Antropologia Maria de Lourdes Bandeira Otávio Freire
Cuiabá, Mato Grosso 2017
Maria de Lourdes Bandeira Otávio Freire
Antropologia
Licenciatura em Pedagogia Modalidade a Distância
Cuiabá, Mato Grosso 2017
Maria de Lourdes Bandeira Otávio Freire
Antropologia
Licenciatura em Pedagogia Modalidade a Distância
Cuiabá, Mato Grosso 2017
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO MATO GROSSO UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL NÚCLEO DE EDUCAÇÃO ABERTA ABERTA E A DISTÂNCIA LICENCIATURA EM PEDAGOGIA – MODALIDADE A DISTÂNCIA Ministro da Educação
José Mendonça Bezerra Filho Diretor da Educação a Distância UAB/CAPES
Carlos Cezar Modernel Lenuzza Reitora da UFMT
Myrian Thereza de Moura Serra Vice-Reitor da UFMT
Evandro Aparecido Soares da Silva Pró-Reitor Administrativo
Bruno Cesar Souza Moraes Pró-Reitora de Planejamento
Tereza Mertens Aguiar Veloso
Pró-Reitor de Cultura, Extensão e Vivência
Fernando Tadeu Tadeu de Miranda Borges Pró-Reitora de Ensino e Graduação
Lisiane Pereira de Jesus Pró-Reitor de Pesquisa
Germano Guarim Neto Secretário da SETEC/UFMT Coordenador da UAB/UFMT
Alexandre Martins dos Anjos
Diretor do Instituto de Educação
Silas Borges Monteiro
Coordenadora do Núcleo de Educação Aberta e a Distância (NEAD)
Terezinha Fernandes
Coordenadora do Curso de Licenciatura em Pedagogia UAB/UFMT
Maria Aparecida Rezende
B21 4a
Bandeira, Maria de Lourdes. Antropologia / Maria de Lourdes Bandeira, Otávio Freire. – Cuiabá: EdUFMT, 2ª edição, 2010. 95 p. : il. color. ISBN 978 85 61819 11 8 Conteúdo: F. 1 - Campo e conceitos da Antropologia; Correntes do Pensamento Antropológico Bibliografia: p.93-95 CDU – 37.015.2
Índice para catálogo sistemático 1. Educação 2. Antropologia educacional 2ª edição
Capa, revisão e editoração gráfica
Regina Silva
Sumário 8
APRESENTAÇÃO
12
INTRODUÇÃO PARTE I
CAMPOS E CONCEITOS
15
CAPÍTULO 1
SABERES: O LUGAR DA ANTROPOLOGIA
17
CAPÍTULO 2
ANTROPOLOGIA: NOMES E SABERES
23
CAPÍTULO 3
OBJ ETO E MÉTODO
31
CAPÍTULO 4
CONCEITO ANTROPOLÓGICO DE CULTURA
40
CAPÍTULO 5
O OUTRO
46
CAPÍTULO 6
ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO
52
PARTE II
CORRENTES DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO
61
CAPÍTULO 7
EVOLUCIONISMO
63
CAPÍTULO 8
DIFUSIONISMO E CULTURALISMO
72
CAPÍTULO 9
FUNCIONALISMO
77
CAPÍTULO 10
ESTRUTURALISMO E INTERPRETATIVISMO
84
LEITURAS BÁSICAS
93
BIBLIOGRAFIA
93
Lista de Ilustrações
Figura 01
http://w w w .chapad ao dosul.ms.gov.br/imagens%20not/visitca sa02_G .jpg
Figura 02
http://w w w .emac k.com.br/sao/w ebq uest/sp/2004/jorna da s/resulta do/cient/galile
Figura 03
http://ebooks.adelaide.edu. au/d/descartes/rene/descartes.jpg
Figura 04
http://w w w .dea dcentrerecords.com/N DDsmall.jpg
Figura 05
http://w w w .a global.com/lazer/img/evol.jpg
Figura 06
http://w w w .mongabay. com/images/pictures/w ren-shaman-3.html
Figura 07
http://w w w .radialistas.net/imagenes/fotos/1500338g.gif
Figura 08
http://w w w .eb23-diogo-cao .rcts.pt/Traba lhos/bra 500/img/avieir.jpg
Figura 09
http://maha baratha .vilabol.uol.com.br/translation/02032007.htm
Figura 10
http://w w w .mongabay. com/images/pictures/w ren-shaman-4.html
Figura 11
http://anomalias.w eblog.com.pt/arq uivo/cat_humanida de.html
Figura 12
http://w w w .sonofthesouth. net/texas/pictures/eskimo-family-600.jpg
Figura 13
http://w w w .dw -w orld.de/image/0,,1532424_1,00.jpg
Figura 14
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Figura 15
http://w w w .unis.org/class/anthro/IBS_Anthro_2002.html
Figura 16
http://w w w .cetem.gov.br/img/midia/img_not_site_mac ae_26_01_06. jpge
Figura 17
http://w w w .unis.org/class/anthro/IBS_Anthro_2002.html
Figura 18
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Figura 19
http://w w w .britannica.com/eb/art-39040/Ralph-Linton
Figura 20
http://classiques.uqac.ca /classiques/H erskovits_melville/herskovits_photo/herskovits_photo. html
Figura 21
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Figura 22
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Figura 23
http://w w w .a polo11. com/imagens/etc/novo_sistema_solar.jpg
Figura 24
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Figura 25
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Figura 26
http://w w w .a juru.c om.br/ashilaire.htm
Figura 27
http://w w w .vilaboa degoias.com.br
Figura 28
http://anomalias.w eblog.com.pt/arquivo/ca t_humanidade. html
Figura 29
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Figura 30
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Figura 31
http://cienciahoje.uol.c om. br/images/ch/211/3178.jpg
Figura 32
http://cienciahoje.uol.c om. br/images/ch/211/3178.jpg
Figura 33
http://w w w .frederica dela guna. com/biographies/memory1.html
Figura 34
http: //w w w .mnsu.edu/emuseum/information/biography/uvw xyz/w hite_leslie.html
Figura 35
http://w w w .a ndaman.org/BO O K/app-a/a-radcliffe-brow n.htm
Figura 36
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Figura 37
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Apresentação (...) sabemos que nossos instrumentos de trabalho na escola e na sala de aula, isto é, os livros e outros materiais didáticos visuais e áudio visuais carregam os mesmos conteúdos viciados, depreciativos e preconceituosos em relação aos povos e culturas não oriundos do mundo ocidental. Os mesmos preconceitos permeiam também o cotidiano das relações sociais de alunos entre si e de alunos com professores no espaço escolar. K abenguele Munanga (2005 p.15).
A humanidade, no percurso de sua história de longa duração, tem sido confrontada com um desafio ainda hoje irresoluto: a convivência entre povos, entre grupos humanos de línguas, de culturas, de modos de vida muito diferentes. Conflitos como os que ocorrem entre judeus e palestinos, entre cristãos e muçulmanos, entre brancos e negros, entre chineses e tibetanos, eclodem no mundo inteiro. Em nosso dia-a-dia, no bairro, na cidade em que moramos, muitas vezes presenciamos confitos de grande ou de pequena proporção entre crianças e adultos, entre jovens e velhos, entre hetero e homossexuais, entre católicos e evangélicos, entr e os do norte, do sul e do nordeste, entre os de dentro e os de fora, em síntese entre nós e os outros. Nas sociedades pluriétnicas e pluriculturais em que grupos social e culturalmente diferenciados têm historicamente vivenciado experiências de opressão e exclusão, frente a interesses centrais dominantes na visão de mundo colonialista e colonizada ainda operante, os vínculos entre educação e humanização são imperiosamente indispensáveis. Uma educação comprometida com o desenvolvimento civilizatório balizado nos valores do pluralismo, da diversidade, do reconhecimento do direito à diferença, requer uma formação humana de base, solidamente alicerçada na presunção das diversidades e da integração democrática. Os vínculos entre educação e humanização são imprescindíveis ao nosso meio social, pois entre nós circula uma torrente de idéias préconcebidas e temos dificuldade de convivência com a diversidade. Atitudes de exclusão e de intolerância, fontes de incontáveis e inqualifcáveis atos de injustiça, costumam andar juntas, de mãos dadas com a dificuldade de convivência com as diferenças. Reproduzir, consciente ou inconscientemente, os preconceitos que Antropologia 8
vicejam em nossa sociedade e, por extensão, no meio social em que vivemos, implica em ataque aos direitos das pessoas atingidas. As explicações da Antropologia sobre as diferenças, enquanto realidades culturais e enquanto focos de processos de inclusão e exclusão, constroem um referencial consistente para reflexão crítica da realidade vivida e de atuação sobre essa reali dade, na perspectiva de construção e fortalecimento de vínculos entre educação e humanização. Os fascículos de Antropologia pretendem fornecer-lhes os elementos essenciais para responder crítica e assertivamente à pergunta: por que Antropologia? O objetivo dos fascículos de Antropologia consiste em esclarecer os postulados que essa ciência toma como ponto de partida para as construções teóricas, em apresentar os conceitos fundamentais da disciplina, em delinear as principais correntes e tendências do pensamento antropológico, sublinhando as preocupações e motivos que as norteiam, tocando problemáticas cruciais que as diferenças envolvem, em meio às quais nos esbarramos, nos chocamos, nos omitimos, nos angustiamos. No Fascículo l apresentamos, na primeira parte, os conceitos fundamentais e, na segunda parte, as principais correntes do pensamento antropológico, com o propósito de balizar o movimento de construção de um conhecimento básico, para melhor compreensão da multiplicidade de caminhos do desenvolvimento dessa ciência e de entender a Antropologia como disciplina que forma um olhar sobre a diversidade, sobre o encontro/confronto que a diferença enseja, inscrevendo uma visão relativizadora, constituinte do próprio conhecimento antropológico. No Fascículo 2 trabalhamos a formação do povo brasileiro, as explicações da Antropologia sobre regra, construção da pessoa, identidades e sobre as diferenças enquanto realidades culturais e enquanto focos de processos de inclusão e exclusão. Procuramos pavimentar uma base de reflexão crítica da própria realidade vivida, oferecendo subsídios para uma atuação pró-ativa sobre essa realidade cultural discricionária que nos afeta em nossas casas, em nossas escolas, em nossa cidade, em nosso estado, em nosso país. No Fascículo 3 procuramos correlacionar infância, sociedade, cultura e educação enfocando o processo de socialização e seus agentes fundamentais, propondo uma abordagem da criança como sujeito e objeto do processo educativo, para pensarmos criticamente a relação criança-sociedade e as mediações da cultura. Chamamos atenção para a importância da questão da diversidade na educação. Procuramos enfocar a cultura organizacional e a profissionalidade docente, sob a ótica da recursividade entre Antropologia
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formação humanística, cultura e educação, tirando algumas implicações relacionais sobre o reconhecimento da subjetividade da criança pequena. Recentemente, em 2006, produzimos quatro fascículos de Antropologia para o Curso de Licenciatura em Educação Infantil, na modalidade de ensino à distância. Os objetivos da disciplina no projeto pedagógico daquele e deste curso e os conteúdos previstos são coincidentes. O texto que agora apresentamos não é uma reimpressão, nem propriamente uma edição revista. É um texto com mudanças formais que buscam um novo ordenamento interno, com a finalidade de proporcionar uma leitura introdutória, mais didática e mais compreensiva do conhecimento antropológico de caráter mais geral. Grande parte, ou melhor, a maior parte do material é uma produção nova. Todavia, incorporamos o texto de capítulos inteiros, ou de partes de capítulos cuja escrita nos pareceu continuar comunicando adequadamente os conteúdos que abordam. É o caso dos capítulos VII, IX e X da Parte II do Fascículo 1; dos capítulos I, II e III do Fascículo 2. O Fascículo 3 é uma recomposição dos Fascículos 3 e 4. Esperamos que aqueles que se disponham efetivamente a ler com atenção, a pensar, a dialogar com o dito, o não dito, o insinuado, o explicado, o tão somente indicado em cada um dos capítulos de cada um dos fascículos, nas leituras complementares, na totalidade da experiência de estudo e aprendizagem da disciplina, possam desfrutar da riqueza do pensamento antropológico e da sua incontestável contribuição à formação docente.
Antropologia
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o ã ç u d In tro
N
ós podemos aprender. Essa capacidade intelectual é o nosso poder, o poder que nos põe em movimento. Nós podemos criar. Essa é a nossa força maior, a força que incita e mobiliza a humanidade em todos os tempos, em todos os lugares. Nós podemos aprender, nós podemos criar e nós podemos conhecer. Poder aprender, poder criar, poder conhecer constituem o aríete que nos lança além dos limites que nos demarcam, que nos separam, que nos cingem e nos contém. Ao nos lançarmos para fora dos limites, podemos ir lá aonde nunca fomos, podemos ir além e nos aventurar no desconhecido, transformando-o no conhecido. É pelo conhecimento que tornamos os objetos presentes à nossa inteligência, e pela inteligência deles nos apropriamos. Quando nos relacionamos com um objeto de conhecimento, a informação nos garante dados acerca desse objeto. Mas a informação não nos garante o conhecimento desse objeto. Diariamente recebemos uma formidável carga de informações sobre uma infinidade de assuntos. A informação é recebida e armazenada. Grande parte vai se perdendo por desuso, por obsolescência. O conhecimento nós produzimos por meio de um ato subjetivo de apreensão intelectual do objeto e reapresentação sob a forma de conceito. A informação não nos dá o entendimento, pois o entendimento é a faculdade de julgar por meio de conceitos e é o conhecimento que nos permite a formação de conceitos. O conhecimento é o nosso passaporte para a sabedoria, para o entendimento, para o esclarecimento, para a racionalidade crítica. Pelo conhecimento atuamos sobre o mundo. A Antropologia acumulou um impressionante repertório de conhecimentos, chegando a conclusões substantivas sobre a universalidade da cultura na experiência humana e sobre a extraordinária diversidade de suas manifestações. Numa introdução singela, como a que nos propomos, apenas tangenciaremos algumas partes fundamentais da produção antropológica, sublinhando alguns conteúdos que nos parecem essenciais à composição de uma bagagem de conceitos que permitam operar o descentramento necessário a uma visão aberta da pluralidade das culturas, dispondo do referencial minimamente indispensável à análise e reflexão crítica dos processos de uniformização, de homogeneização e de laminagem, alisamento e Antropologia
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apagamento das diversidades. Ao iniciarmos uma caminhada no domínio de uma disciplina, de um certo campo de estudos, começamos por aprender que saber é esse e que atuação sobre o mundo ele nos permite. Em síntese, o que aprendemos quando estudamos Antropologia e que atuação no mundo nos permite? O que aprendemos quando estudamos Antropologia é um novo modo de olhar (e ver) as diferenças. Esse novo modo de olhar repercute em nossa atitude em relação às diferenças, em relação à diversidade, em relação ao pluralismo, em relação a direitos humanos, em relação à cidadania. A Antropologia oferece uma oportunidade de pensar a realidade e de nos pensar nessa realidade. U ma oportunidade de abrir os olhos e ver além das aparências. A Antropologia nos oferece elementos consistentes para romper alguns dos nossos limites e, ao rompê-los, ultrapassar fronteiras, desvendar e surpreender mundos para além do nosso pequeno mundo.
Antropologia
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e t r a P
1
S O T I E C N O C E S O P CAM
N
a Parte I procuramos oferecer uma visão de conjunto da Antropologia como modalidade de saber metodicamente construído e sistematicamente organizado. Entendemos pertinente esboçar um horizonte de amplas latitudes, em que se possa ancorar o pensamento e apreender o campo de conhecimento da Antropologia, o seu objeto, o seu método e os seus conceitos fundamentais, para alicerçar uma reflexão crítica das mediações da cultura nas relações pedagógicas.
Capítulo Um - Saberes: o lugar da Antropologia
E ste capítulo convida você a pensar sobre a diversidade de
saberes, fornecendo elementos sobre modos de conhecimento, sobre distintividade do conhecimento científico e as diferentes áreas em que se desdobrou, com o objetivo de refletir criticamente o modo como os saberes são classificados e avaliados. Recomendamos que, ao ler o capítulo, tenha presente as seguintes indagações: O que é conhecimento de senso comum? O que é conhecimento empírico? Em que o conhecimento científico se distingue dos demais conhecimentos? De que premissa parte o método empírico? De que premissas partem os métodos dedutivo e indutivo? A distinção entre Ciências da Natureza e Ciências do Homem se assenta sobre que fundamentos? A Antropologia se afilia a que área de conhecimento? Os diferentes povos existentes no mundo atual, como os da idade da pedra, da antiguidade, da idade média, da modernidade, da época atual aprenderam ou produziram conhecimentos sobre a natureza, sobre relações com ela, sobre viver em sociedade, sobre arte, religião, educação, política, economia, tecnologia, sobre modos de expressar, de comunicar, de sentir e de pensar. Ao longo de sua história, o homem foi construindo uma imensa e variada gama de conhecimentos, de saberes. Se refletirmos um pouco sobre o mundo que nos cerca, percebemos que estamos imersos num mundo de produções humanas. Essas produções resultam de saberes sobre coisas, sobre práticas, sobre regras, sobre vida em comum, sobre valores que também são produções humanas. Nossas casas ou apartamentos, por exemplo, são construções feitas pelo homem. Não basta, porém, que queiramos construir casas ou apartamentos. É preciso saber fazer. Os homens que constroem
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casas e apartamentos detêm o saber necessário, aprenderam o que fazer, como fazer, quando fazer, porque fazer. Eles conhecem cada passo, cada etapa da edificação. Todos os objetos, todos os bens materiais que temos em nossa casa também são produções do homem. O fogão, as panelas, a comida, a geladeira, a TV, os móveis, as roupas, a decoração, os sapatos foram também produzidos e sua produção exige um saber. A energia elétrica, o gás, a telefonia, a internet também são produções Figura 01 que requerem um saber fazer, um conhecimento específico, especializado. Mas os saberes não se restringem ao mundo das coisas, dos bens materiais, das técnicas. Ler, escrever, teorias científicas, família, saúde, escola, religião, direitos, deveres, valores, governo, leis, também envolvem saberes, conhecimentos. Todos os grupos humanos, em todos os tempos, em todos os lugares produziram saberes, independentemente do grau de desenvolvimento material que tenham alcançado. As pessoas, os grupos sociais, os grupos étnicos possuem conhecimentos diferenciados, dispõem de um repertório de saberes necessários à produção dos seus meios de vida, necessários à sua existência coletiva. Uma grande parte dos saberes compõe uma classe de conhecimentos denominada de senso comum. O conhecimento de senso comum é coletivamente construído a partir das vivências, da experiência. Resulta de avaliação qualitati va dos fenômenos feita pelo grupo e por ele incorporado ao seu patrimônio de saberes. Os saberes derivados, direta ou i ndiretamente, da experiência sensível imediata ou mediata compõem uma classe denominada conhecimentos empíricos. A construção de conhecimentos empíricos se faz por meio de experiências sucessivas, sem que a razão exerça papel central na sua ordenação, portanto não procedente de método ou de sistematização lógica. Existe outra classe de saberes que compõem outra modalidade de conhecimento a que chamamos conhecimento científico. Na produção do conhecimento científico o homem questiona as aparências, buscando relações causais e leis gerais que regem os fenômenos. Esse processo implica por as nossas certezas em questão, bem como o modo acrítico como as incorporamos ou as construímos.
Antropologia
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A construção do conhecimento científico se faz por meio de um processo sistemático de apropriação de um objeto pelo pensamento, com rigor metódico e um consistente suporte teórico de referência.
Esse tipo de conhecimento é uma produção recente na história da humanidade. Ganhou distinção com Galileu há pouco mais de três séculos, e trezentos anos na história da humanidade é um tempo bem recente, bem mais próximo de nós. Galileu, entretanto, não foi o inventor do conhecimento. Mas, suas postulações teóricas e suas demonstrações, no entanto, constituíram um divisor de água no modo de conhecer. Antes de Galileu os gregos já haviam construído um novo paradigma de conhecimento, garantindo bases sólidas, a partir das quais Galileu pode avançar. Desde muitos séculos antes, os gregos já haviam concluído que o universo é ordenado e que os princípios, as regras que regem esse ordenamento poderiam ser decifradas pelo homem e por ele conhecidas. O grande legado de Galileu foi ter desenvolvido o método experimental, mostrando a importância da teoria e do método no processo de investigação dos princípios, das regras que regem os fenômenos. Galileu mostrou a importância crucial da demonstração, do teste, na construção de conhecimentos científicos.
Gal ileu - Figura 02
Se Galileu lançou ao mar da história o barquinho que deu origem à nave da ciência moderna, Bacon e Descartes deram extraordinário impulso ao curso de seu desenvolvimento no século XVI I , ao demonstrarem que o processo de produção do conhecimento científico pode seguir orientações metódicas diferenciadas, com formas distintas de sistematização. Palmilhando diferentes caminhos teórico-metodológicos, chegaram ao entendimento das causas que determinavam os fenômenos por eles estudados. Bacon desenvolveu o método empírico, partindo da premissa de que a experiência é fonte de conhecimento. Descartes, diferentemente de Bacon, partindo da premissa de que a razão é o único e suficiente instrumento de conhecimento, desenvolveu o método dedutivo. A orientação metódica de Bacon passou a ser conhecida como empirismo e a de Descartes como racionalismo. Bacon e Descartes legaram à ciência os dois grandes pilares que deram sustentação ao edifício da ciência: o método indutivo e o método dedutivo.
