Faculdade de Letras da Universidade do Porto Licenciatura em Arqueologia Arqueologia Moderna e Contemporânea 2010/2011
Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Caso de Gondomar
Por Maria João Ribeiro Marques 12 de Fevereiro de 2011
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Agradecimentos
Ao Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria (CINDOR), em particular ao Professor Serafim Lima e aos seus formandos, pelo acompanhamento, sugestões e disponibilidade demonstrada. Aos ilustres filigraneiros António Martins de Castro e Filhos pelo acolhimento proporcionado, pela atenção, paciência e tempo dispensados em prol deste trabalho. Ao meu pai, pelo incentivo, cooperação e orientação metodológica.
“ As filigranas de Gondomar, mimosa arte ornamental, tem artistas de valor ímpar que executam belas produções regionais (…) que são verdadeiros encantos”.
Laurindo Costa in “A ourivesaria e os nossos artistas”.
2
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Índice Introdução ................................................................................................................................ 6 Origem proto-histórica do ouro no Noroeste Peninsular ........................................................... 8 Contextualização Histórica ...................................................................................................... 11 Metais usuais na Ourivesaria................................................................................................... 15 O Ouro .................................................................................................................................... 17 Oficina do ourives ................................................................................................................... 22 Técnica ................................................................................................................................... 24 Fundir ..................................................................................................................................... 25 Laminar................................................................................................................................... 25 Estampar ................................................................................................................................ 26 Serrar...................................................................................................................................... 27 Soldar ..................................................................................................................................... 27 Esmaltar ................................................................................................................................. 28 Corar e brunir ......................................................................................................................... 29 Filigrana – conceito e sua evolução ......................................................................................... 31 A arte da filigrana em Gondomar ............................................................................................ 35 Filigrana em Gondomar e em Travassos .................................................................................. 39 A técnica da filigrana ............................................................................................................... 40 Adornos – tipologia e simbologia ............................................................................................ 45 Os acessórios: pedras e esmaltes ............................................................................................ 51 Usos e costumes ..................................................................................................................... 53 Do processo artesanal à micro-fusão....................................................................................... 54 Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria............................... 56 Conclusão ............................................................................................................................... 59 Bibliografia ............................................................................................................................. 62 Os instrumentos ..................................................................................................................... 65 Alicates ................................................................................................................................... 66 Apanhadeira ou enleadeira ..................................................................................................... 66 Balança ................................................................................................................................... 67 Balancé ................................................................................................................................... 67 Banca do ourives..................................................................................................................... 68
3
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques Bigorna/Tás ............................................................................................................................ 68 Bitola ...................................................................................................................................... 69 Buchela ou pinça ..................................................................................................................... 69 Buril ........................................................................................................................................ 69 Cadinho .................................................................................................................................. 70 Candeia................................................................................................................................... 70 Carrinho de puxar o fio ........................................................................................................... 70 Cilindro ou laminador ............................................................................................................. 71 Concha de solda ...................................................................................................................... 71 Cunho, “ferros” ou matrizes .................................................................................................... 72 Embutideira ............................................................................................................................ 72 Embutidores ........................................................................................................................... 73 Escovas ................................................................................................................................... 73 Estilheira................................................................................................................................. 74 Ferro de crespos ..................................................................................................................... 74 Fieira ou damasquilho ............................................................................................................. 74 Forno de fundição ................................................................................................................... 75 Laminador .............................................................................................................................. 76 Limas e limatões ..................................................................................................................... 76 Maçarico de sopro .................................................................................................................. 77 Martelo ou maço de madeira .................................................................................................. 78 Micrómetro ............................................................................................................................ 79 Palito ...................................................................................................................................... 79 Pedra de esmeril ..................................................................................................................... 79 Pião ........................................................................................................................................ 80 Piúca ....................................................................................................................................... 80 Pincel de soldadura ................................................................................................................. 81 Punção.................................................................................................................................... 81 Rilheira ................................................................................................................................... 81 Rubi ........................................................................................................................................ 82 Serra de mão .......................................................................................................................... 82 Tenaz ...................................................................................................................................... 82
4
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques Tesoura................................................................................................................................... 83 Entrevista realizada a António Martins de Castro .................................................................... 85
5
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Introdução O presente trabalho foi desenvolvido no âmbito da Unidade Curricular de Arqueologia Moderna e Contemporânea I e consignar-se-á ao estudo da temática da filigrana no Concelho de Gondomar, através da recolha, análise, bem como interpretação dos testemunhos orais e escritos obtidos. Através da análise histórico-cultural da tradição de trabalhar o ouro sobretudo no Noroeste Peninsular, torna-se pertinente fazer uma abordagem à sua vertente simbólica e técnica, quer no que diz respeito ao seu cariz como arte popular representando, por isso, a identidade nacional, quer pela já referida simbologia que comporta, pelo seu uso tradicional bem como pela forma nas quais se desenrola. De facto, as diversas manifestações do ouro, como símbolo de riqueza, arte, proeminência e aspiração feminina têm vindo a inspirar o homem desde épocas longínquas na composição de contos e lendas tradicionais que valorizam incansavelmente a riqueza deste precioso metal. A riqueza do solo desta região contribuiu para o surgimento desta indústria, a qual remonta à Proto-História. Desde então, esta arte tornou-se num meio de valorização e ilustração dos mais diversos objectos artísticos. Existem, como se sabe, diversos locais de produção de filigranas em Portugal, concentrando-se, sobretudo na região de Entre-Douro-e-Minho, sendo que Gondomar se impõe como um dos principais centros de produção de artefactos em filigrana. Esta sempre ocupou um lugar destacado neste Concelho, graças à incansável dedicação dos seus artífices. De facto, os artefactos filigranados são como que um espelho de sentimentos pessoais, comportando consigo toda uma dedicação que, muitas vezes, é transmitida de geração para geração. Procurarei retratar este ofício a partir de todos os documentos recolhidos, bem como dos testemunhos orais de artificies de filigrana que ainda perduram no Concelho de Gondomar. Cada testemunho oral constitui todo um conjunto de informações preciosas que deverão ser inteiramente valorizadas pela sua importância e experiência que comportam. Tenciono contribuir no sentido de espelhar as manifestações artísticas
6
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
manufacturadas por estes artificies, divulgando uma herança cultural, salvaguardando, por outro lado, as raízes e tradições da arte popular.
7
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Origem proto-histórica do ouro no Noroeste Peninsular Este metal pode ser encontrado, em jazidas primárias ou secundárias, ou seja, enquanto as primeiras estão dotadas de mineralização embutida em diversos tipos de rochas, resíduos resultantes da erosão, criando o “ouro refractário”, as segundas provêm de rochas sedimentares consistentes, em depósitos fluviais, gerando o “ouro livre”. Já outrora, “autores clássicos como Posidónio e Estrabão, confirmam que a riqueza de metais
nobres
predominantes
na
Península, resultantes das explorações auríferas, nas minas e nos rios do Norte de Portugal, em particular no Douro, Lima e Minho”1. Estrabão alude para a fertilidade e riqueza das regiões do Noroeste e que esta se deve à existência abundante de metais
nobres,
justificada
Fig. 1 - Escavações no Complexo Mineiro Romano de Jales.
pelos
vestígios resultantes das explorações mineiras do ouro sobejamente encontrados em Vila Pouca de Aguiar (Jales) e na região duriense – Valongo, Paredes, Castelo de Paiva, Gondomar e Penedono – em Trás-os-Montes – Mirandela e Chaves – e no Alto Minho, como a Serra de Arga, entre outras. Efectivamente, a ourivesaria proto-histórica comprova a existência de explorações auríferas anteriores à época romana, sendo que o ouro resultava de jazidas fluviais. Consequentemente, a periférica posição do território nacional no panorama europeu e a vasta frente marítima que o envolve, “proporcionaram influências e redes de interacção riquíssimas que, por via continental, seriam extremamente complexas de encetar”2. Assim, o aparecimento da ourivesaria deve-se a todo um conjunto de factores determinantes, nomeadamente à existência de recursos auríferos, ao seu aproveitamento e
a
um
contexto
socioeconómico
que
1
possibilitou
um
aproveitamento
PEREIRA, Mafalda Pinheiro – Memórias de artesãos filigraneiros de Gondomar. Um património a musealizar? Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Julho de 2008, pág. 16. 2
IDEM, ibidem – pág. 16.
8
e
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
desenvolvimento metalúrgico. Algumas escavações arqueológicas, em povoados do Norte de Portugal, evidenciam vestígios de metais nobres e utensílios empregues pelos artífices ancestrais para o fabrico e decoração de artefactos. A entrada da metalurgia no espaço Ibérico remonta ao III milénio a. C., resultado das influências dos mercadores do Mediterrâneo Oriental. Com efeito, a introdução de novas técnicas promoveu o aumento da produção de artefactos em ouro, traduzindo-se, por isso, numa hierarquização social, bem como no fomento de trocas comerciais. Sendo que, segundo Armando Coelho, a introdução da metalurgia do ouro no Noroeste Peninsular teve lugar no início do II milénio a. C. No entanto, investigações mais recentes apontam que, na referida região, o início da metalurgia do ouro se processou na primeira metade do III milénio a. C., sendo que neste período a ourivesaria era caracterizada por um processo simples. A intensificação de intercâmbios com o Atlântico e o Mediterrâneo deu-se na segunda metade do II milénio a. C., através de trocas económicas relacionada com a metalurgia, tendo esta, sofrido uma evolução. A época do Bronze Final destaca-se pelo artesanato, pelo intercâmbio de metais desenvolvidos por povoados que se dedicavam à exploração agrícola e às actividades metalúrgicas e, posteriormente, é caracterizada por uma produção mais intensa, sendo que, neste período, a joalharia foi alvo de um aperfeiçoamento tecnológico, possibilitando um domínio no conhecimento das ligas metálicas e, consequentemente, a exploração do ouro. Já posteriormente, no Ocidente Peninsular, a partir de cerca do século VIII a. C., deu-se a introdução de novas técnicas e formas decorativas, provenientes de diversas influências culturais. De facto, proveio, da Europa Central, o chamado estampilhado e o repuxado e, do Mediterrâneo, a filigrana. Com a introdução destas técnicas
Fig. 2 - Adornos de ouro de origem fenícia.
surgiram objectos com um cunho fabril original. “A influência da Europa Central reforçou a tradição indígena de jóias maciças
9
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
ornamentadas com figuras geométricas e formas simples” 3. Já a influência oriental fenícia, que não deverá ser esquecida, introduziu também algumas inovações no domínio da ourivesaria caracterizada pela leveza das peças, bem como novos apontamentos técnicos e uma nova tipologia de jóias com elementos articulados. A ourivesaria atingiu, como seria de esperar, um nível de perfeição impar nas técnicas de trabalhar o ouro, bem como nos motivos decorativos cujo destaque é atribuído, obviamente, à filigrana.
3
IDEM, ibidem - pág. 17.
10
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Contextualização Histórica A ourivesaria revela-se uma das artes mais distintas e aquela em que os nossos artistas tiveram mais privilégios da realeza, sendo uma das mais cultivadas entre nós. Tem tido, ao longo de centenas de anos, um brilhante desenvolvimento, quer sob o ponto de vista dos objectos, quer mesmo como o mais rico e luxuoso adorno de arte. Tendo conquistado, por isso, em inúmeras civilizações, um dos primeiros lugares entre os mais importantes. Na intenção de avultar o seu prestígio pela riqueza ou pelo brilho, o homem encontrou no ouro, desde tempos remotos, o mais invejável agente de sedução e domínio. Mas este metal, submetendo-se aos estilos ou amoldando-se simplesmente ao desvario e tirania das vaidades, maleável e dúctil, inalterável e plástico, reúne todos os atractivos como todas as facilidades para ser o eleito dos adornos. De quando datará a primeira fundição? Como muitas origens, também a da metalurgia do ouro ficará envolta num mistério. Na península, as espécies nobres muito cedo estimularam a sua procura e cobiça. Zona invejada de exploração frequentemente investigada e percorrida, os seus mais antigos produtos, entretanto, não correspondem, aos que iriam ser concebidos e realizados por civilizações que na península só buscavam a matéria excelsa. A nossa ourivesaria inicial foi originariamente maciça, seduzindo mais pela cor e brilho refulgentes do que pela associação dos seus elementos construtivos, pela graça e leveza dos acessórios e pela arte da combinação dos ornamentos. No solo português as jóias antigas mais frequentes são os braceletes e os torques, estes geralmente
sob
o
esquema
monótono
da
sanguessuga lisa ou estriada e aqueles reduzidos a fitas ou vergalhões nus ou ornamentados. Com linhas, pontos e triângulos se acomoda geralmente o artífice proto-histórico indígena, mesmo nas grandes peças de ostentação, com esse diadema da
11
Fig. 3 - Torques em ouro.
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
idade do cobre, onde a imaginação decorativa só soube criar, entremeados, pontos e dentes de serra. E, quando os processos técnicos se desenvolvem e avançam, adelgaçando o ouro à fieira, ainda o artefacto não é um produto de arte mas apenas pretexto de ostentação e vaidade. O uso de objectos em ouro e prata foi, no culto religioso, nos palácios reais e dos nobres que a arte da ourivesaria, durante séculos, iluminou com o seu inconfundível brilho as cerimónias da liturgia e os salões dos grandes festins reais. Já no tempo de D. Afonso Henriques as jóias de metais preciosos e pedrarias tinham um certo esplendor. No reinado de D. Sancho I as produções de ourivesaria evidenciaram-se como elevada manifestação artística e, mais tarde, e riqueza das mesmas foi verdadeiramente opulenta e deslumbrante. Estes dados revelam que, já desde os primórdios da monarquia portuguesa que esta arte nunca caiu no esquecimento. Por outro lado, a ornamentação de objectos em ouro e prata causou sempre assombro e, segundo as informações fornecidas por Laurindo Costa, além de enfeitarem os xaireis dos cavalos dos nossos chefes guerreiros eram-no, do mesmo modo, as fardas. Também os brasões da nobreza eram realçados por emblemas de ouro, prata e pedrarias. Até no mundo feminino a ourivesaria marcou presença, para dar com enfeites mais sedução e encanto à sua beleza tanto que, durante o Império Romano, o luxo do uso do ouro chegou ao auge do esplendor, a ponto de as mulheres romanas escolherem loucamente para seus adornos jóias de ouro, preferindo as moedas desse metal, levando os imperadores a decretar leis que as proibia de usar para seus adornos tais peças de ouro, obstando deste modo para que não faltasse a moeda para as operações comerciais necessárias. Assim, a Lei Opia determinara que a mulher romana não podia possuir mais do que meia onça de ouro. O mesmo autor recorda que “A Ourivesaria em Portugal tem atingido um elevado grau de perfeição e gosto artístico, mas deve isso à própria iniciativa particular, porque o Estado nada tem dispendido, com ela, antes recolhe da ourivesaria somas avultadas”4.
4
COSTA, Laurindo – A Organização do Ensino Industrial e Comercial. Tip. Artes e Letras. Porto, 1914.
12
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
“A actividade artistica do seculo XVI foi o normal e poderoso estimulo da actividade primeiramente philosophica e depois scientifica do seculo XVII. Comte reconheceu que nada há mais efficaz para suggerir o trabalho da intelligencia do que a contemplação artistica; e Hume, um dos seus precursores considera a cultura artistica como um impulso do desinteresse altruista e do encanto da meditação”5.
A obra do ourives Gil Vicente, que será a base de uma Escola de Arte Portuguesa, sofreu igual combate pelo gosto da Renascença italiana. Contudo, até ao final do século XVII foi exuberante a produção da ourivesaria, tendo começado, por essa época, a sentir-se os efeitos de leis anteriormente decretadas, seguindo-se depois a invasão francesa e perturbações políticas no país, nas primeiras décadas do século XVIII, contribuindo um pouco para o esfriamento de todas as artes em Portugal, reflectindo-se especialmente na da ourivesaria. Todavia, a ourivesaria nacional voltou mais tarde a afirmar nova era de brilho, produzindo obras de valor artístico superior, predominando a estética, a elegância e a delicadeza. A ourivesaria religiosa sempre revelou e exprimiu um esforço exuberantemente artístico. Já na ourivesaria profana tem havido prodígio de verdadeiras obras-primas que se colocam em paralelo com outras estrangeiras, pela sua beleza de delineação e originalidade de pensamento. Por outro lado e mais recentemente, a Associação de Classe dos Ourives de Gondomar muito contribuiu para a criação de uma Escola de desenho nessa localidade. Associação de Classe dos Ourives do Porto tem zelado pelos interesses dos ourives portugueses, acompanhando todas as manifestações, que possam concorrer para o desenvolvimento do comércio e do fabrico da ourivesaria, contribuindo para a verdadeira utilidade à classe. Em Gondomar, Valbom e Rio Tinto o fabrico destinado à classe média e do campo é importante, salientando-se belas e preciosas produções de filigrana em prata e outro com esmaltes. Felizmente, a ourivesaria nacional tem-se notabilizado de uma forma tal que não precisamos de apresentar os nossos trabalhos com rótulo estrangeiro, para que o público culto preste a merecida homenagem aos artistas portugueses. 5
Obras philisophicas, t. II, p. 5 Ed. 1764.
13
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
A superioridade dos nossos artistas está claramente manifestada nas preciosas produções de ourivesaria, que nos legaram os antepassados, durante séculos, e naquelas que a história continua a arquivar. Apesar da falta de apoio do Estado e das inferiores condições de educação artística, os nossos ourives possuem mérito e qualidade superiores de imaginação e de estudo, e para isso bastará lembrar que os perfeitos e delicados trabalhos em joalharia em ouro e platina, a cinzelagem em prata e ouro com os mais elegantes e artísticos desenhos têm-se desenvolvido e evidenciado com admiração extraordinária, graças à proficiência e talento dos nossos artistas.
