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7 edição revisada
Introdução à Teologia Evangélica representa uma síntese das idéias teológicas básicas de Karl Barth, apresentadas em sua última preleção na cidade de Basiléia, Suíça, no ano de 1962. Barth desenvolve esta sua "síntese teológica" em 17 preleções ao longo do livro. As preleções abordam o lugar da teologia (focalizando a palavra, as testemunhas, a comunidade e o Espírito), a existência teológica teológ ica (caracteri (caracterizada zada por admiração, abalo, comprometimento e fé), os perigos que a teologia enfrenta (com destaque para a solidão, a dúvida, a tentação e a esperança)e o trabalho teológico (envolto de oração, estudo, serviço e amor). O assunto da teologia evangélica é, segundo Barth Barth,, "Deus "Deu s - Deus, eus, na história de suas ações [...] a teologia será evangélica, portanto não será voltada a um um Deus Deus desumano não será teologia legalista". Isto porque, segundo o autor, o
Introdução à Teologia Evangélica representa uma síntese das idéias teológicas básicas de Karl Barth, apresentadas em sua última preleção na cidade de Basiléia, Suíça, no ano de 1962. Barth desenvolve esta sua "síntese teológica" em 17 preleções ao longo do livro. As preleções abordam o lugar da teologia (focalizando a palavra, as testemunhas, a comunidade e o Espírito), a existência teológica teológ ica (caracteri (caracterizada zada por admiração, abalo, comprometimento e fé), os perigos que a teologia enfrenta (com destaque para a solidão, a dúvida, a tentação e a esperança)e o trabalho teológico (envolto de oração, estudo, serviço e amor). O assunto da teologia evangélica é, segundo Barth Barth,, "Deus "Deu s - Deus, eus, na história de suas ações [...] a teologia será evangélica, portanto não será voltada a um um Deus Deus desumano não será teologia legalista". Isto porque, segundo o autor, o
Introdução à Teologia Evangélica
Karl Barth, nascido em 1886 na cidade de Basiléia, Suíça, estudou Teologia e Filosofia em Berna, Berlim, Tübingen e Marburgo. Além do pai, docente de História Eclesiástica, teve por professores Adolf Schlatter, Adolf Harnack, Wilhelm Hermann e os “neokantianos” Hermann Cohen e Paul Natorp. Foi pároco de 1909 a 1921. Sua famosa interpretação da Epístola aos Romanos, publicada em 1919, provocou uma verdadeira revolução na teologia contemporânea. A publicação valeu-lhe o ingresso na docência acadêmica: veio a ser professor em Gõttingen, Tübingen e Bonn. Tendo sido co-editor da revista teológica Zwischen den Zeiten (1923-1933), tornou-se o vulto mais eminente entre os representantes da novel “teologia dialética”, que se vinham agrupando em torno dessa revista. No ano de 1935, Karl Barth foi demitido da Universidade de Bonn, por ter-se negad o a prestar o juram ento de fidelidad e incondicional ao Führer. Mudou seu campo de ação para Basiléia; conservou, no entanto, os laços que o ligavam à “Igreja Confessante ”, contrária ao nazismo. Continuou sendo um dos colaboradores mais destacados em seus sínodos e foi inspirador da “Declaração de Barmen”. Sua obra principal, a “Dogmática da Igreja ” (Kirchliche Dogmatik), talvez seja a realização mais importante no campo do pensamento teológico em todo o século 20. Eis algumas de suas publicações: 1919: Epístola aos Romanos 1924: A Palavra de Deus e a Teologia 1931: Fides quaerens intellectum - a Prova da Existência de Deus, conforme Anselmo 1932: Dogmática da Igreja, 1° tomo (ao todo, veio a publicar 12 tomos) 1935: Credo 1947: Súmula Teológica 1947: A Teologia Protestante no Século 19 1956: Breve Interpretação da Epístola aos Romanos 1962: Introdução à Teologia Evangélica 1966: Ad Limina Apostolorum
Karl Barth
INTRODUÇÃO À TEOLOGIA EVANGÉLICA 9a edição revisada
P Sinodal
2007
EST
Os direitos para a língua portuguesa pertencem à: Editora Sinodal, 1996 Caixa Postal 11 Fone/Fax: (51) 3590-2366
Tradução: Lindolfo Weingãrtner Revisão: Luís M. Sander Coordenação editorial: Luís M. Sander Série: Teologia Hoje 1 Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Instituto Ecumênico de Pós-G raduação em Teologia (IEPG) da E scola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Fone: (51) 2111-1400 Fax: (51) 2111-1411
www.est.com.br
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CIP - BR AS IL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Bibliotecária responsável: Rosemarie Bianchessi dos Santos CRB 10/797 B284i
Barth, Karl Introdução à teologia evangélica / Karl Barth ; tradução de Lindolfo Weingärtner - 5. ed. rev. - São Leopoldo : Sinodal, 1996. 128 p. - (Série Teologia Hoje ; 1) Título original: Einführung in die evangelische Theologie ISBN 85-233-0428-2 1. Teologia sistemática. I. Título. II. Série. CDU 23
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índice Prefácio..........................................................................................................
7
Explanações...................................................................................................
9
1. O Lugar da Teologia .................................................................................
15
A Palavra.................................................................................................. As Testemunhas....................................................................................... A Comunidade......................................................................................... O Espírito.................................................................................................
17 23 29 35
2. A Existência Teológica ............................................................................... 41
Admiração................................................................................................ Abalo......................................................................................................... Comprometimento.................................................................................. A F é ...........................................................................................................
43 49 56 63
3. Os Perigos que Ameaçam a Teologia ..........................................................
69
Solidão...................................................................................................... Dúvida...................................................................................................... Tribulação................................................................................................. A Esp eran ça.............................................................................................
71 78 85 92
4. O Labor Teológico ..................................................................................... 99
O ração....................................................................................................... 101 Estudo........................................................................................................ 108 Serviço....................................................................................................... 116 O A m o r..................................................................................................... 123
Prefácio Após ter deixado o magistério acadêmico, eu havia sido incumbido como meu próprio lugar-tenente e o de meu sucessor, ainda não designado de mais uma vez realizar um seminário, uma série de exercícios e uma preleção no semestre de inverno de 1961/62. É o manuscrito dessa preleção que apresento neste livrinho. Espero que nenhuma das pessoas que conside ram os tomos da “Dogmática da Igreja” por demais volumosos venha a reclamar da brevidade enérgica com que me expresso aqui. Como não teria sido de bom alvitre lecionar Dogmática em apenas uma aula semanal, tentei aproveitar a oportunidade que me proporcionou esse canto de cisne para, de forma resumida, prestar contas a mim mesmo e a meus contemporâneos de tudo aquilo que até agora fundamentalmente almejei, aprendi e ensinei no campo da teologia evangélica, através de muitos caminhos e atalhos, em cinco anos como estudante, em 12 anos como pastor e depois em 40 anos como professor. É possível que em segundo plano eu tenha sido guiado pela idéia de proporcionar mais uma vez, especialmente à geração mais jovem, uma visão panorâmica de minha alternativa pessoal à mixophilosophicotheolo- gia (a expressão é de Abraham Calov!) que de momento parece, como último grito, convencer poderosamente a muitas pessoas. Não quis fazer isso escre vendo mais um “Credo” ou “Síntese ou uma Sumula semelhante. Assim, optei pela forma de uma disciplina introdutória , que, por sinal, há muito não constava mais no currículo de nossa Faculdade de Basiléia. Não me posso queixar de falta de participação por parte dos estudantes. E o pequeno drama ocorrido a Ia de março em nosso auditório - estranhamente, foi justo após minha última preleção, sobre o tema “Amor - não conseguiu, de nenhum modo, perturbar minha paz interior. Sempre me lembrarei com prazer justamente deste meu derradeiro semestre acadêmico, e, no mais, doravante procurarei fazer o que ainda puder para prosseguir na elaboração da “Dogmática da Igreja”, sem a costumeira pressão do auditório a me esperar - pressão, aliás, que, embora às vezes penosa, não deixa de ser salutar. Basiléia, março de 1962
I I
ls Preleção:
Explanações A teologia representa um dos empreendimentos humanos costumeiramente qualificados de “científicos” que têm por finalidade perce ber um objeto ou uma área como fenômeno, compreendê-lo em seu sentido e tematizá-lo em todo o alcance de sua existência - e isso, dentro do caminho indicado pelo próprio objeto em questão. O termo “teologia” parece indicar que ela, por ser uma ciência particular (e muito particular!) visaria perceber, compreender e tematizar a “Deus”. Mas ao termo “Deus” podem ser atribuídos os mais variados sentidos. Assim, também há muitas teologias diferentes. Não existe ser humano que, de maneira consciente, inconsciente ou subconsciente, não tenha seu Deus ou seus deuses como objeto de seu desejo e confiança mais elevados, como base de sua vinculação e compromisso mais profundos. Neste sentido, qualquer ser humano é teólogo. E não há nem religião, nem filosofia, nem cosmovisão que - quer seja profunda, quer superficial - não se relacione com alguma divindade, interpretada e circunscrita desta ou daquela forma, e que, portanto, não seja teologia. Isto se aplica não só a situações nas quais se tenta fazer valer positivamente ou pelo menos deixar valer tal divindade como quintessência da verdade e do poder de algum princípio supremo, mas também a situações nas quais se nega a existência dessa divindade: nestes casos, o que acontece em termos práticos é que exatamente a dignidade e função da divindade são transferidas à “natureza”, a um impulso vital inconsciente e amorfo, à “razão”, ao progresso, ao ser humano de pensa mento e ação progressistas, ou, quiçá, a um “nada” redentor, considerado destino último do ser humano. Também tais ideologias aparentemente “atéias” são teologias. Estas preleções não têm por objetivo introduzir os estudiosos no cam po dessas multiformes teologias, com suas inúmeras divindades, através de comparações históricas ou especulações críticas - para depois, em nome ou a favor de uma delas, tomar posição contra todas as demais, ou subordinar e coordenar as mesmas em relação à teologia de nossa escolha. Não me parece evidente que essas muitas teologias tenham algo de essencial em comum com a teologia que nos haverá de ocupar, de modo que se pudesse estabele cei um relacionamento frutífero entre um e outro campo. Porque há uma coisa comum entre essas várias teologias, e este fato lança uma luz bastante reveladora sobre os deuses em questão: cada uma delas se considera e se proclama a si mesma como a única correta ou, ao menos, como a melhor, por ser a mais correta de todas. Se não for por outro motivo, seremos advertidos pela conhecida “Fábula dos Três Anéis” no sentido de não partici
parmos de qualquer concorrência neste campo (sem que tenhamos como insuperável a interpretação dada por Lessing à aludida fábula). A melhor teologia, ou a única teologia correta do Deus sublime, único, verdadeiro e real, deveria restringir-se a ser aquilo que as outras alegam ser. Deveria comprovar a si mesma pela “demonstração do Espírito e do Poder”. Neste ponto Lessing, em princípio, estava certo. Mas ela, com certeza, revelaria justamente que não é o que afirma ser, caso proclamasse ser a melhor ou a única verdadeira teologia. Basta-nos, pois, a simples constatação, independentemente de qualquer confronto que procure distanciar, combinar ou avaliar as coisas: a teologia à qual queremos introduzir é a teologia evangélica. O adjetivo aponta para o Novo Testamento e simultaneamente para a Reforma do séc. 16. Sirva, outrossim, de dupla confissão: a teologia da qual trataremos é a que, a partir de suas origens abscônditas, latentes nos documentos da história de Israel, veio à luz, de forma clara e inequívoca, nos escritos dos evangelistas, apósto los e profetas do Novo Testamento, para ser redescoberta e revivida na Reforma do séc. 16. Não queremos entender o termo “evangélico” de forma confessionalista, já que ele aponta em primeiro lugar e de modo decisivo para a Bíblia, a qual, de alguma maneira, é respeitada em todas as confissões. Uma teologia, por ser “protestante”, ainda não é necessariamente evangélica. E existe teologia evangélica também no catolicismo romano e no âmbito da Ortodo xia oriental, assim como existe na área das inúmeras variações e mesmo das formas degeneradas posteriores ao evento reformatório. Designaremos com o termo “evangélico”, de forma objetiva, a continuidade e a unidade “católi cas”, ecumênicas (para não dizer “conciliares”) de toda e qualquer teologia que, em meio a todas as demais teologias e (sem que isso implique um juízo de valor ou desvalor) diferentemente delas, tenciona perceber, compreender e tornar manifesto o Deus do evangelho - quer dizer, o Deus que se manifesta no evangelho, que por si mesmo fala aos seres humanos, que age neles e entre eles - da maneira por Ele mesmo indicada. Onde se realiza o evento de este Deus se tornar objeto ou assunto da ciência humana e, como tal, origem e norma da mesma - aí existe teologia evangélica. Tentaremos a seguir, preludiando, circunscrever o evento da teologia evangélica elucidando sua particularidade, definida por este seu objeto ou assunto, e assinalando suas principais características. Entre essas característi cas não se encontra nenhuma que, mutatis mutandis, não possa e não deva ser também a característica de outras ciências. Mas não vamos explorar este fato aqui. Se as descrevemos neste contexto, é por serem, em especial, caracterís ticas da ciência teológica. 1. Não é só por causa de Lessing que a teologia evangélica não se vê condições de vangloriar-se em relação a outras teologias ou de apresentar-se a si mesma, em qualquer uma de suas modalidades, como sabedoria e doutrina divinas. Justamente por estar voltada ao Deus que a si mesmo se manifesta no evangelho, não poderá reivindicar o direito de bancar Deus,
neste campo. O Deus do evangelho é o Deus que de sua parte se acha voltado em misericórdia para a existência de todos os seres humanos, inclusive para a teologia dos mesmos. Mas ele sempre permanece superior, não só quanto aos empreendimentos “dos outros”, mas também diante da teologia evangé lica. Permanece o Deus que continuamente se dá a conhecer e que continua mente precisa ser descoberto e redescoberto. Também a teologia evangélica não poderá dispor deste Deus. O fato de ele se manifestar como distinto de outros deuses, como sendo o único Deus verdadeiro, em qualquer circuns tância só poderá ser obra sua - obra que não poderá ser substituída por nenhuma ciência humana, também não por uma teologia que tenha justa mente a ele por objeto. Mesmo por isso se tratará de um Deus muito diferente daqueles deuses que não impossibilitam a autoglorificação às teologias que os têm por objeto, que não lhes vedam o conceito de serem a mais correta, se não a única correta existente, mas que, antes, parecem induzi-las a tal autoglorificação. E verdade: a teologia evangélica poderá e deverá pensar a partir da decisão e da ação nas quais Deus mesmo faz rebrilhar sua glória perante todos os demais deuses. Mas ela deixaria de pensar e de falar a partir delas se, por causa de sua familiaridade com a revelação de Deus, quisesse obter glória para si mesma, a exemplo de outras teologias. Bem ou mal, ela deverá seguir seu próprio caminho, que será fundamentalmente diferente de todos os demais. Deverá tolerar, porém, ser vista e compreendida no mesmo plano com as outras teologias e, conseqüentemente, ser comparada e relacionada com elas, sob a designação de “filoso fia da religião”, sem que lhe seja lícito participar deste empreendimento. Ela só poderá esperar que lhe seja feito justiça caso Deus a justificar. Só a ele poderá dar a glória - não a si mesma. A teologia evangélica é condicionada pelo seu próprio assunto para ser uma ciência modesta. 2. A teologia evangélica raciocina com base em três premissas secun rias, a saber: a) de modo geral, no evento da existência humana, em sua dialética indissolúvel, existência que vê confrontada com a auto-revelação de Deus no evangelho; b) de modo específico: na fé de seres humanos que receberam o dom e a vontade de reconhecerem e confessarem a autorevelação de Deus como tendo acontecido em favor deles; c) de modo geral e específico: na razão, i. é, na capacidade de percepção, conceituação e expres são de todos os seres humanos, inclusive dos crentes, fato este que os capacita tecnicamente a participarem, de forma ativa, do esforço de cognição teológica realizado no confronto com o Deus que se auto-revela no evangelho. Isso não quer dizer, porém, que ela tivesse a tarefa ou quiçá a permissão de, em substituição a Deus, fazer da existência humana, ou seja, da fé ou do potencial intelectual do ser humano, seu objeto e seu tema (mesmo que tal potencial tenha o caráter de um “a priori religioso”), tema que, desdobrado, levaria ao tema “Deus” - posteriormente e como que por a< ii lente. Tal procedimento despertaria a suspeita de que “Deus”, à seme lhança da coroa da Inglaterra, não passe de um símbolo, de uma mera façon de pmler | “maneira de falar”].
A teologia evangélica não ignora que o Deus do evangelho se acha voltado para a existência humana, que ele realmente desperta e chama o ser humano à fé e que com isso reivindica e ativa a totalidade do potencial intelectual humano (e não só o seu potencial intelectual). Mas este fato apenas suscita o interesse da teologia na medida em que ela se interessa, com prioridade absoluta, por Deus mesmo. Ela raciocina e argumenta sob a premissa dominante da revelação da existência e soberania de Deus. Caso quisesse proceder de forma contrária, tentando expor Deus ao critério do ser humano, em vez de expor o ser humano ao critério de Deus, ela seria vítima do cativeiro babilónico de antropologias, antologias e noologias, i. é, de qualquer interpretação antecipada da existência, da fé e do potencial intelectual do ser humano. A teologia evangélica não é forçada nem autoriza da a enveredar por tal caminho. Ela sabe esperar, correndo o risco da fé, para verificar como a existência, a fé e a capacidade intelectual do ser humano, como seu ser e sua autocompreensão, em confronto com o Deus do evangelho, superior à existência humana, venham a revelar-se. Em referência às aludidas condições secundárias, ela - em toda a sua modéstia - é uma ciência livre: quer dizer, é uma ciência que deixa seu assunto agir livremente, de modo que é libertada continuamente por seu próprio objeto em seu relacionamento com as condições secundárias mencionadas. 3. O assunto da teologia evangélica é Deus - Deus na história de su ações. Nela é que ele se manifesta a si mesmo. Mas nesta história ele também “é o que é”. Nela ele tem e prova tanto sua existência quanto sua essência: sem precedência de uma ou outra. Ele, o Deus do evangelho, não é, portanto, nem coisa, objeto, nem idéia, princípio, verdade ou soma de verdades, nem expoen te pessoal de tal soma - a não ser que se entenda sob “verdade”, em analogia à aletheia dos gregos, seu ser na história de sua auto-revelação, em seu refulgir como Senhor de todos os senhores, na santificação do seu nome, na vinda de seu reino, no acontecer de sua vontade como obra sua; e a não ser que se entenda sob “verdades” a seqüência dos elementos específicos deste seu ser, manifesto em sua ação - elementos que não deveriam ser considerados e fixados como eventos isolados, mas que devem ser vistos dentro de seu contexto histórico. Convenhamos: a função da teologia evangélica não é a de repetir nem de tornar presente nem de antecipar a história na qual Deus é o que é; não deve querer apresentar tal história como sendo sua própria obra. Sua função é prestar contas da mesma, de forma concreta, em todas as suas definições e formulações. Esta tarefa, no entanto, ela só conseguirá realizar de forma apropriada se seguir ao Deus vivo naquele evento no qual ele é Deus, tendo ela própria, por conseguinte, o caráter de evento vivo ao perceber, refletir e discutir seu assunto. Ela perderia seu objeto, deixando de ser ela mesma, se quisesse ver, compreender ou manifestar qualquer momento do evento divino como ato isolado e estático, em vez de entendê-lo em seu relacionamento dinâmico: o pássaro deve ser observado no vôo, não quando está sentado na vara. A teologia evangélica deixaria de ser ela mesma se, em vez de proclamar os “grandes feitos de Deus”, se dispusesse a constatar e a
qual for a condição dos deuses de outras teologias neste particular - o Deus do evangelho se subtrai a uma teologia que tende a petrificar-se, de uma ou outra forma. A teologia evangélica, ao visar o Deus do evangelho, só poderá existir e permanecer em movimento dinâmico e vivo. Ela precisará decidir continua mente entre o antigo e o novo - sem desprezar o primeiro e sem temer o segundo. Precisará distinguir entre o ontem, o hoje e o amanhã da presença e ação únicas de Deus, sem perder de vista a sua unidade e coerência. E justamente nesta condição que ela é ciência eminentemente crítica - i. é, ciência exposta constantemente à crise que lhe sobrevém a partir de seu assunto, crise da qual jamais poderá fugir. 4. O Deus do evangelho não é um Deus solitário, que bastasse a mesmo e fosse recluso em si mesmo: não é um “Deus absoluto” (i. é, não é um Deus desvinculado de tudo que não seja ele mesmo). É verdade: não tem a seu lado ninguém que lhe seja igual e pelo qual fosse limitado e condicio nado. Mas nem por isso Deus é prisioneiro de sua própria majestade. Ele não é forçado, por ser Deus, a ser o “totalmente diferente”. O Deus de Schleiermacher não é capaz de se compadecer. O Deus do evangelho é capaz de fazê-lo, e realmente se compadece. Como em si mesmo é o Uno, na unidade de sua vida como Pai, Filho e Espírito Santo, assim, em relação à realidade dele distinta, ele é livre, de jure e defacto, para ser Deus não ao lado do ser humano, porém igualmente não só acima dele, mas sim junto a ele, com ele e, sobretudo, a favor dele: não só como seu senhor, mas também como seu pai, seu irmão, seu amigo - seu Deus, i. é, o Deus do ser humano - e isto não em detrimento ou em abandono do seu ser divino, mas em confir mação do mesmo. “Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito” (Is 57.15). E isso que Deus realiza na história de seus feitos. Um Deus que se achasse apenas confrontado ao ser humano sublime, distante, estranbo, restrito a uma divindade sem humanidade, só poderia (caso conseguisse comunicar-se com o ser humano) ser o deus de um dysangelion [“disangelho”, “má notícia”], de um “não” desprezivo, julgador, mortífero, que o ser humano deveria evitar, perante o qual seria obrigado a fugir, se disso fosse capaz - o qual, já que jamais lhe poderia bastar, melhor não chegasse a conhecer. Pode ser que haja muitas teologias que de fato argumentam com tais deuses sublimes, sobre-humanos e desumanos, que necessariamente só po derão ser deuses dos mais diversos “disangelhos”. E justamente o progresso dei ficado (e especificamente o ser humano progressista) que parece ser um deus assim. O Deus que é objeto da teologia evangélica é sublime e humilde: é sublime justamente em sua humildade. E assim acontece que também o seu inevitável “não” se acha circundado por seu “sim” em favor do ser humano. Desta forma, tudo o que ele quer e faz para o ser humano e com o mesmo icpi escuta obra prestimosa e salvífica, que traz consigo paz e alegria. Assim, ele é í calmente o Deus do euangelion, da palavra boa para o ser humano por sei palavra da graça. A teologia evangélica, através de seu labor, responde ao gt arioso “sim” de Deus, à sua auto-revelação benigna e amiga para com o ser
também lida com o ser humano como ser humano de Deus. Para ela, o ser humano de forma nenhuma é aquele que “deve ser superado” - pelo contrário: representa-lhe aquele que por Deus foi destinado a superar, a vencer. Assim, o termo “teologia”, em sentido estrito, é insuficiente, por não revelar essa dimensão decisiva de seu conteúdo: o amor ilimitado e livre de Deus, que por sua vez cria amor em liberdade, sua graça (charis) que clama por gratidão (eucharistia). A expressão “teantropologia” expressaria melhor as verdadeiras intenções da teologia - desde que, segundo o que expusemos sob o item 2, não a confundíssemos com qualquer tipo de “antropoteologia”. Assim, mantenhamos o termo “teologia”, lembrados de que a imprescindível explanação de que se trata de “teologia evangélica” deverá ficar em vigor no sentido específico acima esboçado: a teologia será evangélica, portanto não estará voltada a um deus desumano, não será teologia legalista. A teologia evangélica lida com o Imanuel, o Deus conosco! Partindo deste seu objeto como poderia ela deixar de ser uma ciência grata e, portanto, ciência alegre ? Desistirei de dar uma explanação específica referente ao termo “intro dução”. Desistirei, outrossim, de discutir belicosa ou pacificamente o méto do usado por Schleiermacher ao apresentar tema idêntico ou semelhante como “Breve exposição do estudo da teologia”, ou o método de vários outros autores que falaram em “Enciclopédia teológica” ou que chegaram até a usar o estranho substantivo “teo-lógica”. Em que sentido neste nosso estudo damos uma introdução à teologia evangélica é algo que deverá esclarecer-se a si mesmo e por si mesmo, ao fazermos agora a tentativa de apresentá-la.
1. O Lugar da Teologia
2~ P releção:
A Palavra Haveremos de dedicar-nos nesta preleção - e nas três seguintes - à tarefa de definir o lugar específico da teologia, a qual entenderemos, confor me explanações já feitas, como teologia evangélica. Não se trata de buscar mos lugar, justificativa ou possibilidade para a teologia dentro do espaço e dos horizontes da cultura e, especialmente, da universitas litterarum [“totali dade das ciências”], no contexto da ciência humana em geral. Após o término do brilho falaz que teve na Idade Média, por sua condição acadêmica privilegiada a teologia empregou demasiado esforço - e isto especialmente no séc. 19 - para assegurar a si mesma ao menos um lugar modesto ao sol da ciência universal, e fez isso justificando sua própria existência. Tal esforço não resultou em benefício de sua tarefa específica, pois levou-a à vesguice e à gaguez... E o que conseguiu fora de seu âmbito foram sucessos bem modeslos. Fato estranho: a teologia voltou a ser levada realmente a sério por seu ambiente, embora às vezes de forma um tanto rude, a partir do momento em que ela, de maneira decidida, voltou a concentrar-se em seu assunto específi co, desistindo, ao menos interinamente, de qualquer apologética, i. é, da tentativa de defender a própria posição. Ela continuará impondo respeito fora de seu âmbito se agir de acordo com as premissas que a fizeram nascer, sem dar longos esclarecimentos e sem pedir desculpas a ninguém. Em nossa época, ela deveria ter feito isso com muito mais ânimo e decisão. O que vem a ser “cultura” e “ciência universal”? Não percebemos que, nos últimos 50 anos, estes termos se tornaram mais e mais imprecisos, que assumiram um significado por demais problemático para que pudessem servir de pontos de orientação, dentro de nossos propósitos? Seja como for - certamente não desprezamos a pergunta pela validade da teologia do ponto de vista das demais faculdades acadêmicas. Perguntaremos pelos motivos e pela justifica rão de sua pretensão de fazer parte da universidade como ciência sui generis, modesta, livre, crítica e alegre. Mas tal pergunta, ao menos por ora, poderá sei para nós uma cura posterior [“preocupação posterior”], em vista de outras qneslões muito mais urgentes. Quem sabe, a resposta explícita a esta pergunla esteja reservada às iluminações que poderiam suceder à teologia e ao seu ambiente acadêmico no terceiro milênio de sua existência... Entenderemos sob “lugar” da teologia a posição inicial que lhe é destinada a partir de dentro, decorrente de seu próprio assunto ou objeto, a ! ii isição a partir da qual lhe cumpre avançar em todas as suas disciplinas - as bíblicas, as históricas, as sistemáticas e as práticas. É a lei pela qual ela deve se apiescutar constantemente. Usando linguagem militar: é a posição de sentinela que o teólogo necessariamente terá de ocupar e de manter sob
quaisquer circunstâncias na universidade ou em alguma catacumba qual quer, sob pena de perder sua liberdade - mesmo que tal tarefa lhe venha a desagradar ou que desagrade a quaisquer outras criaturas. O vocábulo “teologia” contém o termo logos. Teologia é logia, lógica, logística fundamentalmente possibilitada e definida pelo theos. E não há como negar que o significado de logos é “palavra” - apesar do parecer de Fausto (de Goethe) de que lhe era impossível “ter a palavra em tão alta estima”. A palavra não é a única, mas é necessariamente a primeira das definições necessárias para circunscrever o lugar da teologia. Ela mesma é palavra - a saber, palavra-resposta humana. Mas não é sua própria palavra responsiva que a faz ser teologia, e sim a palavra que ouve e à qual responde. Ela vive e morre com a palavra que precede a sua palavra, com a palavra pela qual é criada, despertada e desafiada. Seu raciocinar e falar humanos seriam vazios, sem significado, inúteis, se tencionassem ser mais - ou ser menos ou algo diferente do que uma ação responsiva àquela palavra. A teologia, ao ouvir a palavra e ao responder à mesma, será (assim o constatamos em nossas “Explanações”, nos itens 1 e 2) simultaneamente ciência modesta e livre modesta na medida em que, em relação àquela palavra, toda a sua logia não passa de ana-logia humana, suas elucidações não passam de um refletir e espelhar humanos (especular - speculareY), seu produzir não passa de um reproduzir humano; em resumo: não se trata de um ato criativo, e sim de um louvor responsivo, e tão fiel quanto possível, ao seu Criador e à sua obra. E será livre na medida em que não se considerar apenas intimada a realizar tal analogia, reflexão e reprodução (i. é, tal louvor ao Criador), mas quando para tal se achar libertada, autorizada, posta em movimento pela palavra. Isso implica não só que o raciocínio teológico deve ser guiado por essa palavra, orientar-se e medir-se pela mesma. Isso tudo é necessário, sim; e é por estes termos que circunscrevemos, de forma adequada, o relacionamen to do raciocínio teológico com as testemunhas da palavra, das quais ainda haveremos de tratar. Mas esses termos seriam muito fracos para definir o relacionamento da teologia com a própria palavra. Neste relacionamento não acontece que o raciocinar e o falar humanos, em resposta à palavra (quiçá, em forma de uma interpretação adequada), apenas necessitem ser disciplinados pela palavra e que se submetam a tal disciplina. Acontece, antes, que o raciocinar e o falar humanos, em resposta à palavra, são produzidos pela ação criativa de Deus, por ela chegam a existir e atuar. Não há nenhuma teologia autêntica, e menos ainda uma teologia evangélica, sem o evento daquela palavra! E também não ocorre que a teologia tivesse por tarefa primeiramente interpretar, explicar, tornar inteligível tal palavra. Fará isso, também - mais uma vez: em seu relacionamento com as testemunhas daquela palavra. Mas não tem nada a interpretar quanto à sua relação com a palavra como tal. Neste particular, a resposta teológica só poderá consistir em confirmar e anunciar a palavra, que antecede qualquer interpretação, como palavra que foi falada e ouvida.
Aqui lidamos com o evento teológico fundamental que inicia e em si encerra tudo que ainda deverá seguir-se. Omnis recta cognitio Dei ab oboedientia nascitur [“Todo conhecimento reto de Deus nasce da obediência”] (Calvino). A palavra que não só regula a teologia e por esta não precisa ser primeiramente interpretada, mas que a fundamenta e constitui, que a partir do nada a chama à existência, que da morte a chama à vida - esta palavra é a palavra de Deus. O lugar no qual a teologia se acha colocada e ao qual precisa voltar dia após dia se acha bem defronte a essa palavra. A palavra de Deus é a palavra que Deus falou, fala e falará em meio aos seres humanos - a todos os seres humanos -, quer seja ouvido, quer não o seja. E a palavra de seu agir nos seres humanos, a favor dos seres humanos, com os seres humanos. Este seu agir não é mudo; é um agir que fala por sua própria natureza. Sendo que só Deus é capaz de realizar o que realiza, só ele será capaz de dizer em seu agir o que diz. E, por seu agir não ser cindido, mas sim uno (e o ser em suas formas múltiplas, e dentro de seu movimento que parte da origem e visa o alvo), também sua palavra, em toda a sua excitante riqueza, é simples e una. Não é dúbia - é inequívoca; não é obscura - é clara; portanto, em si é compreensível tanto para o mais sábio quanto para o mais estulto. Deus age e, agindo, fala. Sua palavra acontece. Podemos deixar de ouvi-la de facto - mas jamais de jure. Falamos do Deus do evangelho, de seu atuar e seu agir; e falamos de seu evangelho, no qual seu agir e atuar como tal é sua linguagem, sua palavra: o logos no qual a logia, lógica, logística teológi cas têm sua fonte criativa e sua vida. A palavra de Deus, portanto, é evangelho, mensagem boa, porque é a ação benigna de Deus que nela se expressa e por ela se transforma em apelo pessoal. Lembramos o que dissemos na última preleção, em referência ao item 4: em sua palavra Deus revela o seu agir no horizonte de sua aliança ( om o ser humano; e na história da constituição, manutenção, realização e ( onelusão desta aliança ele se revela a si mesmo. Revela sua santidade, mas l.unhem sua misericórdia - misericórdia de pai, de irmão, de amigo. Revela t.imbém seu poder e sua majestade como senhor e juiz do ser humano; irvcla, portanto, a si mesmo como o primeiro parceiro dessa aliança, a si mesmo como o Deus do ser humano. Mas em sua palavra revela também o sei humano como criatura, como seu devedor insolvente, como ser perdido sub o seu juízo. Mas também revela-o como criatura mantida e salva por sua |i i .iça, como ser humano libertado para Deus, posto a seu serviço. Revela o sei humano como seu filho e servo, como amado por ele e, portanto, como \fgiindo parceiro da aliança; em síntese: revela o ser humano como ser himi.ino de Deus. Essa dupla revelação é o conteúdo da palavra de Deus. A aliança - e pui lauto: Deus como Deus do ser humano e o ser humano como ser humano de I>eus - essa história, essa obra como tal é o enunciado da palavra de Deus, que a distingue de qualquer outra palavra. Este logos é o criador da teologia. I li lhe indica seu lugar e lhe atribui sua tarefa. A teologia evangélica existe a si i \ iço da palavra acerca da aliança de Deus, aliança de graça e de paz.
Não dizemos nada diferente, mas apenas concretizamos, ao prosseguir dizendo: ela responde à palavra que Deus falou na história de Jesus Cristo, na qual a história de Israel chega à consumação - ou vice-versa: na palavra que ele falou, ainda fala e quer voltar a falar dentro da história de Israel, que se consuma na história de Jesus Cristo. Por ter Israel seu alvo em Jesus Cristo, e por ter Jesus Cristo sua origem em Israel, acontece o evangelho de Deus universal justamente por esta sua particularidade -, a boa palavra da aliança de graça e de paz que foi constituída, mantida, executada e consumada por Deus, palavra da comunicação amistosa entre ele e os seres humanos. Assim, a palavra de Deus não representa o aparecimento da idéia de tal aliança ou comunicação. Representa o logos desta história, e portanto o logos, a palavra do Deus de Abraão, Isaque e Jacó, Deus idêntico ao Pai de Jesus Cristo. A esta palavra, a palavra desta história, a teologia evangélica terá de ouvir como evento que se renova dia após dia, e assim terá de entendê-la e de tematizá-la. - Tentaremos a seguir (com a necessária brevidade) dar um esboço do enunciado dessa história. Em primeiro lugar, ela fala de um Deus que, de forma exemplar para toda a humanidade, transforma uma comunidade tribal humana em povo seu, agindo nela como seu Deus, comunicando-se com ela e tratando-a como povo seu.Javé: “Eu sou o que serei”, ou: “Eu serei o que sou”, ou: “Eu serei o que serei” - este é o nome desse Deus. E Israel: “lutador (não em favor, mas) contra Deus” - este é o nome desse povo. A aliança é a união de Deus com esse povo, dentro de sua história comum. Ela fala, de maneira estranhamente contraditória, mas inequívoca, do encontro jamais interrompido, do diálogo, da comunhão entre o Deus santo e fiel e um povo que não é santo nem fiel. Assim ela fala simultaneamente da presença constante e fiel do parceiro divino, e do falhar de seu parceiro humano, destinado a ser-lhe conforme, a corresponder à sua santidade, a responder com fidelidade à sua fidelidade divina. Assim ela revela a plenitude divina da aliança - não a humana. Neste sentido ela ainda não fala da aliança em sua plenitude consumada. E assim que, transcendendo a si mesma, aponta para uma consumação que nela tende a realizar-se, que, no entanto, ainda não chega a ser realidade. Neste ponto intervém a história de Jesus Cristo, na qual o agir e o falar do Deus de Israel não terminam, mas na qual atingem seu alvo. Em Cristo, a antiga e única aliança, feita com Abraão, proclamada por Moisés, confirma da a Davi, se transforma em aliança nova na medida em que agora o próprio santo e fiel Deus de Israel apresenta seu parceiro humano santo e fiel fazendo um ser encarnar-se no meio de seu povo, aceitando este ser humano sem reservas, solidarizando-se com ele na relação de pai com filho e, evidenciando-se a si próprio, sendo Deus, como idêntico a ele, esse mesmo ser humano. Assim não deixa de ser a história de Deus com Israel, seu povo, e a de Israel com seu Deus, que se consuma na existência e manifestação, obra e palavra de Jesus de Nazaré. Ela não chega a se consumar, porém, através de uma simples continuidade histórica. Deus não faz surgir um novo Moisés, um novo profeta, um novo herói. A consumação se efetua pelo fato de o próprio Deus (pelo visto, menos do que isso não seria suficiente para
própria história de Jesus Cristo que, no alvo da história de Israel, evidencia que o Deus de Israel dá desta maneira a forma plena à aliança feita com o seu povo. A história do Cristo, profundamente arraigada na história de Israel e ao mesmo tempo transcendendo-a, fala da unidade, tornada evento, do Deus verdadeiro, que se humilha, estabelecendo a comunhão com o ser humano, e assim se revela como Deus gracioso em liberdade, e do ser humano verdadeiro, elevado para a comunhão com Deus, que o tem como parceiro que lhe é grato em liberdade. Assim “Deus estava em Cristo”. Assim este Unigénito era e é o aguardado, dentro da aliança de Deus com Israel, o prometido, mas o que ainda haveria de vir. E assim a palavra de Deus era e é - na sua forma plena, que na história de Israel apenas se anuncia - a palavra que neste Unigénito se tornou carne. A história de Jesus Cristo foi, em primeiro lugar e antes de mais nada, um evento a favor de Israel. Foi a história da aliança de Deus com Israel que em Cristo chegou a seu alvo. E assim a palavra pronunciada na história de Jesus Cristo, a palavra de Deus que nele se tornou carne, foi e é, em primeiro lugar e antes de mais nada, a palavra definitiva dirigida a Israel - fato que jamais deveríamos esquecer. Contudo, o sentido da aliança estabelecida com Israel era e continua sendo sua missão como mediador dos povos. E assim Deus estava e está em Cristo ao reconciliar o mundo consigo mesmo, através do Cristo de Israel. Por conseguinte, a palavra de Deus, falada em e com sua obra em Israel e com Israel, nesta sua forma plena, era e continua sendo seu apelo confortante, dirigido a todos os irmãos do Filho unigénito de Deus, apelo que conclama à conversão e à fé. E sua palavra benigna, que anuncia seu agir benigno dentro e em favor de toda a sua criação, palavra dirigida a todos os povos de todas as terras e de todos os tempos. Assim, a teologia evangélica terá por tarefa ouvir essa palavra em sua plenitude, tanto intensi va quanto extensiva, como palavra da aliança da graça e da paz, e de assim entendê-la e tematizá-la: como palavra de Deus tornada carne no Cristo de Israel de modo particular - e justamente nele, enquanto Salvador do mundo, dirigida a todas as pessoas de modo universal. E essa palavra em sua totalidade que elas terão de ouvir e à qual deverão tesponder: a palavra de Deus falada na conexão da história de Israel com a história dejesus Cristo - e vice-versa -, palavra da aliança de Deus com o ser humano que lhe virou as costas, mas que, graças à intervenção do próprio Deus em favor dele, chegou a voltar-lhe a face. A teologia não responderia à palavra de Deus em sua totalidade e, por conseguinte, deixaria de perceber a sua verdade, se quisesse restringir-se a interpretá-la dentro do antagonismo enlie a fidelidade de Deus e a infidelidade do ser humano, antagonismo que sei ia considerado típico para uma história de Israel como fenômeno em si e pai a si. Fato é que não há história de Israel em si e para si. Só há a história que, a partir de sua origem na vontade benigna de Deus, superando a Israel, "o que luta contra Deus”, vai ao encontro de seu alvo em Jesus Cristo, no qual tevcla o parceiro humano fiel ao parceiro divino da aliança. E assim lambem não há dentro daquela história nenhuma mensagem que, sendo palavi a do parceiro divino que nela está a agir, não a transcendesse, que não
que, de forma latente, não a encerrasse em si e que, por conseguinte, em si não fosse evangelho. Mas a teologia também deixaria de responder à totali dade da palavra de Deus, falhando inteiramente em descobrir a sua verdade, se, inclinada ao lado oposto, em abstração indevida, quisesse limitar-se a ouvir e interpretar a palavra encarnada como tal, fitando exclusivamente a história de Jesus Cristo como evento da reconciliação do mundo com Deus. Tudo o que se deu nesta história (e, se a teologia quiser ouvir e interpretar o que foi dito por Deus, deveria ficar aberta para este fato) foi a vontade do Deus uno e fiel, engajado na reconciliação do mesmo antigo Israel - do que luta com Deus, mas que agora se entrega, vencido. E não há como negar que foi pela carne judaica do mesmo que a palavra de Deus passou a ser proclamada a todo o mundo: “A salvação vem dos judeus”. A aliança de Deus com os seres humanos não consiste em nenhuma das partes isoladamente. Existe, isto sim, como história da ação de Deus na seqüência e, portanto, na unidade das duas partes, de Israel e de Jesus Cristò. E assim a palavra desta aliança é proclamada dentro dessa unidade: como a palavra do Deus uno, anunciada na história de Israel e na história de Jesus Cristo. Em sua seqüên cia e sua unidade, ela é o logos que a teologia deverá ouvir e do qual, por sua parte, deverá tratar. Fazendo isso, ela ocupará e manterá a posição que lhe compete, vindo a ser - não com exclusividade, mas em função de sua tarefa específica -, como diz uma estranha expressão do apóstolo Paulo: “culto lógico” (logike lalreia).
