O NOVO TEMPO: CIRCULAÇÃO ECONÔMICA E CONHECIMENTO DO MUNDO – TRANSIÇÃO, EXPANSÃO COMERCIAL E MERCANTILISMO
Vista como um todo, a fase final do feudalismo correspondeu historicamente a transformações as mais variadas, associadas tanto à progressiva desestruturação das relações feudais como ao avanço lento, não raro irregular, das relações capitalistas. Quando a nossa atenção se concentra nessas últimas, a tendência é sempre destacar aquelas que constituem as manifestações de processos e tendências cujo sentido vem a ser o do advento do capitalismo, daí o hábito de intitulá-las precondições da Revolução Industrial : a acumulação (primitiva) de capital; a liberação da mão de obra e os progressos técnico-científicos. Na realidade, a fase final do feudalismo corresponde a uma fase de transição caracterizada pela coexistência de elementos típicos do feudalismo, em processo de progressiva desagregação, e de outros, propriamente capitalistas, ainda emergentes. NOVOS CAMINHOS E NOVOS MUNDOS: A EXPANSÃO COMERCIAL
Os antecedentes medievais Durante os séculos XI e XIII verificou-se nas atividades agrícolas e artesanais na Europa Centro-Ocidental um conjunto de transformações, por vezes definidas como uma espécie de revolução econômica , que repercutiram no crescimento das trocas mercantis. Situa-se aí historicamente o chamado renascimento urbano medieval. As cidades que mais prosperaram foram as da Itália centro-setentrional, as do sul dos Países Baixos e aquelas situadas às margens do Báltico. Acumulação de capital, ampliaçãoda circulação monetária, surgimento de novos instrumentos de crédito, aumento dos empréstimos aos príncipes e às instituições eclesiásticas, circulação cada vez maior de mercadorias, quer no Mediterrâneo, quer pelo vale do Reno, entre o norte da Itália e o mar do Norte, são contemporâneos do crescimento e da multiplicação das feiras, sobretudo as da região de Champagne, na França. A crise do final da Idade Média (séculos XIV-XV) interrompeu por algum tempo o surto de prosperidade e expansão demográfica. Todavia, já a partir dos meados do século XV são evidentes os sinais de recuperação econômica, com o início da expansão marítima, comercial e colonial, liderada pelos países ibéricos. Para que se possa realmente entender essa passagem dos tempos medievais aos modernos, ou o começo da transição feudal-capitalista, talvez seja conveniente dividir esta exposição em três tópicos principais: a natureza socioeconômica, política e cultural das transformações ocorridas entre os séculos XI e XV; as características dos grandes circuitos comerciais na época moderna; a expansão extraeuropeia e as hegemonias mercantis ao longo da era mercantilista.
9
Nota Introdutória
Este liv Este livro ro é res result ultado ado de dua duass lon longas gas tra trajet jetóri órias as pel pelo o ens ensino ino un univ iver ersi sitá tári rio o du dura rant ntee as qu quai aiss o que aqu aquii apr aprese esenta ntamos mos foi exp experi erimen mentad tado, o, cr criti iticad cado, o, rev revisa isado do e ren renov ovado ado.. Por iss isso, o, ded dedica ica-mos este livro a todos os nossos alunos de ontem e de hoje da UFF, UERJ, UFRJ, PUC-Rio e demais instituições nas quais atuamos. Muitos deles são hoje nossos colegas e nessa condição ajudaram ainda mais na feitura deste trabalho. A na narr rrat ativ ivaa e a es estr trat atég égia ia de es escr crit itaa de dest stee li livr vro o se segu guem em o li livr vree jo jogo go da dass fo forç rças as in inte tele lect ctua uais is.. Não quisemos que as partes feitas por cada um de nós recebessem uma marca de unidade umaa em re um rela laçã ção o à ou outr tra, a, de fo form rmaa ta tall qu quee aq aque uele less qu quee no noss co conh nhec ecem em e os qu quee pa pass ssar aram am a no noss conhecer sentirão a diferença na abordagem dos temas e na forma de apresentá-los. Como somos