14
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Metais usuais na Ourivesaria Os metais mais utilizados são o ouro, a prata, o cobre e o cádmio, recaindo maior atenção ao primeiro. Também o esmalte não pode deixar de ser referido, já que constitui um elemento, tantas vezes imprescindível para o aspecto final da obra. É fundamental ter uma breve noção das propriedades físicas de cada um dos metais empregues. Ajuda-nos a compreender algumas das razões que envolvem os processos técnicos utilizados e, de uma forma genérica, a perceber as causas que estão por trás da estima e do apreço que sempre atraiu o Homem. A raridade ou dificuldade na obtenção de um metal, aliadas às suas qualidades intrínsecas, explicam a sua procura e desejo de o possuir e ostentar, tornando-o alvo de admiração, de cobiça, transformando-o, consequentemente, em símbolo de poder em quase todo o Mundo. Raros são os metais que existem em estado nativo, isolados ou puros. Na Natureza, eles encontram-se normalmente combinados com outras substâncias, como o oxigénio. Contrariamente, o ouro e a prata são os únicos metais que podem ser encontrados enquanto tal em estado nativo, já que “ambos são elementos de muito fraca afinidade para o oxigénio”6. As propriedades físicas dos metais variam em função de múltiplos factores: cor, brilho, opacidade, densidade, maleabilidade, ductilidade, tenacidade, etc. Na generalidade, a cor predominante entre os mais variados metais é o branco que sofre alterações no seu aspecto superficial, tornando-se baços. Neste sentido, o ouro constitui uma excepção pois o seu amarelo puro fizeram dele um metal particularmente apreciado. O ouro é um metal extremamente denso com 19,57. A prata, o cobre e o cádmio apresentam, respectivamente, as seguintes densidades: 10,5, 8,92 e 8,64. A maleabilidade de um metal consiste na sua capacidade de, ao ser sujeito a certas temperaturas e à acção de certas operações mecânicas, sofrer deformações permanentes. O grau dessa propriedade avalia-se pelo esforço necessário para a obtenção dessa deformação e pela resistência que o metal oferece a essa acção.
6
CARDOSO, Armando - Manual do fundidor, 2ª ed., Amadora, Bertrand, 1976, p. 13. A densidade de uma substância é a relação entre o peso da unidade de volume dessa substância e o peso de igual volume de água, tomado por termo de comparação. 7
15
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Outra característica dos metais é a ductilidade. Trata-se da propriedade de transformar alguns metais em fios muito finos, por meio de cilindros, fieiras e damasquilhos, em conformidade com a espessura que se deseje obter. O ouro é o metal mais maleável e mais dúctil. Ligada à ductilidade, a tenacidade respeita à capacidade de resistência dos metais, depois de reduzidos a fios. “Os valores estéticos, a raridade e a durabilidade, estão na origem da valorização destes metais, factores responsáveis pela sua conversão em substâncias preciosas e em símbolos de excelência”8. Por estas razões, passaram a assumir um papel social importante. Nas relações interpessoais, constituem as ofertas mais frequentes e marcam os principais acontecimentos familiares - nascimentos, aniversários, casamentos e festas religiosas como o Natal, expressões de amor por excelência e marcos materiais da memória de uma família. Pela sua valorização, rapidamente os metais preciosos foram associados a propriedades mágicas e a potencialidades médicas, proporcionando toda uma série de crenças e práticas rituais que chegam até à actualidade e continuam vivas nas superstições populares. A simbologia dos metais, o tempo e a História acrescentaram formas particulares aos objectos com eles fabricados.
8
CLARK, Grahame - Symbols of Excellence, London, Cambridge University Press, 1986, p. 82.
16
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
O Ouro De entre todos os metais trabalhados em Ourivesaria, o ouro, considerado pela tradição como o mais precioso e perfeito, ocupa o topo hierárquico das preferências. A descrição das suas características específicas constitui um dado essencial deste estudo, pois ajuda a compreender a devoção a ele votada ao longo da História, justificando, do mesmo modo, o lugar por ele ocupado no imaginário popular como o rei dos metais9. A sua cor amarela associada ao brilho metálico que dele irradia, são factores que prendem o olhar. Não se transforma com o calor, nem com a humidade, nem com a maior parte dos
Fig. 4 - Ouro em pedra.
agentes corrosivos do ar. Tem o brilho da luz10, características que transfere para as obras com ele fabricadas. As facilidades que ele oferece em termos de trabalho decidiram o seu sucesso. Elemento metálico muito pesado, o ouro é o mais maleável e o mais dúctil, oferece uma grande resistência adaptando-se a variadíssimos trabalhos de ourivesaria. A sua suavidade e maleabilidade permitem a obtenção de folhas de ouro muito finas. A ductilidade proporciona a extensão do metal em fios muito finos, com espessuras que podem ser idênticas à de um cabelo, tornando-o susceptível de ser empregue em trabalhos de grande delicadeza, tais como filigranas ou tecidos com ele bordados. A maleabilidade e ductilidade do ouro são tanto maiores quanto maior for o seu grau de pureza, a qual se avalia em milésimas e/ou quilates - 24 quilates correspondem a 1000 milésimas de pureza ou finura. O ouro, cujo símbolo químico é Au11, funde a 1064°C, volatiliza-se a 2500°C, o seu número atómico é 79 e a massa atómica é 197,2.
9
O alecrim é rei das ervas/ O ouro rei dos metais/ O meu coração rei das penas / Vós menina m'as causais (quadra popular da região de Vila Real). 10 CHEVALIER, Jean; GHEEBRANT, Alain - Dicionário dos símbolos, Lisboa, Teorema, s/d, p. 495. 11 Do Latim Aurum.
17
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
A relativa facilidade de combinação com outros metais terá sido outra das razões que o fizeram ser trabalhado por quase todas as civilizações. O ouro forma liga com a prata e o cobre mas, também, com o paládio, o níquel, o ferro e o cádmio. As ligas reduzem a maleabilidade do ouro mas aumentam-lhe a resistência, permitindo ao mesmo tempo baixar o preço da obra e alterar as cores, em função dos metais e das quantidades seleccionadas. Em Portugal, o ouro de Lei é obrigatoriamente de 18 kilates, o que leva todas as peças a serem compostas por 750 milésimas de ouro e 250 dos restantes metais. Já que o teor relativo destes últimos é variável, é possível jogar com a cor da liga: o ouro vermelho ligado apenas ao cobre, o amarelo integrado por metade de cobre e metade de prata e o verde unido exclusivamente à prata, para referir as três variedades mais comuns. A sua beleza e propriedades físicas, juntamente com a sua durabilidade, fizeram do ouro um símbolo histórico e mundial de excelência, qualidades acrescidas por um outro factor fundamental, a sua raridade. Apesar de profusamente distribuído e explorado em todos os continentes, as quantidades recolhidas ao longo dos
tempos
afiguram-se
relativamente baixas se comparadas com outros metais. As suas qualidades físicas e a consequente valorização deste metal estão bem patentes no Cancioneiro Popular: O oiro é o que mais brilha Tu sem ser's oiro brilhais, O oiro perde a
Fig. 5 - Fio de ouro.
valia, Tu cada vez vales mais12.
12
LIMA, Fernando de Castro Pires de – O oiro na quadra popular. Ourivesaria Portuguesa, nº 5, Porto, 1948. Pág. 144.
18
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
E na literatura, entre romances, contos, lendas e poesia, juntamente com adágios e superstições, que encontrámos uma fonte de estudo fundamental da “psicologia popular”, segundo Luís Chaves, enquanto espelho de gostos e valores que ajudam a compreender sociedades e épocas, para as quais os metais não passaram despercebidos. Estabeleceu-se, desta forma, uma hierarquização entre eles com vantagem para o ouro, “símbolo de riqueza e de formosura material” 13. Nas relações amorosas e no contexto material, as prendas em ouro estão entre as ofertas mais apreciadas. Diversas quadras do Cancioneiro Popular Português descrevem estas passagens, em tom alegre e até eufórico, pleno de vida nas alturas de maior felicidade, ou em relatos amargos e tristes, que comentam o desengano e a traição, a desilusão, as promessas de amores não correspondidos ou que cedo caíram em rotina: Tenho
um
canivete
doiro; Ao canto do meu baú, Para dar ao meu amor, Queira Deus que sejas tu. Tenho dentro do meu peito
Um
doirado,
canivete
Parapartirpão
de ló No dia do teu noivado14. Trocaste-me a mim por outra, Não sabes quanto eu gostei. Teu amor era-me falso, E o meu, oiro de lei15.
As jóias de ouro são mais valorizadas se o namorado for ourives, obreiro directo da peça escolhida, reunindo em si as qualidades materiais e emotivas do objecto; uma 13
CHAVES, Luís – As filigranas. Lisboa, SPN, s/d,pág. 5. LIMA, Fernando de Castro Pires de – O oiro na quadra popular. Ourivesaria Portuguesa, nº 5, Porto, 1948. Pág. 43. 15 IDEM, ibidem - pág. 23. 14
19
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
peça pensada para alguém e executada por quem a oferece, acarreta consigo um valor incomparável ao da peça comprada. A profissão de ourives assume um papel especial, enquanto fabricante do bem precioso que povoa os sonhos da mulher portuguesa: O meu amor é ourives, Eoteué mercador; O meu dá-me prendas de ouro, E o teu não tem valor16. [ou a variante] O teu roupinhas de cor17.
Como símbolo de riqueza e ostentação, o ouro servia publicamente para avaliar a fortuna de uma família ou mesmo de uma comunidade. Para além disso, as superstições ajudam igualmente a compreender a importância que o ouro assume no imaginário popular, enquanto resposta a uma série de males que afligem os homens. Exemplificam-no, as moedas de ouro lançadas na água do primeiro banho de um recém-nascido, para lhes dar felicidade. Relatos do século XVIII e XIX confirmam a predilecção na exibição de adornos de ouro, no Norte do país. Apesar de tantas vezes citada e repetida, a descrição da cidade do Porto e arredores, feita a este respeito, pelo Padre Rebelo da Costa em 1788, continua a ser, apesar talvez de alguns excessos, um bom definidor desta análise: “Não temo dizer que o oiro que serve de ornato ás mulheres do campo, excede o valor de trinta milhões de cruzados! Ha muitas freguezias, que em cordões, cadeados, contas, laços, brincos e outras peças, todas de oiro massiço, tem cada uma duas, ou ainda três arrobas d'esté metal. Não folio em algumas da cidade do Porto, onde somente as da Sé, S. Nicolau e Santo Ildefonso passam de trinta arrobas. Na comarca da Maia e Penafiel ha mais de cincoenta pessoas notáveis n'esta riqueza: eu mesmo vi nas freguezias de Aguas Santas e S. Cosme, suburbanas 16
CHAVES, Luís – As filigranas. Lisboa, SPN, s/d,pág. 12. LIMA, Fernando de Castro Pires de – O oiro na quadra popular. Ourivesaria Portuguesa, nº 5, Porto, 1948. Pág. 116. 17
20
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
d'esta cidade, dois andores, em différentes dias festivos, ornados (segundo o gosto da aldeia), com tantas peças de oiro que pesaram as de cada um duas arrobas e oito arroteis. Asseguraram-me pessoas dignas de credito, que ainda alli não estava todo o oiro d'aquellafreguezia, e que em muitas das circunvisinhas havia a mesma riqueza. È certo que até as proprias meninas que apascentam os gados pelos montes, trazem diariamente ao pescoço cordões ou contas de oiro; e assim também rarissima será a lavradeira que não possua uma ou mais peças similhantes”18.
Pelo menos desde o século XVI, são conhecidos relatos preciosos que provam tratar-se de uma tendência cultural com vários séculos em Portugal. O ouro é igualmente olhado na literatura popular com algum desdém, enquanto causador de invejas, intrigas e calúnias, situações sempre presentes no cancioneiro e que nos transmitem um outro lado desta cultura, tão meiga e solidária, como cruel e mordaz: Muito lindo é o ouro, Ao pescoço da donzela, Mas mais linda é a honra; Cachopas, fazei por ela19. Vinde, povo ddrraial, Ouvir a cantadeirinha, Que traz cordões emprestados Da grossura d'uma linha20.
18
Extracto da obra Descripção da cidade do Porto, de 1788, da autoria do Padre Agostinho Rebelo da Costa, incluído num artigo intitulado: Mulheres do Minho, da Revista “Archivo Pittoresco”, Ano 4, IV, Lisboa, Typographia Castro & Irmão, 1861, pág. 265-266. 19 LIMA, Augusto César Pires de – O ouro nas tradições populares. In “Ourivesaria”, 10, 1950, pág. 102. 20 LIMA, Fernando de Castro Pires de – O oiro na quadra popular. Ourivesaria Portuguesa, nº 5, Porto, 1948. Pág. 129.
21
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Oficina do ourives Está instalada num edifício construído para o efeito e onde apenas se desenvolvem as actividades relacionadas com a produção. Por outro lado, a oficina e a residência já não se confundem sendo que, no seu interior, as mudanças, tanto na organização como na disposição dos utensílios, são menos visíveis. A sala principal, onde trabalham a maior parte dos funcionários, é de planta rectangular e em duas das suas paredes rasgam-se grandes janelas envidraçadas, por onde entra a luz. Não se trata, no entanto,
das
típicas
quadrangulares
janelas ainda
subsistentes em algumas oficinas de Gondomar ou Travassos, as quais “antes da electricidade, deixavam a luz do sol iluminálas. Estas janelas possuem um sistema rudimentar mas eficaz que
consiste
numa
portada
Fig. 6- Oficina de ourives. Gravura de Etienne Delaune, 1576.
maciça - o "tabuleiro " - que tapa toda a janela e é levantada quando o trabalho na oficina começa..21 As mesas, mobiliário de tipo individual, estão dispostas perpendicularmente à janela. Porém, a sensação de se estar diante de um espaço de trabalho que pouco terá mudado, desde a época em que o artista tardo-medieval ou moderno o fixou para a posteridade, não se limita a estes pormenores. As paredes aparecem-nos recobertas pelos mais diversos utensílios suspensos por suportes delicados. A análise deste espaço passa também pela referência aos estrados de madeira que cobrem o chão de toda a oficina. Através das suas ranhuras passa o "lixo" que aí se vai acumulando e, periodicamente, os estrados são removidos, o chão varrido e o lixo aí acumulado vai sendo guardado em grandes recipientes, à espera do devido tratamento dado que, desta "terra", os artistas recuperam a quase totalidade das minúsculas 21
SOUSA, Maria José Carvalho e - A arte do ouro, Barcelos, Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso 1995, p. 15.
22
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
partículas de ouro, que ao longo do tempo se vão perdendo. A existência destes estrados evita que o pó dourado se fixe aos sapatos, perdendo-se, desta forma, no exterior. Contíguo a esta sala
maior,
um
outro
compartimento
de
menores
dá
dimensões
lugar às tarefas mais rudes como
as
laminar
de
fundir,
e estampar
o
metal. Ao lado desta, surgem
duas
outras
divisões com diferentes funções: uma destinada a escritório
e outra aos problemas
administrativos. Fig. 7 - Aspecto de uma oficina actual.
23
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Técnica Neste ponto do trabalho o objectivo apoiar-se-á no estudo das regras observadas no exercício da profissão de ourives. Proceder-se-á à divisão das principais etapas do processo, que começa com a fusão do metal e acaba nas fases de corar e brunir. Genericamente, estampar consiste na acção de fazer um relevo a partir de um molde, numa chapa de metal, pressionando, com batimentos de martelo, uma matriz com o molde desejado em relevo. Este processo é muitas vezes confundido com a técnica do repuxado, embora correspondam a práticas e concretizações distintas. O metal é trabalhado sobre uma base de madeira, chumbo, couro, pele e, mais recentemente, resina ou piche. A vantagem do estampado é que permite a obtenção de objectos idênticos e com grande rapidez, tratando-se de um dos métodos primordiais da produção em massa, o que não obsta, porém, que as duas técnicas não existam universalmente desde longa data. De provável origem mediterrânica, mais concretamente fenícia, esta técnica detecta-se aí já no decurso do II milénio a. C., tendo-se difundido bastante durante a época orientalizante em Rodes e Chipre e na Península Itálica, na Etrúria. O processo aparece já amplamente difundido na Grécia Antiga conhece, durante a Renascença, um grande incremento, particularmente no século XVI e o século XIX reconverteu-o para o trabalho em série. Este, reduzido a um trabalho mecânico, passou a ser realizado com o concurso de uma máquina de estampar, o balancé. A industrialização do processo permite obter uma grande quantidade de peças iguais num espaço de tempo incomparavelmente inferior ao manual e poderá estar na origem do descrédito a que foram votados os objectos obtidos segundo esta técnica. Tal facto justifica igualmente a pouca atenção concedida pelos estudiosos portugueses às jóias estampadas, desacreditadas pela convicção que as ligava a um método meramente mecanizado, onde pouco contariam os méritos do ourives.
24
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Fundir O trabalho começa com a definição da liga de ouro. A extrema maleabilidade e ductilidade do metal, tanto maiores quanto maior for a sua pureza, dificultam o seu emprego isoladamente. A relativa facilidade com que se liga a outros metais permite compensar este problema. As ligas reduzem a maleabilidade do ouro mas aumentam a sua resistência e tenacidade permitindo, ao mesmo tempo, baixar o preço das obras e jogar com a cor final do metal. Definida a liga, os metais são devidamente pesados, de acordo com o estipulado por Lei: a quantidade de ouro na liga deve obedecer a 18 quilates22, ou seja, 18 partes de ouro e as seis restantes variavelmente distribuídas pela prata e pelo cobre. O ouro é cortado em pequenos pedaços e, misturado com a prata e o cobre no cadinho, segue para o forno de fundição. Fundida a liga, o cadinho é retirado do fogo com uma tenaz e o conteúdo vertido sobre uma rilheira, da qual sai em forma de barra. Esta é de novo fundida; as ligas obtidas em primeira fusão raramente são homogéneas; são geralmente fundidas em lingotes para serem de novo refundidas23. A barra obtida é arrefecida em água fria, estando pronta para ser laminada.
