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Um certo dia, quis crer que o mundo fosse um todo pensei que a lei, somada à fé, faria isso logo mas quanto mais o tempo passa, mais me afobo posto que a paz pretensa nada é,... além de engodo. [...]sigo sonhando com um tempo de amor, novo em que o humilde seja mais que mero estorvo: - tão limitado em seus direitos -, sob sol bruto ...vivendo a pão-e-água, dominado a ferro-e-fogo. (Súplica do Excluído. André L. Soares)
I - Introdução
Primeiramente, tratando sobre a internação compulsória, é necessário uma breve explicação sobre a mesma, de tal forma, entende-se por internação compulsória a prática de utilizar meios ou formas legais como parte de uma lei de saúde mental para internar uma pessoa em um hospital mental, asilo psiquiátrico ou enfermaria contra a sua vontade ou sob os seus protestos. Desta, podemos verificar que o respeito às pessoas é outro aspecto que merece ser destacado nessa situação. Na perspectiva da internação involuntária a decisão está nas mãos do médico que à pedido dos familiares pode proceder à internação. Não há clareza na legislação proposta qual será o critério de diferenciação entre as diferentes modalidades de uso de drogas. A ênfase dessa proposta legislativa recai somente na classificação das drogas, como se essas fossem as únicas responsáveis pelas situações de dependência. A dependência química é uma síndrome caracterizada pela perda de controle do uso de determinada substância psicoativa. Os agentes psicoativos atuam sobre o sistema nervoso central, provocando sintomas psíquicos e estimulando seu consumo repetido. Alguns exemplos são o álcool, as drogas ilícitas e a nicotina. A característica essencial da Dependência de Substância é a presença de sintomas cognitivos (ou da consciência), comportamentais e fisiológicos indicando que a pessoa continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos relacionados a ela. Existe um padrão de consumo repetido que geralmente resulta em tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo da droga. O termo tolerância é usado quando o organismo do dependente se adapta à droga e sua ação passa a não ter mais efeito desejado, assim há necessidade de aumentar-se progressivamente progressivamente ao longo do tempo a dose da da substância para para se obter o efeito efeito desejado.
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A abstinência, um dos critérios para diagnóstico de dependência, é uma alteração comportamental e fisiológica, que ocorre quando as concentrações de uma substância da dependência no sangue baixam. Os sintomas da abstinência são extremamente desagradáveis, de forma que o dependente é compelido a consumir a substância para aliviar esse sofrimento. No caso do crack e algumas outras substâncias, a abstinência ou o medo de sofrer abstinência fazem com que o dependente use a droga praticamente o dia inteiro ou várias vezes ao dia. Os sintomas de abstinência variam bastante entre as diversas substâncias, mas em geral quadro de Dependência é bastante parecido entre as várias categorias de substâncias. Hoje, há duas abordagens principais para o tratamento da dependência química: a psicoterapia
e a farmacoterapia. O modelo psicoterápico mais bem fundamentado
atualmente é o cognitivo-comportamental , que prevê abstinência da substância, evitação de situações que induzam ao consumo e treinamento para resistir ao uso em circunstâncias que não possam ser evitadas. O tratamento tende a ser mais eficaz se for acompanhado por atendimento familiar, mas sempre partindo da abstinência. Desta forma, a internação é indicada em casos onde haja riscos ao próprio paciente ou à terceiros, agressividade, sintomas psicóticos (delírios de perseguição, alucinações...) e uso descontrolado da substância a ponto de comprometer a continuidade do tratamento. II – Entendendo a Dependência Química
A Dependência Química é um conjunto de fenômenos que envolvem o comportamento, a cognição e a fisiologia corporal consequente ao consumo repetido de uma substância psicoativa, associado ao forte desejo de usar esta substância, juntamente com dificuldade em controlar sua utilização persistente apesar das suas consequências danosas. Na dependência geralmente há prioridade ao uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigações sócio-ocupacionais. A tolerância é o primeiro critério relacionado à dependência. Tolerância é a necessidade de crescentes quantidades da substância para se atingir o efeito desejado ou, quando não se aumenta a dose, é entendida também como um efeito acentuadamente diminuído com o uso continuado da mesma quantidade da substância. O grau em que a tolerância se desenvolve varia imensamente entre as substâncias. Existe um padrão de uso repetido da substância que geralmente resulta em tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo da droga. Um diagnóstico de Dependência de Substância pode ser aplicado a qualquer classe de substâncias. Os sintomas de dependência são similares entre as várias substâncias, variando na quantidade e gravidade de tais sintomas entre uma e outra droga. Os sintomas