3ã Pre leção :
As Testemunhas No intuito de definirmos mais precisamente o lugar da teologia evan gélica, precisamos lembrar que existe um grupo de seres humanos definidos se bem que não delimitáveis pela estatística - aos quais compete uma posição única, particular e distinta quanto à sua relação com a palavra de Deus. Distinta, não devido à qualidade excepcional de sua mentalidade e de seu comportamento frente à palavra de Deus, também não no sentido de que sua posição lhes acarrete benefícios, honrarias e auréolas específicas - antes, distinta em virtude de sua situação histórica especial frente à palavra de Deus e em virtude do serviço específico para o qual ela os chamou e capacitou. Eles são as testemunhas da palavra, ou, mais precisamente, suas testemunhas primárias, por terem sido chamadas de forma imediata pela própria palavra a fim de serem seus ouvintes e por terem sido instaladas para confirmá-la entre as demais pessoas. Refiro-me às testemunhas bíblicas da palavra: às pessoas proféticas do Antigo e às pessoas apostólicas do Novo Testamento. Elas foram contemporâneos - testemunhas oculares e auriculares contemporâneas - da história na qual Deus estabeleceu sua aliança com os seres humanos, proclamando-lhes, desta forma, a sua palavra. Mas também houve outras testemunhas oculares e auriculares contemporâ neas dessa história. Os profetas e apóstolos, porém, foram designados, escolhidos e apartados - não por decisão própria, mas pela ação e palavra de Deus - para serem videntes dos feitos de Deus, realizados no tempo deles, e ouvintes da palavra de Deus, proclamada na época deles. Assim qualificados, eles foram convocados e autorizados a falar daquilo que tinham visto e ouvido. Eles falam como seres humanos que, neste sentido qualificado, estiveram presentes. A teologia evangélica lida, de forma concreta, com o topos de Deus, com o qual se vê confrontada através do testemunho deles. Ela nau dispõe de nenhuma manifestação imediata do mesmo; baseia-se em noticia mediata, mas transmitida com grande fidelidade. As pessoas proféticas do Antigo Testamento viam o agir paterno e régio de |,tvé, sua ação de legislador e juiz, na história de Israel. Viam seu amor, livre e edil i
Senhor” - a voz imperiosa do Deus da aliança, perseverante em sua fidelidade para com seu parceiro humano infiel. Mas foi a esta sua palavra que eles também foram levados a responder, seja como profetas no sentido mais restrito da palavra, seja como cronistas proféticos ou até mesmo como juristas, seja como poetas videntes, seja como mestres de sabedoria. Ne nhum deles deu a sua resposta sem ouvir os seus antecessores, sem se apropriar, de uma forma ou outra, das respostas dadas por estes e incorporálas às respostas próprias. Foi a palavra de Javé, proclamada em sua história com Israel, que eles levaram aos ouvidos de seu povo viva voce [“de viva voz”] - cada qual dentro do horizonte de seu tempo e dos problemas deste, de sua própria cultura e linguagem -, e foi essa palavra que eles fixaram ou mandaram fixar por escrito, para conhecimento das gerações futuras. O cânone do Antigo Testamento representa a coletânea posterior dos escritos dessa espécie que se impuseram na sinagoga, em virtude de seu conteúdo, como testemunhos autênticos, fidedignos e autorizados da palavra de Deus. A teologia evangélica ouve esses testemunhos - não só como se fossem uma espécie de prelúdio do Novo Testamento, mas com a máxima seriedade, pois: Novum Testamentum in Vetere latet, Vetus in Novo patet [“O Novo Testa mento está latente no Antigo, e o Antigo se torna patente no Novo”]. A teologia esteve ameaçada de sofrer de amolecimento dos ossos sempre que pôs esta verdade de lado, tentando ser teologia neotestamentária dentro de um espaço vazio. Deverá ser evidente, no entanto, que o foco de sua atenção é o alvo da história de Israel e da palavra proclamada nela - e justamente por isso é a história de Jesus Cristo no testemunho das pessoas apostólicas do Novo Testa- mento. O que elas viram, ouviram e apalparam era a consumação da aliança na existência e epifania do parceiro humano obediente a Deus: do Senhor que viveu, padeceu e morreu como servo no lugar dos desobedientes, que ao mesmo tempo descobriu e cobriu a iniqüidade deles, que tomou sobre si e removeu sua culpa, que os re-uniu e reconciliou com seu parceiro divino. Elas perceberam que aquele que luta contra Deus fora vencido e superado na morte de Cristo. Perceberam na vida de Cristo um novo ser humano, o novo lutador por Deus - e assim viram que o nome de Deus era santificado, que seu reino chegava, que sua vontade era feita na terra. Foi-lhes concedido neste evento, acontecido no espaço e no tempo, “revelado na carne”, ouvi rem a palavra de Deus em sua glória: como promissão, advertência e consola ção dadas a todos os seres humanos, como foram dadas a Israel. Elas foram enviadas ao mundo com o fim específico de testemunhar-lhe Jesus como essa palavra de Deus, em concordância com a missão do próprio Cristo. Não era sua impressão a respeito de Jesus, não era o juízo que faziam de sua pessoa, nem a fé que tinham nele, que representavam o tema e o poder de sua missão: era a palavra poderosa proclamada por Deus ao ressuscitar o Cristo dos mortos, i. é, ao dar à morte e à ressurreição de Jesus a dimensão da eternidade. Sendo assim iluminadas e instruídas de forma imediata, vindas do
nenhum interesse na história de Jesus na medida em que não fosse ação reconciliadora de Deus, não fosse palavra do poder de Deus a revelar esta sua ação divina. Ignoravam qualquer realidade que pudesse ter antecedido a esta história de salvação e revelação. Tal realidade não existia. Portanto, não podiam saber dela nem se interessar por ela. Essa história era real, e era real para elas exclusivamente como tal história de salvação e revelação; Jesus lhes era real exclusivamente como aquele que anunciavam (baseado em sua autoproclamação) como kyrios, Filho de Deus e Filho do homem. Assim, não sabiam e falavam nem de um “Jesus histórico” nem de um “Cristo da fé”: nem (abstraindo) de um Cristo no qual ainda não criam nem (abstraindo mais uma vez) de um Cristo em que haveriam de crer mais tarde. Falavam de modo concreto do Jesus Cristo uno com quem se tinham encontrado como aquele que ele era, como o que se lhes dera a conhecer, mesmo quando ainda não acreditavam nele. A descoberta de um Jesus Cristo “duplo” nos documentos do Novo Testamento - um, pré-pascoal, e outro, pós-pascoal - só é possível se anteri ormente tal Cristo tiver sido projetado para dentro dos textos - operação bastante dúbia justamente em termos “histórico-críticos”. A origem, o assunlo, o conteúdo do testemunho neotestamentário foram e continuam sendo a história da salvação e da revelação, tornada evento em Jesus Cristo, como ação e palavra de Deus. O tempo anterior a esta história salvífica, para as lestemunhas do Novo Testamento, só poderia ser relevante como início da mesma na história de Israel, testemunhada pelo Antigo Testamento. E por isso que se referem constantemente a ela. O cânone neotestamentário é a coletâ nea dos testemunhos da história de Jesus Cristo fixados e transmitidos por escrito que, ao contrário da multiforme literatura similar surgida nas comu nidades dos primeiros séculos, se lhes revelaram como documentos autêntii os do ver, ouvir e falar das testemunhas de sua ressurreição e que, primeira mente, foram reconhecidos por elas como testemunho determinante da palavra una de Deus - em conjunto com o cânone wíerotestamentário, que i mu estranha naturalidade assumiram da sinagoga. Tentaremos, a seguir, elucidar em breves traços a relação existente entre a teologia evangélica e o testemunho bíblico acerca da palavra de Deus. 1. Como acontece no profetismo e no apostolado, a teologia tem objetivo dar respostas humanas à palavra divina. Também as testemunhas do Anl igo e as do Novo Testamento foram pessoas que tinham ouvido a palavra i nmo tal, testemunhado-a humanamente, i. é, em linguagem humana, dentro de seu modo de pensar condicionado pelo tempo e pelo espaço em que \ ivuin - foram, portanto, teólogos (e teólogos muito distintos entre si, embota todos se orientassem pelo mesmo objetivo). Assim, também a teologia i v.mgélira não poderá ser nem mais nem menos: sua intenção será a das lt siemimhas bíblicas. No estudo das Escrituras ela precisa aprender (e não é i s-i,i ,i menor de suas tarefas) o método do raciocínio e do discurso humanos m ti ntados pela palavra de Deus.
2. Por outro lado, no entanto, a teologia não é nem profetismo nem apostolado. Por conseguinte, sua relação com a palavra de Deus não é comparável à das testemunhas bíblicas, por conhecer a palavra de Deus apenas de segunda mão, através da reflexão e do eco do testemunho bíblico. O seu lugar, portanto, não se encontra no mesmo plano - ou em plano semelhante - daquele das primeiras testemunhas. Ela não pode nem deve empreender a tarefa de dar uma resposta humana à palavra divina (que na prática sempre incluirá um perguntar acerca da mesma) em qualquer pretenso imediatismo. Fato é que ela não esteve presente no momento em que estar presente era de vital importância. 3. Menos ainda, o lugar da teologia se situará em qualquer nível acima do das testemunhas bíblicas. Poderá o teólogo dispor de melhores conheci mentos astronômicos, geográficos, zoológicos, psicológicos, fisiológicos e outros. Mas não deverá se comportar, perante as testemunhas bíblicas, como se soubesse mais acerca da palavra de Deus. Não será, portanto, nenhum vir spectabilis [“homem respeitável”] que tivesse o direito de conceder ou de tirar a palavra aos profetas e apóstolos, como se fossem seus colegas de faculdade. Menos ainda será um professor ginasial que tivesse a tarefa ou a autoridade de lhes olhar sobre o ombro, seja com ares de agrado ou de aborrecimento, de corrigir-lhes os cadernos, de conceder-lhes notas boas, médias ou baixas. Mesmo o menor, o mais esquisito, o mais ingênuo, o mais obscuro entre esses primeiros tem, em comparação com qualquer teólogo posterior - seja este o mais piedoso, o mais douto, o mais perspicaz -, a vantagem insuperá vel de ter pensado, falado e escrito em confronto direto com o assunto (que também é o assunto da teologia), dentro de seu horizonte específico e dentro de suas peculiaridades pessoais - situação em que jamais se encontra rá toda a comunidade posterior e, com ela, toda teologia posterior. 4. Assim, a teologia terá seu lugar definitivo abaixo dos escritos bíbli cos. Ela sabe e leva em conta que eles são escritos humanos e humanamente condicionados, mas escritos santos, i. é, escritos apartados, que merecem e pedem respeito e atenção extraordinários em razão de sua relação imediata com a obra e a palavra de Deus. A teologia terá de assimilar, no aprendizado com as pessoas proféticas e apostólicas (de forma decisiva, só com elas - e de maneira sempre nova), não estes ou aqueles truísmos, mas sim o único assunto que importa. Terá de permitir, de bom grado, que aquelas lhe olhem sobre os ombros e lhe corrijam os cadernos, por serem melhores peritos nesse único assunto que realmente importa. 5. O único assunto que importa é o conhecimento do Deus do evangelho tão estranhamente distinto dos deuses de todas as demais teologias. Trata-se do conhecimento jamais existente como algo natural, como bagagem pró pria, trazida por qualquer teólogo dentro de qualquer bornal intelectual ou espiritual: conhecimento do Deus do ser humano, do Imanuel, que, como tal, inclui o conhecimento do ser humano de Deus. A teologia recebe este seu
mesma. “Ela é que de mim dá testemunho.” A teologia se torna possível e atuante como teologia evangélica quando, no espelho e eco da palavra proféti co-apostólica, o Deus do evangelho encontra-se também com ela: quando lhe acontecer que sua ação e sua palavra - como foram vistas e ouvidas pelo javista e eloísta, por Isaías e Jeremias, por Mateus, Paulo e João, e certamente também pelo autor dos Atos dos Apóstolos - no testemunho deles se tornem cognoscíveis também para ela, transformando-se em ternário e problema também de seu raciocínio e discurso. Sem dúvida, há muitas outras coisas interessantes, belas, boas, verdadeiras que lhe poderão ser proporcionadas por todo tipo de outros produtos literários, antigos ou recentes. Com respei to ao tema e ao problema que a transformam em ciência teológica, ela, queira ou não queira, deverá ater-se a esta literatura - a Escritura Sagrada. 6. Ora, na Escritura Sagrada a teologia se vê confrontada com testemunho da obra e palavra de Deus que de modo algum é monótono, mas sobremaneira polifônico. Tudo, em seu âmbito, é diferenciado: não só as vozes do Antigo e do Novo Testamento como tais, mas igualmente as múltiplas vozes existentes dentro de cada um dos Testamentos. Compreenda mos: o motivo dessa diferenciação reside, de forma mais acidental, não primária e essencial, na multiplicidade das testemunhas bíblicas, nos condi cionamentos psicológicos, sociológicos e culturais tão diversos de suas preo cupações e de seus pontos de vista, de sua linguagem e de sua teologia específica. Reside, antes, na multiplicidade objetiva e no caráter contrastado existentes no conteúdo daquilo de que dão testemunho: no infinito movimen to dinâmico da história da aliança - presente até nos mínimos detalhes -, da iclação, do antagonismo e da comunhão entre Deus e o ser humano, que elas pioclamam. Na aprendizagem da Escritura, a teologia é confrontada com o Deus uno - mas que é uno na plenitude de sua existência, ação e revelação. Nessa aprendizagem não será possível que ela se torne monolítica, monomaníaca e monótona - e portanto infalivelmente tediosa -, assim como seiá incapaz de fixar ou de limitar sua atenção a este ou àquele detalhe. No apicndizado da Escritura, o compreender, o raciocinar e o falar da teologia assumem inevitavelmente caráter local: orientam-se pela seqüência viva dos diversos loci [“pontos” ou “tópicos”] da obra e da palavra divinas. Em sua apieudizagem, na qual jamais perderá de vista o seu objeto, ela é inevitaveliiirnlc posta em movimento: move-se do Antigo ao Novo Testamento e vicevns.i, do javista ao Escrito Sacerdotal, dos Salmos de Davi aos Provérbios de S.ilomão, do Evangelho segundo Jo ão aos sinóticos, da Epístola aos Gálatas à "< pistola de palha” de Tiago, etc. - e, mesmo dentro destes escritos, se moverá de uma a outra corrente de tradição neles existente ou presumida i nm maior ou menor razão. O labor da teologia, neste particular, poderá ser i omparado com uma incansável caminhada em redor de uma imensa monta nha, sempre a mesma, mas que em sua realidade se apresenta sob as formas mais diversas. A teologia evangélica é conhecimento do “Deus eternamente nm", de seu mistério uno na abundância sobejante de seus desígnios, cami nhos e juízos.
7. A teologia responde ao logos de Deus, tentando ouvi-lo e interpret em seu testemunho bíblico de maneira sempre nova. Pesquisa as Escrituras, auscultando os seus textos: quer saber se e em que medida dão testemunho dele. Não poderá se basear na premissa natural de que a Escritura, em toda a sua dimensão humana, seja espelho e eco da palavra de Deus, já que o ser humano não sabe disso por natureza. Essa verdade precisa ser constantemen te vista e ouvida, precisa ser revelada de forma sempre renovada. A teologia enfrenta a Bíblia com a pergunta aberta e honesta referente a este assunto. Todas as demais perguntas, ela só as levanta na medida em que as enquadra e subordina a esta pergunta mestra, apenas como ajuda técnica para a resposta a ser encontrada para esta pergunta. Freqüentemente se afirma hoje que a tarefa exegético-teológica consis te na tradução dos enunciados bíblicos da linguagem de eras passadas para a da era do ser humano moderno. Esta teoria faz crer que o conteúdo, sentido e propósito das declarações da Bíblia sejam de fácil averiguação, como se fosse possível pressupô-las como conhecidas, como se se tratasse primordial mente de torná-las compreensíveis através do uso de uma chave lingüística qualquer (“Como vou explicá-lo a meu filho?”), a fim de expô-las à experiên cia do ser humano moderno. Na verdade, as coisas são bem diferentes: a mensagem bíblica como tal, i. é, a palavra de Deus testemunhada pela Bíblia, não se acha “à disposição” em nenhum capítulo ou, quiçá, versículo de qualquer um daqueles escritos, de modo que pudesse ser confortavelmente pressuposta. Acontece que é preciso ir à procura dela - mesmo tendo em vista sua mais profunda simplicidade -, é preciso perguntar por ela, com todos os meios disponíveis da crítica e análise filológicas e históricas. E preciso ponderar o relacionamento patente e latente dos diversos textos e é preciso fazer uso de todo o potencial de fantasia divinatória - o qual esperamos que exista! Esta busca - e só ela - corresponde e faz ju s à intenção dos autores bíblicos e, em conseqüência, aos seus escritos. E não corresponderá ela, ao mesmo tempo, também ao ser humano moderno, o qual, caso realmente se interessar pela Bíblia, decerto não perguntará pela tradução da mesma para seu próprio linguajar deturpado, mas quererá participar do esforço de aproximar-se do conteúdo real da Escritura? Este esforço, a teologia o está devendo tanto ao ser humano moderno quanto à própria Bíblia. “O que está escrito” - a saber, nos textos deste livro - é o testemunho da palavra de Deus, é a palavra de Deus contida neste testemunho. O fato de esta palavra “estar escrita” e o modo como o está - isto quer ser descoberto, interpretado e percebido seguidamente, quer ser investigado, o que não será possível sem trabalhoso empenho. Como objetos desta pesqui sa a teologia se depara com as testemunhas bíblicas, com a Escritura Sagrada.
4â P releção :
A Comunidade O lugar da teologia frente à palavra de Deus e às testemunhas da mesma não se encontra cm qualquer parte no espaço vazio, mas, bem concretamente, na comunidade. Por razões teológicas, será de bom alvitre, se não quisermos evitar por completo o termo “Igreja”, obscuro e prejudicado, evitá-lo na medida do possível, interpretá-lo, em todo o caso, de forma imediata e conseqüente através do termo “comunidade”. A grandeza que ocasionalmente poderemos chamar de “Igreja” é, como Lutero costumava dizer, a cristandade, a comunidade reunida, fundamentada e estruturada pela palavra de Deus, é a comunhão dos santos, i. é, das pessoas que, por intermédio do testemunho original dos profetas e apóstolos, foram alcançadas, atingidas pela palavra - de tal forma que já não conseguiram se eximir à sua mensagem e ao seu chamado, mas tornaram-se capacitadas e prontas a recebê-la, a pôr à disposição da palavra de Deus sua vida, seu raciocínio, seu'discurso, como testemunhas de segunda ordem. A própria palavra é que clama para ser crida, i. é, clama para que a ouçamos conhecen do, confiando, obedecendo. Isso, porém, significa automaticamente, já que a fé não é um fim em si mesma: a palavra clama, e o conjunto de suas testemunhas de primeira ordem clama para que ela seja transmitida ao mundo, ao qual, afinal, está endereçada. O povo chamado e despertado para lé - e, portanto, concomitantemente, qual testemunhas de segunda ordem, so em favor de todos os prejudicados, fracos, necessitados que exisii ui nu mundo. Por fim, ela fala simplesmente pelo fato de orar em favor do I . Tudo isso acontece por ela ser chamada para isso pela palavra de Iii us, j.i que, crendo, não pode deixar de realizá-lo. Na verdade, ela também l il'». e ii.io por último, em palavras formuladas, em conjuntos de sentenças |ii liis quais tenta tornar audível a sua fé, em conformidade com a palavra mu Id.i A obra da comunidade também se manifesta por sua palavra falada e .1
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escrita: na pregação, na doutrina, no diálogo pastoral, que são manifestações vitais a ela recomendadas. E é neste ponto que inicia na comunidade o serviço específico, a função específica da teologia. Entre a fé e o testemunho da comunidade se levanta o problema da compreensão autêntica da palavra na qual sua fé se baseia, o problema do raciocínio autêntico e da maneira autêntica de dar expressão a essa palavra. “Autêntico” não significará: piedoso, edificante, entusiasmado ou gerando entusiasmo; igualmente não será: cativante em relação à compreensão, ao modo de raciocinar e de falar do mundo que a rodeia. Estes adjetivos certamente enfeitarão o testemunho da comunidade, mas não serão decisi vos para a sua verdadeira finalidade. O que está em jogo é a pergunta pela verdade. Não esqueçamos: a pergunta pela verdade não se coloca à comunida de a partir de fora, em nome e por autoridade de qualquer norma geral ou considerada de validade geral (é o que a comunidade se deixou sugerir amplamente nos tempos modernos). Ela lhe é colocada a partir de dentro, ou melhor, a partir de cima, da palavra de Deus na qual ela própria e sua fé se fundamentam. A pergunta não é: “Será verdade que há um Deus? que sua aliança com os seres humanos não deixa dúvidas? que Israel de fato é o povo eleito? que Jesus Cristo, morto pelos nossos pecados e ressuscitado para nossa justificação, realmente é o Senhor?” Assim perguntam os néscios em seu coração: os néscios - vamos admiti-lo - entre os quais nós mesmos nos achamos constantemente incluídos. A pergunta pela verdade é: se a comuni dade compreende corretamente a palavra proclamada em e com todo esse evento como sendo a verdade, se a compreende em sua pureza, na sincerida de que lhe é adequada, se reflete profundamente sobre ela e a expressa em termos claros, portanto se é capaz de dar o seu testemunho “de segunda ordem” com responsabilidade e de boa consciência? Jamais uma resposta positiva a tal pergunta pela verdade que se lhe coloca - da forma radical que esta assume só no meio do povo de Deus - poderá ser coisa natural. Mesmo a mais válida manifestação verbal da fé mais viva não passa de obra humana. E isto significa que a comunidade, ao proclamar a palavra de Deus, ao interpretar o testemunho bíblico e mesmo ao viver sua própria fé, poderá errar o caminho, passando a ser embrulhada por sua compreensão “errada pela metade” - ou mais do que pela metade -, por um raciocínio fantástico ou tortuoso, por uma linguagem infantil ou caracterizada por exageros, de modo que, em vez de servir à causa de Deus no mundo, chega a prejudicá-la. Será tarefa da comunidade orar, a cada dia, para que tal não aconteça; mas ela também deverá fazer o que lhe compete em labor sério. Este é o labor teológico.
Não há alternativa: esse labor em si, por princípio, representa uma tarefa necessária, dada à comunidade como tal e à cristandade como um todo. Falará ela a verdade? Esta é a pergunta que a rigor é dirigida a ela em todos os sentidos e a rigor a todos os seus membros. Ela não se refere, pois, só às suas manifestações verbais em sentido mais restrito, mas também à sua existência - igualmente falante - dentro do mundo que a rodeia, à sua posição frente aos problemas políticos, sociais e culturais, à sua própria ordem interna, “jurídica”, bem como à sua ação muda na diaconia (que em
verdade não é tão muda assim!). Refere-se a qualquer cristão na medida em que sua vida também é um testemunho, seja consciente, seja inconsciente. Na medida em que cada cristão é responsável frente à pergunta pela verdade, ele é chamado a ser teólogo. E quanto mais são chamados os que na comunidade receberam um encargo especial, cujo serviço inclui, de modo destacado, o testemunho da palavra em sentido restrito! E sempre um fenômeno suspeito quando líderes eclesiásticos (providos ou não da cruz episcopal) ou certos evangelistas ou pregadores fogosos, ou pessoas bem intencionadas que batalham por este ou aquele objetivo cristão, afirmam sem escrúpulos e com certa dose de menosprezo que sua causa não é a teologia: “Eu não sou teólogo. Sou administrador!” E igualmente grave é o fato de que não poucos pastores, após terminarem os seus estudos e serem totalmente absorvidos pela rotina do serviço prático, parecem considerar a teologia como um labor por eles já realizado e que pode ser abandonado assim como a borboleta abandona seu estado larval. Este não poderá ser nosso caminho. O testemunho cristão que não ressurgir diariamente do fogo da pergunta pela verdade, em nenhum caso, em nenhum tempo, na boca de nenhuma pessoa poderá ser um testemunho fidedigno e vivo, porque este deverá ser substancial e, portanto, responsável. A teologia não é uma empre sa que qualquer pessoa que participe do ministerium Verbi Divini [“ministério
historicamente interessantes, se não quisesse ser teologia para a comunidade no sentido indicado, comparável ao volante (regulador, a peça “inquieta”) do relógio, se não quisesse lembrá-la, e aos seus membros especialmente res ponsáveis, da seriedade de sua situação e de sua tarefa, para ajudar-lhe, assim, a encontrar liberdade e alegria em seu serviço. Se, porém, ela quiser servir à comunidade de hoje, ao seu testemunho da palavra de Deus e à sua confissão de fé, deverá, como a própria comuni dade, tomar como ponto de partida a comunidade de ontem e a de anteontem, da qual a comunidade de hoje se originou; deverá partir, portanto, igual mente da tradição antiga e recente que, em primeiro plano, define a forma atual de seu testemunho. Assim ela pesquisa e ensina no terreno que lhe é dado previamente, cumprindo a tarefa que neste terreno se lhe coloca. Não faz de conta que a história da Igreja comece só com o dia de hoje - em qualquer parte acima do terreno da tradição. Acontece, porém, que sua tarefa específica, precisamente em vista da tradição, é uma tarefa crítica. Sua função é expor a pregação da comunidade, caracterizada pela tradição, ao fogo da pergunta pela verdade. Deverá ocupar-se com o testemunho da comu nidade para examiná-lo e refletir sobre ele a partir de seu fundamento, objeto e conteúdo, isto é, da palavra de Deus testemunhada na Escritura. Tem por tarefa viver e defender a fé da comunidade em seu caráter de fides quaerens intellectum [“fé em busca de entendimento”], que a distingue de mera concordância cega. Certamente, neste seu labor partirá do pré-concei to de que a comunidade ontem e anteontem seguiu pelo caminho certo ou, ao menos, não seguiu por caminho totalmente errado. Olhará, assim, por princípio, a tradição que define a comunidade de hoje com confiança, e não com desconfiança por princípio. E certamente não haverá de impor de modo ditatorial à comunidade as perguntas e afirmações que tem a apresen tar em relação à tradição determinante; antes, as exporá na forma de ponderados conselhos. Mas não deverá se deixar impedir por autoridade eclesiástica alguma, nem por vozes quiçá assustadas que possam partir dos demais membros da igreja, de realizar a sua tarefa crítica de forma honesta, de expor abertamente as dúvidas ou eventuais propostas corretivas surgidas em relação ao discurso tradicional da comunidade. Ela afirma, junto com a comunidade de hoje e com os pais da mesma: Credo [“creio”]. Afirma, porém - e a comunidade, para seu próprio benefício, deverá conceder-lhe espaço para isso: Credo, ut intelligam [“creio a fim de entender”]. Isto se torna relevante em três pontos: 1. Em nossa última preleção sobre as testemunhas diretas (e, por conseguinte, determinantes para a comunidade e seu serviço) da palavra de Deus, partimos da premissa tácita de que tanto a comunidade quanto a teologia sabem quem são aquelas testemunhas e quais os escritos que ela deve ler e interpretar como escritura “sagrada”, que deve reconhecer e respeitar como sua própria norma. Sendo a teologia um serviço prestado dentro da comunidade e a favor desta e sendo, portanto, também proveniente da tradição da comunidade, ela realmente o sabe. Nesta questão ela se atém â confissão da Igreja que talvez seja a mais significativa e relevante de todas, a
saber, à escolha (por fim unânime) desses escritos por parte da comunidade dos primeiros séculos, desses escritos que se lhe revelaram como testemu nhos proféticos e apostólicos autênticos. E esta qualificação dos escritos que os pais daquela época, crendo na palavra de Deus, cujo reflexo e eco percebiam justamente nesses escritos, reconheceram e confessaram. E esta sua percepção e confissão que a comunidade de todos os séculos seguintes também passou a integrar e a seguir, e com as quais, de modo geral, fez experiências positivas. E é justamente esse cânone da tradição que representa a hipótese de trabalho que a teologia de início simplesmente ousa assumir sobretudo porque, sendo serviço realizado dentro da comunidade e a favor da mesma, ela não pode se recusar a associar-se àquele ato de fé. Mas o que vale agora é: “Credo, ut intelligam” . A teologia, no exercício de seu serviço específico, quer agora reconhecer e compreender justamente em que senti do a coletânea de escritos, reconhecida naquele século e nos séculos seguinles como cânone, realmente é cânone de escritos sagrados. Mas qual seria a alternativa para decidirmos acerca da correção da decisão tomada pela tradição? Resta-nos outro caminho a não ser o de tomarmos conhecimento do conteúdo daqueles escritos, de aplicarmos aquela hipótese de trabalho, de ijuestionarmos os textos do Antigo e do Novo Testamento perguntando se e cm que sentido neles realmente se encontra testemunho autêntico da pala vra de Deus? Resta-nos outro caminho a não ser o de pesquisarmos esses textos guiados por esta pergunta e de nos movimentarmos dentro do círculo hermenêutico imprescindível para sua compreensão? Não em atitude de .inlecipação, e sim de espera do evento: com vistas ao evento no qual ela espera que a autoridade desses textos venha a falar por si mesma, a teologia ve, compreende, reconhece - certamente sempre só a passos lentos, de lormas diversas, freqüentemente tateando bastante no escuro, mas também de tempos em tempos in parte pro toto [“numa parte que representa o todo”] i um clareza - que não vale a pena perguntar pelo testemunho autêntico da palavra de Deus em nenhum outro lugar a não ser no cânone da tradição, mas que aqui deve fazê-lo com toda a seriedade e honestidade. 2. O raciocínio e o testemunho da comunidade são condicionados p uma história complexa e por vezes perturbadora. Nem sempre a sua atenção a vn/ do Antigo e do Novo Testamento - e, por conseguinte, à palavra de I teus testemunhada pela mesma - foi prestada em níveis iguais de abertura e de piceisão. Nem sempre ela resistiu à tentação de ouvir também (e muitas vr/es de ouvir quase com exclusividade) inúmeras vozes estranhas. Os di Humentos de sua defesa frente a esta tentação, e simultaneamente de sua Mill.i às próprias origens, são os dogmas, os símbolos, isto é, suas confissões de !e, loi muladas em contraposição à multiplicidade de descrenças, supersti(, 's e ( tenças falsas. A teologia não seria serviço prestado à comunidade e a hiMM da mesma caso não levasse a sério a tradição da comunidade, que se o vela nesses documentos de sua luta, caso, empenhada hoje em bater-se pela vi idade, deixasse de reparar, com respeito e vontade de aprender, a maneira |n la qual os pais, em tempos de obscuridade do testemunho cristão, magno 11 1
correta e outra como errada e a ser colocada sob anátema. Neste particular, ela terá suficientes oportunidades de ficar admirada da sabedoria e da firmeza das decisões tomadas pelos pais a seu tempo, mas relevantes para todos os tempos. Mesmo isto, porém, não é nada “natural” e não pode ser pressuposto sem mais nem menos. “Credo”, sim! Mas: “Credo, ut inlelligam". A teologia não pode nem deve se apropriar de nenhum dogma, nenhuma sentença confessional do passado da Igreja sem o examinar, sem o ter medido ab ovo, pela medida da Sagrada Escritura e, assim, pela palavra de Deus. E ela, de forma nenhuma, poderá ter por objetivo apropriar-se de quaisquer sistemas de símbolos a serem defendidos sob quaisquer circuns tâncias - talvez por serem tão antigos, disseminados e famosos. Não poderá, portanto, de forma nenhuma, visar a glória de uma ortodoxia apegada à tradição, caso queira perguntar seriamente pela verdade: não há heresia pior do que tal ortodoxia. A teologia conhece e pratica apenas uma única lealda de. Essa lealdade única, todavia, baseada no intellectus fidei [“entendimento da fé”] também poderá tornar-se atuante, em larga escala, como lealdade às confissões da Igreja antiga e da Reforma! 3. Uma breve palavra, afinal, referente ao fato de que a tradição condiciona a comunidade inclui também a história da própria teologia. Tam bém neste particular, a premissa pode e deve ser a communio sanctorum [“comunhão dos santos”]: uma hipótese que decerto não será sempre fácil de verificar, justamente neste campo. Mas é preciso ousarmos esta hipótese. Isto se aplica em especial à teologia dominante, seja ontem, seja há 50 ou há 100 anos atrás. Por via de regra, a comunidade costuma viver fundamentalmente daquilo que, em correspondência ao conhecimento cristão de ontem, lhe foi dito ontem. Espera-se que a teologia, entrementes, tenha progredido em seu caminho, e tudo que ela julga conhecer, tudo que pensa e proclama hoje só raras vezes coincidirá com aquilo que os pais (e em especial os da geração anterior) pensaram e ensinaram; é muito mais provável, até, que haja uma discrepância acentuada. Sendo a teologia uma ciência viva, este fato não representa nada de estranho. Ainda assim - já que a comunidade, feliz ou infelizmente, e sobretudo já que ela própria provém daquela teologia de ontem -, a teologia de hoje fará bem em manter contato com a de ontem e de ouvir - “credo, ut intelligam” - justamente os pais de ontem com atenção bem especial, em interpretá-los in optimam partem [“da melhor forma possí vel”], em não se desinteressar dos seus problemas específicos, mas em prosseguir no seu encalço, em retomar suas perguntas específicas e considerá-las em seu raciocínio, e só então reassumi-las de maneira nova e, eventualmente, corrigi-las. Caso contrário poderia acontecer que amanhã os filhos de hoje se evidenciem como os redescobridores entusiasmados - e quiçá vingadores - dos avós e que a obra talvez só aparentemente consumada da eliminação dos seus erros e de suas fraquezas deva ser começada mais uma vez a partir do zero. Guarda-nos disto, Deus e Senhor!