Laminar Operação pela qual são obtidas as chapas finas, destinadas à estampagem. A barra de ouro é batida com um martelo numa bigorna, em todos os sentidos, de modo a não quebrar quando trabalhada no laminador. Num cilindro de chapa, a mesma barra é passada várias vezes pelos cilindros, accionados electricamente “e que girando em sentido contrário um do outro arrastam o material, esmagando-o e diminuindo a sua espessura para uma medida aproximada à distância entre os rolos” 24. A distância entre os rolos vai sendo diminuindo após cada passagem da barra e a sua espessura constantemente controlada com um micrómetro, até atingir cerca de 1,5/1,25mm, a indicada para o caso concreto das peças estampadas. 22
750 milésimas contra 250. CARDOSO, Armando - Ob. cil., p. 97. 24 ALMEIDA, Manuel Marques de - Ob. cit., p. 172. 23
25
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Este processo é regularmente interrompido; as passagens da barra pelo laminador provocam o seu endurecimento, o qual é eliminado através do recozimento 25. A liga torna-se quebradiça pela acção da laminagem. Essa deficiência corrige-se pelo aquecimento do metal ao rubro, deixando-o de seguida, resfriar lentamente26. Este trabalho é designado na oficina por revenir e consiste em aquecer a barra quase até ao ponto de fusão por meio da acção de um maçarico de gás. A micro fusão do metal que então tem lugar permite ainda corrigir algumas irregularidades que possam existir na peça, alisando-a e retirando-lhe algumas impurezas da superfície. Obtida a espessura desejada, a chapa é cortada em pequenos pedaços com uma tesoura, de acordo com o tamanho que melhor se adapte ao objecto a executar.
Estampar Actualmente, são mais frequentes as estampagens mecânicas, realizadas num balancé com "ferros" devidamente concebidos para o efeito. A antiguidade dos cunhos de bronze não permite a sua adaptação ao balancé e obrigou à conservação do processo tradicional. A estampagem é feita sobre uma tás, mediante a acção de um martelo. A chapa de ouro é colocada entre uma placa de chumbo e o cunho macho invertido, ou seja, com o molde em relevo voltado para baixo. Para evitar que a chapa parta quando sujeita à pressão do martelo, começa-se por trabalhar duas ao mesmo tempo, sobrepostas, aumentando o grau de resistência. O cunho é batido vezes sem conta com o martelo, em pancadas secas e sucessivas, até que fique gravado no reverso da chapa a forma do motivo inscrito na matriz. Na placa de chumbo fica a marca em negativo. A chapa é levada, de seguida, a um banho de água forte27, durante cerca de dez/quinze minutos, para retirar o chumbo acumulado no metal, durante a operação. O ácido nítrico, "ataca" a maioria dos metais como o ferro, o zinco, o cobre, a prata, o chumbo e o mercúrio 28, mas deixa incólume o ouro. Uma a uma, as chapas são batidas novamente segundo o mesmo processo, tarefa que permite avivar pormenores do 25
IDEM, ibidem. Pág. 173. CARDOSO, Armando - Ob. cit., p. 17. 27 Ácido nítrico. 28 CARDOSO, Armando - Ob. cit., p. 26. 26
26
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
relevo. Obtém-se, desta forma, uma das metades da jóia final, no caso particular das jóias ocas. A chapa, escurecida pelo recozimento, é mergulhada num outro banho, um composto de água e ácido sulfúrico que retira os óxidos acumulados e devolve à peça a cor do ouro. Este banho, vulgarmente designado de branqueamento, era conhecido com este nome já no século XVIII. O branquear dos metais é igualmente importante para se trabalhar com eles limpos.
Serrar Esta operação é feita com uma serra manual, devendo a folha de serra ser escolhida em função da dureza e fragilidade da liga de ouro. Devido à pressão que a serra exerce sobre a placa de metal, durante a operação, reforçam-se as paredes da chapa com solda, por intermédio de um "palito". A peça é depois colocada sobre uma piúca, onde a solda é fundida com uni maçarico bocal. Este procedimento pretende aumentar a resistência das paredes da placa e evitar que estas partam durante a serração.
Soldar A união das duas metades que irão formar a peça final reporta-se a uma das operações mais importantes e delicadas de todo o processo. Assume, no fabrico das peças ocas, uma papel fundamental, por fazer unir as duas partes que compõem a peça. Na oficina emprega-se a chamada soldadura não autogénea, pois as placas metálicas são unidas por meio de uma liga ou solda29. A ligação é facilitada com a aplicação de fundentes, também conhecido pelos artífices de ourivesaria como "tincal". A liga de solda é composta igualmente por ouro, prata e cobre, aos quais se acrescenta o cádmio, permitindo baixar a sua temperatura de fusão. “As soldas devem ter um ponto de fusão inferior ao do metal a unir embora deva ser o mais próximo
29
ALMEIDA, Manuel Marques de - Ob. cit., p. 183.
27
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
possível para que se obtenha uma boa resistência”30. Assim, a solda funde mais rapidamente que a liga do resto da peça. Para a obtenção da solda, os metais são pesados e fundidos várias vezes, até se obter uma liga completamente homogénea. Esta é depois vertida na rilheira, laminada e limada com uma lima de solda até ficar reduzida a pequenas partículas de metal que, misturadas com água e tincal compõem os elementos habituais da solda. A união da peça começa com a preparação das duas faces para a respectiva junção. Cada uma das metades é raspada sobre uma pedra de polir, limada e raspada novamente, de forma a ficar com os bordos totalmente lisos. Coloca-se de novo solda sobre as paredes interiores de cada uma das chapas, as quais são unidas e envolvidas num fio de ferro, em todo o corpo e em vários sentidos ficando presas uma à outra. A peça é colocada sobre uma piúca e a solda fundida pela acção de um maçarico de solda. Obtém-se, assim, um objecto uno e oco. A linha de junção da peça é, então, cuidadosamente limada sobre a estilheira.
Esmaltar Antes da aplicação do esmalte, as peças são novamente recozidas e levadas a branquear. Antes da sua aplicação, a superfície do metal deve ter sido muito bem limpa da camada de óxido e das eventuais gorduras acumuladas. O esmalte é colocado na peça através de um estilete de aço ou "palito". Os esmaltes aderem fortemente às superfícies metálicas em que se. Na obra de chapa, broches e brincos, as folhas, os amores perfeitos e outra decoração que as rosáceas explicam constituem os themas preferentes 31. Após a aplicação do esmalte, a peça é colocada numa piúca onde, sob a acção do fogo da candeia conduzido pelo maçarico de sopro, o esmalte é vitrificado.
30 31
IDEM, ibidem, p. 183. ROCHA PEIXOTO, A. - Ob. cit., p. 565.
28
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Corar e brunir Para corar prepara-se num recipiente, uma mistura de água, salitre, sal marinho e amoníaco. Esta composição é colocada no lume até ferver, altura em que se colocam as peças e se acrescenta ácido clorídrico. Deixa-se ferver o tempo necessário e retiram-se as peças quando estas se encontrarem clareadas, com um amarelo envelhecido. Os objectos são depois lavados em água e deixados a secar. Rocha Peixoto deixou-nos a receita do banho de corar, usado no início do século em Travassos e Gondomar: “2 partes de salitre, 1 de sal e outra de pedra hume. Tudo misturado e addicionado ddlguma agoa voe a ferver, depois que esfria e secca. E então que, de novo vertendo mais agoa e introdusindo as peças, se conduz outra vez o recipiente ao fogo, deixando que a pasta entre em ebullição. A cor fica mais ou menos carregada, conforme o tempo que as peças se demorem na massa e ao fogo”32.
Observa-se, pela descrição, uma ligeira evolução na composição do banho, do início do século para os nossos dias. Resta apenas devolver às peças o brilho característico do ouro. Esta operação recebe o nome de brunir, consistindo em escovar e lavar com água e detergente as peças, com uma escova de latão, o brunidor: Também este processo sofreu algumas transformações, como deixa transparecer a descrição feita por Rocha Peixoto e que os ourives gondomarenses mais velhos, por sinal, ainda recordam: “depois de receberem a côr, são ainda areadas ou polidas com areia fina, agoa e uma escova, afim de adquirirem o brilho conhecido. E voltam mais uma vez. rapidamente, á massa ou á côr, no propósito de expungil-as dum ou outro defeito, procedendo d'est'ultima diligencia, e fixarem o tom, definitivamente. Isto feito, são os objectos brunidos, ultima e simplíssima operação que se limita aoattritohabile, de resto, summario, d'uma haste de aço cylindrica - o brunidor”33.
32 33
IDEM, idibem - p. 550. IDEM, ibidem, p. 550.
29
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Algumas jóias recebem ainda uma camada de pomada, chamada "patine", que tem como objectivo criar contrastes entre os fundos mais escuros e as superfícies mais claras e brilhantes e lhe dá o efeito de peça envelhecida.
30
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Filigrana – conceito e sua evolução É uma técnica de ourivesaria usada tradicionalmente nas oficinas artesanais portuguesas. Consiste no entrelaçamento de fios de metais nobres ou de outros de valor mais reduzido, como o cobre. A técnica de enchimento utilizada na produção de artefactos revela-se mais fechada no ouro e na prata, ao contrário do cobre. Esta técnica remonta a origens ancestrais, mantendo-se impoluta no tempo devido ao ofício de filigraneiros que traduzem os saberes acumulados, transmitidos por várias gerações. Os objectos de filigrana representam a cultura popular do nosso país e evidenciam uma riqueza ímpar pelos rendilhados que afirmam,
mais
uma
vez, a identidade da memória colectiva da Cultura
da
Arte
Popular Portuguesa. A filigrana e a trança
de
ouro
aparecem muito cedo, antes da era presente, nos pequenos tesouros legados, geralmente em necrópoles,
Fig. 8 – Artesão na fase inicial do processo da técnica da filigrana.
das
populações apenas contemporâneas dos primeiros alvores da História. Não foi pelos árabes ou depois das nossas viagens à Índia, que em Portugal, se fabricaram com fio de ouro os primeiros artefactos desta arte. O ensinamento é ignorado e remoto, como desconhecida e longínqua fica a origem precisa desta aplicação dos metais nobres. Os fenícios investiram no papel de descobridores desses complicados enrolamentos de fios, das malhas e da poalha de grãos de ouro quase imperceptível, que mais tarde, fulguram nas jóias de procedência etrusca. Mas afinal não só os túmulos egípcios, com as revelações dos seus despojos, antecipam a precedência, como os fios
31
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
de ouro e granitado de certa ourivesaria micénica acusam a posse e o uso da fieira e do maçarico. Dia a dia as descobertas revelam-nos o Egipto, a Assíria, a Índia talvez, como produtoras, antes da Grécia e da Etrúria, da arte da filigrana. E sem que uma e outra destas regiões ficassem tributárias do Oriente, na evolução da sua ourivesaria perdura, não raro, o cunho de origem e, nomeadamente, na obra onde a granulação e a filigrana constituíam o primeiro motivo de ornato. Sob o ponto de vista da destreza de fabrico as jóias etruscas são, de resto, as mais interessantes, quando comportam fio e granalha de ouro. Mais fino, porém, que a filigrana é o granulado, verdadeiro pó de ouro obtido com a incidência da chama do maçarico em pequenas parcelas do metal e imediatamente soldado com uma nitidez e delicadeza inigualáveis. Por virtude de outras manifestações é pertinente conjecturar que a influência da ourivesaria oriental e helénica se exerceu tão directamente sobre a Toscana como na Ibéria. A técnica do diadema de Alicante, ou obra de ourives grego ao gosto espanhol ou fabrico indígena em parte subordinado aos moldes inspiradores e propulsores, denuncia a identidade do seu fabrico com as jóias de ouro encontradas na Etrúria. Data, pois, dessa época, imprecisa mas distante, a técnica da filigrana nas duas penínsulas, ou diante com hiatos que as descobertas porventura ainda desvendam, e entretanto persistente no sul e ocidente da Europa pela antiga utensilagem e pelos padrões sobreviventes. Seguindo a irradiação do artefacto filigranado e a sua ulterior radicação, logo em Roma surgem certas jóias de ouro. Nas necrópoles gaulesas encontra-se a filigrana guarnecendo vários adornos exumados. Sem esquecer a ourivesaria visigótica, da qual ressalta
o
seu
carácter
particularista,
avultando, pela originalidade, o celebrado tesouro de Guarrazar. Aquando da chegada dos árabes à Península, encontraram aptidões
32
Fig. 9 - Santo Elói - padroeiro dos ourives.
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
técnicas desenvolvidas nas oficinas dos ourives visigóticos bem como os que os procederam. Notável se revela ainda o emprego do enfeite filigranado na maioria das cruzes atribuídas ao Santo Elói. Antes
do
século
XV,
Portugal está sob a influência de elementos alheios e diminutos, com fracos recursos e sem grande tradição artística. Até então, não há originalidade na ourivesaria portuguesa: há um certo carácter na
ourivesaria
peninsular,
denunciando sempre, sobretudo nos séculos XV e XVI, pelo fausto Fig. 9 - Santo Elói a trabalhar. Mestre de Balaam, finais do século XV.
da
corte
e
do
culto,
pelo
conhecimento dos produtos de fora e pela fácil obtenção da matéria-prima desde que nos votamos à navegação e à conquista, que a ourivesaria nacional alcança o seu relativo esplendor. Já no século XVI acusa-se entre nós, uma Renascença póstuma, sem novidade e retradução dos tipos espanhóis. Fabricou-se, em Portugal, pouco e mal, à semelhança, mas muito mais humildemente, do que os espanhóis, afirma Rocha Peixoto. A partir do século XVIII é mais praticável a apreciação do artefacto de ouro. A filigrana é que desaparece da baixela e da alfaia do culto para regressar a destinos mais humildes, confinando-se em modelos e padrões que jamais esquecera, retomando
outros,
abastardando
muitos
e
defendendo-se, até à última crise, no reduto que foi
Fig. 10 - Rocha Peixoto.
sempre o seu amparo mais seguro: o uso popular e a rotina.
33
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
A longevidade da arte de trabalhar o ouro em Portugal é muito grande e cedo a ostentação e vanglória adoptaram nos adornos, símbolos de grande prestígio e afirmação social.
34
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
A arte da filigrana em Gondomar “Gondomar, cidade ladeada pelas serras e pelos rios Douro, Ferreira e Sousa, é um concelho localizado em pleno Douro Litoral, onde coexiste harmoniosamente um rico património natural e cultural, onde as actividades artesanais, em particular, a Ourivesaria-Filigrana, contam com longas tradições”34.
Este Concelho, outrora local protegido pela elevação do Monte Crasto, que se estende por uma vasta área, caracterizada por uma malha urbana irregular. Por outro lado, possui uma dupla vertente: rural e urbana. Gondomar destacou-se também pela indústria mineira e, evidentemente, com forte incidência na indústria da ourivesaria, mais
especificamente,
filigrana.
Esta
a
actividade
económica é envolvida por uma
forte
simbologia
assumindo, por isso, um lugar de forte representatividade na região,
transmitidos
por
artesãos portadores de um abastado
conhecimento,
transmitidos
por
gerações procurando
várias familiares,
preservar
e
valorizar esta cultura popular. Relativamente
à
indústria da ourivesaria, não é possível afirmar com toda a
Fig. 11 - Concelho de Gondomar e respectivas freguesias.
certeza o estabelecimento dos primeiros ourives nesta região. No entanto, desde tempos remotos, o Concelho de 34
PEREIRA, Mafalda Pinheiro – Memórias de artesãos filigraneiros de Gondomar. Um património a musealizar? Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Julho de 2008. Pág.25.
35
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Gondomar, é uma das cidades do litoral de Portugal, onde se desenvolve intensamente esta indústria, justificando, assim, que grande parte dos gondomarenses se dedique a esta actividade, contribuindo para um número significativo de oficinas de filigraneiros. Falar
de
Gondomar
é
falar,
obrigatoriamente,
do
seu
artesanato.
“Etimologicamente o vocábulo filigrana decompõe-se em dois termos latinos: filum e granum que significa respectivamente fio de metal e grão ou conta” 35. Por um lado, trata-se de uma técnica artesanal que consiste no entrelaçamento de frio de metais nobres e, por outro, uma arte verdadeiramente popular, com características artesanais que, para estar completa, necessita do brilho do ouro. Actualmente, a filigrana portuguesa possui duas feições: a filigrana de aplicação utilizada na decoração de formas tradicionais e a filigrana de integração, também de cariz tradicional, em que as jóias são unicamente revestidas por filigrana. Laurindo Costa afirma que as filigranas de Gondomar, mimosa arte ornamental, têm artistas de valor ímpar que executam belas produções regionais (…) que são verdadeiros encantos. Outrora, a região do Douro Litoral, “à
excepção
das
freguesias
serranas, possuía mais ao menos oficinas operários alimentados oficiais
onde
trabalhavam
hospedados pelos que
patrões,
e Fig. 12 - Caravela com casco em prata branca, lisa e restante trabalho com prata dourada com aplicação de esmalte.
ou
trabalhavam
domesticamente por tarefa e por conta dos mestres de oficinas”36.
35 36
IDEM, ibidem – pág. 27. IDEM, ibidem – pág. 28.