adeptos da renovação, o que pode parecer paradoxal, exploramos nossos temas de maneira aberta e, na maioria das vezes, ensaística. Esperamos que gostem te m da fo form rma, a, po pois is ne nest stee li livr vro o a hi hist stór ória ia nã não o pa pass ssaa na po port rtaa ou ao lé léu. u. Me Merg rgul ulha hamo moss fu funndo ne nela la e ap apro rove veit itam amos os to toda dass as on onda das, s, me mesm smo o as me meno nore res, s, aq aque uela lass ma maro roli linh nhas as qu quee qu quas asee não fazem movimento. Devemos também registrar que boa parte das questões conceituais aqui apresentadas decorreram dos resultados da pesquisa sobre a história da historiografia cultural cultural brasile si leir iraa ap apoi oiad adaa pe pela la FI FINE NEP P e pe pelo lo CN CNPq Pq na fo form rmaa do PR PRON ONEX EX e vi vinc ncul ulad adaa ao Pr Prog ogra ra-ma de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Por último, queremos agradecer ao nosso editor Ricardo, que esperou os originais deste livro pacientemente, sem se irritar em nenhum momento, e que soube entender os nossos motivos. A ele, o nosso carinho e a nossa admiração. Como é um livro em aberto, em tempos de Internet, os autores esperam o retorno para que as faltas possam ser explicadas e aclaradas. Façam bom uso do livro e tomara que gostem de lê-lo. Niterói, novembro de 2005
Capítulo
1
Introdução
O estudo da formação da Idade Moderna pressupõe, como é natural, alguns esclarecimentos preliminares, introdutórios mesmo, acerca daquelas noções presentes nesse mesmo título, isto é, as de Idade Moderna e de formação. A ideia de Idade Idade Moderna Moderna remete-nos remete-nos a uma antiga antiga conc concepção epção tripa tripartida rtida do tempo tempo histór his tórico ico,, ou sej seja, a, sua div divisã isãoo em ida idades des ou era erass suc sucess essiva ivas, s, cro cronol nologi ogicam cament ente, e, con confor forme me tradição que remonta ao século XVII; temos, então, a existência de três tempos ou idades: Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. Não é de hoje que se debate quer sobre as relações entre Antigos e Modernos, quer entre Tempos Modernos e Época Medieval. Neste último caso, por exemplo, a discussão tradicionalmente recai ora sobre a escolha de acontecimentos considerados marcos decisivos do início dos Tempos Modernos, ora sobre a definição de certas características distin dis tintiv tivas as do med mediev ieval al e do mod modern ernoo tom tomado adoss com comoo rea realid lidade adess his histór tórica icass abs absolu olutam tamenente diversas, quando não antinômicas. No capítulo dos chamados acontecimentos decisivos, cabe um lugar de destaque ao conjunto conju nto das Grandes Grandes Navegaç Navegações ões e Descobrimen Descobrimentos tos reali realizados zados nos séculos séculos XV e XVI, prin pr inci cipa palm lmen ente te pelo peloss po povo voss ib ibér éric icos os.. Mas nã nãoo es está tá as assi sim m tã tãoo di dist stan ante te o te temp mpoo em qu quee se asso as soci ciav avaa o in iníc ício io do doss Te Temp mpos os Mo Mode dern rnos os à in inflfluê uênc ncia ia da dass grandes invenções – a a pó pólv lvor ora, a, o pape pa pel,l, a bú bússo ssola la e a im impr pren ensa sa – ou a de dete term rmin inad ados os ac acon onte teci cime ment ntos os ba bast stan ante te co conh nhec ecid idos os – a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453; a invenção da impressão com tipos móveis por Gutenberg, nos anos de 1440; a descoberta da América pelo genovê no vêss Cr Cris istó tóvã vãoo Co Colo lomb mbo, o, a se servi rviço ço de Ca Cast stel ela, a, em 14 1492 92;; os co come meço çoss da Re Refo form rmaa Pr Prootestante testan te na Alemanh Alemanha, a, em 1517, 1517, com a divulg divulgação ação das das famosas famosas teses cont contra ra as indulgênindulgências, na catedral de Wittenberg.