5- Preleção:
O Espírito Não há maneira de dissimular: foram sentenças muito incomuns que ousamos formular em nossas três últimas preleções, no intuito de definirmos o lugar da teologia. São sentenças em si razoavelmente claras e compreensí veis, interdependentes e colocadas de forma a se confirmarem mutuamente. Mas, tanto em seu todo quanto isoladamente, é evidente que são sentenças sem premissa: não podem ser derivadas de nenhum ponto situado fora da esfera de realidade e de verdade circunscrita por elas próprias - sem pressuposições radicadas na ciência geral, voltada para a natureza e o ser limnano, para o espírito e a história do mesmo, também sem o pano de fundo de quaisquer colocações filosóficas preliminares: cada uma delas e, portanto, todas em seu conjunto “sem pai, sem mãe, sem genealogia”, como 0 Melquisedeque da Epístola aos Hebreus. Ao ousarmos, apesar de tudo, loi mular essas sentenças, a que poder demos espaço, a que poder que está oculto nelas e as fundamenta e ilumina apenas a partir de dentro? Em outros In mos: qual a razão que leva a teologia a situar-se e apoiar-se em tal lugar, que, visto de fora, parece pairar no espaço? Recapitulemos, de forma breve, para nos inteirarmos da sua situação: nu nossa segunda preleção (“A Palavra”) ousamos formular a tese de que lei ia sido a história de Imanuel iniciada na história de Israel e consumada na história de Jesus Cristo que foi e continua sendo a palavra de Deus proclama da a todas as pessoas de todos os tempos e lugares. Que história - que palavras! Em que poder sem manifestam tal palavra e tal revelação? - Em missa terceira preleção (“As Testemunhas”) ousamos formular a tese de que 1slsliiia um grupo definido de pessoas, os profetas e apóstolos da Bíblia, que nu\ uam a palavra dessa história de forma imediata e, assim, foram chamadiis para serem testemunhas autênticas e autorizadas da mesma (igualmente In nir a Iodas as pessoas de todos os tempos e lugares). Seres humanos como Indus us demais - mas distinguidos para tal percepção, para tal proclamai.iiul IViguntamos: em virtude de que poder? Em nossa quarta preleção (“A I uiimnidade”) ousamos formular a tese de que no poder da palavra procla mada as primeiras testemunhas, da palavra colocada em suas bocas, se teria Millpnado um povo inteiro de pessoas: como testemunhas de segunda linha, i i i i i I mu elas, a comunidade foi destinada e capacitada para proclamar a obra i a palavia de Deus no mundo. Um povo assim qualificado! Em que poder di *i a existência e ação? - Notamos: tudo isso são frases usadas para i In iiien lever o lugar da teologia evangélica, frases que evidentemente são, i fnt mesmas, todas de conteúdo teológico e por isso só podem ser garantidas 11
Então, que é teologia? De acordo com os enunciados pelos quais até aqui descrevemos seu lugar, ela só pode ser definida justamente de maneira teológica: é ciência à luz do conhecimento daquela palavra de Deus falada em sua obra, é ciência na aprendizagem da Escritura Sagrada, a qual testifica aquela palavra de Deus, é ciência que se empenha pela busca da verdade, busca esta à qual a comunidade, convocada por aquela palavra de Deus, não se poderá subtrair. É só desta maneira, existindo sem quaisquer outras premissas, que ela desempenha sua função de lógica humana acerca do logos divino. Só desta maneira - ao ser vista de fora, realmente a pairar no espaço - ela tem fundamento, justificação e finalidade. O poder que lhe permeia a existência é o poder oculto naquelas teses ou frases. Não afirmamos, em absoluto, que se trate do poder pressuposto nessas nossas teses acerca do lugar da teologia, pressuposto pela própria teologia como mais um teologúmeno. Seria uma traição, um erro total, se usássemos tal formulação. A teologia nada tem a pressupor que lhe permita fundamen tar, justificar ou orientar as suas teses, nem dirigindo-se “para fora” nem partindo “de dentro”. Se quisesse basear suas teses numa pressuposição - e que fosse pela introdução de um deus ex machina em forma de mais um teologúmeno -, tal atitude significaria que a teologia quereria assegurar as suas teses, e com elas a si mesma e ao seu labor, que julgaria ser capaz e ser obrigada a procurar tal “segurança”. Mas com isso passaria a vender seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas. Ela só poderá fazer o seu trabalho, mas não poderá querer assegurá-lo em nenhum sentido. Só poderá cumprir a sua tarefa se desistir de todas as premissas destinadas a fornecer segurança externa ou, quiçá, interna. E evidente que o ser humano julga dispor daquilo que se acha em condições de pressupor por decisão própria. Se, contudo, ela pressupusesse o poder que sustenta aquelas teses e a si própria (à maneira como a matemática pressupõe os axiomas em que se fundamen tam seus teoremas), ela faria crer que, por sua parte, se pudesse apoderar daquele poder, que fosse capaz de dispor dele para segurança própria ou, ao menos, de usá-lo como argumento. Mas um poder do qual ela se apoderasse não seria um poder capaz de sustentar nem a teologia nem as suas teses: seria algo semelhante à cabeleira do barão de Münchhausen, agarrado à qual o famoso mentiroso se puxava para fora do brejo no qual se atolara. Ela passaria a perder, com toda a certeza, justamente o que procura (por real mente carecer do que procura), se tratasse de estabelecer tais pressuposições arbitrárias. E de plena consciência, pois, que falamos do poder que se acha oculto naquelas teses, oculto, intangível, indisponível não só aos “de fora”, mas também à comunidade e à teologia que está a serviço da mesma. Trata-se do poder presente e atuante no conteúdo das teses da teologia, na história da salvação e na revelação, no ouvir e no falar das testemunhas bíblicas, na existência e na ação da comunidade por eles convocada, poder que, ao ser testemunhado, está presente e atuante também no labor da comunidade mas poder que a transcende em todos os sentidos. E ele que tudo sustenla e tudo move: desde a história do Imanuel até as pequenas histórias relatadas
Ele impede e proíbe que, ao serem narradas essas pequenas histórias, sejam estabelecidas tais premissas tolas, em especial premissas que teriam a pró pria teologia por objeto! Ele torna supérfluas quaisquer pressuposições arbitrárias, por ser poder que cria, suplantando quaisquer outras seguranças. E um poder que cria segurança, sim; mas precisamente por ser poder criador, atuante de tal maneira que até o mais sublime mestre teológico não poderá fazer o seu jogo com ele, como se fosse a mais poderosa de uma série de peças de xadrês (quiçá a rainha), revestida de potencialidade conhecida e posta à sua disposição; não poderá lidar com esse poder como se soubesse de sua origem, seu alcance e seus limites. Ninguém, portanto, manuseia esse poder. Por isso ele não representa mais um teologúmeno do qual possamos fazer (ou deixar de fazer) uso, com o qual possamos lidar desta ou daquela forma, a nosso bel-prazer. Feliz o teólogo que, absorto em seu trabalho, ouvir a voz desse poder, que descobrir que suas teses são definidas, regidas e controladas por ele! Ele não saberá, porém, “de onde vem nem para onde vai”. Só poderá seguir a ação do poder, mas não querer precedê-la. Só poderá permitir que seu raciocínio e suas palavras sejam controladas por ele - não vice-versa! Tal é a soberania com a qual esse poder age no evento da história do Imanuel, nos profetas e apóstolos, na reunião, edificação e missão da comunidade. Tal é a soberania do poder latente em tais teses teológicas que circunscrevem e explicam isso tudo - teses como as que ousamos formular naquelas três primeiras preleções. Não admira que, vistas de fora, pareçam clamar por segurança, pareçam pairar no espaço. Vistas só de fora ? E só parecendo pairar? Aqui somos obrigados a prosseguir em nosso raciocínio, justamente se tivermos a intenção de cha mar esse poder soberano pelo nome. Esse “pairar no ar” será algo que só diz respeito às características externas da teologia, algo não essencial, quiçá até algo maligno do qual ela deveria ser libertada de vez? “Pairar no ar livre” será que isso não poderia significar: ar movimentado, fresco, saudável, em contraposição ao ar imóvel do quarto fechado, ar este que não mexe com ninguém, mas que não passa de ar viciado? E “pairar” no ar livre - não poderia isso significar: ser levado, movido, sustentado e impelido por esse ar movimentado sem que haja seguranças que nos travem o movimento? Será que deveremos desejar outra coisa? Ser sustentada, ser impulsionada por um ar que se move com poder e que move com poder, existir neste ar, de forma definitiva e decisiva, tendo-o por lugar original - isto tudo será próprio da teologia pelo simples fato de tal mover e tal ser movido em liberdade também representarem o “lugar” da comunidade que vive da palavra de Deus. E mais ainda, por serem o lugar das testemunhas que ouvem e transmitem a palavra de Deus de forma imediata, e, em nível máximo, por também serem o lugar onde a história do Imanuel como obra de Deus se transforma em palavra de Deus. Tudo isso acontece na esfera do ar que livremente se move e põe em movimento, do vento suave ou impetuoso, da spiratio e da inspiratio que, conforme a Bíblia, é o poder atuante de Deus, poder de revelar-se livremente aos seres humanos, penetrar em sua vida e,
Ruah, pneuma, é o nome bíblico desse poder de atuação soberana. E
ambos os termos significam: ar movimentado e ar que põe em movimento, sopro, vento, tempestade e, neste sentido (que no spirilus do latim e no “espírito” do português ainda transparece claramente; mas não em inglês, em que o termo ghost está em proximidade horripilante com “fantasma”): Espírito - cujo equivalente alemão, Geist, lamentavelmente não deixa transparecer o significado dinâmico do termo bíblico. Nós usamos o termo neste seu significado autêntico: “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade ” (2 Co 3.17) - aquela liberdade de Deus de revelar-se aos seres humanos, de penetrar na sua vida, de libertá-los para Si. O Senhor Deus, que é o Espírito, realiza isso. E evidente que há outros espíritos: espíritos criados por Deus, como o espírito natural ao ser humano, mas também espíritos demoníacos, errantes e desnorteadores, espíritos da nulidade e do vazio, que não têm outra finalidade do que a de serem expulsos. Todos eles não são aquele poder soberano. Acerca de nenhum deles, nem mesmo dos melhores, poder-se-á dizer que, onde estão, aí há aquela liberdade. Todos eles devem ser examinados: com referência à direção do vento, à sua procedência de cima ou de baixo; antes de mais nada, porém, devem ser constantemente distinguidos do Espírito que, atuando em liberdade divina, gera a liberdade humana. Ele é definido pelo Símbolo Niceno como “Santo, Senhor e viviíicador”, e mais: “o qual p rocede d o Pai e do Filho; que jun to com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”. Isto quer dizer: ele mesmo é Deus - o mesmo Deus uno que é também o Pai e o Filho, que age como Criador, mas também com o Reconciliador, como Sen hor da aliança, mas que agora, como este Deus, no poder iluminador de sua ação não só está entre os seres humanos, mas habita, habitou e habitará neles - o mesmo Espírito como aquele ar movente e aquela atmosfera movida em que os seres humanos podem (quanto ao mais, totalmente isentos de premissas) viver, pensar e falar como seres que são conhecidos por ele e o conhecem, como seres por ele chamados e a ele obedientes, como filhos gerados por sua palavra. Assim, de acordo com o segundo relato bíblico da criação, Deus insuflou ao ser humano “o fôlego de vida”, isto é, o espírito humano. Assim, para citarmos mais uma vez o C redo Niceno, “ele falou pelos pro fetas” . Desta forma, Jo ão Batista o viu descender no Jo rd ão sobre aquele que, neste lugar, solidário com todos os pecadores, tomou sobre si o batismo do arrependimento. Assim ele foi - conceptus de Spiritu Saneio [“concebido a partir do Espírito Santo”] - a origem da existência desse seu Filho no mundo dos seres humanos, assim foi a origem do apostolado que prega aquele um e, assim, foi origem também de sua comunidade. Como relatam os Atos dos Apóstolos, “de repente veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assen tados”, e a conscqüência foi que os discípulos foram capacitados a falar sem mediação e de modo compreensível a todos os estrangeiros, vindos de um sem-número de pa íses ,falar am dos grandes feitos de Deus, dando a impressão de estarem embriagados - e assim, em conse qüência desse spirare e inspirare, aconteceu que a palavra foi aceita por três mil pessoas. E foi então o Espírito - Deus o Espírito, o Senhor que é o Espírito -, seu irromper, seu impulsionar, seu testemunho daquilo “que há em Deus” e
“daquilo que nos foi dado por Deus”, seu poder que origina a confissão: Jesus é o Senhor! - que veio a ser o fator cuja existência e cuja ação tornaram possível e real - e continuam a fazê-lo até o dia de hoje - a existência da cristandade no mundo, mas também a de cada cristão individualmente como testemunha da palavra, testemunha que crê, ama e espera. Esse poder age com certeza e de modo irresistível. Querer resistir-lhe, onde ele se põe a agir, seria o único pecado imperdoável. E ele é o único a agir: “Quem não tem 0 Espírito de Cristo, não é dele”. E evidente que também a teologia evangélica, sendo ciência modesta, livre, crítica e alegre, só poderá ser possível e real dentro do campo de força do Espírito, só como teologia pneumática. Só poderá existir se tiver a coragem de confiar que o Espírito é a verdade, que ele levanta a pergunta pela verdade e simultaneamente a responde. Como é que a teologia se arroga a ser “teologia”, lógica humana do logos divino? Resposta: ela não se arroga coisa nenhuma. Mas poderá suceder-lhe que esse Espírito venha sobre ela e que ela não passe a Ibe resistir, mas que, por igual, não tente se apoderar dele, e sim que se alegre com ele, limitando-se a segui-lo. Uma teologia não-espiritual (venha ela a manifestar-se em púlpitos ou cátedras, em produções literárias ou em discussões entre teólogos velhos ou jovens) seria um dos fenômenos mais horríveis que pode existir nesta terra: compa1adas com tal teologia, as produções dos piores autores políticos, os piores lomances e filmes, e até a pior bagunça noturna dos garotos seriam fenôme nos menos graves. A teologia deixa de ser espiritual onde se deixa afastar do ai e movimentado do Espírito do Senhor, que é o único ambiente em que poderá vingar, e se deixa atrair e impelir para dentro de recintos em i ujo ar viciado está automática e radicalmente impedida de ser e de realizar 0 que poderia e deveria. Isto poderá suceder-lhe de duas maneiras: ela poderá ser feita (seja 1nino teologia primitiva ou altamente sofisticada, seja como teologia fora de moda ou como teologia que se identifica com as últimas novidades) de |oi ma mais ou menos zelosa, inteligente ou até piedosa e oportunarnente também ser lembrada do problema do Espírito Santo, mas não criar nem i oi agem nem confiança de entregar-se, sem receios nem ressalvas, à sua Iluminação, admoestação e consolação, negar-se a ser conduzida pelo Espíri to a toda a verdade, negar-se a, em sua pesquisa, seu raciocínio e seu ensino, ilat ao Espírito do Pai e do Filho (que também foi derramado sobre toda a i ai nc em seu favor) a honra que lhe cabe. Então, por conseguinte, ela passa ale a temê-lo! Então finge ignorá-lo; então comporta-se como sabe-tudo; t niao, confrontada com ele, imobiliza-se. Então fareja o perigo do “entusiasi,n," iao logo o Espírito tenta agir também em seu âmbito. Então ela passa a liiiai em torno de si mesma historizando, ou psicologizando, ou racionaliI , ou moralizando, ou romantizando, ou dogmatizando e dando asas à fmi.isia; e tudo isso considera seus “belos pastos verdejantes . Então aconleI, i|nr, com a sua maneira de levantar e de responder a pergunta pela 0 idade, ela não poderá servir nem ajudar à comunidade que, assim como 1la piopi ia, necessita desesperadamente do Espírito Santo. Pelo contrário: se ai Itai se em condição semelhante à daqueles discípulos de João Batista em m m i
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Éfeso, dos quais nos é dito que nem tinham conhecimento da existência do Espírito Santo, então não deixará de acontecer - conseqüência maligna inevitável - que ela abrirá suas portas a quaisquer espíritos estranhos, que perturbarão e destruirão a comunidade. Por certo, nem críticas, nem ironi as, nem acusações humanas lhe poderão prestar ajuda em tal situação: só o próprio Espírito é que poderá fazê-lo: ele, o Santo, o Senhor, o Criador da vida, que espera por ser recebido de novo tanto pela comunidade quanto pela teologia, por receber, através de uma reorientação da atividade da teologia, também da parte dela a adoração e o louvor que lhe cabem para então vivificar e fazer luzir também suas teses, que, por mais corretas que sejam, certamente são mortas quando não sustentadas pelo Espírito. Mas poderá também acontecer que a teologia saiba com demasiada segurança (e portanto absolutamente não saiba) do poder vital do Espírito, que é indispensável para a cristandade como um todo e para o cristão individualmente e, portanto, indispensável também para ela, já que parece ter-se esquecido de que esse vento sopra onde ele quer, que sua presença e sua ação representam a graça de Deus, do Deus sempre livre, sempre superior, que sempre se dá a si mesmo de forma imerecida e incalculável. Então tal teologia julgará poder lidar com ele como se o tivesse arrendado ou até dele se tivesse apoderado, como se fosse uma força da natureza, igual à água, ao fogo, à eletricidade, à energia atômica, etc., descoberta, dominada e ativada pelo ser humano. Assim como uma Igreja estulta pressupõe a presença e a ação do Espírito em sua própria existência, em seus ministérios, seus sacra mentos, suas ordenações, consagrações e absolvições, da mesma maneira uma teologia estulta o pressupõe como premissa conhecida e disponível de suas próprias teses. Mas um espírito pressuposto certamente não será o Espírito Santo, assim como uma teologia que o pressupõe será teologia nãoespiritual. O Espírito Santo é o poder vital que se compadece em liberdade tanto da comunidade quanto da teologia, a qual necessita e continua necessitando dele sob todas as circunstâncias. Também a tal teologia não-espiritual só o próprio Espírito poderá valer, conscientizando-a, de caso em caso, de sua mísera arbitrariedade, usada na colocação das próprias premissas, para então tornar-se presente e atuante aí - e justamente só aí - onde se geme, clama e ora por ele: Veni, Creator Spiritus! “Vem, ó vem, Espírito da vida!” Mesmo a melhor das teologias não poderá ser mais nem coisa melhor do que tal prece, transformada em labor vigoroso. Em última instância, só poderá ocupar o lugar de um daqueles filhos que não possuem pão nem peixe, mas que têm um Pai que possui tanto um quanto o outro e que lhos dará enquanto o solicitarem. A teologia evangélica é rica nesta sua pobreza total, firmemente sustentada e segurada nessa sua completa falta de pressuposições: rica, sustentada e segurada ao aceitar a promissão, agarrando-se a ela sem ceticismo, mas também sem arrogância, agarrando-se à promissão segundo a qual é o Espírito, e não a teologia, que “tudo escruta, até mesmo as profundezas de Deus”.
A Existência Teológica
6ã Pre leção:
Admiração É bem possível que em nossas preleções, que tiveram por alvo definir o lugar da teologia, esta ainda não tenha conseguido se revelar como um elemento da vida humana real, mas que, apesar de todas as advertências feitas, tenha produzido a impressão de ser um mero esquema, uma mera hipóstase: comparável, quiçá, a uma das virgens indizivelmente prudentes ou néscias, mas esculpidas em pedra, que se encontram às portas de muitas igrejas medievais. Esta impressão não deverá persistir. Acontece que a pró pria teologia evangélica de fato sempre é um evento histórico que acontece na realidade da carne e do sangue, na existência e na ação de um ser humano, do teólogo no sentido restrito e lato deste termo. E ao teólogo que neste ponto precisamos dar nossa atenção, i. é, à pergunta: que acontece quando a teologia, como se costuma dizer hoje, vem até uma pessoa em sua situação, quando a interpela e nela entra, quando nela toma forma concreta. Para dizê-lo fazendo uma leve reverência - isenta de qualquer compromisso - frente aos deuses da filosofia contemporânea: passamos a tratar dos “elementos existenciais” da teologia evangélica. Neste intuito procederemos de modo semelhante à nossa tentativa anterior de definir o lugar da teologia: penetraremos até o centro através de círculos concêntricos, designando o círculo externo com o termo “admiração”. Quem deixasse de admirar-se ao lidar com a teologia, independentemen te da maneira em que faz isto, ou quem, após algum tempo, perdesse sua admiração inicial, quem não chegasse a admirar-se deforma crescente, propor cional ao tempo que a ela dedicou - a tal pessoa se deveria aconselhar que refletisse, abandonando qualquer idéia preconcebida e tomando uma posi ção distanciada de seu objeto, sobre o que realmente acontece na teologia: possivelmente, o evento tornará a suceder-lhe e a admiração pela teologia surgirá dentro dela, para nunca mais a deixar, mas, pelo contrário, crescer cada vez mais também dentro dela. Caso a admiração, no entanto, realmente lhe permaneça - ou venha a tornar-se - totalmente estranha (o que é quase que inimaginável), então poderia ser indicado, tanto para o seu próprio bem quanto para o da teologia, que ela passasse a ocupar-se com outro assunto. Acontece que no início de toda percepção, pesquisa e reflexão teológicas e igualmente de qualquer pronunciamento teológico encontra-se uma admira- ção de todo específica - isto para que nasça e sempre renasça uma ciência modesta, livre, crítica e, por conseguinte, alegre. A falta dessa admiração transformaria todo o empreendimento - mesmo do melhor dos teólogos numa planta enferma na própria raiz -, ao passo que mesmo um teólogo fraco não estará perdido para seu serviço e sua tarefa se permanecer capaz
de admirar-se, se permanecer possível que a admiração venha sobre ele também, qual herói armado que sobressalta o adversário. De modo geral, a admiração se apodera de uma pessoa quando esta topa com um fenômeno espiritual ou natural com o qual até o momento não se tinha visto confrontada, que, assim, ao menos por ora, lhe parece inusitado, estranho, novo, que não consegue colocar dentro do horizonte de suas idéias referentes àquilo que será possível e por cuja origem e natureza por ora só poderá perguntar. Até aqui o termo se identifica com o thaumatzein socrá tico: uma atitude admirada, mas aberta e desejosa de aprender, que, de pleno direito, foi qualificada como raiz de toda ciência autêntica. No sentido em que nós empregamos o termo aqui, ele igualmente designa vontade de aprender, abertura admirada. Mas em nosso contexto a admiração vem a ser mais do que um pasmar e perguntar interinos em vista de um fenômeno apenas por ora ainda estranho, novo, inusitado, o qual, mais cedo ou mais tarde, pelo progresso da ciência, poderia transformar-se em fenômeno co nhecido, costumeiro, velho e rotineiro e voltaria a dispensar o ser humano de sua admiração, permitindo-lhe voltar-se a outros fenômenos inicialmente maravilhosos que, por sua vez, mais cedo ou mais tarde certamente acabari am perdendo a dimensão de maravilha. A admiração que se apodera da pessoa envolvida com a teologia é de natureza diferente. E verdade: também a teologia leva a pessoa à admiração e a obriga a aprender. Mas seria inconcebível imaginar que algum dia a pessoa pudesse deixar de aprender, que o inusitado viesse a ser-lhe rotina, que o novo se lhe tornasse antigo, que conseguisse domesticar a estranheza. Se o conseguisse, ela nem teria entra do ainda na teologia ou então já a teria abandonado. Jamais o ser humano é “demitido” da admiração que constitui a salutar raiz da teologia. Pois jamais se vê confrontado com o objeto da mesma como se fosse um utensílio doméstico. O confronto se dá sempre precisamente no limite de seu horizon te de idéias, independentemente da extensão do mesmo. Nesta questão, “progresso científico” só poderá ter o sentido de que o pasmar e perguntar frente ao assunto da teologia, que a admiração, portanto, longe de soltar a pessoa em qualquer tempo e circunstância, continua a crescer e tomar vulto. O ser humano, caso realmente a experimentar, por sua parte se torna um ser total e definitivamente admirado. O termo “admiração” é derivado de miraculum - milagre. E neste ponto não há outro recurso: quem se envolve com a teologia, se envolve com o milagre, desde o primeiro até o último passo da caminhada - com o evento da presença e do efeito daquilo que por princípio e definição não é coordenável. Teologia é necessariamente (se bem que não exclusivamente) lógica do milagre. Se quisesse envergonhar-se do fato de não conseguir encaixar em nenhum lugar seu objeto de estudo, se quisesse negar-se a fazer frente justamente aos problemas decorrentes de tal fato, ela teria que deixar de ser teologia. Será instrutivo recorrermos, neste contexto, em primeiro lugar às histórias de milagres, que desempenham um papel tão escandalosamentc importante no testemunho bíblico acerca da obra e da palavra de Deus.
“Milagres”, no sentido específico visado pela Bíblia, são - numa definição provisória e ainda pouco objetiva - eventos no espaço e no tempo que não têm lugar nem analogia dentro do nexo causal universalmente conhecido, o qual, conforme consenso geral, não permite exceção. Na verificação “históri ca” (para usar este termo em seu sentido moderno) dos milagres, aparente mente se trata - ao menos, se tal verificação não transgredir seus limites nem em sentido positivo nem negativo - da mera constatação e circunscri ção do fato comprovado de que em lugar historicamente conhecido eles são relatados como eventos dessa espécie não-coordenável. Ora, justamente narrativas de tais eventos são parte integrante do testemunho bíblico refe rente à história da aliança da graça. Não faríamos ju s a tal testemunho e a seu conteúdo se quiséssemos reduzir os respectivos relatos a eventos de natureza diferente, isto é, a eventos compreensíveis dentro daquele nexo causal uni versalmente conhecido e proclamado como sistema que não permite exceção (isto é, a eventos “naturalmente explicáveis”). Cometeríamos o mesmo erro se os quiséssemos ignorar como se não houvessem acontecido, por serem relatados como tais eventos ou se, pelo mesmo motivo, quiséssemos modifi car-lhes o sentido, entendendo-os como simbolizações de eventos meramen te espirituais, de certo modo como exuberância da assombrosa fé das testemunhas bíblicas. A teologia não se pode dar o luxo de nenhuma das três tentativas mencionadas. Não poderá permitir que seja desviada da busca pela obra e palavra de Deus refletidas no teor do testemunho bíblico para enveredar nò beco sem saída da pergunta pela possibilidade universalmente perceptível de tal testemunho - como se esta fora a verdade em cuja busca estivesse empenhada! Precisa lidar com a função necessária da qual não poderão ser despojadas as histórias de milagres, mesmo que - pensando e falando “historicamente” com os historiadores - venham a ser etiquetadas como sagas ou lendas, embora na oikonomia do testemunho bíblico devam ser pensadas também em categorias históricas. Justo por serem histórias essencialmente miraculosas e estranhas, elas têm em primeiro lugar, em termos formais, a função de serem uma espécie de sinal de alarme (por isso no Novo Testamento são chamados de “sinais”). Entretecidas na história do Imanuel em maior ou menor densidade, chamam a atenção do ouvinte ou do leitor para o fato de que se trata de eventos basicamente novos, brotados em meio àquilo que acontece dentro do nexo histórico, de eventos dentro do espaço e do tempo, mas não conformes a qualquer outro evento, não como qualquer prolongamento de quaisquer outros eventos. E assim, também para o fato de que a palavra que é falada e que fala nessa história é uma palavra por princípio nova, certamente percepIível no espaço e no tempo, mas só perceptível dentro dessa história, incompa rável a quaisquer outras palavras. E evidente: as histórias bíblicas de mila gres querem e podem causar admiração séria e relevante não por representaicm uma quebra das leis naturais universalmente conhecidas e aceitas, mas por serem sinais de um evento por princípio novo: de tal admiração ninguém que se envolver com a teologia poderá se eximir. Mas que vem a ser a dimensão nova, sinalizada pelas histórias de milagres? Afinal, a admiração como tal bem poderia ser algo semelhante ao
olhar embasbacado, falho de qualquer compreensão, frente ao portentum, ao stupendum como tal. Qual a direção apontada pelas ordens: “Levanta-te, toma o teu leito e anda!” - “Sai, espírito imundo!” - “Cala-te e silencia!” (ordem dada à tempestade) - “Dai-lhes vós mesmos de comer” (ordem dada em vista das cinco mil pessoas famintas no deserto) - “Lázaro, vem para fora!” e pelo anúncio: “Não está aqui. Ele ressurgiu!”? Naquilo que, de acordo com o testemunho bíblico, aconteceu depois de serem ditas essas palavras sempre se trata de mudanças isoladas e passageiras, mas radicalmente benéficas e até salvadoras, do curso ordinário da natureza e do mundo, curso que ameaça e oprime o ser humano. Trata-se sempre de promissões e sinais de uma natureza redimida, de uma ordenação de liberdade, de um mundo que permite vida sem sofrimento, sem lágrimas e sem clamor e no qual a morte, o último inimigo, não mais existirá. Essas pequenas luzes representam sempre o brilho projetado pela grande luz que vem, como esperança, ao encontro dos seres humanos do presente. Sempre se trata da ordem: “Levantai vossas cabeças, pois a vossa redenção está próxima.” Este refulgir da luz da esperança representa a novidade objetiva e, assim, o elemento verdadeiramente não-coordenável dos milagres bíblicos. Mas os milagres são apenas um elemento do testemunho bíblico da história do Imanuel, se bem que sejam um elemento indispensável e ineludível. Pois tal história nem de longe se esgota neles. Por intermédio deles, ela apenas se revela em sua dimensão de novidade e de conforto como proclamação de novo céu e nova terra: neste sentido aparecem nela os relatos de milagres. Estes não passam de sinais do novo que aí inicia, continua acontecendo e vai de encontro a seu alvo. Não são idênticos ao novo como tal. Este novo com o qual não poderá deixar de se admirar quem venha a envolver-se com a teologia, portanto, não é a água transformada em vinho no casamento de Caná, não é o jovem de Naim que foi devolvido à sua mãe, não é o alimento distribuído aos cinco mil no deserto, não é o Mar da Galiléia repentinamente acalmado, também não é a virgindade da mãe de Jesus e também não é o túmulo encontrado vazio no horto de José de Arimatéia; o novo não são os acontecimentos em si e como tais em que todas essas coisas ocorreram. Afinal, mesmo o ímpio seria capaz de admirar-se deles, olhando-os com estranheza. E não se pode excluir a possibilidade de que, mesmo na admiração suscitada por esses sinais em vista da perspectiva de uma natureza renovada e de um mundo melhor que neles se abre, a novidade verdadeira e decisiva, proclamada pelo testemunho bíblico, venha a ser “carnalmente” ignorada. A novidade verdadeira e decisiva vem a ser o novo ser humano que, conforme o testemunho bíblico, agiu naqueles feitos em meio às outras pessoas, como senhor, servo e fiador de todas elas, e neles anunciou a si mesmo e, com isso, a justiça e o juízo de Deus, e assim revelou a sua glória. Novo é ele mesmo como a grande luz da esperança que já veio e que ainda há de vir, a grande luz que reluziu provisoriamente naquelas pequenas luzes. Nova é a reconciliação do mundo com Deus, anunciada no Antigo e acontecida, conforme o Novo Testamento, naquele um ser humano novo e,
humanos. Novo é o amor, a graça soberana, a misericórdia insondável na qual Deus se compadeceu de Israel, aquele “lutador” revoltado contra Deus, e também de todo o gênero humano, rebelde e corrupto, dando execução a seu desígnio eterno - mas não no nível de uma idéia, quiçá compreensível e convincente, mas através de um feito realizado de forma concreta, no espaço e no tempo, aceitando a Israel e a todo o gênero humano, fazendo Seu Verbo tornar-se carne, carne miserável e pecaminosa como a nossa, a fim de superar, afastar e abolir o pecado que nos separa de Deus - pecado que é idêntico ao aguilhão da morte, ao “antigo” desta nossa antiga natureza e deste antigo inundo - justamente nele, em nosso lugar em em nosso favor. Novo é o nome de Deus santificado nesse ser humano novo, em sua obediên cia, seu serviço, sua vida e sua morte. Novo é seu reino, vindo, já estabeleci do e atuante nele; nova é sua vontade que nele já foi feita assim na terra como no céu. Novo é o caminho que nele foi aberto para todas as pessoas, o caminho que leva ao Pai e é transitável para todos os filhos do Pai no poder vital do Espírito Santo. Em resumo: nova é, conforme o testemunho bíblico, a história de Jesus Cristo que consuma a história de Israel. Ele, o Salvador, está presente! Portanto, verdadeira e decisivamenle é Ele que representa o mila gre (o milagre de todos os milagres!) com o qual se vê confrontado, inevita velmente, quem se envolve com a teologia - Ele é o infinitamente admirável que, ao ser conhecido e reconhecido pelo ser humano, necessariamente faz dele um ser admirado em sua mais radical profundidade, de maneira com pleta, uma vez para sempre. Ora, tal implica que ninguém poderá tornar-se e ser teólogo (e isto se aplica também ao teólogo de formação deficiente e ao teólogo amador) sem, lusl but not least [“por último, mas não com menos importância”], se admirar i ontinuamente da própria pessoa, sem se tornar mistério e enigma para si mesmo. Afinal, quem sou eu - mesmo que seja o melhor dos filhos de pais ideais, mesmo que talvez, como Timóteo, saiba da Sagrada Escritura desde os limiares da própria memória, mesmo que seja de inteligência extraordinái ia, tenha um coração bondoso e possua as melhores intenções imagináveis al mal, quem sou eu, que me atrevi, e ainda me atrevo, a voltar-me à teologia, mesmo de longe, a cooperar neste empreendimento, ao menos potencial mente, ou talvez de forma bem atuante, como modesto pesquisador, pensadoi, professor, a retomar a pergunta pela verdade a serviço da comunidade e nus lermos da mesma e a esforçar-me para encontrar uma resposta a ela? E Isto mesmo que me atrevo fazer ao envolver-me com a teologia, mesmo que o laça com o dedo mindinho, e muito mais se o fizer de forma mais ou menos enérgica ou até como profissão. E caso o fizer, terei me envolvido li lemediavelmente com a novidade por princípio testemunhada na Bíblia e, Imn lauto, com o milagre: envolvido não só com ojovem de Naim, o centurião de (lalarnaum e seus similares, não só com a passagem dos israelitas pelo Mai Vermelho, pelo deserto e pelo Jordão, e com o sol que a ordem de Josué li / pai ai em Gibeão. Envolvi-me com a realidade do próprio Deus, a qual é apenas sinalizada por todos os fenômenos enumerados: com a realidade do l»i ns de Abraão, Isaque e Jacó, do Pai que, através do Espírito Santo, se
pudesse viver como ser humano de Deus. Então passei a envolver-me com o milagre deste Deus, com todas as conseqüências que ele acarreta para o mundo, para todos os seres humanos e para cada um em particular. E em última análise com isso já passei a ser uma criatura admirada deste milagre de Deus, independentemente do que eu seja além disso. Agora, se sei o que isso significa para mim, se, p. ex., sou capaz e estou disposto a subordinar minha pobre pesquisa, meu raciocínio, meu discurso à lógica desse milagre (e não o contrário!) - isto é uma questão à parte. Certo é, porém, que me vejo confrontado com a realidade admirável do Deus vivo, mesmo na mais tímida e desajeitada tentativa de levar a sério aquilo com que me envolvi e de dedicar-me, portanto, ao labor teológico em qualquer nível e em qualquer medida - seja no campo da exegese, da história eclesiástica, da dogmática ou da ética. E com o milagre de Deus que me verei confrontado, de uma ou de outra forma. Poderei tentar retirar-me furtivamente dessa confrontação, mas jamais serei eximido dela. Sem dúvida: a teologia dá à pessoa que com ela se ocupa algo como um character indelebilis [“caráter indelével”]. Quem tiver olhos para ver haverá de reconhecer já de longe uma pessoa atingida pela teologia - e, com isso, pela palavra de Deus - e, por conseguinte, irremediavelmente admirada; reconhecê-la-á por sua seriedade e por seu senso de humor - autênticos ou inautênticos, reais ou só aparentes. Mas para o próprio teólogo a forma e a possibilidade de ele ser assim serão sempre ocultas, um enigma e mistério, profundamente admiráveis. Presumo que me conheça razoavelmente bem no que diz respeito a todas as minhas restantes opiniões e inclinações, a todas as minhas demais possibilidades reais, imaginárias ou desejadas. De nascença e por natureza, todos nós somos racionalistas, empíricos ou românticos (distinguindo-nos apenas quanto ao grau da respectiva mistura) que, como tais, não têm nenhum motivo para se admirarem de si mesmos. São aspectos comuns da vida humana. Torno-me e permaneço para mim mesmo um ser desconhecido, distinto, estranho (e isto acontece quando me envolvo com a teologia) ao receber a honra de poder e dever admirar-me face ao milagre de Deus. Como é que minha existência - dentro desta possibilidade e desta obrigação - poderia vir a ser para mim algo conhecido, natural, compreensível? Como é que eu, nessa qualidade, poderia tornar-me transparente para mim mes mo? Justamente à luz da admiração radical e fundamental na qual se pode torna-se e ser tudo isso, o evento que descrevemos - tornar-se e ser teólogo, em sentido restrito ou lato - representa algo que “não ocorre”, é uma concretização da graça. Quem recebe a graça não poderá se reconhecer a si mesmo como seu recebedor e, por conseguinte, não poderá usufruir ou até jactar-se de si mesmo como tal. Só poderá atuar como grato recebedor dela. Se houver quem considere e compreenda a si mesmo como uma pessoa assim agraciada, faria melhor em desistir da teologia e em dedicar-se a qualquer outra atividade na qual, caso o puder, poderá fechar os olhos perante o milagre de Deus e não precisará, caso o conseguir, admirar-se em relação a si mesmo. Mas quiçá nem encontre outra atividade na qual se possa ter como efetiva e definitivamente dispensado da teologia e, portanto, do milagre de Deus, da admiração com este e, assim, em relação a si mesmo.
7- P releção:
Abalo Admiração? Se usarmos este termo para circunscrever adequadamente 0 que faz o teólogo ser teólogo, será de imediato necessário aprofundá-lo e delimitá-lo de forma determinada. O termo “admiração” (Verwunderung), mesmo na interpretação ampla que lhe demos, poderia ser entendido erro neamente como simples admiração de um fato (Bewunderung). Certamente, mesmo tal admiração representa um fenômeno teológico relevante e talvez promissor. Assim, foi com admiração que J. G. Herder leu e interpretou a Bíblia como documento de poesia do Oriente antigo: após longos decênios de um iluminismo bastante árido, tal empreendimento veio a ser para muitos uma possibilidade extremamente estimulante, e até excitante. De pois, o jovem Schleiermacher tentou conclamar à admiração do fenômeno da religião “os cultos dentre os que a desprezavam”. Foi a admiração - em especial dos profetas e dos salmos, considerados pontos altos do mundo do Amigo Testamento - que um século mais tarde nos empolgou quando, ainda jovens, líamos as obras de B. Duhm e de H. Gunkel. A forma pela qual naqueles tempos Paul Wernle, seguindo os passos de T. Carlyle, soube expressar sua admiração pela pessoa humana de Jesus - e, com algumas icservas, também pelo apóstolo Paulo, pelos reformadores e por grande número de outras personalidades da história eclesiástica, de certa maneira (ongeniais a ele mesmo - fez dele um professor inesquecível para seus alunos. E também R. Otto soube ilustrar-nos o “sagrado” de forma impression.mle, qualificando-o de fascinosum. E de presumir-se que todos esses .mlores não tenham se limitado a uma mera admiração distanciada. Certamcnle não foi por acaso que o termo “vivência” (Erleben) - exaltado por W. 1lei mann e outros -, que já apontava para novas dimensões, estava na boca de lodos nós por volta do ano de 1910. Mas, seja como for: a teologia, entendida como empreendimento sério, n.io poderá se restringir a uma mera admiração de pessoas ou eventos. A admiração que em nossa preleção anterior qualificamos de inevitável no ilmhilo da teologia não poderá ser compreendida como uma modalidade de iii\ihe\i.\ |“discernimento”] intelectual cujo tema - indo além da linha menci:ud.i acima da teologia protestante mais recente - não seria apenas o mll.igie de personalidades religiosas, da vida e comportamento religiosos, m.is sim o próprio milagre de Deus. E verdade que, segundo Anselmo de I iiniii.il ia, existe também uma pulchritudo [“beleza”] da teologia, que não pude sei ignorada, porque e na medida em que existe uma beleza do piMpiío Deus. Mas a contemplação de Deus não poderá ser um olhar
desfrutador à distância, nem poderá a teologia resumir-se a contemplar e meditar, de forma cômoda, ou até interessada, ou mesmo fascinada, um objeto perante o qual a atitude do sujeito mais ou menos encantado também poderia ser, em última análise, uma atitude de indiferença, de ceticismo, ou talvez até de rejeição. Nem seria o milagre de Deus do qual temos falado caso ele permitisse ao sujeito guardar reserva em relação a ele. O milagre de Deus, ao gerar admiração no sentido indicado, ao transformar a pessoa que com ele se ocupa num sujeito admirado, leva este sujeito a ser uma pessoa abalada. E a esta qualificação adicional da existência teológica que temos de nos dedicar especificamente agora. O assunto ou objeto da ciência teológica não permite à pessoa com ele envolvida distanciar-se dele e guardá-lo para si. Talvez os motivos de seu envolvimento com a teologia tenham sido muito superficiais e quiçá até infantis. Por certo ela não avaliara de antemão o alcance de sua decisão, e decerto nunca chegará a avaliá-lo com toda a exatidão. Mas fato é que ela se envolveu com ele. Passou a ser teóloga por ver-se confrontada com este assunto - ela, com seu coração demasiadamente teimoso e ao mesmo tempo medroso e com seu craneozinho débil demais. Confrontada com este assun to, ela não poderá se restringir a escaramuças ocasionais. Não há alternativa: o assunto da teologia não se limita a inquietá-la de longe, assim como uma pessoa pode ser inquietada por coriscos visíveis no horizonte distante; agora ele a procura e a encontra no lugar mesmo onde se acha - na verdade, ele já a procurou e a encontrou neste mesmo lugar. Ele veio ao encontro dela. Assaltou-a de surpresa, a atingiu e prendeu. Apoderou-se dela. A pessoa, por sua vez, “passou a fazer parte do quadro”, foi transladada da platéia para o palco. Inteiramente secundária se tornou a pergunta pelo que ela faria com esse assunto, em vista da outra, primária: que deverá fazer ela em vista do fato de que esse assunto, pelo visto, pretendia encaminhá-la em certo sentido e, na verdade, já a encaminhou? Mesmo antes de sentir um vislumbre de conhecimento, ela se vê conhecida e, justamente por isso, chamada e desper tada para conhecer; para pesquisar e sondar, por descobrir que foi sondada; para pensar e refletir (re-fletir!), por se dar conta de que se pensa nela; para falar, por ouvir que já lhe foi dirigida a palavra muito antes que conseguisse balbuciar, e menos ainda pronunciar uma palavra sensata. Em resumo: ela vê-se libertada para ocupar-se com esse assunto ainda antes de ter-se dado conta de que tal liberdade existe, menos ainda de ter começado a fazer uso dessa liberdade de maneira recalcitrante e desajeitada. Não foi ela que se engajou em seu assunto; aconteceu-lhe, porém, ter sido engajada por ele, de forma imediata. Mal tocando com as pontas dos pés as águas deste Rubicão, deste Jordão, ou seja qual for o nome do rio, ela precisou e pôde transpô-las, e agora se acha na outra margem, admirada, desconcertada, assustada, decerto sentindo-se totalmente incompetente; mas fato é que se encontra na outra margem, da qual não há retorno. E o lema já passou a ser: Tua rrs agilur! [“Tua causa está em jogo!”] O que é que descrevo aqui? A gênese e a existência de um profeta? Não! O que descrevo é simplesmente a gênese e a existência de um teólogo em toda a sua singularidade. Será de um grande teólogo qualquer? Tolice!