36
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Actualmente, o número de oficinas tradicionais de Ourivesaria, em Gondomar, é reduzido. Por outro lado, começam a impor-se, progressivamente, algumas unidades de estrutura fabril, sobretudo devido ao progresso e à produção variada de artefactos, bem como às solicitações do mercado. As referidas oficinas concentram-se, essencialmente, nas freguesias de Jovim, S. Cosme, S. Pedro da Cova, Fânzeres e Valbom. Os
filigraneiros,
como
se
sabe,
executam verdadeiras obras de arte, bem como jóias regionais que mantêm “com devoção a tradicional arte, que herdaram de seus antepassados”37. Os artefactos por eles produzidos,
também
designados
por
rendilhados pela imaginação de quem os cria, continuam
a
afirmar
a
identidade
de
Gondomar. Esta é, muitas vezes, reconhecida nacionalmente pela caravela em filigrana ou pelo coração rendilhado de Gondomar, exlíbris do Concelho. Sem
querer
deixar
cair
no
Fig. 13 - Coração em filigrana rendilhado.
esquecimento, o brasão do Concelho, ilustra um coração em filigrana. Representa as indústrias locais, traduzindo o sentimento artísticos com que esta indústria é executada em Gondomar. Assim, é possível entender a importância que esta actividade constitui para a economia do Concelho. A vida quotidiana dos filigraneiros de Gondomar é marcada pelo ritmo laboral nas oficinas e pelos sons emitidos pelas ferramentas, Fig. 14 - Brasão do Concelho de Gondomar.
37
constantemente utilizadas pelos artesãos, que criam objectos que somente a mestria e a habilidade das
IDEM, ibidem – pág. 30.
37
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
mãos dos artífices conseguem criar. Foi-lhes imposto, precocemente, o ingresso no mundo do trabalho, obviamente, por necessidades económicas familiares. Desde muito cedo que os filigraneiros começaram a adquirir hábitos de trabalho e de aprendizagem nas oficinas, ao fim do dia escolar ou durante as férias, a ajudar na oficina do avô ou do pai, garantindo, por um lado, uma paixão precoce pela arte e, por outro, a continuidade do mister por mais uma geração. Os aprendizes desempenhavam funções como “ir ajudando a apartar a obra, a pôr obrinha nas latinhas”38. Os longos anos de experiência profissional, a habilidade artística, a sabedoria, a paixão e o aperfeiçoamento desta arte fizeram com que o talento, que lhes habitava nos genes, fosse transmitido familiarmente, sendo que os filhos ou familiares de outra linhagem dessem continuidade à arte, com igual sucesso. No entanto, esta continuidade tem-se vindo a degradar na medida em que grande parte dos descendentes familiares dos artífices de filigrana optaram por seguir outros caminhos profissionais, eventualmente por não acreditarem na sobrevivência desta área artística, pela falta de escoamento para o mercado nacional, ou até por questões de ordem pessoal, investindo numa alfabetização mais avançada, bem como numa carreira profissional que lhes proporcionasse
melhores
oportunidades,
consequentemente, ao espírito competitivo.
38
IDEM, ibidem – pág. 63.
38
face
à
actual
globalização
e,
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Filigrana em Gondomar e em Travassos Relativamente à diferença que reside na técnica do fabrico da filigrana nestas duas áreas deve-se, eventualmente, a motivos de ordem geográfica, assim como a abundância de metais preciosos, pela “riqueza aurífera do couto mineiro de Valongo” 39. Todavia, ainda que pelo seu isolamento, a Póvoa Lanhoso obteve um merecido incremento neste ofício existindo, actualmente, oficinas de filigraneiros, embora em número reduzido. Já no que diz respeito aos vocábulos utilizados em ambos os Concelhos, há algumas divergências. A diferença entre a filigrana de Gondomar e a de Travassos dizem que aquela tem os rodilhões mais cheios e cerrados, não é tão leve e aberta como a de Travassos. Esta técnica de trabalhar os fios de filigrana e transformá-los em espiral ou em crespos é comum nos dois concelhos. Em Gondomar empregam-se termos como enleadeira, banca de caixão, embutideira, embutidores, feitoras, fieiras, maçarico de sopro, entre outros. Em ambos os sítios os persistem as técnicas de fabrico de artefacto filigranados, assim como a utilização de instrumentos arcaicos. De facto, a diferença adoptada por cada um dos concelhos acaba por conferir um cunho autónomo nas técnicas de fabrico existentes nas capitais de Filigrana Portuguesa. Alguns filigraneiros de Gondomar afirmam que algumas diferenças da filigrana, em ambos os concelhos, residem na espessura do fio e no enchimento, sendo que na Póvoa de Lanhoso é uma filigrana mais grossa, mais rústica. Por outro lado, a de Gondomar é mais fina. Já no que diz respeito ao enchimento, segundo António Cardoso: a diferença é nos SS que, em Gondomar, são mais pequenos e na Póvoa de Lanhoso mais um pouco mais largos. Efectivamente, são as semelhanças que complementam e valorizam ambas as técnicas, tendo cada sítio a sua tradição.
39
IDEM, ibidem – pág. 68.
39
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
A técnica da filigrana Para o fabrico duma peça de filigrana começa-se, geralmente, por organizar o seu arcabouço fundamental, destinando-se os grandes espaços que as nervuras limitam a serem guarnecidos ou preenchidos pelo fio de ouro ou prata, cuja tenuidade e disposição caracterizam esta especialidade artística. Ao arcabouço é o que, em Travassos, denominam a armação, fita de ouro ou prata obtida
no
que chamam o
cilindro, ou seja, entre dois tamboretes de aço paralelos, animados
de
movimento
e
dando-lhe a espessura ou em singelos debuxos arqueados, os modelos de
encomenda.
A
Fig. 15 – Artesão a seleccionar os desenhos.
armação de uma peça pode ser realizada a partir de desenhos, bitolas ou moldes, é composta por um fio batido que forma a estrutura ou a parede do objecto reforçada pela solda, com a ajuda de um palito. Edificada a armação, o fio que a vai ornar e preencher é suficientemente adelgaçado de sorte a curvar-se e enrolarse em
espiras
ou SS
e crespos,
denominação de Gondomar. Para a obtenção do fio já não se usa o martelo como provavelmente se procedera na antiguidade, achatando-se e alongando-se o metal por simples precursão. SucedeuFig. 16 - Artesão a preparar a armação da peça com o auxílio da bitola.
lhe a fieira ou damasquilho. Com o auxílio deste instrumento, o ouro ou a
40
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
prata são levados à espessura duma aresta sendo que, esta operação se denomina de puxar o ouro. Para tal começa-se por colocar a fieira entre dois tacos de madeira, paralelos e firmes no extremo da superfície de um banco. O ouro ou a prata, antecipadamente fundidos e vasados em rilheiras, e batidos em redondo numa bigorna, são levados a uma das aberturas da fieira. Dela se faz emergir a ponta do fio a distender, sendo essa agarrada por uma longa tenaz onde engancha a corrente de ferro ligada ao eixo de um sarilho no extremo do banco oposto ao que sustenta o damasquilho. Corrido o fio, passa-se depois para o ostiolo imediatamente inferior
e
seguintes
até
se
conseguir
o
adelgaçamento desejado. Por aqui ficam os ourives de Travassos. Já
Fig. 17 - Artesã na execução da armação.
em Gondomar, ao banco preferem o cilindro, passando daqui o fio para o tabuleiro, onde de uma nova fieira anexam com os pertuchos diminutos, puxando à mão, com uma tenaz, levando o fio à grossura de uma aresta. Por fim, o tabuleiro vai ao carrinho, onde, por entre as estreitíssimas aberturas dos rubins, os dois metais atingem a finura extrema. É a chamada finura do cabeleiro, mais elevado grau de ductilidade que, com tais instrumentos, podem atingir. Tomam-se dois fios, torcem-se à mão concluindo a operação entre duas tábuas, submetese rapidamente o cordão ao fogo da forja, ligando o par de fios, levando-se depois ao cilindro que os esmaga, convertendo-os na ténue fita que o trançado explica. O fio torcido com outro igual e Fig. 18 - Artesão a reforçar a parede do objecto, com o auxílio da solda.
parecendo ambos num só fio gravado é o elemento principal da filigrana. As velhas e modernas jóias guarnecidas de volutas e entrelaços, de SS e
41
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
círculos, reticulados ou imbricados têm, em geral, nos dois fios trançados, o essencial elemento desta decoração variada e inesgotável. Para
encher
as
armações
será
necessário organizar os SS e os crespos, conforme
os
espaços
que
devam
ser
intercalados. Para encurvar e enrolar o fio em SS emprega-se a buchela, espécie de pinça de aço cujos ramos findam em gumes. Sobre o tabuleiro de ferro e forçando, prendendo, tomando e largando o fio, lentamente lhe dão a curvatura, cortando-o com um dos gumes Fig. 19 - Artesão a embutir a peça.
logo que o S ou a espiral atinja a dimensão e o enrolamento necessários. Em Gondomar,
mais facilmente conseguem hoje realizar o mesmo elemento decorativo que na localidade, se chama crespo. Para tal há o ferro do crespo, espécie de alicate cujos ramos unem, no extremo, em cone. Fixo o fio de ouro na extremidade do utensílio, introduz-se na embutideira40 e dá-se ao ferro um movimento de rotação mais ou menos prolongado. Vai-se enrolando em volta do ferro e, como a cavidade tem uma forma de um pequeno cone invertido e a ela se adapta a terminação cónica do ferro, o ornamento resultante é um pequeníssimo cone, suja superfície foi gerada
com
o
encurvamento,
progressivamente crescente em diâmetro.
Fig. 20 – Artesão a cobrir a peça de solda, com o auxílio da borrachinha e de uma buchela.
40
Lâmina com pequenas cavidades cónicas.
42
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Então, obtidos os rolos, procede-se ao enchimento das armações. Realizada parte da peça, dispõe-se num carvão ou na espécie de umbela constituída principalmente por muitos fios de ferro cobrindo-se, seguidamente, de solda. O maçarico intervém agora com a sua função. É por este emprego nas obras de ouro que os artífices da prata, pejorativamente, classificam os ourives, com desdém, de maçariqueiros. Na prática de uma soldadura tão subtil que não seja perceptível a olho nu, reside a habilidade extrema do artífice. Em Gondomar, a 10 gramas de ouro adiciona-se grama e meia de prata e uma e meia de cobre e trincal. Difunde-se a solda
Fig. 21 – Artesão a soldar a peça.
com a borrachinha41 e, aplicando o maçarico,
vigia-se a acção do fogo. Não estando em vista a fraude do emprego duma solda diminuída em ouro e destinada a tornar a peça mais pesada, o que é menos frequente na filigrana, o artífice, desde o “cantar da cigarra” até ao abandono do maçarico,
efectuou
uma
das
mais
delicadas tarefas. No ouro como na prata, a similitude da manufactura é completa, sendo ambos os metais, como se sabe e por igual, maleáveis e dúcteis. Ambos são inalteráveis ao ar e na água. 1 Grama desta substância pode fornecer mais de
Fig. 22 – Artesão a branquear a peça.
2000 metros de fio. Liga-se, em geral,
41
Pequena caixa de cobre, de forma cilíndrica, de onde emerge lateralmente um tubo ao de cima serrilhado.
43
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
com o sobre; apenas para limpar algumas divergências nem contam para além dos interesses profissionais. A peça de filigrana de ouro, uma vez soldada, é de novo recosida para que desapareçam os efeitos do fumo e da soldadura. Enchem-se, para tal, dois recipientes de barro, justapostos pelas bocas ou bojos, com carvão de urze, havendo-se incluído nas peças de ouro de permeio. Pousa-se, depois, o volume na forja para as aquecer; é visível que a elevada temperatura não as prejudica, já que não mantêm contacto directo com o fogo, já que os carvões as distanciam. Seguidamente, depois de devidamente esfriadas, branqueiam a peça numa vasilha, numa solução muito diluída de ácido sulfúrico. Posteriormente deverão ser coradas. Em Gondomar, para tal, prepara-se uma massa em que entram 2 partes de salitre, 1 de sal e outra de pedra hume. Tudo misturado e adicionada alguma água, vai a ferver. Então, vertendo mais água e introduzindo as peças, que se conduz novamente o recipiente ao fogo, deixando que a pasta entre em ebulição. A cor fica mais ao menos carregada, dependendo do tempo “que as peças demoram no fogo”42. Deve também destacar-se a preocupação de aforro por parte dos filigraneiros durante o processo de manufactura de artefactos em metais nobres: “à medida que vão laborando a matéria-prima, muitos fragmentos vão sendo, paulatinamente, reunidos na banca e são reaproveitados – limalha – bem como o aproveitamento das areias resultantes da forja, mais conhecida por escovilha” 43.
42 43
IDEM, ibidem– pág. 78. IDEM, ibidem– pág. 78
44
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Adornos – tipologia e simbologia O hábito de perfurar o lóbulo da orelha procede de Oriente, tendo sido iniciado por asiáticos e egípcios, penetrando na Europa por via dos helénicos. É entre nós, uma das preocupações primárias relacionadas com o ornamento das crianças. Só precederão os brincos um pequeno crucifixo de ouro e os amuletos: “botões” diminutos, mesmo umas “argolinhas” que constituem em geral as primeiras jóias que enfeitam os alvores da infância feminina. Tendo-se tornado, mais tarde, os brincos como o adorno de preferência. Assim, torna-se natural que o
artífice
multiplicasse o
Fig. 23 – Arrecada.
seu engenho,
concebendo
numerosos modelos. Em Portugal, houve arrecadas de pensamentos, assim chamadas pela sua demasiada finura, de bicha, pela figura de uma cobrinha, de alfinete, por se introduzirem nos buracos dos lóbulos e não fecharem. Para além de modelos Fig. 24 – Arrecada.
de
simples
estrutura,
a
arrecada, circular ou em crescente, é entre nós, um dos padrões
de
ascendência
mais
remota.
Independentemente das formas simples em caixa, de chapa batida lisa ou historiada, as filigranadas, dão a série quase ininterrupta, a começar no modelo circular e passando sucessivamente ao tema e alicerces do crescente. O tal motivo lunular parece ser de origem fenícia e, deste mesmo motivo, se podem aproximar o
Fig. 25 – Argola de uma andada.
brinco micénico em que a estrutura sendo a mesma, se inscrevem dois remates em espirais.
45
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Lunulado é fundamentalmente o contorno da arrecada em cujo vasado oscila uma peça também em crescente e articulada. Mais complexa já se mostra um outro tipo também em voga, onde, entre as peças em que o brinco se dobra, um anexo díptero intermediário se inclui para harmonia do conjunto. O tipo fusiforme também perdura. Um botão, uma rosácea ou uma conta suspendem a parte essencial do adorno, recamada, às séries ou às zonas, de cordões, de crespos e de redes. Assim delineados, burilados a primor e decompõem-se
Fig. 26 – Brinco de fuso.
em seis peças. Não subsistem, caso tenham Fig. 27 – Brinco de fuso.
existido, os brincos compostos por duas ou mais peças em que uma pendia, por trancelins, alguns berloques. As variedades deste padrão
de brincos têm uma estirpe tão imprecisa como arcaica. A estes se associam os de molde ou chapa, variamente debuxados, discóides, ablongos, Fig. 29 – Parte de colar de contas cobertas de filigrana.
compostos por duas ou mais partes, com esmaltes figurando
perfeito
piramidados,
ou
um
outra
representando uma ave.
Fig. 30 – Colar e brinco.
46
flor,
amorou Fig. 28 – Conta coberta avulsa.
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Depois dos brincos é para o ornamento do peito e do pescoço que se volvem os gostos. Os cadeados de grossas argolas, os grilhões maciços, os cordões de trança sucederão aos fios de contas lisas, esféricas ou ovaladas44. Dessas contas umas são exterior e levemente guarnecidas de fio de ouro e outras
todas
filigrana. Fig. 31 – “Borboleta”.
formadas
Destes
contas
colares
apartam-se
de de os
completamente formados, às vezes também de contas ou “azeitonas” alternadamente polidas e estriadas, outros com
Fig. 32 – “Coração de bico”.
mais ao menos filigrana nos SS componentes e entremeados de rosetas, outros ainda mais complexos no seu tema repetido e realçado com esmaltes. Outras vezes é o crucifixo em que a obra de filigrana resplandece numa auréola ou os relicários. O mais vulgar coração aparece-nos simplesmente recortado numa chapa. Assim, diminuto e mais acessível, quando de filigrana limita-se a obra de fio de ouro
a
singelas
enroscaduras
e
espirais simetricamente dispostas. Fig. 33 – Coração. Face anterior.
Posteriormente, surgem
os
de
composição mais difusa, alguns mesmo com as suas
espiras
enrolamento
irradiantes periférico.
Há
e
um ainda
complexo uns
44
mais
Fig. 34 – Anel.
As contas ovóides, sem filigrana, têm ascendentes remotos e fabricados com várias substâncias. Às vezes afectam grosseiramente a forma de dois troncos de cone unidos pelos planos das bases. E além do seu destino para colares também na antiguidade se adoptavam isoladamente como brincos.