Descartes - Figura 03
Na indução o pesquisador investiga os objetos particulares. Direciona o processo de investigação do particular para o geral, da parte para o todo. Partindo do conhecimento dos objetos particulares, elabora definições inclusivas de maior alcance, fornecendo explicação para o conjunto desses objetos. Na dedução o pesquisador utiliza uma teoria geral na investigação de um objeto particular. Direciona o processo de investigação do Antropologia
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geral para o particular, do todo para as partes. Procura demonstrar ao final da pesquisa se a teoria utilizada se aplica ao objeto estudado, concluindo se esse objeto se inclui ou não na definição teórica existente. Cada um desses modos de produção de conhecimento implica um modo de orientação do pensamento, um modo de observação, de análise e de interpretação do mundo. Não são modos exclusivos, nem antagônicos de fazer ciência. Tanto na dedução como na indução o pesquisador faz inferências, isto é, conclui uma coisa nova com base em outra já conhecida. São modos complementares, que contribuem para a apreensão de diferentes dimensões dos fenômenos que compõem o real observado. A olhá-los sob óticas diversas, com focos e enfoques diferentes, o pesquisador capta aspectos distintos de sua constituição. Novas idéias surgiram, contribuindo para o desenvolvimento da ciência. No século XVIII a idéia de natureza como máquina, até então dominante no pensamento científico, sofre rupturas profundas. A idéia de natureza como máquina apóia-se na concepção da natureza como um sistema imutável de forças em equilíbrio. Pesquisas no campo da química e da física sobre fenômenos químicos e elétricos, possibilitaram o conhecimento da transformação de estado da matéria, fornecendo elementos para a elaboração da idéia de natureza como processo. Rompe-se com a idéia de natureza imutável, permanente e por sobre seus escombros foi-se construindo a idéia de natureza em movimento. À idéia de natureza como processo associou-se a idéia de iluminação interior, inerente à espécie humana, iluminação que seria a fonte subjetiva de conhecimento. Essa idéia de conhecimento como atributo humano está na base do movimento flosófico denominado iluminismo, caracterizado pela expansão do racionalismo, pela atitude crítica em relação à tradição. O iluminismo também se caracteriza pela concepção de uma ordem racional do mundo, pela idéia de transformação dos homens e de suas culturas. É nessa concepção que a idéia de progresso da humanidade se ancora. O grande espectro de conhecimentos científcos motivou os estudiosos a agrupá-los, a fazer distinções, consignadas em classifcações sistemáticas. Antes de abordar a classificação das ciências, parece-nos útil elucidar o sentido dos termos ciência (no singular) e ciências (no plural). Ciência, no singular, diz respeito ao conjunto dos conhecimentos humanos dotados de universalidade e objetividade. Antropologia
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Ciências, no plural, diz respeito aos campos específicos de investigação científica, que possuem objeto, método e modelos de análise próprios. No domínio da ciência, o diálogo, o debate gerado no confronto de idéias que o iluminismo estimulou, novas postulações foram ganhando espaço, promovendo uma ruptura epistemológica sem precedentes entre o homem enquanto sujeito de conhecimento e o homem enquanto objeto de conhecimento do próprio homem, favorecendo o surgimento das ciências sociais no século XI X. A distinção entre duas grandes áreas de conhecimento denominadas, respectivamente, de Ciências da N atureza (Ci ências Naturais, Ciências Exatas) e Ciências do Homem (Ciências Humanas, Ciências Sociais) ganha aceitação e se estabelece. A área das Ciências da Natureza engloba os campos disciplinares da Matemática, Geometria, Física, Química, Geografia, Geologia, Biologia, Genética. A área das Ciências do Homem engloba os campos disciplinares da História, Filosofia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Economia, Direito, Comunicação, L ingüística, Educação. A distinção entre essas duas grandes áreas não é matéria de consenso na teoria do conhecimento e tem provocado discussões acaloradas entre os cientistas. Para os mais radicais o status de ciência é exclusivo das Ciências da Natureza. As Humanidades integrariam uma área de estudo sem status de cientificidade. Dois argumentos são utilizados para sustentar esse posicionamento: a irredutibilidade do objeto das Ciências da Natureza em relação ao sujeito do conhecimento, e á comprovação. Quando estudamos o mosquito transmissor da dengue ( aedes egypt ), a força da água para a geração de energia elétrica, por mais que nos envolvamos com esses objetos não nos influenciamos reciprocamente, em termos de aproximações e similitudes. A distância entre o sujeito de conhecimento (pesquisador) e os objetos de conhecimento (mosquito, força da água) é irredutível. Na relação de conhecimento, sujeito-objeto não interferem um no outro, continuando a ter, cada um de per si, os atributos que os distinguem e os identificam como seres determinados. Quando, porém, estudamos um grupo indígena, uma comunidade ribeirinha, uma “tribo urbana” (góticos, clubers), nosso objeto de conhecimento é um grupo de seres que, como nós, têm os mesmos atributos que nos distinguem como seres da mesma espécie. N o curso do processo de conhecimento, sujeito e objeto se influenciam
Figura 04
Antropologia
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e podem se identificar profundamente, adotando atitudes, valores, projetos um do outro. Em síntese, quando um pesquisador estuda o mosquito transmissor da dengue, ou a força da água, não se transforma em mosquito, nem em água; mas quando o pesquisador estuda um grupo indígena, uma comunidade ribeirinha ou os góticos e os clubers de uma grande cidade pode vir a se identificar com o seu objeto de estudo de tal forma que venha a se tornar um deles. A comprovação, como argumento de exclusividade do status de conhecimento científco conferido às Ciências Naturais, diz respeito ao fato de que as características dos fenômenos da natureza sejam constantes. Essa qualidade de relativa permanência possibilita que, em determinadas condições, possamos reproduzi-los em laboratório, o que nos permite comprovar (ou refutar) as conclusões de nosso estudo. A possibilidade de comprovação, utilizada como argumento de atribuição exclusiva do status de ciência às Ciências da Natureza, favoreceu uma avaliação preconceituosa dos saberes, estimulando a hierarquização dos conhecimentos científicos. Ao eleger-se a experimentação como divisor de águas entre Ciências da Natureza e Ciências do Homem, por extensão atribuiu-se maior prestígio às profissões cuja formação básica se assenta nas Ciências Exatas. Essas profissões são mais valorizadas pela forma de conhecimento que exigem, por fornecerem as bases necessárias à sua aplicação no desenvolvimento de tecnologias que permitem a mecanização, a automação, a produção e a circulação de larga escala, contribuindo para aumento do lucro e para viabilização de novos meios de reprodução do capital. As Ciências do Homem fornecem poucas alternativas de aplicação economicamente lucrativa. Contribuem para o desenvolvimento humano, para o desenvolvimento social, para a melhoria da qualidade de vida em sociedade, para evolução das relações, dos direitos, das garantias. A Antropologia se afilia à área das Ciências do Homem e vem se empenhando na construção de conhecimentos que nos permitam uma visão crítica cada vez mais apurada, que nos habilite à apreensão das formas e dos modos insidiosos de avaliar a diferença e dos processos de inclusão e exclusão que as impregnam.
Antropologia
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Capítulo dois – Antropologia: nomes e saberes
N este capítulo apresentamos a Antropologia a você, para que conheça o que ela é, seu campo e seu projeto de conhecimento, esperando que se familiarize com seus nomes e suas especialidades e que também se informe sobre suas práticas no Brasil. Ao ler este capítulo, vale a pena procurar encontrar respostas para as seguintes questões: Que ciência é a Antropologia? O que a distingue das demais ciências que estudam o homem? Qual o projeto de investigação da Antropologia Biológica? O que a Paleontologia estuda? Qual o objeto da Antropologia Cul tural? Que outros nomes lhe foram atribuídos? Que especializações os estudos de Antropologia Social desenvolveram no Brasil? Em sentido amplo e abrangente, Antropologia é a ciência do homem. Esse é um conceito extenso de Antropologia que pretende abarcar toda complexidade do homem e de suas produções. Mas a Antropologia é apenas uma das ciências que estudam o homem. O que a distingue das outras ciências que têm o homem como objeto de conhecimento? O que a dintingue é seu projeto científico de estudo do homem por inteiro, abrangendo tanto a sua forma física (dimensão biológica), quanto a sua diversidade cultural (dimensão sócio-cultural). Com esse ambicioso projeto a Antropologia abarca um vasto campo disciplinar e vem se empenhando em desenvolver um conjunto de conceitos e noções para aprofundar e sofisticar o conhecimento do homem pelo homem, de sua natureza biológica, de seus diferentes modos de vida em coletividade, em todas as épocas, em todas as partes do mundo. A dupla dimensão do homem como ser biológico e como ser cultural orientou o desenvolvimento dos estudos antropológicos em duas direções investigativas: uma ocupada em investigar as variações Antropologia
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das suas características biológicas no tempo e no espaço; outra ocupada em investigar a diversidade dos seus arranjos de vida em sociedade, criados nos mais diferentes lugares, ao longo da sua trajetória histórica. Os estudos e pesquisas perspectivados nessas duas linhas de orientação sedimentaram uma divisão da Antropologia em dois campos de estudo, com propósitos, objetos, interesses teóricos e procedimentos metodológicos próprios: Antropologia Biológica e Antropologia Social. O projeto investigativo da Antropologia Biológica, também chamada Antropologia Física, é o estudo da origem do homem, da evolução da espécie, das variações das suas características biológicas, da sua estrutura anatômica, das diferenças dos traços fenotípicos das populações humanas. A Antropologia Biológica, ao interessar-se pelo estudo da variação da constituição física do homem, desdobrou-se em várias especializações que foram se desenvolvendo em torno de alguns problemas, a partir dos quais se configuraram campos específicos de conhecimento, tais como: a Paleontologia Humana, a Antropometria, a Somatologia, entre outros. A Paleontologia H umana faz o estudo comparativo das formas fósseis de homínidas, intermediárias entre os antropóides e o homem moderno, buscando reconstituir a linha evolutiva da espécie homo sapiens sapiens.
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A Antropometria, usando método comparativo, técnicas e procedimentos quantitativos e instrumentos especiais, procura investigar diferenças físicas individuais e grupais, a partir de medidas corporais. A Somatologia investiga diferenças físicas individuais e grupais relacionadas a tipos sanguíneos, a índices de crescimento e a outros aspectos correlatos, buscando descrevê-las e correlacioná-las, por exemplo, à dispersão das populações no espaço e no tempo. Antropologia
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A Antropologia Social abarca um campo mais amplo de investigação, relativo às produções humanas, às realizações do homem como ser cultural. O objeto da Antropologia é a diversidade cultural. Aborda os múltiplos modos de vida em sociedade, estuda a diferença cultural. É importante esclarecer que Antropologia Social não é um nome unanimemente adotado para designar esse amplo campo de estudos. Outros nomes são também utilizados, recobrindo distintos focos e enfoques determinados, outros ângulos de visão das diferenças, propondo distintos modos de interpretação de todas as diversidades, culturais e sociais. Etnografia, Etnologia, Antropologia Social e Antropologia Cultural propriamente dita são termos comumente utilizados para nomear essa ciência do homem. É importante ressaltar, porém, que esses termos não denotam disciplinas diferentes, nem objetos distintos, nem concepções exclusivas. São nomes que, como já ressaltamos, mostram apenas preferências por essa ou aquela ênfase de investigação, a que esses ou aqueles centros de pesquisa deram maior atenção. Contudo, como são nomes ainda em circulação, é interessante esclarecer os seus sentidos. Etnografia refere-se a estudos descritivos de grupos humanos particulares, com ênfase na observação e análise de sua particularidade. O estudo etnográfico procura reconstituir o modo de vida do grupo estudado. O etnógrafo dedica-se à pesquisa exaustiva da dimensão cultural da vida social do grupo, observando, descrevendo e analisando objetos, práticas, aspectos culturais diversos, detalhes explícitos e implícitos do comportamento socialmente padronizado, procurando correlacioná-los no sentido de possibilitar uma visão da cultura do grupo como um todo. Os estudos etnográficos, pelo caráter empírico de suas descrições, com dados coletados diretamente em pesquisa de campo, garantem uma base de dados ampla e consistente à construção de teorias antropológicas.
Indío Kaiapó - Figura 06
Etnologia é um termo de origem francesa que também designa estudos das culturas. O que distingue a Etnologia da Etnografia é o propósito comparativo de seu projeto de investigação, focado no esforço de teorização da cultura. A Etnologia utiliza os estudos etnográficos para estabelecer comparações e elaborar explicações teóricas das diferenças e semelhanças, envolvendo, portanto, um nível de abstração que a Etnografia não comporta. O termo Etnologia surgiu, inicialmente, num quadro sistemático das ciências elaborado pelo padre Ampére. Como designação de ciência, todavia, foi utilizado pela primeira vez em l839, por ocasião da fundação da Sociedade de Etnologia. Em sentido amplo o termo abriga o sentido de ciência dos povos, com um enfoque histórico Antropologia
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da cultura. E m sentido estrito, no domíni o da ciência, do campo disciplinar, E tnologia adquire o sentido que se aproxima àquele conferido aos nomes Antropologia Social e Antropologia Cultural mais utilizados, respectivamente, na Europa e nos Estados Unidos. O nome Antropologia Cultural foi adotado e difundido pelos praticantes da antropologia nos Estados Unidos, interessados principalmente no estudo dos comportamentos particulares dos membros de cultura, no estudo da distintividade que apresentam, no estudo dos processos de aquisição e transmissão da cultura, no estudo das técnicas e das instituições. A Antropologia Cultural problematizou os processos de contato, de situação, de difusão, de aculturação (adoção ou imposição das normas de uma cultura por outra, no processo de contato). Um dos cortes temáticos caros a um grupo de antropólogos americanos foi o das relações entre cultura e personalidade, abrindo um campo de investigação na linha de fronteira com a psicologia. E sses estudos remetem à problemática da interrelação entre indivíduo, sociedade e cultura, sob o enfoque do comportamento humano. A designação Antropologia Social, originária da tradição inglesa da pesquisa antropológica, tem seu foco de interesse centrado nas instituições, apreendidas como sistemas de representações. Tributária da tradição inaugurada por Durkheim e Mauss, pioneiros das Ciências Sociais, a Antropologia Social priorizou a abordagem do caráter integrativo das instituições e os seus sistemas de representação. A ênfase da pesquisa antropológica recai, assim, sobre a organização da cultura, sobre processos de normalização e as instituições deles decorrentes. A partir da organização da cultura, busca-se analisar e explicar os modos de pensar, de sentir, de fazer, de conhecer e de expressar. As relações de alteridade são analisadas tanto no interior de cada cultura, como no contato entre culturas, levando em conta diferenças de classe e outras formas de diferenciação que atravessam a organização social, compondo o gradiente de hierarquias. Um dos movimentos de ampliação do enfoque da coesão das instituições e do seu caráter integrativo, na Antropologia Social, orientou-se no sentido de incorporar a dimensão do conflito e suas diversas expressões, especialmente nas relações de alteridade entre sociedades ou grupos culturalmente diferenciados, no contexto das relações capitalistas de produção, configurando um quadro de dominação, com graus variados de imposturas, que vão desde a violência explí cita até aos processos velados de opressão de diferentes matizes, nuances e sutilezas. Antropologia
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Antes de entrar em uso no sentido amplo de designação de um campo disciplinar, o termo antropologia foi utilizado em contraponto ao termo etnologia, estabelecendo distinção entre as dimensões humanas em foco nos estudos e pesquisas que realizavam. Antropologia designava o estudo da evolução biológica do homem, enquanto etnologia designava o estudo dos povos, sob a dupla dimensão histórica e cultural. A universalização do uso do termo antropologia, utilizado como designação neutra, genérica e abrangente de estudo científico do homem é bem recente. O vocábulo antropologia é formado a partir de anthropos e logos , palavras gregas que significam respectivamente “homem” e “conhecimento, saber, estudo”. O vocábulo foi cunhado pelos humanistas e era já bastante conhecido, antes de se tornar um termo científico no início do século XX. Antes de se adotar o termo Antropologia, como nome da ciência do homem, outros já haviam se difundido e se fixado. A variedade de nomes da disciplina resulta, sobretudo, do fato de ter se constituído como ciência do homem recentemente, a partir da segunda metade do século XI X. O esforço de sua constituição como ciência, contudo, não se desenvolveu a partir de um único centro de estudos, mas concomitantemente em vários centros de investigação da Europa. Em cada um desses centros os projetos de pesquisa se orientaram numa dada direção, ganhando determinadas ênfases. O nome que cada um desses centros de pesquisa escolheu, para designar seus estudos particulares, acabou se fixando como um dos nomes da nova disciplina científica a que se afliavam. A curiosidade que os povos estrangeiros despertam e o interesse pelas suas diferenças culturais não nasceram com a fundação da ciência antropológica, acompanham o homem sempre que se vê frente a frente com outros homens até então desconhecidos. Quando um povo entra em contato com outro povo e o encontro circunstancia um confronto de culturas, de tradições, de costumes, de valores, de visão de mundo, ambos os povos em confronto tendem a procurar explicação para a diferença, partindo de suas próprias referências, considerando-as paradigmas da forma e do modo de ser humano, de ser gente de verdade.
Figura 07
O contato com outros povos, outros grupos culturalmente diferenciados, coloca em pauta não só o problema de explicar a diferença, mas também o problema do reconhecimento de direitos ao se lidar com ela. Registros de contatos entre povos diferentes existem há alguns milhares de anos. O encontro dos gregos com os persas ensejou Antropologia
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registros e interessantes reflexões de Heródoto. A bíblia, no livro de Daniel, por exemplo, registra o contato entre judeus e assírios, anotando e apreciando as diferenças culturais sob a ótica da tradição judaica.
Figura 08
As crônicas dos descobrimentos registram o contato entre os europeus e os povos que habitavam as Américas, a costa da África e o distante Oriente. Esses registros revelam o olhar que os europeus, envolvidos nesses contatos, lançavam sobre as culturas estranhas e o modo como avaliavam os povos que as detinham. Dois olhares emergem desses registros. Um olhar focado na busca de compreensão da diferença, como o que séculos antes Heródoto nos desvela claramente em seus escritos, quando registra suas reflexões sobre a diversidade cultural, observando que todos nós, sem exceção, pensamos que nossas crenças, nossos costumes, nossos valores são os melhores. Heródoto, de forma bem humorada, contrapõe o costume grego de cremação dos mortos ao costume de comer os corpos de seus pais mortos, adotado por uma tribo persa, mostrando como cada qual se horroriza com o costume do outro, considerando-o inaceitável. Os registros da conquista do México, feitos por Hernán Cortez, revelam um outro olhar da diferença cultural, a partir de um ângulo de visão bem distinto daquele de onde Heródoto olhava. Cortez era movido pela sua verdade, a de que os espanhóis tinham direito de conquistar para si as terras do novo mundo, o direito de destruir a ferro e fogo os maia e os aztecas* que lhe eram estranhos e que considerava despossuídos de atributos essenciais de humanidade.
Figura 09
Heródoto e Hernán Cortez nos legaram duas visões polares do outro, do estrangeiro, da diferença cultural. A visão de Heródoto revela abertura, disposição de diálogo. A visão de Hernán Cortez revela fechamento, intolerância, disposição de dominação.
O desenvolvimento da Antropologia Cultural vem se fazendo numa tensão entre esses dois ângulos de visão da diferença, com suas proposições teóricas ora se aproximando mais de um ou de outro pólo, sob o enfoque das ações que as sociedades e culturas ditas centrais exercem sobre as sociedades e culturas que lhes são mais ou menos próximas ou distanciadas. I sto quer dizer que os conhecimentos que os antropólogos vêm produzindo sobre os outros povos, especialmente sobre os povos colonizados, ora se colocaram a serviço dos interesses dos colonizadores, ora se colocaram a serviço dos interesses das populações que estudaram. Antropologia
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No Brasil a Antropologia ganhou destaque em meados do século passado. Dois Centros de Estudos polarizaram o desenvolvi mento da disciplina: São Paulo e Rio de J aneiro. Esses dois centros de estudos, caudatários das produções pioneiras de pesquisadores da Bahia, de Pernambuco e de Alagoas, ampliaram o horizonte de estudos abrindo novas perspectivas com a formação de jovens antropólogos, a criação de programas de investigação, a constituição de novas linhas de pesquisa e a canalização de recursos indispensáveis ao trabalho de campo. A Antropologia Social se difundiu e surgiram centros de pesquisa em muitas Universidades do país. Abriu-se um leque de especialidades, alicerçadas no esforço de pesquisa concentrado em grandes cortes temáticos como, entre outros, Etnologia Indígena, Antropologia Rural, Antropologia das Populações Afro-brasileiras, Antropologia Urbana, Antropologia da Saúde. A Etnologia I ndígena é uma das especialidades com maior volume de produção do país. Para a construção do rico repertório de estudos de sociedades indígenas de que já se dispõe, contribuíram antropólogos brasileiros e estrangeiros que aqui realizaram suas pesquisas. Muitos desses grupos já foram estudados, alguns dos quais por vários antropólogos, sob diferentes focos, com diferentes aportes teóricos, consolidando um saber consistente sobre sociedades indígenas, linguística e culturalmente aparentadas. Mas esse conhecimento ainda está longe de dar conta das problemáticas antropológicas que a diversidade étnico-cultural das populações indígenas suscita. Há muito a ser feito, tanto no plano de conhecimento de uma significativa variedade de grupos, quanto no plano de conhecimento desses grupos enquanto realidades empíricas autônomas, quanto no plano das relações de contato; das novas dinâmicas sócio-políticas de autodeterminação, de solidariedades; dos modos, formas e condições de produção material e dos problemas de ecologia, focalizando as relações com o meio ambiente, sob o influxo das pressões advindas do sistema econômico, subsumido à internacionalização da economia.