Que quer dizer “grande”? Poderá haver grandes juristas, médicos, biólogos, historiadores e filósofos. Mas haverá apenas - e isso igualmente faz parte das dimensões existenciais da teologia - pequenos teólogos. Mas não há nenhuma pessoa - mesmo que seja bem pequena, mesmo que seja na disciplina mais secundária, mesmo que seja de maneira diletante e desajeitada - que possa ocupar-se com essa ciência e, portanto, confrontar-se com seu assunto, sem que este a transcenda, sem que o objeto, confrontado com o sujeito, se imponha irresistivelmente a este, sem que o venha a possuir (a ele, que de sua parte é incapaz de possuir o objeto), de sorte que ela, por sua vez, queira ou não queira, consciente ou inconscientemente, mas com muita certeza se torna uma pessoa não só fascinada, mas sim abalada por seu assunto. Tua res agitur! Que quer dizer tua ? Tentaremos dar três respostas que, relacionadas entre si, se apresentam como três círculos concêntricos, representando, em última análise, uma única resposta; cada uma delas, porém, tem, em seu lugar e à sua maneira, também um peso próprio. 1. A existência teológica, assim como a de qualquer ser humano, existência no presente éon do cosmo: existência numa fração definida do lempo do mundo que ainda não chegou ao fim e, assim, também ainda não parou; existência como um elo na corrente das sucessivas gerações do gênero humano, elo que momentaneamente está sendo forçado e testado quanto à sua resistência; existência como o sujeito que, no presente momenlo, age e sofre no lugar que lhe foi destinado na história e convivência humanas. Também o pequeno teólogo existe, entre e com todos os outros seres humanos, como criatura dotada de possibilidades específicas por essa sua situação e determinação cósmica, como criatura acossada, no ambiente em que vive, por problemas específicos, mas também como criatura que, de uma ou de outra forma, participa de tarefas e de esperanças específicas: em ludo isso não está numa situação melhor, mas também não pior, não é mais poderoso, mas também não mais impotente do que todas as outras pessoas. <) que o distingue - e isto ele não poderá negar, porque como teólogo se expôs a isto , consciente ou inconscientemente - é que se acha confrontado ...... a palavra de Deus pronunciada e percebida na obra de Deus. Ora, ele em todo caso não poderá fazer de conta que essa mesma palavra não seja dirigida a este seu mundo, à humanidade de todos os tempos i de Iodos os lugares, e com isso à humanidade de seu tempo e de seu lugar, ao mundo conturbado por seus problemas atuais, no qual os senhores x, y e z pioi lamam as grandes soluções para a humanidade, parecendo dominar o destino do mundo todo e, portanto, também o seu próprio destino pessoal. I le le o noticiário do jornal e não consegue esquecer que acabou de ler Ixai.ix 10, ou João 1, ou Romanos 8. Ora, ele em todo caso não poderá m i ali ar o fato de que a palavra de Deus fala de um sofrimento infinitamente mais pioliindo, mas também de uma promissão infinitamente mais elevada di i que lodo o conjunto de sofrimentos e promissões peculiares ao tempo e uii lugai em que vive. Ora, ele não poderá ocultar o fato de que se trata da p da\ i a do juízo de Deus sobre toda a natureza e a corrupção humanas, mas, x*11*11 ludo, da aliança da graça de Deus com os seres humanos - aliança não
só planejada, mas já estabelecida e consumada da reconciliação já efetuada entre Deus e o ser humano. Não poderá dissimular, portanto, o fato de que essa palavra fala da justiça pela qual toda a injustiça humana já está superada, da paz que já tornou supérfluas e impossíveis todas as guerras (tanto as frias como as quentes), da ordem na qual já foi estatuído o limite de todas as desordens humanas. E, finalmente, o teólogo não poderá deixar de perceber que, como todas as demais épocas, também a época em que vive vai ao encontro de um alvo no qual se revelará o que agora permanece encoberto, que também a época contemporânea é tempo de Jesus Cristo, que, a despeito de todas as outras coisas, ela está destinada a ser tempo de graça, e portanto já o é. Ora, a ele em todo caso não pode escapar o fato de que não se trata da proclama ção de qualquer princípio, de um novo programa moral ou político melhor do que os anteriores, de uma ideologia, mas sim, de modo imediato, da condenação e da salvação eternas, mas justamente por isso também tempo rais; celestes, e justamente por isso também terrenas; vindouras, e justamen te por isso já presentes: condenação e salvação para europeus e asiáticos, americanos e africanos; condenação e salvação para os pobres comunistas bitolados e também para os anticomunistas, ainda mais pobres por serem mais bitolados ainda - condenação e salvação até mesmo para nós, suíços, tão compenetrados da própria justiça e tão eficientes na profissão, e, bem por dentro, medrosos; para nós, com nossa produção de leite e de relógios, com nossa indústria de turismo, com nossa estúpida rejeição do voto femini no e com nossos esforços um tanto infantis para obter alguns canhões atômicos bem feitos. O sim de Deus pronunciado sobre a totalidade do gênero humano, o sim livre, imerecido, contrário a toda irracionalidade e iniquidade humanas - este é que é o conteúdo de sua palavra. E mesmo que todos os demais conseguissem esquivar-se dessa palavra (mas na realidade não o conse guem), entre todas as criaturas excessivamente satisfeitas consigo mesmas ou excessivamente aflitas a única que não pode fazer isso é o teólogo, já que ele, afinal, tem o dever e a possibilidade de confrontar-se com a palavra de Deus de forma assim particularmente concreta (quiçá até profissional). Não há outra alternativa: pelo simples fato de ele viver como pessoa de seu tempo, que carrega a sua parte das dores de todos os seus contemporâneos, pelo simples fato de viver no mundo atual, a palavra de Deus o interpela, assedia, abala, lhe atravessa o coração (Atos 2.37). Como poderia ele lei outra existência a não ser a de criatura confrontada, abalada e realmeule ferida no próprio coração por essa palavra - seja o que for que este falo venha a significar na prática? 2. A existência teológica, porém, não flutua em algum lugar, solitá perdida na vastidão do oceano: nem à deriva, no sentido das ondas, nem empenhada em lutar contra elas. Ela não só é necessariamente existência
participa eo ipso, em algum lugar, da problemática da cristandade, do próprio ser da mesma, sempre ameaçado pelo não-ser, mas constantemente resguar dado do não-ser; quem participa do seu isolamento, em parte necessário, em parte casual - porém, mais ainda, culposo -, em relação à parte da humani dade que não faz parte da cristandade e em relação aos poderes intelectuais, psíquicos e físicos que a dominam. Só pode ser teólogo quem participa das tentativas mais ou menos felizes da comunidade de romper esse isolamento; quem participa da estima que, em parte, é devida à cristandade, bem como do grave desprezo e, o que muitas vezes vem a ser mais grave, da alta consideração que lhe é devotada. Só pode ser teólogo quem participa da desunião da cristandade e de seu anseio de união; de sua obediência, bem como de sua indolência e de seu ativismo vazio. Ele poderá ser cristão em uma Igreja tradicionalmente ligada ao Estado; poderá sê-lo numa Igreja independente; poderá ser cristão reformado, luterano, metodista ou católico romano. Talvez se entusiasme pela fé antiga, talvez pelo progresso religioso, lalvez pela abertura social ou estética de sua modalidade específica de experiência cristã. Bem sabemos que a cristandade existe em tais formas peculiares - até certo ponto provisoriamente justificadas, porém até certo ponto também notoriamente injustificadas. O mesmo acontece, em seu devido lugar, com qualquer teólogo - com a diferença de que ele, seja qual for a sua posição, em última análise e a rigor justamente não poderá existir nessas formas e sentir-se definitivamente em casa nelas. Pois, independente mente de sua posição, por ser membro do povo escolhido pela verdade e u não de sua decisão) a incumbência de refletir sobre a pergunta que foi i nloeadã a este povo desde o princípio e depois em todas as suas configurai.ocs históricas. Trata-se da pergunta cuja resposta decide sobre a permanêni i.i ou a ruína desse povo, sejam quais forem sua situação e seu comportamcnlo. Trata-se da pergunta em comparação com a qual todos os seus pioblemas particulares passam a ser apenas probleminhas, mas também da peigunta sob cuja luz penetrante mesmo o menor dos probleminhas de seu u i viço, de sua organização, de sua pregação poderá adquirir um peso dei isivo: a pergunta pela verdade. Tudo que acontece ou que deixa de acontecer na vida desse povo, de o u de outra maneira, seja bom ou mau, toca diretamente a ele, o . h o l o g o , transforma-se inexoravelmente em assunto dele. E isso de forma tal q u e ele não pode nem superestimar nem subestimar qualquer coisa, nem lii/et pouco caso dela nem tomá-la como trágica. Ele deve ocupar-se |** usando e, eventualmente, falando - com assuntos grandes e pequenos i uni o máximo rigor, mas também com toda a serenidade e alegria. Isso se • I * n a o por ele, pessoalmente, ser uma pessoa tão importante, soberana e li 1 11, mas simplesmente porque a palavra una do Senhor uno e soberano de Inila a ( i islandade, do Senhor sobre todas as suas configurações e em todas ai oi.«s situações, atingiu a ele, o pequeno teólogo, dentro da função que na i iimunidade compete justamente a ele, tomou conta dele de tal forma que já n In i iinscgue se livrar da visão daquela realidade que é a única da qual o | «i de Deus pode viver, mas da qual também lhe é permitido viver; não o ii i i i i
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consegue nem enquanto dormir nem, muito menos, enquanto enfrentar os pontes fortes e fracos, os altos e baixos pretensos ou reais de sua vida. E a ele que atinge o juízo que nessa palavra é pronunciado sobre a comunidade, mas também é a ele que eleva a promissão que foi dada à comunidade ao lhe ser permitido viver dessa palavra. 3. A existência teológica é, por fim, a existência própria, pessoa pequeno teólogo. É que ele não está apenas dentro do mundo nem apenas dentro da comunidade, mas também simplesmente em si e consigo. E já que a palavra de Deus, o assunto ou objeto da teologia, trata do mundo e da comunidade que existe em tal mundo, trata também dele, do teólogo em seu “ser consigo mesmo”. Trata do juízo sob o qual ele se encontra e da graça que é oferecida a ele; trata de seu cativeiro e sua libertação, de sua morte e sua vida. Na totalidade que, qual teólogo, está incumbido de conhecer, investigar e refletir, na pergunta pela verdade que, por ser teólogo, deve enfrentar está em pauta, no final das contas, também ele mesmo. E não seria indicado pensar e afirmar que o que está em pauta, em primeiro lugar e antes de mais nada, seria ele mesmo, como se a subjetividade fosse a verdade (conforme a palavra pelo menos muito equívoca de Kierkegaard), e, apenas com resguardo de certa distância, estivesse em pauta também a comunidade e, em distância ainda maior, o mundo. Se o assunto não fosse o mundo e a comunidade, não o poderia ser também ele mesmo, o teólogo - pois só no mundo e na comunida de ele é quem é. Mas, na medida em que se trata do mundo e da comunidade, trata-se, por fim, também dele mesmo - e trata-se dele mesmo em grau de máxima urgência. No contexto da aliança de graça estabelecida por Deus com o gênero humano e com o seu povo, trata-se também da eleição dele, de sua justificação, santificação e vocação, de sua oração e seu labor, sua alegria e seu sofrimento, dele em seu relacionamento com o próximo, da oportunidade única de sua breve vida, de sua mordomia em relação às capacidades e às possibilidades que lhe foram dadas, de sua relação com o dinheiro e a propriedade, com o outro sexo (no matrimônio e fora dele), com seus pais e filhos, com os costumes bons e maus existentes em seu ambiente. Afinal de contas, é ele que é abalado, inquirido e acusado, julgado e reerguido, consola do e admoestado pela palavra de Deus - não apenas em sua função, mas também qual pessoa, em seu “ser consigo mesmo”. E especificamente a ele que Deus transforma em eu ao tratá-lo por tu. Conta-se do outrora famoso professor Tholuck, de Halle, que ele costuma va visitar os estudantes em seus quartos, assediando-os com a pergunta: “Irmão, qual o estado do teu coração?” - não o estado de teus ouvidos, de tua cabeça, cie tua boca ou de teu fundilho (embora tudo isso também seja necessário ao teólogo), mas sim o estado de ti mesmo, ou, para usarmos a linguagem bíblica: de teu coração ? Uma pergunta bem própria para ser dirigida a qualquer teólogo, ao jovem e ao idoso! Ela também poderia ser formulada com a citação bíblica: “Adão, onde estás?” - será que, em tua vida privada interna e externa, estás fugindo daquele com o qual, como teólogo, lidas de forma tão peculiar? Será que não estás te escondendo dele entre as moitas de tuas contemplações, explic a çôcs, meditações e aplicações mais ou menos profundas ou elevadas? Será que
não estás (escondido, bem no fundo e, supostamente, sem que alguém o perce ba, atrás e debaixo de todas estas ocupações) dentro da concha de uma vida privada que, à luz do dia, se revelaria como a existência de um pequeno-burguês ou cigano não-iluminado, não-convertido e, portanto, descontroladamente pre guiçoso e selvagem? Oxalá que não! Que ninguém pense que com tais premissas será capaz de realizar um trabalho livre e fértil de pesquisa, raciocínio e discurso teológicos! Não adianta: o assunto vivo da teologia mexe com a pessoa toda, portanto também com a vida privada particularíssima do pequeno teólogo. Também lá ele não conseguirá nem haverá de fugir desse assunto. E caso ele, porque isso o poderia contrariar, escolher outra faculdade, aparentemente menos perigosa, deve saber que o assunto da teologia tem a peculiaridade (como se pode verificar no salmo 139) de, mais cedo ou mais tarde, surgir no caminho de qualquer pessoa em qualquer lugar - portanto, também em qualquer outra faculdade que ela escolher - para confrontá-la com a mesma pergunta. Assim, a solução mais simples será permanecermos teólogos e concordarmos que Deus intervenha mesmo nas áreas mais íntimas de nossa humanidade.
8a Pr eleç ão:
Comprometimento Em nossa 6a preleção qualificamos a “admiração” como o primeiro fator que faz o teólogo ser o que é. Tivemos em mente a admiração face à inaudita novidade do assunto ou objeto desta ciência. E em nossa 7a preleção mencionamos um segundo fator: o “abalo” - inevitável, em virtude da singular atualidade e até agressividade do assunto com o qual a pessoa passa a lidar. Mas tal assunto implica que, mesmo o mais forte abalo (há 50 anos teriam dito: não obstante a mais profunda vivência) da pessoa não encerra a questão. Assediando-a de forma tão íntima e penetrante, Deus quer dar à pessoa algo peculiar, mas também lhe pede algo peculiar. Ele a conforta, ergue, liberta. Mas também a engaja, manda-a caminhar, usar a liberdade com a qual foi presenteada. Chamamos de “comprometimento” este terceiro fator que faz o teólogo ser teólogo. E uma coisa luminosa e bela, mas também severa, é uma coisa elevadora, mas também assustadora ser compro metido pelo Deus do evangelho, que é o assunto da teologia evangélica. E um nobile officium [“ofício nobre”] que é esperado da pessoa e a ela confiado; mas também implica que aquilo que ele encerra venha a acontecer, que a pessoa o realize. Ela pode o que deve. Mas também deve o que pode. Após o que ouvimos por último na 7a preleção sobre o abalo do teólogo - fenômeno que se estende até sua vida particular -, não poderá ser outra a conseqüência: também seu comprometimento (que já inicia com a admiração e está estreitamente ligado ao abalo) tem a dimensão de totalidade. Abrange toda a sua existência. De momento, porém, concentra remos nossa atenção no fato de sua existência, em virtude de sua função específica, ser uma existência comprometida, isto é, existência agraciada com uma liberdade específica e chamada para o uso específico desta liberda de. Interessa-nos a medida em que o teólogo, em sua ciência, é uma pessoa comprometida pelo assunto dela: até que ponto ele é libertado e convidado para uma forma específica de percepção, pesquisa, raciocínio e discurso, forma que ele não inventou nem escolheu por si mesmo, mas que se lhe impõe por si quando ele assume o tema da teologia, forma da qual ele precisará apropriar-se, caso quiser ficar fiel ao tema, na qual precisará exercitar-se com persistência e da qual precisará lembrar-se ou ser lembrado constante mente. Trata-se (o termo é incômodo, mas a esta altura não pode ser evitado) do método peculiar à teologia, quer dizer, do estabelecimento de regras adequadas ao seu procedimento. Também seria possível dizer: tratase da lei sob a qual o teólogo deverá entrar em cena - comprometido com o conhecimento e a confissão que vão além da mera admiração e abalo. O que não deve acontecer é que os termos “método” e “lei” sejam ligados á noção de um fardo colocado sobre seus ombros, à idéia de disciplina
existente numa prisão, em resumo: à idéia de uma coerção de que ele seria vítima. Trata-se do método e da lei da liberdade, dentro da qual o teólogo terá de pesquisar, raciocinar e falar. O comprometimento do teólogo só poderia transformar-se em coerção caso ele ainda não se tivesse entregue de modo consciente e decidido ao assunto de sua ciência, ou caso se tivesse desviado dele por algum motivo. Entregue ao seu assunto, ele leva a existência de homem livre justamente ao respeitar o método e a lei da sua ciência. Somente a obrigação de ter de usar outro método, de respeitar e cumprir outra lei cognitiva, uma lei estranha, poderia significar para ele fardo, coerção, cativeiro babilónico. Mas é justa mente tal obrigação que ele superou, desde que tenha começado a trilhar o caminho do intellectus fidei e não o tenha abandonado intencionalmente. E sobre o estabelecimento das regras de tal intellectus, sobre o tipo de conheci mento para o qual o teólogo é comprometido, libertado e chamado, que temos de nos entender agora. Queremos reservar o problema que se coloca com o fato de tratar-se do “intellectus fidei ” para a próxima preleção, dedicando-nos hoje exclusivamente à definição deste intellectus como tal. São três os pontos que neste particular teremos de abordar e esclarecer. 1. A obra e a palavra de Deus que constituem o assunto da teolo formam uma unidade. E verdade que, como nos lembram as reflexões feitas na segunda e terceira preleções, elas não são uma obra monolítica e uma palavra monótona, mas - como já se evidencia na própria multiplicidade do testemu nho bíblico -, como obra do Deus vivo, elas formam uma unidade na abundância de suas configurações. Circundadas pela realidade e pela revelação da aliança de Deus com o ser humano que estão em pauta aí, encontram-se aqui reunidas todas as coisas: as mais altas e as mais profundas, as mais sublimes e as mais insignificantes, as próximas e as longínquas, as particulares c as universais, as internas e as externas, as visíveis e as invisíveis; aqui encontram-se o eterno “ser para si mesmo” de Deus e seu “ser para nós” dentro do tempo, seu escolher e seu repudiar, sua misericórdia e seu juízo, seu agir como criador, como reconciliador e como redentor, sua política celeste e sua política terrena; aqui encontram-se, por outro lado, a boa criatura de Deus, a criatura caída, a criatura renovada à imagem de Deus, a natureza que lhe foi estabelecida e a graça que se lhe oferece, sua transgressão e sua i ihcdiência, sua morte merecida e a vida que lhe foi prometida; e nisso tudo, o passado, o presente e o futuro encontram-se reunidos, mas nenhum fator é Idènlico ao outro nem deve ser confundido com ele: a unidade não existe sem a multiplicidade, nem o centro sem a periferia de imensa amplitude. Nada há, ncsic campo, que seja insignificante, destituído de importância, dispensável, que não tenha sua própria verdade e dignidade - nada que, em seu lugar, não upi escutasse e refletisse o todo; nada em cuja percepção correta ou incorreta nau pudessem ser tomadas decisões últimas. Mas igualmente não há nada que pudesse ser posto fora da unidade da obra e da palavra de Deus que o i In unda e condiciona, nada que pudesse ser visto, compreendido e interpre tado para si, isoladamente, que pudesse ser tratado como um centro secundái lo e talvez até transformado no próprio centro!
() assunto da ciência teológica, em todos os seus ramos, é a obra e a palavra de Deus em sua abundância - mas nesta abundância ela é obra una e palavra una de Deus: aquele um, como o rei dos judeus, coroado Salvador do inundo, o representante do Deus uno entre os seres humanos e o represenlante dos seres humanos perante o Deus uno - o único servo e Senhor Jesus (iristo, esperado, vindo e agora mais esperado do que nunca. Partindo dele e (>rientando-se por ele, o conhecimento teológico, o intellectus fidei, não se torna um conhecimento que tudo nivela, unifica e identifica, mas, antes, um conhecimento que reúne, que aprecia todo detalhe periférico em sua particu laridade, mas o congrega a partir do seu centro e em direção ao seu centro. E tom tal cognição que o teólogo se acha comprometido, é por ela que ele é libertado e chamado. No ato cognitivo teológico, ver equivale a olhar de jnodo atentamente exato, ora para esta, ora para aquela configuração especí fica do assunto da teologia. Mas equivale também a uma visão de conjunto que ;ibrange tanto a configuração em questão quanto as demais configurações, f , o que é decisivo: equivale a perceber o assunto uno justamente nesta sua configuração específica, ou a perceber esta configuração como configuração do assunto uno. E esse olhar atento, essa visão de conjunto, essa percepção que qualifi cam a cognição teológica: tanto na exegese bíblica quanto nos balanços e nas análises da assim chamada história da Igreja, do dogma e da teologia, nos diversos loci [“tópicos”], capítulos e parágrafos da dogmática e da ética, na [CÍ lexão sobre as múltiplas tarefas da prática eclesiástica. Neste empreendi jnento, a formação de sistemas só poderá ser fragmentária, tentativa e provisória. A própria diversidade das épocas e situações nas quais deve ser realizado o ato cognitivo teológico resiste a qualquer sistematização radical e conseqüente. Resiste a ela a multiplicidade das formas e dos aspectos de seu tinico objeto. O que resiste a ela, antes de mais nada, é o fato de que este iissunto e, por conseguinte, o centro que deve ser focalizado constantemente, que abrange e norteia todos os aspectos particulares, não é um princípio estrutural do qual se possa dispor, mas é Jesus Cristo, o qual ressurgiu, atua t fala no poder do Espírito Santo; ele é, portanto, a benignidade do Deus vivo que, numa história movimentada sempre de maneira nova, descende para o ser humano e o faz ascender a si, sempre a ligá-lo e desligá-lo de inaneira nova. E ele que governa, e a seu lado não existe nenhum governo paralelo sistemático-teológico. Mas é ele que, outrossim, impede a formação de espaços separados nos quais de repente fosse permitido ou, quiçá, indica do raciocinarmos e falarmos em termos filosóficos ou “históricos”. É ele, pois, que não permite ao teólogo passar por cima de qualquer ponto periférico, deixá-lo em algum estado de abstração, deixar de abordá-lo com seriedade, isto é, em termos teológicos. Mas também não lhe permite iransformar qualquer ponto periférico em centro ou num segundo centro a competir com o centro verdadeiro; não lhe permite, portanto, transformar o círculo em elipse e, com isso, cair no sectarismo, na heresia ou até na apostasia. “ Tudo é vosso”, mas: “Quem comigo não ajunta, espalha”. O primeiio critério da autenticidade da cognição teológica do intellectus fidei consiste
em que ela seja um conhecimento que “com ele” reúne, que recolhe todas as idéias, conceitos e palavras a partir de Cristo e em direção a ele. 2. O assunto da teologia: o Deus do evangelho em sua obra e em palavra se relaciona com sua cognição da mesma maneira como Deus se relaciona com o ser humano, o Criador com a criatura, o senhor com o servo. Ele é absolutamente o primeiro : o conhecimento que o tem por objeto só poderá seguir-lhe, só poderá subordinar-se e acomodar-se a ele. E ele que, antes de mais nada, o torna real e possível. Ele compromete, liberta, chama o teólogo para que dele se aperceba, para que sobre ele raciocine e fale. O teólogo não poderá fazer valer um a priori frente a Deus. Daí a regra de Hilário: Non sermoni res, sed rei sermo subiectus est [“Não é o objeto que está sujeito ao discurso, e sim o discurso ao objeto”]. Ou, para usarmos a terminologia de Anselmo: a ratio e a necessitas do conhecimento teológico precisam nortear-se pela ratio e pela necessitas de seu assunto - não vice-versa, portanto! Claro que a teologia, por ser ciência humana, opera, como todas as outras ciências, sempre e em toda parte com as idéias, conceitos, imagens, recursos lingüísticos existentes em sua época e situação, os quais são, em parte, herança de tempos idos e, em parte, criaçõ.es novas. Diferem, pois, entre si as formas da cognição teológica do fim da Antiguidade, da Idade Média, da época do barroco, do iluminismo, do idealismo, do romantismo. Mas a teologia não poderá, em nenhuma época e em nenhuma situação, se deixar convidar e muito menos comprometer-se em reconhecer, como uma lei válida para ela, qualquer sistema ideativo, conceituai, figurativo e lingüístico, quer seja ele proclamado em nome de Aristóteles ou de Cartesius, de Kant, Hegel ou Heidegger. Ela não pode fazer isso não só porque por trás de cada um de tais sistemas se encontra uma filosofia e cosmovisão definidas, cujas concepções ela teria de assumir, em prejuízo de sua própria objetividade. Ela não o poderá fazer principalmente porque está comprometida incondicionalmente tão-só com seu assunto e porque é conclamada e autorizada por este mesmo assunto a praticar um ver, racioci nar e falar dinâmicos e abertos em todas as direções. Por que, confiadamen te, ela não faria uso “eclético” das idéias, conceitos, imagens e expressões viáveis em cada época, desde que demonstrem sua utilidade? Mas isso não quer dizer que tivesse de considerar a terminologia viável da respectiva época como uma diretriz normativa para ela. A teologia precisa perguntar pela lógica, dialética e retórica que se derivam de seu objeto, o logos divino. Portanto, seguindo seu próprio caminho, ela deverá passar pelo meio do cipoal dos critérios das idéias, do raciocínio e do discurso “corretos”, considerados pela respectiva época como sendo de validade geral e procla madas como tais de maneira mais ou menos pomposa. A teologia nunca poderá esperar progresso e melhoria da submissão aos espíritos da respectiva época, mas, antes - assumindo uma atitude de jovial abertura também para com eles! -, sempre unicamente de uma deci são mais intensiva de seguir sua própria lei em seu processo de conhecimen
to. Estaremos lembrados de tudo que já dissemos aqui na Ia preleção sobre seu caráter como ciência livre. Ela comprova sua liberdade ao fazer uso dos meios de percepção, avaliação e expressão humanas - em contraposição a toda ortodoxia antiga, mas também a toda e qualquer neo-ortodoxia que esteja em voga -, sem depender de qualquer gnoseologia pressuposta, sempre com aquela obediência dela exigida aqui e agora por seu assunto, pelo Deus vivo no Cristo vivo na força vital do Espírito Santo. Entregar-se à insensatez, ao raciocínio indolente ou vago, ou mesmo ao prazer perverso com o irracional como tal - credo quia absurdum! [“creio [“creio porque é absurdo”] seria um desserviço prestado ao seu objeto e a última coisa que lhe seria permitida. Pelo contrário: o teólogo nunca será capaz de possuir, comprovar e demonstrar racionalidade suficiente. Mas acontece que o objeto de sua ciência ciência faz faz uso desta sua racionalidade racio nalidade a seu próprio próp rio modo, e por vezes vezes o faz faz de modo costumeiro, mas por vezes também de modo muito inusitado. Tal objeto não é obrigado a orientar-se pelo pequeno teólogo; antes, o pequeno teólogo é que é obrigado a orientar-se por seu objeto. Esta prioridade de seu objeto em relação à sua apercepção é o segundo importante critério do intellectus fidei. fidei . conhecimento teológico autêntico, do intellectus 3. O assunto da teologia teolog ia - a obra ob ra e a palavra palavr a de Deus na história Imanuel e, portanto, também seu testemunho bíblico - possui uma estrutura específica, uma ênfase e e uma tendência peculiares, peculiares, uma direção irreversível. O teólogo tem o compromisso, a liberdade e a vocação de lhe dar espaço também em seu processo de conhecimento, no intellectus fidei. A ação e a palavra de Deus - e, correspondentemente, os textos do Antigo e do Novo Testamento - contêm duas realidades realidades (que só na aparência se acham lado a lado, colocadas no mesmo nível). Elas podem ser designadas como o “sim” e o “não” divinos, anunciados ao ser humano com poder. Podem ser qualifica das igualmente como o evangelho que ergue o ser humano e a lei que o julga e corrige; ou como a graça que lhe é ofertada e o juízo que o ameaça; ou como a vida para a qual é salvo e a morte que fez por merecer. O teólogo deve ver, refletir, expressar ambas as realidades, tanto a luz quanto a sombra - em fidelidade à palavra p alavra de Deus e à palavra da Escritura E scritura que a testem testemun unha ha.. Mas é justamente nesta fidelidade que ele não poderá ignorar nem ocultar o fato de a relação existente entre esses dois momentos não ser idêntica aos movimentos alternantes de um pêndulo, repetidos com uniformidade, nem aos dois pratos da balança que, carregados com pesos iguais, fiquem balan çando indecisos; aí há, pelo contrário, um “antes” e um “depois”, um “em cima” e um “embaixo”, um “mais” e um “menos”. E evidente que o ser humano chega a ouvir um “não” divino, incisivo e consumidor; mas é evidente, também, que tal “não” se acha apenas envolto pelo “sim” de Deus dito ao ser humano, seu “sim” criador, reconciliador e redentor. Decerto é aí erguida e proclamada a lei que compromete o ser humano, mas é igualmente certo que esta lei só tem validade divina, só tem poder divinamente comprometedor como lei da aliança, como forma do evangelho. Sem dúvida que aí se proclama e se executa uma condenação, mas é indubitável, também, que justamente nesta condenação - pensemos
em sua execução decisiva na cruz de Gólgota - é praticada graça reconciliadora. Aí aparece ineludivelmente a morte como limite último de toda e qualquer iniciativa e consumação humanas, mas aparece ineludivelmente, também, a vida eterna do ser humano como sentido e finalidade da sua morte. Aí não há, pois, nenhuma complementaridade, nenhuma ambivalência. Aí não há equilíbrio, e sim extremo desequilíbrio. E é justamente justam ente nesta superiorid sup erioridade ade reinan reinante te lá e na inferioridade reinan reinante te aqui que a teologia deverá fazer jus a ambas as realidades aludidas. E certo que ela não poderá reduzir o que Deus quer, faz e diz a um “sim” triunfalista dito ao ser humano. humano. Mas, da mesma forma, não poder p oderáá dar a impressão de que ao “sim” de Deus estivesse confrontado seu “não”, um “não” que tivesse a mesma dignidade e o mesmo peso do “sim”. Menos ainda, poderá antepor o “não” de Deus ao seu “sim”, ou mesmo fazer desaparecer o “sim” dentro do “não”, colocando a luz nas trevas, em vez de expor as trevas à luz. Romanos 7, para o teólogo, não deve ser, nem secreta nem abertamente, mais familiar, mais importante e mais querido do que Romanos 8. O inferno não lhe poderá ser mais imprescindível nem mais interessante do que o céu. Na história da Igreja, não lhe deve ser mais importante salientar os pecados, as faltas e as imperfeições dos escolásticos e místicos, dos reformadores e dos papistas, dos luteranos e dos reformados, dos racionalistas e dos pietistas, dos ortodoxos e dos liberais (mesmo que não possa nem deva ignorar e ocultar estas realidades negativas) do que a tarefa de vê-los e compreendê-los todos à luz do perdão dos pecados, do qual tanto eles quanto nós necessita mos e o qual foi prometido tanto a eles quanto a nós. E a impiedade dos filhos deste mundo não o deverá emocionar mais do que o sol da justiça que nasceu tanto para ele próprio quanto para eles. Em nossa \- preleção qualificamos a teologia como uma ciência alegre. Por que existem tantos teólogos melancólicos, que andam por aí com um rosto constantemente preocupado, quando não amargurado, sempre pron tos para levantar ressalvas críticas e negações? E porque não respeitam este terceiro critério do conhecimento teológico autêntico: a economia intrínse ca de seu objeto - a sobreposição do “sim” de Deus ao seu “não”, do evangelho à lei, da graça à condenação, da vida à morte -, mas querem transformá-la arbitrariamente em equivalência ou até invertê-la. Não admira que assim ela se coloque na vizinhança melancólica do idoso J. J. Rousseau, ou na do homem digno de compaixão ao qual Goethe erigiu um monumen to em Harzreise im Winter, pedindo ao “Pai do amor” por alívio. Um teólogo poderia e deveria ser uma pessoa contente e satisfeita em em seu mais profundo íntimo, embora não o seja sempre na superfície. Estar satisfeito, conforme o antigo e bom sentido da palavra, é ter encontrado sua satisfação. “Ó, dá-te por satisfeito e te aquieta no Senhor de tua vida!” Se alguém não se vir satisfeito em Deus, qual poderá ser sua tarefa na comunidade e no mundo? Como poderá então existir qual teólogo? Que ela é uma “massa perdida”, isto a comunidade também sabe por si. Mas ela não sabe, nunca sabe suficientemente, que é o povo amado e eleito de Deus, e que como tal foi chamado a proclamar o seu louvor. Que ele vai de mal a pior, isto o mundo também sabe por si, ainda que seguidamente procure enganar-se a si mesmo
a este respeito. Mas o que ele não sabe é que de todos os lados é sustentado pelas mãos benignas de Deus. O teólogo encontra sua satisfação, torna-se e é uma pessoa satisfeita, que espalha contentamento tanto na comunidade quanto no mundo, quando seu conhecimento, na qualidade de intellectus que lhe é dada com o objeto de sua ciência. fidei, segue a estrutura que
9* Preleção:
A Fé Em nosso intuito de responder à pergunta pelo que faz de uma pessoa um teólogo, chegamos a um ponto no qual precisamos parar e olhar para uma direção totalmente diferente, a bem da compreensão correta de tudo quanto dissemos sobre esta questão. Julgamos ter sido possível explanar com alguma clareza o que sejam a admiração, o abalo e o comprometimento que, arraigados no objeto ou assunto da ciência teológica e a partir dele, assaltam a pessoa que com este objeto se ocupa. Mas como explicar que todo esse assalto de sérias conseqüências chega a suceder ? Como acontece que alguém torna-se, é e volta constantemente a ser uma pessoa admirada, abalada, compro metida? Procuremos ilustrá-lo com o tema de nossa última preleção. Trata mos de entender a peculiaridade do conhecimento para o qual o teólogo é comprometido, libertado e convocado. Como lhe acontece isso, porém, de que modo se dá o evento de alguém ser real e efetivamente comprometido com o conhecimento caracterizado por tal ordem intrínseca? Como acontece ele ser posto a trilhar o caminho que lhe é indicado pelo objeto da ciência teológica? E a partir daí é possível e necessário continuarmos a perguntar: «orno ele se torna uma pessoa seriamente abalada ou mesmo apenas seria mente admirada pelo objeto da teologia? Qual é a gênese destes fenômenos? Pelo visto, encontramo-nos agora numa situação bem semelhante - e no fundo igual - àquela que se nos apresentou em nossa 5- preleção, na qual nos sentimos obrigados a admitir a falta de premissas dos enunciados ou teses que antecederam nossas reflexões (sobre a palavra de Deus, suas testemu nhas bíblicas, a comunidade como o povo de Deus constituído pelo testemu nho das mesmas). Mais uma vez nos encontramos frente a uma aporia dada loni o próprio assunto, aporia que não devemos ignorar nem subestimar, que não devemos tratar de eliminar através de quaisquer argumentações e menos ainda através da introdução de um deus ex machina qualquer. Mais uma vez não há aqui nenhuma premissa. E assim como na 5- preleção só nos podia ser lícito e ordenado remeter a um fator não-integrável em qualquer sistema, assim como lá tínhamos de refletir sobre o Espirito livre como mistério da palavra de Deus (a palavra ouvida e proclamada pelos profetas e apóstolos, a palavra que constitui, mantém e rege a comunidade), da mesma .mineira também agora, dispensando qualquer tentativa sistematizante, só In Miemos remeter ao evento no qual acontece - em liberdade divina e inmi.ma, mais uma vez sem premissas e, portanto, de modo incompreensível e inexplicável, mas pelo menos de modo descritível - que o objeto da teologia chega a tomar conta de uma pessoa qualquer, a deixá-la de tal modo iiilmirada, abalada e comprometida que ela de fato pode viver, pesquisar,
pensar e falar como teólogo, a existir corno teólogo. Este evento é a fé: o pouquinho de fé deste homem seguramente muito pequeno. Inicialmente será conveniente proceder a algumas definições referentes ao termo fé, bastante maltratado já no protestantismo do passado, e mais ainda no protestantismo mais recente. Com certeza seria um evento um tanto precário (1), ao qual em nosso contexto nem valeria a pena remeter, se “fé” fosse o seguinte: uma pessoa, chegada ao limite daquilo que julga ser conhecimento humano comprovado, resolve dar espaço a uma suposição, a uma opinião, estabelecer um postulado, um cálculo de probabilidades, para então identificar o objeto da teologia com aquilo que supôs, postulou e considerou verossímil, e, neste sentido, o assumir. Claro que tal caminho poderá ser trilhado, mas ninguém deve pensar que isto seria a fé na qual poderá tornar-se e ser teólogo. Ninguém poderá limitar-se a conjecturar, presumir e postular o objeto da teologia que, na forma descrita, leva uma pessoa à admiração, ao abalo e ao comprometimento. E, desta forma, a fé nesse objeto não é algo como um saber hipotético e, portanto, problemá tico: é, antes, por definição, o saber mais intensivo, rigoroso e certo; ao ser medido por este saber, o saber aquém daquele limite considerado o mais seguro se evidencia apenas como hipótese que talvez possa ser utilizada, mas que não deixa de ser fundamentalmente problemática. Seria igualmente (2) precário, se alguém se decidisse a ter como verdadeiras e apropriar-se de determinadas teses e doutrinas relacionadas com o objeto da teologia que ouviu ou leu em quaisquer testemunhas grandes ou pequenas da palavra de Deus que aceita como exemplares, ou no dogma e na confissão da Igreja, ou mesmo na Bíblia - fazendo de conta que ele mesmo conheça (o que em realidade não acontece) o que aqueles outros aparentemente conhecem - e o fizesse baseado na autoridade deles. E este o procedimento que, pelo começo do século, foi denunciado de forma incansá vel e intransigente por W. Hcrmann: de forma inesquecível para todos os seus ouvintes, ele denunciou tal atitude como o mais imperdoável de todos os pecados. Sem dúvida isto representa um escapismo cômodo frente à pergunta pela verdade. Sem dúvida, tal decisão baseada em autoridade alheia e sua execução têm o sabor de “sacrificium intellectus” [“sacrifício do entendimento”], não de “fides quaerens intellectum”, de descrença, e não de fé. Sem dúvida fides implícita é a designação dúbia de uma coisa dúbia, que nunca deveria ter sido adornada com o termo fides. Sem dúvida desta forma se ergue um castelo de cartas, e não seria recomendável que um cristão e teólogo nele se estabelecesse. Não seria precário, mas, pelo contrário, por demais grandioso e atrevi do se alguém (3), no intuito de livrar-se daquelas precariedades, imaginasse que em seu pouquinho de fé deve e pode vivenciar e realizar uma presentificação e atualização (com ou sem seguranças sacramentais) da encarnação, p. ex., ou - em edição menor - da fé de Jesus, e assim forçar a divindade a fazer-se presente em sua vida e, quiçá, criá-la (fides crealrix divinitalis in nobis [“a fé é a criadora da divindade em nós”]). Uma fé com essa presunção poderia, mutatis mulandis, convir a um hindu piedoso, mas não
deveria se fazer passar por fé cristã. A fé cristã acontece no encontro e, assim, na comunhão do crente com aquele em quem crê, mas não na identificação do crente com o objeto de sua fé. Nunca (4) foi uma boa tendência - e ela aparece em vastas áreas do protestantismo mais recente - elevar a fé à condição de termo central, de caráter ôntico, e, passando para o segundo plano o objeto essencial da teologia, fazer da fé, como verdadeiro evento salvífico, o tema da teologia, ou seja, querer compreender e praticar a teologia como pisteologia, isto é, como ciência e doutrina da fé cristã. Quem faz isso busca na Bíblia e na história eclesiástica primariamente só testemunhas da fé e, quiçá, heróis da fé, assume tudo o que seria preciso considerar e dizer com vistas à obra e à palavra de Deus tão-só como reflexões ou enunciados da fé, elimina - de forma tácita, ou então mediante expressa desqualificação - o que parece subtrair-se a tal método, como se no Credo da Igreja o termo credo [“creio”] como tal fosse a verdadeira confissão. Como se a pessoa, ao invés de crer em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, tivesse de crer na fé da Igreja, expressa em tais termos sublimes, e, em última análise, em sua própria fé e como se tivesse de confessar a esta! (Infelizmente existe até uma missa de Mozart que, devido ao credo repetido de forma penetrante por todos os três artigos do Credo Apostólico, pode levar a tal equívoco, sendo, por isso, conhecida sob a designação de “Missa do Credo”). A fé é a conditio sine qua non [“condição indispensável”],.mas não é (como poderia chegar a sê-lo?) o objeto nem, portanto, o tema da ciência teológica. Seu verdadeiro objeto requer a fé, mas resiste à tentativa de fazê-la dissolver-se em reflexões e enunciados da fé. Quem não quiser reconhecer este fato não deverá se admirar da infrutífera labuta que, em conseqüência, se lhe tornará o trabalho teológico. A fé como conditio sine qua non da ciência teológica! Isto quer dizer: a fé é o evento, a história sem os quais uma pessoa, não obstante todas as demais possibilidades e qualidades boas que lhe possam ser peculiares, em verdade não poderá se tornar e ser cristão e, portanto, teólogo. Ora, desta raiz da existência teológica de fato já falamos nas três últimas preleções. Afinal, só pudemos falar da admiração, do abalo e do comprometimento descrevendo mu evento! E não pudemos deixar de perceber a sublime particularidade da admiração, do abalo e do comprometimento de que falávamos. E que o evento específico, constitutivo da existência cristã e, portanto, também da existência teológica é justamente a fé. No evento da fé é que se distinguem a admiração, o abalo, o comprometimento que fazem o teólogo ser teólogo de i ml i as ocorrências, igualmente significativas e memoráveis à sua maneira, que poderíamos qualificar com as mesmas designações. No evento da fé oi oi t e - e nele realmente acontece algo! - que a palavra de Deus, provida do poder vivo do Espírito que lhe é próprio e, assim, provida da soberania que ela possui, liberta uma pessoa dentre muitas - de modo que ela se torna liberta e pode existir constantemente como liberta para isto - para aceitar esta mesma palavra, reconhecendo-a como pura e simplesmente benéfica e i oulorladora, mas também como comprometedora e, assim, indiscutivel mente válida para o mundo, para a comunidade e, por fim, para si própria. 10
No evento da fé ocorre que a pessoa deposita toda a sua alegre confiança naquilo que a Palavra como auto-enunciação do próprio Deus diz a respeito de seu amor pelo mundo, por seu povo e também pela pessoa do teólogo. No evento da fé ocorre que a pessoa se torna irrestritamente obediente à Palavra. Não há quem faça isso por iniciativa própria. Só se faz isso por ter sido vencido pela palavra de Deus, atuante no poder do Espírito, por ter sido despertado e recriado para tal ação. Mas, por originar-se da palavra livre de Deus e estar voltada para a mesma, será, de modo autêntico e livre, uma ação da própria pessoa. Não é “Deus nela” que age; antes, chamada e autorizada por Deus, é ela, essa pequenina pessoa, que aceita, confia, obedece. E estes termos excluem também a idéia de que ao fazer isso ela esteja agindo no êxtase de um entusiasmo qualquer. Não - ela o faz como ser humano e lançando mão de seu entendimento humano normal (não devemos nos esquecer também de sua fantasia humana!), de sua vontade humana, certa mente também de seu sentimento humano. Ela o faz, contudo, como o ser humano definido e delimitado por sua condição humana, mas, ainda assim, como ser humano livre, não como a pessoa livre que era antes, e sim que tornou-se ao ser confrontada pela palavra de Deus proferida em sua obra. E ela o faz não como pessoa livre que simplesmente “é ”, mas que tem a possibilidade de tornar-se sempre que este objeto volta a atingi-la, possibili tando-lhe e exigindo-lhe que o aceite, que nele confie, que lhe obedeça, dando-lhe tarefas e descobrindo-a em seus esconderijos. Na medida em que isso acontece com uma pessoa e na medida em que ela faz isso, essa pessoa crê. E na medida em que este evento como tal tem um caráter revelador e este fazer como tal é um fazer iluminado, a fé como tal possui, a partir de sua própria origem - e este é justamente o intellectus fidei - um conhecimento do seu objeto, que é idêntico à sua origem. Nesta medida a fé recebe e possui, nesta sua origem e neste seu objeto, seu conteúdo concreto, de contornos definidos, podendo tornar-se um saber a respeito de Deus e do ser humano, da aliança de Deus com o ser humano, um saber a respeito de Jesus Cristo. Decerto não se trata de um saber meramente intelectual, mas - e este é nosso interesse no horizonte específi co da teologia - também de um saber intelectual, que deverá acontecer em conceitos e ser expresso com palavras! Qual fides quaerens intellectum, qual fé que, em toda a modéstia, mas não debalde, está empenhada na pergunta pela verdade, ela pode tornar-se evento que se renova dia a dia. Assim acontece, de forma incompreensível e inexplicável (lembramos o que foi dito na 6â preleção sobre o milagre da existência teológica como tal), mas pelo menos como evento descritível enquanto cura de uma pessoa antes surda, cega e muda, que foi capacitada a ouvir, ver e falar, que o assunto da teologia encampa uma pessoa de tal forma que ela tem condições de percebei, pesquisar, raciocinar e até falar em categorias teológicas. - Restam-nos agora algumas ênfases específicas a serem apontadas. 1. Conhecemos o dito: para tornar-se e ser teólogo, é preciso crer. correto que ninguém conseguirá nem ouvir, nem ver, nem falar teologica mente a não ser como pessoa libertada para a fé. De outra forma, só
conseguirá evidenciar sua brilhante falta de objetividade. Mas justo por só poder crer realmente como pessoa que - libertada para a fé - crê livremente, não será adequado se afirmar que ela precisa crer. Não seguiremos a Schiller, que diz: “Tu precisas crer, tu precisas ousar, pois penhor algum os deuses dão!” Isto é uma sabedoria pagã em todas as suas partes, inaplicável à fé cristã; pois, por um lado, a fé não é nenhum feito ousado comparável àquele que Satanás propôs ao Senhor no pináculo do templo; é, antes, um agarrarse - corajoso, mas também sóbrio - a uma promissão firme e certa. Ademais, tal agarrar-se de forma alguma acontece (ao menos na opinião do apóstolo Paulo) sem que houvesse um penhor, um penhor bem real, na presença e pela ação do Espírito Santo, que liberta o ser humano para a fé. E, finalmente, não se trata de nenhuma ação obrigada, mas sim de um ação que Deus permite ao ser humano: ela consiste na reação e conseqüência naturais da pessoa que, ao ser atingida pela graça de Deus, demonstra um pouco de gratidão humana - comparável ao desabrochar natural de um botão que se transfor ma em flor, comparável ao movimento espontâneo da flor em direção ao sol, ou então comparável ao sorriso espontâneo da criança à qual aconteceu algo divertido. 2. Fé é uma história - uma história nova a cada dia! Não é, pois, n eslado nem qualidade. Não deve, portanto, ser confundida com “religiosida de”. Certamente a fé poderá ter por conseqüência e abranger os mais variados tipos de religiosidade, que, no entanto, melhor seriam designados como tipos de “compreensão”. Explanemos: a compreensão de que seria mais indicado, por exemplo, ao sermos confrontados com o artigo do nascimento de Jesus Cristo de uma virgem, ou de seu descensus ad inferos | "descenso aos infernos”], ou da ressurreição da carne, ou com a informação sobre o túmulo aberto, ou com o dogma trinitário de Nicéia, ou com o dogma cristológico de Calcedônia - certamente também com a inclusão da Igreja na confissão do Espírito Santo - repetimos: a compreensão de que sei ia mais indicado não batermos logo com a mão na testa e recorrermos depressa a desmitologizações, mas, antes, perguntarmo-nos seriamente se de t a l o será o Deus do evangelho no qual julgamos crer, se acharmos ser possível passar por cima destes e de outros pontos similares ou, até, de climiná-los. Ocorre que poderia ser um deus totalmente diferente no qual passaríamos a crer em realidade. De qualquer modo, a religiosidade em i c l a ç a o a esses pontos e outros similares ainda não é fé. Crer não é credere i/notl |"crer que”], mas, conforme a formulação inequívoca do Credo Apostólii n: ncdere in [“crer em”]: a saber, em Deus mesmo, no Deus do evangelho, que r Pai, Filho e Espírito Santo. Quem crer neste Deus dificilmente poderá, a l o n g o prazo, esquivar-se da percepção de muitos pontos ainda e, assim, p. i s lambem dos acima citados. Não se trata, porém, de crermos “religiosanu nie" nestes pontos; trata-se, antes, de crermos nele, em Deus, no sujeito i l i l o d o s aqueles predicados. E isto que, fide quaerente intellectum [“através da b q u e busca o entendimento”], poderá vir a ser evento novo em cada dia de nossa vida.
