unesp Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho - UNESP
Pedagogia Cidadã
Cadernos de Formação
Ética e Cidadania 3ª edição unesp
Pró-reitoria de Graduação
unesp Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho - UNESP
Pedagogia Cidadã
Cadernos de Formação
Ética e Cidadania 3ª edição unesp unesp Pró-reitoria de Graduação São Paulo 2005
Cadernos de Formação
III
© 2005, UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Al. Santos, 647 - Cerqueira César - CEP 01419-901 - São Paulo Paulo - SP www.unesp.br
FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA UNESP Av. Rio Branco, 1.210 - Campos Elíseos - CEP 01206-001 - São Paulo Av Paulo - SP Fone: (11) 3333-7188 - ramais 280, 286 e 288 - Fax: ramal 290 www.fundunesp.unesp.br
Projeto Gráfico: Sebastião de Souza Lemes UNESP - Araraquara
[email protected]
Produção gráfica: Páginas & Letras Editora e Gráfica Ltda. Fones: (11) 6618-2461 - 6694-3449
[email protected]
Dados Internacionais de Catalogação na publicação Pedagogia cidadã : Cadernos de formação : Ética e cidadania / 3ª ed. / Aluisio Almeida Schumacher (org.). São Paulo: Unesp. Pró-Reitoria Pró-Reitoria de Graduação, 2005. 1. Democracia 2. Direito e Estado 3. Moral 4. Ética e educação CDD 370 IV
Cadernos de Formação
Estadual Paulista unesp Universidade Júlio de Mesquita Filho - UNESP
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Geraldo Alckmin
SECRETARIA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO Secretário João Carlos de Souza Meirelles UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Reitor Marcos Macari Vice-Reitor Herman Jacobus Cornelis Voorwald Chefe de Gabinete Kléber Tomás Resende Pró-Reitoria de Graduação Pró-Reitor Sheila Zambello de Pinho Pró-Reitoria de Pós-Graduação Pró-Reitora Marilza Vieira Cunha Rudge Pró-Reitoria de Pesquisa Pró-Reitor José Arana Varela Pró-Reitoria de Extensão Universitária Pró-Reitora Maria Amélia Máximo de Araújo Pró-Reitoria de Administração Pró-Reitor Júlio Cesar Durigan Secretaria Geral Secretária Geral Maria Dalva Silva Pagotto Assessoria de Comunicação e Imprensa Assessor-Chefe Maurício Tuffani Assessoria de Planejamento e Orçamento Assessor Chefe Herman Jacobus Cornelis Voorwald Assessoria de Relações Externas Assessor Chefe Gervásio Henrique Bechara Assessoria Jurídica Assessor Jurídico Chefe Dr. Edson Cesar dos Santos Cabral J Assessoria de Informática Assessor Chefe Prof. Dr. Milton Hirokazu Shimabukuro Coordenadoria Geral de Bibliotecas Coordenadora Sra. Margaret Alves Antunes FUNDUNESP Diretor Presidente e Diretor Executivo da Diretoria de Convênios e Projetos Luiz Antonio Vane
Cadernos de Formação
V
CADERNOS DE FORMAÇÃO
PEDAGOGIA CIDADÃ Sheila Zambello de Pinho
ÉTICA E CIDADANIA
Coordenadora Geral e Pró-Reitoria de Graduação
João Cardoso Palma Filho Coordenador Geral Adjunto
ORGANIZADORES/ COLABORADORES
ORGANIZADOR Aluisio Almeida Schumacher
COLABORADORAS Maria das Graças Ribeiro Moreira Petruci Mariana Claudia Broens
CONSELHO TÉCNICO CIENTÍFICO Célia Maria David
Mariana Claudia Broens
Elizabeth Berwerth Stucchi
Pedro Geraldo Tosi
UNESP - Franca
UNESP - Marília
UNESP - Araraquara e Assessora da PROGRAD
UNESP - Franca
João Cardoso Palma Filho
Sebastião de Souza Lemes
UNESP - São Paulo
UNESP - Araraquara
Maria das Graças R. Moreira Petruci
Teresa Maria Malatian
UNESP - Franca
UNESP - Franca
Secretaria Geral Alécio Pires Viana Gabinete/Reitoria
Cecília Specian
Secretária Geral - PROGRAD/Reitoria
Fulvia Maria Pavan Anderlini Gabinete/Reitoria
José Luiz Bonilha UNESP - Araçatuba
Nathália Galhego Garcia Renato José Coelho da Silva VI
Cadernos de Formação
Vanessa Passaroni Marques de Almeida
CADERNOS DE FORMAÇÃO
INTRODUÇÃO
......................................................................................