Índios Kaiapós - Figura 10
A Antropologia Rural tem contribuído para o conhecimento do campesinato e suas expressões em nosso país, dos trabalhadores rurais, dos grupos sem terra, dos migrantes, dos movimentos sociais no campo, dos trabalhadores da foresta, das comunidades ribeirinhas, das comunidades de pescadores. A Antropologia das Populações Afro-brasileiras tem contribuído para a análise e a crítica cultural das relações raciais, para o conhecimento do negro brasileiro como expressão, cultura , de Antropologia
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mentalidade, de territorialidade, de religiosidade; das comunidades quilombolas. O desdobramento das temáticas da Antropologia Social abriu novas frentes de investigação propondo novas abordagens, novos temas, levantando novos problemas relativos, por exemplo, a questões de gênero, questões de infância e adolescência, questões de novos arranjos familiares e de novos vínculos de parentesco, questões de interculturalidade, questões de direitos e cidadania. As novas temáticas emergem com novos olhares sobre a diferença. Novos olhares que se somam aos velhos que seguem nos desafando e nos incitando a perscrutar o fundo das aparências, a estranhar o que nos parece familiar e a nos familiarizar com o que nos parece estranho.
Antropologia
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Capítulo três – Objeto e método
N este capítulo você dispõe de elementos esclarecedores acerca dos sucessivos deslocamentos do objeto da Antropologia e do método etnográfico, com o objetivo de conhecer as especificidades que distinguem essa prática científica. Ao ler o capítulo, tenha em mente as seguintes questões: Qual a problemática central da Antropologia? Que limites foram inicialmente estabelecidos entre Antropologia, Sociologia e História? A que se refere a classificação povos simples? Que deslocamentos o objeto da Antropologia teve ao longo do tempo? O que é método? O que são técnicas de pesquisa? Como se caracteriza o método etnográfico? Em que consistem a observação participante e a história de vida? Qual a importância do trabalho de campo na pesquisa antropológica? J á sabemos que o objeto da Antropologia é o homem por inteiro, tendo como problemática central a diferença. A delimitação desse objeto e a sua problematização, entretanto, dependiam do entendimento que se tivesse da diferença Esse entendimento sofreu deslocamentos ao longo do tempo, repercutindo na delimitação do objeto da Antropologia. Quando, no século XI X, as Ciências Sociais foram constituídas, não havia clareza quanto aos limites entre Sociologia, Antropologia e História. Todas essas disciplinas tinham como objeto de conhecimento o homem. Para estabelecer limites entre esses campos disciplinares, alguns marcos foram estabelecidos. Convencionou-se que o marco entre Sociologia e Antropologia era a proximidade geográfica dos centros da civilização e o avanço tecnológico. A Sociologia se ocupava das sociedades urbanas, com organização do Estado e com tecnologia avançada. A Antropologia se ocupava das sociedades distantes, sem organização do Estado, com tecnologia pouco desenvolvida, as chamadas sociedades simples, de povos ditos primitivos. O marco entre Antropologia e História seria a escrita. O objeto de conhecimento da Antropologia Antropologia
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seriam as sociedades ágrafas, sem escrita, enquanto que a História se ocuparia das sociedades com escrita. Uma visão preconceituosa da diferença entre as diversas sociedades, pode ser apreendida por sob esta distinção. As sociedades “distantes”, “simples” eram pensadas como tais, tendo as sociedades européias como centro de referência. E m relação às sociedades coloniais, as sociedades “simples” eram vistas como sociedades da falta, sociedades sem isso, ou sem aquilo. Sociedades que “não tinham” escrita, que não tinham tecnologia avançada, que não tinham organização do Estado, que não eram urbanizadas. Sociedades “simples” de povos “primitivos”.
Adornos africanos - Figura 11
Família esquimó - Figura 12
À Antropologia, portanto, cabia estudar os povos distantes, as sociedades ditas arcaicas, os povos ditos “primitivos”, com tecnologia simples, com população e território de pequena escala. Cabia a Antropologia o estudo das sociedades de dimensões mais restritas, tanto em termos de especialização como em termos de atividades e funções sociais. A Antropologia, nos seus primórdios, dedicou-se ao conhecimento dessas sociedades, das suas tradições culturais, de seus usos e costumes. Tomando essas sociedades como objetos empíricos, os antropólogos passaram a estudá-las com o pressuposto de que o distanciamento da civilização européias (e americana) em que viviam, configuraria uma situação análoga à de laboratório. Pensava-se, então, que as sociedades “primitivas” fossem expressões empíricas da infância da humanidade, tendo permanecido em tal estado, em razão de sua exterioridade ao mundo civilizado. Estudando-as e comparando-as poder-se-ia compor um quadro de diferentes estágios da evolução cultural da espécie homo sapiens sapiens. No curso do desenvolvimento da disciplina, porém, foi-se configurando um processo de deslocamento do objeto pondo em questão a diferença no interior das sociedades ditas civilizadas. Os antropólogos começaram também a se interessar pelas populações em situação de vida rural, lançando seu olhar sobre comunidades ditas tradicionais, no interior das sociedades nacionais. Esse deslocamento, entretanto, não significava uma ruptura conceitual. Os campesinos, as comunidades rurais também são percebidas como diferenciadas no contraste com a sociedade uubano-industrial, considerada o ápice da civilização. Supondo que o distanciamento entre o observador e seu objeto era ainda suficiente como garantia de objetividade, os antropólogos abordavam essas comunidades na sua especificidade cultural, problematizando sua diferença social e cultural em relação à sociedade mais ampla, em cujo interior continuavam a produzir e
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reproduzir seus próprios modos de vida, suas próprias tradições, seus costumes particulares. Embora o objeto de estudo da Antropologia tenha sofrido deslizamentos, o movimento de deslocamento não foi radical, ampliando-se ligeiramente o ângulo de visão, para abarcar também as populações externas ao círculo da moderna civilização ocidental. O distanciamento das populações já não era exclusivamente avaliado pelo critério geográfico, passa a ser também avaliado com base no critério da conformidade/desconformidade histórica, correlacionada ao maior ou menor distanciamento da modernidade. A ênfase da referência distintiva se desloca para a temporalidade, mas esse novo ângulo do olhar não substitui, nem torna obsoleta a ênfase geográfica. Ambas são complementares. O deslocamento do objeto promove apenas o alargamento do recorte, abrangendo outras populações na esfera de interesse de estudo da Antropologia. Na segunda metade do século XX, novo deslocamento do objeto se processa, sob o influxo do desencaixe do tempo e do espaço que a tecnologia da informação e a globalização operaram. O objeto de estudo da Antropologia abrange agora não só os grupos étnicos, os grupos indígenas, os migrantes, as populações rurais, mas também os grupos urbanos socialmente distanciados, culturalmente diferenciados, grupos que partilham alguns aspectos particulares pelos quais se distinguem e são distinguidos no conjunto da vida social.
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A Antropologia contemporânea tem um vasto campo de pesquisa, e oferece aos seus praticantes múltiplas possibilidades de investigação. A riqueza e a complexidade do seu campo de estudos têm facultado e possibilitado um amplo leque de conhecimentos. O volume, a amplitude e a especialização dos conhecimentos produzidos não mais permitem ao antropólogo condições de abarcar o rico e extremo repertório de produções científicas, não lhe sendo mais possível o domínio do conhecimento generalista que, por exemplo, os antropólogos do século XI X detinham, porquanto ainda era possível aceder os vários ramos do saber antropológico, tanto do campo da Antropologia Biológica, como do campo da Antropologia Social. Assim como tem seu campo de estudo bem definido, a Antropologia dispõe de seu próprio referencial teórico e de seu próprio método e técnicas de pesquisa. Antropologia 33
Um método é um conjunto de procedimentos racionais baseados em regras, por meio das quais se constrói conhecimentos sistematizando resultados obtidos em observação e análise de regularidades. Técnicas de pesquisa são recursos utilizados no levantamento e arranjo de dados que, teoricamente analisados, constituem a base empírica da explicação e da interpretação antropológica. Num primeiro momento os procedimentos utilizados pela Antropologia foram os do método comparativo, em que os elementos culturais, os costumes eram tomados e classifcados separadamente de seu contexto. Ao compararem costumes com costumes, destacados de seus ambientes culturais, os antropólogos faziam uma comparação horizontal, sem levar em conta os contextos em que ocorriam. Posteriormente, os antropólogos desenvolveram um método próprio: a etnografia, que consiste na análise descritiva do grupo investigado, construindo alguma generalização sobre os aspectos culturais que caracterizam seu estilo de vida e expressam sua especificidade cultural. O método etnográfico tem como pressuposto indeclinável o trabalho de campo, o mergulho do pesquisador no cotidiano do grupo, permitindo-lhe fazer a observação direta do que as pessoas fazem, como fazem, buscando apreender as motivações, as finalidades e compreender o sentido que se constrói no fazer, o signifcado da ação. O trabalho de campo permite uma modalidade específica de experimentação pela vivência, em profundidade, de outro modo de vida. O pesquisador ao conviver com o mundo social do grupo pesquisado, dispõe de seu próprio mundo social como horizonte contrastivo. A busca de objetividade da análise contrastiva exige do antropólogo um esforço de descentramento de suas próprias referências culturais, entrando num profundo processo de estranhamento do que lhe é familiar. A experiência antropológica do contato do pesquisador com o grupo que pesquisa por um certo período, possibilita-lhe apreender o conjunto das ações desse grupo como um conjunto coerente, com sua própria lógica interna. Ao descrever, analisar e interpretar o modo de vida do grupo em pesquisa, o antropólogo desenvolve sua capacidade de olhar, de ver, de escutar, de ouvir, de dialogar, alargando e ampliando sua visão de mundo. A observação participante é uma técnica de investigação artesanal. Exige uma certa continui dade de presença durante semanas ou meses e anos, necessários à observação de comportamentos Antropologia
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significativos e ao desvendamento do que os torna significativos. Para isso, o pesquisador toma notas, colhe o máximo de elementos sobre o acontecimento observado, de modo a que possa distinguir seus componentes e auscultar o significado das partes e o significado do todo. No levantamento de dados quantitativos (população, produção etc) o antropólogo utiliza fichas, formulários e posteriormente consolida os dados coletados em quadros demonstrativos, em tabelas, em gráficos. No trabalho de campo o pesquisador pode e deve combinar a técnica de observação participante com outras técnicas de pesquisa, entre as quais nos parece importante destacar a documentação, a entrevista, o formulário, a história de vida. Na produção da documentação, além de documentos verbais (léxicos, nomenclaturas) o investigador coleta desenhos, pinturas, utensílios, objetos de arte, cantos, contos e outros modos de expressão do grupo. Utiliza diversas formas de registro e documentação como mapas, diagramas, gravações, fotografias, croquis que lhe fornecem variados recursos de exposição de resultado. A entrevista é uma técnica de pesquisa que se opera no contato direto, face a face, do pesquisador com o entrevistado, com a finalidade de obter informações úteis ao seu trabalho investigativo. Pode ser dirigida e não diretiva. A entrevista não diretiva é aberta, livre, informal. O entrevistado fala livremente sobre algum assunto sobre o qual se dispõe a falar. O pesquisador leva o entrevistado a expor suas idéias, a manifestar seus pontos de vista, a fazer apreciações, avaliações, a expor sentimentos, valores. A entrevista diretiva, como o próprio nome indica, é direcionada por um roteiro previamente elaborado pelo pesquisador, na perspectiva de colher dados relativos a um determinado acontecimento, a um determinado assunto de seu interesse. A análise das entrevistas possibilita ao pesquisador descobrir recorrências. Recorrências reiteradas transcendem à esfera do individual, em direção à esfera do social. Figura 14
O formulário é a técnica de coleta de dados com uso de questionário contendo uma série organizada de perguntas escritas que o informante é convidado a responder. As perguntas podem ser abertas ou fechadas. As abertas incitam o entrevistado a falar livremente sobre o questionamento que lhe foi dirigido. As perguntas fechadas apresentam ao entrevistado um número de alternativas de resposta, cabendo-lhe a escolha daquela que lhe parece mais adequada.
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Os questionários com respostas fechadas podem ser aplicados a um número significativo de pessoas. Pelas suas características técnicas, essa modalidade de questionário é bastante adequada à coleta de dados quantitativos. A história de vida é um técnica biográfica de coleta de dados. A história de vida exige um número maior de sessões de gravação. Contando sua vida, o entrevistado fornece ao pesquisador uma rica fonte de dados sobre o modo de vida do grupo a que pertence. O pesquisador, ao ouvir a gravação da narrativa colhida numa dada sessão, identificará temas, problemas, acontecimentos que vale a pena explorar, por lhe parecerem uma fonte potencial de chaves estratégicas de acesso a significados culturais fundamentais. Pode, então, elaborar perguntas ou comentários que motivem o entrevistado a retomar o assunto e aprofundá-lo, fornecendo novos dados sobre diferentes ângulos dos acontecimentos narrados, sobre outros aspectos das refexões, das avaliações, dos sentimentos externados. Entre uma sessão e outra o entrevistado rememora fatos, acontecimentos, puxando outros fos da memória, reconstituindo sua história de vida, emoldurada na vida social do grupo. O trabalho de campo e a etnografa como método de pesquisa antropológica foram sistematizados por Malinowiski, o primeiro a mergulhar na vida social dos nativos das ilhas de Trobiand, na Melanésia, entre 1914 e 1918. Até então os antropólogos serviam-se dos relatos de viagem. Com as grandes navegações, os europeus foram surpreendidos com novos mundos, com povos e culturas até então desconhecidos, com tradições e costumes nunca antes imaginados. A diversidade cultural causou estranhamento de tal monta que suscitou a pergunta se aqueles selvagens exóticos eram humanos ou não. Nos séculos seguintes aos descobrimentos, com a expansão do colonialismo, a curiosidade pelas terras e pelos povos desconhecidos da América, da África, do Oriente germinou entre portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, alemães, russos, italianos. Muitas expedições exploradoras, muitas missões de descoberta foram enviadas. Expedições, missões, viajantes fizeram registros, produzindo relatos que consubstanciaram uma rica literatura de viagem. Alguns chefes de missões, como o capitão Baudin que chefou uma missão de descoberta às terras austrais entre os anos de 1800 a 1804, prepararam ou levaram inquéritos para orientar suas observações. Antropologia
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Os antropólogos pioneiros serviram-se desses registros e relatos para colher fragmentos das culturas observadas e compará-los em seus gabinetes, levando-os – muitas vezes – a tirarem conclusões erradas. Malinowiski legou aos antropólogos a indispensabilidade do trabalho de campo, do estar por inteiro no meio social do grupo pesquisado, vivendo com eles seu dia-a-dia, convivendo com as pessoas, compartilhando suas alegrias, suas tristezas, suas angústias, aprendendo suas linguagens, a da língua falada, a do estilo de vida. Ao partilhar a vida do grupo, o pesquisador vai aprendendo pouco a pouco a discernir o que é relevante e o que é irrelevante, o que é significativo e o que acessório. Vai aprendendo o sentido das práticas e apreendendo o sistema de valores, o sistema de pensamento e os sentimentos, as emoções que envolvem e que constituem seu modo de ser, sua existência coletiva.
Malinowiski - Figura 15
Para que se faça etnografia, como diz Geertz, é necessário estar ali, com eles, no meio deles, conversando com eles, observando o que eles fazem, como fazem e buscando ver as coisas do ponto de vista dos atores, compreender o sentido que constroem com a vida que levam. Fazer etnografia é esclarecer, para os estranhos, a lógica informal da vida daquele povo, ou daquele grupo, daquela coletividade. A etnografia é uma leitura do que ocorre no cotidiano, uma descrição que permite compreender o significado do acontecimento, por meio de conclusões explanatórias que dão acesso ao mundo conceitual em que os protagonistas informam seus atos, ao viverem aquele acontecimento. A vida social de um grupo, ensinava Malinowiski, só é compreendida no processo de observação, descrição e análise das práticas do grupo. É no convívio diário, no contato intenso com o grupo que podemos registrar pormenores da vida social, procurando captar as conexões entre detalhes de comportamento e o acontecimento, tirando conclusões que vão sendo sistematicamente verificadas, reelaboradas. 6 1 a r u g i F o p m a c e d o h l a b a r T
No trabalho de campo, temos a oportunidade de registrar e examinar as atividades do dia-a-dia, os comportamentos no cotidiano da vida social. Assumindo uma postura participativa, vamos construindo vínculos afetivos, ganhando intimidade com a população nativa, vendo, ouvindo, fazendo junto com. É olhando, ouvindo, participando dos acontecimentos que vamos captando o que sucede e compreendendo o sentido da vida. Não é demais ressaltar que Antropologia
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o esforço de aprender a fazer e a se comportar de acordo com as regras, com a etiqueta do grupo, nos obriga a exercitar o descentramento de nossas próprias referências. A construção de uma intimidade com um grupo de cultura diferente da nossa, nos exige abertura, polimento, discrição e respeito no olhar, no ouvir, no pensar, no sentir, no viver junto com e do modo como. Exige abertura epistemológica para apreender a língua, as linguagens, os símbolos, estabelecendo a comunicação com o outro. Compreender o pensamento do outro implica ouvir esse outro pensando, elaborando suas explicações, suas interpretações. Exige que acompanhemos seu pensamento, que entendamos sua própria lógica, seus próprios símbolos. A etnografia vai se compondo num ir -e-vir entre o que os sujeitos fazem, como fazem, para que fazem, os sentidos que a ação ou o acontecimento têm para eles e os conceitos com que o pesquisador os analisa e interpreta. O conceito, a teoria do pesquisador, a experiência, a ação cultural dos atores observados configuram dois pólos, dois campos de significação. O ir-e-vir hermenêutico entre esses dois pólos é que possibilita a descrição densa, a boa etnografia. Quando o antropólogo vai para campo, ele tem um projeto de investigação centrado num problema, num conjunto de questões a que sua pesquisa buscará responder. O conhecimento teórico é um requisito desse projeto de investigação e base indispensável de toda e qualquer etnografia. Um bom conhecimento da teoria geral e da teoria específica do tema da pesquisa é que fundamenta o projeto e fornece elementos para a problematização do objeto, para o trabalho de campo, para a análise dos dados e para a escrita do relatório, do texto etnográfico. Os conhecimentos teóricos garantem o foco da investigação, balizando a pesquisa de campo, aguçando a sensibilidade do olhar e ver, do escutar e ouvir, orientando a busca, guiando a escolha, identificando o que é pertinente, distinguindo o que é significativo do que não é. É a teoria que dá suporte à análise dos dados. Ela fornece referências para o desenho de um horizonte, um fundo que nos faculta descrever e analisar os dados em contraste ou em aproximação com ele, criando vias de comunicabilidade da cultura do outro, da sua visão de mundo, dos significados que lhe dão sustentação, num discurso academicamente congruente. O conhecimento teórico municia o pesquisador na elaboração de seu projeto de pesquisa. Na verdade, uma teoria da cultura constitui uma orientação teórico-metodológica, porquanto define um arcabouço conceitual que, por sua vez, define uma abordagem, balizando em linhas gerais a investigação. Desse modo, o Antropologia 38
pesquisador, ao ir para campo com um projeto de investigação, já vai com um projeto claro do que procurar, de como observar. Todo assunto, todo fenômeno está sempre aberto a novas perguntas. Todo conhecimento sobre esse ou aquele fenômeno, esse ou aquele assunto está igualmente em aberto, em permanente construção. São as novas perguntas que motivam novos projetos de investigação, que levam à análise de outros aspectos, outras dimensões ainda não consideradas, produzindo e acrescentando conhecimento novo e, consequentemente, expandindo ou aprofundando a teoria. O pesquisador faz um trabalho de campo para responder a interrogações que formula, sobre determinado objeto de estudo, a partir de questões que emergem no quadro de generalizações que o corpo teórico configura. Evans Pritchard, em conferências sobre Antropologia Social proferidas nos idos de 1950, na Inglaterra, criticou uma prática de pesquisa fundada na concepção espontaneísta de trabalho de campo. Estudantes são estimulados a fazer pesquisa de campo para recolher dados sobre determinado assunto, com insufciente ou nenhum conhecimento teórico. Os alunos se emprenham na pesquisa, mobilizando recursos, tempo, emoção no trabalho que realizam. Colhem grande número de informações e não sabem o que fazer com elas. Sentem-se frustrados e, muitas vezes, com um sentimento de incompetência diante daquele emaranhado de informações. Quando muito, produzem relatórios descritivos, fragmentados, em que utilizam apenas pequena parte dos dados coletados. Grande parte de seu trabalho de campo se perde, pois não conseguem encaixar os dados. F altou-lhes orientação teórica para observar e selecionar materiais. A coleta de dados sem essa orientação é quase sem nenhum valor, pouco acrescentando ao conhecimento já produzido acerca daquele objeto. A crítica de Evans Pritchard, formulada há quase setenta anos, continua bastante atual.
Pritchard - Figura 17
O fazer etnográfico, é oportuno reiterar, pressupõe um bom projeto de pesquisa. Não basta que se defna o assunto de pesquisa. É necessário interrogá-lo, problematizá-lo. Uma investigação se realiza para responder a alguma interrogação, para produzir um conhecimento novo a partir de perguntas ainda não respondidas.
