecido as suas imposturas. Foi assim que desapareceram muitas obras importantes de Cícero, Proclo, Porfírio, Celso, Fílon, Orígenes, S. Clemente, Eunômio, etc. É nossa opinião que toda a história do cristianismo, até a Reforma, deve ser quase por completo reescrita com critério naturalista, porque a Igreja tem sempre caluniado todos os que não vão com ela, chegando em contraposição, a colocar sobre os altares a última canalha, contanto que fosse devota. Contudo, e apesar de tantas proscrições e perseguições, apesar desse regime de terror e dessa inquisição, a Igreja não conseguiu conquistar o politeísmo para a nova fé. Então, recorreu a um último expediente, que lhe assegurou o triunfo, e que, se lhe não deu o aplauso do povo, pelo menos 185
tornou tributárias à sua dominação as práticas religiosas, aproveitando assim, em seu favor, a grande força do costume que adotou as formas exteriores do culto, já em uso entre os pagãos. Foi assim que, arrancando um novo farrapo àquela doutrina que queria adorar Deus em espírito e em verdade, pouco devia custar-lhe já o triunfo, herdando delas, fundindo-as e amalgamando-as, a moral e a doutrina das religiões precedentes. Já vimos que o culto cristão não é mais que uma amálgama de cerimônias tiradas dos cultos precedentes. Agora assistimos ao processo de integração deste culto, processo mediante o qual assimila as práticas e a própria divindade do paganismo romano, transformando-o e corrompendo-o. Deste modo, o cristianismo converte-se, por sua vez, em idólatra e fetichista. O politeísmo não conseguira destruir o fetichismo, limitando-se apenas a sobrepujá-lo. Pois também o catolicismo não destrói o politeísmo, antes o subordina aos seus interesses. As divindades do paganismo, que não foram declaradas infernais, como é costume em todas
as religiões - que convertem em demônios os deuses das religiões contrárias - foram convertidas em santos cristãos. Os gregos celebravam festas em honra de Hermes (Mercúrio) e de Nícan (o Sol); estas festas passaram ao calendário católico, nas mesmas datas, com os nomes de S. Ermeto e S. Nicanor. Baco era adorado sob o nome de Soter (Salvador) e Apolo com o de Efoibios. estas festas foram mantidas com os nomes de S. Sotero e S. Efebo ou Efésio. Festejavam Baco com a festa de Dionysios, a que se seguia outra em louvor de Demetrius; pois os dois nomes encontram-se na mesma data, no calendário cristão, com os de S. Dionísio e S. Demétrio. A festa de Ceres, a loira (Flávia) é a de Santa Flávia; a festa da pudica Diana converteu-se em Santa Prudência; a do Palladium de Minerva veio a ser a festa de Santa Paládia. As Saturnais converteram-se em S. Saturnino; a festa de Afrodisia (Venus) corresponde a S. Afrodísio e Santa Afrodísia; o dia do signo da Virgem (15 de agosto), em que Astrêa aparece no céu, na dita constelação, converteu-se na Assunção da Vir186
gem. Baco, que se chamava na Grécia Eleutério ou Dionísio e que tinha uma festa denominada rústica, porque celebrando-se no tempo das vindimas,era essencialmente campestre, (Festum Dionysis Eleuterie Rustici) deu lugar, com estes três nomes distintos, a três santos cristãos: S. Dionísio, S. Eleutério e S. Rústico. A brisa matutina, aura placida, que o paganismo simbolizava na mulher de Baco, converteu-se para os cristãos em Santa Aura Plácida. A fórmula da saudação, perpetua felicitas, gerou duas santas Perpetua e Felicidade. Orar e dar (rogare e donare) correspondem a S. Donaciano e S. Rogadano, cuja festa se celebra no mesmo dia. S. Apolinario comemora-se alguns dias depois daquele em que se celebravam os jogos Apolinares em honra de Apolo. Até os Idus do mês se transformaram em Santa Ida. A deusa Pelino transformouse em S. Pelino e o Termes, que presidia aos limites dos campos e dos caminhos, simbolizando-se por uma pedra, transformou-se na estátua de S. Vito, colocada nos limites dos caminhos (viae),