1
ÉTICA E CIDADANIA
A existência ética Marilena Chaui...............................................................................
7
A filosofia moral Marilena Chaui...............................................................................
15
ÍNDICE
Mapa da viagem (Introdução) José Murilo de Carvalho ................................................................
27
A cidadania na encruzilhada (Conclusão) José Murilo de Carvalho ................................................................
31
A importância da democracia Amartya Sen .................................................................................
41
Sobre a relação entre moral e direito e sua intimidade com a democracia Aluisio Almeida Schumacher ........................................................
53
Acesso à justiça: uma leitura dos direitos e da cidadania no Brasil contemporâneo Cátia Aida Silva .............................................................................
71
Violência, direitos e cidadania: relações paradoxais Teresa Pires do Rio Caldeira .........................................................
89
Cidadania e Educação João Cardoso Palma Filho ............................................................
95
Educação Cidadã, etnia e raça Nilma Lino Gomes......................................................................... 113
Os sentidos expressos por quatro vozes nunca ouvidas Vários autores ............................................................................... 123
Escola e Educação Moral Maria Suzana De Stefano Menin ................................................... 127
Cadernos de Formação
VII
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA
INTRODUÇÃO
VIII
Cadernos de Formação
sta é a terceira edição do Caderno de Formação Ética e Cidadania do Projeto Institucional Pedagogia Cidadã da UNESP. Antes de comentar cada um dos textos que compõem o volume, vamos tratar de apresentar brevemente seus temas nucleares – ética, moral, cidadania, direito e democracia – estabelecendo entre eles algumas relações possíveis.
E
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
O termo moral é em geral empregado para fazer referência ao uso da razão prática, isto é, ao uso da razão ou pensamento que se refere aos direitos, normas, obrigações universais e deveres. A palavra ética, por seu turno, também aparece associada à reflexão prática, ou seja, ao pensamento que visa determinar condutas. No entanto, seu uso se dá em íntima ligação com os valores e as autocompreensões de comunidades históricas identificáveis no tempo e no espaço. Assim, cada sociedade e/ou grupo social desenvolve suas próprias concepções éticas. Da perspectiva moral, o dever é uma obrigação categórica. Por conseqüência, os deveres morais que vinculam os sujeitos não guardam relação direta com as compreensões éticas de comunidades específicas. A própria razão formula para si uma lei moral, que deve valer em todos os tempos e lugares, não só para uma determinada comunidade ética. Do ponto de vista ético, vale o inverso: é uma comunidade histórica concreta com uma forma de vida compartilhada que tem suas próprias concepções de bem, deveres e virtudes, concepções essas aceitas por seus membros, mas não necessariamente por outros. Nesse caso, ser um sujeito bom é ser um membro bom da comunidade ética, saber sua posição e deveres. Há, assim, duas ma-neiras de usar a razão prática ou pensamento normativo, isto é, de refletir sobre a determinação de comportamentos: a moral, que é universal e categórica, e a ética, que é contextual e baseada em uma comunidade particular. Enquanto a primeira se concentra no que é correto, independentemente de qualquer comunidade, a outra focaliza aquilo que é considerado bom para uma dada comunidade. Em síntese, uma lida com o que é moral, a outra com o que é ético. No pensamento filosófico contemporâneo, há autores que privilegiam uma ou outra abordagem: Bernard Williams (1993) 1, por exemplo, defende a abordagem ética, enquanto Jürgen
INTRODUÇÃO
PÁGINAS 1A6
Há, assim, duas maneiras de usar a razão prática ou pensamento normativo, isto é, de refletir sobre a determinação de comportamentos: a moral, que é universal e categórica, e a ética, que é contextual e baseada em uma comunidade particular.
1
WILLIAMS, Bernard. Who needs Ethical Knowledge? In: GRIFFITHS, Phillips A. Ethics . Royal Institute of Philosophy, Supplement: 35, Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 213-222.
Cadernos de Formação
IX 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
INTRODUÇÃO
Entre moral e direito, há uma ligação muito forte representada pela presença de um catálogo de direitos humanos fundamentais, inscrito nas constituições dos Estados-nação do ocidente.