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Capítulo IV – Conceito antropológico de cultura
N o início deste capítulo você relembrará acepções do termo cultura, pois quase todas elas já são suas conhecidas. Com elas você comporá um fundo contrastivo sobre o qual poderá dar maior destaque ao modo como se pensa antropologicamente a cultura, os níveis de abstração que o sentido antropológico do termo consigna e a general idade teórica do conceito, com o objetivo de compreendê-lo em sua extensão e profundidade. Convém, antes de ini ciar a leitura, você se perguntar se tem clareza do que seja um conceito. Essa clareza é fundamental à compreensão da cultura como objeto de pensamento e como conceito central da Antropologia. Caso você tenha alguma dúvida, consulte os verbetes objeto e conceito num dicionário de Filosofia. Ao fazer a leitura, tenha em mente os seguintes questionamentos: Tendo a humanidade como referência, qual a compreensão antropológica de cultura? Tendo um povo, uma coletividade particular como referência, o que é cultura? Partindo do entendimento antropológico de cultura, como eu mesma(o) formulo o conceito? Uma das características da nossa língua é a grande riqueza de seu léxico, tanto no que diz respeito à extraordinária quantidade de vocábulos que compõem nosso idioma, quanto no que diz respeito à sinonímia, e à polissemia respeitante às múltiplas significações que uma mesma palavra pode ter. Cultura é uma dessas palavras polissêmicas. São muitos os sentidos associados ao vocábulo cultura. Alguns de uso corrente, já se cristalizaram no senso comum, de tal modo que quando se fala em cultura eles logo nos vêm à mente. Um desses sentidos, bastante difundidos, é o de cultura como saber, como desenvolvimento do indivíduo por meio da educação, da instrução; outro é o de cultura como conhecimento e fruição das diversas expressões artísticas; outro é o de cultura agrícola. Costuma-se popularmente associar à palavra cultura o sentido de aprimoramento intelectual, o sentido de cabedal de conhecimentos. Nesse sentido o termo cultura envolve o significado de posse, de haver. Ter cultura é ter saber, ter muitos conhecimentos. Antropologia
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Os sentidos de cultivo e de instrução remetem à origem etimológica do termo cultura (do latim colere , cultivar, instruir ; cultus, cultivo instrução). Os vários significados fluentes do sentido original embutido na ação de cultivar, consignam um campo semântico que abriga o sentido genérico de produção (cultura do açúcar), o sentido cumulativo de um tipo de saber (cultura literária, cultura flosófica); o sentido de cultivo da terra (cultura do milho, cultura da soja). A equivalência entre cultura, civilização e progresso aporta ao campo semântico de cultura o signifcado de adiantamento, de progressão que têm como referentes dialéticos os sentidos de atraso, de regressão. Cultura como civilização, como progresso, em sentido comum remete a desenvolvimento econômico e social, o que é um equívoco semântico, uma incorreção terminológica, uma vez que a cultura não se restringe a civilização. Civilização e progresso associam-se primordialmente a desenvolvimento técnico e material, por isso mesmo carregam a conotação de escala, de grau, de estágio, inconciliável ao sentido antropológico de cultura. O conceito antropológico de cultura é uma idéia abstrata e geral do modo de vida de um grupo social, de uma sociedade, uma representação da vida social, de sua organização e de seus conteúdos, seus costumes, seus valores. O conceito é uma noção abstrata que nos possibilita pensar não somente o modo de vida de um dado grupo social, mas também a diversidade de modos de existência coletiva criados pelo homem, de modos de vida em comum, em sociedade, aprendidos e transmitidos como herança social. O entendimento antropológico de cultura é o conceito básico e central da Antropologia. A concepção antropológica de cultura busca elaborar intelectualmente o fenômeno da cultura como objeto de pensamento. É um conceito em movimento, em processo de construção. Quase duas centenas de conceitos transitam na literatura antropológica, indicando a dificuldade que os praticantes da Antropologia encontraram, e ainda encontram, em conceber uma idéia abstrata e geral de cultura, consignando um esquema operatório único pelo qual possamos abarcar o sistema simbólico que ela constitui. A profusão de conceitos que encontramos na literatura antropológica está longe de indicar incongruência teórica, inconsistência científica. Indica o empenho na busca de uma representação capaz de romper com a lógica clássica, segundo a qual a compreensão de um conceito varia na razão inversa de sua extensão. Como o conceito de cultura abarca uma grande extensão de elementos, a compreensão seria menor. Na prática, os diversos conceitos de cultura incorporam novas dimensões conceituais,
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conhecimentos prod conhecimentos produzi uzido dos s por me meii o de di di fer ferentes entes abor abor dage dagens ns teóricas, articuladas a diferentes correntes de pensamento antropológico. Para maior esclarecimento do movimento de construção do conceito antro antr opo poll ógico de cul ultur tura, a, jul j ulga gamo mos s per per ti tinente nente apr apr ese sentar ntar al algum gumas as formulações que nos parecem expressivas do seu desenvolvimento. A ordem de apresentação dos conceitos leva em conta a seqüência das correntes de pensamento, sem qualquer conotação de hierarquia. O primeiro conceito antropológico de cultura foi formulado por E dwar dward d B. B. Tyl or, em 187 1871. 1. Tylor Tyl or conce concebe be a cul cultu turr a com como o um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costu co stume mes, s, hábi hábitos tos e aptidõ apti dõe es adquir adqui r i do dos s em sociedade sociedade..
Tylor - Figura Figura 18
Teori Teo ric camente o conc nce eito de Tylo Tylorr ap apre res senta trê três s idé idéias ias imp impo ortan rtante tes s: a idé idéii a da cul cultu turr a co como um todo co complexo mplexo; a idé idéii a da cul cultu turr a co como herança so social ; a idé idéii a de aquisi aquisiç ção da cul cultur tura a por por aprendizage aprendizagem. m. O caráter evolucionista do conceito se evidencia no sentido ante fixista que as idéias de herança e aprendizagem inscrevem. Se a cultura é um todo que se transmite em sociedade, é um legado soc so ci al al;; se é adq adqui uirr i do do,, é apr apr endi ndido do.. Ro R omp mpe e-se a idé i déii a de i mo mobil bilii dade que as teor teor i as cr cr i ac acii oni nistas stas e fixi fixistas stas pre preco coni nizavam zavam até então. então. A nt ntrr opó póll ogo gos s cont conte empo mporr âneo âneos s a Tyl Tylo or e muitos muitos que o suced sucede er am continuaram pensando a cultura sob diferentes enfoques e contribuíram para o desenvolvimento do conceito, tanto no alargamento, quanto no aprofundamento de sua extensão e compreensão. Conforme variasse a problemática teórica que definisse a preocupação básica de investigação da corrente de pensamento a que o antropólogo se afiliasse, mudava o enunciado, a formulação do conceito, pondo em relevo o novo aspecto em questão ques tão no campo campo da A nt ntrr opo poll og ogii a.
Linton - Figura 19
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R al alph ph L i nt nton, on, por por exe exemplo, mplo, estava estava pre pr eoc ocupado upado co com m a pr pro obl blem emáti ática ca das relações entre cultura e personalidade. Colocou em relevo o compo co mporr tamento como como expr expres essão são empír empírii ca da cultu cul turr a, acres acr esce cent ntando ando ao co conce nceii to a dime di mensão nsão da afetivi afeti vidade dade,, da emo moção ção,, re r essal ssaltan tando do a padronização dos comportamentos e a participação do indivíduo na cul ultur tura. a. K l uckhohn, como como L i nton, estava estava interess in teressado ado nos estudos de cultura e personalidade. Para ele a personalidade constitui um produto social e é, em grande parte, produto da educação. A educação, por sua vez, é culturalmente determinada e controlada. E nt nte ende, poi poi s, a cul cultu turr a co como um mapa mapa que ori orie ent nta a o cam camii nho a seguir na vida social. M al alii nowi nowiski ski co conce ncebe beu u cultu culturr a co como um todo global consi consistente stente (de implementos e bens de consumo, de cartas constitucionais, de
i déi déias as e ofí ofíci cios, os, de cr crenças enças e co costu stume mes). s). Esta E stava va preo preocupado cupado em explicar como as culturas funcionam. Concebendo-as como um sistema, como um todo orgânico, pensava sua constituição em parte part es funcionais funcionais i nter nterde depe pende ndentes. ntes. Para Herskovits, cultura é a parte do ambiente feita pelo homem. Aparentemente simplista, a definição proposta implica um amplo espectro de conteúdos. Nela está implícito o reconhecimento de que a vida do homem transcorre em dois cenários, o habitat natural e o seu “ambiente” social. (...) Abrange todos os elementos existentes na maturidade do homem, dotação que adquiriu de seu grupo por aprendizagem consciente, ou, em nível um pouco diverso, por um processo de condicionamento, técnicas de vários gêneros, instituições sociais ou outras, crenças e modos padronizados de conduta. A cultura pode, em resumo, ser contrastada com os materiais brutos, patentes ou não, de que deriva. Dá-se forma a recursos apresentados pelo mundo natural para satisfazer necessidades existentes e os traços congênitos são modelados de modo que das disposições congênitas surjam os reflexos domii nant dom nantes es nas manifestaç mani festaçõe ões s externas de conduta conduta (He (H er skovi skovits, ts, 1963 1963 p. 31-32 31-32). ).
Herskovits - Figura 20
Boa oas s e Kee K eessi ssing, ng, como como L i nt nto on, co consi nside derr am o co compo mporr tamento express xpressão ão tangível da cultur cult ura, a, dime di mensão nsão per per ce ceptí ptíve vell , to t or nando nando-a -a observável, analisável e interpretável, conferindo à Antropologia um campo próprio de conhecimento. Boas entende a cultura como totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracteri zam o co compo mporr tamento humano. K ees essi sing ng ent ente ende a cultura como comportamento cultivado, ou seja, a totalidade das expe xperr i ências adquir adquir i das e ac acumul umuladas adas pel pel o home homem m e transm tr ansmii ti tida da socialmente. A utor utore es como como K r oebe berr e Lo L owi wie e de destaca stacarr am a autonom autonomii a da cul cultur tura, a, sua independência lógica em relação aos membros da coletividade que a detêm. Para eles a cultura existe através dos homens e nos homens, mas possui uma realidade independente dos indivíduos. L owi wie e i nsi nsiste ste no car aráter áter sui ge generi neris s da cul cultur tura, a, no se senti ntido do de que só pode ser explicada em si mesma. Até pouco mais da metade do século XX, os antropólogos cl assifi assifica cavam vam a cul cultur tura a de ac aco or do co com m a tangibil tangibi l i dade ou i ntan ntang gi bil bilii dade de suas suas expr expr essõ ssõe es. Tornou-se co cor r ente a di disti stinçã nção o entre cultura material e cultura imaterial (não material). M ai ais s re r ece cent nte eme ment nte e, esse esse tipo ti po de classi classifi ficaç cação ão,, embo emborr a ainda ai nda utilizada por alguns, perdeu sua importância, uma vez que o conceito de cultura como sistema simbólico que permite a Antropologia
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comunicaç comuni cação ão humana, co como mo si sistema stema de si si gni gnifi ficado cados, s, torn t orno ou essa classificação obsoleta, pois tanto garfo e faca, como casa, celulares ou satéli satéli tes arti art i fi fic ci ai ais, s, bem bem co como l i nguag nguage ens, le l ei s, casam casame ento, família, ciência, religião ou arte são criações culturais com que o homem produz seus meios de vida, confere sentido a seu modo de vida vi da e à própri própri a vida. vida. Essas E ssas cr cr i açõ ações es só se mantêm vi vivas vas enquant enquanto o forem valorizadas pelo grupo que as mantém. Podemos ver que a formulação antropológica do conceito de cultura apresenta dificuldades. A primeira dificuldade diz respeito aos diferentes níveis de abstração que o sentido antropológico do termo cultura abriga. Quando se pensa antropologicamente o que é cul cultu turr a, tem-se a humanidade humani dade co como mo r efe eferr ênci ncia. a. O conce conceii to antropológico de cultura perspectiva a humanidade como totalidade, cuja distintividade se caracteriza pela capacidade de criar e desenvolver modos extraordinariamente diversos de ser e de existir em sociedade, como coletividades particulares. Cada cul cultur tura a par par ti tic cul ular ar é uma uma das das par par tes consti nstituti tutivas vas da da totalii dade da cultur total cult ura a humana. humana. O co conce nceii to antro antr opo poll ógico de cultur cult ura a é, no ní níve vell da totali dade dade,, (como (como valor e expe experr i ência humana), uma generalização teórica que abrange as diversidades culturais e que, por isso mesmo, se constitui em suporte teórico de referência para o conhecimento da cultura de qualquer povo, de qualquer coletividade humana. O conceito de cultura é o conceito fundamental de toda análise e explicação antropológica.
Figura 21
A qui nos apr apr oxi xima mamo mos s de uma uma seg segunda difi di fic cul uldade dade: os paradoxo paradoxos i mp mpll í cit cito os na uni uni dade da espé espéc ci e humana humana e sua formidáve formi dávell dive di verr si sidade dade cult cultur ural al.. A humanidade humani dade é uma uma só, só, por por ém suas exprr es exp essõ sões es empír empírii cas são di dive verr sas. A humani humanidade dade são são todos todos os homens, home ns, de todos todos os tempos, tempos, de todo todos s os lugar lugares. es. Mas M as os homens homens se agrr upam em co ag coll eti tivi vidade dades s di di sti stintas ntas: ár árabe abes, s, chi chines nese es, br br asil asile ei r os, borr or os, xavante bo xavantes, esqui esquimó mós, s, zulus. zul us. E l as têm em em co comum o fat fato o de ter sua cul cultur tura a par par ti tic cul ular. ar. Ter Ter cul ultur tura a própr própr i a tor tor na todas todas essas populações tão diferentes em seu modo e estilo de vida, e ao mesmo tempo tão iguais em sua humanidade, em sua capacidade de criar cultura, em sua diversidade. A cultura é universal como Antropologia
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experiência humana, todavia, cada realidade cultural particular é única. Ao compararmos as diferentes concepções de cultura, podemos perceber que a acepção pluralista do termo, a variabilidade dos focos de entendimento não impedem que se possa des cobrir convergências. Os diversos conceitos convergem para o entendimento da cultura como modo de vida em coletividade. E sse modo de vida é pautado em certa visão de mundo que um sistema de significações circunscreve. Esse sistema de significações está envolvido em todas as formas de atividade social, conferindo sentido ao que as pessoas fazem, porque o fazem, e ao modo como fazem. Está na base do modo como as pessoas percebem, concebem, sentem.
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Capítulo V – O outro.
N este capítulo convidamos você a entender, junto conosco, o conceito do outro para pensar a diversidade, com o objetivo de entender que a diferença não quer dizer desigualdade. Ao ler o texto, tenha em mente as seguintes questões : Variedade e diversidade têm o mesmo sentido? A que se refere a expressão diversidade cultural? O que são diferenças de substâncias (ou diferenças substantivas)? Em que se distingue a espécie homo sapiens sapiens ? Os indivíduos dessa espécie apresentam certas variações de traços. Essas variações são substanti vas? Qual o entendimento antropológico do outro? Com que propósito a Antropologia trabalha a relação eu/nós e o outro/os outros? Um dos aspectos mais evidentes do mundo que habitamos é a extraordinária variedade dos seres e das coisas que o compõem. O próprio universo de que a terra é apenas um componente muito pequeno, apresenta uma imensa variedade de corpos e partículas. Os astros, estrelas, planetas, luas, cometas, asteróides, meteoros se movimentam na imensidão cósmica.
Figura 22
Quando começamos a pensar a variedade de astros, (designação comum a todos os objetos celestes), de saída observamos que eles possuem pelo menos um elemento idêntico, em sendo todos eles objetos celestes. Continuando a exercitar nosso pensamento, verificamos que eles apresentam semelhanças e diferenças e que as diferenças, em sendo atri butos distintivos, distinguem os astros uns dos outros. Podemos então agrupá-los, conforme suas semelhanças e diferenças, distinguindo uma espécie das outras do mesmo gênero. Entre os astros podemos distinguir, por exemplo, estrelas e planetas. As estrelas são astros luminosos, os planetas não. A luz própria é a característica, o atributo que distingue estrelas e planetas como astros de modalidades diversas. A diferença, nesse caso, se encontra na base da defnição e da classificação de estrelas e planetas como duas modalidades de astros, porquanto permite agrupá-los por disjunção ou equivalência.
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Mas é bom não perder de vista que ter luz própria, ou não ter, apenas distingue um tipo de astro de outro, não atribui valor. Permite apenas classificar um dado astro como planeta ou como estrela. As diferenças, quando atributo essencial de astros, objetos, animais, minerais, plantas são utilizadas como critério de definição de tipos, de modalidades, de classes de astros, de objetos, de animais, de minerais, de plantas. Sendo atributo essencial é um critério efcaz de distinção, por isso util izado para classificar. Mas nenhum atributo, por mais essencial que nos pareça, não qualifica, não valoriza. Simplesmente distingue. A luz própria como atributo das estrelas, por exemplo, não qualifica essa ou aquela estrela como melhor ou pior, nem valoriza as estrelas como melhores ou piores que os planetas. Do mesmo modo que não qualifica, não autoriza a atribuir valia em menor ou maior grau à estrela ou ao planeta. Prosseguindo no exercício de pensar a variedade dos astros, verificamos que as estrelas e os planetas apresentam diferenças entre si mesmos. As estrelas são diferentes umas das outras. Há, por exemplo, estrelas velhas, novas e super novas; há estrelas grandes, estrelas pequenas, estrelas anãs; há estrelas que, como o sol, constituem um sistema planetário em torno de si. Os planetas, por sua vez, também são diferentes uns dos outros, pois há planetas grandes e planetas pequenos; há planetas que têm ou não têm satélites gravitando em torno de si ; há planetas que são ou não são habitados.
Novo sistema solar - Figura 2 3
No plano específico de uma mesma espécie de astros, das estrelas - por exemplo - há variações, como acabamos de anotar. As diferenças, porém, não são atributos essenciais, não distinguem qualitativamente um indivíduo estrela de outro. Uma estrela grande, um estrela pequena, uma estrela anã têm tamanhos diferentes, mas todas elas continuam sendo essencialmente estrelas. Categoricamente, não se distinguem, pois a distinção categórica, conforme a tradição aristotélica ensina, se apóia em diferenças de substâncias ou de essências do ser. E as diferenças de idade, de tamanho das estrelas não são diferenças que as distingam substancialmente.
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Se conduzi rmos nosso pensamento do espaço sideral de volta à terra e começarmos a pensar a variedade de seres que habitam nosso planeta, o raciocínio sobre a diversidade, sobre a diferença seguirá caminho semelhante ao que fizemos em relação aos astros. Procuraremos, entretanto, fazer algumas inferências, acrescentando novos elementos à linha de argumentação que estamos desenvolvendo, no sentido do esclarecimento de que diferença não implica desigualdades. Com o propósito de balizar uma linha de discussão da diversidade humana, nessa mesma linha de argumentação, vamos encaminhar nosso raciocínio sobre a diversidade em nosso planeta, partindo da diversidade de seres vivos, em interação com seres não vivos que integram o ambiente natural. Algumas características gerais distinguem os seres vivos dos demais seres.. Os seres vivos nascem, crescem, reproduzem e morrem. Além desse ciclo vital, os seres vivos compartilham outras características comuns que queremos destacar por sua importância na linha argumentativa que adotamos. Os seres vivos são seres diversificados, seres de incompletude, seres em aberto, seres em relação, ação e interação com o seu meio. Algas e amebas unicelulares vivem em relação com o seu meio ambiente, “trabalham” para obter seus meios de vida. São seres de incompletude, abertos ao mundo em seu entorno, pois não sobreviveriam sem interação com o meio. Assim também são grandes árvores como castanheiras, sequóias, jequitibás e grandes animais como baleias, bois, antas, elefantes. Como as algas e as amebas, as grandes árvores e os grandes animais também vivem em relação com seu meio, também “trabalham” para obter seus meios de vida, também são seres de incompletude, também são seres em aberto. Os seres da mesma espécie tendem, ao mesmo tempo, à agregação. As castanheiras, por exemplo, tendem a se agregar ocorrendo em determinado espaço da Amazônia, integrando uma população. Ao mesmo tempo, as castanheiras se dispersam em diferentes áreas da Amazônia. E, atualmente, submetida à ação antrópica predatória das frentes de expansão econômica, (extração de madeira, criação de gado, plantio de soja), a população de castanheiras vem diminuindo drasticamente.
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Nós pertencemos à espécie homo sapiens sapiens . Nós, os humanos, como os demais seres vivos, também nascemos, crescemos, reproduzimos, morremos. O homem também é um ser de incompletude, aberto ao mundo e em relação, ação e interação com o meio em que vive. Também o homem trabalha para obter
seus meios de vida. Vestígios da presença de nossos ancestrais na África, na Ásia, na Europa e nas Américas remontam há milhares de anos. Muitas e muitas espécies já existiam há milhões de anos, em tempos que antecederam a presença do homem. Algumas delas, como os dinossauros, cujos vestígios estão fartamente documentados, já haviam desaparecido quando o homem apareceu e somente a magia do cinema é que os traz de volta, em filmes como o Parque dos Dinossauros de Spilberg. A espécie homo sapiens sapiens , todavia, diferentemente das outras espécies, mobilizou capacidades inatas à sua natureza animal, para desenvolver habilidades que favoreceram sua sobrevivência, fortaleceram sua agregação e ampliaram sua capacidade de adaptação, beneficiando sua dispersão pelos mais diferentes ambientes. O homem conseguiu fabricar instrumentos e ferramentas, conseguiu criar símbolos e com eles organizar, significar e representar o mundo. Com eles conseguiu dar sentido à sua existência, à vida, à morte. Aprendeu, por exemplo, a dominar, controlar e utilizar coordenadamente inspiração e expiração, cordas vocais, laringe, língua, nariz, cavidade bucal, glote, dentes, alvéolos, lábios para produzir uma incrível variedade de sons. Opondo um som a outro, conferiu-lhes sentido, simbolizando-os e organizando-os num sistema de comunicação verbal. A espécie homo sapiens sapiens tem uma história de longa duração e, ao longo dela, vivenciou processos de adaptação e seleção que produziram certas diferenças de traços físicos, afetando a aparência dos indivíduos. Como os indivíduos de qualquer espécie, os homens apresentam variação. Há variação de tamanho, de peso, de tom de pele, de formato de crânio, de textura de cabelo, enfm de certos traços exteriores que, embora diferenciando os indivíduos uns dos outros, não afetam a estrutura biológica da espécie. Por outro lado os grupos 4 2 a humanos, dispersos pelas várias r u g i regiões da terra, desenvolveram F l a um leque de culturas. Assim t r e d a Antropologia define como n a e n postulados a unidade biológica m e da espécie e a sua diversidade m o H cultural.