de onde lhe vem o nome. A festa da Gorgona, divindade infernal, que simboliza as trevas maiores do ano, foi substituída pela festa de Santa Górgona. Uma nova festa consagrada a Baco, se celebrava em dezembro com o nome de Dionísia; também passou para o calendário católico. E aqui, importa observar quão frequente é o nome de S. Dionísio no calendário católico, o que prova, não que tenham sido numerosos os Dionísios santos, mas que os santos Dionísios não são mais que outras tantas transformações das festas em honra de Baco (Dionísio), que eram muito frequentes na época do paganismo. A fórmula romana flor et lux, flor e luz, transformou-se em Santa Flora e Santa Lúcia. O sobrenome de Júpiter, Nicefor, é nem mais nem menos que S. Niceforo; e o de Juno, Pelasgia, Santa Pelagia. Atenena (Minerva) originou S. Atanásio e Apollon o S. Apolônio e Santa Apolônia. E quando não se cristianizaram as formas pagãs, inventaram-se santos novos, que, pelo próprio nome, indicam a virtude curativa dos antigos ídolos: Santa Luzia para o mal dos olhos; S. 187
Gotardo para a gota; Santa Toscana para a tosse; S. Latino para as afecções do leite; S. Bono para as enfermidades bovinas, etc. Até mesmo os atributos dos deuses passavam para os santos cristãos. Como Baco, Noé e S. Vicente presidem a conservação da videira e da vindima. Como Neptuno, S. Nicolau e S. Vicente Ferrer invocam-se para acalmar as tempestades. Como Minerva, Santa Catarina infunde a ciência. Como Esculápio, S. Cosmo preside a medicina. Priapo converte-se em S. Fiacre, que guarda os jardins. Como Juno, Santana ampara as parturientes. Santa Margarida, que fecunda as mulheres, é copiada de Lucina, assim como S. Antônio e S. Humberto, de Mercúrio, que encontrava o perdido, e de Diana que presidia a caça. A estátua de Diana em Efeso e a de Pallas em Atenas, tinham caído do céu, tal como muitas estátuas e imagens da Virgem cristã. As estátuas dos deuses, que Enéas trouxera de Troia e colocara em Alba, voltaram para os seus antigos templos. Também Nossa Senhora de Montenegro, trazida de Livorno, voltou para o seu monte.
Os deuses e as deusas pagãs desciam à terra para conversar com os mortais e o mesmo fizeram as Nossas Senhoras Cristãs. Os pagãos pediam favores às estátuas dos seus deuses, e, obtidos estes, colocavam junto dos seus altares um voto e acendiam círios; nem mais nem menos do que fazem os cristãos com seus santos e madonas. A Igreja de S. Lourenço, em Roma, foi transformada em S. Lourenço de Lucina, santa advogada dos partos das mulheres, em memória de um templo pagão ali existente, dedicado a Diana Juno Lucina, divindade que presidia aos partos. A águia de Júpiter foi substituída pela de João. Esculápio com a serpente, foi substituído por S. Patrício com a sua. Santa Barbara, com a taça, é a representação flagrante de Baco. O dragão de Apolo passou para S. Jorge, assim como o martelo de Vulcano para S. Eládio. A verdadeira imagem (vera icon), que algum tempo se venerou pintada em uma tela, foi logo personificada em uma Santa Verônica. Muratori demonstrou como, de uma casa destinada a hospedar peregrinos, se fez um S. Pe188
regrino, e de outra chamada o Santo Albergue, situada no território de S. Cesáreo, se fez uma Santa Alberga. As curas milagrosas, que se obtinham nos templos pagãos, com práticas sugestivas e mediante peregrinações a mananciais de fontes sulfurosas, ferruginosas, arsenicais, etc., sobreviveram ao paganismo, como também sobreviveram as crenças nos sonhos e nas aparições. Igual destino tiveram as pedras, cujo culto, ou litolatria, é uma supervivência do fetichismo, os animais que foram dados como companheiros a alguns santos e com eles colocados nos altares, etc. Que diremos agora do culto das relíquias, que tanto se generalizou no cristianismo, da multiplicação das cabeças, dos braços, das pernas, dos ossos, das mãos dos Santos, tantos que, para os catalogar, ser-nos-iam precisos muitos volumes. Recordaremos apenas o sudário, de que existem quatro exemplares famosos, disputando todos a autenticidade (os de Besançon, Turim, Compiègne e Cadouin) além doutros menos importantes. E citamo-los unicamente, porque ainda se não apagou o eco das discussões acerca