2
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O F al co n e R od ri gu es
ELSEVIER
Todavia, tanto o recurso ao possível Todavia, possível impacto das das chamadas chamadas grandes invenções como a crença cre nça no po pode derr de deci cisi sivo vo de ce cert rtos os fa fato toss hi hist stór óric icos os ma mais is cé céle lebr bres es te tend nder eram am a ser sub substi stituí tuí-dos pela referência, como elemento explicativo, aos processos e transformações mais abrangentes, quer de natureza estrutural, quer conjuntural. Exemplo desse último tipo foram as transformações ocorridas na conjuntura econômica europeia entre a segunda meta me tade de do sé sécu culo lo XV e o fi fina nall do XV XVI, I, en entr tree as qu quai aiss se co conv nven enci cion onou ouat atri ribu buir ir um lu luga gar r de destaque ao chamado deslocamento do eixo econômico da Europa do Mediterrâneo para o Atlântico, o consequente declínio das principais cidades mercantis e manufatureiras da Itál It ália ia,, e a rá rápi pida da as asce cens nsão ão da dass ec econ onom omia iass ib ibér éric icas as – so sobr bret etud udoo a do co comé mérc rcio io flflam amen engo go –, logo seguida pela dos comércios holandês e inglês. As expl explicaçõ icações es estrut estruturais urais,, basea baseadas das ou não em press pressupost upostos os teóri teóricos cos marx marxistas istas,, identificam essa passagem da Idade Média para a Idade Moderna com o começo de um long lo ngoo pe perí ríod odoo de tr tran ansi siçã çãoo do fe feud udal alis ismo mo pa para ra o ca capi pita talilism smo, o, em fu funç nção ão da de deno nomi mina nada da crise geral do feudalismo; teríamos aí, portanto, a identificação da Idade Moderna com o feudal-capitalista sta, cujas características e cronologia são bastante difeperíodo da transição feudal-capitali renciadas nas diversas formações sociais europeias. Enfim, Enf im, parece parece líc lícito ito ainda ainda hoj hojee sup supor or que ocorre ocorreram ram cer certas tas tra transf nsform ormaçõ ações es bas bastan tante te significativas nas sociedades europeias ao longo dos séculos XV e XVI, embora talvez nãoo ma nã mais is se seja ja po poss ssív ível el in inte terp rpre retá tá-l -las as da daqu quel elaa ma mane neir iraa um ta tant ntoo ot otim imis ista ta e ra radi dica cal,l, co como mo o fezz He fe Henr nrii Ha Haus user er (1 (196 963) 3),, há mu muit itos os an anos os,, qu quan ando do es escr crev eveu eu o lilivr vroo A modernidade do século XVI. Afinal, nem a modernidade propriamente dita, tal como nós hoje a identificamos, mo s, in inst stau auro rouu-se se na naqu quel elaa ép époc oca, a, ne nem m se pr proc oces esso souu um umaa ru rupt ptur uraa co comp mple leta ta e ab abru rupt ptaa en en-tre a cultura medieval e a moderna. Atividades econômicas, estruturas e relações sociais, formas políticas, ideologias, manifestações culturais, tudo afinal se modificou em maior ou menor grau, embora em ritmos e proporções bastante diferenciados entre si. Tal conjunto permite-nos considerar essa época o começo de um período distinto do medieval, quaisquer que tenham sido as permanências e continuidades então verificadas. Explica-se assim o hábito há muito difundido entre os historiadores de procurar sintetizar todas as transformações do período que então se iniciava utilizando a noção de moderno. No entanto, essa noção está muito longe de constituir um conceito unívoco. A ideia de moderno significa apenas, em sua acepção mais ampla, de hoje, do momento atual, sendo plausível supor que para os homens dos séculos XV e XVI a visão de seu próprio tempo como moderno contivesse um certo sent se ntid idoo de di dife fere renç nçaa ab abso solu luta ta em re rela laçã çãoo ao te temp mpoo an ante teri rior or e, ao me mesm smoo te temp mpo, o, de co come me-ço de um tempo totalmente novo. Generalizou-se então, a partir dessas ideias, típicas da autoconsciênciaa renascentista, a alusão ao assim chamado início dos Tempos Modernos, ou autoconsciênci ainda ao começo ou surgimento da modernidade. Quanto a esta última, no entanto, convém vé m qu quee se te tenh nhaa em vi vist staa qu quee a no noss ssaa no noçã çãoo at atua uall a re resp spei eito to da dass su suas as or orig igen enss te tend ndee a si situ tuar ar a época decisiva de seu aparecimento nas últimas décadas do século XVIII, em conexão com o Iluminismo, a Revolução e o advento do capitalismo industrial.