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Quando nascemos, nascemos numa dada coletividade, portadora de uma dada tradição cultural. Herdamos um fenótipo característico de nosso grupo e a tradição cultural dessa coletividade. Quando cada indivíduo nasce, geralmente é socialmente acolhido numa família. Desde o seu nascimento é um ser em relação com as outras pessoas que compõem seu universo familiar. O bebê tem vínculos biológicos e afetivos com esses outros próximos e deles recebem a tradição cultural, por meio de processos de socialização. À medida que o bebê cresce, vai se integrando a outros grupos sociais. Desenvolvendo e ampliando a percepção de pertencimento. Ao entrar em ontato com pessoas de grupos que não são os seus, a pertença e a não pertença passam a mediar a relação com o outro. O outro é, por oposição ao mesmo, ao semelhante, o diverso, o múltiplo. Enquanto oposto ao eu, ao nós, o outro é constitutivo de um objeto de pensamento. Construindo intelectualmente o outro, tomo consciência de mim, do eu. O outro como alter ego , como outro eu, afirma a minha existência, permite perceber-me. Figura 25
A Antropologia ao definir as diferenças como seu objeto de estudo, assumiu para si a tarefa de pensar o outro, de pensar as relações com o outro, ou seja, de pensar as relações de alteridade (as relações entre eu e o outro, entre nós e os outros), relações carregadas de tensão. A Antropologia estuda as diferenças entre sociedades e culturas. Estuda também as diversidades culturais e sociais existentes no interior de uma sociedade. Por conseguinte o outro assume gradações bastante variadas. O conceito do outro enquanto diferente do eu, do nós é um conceito fundamental do pensamento antropológico, como enfatizamos acima. É importante reiterar que o conceito do outro é indispensável à consciência de si, à consciência do eu, à consciência do nós, à consciência da subjetividade coletiva, à consciência da intersubjetividade possível, à consciência da inclusão e da exclusão mediada pela diferença, à consciência da manipulação da diferença para produção de desigualdades. A distinção antropológica entre eu e o outro, entre nós e eles foi proposta com finalidade heurística, isto é, como uma diretriz na pesquisa antropológica. De modo algum presta-se a reforçar tipos ideais, subentendidos em oposições como primitivos/civilizados. O pensamento antropológico do outro rompe a visão do outro como
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estranho, como externo, como o que não pertence à mesma humanidade que a minha. Propõe um novo olhar sobre a diferença, sobre o outro como o mesmo, como eu, como nós, ao enxergar no outro minha humanidade e a humanidade do outro em mim, dentro de nós mesmos. O pensamento antropológico do outro, em última instância, propõe uma visão mais generosa, mais abrangente de humanidade e uma postura mais aberta, mais tolerante frente às diferenças. O uso do conceito antropológico do outro é um instrumento teórico que serve para desvendar o social e o cultural e que serve, também, para o nosso próprio desenvolvimento em nossa relação com a diversidade. O pensamento antropológico do outro ganhou consistência e concitou desdobramentos teóricos ao distinguir, criticamente, duas atitudes polares frente à diferença: o etnocentrismo e o relativismo.
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Capítulo VI – Etnocentrismo e Relativismo
N este capítulo oferecemos a você elementos para compreender as
concepções teóricas do etnocentrismo e do relativismo cultural, com o objetivo de construção de referências que possibilitem identificar essas práticas (incluindo as suas), analisando criticamente suas implicações sócio-educativas. Sugerimos que você faça a leitura balizada pelos seguintes questões: Diferença e desigualdade são a mesma coisa? Em que consiste o etnocentrismo? Que modalidades de etnocentrismo são mais comuns em nossa sociedade? Que atitudes o etnocentrismo favorece? No sentido filosófico o que é relativismo? E no sentido antropológico? Como se caracteriza o relativismo crítico? Na mais distante antiguidade, romanos e gregos entraram em contato com outros povos de outras regiões, do oriente próximo, do norte da África. Desde então, os povos europeus foram construindo uma visão de superioridade de si e de sua cultura, em relação aos outros. A avaliação restritiva dos outros, como inferiores, como ocupantes de um lugar mais baixo na classificação e na hierarquia de seres humanos, se expressa no conteúdo simbólico dos termos que utilizaram para nomeá-los genericamente: bárbaros, selvagens, primitivos. Esses termos remetem à idéia de atraso, desumanidade, incivilidade. Punha-se em dúvida a condição de humanidade do outro. Foi o que ocorreu quando Colombo descobriu a América. Os europeus viram os índios como seres exóticos, como seres tão diferentes que embora parecessem humanos, ficava-se em dúvida se realmente eram gente. Foi preciso a promulgação de uma bula papal declarando que o índio tinha alma para, de acordo com as concepções da época, reconhecer-lhe a condição de humano, de gente. Nos primeiros séculos que se seguiram ao descobrimento da América, do Brasil, do caminho para as Í ndias, esses novos mundos exerceram enorme atração sobre o “velho mundo” e despertaram imensa curiosidade sobre as pessoas em geral, despertando a Antropologia
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curiosidade e o interesse de missionários, de aventureiros e de estudiosos em particular, como já frisamos em capítulo anterior. As Academias, as Sociedades Científicas, os governos de muitos países europeus financiaram expedições, viagens de estudo a essas terras, para colherem e levarem notícias sobre elas, sua geografia, suas riquezas naturais, suas espécies botânicas, zoológicas, sua gente, seus costumes e suas atividades econômicas. Essas expedições, esses viajantes, além de colherem dados, amostras, materiais diversos das terras e dos seus habitantes, produziram uma farta e rica documentação, mapas, desenhos, croquis. Os relatórios de suas viagens constituem um rico manancial de informações, de grande interesse para as mais variadas áreas de conhecimento. O Brasil foi um dos destinos mais requisitados dessas viagens. Para cá vieram viajantes ilustres, missionários, militares, condes, padres, cientistas. Um desses viajantes notáveis foi Auguste de Saint-Hilaire. Esse sábio francês, sob a influência do Conde de Luxemburgo, veio para o Brasil em 1816 e aqui permaneceu durante seis anos. Saint-Hilaire viajou por M inas Gerais, Rio de J aneiro, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Santa Catarina e Rio Sul. Para se ter idéia da importância das informações e materiais que levou para a Europa, só na área da Botânica colheu 30.000 amostras, representando 7.000 espécies, das quais 4.500 eram até então desconhecidas.
Hilaire -
Figura 26
Muitos dos seus relatórios de viagem foram publicados em português. No seu relato sobre Viagem à província de Goiás lemos as seguintes passagens: Os olhos negros e brilhantes das mulheres de Goiás traem as paixões que as dominam, mas seus traços não têm nenhuma delicadeza, seus gestos são desgraciosos e sua voz não tem doçura. Como não receberam educação, sua conversa é inteiramente desprovida de encanto. São inibidas e estúpidas, e se acham reduzidas praticamente ao papel de fêmeas para os homens. É fácil entender por que os homens do lugar, afastados de um ameno convívio social e levando uma vida de ociosidade no meio de mulheres sem princípios e sem a menor instrução, se mostram pouco exigentes em matéria de gosto e de diversão. F ica assim explicado o gosto generalizado pela cachaça entre os habitantes de Vila Boa. Enfraquecidos pelos seus próprios desregramentos, entediados por uma vida sem perspectiva, eles encontram na aguardente o
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estimulante que os arr anca por alguns instantes de sua apatia e os impede de sentir a monotonia de sua existência. Saint-Hilaire (1975 p.54)
L ogo adiante, pretendendo de algum modo contornar a crítica cortante feita aos homens pelo “hábito da cachaça”, Saint -Hilaire cita outro viajante, George Gardner, que faz o seguinte comentário relativo ao gosto pela cachaça, que também havia observado entre os brasileiros: Ao voltar do Brasil, desembarquei numa manhã de domingo em Liverpool, e nesse mesmo dia vi vários ébrios nas ruas da cidade, fato esse que nunca tinha observado entre os brasileiros, brancos ou negros, durante os cinco anos de minha permanência no Brasil. ( in Saint-Hilaire, 1975 p.54)
Comparando os comentários de Saint -Hilaire e de Gardner, podemos constatar duas modalidades de olhar sobre o “habito da cachaça” observado entre os homens brasileiros: 1) um olhar de estranhamento, de desqualifcação dos homens brasileiros como fracos e desregrados, pelo “habito da cachaça”, hábito atribuído à falta de mulheres que se apresentassem de acordo com o modelo idealizado da mulher européia de bons princípios, fina, instruída, delicada, de gestos graciosos e voz doce. 2) Um olhar que descobre semelhanças (hábito da bebida) e diferenças (embriaguez nas ruas), sem estranhamento, sem desqualificação dos homens brasileiros, ao contrário, com visão crítica de seus patrícios. Esses dois olhares expressam duas posturas, duas atitudes costumeiramente adotadas frente ao outro, frente à diversidade cultural: o etnocentrismo e o relativismo. Retomemos o relato de Saint-Hilaire sobre sua viagem à Província de Goiás, focalizando uma vez mais seu modo de ver as mulheres goianas. Ao passar pela localidade de Santa L uzia, (hoje cidade de L uziânia, próxima a Brasília), o viajante francês faz o seguinte comentário: Como em Minas as senhoras do lugar caminhavam o mais lentamente possível, envoltas em longas capas de lã, a cabeça coberta com um chapéu de feltro, sempre em fila indiana, jamais aos pares, eretas como estacas, mal erguendo os pés do chão, sem olharem para lado nenhum, quando muito respondendo com um leve aceno de cabeça aos cumprimentos que lhes faziam. (p.24). Antropologia
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Saint-Hilaire já sabia que, de acordo com os costumes locais, as mulheres frente a estranhos deveriam ficar recolhidas no interior da casa e, em lugares públicos, manter uma postura distante, silenciosa, de gestos comedidos. Ao circularem pelas ruas, encobriam o corpo com vestes sóbrias e andavam sem olhar para os lados. Mesmo assim faz o seguinte registro sobre as mulheres da capital da Pr ovíncia de Goiás: Durante o dia só se vêem homens nas ruas da cidade de Goiás. Tão logo chega a noite, porém, mulheres de todas as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte. Geralmente fazem o seu passeio em grupos, raramente acompanhadas de homens. E nvolvem o corpo em amplas capas de lã, cobrindo a cabeça com um lenço ou um chapéu de feltr o. Também nessas horas elas caminham umas atrás das outras, e antes se arrastam do que andam, sem moverem a cabeça nem os braços, parecendo sombras deslizando no silêncio da noite. Algumas vão cuidar de seus negócios particulares, outras fazem visitas, mas a maioria sai à procura de aventuras amorosas. (p.54).
7 2 a r u g i F s á i o G e d a o B a l i V
Como Saint-Hilaire teria observado em mulheres com o corpo envolvido “em amplas capas de lã”, com cabeças cobertas com um lenço ou um chapéu, caminhando “umas atrás das outras”, “sem moverem a cabeça”, “parecendo sombras deslizando no silêncio da noite” seus mais recônditos sentimentos? Como em mulheres descobriu “olhos negros e brilhantes” que “traem as paixões que as dominam? Como sabia que “a maioria sai à procura de aventuras amorosas”? Os comentários de Saint-Hilaire revelam uma atitude preconceituosa em relação às mulheres, não apenas, mas
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principalmente em relação às goianas. Coloca-as na condição de coisa, de objeto, de seres infra-humanos. Sua visão combina machismo com moralismo, incorporando também a visão estereotipada, de cunho bíblico, da mulher como sede do pecado, da tentação, dos maus instintos. A visão centrada que Saint-Hilaire expõe na avaliação dos homens da terra como ociosos, fracos, desregrados e das mulheres como estúpidas, incultas, feias, grosseiras, guiadas por maus instintos é a espécie de visão que antropologicamente se identifica como etnocêntrica. Everaldo Rocha, doutor em Antropologia, nos oferece uma definição clara e objetiva do que é etnocentrismo: Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a difculdade de pensarmos a diferença, no plano afetivo, como sentimento de estranheza, medo, hostilidade etc. Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo estes dois planos do espírito humano – sentimento e pensamento – vão compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas. (Rocha, 1991 p.7).
Na relação de alteridade, tendemos a utilizar critérios autocentrados de distinção e avaliação, referidos em valores próprios de nossa cultura, adotando categorias de ser que estabelecem subdivisões do ser humano, instaurando uma ordem humana, com níveis de humanidade. Percebemos os outros como supostamente não tão humanos quanto nós somos, como pertencentes a uma humanidade inferior à nossa. Assumimos a atitude de julgar os valores, as normas, as instituições, os costumes, o modo de ser do outro de acordo com os nossos, que consideramos “naturais”, “normais”. Em conseqüência, somos levados a avaliar a diferença que o outro nos faz presente, nos torna visível, como incômoda, inaceitável, intolerável. A diferença nos incomoda, nos descentra, porque afeta nossas certezas, nossa segurança. Nós procuramos resolver o incômodo, como já enfatizamos, localizando-a no outro, responsabilizando o outro pela “desordem”, pelo “desequilíbrio” que ela traz à nossa visão de mundo, aos nossos conceitos, às nossas verdades. É que antes do confronto com o outro nós temos um conceito Antropologia
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exclusivo de homem, de humano, de humanidade, fundado na nossa própria visão de mundo. O outro tem modos de ser, de pensar, de fazer, de agir e de sentir que contrariam e confundem nossas referências. Resolvemos a dificuldade de lidar com a diferença, imputando-a ao outro. É ele que é o diferente, o estranho. A estranheza é relativa a ele e não a mim. Não consideramos a possibilidade de pensá-lo pelo enfoque da diversidade. Como nossas referências particulares não dão conta de explicar as do outro, preferimos mantê-lo fora do conceito de humano e de humanidade, próprias de nossa tradição cultural, desobrigando-nos do reconhecimento de seus direitos humanos. O etnocentrismo pode emergir tanto na relação de uma sociedade com outra sociedade, como na relação de um grupo com outro grupo, no interior de uma mesma sociedade. Tanto num caso como no outro, o etnocentrismo se expressa no pré-conceito que se forma sobre o outro, sem maior conhecimento. É relevante considerar que o etnocentrismo tem também uma dimensão positiva importante para qualquer sociedade ou grupo humano. Toda sociedade, todo grupo constrói uma idéia positiva de si mesmo, uma auto-imagem reforçadora e estimulante da auto-estima. E, é claro, todos nós precisamos de auto-estima. Mas essa dimensão positiva não releva o caráter de intolerância que o etnocentrismo inscreve em relação ao outro. Tão importante quanto a elaboração do conceito de etnocentrismo foi a elaboração do conceito de relativismo cultural. Esses dois conceitos constituem um importante passo no desenvolvimento teórico do conhecimento antropológico.
Figura 28
O entendimento do conceito de relativismo cultural remete à concepção de diversidade cultural, entendida como pluralidade de culturas individuais e autônomas. A discussão do relativismo e da diversidade cultural passa, necessariamente, pela questão da diferença. É oportuno retomar a diferença, pensando-a como uma Antropologia
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dimensão do real respeitante à variedade, à pluralidade. Quando constatamos que a cultura do grupo A é diferente da cultura do grupo B estamos constatando a diversidade de culturas, ou seja, estamos nos referindo à existência de uma pluralidade ou multiplicidade de culturas. Quando falamos em diferença cultural, portanto, é indispensável ter presente que a diferença não é atributo exclusivo de A ou de B, por não ser intrínseca exclusivamente a nenhum deles, a nenhuma cultura em particular, uma vez que diz respeito à totalidade cultural da humanidade, isto é, diz respeito à diversidade como propriedade essencial da totalidade das culturas humanas. O relativismo cultural, embasado nessa perspectiva da diversidade cultural como propriedade essencial da totalidade das culturas humanas, postula o reconhecimento e o respeito mútuo entre as diferentes culturas. O relativismo cultural postula uma concepção aberta da diferença, propondo uma perspectiva descentrada do olhar e uma visão de mundo sensível a outras formas de viver em sociedade, a outras alternativas de ser e estar no mundo. Tem presente que toda cultura se explica por sua própria lógica. O relativismo cultural propõe o diálogo, o reconhecimento do outro, buscando compreendê-lo mediante seus próprios valores, buscando conhecer a lógica interna da sua cultura, dos seus modelos e defnições de ser no mundo. No relativismo, o plano intelectual neutraliza e supera sentimentos etnocêntricos, ensejando posturas mais generosas na relação de contato. A relativização é uma preliminar do pensamento antropológico. O antropólogo estuda as culturas humanas, pressupondo que todas são equivalentes como valor e como experiência. A diversidade de modos de ser e existir em sociedade aponta a possibilidade de uma infnidade de modelos, de tramas. O relativismo permite ao antropólogo libertar -se das limitações que sua visão de mundo lhe impõe, podendo apreender e compreender, com mais clareza, outros sistemas de pensamento, outros modos de relações e de representações.
Mulher gira fa- Figura 2 9
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Assumir o relativismo como uma condição necessária ao conhecimento do outro, requer um processo reflexivo, em que se tome criticamente como objeto a própria cultura e a si mesmo. Sendo o outro o objeto intelectual da pesquisa antropológica, a superação do etnocentrismo se apresenta como condição fundamental de conhecimento. O olhar antropológico implica o estranhamento do familiar, do próximo, do conhecido. Nesse
processo de estranhamento, constitui-se o descentramento necessário à relativização. É importante reiterar que o processo de relativização envolve pensar o outro e sua cultura nos termos de suas próprias referências. O relativismo cultural, de uma perspectiva crítica, não se esgota na constatação de que cada cultura possui seus critérios de classifcação e de avaliação, ou na posição epistemológica do conhecimento de dentro para fora, ou na posição “neutra” de que não há superioridade ou inferioridade entre as diferentes culturas. Sabemos que, no desenvolvimento histórico das relações entre culturas, processos de dominação marcaram e orientaram contatos entre os povos, produzindo relações desiguais. A concepção de relativismo cultural crítico vem se incorporando à análise das culturas, apontando as hierarquizações historicamente produzidas, dando suporte teórico à crítica das desigualdades que afetam as relações entre povos e culturas. Nenhuma cultura é superior ou inferior à outra, mas os processos históricos de contato produziram desigualdades que não podem ser ignoradas. Por esse enfoque, o relativismo não se restringe a reconhecer a relatividade dos critérios culturais, a entender que cada cultura particular tem sua própria lógica interna que é necessário conhecer, para que se possa compreendê-la.O relativismo envolve, além do distanciamento do olhar, comprometimento com o outro, apoio efetivo a suas lutas por direitos específicos. O reconhecimento das desigualdades, por essa perspectiva de relativização, impõe participação solidária nos esforços de superação dos processos de dominação. Tomemos como exemplo as sociedades indígenas sobreviventes em nosso país. O relativismo cultural implica reconhecer que cada grupo indígena possui sua própria cultura, que cada uma delas tem seu modo particular de conceber o mundo, de organizar sua vida social e dar sentido à sua existência. Cada grupo possui sua própria tradição, seus costumes, suas práticas, suas regras, seus códigos, seus processos de simbolização. Essa forma de relativização, contudo, se circunscreve ao reconhecimento de que índio tem cultura, de que a cultura indígena deve ser avaliada conforme seus próprios critérios. Mas isso não é suficiente. O relativismo crítico envolve necessariamente o reconhecimento do processo de inferiorização dessas culturas em relação à nossa e da situação de desigualdade, resultante do processo histórico de dominação dos povos indígenas, desde o início da colonização do Brasil. Assumir a postura do relativismo crítico implica comprometimento com as lutas por inclusão democrática, pelos direitos específicos que a Constituição de 1988 reconhece aos povos indígenas: o direito Antropologia
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à terra, o direito à sua cultura, o direito à educação, o direito à diferença, com respeito e dignidade. A teoria antropológica no Brasil segue a tendência, disseminada em todo o mundo, de refnamento conceitual do relati vismo cultural. O esforço de aprofundamento se desenvolve com vista a elaborar categorias de análise que: a) não deformem a realidade observada, procurando superar a mediação etnocêntrica da análise antropológica, produtora dessa deformação, em função da utilização de parâmetros da nossa própria cultura, no estudo da cultura de outros grupos ou sociedades; b) orientem criticamente o exame da complexidade relacional, que se confgura no crescente processo de globalização da economia, implicando vários níveis de dominação que, por sua vez, requerem diferentes processos de relativização, na perspectiva de autonomização dos grupos culturalmente diferenciados, no contexto da sociedade capitalista. Com o entendimento das concepções de etnocentrismo e relativismo, estamos avançando na compreensão antropológica da cultura. O conceito de cultura vai incorporando, em seu processo de refinamento, o movimento dialético dessas concepções nas teorias antropológicas, como veremos na Parte II .
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D S E T N E R CO R O T N E M A S PEN O C I G Ó L AN TRO PO
A
s ciências, como toda produção humana, experimentam um movimento histórico. As mudanças e transformações ocorrem num processo dinâmico de infuências recíprocas, entre as ciências, o meio social e cultural em que forescem. As ideologias dominantes em dado período histórico fundamentam as postulações que estão na base do pensamento científico, dos diversos campos disciplinares, das ciências em geral e das Ciências Humanas, de modo mais intensivo. As ideologias, enquanto conjunto de idéias, princípios e valores que informam uma determinada visão de mundo, condicionam formas de pensamento. Os praticantes de uma ciência, cujas idéias, representações e formulações teóricas têm uma base ideológica comum, formam uma corrente de pensamento. A Antropologia, como sabemos, nasceu na segunda metade do século XI X. Os pioneiros nesse campo de saber, elaboraram suas proposições teóricas num contexto em que as idéias evolucionistas ganharam consistência e credibilidade, corporificando um novo paradigma, isto é, um modelo de pensamento que os membros da comunidade científica compartilhavam. O modelo evolucionista de pensamento entra em crise face a outras ideologias emergentes, nos centros de produção de estímulo intelectual. Outras correntes se formam, favorecendo a germinação de novos temas, novos problemas, novas abordagens. No desenvolvimento científico da Antropologia, várias correntes de pensamento se formaram. E nfocaremos, a seguir, as correntes fundamentais, priorizando aquelas cujas contribuições fecundaram a teoria antropológica, marcando a obra de autores que alcançaram grande expressão, tendo seus trabalhos teóricos repercutido dentro e fora do seu campo de estudo.