dos mesmos e em que tomaram parte - até nem se acredita! - homens de ciência de Paris, a favor da autenticidade de um ou outro dos sudários. A Igreja adotou também o culto das imagens, especialmente da Senhora e dos Santos, e, sobretudo, a da Cruz - evolução regressiva para cujo cumprimento teve de suprimir a segunda lei do Decálogo hebraico, que condena toda a representação da divindade com coisas sensíveis272, vendo-se obrigada, em troca e para conservar sempre o número dez, a subdividir o décimo mandamento em duas partes. Portanto, se o cristianismo pôde triunfar e substituir o paganismo, foi somente mediante a perseguição, a farsa e a assimilação do culto pagão, favorecido por outro lado, pela desagregação do Império romano e pela invasão dos bárbaros. O cristianismo não foi apenas o herdeiro do império romano, de cuja decadência se aproveitou para se erguer sobre as suas ruínas, mas até contribuiu enormemente, mais que nenhuma outra causa, para produzir tal decadência273. 272
Êxodo, XX, 3,6. G. Sorel, Ruína do mundo antigo, (Paris, 1902). 273
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O seu triunfo, porém, foi completamente isento da pretendida pessoa de Cristo, como também fora isento à formação da nova religião, não tendo jamais existido, como de sobra temos demonstrado no presente livro. O mito do Cristo serviu, é certo, para dar impulso ao cristianismo porque apresentava ao
vulgo um novo culto antropomórfico, uma divindade acessível aos sentidos e em forma humana. Esta força de expansão, porém não foi de Cristo, mas da ilusão popular, que viu em Cristo o símbolo dos infelizes, martirizados nesta vida e glorificados na outra.
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Conclusão
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CONCLUSÃO Lisonjeamo-nos por ter persuadido os nossos leitores, os de boa fé e despidos de todo o preconceito, de que realmente Cristo nunca existiu. Quanto aos outros, é certo que não poderiam jamais, e agora menos do que nunca, tomar superficialmente e destruir sem discussão a hipótese da não existência de Cristo. A estes, basta fazê-los duvidar da própria fé, porque a dúvida é o princípio da sabedoria, a origem das descobertas e o ponto de partida de todo o progresso. Além disso, seja qual for o resultado prático deste nosso trabalho, a nós basta o prazer de ter levado a nossa pedra para o edifício da Verdade. Aos de maior engenho e mais favorecidos pelas circunstâncias do tempo e do ambiente, compete erguer o edifício até a suma perfeição, para que não estremeça aos embates das tormentas. Temos consciência absoluta de haver contribuído, na medida das nossas poucas forças, para imprimir a crítica aquela nova direção, que a deve conduzir á resolução do problema da origem do cristianismo. Contudo, não nos iludamos
muito acerca da fortuna da tese, ou melhor, da verdade por nós demonstrada. Porque não se trata apenas de uma verdade científica, histórica e moral: trata-se também de uma religião. E se é fácil destruir erros antigos, no terreno científico, histórico e moral, não sucede o mesmo no religioso, pois que nele estão arraigados os interesses de uma imensa casta de parasitas que jungem ao erro dos outros a sua própria existência, os seus próprios privilégios. Se a ciência pôde destruir sem dificuldade, por exemplo, o mito ou lenda de Guilherme Tell, não sucederá o mesmo com Cristo, porque na conservação de Cristo estão interessados milhões de pessoas que vivem dessa crença, como a aranha está interessada em conservar a sua teia. Dir-se-á: Que importa, no fim de contas, que Cristo não tenha existido, desde o momento em que existe o farto cristianismo, que ainda quando derive de uma ilusão inicial, não deixa de ser um fato consumado e da maior importância? Que importa, dirão outros, que a crença em Cristo tenha 192