47
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
complexos, nos quais se acentuam os motivos espiriformes e em SS. Com a cruz, o coração deveria ser um dos temas populares mais referidos. Por entre os medalhões ornamentais ou com retratos, os corações, constituem um dos parâmetros necessários para diminuir a monotonia dos colares. E estes, suspendem apenas, entre nós, uma só peça que afirma a crença, defende do malefício ou simboliza o afecto. Os broches de filigrana, em rigor, não têm carácter tradicional. Com a invasão de berloques para pulseiras e correntes surgiu a dos broches inspirados em diversos motivos. Fabricam-se os broches filigranados como se produzem as châtelaines, destinando-se, uns e outros, a diversos usos. Por outro lado, os anéis são objecto de muito apreço. Os antigos modelos perduram nas velhas matrizes subsistentes, ornatados apenas, às vezes esmaltados e ainda com vidros coloridos ou com pedras, outros filigranados nas zonas exteriores de exibição. Elaboram-se também braceletes filigranados de que restam despojos de arte mais ao menos erudita. Por último, os alfinetes, ornamentais e esculpidos, foram um acessório muito comum de utilidade e adorno nos tempos lusitano-romanos. Segundo a opinião de Rocha Peixoto, a obra de filigrana portuguesa carece de originalidade não só nos arcabouços estruturais, com precedências orientais, helénicas e estruscas, como nos pormenores decorativos – os SS e as espirais. Os SS são um constante elemento de ornamentação greco-estrusca, ou simples ou já espiralando nos remates. Só as espirais constituíram brincos e, muito cedo, em Tróia, em Micenas e na Etrúria. Por fim, o artífice pré-micénico e micénico do primeiro período empregou-as em tudo, orlando e enchendo. Os enrolamentos em espiral constituam um motivo principal na ornamentação micénica. É que o que vemos ainda hoje, em regra, mais grosseiro. A colecção de artefactos deve ser perene, no espaço e no tempo, uma vez que transmite significados e expressa emoções e raízes culturais que identificam e projectam uma cultura popular. Os artesãos estabelecem, como já foi referido, uma relação humana e sensorial com os artefactos por eles criados. A sua tipologia é variada, de
48
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
cariz artesanal, havendo objectos que desempenham um papel importante na sociedade e um significado singular na vida de cada um, pela memória individual ou colectiva, ou tão simplesmente pela forte simbologia que cada objecto possui, podendo ser de cariz artístico ou estético. Além da feição artística dos objectos, comportam diversos significados sociais e culturais, cativando a atenção pelas formas, elementos decorativos e técnicas usadas para o fabrico de objectos filigranados. Face à diversidade tipológica, destaca-se a simbologia de algumas filigranas mais populares:
Adorno pessoal: a tradição popular, os usos e costumes, reflectiram-se, obviamente, no uso de objectos como forma de embelezamento e de distinção e afirmação social, justificando uma riqueza pessoal, material e espiritualmente. Por exemplo, o coração, não só pela sua proporção mas também por todo o minucioso trabalho que envolve a sua criação. “Surge com um forte carácter simbólico do amor, da inteligência e sabedoria e da protecção de quem os ostenta e oferece lealdade” 45. Fig. 35 - Coração.
Cariz
religioso:
os
objectos
deste
cariz
simbolizam a fé e a história da salvação e da paixão do Salvador, “o Cristo Salvador expressando uma simbologia devocional cristã”46, por exemplo, na Cruz de Malta e Cruz Filigranada.
45
PEREIRA, Mafalda Pinheiro – Memórias de artesãos filigraneiros de Gondomar. Um património a musealizar? Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Julho de 2008. 46
IDEM, ibidem – pág. 66.
49
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Cariz decorativo: estas peças enquadramse em diversas manifestações da arte popular, “mostra singular da Etnografia Regional”47. O universo ornamental, que se mostra extremamente vasto, detém como tema principal, uma inspiração vegetalista e zoológica, como as folhas, florões ou a caravela.
Fig. 36 – Relicário, com diversos símbolos portadores de um significado religioso.
Fig. 37 – Alfinete em prata branca, representando uma flor com pé.
47
IDEM, ibidem – pág. 67.
50
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Os acessórios: pedras e esmaltes Às filigranas também se associam as pedras e os esmaltes. A união, com os metais de adorno, das gemas e dos vidros, tem origens distantes mais uma vez, certamente nas civilizações orientais, nomeadamente na Babilónia e no Egipto, que souberam gravar e lapidar. O emprego do quartzo hialino nas filigranas e, principalmente nas da prata, reinou com muito êxito desde tempo imprecisos, enquanto não se subverteu, com as fraudes, a exportação dos artefactos para a América. Nos finais do século XIX ainda se encontravam lapidários nos arredores do Porto, ocupando-se do desbaste do cristal de rocha. Vários exerciam a indústria em
Fig. 38 – Escrava com aplicação de esmalte verde.
Contumil. Os filigraneiros de Gondomar lá conduziam as peças de ouro e prata escolhendo os lapidários, as pedras já por eles facetadas, as que melhor se acomodavam aos engastes. Para o desbaste, facetado e polido, o lapidário começava por anexar, com betume, um cristal solto à extremidade duma vara, levando-o depois à roda de chumbo onde, com o esmeril, a pouco e pouco, obtinha as faces. O movimento do disco era associado ao de outra roda a que uma manivela se anexava, relacionando-as uma corda de tripa em oito. As facetas, uma vez ultimadas, ficavam sem brilho. Mas este manifestava-se após nova aplicação do facetado numa roda de cobre e terra podre. Só então, e para despojar os cristais dos resíduos Fig. 39 - Pormenor da escrava com aplicação de esmalte verde.
do betume, é que se mergulhavam numa vasilha com água e algum azeite e, depois de
51
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
uma fervura, as pedras ressurgiam limpas. Extinta a profissão, ou mais reduzida a sua acção, vieram os vidros alheios substituir na ourivesaria popular, sobretudo aqueles que grosseiramente imitam turquesas e rubis. Só prevaleceram os esmaltes, adquiridos sob a forma sólida ou de pastas completamente organizadas. O esmalte é inicialmente uma substância pulverulenta, composta de areias e óxidos de chumbo, vitrificável a altas temperaturas, corada de modo vário pela adjunção de outros óxidos metálicos e inalteráveis depois de solidificada. Suspeita-se que o esmalte tenha sido fabricado Fig. 40 – Esmaltes.
primeiramente no Egipto. É a partir da segunda metade do século XV que em Portugal e se
aplicou o esmalte artístico, realçando com este vidro certas molduras e florões, a indumentária, as jóias e os escudos das armas. Alguns motivos ornam tanto a obra de chapa como a filigrana, subordinados a uma paleta em que dominam o branco e o azul ferrete. Os polígonos (figs. 37 e 38) e as rosáceas de seis ou oito pétalas (figs. 39, 40 e 41) são os padrões mais vulgares. A matéria-prima para esmaltes é adquirida no mercado, triturada em casa e conservada em água. A pasta, uma vez incluída nos alvéolos, fica a secar, indo depois ao maçarico; e como subsistiam algumas rebarbas ou escorrências limam-se seguidamente, lavam-se com uma escova
Fig. 41 – Esmaltes.
e voltam ao fogo por pouco tempo. O estado da arte do esmalte entre nós explica, com outro motivos, a importação do esmalte estrangeiro e industrial e, em chapa de cobre ou ferro, destinado a incorporar-se na filigrana artística, procurada pelo comércio da ourivesaria.
52
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Usos e costumes Como se sabe, a mulher não se contenta com o realce de poucas jóias. “Constellar o peito com a faustosa e fúlgida profusão dos adornos, estrangular os pulsos, constringir os dedos, lacerar as orelhas, tudo se pratica comtanto que a creatura rutíle e deslumbre”48.
Em
Portugal,
ainda
actualmente, o peito da minhota é um céu estrelado.
Todo
ele
brilha,
os
pulsos
difundem luz, faíscam os dedos e das orelhas pendem, até aos ombros, enormes brincos. O ouro exposto no busto duma lavradeira abastada seria, muitas vezes, o dote invejado na maioria das jornaleiras rurais. A acumulação de riqueza sob a forma de jóias e numerário foi, contudo, mais geral no século XIX. Uma lei de Afonso IV comporta disposições repressivas do luxo em
Fig. 42 - Mulher minhota com adornos em filigrana.
que entre muito ouro, prata e aljôfares; uma outra de D. João I determinara que ninguém, não sendo cavaleiro, não use ouro ou coisas douradas; ainda as Ordenações afonsinas legislaram sobre o emprego do ouro e dos objectos que o fingissem. Nos séculos XV e XVI havia em Portugal tesouros incalculáveis em ouro e prata. A maior parte das economias femininas é colocada nestes enfeites que nos tempos tristes são vendidos e o seu produto aplicado a necessidades mais importantes. Por outro lado, com as facilidades de fundir, refundir e metamorfosear a prata e o ouro, se destroem, por necessidade e por moda, as formas mais belas ou mais complexas, tornando o artefacto de ouro transitório e instável. Os modernos processos e vantagens de capitalização vêm atenuando visivelmente os excessos da transformação da moeda e produtos nos metais manufacturados.
48
PEIXOTO, Rocha – As filigranas. In “Portvgalia”, Tomo II, Fascículo 4, 1905. Pág. 566.
53
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Do processo artesanal à micro-fusão Apesar de a técnica da filigrana se basear quase na totalidade em processos que remontam épocas ancestrais também tem havido uma evolução que se traduz na mecanização evidente em algumas oficinas e fábricas de Ourivesaria de Gondomar, permitindo um fabrico de uma forma mais rápida e em maior quantidade. Por exemplo, o maçarico de sopro foi substituído por máquinas eléctricas; o carrinho de puxar o fio e o cilindro manual pelo cilindro Fig. 43 – Objecto que substituiu o maçarico de sopro.
eléctrico; laminador e fornos eléctricos; conversão
de
alguns
processos
mecanizados, como a estampagem de motivos decorativos na chapa, com o balancé,
mediante
um
movimento
rotativo e repetitivo em que as chapas laminadas Fig. 44 - Máquina para puxar fio.
são
cortadas
facto,
a
introdução
da
tecnologia no mundo desta arte popular deve-se à alteração dos gostos, das necessidades e interesses, no mercado nacional e internacional, podendo garantir a
continuidade
Actualmente, filigraneiros
a
desta
actividade.
sobrevivência
poderá
uma
cortadeira, segundo as dimensões das
peças que se pretendem obter. De
por
dever-se
à
dos sua
produção, à necessidade de uso, bem
Fig. 45 - Forno eléctrico.
54
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
como utilização e comercialização de artefactos solicitada por um volume de solicitações e encomendas. Verifica-se uma crescente adopção de uma produção panificada e seriada entre os operários e a introdução de estilos e técnicas mais inovadoras. Apesar disso, alguns filigraneiros
colocam
em
causa
práticas
tecnológicas adoptadas em algumas oficinas, como é o exemplo da técnica de injecção ou micro-fusão utilizada nos artefactos de filigrana. Trata-se de uma prática que acelera o processo de fabrico saindo, de uma só vez, 50 peças, sendo que se distingue facilmente entre está prática e a artesanal. Com esta nova técnica, as peças saem mais abertas e, apesar de ser mais rápido, a qualidade é claramente inferior, para além de que as peças ficam mais pesadas.
Fig. 46 - Balancé hidráulico.
55
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Centro de Formação Profissional da Indústria de Ourivesaria e Relojoaria Trata-se da única escola no país, fundada em 1984, na qual ministram os cursos de Ourivesaria, nas vertentes de Joalharia – Filigrana e Joalharia – Cravação. Esta última é a mais procurada pelos formandos, pelo
facto
de
possibilitar
e
acompanhar a actualização do design de jóias. Nesta escola seguem um modelo tecnológico
pedagógico e
artístico-
profissionalizante
aliando às práticas da Ourivesaria Tradicional. Nos anos 80 a escola surge
Fig. 47 – Símbolo da CINDOR.
com o objectivo de dar resposta aos desafios impostos pela indústria da Ourivesaria, face a um novo contexto socioeconómico, cultural e tecnológico. Assim, a fundação desta escola evitou, de certa forma, o desuso desta actividade. Por outro lado, o Centro de Formação Profissional desenvolve esforços no sentido de dignificar a escola e o concelho, contribuindo para a formação de joalheiros filigraneiros que se torna importante para continuar a investir e a trabalhar na identidade do Concelho de Gondomar. A escola tem como prioridade a formação qualificada e certificação de jovens artistas, sendo que para tal contribuem mestres filigraneiros de oficinas tradicionais. É permitida aos formandos a criação de artefactos, através da satisfação dos gostos estéticos e artísticos inovadores em conciliação com conhecimentos técnicos multidisciplinares tornando-os, desta forma, mais aptos à mudança e, por outro lado, dotando-os de um elevado grau de habilidade e paciência, atenuando as preocupações relacionadas com a salvaguarda de um conjunto de valores patrimoniais.
56
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Como tive oportunidade de verificar, grandes parte dos discentes desta escola são residentes no Concelho de Gondomar, havendo também outros provenientes da região minhota, do Centro (Cantanhede) e mesmo dos arquipélagos, como um aluno dos Açores que, apesar de não ter familiares ligados à Ourivesaria, procura aprender esta arte, bem como adquirir equivalência ao Ensino Secundário, com a mais-valia de o integrar no mercado de trabalho. No total, segundo
o
Formador
Serafim
Lima,
actualmente, cerca de 10% dos formandos terão familiares que trabalham nesta área. O Centro de Formação Profissional tem acompanhado a inovação tecnológica operada na indústria da ourivesaria, introduzindo, para Fig. 48 – Peça realizada pela técnica de micro-fusão.
tal, novos processos de fabrico, técnicas e equipamentos tecnológicos mais avançados.
As peças fabricadas pelos formandos são, essencialmente, criadas a partir da protoimagem rápida. Método este que, a partir das novas tecnologias, consiste no esboço digital do artefacto a produzir. Posteriormente, as peças são produzidas a cera e metamorfoseadas num metal nobre. Nesta escola, os formandos já estão familiarizados com a técnica da micro-fusão, mais conhecida como prática de injecção. É um método de fabrico muito usado nas últimas duas décadas e que
Fig. 49 – Máquinas utilizadas na técnica de micro-fusão.
consiste na criação de um molde, na armação do objecto, que permite uma
57
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
fácil reprodução das peças, aligeirando o processo de manufactura. No que concerne aos equipamentos eléctricos são frequentemente usados nas aulas de Ourivesaria-Filigrana, leccionadas pelo Formador Serafim Lima. No caso da filigrana, usam os cilindros eléctricos ou laminadores. Para torcer os fios juntos, excluindo o processo artesanal, usam a máquina eléctrica, saem os fios que serão torcidos. Posteriormente, o fio é batido com o cilindro eléctrico. Para além destes equipamentos são usados outros, tais como, o balancé hidráulico ou a máquina a laser, utilizada para soldar peças sem solda. Porém, apesar da conjugação entre a vertente artesanal e tecnológica, a formação profissional não deixa de perder o seu cariz tradicional, bem como as raízes da filigrana.
58
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Conclusão O objectivo inicial deste trabalho prendeu-se com o estudo da origem do ouro, desde as suas raízes proto-históricas no Noroeste Peninsular até à actualidade. Efectivamente, a privilegiada posição do território nacional, mais especificamente a região do Norte, bem como a fertilidade e riqueza dos solos, já outrora evidenciada por Estrabão, contribuiu para o desenvolvimento e triunfo deste ofício. Por outro lado, também o favorável contexto socioeconómico que, consequentemente, possibilitou o aproveitamento e desenvolvimento metalúrgico, conduziu ao seu florescimento. De facto, a introdução da metalurgia no espaço Ibérico remonta ao III milénio a. C. e são perceptíveis as influências procedentes dos mercadores do Mediterrâneo Oriental que se traduziram numa crescente hierarquização social, reflectindo poder e prestígio de quem possuía adornos em ouro. Também do Mediterrâneo proveio a filigrana, sendo que, por outro lado, o estampilhado e o repuxado adveio da Europa Central. Esta influência reforçou, sem dúvida, a tradição indígena de jóias maciças ornamentadas com figuras geométricas bem como por formas simples. É evidente que a ourivesaria se afirma como uma arte distinta, tendo conquistado privilegiados lugares em inúmeras civilizações. O uso de adornos em ouro poderá conter diversos significados, pois para além do seu avultado valor, são objectos que comportam consigo toda uma forte componente simbólica, religiosa e até pessoal que é visível desde a Proto-História até à actualidade. Esse simbolismo é transparecido a partir do momento em que o artesão trabalha o ouro, até à confecção do artefacto que, evidentemente, é produzido com todo um conjunto de características típicas desta actividade, que passam pelo pormenor, pela minúcia, paciência e incansável dedicação. Por outro lado, para quem o adquire, muitas vezes espelha uma série de sentimentos que poderão estar relacionados com a peça em si, com a pessoa que a ofereceu ou simplesmente pela simbologia da mesma, que poderá estar patente na sua forma ou tipologia, constituindo, por isso, um interessante aspecto etnográfico. Em Gondomar a técnica da filigrana é envolvida por um forte conhecimento, muitas vezes transmitido de geração em geração, procurando preservar, afirmar e
59
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
valorizar esta riquíssima cultura popular. É impossível falar neste Concelho sem ser feita uma alusão a esta actividade que aqui encontra as suas origens num passado remoto. No entanto e apesar desta actividade económica ser bastante significativa para o Concelho, o número de oficinas e de artesãos a trabalhar nesta arte tem diminuído, devendo-se sobretudo. Por outro lado, verifica-se uma progressão de unidades de estrutura
fabril,
ligada
essencialmente
à
produção
de
artefactos
variados,
correspondendo às solicitações do mercado. A arte da filigrana em Gondomar contribui para a afirmação da sua identidade bem como para a continuidade desta admirada Arte da Cultura Popular, da qual se poderão destacar o coração filigranado e a caravela. Também na Póvoa de Lanhoso esta Arte de manifesta havendo, no entanto, algumas divergências. Segundo as palavras do filigraneiro António Martins de Castro, esta arte em Gondomar é mais fina que a da Póvoa de Lanhoso, que se apresenta mais grosseira. Já os SS em Gondomar são mais pequenos e os designados crespos ou bilros são originários da Póvoa de Lanhoso e não de Gondomar, como muitas vezes se afirma. Esta variedade contribui para o enriquecimento desta Arte, contribuindo para complementar esta técnica, sendo que cada sítio tem a sua tradição. Os adornos em filigrana constituem um vastíssimo conjunto, com diversas tipologias, formas e pormenores, comportando também uma simbologia muito própria que, por vezes, está associada a festividades populares. Para além do adorno pessoal, não deverão ser esquecidos os religiosos, dos quais fazem parte os relicários, preciosas peças, manufacturadas com todo o rigor e precisão por parte do artesão, nas quais, cada pequeno símbolo tem por trás toda uma história e significado. Para complementar os adornos filigranados poderão também ser usadas pedras e esmaltes, contribuindo para embelezar a peça. Face à actual evolução tecnológica, também esta técnica tem vindo a alterar alguns dos seus instrumentos, sendo que alguns deles, já são de uso milenar. De facto, o triunfo da mecanização tem contribuído para a crescente inutilização de determinados instrumentos, como o maçarico de sopro, o carrinho de puxar fio e o cilindro. A introdução de toda esta tecnologia nesta arte popular artesanal deve-se também à
60
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
alteração dos gostos, necessidades e interesses. É visível uma crescente adopção da da produção panificada e seriada. A mais recente inovação, que já está a ser adoptada por alguns filigraneiros no caso de algumas peças passa pela técnica da micro-fusão ou injecção, através da qual de uma só vez é possível criar 50 peças. Apesar disso, é bem visível a diferença entre uma peça de confecção artesanal e uma feita através desta técnica. Para além disso estas peças saem mais abertas e a sua qualidade é, também por isso, bastante inferior. A Arte da Ourivesaria, e mais concretamente da filigrana, apresenta-se como secular e tem vindo a aperfeiçoar as suas técnicas ao longo dos tempos, continuando a apostar no pormenor e minúcia, característica eminente do artesão filigraneiro, bem como na formação de jovens artesãos, para a qual muito tem contribuído o Centro de Formação Profissional da Indústria da Ourivesaria e Relojoaria, sem esquecer a tradição familiar, tão característica desta arte.