Capítulo VII – Evolucionismo Neste capítulo, conversaremos sobre a teoria evolucionista da cultura, suas concepções, suas preocupações, o que pretendia explicar e sobre as críticas que lhe foram feitas, tendo como objetivo a construção de referências para perceber, estranhar e combater a persistência de concepções estereotipadas sobre a diferença, vinculadas a idéias evolucionistas ultrapassadas que dão suporte a discriminações e preconceitos. Você pode balizar sua leitura pelas seguintes questões: Quais os postulados do evolucionismo? No que consiste a visão evolucionista? O que os antropólogos evolucionistas pretendiam demonstrar? Quais as principais críticas feitas ao evolucionismo? Na segunda metade do século XI X a Europa vivia um momento de intensa efervescência intelectual, em torno do confronto entre duas visões de mundo, naquele momento inconciliáveis. De um lado estavam os que comungavam com a concepção criacionista do universo, de outro os que comungavam a concepção transformista do universo. A doutrina teológico-metafísica do criacionismo proclama que Deus criou o universo do nada. Segundo essa doutrina, Deus – o criador do universo – fez o homem, o mundo físico e o mundo orgâni co à sua imagem e semelhança. L ogo o homem, o mundo físico e o mundo orgânico são imutáveis, uma vez que reflexo do criador. Acreditava-se na fixidez do universo, na imutabilidade das espécies. Embora a tese criacionista fosse dominante, algumas idéias discrepantes começaram a ser cultivadas no meio intelectual, desde o século XVI I I , como as idéias de evolução defendidas por Condorcet, apoiadas na crença da unidade psíquica do gênero humano e no progresso das civilizações por ele desenvolvidas. O potencial revolucionário dessas idéias, contudo, só mais tarde viria a ser ativado em presença das idéias de transformação defendidas por L amarck, segundo as quais as modificações do mundo físico e do mundo orgânico são interagentes. As atividades dos organismos vivos repercutem na transformação do mundo físico e vice-versa. Lamarck postula que as espécies vivas não se explicavam pelas teorias fixistas, mas pelo fato de umas se transformarem em outras. Antropologia
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Fundamentando-se nos avanços das idéias de transformação de seus antecessores, Darwin elaborou uma tese explicativa da origem e evolução das espécies, segundo a qual as espécies sofrem transformações no decorrer do tempo. Uma espécie viva pode transformar-se em outra espécie de modo lento, sob a ação de fatores externos, ou de modo brusco por mutações. Nas pesquisas que desenvolveu, Darwuin procurou lançar luz sobre a origem das espécies e sua evolução, em interação com o meio, pela via da seleção natur al. Procurou mostrar que as espécies, em constante adaptação com o meio, se diversificaram e se aperfeiçoaram.
Darwin - Figura 3 0
A tese da criação, como explicação unívoca da diversidade do mundo natural e da diversidade do mundo orgânico e, por extensão, da diversidade cultural estava irremediavelmente abalada. A teoria da evolução das espécies rompe a visão criacionista, pondo em xeque as categorias estáticas do pensamento medieval, ainda persistentes, bem como as explicações sobrenaturais dos eventos biológicos e dos eventos culturais. Como recurso didático, podemos nos reportar a uma situação atual para ilustrar a força do impacto causado pelas idéias evolucionistas, suas repercussões ideológicas e práticas. Estamos no século XXI . Recentemente, nossa sociedade engolfou-se numa grande polêmica em torno da disposição legal relativa ao uso de embriões humanos em pesquisa científca. As opiniões se dividiram formando dois campos de pressão contra e a favor da permissão. Com a repercussão na mídia do conflito entre esses dois campos de pressão, descortinaram-se não apenas a polaridade ideológica existente, mas também conseqüências práticas que envolviam. O conflito de opiniões entre os que defendem e os que condenam o uso de embriões humanos em pesquisas científicas refete uma diferença radical de entendimento sobre início da vida humana, sobre direitos à vida, sobre liberdade de pesquisa, sobre ética científica, sobre desenvolvimento do conhecimento. O confronto entre os que defendem e os que condenam o uso de embriões humanos em pesquisa científica não nos dá mais que uma pálida idéia do fragor de embate entre criacionistas e evolucionistas ao tempo de Darwin. Para os dirigentes da igreja e para seus fiéis conservadores, o uso de embriões humanos em pesquisas científicas é inaceitável, sob o argumento da proteção ao direito à vida, tal como no século XI X, para os dirigentes da igreja e para seus fiéis conservadores era inaceitável pensar a hipótese de uma origem comum, para a espécie humana e espécies de macaco.
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A pesquisa com embriões humanos, segundo dirigentes da igreja e fiéis conservadores, fere a dignidade humana, do mesmo modo que para seus pares do século XI X, pensar a origem comum do homem e do macaco era uma ofensa à dignidade do homem, rei da criação, feito à imagem e semelhança de Deus. A reação contra o evolucionismo tem em seu cerne uma dimensão filosófico-religiosa e uma dimensão psicológica. Do ponto de vista filosófico-religioso, o evolucionismo operava a dessacralização da origem do mundo e do homem, mexendo com as explicações transcendentais de onde veio e para onde vai o homem, o que abalava toda a construção religiosa do mundo e da existência humana. A repercussão do abalo dessas explicações sobre o sentido da vida e da morte gerava insegurança, a que se associava a dimensão psicológica do narcisismo ferido, com a perda da posição de rei que o criacionismo conferira ao homem, para tornar-se, simplesmente, uma entre as múltiplas possibilidades de resultado do processo evolutivo. A questão de fundo que estimulou a constituição do campo de estudos antropológicos se articulava à problemática da origem da vida e dos seres vivos, porém centrando seu interesse na origem do homem e da cultura. Os antropólogos evolucionistas estavam preocupados em explicar como se processou o desenvolvimento da espécie humana e da sua diversidade cultural. Entendiam que poderiam construir essa explicação investigando os processos e mecanismos por meio dos quais se dava a evolução. A investigação desses processos e mecanismos caminhou em duas direções: o estudo e a pesquisa focados na dimensão física do homem (Antropologia Física e Biológica), o estudo e a pesquisa focados na diversidade cultural da espécie humana (Antropologia Cultural ou Social). Ambas as direções tomavam como referência teórica central o conceito de evolução. Ante a evidência de fósseis humanóides descobertos na África, na Ásia e na Europa, a Antropologia Física (ou Biológica) atribuiuse a tarefa de explicar os processos adaptativos que levaram a transformação de um primata no homem moderno. Comparando características atuais às de fósseis de nossos ancestrais remotos, os antropólogos, os arqueólogos e os paleontólogos se empenham em recompor a linha evolutiva, com base nas evidências de transformações anatômicas, de adaptações estruturais como o alongamento das pernas; a nova anatomia do pé (junção dos dedos), favorecendo a sustentação do peso do corpo, necessária à postura ereta; a oposição do polegar aos outros dedos da mão, favorecendo sua utilização como pinça; a visão binocular com profundidade de foco; o aumento da capacidade da caixa craniana, necessária ao aumento do tamanho e desenvolvimento do cérebro; a modificação Antropologia
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da pélvis facilitando caminhadas mais longas; a modificação funcional dos dentes. O número de fósseis já descobertos, embora pequeno, fornece evidências da evolução do homem a partir de ancestrais préhumanos. Comparando os fósseis, os estudiosos identifcaram quatro fases evolutivas, com base nas transformações estruturais: pré-homínida, representada pelo Australopithecus , que viveu há cerca de três milhões de anos e já possuía alguns artefatos; Homo erectus , representado pelo Pitecanthropus erectus , que viveu há aproximadamente mais de quinhentos mil anos, possuía artefatos de pedra e armas; Homo sapiens , representada pelo homem de Neandertal, que viveu em cavernas, usava o fogo e praticava caça e coleta; Homo sapiens , representado pelo homem de Cro-Magnon, que viveu há mais de quarenta mil anos, tendo sido possivelmente contemporâneo do homem de Neandertal. Após o desaparecimento das glaciações, o homem de Cro-Magnon se espalhou pelos diversos continentes. Sua cultura complexa é associada comumente à fabricação de instrumentos e armas de pedra lascada. Desenvolveu também notável arte de pintura, desenho e modelagem, de escultura, de murais em baixo relevo e outras formas de expressão. O Homo sapiens sapiens descende diretamente do homem de CroMagnon. As diferenças raciais tornaram-se um tema caro ao evolucionismo. O estudo das raças vem despertando interesse dos cientistas de diversos campos, desde o século XVI I I . E sse tema continuou seduzindo os antropólogos evolucionistas. E mbora se tenha construído um consenso sobre a origem comum – pertencemos ao gênero Homo e à espécie sapiens , muitos evolucionistas continuaram a explicar a variedade de proporções corporais e das características físicas dos humanos como distintivas de subespécies, classificando-as em três tipos básicos: negróides (negros), caucasóides (brancos) e mongolóides (amarelos). Essa linha de estudo das raças, pretendia explicar a variação de características físicas na espécie. O problema é que esse estudo sofreu um desvio de perspectiva, passando a avaliar essa variedade tomando como referência as características básicas atuais do homem europeu. As variedades de características físicas atuais do homem, encontradas em populações australianas, asiáticas, americanas e africanas foram tomadas como evidências de etapas evolutivas anteriores. Os estudiosos acreditavam que essas variações exprimissem resultados particulares da evolução da espécie e fossem, por isso mesmo, fixas e imutáveis. Estabeleceram “tipos” ideais de variantes caracterizadas por uma dada combinação de caracteres físicos. As variedades que não se encaixavam nesses tipos foram presumidas como produtos Antropologia 66
híbridos, levando em conta os contatos entre as variantes da espécie. Na base dessa classifi cação persistia a visão criacionista que dava sustentação à hi pótese de criação separada. M esmo após a superação da visão criacionista pela teoria evolucionista, o conceito de tipos básicos permanece na noção de raça e na classificação das raças em superiores e inferiores, cada uma delas vista como resultado da evolução de espécies subumanas. Nessa mesma linha de raciocínio corria, também, a teoria da superioridade das raças puras sobre as raças mestiças, produto da hibridação. F ormouse a idéia de desigualdade evolutiva entre as raças, tendo como corolário a idéia de inteligência relativa. Postulava-se a existência de graus de inteligência racial, isto é, cada raça teria uma capacidade de inteligibilidade mais ou menos desenvolvida. E ssa postulação não se sustenta, pois a ciência implodiu sua base lógica, desmoronando a fantasia da superioridade dos brancos. Para evolucionistas de outra corrente, a evolução física do homem se fez acompanhar da evolução cultural. A constituição da cultura teria uma base comum, a partir da qual se diversifica. A espécie humana teria, portanto, constituído uma proto-sociedade que se diversificou em sociedades originais, que se tornaram distintas e estranhas umas das outras. Essa concepção levava em conta os processos adaptativos. Todavia, mesmo postulando uma evolução biocultural da humanidade, os evolucionistas separaram os estudos da evolução física e da evolução cultural como processos estanques.
Instrumentos pedra lascada Figura 32
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Os primeiros antropólogos evolucionistas se esforçaram em estabelecer a Antropologia como ciência, pondo-se como tarefa inicial a reconstrução lógica do esquema evolucionista da cultura, para explicar a diversidade cultural frente a unidade biopsíquica do homem. Como já assinalamos, Tylor (1871) – um pioneiro da ciência antropológica – formulou o primeiro conceito científico de cultura, fornecendo suporte teórico para o estudo das diversas culturas, a partir dos seus componentes (conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes etc). Na condição de generalização empírica, temse que toda cultura (presente, passada e futura) é um conjunto complexo que apresenta a possibilidade de descrição e comparação. Antropologia
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O conceito procura responder à questão o que é cultura, do ponto de vista antropológico, explicando-a como fenômeno distinto, como realidade empírica passível de descrição, de análise e de explicação. A ciência antropológica em formação estava preocupada em responder a dois grandes desafios: explicar a diversidade cultural pela perspectiva evolucionista e reconstituir o esquema unilinear de desenvolvimento cultural, através do método comparativo. O projeto investigativo dos evolucionistas era a comparação das sociedades humanas entre si, tendo os costumes como foco de comparação. Os costumes eram vistos como entes, separados de seus contextos, descarnados das relações sociais e dos valores. São tomados como evidências de estágios sócio-culturais, permitindo dispô-los numa seqüência, numa escala. No campo das representações sociais, por exemplo, Tylor comparou crenças de sociedades “primitivas” e de sociedades “mais avançadas” e conclui u que a manifestação religiosa mais primitiva é a crença de que almas e espíritos animam todas as coisas e todos os seres vivos. Denominou esse estágio religioso”primitivo” de animismo e propôs a seguinte escala evolutiva religiosa: animismo > magia > idolatria >politeísmo > monoteísmo. Frazer (1915), outro antropólogo inglês, postulando uma linha evolutiva entre religião e ciência, inferiu a existência de três fases evolutivas do conhecimento: magia > religião > ciência. Segundo Frazer, o homem primitivo se encontraria na fase da magia. Para o primitivo a recorrência dos acontecimentos indicaria uma ordem invariável, com leis permanentes e imutáveis. As sociedades primitivas conferiam ao mago o poder de interferir nessa ordem e de infuenciar a natur eza e suas leis. Pensava-se que o mago conhecia essas leis, estando por isso habilitado a lidar com elas, podendo interferir nos acontecimentos. De acordo com Frazer os indivíduos mais inteligentes, dessa etapa de evolução, foram percebendo a pouca efcácia da magia diante da natureza, passando a atribuir essa limitação à condição humana do mago. Abriu-se, a partir daí, a possibilidade de conceber deuses, com poderes de intervenção e alteração do curso da natureza. Propiciando os deuses, os homens poderiam induzi-los a beneficiá-los. Os propiciadores mais bem sucedidos se tornaram especialistas de mediação entre homens e deuses (sacerdotes). As sociedades com crenças em deuses e com sacerdotes capacitados a fazer bem a mediação, superavam a fase da magia, entrando na fase da religião. Posteriormente, as sociedades mais avançadas foram descobrindo que o poder dos deuses sobre as leis da natur eza era ilusório, entrando na última etapa da evolução com o desenvolvimento do pensamento científico. Antropologia
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O conceito de sobrevivência associado ao conceito de evolução e ao conceito de cultura, compõe o esquema explicativo que garante fundamento teórico à reconstituição da linha evolutiva, numa seqüência progressiva, com estágios de desenvolvimento dispostos num ordenamento pretensamente lógico, do mais primitivo ao mais civilizado. Como a linha evolutiva se associa à idéia de progresso linear, pensava-se que toda cultura deveria passar pela mesma sucessão de fases, ou estágios de desenvolvimento, na sua marcha evolutiva. Pensava-se que a diversidade cultural dava a ver culturas em diversos estágios de evolução. Estabelecida uma escala ascendente do mais primitivo ao mais civilizado, os povos e suas culturas eram avaliados e situados nessa escala. As culturas dos chamados povos primitivos, realidades empíricas vivas, seriam, na atualidade, expressão de estágios e graus de evolução anteriores à civilização. Por esse mesmo enfoque, a permanência de práticas, crenças, instituições culturais primitivas no interior de culturas pertencentes a estágios evolutivos mais avançados, (como a persistência de superstição nas culturas européias), são explicados como sobrevivência. Morgan, um dos autores evolucionistas de maior prestígio, elaborou um esquema da evolução cultural. O esquema evolutivo, por ele formulado, distingue três estágios principais de evolução cultural : selvageria, barbárie e civilização, conforme quadro abaixo:
ESTÁGIO Selvagem
Bárbaro
GRAU Baixo Médio Alto Baixo Médio
Civilização
Alto Baixo Médio Alto
DESENVOLVIMENTO Invenção da linguagem Uso do machado Invenção do arco e flecha Invenção da cerâmica Pastoreio, agricultura, irrigação Domesticação do ferro Invenção da escrita Invenção da pólvora, da bússola, do papel, da imprensa Invenção da máquina, da indústria
Morgan fez também a análise do desenvolvi mento da idéia de governo, da evolução da família, das transformações da propriedade privada. O evolucionismo deu importantes contribuições ao conhecimento antropológico, ressaltando a objetivação da cultura, isto é, a Antropologia
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identificação da cultura como fenômeno observável, analisável, explicável, o que lhe confere estatuto de objeto cientí fico; a visão de que os fenômenos culturais podem ser estudados cientificamente, do mesmo modo que os fenômenos da natureza; a utilização do método comparativo, como substitutivo do método experimental para analisar, explicar os fenômenos culturais em direção a proposições descritivas gerais, ou seja, permitindo a construção de generalizações empíricas sobre cultura e diversidade cultural. As generalizações, é oportuno lembrar, possuem a propriedade lógica de explicar o observado e registrado e vão mais além, na medida em que permitem saltos indutivos. Poderemos entender com mais clareza essa propriedade através de um exemplo: a generalização antropológica de que toda cultura possui categorias de classifcação de seus membros. E ssa afirmação é resultado de observações realizadas. Para além das culturas empíricas observadas, entretanto, essa generalização se estende a culturas de que já se tenha registro ou não, porquanto remete à faculdade epistemológica de construção de um sistema próprio de classificação social. A observação sistemática de várias culturas, ainda que não atingindo a totalidade das culturas, permite, num salto indutivo, fazer a generalização de que as sociedades humanas dispõem de um sistema de classificação de seus membros. Uma das críticas que se faz ao evolucionismo diz respeito às leis imutáveis que governariam o espírito e o comportamento humano. Que leis seriam essas? Como demonstrá-las? As explicações dos estágios da evolução, aparentemente lógicos, são conjeturas, resultam de abstrações. As análises evolutivas foram em grande parte deficientes, equivocadas, preconceituosas, dando suporte, por exemplo, a usos espúrios de dominação e exploração de muitos povos. A vulgarização de concepções estereotipadas, como já acentuamos, deu sustentação ao racismo, justificado numa infundada relação causal entre raça e desenvolvimento cultural, que o próprio evolucionismo científico não avalizava. O evolucionismo vulgar supõe uma evolução cultural biologicamente sustentada, o que, por sua vez, implicaria que as diferenças raciais expressassem diferentes estágios de evolução do homem. Tomando o fenômeno do progresso tecnológico da civilização européia numa relação mecânica com a raça branca, inferi u-se que a raça branca expressa biologicamente o mais alto grau de evolução, sendo por isso produtora do mais alto grau de civilização.
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A tese do evolucionismo científico, no campo social, era de que as disparidades culturais não resultavam de predisposições congênitas, isto é, não eram inatas, nem biologicamente condicionadas. Uma das postulações do evolucionismo cientí fico
era a unidade psíquica do homem – todo os homens possuíam as mesmas capacidades mentais. As diferenças de progresso cultural, segundo os evolucionistas, são mostras empíricas de estágios tardios, indo da mais ou menos arcaica, às mais ou menos civilizadas. As culturas “primitivas”, consideradas “documentos” vivos de etapas evolutivas anteriores, passaram a ser objeto de interesse da Antropologia. Os termos em que as concepções evolucionistas se referiam deram margem a entendimentos equivocados, levando à universalização da inferência da superioridade das sociedades mais civilizadas e da inferioridade das mais arcaicas ou primitivas, transpondose a explicação do campo biológico para o campo social, de modo assistemático e acrítico. A i deologia etnocêntrica da superioridade das culturas européias se disseminou como verdade incontestável. O etnocentrismo, como princípio classificatório das culturas, relegou todos os povos não europeus a planos inferiores. O etnocentrismo tomou a forma de racismo, ideologia perversa que legitima a violência de homens contra homens, a privação da igualdade de direitos baseada na diferença de cor, na diferença de origem, como se a condição de humanidade fosse redutível a traços fenotípicos, e os homens fossem uns mais humanos e outros menos humanos, subhumanos. Ao eleger as sociedades civilizadas como ápice da evolução, e as sociedades ditas “arcaicas” ou “primitivas” como o pólo inferior da linha evolutiva, o evolucionismo forneceu argumento teórico ao colonialismo para justifcar a conquista e a dominação, sob a pretensa extensão das vantagens da civilização aos povos que ainda não haviam alcançado esse estágio “superior”. Ao definir como objeto as sociedades fora da esfera da civilização, a Antropologia se punha a serviço do colonialismo, ela própria profundamente impregnada da ideologia eurocêntrica, segundo a qual os povos europeus constituíam a referência comparativa, pelo seu maior grau de civilização.
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Capítulo VIII – Difusionismo e culturalismo
N este capítulo vamos estudar as abordagens difusionista e culturalista da cultura e os focos de interesse de seus estudos, com o objetivo de conhecer suas teses, suas concepções, suas contribuições e as críticas de que foram alvo. Ao ler, tenha em mente as seguintes questões: Qual era a tese que os difusionistas defendiam? Que contribuições deram ao conhecimento antropológico? Qual a principal crítica feita aos difusionistas? Como os culturalistas pensavam a cultura? O que diz a teoria da aculturação? A que conclusão os estudos culturalistas de traços culturais permitiram chegar, em relação à concepção de cultura simples? Quais as críticas que foram feitas à corrente culturalista?