2
3
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. Moralidade. É a moral em ação, a moral prática e praticada. A moral está no plano ideal e a moralidade no plano real: é um componente efetivo das relações humanas concretas que adquirem um significado moral. Em sentido prescritivo, a moralidade é aquela consideração ou conjunto de considerações que fornece os motivos mais fortes para se viver de certa maneira. (SANCHEZ VASQUEZ, Adolfo. Ética . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 52)
X 2
Cadernos de Formação
Habermas (1989)2 procura sustentar o enfoque moral. Não cremos que caiba escolher uma perspectiva em detrimento da outra. Parece mais razoável entendê-las como complementares. Por um lado, há restrições categóricas ao conteúdo de éticas específicas que só podem ser alcançadas da perspectiva moral. A idéia de uma compreensão ética que não tenha passado pelo crivo da moral é simplesmente incoerente. Isso porque um ponto de vista ético que ignora a proibição categórica contra planos de vida opressores e/ou maléficos e instituições injustas simplesmente não é um ponto de vista ético. Logo, a ética requer a moral. Por outro lado, não há normas morais, nem procedimentos para testá-las que sejam absolutamente anteriores a toda e qualquer comunidade ética. Isso porque normas e procedimentos são abstratos ou vazios. Não podemos nem sequer enunciá-los sem fazer referência a sua aplicação, que envolve processos específicos de educação ética. Assim, se a ética pressupõe a moralidade 3, a moralidade também pressupõe a ética. Se quisermos realmente avançar no campo prático ou normativo, devemos preservar ambas, na medida em que parecem ser aspectos de nossa conduta que se completam e são inseparáveis de nossa experiência como pessoas. Entre moral e direito, há uma ligação muito forte representada pela presença de um catálogo de direitos humanos fundamentais, inscrito nas constituições dos Estados-nação do ocidente. Com alcance quase universal, esses direitos significam o reconhecimento da liberdade e da dignidade de sujeitos morais individuais e coletivos. Mesmo sendo formais, no sentido de que dependem do uso que cada sociedade faz deles para se tornarem mais ou menos reais e efetivos, esses direitos incluem incontáveis possibilidades e potencialidades. Ao conjunto desses direitos civis, políticos e sociais denominamos direitos da cidadania . Além dessa convergência entre direito e moral, há outra, não menos importante, que alcança a democracia. Para tanto, precisamos compreender o direito não como aquele domínio exclusivo de especialistas, mas como um sistema aberto à moralidade e às éticas existentes na sociedade. Então percebemos que essas duas dimensões normativas exercem pressão no funcionamento dos poderes instituídos, judiciário, legislativo e executivo. Introduzindo demandas e conflitos sociais e políticos que têm de ser processados. E, trazendo, através da sociedade civil organizada e da opinião pública, questões, opiniões e propostas para a agenda do debate político. Nesse contexto, a democracia não se limita à existência de parti-
dos políticos e eleições regulares, mas significa: (a) processos constantes de tornar os direitos da cidadania cada vez mais efetivos e reais, incluindo a criação de novos direitos; e (b) condições de comunicação e procedimentos ininterruptos que preservem as fontes democráticas de legitimidade no público como um todo. A indagação central do pensamento ético, que investiga quais valores e práticas são bons para nós, e a busca por instrumentos reguladores de nossa vida em comum com justiça 4, à qual se dedica a reflexão moral, atravessam todas as dimensões e espaços de nossa vida social e política: o trabalho, a rua, a escola, o grupo de amigos (as), as associações e movimentos de que participamos, a família, etc. Além dos macrotemas já explicitados, outros envolvendo reflexão ética e moral, são tratados e/ou suscitados neste volume: autonomia e democracia na escola, acesso à justiça, educação moral, relações entre cidadania, justiça e violência, entre educação e cidadania. Cabe aos leitores, individual e coletivamente considerados, adicionarem ao processo pedagógico os desafios ético-morais, jurídicos e democráticos que os cercam, valendo-se das atividades sugeridas ao final de cada texto. Inicialmente apresentamos dois textos de Marilena Chauí. No primeiro deles, intitulado A existência ética , a autora procura, numa perspectiva filosófica, elucidar conceitos centrais da eticidade e moralidade humanas, tais como: o senso moral e a consciência moral; a distinção entre juízo de fato e juízo de valor, a idéia de compartilhamento de valores inerente à dimensão ética da conduta coletiva, dentre outros. No segundo, A filosofia moral , a autora parte da noção de vontade e apresenta um histórico de como diferentes filósofos, desde a Antigüidade clássica até a modernidade, colocam os problemas envolvendo, de um lado, uma concepção relativista da moralidade e, de outro, a tentativa de determinar-lhe princípios universais reguladores da conduta. A seguir, constam trabalhos de José Murilo de Carvalho publicados em seu livro Cidadania no Brasil: o longo caminho (2001). Incluímos o “Mapa da Viagem (Introdução)”, a “A Cidadania na Encruzilhada (Conclusão)”, bem como as “Sugestões de leitura” do próprio autor, visando assim estimular e apoiar o trabalho dos que quiserem aprofundar o tema numa perspectiva histórica. Na interpretação do autor, o Brasil é reconhecidamente um caso de desenvolvimento incompleto dos direitos da cidadania. Entre nós predominou a “estadania”, cultura política orientada para o Estado, em vez da cidadania, enraizada na representação de classes e grupos sociais.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
INTRODUÇÃO
Além dos macrotemas já explicitados, outros envolvendo reflexão ética e moral, são tratados e/ou suscitados neste volume: autonomia e democracia na escola, acesso à justiça, relações entre cidadania, justiça e violência, entre educação e cidadania.