INTRODUÇÃO
A Idade Moderna, tal como aqui a entendemos, constituiu um período decisivo, culminando no advento da modernidade. Tomada em si mesma, porém, essa época pode ser descrita/analisada como tendo sido a de transição do feudalismo para o capitalismo ou, ainda, num sentido mais específico, como a era mercantilista. Ao denominarmos era mercantilista o período cronológico correspondente aos Tempos Modernos ou à Idade Moderna, estamos evidentemente sublinhando os aspectos econômicos dessa época assim como a indissociabilidade entre o econômico e o político, que constitui uma de suas principais características. No entanto, convém se ter presente o fato de que temos aí, na verdade, a fase final do feudalismo e, portanto, a transição do feudalismo para o capitalismo, o que nos situa teoricamente em uma perspectiva marxista. Ao longo da década de 1970, surgiram novas abordagens no panorama historiográfico as quais divergem bastante da linha explicativa por nós adotada, já que trabalham com a hipótese segundo a qual ter-se-ia estruturado, já a partir do século XVI, uma economia mundo europeia (F. Braudel, 1979), ou um sistema mundial moderno (I. Wallerstein, 1974), com características capitalistas. Wallerstein, embora adote uma postura teórica basicamente weberiana, defende que o seu conceito de capitalismo como fenômeno mundial – e sistêmico – tem amparo também em algumas passagens do próprio Karl Marx em O Capital. Trata-se aqui de citações bastante conhecidas de O Capital , e que não devem ser tomadas, no nosso entender, como afirmações capazes de invalidar o conceito de capitalismo enquanto modo de produção. Na visão de Wallerstein, entretanto, o que deve ser posto de lado é o próprio conceito de capitalismo como modo de produção, pois, no seu modo de ver, capitalismo significa produção para lucro em um mercado, ou, se assim preferirmos, a busca e a realização do lucro por meio da comercialização de mercadorias. Logo, de acordo com tal raciocínio, as formas de organização do trabalho e da produção criadas ou postas sob o controle do capitalismo, nas mais diversas regiões e sociedades do globo, ou, em linguagem marxista, os variados modos de produção subordinados ao capitalismo mundial moderno nada mais são do que as maneiras mais lucrativas que o capitalismo trata de organizar, em cada tempo e lugar, para atingir aquilo que constitui o seu único objetivo: o lucro na comercialização de mercadorias produzidas em condições diversas. Ao adotarmos esse tipo de abordagem, teremos de admitir: 1 o)queopapeldosEstados modernos europeus, como formações sociais distintas, na constituição do mercado internacional e em suas disputas, assim como o papel do mercantilismo, típicos de uma época pré-capitalista, tornam-se de certa maneira irrelevantes; 2 o) no âmbito daquele sistema mundial moderno, capitalista e europeu que se teria constituído já nos começos daIdadeModerna,oqueestáemjogoé a articulação, pelo mercado, de diversos modos de produção, ou seja, de formas diferenciadas de recrutar e remunerar mão de obra – tais como o escravismo, a servidão, a encomienda, a parceria, o arrendamento e o assalariamento.
3
4
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O F al co n e R od ri gu es
ELSEVIER
Logo, para concluirmos esta breve digressão, teria ocorrido somente uma transição, aquela que, no século XVI, originou o sistema; assim, a acumulação deve ser encarada como processo único em escala mundial (Gunder Frank, 1977). Bem, nosso intuito foi tão somente alertar o leitor para a possibilidade de outros caminhos interpretativos e expositivos diferentes daqueles que adotamos aqui. Nossas preferências, certamente mais tradicionais, serão apresentadas nos tópicos a seguir, e que têm como território comum a noção de Idade Moderna identificada com a transição do feudalismo para o capitalismo.
Capítulo
2
O Novo Tempo: Circulação Econômica e Conhecimento do Mundo – Transição, Expansão Comercial e Mercantilismo
Os três séculos (XVI-XVIII) correspondentes cronologicamente à Idade Moderna caracterizam-se no plano da história econômica por dois processos distintos, embora estreitamente inter-relacionados: as transformações estruturais que marcam a transição do feudalismo para o capitalismo e a expansão mercantil que constitui a primeira etapa do processo de unificação do mundo – ou de estabelecimento do assim denominado “sistema mundial (capitalista) moderno”. No caso do primeiro desses processos, há pelo menos três aspectos a sublinhar: 1. O conjunto do processo histórico desse período considerado em termos de fase final do feudalismo, ou ainda, se assim se preferir, como a época pré-capitalista por excelência. 2. As atividades de caráter mercantil, inclusive suas conexões e ramificações financeiras e coloniais, que, vistas em conjunto, correspondem ao mercantilismo ouao sistema mercantil . 3. Os processos relacionados com a acumulação “primitiva” do capital, cujas formas variáveis, conforme o setor produtivo considerado, constituem as assim chamadas precondições da Revolução Industrial . Em relação ao segundo desses processos, caracterizado pela construção do mercado mundial, trata-se do desenvolvimento dos mercados europeus e extraeuropeus que de finem a estruturação de diferentes circuitos mercantis mais ou menos articulados à exploração colonial segundo as variadas formas assumidas por esta última.