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psíquicos e sociais decorrentes da dependência do fumo, por exemplo, são absolutamente menores do que aqueles da dependência ao álcool. Chama-se " fissura" o forte impulso subjetivo ou compulsão incontrolável para usar a substância. Embora não seja especificamente relacionada como um critério, a “fissura” tende a ser experimentada pe la maioria dos indivíduos com Dependência de Substância (se não por todos). O dependente pode até expressar um desejo persistente de reduzir ou regular o uso da substância, mas reluta sempre em decidir deixar de vez a substância. E com frequência já deve ter havido muitas tentativas frustradas de diminuir ou interromper o uso. A questão essencial, de fato, está no fracasso do dependente se abster de usar a substância, apesar das evidências do mal que ela vem causando. Em geral o dependente dedica muito tempo obtendo a substância, usando-a ou recuperando-se de seus efeitos. Em alguns casos de Dependência de Substância, virtualmente todas as atividades da pessoa giram em torno da substância. As atividades sociais, ocupacionais ou recreativas podem ser seriamente prejudicadas, abandonadas ou reduzidas em virtude da dependência ou uso bastante abusivo da substância, e o dependente pode afastar-se de atividades familiares a fim de usar a droga em segredo ou para passar mais tempo com amigos usuários da substância. As primeiras experiências com drogas ocorrem, freqüentemente, na adolescência. Vários trabalhos, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS) têm evidenciado a precocidade da faixa etária do início do uso de drogas, geralmente dentro da adolescência, entre 10 e 19 anos. Fisiologicamente, na adolescência as regras costumam ser questionadas e contestadas e, juntando-se o fato desta ser uma época de experimentações, surge um risco maior para o uso de drogas ilícitas, álcool e fumo. Todavia, felizmente, nem todas as pessoas que experimentam drogas se tornam dependentes, porém, quando ocorre, a dependência química é uma doença complexa, de tratamento longo e nem sempre eficaz. Quando pesquisado as causas para a dependência química acaba-se sempre concluindo ser esta multideterminada, ou seja, multifatorial. Existem alguns fatores fortemente associados ao uso abusivo de drogas e dependência química, como por exemplo, os fatores genéticos, psicológicos, familiares e sociais. Em geral parece que esses fatores não costumam agir isoladamente e sim em conjunto. III – A Psiquiatria e o Direito
A interface entre a Psiquiatria e o Direito, embora seja necessária, é complexa e difícil, já que enquanto a linguagem médica descreve o estado do paciente em uma escala que vai de grave a completamente saudável, a linguagem jurídica é binária: o doente é capaz ou incapaz, necessita ser internado ou não, oferece ou não perigo. Quando se reporta
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às internações involuntárias – aquelas feitas sem o consentimento do paciente – , a questão fica mais evidente. A essência das justificativas de uma internação involuntária está na perda da autonomia do indivíduo, decorrente de sua doença mental, que o impede de compreender e entender o caráter desadaptativo de seu estado. Quadros psicóticos graves, cursando com delírios e alucinações, e casos de depressão com risco de suicídio ilustram bem essa condição. Há ainda outros quadros psiquiátricos que, mesmo não apresentando desorganização das funções psíquicas como a consciência e o pensamento, muitas vezes demandam internação contra a vontade do paciente, como nos transtornos alimentares. A maioria dos países desenvolveu legislações específicas para tratamentos involuntários, porém nenhuma dessas orientações contempla em sua totalidade os procedimentos, critérios, condições e patologias que sejam aceitas sem contestações. Além disso, os dados de literatura não são consistentes quanto à taxa de pacientes que apresentam incapacidade para decidir sobre ser submetido ou não a um determinado tratamento. Faz-se necessário, portanto, analisar brevemente o estado da legislação brasileira concernente às internações psiquiátricas. A Lei Federal 10.216/2001, promulgada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, como deixa explícito em seu subtítulo, se dispõe a proteger os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionar o modelo assistencial em saúde mental. Ela veio em substituição ao Decreto 24.559, de 1934, que até então dispunha “sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas”. Desnecessário dizer que tal lei era cheia de anacronismos e inadequações acumuladas diante dos quase cem anos de avanço do conhecimento médico que ela atravessou. Assim, muito embora algumas medidas propostas como “redirecionamentos” para a assistência sejam passíveis de questionamento, em seu cômputo geral é uma lei que trouxe avanços na regulamentação de atos médicos envolvendo pacientes portadores de transtornos mentais. Com relação às internações psiquiátricas, a lei define suas modalidades, bem como suas justificativas. No parágrafo único do artigo 6º define-se que: “São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.”