3. O critério da autenticidade e capacidade de sustentação da fé que é indispensável a qualquer teólogo não consiste em ser ela uma fé especial mente forte, profunda, ardente. Nada se modifica pelo fato de ela ser, por via de regra, uma fé bastante débil, tênue, uma luzinha a bruxulear nas ventani as da vida e dos acontecimentos. Se, como diz o evangelho, uma fé tão pequena quanto um grão de mostarda é suficiente para deslocar uma monta nha, ela será suficiente também para não só tornar possível um fecundo conhecimento de Deus - e, portanto, a teologia -, mas igualmente para fazer tal conhecimento ser atuante. A pessoa é capaz de conhecer e, portanto, capaz de viver uma existência teológica pelo fato de, com sua pouca fé (cujo poder, neste particular, nada faz), permanecer orientada e orientar-se repeti damente por aquele em quem crê por ter sido libertada e, portanto, ser livre para crer. 4. “Ouço a mensagem, sim. A fé, porém, me falta!” [Fausto, de Goethe]. Pois é - a quem ela não faltaria? Quem seria capaz de crer? Certamente não o será quem afirmar que “possui” a fé em Deus, que ela não lhe falta, que se acha “capaz” de crer. Quem crê sabe e confessa que é deveras incapaz de crer “por sua própria razão ou força”. Ele se limita simplesmente a crer chamado e iluminado pelo Espírito Santo, portanto sem se compreender a si mesmo e sobremaneira admirado de si; e crê em vista da descrença que, também dentro dele, sempre acompanha a fé e se subleva. Ele só poderá confessar “eu creio” junto com e dentro da prece: “Senhor, ajuda a minha descrença”. Justamente não julgará, pois, possuir a fé, mas, antes, tão-só esperará tornar a recebê-la a cada novo dia, assim como os israelitas espera vam pelo maná no deserto; mas, ao recebê-la repetidamente, também será capaz de praticá-la seriamente a cada novo dia. Portanto, a pergunta se a fé, se o evento da fé estaria ao alcance de alguma pessoa, não deixa de ser uma pergunta leviana. Que a fé se torne evento - isso não se acha ao alcance de ninguém. A pergunta séria, porém, é: poderá uma pessoa a quem se tenha apontado a obra e palavra de Deus, que se manifestaram também a seu alcance, e a quem se tenha apontado o poder vivo do Espírito, que igualmen te age a seu alcance - poderá tal pessoa permitir-se e dar-se o luxo de ficar na declaração desoladora: “Acontece que me falta a fé!”? Ou quererá ela deixai de flertar com sua própria descrença, quererá viver na liberdade que tam bém a ela foi anunciada e dada, quererá viver, pois, como uma pessoa que não só deixa de rejeitar o intellectusfidei e, portanto, a cooperação na ciência teológica, mas que também é capacitada para o entendimento da fé e a cooperação na teologia? Quererá ser uma pessoa real e eficazmente admira da, abalada e comprometida, e, assim, apta para esse empreendimento?
3. Os Perigos que Ameaçam a Teologia
10ã Preleção:
Solidão Chegamos a uma terceira série de reflexões. Não poderemos evitar que a paisagem, de certo modo, se cubra de sombras. Acontece que, para apresentar uma introdução à teologia evangélica - de forma ponderada e, portanto, sem dramatizações desnecessárias, mas com toda a franqueza -, é preciso que prestemos contas do grande perigo ao qual tal empreendimento está exposto já a partir de suas teses básicas e, depois, igualmente em todas os seus desdobramentos e pormenores. Não é sem motivo que nossa desig nação da teologia como “ciência alegre” parece achar-se em relação bastante lensa com a prática da existência teológica, e em todo o caso não parece ser uma questão pacífica. Sabemos que não deveria existir tanta teologia que só com dificuldade (e muitas vezes com pouco êxito) consegue esconder sua inquietação, insegurança, preocupação - profundas, se bem que não deses peradas - frente à própria causa; mas fato é que existe, e o motivo não está só nas pessoas implicadas, mas, antes, também na própria causa. Embora a leologia seja uma boa causa - e até, bem compreendida, a melhor causa com a qual uma pessoa poderá lidar -, não será de bom alvitre negarmos nem ignorarmos que na teologia ela se mete num aperto que é suficientemente difícil para nos permitir entender - ainda que a lamentemos - a queixa do doutor Fausto por, além de muitas outras ciências, “infelizmente também ter csi udado teologia, e com o máximo ardor”. Assim será preciso - mesmo por ser inevitável - tratarmos do questionamento enfrentado pela teologia e, de acordo com nossas constatações mais recentes, enfrentado também pelo Icólogo admirado, abalado, comprometido, chamado para a fé. Trata-se de nm questionamento que não é absoluto, mas que, apesar de relativo, vem a sei bastante incisivo. Exemplificando, trataremos do assunto em algumas escalas de tonalidade menor, sem que, contudo, deixemos de passar, por I nu, a uma tonalidade maior moderada e contida. Quem se envolver com a teologia ver-se-á inevitavelmente levado - e rsie será nosso assunto, hoje - desde o início e, depois, repetidas vezes a uma csiianba solidão, notoriamente angustiante. “Não te importes se outros an il. por vias largas, luminosas e repletas” - foi assim que, conforme nosso iiuligo binário, o povo gostava de cantar (o hino é de Novalis), e isto poderia p.iicrcr válido também para a teologia e até soar razoavelmente bem. Mas i m o seria de todo honesto: pois quem, a não ser que seja um tipo esquisito mesmo, não preferiria, no fundo, viver em meio a um grupo maior, ser nislruiado pelo reconhecimento ou participação diretos ou indiretos da i olelividade e, assim, realizar uma obra evidente para todos ou, ao menos, a hnitos quanto possível? O teólogo deverá, em regra, conformar-se com o fato 1111
de tratar de seu assunto em certo isolamento (“por trás de uma muralha da China”, se apressarão alguns em dizer) - não só em relação ao “mundo”, mas também à Igreja. Para exemplificar, lembremos como a venerabilis ordo theologorun [“ve nerável ordem dos teólogos”] costuma existir na maioria de nossas universi dades: como a mais fina das faculdades, por certo, mas também como a espetacularmente menor, empurrada por suas irmãs mais imponentes e volu mosas para a sombra, para a margem - ao menos em termos numéricos e de instalações e equipamentos. Lembremos em especial a figura do pastor, particularmente patética em sua solidão, e sua peregrinação como estranho, sinistramente isolado devido ao nimbo sacerdotal que se lhe acha apegado desde tempos imemoriais - isolado de todos os que compõem sua comunida de urbana ou rural, na qual, na melhor das hipóteses, poderá estar rodeado por um pequeno grupo de pessoas especialmente engajadas, mas dificilmen te encontrará quem o assista em sua tarefa de explicar e aplicar a mensagem bíblica e, por conseguinte, justamente em seu labor teológico - exceção feita a um ou outro colega que não esteja demasiado distante dele em termos geográficos e espirituais. Lembremos a relação - singular já no sentido quantitativo - entre aquilo que deve ser transmitido às pessoas (na hipótese de que o queiram e consigam ouvir) em algumas horas de pregação e ensino eclesiásticos e aquilo que lhes invade a mente, em corrente ininterrupta, através de jornais, rádio e televisão. E estes não passam de sintomas do isolamento da preocupação da teologia, da tarefa e do labor teológicos. E um isolamento que se evidencia repetidamente, apesar de todos os gestos, interpretações e esforços em contrário (não obstante a ridícula expressão “reivindicação da Igreja de ser grandeza pública”). Esse isolamento precisa ser aturado e suportado, e nem sempre será fácil tolerá-lo com dignidade e jovialidade. Ela não é fácil, e sim difícil de suportar porque não parece, em absolu to, corresponder à natureza da teologia - pelo contrário, parece contradizê-la de maneira óbvia - o fato de ela ser praticada em algum lugar isolado, possivelmente com exclusão do público. A religião poderá ser assunto parti cular - a obra e a palavra de Deus como tais, porém, e, portanto, o objeto da teologia são a reconciliação do mundo com Deus, acontecida em Jesus Cristo, e, portanto, a mais radical modificação da situação de toda a humanidade, bem como a revelação desta modificação que diz respeito a todas as pessoas. Sem dúvida, ela é, portanto, questão de envergadura universal. O que foi dito aos ouvidos precisa ser proclamado do alto dos telhados. E não será possível e preciso afirmar também, por outro lado, que não corresponde à natureza das demais ciências humanas o fato de elas terem a teologia apenas ao lado de si, e de, ainda por cima, terem-na em algum lugar ao lado de si apenas como Cinderela mal e mal tolerada, enquanto se mantém em seu cantinho? Não deveria aquele objeto ou assunto da teologia ser, para todas as ciências, arquétipo* e exemplo da originalidade e da autoridade dos objetos com os quais elas se ocupam? Não deveria a primazia dada pela teologia à racionalidade daquele objeto sobre sua cognição hutna-
na ser também arquétipo e exemplo do raciocínio e discurso de todas as ciências? Pode a peculiaridade da teologia entre as outras ciências ser compreendida de outra forma a não ser pelo fato de que ela em todo caso não pode falhar naquele ponto em que as outras parecem falhar neste sentido? Não deveria ela, portanto, ter a função de uma espécie de “tapafuros”, tentando suprir a lacuna deixada pelas demais ciências, enquanto que no fundo toda ciência deveria ser teologia, tornando, por conseguinte, supérflua a teologia em seu caráter de ciência específica? A existência da teologia dentro daquele isolamento - mais ainda, a peculiaridade de sua existência como tal - não deveria ser compreendida e qualificada (a partir de sua própria natureza e da natureza das outras ciências) como um fenôme no em última análise anormal? Assim, a tentativa tão impressionante, feita em nossa época por Paul Tillich, se torna compreensível, ao menos quanto à sua intenção: a tentativa de integrar a teologia nas demais ciências, represen tadas pela filosofia, e, mais ainda, de integrá-la na própria cultura como tal e vice-versa: de integrar a cultura, a filosofia, a ciência na teologia, numa correlação indestrutível de pergunta e resposta, de superar a duplicidade de um raciocínio heterônomo e de um autônomo transformando-a na unidade de um raciocínio teônomo? Oxalá o filósofo como tal também quisesse ser teólogo! Conforme Tillich, ele o deve e pode ser. E principalmente: oxalá o teólogo como tal também quisesse ser filósofo! Conforme Tillich, ele o deve e pode ser. Que soluções, que aspectos teríamos aí! “Oxalá já tivéssemos chegado lá!” A impraticabilidade desta e de tentativas similares de superar a solidão da teologia se deve a um de três motivos: ou a teologia, retrocedendo lemerariamente a um ponto anterior à queda do ser humano no pecado, entende a si mesma como teologia paradisíaca, ou, pulando temerariamente sobre o tempo entre a primeira e a definitiva vinda de Jesus Cristo, se entende como teologia consumada, ou, ignorando mais do que temeraria mente ainda a diferença entre Criador e criatura, julga poder entender-se e dever agir como teologia arquetípica, isto é, divina. Uma teologia ainda sem pecado ou uma teologia já consumada, e, mais ainda, uma teologia do próprio Deus naturalmente não poderia ser uma ciência específica, distinta da filosofia ou das demais ciências, e menos ainda seria empurrada pelas mesmas para um cantinho qualquer. Uma teologia assim só poderia ser a lilosofia por excelência, a ciência por excelência (seja em virtude de ser plenamente iluminada pela luz divina, seja por identificar-se com esta luz). Acontece, porém, que aquilo que os seres humanos conhecem e praticam, aqui e agora, não poderá ter caráter paradisíaco (não mais estamos lá!) nem i aráter de consumação (ainda não estamos lá!), e muito menos caráter de teologia divina (jamais estaremos lá!). O que ela poderá ser, é teologia de seres humanos que, mesmo que ainda obcecados, j á vão conhecendo, ilumi nados pela graça de Deus, mas que ainda não agem qual videntes na glória da liilura revelação universal: será apenas theologia ektypa viatorum [“teologia ec típica dos que estão a caminho”]. Se em qualquer tempo houve uma ilusão pura - realmente “por demais bela para ser verdadeira” -, então foi a idéia de uma teologia filosófica ou a
de uma filosofia teológica, na qual se pretende raciocinar de modo “teônomo”, fazer desaparecer, através de integrações conceituais mútuas, a diferença entre o que, seja dejure (como o conhecer divino e o humano), seja de facto (como o conhecer protológico-escatológico e o conhecer humano contemporâneo), são dois fenômenos distintos. Neste campo, ser realista - não obstante a perspectiva da unidade de toda a ciência em Deus e no princípio e no fim de sua realização humana) só pode significar desistir de tais sínteses baratas, i. é, que com um pouco de inteligência e de inclinação teóricas são relativamente fáceis de construir. Raciocinando de forma realista, o teólogo se haverá de ater ao fato de que theologia archetypa [“arquetípica”] e ektypa, bem como theologia paradisíaca ou comprehensorum [“dos que apreendem, compreendem ou agarram”] e theologia viatorum, são duas coisas distintas e que só a segunda, não a primeira, poderá ser seu problema. Na história da teologia mais recente, muita coisa se teria desenvolvido de forma diferente e melhor se tais distinções, abstrusas só na aparência, não tivessem sido transformadas em “antiguidades dogmáticas” (Karl von Hase) naquela funesta passagem do séc. 17 para o 18. Mesmo que lamentemos a limitação apontada nessas distinções e mesmo que nada nos impeça de olharmos, esperançosos, para além das mesmas, fitando o que é perfeito, deveremos tomar cuidado para não tentarmos nós mesmos realizar tal perfeição; antes, consideraremos o que parece anormal como sendo o normal aqui e agora: que o conhecer, o raciocinar e o falar teológicos não podem ter caráter geral, que o geral não pode ter caráter teológico; portanto, que será necessário deixarmos intactas a particularidade e a relativa solidão da teologia em sua relação com as demais ciências, mesmo que nos sejam penosas. Não será esta, também, a situação da comunidade conclamada a testemu nhar a obra e a palavra de Deus no mundo - da comunidade na qual a teologia deverá prestar o seu serviço? E que esse povo de Deus, que peregri na neste entretempo, caso não quiser trair sua causa, igualmente só poderá anunciar a obra e a palavra de Deus a seu ambiente como sendo a grande novidade; mas não poderá fazer a tentativa de integrar o conhecimento desta novidade que lhe foi dado aos demais conhecimentos existentes em seu ambiente nem integrar os demais conhecimentos existentes em seu ambien te ao conhecimento específico que recebeu. A teologia não poderá se envergonhar da solidão na qual se encontra a comunidade dos últimos tempos justamente no cumprimento de sua tarefa missionária; o que poderá fazer (seja gemendo com ela, seja sorrindo, entre lágrimas) é compartilhá-la com ela. Não deverá, portanto, tratar de se desvencilhar da própria solidão. Haverá de efetivamente aturá-la, suportá-la com dignidade e jovialidade, reconhecendo nela uma forma específica do perigo que certamente não a afeta por mero acaso. A inevitável solidão da teologia e, por conseguinte, também do teólogo se evidenciará fazendo-lhe saltar aos olhos, com dolorosa freqüência, em que grau ele se verá forçado a viver solitário em todos os âmbitos, e assim também na comunidade e, o pior de tudo, também entre muitos de seus
colegas teólogos - solitário no que diz respeito ao que, no segundo ciclo destas preleções, qualificamos como a admiração, o abalo e o comprometi mento que transformam uma pessoa em teólogo. Talvez não se ache tão solitário assim como em alguns momentos especialmente aflitivos poderá ser levado a crer! Poderá descobrir, por exemplo, que não está sofrendo de alucinações pessoais, como por vezes lhe poderá parecer, ao analisar pala vras de pessoas que nem parecem ser cristãs e que de nenhuma forma admitiriam ser consideradas teólogos, mas que, de fato, também parecem conhecer o abalo que o faz ser teólogo. Entretanto, não poderá contar com essa possibilidade. Em realidade, ele procurará tantas e tantas vezes - intra et extra muros ecclesiae [“dentro e fora dos muros da Igreja”] - companheiros admirados, abalados e comprometidos, sem os encontrar, ficando, antes, com a impressão, muitas vezes aguda e penosa, de que aparentemente para inúmeros cristãos e não-cristãos é coisa muito fácil eximir-se mais ou menos comodamente do abalo que o faz ser teólogo. Conheço dois homens, a seu modo, pessoas excelentes - ambos, médicos -, que, com toda a amizade, consideram a disposição mental do teólogo, mesmo no caso mais favorável, como uma espécie de doença - possivelmente hereditária! Como o teólogo poderá deixar de ver em tal opinião um questionamento de sua existência, se não um perigo grave para a teologia como tal, e como evitará que tudo isto o perturbe? Será necessário aturar e suportar isso na fé! Mas é precisamente a fé, a relação básica pela qual aquele abalo se distingue de outras experiências humanas empolgantes, que não parece ser “coisa de todos”. Certo: a fé, o distintivo específico que faz a pessoa ser teólogo, é a fé da comunidade cristã: o usufruto da liberdade, dada a todos os cristãos, de aceitar a palavra de Deus, de depositar nela sua inteira confian ça, de se tornar integralmente obedientes a ela. Não parece, portanto, que haja falta de “companheiros de fé”. Acontece, porém, que a comunidade cristã, como congregatio fidelium, é justamente a comunhão de pessoas que, como indivíduos, caso realmente creiam, deveriam, quereriam e iriam crer, mesmo que cada um deles fosse a única pessoa no mundo que assim fizesse. Sem tal premissa básica uma pessoa nem poderá ser teólogo, não poderá cumprir sua função específica na comunidade e no mundo. Mas jamais deixa de ser uma coisa dura quando ele, de caso em caso, é posto à prova nesta sua solidão, necessária precisamente em razão da comunhão na fé. E é uma coisa dura o fato de que isso se manifestará continuamente, mesmo que de forma latente: pelo que toca sua fé, sua participação na fé da comunidade, nenhuma outra pessoa poderá tomar-lhe o lugar; serão poucos os que, nesta sua luta, ele poderá ter a seu lado de modo que o saiba e perceba, e mesmo quanto a estes poucos ele só poderá ter relativa certeza. Como poderá ter certeza da própria fé? Com isso não é questionada também sua fé e, por conseguinte, sua existência teológica e, por conseguinte, a própria teologia como tal, sendo garantida tão-somente pela palavra de Deus e, portanto, pelo testimonium Spiritus Sancti [“testemunho do Espírito Santo”]? Nesta situação angustiante, Calvino, e antes dele Agostinho e outros, lançaram mão da conhecida versão mais rigorosa da doutrina da predestinação. Mas acontece que também tal explicação é incapaz de dar conforto real ao solitário. De
fato o próprio Calvino não encontrou outra alternativa a não ser a de aturar e suportar a solidão de sua fé para, precisamente nesta condição, raciocinar e falar como teólogo eminentemente eclesial. Mas é também o próprio raciocínio teológico específico, com o qual se acha forçosamente encarregada a pessoa que se ocupa com a teologia, é precisamente o intellectus fidei em sua peculiaridade que repetidas vezes a levará à solidão. Como poderia haver, mesmo entre as pessoas libertadas para a fé, muitas que estejam prontas e em condições de, para poder efetivar o intellectus fidei, apropriar-se do único método possível para isso, de ousar dar a necessária volta de 180 graus (e isto não uma vez, mas a cada novo dia) e de, em conseqüência, perguntar e responder não a partir do ser humano, mas a partir da palavra de Deus dita aos seres humanos? Será deveras compreensível que a maioria veja nesta condição uma exigência excessiva, que mesmo a promissão da liberdade do Espírito lhes pareça um aprisiona mento desnaturado! E se fossem apenas médicos, juristas, historiadores e filósofos que o teólogo encontrasse abanando a cabeça à beira do caminho que lhe é ordenado trilhar! Se não fossem tantos representantes de sua própria profissão, que, após breve arranque (ou mesmo nem tendo tentado tal arranque), pensando ter descoberto as últimas novidades nesta área, voltam o olhar para as panelas de carne do Egito, recaindo em qualquer tipo de psicologismo ou de historicismo, ou, quando muito, em qualquer sistema de antropologia, ontologia ou lingüística - assim como o gato, solto no ar, costuma cair com as quatro patas no chão! Se quiser envolver-se com a teologia, e se não quiser ver meras trivialidades resultarem desse seu envolvimento, ele não deverá ter medo de nadar contra a correnteza, precisa mente em sua atitude intelectual, aturando e suportando a relativa solidão em que deverá se exercitar nesta atitude. E não esqueçamos que a teologia não se restringe à exegese, à história da Igreja, à dogmática; ela nunca deixa de ser ética também: elaboração de uma determinada concepção acerca do preceito divino, proclamado na e com a promissão divina, acerca da ação na Igreja e no mundo, embutida na obediência da fé, acerca da tarefa prática dada ao ser humano junto com o dom da liberdade. Não será de esperar, porém, que tal concepção esteja, sem mais nem menos, em conformidade com as inclinações, posições e tendênci as prevalecentes no mundo e mesmo na Igreja. Dever-se-á, antes, esperar que a teologia, com suas perguntas e respostas, precisamente neste campo por via de regra se encontre em oposição mais ou menos expressa às opiniões e aos pareceres dos senhores pequenos e grandes, não-cristãos e mesmo cristãos, de “todo o mundo”. A teologia não é inimiga do ser humano, mas, tendo por tema o novo ser humano no novo cosmo, é em seu cerne um empreendimento crítico, e até revolucionário (a não ser que sofra de paralisia espiritual); e quem se envolve com ela deverá estar preparado para o fato de não poder agradar às pessoas justo no seu pensamento e discurso relaciona dos com questões da vida prática, de encontrar-se justo neste sentido numa minoria ao menos profundamente suspeita a uma sociedade que costuma aplicar critérios totalmente diferentes. Não admira que em tal situação o teólogo possa ficar desanimado, amargurado, cético, e mesmo belicoso e
raivoso, feito eterno acusador de seus irmãos com sua estultícia e maldade em termos de vivência. Mas está claro que é precisamente isso que não deverá acontecer. Justamente a ética evangélico-teológica, a não ser que queira desmentir a si mesma, só poderá - não obstante todo o seu caráter categórico - ser apresentada em máxima serenidade e em espírito pacífico. E mesmo assim, sua voz só será agradável aos ouvidos de poucos, e haverá o risco constante e nem sempre desprezível ao qual se acha exposto “o pássaro solitário sentado no telhado”, sujeito a ser atingido por quem sentir vontade de abatê-lo. Não é inverossímil que a teologia dificilmente alguma vez possa vir a ser popular, precisamente por causa da inquietação ético-prática que dela parte, direta e indiretamente: não será popular entre os “filhos do mundo” e também não entre os piedosos. Quem se envolver com ela precisará, se o fizer com seriedade, estar pronto e ser capaz de aturar e de suportar solidão justamente neste sentido. É isso o que temos a dizer com referência aos perigos que ameaçam a teologia sob este título.
1 l ã P re leç ão :
Dúvida A segunda modalidade do perigo que ameaça a teologia, da qual haveremos de falar agora, é mais ameaçadora do que a primeira, por não a atingir de fora, mas por costumar ocorrer no próprio ato de fazer teologia, por ser, de certo modo, imanente à teologia: a dúvida. Trata-se, no entanto, de dois aspectos distintos deste fenômeno. A dúvida é perigosa para a teologia em ambas as formas. Mas a primeira modalidade se distingue da segunda pelo seguinte: a dúvida que surge em sua primeira forma faz parte da natureza de todo o empreendimento, e se pode e deve fazer alguma coisa para neutralizar sua periculosidade, enquan to que, na segunda modalidade, ela representa uma ameaça nada natural para todo o empreendimento da teologia como tal; perante esta ameaça só poderemos dar a senha que tivemos de dar repetidas vezes no capítulo sobre a solidão: aturar e suportar! A primeira modalidade de dúvida, que não deixa de ser perigosa também, mas que, de certo modo, é natural e passível de tratamento, resulta do fato de ser tarefa da teologia levantar a pergunta pela verdade face à obra e à palavra de Deus. Isto é, ela terá de pesquisar constantemente o conteúdo da revelação acontecida na ação de Deus pela qual o mundo foi reconciliado com Ele, terá de perguntar constantemente pelo significado da proclamação divina dessa ação, tratando de descobrir sua verdade e, assim, sua realidade. A dúvida, neste sentido, aparece ao lidarmos com a pergunta pela verdade como tarefa que o teólogo nunca poderá dar por terminada e que se lhe coloca de formas sempre novas. A teologia da Idade Média e também a do protestantismo mais antigo (que não é bem o que Joãozinho pensa, ao ouvir o termo “ortodoxia”) eram feitas como tal lidar incansável com a pergunta pela verdade: levantavam-se séries de questões, i. é, de perguntas formuladas com a máxima precisão possível, nas quais mesmo as coisas aparentemente mais primitivas, como, p. ex., a existência de Deus, inicialmente eram postas em dúvida, para, em seguida, serem respondidas, de caso em caso, com a mesma precisão e da melhor maneira possível. Em tal trabalhoso jogo de pergunta e resposta também eram feitas as exposições dos antigos catecis mos, entre quais o de Heidelberg, p. ex., se podia perguntar, retrospectiva mente, até mesmo em relação à doutrina reformatória da justificação deveras uma senhora dúvida -, “se tal doutrina não produziria pessoas levianas e iníquas?”. Tal dúvida simplesmente assinala o fato de que na teologia nada realmente nada - é evidente, nada é gratuito, de que tudo deve ser consegui
do mediante trabalho para ser válido. Uma teologia paradisíaca não tinha necessidade de tal trabalho; a teologia da glória também não necessitará dele; e na teologia arquetípica do próprio Deus a resposta se identificaria de todo com a própria pergunta pela verdade. Assim não acontece com a teologia do “tempo entre os tempos”, a lheologia ektypa viatorum, que nos compete fazer. Nela se faz necessário labor teológico e, por conseguinte, é preciso perguntar abertamente e, portanto, também duvidar (“socraticamente”). “No suor de teu rosto ganharás o teu pão até que tornes à terra da qual foste tomado”. Isto se aplica tanto ao pastor que prepara o seu sermão no sábado quanto ao estudante que assiste a uma preleção ou lê um livro. Mas não é coisa para qualquer um enfrentar repetidamente tal dúvida “socrática”, responder, portanto, à pergunta pela verdade (que costuma levantar-se de novo, a cada novo passo que damos) no suor de seu rosto. O preguiçoso dirá, confrontado com a necessidade de duvidar para alcançar a verdade: “Um leão está lá fora. Serei morto no meio das ruas” (Pv 22.13), dando por terminado o labor teológico antes de o ter começado. O caráter penoso da dúvida que, neste sentido, é sumamente necessária e legítima, representa, pelo visto - já que os preguiçosos são muitos e nós todos o somos, bem no fundo -, uma séria ameaça à teologia. Mesmo assim: ela pode ser superada. Fiat! [“Que seja feito!”] Outras são as condições que caracterizam a segunda modalidade de dúvida, com a qual nos haveremos de ocupar agora de forma muito mais precisa. Em meio ao labor teológico, i. é, em meio às perguntas que são necessárias para executá-lo, poderia surgir a inquietante pergunta (e ela realmente surge): se o empreendimento todo, o empreendimento como tal, deverá ser ousado e será viável? Em concordância com nossas reflexões feitas anteriormente, não é natural nem evidente que a pergunta pela verdade nos seja colocada pela obra e palavra de Deus, que se transforme em tarefa nossa e que sejamos incumbidos de ao menos iniciar o labor, ligado a algum esforço de nossa parte; e, portanto, não é natural nem evidente que todo o esforço teológico não pudesse carecer de razão de ser. Não acontece que até a dúvida na existência de Deus (uma doença da moda entre as pessoas cultas já na primeira parte do séc. 18, a qual parece ter afetado até o jovem Zinzendorf) parece repetidas vezes inquietantemente plausível tam bém àqueles que há muito compreenderam a natureza simplória de tal dúvida e que talvez tenham aprendido com Anselmo de Cantuária a enfrentá-la de forma adequada? Que será, se o teólogo de fato vacilar, indeciso, precisamente no ponto a partir do qual a confrontação com a dúvida precisa ser travada, a partir do qual ela realmente deve ser percebida - e desprezada - como manifestação de uma criatura insipiens [“insipiente”]? Afinal, será verdadeiro, será real o objeto da teologia - independentemente de todos os argumentos apologéticos mais ou menos sustentáveis de caráter histórico, psicológico e especulativo, independentemente também de todos os sentimentos piedosos e das correspondentes auto-assegurações - será verdadeira e real aquela história do Imanuel, sua revelação e nossa percepção dela? Será que Deus nela existe, age e fala? Elá algo assim como aquele testemunho interno do Espírito Santo pelo qual somos certificados da exis
tência, da atuação e do falar de Deus naquela história? Qual a resposta que deveria ter sido dada àquele personagem do séc. 18 que afirmou, laconicamente, que ele, por sua parte, nunca tinha recebido tal testemunho? David Friedrich Strauss chegou a chamar precisamente a doutrina do testimonium Spiritus Sancti internum de calcanhar de Aquiles do sistema protestante ortodoxo. O que seria, se alguém - se talvez todo e qualquer teólogo, quer o admita, quer não, fosse vulnerável neste calcanhar de Aquiles, que não tem poder de cobrir, e se de fato fosse ferido continuamente nele? Observemos que dúvida, também neste sentido, não é sinônimo de negação. Dúvida significa apenas justamente - e isso poderia ser algo muito pior - oscilar e vacilar entre o sim e o não: significa só a incerteza - mas nesta sua segunda forma (que não deve ser confundida com a franqueza do perguntar teológico, que é uma franqueza penosa, mas necessária) ela é incerteza frente ao próprio problema da teologia, embaraço em relação às próprias premissas, a saber, em relação à necessidade e ao sentido do pergun tar teológico como tal, embaraço já com vistas à própria palavra de Deus, a ser inquirida quanto à verdade nela contida, embaraço já com vistas à presença e ação de Deus que fundamentam e exigem a teologia como investigação de seu logos, embaraço em relação à liberdade para o labor teológico! Será que sou livre para tal labor? Ou talvez não o seja ? Oscilar e vacilar, incerteza, embaraço - “talvez seja, mas talvez não!” - já no ponto de partida: quem deixará de ver a séria ameaça a que isto expõe a teologia? Também a dúvida nesta sua segunda forma naturalmente só poderá ameaçar a teologia em sua realização humana, no horizonte da era presente. Nesta era, o raciocínio humano - também em sua relação com a obra e palavra de Deus - não será apenas, por necessidade de sua natureza (disso resulta a primeira forma de dúvida) um raciocínio dialético, i. é, que continuamente levanta perguntas e as responde, mas será também - e isto é contra a natureza - um raciocínio doente por causa da alienação do ser humano de sua origem e seu alvo, um raciocínio constantemente exposto à perversão, ao erro, e mesmo ao erro mais fundamental. Nós esperamos (abstraindo de todo da idéia profundamente confortadora de que Deus, por certo, não duvida de si mesmo) que também nosso raciocínio venha a ser radicalmente sanado, e no poder de tal raciocínio renovado a dúvida em relação ao problema da teologia já não nos será problema. Para citar Johann Mentzer: “No coro bem-aventurado melhor louvor hei de cantar.” No espaço do presente século, porém, no “tempo entre os tempos”, no qual mesmo o cristão que tem certeza da graça de Deus e, portanto, também o teólogo, não deixam de ser pessoas pecadoras, aquela dúvida é de fato um problema para nós. Oscilar e vacilar, incerteza e embaraço precisamente em relação à obra e palavra de Deus correspondem à ambivalência que condiciona nossa exis tência aqui e agora e que só conseguimos transcender com a prece: “Venha o teu reino!” Os motivos pelos quais e as formas nas quais se levanta repetidamente a dúvida que ameaça a teologia como tal poderão ser os mais diversos. Mas sempre serão indícios de um mal definido: nós, i. é, a comunidade e os
cristãos (e assim também nós, teólogos) como membros dela, temos parte irrestrita na mensagem de nossa libertação para Deus já consumada, mas repetidamente deixamos de fazer uso de nossa liberdade que exclui a dúvida. Nós enxergamos, conhecemos, sabemos tudo, para então de novo não enxergar, nem conhecer, nem saber nada. A teologia não poderá se tornar evento, aqui e agora, de outro modo do que em toda a sua ameaça interna por parte dessa contradição, de outro modo do que nesse caráter de obra fragmentária. - Queremos, a seguir, apenas esboçar três motivos e formas da dúvida que ameaça, mina e cinde interiormente a teologia. Poderá ser (1) o desfile dos poderes e autoridades que ainda exercem domínio neste século e que, de forma aparentemente séria e em todo caso sinistra, competem com a obra e palavra de Deus, frente aos quais pode surgir poderosamente a dúvida em relação à teologia. O que representa o poder divino do evangelho, que Paulo tanto glorifica, em comparação com os poderes do Estado, dos estados, hoje em dia de agrupamentos de estados, em comparação com os poderes econômicos mundiais, das ciências naturais e da técnica que nelas se baseia, da arte - tanto da nobre quanto da menos nobre, do esporte e da moda, das ideologias antigas e recentes - místicas ou racionalistas, morais ou imorais? Não será que o ser humano, na verdade, vive deles e não, ou praticamente não, da palavra que procede da boca de Deus? Será que Deus de fato disse algo que seja inequivocamente superior a todos esses poderes, algo que limita e subjuga todos eles? E será que o disse de tal forma que o ser humano está inequivocamente comprometido - mas tam bém seja livre para isso - a raciocinar e falar a partir daquilo que Deus disse ? Não teria que ser cego o teólogo que não se deixasse impressionar - talvez aos poucos ou talvez de repente, inteiramente ou pelo menos quase inteira mente - por esses outros poderes, perdendo, por conseguinte, de vista o objeto da teologia e no mínimo começando, assim, a duvidar em relação ao sentido e às possibilidades da mesma - segundo as palavras da Epístola de Tiago: igual à onda do mar que é impelida e agitada pelo vento? “Não suponha esta pessoa que alcançará do Senhor alguma coisa”, acrescenta Tiago. E como poderia? Mas o que será da pergunta pela verdade que lhe é colocada? Que será de seu serviço na comunidade e no mundo? E, de passagem, que será dele mesmo, que, afinal, ousou entrar neste barco? Mas a dúvida também poderá ter sua origem (2) na comunidade que o cerca: na fragilidade, na desunião, talvez até na perversão da forma e da pregação da Igreja que lhe é familiar. A grande crise da fé e da teologia cristãs que começou no séc. 17 não teve por causa primária o surgimento da ciência moderna e do Estado absolutista, que mais tarde também passou a ser indiferente quanto à religião. De acordo com a hipótese bem plausível de E. Elirsch, ela iniciou, antes de todos os abalos partidos da ciência e do Estado, simplesmente com o fato penosamente desconcertante (ratificado de forma oficial e demonstrativa na Paz da Westfália) de que três confissões diferentes passaram a existir de maneira estável lado a lado ou frente a frente, cada uma delas reivindicando a validade exclusiva de “sua revelação”, e a se relativizar mutuamente; e este fato ainda veio a ser dolorosamente acentuado ao se estabelecerem os primeiros contatos com as grandes teli-
giões não-cristãs do Oriente Próximo e do Extremo Oriente. Mas a visão da obra e palavra de Deus também poderá ser bloqueada para a pessoa - e assim também para o teólogo - por tudo o que, casualmente ou não, se lhe defronta como Igreja, doutrina e ordem eclesiásticas, cristianismo e cristan dade - talvez até, de forma bem concreta, pessoas ou grupos de pessoas específicos - e que se lhe torne motivo de escândalo. Não é fato que houve cruzadas, guerras religiosas, perseguições de judeus, autos-de-fé e processos contra hereges? A cristandade não falhou muitas vezes e com tenacidade na questão da escravidão, na questão racial, na questão da guerra, dos direitos da mulher, na questão social? Não continuam existindo formas estranhamente rígidas de bitolamento e de fanatismo até o dia de hoje, ao lado de um mar de arbitrariedade cristã e mesmo teológica, de superficiali dade, passividade, falta de disciplina, insignificância? Não será compreensí vel que uma pessoa, em vista de tais fenômenos, chegue a ser tomada por incerteza e repulsa em relação a tudo? Não haverá razão para ao menos pôr em dúvida o assunto em sua totalidade? A pessoa que identifica os fenômenos que percebe ou julga perceber com a causa que, sob tais condições, não poderá esposar de sã consciência - não poderá e não deverá ela ficar enojada de toda a teologia? O resultado poderá ser que ela não possa nem queira confessar: Credo ecclesiam [“Creio a Igreja”]. Mas, como, então, poderá con fessar - o que seria premissa para um labor teológico alegre e frutífero: Credo in unum Deum [“Creio no Deus uno”]? Mas cada um precisa examinar a si mesmo para verificar se, no fundo, não é o mundo (que tanto o impressiona) nem a Igreja (que o impressiona tão pouco) que o levam a duvidar, mas (3) uma falha básica de sua própria maneira de viver, tanto interior quanto exteriormente, falha da qual, como é notório, cristão algum, e por conseguinte também teólogo algum, consegui rá se livrar por completo. Neste particular, devem ser levadas em conta duas possibilidades, antagônicas entre si, que, cada uma a seu tempo (talvez, em “concorrência ideal”, também as duas ao mesmo tempo), decerto desempe nharão uma função ao menos parcialmente determinante na gênese da dúvida teológica, além das primeiras duas causas já apontadas. Poderá acontecer, pois, que por um lado a pessoa chamada, em condi ções e também disposta a exercer o labor teológico (3a) julgue dever ou poder viver em duas realidades, de forma dualista, seja de modo aberto, seja de modo encoberto: a saber, no conhecimento da fé, mas de uma fé que só está disposta a viver como obediência dentro de certos limites. Ao lado do intellectus fidei ela permite a si mesma uma praxis vilae [“prática de vida”] de outra espécie, que não é controlada pela fé, mas que segue o acaso ou suas próprias leis inerentes; ao lado de seu saber acerca da obra e palavra de Deus, um querer secular, trivial, que não é vinculado e dirigido por esse saber; ao lado de um raciocinar, falar e agir organizados pelo objeto da teologia, um raciocinar, falar e agir que são organizados auto-suficientemen te por ela mesma ou que nem são organizados. Assim é evidente que ela se encontra, a partir da origem, numa relação tensa com o Espírito Santo, que, de acordo com o apóstolo Paulo, quereria e deveria testificar ao espírito dela, mesmo que (quem não conheceria tal fato?) teoricamente ela aceite sua
obra. Será de admirar se, sob tais condições, o teólogo - se for sincero para consigo mesmo - tiver de reconhecer-se e de confessar-se como uma pessoa que tem uma das pernas paralisada, portanto como um teólogo manquejante, como um teólogo que duvida? Se crer só pela metade, não poderá esperar que venha a conhecer mais do que a metade e precisará ficar contente se apenas continuar a vacilar e a oscilar e se não acabar caindo de vez! Ora, no Apocalipse se encontra a palavra dura que afirma que o Senhor, ao não o encontrar quente, preferiria vê-lo frio, e, por encontrá-lo morno, o cuspirá de sua boca! O que, neste caso, será, a longo prazo, de sua teologia que talvez, dentro de seu compartimento estanque, nem seja de todo má? Mas a falha básica existente na sua conduta de vida que o leva forçosa mente a duvidar poderia ser justamente a falha oposta. No relacionamento do ser humano com a obra e palavra de Deus não há apenas uma subalimentação, mas (3b) também uma superalimentação igualmente igualmente prejudi cial. Talvez o teólogo provenha de uma família na qual a teologia não representa só o A e o Z do alfabeto (como seria correto), mas o sucedâneo de todas as demais letras (o que seria errado). Ou ele foi dedicar-se à teologia como neófito, com toda a exclusividade de um primeiro amor, e com um resultado semelhante ao descrito. E agora ele não só vive em tudo como teólogo, mas vive só como como teólogo, excluindo tudo tudo mais que existe. No fundo não lhe interessa nenhum jornal, nenhum romance, nenhuma arte, nenhu ma história, nenhum esporte - a rigor, também as pessoas não lhe interes sam. Em última análise, o que lhe interessa é seu trabalho teológico, seus interesses teológicos. Quem não conhecerá tal fenômeno? E não há apenas estudantes e professores de Teologia que se excedem em relação e ela, mas também há pastores que, durante toda a sua vida, vivem, em meio à sua comunidade, metidos debaixo de uma campânula de vidro e que, em tal excesso teológico, tratam de se comunicar e relacionar com o resto da humanidade. E um empreendimento perigoso! “Não sejas demasiadamente piedoso nem exageradamente sábio; por que te destruirás a ti mesmo?” diz, não por acaso, o Qohelet (7.16). E que desta forma um teólogo poderá dar cabo de si mesmo: não só por ser bastante provável que ele fracasse na execução desse experimento, para depois, inadvertidamente e talvez de modo bem maciço, recair no sistema dos dois reinos, com todas as conseqüências inerentes, mas sobretudo porque toda hipertrofia, também a teoló gica, comprovadamente costuma levar com facilidade ao tédio - que neste caso seria o que a antiga terminologia dos monges designava como o pecado mortal do taedium spirituale, que se acha só a um pequeno passo de distância do ceticismo. Uma existência concentradamente teológica teológica é uma coisa boa, é a melhor das coisas. Já uma existência exclusivamente teológica, na qual a pessoa, em última análise, desempenha o papel fatal de um deus que não liga ' " para sua própria criação, não é uma coisa boa, e mais cedo ou mais tarde inevitavelmente levará à dúvida, à dúvida radical. Em relação ao nosso tema só podemos ainda formular os seguintes três aforismas provisórios:
1. Nenhum teólogo, seja sej a jove jo vem m ou idoso, id oso, crente ou menos crente, experiente ou não, deveria pôr em dúvida o fato de que também ele próprio, por qualquer motivo e de qualquer maneira, é uma pessoa que duvida - e que tem dúvidas daquela segunda espécie antinatural a que aludimos acima - e que de nenhum modo suas dúvidas são coisas do passado. Com a mesma razão - mas isso decididamente não seria bom - poderia duvidar que também ele seja um mísero pecador que, na melhor das hipóteses, foi salvo que nem tição que se tira do fogo. 2. Ele não deverá negar, também, que sua dúvida - a deste segundo tipo - seja uma coisa totalmente maligna, que não tem sua origem na boa criação de Deus, mas na nulidade, lá onde não só raposas e lebres, mas também os mais diversos demônios se despedem com um “boa noite” [N. do T.: Referência a um provérbio popular alemão: aí onde o mundo acaba, onde não existem mais condições de vida.] Há, por certo, uma justificação da pessoa que duvida. Não há, porém - e isto eu gostaria de cochichar ao ouvido de Paul Tillich - justificação da dúvida. Ninguém, portanto, pelo simples fato de duvidar, deveria considerar-se especialmente sincero, profun do, refinado e nobre. Não deveríamos flertar nem com nossa descrença, nem com nossa dúvida. O que deveríamos fazer é envergonhar-nos dela, de coração. 3. Entretanto, o teólogo confrontado com a dúvida, mesmo a mais radical, não deve se entregar ao desespero. Não o deverá porque, embora a dúvida tenha seu espaço - a saber, o presente século - no qual ninguém, inclusive o teólogo, a consegue evitar, esse espaço é um espaço limitado. Com a prece: “Venha o teu reino!” ele, a cada momento, poderá olhar para além desse espaço, e mesmo dentro dele poderá pelo menos opor-lhe resistência, mesmo que não o possa simplesmente eliminar. No mínimo, poderá, de modo semelhante àquela mulher huguenote, riscar um Resistez! na vidraça da janela do calabouço. Aturar e suportar! Até aqui nossas reflexões sobre os perigos que ameaçam a teologia sob este segundo título.