61
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Bibliografia CARDOSO, Armando - Manual do fundidor, 2ª ed., Amadora, Bertrand, 1976. CARDOSO, Priscila – Filigrana Portuguesa. Porto: Lello Editores, Lda., 1998. CHAVES, Luís – A arte popular: aspectos do problema. Porto: Portucalense, 1943. CHAVES, Luís – As filigranas. Lisboa: SPN, 1941. CLARK, Grahame - Symbols of Excellence, London, Cambridge University Press, 1986. COSTA, Laurindo – A Organização do Ensino Industrial e Comercial. Tip. Artes e Letras. Porto, 1914. COSTA, Laurindo – A ourivesaria e os nossos artistas. Porto: Costa & Cia, 1917. COSTA, Laurindo – A Ourivesaria em Portugal. Porto: Imprensa Nacional, 1925. FONSECA, Fernando Nascimento da; CASTRO, Luís de Albuquerque e – A Mineração no Norte de Portugal in REAL, Manuel Luís (Coord.) «A Ourivesaria do Norte de Portugal: Exposição, 1984. Porto: Associação Regional de Protecção do Património Cultural e Natural/Associação dos Industriais de Ourivesaria e Relojoaria do Norte, 1987. FREITAS, Manuel de – Filigrana Portuguesa. Bons amigos editores, Lda., Julho de 1994. LIMA, Fernando de Castro Pires – O oiro na quadra popular. Ourivesaria Portuguesa. Porto, 1948. MACEDO, M. Fátima – Raízes do Ouro Popular do Noroeste Português. Porto: IPM. Museu Nacional Soares dos Reis, 1993. MAGALHÃES, Carlos; MARQUEs, Vítor – A Arte da Filigrana em Gondomar. Gondomar: ARGO – Associação Artistíca de Gondomar, 1997. MARTINS, Carla Maria Brás – A Ourivesaria Proto-Histórica de Portugal – Influências Mediterrânicas. Porto, 1996. PEIXOTO, Rocha – As filigranas. Porto: Portugália Tomo II, fac. 1-4, 1908. PEREIRA, Mafalda Pinheiro – Memórias de artesãos filigraneiros de Gondomar. Um património a musealizar? Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Julho de 2008.
62
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
SILVA, Armando Coelho Ferreira da – A Cultura Castreja no Noroeste de Portugal. Paços de Ferreira: Museu da Citânia de Sanfins, 1986. SILVA, Armando Coelho Ferreira da – Proto-História do Norte e Centro de Portugal in “Proto-História de Portugal”. Colecção Universidade Aberta, nº 48. Lisboa: Universidade Aberta, 1994. SOUSA, Ana Cristina Correia de – Metamorfose do ouro e da prata. A ourivesaria tradicional no noroeste de Portugal. Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais, 2000. SOUSA, Ana Cristina Correia de – Ourivesaria estampada e lavrada. Uma técnica milenar numa oficina de Gondomar. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 1997. SOUSA, Maria José Carvalho e - A arte do ouro, Barcelos, Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso 1995. VASCONCELOS, Joaquim – História da Ourivesaria e Joalharia Portuguesa. Porto: s/ed., 1984.
63
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Anexo 1 Glossário
64
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Os instrumentos A análise dos instrumentos será tratada por ordem alfabética e não segundo a ordem de intervenção nas diversas operações ou pela natureza da sua função. Verifica-se uma constância das formas e dos termos dos objectos, continuamente usados ao longo da História da Ourivesaria. As evidências arqueológicas, dado o afloramento de utensílios múltiplos que as escavações vão fornecendo, conduzem-nos para tempos remotos. Destacam-se os martelos em bronze de várias formas, as matrizes "mâchas", do mesmo metal, as bigornas, de extremidades cónicas e planas, as tas e as fieiras, em bronze ou em pedra e que remontam à Idade do Bronze 49. No mundo greco-romano, aos vestígios arqueológicos de oficinas e utensílios, somam-se outras fontes de particular interesse tais como textos, inscrições e representações figurativas de artesãos na escultura. Os Poemas Homéricos transmitemnos o nome dos utensílios usados pelo batedor de ouro: a bigorna, o martelo e as tenazes. Indicam a forma de instrumentos como bigornas, tás, martelos de formato muito idêntico a alguns de ferro usados na actualidade, balanças de mão, cinzéis, punções, identificadores de um artesanato de precisão 50, tenazes de fundição, existindo algumas, ainda hoje, entre os fundidores de metais preciosos. Documentos escritos e iconográficos, dos Tempos Medievais, estabelecem a continuidade do conhecimento do ofício de ourives, essenciais pelo carácter vivo e preciso que transmitem. Os mesmos instrumentos podem ser observados em pinturas e gravuras dos finais da Idade Média que retratam o trabalho dos ourives. A Encyclopédie de Diderot e D'Alembert, elaborada durante o terceiro quartel do século XVIII, encerra esta sintética evolução histórica dos utensílios de ourives, constituindo um importante documento. Os instrumentos inventariados e desenhados identificam-se, plenamente, com os utilizados na actualidade, servindo para ilustrar o texto relativo à análise dos utensílios no nosso trabalho. Por outro lado, a legenda que comportam, revela a permanência, não só das formas mas também do nome dos objectos usados nos últimos trezentos anos na Europa. O Dicionário de Morais Silva, cronologicamente próximo, 49
ELUÈRE, Christiane; MOHEN, Jean-Pierre - Problèmes des enclumes et matrices en bron-e de l'Ave du bronze en Europe occidentale, in "Outils et ateliers d'orfèvres des temps anciens", (...), pp. 1321. 50 GUIRAUD, Hélène - Les orfèvres en Gaule à l'époque romaine, in "Outils et ateliers (...)" pág.79.
65
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
permitiu estabelecer as equivalências ou confirmar alguns termos empregues nessa obra.
Alicates Instrumentos de uso individual, presentes em qualquer banca de uma oficina, destinamse a várias funções, apresentando configurações distintas nas extremidades. Normalmente são de aço, podendo conter um revestimento de plástico nas hastes da pega,
suavizando
a
pressão que a mão exerce sobre o objecto. Os alicates de corte são utilizados para cortar fios até um milímetro e meio de espessura, capacidade superior à das tesouras. Mais susceptíveis de confusão são os alicates e as tenazes, de diversos tipos, com formas e utilidades idênticas, nomeadamente de dobrar, voltear ou segurar. Os alicates têm um papel preponderante no fabrico das argolas, aros e ganchos de suspensão para brincos e pendentes, servindo, nestes casos, para fazer dobrar e voltear os fios de metal.
Apanhadeira ou enleadeira Instrumento
com
uma
peça
cónica rotativa, que tem como objectivo enrolar o fio de ouro ou prata, formando uma madeixa, para recozer ou ser trabalhado.
66
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Balança É um dos primeiros utensílios usados no fabrico das peças, recorrendo-se a ela na pesagem
dos
diferentes
metais
que
compõem a liga. A sua importância é acrescida na medida em que o peso do ouro é estabelecido por lei e o seu rigor equivalente à legalidade ou não da jóia é controlado nas contrastarias. Existem vários tipos de balanças numa oficina. As balanças de mão ainda hoje utilizadas mas apenas em pesagens de menor calibre; as balanças de duplos pratos eram já conhecidas dos egípcios; a balança de meia precisão, formada por uma base de madeira ou fórmica e uma alavanca em forma de cruz, que sustenta os pratos e que guarda na parte superior a tabela de marcação. Tem uma sensibilidade de 10 mg e uma capacidade de 100 a 250 g. Actualmente, os metais são pesados nas balanças electrónicas, preferidas pela sua maior precisão, sensibilidade e capacidade na pesagem dos metais.
Balancé Instrumento com dois braços e respectivos pesos dispostos
nas
extremidades,
usado
para
a
estampagem de peças mediante um processo repetitivo.
67
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Banca do ourives Banca de trabalho do artífice, em madeira e com formato rectangular. A parte superior da banca apresenta uma placa ogival de ferro que facilita o trabalho do artífice – local onde são colocadas as peças para trabalhar e mesmo depois da soldadura. A mesa é composta por três gavetas, local onde acondicionam os utensílios necessários ao fabrico das peças sendo de destacar as ferramentas, materiais de trabalho e depósito da limalha. Esta peça de mobiliário, geralmente colocada junto à janela para facilitar a incidência da luz, é igualmente conhecida em Gondomar por banca de caixão.
Bigorna/Tás Objecto de ferro ou aço, composta superiormente por uma tás plana ao centro, de superfície lisa e duas salientes, uma de forma cónica, outra piramidal, possui uma extremidade aguçada destinada a fixar a peça a uma base de madeira ou cepo. Este, de aspecto por vezes tosco, apresenta uma estrutura cilíndrica ou quadrangular. A forma da bigorna corresponde a uma estrutura fixada no tempo. A tás distingue-se da bigorna pela ausência de hastes nas extremidades, reduzindo-se a uma superfície plana, de aço, de dimensões normalmente superiores às da bigorna. Os dois instrumentos, de uso colectivo, encontram-se invariavelmente em oficinas de ourives ou de ferreiros. Destinam-se a bater chapa, aperfeiçoar peças e rebitar. No fabrico das peças ocas, emprega-se a tás em detrimento da bigorna, durante a estampagem das chapas.
68
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Bitola Instrumento que serve de medida e molde para fazer círculos de fio.
Buchela ou pinça Ferramentas de uso individual, de ferro ou aço, servindo para colher, escolher, curvar e enrolar fios de filigrana, segurar pequenas peças ou montar outras. Variam em função das extremidades mais pontiagudas ou mais largas. A diferença entre buchela e pinça reside na largura de uma e outra, maior no caso da primeira mais delgada e fina na segunda. Os ourives de Gondomar e Póvoa de Lanhoso51 empregam com mais frequência o termo buchela quando se querem referir a este objecto. As faces interiores das pinças são normalmente estriadas de modo a prender melhor a peça quando esta está a ser trabalhada.
Buril Utensílio em ferro com cabo de madeira, utilizado para cortar e gravar os metais.
51
Este fio [de filigrana] delicado, preso pela pinça (ou biixela) do ourives (...). SOUSA, Maria José Carvalho - A arte do ouro, Barcelos, Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso, 1995, p. 19.
69
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Cadinho Objecto de fundição, de uso colectivo na oficina. Consiste num recipiente de barro refractário, preparado
para
aguentar
temperaturas
muito
elevadas sem sofrer alterações. Podem ser de vários tipos e tamanhos52, em forma de meia esfera, quadrangular no exterior e interior de meia esfera ou cónica,
situação
mais
frequente nas oficinas
gondomarenses, onde são apelidados também de vasos de fundição.
Candeia Alimentada a petróleo. É utilizada para soldar as peças e é constituída por duas biqueiras com larguras distintas: enquanto a mais larga serve para soldar, a estreita arde incessantemente e é usada para acender a primeira biqueira. Trata-se de um processo ancestral, anterior à utilização do maçarico bucal, actualmente em desuso.
Carrinho de puxar o fio Instrumentos de madeira rectangular composto por dois rolos dispostos nas extremidades e uma manivela. Aparelho usado para esticar o fio de
52
COUTO, João; GONÇALVES, António M. - Ob. cit., p. 52.
70
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
metal, com o auxílio de uma tenaz, no qual o fio é puxado e enrolado trespassando o fio pela fieira e pelos rubis.
Cilindro ou laminador Aparelho constituído por dois cilindros ou rolos sobrepostos,
ajustados
por
um
sistema
de
accionamento em paralelo que lhes dá a separação desejada. O sistema de funcionamento pode ser manual, sendo a peça movida por uma manivela instalada lateralmente, ou eléctrico, o mais utilizado actualmente pela sua rapidez. A engrenagem faz movimentar os dois cilindros, entre os quais se faz passar a barra longa de metal. O processo é repetido várias vezes, proporcionando
a
alteração
da
largura,
comprimento e grossura do mesmo. A esta operação dá-se vulgarmente o nome de estirar ou laminar. Os laminadores podem ser de vários tipos e recebem diferentes denominações em função do perfil de rolos que comportam. O cilindro de chapa possui rolos lisos e serve para estirar chapa ao comprimento e largura, é o mais utilizado na produção de peças ocas. Os laminadores de fio apresentam sulcos de forma quadrada ou meia cana, com larguras variadas ordenadas em decrescente e destinam-se a produzir fio. Podem ser designados como cilindro de fio quadrado e cilindro de meia cana, respectivamente.
Concha de solda Chapa de sobre em formato circular. Usada para amassar a solda pelo artesão.
71
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Cunho, “ferros” ou matrizes Os cunhos são objectos de bronze, ferro ou aço, que apresentam superiormente e em médio-relevo, o modelo da peça pretendida. Leite de Vasconcelos referiu-se à produção de peças ocas, estampadas com cunhos de aço, ferro e bronze, provenientes de indústrias caseiras que se exerc[iam] em Gondomar, Avintes, e outras terras vizinhas do Porto 53. Esta frequência na utilização de cunhos de bronze no tempo deste Autor, não se conservou ao longo do século XX, pois o ferro e sobretudo o aço se sobrepuseram à sua utilização por razões económicas e técnicas. Tecnicamente, os cunhos usados para moldar chapa são batidos directamente com um martelo pelo anverso, diferindo do trabalho efectuado no balancé. Este tem como função cortar e/ou estampar uma peça, através do uso de moldes em aço que são presos no aparelho. Trata-se de um processo mecânico, pelo qual se faz repetir continuamente o mesmo movimento, obtendo-se desta forma um número superior de objectos num espaço de tempo inferior ao conseguido com o martelo.
Embutideira Peças em aço ou madeira, de forma circular ou rectangular, que apresenta cavidades de diâmetros, profundidades e feitios distintos que se destinam a dar uma forma côncava às peças, sendo de destacar, por exemplo, as contas de ouro, os corações de Gondomar e outras peças decorativas. Esta peça é também conhecida como covadeira na Póvoa de Lanhoso, ainda que este possua nesta localidade cavidades semi-esféricas amplas. 53
VASCONCELOS, José Leite de - A figa. Porto, 1925, p. 66.
72
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Embutidores Utensílios de aço, com corpo cilíndrico e extremidade esférica, de diferentes tamanhos. Também conhecidos por covadores na Póvoa da Lanhoso.
Escovas Toda a oficina possui vários tipos de escovas constituídas por distintos materiais, consoante a sua função. Existem as de uso individual, utilizadas para limpar as peças, escovar a mesa, estilheira, mãos, recolher a limalha 54 e todos os recortes dos objectos para uma das extremidades da gaveta de trabalho. São compostas por duas partes, uma de madeira, redonda, outra de pêlos muito macios, de origem sintética ou animal. A sua configuração facilita o acesso dos seus filamentos até às partes dos objectos e do caixão mais difíceis de alcançar, possibilitando uma recolha das partículas mais eficaz. As escovas de uso colectivo, destinam-se a ensaboar e a brunir as peças na fase de acabamento da obra. Para ensaboar a escova é de madeira, com um cabo comprido para o seu manuseamento e pêlo macio de animal. Para brunir utiliza-se uma escova de latão com cabo também de madeira que se faz passar várias vezes pela peça.
54
Limalha é o conjunto de pequenas partículas de metal que se vão libertando das peças quando estas são limadas, cortadas ou serradas, e que se depositam numa das gavetas ou caixões (assim designados) da mesa de trabalho.
73
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Estilheira Objecto de madeira, em forma de cunha, colocada na cavidade frontal da banca do ourives. Este utensílio serve para apoiar as peças no decurso das actividades do artesão. Por exemplo, este utensílio serve de suporte durante o processo de limar a peça.
Ferro de crespos Utensílio que une, em cone, os fios de filigrana que se vão enrolando em torno do ferro, sendo que a cavidade interna do instrumento apresenta uma terminação cónica formando espirais de filigrana.
