Hécuba: o limiar do amor transcendental
Hécuba: o limiar do amor transcendental
por
Carolina Mesquita da Costa.
Trabalho apresentado à professora Elisa, da disciplina Prática de leitura e interpretação de textos da dramaturgia grega, como um dos requisitos para aprovação.
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO AGOSTO DE 2014 1
Hécuba: o limiar do amor transcendental O amor de mãe por seu filho é diferente de qualquer outra coisa no mundo. Ele não obedece lei ou piedade, ele ousa todas as coisas e extermina sem remorso tudo o que ficar em seu caminho.” Agatha Christie “
Até que ponto o amor de uma mãe iria? Que tipo de amor é esse que não tem explicação e que para vingar e honrar um filho vai até os limites inimagináveis da vida? O amor de mãe
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aquele que trata com amor, recebe com amor, um amor
fraternal, transcendental e inabalável é o primeiro amor que conhecemos quando chegamos ao mundo. Desde o ventre a mãe passa para seu filho esse sentimento tão puro e sublime. É assim hoje e foi dessa maneira na antiguidade, em comprovação disso podemos citar a tragédia de Eurípides, Hécuba que possui datação incerta de -424 a.C e que será trabalhada aqui neste ensaio. A Obra
A tragédia Hécuba baseia-se em episódios do Ciclo Troiano. Após a queda de Tróia , conquistada e destruída pelos gregos, as troianas sobreviventes são entregues ao vencedores como escrevas na partilha de presas de de guerra. Os gregos ansiavam, desesperadamente, por voltar para casa, pois já estavam em conflito, longe da família por dez anos. No entanto, suas naus estavam retidas no Quersoneso Trácio devido a ventos desfavoráveis. Diante desse contexto, a tragédia tem seu prólogo com o espírito de Polidoro, filho de Hécuba e Príamo, contando o feito injusto de Poliméstor, rei da Trácia. Conta que ele fora entregue por seu pai à Poliméstor, hóspede sempre muito bem tratado em terras Troianas, pois era jovem demais para empunhar espada e escudo. Príamo entrega seu filho em confiança de Poliméstor com tesouros troianos. No entanto, a ambição do rei por ouro faz com que o rapaz caia em desgraça, sendo assassinado pelo rei Poliméstor e tendo seu corpo jogado ao mar. Polidoro, neste momento vem proclamar um enterro digno e anunciar um desejo de Aquiles que deixará sua mãe em completo desespero. Na sequência, aparece Hécuba procurando sua filha Cassandra para desvendar um sonho estranho que ela teve a noite: Há pouco pareceu-me estar vendo uma corça de pele mosqueada sob as
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patas rubras de um lobo que a sagrava depois de tirá-la de meus joelhos sem a mínima piedade. Eis outro fato que também me aterroriza: apareceu por 2
cima da tumba de Aquiles o fantasma do herói, que veio reclamar como quinhão de honra uma das troianas, tão sofredoras depois da queda de Ílion. ” (Hécuba, página 160)
Esse sonho só significava o presságio das mortes que estariam por vir, a morte encoberta de Polidoro e a morte de Polixena (filha de Hécuba e Príamo, também). E de fato, Aquiles proclamou o sacrifício de sua presa de guerra, neste caso, Polixena. O que traz completo desespero a Hécuba quando ela recebe a notícia e ainda sem saber da morte de seu filho, pede pela vida da filha. Ela não somente pede como também implora desesperadamente que possa ir no lugar da filha à Odisseu. Aqui é o primeiro momento em que vemos o desespero de uma mãe frente a ameaça iminente de morte de sua filha Polixena: ...Se está fazendo falta ao filho de Peleu uma homenagem impecável,