12a Preleção:
Tribulação Solidão e dúvida não representam o pior nem o mais grave dos perigos que ameaçam a teologia. Ela também poderá vir a ser questionada a partir do próprio assunto ou objeto do qual vive, para o qual se acha voltada, no qual se fundamenta seu direito e ao qual procura corresponder. Ela também poderá vir a ser ameaçada por Deus. Poderá? Na realidade ela é e está ameaçada por ele. A teologia é atacada não só de fora (10a preleção) e não só de dentro (11a preleção); ela também é atacada a partir de cima. Seu trabalho se realiza - este termo pesado será preciso empregar agora - em meio à tribulação, i. é, sendo posta à prova pelo fogo devorador da justa ira divina (1 Co 3.12), que devora totalmente a madeira, o feno e a palha de sua obra. E é evidente que tudo que até o momento foi dito com respeito aos perigos que a teologia enfrenta será simples brincadeira em comparação com o que temos de considerar sob este terceiro título. Decerto teremos sobeja razão de nos admirarmos do fato de haver tanta teologia que vemos diligentemente ocupada com as mais diversas tentativas de fugir à sua solidão e de defender-se das dúvidas que ameaçam minar seus fundamentos, uma teologia que, pelo visto, também anda bastan te atarefada em outros sentidos, mas em cuja atitude quase não se percebe que também ela se ache sujeita àquela provação vinda de cima, uma teologia que parece sofrer curiosamente pouco sob o ataque de Deus e que parece encontrar pouco ensejo para expor-se ao confronto com essa suprema e mais aguda forma de ameaça que paira sobre ela. Mas quem, neste particular, não teria de se admirar em primeiro lugar de si mesmo? Qual o teólogo que, neste sentido, poderia considerar-se livre de toda leviandade, que poderia assegurar e possivelmente vangloriar-se, afirmando que existe, raciocina e fala seriamente consciente da tribulação divina que acomete seu trabalho, que se porta e pode po de ser se r identificado identificado como c omo alguém que se confronta confronta com essa tribulação? A coisa mais grave nesta grave questão poderia consistir no fato de que, com tamanha facilidade, todo teólogo deixa de perceber ou esquece repetidamente que seu empreendimento é um empreendimento ameaçado neste sentido mais perigoso. A “tribulação ” experimentada pela teologia é simplesmente o evento pelo qual Deus se subtrai a essa obra empreendida e posta em andamento por seres humanos, pelo qual ele vela sua face perante a ação desses seres humanos, pelo qual vira as costas à mesma, negando-lhe, com todas as conseqüências que isto acarreta, a presença e a ação de seu Espírito Santo - e a quem, afinal, ele as deveria? A obra à qual isso sucede não será necessaria mente a obra de uma teologia má; vista com olhos humanos, poderá ser
também a obra de uma teologia boa, e até da melhor teologia. Em vista da tradição da qual se origina ou em vista dos novos rumos que está experimen tando, ela poderá ser uma teologia excelente, talvez conservadora no melhor sentido do termo e, ao mesmo tempo, modernamente progressista. Talvez não lhe faltem fundamentação bíblico-exegética, nem profundidade e com petência sistemáticas, nem relevância para a atualidade, nem utilidade práti ca. Talvez em seu âmbito sejam proferidos sermões bem preparados e vivos, que, por sua vez, sejam ouvidos com interesse pelo menos num círculo mais ou menos extenso de ouvintes (selecionados para isto) modernos e outros. Produz-se literatura importante, de conteúdo sólido e ousado. Suas teses são estudadas, discutidas e incansavelmente superadas por outras, melhores. Os jovens escutam, atentos, e também os mais velhos externam seu contenta mento. A comunidade se diz edificada, e nem o mundo passa de largo, desinteressado. Em resumo: neste caso, parece ter sido acendida na Igreja uma luz que é aceita com gratidão, e ela também parece luzir. Talvez seja algo comparável à inscrição que se acha sob o retrato de um antigo professor e antístite de Basiléia (trata-se de Hieronymus Burckhardt, homem douto, eloqüente e sempre bem disposto, do começo do séc. 18): “O Deus, este homem é o adorno de nossa cidade. Dá que sua pregação a muitos deleite, dá-lhe muitos anos de vida!” Pode ser que assim seja, mas de que adianta? Tudo está em ordem, mas, ao mesmo tempo, tudo na mais lamentável desordem! As mós da atafona giram, mas giram sem moer grão. Todas as velas estão colocadas, mas não há vento que ponha o barco em movimento. O poço está aí, com o encanamen to em perfeito estado, mas não produz água. Aí há ciência, mas não há conhecimento a luzir no poder de seu objeto. Há crença, mas não há a fé inflamada por Deus e que, em conseqüência, transmita o fogo a outros. Aí em realidade não acontece o que parece estar acontecendo. Pois o que acontece é que Deus, de quem se está pretensamente tratando, se limita a silenciar a respeito de tudo que é pensado e falado - infelizmente não a partir ele, mas apenas sobre ele. Acontece que ele está para a teologia e para os teólogos assim como poderia ser descrito por meio de uma variação do famoso trecho constante em Amós 5: “Odeio, rejeito vossas preleções e seminários, vossos sermões, palestras e estudos bíblicos; não posso cheirar vossas discussões, congressos e retiros. Pois ao desdobrardes vossas sabedori as hermenêuticas, dogmáticas, éticas e pastorais uns perante os outros e perante mim - não tenho prazer nestes sacrifícios e não me agrado da oferta de vossos bezerros cevados. Afastai de mim o estrépito que vós, os velhos, fazeis com vossas publicações volumosas, e vós, os moços, com vossas disser tações! E não quero ouvir as melodias das recensões e críticas que tocais em vossas revistas teológicas, panorâmicas ou informativas, em vossos jornais eclesiásticos e literários.” Coisa terrível, quando Deus silencia e quando, ao silenciar, fala desta maneira; coisa terrível, quando um ou outro teólogo se dão conta ou pressentem o que está acontecendo; e coisa mais terrível, quando muitos - continuando na rotina, com a melhor das disposições parecem nem se dar conta e nem sequer pressentir que isso está acontecen do, que a teologia, junto com suas questões e teses, está sendo inteiramente
questionada por Deus, que ela está sendo ameaçada, sobretudo e em última instância, por essa tribulação que lhe sobrevém a partir de Deus. Mas como poderá acontecer tal coisa? Como poderá Deus achar-se ausente onde se pratica tal boa obra, onde se raciocina sobre ele de forma tão proposital e sobre sua orientação de forma cuidadosa, onde se fala dele de maneira tão expressa, perceptível e séria como na teologia ao menos se tenta fazer? Como poderá Deus colocar-se contra as pessoas, falar a terrível linguagem de seu silenciar às pessoas que são a seu favor - notoriamente a seu favor, como acontece em especial no caso dos teólogos? Deus não será obrigado a servir aí de auxiliar, testemunha e abonador, aí onde pessoas se acham evidentemente empenhadas em lidar com sua obra e palavra - e, afinal, não por arbitrariedade própria, mas seguindo seu chamado e precei to? onde pessoas assumem como tarefa sua a ciência de seu logos, segundo o seu mandamento? A nossa resposta será, primeiro: Deus não se acha obrigado, em absoluto - nem neste nem em qualquer outro caso. O que acontece na tribulação da teologia, isso pode acontecer; pois também os teólogos nada mais são do que seres humanos, e seres humanos pecadores, que não têm direito ao aplauso e à assistência de Deus, que só podem viver de sua livre graça, mesmo que sejam os melhores e mais fiéis teólogos. Em todo o caso se aplica a eles e à sua obra a palavra que diz: “Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao pó” (SI 104.29). Deus não seria Deus se não fosse livre para tratar também a eles desta forma, de fazer com que a morte também seja o salário do pecado deles. E não acontece nada de extraordinário quando Deus faz uso desta sua liberdade também em relação a eles. Mas não se trata de capricho nem de arbitrariedade; pelo contrário: se Deus age dessa forma, isto faz sentido perfeito; ele pratica juízo e justiça quando de fato faz isso. Isto apenas corresponde então ao fato de que também a teologia, mesmo que seja a melhor que se possa imaginar, por si e como tal não passa de obra humana - pecaminosa, imperfeita e até perversa, vítima da nulidade -, que em si é imprestável para servir a Deus e à sua comunidade no mundo, e só pela misericórdia divina poderá tornar-se e ser prestável. Ora, a misericórdia de Deus é sua eleição, na qual ele também rejeita; é sua vocação, na qual também despede e destitui; é sua graça, na qual também exerce juízo; é seu “sim”, no qual também enuncia o seu “não”. A rejeição, a destituição, o juízo, a negação de Deus, porém, atingem, punem, perturbam radicalmente tudo aquilo que, também nas melhores obras humanas e, assim, também na teologia, constantemente se revela como pecaminoso, imperfeito, perverso e vítima da nulidade. Todo trabalho teológico só poderá tornar-se e ser bom e aproveitável perante Deus e os seres humanos se constantemente for exposto a tal fogo, se constantemente for levado a atravessar tal fogo - que é o fogo do amor divino, mas que não deixa de ser fogo devorador. O que sobrar depois dessa passagem pelo fogo (segundo 1 Co 3.12, como ouro, prata e pedras preciosas), isso, e só isso, torna o labor teológico agradável perante Deus e salutar para a Igreja e o
mundo. Sua passagem por esse fogo é a tribulação ao lado da qual - pois o que poderia sobrar dele neste processo? - até a mais desconsolada solidão em que ele possa se encontrar, até a dúvida mais radical de que possa padecer, de fato não passam de brincadeira de criança. O teólogo só poderá ter Deus a seu favor se também o tiver inteiramente contra si. E só ao aceitar tal fato poderá, também de sua parte, querer ser por ele. Toda teologia é condenável e está, portanto, à mercê da tribulação por parte de Deus (1) porque, no seu âmbito - “no muito fa la r não falta transgres são” (Pv 10.19) -, mesmo que procure orientar-se pelo primeiro mandamen to, dificilmente deixarão de ocorrer graves transgressões do segundo e do terceiro mandamentos, i. é, idolatria e profanação do nome de Deus. A que tempo e em que lugar ela estaria livre da tentativa usurpadora - negada zelosamente na teoria, mas empreendida na prática - de tratar os conceitos positivos e negativos, e também os críticos, as formas lingüísticas e constru ções das quais faz uso, como igualações, em vez de ver neles comparações e parábolas, de aprisionar o logos divino em suas analogias, colocando a estas, na verdade, sobre o trono de Deus - para as adorar e proclamar, as recomen dar e glorificar como objetos de adoração e pregação? E em que lugar e a que tempo estaria ela livre da leviandade de lidar com suas palavras sobre a obra e a palavra de Deus, proferidas com raciocínio e eloqüência elegantes, como se fosses fichas de um jogo que, a seu bel-prazer, pudesse jo gar sobre a mesa do palavreado corrente, na esperança de ganhar um bom dinheiro com elas? Como poderá Deus estar presente aí, mesmo que dele se diga tanta coisa bonita? Como sua presença aí poderá deixar de assumir a forma do silêncio? Necessariamente, ao ocorrerem tais confusões (e onde é que elas não ocorreriam, quando se faz teologia?) revela-se a total desproporção existente entre Deus e aquilo que os seres humanos que com ele se defron tam julgam poder se dar o luxo de fazer em relação a ele. Ao não querer admitir tal desproporção, Deus, no caso, não pode ser a favor dos teólogos e de sua teologia e estar com eles, mas só poderá ser contra eles e contra ela. Mas a obra da teologia também se revela como sujeita ao juízo (2) pelo fato de que a exibição de toda espécie de vaidade humana parece quase necessariamente fazer parte justo da rotina da atividade teológica. Num campo em que cada qual, por certo, teria motivos sobejos para produzir o melhor que sua capacidade permitir, sem olhar para a direita nem para a esquerda, e de permanecer triste e humilde em face do melhor que conse guir realizar, aí a pergunta: “Quem será o maior entre nós?” parece suscitar no mínimo tanto interesse quanto a pergunta despretensiosamente humilde pelo próprio assunto da teologia. Sim, quem será o maior: quem exerce o maior poder de atração e, em conseqüência, atrai mais pessoas à sua igreja? quem reúne o maior grupo de confirmandos? ou, na universidade: quem tem o maior número de ouvintes? (Esta é uma questão que poderá fazer com que uma vaidade coletiva tome conta de faculdades de Teologia inteiras!) Os livros de quem são mais respeitados e, quiçá, até lidos? quem é convidado para fazer conferências até no estrangeiro? Em resumo: quem faz teologia com mais brilhantismo? E se opinarmos que, se houver um grupo de pessoas, então deverá ser o dos teólogos acerca do qual será lícito dizer: “Vede, como
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se amam uns aos outros!” - estes, pelo contrário, são conhecidíssimos por seu zelo de botarem no papel tudo o que têm permanentemente uns contra os outros no coração e nos lábios (em tempos antigos o faziam com grosse ria; hoje, em regra, o fazem com brandura, cortesia e inúmeras restrições, mas, em compensação, de modo muito mais enfático), revelando profunda desconfiança e tremenda presunção! Melanchthon, assim, decerto não é o único que, entre os esclarecimentos e correções que aguarda no além, cita expressamente também a libertação da rabies theologorum [“raiva, fúria dos teólogos”]. Certamente: muitas vezes haverá motivo sobejo para tal rabies, e até aquele zelo de ultrapassar o trabalho dos outros e, assim, de ser o maior, poderia estar relacionado, ao menos de leve, à preocupação com o prevalecimento da verdade na Igreja - preocupação justificada e com a qual o teólogo se acha incumbido de modo peculiar. Mas haverá e houve ocasiões e situações em que a divisa entre tal preocupação e a esfera de uma irritante presunção humana não seja e não tenha sido constantemente cruzada? E como poderia Deus estar presente em tal esfera a não ser com sua ira e, portanto, com seu silêncio? Como é que a teologia de teólogos que comba tem por si mesmos e uns aos outros - mesmo que sob outros aspectos ela fosse excelente - poderia deixar de ser uma teologia atribulada por seu próprio assunto? Condenável e atribulada, porém, ela será (3) igualmente por ser uma obra teórica, e isso por sua própria natureza: uma obra na qual a pessoa, mesmo que inclinada sobre a Sagrada Escritura, mesmo que escutanto a voz dos grandes mestres de todos os séculos e mesmo que - assim se espera voltada ao verdadeiro Deus e ao verdadeiro ser humano em séria piedade e com máximo empenho de sua própria sagacidade; mas também uma obra na qual, refletindo, meditando e perorando sem as limitações do espaço e do tempo, com muita facilidade perde de vista a situação concreta existente entre o verdadeiro Deus e o verdadeiro ser humano. A existência teológica como tal sempre será, de uma ou de outra forma, semelhante à vida monásti ca - caracterizada por intensidade pacífica, mas também por despreocupa ção e comodismo intelectual. Não existe também uma espantosa desproporção entre, por um lado, o ternário que na respectiva época é considerado importante, discutido e elaborado de maneira mais, ou menos, exitosa pela teologia e, por outro lado, as idas e vindas errantes, o mar de sofrimento e de miséria existente no mundo e na humanidade que a circundam? Que aconteceu e que continua acontecendo precisamente em nosso tempo? Lá, o “passado ainda não superado”, marcado pela loucura dos ditadores, das intrigas de suas facções e dos povos que formaram o seu séquito, mas também pela imbecilidade de seus adversários e vencedores. Lá, os assassinos e os assassinados dos campos de concentração. Lá, Hiroxima, a Coréia, a Algéria, o Congo. Lá, a subnutrição da maior parte da humanidade contemporânea. Lá, a guerra fria e a ameaça macabra de que venha a transformar-se em guerra quente, que provavelmente seria a última, a saber, o fim da vida que existe em nosso planeta, engendrado intencionalmente. Aqui, porém, na esfera da teologia: um pouco de desmitologização em Marburgo e um pouco de Dogmática da
Igreja em Basiléia. Aqui, a redescoberta do “Jesus histórico” e a gloriosa descoberta de um “Deus acima de Deus”. Aqui, discussões sobre Batismo e Santa Ceia, sobre lei e evangelho, sobre querigma e mito, sobre Romanos 13 e sobre a herança deixada por Dietrich Bonhoeffer; aqui, também, diálogos ecumênicos. Não queremos bagatelizar ou difamar nada disto. O suor de muitos vultos nobres que se empenharam em tudo isso certamente não correu debalde. Mas - Kyrie eleison! -, afinal, em que relação com aquilo que acontecia ao mesmo tempo lá? Não poderia a teologia ser uma ocupação de luxo, não poderíamos, com ela, estar fugindo do Deus vivo? Um teólogo tão problemático como Albert Schweitzer - visto sempre justamente a partir do assunto da própria teologia - não poderia ter escolhido a parte melhor, e, junto com ele, todos os que, aqui e acolá, sem qualquer reflexão teológica, tentaram curar feridas, alimentar famintos, dar de beber a sedentos, forne cer um lar para crianças abandonadas? Não é que toda teologia, à sombra da grande aflição reinante no mundo (e também na Igreja que se acha dentro do mundo), está marcada pelo fato de dispor de muito tempo, não parecer ter pressa nenhuma, olhar para a redenção a ser consumada pela volta de Jesus Cristo - mesmo que não a negue redondamente - tão estranhamente acomodada, ocupada, ao que parece, com outros assuntos? Isso não são conclusões - como, p. ex., as de um jovem alemão, que obviamente não regulava bem e há pouco me visitou dando-me o conselho amigável de queimar todos os meus livros (aliás, junto com os de Bultmann, Ernst Fuchs e alguns mais), por serem totalmente imprestáveis. Só estou levantando perguntas. Mas elas são urgentes, e são perguntas que, já pelo próprio fato de se levantarem e não poderem ser evitadas, representam uma forma da ira de Deus, na qual tudo que realizamos no campo da teologia é atacado na própria raiz. A teologia, porém, também se revela condenável e, portanto, atribula da por Deus (4) em vista do seu labor mais peculiar. Quantas vezes foi que ela, de fato, conduziu a Igreja, como era seu dever, promovendo assim o serviço dela no mundo? Quantas vezes ela, antes, seduziu a Igreja, dificultan do assim seu serviço: não querendo permanecer aprendiz da Sagrada Escri tura e também bloqueando seu acesso para outros - uivando com os lobos da respectiva época, sem se dar conta deste fato - ou expulsando uma alcatéia de lobos, em reação arbitrária contra a época, para deixar a porta ainda mais escancarada para outros lobos? Não é estarrecedor ver que mesmo os teólogos mais proeminentes e reconhecidos, inclusive pessoas como Atanásio, Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, Zwínglio, Calvino para não falar de outros, como Kierkegaard e Kohlbrügge - todos também deixaram, ao lado de seus efeitos positivos, o caminho marcado por verdadei ros rastros de maldição? Onde é que a teologia poderia garantir que, ao interpretar a Escritura, não introduz nela idéias estranhas e mesmo antagô nicas? que, ao ressaltar uma verdade, não ignora a outra com redobrada cegueira? que, ao confessar num ponto, não nega outro com maior vigor? que, ao colocar a verdade sobre o lumieiro numa parte, não a põe, solene e decididamente, debaixo do alqueire em outra parte? De que forma ela não
necessitaria aplicar o “ai de vós”, dito por Jesus aos fariseus, em primeiro lugar a si mesma, em vez de aplicá-lo aos seus respectivos adversários, como tantas vezes gosta de fazer? Mas se a teologia se encontra sob o “ai de vós”, então isso quer dizer que ela se encontra na tribulação, sob o juízo da pergunta: não estará ela agindo a serviço do anticristo, em vez de servir a Jesus Cristo? Vamos deter-nos a esta altura. Tudo que acabamos de dizer não seria tão grave se esse último e supremo perigo que ameaça a teologia equivalesse a certas crises mais ou menos agudas, mas passageiras, que atingissem apenas esta ou aquela teologia. E verdade que em tais crises agudas, isto é, em eventos desastrosos perceptíveis na história da teologia, em um e outro caso tal perigo realmente irrompe. Mas a ameaça de que falamos é uma realidade sob a qual, de forma latente, a teologia se encontra sempre e em toda parte. Não há teologia que fosse capaz de existir a não ser pela misericórdia de Deus e que, por conseguinte, pudesse ser boa e proveitosa sem a expe riência de seu juízo. E, mais uma vez, tudo isso não seria tão grave se apenas dissesse respeito à tribulação que a teologia sofre por parte do diabo. Em larga escala, se não totalmente, se poderia compreender a partir daí o perigo que ela corre ao ser ameaçada por sua solidão e pela dúvida. Seguindo exemplo clássico, o teólogo por vezes poderá alvejar o diabo com o tinteiro - e será bom que o faça, com valentia, se tudo o mais não surtir efeito. Mas frente à tribulação de que temos falado, tal reação não faria sentido, pois ela é ação de Deus, é um momento de sua graça, voltada também para o teólogo e a estranha obra do mesmo. Deverá, portanto, em toda a sua assustadora dureza - como dissemos: enquanto fogo devorador do amor de Deus -, cooperar para seu bem, isto é, para sua purificação radical. Pelo visto, não poderá nem deverá existir nenhum desejo de escapar dela. Pelo visto, justamente esta tribulação quer ser aturada e suportada. Onde justamente ela não o for, a teologia não poderá ser uma ciência alegre.
13ã P releç ão :
A Esperança “Aturar e suportar ” - foi este nosso conselho, ou melhor, nosso lema em
vista do perigo que ameaça a teologia em todas as suas três modalidades aludidas. Ninguém espere que, ao finalizarmos este terceiro ciclo de prele ções, façamos a tentativa de suplantar e substituir dito conselho ou lema por outro, mais fácil e mais agradável aos ouvidos! Com isso revelaríamos a posteriori que tudo que dissemos acerca da ameaça que a teologia e o teólogo enfrentam por parte da solidão, da dúvida, da tribulação afinal não tivesse sido dito com total seriedade. E pior do que isso: fecharíamos as portas para o que de melhor deverá ser dito sobre esse lado escuro do assunto. Ao prosseguirmos nesta linha de pensamento, o que nos será lícito, mas tam bém necessário fazer é refletir sobre a dimensão positiva que tal duro aturar e suportar da solidão, da dúvida, da tribulação na teologia traz consigo: sobre a direção para a qual somos levados ao fazer com que o lema “aturar e suportar!” seja nossa última palavra. Poderia ser o caso que o lema nem necessite ser superado e substituído por outro, supostamente melhor. “Aturar e suportar!” - este lema nos traz à lembrança, primeiramente, que, ao lidarmos com a teologia, será necessário contarmos com uma inevitá vel e irremediável aflição. O que conhecemos como teologia e, então, também como existência teológica existe sob esse triplo perigo e continuará existindo assim, enquanto este nosso tempo durar, sempre e em toda parte. Nossa inclinação natural seria que as coisas fossem diferentes, pois esse perigo é penoso, é doloroso e, em sua forma última e máxima, vem a ser de certa maneira mortal. Aquele malicioso aperçu [“observação espirituosa”] que quali fica a teologia como uma espécie de enfermidade não está de todo errado! Em sua forma aguda, última e máxima, ela decerto poderá ser chamada de “doença para a morte”. E o seu fim não pode ser previsto: não poderemos esperar que, alguma vez, fiquemos livres dela, seja por tratamento adequado, seja por processo natural de convalescença. Quem quiser insistir em evitar ou ignorar a ameaça que paira sobre a teologia e o teólogo, porque ela significa aflição e portanto sofrimento, ou quem pensar poder ou talvez dever desviarse dela, descartá-la ou ao menos esquecê-la - este faria melhor em desistir deste assunto: afinal, há outras profissões ao menos aparentemente mais inofenisvas e menos perigosas do que a do teólogo. A tarefa da teologia, do princípio até o fim, só pode ser enfrentada e cumprida sob a condição de agüentarmos a contrariedade peculiarmente aguda que atinge o ser humano sob todos os três aspectos mencionados; só se ele a aturar e suportar. Mas, justamente quando a pessoa atura e suporta o que neste particular deve ser aturado e suportado, uma coisa está excluída: que, por causa da
contrariedade aludida, ela seja levada a ceder, fugir, capitular, a não pôr mãos à obra da teologia por causa da mesma ou não prosseguir em seu labor, a abandonar o seu problema específico. Aturar e suportar é algo que poderá acontecer com sintomas de cansaço, entre suspiros e gemidos, com sofrimen tos, lágrimas e gritos, mas, mesmo que tudo venha a ser mais duro do que o que antes se havia imaginado, é algo que será o contrário de um plangente ceder e entregar os pontos. Aturar significa: continuarmos a carregar o fardo que nos foi imposto, apesar de ser penoso, em vez de nos livrarmos dele e o abandonarmos num lugar qualquer. E suportar significa: ficarmos firmes, mesmo que colocados de costas contra a parede, não largarmos mão, a nenhum preço, segurarmos, sob quaisquer circunstâncias. Aturar e supor tar significa: não fraquejar, mas, em nome de Deus, demonstrar um pouco de coragem. Ao teólogo que não quisesse e pudesse ter também um pouco de coragem dever-se-ia recomendar que tirasse a mão desta massa! Mas por que ele não haveria de querer, e então também de poder, ter esse pouco de coragem? É isto que, em retrospecto sobre nossas últimas três preleções, quere mos constatar como primeira e também última coisa: sem muita aflição não haverá teologia - mas igualmente não a haverá sem um pouco de coragem na aflição. Então, é neste duplo sentido que dizemos: aturar e suportar! Em nada atenuamos essa primeira e última palavra; nada revogamos dela e nada .lhe acrescentamos, mas apenas a repetimos em seu conteúdo pleno, se, todavia (trata-se de nada menos do que do “todavia” do Salmo 73!), continuamos dizendo: a ameaça e a aflição que circundam a teologia têm sua esperança e, portanto, o impulso para um labor teológico alegre e infatigável não em algum lugar a seu lado ou por detrás de si, mas sim em si mesmas. E justamente ao aturar e suportar sua aflição (não será depois, mas enquanto ela acontecer), o labor teológico pode e deve ser iniciado e realizado em esperan ça. Tentemos entender isso com maior precisão! A teologia age sempre norteada pela realidade da obra de Deus e, portanto, pela verdade da palavra de Deus, essencialmente superior a ela. Esta realidade e verdade precedem a teologia, e precedem-na de forma absoluta. Sempre e em toda parte elas representam o futuro da teologia; jamais, portanto, se acham à sua disposição, sob o poder de seu raciocínio e discurso; jamais se acham à mercê do pôr e dispor do teólogo. O que a teologia poderá fazer sempre e em toda parte é só caminhar ao encontro dessa realidade e verdade. Através da obra e palavra de Deus em sua elevada majestade ela é despertada e exigida como função a serviço da comunidade - mas é despertada e exigida na qualidade de ação humana, e, portanto, como tal, também é questionada e ameaçada. Mas qual seria a alternativa? Não acontecerá necessariamente que criaturas humanas, entregues a tal afazer, se sintam isoladas, acossadas pela dúvida quanto à sua própria ativida de e, por fim, se vejam, junto com seu agir, atribuladas, humilhadas, acusa das e condenadas a partir daquela realidade e verdade majestosas - justa mente a partir do ponto pelo qual se norteiam? A obra e palavra humanas não poderão subsistir perante a obra e palavra divinas; em relação a elas só
poderão falhar e despedaçar-se, transformar-se em pó e cinza. O fato de isso suceder à teologia é o que ocupou nossa atenção nas três últimas preleções. Se à teologia cabe uma distinção diante de todas as demais atividades humanas, também diante de outras ciências humanas, ela só poderá consistir no fato de justamente isso lhe suceder de forma tão flagrante, tão evidente de modo que todo aquele que assim entender poderá apontar com o dedo as falhas dela e de modo que, em última análise, o teólogo, mais do que outras pessoas, será incapaz de ignorar e negar que tal questionamento lhe esteja sucedendo. Assim, a teologia paga um preço pelo fato de o empreendimento no qual está empenhada - o de dedicar-se a esse objeto, de perguntar pela verdade com vistas a ele - ser tão extraordinariamente elevado. Não será de bom alvitre que a teologia se queixe por também ela sofrer tal acossamento. Como poderia fugir dele? Se a teologia realmente, como deve acontecer, se nortear pela obra e palavra de Deus, superiores a ela, então não poderá ser outra a conseqüência: ela é informada do fato, precisa refletir constantemente sobre o fato, precisa fazer valer com toda a abertura e clareza o fato de que, partir da obra e palavra de Deus, toda a carne (tanto a carne moral quanto a imoral, tanto a ímpia quanto a piedosa), todo o raciocínio, toda a vontade e toda a ação humanas - tanto os de menor qualidade quanto os da mais alta qualidade - são acusados, condenados, radicalmente atacados; que não há obra nem palavra humanas que não sejam transformadas em pó e cinza pelo fogo que parte da obra e palavra de Deus. Como poderia a teologia presumir e pretender que sua própria obra e palavra sejam eximidas de tal juízo? Na medida em que ela presumisse e pretendesse tal prerrogativa, tornaria a voltar as costas à obra e palavra de Deus, perderia, assim, seu assunto, se transformaria em malabarismo mental e palavreado vazio; na mesma medida, porém, também passaria a isolar-se, a separar-se das pessoas que vivem na comunidade e no mundo, em meio às quais, afinal, ela deve prestar seu serviço, tornando-se imprestável para realizar sua tarefa também sob este aspecto. Ela só poderá ser prestável - e realmente chega a sê-lo enquanto, junto com o agir de todos os seres humanos, também não subtrair seu próprio agir ao juizo divino, enquanto, pelo contrário, se lhe entregar e submeter incondicionalmente, enquanto não se rebelar contra a ameaça que também atinge a ela, enquanto reconhecer a razão de ser da mesma, a aceitar, agüentar e suportar seu assédio. Enquanto a teologia fizer isso, seu encontro com a obra e palavra de Deus - e, portanto, o assunto ou objeto que a constitui - se evidenciam nela mesma como reais e verdadeiros. E, mais uma vez, encjuanto fizer isso, fica comprovado que ela tem seu lugar e seu serviço legítimos em meio à comunidade e à humanidade que a circundam. Enquanto, solidária com toda a carne, junto com todo o mundo submeter-se ao juízo de Deus, torna-se-lhe presente a esperança da graça de Deus - que é o mistério deste juízo - como esperança da qual também ela poderá participar, na qual também ela poderá realizar o seu trabalho. E também não poderá haver nenhuma queixa quanto ao fato de a teologia, sob a ameaça que lhe sobrevém sob a obra e palavra de Deus, não só sofrer de igual modo como as demais opiniões, intenções e realizações de todos os seres humanos, mas de sofrer algo mais: na medida em que o doloroso
protesto de Deus contra estas - protesto no qual se encontra oculta sua graciosa promissão e, com ela, a esperança de todas as pessoas, do mundo inteiro - deve manifestar-se contra o agir do teólogo, que ex professo se ocupa com o relacionamento entre Deus e o ser humano e entre o ser humano e Deus, de forma um pouco mais clara, e até crassa, e por que não dizer: espetacular, do que em relação ao agir do médico, do engenheiro, do artista, do agricultor, do artesão, do operário, do comerciário ou do funcionário público. Grande parte da tremenda cesura que atravessa o todo da natureza humana poderá, nestas profissões, permanecer encoberto, de maneira relativa e provisória, pela solidez e arrojo objetivos e também pelos sucessos tangíveis das intenções e realizações humanas. Será acertado que o labor do teólogo careça de tal encobrimento - a não ser que ele ou seu ambiente estejam equivocados! -, que ele, a cada passo que ousar e der, tenha todos os motivos para reconhecer mais uma vez inequivocamente o caráter fragmentário de suas perguntas e respostas, de suas descobertas e afirmações. Não haverá pensa mento que lhe passe pela mente nem tese que ouse formular que não venham lembrar a ele (e certamente também aos outros) de que Deus é bom, mas que o ser humano não é bom, mesmo no que quer e faz de melhor. Qual a interpretação bíblica, qual a prédica, qual a obra teológica que realmente merece o predicado “boa”? E não será um disparate evidente e irrefletido falar-se de teólogos “famosos” ou até “geniais”, e mais ainda ter a si mesmo como tal? “Deus é o rei supremo, eu uma murcha flor” - quem teria tanto ensejo e motivo imediato para aplicar isso a si mesmo como o teólogo? Que estranha vantagem que com isso ele parece ter frente aos outros! Oxalá que dela não se envergonhe! Porque, assim fazendo, ele se envergonharia do evangelho que lhe foi confiado de maneira tão especial, e, por conseguinte, do assunto específico de sua ciência, e, por conseguinte, do serviço particular de que foi incumbido, e, justamente por isso, também da esperança específica na qual lhe é lícito realizar o seu serviço. Pois é justamente a esperança específica da teologia que encerra o segredo do perigo específico que paira sobre ela. E por causa dela que o teólogo sofre de solidão, de dúvida e de tribulação de modo um tanto mais perceptível do que outras pessoas. Justamente por entregar-se a essa esperança - não em algum lugar fora do horizonte do perigo específico que o ameaça, mas bem dentro dele -, por crer, com Abraão (Rm 4.18), “esperando contra a esperança” (contra spem in spem), ele deverá e poderá aturá-las e suportá-las. Será que o ignora, será que não o escutou, será que não é este seu verdadeiro tema: que Deus em seu Filho veio ao mundo para curar os enfermos, para buscar e salvar os perdidos? Caso sua causa, caso sua própria pessoa, ao ocupar-se com tal causa, lhe parecerem particularmente enfermas e perdidas - por que ele não tiraria disso a conclusão de que, ao assumir essa causa e ao aturar e suportar o que nela deve ser sofrido, é-lhe permitido ser uma pessoa especialmente procurada, curada e salva por Deus? Podemos e precisamos, porém, dar mais um passo no sentido de tentar entender, de forma ainda mais concreta, a relação existente entre o perigo radical que paira sobre a teologia e a esperança que lhe foi dada.
Vejamos: o mesmo Deus sob cujo juízo nada que seja humano (incluin do a teologia) tem direito, glória e subsistência, perante o qual, pelo contrá rio, tudo se transforma em pó e cinza - este mesmo Deus representa também a esperança de toda obra e palavra humanas, e isto porque sua ira é o fogo de seu amor, porque sob o contrarium de seu juízo sobre tudo que é humano (inclusive a teologia) se acha oculta e atuante sua graça, que vai de encontro à sua revelação plena; este mesmo Deus também representa a promissão e, portanto, o impulso sob os quais a obra e palavra humanas poderão e deverão ser ousadas, mesmo com toda a ameaça que paira sobre elas. Deus é tal promissão e impulso justamente onde essa obra e palavra só se revelam sob todos os sinais de sua fraqueza e natureza problemática. Contra spem in spem poderemos e deveremos depositar nossa esperança nele justamente aí, e aí mais ainda - com base em sua palavra deveremos lançar as redes justamente aí, e aí mais ainda. Se a entendermos neste sentido, a ameaça radical que paira sobre tudo que é humano, inclusive a teologia, não representa uma ameaça absoluta, e sim apenas relativa, que poderá ser aturada e suportada. Não estamos falando de um Deus fictício, imaginado pelos seres huma nos. A graça dos deuses fictícios, imaginados pelos seres humanos, costuma adaptar-se às inclinações e tendências do coração humano. Ela não é uma graça verdadeira, ou seja, que se dá a si mesma em liberdade; pelo contrário, é uma graça condicionada, a ser merecida e adquirida pelo ser humano através de obras supostamente boas. E ela não costuma ser uma graça oculta sub contrario [“sob o contrário”], voltada para o ser humano quando o ameaça radicalmente; não é uma graça que julga, mas, antes, uma graça que de alguma maneira lhe é oferecida e lhe é acessível de forma direta, uma graça relativamente manejável, barata e facilmente adquirível. E, assim, não poderíamos dizer de nenhuma das teologias que se acham voltadas para tais deuses o que acabamos de dizer da teologia evangélica: que ela pode e deve ser empreendida como obra humana que é radicalmente ameaçada a partir de Deus, que está perdida sob a sentença e o juízo divinos, que não alcança seu alvo, mas fracassa a meio caminho, mas que também pode e deve ser empreendida na esperança de que é Deus quem procura, sara e salva. Desde o começo, em nossas preleções temos falado do Deus do evangelho. Ele é o objeto da teologia que é ameaçada da forma descrita. E ele como tal que a ameaça. Mas, ao assim agir, ele também é sua esperança. Ele a envergonha e a envergonha profundamente. Mas sendo ele a esperança da teologia e depositando ela sua esperança nele, ela não será confundida [cf. Rm 5.5]. Afirmamos tudo isso simplesmente em vista do fato de que o Deus do evangelho é aquele que agiu e se revelou em Jesus Cristo. Ele é a obra e palavra de Deus. Ele é o fogo do amor divino pelo qual é consumido tudo que é humano e, portanto, também a teologia. Ele é o juiz perante o qual todos os seres humanos, juntamente com seu saber e seu agir - e os que melhor o conhecem são os que melhor sabem disto -, só poderão se perder e desvanecer. Ecce homo! [“Eis aí o ser humano!”] Em sua pessoa aconteceu que Adão - e antes de todos e antes de tudo o Adão piedoso, douto e sábio - foi caracterizado como transgressor, foi desvendado em sua nudez, condenado, açoitado, crucificado e morto. Foi sobre ele que, na execução desse juízo,
irrompeu a tempestade da ameaça radical, a angústia da solidão, da dúvida, da tribulação, e de tal forma como nunca abalou ser humano algum, nem antes nem depois dele. Ora, se Deus em Jesus Cristo for o assunto da teologia - e se ela for teologia evangélica, ele, e só ele será seu assunto -, se teologia significa conhecimento de Deus nele, como poderá ser outra a conseqüência, a não ser que, junto com todo agir humano, junto com o agir de sua comunidade, também o agir da teologia (e o dela de forma especial) só poderá desenvol ver-se à sombra do juízo executado sobre o ser humano na cruz de Gólgota. A partir daí, o agir da teologia está destinado a levar ao menos os sinais e as marcas da ameaça que em primeiro lugar, e de forma decisiva, se evidenciou e revelou em Jesus Cristo. “O que vem a ser um professor de Teologia?”, perguntou Kierkegaard sardonicamente, e deu a resposta igualmente sardó nica: “E professor da matéria de alguém outro ter sido crucificado.” Pois é, por isso mesmo ele terá de pagar. Se o teólogo quisesse tirar o corpo fora, se quisesse escapar do acossamento que parte da solidão, da dúvida e da tribulação, o que neste caso teria em comum com esse outro? Conhecer Deus nele implica, pelo visto: obedecer ao Deus que age e se revela nele e que nele reconcilia o mundo consigo mesmo. Implica, portanto, seguir a ele. Por que a teologia, sendo theologia crucis [“teologia da cruz”], não consentiria em tomar sobre si a sua aflição - modesta, em comparação com a de Cristo -, sua própria pequena cruz, aturando e suportando o que for preciso em comunhão com ele e, portanto, sem queixas e reclamações? Mas isso ainda não é tudo. Profundamente oculto sob esse inevitável “não” se acha o “sim” de Deus, que é o sentido de sua obra e palavra: a reconciliação do mundo com Ele, a consumação de sua aliança com os seres humanos, que Ele realizou e revelou em Jesus Cristo. Ora, Jesus Cristo executou o juízo sobre todos os seres humanos e sobre a sua maneira de ser e de agir colocando-se, ele, o juiz, no lugar dos seres humanos a serem julgados, submetendo-se ao julgamento em favor deles para libertá-los. Ora, o segredo do julgamento efetuado em Gólgota realmente não é a des-graça, mas sim a graça de Deus, não a perdição dos seres humanos, mas sim a sua salvação: a nova criação do ser humano libertado, que corresponde à fideli dade de Deus com igual fidelidade, que vive em paz com Ele, que vive para Sua glória. Ora, o Deus que age e se revela na morte de seu Filho amado realmente representa ameaça mortal, mas também a esperança vivificante para o ser humano, para o cristão e, portanto, também para o teólogo. Afinal de contas, Jesus Cristo - parece incrível, mas é verdade também morreu pelos teólogos e, revelando este fato, também por eles ressurgiu, sendo, portanto, também a esperança deles. Eles vão ter de se aferrar à palavra: Ave crux unica spes mea [“Salve, cruz, única esperança minha”], de ater-se ao fato de que o Jesus Cristo vivo, que é seu fundamento e objeto, que torna a teologia possível, a rege e a mantém, não é outro senão o crucificado. Se ativer-se a isto, ela poderá, qual theologia crucis, também ser theologia gloriae [“teologia da glória”]: teologia da esperança na glória dos filhos de Deus, glória já revelada na ressurreição de Jesus Cristo, glória a ser
revelada de forma última e definitiva em relação a todas as criaturas e, portanto, também em relação à teologia e sua atividade. Olhando para Ele, que, apesar da ameaça que paira sobre eles, ou melhor: que em meio a toda essa ameaça é também a esperança deles - junto com as demais pessoas também os teólogos poderão erguer as suas cabeças. Rm 6.8: “Se já morremos com Cristo, cremos (confiamos) que também com ele viveremos.” O morrer não acontecerá sem Ele, mas em comunhão com Ele, e assim também o viver não acontecerá sem Ele, mas em comunhão com Ele. Se os teólogos, profun damente assustados, mas também profundamente aliviados, profundamente humilhados, mas também profundamente consolados por Ele, trabalharem seguindo a Ele, então trabalharão sobre fundamento firme. E tudo quanto o teólogo (por sua esperança no Senhor permanecer oculta na ameaça que paira sobre sua própria ação) ainda tiver de aturar e suportar em termos de solidão, dúvida e tribulação, ele o saberá aturar e suportar não só “com um pouco de coragem”, mas, para citar Calvino, com alacritas [“jovialidade”], hilaritas [“contentamento”] e até laetitia spiritualis [“alegria espiritual”]: sabe rá aturá-lo e suportá-lo na alegria do Espírito Santo como o “não” que não passa de casca do “sim” que já é válido para ele aqui e agora, e que, por fim, haverá de romper aquela casca.