6
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O F al co n e R od ri gu es
ELSEVIER
A CRISE DO VELHO SISTEMA: A FASE FINAL DO FEUDALISMO
A fim de melhor situarmos esta fase, convém termos em mente a divisão do feudalismo europeu, especialmente nas regiões centro-ocidentais da Europa, em três grandes períodos ou fases: 1a. Desde os séculos IV-V até os séculos X-XI d. C. – uma etapa de formação marcada pelos variados aspectos constitutivos da transição do escravismo antigo para o feudalismo (medieval). 2a. Dos séculos X-XI até o início do século XIV, constituindo a fase de apogeu ou de maior desenvolvimento das estruturas feudais, simultaneamente à expansão das cidades e das atividades típicas da chamada economia urbana. 3a. A partir dos séculos XIV-XV e estendendo-se até o século XVIII ou mesmo o XIX, em algunscasos,sendoestaa fase final do feudalismo propriamente dita, cuja principal característica é a transição do feudalismo para o capitalismo como processo geral.
Trata-se, portanto, no caso da transição feudal-capitalista, de um processo muito longo em termos cronológicos, além de destituído de uma verdadeira uniformidade. Começando com os primeiros sinais da crise do feudalismo, termina, séculos mais tarde, com o advento do capitalismo, o que nos permite detectar nesse processo de transição inúmeros aspectos componentes, alguns dos quais contraditórios, configurando-se aí dois tipos básicos de transformações:
As transformações associadas às formas ou estruturas socioeconômicosde natureza feudal presentes na sociedade do Antigo Regime na época do Estado absolutista, típicas do mundo rural, mas presentes também nas organizações corporativas urbanas. As transformações mais ligadas ao surgimento e à expansão de formas socioeconômicas de natureza pré-capitalista, tanto no campo como nas cidades, em geral mais ligadas à manufatura e às atividades mercantis.
Se quisermos pensar de um ponto de vista histórico mais preciso a ocorrência de tais transformações, considerando-se sobretudo as variações conjunturais da economia, poderemos delimitar, no bojo da fase final do feudalismo, os seguintes períodos: 1o. O período correspondente à chamada crise do final da Idade Média, durante os séculos XIV e XV, que atingiu muitas das antigas formas tradicionais das relações feudais na agricultura e que se fez acompanhar de sensível declínio demográfico e de significativos descensos no âmbito das atividades manufatureiras e mercantis. Daí, certamente, as nu merosas manifestações de tensões e conflitos sociais, assim como as expressões de uma
O NOVO TEMPO: CIRCULAÇÃO ECONÔMICA E CONHECIMENTO DO MUNDO – TRANSIÇÃO, EXPANSÃO COMERCIAL E MERCANTILISMO
verdadeira crise ideológica. Constituindo o conjunto dessa crise ou, segundo outros, sua verdadeira essência, encontraremos ao lado da depressão econômica a presença da trilo gia trágica: a fome, a peste e a guerra. Foi em fins da Idade Média que se inseriu, na liturgia campestre das Rogações, a nova invocação: A Fame, bello et peste, libera nos Domine. Fome, peste e guerra, tais são os perigos que a todo instante ameaçam o homem, tal é a trilogia dos flagelos que se encontram no lamento, convencional ou sincero, pouco importa, do poeta bretão João Meschinot: “O misérable et très dolente vie. La guerre avons, mortalité, famine, Le froid, le chaud, le jour, la nuit nous mine.”1
2o. Dos meados do século XV até o começo do século XVII, um período de expansão econômica corresponde àquilo que alguns historiadores vêm denominando de o longo século XVI . Temos aí uma relativa expansão das atividades industriais, artesanais, é claro, bem como da produção agrícola, em estreita conexão com a retomada do crescimento demográfico e o início da expansão mercantil – marítima e colonial. Importantes mudanças culturais – como aquelas diretamente ligadas ao Humanismo e ao Renascimento – e religiosas – como as Reformas – marcam a ruptura com diversos aspectos do universo medieval abrindo caminho para a revolução científica e para o advento da modernidade.2 O século XVI conheceu três épocas. A primeira, entre 1500 e 1530, é a do triunfo dos portugueses no mercado das especiarias. O Mediterrâneo, esmagado pelos turcos, cede lugar ao Atlântico. É