4
Justiça. A justiça é tida como o valor social prioritário, que supera todas as outras considerações normativas. Princípio moral em nome do qual o direito deve ser respeitado. Conjunto de leis formais que estabelecem a maneira pela qual se cobram os direitos, bem como as normas que devem reger os atos judiciários. Por isso, significa também a qualidade do que está em conformidade com o que é direito.
Cadernos de Formação
XI 3
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
INTRODUÇÃO
Se os cidadãos não são só destinatários mas autores das leis, então o Estado de direito pode ser representado como o conjunto de instituições legais e mecanismos que governam a conversão do poder comunicativo dos cidadãos em atividade administrativa legítima...
XII 4
Cadernos de Formação
O quinto texto é de autoria do economista e filósofo indiano Amartya Sen. Intitulado “A importância da democracia”, é o sexto capítulo da obra Desenvolvimento como liberdade (2000). Sua questão central é a indagação: o que vem em primeiro lugar, a eliminação da pobreza e da miséria ou a garantia da liberdade e dos direitos civis, que à primeira vista parecem servir muito pouco aos pobres? Desse problema, o autor extrai uma defesa, ao mesmo tempo lúcida e polêmica, das inter-relações entre liberdades políticas, compreensão e satisfação de necessidades econômicas e desenvolvimento. Em vez de conflito entre liberdades políticas, direitos democráticos e satisfação de necessidades econômicas básicas, Sen defende sua complementaridade. O argumento que utiliza converge para uma defesa da democracia como pré-requisito do crescimento e do desenvolvimento econômicos. Nega, assim, a visão de alguns líderes governamentais do chamado terceiro-mundo, que afirmam ser necessário primeiro fazer crescer o “bolo da riqueza”, mesmo sem liberdades políticas, para depois dividi-lo e, então, chegar à democracia. Na seqüência, apresentamos o artigo de Aluisio Almeida Schumacher intitulado Sobre a relação entre moral e direito e sua intimidade com a democracia . Como sugere o título, o texto procura demonstrar a existência de uma relação interna entre esses três conceitos. Entre moral e direito, porque o direito vem compensar a incerteza, a dificuldade de mudança e a ineficácia das regras morais em sociedades complexas, permanecendo ainda assim aberto à moralidade social. Entre direito e democracia, porque o sistema de direitos (a) institui os cidadãos simultaneamente como autores e destinatários da ordem jurídica e (b) significa a institucionalização das condições gerais necessárias para o desenvolvimento de processos democráticos no direito e na política. Se os cidadãos não são só destinatários mas autores das leis, então o Estado de direito pode ser representado como o conjunto de instituições legais e mecanismos que governam a conversão do poder comunicativo dos cidadãos em atividade administrativa legítima, sendo o direito a linguagem que pode transformar o poder comunicativo em poder administrativo. Para que a participação dos cidadãos na construção da ordem jurídica faça a diferença, as condições de comunicação permitindo testar a legitimidade das normas de direito por parte de organizações da sociedade civil e da opinião pública não devem ser distorcidas nem manipuladas. O sétimo texto, de Cátia Aida Silva, Acesso à justiça: uma leitura dos direitos e da cidadania no Brasil contemporâneo, discute o
problema em pauta em duas dimensões: a) jurídica e b) da perspectiva da construção da cidadania. A autora situa o acesso à justiça no contexto das transformações das sociedades contemporâneas, decorrentes de crises no funcionamento dos poderes Executivo e Legislativo, gerando sucessivos impactos no âmbito do Judiciário. O marco da análise é a Constituição Federal de 1988, resultado de pressões políticas pós-ditadura militar, que reivindica a ampliação de serviços básicos para a população historicamente alijada desses serviços. A autora procura mostrar que as instituições sociais – formais e informais – são resultantes das formas de organização da sociedade e de seu funcionamento. Daí resulta que o acesso mais amplo à justiça envolve mudanças nas relações entre Estado e Sociedade e entre Nação e Sociedade. A seguir, o artigo de Teresa Pires do Rio Caldeira, intitulado Violência, direitos e cidadania: relações paradoxais , aborda um tema can- dente: a violência, que se verifica na ação da polícia e do crime organizado, e que tem reflexos contundentes na própria sociedade. A autora ressalta os conflitos e paradoxos em que está imersa a sociedade brasileira, ao mostrar um Brasil em que a democracia