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Odisseu, não mates Polixena; mata-me em vez dela! Leva-me logo até o túmulo de Aquiles, golpeia-me sem pena e sem misericórdia! (...) Então os gregos deverão também matar-me juntamente com minha filha! Sendo assim, eles darão à terra e ao herói defunto em dose dobrada do sangue esperado. (...) É inevitável, morrerei com ela também! ” (Hécuba, 172)
Hécuba tal como verdadeira mãe que ama seus filhos, deseja desesperadamente ir no lugar da filha, sabendo que ela era jovem que tinha uma vida pela frente. Esse, no entanto, não é o mesmo desejo de Polixena. Então aqui nós vemos uma heroína destemida, Polixena será imolada com dignidade, pois prefere a morte a ser cativa de gregos que destruíram seu império. Para ela maior vergonha que morrer é ser escrava e perder o mérito de princesa, ela prefere morrer como pessoa livre. Embora vejamos uma Polixena destemida e determinada, em nada isso altera seu sentimento por sua mãe; Polixena ama tão solenemente sua mãe quanto sua própria mãe a ama, segue algumas palavras de Polixena: Será melhor se me deres as mãos suaves. Junta por uns momentos o teu
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rosto ao meu, pois nunca, nunca mais voltarei a ver-te e a contemplar o disco e os raios do sol que me aparecem pela derradeira vez! Recebe meu último adeus! Ai Minha mãe! Ah! Tu, a quem devo a minha própria existência!(...) E lá no outro mundo eu ficarei sem ti! ” (Hécuba, 173 e 174)
Na citação que seguiu, podemos perceber uma característica da obra Euripídiana: os personagens são mais humanizados e com passam por conflitos 3
semelhantes a vida comum dos mortais. Esse aspecto passa a ser ponto determinante na obra para gerar catarse naqueles que a lêem ou que viam a peça sendo encenada. Para confirmar essa afirmação segue um comentário de Jacqueline de Romilly: Os heróis de Eurípides são mais tocantes, por terem uma vida tão
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semelhante à dos outros homens. Este realismo ressente-se naturalmente na sua psicologia. Os heróis de Eurípides são vítimas de todas as fraquezas humana: alguns obedecem às suas paixões, e esta influência da paixão é descrita com realismo; outros cedem ao seu interesse, e são medíocres. De qualquer maneira, Eurípides não nos deixa ignorar nada do que se passa com eles e que se poderia passar com qualquer ser humano. ” (Jacqueline Romilly, in A tragédia grega , página 126)
A tragédia segue com Polixena sendo levada em sacrifício à Aquiles e Hécuba caída no chão lamentando a perda da filha com as troianas. Nesse momento, acontece algo interessante, pois entra Taltíbio em cena e é por Taltíbio que Eurípides expõe sua forma de pensar sobre os deuses, como se fosse um verdadeiro ateu: Ah! Zeus! Que poderei dizer? Abres teus olhos para ver os frágeis mortais e
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cuidar deles? Ou te dão um nome fictício e o acaso é o condutor da raça humana nesta vida? Não enxergas aqui a rainha da Frígia, terra de muito ouro, a esposa do rei Príamo antes tão poderoso e próspero? Há pouco sua cidade inteira converteu-se em cinzas depois de ser desfeita em ruínas pelos gregos; a própria Hécuba, escrava, uma anciã, depois de ver seus numerosos filhos mortos está caída aqui no chão – infortunada! – com os cabelos brancos sujos de poeira . Ah! Estou muito velho, mas preferia perder a vida antes de ver aniquilado por um destino desonroso como o dela!