o tempo dos Fugger. A segunda vai de 1530 a 1560. É o tempo da primeira prata da América. Carlos V pratica a sua grande política. Tenta salvar a unidade da cristandade. Vêm enfim as crises, com a abdicação do imperador, a catástrofe financeira de 1559 e a paz de Cateau-Cambrésis, o desmoronar de Lyon, de Toulouse, de Antuérpia, enfim as guerras de religião... Mas é também a época da pré-Revolução Industrial na Inglaterra. É também o período em que o afluxo da prata recomeçou, de Potosí e do México, mantendo a Espanha na liderança do mundo, a Espanha, cujo soberano é rei de Portugal, aonde chega, em péssimas naus, o açúcar do Brasil.3
3o. Do início do século XVII ao final desse mesmo século ou, em alguns casos, às primeiras décadas do XVIII, ocorre, em diversos países europeus, a chamada crise do século XVII, cuja natureza e alcance constituem motivo de intermináveis debates entre os historiadores. Para alguns, trata-se de uma fase de ajustamento, ou mesmo de recuo, do desenvolvimento do capital comercial, ao passo que, segundo outros, foi um dos dois momentos decisivos da história do capitalismo, em termos econômicos, políticos e sociais – a Revolução Inglesa. Do ponto de vista da primeira dessas perspectivas, a crise é um
7
8
A F O R M A Ç Ã O D O M U N D O M O D E R N O F al co n e R od ri gu es
ELSEVIER
processo geral que abrange todos os aspectos da vida das sociedades europeias; já sob a ótica da segunda, a crise teria sido, na verdade, a viragem decisiva que abriu caminho para o triunfo do capitalismo. OséculoXVIIéaépocadeumacrisequeafetaohomemtodo,emtodasassuasatividades, econômica, social, política, religiosa, científica, artística, e em todo o seu ser, no âmago de seu poder vital, da sua sensibilidade e da sua vontade. A crise é permanente... Tendências contraditórias coexistiram longamente, misturadas... Não só coexistem na mesma época na Europa, mas ainda no mesmo Estado, no mesmo grupo social, no mesmo homem, contraditórias e dilaceradas.4 Quando examinamos a história do capitalismo concebida desse modo, torna-se claro que devemos datar sua fase inicialna Inglaterra, não no século XIII..., nem mesmo no século XIV..., mas na segunda metade do século XVI e início do XVII, quando o capital começou a penetrar na produção em escala considerável, seja na forma de uma relação bem amadurecida entre capitalista e assalariados, ou na forma menos desenvolvida da subordinação dos artesãos domésticos que trabalham em seus próprios lares para um capitalista no chamado ‘sistema de trabalhar caseiro...’5
4o. A partir de meados do século XVIII, ou mesmo duas ou três décadas antes de 1750, conforme o autor considerado, o capitalismo tende a se expandir com rapidez na Europa Ocidental. Diversas revoluções econômicas assinalam a expansão europeia, também verificável do ponto de vista do comércio e da exploração coloniais. Sintetizando tais transformações está o conceito de revolução burguesa ou de dupla revolução – as grandes mudanças econômicas e sociais abrangidas pelo conceito de Revolução Industrial e as mudanças políticas, sociais e ideológicas que correspondem ao conceito de Revolução Liberal. Temos aqui, na verdade, a Revolução Industrial Inglesa e as revoluções liberais – ou democrático-burguesas, segundo uma terminologia mais tradicional –, isto é, a Revolução Americana e a Revolução Francesa: A grande revolução de 1789-1848 representou o triunfo não da indústria como tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da sociedade liberal burguesa ou de classe média; não da economia moderna ou do Estado moderno, mas das economias e Estados de uma região geográfica do mundo particular (parte da Europa e algumas áreas da América do Norte), cujo centro eram os Estados vizinhos e rivais – GrãBretanha e França. A transformação de 1789-1848 é essencialmente a convulsão social germinada que teve lugar nesses dois países e propagou-se a partir daí para o mundo inteiro. Mas não é errado encarar essa revolução dualista – a Revolução Francesa, bem mais política, e a Revolução Industrial (britânica) – não tanto como algo que pertence à história dos dois países que foram seus portadores e símbolos, mas como as crateras gêmeas de um vulcão regional bem mais amplo.6