sido uma ilusão da Humanidade, se essa crença foi tão benéfica? A estas objeções poderemos responder, simplesmente, que a ciência nada tem com as consequências nem com a utilidade prática das suas investigações, preocupando-se apenas com a descoberta da verdade. Mas importa ainda examinar o significado do que geralmente se chama o cristianismo. O que é o cristianismo? Parecerá talvez uma pergunta paradoxal, mas tem a sua razão de ser. O cristianismo é um nome que serve para legitimar toda a espécie de aberrações. E isto é assim, subjetiva e objetivamente. Subjetivamente, porque usa o nome de um autor que nunca existiu; objetivamente, porque, sob o nome cristão, se deu cabimento às doutrinas mais disparatadas, amalgamando-as em monstruosa confusão. Decompondo este nome, venerável apenas pelos séculos de veneração usurpada que sobre ele pesam, vê-se que não é já o resultado de elementos afins reunidos em um todo harmônico e orgânico, mas a arbitrária combinação e justaposição de elementos heterogêneos e inorgânicos, provenientes das fontes mais opostas como o hebraísmo
e o helenismo, o oriente e o ocidente. Em uma palavra: o cristianismo, tomado como fato consumado, não é uma doutrina, uma religião, uma crença homogênea. É um mosaico em que há de tudo, menos a perfeição ideal do pretendido fundador e de seus pretendidos sequazes primitivos, como neste estudo se viu e como pode ver-se, lendo a própria Bíblia, sem véu algum nos olhos. A pretendida perfeição do cristianismo não é mais que o ideal humano, ideal que se tem formado em volta daquele centro de gravidade, para o subtrair às vistas naturais, não o deixando ver senão àquelas vistas particulares que só veem o que querem ver, mas não o que realmente se vê, fruto da sugestão teológica, do visionismo sobrenatural e do ilusionismo transcendental. Hoje, quem diz Cristo, cristianismo ou cristão, quer dizer o homem, a doutrina, o crente, que é, se julga, ou quer ser perfeito como o Pai que está nos céus. Deste modo, o nome de Cristo converteu- se no símbolo do ideal humano: pode dizer-se que, na sociedade atual, quem não é cristão é comparado com as bestas ou pouco menos. Tão estranha quão monstruosa 193
e ingênua é esta alucinação coletiva! Não só porque o cristianismo da Bíblia e dos doutores da Igreja é completamente diferente daquela perfeição que a si próprios se atribuem, mas também e sobretudo, porque na nossa sociedade não há de cristão mais que o nome, ainda que a consideremos na sua parte civil, evolutiva, moderna, progressiva, naquela, em suma, que indica o expoente da civilização presente. Porque, onde está a crença no próximo fim do mundo, que constitui a base da moral evangélica? Onde as castrações voluntárias, para conquistar o reino dos céus? Onde o celibato, a não ser nas leis arbitrárias e políticas da Igreja, desprovidas de todo o consentimento e de toda a verdade prática? Onde o retiro místico, aceito como um meio de perfeição, a não ser nos conventos, que dele fazem um cômodo instrumento de parasitismo, desfrutando, ao mesmo tempo, o trabalho das pobres criaturas exaltadas, enganadas e roubadas à família ? Onde está o desapego, a renúncia espontânea das riquezas, para passar à vida contemplativa? A própria Igreja não estará ainda farta de engolir os patrimônios das viúvas e dos órfãos e