Fieira ou damasquilho São pequenas barras rectangulares de ferro ou aço, de tamanhos diversos, com pequenos orifícios graduados dispostos em ordem decrescente. As placas apresentam uma escala em décimas de milímetro e a cada um dos buracos é atribuído o número correspondente ao seu diâmetro. As fieiras são de uso colectivo e servem para estirar ou puxar fio. Os orifícios podem ter diferentes perfis, consoante o tipo de fio que se pretenda obter, embora os mais utilizados sejam os redondos, quadrados, triangulares de meia cana e ovais. No caso
74
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
específico das peças ocas, usa-se preferencialmente o fio redondo para o fabrico dos sistemas de suspensão das peças, nomeadamente de brincos e pendentes. A diferença entre fieira e damasquilho, reside no tamanho dos orifícios, maiores para a fieira, mais pequenos para o damasquilho. A distinção é conhecida na Póvoa de Lanhoso onde, em ordem decrescente, pelo tamanho destes orifícios, o fio é passado por duas barras de aço-fieira e damasquilho55.
Forno de fundição A velha forja, regulada do exterior através de foles,
desapareceu.
São
conhecidos
fornos
activados por foles desde a Proto-História. O tipo de forno mais comum, de forma côncava e circular, era forrado por uma camada de argila. No seu interior era colocado carvão vegetal e os cadinhos com os metais a fundir, cobrindo-se tudo
com argila.
Do
seu
interior
partia,
igualmente, uma tubeira que ligava directamente ao fole, colocado no exterior, onde era trabalhado pelo artífice56. O engenho, continuado pelos ourives greco-romanos que usavam um sistema de sopro, por meio de foles, para atear o fogo na forja57, manteve-se em uso contínuo até ao século XX, pelo menos em Portugal. O seu uso está cuidadosamente documentado nos finais do século XV e por toda a centúria seguinte. A descoberta de novos combustíveis no século XIX, consequência da Segunda Revolução Industrial, inutilizou este sistema velho de séculos; o grande forno foi substituído por outros mais pequenos, conhecidos em Gondomar como vasos 55 56 57
SOUSA, Maria José Carvalho e - ob. cit., p. 21. MARTINS, Carla Maria Braz - Ob. cit., p. 82. CARDOSO, Mário - Das origens e técnicas (...) p. 41
75
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
de fundição, primeiro a petróleo, depois a gás butano e actualmente a electricidade, fornos eléctricos escolhidos pela rapidez, eficácia e limpeza que proporcionam.
Laminador Aparelho formado por dois cilindros de aços sobrepostos, cujo funcionamento pode ser manual (os cilindros são accionados por uma manivela) ou eléctrico. Este instrumento serve para estender ou estirar a barra metálica alterando, desta forma, as dimensões da liga que se pretende trabalhar. Os laminadores podem ser de dois tipos: de chapa (para laminar) e de fio (para produzir fio).
Limas e limatões São ferramentas de uso individual, com um corpo estreito e oblongo de ferro ou aço e uma haste do mesmo metal. Algumas limas são revestidas com um cabo de madeira na zona da pega, de forma mais regular e menos agressivo para a mão. Servem para desbastar ou polir metais, acção levada a cabo por meio das asperezas ou pequenos picos dispostos em fila e de forma ordenada. Podem ter várias formas, embora as mais utilizadas em ourivesaria sejam as redondas,
76
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
quadradas e planas, de meia cana e triangulares. O seu destino e aplicação dependem do tamanho dos picos que podem ser finos, semi-finos ou grossos. De todas as limas existentes numa oficina destaca-se a "lima de solda", de grandes dimensões e picadura muito grossa, usada para desbastar e, consequentemente, reduzir a pequenas partículas a barra de metal especialmente preparada para a solda. Os limatões diferem das limas apenas no tamanho. São instrumentos pequenos, de ferro ou aço, com um braço redondo do mesmo metal. Tal como as limas, apresentam perfis variados e distintos graus de aspereza. Têm a mesma função das limas, são utilizados preferencialmente em peças pequenas e delicadas. São os que se empregam nas peças ocas, especialmente para limar os rebordos após a soldadura das duas faces que constituem a jóia.
Maçarico de sopro Instrumento de uso individual, de metal, oco e aberto nas duas extremidades. A sua forma, comprida e arredondada, curva-se em "bico de cegonha" na parte inferior. Serve para soldar, recozer58 e fundir pequenas quantidades de ouro e prata. Soprando na parte superior, o artífice coloca o maçarico entre a candeia e a piúca, controlando a direcção e quantidade do fogo sobre a peça trabalhada. Pelo modo como é utilizado, este objecto é também conhecido na Póvoa de Lanhoso por maçarico bocal59.
58
Designa-se por recozido, em Ourivesaria, o processo destinado a aquecer o metal de forma a torná-lo mais maleável e fácil de trabalhar. 59
SOUSA, Maria José Carvalho e - Das origens e técnicas (...) p 19
77
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Maçarico, entre ourives, he canudo retorcido, com que soprão o lume de huma candeia contra apeça da filigrana, que querem soldar sobre huma taboa 60 segundo a definição de Morais Silva que, além demais, nos informa sobre o processo de soldadura das peças contra uma tábua. Curiosamente, o termo não consta no dicionário de Francisco Coelho, escrito um século depois. É conhecido na Póvoa de Lanhoso por maçarico bucal.
Martelo ou maço de madeira Uma das ferramentas mais utilizadas nas oficinas, os martelos servem para bater, aplainar, rebitar e pregar. São constituídos por duas partes, uma de ferro ou aço, vulgarmente conhecida por cabeça e um cabo de madeira para o seu manuseamento. Podem ter uma ou duas cabeças, apresentando estas várias dimensões e formas, das quais o artífice tira o devido partido; de cabeça redonda de um lado e meia esfera no outro, redonda e plana, em forma de cunha, quadrangular ou redonda dos dois lados61. Tratam-se de utensílios de uso milenar, inicialmente de pedra, cobre e bronze e mais tarde de ferro. O seu emprego está perfeitamente documentado nos tempos históricos,
revelado
pelas escavações arqueológicas,
documentos escritos e
iconográficos, nomeadamente esculturas em relevo, pinturas e gravuras. O martelo utilizado na estampagem das peças ocas tem duas cabeças iguais, largas e quadrangulares, podendo estas ser usadas indistintamente sem requerer uma atenção especial por parte do artífice. Com a mesma função dos martelos, os maços, objectos de madeira com cabeça cilíndrica, substituem os martelos em chapas e fios mais finos, por serem mais macios e não deixarem marcas. 60
SILVA, António de Morais - Ob. cit., II, p. 39. Sobre este assunto consultar os desenhos incluídos na L'Encyclopédie. Orfèvrerie Joaillerie de Diderot e D Alembert, num fascículo recentemente publicado, onde se apresenta uma série de martelos de diferentes perfis e tamanhos, tratados com grande cuidado e pormenor. Acrescente-se, que a terminologia empregue é a mesma que se utiliza na actualidade. DIDEROT" DALEMBERT - Ob cit 61
78
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Micrómetro Instrumento de medição, de uso individual. Consiste num pequeno objecto de ferro ou aço, com um corpo giratório munido de uma escala graduada, destinado a medir a espessura dos metais em chapa ou fio. É de grande eficácia, tendo uma precisão de vai do milímetro à centésima de milímetro62. Durante o processo da laminação o micrómetro é constantemente utilizado, servindo para regular a espessura da barra à medida que esta vai sendo passada nos cilindros.
Palito Artefacto esguio e delicado, de pequena dimensão, utilizado para aplicação de solda ou esmalte nas peças. Termo popular conhecido nas oficinas de Gondomar e nas da Póvoa de Lanhoso. Também designado de estilete.
Pedra de esmeril A pedra de esmeril é um bloco de corindon63, talhado de forma rectangular. Trata-se de um mineral escuro e granular e que, devido à sua grande dureza e abrasividade, é usado no
62 63
LLORENTE, J. L. - ob. cit., p. 25. Óxido natural de alumínio (AI2O3).
79
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
desbaste e polimento de pedras preciosas64 e metais. É usada para limar e polir superfícies, daí ser conhecida, pelo menos na oficina estudada, por "pedra de polir". É um instrumento bastante utilizado no fabrico das peças ocas, nomeadamente na preparação de cada uma das faces que compõem a jóia, antes da soldadura. A forma oblonga da pedra permite o apoio das peças sobre essa superfície; através de movimentos regulares e contínuos, o artífice faz alisar os bordos das duas metades, intercalando esta operação com o emprego de uma lima.
Pião Instrumento
tradicional,
utilizado
para
fazer
perfurações. Composto por uma vareta de ferro e punho de madeira unido por uma corda que faz girar a agulha, colocada na parte inferior da vareta. Utensílio igualmente conhecido por furador de mão ou de corda e conhecido na Póvoa de Lanhoso por bomba.
Piúca Consiste num utensílio de uso individual do qual fazem parte os seguintes elementos: uma base de madeira ou arame retorcido, a servir de pega e uma chapa fina e plana, sobre esta, que sustenta um emaranhado de arame redondo, muito fino, em forma de cabeleira. De acordo com o seu aspecto, este objecto é designado em Travassos por "aranhola", só assim chamada nesta freguesia. Serve de suporte às operações de soldadura, de recozido e, no caso concreto das peças opadas, à vitrificação do esmalte aplicado sobre elas.
64
Dicionário de Mineralogia (...), "Esmeril", p. 73.
80
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Pincel de soldadura Trata-se de uma pequena peça de metal, plana, larga numa das extremidades e muito fina na outra, utilizando-se esta última para a aplicação da solda ou do esmalte nos pontos desejados.
Punção Barra de aço que apresenta, em negativo, a marca/contraste do fabricante de filigrana atribuída pela Contrastaria. A punção de marca é utilizada pelos artesãos para cunhar os objectos de metais nobres.
Rilheira Utensílio de ferro ou aço, de forma rectangular, destinado à obtenção de uma barra de metal maciça. Contém no seu interior diferentes aberturas, nas quais se verte a liga fundida. Os orifícios são mais ou menos largos, conforme se prestem a moldar barras para a obtenção de chapa ou fio. Os moldes para dar a forma de uma barra ao metal fundido eram já utilizados pelos metalúrgicos proto-históricos, podendo ser de pedra, argila e, mais tarde, de bronze65. 65
MARTINS, Carla Maria Braz - Ob. cit., p. 83
81
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Rubi Utensílio circular que apresenta orifícios de tamanhos diversos e se destina a estender o fio muito delgado.
Serra de mão É formada por quatro elementos essenciais, indispensáveis ao seu manejamento: uma pega de madeira, cilíndrica; um braço quadrangular de metal destinado à montagem; a serra propriamente temperado,
dita,
actualmente
podendo
apresentar
de
aço
diferentes
calibres e os tourets ou roscas, em forma de borboleta. A serra de mão inclui-se nos utensílios de uso colectivo. É uma ferramenta fundamental no fabrico de peças ocas, constantemente empregue no processo de eliminação dos rebordos da chapa de metal, depois de estampadas as duas metades da jóia.
Tenaz As tenazes são ferramentas de ferro ou aço, de tamanhos diversos e que servem para uma gama de operações bastante variada. Podem ser de uso colectivo ou individual, consoante a função específica a que se destinam. No primeiro caso, incluem-se as tenazes de fundição, de corpo estreito e alongado, usadas para retirar os cadinhos da forja ou prender
82
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
um objecto ou barra de metal que vai a revenir e as tenazes de estirar, menos compridas mas mais largas e robustas. Estas são presas num banco de estirar e servem para puxar o fio de metal. Possuem estrias no interior da boca de modo a impedir a movimentação dos fios ou chapas durante a operação e o braço superior é curvo para evitar que a mão do artífice escorregue quando estiver a estirar. As tenazes de uso individual são mais pequenas, servindo para dobrar, voltar, sujeitar e recortar fio ou chapa. São normalmente de aço e têm uma pega em meia cana. Tal como os alicates apresentam vários tipos e confundem-se por vezes com eles; usadas, entre outras funções, para segurar as peças que vão a limar ou redonda, com forma cónica, servindo para dobrar fio e dar-lhe essa configuração. Podem igualmente ser utilizadas, junto com os alicates redondos, para produzir os sistemas de suspensão de brincos e pendentes no caso particular das peças opadas.
Tesoura Encontram-se dois tipos de tesouras numa oficina; as usadas para cortar chapa, soldadura e fios e as que servem para recortar chapa, de pontas mais estreitas e finas. Os dois tipos são de aço
e as primeiras,
de
uso
colectivo,
são
normalmente maiores do que as segundas, de uso individual.
83
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Anexo 1 Glossário
84
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Entrevista realizada a António Martins de Castro
1 - Desde quando é que trabalha com a filigrana? Eu comecei aos 24 anos.
2 - Foi por sua iniciativa ou foi por transmissão familiar? Não não, primeiramente andei fora a aprender. Eu andei a aprender a uma distância daqui (Jovim) a Valbom, ou seja, de Aguiar de S. Cosme, aquilo que será 3 quilómetros.
3 - Ia a pé para lá? Ia a pé e vinha pra cá. Desde segunda a sexta… a sábado. E assim foi que, eu depois da quarta classe, é evidente, (…) o que eu escolhi foi sempre isto, foi ourivesaria. Pra mim, trabalhar num metal precioso foi sempre a minha, minha inspiração, assim como, eu na minha mocidade tenra, da idade, dedicava-me muito a desenho… e pintura, não a óleo, a aguarela, aquela mais baixa. E, no entanto, daí ressentiam-me sempre coisas boas ao meu pensamento e gostava daquillo que fazia, embora corrigia não é? Depois da coisa feita, entendia que havia uns erros… conseguia safá-los. E assim foi a minha vida durante esses anos, até que a inspecção, fui obrigado evidentemente, depois daí fiquei livre, não fui tropa. Ora, aproveitei logo o andamento de a minha arte que hoje é a que eu tenho nas minhas mãos. Fui solteiro até trinta e…cinco, quase a entrar nos trinta e seis é… casei com, quase com trinta e seis anos, poucos meses faltavam. Já me tinha estabelecido, trabalhava, portanto directamente com a Rosas de Portugal, aqui de Gondomar… claro que a gente éramos diversos mas eles começavam a ver de tal modo a filigrana em prata que, como sei, (…) a pedir em ouro, que não tinham e fizeram a experimentação e aquillo foi um êxito muito grande para eles e para mim, porque os preços eram outros e a perfeição da prata é sempre mais um bocadinho… enfim, deixase passar qualquer defeito, não é? Mas a de ouro não, a de ouro foi muito, sempre muito
85
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
perfeita. E assim andei décadas, de anos sempre com o ouro. Depois daí assim, então, dei um salto à Grande Lisboa, estava no Grupo C, ainda não estava no Grupo A. Mas, claro, ia-se fazendo, enfim, o que se podia, da maneira que a lei, enfim, estava estipulada. Começaram a ver tais peças que não havia mãos a medir, até dinheiro adiantado me davam… havia dinheiro adiantado me davam, eu vivia numa aldeia, bastante remota e de maneira que, toda a minha vida, nunca falsifiquei o metal precioso. Não tenho remotos de nada disso, nada! Até hoje, até hoje com 82 anos, 83… poucos meses faltam para 83 anos. E assim foi sempre, prontos, comecei então os meus irmãos também trabalhavam comigo, depois também comecei a meter empregados e dei o passo, enfim, um mais pequeno, outro maior, outro maior, até que, sinceramente, da idade que estou não julguei fazer tais peças que estão apresentadas por esse mundo além.
4 - E actualmente que tipos de peças é que produz? Trabalha em ouro e em prata não é? Sim, desde depois que se arrumou a prata foi sempre em ouro. Atravessei duas crises. Antes do 25 de Abril uma, com o 25 de Abril duas… agora falemos nesta não é? Mas das duas não houve problemas, venci sempre, com toda a verdade! Que mudei para uma…um sistema de design que eles gostaram muito, como eram peças que nunca tinham vistas. Prontos, usavam-se muito aqueles alfinetes, que até muito bem ficava na mocidade feminina, muito bem, ficava, e era regra geral que mais se via sempre os colares, os alfinetes, os brincos, sempre… muito bem apresentados que, eu apresentei, posso dizê-lo em voz alta e bom som, com verdade que, alfinete em folha, a folha só, não com o… a flor, a folha! E eles ficaram muito admirados de eu ter essa invenção e então isso foi trabalhar pra frente… foi trabalhar pra frente, isso posso dizer. E prontos, assim fui conhecido até à Grande Lisboa, desde o Porto a Lisboa, não é assim? Que pra frente não, nunca fui ao estrangeiro, nem tínhamos possibilidades. Agora, há uns anos, já recebemos aqui assim gente estrangeira porque através das Câmaras, da Contrastaria, eles perguntam aonde é que estão esses ourives dessas peças e eles enviam então pra cá, telefonemas, se pode receber, ou a própria Câmara, não é? O Pelouro da Cultura que já
86
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
me conhece, tanto que esta última vez que o historiador, José Hermano Saraiva, que entrou dentro, coisa que em Gondomar, fui a única casa que ele filmou e terminou o filme de Gondomar. E quero dizer, foi sempre portanto, calmo e como repito, nunca falsifiquei, nem nunca me pensei (…) sabia qualquer coisa, ouvia-se… ouvia-se, mas eu, a gente não somos deste mundo, temos de dar contas a Deus e falsificar a matéria-prima é muito perigoso. Nunca tive a ambição de grande riquezas, mas os anos já vão largos.. claro, a fortuna faz-se através dos anos e fomos então, quer dizer, empregados.. falando então, também esta posso dizê-la com verdade, todos gostaram de mim! Nunca mandei um empregado embora. Até hoje, completavam aqui 20 e tal anos, quase 30 anos e ainda cá estão, outros saíram porque quiseram, evidentemente, mas que eu mandasse despedir (…) por qualquer motivo, não senhor! Tenho muito amor à arte, ainda hoje tenho. E gostava sempre que a peça saísse sempre pras mãos de quem fosse, pras Ourivesarias ou Armazenistas, não é? Que fossem seguras e perfeitas e ensinei (…) nunca me recusei de ensinar bem, pra que eles um dia fossem também mestres. Disponibilizei sempre o possível que eles me pediam, etc, etc. agora somos conhecidos, estou na Agenda dos Correios 2004. Estou, portanto, como artesão das 7 Maravilhas de 2007, foi a minha peça alusiva às 7 Maravilhas foi Igreja Monumento S. Francisco de Assis na Ribeira de Porto, foi reconhecida como a peça mais célebre de apresentação (…) das 7 Maravilhas, tenho-a aqui no escritório. E eu então, acabei por não a vender, fiquei com ela. E ele então, ficaria com as 20 e completava a 21 não, porque tem uma cá em casa... e não tenho… sentido ou tendo, enfim, um valor e quero que os meus netos, os meus netos já sabem, se eu chegar a ter bisnetos então esses é que vão ver se o pai cá ainda estiver. Com respeito a tudo o que diz respeito a ourivesaria, como digo, entre joalharia e filigrana, foi sempre o meu escolhido da minha preferência. Prontos, teve sempre a ética da consciência e, agora estou contente por ter saúde e vida pra me sentar ainda na mesma bancada que há 65 anos que tenho nas minhas mãos.