A tese evolucionista de grandes etapas de evolução históricocultural da humanidade começou a ser posta em questão no final do século XI X, com a proposição de novas explicações acerca da diversidade cultural. A tese evolucionista da trajetória histórica unilinear da humanidade não leva em consideração as possibilidades de formas divergentes e de sua propagação no espaço. Assumindo uma posição discordante, antropólogos europeus e americanos inauguraram uma nova corrente de pensamento, postulando que os processos de invenção, promotores de mudanças culturais abrangentes, são muito raros e quando se instauram em uma sociedade tendem a se propagar no espaço, pela difusão cultural. A tese que os difusionistas defendem é que a partir de um número limitado de focos de difusão, certos elementos culturais se propagam, através de empréstimos, circulando de um grupo para outro, de uma sociedade para outra. A semelhança de traços culturais entre dois ou mais grupos indiciaria um processo de difusão desses elementos culturais. Os difusionistas realizaram grande esforço científico de estudo da Antropologia
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circulação de traços cultur ais, buscando reconstituir itinerários de propagação, mapeando círculos de difusão e identificando áreas culturais, ou seja, áreas de concentração de traços culturais semelhantes. Procuravam, por meio de suas pesquisas, esclarecer a origem espaço-temporal da formação e composição das culturas ou de seus componentes, apoiados na análise de territórios e na comparação restrita de elementos culturais e de suas combinações. Franz Boas, expoente inconteste do difusionismo americano, deu importantes contribuições teóricas sobre difusão social e geográfica dos elementos de cultura, sobre suas mutações, combinações e dissoluções, sobre contatos interculturais. Para Boas o estudo descritivo dos fenômenos de difusão é uma etapa preliminar da análise e interpretação dos processos de aculturação e de mudanças culturais. Crítico severo das generalizações evolucionistas, defendeu a imprtância das teorias de médio alcance na construção do conhecimento antropológico e a importância dos cálculos estatísticos de probabilidade nos estudos de difusão cultural.
Boas - Figura 33
Os difusionistas rejeitaram as distinções de raça inferior e superior, de cultura primitiva e evoluída. Propõem a análise cultural nos seguintes termos: a observação de elementos ou traços culturais, (menor unidade de uma cultura), permite reuni-los em conjuntos que, por sua vez, permitem identificar complexos culturais. A observação da ocorrência desses complexos culturais em extensões geográficas contínuas ou descontínuas permite a identificação de áreas culturais e do seu foco de difusão. Entendiam que a observação da semelhança de objetos e de instituições nas culturas de grupos localizados em uma área geográfica fornece elementos importantes para a reconstituição de uma história cultural de médio alcance. Para os difusionistas, os empréstimos culturais são promotores de dinâmica cultural. As formas sociais e culturais surgem numa dada sociedade, num dado sítio, num dado momento. Os traços culturais, por meio de empréstimos, difundem-se posteriormente noutras sociedades que os adotam. A sociedade geradora é, do ponto de vista difusionista, um centro de desenvolvimento e difusão cultural. As pesquisas antropológicas orientadas pelas hipóteses difusionistas tinham como projeto investigativo a reconstituição de processos de difusão e de migração cultural, considerando-se a historicidade e a particularidade de manifestação das formas culturais nas diversas sociedades em que ocorrem. Os difusionistas entendiam que ao detectar empréstimos e adoção Antropologia
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cultural de uma instituição por outro povo, refutavam a hipótese evolucionista de que o aparecimento das instituições decorre de processos de desenvolvimento natural de instituições precedentes, menos evoluídas, sem levar em conta o papel dos indivíduos nos processos de criação e transmissão da cultura. Segundo Boas, o crescimento cultural não é orgânico, porquanto os elementos culturais têm desenvolvimento gradual, adquirindo a forma presente por acréscimo de materiais culturais vindos de fora, de outras culturas. Boas e seus discípulos não se ativeram à análise da difusão cultural. Procuraram explicar a relação indivíduo-sociedade e a relação meio-contatos históricos. Para eles o indivíduo pode mudar sua cultura, assim como a cultura formata a personalidade do indivíduo. O meio físico pode influenciar decisivamente a configuração das culturas e as culturas podem, igualmente, modificar o meio. Embora se reconheça que as pesquisas dos antropólogos afiliados à escola difusionistas contribuír am para a explicação dos contatos e das trocas interculturais, não se pode deixar de reconhecer como pertinente a crítica ao seu dogmatismo, à excessiva esquematização dos mecanismos de difusão e ao seu mecanicismo interpretativo. Contemporaneamente ao difusionismo, formou-se nos Estados Unidos, na década de trinta, a corrente culturalista de pensamento antropológico. A corrente culturalista se forma em torno do interesse teórico acerca das relações entre cultura e personalidade e os fenômenos que resultam do contato intercultural direto e contínuo. I mprimindo em seus trabalhos uma orientação psicológica, os culturalistas defniram a cultura como sistema de comportamentos aprendidos e transmitidos , num dado meio social, por meio da imitação, do condicionamento, da educação informal. Para eles a cultura estrutura os comportamentos pela educação.
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De acordo com a teoria das relações entre cultura e personalidade que elaboraram, a modelagem da personalidade pela cultura se opera pelas instituições, pelas regras e pelas práticas rotineiras. No que concerne aos fenômenos que resultam do contato entre grupos culturalmente diferenciados, elaboraram a teoria da aculturação, segundo a qual o contato direto e contínuo entre duas culturas diferentes gera modificações nos modelos culturais originais de uma ou das duas. As modificações podem ser por assimilação de certos traços, ou pela reinterpretação de seus significados (aculturação), ou pela reação buscando restaurar o modo de vida tradicional (contra-aculturação), ou pela perda progressiva de traços essenciais da cultura de origem (desculturação).
Os estudos culturalistas focados na relação cultura e personalidade desenvolveram o conceito de personalidade de base, própria dos membros de uma sociedade. A personalidade de base seria uma configuração psicológica particular, manifesta no estilo de vida de uma configuração cultural específica. O estilo de vida próprio de uma cultura fornece o engrama básico dos fios com que os indivíduos tecem as variações da personalidade de base. Na mesma linha de pensamento, desenvolvem também a teoria configuracionista, segundo a qual as culturas podem ser identificadas segundo sua configuração geral caracterizada por orientações e pautas culturais convergentes. Essa configuração geral se inscreve nas instituições, na vida social e nos comportamentos individuais, conferindo-lhes uma modelagem característica, um acento particular, um estilo, uma personalidade dominante. A configuração cultural manifesta-se na valorização de certas condutas, de certos valores, de certas inclinações ideológicas e afetivas que assinalam e marcam em profundidade a cultura, em toda sua extensão. As configurações culturais se objetivam na coerência relacional entre a forma como a educação procede a estruturação da personalidade e os modelos culturais que a impregnam. Para os culturalistas a cultura é um todo ordenado composto de elementos que formam o sistema cultural. Os elementos básicos são os traços culturais. Traços culturais são, portanto, a menor unidade de um sistema cultural que se pode identificar. Os traços culturais se combinam formando complexos. Os complexos se combinam em padrões que são formas culturais distintivas. O conceito de traço cultural foi empregado na identificação de elementos culturais e na análise de sua combinação em formas culturais estruturadas. Por exemplo, na análise de nossos hábitos alimentares podemos identificar os alimentos que compõem o cardápio usual. Arroz e feijão se destacam como componentes básicos de nossas refeições diárias principais. A combinação arroz e feijão, associada alternativamente a farinha e/ou carne e/ou verduras e/ou legumes, é uma forma cultural de cardápio básico, um padrão de refeição característico do povo brasileiro. O estudo de traços culturais não se restringiu, porém, à sua identificação e combinação. Ele permitiu a implosão da concepção das culturas dos povos ágrafos como culturas simples. Estudos de grupos indígenas, com populações numericamente muito pequenas, com tecnologias muito rudimentares, demonstraram que suas culturas, presumidamente “simples”, possuíam uma fabulosa lista de milhares de elementos, eram bastante complexas, principalmente na forma como esses elementos se relacionavam entre si.
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Entre povos indígenas brasileiros, a cultura bororo oferece um bom exemplo. Os bororo não tinham o domínio da escrita, possuíam uma tecnologia rudimentar, o que os incluí a na classificação de povo ágrafo de cultura “simples”, “primitiva”. Contrariamente, a sua organização social, seu sistema de parentesco, suas cerimônias funerárias, seu sistema ritual apresentam extraordinária complexidade. E ssa complexidade quebra e esvazia de sentido a concepção de cultura simples e, por extensão, de povos sem escrita, como povos “primitivos”. Não se pode naturalizar o desenvolvimento tecnológico como indicador de complexidade, ou de desenvolvimento cultural. O desenvolvimento material não é determinante de desenvolvimento social e cultural.. Os críticos da corrente culturalista atribuem-lhe uma simplificação do problema da formação da personalidade; uma definição insatisfatória dos padrões, favorecendo descrições e análises fragmentadas; a pressuposição da anterioridade lógica da cultura; indução à análise mecanicista de processos de aculturação.
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Capítulo IX – Funcionalismo
N este capítulo, vamos construir o entendimento da abordagem funcionalista, suas concepções, suas preocupações teóricas, suas contribuições e as críticas que lhe são feitas, com o objetivo de acompanhar o movimento do conceito de cultura e de adquirir elementos que auxiliem no reconhecimento de permanências da visão funcionalista, principalmente no âmbito da organização e funcionamento do sistema de ensino. Sugerimos que, ao fazer a leitura, leve em consideração as seguintes questões: O que os antropólogos funcionalistas estavam empenhados em mostrar? Pela ótica funcionalista, como se concebe a cultura? Que diferenças distinguem o conceito funcionalista de cultura, em relação ao conceito evolucionista? Como o enfoque funcionalista favoreceu e fundamentou a visão relativista? Por que a metodologia desenvolvida pelos funcionalistas tornou-se a marca da pesquisa antropológica? Que críticas são feitas ao funcionalismo?
A corrente funcionalista, na Antropologia e na Sociologia, começou a constituir -se como reação ao evolucionismo. O termo funcionalismo foi usado pela primeira vez na década de trinta, por Malinowiski e Radcliffe-Brown, numa nova perspectiva teórica assentada em duas premissas fundamentais: é cientificamente indispensável que os antropólogos colham seus dados, eles próprios, deslocando metodologicamente a investigação de gabinete, (praticada pelos evolucionistas), para a pesquisa de campo; é teoricamente relevante explicar as formas pelas quais se promovem a interação e a interdependência dos elementos culturais e as formas pelas quais as instituições e as estruturas de uma sociedade se interligam sistêmicamente. O olhar antropológico, até então direcionado para a evolução da cultura, numa perspectiva diacrônica, desvia-se para o funcionamento da cultura. O funcionali smo prioriza a análise sincrônica da cultura, isto é, a análise da realidade presente, rejeitando as reconstruções Antropologia
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históricas por considerá-las altamente conjeturais. Recusam a análise de traços culturais isolados. Privilegiam as relações e as recorrências, preocupando-se em extrair proposições gerais dos fenômenos estudados, utilizando o método indutivo que busca explicar o fato ou fenômeno particular como exemplo de uma regra geral. A utilização do método indutivo no estudo da cultura requer a concepção dos fatos sociais como realidades “objetivas”, que podem ser explicadas por outros fatos sociais. Postulando as sociedades como sistemas sociais funcionais, os funcionalistas pretendiam descobrir suas leis culturais. Diferentemente dos evolucionistas que comparavam costumes, os funcionalistas comparam sistemas de relações. A análise antropológica funcionalista tem como propósito o conhecimento da “função vital” que cada um dos elementos cumpre na cultura como um todo. A cultura passa a ser vista como um todo indivisível, no qual todos os elementos são interdependentes. Essa visão é basilar ao entendimento de que cada objeto, cada costume, cada idéia, cada crença, cada instituição, cada sentimento desempenham uma função vital no organismo social. A cultura é pensada como um sistema integrado e coerente. Se cada um de seus elementos desempenha um papel na totalidade que integra, tem nela um sentido que precisa ser compreendido em termos desse mesmo sistema que integra. O estudo empírico dos fatos sociais encarnados no seu contexto cultural, é que possibilita apreendê-los numa relação funcional com a totalidade ordenada de que é parte. O estudo da cultura, sob essa ótica funcionalista, impõe ao pesquisador o trabalho de campo, facultando que suas análises possam ser feitas em termos da cultura investigada, de acordo com a sua lógica interna, tornando o próprio grupo estudado referência das explicações. Ao fazerem esse movimento de reconversão epistemológica, os funcionalistas assumem que todo sistema cultural é dotado de racionalidade, cabendo ao pesquisador apreendê-la, neutralizando a tendência de se tomar as culturas européias como modelo, como centro de referência. A sociedade européia, diferentemente do pensamento evolucionista que a define como centro, como modelo, passa a ser apenas uma entre muitas modalidades possíveis de existência em sociedade. A cultura estudada, investida de sua subjetividade coletiva, passa a ser um espelho em que a cultura do pesquisador se reflete, o que Antropologia
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lhe permite vê-la e a si mesmo sem os filtros etnocêntricos que costumeiramente obscurecem uma visão crítica. A teoria funcionalista da cultura pode ser sinteticamente apresentada nos seguintes termos: 1) as sociedades humanas são organi smos vivos; 2) esses organismos vivos têm necessidades elementares, básicas, de caráter biológico e ambiental ; 3) para atender essas necessidades elementares os grupos humanos desenvolveram instituições primárias como primeiras respostas culturais; 4) dada a primeira resposta, surgem novas necessidades da vida humana associativa; 5) novas respostas são elaboradas, criando-se as instituições derivadas; 6) cada uma das respostas culturais tem um caráter funcional ; 7) o sistema cultural compreende a totalidade de respostas culturais 8) a cultura como sistema, porém, é mais que a soma das necessidades e das respostas. O conceito funcionalista de cultura se desenvolve no sentido teórico de pensar a cultura como sistema e a tarefa do antropólogo é decifrar o funcionamento desse sistema, por meio do método funcionalista, que pode ser definido como metodologia de exploração da interdependência, articulada a uma teoria sobre como as sociedades funcionam. A essência, a natureza fundamental ou característica do funcionalismo pode ser exposta com rapidez e simplicidade: as sociedades humanas e suas respectivas culturas existem como todos orgânicos, constituídas de partes interdependentes. As partes não podem ser plenamente compreendidas separadamente do todo, e o todo deve ser compreendido em termos de suas partes, suas relações umas com as outras e com o sistema sóciocultural em conjunto. (White, 1978 p.43).
White - Figura 3 4
O conceito funcionalista de cultura pensada como sistema supera o conceito de cultura pensada como um conjunto de traços desconectados, como os evolucionistas pretendiam. Avança se, portanto, da idéias evolucionista de cultura como um todo complexo, cuja relação entre seus elementos não é questionada,
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para a idéia funcionalista de cultura como sistema vivo e dinâmico, cujos elementos são interdependentes, preenchendo cada qual uma função específica no esquema integral. Preocupado em responder à questão de como funcionam os sistemas culturais e de que forma chegaram, em sua diversidade, a ser o que são, Malinowski (1962) procura dar uma resposta a essas questões elaborando a teoria funcionalista da cultura, partindo do pressuposto que os indivíduos sentem dadas necessidades, assim os homens em diferentes tempos, em diferentes lugares, elaboraram coletivamente respostas a essas necessidades. A cultura tem como função sistemática satisfazer essas necessidades fundamentais, e cada uma o faz à sua maneira. De acordo com Malinowiski, as necessidades básicas fundamentais e seus concomitantes culturais são os seguintes: NECESSIDADES BÁSICAS Metabolismo Reprodução Bem-estar corporal Seguridade Movimento Crescimento Saúde
RESPOSTAS CULTURAIS Abastecimento Parentesco Abrigo Proteção Atividades Exercitação Higiene
As necessidades fundamentais são integradas por necessidades derivadas. Estas surgem no homem em conseqüência de sua associação a outros homens e correspondem-lhes outras tantas soluções organizadoras. NE CESSI DADE S BÁSI CAS Produção, uso, manutenção e renovação dos utensílios e bens de consumo Codificação das normas de comportamento e sanções relativas Conhecimento e transmissão da tradição Autoridade e poder para cada instituição
RE SPOSTAS ORGANI ZATI VAS Economia Contrato Social Educação Organização política
Considerando mais amplamente a abordagem funcionalista das necessidades fundamentais, é interessante anotar que alguns antropólogos desdobram a discussão pelo enfoque de pré-requisitos
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funcionais que se encontrariam na base de todas as sociedades humanas:
Provisão para uma relação adequada com o ambiente e para o recrutamento sexual ; Diferenciação e atribuição de papéis; Comunicação; Orientações cognitivas comuns; Um conjunto de objetivos comuns articulados; Regulamentação normativa dos recursos; Regulamentação da expressão afetiva; Socialização; Controle efetivo de formas disruptivas de comportamento. (Kaplan & Manners, 1975 p.102)
A descrição das necessidades básicas ou dos pré-requisitos funcionais em si mesmos não teria muito significado, além de curiosidades históricas. Ela tem interesse à medida que permite entender abstratamente os processos culturais como processos mentais, o que exorciza o etnocentrismo dos antropólogos, orientando-os para o relativismo cultural, balizamento essencial do pensar e do fazer antropológico. Ancora-se no relativismo cultural a concepção de que nenhum sistema cultural é superior ou inferior ao outro, pois responde adequadamente às necessidades da sociedade que o desenvolveu, de acordo com seus interesses. O fato de desenvolver suas próprias respostas culturais torna todos os grupos humanos iguais em capacidade, embora culturalmente diferenciados. As diferenças de desenvolvimento material e técnico, antes tão valorizadas como critério classificatório, foram esvaziadas do conteúdo hierarquizante que o evolucionismo lhes atribuía. Os antropólogos funcionalistas passam a abordá-las como dados de significação relativa, em conformidade com a função que desempenham no sistema cultural do qual são parte. A importância da teoria da cultura de Malinowiski, por exemplo, está menos em esquematizar as necessidades e respostas culturais, e mais na generalização teórica da univocidade da capacidade mental do homem. Outros antropólogos funcionalistas contribuíram sobremaneira Antropologia
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para a compreensão das instituições sociais como respostas organizativas. Radcliffe-Brow (1978), por exemplo, contribuiu para a abordagem dos sistemas culturais como sistemas de integração social. O conceito de organização social é tomado como chave de explicação do sistema cultural.
Brown - Figura 35
Radcliffe-Brown entende que a função da cultura é unir indivíduos em grupos com estruturas mais ou menos estáveis, porquanto essas estruturas regulam as relações desses indivíduos entre si, concedendo-lhes um modo de adaptação ao meio ambiente, a si próprios uns com os outros, acedendo a uma vida social ordenada. A estrutura social, conceito fundamental na análise que Radcliffe-Brown faz da cultura, é formada por um conjunto determinado de relações sociais que constituem um todo social integrado. As instituições, com funções específicas na estrutura, regulam as relações dos indivíduos na esfera particular da vida social. Enquanto essas instituições funcionam na estrutura elas se mantêm, ao se modifcarem ou não funcionarem elas se dissolvem. Os antropólogos funcionalistas universalizaram a etnografia como prática antropológica, demonstrando a imprescindibilidade da pesquisa de campo como ponto de partida de análises e explicações científicas dos processos culturais. Somente a pesquisa de campo permite a compreensão da lógica particular da cultura que está sendo estudada. Parte-se, portanto, do princípio de que cada cultura tem sua própria lógica característica, o que suscita a questão do relativismo cultural num outro patamar de investigação, situado além da simples constatação de sua ocorrência como fenômeno. Associam ao conceito de cultura a noção de processo, concebendo a cultura não como entidade em si. Embora concebendo os modos de pensar, de sentir, de agir característicos de uma cultura como processos e cada processo como elemento estrutural da organização social, o pensamento funcionalista não incorpora à noção de processo a idéia de movimento. Por isso mesmo, os estudos funcionalistas continuaram a servir tão bem quanto os evolucionistas à causa colonialista, por fornecerem aos governos coloniais o conhecimento do funcionamento da cultura dos povos colonizados, permitindo-lhes melhor controle e maior domíni o sobre eles. Ao se empenharem em demonstrar a constituição sistemática da cultura, os antropólogos funcionalistas tendiam a enfatizar o primado da ordem, a manutenção e a continuidade da estrutura, a padronização dos indivíduos, obscurecendo o conflito como elemento da dinâmica social. O funcionalismo não concebe a inter relação do confllito com outros elementos da organização
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social, no que toca à função sociológica de transformação que pode desempenhar, em relação à totalidade, isto é, em relação ao sistema social. O conflito é apreendido pela ótica positivista de perturbação da ordem, sem se questionar se a ordem é justa ou não. Se o funcionalismo ganhou espaço por oferecer aos pesquisadores um sentido para os dados sociais e culturais, uma chave de explicação para a prática etnográfica, começou a perder interesse pela redução da etnografia a descrições simplistas, sem nenhuma perspectiva de construção teórica em nível de generalizações empíricas. A prática dessa etnografia meramente descritiva conduzia os estudos da cultura a um empirismo limitado e pobre.