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Portanto, qualquer paciente que se encontre numa enfermaria psiquiátrica se enquadra numa dessas categorias: afora as judicialmente determinadas (compulsórias) – casos nos quais a vontade do paciente não interfere – , a internação só é voluntária se o paciente declara por escrito que a aceita; todos os outros casos são involuntários. Isso fica claro no artigo 7º: “A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.”
No parágrafo único lê-se que: “O término da internação voluntária dar -se-á
por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico assistente.” Ou seja, as
categorias podem mudar ao longo do tempo se o paciente voluntariamente internado pede a alta, ou se esta é conferida ou a internação se torna involuntária. Essa modalidade de internação tem regras específicas também determinadas na lei: “Art. 8o – A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado onde se localize o estabelecimento. § 1° – A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta. § 2° – O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.”
Alguns pontos merecem destaque: em primeiro lugar, a necessidade de comunicar o Ministério Público da internação e da alta desses pacientes. Tal norma tem sido cumprida anexando-se um “Termo de Comunicação de Internação Psiquiátrica Involuntária” aos documentos médicos necessários para proceder à internação. O próprio hospital se encarrega de transmiti-los ao Ministério Público, sendo o Diretor Clínico o responsável técnico referido na lei. Outro ponto de interesse diz respeito ao fim da internação involuntária. Além do evento de alta médica, fica claro na lei que os responsáveis legais têm o direto de retirar o paciente. É natural que seja assim: se um indivíduo tem a capacidade de discernimento preservada, ele pode aceitar se tratar ou não (a não ser que isso implique iminente risco de morte). A internação involuntária existe em psiquiatria porque tal capacidade por vezes falta ao paciente. Quando isso ocorre, alguém toma em suas mãos as deliberações sobre a vida dele, analogamente ao caso das pessoas
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interditadas. E a lei brasileira é clara ao dizer quem assume tal papel, no artigo 1.775 do Novo Código Civil: “O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito. § 1º – Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto. § 2º – Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos. § 3º – Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do curador.”
Da mesma forma que uma pessoa em sã consciência decide sobre si, é a família que decide sobre um parente com transtorno mental que o prive de entendimento. O médico, entretanto, decide nos casos em que não há família no momento ou se o risco da não internação é extremo. Nesse último caso a alta pode ser recusada, conforme o artigo 46o do Código de Ética Médico: “É vedado ao médico: efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida” . Finalmente o artigo 9º trata das internações compulsórias, aquelas ordenadas por juízes: “A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários”. Embora não seja rara, não é a situação mais comumente encontrada nos hospitais psiquiátricos, excluídos os Hospitais de Custódia e Tratamento. Assim, embora a autonomia seja um dos pilares da atuação ética na assistência à saúde, há casos em psiquiatria que a capacidade de decidir autonomamente do indivíduo está prejudicada. Os Estados de Direito reconhecem isso e preveem leis específicas para tais circunstâncias, e é da responsabilidade dos profissionais que atuam em saúde mental conhecê-las. IV – A Internação Compulsória: Tratamento ou Criminalização?