4. O Labor Teológico
14“ Preleção:
Oração O tema geral do quarto e último ciclo destas nossas preleções será: o labor teológico. No primeiro ciclo nos ocupamos com o lugar específico destinado à teologia por seu objeto ou assunto; no segundo, com a maneira de existir da pessoa dedicada a ela, a saber, do teólogo. No terceiro ciclo falamos da ameaça que paira sobre a teologia e, portanto, também sobre o teólogo. Nas restantes quatro preleções haveremos de ocupar-nos com as que devem ser realizadas e cumpridas no campo da teologia. tarefas que Levando em conta o que acabamos de dizer nas últimas preleções, duas coisas devem, de antemão, ficar bem claras: (1) Todo labor teológico só poderá ser iniciado e levado a bom termo sob uma grande aflição, proveni ente tanto a partir de fora quanto de dentro, mas que em última e mais alta instância parte de seu próprio objeto. Sem juízo e sem morte, também na teologia - è justamente nela - não haverá graça nem vida; sem humildade não haverá coragem; sem que nos curvemos, não nos haveremos de levantar; sem a percepção de que “a nossa força nada faz”, não haverá feitos valorosos. Mas o labor teológico (2) deve ser iniciado e levado avante com energia porque na grande aflição sob a qual unicamente poderá ser realizado também se acham ocultas sua esperança, maior ainda do que a aflição, e portanto também o seu impulso. Justamente em meio ao juízo aqui se revela graça. Justamente em meio à morte aqui se desperta vida e se vive. Justamen te em humildade aqui deveremos tomar coragem. Justamente quem aqui se curvar, aqui poderá e deverá levantar-se. Justamente por reconhecer que “a nossa força nada faz”, aqui poderemos e deveremos agir com coragem. Onde a teologia permanecer fiel a seu assunto, aceitando ser atribulada por ele, a despeito de toda a solidão e de toda a dúvida, ela não se negará a levar totalmente a sério ambas as realidades: tanto o juízo quanto a graça. O que nos interessa por ora, mesmo que não percamos de vista a primeira, é a segunda realidade: o fato de que o labor teológico - fortemente ameaçado, mas em esperança maior ainda - pode ser assumido. pode e deve ser O primeiro e fundamental ato do trabalho teológico, porém, que permeará todos os atos seguintes qual tônica básica, é a oração. Por certo tal trabalho será, desde o princípio e ininterruptamente, também estudo e, em sua totalidade, também será serviço (estes serão os nossos próximos dois temas específicos); e certamente o labor teológico seria realizado em vão se não fosse feito em amor (este será nosso último tema). Mas ele é - e é com isso que temos de começar justamente em vista da ameaça a que se acha exposto e da esperança que o permeia - um trabalho que não só inicia com
oração e que não só é acompanhado por ela, mas que deverá ser realizado de forma peculiar e característica em meio ao ato da oração. Ponderemos: a própria oração como tal - embora, ao orarmos, não movamos as mãos, mas as dobremos - também é trabalho, e é um trabalho duro. E, portanto, a regra Ora et labora! [“Ora e trabalha!”] - no terreno da teologia isso será válido em todos os casos - não diz apenas que será preciso começar com o orare e, depois, acompanhando a execução do laborare, não deixar de orar. Ela significa que o próprio laborare, por sua natureza mais íntima, será um orare, um agir que em todas as suas dimensões, relações e comoções terá o caráter e o sentido de uma oração. - Tentemos entender isto sob alguns de seus aspectos mais importantes! E O trabalho teológico reto e proveitoso caracteriza-se pelo fato de ser realizado dentro de um espaço que não só guarda as janelas abertas para a vida da Igreja e do mundo ao seu redor (isso certamente também será bom e necessário), mas sobretudo e decisivamente para a luz do alto, quer dizer, que está aberto a partir do céu, da obra e palavra de Deus, e que está aberto em direção ao céu, em direção à obra e palavra de Deus. Não é nada natural que ela se realize nesse espaço aberto em direção a seu assunto, sua origem, seu alvo; aberto, portanto, em direção a sua grande ameaça e sua esperança ainda maior, baseada em seu objeto. Poderia ser um espaço fechado, entupi do, enquistado justamente na direção aludida e, portanto, um espaço sem luz. Inicialmente e por si só ele nada mais é do que um espaço no qual o ser humano pergunta e responde, pesquisa, raciocina e fala. E qual o teólogo que não faria constantemente a desconcertante descoberta de que todo o seu esforço, quiçá muito sério - ouvindo cada vez melhor a palavra da Bíblia, compreendendo de modo cada vez mais aberto o Credo, a voz dos antigos e dos contemporâneos -, para chegar a percepções relativamente corretas e relevantes, se esteja movendo apenas dentro de um círculo humano, demasi ado humano, assim como o camundongo se move em círculos dentro da ratoeira? Ele poderá, por certo, de passagem, topar com problemas interes santes, com percepções profundas e empolgantes, demorando-se aqui e acolá, para depois passar adiante. Só que o todo, e com ele também o detalhe - por mais que ele se dedique ao assunto e mesmo que as janelas estejam escancaradas para todos os lados -, em nenhuma parte chega realmente a luzir, não assume contornos claros e constância, não revela sua unidade, sua necessidade, sua natureza salutar, sua beleza. Onde é que está o erro? O erro é que o teólogo, mesmo que realize seu trabalho com zelo e fervor, mesmo que seu enfoque seja o mais amplo, em última análise se encontra só em companhia de si mesmo. O erro é que seu trabalho se realiza num espaço que infelizmente está fechado justo para cima, não recebe nenhuma luz de cima, não permite nenhuma visão para cima. O que poderá, o que deverá acontecer em tal situação? Pelo visto, será preciso tomar uma medida especial, faz-se mister fazer parar o circuito rotineiro, faz-se mister intercalar e celebrar um dia sabático, não para acabar com os dias chamados úteis, não para que o teólogo se subtraia de suas tarefas, mas justamente para que os dias úteis recebam a luz de cima que lhes
falta. Como poderá ser realizada tal obra sabática? Poderá e deverá ser realizada de tal forma que o teólogo se afaste, por um tempo, de todo o seu empenho pela realização do intellectus fidei, que por um tempo se volte exclusivamente para seu objeto como tal. Ora, tal afastamento temporário da própria obra e a dedicação exclusi va ao próprio Deus (necessários para a existência e o prosseguimento da própria obra) poderão significar outra coisa do que o início da oração? Km todo caso, não há oração que não inicie desta forma: o ser humano deixa de lado a si mesmo, sua própria obra, mesmo que seja a melhor e mais afortunada que se possa imaginar, volta-lhes as costas para conscienti/.ar-se de novo (e quando isso não lhe seria necessário?) de que se encontra diante de Deus, que em sua obra e palavra é seu Senhor, Juiz e Salvador, e de que justamente este Deus está diante dele, ou melhor, vem ao seu encontro, poderoso, santo e misericordioso em sua obra e palavra, vem ao seu encon tro como a grande ameaça e como a esperança ainda maior para sua obra humana. A oração tem início com o movimento através do qual o ser humano busca nova clareza quanto ao fato de que “é Deus quem governa”. A finalidade de tal movimento não é a de abandonar ou menosprezar a própria obra; antes, ele acontece para que ela não seja - ou não venha a ser uma obra infrutífera, para que possa ser feita na claridade e, por conseguin te, sob o governo e a bênção de Deus. Com este movimento consciente, pelo qual a oração inicia, poderá e deverá iniciar também o labor teológico. Se quisermos realizá-lo de modo responsável e promissor, necessitaremos de clareza quanto a quem o ameaça, mas também quanto a quem é sua esperança. Mas justamente o perguntar e o procurar por Ele sempre serão questão de um movimento especial, frente ao qual os outros movimentos (assim como as obras dos dias úteis em relação à obra sabática) precisam, por algum tempo, passar para o segundo plano: justamente para que elas, por sua vez - abertas e colocadas sob a luz correta - venham a ser obras retas. 2. O objeto do labor teológico não é um “Algo” - também não um Algo
supremo ou absoluto (mesmo que fosse o “fundamento do ser” ou coisa que o valha); ele é, antes, “Alguém” - não um “isso”, mas um “Ele” -, e esse Ele, o Uno, não qual “ser em si” ocioso e mudo, mas Ele justamente em sua obra, que como tal é também a sua palavra. A tarefa do labor teológico consiste em ouvir a Ele, este Uno, que fala em Sua obra, em prestar contas desta Sua palavra a si mesmo, à Igreja e ao mundo. Ao fazê-lo, terá de perceber e destacar, sobretudo e decisivamente, que a palavra deste Uno não é um anúncio neutro, mas o momento crítico da história, da relação entre Deus e o ser humano: a interpelação de Deus ao ser humano. “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da casa da servidão do Egito - tu não terás outros deuses diante de mim \” Ela só é falada e só pode ser ouvida como tal interpelação; só como tal ela é a palavra da verdade da obra de Deus, da verdade do próprio Deus. Assim, porém, também todo raciocinar e falar humanos em relação a Deus só poderão ter o caráter de uma resposta a ser dada à sua palavra: não se trata de um raciocinar e falar acerca de Deus, mas exclusivamente de um raciocinar e falar humanos em direção a Deus, desafiados pelo raciocinar e
falar divinos dirigidos ao ser humano, um raciocinar e falar humanos que seguem os de Deus e correspondem a estes. Assim como o raciocinar e falar humanos seriam certamente errados se se relacionassem a um “Isso” ou “Algo” divino - já que Deus é Alguém e não Algo eles poderiam ser igualmente errados, e com certeza seriam inadequados, na medida em que se referissem a Ele na terceira pessoa, pois para Ele é essencial falar ao ser humano na primeira pessoa e tratar a este pelo pronome da segunda. Só poderemos raciocinar e falar de Deus de maneira autêntica e adequada em forma de resposta - portanto, aberta ou secretamente, de maneira implícita ou explíci ta, sempre só na segunda pessoa. Ora, isso quer dizer que o labor teológico - o véu do seu raciocinar e falar na terceira pessoa sempre precisa ser transparente - deverá, essencial e verdadeiramente, realizar-se em forma de um ato litúrgico, como invocação de Deus, como oração dirigida a Ele. Revelando este estado de coisas, Anselmo de Cantuária sobrepujou a primeira modalidade de sua doutrina de Deus (chamada de monologion) por uma segunda, que chamou de proslogion, na qual realmente expôs tudo o que tinha a dizer a respeito da existência e da essência de Deus dirigindo a palavra diretamente a Ele, do princípio até o fim, e, portanto, em forma de uma única oração. E, pelo visto, foi pelo mesmo motivo que, ainda no início do séc. 18, o teólogo luterano David Hollaz ao menos terminou com um suspirium - um explícito suspiro de oração - a exposição de cada um dos artigos de sua dogmática. Uma teologia que não levasse ao menos em consideração, que perdesse de vista essa realidade - a relação eu-tu, na qual Deus é o Deus do ser humano e este o ser humano de Deus -, que, assim, tivesse o não-essencial como essencial só poderia ser uma teologia errada. A teologia autêntica, ao considerar que Deus só poderá ser seu objeto como sujeito que atua e fala, será necessariamente, de forma implícita e indireta, proslogion, suspirium, quer dizer, será oração. Todos os movimentos litúrgicos na Igreja chegarão tarde demais se justamente a teologia da mesma não for, em sua própria perspectiva, um movimento litúrgico, se não for praticada qual proskynesis [“genuflexão” ou “adoração”]. 3. O trabalho teológico se distingue de outras atividades - embora neste ponto pudesse ser exemplar para todo labor intelectual - pelo seguin te: quem a ele se dedicar nunca seguirá seu caminho “de costas livres”, partindo de questões já resolvidas, de resultados já obtidos, de conclusões já asseguradas; de modo algum poderá continuar a construir, hoje, sobre fundamentos que já colocou ontem; não poderá viver dos juros de um capital ontem adquirido; antes, é obrigado a começar, a cada dia, e até a cada hora, do início. A lembrança do ontem só lhe será confortadora e encorajadora na medida em que for uma lembrança de que já ontem o labor teológico teve de iniciar na estaca zero e que - Deus o queira - assim realmente começou. Na ciência teológica, prosseguir sempre significa recomeçar a partir do início. Face à ameaça radical à qual a teologia se acha exposta, pelo visto não há outra alternativa: a ameaça tem poder suficiente para tirar o chão de debaixo dos pés do teólogo, para forçá-lo a olhar por novo fundamento sobre
o qual possa posicionar-se, como se nunca houvesse possuído tal base firme. E não pode haver outra alternativa - mesmo que se ouça o testemunho da Escritura, mesmo que se trabalhe sob o teto protetor da communio sanctorum [“comunhão dos santos”] de todos os tempos e certamente também em grata lembrança dos conhecimentos próprios obtidos em tempos passados - so bretudo porque o próprio Deus vivo, em sua graça livre, é seu objeto: o guarda de Israel, que não dormirá nem toscanejará. Se a sua benignidade se renova a cada manhã, ela não deixa de ser, a cada nova manhã, sua benigni dade totalmente imerecida, que deve ser recebida e, portanto, buscada de novo. Cada ato do labor teológico, portanto (mesmo que se trate de um minúsculo problema exegético ou dogmático, mesmo que se trate da elucidação de uma etapa bem modesta da história da Igreja de Jesus Cristo; e mais ainda, quando se trata do preparo de um sermão, de uma aula ou de um estudo bíblico), em todas as suas dimensões, deverá ter o caráter de uma rendição, na qual abrimos mão de todas as nossas intenções já postas em prática, de todo o saber já adquirido e sobretudo também de todos os métodos supostamente comprovados que já adotamos até o momento; tudo isso precisa ser atirado mais uma vez ao cadinho para ser refundido, precisa ser apresentado ao Deus vivo, lhe ser oferecido qual holocausto. Em nenhum nível e em nenhuma direção o labor teológico poderá ser realizado de outra forma: espontaneamente precisamos dar ao Deus livre a livre disposição que lhe compete face a tudo que os seres humanos possam ter reconhecido, produzido, realizado; precisamos dar-lhe espaço livre face a toda a bagagem religiosa, moral e intelectual, psíquica e espiritual que trouxemos conosco de forma que, ao prosseguirmos hoje o que conquistamos ontem, a continui dade entre o ontem e o hoje venha a ser submetida à Sua preocupação, ao Seu critério e à Sua disposição. Só na realização sempre renovada dessa rendição espontânea a teologia poderá realmente ser uma ciência livre e alegre. Se ela não quiser se tornar vítima de arteriosclerose, de infertilidade, de teimoso enfado, seu trabalho não deverá ser rotina em nenhum dos seus passos, não poderá ser feito em função de um automatismo. Ora, isso significa que, também visto deste lado, o labor teológico será necessariamente um ato de oração, um único “Não como eu quero, mas sim como Tu queres” posto em prática. E tudo isso não resultará em prejuízo da energia com a qual o ser humano deve procurar, pesquisar, raciocinar, ao pôr em prática o intellectus fidei, ao “descascar abacaxis” e “arrancar tocos”; antes, resultará justamente em benefício do intellectus fidei, para que ele possa ser, permanecer e tornar a ser uma obra humana enérgica, renovada, interessante e benéfica. Não adianta negar: só está bem armado para realizar o trabalho da teologia quem não se fiar em quaisquer armamentos acumula dos, mas quem destemidamente se desarmar e capitular frente a seu assunto - portanto, quem o fizer no labor da oração. 4. Chegamos ao ponto mais concreto e prático, que é também o decisivo em termos de conteúdo. O trabalho teológico se realiza em forma de pergunta e resposta, de procura e encontro humanos face à obra e
palavra de Deus. Neste sentido levantam-se ineludivelmente duas questões relativas à sua viabilidade, uma delas a partir do lado “subjetivo” e a outra do “objetivo”. Ambas estão interligadas e relacionadas entre si. Ambas dizem respeito ao intercâmbio vivo entre Deus e o ser humano, entre o ser humano e Deus; portanto, só permitem uma solução prática, dentro da história de Deus com o ser humano, e não uma solução teórica. Por um lado surge o problema (subjetivo) da aptidão e capacidade da ação humana neste campo. Será que a tarefa é empreendida pelo ser humano de coração puro, com vontade séria, com mente clara, de consciência sã, que são as únicas atitudes adequadas ao assunto e as únicas promissoras para o bom êxito de seu empreendimento? No caso de qual teólogo esta pergunta poderá deixar de ser respondida positivamente no sentido de que a graça de Deus tem poder suficiente para dar ao coração impuro, à vontade vacilante, à mente fraca, à má consciência do ser humano a capacidade de perguntar e de responder de modo que faça sentido, em vista de Deus e de Sua obra e palavra? Mas será que Deus lhe dará tal graça? Temos aqui por outro lado (é o aspecto objetivo) o problema da presença de Deus em sua auto-revelação, sem a qual mesmo as perguntas e as respostas mais sérias em relação a Ele seriam vãs e supérfluas. Mais uma vez responderemos positivamente no sentido de que a graça de Deus, por seu lado, também é suficientemente livre e poderosa para tal agir. Mas será que ela também se tornará evento, neste sentido? Evidentemente, a graça não seria graça, nem num nem noutro caso, se fosse permitido, sem mais nem menos, pressupô-la e creditá-la na conta do ser humano, na presunção de que, afinal, tudo dará certo: que Deus revelará o ser humano a Si e se revelará a Si ao ser humano. Ora, se isso acontece, é por ser graça, e por esta razão só é possível interpelar a Deus a seu respeito, só é possível invocá-lo para que ela seja dada e só é possível pedir a Ele que a conceda. E só ao iniciar por tal prece, ser sustentado por ela e voltar constantemente a ela, o trabalho teológico, face aos dois problemas descri tos, poderá ser ousado e realizado com perspectivas de viabilidade. Esta prece pedirá pelo milagre: que os olhos cegos e os ouvidos surdos do ser humano venham a ser abertos pelo próprio Deus para Sua obra e palavra; ao mesmo tempo, pedirá pelo milagre ainda maior: que a obra e palavra de Deus não se venham a subtrair aos olhos e aos ouvidos desse ser humano, mas se lhe venham a revelar. Revela me de me ad te! [“Revela-me acerca de mim para contigo!”] e: Da mihi, ut intelligam! [“Concede-me que eu entenda!”] orou Anselmo olhando para si mesmo - e, olhando para Deus: Redde te mihi! Da te ipsum mihi, Deus meus! [“Dá-te a mim! Dá a ti mesmo a mim, Deus meu!”] A realização do labor teológico, em toda a sua extensão, carece dessa dupla ação de Deus, e, já que esta, tanto do lado subjetivo quanto do objetivo, só poderá dar-se como ação livre, graciosa e milagrosa de Deus, ele carece dessa dupla prece. Bem compreendida, porém, a prece é uma só - é idêntica à oração que já lembramos ao fim da nossa 5- preleção: Verti, Creator Spiritus! [“Vem, Espírito criador!”] Em sua vinda, em seu movimento de baixo para cima e de cima para baixo, é o Espírito Santo uno quem cria a abertura de Deus para o ser humano e a abertura do ser humano para Deus. E assim o labor teológico vive da prece e vive na prece por Sua vinda; assim todas as
suas perguntas, pesquisas, reflexões, raciocínios e teses só poderão ser modalidades dessa prece. E onde o trabalho teológico, em sua total ameaça em em sua total dependência da livre graça de Deus, vier a ser uma obra bemsucedida e aproveitável, uma obra que sirva à glória de Deus e à salvação das pessoas, aí isto acontecerá como atendimento dessa prece. Desta prece autênti- ca! O critério de sua autenticidade, porém, consistirá no fato de que esse trabalho é feito na certeza de que essa prece será ouvida. Quem, em nome do Filho, pedir ao Pai pelo seu Espírito Santo saberá o que está fazendo se essa sua prece for cética? E justamente a certeza de que essa prece será ouvida e atendida constitui, então, a certeza com a qual o labor teológico poderá e deverá ser empreendido e realizado.
15a Preleção:
Estudo Na oração, o labor teológico representa o movimento interno, de baixo para cima, na vertical - o movimento espiritual de uma pessoa. No estudo, tal labor se realiza também de forma externa, ocorre na horizontal, repre sentando também um movimento intelectual, psíquico-físico, para não dizer: carnal. Ele só poderá ser feito na unidade indissolúvel destas duas compo nentes. A oração sem estudo seria vazia. O estudo sem oração seria cego. Consideraremos o labor teológico agora (em segundo lugar, como convém) no seu aspecto de estudo. “Estudo”, no sentido que aqui nos interessa, significa: o esforço ativo, i. é, serio, zeloso, aplicado, dirigido a uma tarefa cognitiva da qual ele e outros mais foram encarregados. Significa sua participação pessoal, livre, espontâ nea, apaixonada, assídua na tentativa de desincumbir-se dessa tarefa. Com isso se define quem e o que é um studiosus e, especialmente, um studiosus theologiae [“estudante de teologia”] e quem e o que não o é. A ele e a outros mais se coloca, através da obra e da palavra de Deus testemunhadas na Sagrada Escritura e proclamadas na communio sanctorum de todos os tempos e de todos os lugares, a ele se coloca, através do evangelho, uma tarefa cognitiva específica. Se ela não lhe fosse colocada, ou se a confundisse, quiçá, com a tarefa do filósofo, do historiador, do psicólogo, ele ainda poderia, porventura, ser um studiosus, mas então não seria um studiosus theologiae. Mas também não faria jus a tal título se não fosse studiosus, i. é, se não estivesse engajado naquela tarefa com o ímpeto peculiar que há pouco esboçamos: um estudante preguiçoso, mesmo sendo teólogo, não é estudan te nenhum! Duas outras questões primitivas, porém úteis para a reflexão, sejam mencionadas de antemão. Em primeiro lugar: o estudo da teologia e, portan to, aquele ímpeto não são uma questão limitada a um período de vida defini do. Suas formas poderão e deverão mudar com o tempo - mudarão de mansinho. Mas o teólogo permanece estudante de teologia até a morte (dizem que Schleiermacher, mesmo em idade avançada, ocasionalmente acrescentava tal designação à sua assinatura) ou ele nunca o terá sido. Em segundo lugar: o teólogo não estuda com a intenção de passar por um exame que lhe permita ingressar no pastorado, nem com o intuito de adquirir um grau acadêmico que lhe dê acesso à carreira acadêmica. Um exame nada mais é (se for bem compreendido por ambos os lados) do que um diálogo amistoso entre alguns estudantes de teologia mais idosos e outros mais jovens sobre certos temas que, como tais, interessam a todos eles em conjun to. Trata-se de um diálogo cujo sentido é dar oportunidade aos participantes
mais jovens para demonstrarem que e como se empenharam no assunto até o presente e em que medida prometem fazê-lo também no futuro. E, assim, o verdadeiro valor mesmo de uma borla de doutor em teologia adquirida com nota máxima dependerá simplesmente da medida em que seu portador se conduziu e se comprovou como aprendiz e continuará a fazê-lo, para, só assim, talvez se qualificar também como docente. Quem estuda teologia o faz porque, no contexto do serviço para o qual foi chamado, é necessário, benfazejo e belo dedicar-se a tal estudo, independentemente de quaisquer outros propósitos. Ele estuda teologia porque ela o prende de tal maneira que só pode lidar com ela justamente como studiosus. O estudo teológico precisa ser entendido como encontro (pessoal o.u literário) e convivência significativa entre alunos e mestres, que, por sua vez, foram alunos de mestres próprios, de mestres que, quando alunos, igual mente haviam tido mestres - e assim, em linha ascendente, até aqueles mestres que nada mais podiam e queriam ser do que alunos das testemunhas diretas da história de Jesus Cristo, que leva a história de Israel ao seu alvo. O estudo teológico consiste na participação efetiva na atividade da comunhão que abrange os que ensinam e os que aprendem no discipulado daquelas testemunhas diretas da obra e palavra de Deus, com as quais foram e ainda são confrontados. Assim, o ensino que o estudante recebe, aqui e agora, em preleções, seminários, exercícios ou por intermédio de livros, apenas poderá ser um primeiro passo, algo provisório: meramente seu ingresso na escola na qual, antes dos mestres que ele hoje ouve e lê, ouviram, falaram e escreveram outros muitos que nela também adquiriram seus conhecimentos, trocaram idéias, as passaram adiante, deram e receberam uns dos outros. Esse ensino consistirá apenas, em última análise e de maneira decisiva, em ser levado à fonte e à norma de todos eles: ao testemunho da Escritura, que todos os anteriores, a seu tempo e a seu modo, e dentro de seus limites, procuraram compreender e interpretar. Estudar teologia significa: convergir (mais do que divergir) com todos esses estudantes de teologia do passado - qual neófito, sentado no banquinho mais baixo, como convém -, manter-se aberto e disposto a ouvi-los falar (pois continuam falando, mesmo que tenham morrido há muito), permitir ser iniciado por eles - através das opiniões e percepções por eles obtidas e divulgadas, através de seu exemplo que serve de conforto ou de escarmento - em uma visão, um raciocínio e um discurso próprios responsáveis perante Deus e as pessoas. E estudar teologia significa, antes de mais nada, seguir o movimento deles, voltar-se àquela fonte da qual já eles beberam, àquela norma à qual também eles se submete ram, com maior ou menor fidelidade; significa, pois, ouvir pessoalmente o testemunho original que, ouvido pelos alunos de outrora, os fez ser mestres que, cada um a seu modo, se submeteram a tal testemunho e nele se enquadraram. Assim, o estudo de teologia, num primeiro momento, haverá de articu lar-se em um diálogo básico, no qual o estudante jovem ou idoso, seguindo o exemplo dos anteriores, deverá inquirir de forma direta por aquilo que os profetas do Antigo e os profetas do Novo Testamento têm a dizer ao mundo, à comunidade do presente e a ele mesmo na qualidade de membro da
mesma; e, ao lado deste diálogo básico, deverá haver um diálogo secundário, no qual o estudante receberá de forma indireta as orientações e advertências necessárias para guiá-lo em seu caminho - consciente de que, de momento, ele não é o primeiro, mas sim o último que enfrenta as perguntas em questão -, ouvindo as autoridades teológicas antigas, recentes e recentíssimas, suas interpretações da Bíblia, suas dogmáticas, seus estudos históricos e práticos que dizem respeito à resposta que ele, o estudante, necessita dar hoje. Que ninguém tenha este diálogo secundário como o básico! Se o fizesse, deixaria de ver o todo da floresta, confundido pela multidão das árvores que enxerga! Deixaria de ouvir o eco da revelação divina na Escritura, confundido pelas vozes dos pais da Igreja, dos teólogos escolásticos, dos reformadores e principalmente dos professores modernos! Mas que igualmente não se considere tão cheio do Espírito, ou tão inteligen te e sábio, que se julgue capaz de manter o diálogo primário por conta própria, dispensando-se, portanto, do diálogo secundário com os pais e com os irmãos! E quase escusado dizer que o estudo de teologia - na medida em que sempre se processa ao mesmo tempo nesse diálogo primário e nesse diálogo secundário e que precisará constantemente distinguir ambos, mas também associá-los de forma correta - requer uma atenção e prudência extraordinariamente vivas e agudas, e toda a duração de uma vida humana decerto não será longa demais para, até certo ponto, adquirir e pôr em prática tais qualidades. Tentaremos agora obter certa visão panorâmica dos diversos campos e esferas, das assim chamadas “disciplinas” do estudo de teologia. A tarefa da exegese bíblica, que, pelo visto, é a primeira a ser menciona da, não coincide sem mais nem menos com o diálogo que acima qualifica mos de básico para a teologia: é que perceber, compreender e fazer valer a mensagem bíblica não representa apenas uma premissa acidental do estudo de teologia, e sim sua tarefa fundamental. Ora, a leitura e a interpretação dos textos bíblicos representam um problema específico; e, na medida em que tal problema se coloca de forma sempre nova, a teologia, de início, é particularmente ciência do Antigo e do Novo Testamento, por serem as coletâneas dos textos nos quais a comunidade de Jesus Cristo desde o início se viu chamada a ouvir a voz do testemunho original e, portanto, singular da obra e palavra de Deus como fonte e norma de sua doutrina e sua vida. Mas em cada época ela terá de ouvir esta voz de forma nova em sua originalidade, multiplicidade e unidade; em cada época, portanto, precisará ler esses textos de forma nova - e para tanto necessitará da ciência bíblico-teológica. Poderia haver aí ainda muitos assuntos que não foram entendidos com exatidão e até que foram entendidos erroneamente, ou mesmo aspectos que passaram totalmente despercebidos. Assim, a ciência bíblico-teológica precisará escla recer, de maneira sempre despreconceituosa e diligente, o que é que está escrito aí e o que é que o autor quer dizer. Neste sentido, duas premissas deverão estar sempre atuantes em seu trabalho: a primeira é comum à ciência teológica e a qualquer pesquisa
histórico-crítica, que de pleno direito também se ocupa com os textos bíblicos. Para ler e entender também estes textos, ela precisa empregar criteriosamente todos os recursos disponíveis, todas as regras e critérios da lingüística, da estilística, da história comparativa do mundo, da cultura e da literatura. Em si, também a sua segunda premissa tem caráter históricocrítico; o que acontece é que ela carece de reconhecimento geral por parte da pesquisa histórica ordinária. Assim, na exegese teológica, para a qual essa premissa é essencial, ela deverá ser usada de forma até certo ponto isolada. Trata-se da premissa geral de que, ao lado de outros, também haja textos que, pela intenção de seus autores, e em sua peculiaridade efetiva, só podem ser lidos e interpretados como testemunho e anúncio de uma atuação divina - real ou pretensa - que se deu em meio à história geral. São textos que, se não forem apreciados neste seu caráter, serão necessariamente interpretados de modo errôneo em seu conteúdo. E a premissa de que haveria textos que, além do que têm a dizer neste seu caráter específico, nada dizem de substancial; textos cjue em todo caso não convidam a pesquisar fatos que estejam por trás da mensagem neles contida, fatos que só teriam sido “interpretados” pela mensagem de cujo teor seriam independentes e distin tos. A premissa afirma que haveria textos cujo teor, de início, ou provoca no leitor - caso os compreenda - descrença (i. é, ceticismo mais ou menos acentuado) ou, então, o pode levar a crer. Por que não poderia haver, mesmo segundo ps critérios sóbrios da crítica histórica, tais textos puramente querigmálicos que só poderão ser interpretados de modo adequado como tais? A ciência bíblico-teológica pressupõe que tais textos existam e que ela esteja lidando com tais textos particularmente no caso do Antigo e do Novo Testamento: com textos de cujo teor se terá de tomar conhecimento objetiva mente, como o de qualquer outro documento, mas que só poderão ser compreendidos de modo adequado em seu sentido intrínseco se a resposta for o “não” da descrença ou o “sim” da fé, e que, portanto, só podem ser explicados de modo apropriado se o seu conteúdo querigmático for constan temente levado em conta. E que a ciência bíblico-teológica não opera num espaço vazio; ela atua a serviço da comunidade de Jesus Cristo, que está alicerçada no testemunho profético-apostólico. E por esta razão que ela se aproxima desses textos - não será possível dizer mais, mas também não menos: na expectativa de que neles ela se depare com tal testemunho. Norteada por tal premissa (é este o significado do assim chamado “círculo hermenêutico”), ela, sem reserva alguma, se mantém aberta para a pergunta se, em que sentido, de que forma e em que afirmações concretas essa sua expectativa irá se cumprir, ou seja, essa característica distinta que a comuni dade atribui a tais textos irá confirmar-se. Será isto uma exegese “dogmática”? O termo só se justifica na medida em que a exegese rejeita um dogma que de antemão lhe queira proibir tal expectativa, declarando, a priori, que seu cumprimento não é possível. Será uma exegese “pneumática”? Certamente que não na medida em que ela não julga poder dispor da Escritura, baseada em pretensa posse do Espírito Santo. Mas ela poderá ser designada com esse termo na medida em que a
exegese se tomar a liberdade, que se acha fundamentada na própria Escritu ra, cie dirigir a esta a pergunta - de forma séria, definitiva e decisiva - pelo autotestemunho do Espírito que nela pode ser percebido. A segunda tarefa teológica lida, em especial, com o diálogo que chama mos de “secundário” a ser mantido na teologia, diálogo sem o qual, no entanto, nem a exegese bíblica nem o estudo nas demais áreas da teologia seriam viáveis. Trata-se do estudo da história da Igreja , de suas manifestações vitais e confissões teóricas e práticas, e, portanto, também de sua teologia. Trata-se do caminho que o conhecimento cristão, qual elemento fundamen tal da vida da comunidade, percorreu desde os dias dos profetas e apóstolos até o presente. Não há dúvida que tal história, em toda a sua extensão, também é história profana, história mundial, devendo, portanto, ser pesquisada como esta. Mas sem dúvida ela também é uma parcela da história mundial que foi condicionada por um tema específico, a saber, pela mensa gem bíblica, da qual se origina: história da fé, da descrença, da heresia e da superstição, história da proclamação e da negação de Jesus Cristo, das deformações e das renovações do evangelho, da obediência que a cristanda de prestou a seu Senhor ou que, abertamente ou às escondidas, lhe negou. Em vista dessa comunhão de santos e de pecadores - da qual, afinal, também faz parte a comunidade do respectivo presente e na qual ela precisa alinharse -, também a história da Igreja, do dogma e da teologia necessariamente se torna objeto do estudo de teologia. A primeira condição da fertilidade de tal estudo é que o olhar do pesquisador esteja dirigido constantemente, através de tudo, ao concretissimim do seu tema, em abertura dinâmica e compreensiva, em especial com referência aos detalhes daquela imensa corrente de eventos, sem deixar de reparar em nenhuma de suas luzes e tampouco em nenhuma de suas sombras. Quem não conhecer este tema e quem o perder de vista como poderá compreender e expor a história da Igreja? A segunda condição é a de que o belo programa de Gottfried Arnold de elaborar uma “história imparcial das igrejas e das heresias” seja posto em prática de forma melhor do que ele mesmo o fez, já que Arnold (invertendo o método usado até então), em vez de tomar posição em favor da Igreja contra os hereges, apenas se colocou do lado deles contra a Igreja. De modo algum será função da ciência histórico-teológica realizar o julgamento do mundo, assim como não fará a tentativa de dar conta da história da comunidade entre a primeira e a segunda vinda do Senhor com base em diretrizes derivadas de uma idéia filosófica, a ser imposta à história da Igreja, assim como tentou fazer o grande Ferdinand C. Baur. Ela terá de ver e mostrar de forma bem singela que - e em que medida - também nesta história tudo não passou e não passa de carne, de erva e de flor da erva: um grande evento passageiro, que, contudo - dada sua origem e dado seu alvo -, nunca transcorreu e também hoje não transcorre totalmente sem a promissão do perdão dos pecados e sem a esperança da ressurreição da carne. Alegrando-se com os alegres e chorando com os tristes, ela desistirá com serenidade da tentativa tanto de glorificar totalmente um fenômeno quanto de desqualificar totalmente ou-
tro. Precisamente assim ela conseguirá fazer com que aqueles que antes de nós pensaram, falaram e agiram tomem a palavra. Ao assim pesquisar e ser iluminada, também a ciência histórico-teológica serve, de forma secundária e subsidiária, à congregação, à edificação e à missão da comunidade do presente, tendo em vista o seu futuro. Assim a teologia, também neste sentido, se põe a serviço da comunidade. A designação tradicional da terceira tarefa principal da teologia como “teologia sistemática ” é, em certo sentido, problemática porque no estudo da dogmática e da ética, tratadas nesta disciplina, de nenhuma forma deverá ser erguido ou proclamado um sistema da verdade cristã, a ser desdobrado com base em um conceito específico. Afinal, na comunidade não deve reinar nenhum conceito e nenhum princípio, mas unicamente a palavra de Deus testemunhada na Escritura, palavra que se torna viva através do Espírito Santo. Ora, a ciência que se ocupa de tal palavra não poderá se limitar a tomar conhecimento dela através do estudo da Escritura Sagrada e do diálogo com o cabedal de conhecimentos adquiridos pelos antigos. A palavra de Deus quer ser refletida, e quer ser refletida ordenadamente em sua coerên cia interna, na perspicuidade e na clareza pelas quais ela própria se apresenta em cada ocasião. “Ordenadamente” não quer dizer (o que o termo “sistemá tica” poderia sugerir): de forma inclusiva, conclusiva e excludente. A dogmática e a ética ordenadas não incluem, nem concluem, nem excluem; a exemplo da éxegese bíblica e da história eclesiástica, são uma ciência aberta e uma ciência que abre. Pois elas aguardam e esperam - em qualquer presente dc que venham a partir e em todo o seu raciocínio - uma reflexão futura sobre a palavra de Deus que venha a ser melhor, i. é, mais fiel, mais abrangente, mais profunda do que a que lhe é possível realizar em seu respectivo tempo. Elas também não podem pretender ser “ordenadas” por refletirem e interpretarem a palavra de Deus baseadas, p. ex., numa filosofia que, a seu tempo, goze de certo reconhecimento geral, nem baseadas em certos desejos, pretensões e postulados (tidos como válidos, na época) levan tados pelos que dirigem a Igreja. O seu trabalho deverá ser ordenado, porém, na medida em que, na reflexão sobre a palavra de Deus, se ativer sempre, com exatidão, à ordem, à configuração, à arquitetura e à teleologia prescritas pela própria Palavra e que revelar e fazer valer tal ordem para o seu tempo, ou para o caminho do conhecimento a ser seguido pela comuni dade de sua época. Elas raciocinam em liberdade e conclamam a comunidade a, por sua vez, raciocinar e falar no espaço da liberdade que lhe é concedida pela palavra de Deus. Já que o estudo da assim chamada teologia sistemática visa a percepção sempre nova dessa ordem, bem como a obtenção, manuten ção e divulgação da liberdade fundamentada em tal ordem, a teologia, '** ' também nesta parcela de sua tarefa, representa serviço à comunidade e na comunidade: ela serve à objetividade e à renovação e purificação, à concen tração e precisão objetivas das afirmações a serem feitas em sua pregação. A “teologia prática ”, afinal, é, como diz o seu nome, teologia na transição para a prática da comunidade - vale dizer, à pregação da mesma. Se
aqui a mencionamos em último lugar, isso não signif ica que a devemos ter como “coroa” do estudo de teologia, para usarmos uma expressão de Schleiermacher, nem que a devemos tratar como mero penduricalho faculta tivo das demais disciplinas teológicas. No que concerne o esforço humano como tal, neste campo, como em qualquer outro, nos encontramos na periferia; no que concerne o objeto da mesma, neste, como em qualquer outro campo, nos encontramos simultaneamente no centro do assunto. O problema específico da teologia prática é o que atualmente, de forma algo bombástica, se costuma qualificar de “evento linguístico ”, interpretando tal evento, de forma muito inadequada, como o problema fundamental da exegese e possivelmente também da dogmática. Aqui, na teologia prática, encontra-se o seu lugar. Aqui está em pauta a pergunta: como servir, em palavras humanas, à palavra de Deus - da qual tomamos conhecimento pelo testemunho da bíblia, da história da Igreja e pela sua auto-exposição no presente - na comunidade e, através da comunidade, no mundo que a rodeia? Não se trata da vaidosa pergunta: como seus pregadores poderão “chegar até” estas ou aquelas pessoas com a Palavra, como poderão “comunicar-lhes” a palavra de Deus, mas sim como haverão de servir a tal palavra, que jamais “chegou até” qualquer pessoa a não ser em sua própria liberdade e em seu próprio poder, ao apontar para sua vinda? E este o problema da lingua- gem a ser usada pelos que se põem a pregar a Palavra. Tal linguagem deverá satisfazer a duas condições: deverá, para apontar para a palavra de Deus dirigida ao ser humano, ter o caráter de manifestação, e pelo mesmo motivo deverá, para apontar para a palavra de Deus dirigida ao ser humano, ter o caráter de interpelação. Só poderá ser linguagem da prega ção da palavra de Deus ao expressar-se de forma sumamente extraordinária em vista da origem de sua mensagem, e, ao mesmo tempo, ao expressar-se de maneira bem ordinária em vista da intenção da mesma - ao falar de modo festivo e cotidiano, sacro e profano, ao recontar a história de Israel e de Jesus Cristo e ao colocá-las dentro da vida e da atividade do cristão e do ser humano de seu tempo presente. Sua linguagem será pregação se for uma linguagem instruída, quanto ao seu objeto, pela exegese e dogmática e, quanto à sua forma, pela psicologia, sociologia e lingüística que de momento forem as mais adequadas: se ao mesmo tempo for língua de Canaã e língua do Egito e da Babilônia, ou seja, a língua “moderna” em seu respectivo tempo. Já que tem por tarefa apontar para a palavra que parte de Deus e se dirige ao ser humano, ela sempre se achará no movimento que vai do primeiro para o segundo (e, portanto, nunca vice-versa), mas nunca se ocupará com o primeiro sem o segundo, e menos ainda com o segundo sem o primeiro; será sempre o primeiro e o segundo! A fim de buscar e de encontrar, de aprender e de praticar esta linguagem, essencial para a pro clamação da comunidade que se realiza na pregação e no ensino, na adora ção e na evangelização, estudamos teologia prática - igualmente num apren dizado que dura a vida inteira! Ao finalizarmos, ainda uma glosa referente ao tema que nos ocupou hoje: no estudo da teologia, os espíritos por demais desenfreados e ingênuos
da esquerda e da direita poderão e deverão descobrir, de forma sempre nova, que neste campo tudo é um pouco mais complicado do que eles gostariam que fosse; e os espíritos por demais depressivos e dotados de grande acuidade intelectual, porém, poderão e deverão descobrir (também eles de forma sempre nova!) que, por outro lado, tudo é muito mais simples do que eles julgam ter de pensar, enrugando a testa.