de engordar com os milhões roubados, moeda a moeda, à pobre gente, ou sequestrando os penitentes ricos, com contratos fraudulentos, e um pouco a todos os crentes, com a sugestão e o terror das penas do inferno ? Onde está a pobreza voluntária, aceita e procurada como meio mais seguro de ir ao céu, mesmo sem nenhum outro mérito para se salvar? Onde está a fraternidade, se os sacerdotes abençoam as guerras, promovendo-as até por conta própria? Onde está a igualdade, se os próprios padres e o próprio chefe, Leão XIII, copiado por Pio X, repetem que a pobreza e as diferenças entre as condições sociais são de direito divino? Onde está o ódio e o abandono da família para seguir o Senhor? Ah! Se alguma coisa ficou da moral cristã, aparte a época medieval, foi a parte bruta, foi o abandono da família, o ódio ao próximo, em que incorrem os exaltados que se retiram do mundo, e os fanáticos, que julgam que só eles vivem na justiça e na verdade, considerando os que não estão com eles - quem não é por mim é contra mim como eternamente condenados, por cegueira voluntária; ficou a intolerância provocadora de ódi194
os e de guerras; ficou o misticismo contemplativo e ocioso das ordens eclesiásticas e dos crentes de boa fé, cujos danos à economia pública e ao progresso todos nós podemos avaliar; ficou o entorse cerebral (como diria o dr. Alfredo Pioda) que torna a mente dos fiéis refratária à razão, forçando-a e habituando-a a crer no absurdo - o que inspirava a Tertuliano quando ingenuamente proclamava os motivos da sua fé, nestes termos: O filho de Deus morreu: isto é crível porque é absurdo. Sepultado, ressuscitou: isto é certo, porque é impossível. Esta é a sociedade que de cristã só tem o nome e a parte brutal, ao passo que a parte bela, a parte moral se refugiou (ironia da história!) na esfera da incredulidade, porque nesta se continua a serena investigação da verdade e se trabalha para a redenção dos povos e para fraternidade universal; esta é a sociedade que tem posto obstáculos ao cristianismo com a proclamação da laicização do Estado e da liberdade de consciência, para a si mesma se salvar da sua intolerância e consigo salvar as conquistas da civilização, promovendo outras; esta é a sociedade que continua a chamar- se cristã,
fazendo do cristianismo o fim ideal, o espelho de toda a perfeição. E não vê ou não quer dar a conhecer os interesses que mantém com tal engano, e que tudo aquilo que forma o orgulho da civilização moderna, da civilização europeia e americana, não só não é devido ao cristianismo, mas representa uma série de conquista obtidas pelo pensamento humano, tornado autônomo, sobre o cristianismo intolerante, imobilista, teocrático, iliberal, reacionário, místico, ascético e visionário. Da liberdade civil à política, da liberdade de pensamento à soberania do povo, do progresso intelectual ao econômico, tudo o que serve de base à nossa civilização é anticristão. O ideal do cristianismo não é o homem moderno, trabalhador comedido, instruído e social; são os irmãos da Tebaida, os abstêmios, que maceram a própria carne para salvar a alma, os Semiões Estilitas, que vivem sobre as colunas, os Simões de Monfort, que degolam o próximo para ganhar o paraíso, os Pedros Eremitas, os inquisidores, os torturadores, os censores, os acendedores de fogueiras; são os déspotas, que suprimem toda a liberdade para consolidarem uma 195
única: a de ser cristão. São os devotos, que passam o tempo em orações, jejuns e penitências, abandonando o patrimônio nas mãos da Igreja madrasta. Em uma palavra o cristianismo é a religião da morte, ao passo que a atual sociedade só respira o amor da vida, de uma vida sempre melhor e mais intensa. Porque perpetuar, pois, a mentira de chamar-se, de julgar-se, de querer ser cristão? Ainda mesmo que no delírio da hipótese, se quisesse admitir que Cristo, tal como o figuram os cristãos, fora um ideal de perfeição, e se dissesse, por consequência, que ele representa uma ideia mãe, que deve ser conservada, embora seja uma ilusão, a nossa resposta é que, ainda na hipótese - bem longe de ser certa - a Humanidade tem muito a ganhar e nada a perder, quando deixar de lhe dar fé. Ainda mesmo que esta fosse uma ilusão boa, conservaria sempre dois defeitos capitais: primeiro, ser uma ilusão que, cedo ou tarde provocaria um conflito entre o pensamento livre e conhecedor da verdade e os costumes baseados no erro tradicional; segundo, pela sua lei moral oposta à natureza humana, num limite heterogêneo.