Primeiramente nos cabe perguntar se a internação compulsória e/ou involuntária em casos de dependência às drogas, atende às necessidades dos sujeitos ou se, ao contrário, trata-se de um “ambiente” não acolhedor? Se ela significa o respeito pelas problemáticas subjetivas ou se, ao contrário, respeita interesses de limpeza urbana em tempos de Copa do Mundo? Se é uma atitude “suficientemente boa” ou ao contrário atende a interesses pr ivados da atual política social? No último dia 05 de março, em Genebra, o Relator da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Enfrentamento à Tortura, Juan E. Mendez apresentou relatório ao
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Conselho de Direitos Humanos no qual sinaliza que as internações compulsórias para tratamento de usuários de Crack, prática adotada por autoridades em várias capitais do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, podem se constituir forma de tortura. No Rio de Janeiro, as internações compulsórias nasceram como uma alternativa no campo da saúde, vinculada estritamente a política de segurança pública que, "revestida" como uma ação social passaram, a partir do apoio de órgãos como o Ministério Público e o Poder Judiciário, a promover a retirada das ruas de crianças e adolescentes usuárias de Crack. Porém, verificou-se que estes recolhimentos deram-se de forma genérica e com uma alta carga criminalizadora, pois, na primeira fase do procedimento, todas as crianças e adolescentes apreendidas eram levadas às Delegacias de Polícia especializadas em apuração de ato infracional e ali eram feitas as verificações de registro contras as mesmas. O referido procedimento contra crianças e adolescentes foi alvo de severas críticas de várias organizações de direitos humanos, inclusive sendo objeto de Ação Judicial movida pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que questionava especialmente o recolhimento e a criminalização das crianças e adolescentes em situação de rua. O CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes) emitiu Nota Técnica em julho de 2011, pontuando a necessidade de revisão desta prática de recolhimento e internação compulsória, pois era evidente a ausência de uma finalidade de proteção baseado no Estatuto da Criança e Adolescentes, Lei 8069/90. Investida na condição de Presidenta da CONANDA e acompanhada por conselheiros do órgão, a Ministra Maria do Rosário inspecionou abrigos no Rio de Janeiro que estavam recebendo estas crianças e adolescentes e constatou evidências do uso de medicamentos para contenção e controle das crianças internadas compulsoriamente. O Ministério Público e o Poder Judiciário baseiam suas ações judiciais de autorização desta prática por parte de agentes do estado, na regra da Lei 10216/01 que permite a internação involuntária de pessoas que estejam com um total comprometimento de autodeterminação de vontades. Entretanto, é preciso registrar que a intervenção médica antecede qualquer decisão judicial, pois sem um parecer fundamentado que respalde a decisão dos do magistrado, a internação compulsória passa ser considerada ilegal, caracterizando, inclusive, crime por parte de seus autores, neste caso, agentes públicos. O relator da ONU, Juan Mendez sugeriu que fosse aberto um grande debate internacional para analisar a situação de maus tratos na área de saúde que, em muitos casos, podem chegar à prática evidente de tortura e tratamentos cruéis. Sobre a internação compulsória, o especialista das Nações Unidas atestou que:
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"É comum a internação compulsória de usuários de drogas em supostos centros de reabilitação. Em alguns países, há relatos de que uma vasta gama de outros grupos marginalizados, incluindo crianças de rua, pessoas com deficiência psicossocial, profissionais do sexo, pessoas desabrigadas e pacientes com tuberculose, sejam detidos nesses centros."
Na sequência de suas considerações, no relatório apresentado, Juan Mendez afirmou que: “aquilo que é denominado como "Tratamentos de Saúde", sem qualquer resultado prático ou justificável pode caracterizar um tratamento cruel e no caso de envolvimento de agentes do estado com esta falta de intenção de cuidados à saúde, pode ser considerado tortura.”
Como sabemos, a questão do uso de crack por parte de crianças e adolescentes é uma etapa, senão a última, que vem desmantelando uma cidadania que em muitos casos, sequer existiu. O aparente argumento de proteção utilizado pelas autoridades públicas para sustentar a prática do recolhimento e internação compulsória deve sair do campo do formal e ingressar no campo das políticas públicas, pois na perspectiva do programa apresentado pelo Governo Federal " Crack é Possível Vencer", até o presente momento ainda não termos vencedores, apenas os vencidos, neste caso, muitas delas, crianças e adolescentes vítima da inobservância do Artigo 227 da Constituição Federal de 1988. V – Medidas Substitutivas: Uma questão ética e não jurídica.