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Capítulo X – Estruturalismo e Interpretativismo
N este capítulo vamos enfocar as bases teóricas do estruturalismo
e do interpretativismo, com o objetivo de conhecer a explicação estruturalista de como a espécie humana, mediante operações mentais, desenvolveu a cultura e de entender a importância conferida pelos interpretativistas à leitura e interpretação do que as pessoas fazem, para compreender os sentidos que orientam suas práticas, suas ações. Ao ler este capítulo, leve em conta as seguintes questões: Em que a aproximação entre a Antropologia e a Lingüística contribuiu para o desenvolvimento da análise estruturalista? O que o estruturalismo pretende explicar? Que críticas são feitas ao estruturalismo? O que o interpretativismo antropológico prioriza? Segundo essa corrente de pensamento, em que consiste o estudo da cultura? Como a cultura é abordada? Quais as principais críticas feitas ao interpretativismo? É a partir da análise das relações sociais, pelo enfoque de sua função estrutural, que se articulam as bases para o desenvolvimento estruturalista do conceito de cultura. A passagem da ordem vivida (estrutura social como realidade empírica), para a ordem concebida (estrutura social como modelo abstrato), se faz pela investigação dos modelos inconscientes. Modelo é uma formulação analógica, uma aproximação. Sua característica mais importante diz respeito a suas possibilidades heurísticas. De acordo com Lévi-Strauss, reconhecidamente o principal teórico do estruturalismo, (...) a noção de estrutura não se relaciona com a realidade empírica, mas, sim, com modelos construídos de acordo com esta realidade. Aparece, assim, a diferença entre duas noções tão próximas que, muitas vezes, têm sido confundidas, quero dizer, a de estrutura social e a de relação social. As relações sociais são a matéria prima empregada para construção dos modelos que tornam manifesta a estrutura social. (1958 p.305). Antropologia
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O estruturalismo concebe a cultura essencialmente como sistema simbólico, ou como uma configuração de sistemas simbólicos. Propõe a análise da lógica simbólica e as conexões entre essa lógica e a estrutura social. Seu objetivo é explicar a racionalidade básica subjacente ao mundo da experiência, ao mundo dos fenômenos.A investigação dos fenômenos culturais alcança um nível mais abstrato, abordados quanto a padrões formais, isto é, quanto à lógica inerente à relação dos elementos simbólicos, construtiva do sistema cultural. O conceito de cultura como linguagem, em sentido amplo, é a base do estruturalismo antropológico. Com L évi -Strauss, o método estruturalista passou a ter relevância, tornando-se foco de um debate de alto nível, no plano do conhecimento. A abordagem estruturalista focaliza os códigos cultur ais, os princípios conceituais, os sistemas simbólicos, procura apreender as regras. Sua pretensão é buscar nos processos mentais a fonte de seus códigos, é pesquisar as propriedades lógicas da própria mente humana. Perspectivando a cultura como comunicação, os antropólogos estruturalistas aproximam a Antropologia da L ingüística, considerando os fenômenos sociais fenômenos lingüísticos. No estudo do sistema lingüístico, Saussure distingue língua e fala, concebendo língua como sistema, e fala como a língua em ato, em utilização. Quando falamos, não temos consciência das regras, da estrutura, da gramática da língua, dos códigos verbais. O sistema lingüístico, como todo sistema simbólico, é arbitrariamente construído. A língua envolve um sistema de sons, cujos elementos ou unidades básicas são os fonemas. Os fonemas estão presentes nas várias línguas, como fenômeno lingüístico único. A realidade lógica de sua qualidade diferencial permite apreender o esquema inconsciente que está na base do pensamento lingüístico, criador e instituinte da lí ngua, qualquer que seja ela. O sistema lingüístico tem no fonema sua unidade elementar de significação. A partir da sua combinação, pode-se constituir e diferenciar unidades mais complexas. As combinações são feitas de acordo com as regras morfológicas e gramaticais que cada sistema lingüístico arbitrariamente elege, variando, portanto, de língua para l íngua. Nessas unidades lingüísticas em que os fonemas se combinam é que o significado emerge, tornando possível a comunicação. Veja, por exemplo, os fonemas /m /, / g /, / l /, / a /. Tomemos a palavra mata. Se substituirmos apenas o primeiro fonema, mudamos o sentido da palavra: mata – gata – lata. Isto demonstra a qualidade distinta dos fonemas m, g, l. Se, porém, substituirmos o fonema / a / por / o /, na palavra gata Antropologia
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– gato, de acordo com as regras morfológicas do nosso sistema
lingüístico, a palavra não muda de sentido em relação a seu significado, mas opera-se uma distinção de gênero, o que demonstra que os fonemas / a / e / o /, nessa posição, são sufixos distintivos de gênero. A análise estruturalista da cultura opera de modo semelhante. Estudando as diversas unidades do sistema de parentesco, por exemplo, L évi-Strauss identificou a proibição do incesto como a regra básica de organização das relações de parentesco em qualquer sistema cultural. Os termos irmão, irmã, pai, filho, compõem, segundo ele, a estrutura básica em que o parentesco se funda, pois a oposição / pai / filho / irmão / irmã / é a base elementar de regulação do casamento pela regra do incesto: uma mulher não pode se casar com seu pai, seu irmão, seu filho, e é a mulher que circula no sistema de alianças. O casamento implica obrigações de prestações bilaterais entre famílias, clãs, grupos regidos por regras de reciprocidade, de cooperação mútua. A relação de incesto é o material cultural de construção do modelo básico constituinte da estrutura social. Partindo do real (realidade empírica das relações sociais concretas), o antropólogo estruturalista decompõe a cultura que estuda em suas unidades significativas e recompõe esse real, iluminando sua lógica simbólica.Os antropólogos estruturalistas distinguem na cultura a “ordem pensada”, isto é, “concebida”, e a “ordem vivida”, fazendo um corte – no plano metodológico – entre estrutura mental e estrutura social. Vejamos o que significa isso na prática. Há vários grupos indígenas do Brasil, como os Tikuna e os Bororo, que apresentam uma organização totêmica, isto é, a população da tribo é distribuída em clãs, e a relação entre os clãs obedece a certas regras, a certas normas. Cada clã é associado a um animal ou a uma planta e possui seu totem a que se associam fatores de pertencimento, atributos, prestações, etc. Como o totemismo é um fenômeno cultural recorrente, ocorrendo na Ásia, na África, nas Américas, a Antropologia se preocupou em dar uma explicação para esse fenômeno. Lévi-Strauss, com base nos estudos de diversos grupos, cujas culturas apresentavam esse fenômeno, partindo da relação entre clã-totem-mito, por meio da análise estruturalista da mitologia de diversos grupos tribais, especialmente do Brasil, conseguiu chegar ao modelo formal do pensamento totêmico. Segundo Lévi-Strauss, quando um índio Bororo diz que é membro do clã Apiborege, e outro Bororo diz que é do clã Iwagudu-doge, eles explicam que cada um descende, respectivamente, da palmeira acuri e de um tipo de gralha. Os bororos, ao explicarem essa origem clânica, não estão se pensando descendentes de acuri ou de gralha no Antropologia
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sentido nominal, estão fazendo uma analogia, uma metáfora, para significar as diferenças e as relações entre os clãs como logicamente semelhantes às diferenças e as relações entre as espécies da natureza. A divisão do grupo em clãs é um modo de classificação social. A atividade intelectual que está na base do pensamento totêmico é semelhante à que está na base da classificação botânica, das taxonomias em geral. Por isso é que L évi -Strauss explica o totemismo como um tipo de conhecimento semelhante ao científico, como um tipo de processo mental de construção primitiva de uma ordem imaginativa e estética do mundo, de uma ordem simbólica, referida na percepção de certos aspectos das coisas, da realidade.
Strauss - Figura 36
O estruturalismo pretende explicar como a mente opera, ou seja, o modo como a mente trabalha. I sso só é possível, segundo os antropólogos estruturalistas, a partir da análise dos sistemas por ela criados, qualquer que seja o sistema (sistema de parentesco, sistema alimentar, estilo de penteado, pintura corporal). Se o mundo da experiência fornece a base empírica à análise estruturalista, não é a experiência em si que se pretende explicar, mas a racionalidade básica a ela subjacente, a lógica que rege os fenômenos nela envolvidos e que a tornam congruente. O estruturalismo antropológico, tal como L évi -Strauss o concebe, de acordo com K aplan e Menners, postula a unidade psíquica fundamental do homem, dado que as propriedades lógicas de sua mente lhe asseguram o mesmo modo de operação, independentemente do espaço, do tempo e das circunstâncias. Um dos problemas do estruturalismo, que o torna alvo de muitas críticas, é o fato de que não é possível ter acesso à estrutura inconsciente de uma cultura. Vale dizer que “estruturas elementares”, “estrutura da mente”, “princípios estruturais” são inferências, isto é, são construções hipotéticas, construções teóricas “puras” – não é possível comprová-las. Outra crítica pertinente ao estruturalismo é o caráter sincrônico de suas análises, sua pouca consideração à história em nível da dialética que existem em seu movimento, a falta de critérios precisos na escolha dos modelos. O estruturalismo é também criticado pela abordagem limitada da ordem simbólica e pelo reducionismo dos símbolos que, para além de elementos do sistema, atuam sobre a realidade. Além disso, o estruturalismo se põe numa proximidade perigosa com a tecnocracia, à medida que se propõe decompor e recompor o real, ou seja, a simular o real. O estruturalismo implica uma técnica, comportando a operação de corte em unidades e a Antropologia
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ope perr aç ação ão de ar arrr anj anjo o. Daí o estr strutu uturr al alii sm smo o l i ga garr-se ao tec tecni nicismo cismo,, à tecnocracia e à autonomização da técnica em relação à realidade e ao homem. Di ferr entem Dife nteme ente da teo teorr i a estr estrutur uturali alista sta de cul ultur tura a que pri prio or i za as formas elementares, a estrutura inconsciente subjacente às re regr as, às insti institui tuiç ções, aos aos costume costumes, s, o interpr interpre etati vi vism smo o antro antr opo poll ógico pri prio or i za o simbol simbol i sm smo o, o signif signifii ca cado do,, o senti sentido do que que as ações humanas transmitem. A concepção interpretativista de cultura e dos diversos elementos que a integram se aproxima da fenomenologia das relações sociais de Schutz, da sociologia compreensiva de Weber e da hermenêutica de Paul Ricoeur. A interlocução com Schutz se faz pelo entendimento de que a comunicação só é possível dentro da cotidianeidade, da vida comum mum,, orie ori entando-se o estudo estudo da cul cultur tura a para as expe experr i ências dos homens na vida cotidiana, em busca do simbolismo cultural com que lhes conferem sentido. O mundo cotidiano de objetos, atos e práticas de senso comum constitui a realidade da experiência humana (Geertz, 1978 p. 103). A interlocução com Weber se faz através do entendimento de que o homem está preso a uma teia de signi si gnifi ficad cado os que el e me mesmo smo tec tece eu, ori ent ntando ando-se o estu studo do da cul cultu turr a pell a idé pe i déii a de que que a inter intersubjeti subjetivi vidade dade comuni munic cati ativa, va, na ação ação so soci al al,, transm tr ansmii te signifi signi fica cado dos. s. A inter i nterll ocução com Ric Ri coeur se faz atravé atr avés s do entendimento de que as ações sociais apresentam atributos de discurso em ato e têm conteúdo e objetivo profissional, orientandose o estudo da cultura pela idéia de que ela, sendo também texto, pode ser lida e interpretada. O interpretavismo antropológico aborda a “cultura como sistema ordenado de significados e símbolos nos termos dos quais os indivíduos defnem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus seus jul ulgam gamentos” entos” (Gee (Geerr tz, 197 1978 8 p.81).
Geertz - Figura 3 7
Os acontecimentos, a ação dos sujeitos que um antropólogo observa i nscr nscre evem-se nas suas anotações anotações.. N ão são os acontec acontecii me ment nto os ou a ação que ele fixa nas suas anotações, mas o que foi “dito” no falar, no fazer, no expressar, ou seja, o significado do acontecimento, da ação. O antropólogo inscreve detalhes, “adivinhando” os significados, avaliando as conjecturas, traçando conclusões explanatórias. (Geertz, 1978 p. 30). Cultura denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. (Geertz, 1978 p. 103).
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Assim, Geertz defende um conceito semiótico da cultura: A credi creditan tando, do, como como M ax Weber, Weber, que que o home homem m é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significados. (Geertz, 1978 p.15).
Para Geertz, o criador do interpretativismo antropológico, a cul ultur tura a express expressa a um sistem si stema a simb si mbó ól i co co.. O estudo da cul cultur tura a é ler, traduzir e interpretar os processos culturais. O objeto da análise cul ultur tural al é a lógi lógi ca info inf or mal da vida vi da co comum mum,, pois no dec decor r er do dos s acontecimentos, nos comportamentos é que os homens expressam, é que os elementos simbólicos se articulam às formas culturais. A descoberta da função simbólica pelo homem, criou o ambiente cultural de seu desenvolvimento evolutivo, tornando-se o ingrediente fundamental de ampliação das capacidades orgânicas. O homo sapiens se se tor tor na sapiens operando simultânea e coordenadamente código genético e função simbólica. Os símbolos expressam concepções sociais, públicas de uma coletividade, englobando noções, idéias e sintetizando atitudes, valores, crenças. A cultura é fonte de sentido da ação social, pois as proposições culturais simbólicas guiam comportamentos sociais. A cultura nos informa o que é o mundo e como agir nele. Geertz distingue o social e o cultural ao conceber a cultura como tecido do significado “em cujos termos os seres humanos i nter nterpr pre etam sua expe experr i ência e or or i entam sua ação ação”. Par P ara a el el e “estrutura social é a forma que a ação assume, a rede de relações sociais que realmente existe. Cultura e estrutura social, portanto, são abstrações distintas do mesmo fenômeno”. Com os símbolos, os homens organizam, ordenam, construindo um mundo que faz sentido. Os símbolos cumprem essa função, à medida que sejam aceitos pela coletividade e absorvidos por seus membros. A cultura abordada como texto se define como comunicação simb si mbó ól i ca. Co C omp mprr eende nderr uma cul cultur tura a re r eque querr a interpr i nterpre etação de seus se us símbo sí mboll os. Com C om esse esse propósi propósito, to, o antr ant r op opó ól og ogo o anota o disc di scur urso so social. Ao anotar o discurso social, ele registra os acontecimentos, ele faz um relato, escrevendo um texto sobre o que os sujeitos dizem sobre eles mesmos, por meio dos significados que atribuem ao que fazem, fazem, medi mediant ante e a int i nterpr erpre etação que fazem fazem das açõe ações uns un s dos outros, ou seja, do sentido que as pessoas vêem nas ações umas das outr outras. as. Cada sociedade particular se movimenta dentro de um campo semânti se mântico co.. E sse campo campo se semânti mântico co vai se sendo ndo apre apreendido pelos
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membros da sociedade, um a um, no processo de aquisição da cultura. Os símbolos entrelaçados no tecido dos significados que o compõem urdem um todo ordenado, articulam uma visão de mundo, fornecendo aos membros da cultura orientações sobre a ação aç ão e refer referências para para interpr i nterpre etar sua expe experri ência. A cultura, pela mediação do simbólico, permite a comunicação humana. Não N ão é uma enti entidade dade fi fixa, xa, nem uma uma re r eal alii dade superorgânica. É uma ideação constituída e constituinte. Criada pelo homem, a cultura segue com os homens, criando-os generativamente. Os significados que dão sentido à experiência, à vida, vi da, à mor morte, se external xternaliizam no si signif gnifii cante social socialme mente nte circulante. Os eventos de uma partida de futebol, desde o treino das equipes, à prep pr epar araçã ação o do campo campo,, abertur abert ura a dos por portõe tões, s, jo j ogo go,, torci t orcida, da, encerramento, associados ao comportamento dos jogadores, do juiz, bandeirinhas, do treinador e sua equipe, do público participante, estão impregnados de significados. A significação pregnada nos gestos e comportamentos é apreendida tanto pelos atores que os praticam como pela torcida presente, pelos espectadores televisivos e até os rádioouvintes, por meio da narração dos locutores. A partida de futebol, quando está ocorrendo, está sendo protagonizada, compõe um discurso social em que está se expr xpre essando de mod modo o com comuni unicati cativo vo e com compr pre eensivo. A l ei tu turra do “texto” que a partida de futebol inscreve se torna possível porque ela se expressa por meio de um sistema de significação que opera signos e símbolos cujos sentidos circulam no meio social e são, porrtant po tanto o, públi públ ico cos. s. E sses senti sentidos, dos, em sendo públ públiico cos, s, promovem promovem co comuni municaç cação ão futebolística entre os jogadores, técnicos e juízes, as torcidas e o públ públ ico em ge geral al.. As regras, as técni técnica cas, s, a ludi l udicci dade dade,, a estética, o afetual, o sentimento de pertença aos times expressam sig si gni nifi ficcado adoss que, que, no di di a-a-di dia, a, vão se sendo ndo pe perrcebidos bidos,, apreendi apreendido dos, s, compreendidos, aprendidos em contextos comunicacionais de interação: na brinca bri ncade deii ra, no recreio recreio da da esc esco ola, no ter terreno bal baldi dio o, no canto da rua, no campo da várzea, na praça esportiva, no quintal, na varanda, nas conversas de botequim, onde quer que seja possível jogar ou falar do jogo, com o sentimento de torcedor. A cultura do futebol não se reduz ao simbólico, mas sua existência e persistência são impossíveis fora do simbólico que sutura significado às práticas que comunicam sentidos.
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Alguém que esteja mais ou menos imerso na cultura do futebol encontra uma jaqueta com o escudo do Flamengo, flamenguista ou não, dispõe de um referente intertextual, de um meio que o aproxima e o relaciona com o dono daquela jaqueta. A leitura
daquele escudo só pode ser feita por alguém que conhece símbolos dos grandes times de futebol do Brasil. Mas a leitura em extensão e profundidade de uso da jaqueta com o símbolo do time de futebol só o fará quem conheça a experiência do torcedor. A leitura e interpretação da jaqueta, como texto, será tanto mais densa quanto maior a familiaridade com quem perdeu a jaqueta, com o futebol, com o meio futebolístico, pois nessa familiaridade é que se constroem referências para desvendamento dos sentidos culturais daquela jaqueta com o escudo do Flamengo, de jaquetas com escudo do Corinthians, do Santos, do Cruzeiro, do Internacional, etc. A leitura e interpretação do texto que a jaqueta inscreve têm como condição o compartilhamento de um território semântico comum pelo leitor, pelo dono da jaqueta, pelo seu fabricante. Segundo Ricoeur, a metáfora cria, no âmbito da narrativa, do discurso, da fala ou do texto, o laço entre o referente e o sentido, o significante e o significado. Compreender a metáfora é caminhar pela ponte movente que esse laço constrói sobre o abismo da incomunicabilidade. Façamos a “leitura” das seguintes frases ouvidas em fragmentos de conversas ocorridas numa sala de espera, num dia qualquer do início de 2005; Paulo na vida de Luiza foi uma tsunami. A gestão de Marta na nossa escola foi uma verdadeira tsunami. A queda do preço da soja e a quebra da safra provocaram uma tsunami, na economia do Estado. A metáfora tem como referente a onda tsunami que provoca destruição, catástrofe, perdas nos locais que atinge. Compreender as frases acima é fazer um movimento de sentido rumo ao referente, ao significante metafórico, no caso a palavra tsunami. Com esse movimento de sentido, podemos interpretar a relação de Paulo e Luíza, a gestão escolar de Marta, a crise econômica do Estado a que os falantes se reportavam porque compartilhamos com os falantes, (que nem conhecemos), o território semântico da tsunami . A tsunami (onda gigante de grande impacto, com alto poder destrutivo) constitui um campo de significação, que ouvinte e falantes têm como referência comum. Ouvinte e falantes no ano de 2004 percorreram intensamente esse campo de significação, com a repercussão do maremoto que ocorreu no oceano Índico, provocando tsunamis que atingiram Índia, Sri Lanka, Tailândia, Indonésia, Malásia, Ilhas Maldivas e Sumatra. Imagens e narrativas dessas tsunamis circularam amplamente na mídia escrita, falada, televisiva. Antropologia
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Uma compreensão mais densa dessas frases, entretanto, exigiria um mergulho nos acontecimentos, no seu contexto, garantindo uma proximidade. E sse mergulho numa cultura é feito por meio da observação participante, no trabalho de campo. O ouvinte compreendeu o que falavam porque ele e os falantes estão imersos numa cultura e falam a mesma língua. O interpretativismo antropológico teoriza a cultura como um domínio de comunicação simbólica. O conhecimento da cultura, conseqüentemente, implica interpretação de seus símbolos pela análise das formas culturais em busca da lógica informal que as rege na vida real, no cotidiano, pois é no decorrer dos acontecimentos e das condutas que os símbolos se articulam, expressando idéias, valores, sentimentos. As críticas mais recorrentemente feitas ao interpretativismo antropológico é que ele não faz a discussão dos critérios para o julgamento das interpretações, nem especifica com clareza e precisão os procedimentos hermenêuticos de desvendamento das metáforas e dos símbolos dos textos culturais. A visão de cultura de Geertz, segundo seus críticos, é idealista e nela parte do mundo desaparece, pois reduz a cultura ao sujeito conhecedor.
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Leituras Básicas Você é um iniciante no estudo da Antropologia. Uma introdução ao estudo desta disciplina não se esgota na leitura deste fascículo. É indispensável que você faça a leitura de alguns livros básicos para ampliar e aprofundar o conhecimento dos temas aqui abordados. Recomendamos a seguinte leitura complementar : O que é Etnocentrismo, de Everardo P. G. Rocha; Relativizando , de Roberto da Matta; Aprender Antropologia , de François Laplantine e Saber Local, de Clifford Geertz. A indicação bibliográfica completa você encontra na Bibliografia que apresentamos a seguir.
Bibliografia AU GÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da supermodenidade. Trad, Maria Lúcia P ereira. Campinas: Papirus, 1984. BANDE IRA, Maria de Lourdes Antropologia no quadro das Ciências. 2ª ed.revista. Cuiabá: EdUFMT, 2002 __________ Antropologia: Conceitos e Abordagens. 2ª ed revista. Cuiabá, EdUF MT 2002. __________ Antropologia : Cultura e Sociedade no Brasil. 2ª ed.revista. Cuiabá, EdUF MT, 2002 BANDEIRA, M.L.. & FREIRE, O. Antropologia – Uma Introdução. Cuiabá: EdUFMT, 2006 AZCONA, J . Antropologia I e II. Trad. de Lúcia Mathilde Endlich Orth. P etrópollis: Vozes, 1992. (Coleção Introduções e Conceitos). BE ATTIE, J . Introdução à antropologia social. São Paulo: Ed.Nacional, 1971. BRACE, C. L. Os estágios da evolução humana. Trad. Paulo R. Azeredo. Rio de J aneiro: Zahar, 1970. BRAN DÃO, Carlos R. A Educação como Cultura. Campinas-SP : Mercado das Letras, 2002 CARDOSO DE OLIVE IRA, R. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: EdUNESP, 1998 Antropologia
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