E já sabemos que o progresso moral só procede da razão autônoma, do conhecimento da verdade e do amor, companheiro do bem. São inúteis, pois, todas as mistificações: a moral é também uma ciência positiva. A sua norma única baseia-se nas necessidades da natureza humana. E estas necessidades, quem as fará conhecer e quem as avaliará a não ser a razão humana, o livre pensamento, a ciência armada do método experimental? Suprimi o uso da razão prática e positiva na investigação do bem e voltareis às máximas antissociais do cristianismo, imoralíssimas quando mais pretendem ser morais, porque nos delírios de além-túmulo, isto é, fora do homem, colocaram o fim do homem, como diz João Bovio. Além disso, feita a alma uma entidade concreta, destinada a um mundo melhor, o corpo convertia-se em um cárcere, em um escândalo, causa de todo o mal; daqui, os suplícios infligidos à carne, o descuido por melhorar as condições da existência, e o ideal de perfeição baseado na dor, no abandono de todos os cuidados corporais, santificado pelo beato Labre. Pois que este mundo é um lugar de provações, enquanto que 196
a verdadeira pátria do homem seria em um mundo futuro, todo o interesse pelas condições políticas, morais e materiais da existência, deixaria de existir, aceitando-se resignadamente o mal como um mérito maior para conquistar a pátria celestial. E posto que, segundo a revelação, um Deus se tivesse feito homem e morresse na cruz para salvar a Humanidade, à qual legou o modo de conquistar o reino dos céus com o conhecimento e a prática dos seus mandamentos, era pérfido e satânico aquele que se não aproveitasse da boa nova para se salvar, era meritório obrigar os não crentes a converterem-se, à força de os atormentar ou exterminar. Assim é que a civilização cristã poderia se definir dizendo que nela o homem, iludido acerca do fim da vida, reduzia toda a felicidade a torturar a si próprio para conquistar a glória. Eis aí, pois, como a moral repousa também na ciência e como só a razão humana, autônoma e experimental, pode descobrir as leis do bem e os métodos para o alcançar. Eis aí, pois, como também no campo moral - e mais que em parte alguma - concorrem o conhecimento positivo das leis da
natureza humana e sempre o uso da razão natural, nunca exaltada nem desviada por nenhum transcendentalismo, para buscar e alcançar a felicidade. A moral, que é a última das disciplinas humanas a emancipar-se da religião, deverá também diferenciar-se e constituir terreno autônomo, convertendose em ciência experimental. É uma questão de método, que dará, na própria moral, a vitória definitiva da ciência sobre a fé. Porque a fé não raciocina, não examina, não discute, não investiga, não descobre nada, ao passo que a ciência faz precisamente o contrário, e não impõe nada, nem sequer o bem, fazendo-o contudo conhecer, como esplendor da verdade, induzindo a amá-lo, pela persuasiva propaganda que faz dele. Iluminando as inteligências, engrandece e nobilita os corações: a sensibilidade mais requintada é a que se desenvolve e apura na investigação da verdade. Não só, portanto, se dispensa a ilusão de um Homem Deus para conduzir a Humanidade ao bem; não só é necessário abandonar definitivamente essa ilusão, que tem sido causa de tão grandes danos, mas até preciso se torna emancipar para sempre 197
a moral de toda a tutela teológica e de toda a infiltração mística e sobrenatural, para a tornar verdadeiramente humana, para a basear nas necessidades reais da vida: fazê-la, em suma, urna ciência positiva, experimental, racional. Com Cristo, deverá necessariamente desaparecer o cristianismo. Os que confundem o cristianismo com moralismo, perguntarão, talvez, de boa fé: Que será então da Humanidade sem a benéfica ilusão de um mito, ideal do homem, como o é Cristo? À essa pergunta, basta responder com esta: Teve a Humanidade a necessidade de Cristo durante todo o tempo pré-cristão? De modo algum. Nesse tempo, antes dele, viveram as sociedades cultas e civis; nesse tempo deram-se altos exemplos e excelentes costumes de moral, que o cristianismo nunca conseguiu ultrapassar; nesse tempo houve Estados poderosos, ricos, prósperos; floresceram filósofos, poetas, artistas, homens de ciência, juristas que ainda hoje servem de modelo. E se, por outro lado, existiram instituições más e costumes desumanos, estes não fo-