Existe no Brasil um movimento da reforma psiquiátrica, que é uma luta pelos direitos de pacientes psiquiátricos que denuncia a violência praticada nos manicômios e que propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias comunitárias para o tratamento dessas pessoas. O movimento ganhou força na década de 70 no Brasil com a mobilização de profissionais da saúde mental e familiares de pacientes insatisfeitos com os métodos praticados na época. A nova política de saúde mental visa o tratamento em rede
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substitutiva, ou seja, em locais que o paciente possa frequentar, sem a necessidade de passar longos períodos internado, longe da convivência familiar e comunitária. O movimento de desconstrução do hospital psiquiátrico implica um processo político e social complexo, composto de diversos atores, instituições e forças de diferentes origens do qual o CFP (Conselho Federal de Psicologia) participou efetivamente; por isso a instituição se posiciona contra as internações compulsórias e contra as comunidades terapêuticas, defendendo o tratamento em locais abertos ligados à rede antimanicomial. Para isso luta pela ampliação dos serviços oferecidos pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que é um trabalho em saúde mental aberto e comunitário do SUS e local de tratamento para pessoas que justifiquem sua permanência num dispositivo de atenção diária; nas unidades de acolhimento transitório, postos que funcionam como uma passagem breve para o dependente, que depois será encaminhado a serviços de reinserção social. Também são considerados necessários consultórios de rua que atendam à população em situação de risco e vulnerabilidade social, principalmente crianças e adolescentes usuários de álcool e outras drogas; bem como a oferta de leitos em hospital geral e equipes de saúde mental básica articulada com as redes de urgência. Uma contrapartida à internação compulsória é o reforço de políticas públicas de tratamento em rede substitutiva, em convivência familiar e comunitária aos usuários de entorpecentes. Conforme o ponto de vista da psicóloga Marília Capponi, conselheira e representante do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo: “A dependência química é um fenômeno que deve ser discutido da perspectiva biopsicossocial; o tráfico, o desemprego e a violência pedem intervenções mais amplas e recursos de outras áreas como educação, habitação, trabalho, lazer e justiça”
VI – A Organização Mundial de Saúde
Em documento elaborado pela OMS, em conjunto com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), em 2008, descreveu dez princípios gerais que orientam o tratamento da dependência de drogas. Um deles, intitulado “Tratamento da dependência de drogas, direitos humanos e dignidade do paciente” explicita que o direito à autonomia e autodeterminação, o combate ao estigma, ao preconceito e à discriminação e o respeito aos direitos humanos devem ser observados em qualquer estratégia de tratamento para a dependência de drogas. O documento também recomenda que o tratamento não deve ser
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forçado aos pacientes. A internação compulsória é considerada uma medida extrema, a ser aplicada apenas a situações excepcionais de crise com alto risco para o paciente ou terceiros, e deve ser realizada em condições e com duração especificadas em Lei. Ela deve ter justificativa clara e emergencial, além de ter caráter pontual e de curta duração. Em tradução livre, a OMS aponta os seguintes requisitos para que se possa ter um tratamento mais humano, consequentemente mais eficaz: 1 - recursos disponíveis serão investidos em intervenções baseadas em evidências; 2 - um sistema completo oferece uma ampla gama de tratamento baseada em evidências e
intervenções farmacológicas e psicossociais integradas, visando o tratamento a pessoa como um todo. A gama inclui intervenções de intensidade diversa, a partir de divulgação, de baixo limiar e intervenções breves para a longo prazo; 3 - a duração do tratamento e intervenções é determinada por necessidades individuais, e
não haverá limites pré-estabelecidos para a duração do tratamento; 4 - sempre que possível, os serviços serão formadas por equipes multidisciplinares
adequadamente treinados na prestação de intervenções baseadas em evidências; 5 - serviços básicos, incluindo a desintoxicação, farmacoterapia de manutenção para
dependência de opiácios, aconselhamento social e suporte serão disponibilizados minuciosamente pelos territórios abrangidos. 6 - casos mais complexos, incluindo pacientes com concomitante somático grave e
transtornos psiquiátricos receberão o tratamento adequado, possivelmente através de encaminhamento para serviços especializados 7 - intervenções psicossociais têm demonstrado ser eficazes na recuperação e prevenção de