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(Hécuba, 175)
Então, por pedido de Hécuba Taltíbio conta a Hécuba como foi o processo de imolação de Polixena, queria saber ela se sofreu, se foi humilhada. No entanto, ao conversar com o mensageiro pode perceber que sua filha teve uma morte digna de princesa, ou melhor, de mulher livre. Taltíbio também pede para que Hécuba vá cuidar do corpo de sua filha para dar-lhe um funeral digno. Nesse momento, a antiga rainha pede as escravas que vão buscar um vaso com água do mar para preparar o corpo de Polixena para o funeral. Ao voltar as escravas não sabem o que dizer a Hécuba, pois estas não voltam de mãos vazias voltam com um 4
corpo, que a princípio a velha rainha acredita ser de Cassandra, mas a verdade era que o corpo pertencia a Polidoro, o filho deixado aos cuidados de Poliméstor. Segue o lamento de Hécuba: Ai! Infeliz de mim!Agora vejo morto meu filho Polidoro, que eu imaginava
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estar em casa de um anfitrião na Trácia. Despeço-me da vida, pois já não existo! Ai! Filho meu! Ai! Meu filho muito querido! ” (Hécuba, 185)
Então, ao ver o corpo do seu filho Polidoro, Hécuba compreende o sonho que teve e associa o feito a Poliméstor. Nesse instante, aparece Agamêmnon questionando a demora da mãe para velar sua filha. Hécuba, que já se encontrava a beira da loucura, anuncia a situação para Agamêmnon que consente que ela vingue a morte de seu filho, que fora morto injustamente pela soberba do rei Trácio. Diante disso, Hécuba vingouse com suas próprias mãos atraindo Poliméstor e os filhos à sua tenda , onde ela e suas companheiras de cativeiro mataram os filhos e arrancaram os olhos do pai. Em função do fato consumado Agamêmnon ordenou que Poliméstor fosse abandonado em uma ilha deserta, enquanto as naus gregas partiam impelidas por ventos favoráveis, levando Hécuba e as outras cativas troianas. Um obra partida em Duas
Após a leitura da obra Hécuba fica extremamente claro, que existem duas partes interligadas entre si. A primeira poderia designar-se como a tragédia de Polixena, e nela a filha de Hécuba é sacrificada junto ao túmulo de Aquiles, enfrentando heroicamente o seu destino. E existem teóricos que acreditam que essa tragédia deveria ficar separada da segunda parte, a tragédia de Polidoro. Em que a infeliz rainha de Tróia envia o filho Polidoro, como comentado acima, com tesouros ao rei trácio Poliméstor. Mas esse assassinou o jovem por causa do ouro, jogando ao mar para se livrar do corpo. O corpo de Polidoro somente, será encontrado pelas cativas quando estas vão buscar água do mar para cuidar do funeral de Polixena. Tão desmedida será a dor de Hécuba, como será sua vingança. Mata os filhos do rei e em seguida, cega-o. Portanto, ninguém negará que a tragédia consta de duas grandes partes, mas não se pode contestar também que o poeta as conseguiu, em grande parte, ligar e formar uma unidade. O estilo do autor
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O estilo característico de Eurípides, nesse drama, aparece ao lado das expressões superabundantes de sentimento apaixonado e outras que se manifestam num raciocínio frio. Logo, o que marca o elemento dialético e antagônico, presente na obra, está marcadamente desenvolvido ao lado do lirismo. Na primeira parte, Hécuba opõe-se a Odisseu, que arranca Polixena de seus braços; na segunda, encontra-se com Poliméstor, cuja sorte já está lançada, numa verdadeira ação judicial presidida por Agamêmnon. Conclusão
A obra Hécuba retrata o que pode ter acontecido com aquelas que foram vencidas. Os gregos saíram vitoriosos nesse combate, mas a verdade é que de alguma forma todos saíram perdendo, perderam-se amigos, familiares, reinos... A dor da perda dos filhos, do reino e da traição do hóspede que sempre fora bem tratado, passam a ser ponto chave na obra euripidiana e nela podemos, inclusive, passar por catarse graças ao caráter humano presente nos personagens. Com Hécuba nós sofremos a perda da filha e com a filha sentimos a perda da mãe amada e querida. E se quisermos retirar uma moral dessa tragédia podemos resumir toda obra em: o amor de uma mãe faz com que o inimigo se torne amigo para vingar um filho morto injustamente e o mesmo amor transcende o limites da razão para honrar seu filho amado.
Bibliografia:
GAMA KURY, Mário. Os persas, Electra e Hécuba. Zahar, 6ª edição, Rio de janeiro, 1992. LESKY, Albin. História da Literatura grega. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1995. ROMILLY, Jacqueline. A tragédia grega. Edições 70, 2ª edição, Lisboa 2013.
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