ram abolidos pelo cristianismo mas pela filosofia, em quanto que o cristianismo agravava os males que esta não pudera destruir, acrescentando-lhe outros novos, como, para não citar se não os maiores, a luta da alma contra o corpo e a perseguição dos crentes contra os incrédulos. Como antes do cristianismo, no futuro não haverá necessidade do mito Cristo para ordenar o que à natureza humana cabe executar. Cristo pode voltar definitivamente para o céu, de onde não devia ter descido nunca à esta terra, para com o seu nome a encher de ruínas e desventuras. Pela nossa parte, nenhuma nostalgia sentimos por esse ídolo que se vai. Antes, pelo contrário, sentimos a alegria que traz sempre um mal menor. Agora, a vós, pagãos, estultamente caluniados e destruídos; a vós, hebreus injustamente odiados e infamados, a vós, livres pensadores de todos os tempos, natureza e grau, atrozmente perseguidos; a vós todos, a reabilitação da história, da ciência e da Humanidade. Cristo, esse vosso detrator, Cristo, esse vosso perseguidor, Cristo, não existe! FIM 198
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De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a história não nos conservou documento algum, prova alguma, demonstração alguma. Assim começa um dos ensaios mais polêmicos e surpreendentes dos anos 1900. O advogado Emilio Bossi desmonta minuciosamente, ponto a ponto, com extrema habilidade e rigor, qualquer vaga ideia que a nossa cultura possa ter a respeito de um personagem chamado Jesus Cristo. Seria ele filho de Deus? Este não é um argumento de pesquisa histórica e, consequentemente, nem deste ensaio. Viveu ele realmente, ainda que somente como pessoa física? Bossi declara um categórico NÃO demostrando incontestavelmente, com provas e mais provas, que não há nenhum traço de evidência ou sequer sombra de suspeita da possível existência de um homem chamado Jesus. Este ensaio mordaz de 1900 (Raramente reimpresso) é uma viagem através dos mecanismos meméticos de evolução cultural: mostra como as religiões mais primitivas e os rituais mais antigos evoluíram para o que hoje se chama de "verdade revelada".
Emilio Bossi nasceu em Bruzella no Cantão suíço de Ticino em 31 de dezembro de 1870, filho de um arquiteto, Francisco, e de Emilia Contestabile. Iniciou seus estudos no Liceu de Lugano e formou-se em direito em Genebra. Empreendeu carreira no jornalismo e ganhou fama como um grande polemista com o pseudônimo de Milesbo. Foi adversário inflexível do clericalismo e defensor acérrimo da italianidade de Ticino. Travou duras batalhas contra os "menatorroni" da vida pública. Colaborou com o jornal O Dever, dirigiu A Gazeta Ticinense, foi diretor do semanário Nova Vida e fundou o jornal Ideia Moderna. Em 1906 fundou e editou A Ação, órgão da Extrema Radical. Bossi foi deputado do Grande Conselho, do Conselho Nacional e do Conselho dos Estados. Como tal, dirigiu o Departamento do Interior. De 1905 a 1910 ocupou o cargo de juiz de instrução substituto. Liberal radical, foi com Romeo Manzoni, o flagelo implacável da política oportunista e das transações de Rinaldo Simen. Em 1897 foi um dos fundadores da União Social Radical Ticinense, uma associação que, além das reformas sociais que defendia propugnava a escola neutra e a separação entre Igreja e Estado. Com Manzoni, foi o líder carismático da Extrema Radical, fundada em 1902 após uma violenta polêmica com a corrente de Simen. Em seguida à sua entrada no Conselho de Estado, Bossi foi forçado a se adequar à lógica das negociações. Em consequência, a Radical Extrema desaparece como grupo autônomo. Morreu 27 de novembro de 1920, em Lugano. Jesus Cristo Nunca Existiu foi publicado simultaneamente em 1904 em Milão e em Bellinzona, na Suíça. Revê a luz em 1951 em Bolonha pela Lida e finalmente em 1975 em Ragusa, pela La Fiaccola.