16“ Preleção
Serviço O labor teológico é serviço. Servir, definido de modo geral, é uma forma de querer, de atuar e de agir na qual a pessoa não procede em defesa da própria causa nem segue a seus próprios planos, mas na qual age com vistas à causa de outrem, de acordo com as necessidades e as ordens deste. A liberdade desse agir se acha limitada e definida pela liberdade do outro. E um agir cuja honra é tanto maior quanto mais a pessoa que age não procura a própria honra, mas sim a do outro. O trabalho do teólogo é essa ação de serviço - seja ela oração, seja estudo, seja ambas as coisas simultaneamente. Ele é, mais uma vez definido de modo geral, ministerium Verbi divini - ao pé da letra: “serviço prestado à palavra de Deus”. O termo “serviço” ou “atendi mento” poderá lembrar o fato de que a palavra neotestamentária diakonos originalmente designava um serviçal que atende à mesa. O teólogo será o serviçal da sublime majestade da palavra divina, a qual, afinal, é o próprio Deus que fala em seu agir. Não há descrição melhor da liberdade e da honra de seu agir do que a estranha imagem usada no Salmo 123: “Como os olhos dos servos estão fitos nas mãos dos seus senhores, e os olhos da serva nas mãos de sua senhora, assim os nossos olhos estão fitos no Senhor, nosso Deus, até que se compadeça de nós”. O trabalho teológico é um labor concentrado na medida em que, também em vista do seu telos [“alvo”], é um labor orientado excentricamente [i. é, seu centro se acha fora dele mesmo]. Teremos de compreendê-lo agora em vista desta sua orientação inalienavelmente peculiar. E verdade que na célebre classificação do ministério eclesiástico feita por Calvino o “diácono” só figura em quarto e último lugar, e “só” lhe é atribuída a assistência aos pobres e enfermos da comunidade. Antecede-lhe o “presbítero”, responsável pela administração externa da vida da comunida de, e a este o “pastor”, pregador, catequista e pároco, que, por sua vez, é precedido pelo primeiro de toda a fila, o “doutor”, o mestre da Igreja que, ex- officio, interpreta e explica a Escritura: ao que tudo indica se trata, de forma específica, cio teólogo. Por certo, Calvino não quis criar uma classificação tão estática como ela parece à primeira vista e como mais tarde de fato foi compreendida e praticada. Mas, de acordo com o evangelho, para o doctor ecclesiae [“doutor da Igreja”] e, portanto, para o teólogo, não será apenas de bom alvitre, mas será necessário que, por ser o primeiro, sem demora se torne apenas o último, o servidor, serviçal e, portanto, “diácono” de todos. Inversamente, não deixa de ser notável o fato de que o “serviço” dos dois únicos “diáconos” ressaltados nos Atos dos Apóstolos, do mártir Estêvão e de um certo Filipe, conforme o relato de Lucas, parece ter consistido, de forma
bastante efetiva, justamente na pesquisa e interpretação da Escritura. Mesmo que o trabalho teológico seja um serviço específico, que tecnicamente precede todos os demais, também ele não deverá tencionar ser nada mais a não ser apenas serviço, diaconia. Ele até se torna totalmente imprestável se de forma bem específica não for, também, assistência aos pobres e enfermos da comunidade, assim como, inversamente, a assistência cristã deste tipo não será possível sem um mínimo de trabalho teológico sério. Com referência a esse caráter de serviço do trabalho teológico precisa mos estabelecer em primeiro lugar: ele não poderá ser realizado emfunção de si mesmo - qual “arte por arnor à arte”. Quem se ocupar seriamente com a teologia bem sabe que essa tentação espreita de todos os lados e nunca deixa de ser grande. A teologia, especialmente em sua modalidade de dogmática, é uma ciência caracterizada por um peculiar fascínio, já que clama irresisti velmente por uma arquitetura intelectual e, portanto, por beleza. Ao pesquisar tanto os vultos e eventos claros e reluzentes quanto os obscuros e dúbios da história da Igreja, ela, em todos os pontos, é uma ciência empol gante do ponto de vista puramente humano; e o é também como exegese que requer atenção minuciosa e imaginação audaz. E um empreendimento cuja execução poderá fazer-nos esquecer com muita facilidade a pergunta: “para que serve tudo isso?” Tal pergunta poderá e deverá ser posposta ou colocada à margem. Impossível será um estudo no qual a cada passo se julga ter de saber e perguntar com impaciência: para que fim me servirá isto ou aquilo? Que é que vou inventar com tal assunto? Em que sentido me vai ajudar na comunidade e no mundo? Como hei de dizer isto às pessoas, especialmente às pessoas modernas? Quem tiver tais perguntas constantemente no coração e nos lábios, quem nunca (ou nunca seriamente) se deixar mover pelos problemas teológi cos como tais, quem apenas quiser ocupar-se com eles para depois, valendose de uma solução qualquer, embalar-se em berço esplêndido, tal indivíduo não será um teólogo que se deverá levar a sério - nem em sua oração, nem em seu estudo - e, mais tarde, por certo não terá a dizer às pessoas nada de direito, e menos ainda aquilo que é essencial. Só conseguirá isso quem, primeiro, se dedicar ao esforço de angariar conhecimentos essenciais, sem olhar de esguelha para esta ou aquela aplicação prática. Por isso, dito de passagem, será contra-indicado, se não até perigoso, se o neófito teológico, em vez de dedicar-se com concentração ao estudo durante os poucos anos que passa na universidade - anos que não voltam mais -, se atirar com inquietude em um sem-número de atividades cristãs, ou se até, como é uso em certos países, já vier a ser parcialmente investido de um ministério eclesiástico. Tal reserva, porém, em nada modifica o fato de que servir a Deus e aos seres humanos é o sentido, o horizonte e o telos do labor teológico. Desta forma, ele não será nenhuma gnose a pairar no espaço, que a rigor serve unicamente ao prazer intelectual e estético do teólogo: não será nem uma gnose do tipo especulativo-mitológico como a dos grandes e pequenos hereges dos primeiros séculos, nem uma gnose do tipo histórico-crítico
como a que, no séc. 18, começou a expandir-se como ciência teológica que julgava monopolizar a verdade e que hoje, ao que tudo indica, está começan do a celebrar novos triunfos. Enquanto que por trás da gnose antiga esprei tam a proclamação e adoração de deuses estranhos, por trás da gnose moderna espreita o ceticismo, i. é, o ateísmo. Franz Overbeck a seu modo terá tido razão quando, ao trilhar até o fim o caminho desta gnose moderna e, portanto, ao mostrar-se totalmente desinteressado numa teologia que implicava serviço, ainda quis fazer parte e ser chamado de membro da Faculdade de Teologia, mas rejeitou ser teólogo, preferindo ser unicamente “professor de História Eclesiástica” - título que consta em sua lápide sepul cral. Todo labor teológico, seja em que disciplina for, mesmo que venha a ter o mais brilhante desempenho, deverá, se não quiser se tornar estéril, ter por alvo - que nem sempre será o alvo próximo, mas às vezes o mais distante último e essencial que seu assunto, a palavra de Deus, não só venha a ser estudado, contemplado e meditado sob este ou aquele aspecto, mas que se torne objeto de seu serviço, ou seja, de sua diaconia. Continuando a delimitar o campo, precisamos destacar, no entanto, um segundo ponto: já que a teologia deve servir - a Deus, em Sua palavra, como Senhor do mundo e da comunidade e assim ao ser humano amado por Deus e interpelado por Sua palavra -, ela não deverá dominar: nem em relação a Deus, nem em relação aos seres humanos. Já na primeira preleção ouvimos falar dessa modéstia que lhe é apropriada: mas esta, em última análise, se origina do fato de ela ser chamada a servir. Ela não exclui, mas, pelo contrário, permite e requer que o trabalho teológico seja feito com tranqüila consciência do seu valor. Em nenhuma parte está escrito que a estirpe dos teólogos deva entrar nas longas filas dos vermes aos quais, segundo uma ode constante na “Criação” de Haydn, só é permitido arrastar-se pelo chão. Se o teólogo não se envergonhar do evangelho, não precisará pedir desculpas a ninguém pela sua existência, nem precisará justificar seu trabalho através de algum fundamento ontológico ou por outros artifícios apologéticos e didáti cos: não o fará frente ao mundo, nem frente à comunidade. O trabalho teológico, justamente como serviço, precisa ser feito de cabeça erguida; se não for assim, antes que não seja feito de todo! O labor teológico, porém, tampouco poderá ser realizado por quem tenha o intuito de bancar o sabe-tudo, de tocar o primeiro violino, de ser o primeiro - seja perante os menos explicitamente versados nas questões do evangelho na comunidade, seja perante os outros doutores e sabedores existentes no mundo, seja, sobretudo, perante outros teólogos. A palavra de Deus, ao fazer uso do serviço do teólogo, não permite a ele (e menos ainda lhe ordena) tomar conta dela, para bancar o perito, o superior, a autoridade, que, armado da Palavra, enfrenta os estultos intra et extra muros ecclesiae [“dentro e fora dos muros da Igreja”]. Ora, isto significaria que o teólogo desejaria e se consideraria capaz de apoderar-se da Palavra e, portanto, do objeto de sua ciência. Mas com isto ela deixaria de ser seu objeto! E assim todo o labor viria a carecer de objeto e, portanto, de sentido. E verdade: “Quem ouvir a vós, ouve-me a mim!” Mas isso não significa a instalação de nenhum “papado de escribas”, para usar uma expressão de Adolf Schlatter,
pois os que Jesus tratou por “vós” sem dúvida não são clérigos triunfalistas, menos ainda papas coroados ou não-coroados, mas sim pessoas que, convi dadas por Jesus, tomaram os últimos lugares à sua mesa para a partir daí serem, no melhor dos casos, convidadas e capacitadas por ele a “sentar-se um pouco mais para cima”. Os que de fato sabem, os que de fato têm razão nas questões da Palavra são justamente só aqueles que sempre têm em mente o fato de que essa palavra dispõe deles - e não vice-versa -, de que eles devem servir à Palavra, e não ela que deve servi-los, lhes proporcionar o cumprimento de quaisquer pretensões de poder, abertas ou secretas, mesmo que sejam bem intencionadas. Eles contam com a possibilidade de que a cada momento poderá suceder que qualquer pessoa modesta (a famosa “mãezinha velha”!) na comunidade, ou mesmo um estranho esquisito ou um outsider, venha a demonstrar mais sabedoria, em questões de importância básica, do que eles, os teólogos, com todo o seu cabedal científico distribuí do nas mais diversas disciplinas. Contam com a possibilidade de que pode rão ver-se obrigados a aprenderem de pessoas assim, em vez de as ensina rem. Entrementes, orando e estudando, farão o melhor que por ora são capazes de fazer: andarão de cabeça erguida, corajosos, sabendo que tam bém lhes é lícito alegrar-se com seu trabalho, justamente porque lhes é permitido realizar o seu labor na liberdade específica que lhes foi dada e na honra específica que compete a diáconos, aos quais esta diaconia, modesta como todas as demais, foi confiada: a diaconia de seu pouquinho de ciência teológica. Mas que significa o fato de que o sentido do labor teológico é o ministerium verbi divini - serviço prestado à palavra de Deus? Não o perca mos de vista: assim como a obra de Deus é livre obra de sua graça, também sua palavra, pronunciada nesta obra, é livre palavra de sua graça - livre como palavra Sua, como palavra que se manifesta e se impõe por seu próprio poder, como palavra da qual pessoa alguma, nem Sua comunidade nem a teologia poderão apropriar-se, repetindo-a e imitando-a. A muito citada síntese da segunda parte do primeiro capítulo da Segunda Confissão Helvética, redigida por H. Bullinger: Praedicalio verbi Dei est verbum Dei [“a pregação da palavra de Deus é palavra de Deus”] não é nenhuma igualação, mas, entendida em seu contexto, quer dizer: “Quando hoje a palavra de Deus (...) é anunciada (annuntiatur) na Igreja, cremos que é a própria palavra de Deus (ipsum Dei verbum) que é anunciada e ouvida pelos crentes.” Nesta unidade, a ser percebida pela fé, deverá ser distinguida a palavra que é pronunciada por Deus mesmo da que é dita pelos seres humanos que anunciam a Sua palavra. Não entra em cogitação a idéia de uma transubstanciação - seja da primeira para a segunda, seja da segunda para a primeira. O que poderá e deverá acontecer no ato da pregação humana é sua annuntiatio, o anúncio da palavra de Deus. Na pregação trata-se de seu anúncio, na qual ela própria quer refletir-se e ecoar; e, em termos amplos, é este o sentido do serviço - também do serviço da teologia. O seu serviço específico - que, contudo, deve ser distinguido de outros que sejam prestados na comunidade - como “serviço prestado à palavra de Deus” pode ser descrito da forma mais adequada da seguinte maneira: a
teologia, em relação à pregação, ao ensino e à poimênica, que não represen tam sua tarefa - ao menos não sua tarefa imediata deverá levantar a pergunta pela verdade, para assim ajudar à comunidade a encontrar esclareci mentos específicos, possíveis a partir dessa pergunta, de que a comunidade necessita. Não está em seu poder nem pode ser sua tarefa manifestar a própria palavra de Deus. O que ela pode, no entanto, é prestar assistência à toda a pregação da Igreja, na qualidade de “testemunho de segundo grau”, para ser um espelho o mais puro possível da palavra de Deus, para dar-lhe um eco o mais claro possível. Afinal, esse testemunho de segundo grau jamais e em parte alguma será tão perfeito que possa ser supérfluo e desnecessário confrontá-lo com a pergunta pela verdade. Assim, na vida de uma comunidade cristã, nunca é coisa natural e evidente que ela, com todos os seus empreendimentos e instituições, esteja a serviço da palavra de Deus, e que não aconteça o contrário: que a palavra divina seja posta a serviço dela e de seus empreendimentos e instituições. A teologia deverá lembrar a comunidade deste perigo - constantemente e de todas as maneiras. Também não será coisa natural e evidente que a vinculação da prega ção da Igreja ao testemunho do Antigo e do Novo Testamento não só venha a ser aceito em princípio, mas venha a ser e permaneça atuante na prática. A teologia, sem cessar, deverá lembrar a comunidade desta vinculação, encora jando-a a libertar-se de todas as demais vinculações. E ainda: na ação e na falta de ação, no discurso e no silêncio da comunidade facilmente poderá ser deturpado, obscurecido ou mesmo nega do o fato de que a mensagem que lhe foi dado anunciar ao mundo é palavra de Deus - e não alguma das outras palavras que andam em voga no mundo e que constantemente penetram na comunidade e que essa mensagem é palavra de Deus dirigida ao ser humano, palavra que, em primeira e última instância como livre palavra divina da graça, diz respeito justamente a ele, o ser humano. Será obrigação da teologia deixar claro este assunto, em todas as suas implicações. A pregação da palavra de Deus na comunidade também poderá perder seu centro - e com isso, suas características - pelo fato de não ser compreen dida e manifestada clara e expressamente como a palavra de Deus proferida na história de Israel e deJesus Cristo. A teologia, por sua parte, deverá auxiliar a comunidade expressando-a de forma concentrada e ao mesmo tempo abrangente justamente como tal palavra concreta. A pregação da Igreja, se for autêntica, deverá ter aquele movimento que mencionamos muitas vezes nestas preleções: de cima para baixo, partin do da luz da vida divina e penetrando na escuridão e na penumbra da vida humana, coletiva e individual. A teologia precisará praticar tal movimento, de modo exemplar, procurando fazer com que a comunidade a aceite, de coração, como a lei e a liberdade do intellectus fidei. A pregação da Igreja em certas áreas poderá ser prejudicada por demasiada multiplicidade e divagações inadequadas; em outras o poderá ser por igualmente inadequada unilateralidade e estreitamento de sua temática:
num lado poderá sofrer de amolecimento e dispersão liberal, em outro, de calcificação e bitolamento confessionalista, biblicista ou liturgista. A teolo gia, face à primeira e à segunda ameaça - por via de regra, face às duas simultaneamente - admoestará em defesa da concentração e da abertura. A pregação da Igreja, em todos os tempos e em todas as partes, será em parte mais ou menos expressamente determinada por tradições locais, nacio nais, continentais, sociais ou raciais e por preconceitos considerados óbvios - para não falarmos dos acasos e das arbitrariedades decorrentes de situa ções condicionadas por fatores puramente individuais. A teologia, frente a esta realidade, deverá velar pela pureza da mensagem cristã e insistir no seu sentido ecumênico, católico e universal. Onde for realizado o labor teológico, ele inevitavelmente levará a tais aclarações, em situações como as acima esboçadas ou em outras, semelhan tes - sempre em certa tensão salutar com o andamento das tradições e instituições eclesiásticas, sem querer agradar ou desagradar quem quer que seja -, unicamente porque a teologia, com sua inquirição crítica, serve à palavra de Deus. E será possível notar na vida e atuação de qualquer Igreja (seja do tipo “Igreja nacional”, seja do tipo “Igreja livre”!) se nela ocorrem tais aclarações, se nela, portanto, também se realiza trabalho teológico ou não, se ela aceita tal serviço, ou se o povo ou o povinho nela reunido e seus porta-vozes episcopais ou outros - em pretensa vitalidade e segurança espiri tuais - julgam poder dispensar a teologia, poder realizar sua tarefa perfeita mente bem sem ela ou quiçá até melhor sem ela. Neste último caso poderia acontecer que o cristianismo se viesse a separar da assim chamada cultura (separação contra a qual Schleiermacher preveniu tão apaixonadamente); mas talvez tal separação nem viesse a concretizar-se, e, caso viesse a dar-se, não seria a pior das conseqüências. Conseqüência ruim, ou melhor, a pior das conseqüências seria que, sem a assistência diaconal da teologia, a pergunta pela verdade pudesse vir a silenciar na cristandade, e que com isso a própria verdade - que quer ser inquirida, para ser conhecida e confessada pudesse separar-se da cristandade. A responsabilidade do labor teológico no âmbito da Igreja é imensa. E não é menor a responsabilidade da Igreja pela realização de um trabalho teológico sério em seu âmbito. Ao fim, uma pergunta (e não poderia ser mais do que uma pergunta). O trabalho teológico, sendo serviço prestado na comunidade, é também de forma indireta serviço prestado no mundo, ao qual a comunidade tem a incumbência de anunciar o evangelho. Será que, transcendendo estes limi tes, ele também poderá ser serviço direto no mundo? Será que as aclarações que a teologia deverá desencadear na comunidade, mutatis mutandis, tam bém serão significativas para a vida cultural em geral, p. ex. para o sentido e o funcionamento das demais ciências humanas? Será que ela poderá ser necessária à arte, à política ou mesmo à economia, será que poderá ter algo a dizer-lhes e ajudá-las? Restringimo-nos a perguntar se isso é assim porque logicamente qualquer resposta não poderá ser dada pela teologia, mas só por aqueles aos quais esta questão diz respeito. Afinal, poderia acontecer que o assunto que ocupa a teologia seja percebido, de modo consciente, semicons-
ciente ou inconsciente, pelo menos como problema também extra muros ecclesiae [“fora dos muros da Igreja”] - problema que, por exemplo, se visa na melhor das hipóteses de longe na filosofia, mas que não chega a ser enfrentado seriamente. O fato de que, em meio e ao lado de tantos outros assuntos que ocupam a humanidade, em algum lugar também se procure realizar o labor teológico poderia significar (venha a ser estranhado ou respeitado) de facto uma reminiscência de outra realidade: que além, ao lado e frente a todo querer, agir, julgar e saber humanos existe algo assim como a obra e palavra de Deus, que poderia ser limite, fundamento, alvo, motivo e fator quietante de tudo que ocupa o espírito humano. Partamos da premissa (o que por certo será lícito) de que haja - provavelmente em conexão com a pregação da comunidade - também no ambiente da mesma um conhecimen to mais ou menos claro ou obscuro de tal problema e uma necessidade de esclarecê-lo: neste caso, até a existência da faculdade de teologia, da qual no passado se originou a universidade como tal, também hoje e no futuro poderia ser um fenômeno significativo.
I7 ã Pre leção:
O Amor Indo além do que dissemos até agora a respeito do labor teológico, no quarto ciclo destas preleções, sob os títulos: oração, estudo e serviço finalizando, precisamos arriscar uma palavra que indique o princípio sob cuja regência ele tem a promissão de ser uma obra boa, agradável a Deus e salutar para o ser humano, princípio sem o qual jamais poderá tornar-se e ser tal obra. Com a tentativa um tanto ousada de semelhante indicação também encerramos os três ciclos anteriores, como estaremos lembrados. Foi o Espírito que nos ocupou ao fim do primeiro, a fé, ao fim do segundo, e a esperança, ao fim do terceiro ciclo: sob diferentes aspectos, cada vez tratamos da condição por excelência da ciência teológica, condição que ela só poderá conhecer como dada a partir de seu próprio assunto e com a qual só poderá lidar aceitando-a como dádiva que lhe foi proporcionada em liberdade. Fila aceita essa dádiva em gratidão, mas está decidida a, nesta mesma gratidão, torná-la atuante. Agindo assim, bem sabe que seu agir, se não fosse antecedido por tal conditio sine qua non [“condição imprescindí vel”], mesmo que talvez em outro sentido fosse perfeito, estaria destinado a permanecer frio, infértil, morto e ruim. E só o Espírito, só a fé, só a esperança que contam - é o que temos ouvido até o momento. E agora, sob o aspecto específico de nosso último ciclo, tornamos a dirigir nosso olhar para a condição básica que confronta a teologia a partir de seu objeto, que a partir dele deve ser aceita e que pelo seu poder libertador deve ser cumprida, e assim ousamos formular a tese: o trabalho teológico só será obra boa onde (só aí! mas mas aí com certeza!) puder ser realizado em amor e onde de fato for decididamente realizado em amor. Concluímos, pois: só o amor é que conta. Mas ele conta realmente. Ele edifica, como dizem as palavras confortadoras de Paulo; e mais: o amor jamais acaba. File permanece, junto com a fé e a esperança (e como “o maior destes”), mesmo que todas as outras coisas venham a passar. O mesmo Paulo, contudo, também advertiu que o conhecimento como tal, o conhecimento in abstracto, o esforço e o labor teológicos em si não edificam, mas ensoberbecem e mais: que ele, o apóstolo, mesmo que fosse capaz de falar a mais adequada linguagem humana, ou até a linguagem dos anjos, mas se não tivesse amor, não passaria de um gongo a soar e de um chocalho a retinir. Reconheceu que, mesmo sendo capaz de anunciar mensagem profética, mesmo sendo sabedor de todos os mistérios, e mesmo possuindo e usufruindo todo o conhecimento, sem amor não seria nada, absolutamente nada. Aceitamos tanto a a advertência quanto o conforto: o labor teológico destituído de amor - mesmo que fosse acompanhado de oração séria, de estudo esmerado
e de serviço zeloso - não passaria de mísero combate simulado, de mero trilhamento de palha. Tal labor 50 poderá - mas também terá a permissão e o dever de ser iniciado, prosseguido e levado a cabo como boa obra ao se receber e pôr em prática a dádiva livre do amor. E sobre isto que, ao encerrarmos nosso quarto ciclo e, com ele, a nossa “introdução à teologia evangélica”, ainda teremos de falar. Como poderiamos evitar a associação da palavra “amor” ao eros, tão exaltado na filosofia de Platão? “Amor” como eros (em sentido geral) é aquele poderoso cobiçar, aquela paixão, aquele impulso, aquela ambição pelos quais uma criatura busca sua auto-afirmação, auto-satisfação, auto-realização e autoconsumação na relação com um outro - a saber: tentando aproximar-se do outro, conquistá-lo para si, apropriar-se e apoderar-se dele de forma tão inequívoca e definitiva quanto possível. E “amor” (em sentido específico) como eros científico é a mesma paixão em sua modalidade intelectual: é o impulso pelo qual o conhecer humano é levado em direção a seus objetos, pelo qual os procura alcançar, a fim de unir-se com eles, de incorporá-los a si, de assim apoderar-se deles e os dominar, de assim usufruí-los. Sem eras científico (estaremos lembrados do que dissemos acerca do estudo como tal) também não poderá haver labor teológico, assim como por certo ele é também um movimento do intelecto humano e, em seu substrato físico, também um movimento humano vital. Pelo que toca o objeto ambicio nado pelo ser humano por causa de sua auto-afirmação e auto-realização, o eros teológico-científico sempre tem oscilado, e ainda hoje oscila: poderá visar preponderantemente (talvez até de forma exclusiva) a Deus ou prepon derantemente (e mais uma vez, talvez de forma exclusiva) o ser humano. O sujeito cognoscente poderá estar interessado primordialmente em Deus ou primordialmente no ser humano. Poderá querer desvendar, dominar e des frutar - e, neste sentido, conhecer - antes de mais nada a Deus ou antes de mais nada ao ser humano. Enquanto que na teologia da Antiguidade e da Idade Média o eros científico manifestou-se mais na primeira modalidade, a teocêntrica, na teologia mais recente, marcada por Cartesius, revelou-se, de maneira geral, mais na segunda, a antropocêntrica: ambas não deixam de ter seu fundamento no próprio objeto da teologia, já que esta de fato tem Deus e o ser humano por assunto. Mas o que não poderia acontecer, a partir desse objeto, é que haja a separação, oscilação e vacilação entre as duas realidades que se evidencia na história do eros teológico! Igualmente o seguinte fato não se deve ao assunto da teologia, mas caracteriza a natureza do eros científico: o teólogo que permitir ser conduzi do e impelido por ele costuma ser levado a vaguear, de forma realmente estranha. Ontem ainda pairava sobre os campos do idealismo, ou do positivismo, ou do existencialismo, hoje, decerto para variar, sobre os do Antigo e do Novo Testamento, e amanhã (quem o poderá saber?) talvez sobre os da antroposofia, da astrologia, do espiritismo. Qual a matéria que não poderia se tornar aí “interessante”, uma “preocupação” urgente? Assim, o eros científico, quando atua no campo da teologia, costuma trocar e confundir constantemente o assunto da mesma com outros assuntos. E é pela
própria natureza desse eros que, quando ele constitui o motivo do labor
teológico, nem Deus será amado e conhecido por causa de Deus, nem o ser humano por causa do ser humano; antes, tanto Deus quanto o ser humano serão amados e conhecidos no interesse mais autêntico e profundo do sujeito teologizante e, portanto, em seu amor por si mesmo. Não nos enganemos: tal amor que necessita e, portanto, ambiciona a humanidade e a divindade sempre se acha também presente onde quer que se realize trabalho teológico, já que este é feito por seres de carne e sangue! E também não pensemos em negar que esse tipo de amor, dentro da situação humana - digamos: como fenômeno insigne da vida intelectual humana, possua dignidade, força e significação peculiares: em verdade, não se trata de nenhuma ninharia quando pessoas acham que devem e querem amar e conhecer a Deus ou ao ser humano, ou a Deus e ao ser humano, em seu próprio interesse. Mas sob nenhuma hipótese poderemos admitir que esse tipo de amor seja idêntico àquele que faz o labor teológico ser uma boa obra e sem o qual tal labor certamente não poderá vir a ser nem a permanecer uma boa obra. Poderíamos afirmar, com referência ao eros, que ele, por obra do Espírito Santo que nos foi dado, seria derramado em nossos corações, que “edifica”, que “jamais acaba”, que nada nos poderia separar dele (o mais tardar a morte se encarregará disto)? Colocar tal eros no mesmo plano da fé e da esperança, afirmar que ele permanecerá, com elas, enquanto que tudo passa - isto só seria possível (mesmo descontando a falta de gosto de tais combina ções!) a quem tivesse a cegueira ou a insolência de passar coerentemente por cima de tudo que Paulo, e com ele o Novo Testamento todo, disseram e pretenderam através dos termos usados para definir o amor. Certamente não será nenhum acaso o fato de o termo eros, assim como o verbo que lhe corresponde, nem sequer aparecerem nos escritos paulinos e nas outras partes do Novo Testamento. A palavra que o Novo Testamento usa para definir o amor é agape. E do contexto em que esse termo aparece se depreende de forma inequívoca que ele designa um movimento que trans corre na direção exatamente oposta à do eros. E verdade que o amor no sentido de agape - e só isso é que ele tem em comum com o amor-eras também é procura total de um outro. Entretanto, trata-se de uma procura cuja origem a pessoa que ama nunca compreenderá como impulso próprio, mas sempre como uma liberdade que lhe foi dada, portanto que originariamente lhe é estranha, uma liberdade totalmente nova para o outro. Ela, por si mesma, não precisaria amar o outro e nem o faria; mas, por receber a permissão de amá-lo, ela o ama. Por ser livre para ele, ama a ele, portanto não ama de forma indefinida, vaga e dispersa, mas de forma concentrada. E por ser livre para ele, ela não o procura por necessitar dele para si mesma, como meio de sua auto-afirmação e auto-realização. A pessoa que ama só procura o outro justamente por causa dele mesmo. Assim, ela não o quer conquistar e ter para si, a fim de fruí-lo, de fruir o poder que tem sobre ele. Assim, de modo algum ela interfere na liberdade do outro; ao respeitar também a liberdade dele, ela é totalmente livre para ele. Ela o ama gratuitamente, ou seja: nada
quer dele; não quer ser gratificado por ele - ela apenas quer estar aí para ele, só quer entregar-se, dar-se, presentear-se a ele, assim como a ela própria foi dado poder amá-lo. Se bem que “amor” no sentido de agape também seja um procurar, não é nenhum procurar interesseiro, mas - “mais bem-aventu rado é dar do que receber” - um procurar soberano do outro: soberano justamente por não visar a soberania de quem ama, mas sim a daquele que é amado. Assim, o amor -agape - para mais uma vez usarmos palavras de Paulo - é paciente e benigno, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses..., regozija-se com a verdade, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Agape está para eros assim como Mozart está para Beethoven. Como confundir uma coisa com a outra? Agape, ultrapassando toda espécie de saber teimoso e apodíctico, ultrapassando toda espécie de contendas, é um tender pura e simplesmente positivo que visa o outro. E aqui deixaremos em aberto a pergunta: será que não faria bem às demais ciências se o molivo dominante de seu trabalho, em vez de ser o eros, também fosse a agape ? Para o trabalho teológico, a primazia da agape. é de importância vital e portanto imprescindível. E verdade que também o labor teológico não poderá suprimir e fazer desaparecer, sem mais nem menos, aquele interesse do sujeito humano cognoscente, aquele impulso pelo qual o sujeito se deixa levar ao encontro do objeto a ser conhecido, tendo por intenção a exaltação própria. Para ele, porém, o eros não poderá ser o motivo dominante, e sim apenas um motivo posto a serviço. Nele, o ardente desejo de apoderar-se do objeto só poderá ter, em todos os sentidos, o sentido de uma primeira e inevitável arrancada em direção ao objeto: uma tentativa que deverá aceitar ser colocada em segundo plano em conformidade com seu objeto, no relacionamento com aquilo que ousa buscar, dando lugar a uma tentativa totalmente diferente, para não só ser purificada e controlada por esta, mas para ser transformada e integrada nela. O labor teológico não acaba com o eros como tal, mas acabará - e precisa acabar - com sua posição dominante. O amor que nele prevalece só poderá ser a agape, que se torna atuante a partir do objeto a ser conhecido em confronto com o sujeito humano e o seu eros, sendo introduzida por esse objeto de forma nova e como fator estranho. Pois o assunto ou objeto do labor teológico é um só. Isto não só lhe proíbe a divagação e distração em direção a quaisquer profundidades, alturas e amplitudes, mas já se opõe àquela ambivalência pela qual - como tantas vezes tem acontecido - ele poderá ser levado - reagindo, indeciso, ora para um, ora para outro lado - a oscilar entre a amizade de Deus e a dos seres humanos. Afinal, seu objeto é o Deus uno e verdadeiro - não em sua aseidade e independência, mas em sua união com o ser humano uno e verdadeiro - e o ser humano uno e verdadeiro igualmente não em sua independência, mas em sua união com o Deus uno e verdadeiro. Afinal, o seu assunto é Jesus Cristo, i. é, a história da consumação da aliança entre Deus e o ser humano, a história na qual aconteceu - e aconteceu de forma única, de uma vez para todas, excluindo quaisquer tentativas de ultrapassar este evento - que o grande Deus, na liberdade que lhe é originariamente própria,
se prestou e entregou para ser o Deus do pequeno ser humano, mas na qual também o pequeno ser humano se prestou e entregou, na liberdade que para tanto lhe foi dada por Deus, para ser o ser humano do grande Deus. () objeto do conhecimento teológico é o evento de tal aliança e, dentro dele, o perfeito amor que une o ser humano a Deus e Deus ao ser humano. Neste amor, portanto, não há temor, e ele expulsa todo o temor, porque nele Deus amou o ser humano por causa deste e assim também o ser humano amou a Deus por causa deste, porque de ambos os lados não atuou nenhum carecer, desejar e aspirar, mas unicamente a liberdade na qual um parceiro está aí para o outro gratuitamente: a liberdade que é originariamente própria de Deus para o ser humano e ao mesmo tempo a liberdade para Deus doada ao ser humano - agape que simultaneamente desce e, no poder desse descer, sobe, sendo que ambas as coisas, ou melhor, esta uma coisa só, acontece com a mesma soberania. Ora, se Jesus Cristo - e, portanto, o perfeito amor - é o assunto do conhecimento teológico, então só o amor poderá ser o arquétipo e princípio que domina e determina esse conhecimento. Haverá sobejas razões para que tal conhecimento nunca se identifique com ele, mas em relação a ele sempre seja um conhecimento imperfeito e inadequado, por ser obscurecido por um conhecimento concomitantemente condicionado pelos mais diversos tipos de eros que se negam a serem disciplinados e convertidos. Importa reconhecer que aqui e agora nos encontramos no estado e movimento da theologia viatorum [“teologia dos que estão a caminho”], em que todos os caminhantes são simul iusti et peccatores [“simultaneamente justos e pecadores”]. Mas isto não poderá significar que o conhecimento possa subtrair-se ao domínio e à determinação do perfeito amor, que possa dar seus pequenos passos num caminho que não fosse o que ele indica. Antes, o conhecer teológico, o colocar e responder teológicos da pergunta pela verdade só irão por bom caminho na medida em que deixarem transparecer per speculum [“por meio de um espe lho”] - e mesmo que seja por um espelho turvo - a vida e a atuação do perfeito amor. Como opus operantis [“obra de quem opera”] eles serão um agir bom, agradável a Deus e aos seres humanos, salutar para a Igreja e para o mundo, desde que, face ao opus operatum [“obra consumada”] de Jesus Cristo, forem, permanecerem e continuamente tornarem-se livres para aquela liberdade na qual Deus se entregou gratuitamente aos seres humanos e para a liberdade que concedeu ao ser humano para, por sua parte, se entregar gratuitamente a Ele. Como um conhecer teológico evangélico, não poderá se realizar através de desejos, postulados e reivindicações, mas só através do reconhecimento e da confirmação daquilo que lhe está dado previamente nesse seu objeto e que é, portanto, seu próprio arquétipo. Nesta orientação sujeita, obediente e corres pondente ao perfeito amor, orientação que se processa nos moldes deste, apesar de toda a imperfeição que a ela é própria, consiste o que se poderá designar, de forma algo seca, como a objetividade do trabalho teológico em todas as suas disciplinas. Se for cultivado e realizado nessa objetividade, ele será - para mais uma vez trazermos à lembrança os termos usados em nossa Ia preleção - uma ciência modesta, livre, crítica e alegre.
Mas será que o labor teológico realmente virá a ser isto? Os que se acham empenhados nele não poderão fazer com que ele se torne isto e o seja, assim como não poderão arranjar ou adquirir o Espírito Santo, a fé, a esperança. Justamente a premissa decisiva do labor teológico é em todos os sentidos também o seu limite. E é bom que assim seja, pois isso significa que os que nele se empenham serão obrigados, em todos os sentidos, a olharem para além de si mesmos e de seu trabalho para o fazerem de maneira adequada. O mesmo se aplica também ao perfeito amor, sob cujo aspecto tentamos hoje visar mais uma vez a premissa básica da teologia. O eros, em uma ou outra forma ou escala, poderá ser pressuposto em qualquer pessoa, a agape, porém, não poderá ser pressuposta em ninguém. Ela só poderá ser recebida e posta em prática como presente - por quem quer que seja e, portanto, também pelos teólogos de qualquer época e lugar. A agape está (Rm 8.39) “em Cristo Jesus, nosso Senhor”. Ela está onde Ele estiver, agir e falar. E por Ele ser nosso Senhor soberano, aplica-se ao amor -agape o que Lutero disse a respeito da palavra de Deus: ela é um “aguaceiro repentino”, que de momento se precipita aqui, para logo depois deslocar-se para outro lugar. E isto tem por conseqüência que o conhecimento teológico só poderá acontecer, em maior ou menor escala, naquele amor e, assim, ser uma obra boa. Mas com relação a Ele, no qual aquele amor é divina e humanamente real e verdadeiro, vale também que, quem invocar o Seu nome, será salvo - i. é, que, com aguaceiro repentino ou sem ele, poderá viver e agir, orar, estudar e servir, perceber, raciocinar e falar, e, enfim, morrer sob a promissão de que o perfeito amor (mesmo que por ora lhe pareça revelado ou velado, em maior ou menor grau) é o céu que também sobre ele se estende. Nunca será em vão que a pessoa norteie sua vida por tal amor, que permita que seu bocadinho de conhecimento seja orientado por ele - desde que saiba onde procurá-lo. Em Cristo, no qual a aliança entre Deus e o ser humano foi consumada, o amor permanece, mesmo que os teólogos surjam e desapare çam, mesmo que no âmbito da teologia se alternem períodos de claridade com outros de escuridão: é que o sol, mesmo oculto por detrás das nuvens ou, antes, vitorioso acima delas r é e permanece o “sol fulgente”. Saber do perfeito amor como conditio sine qua non da verdadeira teologia em todos os casos - mesmo que só consigamos suspirar por ele - será melhor do que não saber dele. Já por dele sabermos - e essa é a finalidade do labor teológico: chegarmos a saber de tal amor - teremos suficiente ensejo de entoarmos o louvor de Deus (do Deus da aliança, do Deus que é amor) com as palavras daquela conhecida passagem da liturgia da Igreja antiga com a qual quere mos finalizar esta introdução: Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto, sicut erat in principio et (est) nunc et (erit) semper et in saecula saeculorum!
[“Glória ao Pai, e ao Filho, e ao Espírito Santo, como era no princípio, e (é) agora, e sempre (será) pelos séculos dos séculos.”]