5 - Há pouco estava-me a falar que tinha uma feitora que trabalhava para si. Na prática, qual é a diferença entre um artesão e a feitora ou a chamada enchedeira?
87
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Portanto, isto é quase como o casamento, não é? A mulher sem o homem não faz nada. Aqueles que estão casados ou os que querem-se casar, nesta arte, quanto masculino e feminino, entrou sempre a mão da feitora. Nisto tudo no meu tempo pra cá, agora naquele que já estava passado não sei, como… se era na mão do homem ou se era por meninas, evidentemente, se estavam casadas ou solteiras. Eu tenho uma feitora que já tem… é mais velha do que eu, ou seja, mãe de uma feitora, que é só meio ano mais velha do que eu, ainda está viva e a filha emendou à mãe, já está com os seus 50 anos quase à porta e ainda é feitora desta casa, desta oficina, assim como ela, diversas que temos… não posso estar agora a dizer Maria ou a Rosa, não é?
6 - Para si que motivos é que podem explicar o facto de uma arte tão artesanal ainda hoje conseguir subsistir? Olhe isto, como eu digo, que através das crises de maior flagelo em todos os capítulos, de todas as artes são sempre ruins devido a não poder, enfim, fazer o seu trabalho, seja ele o que for. Como digo, eu não temi, até hoje, os empregados nunca foram embora ao fim do mês sem dinheiro. Estou a falar verdades, correcto? Porque empenhei-me sempre no atacar… o fraco, o mal! Ou seja, o bem conhece o mal. E como esse bem vence o mal aí está a minha preocupação (…) ai tem aqui uma peça que nunca se viu.. ai é o que vocês ides fazer! Riscada por mim, como digo, nunca tirei curso de desenho, evidentemente, nem de pintura como eu gostei, tinha quadros bonitos, bem bonitos, em solteiro. Com respeito então a tudo quanto é da peça, enfim, o que uma senhora usa, evidentemente, desde a pulseira ao colar, desde o colar aos brincos, desde os brincos aos anéis… tudo isto sai da preocupação e da inovação que a gente na nossa cabecinha vai puxando… se não puxar ficamos, então, parados no tempo e nunca tive essa dificuldade, não ter como, claro, estes relicários, que a menina viu, pessoas que nunca virão (…) o Historiador, o Senhor Professor, o José Hermano Saraiva, disse “eu estou fascinado de ver uma coisa destas” foi as palavras quando ele (…) à ponta desta bancada numa camila com uma toalha de linho e o oratório em cima e ele ficou assim… muito céptico a olhar pra peça e então diz: “quem é o vendedor?”; e eu disse, é o meu filho.. e ele “onde está?”… não “como se chama?”; é Joaquim Fernando; “ ele onde está?”; e eu
88
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
assinalei pra’quela parte da oficina (…); “então chame-o”; e então chamei e… e ele disse que queria comprar e ao tempo que então ele disse que queria comprar, peguei disse olha filho, tu fazes como fizestes ao Senhor Abade Vaz de S. Cosme que, fez o abatimento, com muita honra porque foi, parti ano de lá, eu nasci lá, baptizado em s. Cosme, Gondomar e fazes assim ao Senhor Professor por a honra muito grande e estima de o ver em minha casa, em nossa casa! E ele então pega e diz: pronto então aguarde um bocadinho que eu vou saber a cotação do ouro e então foi ao escritório, e então telefonou para o Porto (…) pediu a cotação e fez então o abatimento como eu lhe disse.. faz o mesmo abatimento da peça depois de tar também o ouro totalmente… estar ao peso que estava (…) e chegou-me o papel e então eu apresentei ao Senhor Professor e ele olhou pra mim e diz: “é assim não é?”; “é sim Senhor Professor”; e ele então meteu a mão ao bolso e tirou o livro de cheques e ali na beira daquela janela que está acolá zás zás zás zás… em poucos segundos, entregou-me o cheque e disse pro pessoal que já estava tudo arrumado como está aqui (…) e estava então as feitoras, então é que estavam aqui a trabalhar.. tudo.. e ele então: “oh rapaziada… (…) estais prontos?” (melhor se diga); “estamos Senhor Professor”; “então comecemos”; então começou a filmar tudo aquillo que nós estávamos aqui a fazer na bancada. E então comprou a peça. Comprou a peça. E, claro, outros mais que vêm de fora, da Itália, da Alemanha, Holanda… Japoneses e então, temos a prova ali assim naquele quadro que está acolá, que eles estiveram aqui dois dias, acabou à meia-noite, de fazer aqui o programa de tudo o que nós aqui fazíamos à bancada a ourivesaria de artesão.
7 - Actualmente, considera que é importante continuar a formar filigraneiros? Pessoas que realmente trabalhem esta arte… Afirmo que sim! Afirmo que sim! Porque nós, os finíssimos viriatos que somos, é que então, é que veio à perfeição que, não sei se foram os visigodes ou os guerreiros. Os mouros também, esses eram, portanto, exploradores de ouro, não é? Eram exploradores de ouro. Depois tem o seguimento do quê? Dos visigodes, negócios, essa coisa (…) e o nosso, então, foi aperfeiçoar, a trabalhar, então, as jóias, seja de que tipo fosse, não é? Eu acho que estou dentro da minha através dos livros que tenho lido, através do Oriente,
89
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
que havia uma peça que foi encontrada com 5 mil anos. Agora, naquela guerra de houve no Iraque, apareceram um par de brincos em filigrana também, os senhores ditos, portanto, os resportens… jornalistas, não é? Pois, vincaram e deu por acaso na televisão, naqueles escombros apareceram então. Ora, a filigrana pra mim é secular em todo o mundo. É o artigo mais fino que pode ser, isto é, o trabalho que se mete dentro das peças, como sabe, são dois fios torcidos num. E é acima disto um outro trabalho, isso não. A filigrana em si é esta que se faz até hoje, embora muito rude, que ela era no princípio, mas chegou ao ponto da nossa data em que nós estamos, não é? 2011, numa perfeição (…). Pra mim é o total!
8 - Actualmente, quem são os principais interessados em peças de filigrana? Aah.. quem é? Então, isto é assim mesmo. A peça dá mais, isto pra mim, pra mim, olha para ela e como ela é feita! Não é por aquele brilho que resplandece com brilhantes. Aliás, temos peças com brilhantes também.
9 - Também trabalham com pedras e com esmaltes? Tenho, tenho, tenho. Até tenho-os lá dentro, sim senhor. Coroas também, coroas para imagens… com brilhantes também. Mas, regra geral, é sempre acabado com os mesmos elementos de fracções em cima das peças, não é? Quanto àquele ourives de chapa estampada, enfim. Aliás, temos o cinzelado também entra no artesão. Também evidentemente, é rico. E também está por ordem do Estado pra poder (…) a dita etiquetazinha em como é artesão. E não tenho mais, vá lá que eu possa dizer, sobre o primor de uma peça que toda a gente havia de ter em sua casa, pra mostrar aos seus vindouros como, na realidade, a prata se transforma em obra feita. Porque o pão de que vem? Vem do campo, vem numa espiga de milho, passa por muitos motivos. Assim como o linho pra dar o linho pro altar, dá essas voltas. E é evidente, são as coisas mais ricas que Deus deixou também. Porque não há missa que se possa rezar sem ter a toalha de linho, é evidente. E então, enriqueceu os grandes reis, enfim, nas nações onde havia reinados, os reis, não é? As coroas, é evidente. Como hoje
90
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
também, a Nossa Senhora que é a única no Mundo. A Nossa Senhora tem muitos títulos. Títulos têm fim. E então, faz-se a filigrana na coroa. Apresenta-se o trabalho do artesão, minucioso, finíssimo, cortado numa coroa de tantos centímetros (…) conforme o tamanho da imagem. Porque a coroa é feita através da medida da imagem. E isso conta muito! Depois também se pode por, evidentemente, brilhantes por cima da filigrana. A questão é o que o cliente decida e pronto. Eu fiz, portanto, duas rosas quando fui… os 50 anos da aparição da Nossa Senhora de Fátima, na Cova da Iria e levou um brilhante no fechar da rosa. Foram feitas pela minha mão. Lindíssimas! Dobradas, isto é, não singelas. Primeira e a segunda e a terceira camada de pétalas e no terminal da rosa a desabrochar levava o brilhante em ouro… a garra em ouro branco e o brilhante. Foi atarrachado por causa da filigrana tem de ser corada, não é? E o ouro branco não cora. E eu estudei o estudo muito bem estudado e então foi, de baixo a cima, um canebão com tarracha, e atarrachada por trás e a peça pronta, corada, brunida e o brilhante agarrado já cravado, atarrachei por trás e então foi entregue à Casa Rosas de Portugal. E foi, então, mandado pra Fátima. Eu fui artista dessas peças.
10 - Considera que actualmente, a Era da Industrialização veio de alguma forma denegrir esta arte? Não! Nem só de pão é que vive o Homem. (…) Porque Santo Padre Bento XVI quando veio agora em 2010, exprimiu e disse… as palavras principais, não é? Fé e Arte. E apresentou, portanto, o seu ramo de rosas em ouro à Nossa Senhora de Fátima quando ele cá chegou à Cova da Iria. Portanto, falando e vincando bem isso, portanto, Fé e Arte! E portanto, como se compreende a gente vai a uma cidade, pois se não houver lá Arte, seja Arte Sacra, seja Barroco, seja Gótico, seja Manuelino ou como se possa dizer, não é? Não se torna aos nossos olhos, como é? Aqui não há artistas, é evidente! Vai-se aos mosteiros o que é que se lá vê? Trabalhos notáveis de tal modo. Portanto, a Arte foi sempre, também, escolhida. Porque se bem diga à vossa direita Senhor, a Rainha dos céus ornada de ouro mais fino. Ora, isto ressalta-nos que estas peças têm, como viu este relicário, pode ser benzido. Não se pode benzer uma peça qualquer não é? Mas sim,
91
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
aquillo, tudo aquillo pertence à Casa de Deus. A menina viu aquelas peças, pertence à Casa de Deus! Ora portanto, eu não temo.. não temo e continua, continua tudo, enfim.. olhe, vá lá, desaparece uma maneira dum trabalho que se trabalhava pra cultura ser saborosa, gostosa, mais bem alimentar, com mais vitamina. Isso é que se vai esquecendo e vai desaparecendo. Ele é a mesma melancia, não é? Mas não tem o sabor! Ele é o mesmo melão. Mas não tem o sabor! Porque fogem aos tratamentos da raiz! Porque amanhar a terra temos de a amanhar e alimentá-la. Porque a raiz depois torna-se frágil e não tem vitamina. (…) não dar mimo ao trabalho, à perfeição, se é como um bota fora anda lá que é dez, isso então é como eu digo, toda a gente, como digo e repito e já disse que, esta Arte de Ourivesaria, falando verdadeiramente na filigrana, é secular em todo o Mundo!
11 - E acha que tem futuro? O futuro continua e é um dinheiro sagrado que se ganha fácil, bem sei, que aquele que é mais difícil, é aquele que mais propriedades tem, perante Deus. O sacrifício de ganhar aquele pão. Mas pronto, a gente lamenta, não é? Olha, se fosse nesta Arte não te cansavas tanto e… claro que a lavoura tem o seu… a sua.. o seu Inverno, tem a sua… o Outono, tem a sua Primavera, tem o seu Verão e só no Verão é que se colhe a colheita. E a gente nesta arte de um dia pro outro ganha-se o pão.
12 - Considera que Gondomar é efectivamente o berço da filigrana? Eu digo, pra não ofender ninguém, nem quero! Não quero que, como eu aqui possa dizer. O “S”! O “S” que se preenche as paredes da peça, seja ela de que qualidade for, um alfinete, um anel, um colar, uma escrava, não é? Uma (…) etc. etc. Então, o cartão e o “S”, eu tenho aqui, posso mostrar uma família de cento e tal anos no escritório e tenho lá o jornal! Tenho lá o jornal! Não sei se é o Janeiro se é o Notícias, eu mostro rápido, rápido, rápido! Quanto ao bilro, o bilro, isto é, o crespo. Pode-se chamar o bilro ou o crespo. E então eu digo que foi lá na Póvoa da Lanhoso.
92
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
Porque eu fui ver à Casa da Botica em Póvoa de Lanhoso e quando fui ver então essa exposição, foi muito banal, uma coisinha assim, prontos… uma coisinha muito… fraca! Bem, no entanto, apreciei, gostei mas cá em baixo, na menina que estava o… como se chama? Sacerone e eu disse: “dá-me licença de dizer uma palavrinha acerca do que eu vi cá na vossa exposição?” E parabéns, sim senhor, oxalá que continue, sempre que possam, chamar as pessoas, porque as gerações estão sempre a vir, geração em geração, não é? Aqui nestes… nestes de postes da electricidade está dito nos panfletos.. aquelas placas, não é? A dizer que a filigrana que nasceu aqui. Mas isto não está bem. Isto está muito mal posto e mal compreendido. Porque o bilro que é a coisinha que se enlheia com um ferrinho que faz um botolinho, eu digo-lhe que sim. Mas agora, o cheio, o cheio de “S”, o “S”, que é o cartãozinho no meio depois tec tec, duas vezes e faz o “S” e ela disse: “concordo! Porque já não é o primeiro senhor que me vem falar”. E eu então, e a menina que aqui está aqui presente comigo, digo-lhe que ela me respondeu logo logo. Também já lhe fizeram essa observação. E portanto, o nosso Gondomar é a Capital do Ouro. A maioria dos fabricantes, das oficinas, das pessoas que trabalhavam, das famílias que se dedicavam. Porque do meu tempo, eu sou de uma casa que éramos 13, nasceram 13 irmãos. Haviam com 14, hum? Haviam com números assim dentro do, portanto, uma dezena, 18, 17 e tudo viveu e tudo fez vida. E portanto, o nosso Gondomar, é evidente, foi sempre conhecido por além, mesmo quando eu estive na FIL, em Lisboa, quando entrei então na Agenda dos Correios, quando me disseram, eu tenho-a aqui em casa. Eles enviaram-ma. É evidente também ficou a Rosa Cota de… Barcelos que pinta os Galos de Barcelos (…) tá na minha folha que eu estou. E que tive lá 11 noites, 11 dias e gostei muito dos visitantes de Lisboa gabaramnos muito e que contentes ficavam porque vinham a Gondomar e queriam ter acesso às oficinas pra ver como é que se trabalhava e nós tavamos lá como viu nas fotografias, foi lá na FIL, em Lisboa. Foi numa das (…) foi agora na dita Cimeira da NATO, foi naquele corredor. E então ficaram muitíssimo… a gente fechava era à meia-noite. E então começaram a dizer: “não vendem nada?” e eu disse: “não. Viemos só mostrar como se trabalhava”. “ai não diga, então não se pode e tal?”. Foi quando eu telefonei para o meu filho e então disse: “tem aqui várias pessoas que querem comprar”. E disse pro Joaquim Fernando:
93
Arqueologia Moderna e Contemporânea I Uma Arte da Cultura Popular Portuguesa: a filigrana Maria João Marques
“faz a mala como tu entenderes, com peças mais valiosas, menos valiosas, miúdas e traz e anda que tu tens aqui onde ficar”. Foi quando ele foi e então formou a mesa e então foi até a última peça dentro de um prato trabalhado em filigrana grande… tudo… posta na mesa e tinha uma peça italiana que ela está aqui, o meu filho trouxe de Itália e vem uma menina: “olhe eu queria um lencinho daqueles que andam aí muitos, queria então.”; “o que restou foi esta.”; “ai isso não quero!”. Disse ela logo assim, porque viu que não era portuguesa. E isso posso-lhe dizer, viu logo que não era trabalho português. E portanto, olhe estou muito contente. Só lamento que fomos roubados, como soube, não é? Foi uma coiso muito… foi uma coisa dura! Mas não fizeram mal ao meu filho. O que ficamos foi com um valor muito grande. Não mandamos ninguém embora. Houve empregados que deixaram de comer, choraram… pensando que a gente que os ia despedir e não despedimos! E assim vivemos através destes anos todos, como sabe, seguramente estou a caminhar pra 56 anos de Arte nas mãos.
94