recaídas, tanto em ambientes ambulatoriais com residenciais, em particular terapia cognitivo-comportamental, entrevista motivacional e de contingência, emprego e formação profissional, aconselhamento e consultoria jurídica. 8 - intervenções são adaptadas pela relevância do ambiente sócio-cultural em que são
aplicadas, constantemente atualizadas, de acordo com a pesquisa desenvolvida e investigação diversificada, será realizada em todas as regiões do mundo. VII – A Reinserção
A atual discussão gira em torno do respeito à dignidade humana, do dependente, e o respeito aos demais cidadãos que são obrigados a conviverem, muitas vezes, perto de locais onde esses dependentes se reúnem para o uso de drogas, expondo boa parte da população aos riscos que os surtos psicóticos que a droga pode trazer. Ou seja, temos o grupo à favor da internação compulsória, pois assim teríamos “menos perigos” na rua, como se somente isso fosse trazer a tão sonhada paz para o país, e, contrapartida, temos o
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grupo que se posiciona de forma contrária, não à internação, mas, às formas como essa é aplicada, porém, a discussão paira tão somente nesses pontos, esquecemos, portanto, da visão a longo prazo. Então vem a pergunta, após a desintoxicação, até mesmo via internação compulsória, o que vem? E a recuperação e readaptação psicossocial daqueles que são discriminados e excluídos automaticamente pela sociedade? Estamos criando a necessidade, já superada no mundo todo, de asilos e institutos psiquiátricos especializados, para exercer o controle e a disciplina dos que incomodam a sociedade (leia-se os donos do poder, o capital, os interesses sociais)? Assim, a internação compulsória, só pode ser cogitada mediante qualidade no tratamento, aumento de vagas em clínicas e instituições de saúde, equipes interdisciplinares e, segundo a última lei federal, em redes de atenção psicossocial. Todos têm direito a uma segunda chance, mas a internação compulsória não a garante, pelo contrário, pode ser a retirada definitiva de direitos a serem resgatados e preservados. Admiti-la como foco de uma política de tratamento dos usuários de crack, por exemplo (e relembre-se que dependência de crack não é apenas uma questão diagnostica, mas psicossocial), poderia abrir espaço para a violação de direitos humanos. Ao tirá-los das ruas é necessário ter estruturado todo um programa de saúde, psicologia, assistência social e jurídica, visando ao seu tratamento e à preservação de seus direitos de cidadania. Quem vai garantir os demais direitos para além da “suposta garantia de cuidado” que a internação compulsória imediata promete obscuramente? Assim, sem um sistema competente de internação e tratamento teremos tão somente um ambiente de enclausuramento desnecessário, ou, melhor dizendo, uma espécie de estufa de humanos, onde são deixados até terem saúde o suficiente para se manterem no mundo exterior, mundo este que o espera de “braços abertos” para todas as experiências químicas, das quais fora isolado. É necessário que o tratamento seja o foco da internação, pois, o que muito se observa atualmente é o puro isolamento com a esperança de que somente isso “retirará” a dependência química do paciente. VIII - A Internação Compulsória e a Dignidade da Pessoa Humana
A medida de intervenção viola direitos humanos e sociais básicos. A internação compulsória é a retomada da lógica manicomial em plena era de reforma psiquiátrica e propõe a segregação, a criminalização ou ao menos a desqualificação moral de usuários de drogas. Ela é contrária aos princípios do SUS e pode-se compreende-la também como inconstitucional. Desconsidera a necessária intervenção social sobre a problemática das drogas e vulnerabiliza o usuário ao estigma e ao rompimento de laços sociais e familiares.
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O ideal seria os estados investirem na ampliação dos CAPS-AD, que preveem, inclusive, intervenções familiares e sobre a comunidade, superando a lógica medicalizadora que reduz problemas sociais a patologias de indivíduos. Lembremos que a reforma psiquiátrica está prevista em lei no Brasil (Lei 10.216), que prevê a redução progressiva de leitos de internação psiquiátricos e sua substituição por serviços de base territorial e comunitária tal como também previsto na lei 8.080. A saúde mental sempre foi um campo de exploração e lucro descabido do setor privado da saúde e aqui nesta trágica epidemia do crack, mais uma vez, estão envolvidos os interesses destes grupos. A internação compulsória definitivamente não parece ser uma alternativa eficaz pelo fato sobejamente evidenciado de que, o sucesso de um tratamento de adição depender diretamente do desejo e da vontade do adicto em se curar. E, na ausência de outros mecanismos de apoio e reinserção social e familiar dos indivíduos, o mais provável para estas pessoas será o caminho de volta à rua e à droga. É preciso uma consciência e mobilização da sociedade nacional assumindo a responsabilidade coletiva sobre o problema do crack no país. Mas é também necessária uma forte presença do Estado na adoção de uma política ampla, intersetorial com a oferta de serviços adequados para o enfrentamento do problema. A internação compulsória não pode ser executada sem os cuidados de caráter clínico e de direitos que a lei estabelece. É necessário investir em uma política de Estado que seja sólida, permanente e consistente, e não em medidas imediatistas e paliativas, talvez inspiradas por interesses outros que não o verdadeiro cuidado e tratamento das pessoas com dependência química. Vale registrar que o fracasso do tratamento calcado nas internações compulsória e involuntária (Alta taxa de retorno às drogas após o fim do internamento) é atribuído exatamente à falta de criação de vínculo entre o usuário e o profissional de saúde, somada, é claro, ao não desejo de se tratar. A alternativa a medidas isoladas e de pouca eficácia terapêutica, como a internação compulsória, é a constituição de redes de atenção à saúde mental, coordenadas pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A experiência brasileira tem demonstrado a efetividade dessa estratégia, que se deve, fundamentalmente, à criação de vínculo entre a pessoa em tratamento e a equipe de saúde. É claramente perceptível que a dignidade da pessoa humana não é só afetada quando a vontade dela não é respeitada no ato de internamento, mas também, e é tal ato que deve ser observado, nos dia-a-dia da internação, onde os profissionais não só se esquecem de que estão tratando de “gente”, como de igual forma, se esquecem (ou preferem não o fazer) das suas obrigações, deixando simplesmente os “asilados” em
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situação de completo desprezo, ignorando não só as normas de saúde que regem o internato como todo o ordenamento jurídico brasileiro. Os dependentes que são internados compulsoriamente, em muitas das vezes, encontram em estado de quase loucura, o que, mesmo que decorrente de uso de drogas, deve ser tratado com mais afinco e, digo mais, com uma boa dose de paixão pela profissão e pelo semelhante. Uma vez que tais requisitos estejam ausentes, estaremos falando sobre cárcere, ou, como dito anteriormente, uma completa tortura. Ainda acerca da internação dos ditos “loucos”, é impossível deixar de citar Michael Foucault: “A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido.” (FOUCAULT, 1972, p. 78).
E diz: “A título de hipótese, pode-se distinguir, segundo os tipos de punição privilegiados, sociedades de banimento (sociedade grega), sociedades de resgate (sociedades germânicas), sociedades de marcagem (sociedades ocidentais do final da Idade Média), e sociedades que enclausuram (a nossa?).” (FOUCAULT, 1997, p. 27). IX – Considerações Finais
Em nome da defesa social, o direito penal é o único ramo do Direito, num Estado Democrático, legitimado a cercear gravemente a liberdade alheia contra a vontade do individuo. Novamente estamos diante da postura daqueles que detém o poder. Quando não podem mais com um “mal” que cresce, simplesmente tomam atitudes para expurgá -los do meio social, seja de forma violenta, como um massacre, ou da forma mais atual, com a licença poética, “um massacre do século XXI”, que, vem matando o ser humano, da pior forma possível, que é retirando este do seu meio social e descartando em um
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estabelecimento criado para fins de tratamento, todavia, o que se tem é o descaso e a falta de dignidade. Querem tratar de humanos de forma “desumanizada”, querem puramente cercá-los em ambientes muitas vezes inóspitos com o fim de curá-lo, porém, vemos que o método de cura se baseia na restrição do meio social e, ainda, a retirada da falta do único apoio que detinham antes, a proibição de contato com os seus familiares. A histórica omissão dos poderes públicos se transformou em histeria social: na busca para uma rápida solução para a chaga exposta, qualquer solução parece servir, desde que afaste o problema de nosso campo de visão. Destarte, vemos o Estado tentando tratar pessoas diferentes, com males diversos, da mesma forma. Ao invés de investirem em melhores formas de tratamento, leia-se mais humanizadas, eis que paira sobre estes o velho cabresto que somente os fazem enxergar o lado bom – para si mesmo, formando o conceito de que todas as medidas tomadas são eficientes, assim, enquanto os bajuladores do poder aplaudem, vemos diversas cenas de pais aos prantos, pois, após meses de internação receberam de volta ao seus lares um humano diferente daquele que haviam criando. Bem queria dizer que tal diferença fosse positiva, todavia, o que se tem é um humano que, em razão dos “bons tratos recebidos” volta com a ideologia de que é um mero ninguém e que todos os que o cercam são seres de grande poder ofensivo, que irão os machucar físico e psicologicamente.
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Referências:
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