se consolida em processo que parece caminhar à parte dos índices cada vez mais alarmantes de violência criminal. Cidadania e Educação, trabalho de João Cardoso Palma Filho, discute, numa perspectiva histórica, algumas das possíveis relações entre educação e cidadania, partindo do pressuposto de que a educação sempre está a serviço de um determinado tipo de cidadania, mesmo que, em alguns casos, de modo não explícito. Dessa maneira, a educação nunca é neutra. Para discutir as implicações que a educação tem para a construção dos diferentes tipos de inserção do ser humano no universo social, o autor aborda diferentes paradigmas de cidadania, tendo como eixo condutor o papel que neles desempenha o conceito de igualdade. No texto Educação Cidadã, etnia e raça, Nilma Lino Gomes apresenta uma reflexão sobre a complexidade da relação e/ou das relações que se estabelecem no interior de uma proposta de educação cidadã, tendo em conta o uso dos conceitos etnia e raça, quando está em jogo o racismo brasileiro. Com isso, chama a atenção para a discriminação racial no Brasil, contra os negros, e para as dificuldades que as pessoas têm para compreendê-la no âmbito da vida escolar. O artigo possibilita a compreensão conceitual do preconceito e, combinado
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
INTRODUÇÃO
... o acesso mais amplo à justiça envolve mudanças nas relações entre Estado e Sociedade e entre Nação e Sociedade.
Cadernos XIII 5 de Formação
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
INTRODUÇÃO
com os relatos do texto seguinte, “os sentidos expressos por quatro vozes nunca ouvidas”, sugere uma reflexão sobre o problema do cotidiano na sala de aula. Por fim, Maria Suzana De Stefano Menin, no artigo Escola e Educação Moral, descreve desenvolvimento e educação moral na perspectiva de Jean Piaget, iluminando-a com resultados de pesquisas recentes. Acompanha novas tendências de educação moral suscitadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais e por autores inspirados em Piaget, que apontam caminhos para a educação moral. Caminhos em que a Ética aparece como tema transversal e multidisciplinar, construída através de práticas que fortalecem a autonomia como meio e fim da educação e levam à adoção explícita, consciente e coletiva de regras, valores e princípios de regulação da vida social na escola. Esta edição do Caderno de Formação: Ética e Cidadania contou com observações críticas e sugestões da Professora Jussiara Delgado, da primeira turma do Pólo de Botucatu do Projeto Peda gogia Cidadã , a quem expressamos nossos agradecimentos in memorian. O Conselho Técnico-Científico espera com este volume ter disponibilizado textos que permitam um aprofundamento reflexivo dos temas tratados, conduzindo os professores e alunos a uma prática sócio-pedagógica em sintonia com padrões ético-morais de igualdade, dignidade, participação e reconhecimento mútuo. Desejo a todos um excelente trabalho! Aluisio Almeida Schumacher
São Paulo, novembro de 2005
XIV 6
Cadernos de Formação
A EXISTÊNCIA ÉTICA1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Marilena Chaui
SENSO MORAL E CONSCIÊNCIA MORAL Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral. Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral. Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imitá-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral. Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos também manifestam nosso senso moral. Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta? Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como responsabilizar-se plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas famílias (se as tiverem). Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro
ÉTICA E CIDADANIA
A EXISTÊNCIA ÉTICA
PÁGINAS 7 A 13
1
Fonte: CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 334-339.
2
Marilena Chaui é professora de Filosofia na Universidade de São Paulo, com presença atuante no debate político nacional e na construção da democracia brasileira. É autora de: Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas , Conformismo e resistência: notas sobre a cultura popular , Seminários sobre o nacional e o popular na cultura , dentre outros.
Cadernos de Formação
7
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A EXISTÊNCIA ÉTICA
...o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros.
juízo . [Do lat. judiciu.] S. m. 1.
Ato de julgar; julgamento. 2. Conceito, parecer, opinião (...) 3. Tino, circunspeção, ponderação, siso (...) 4. Foro ou tribunal onde se processam e julgam os pleitos, se administra justiça. 5. Lóg. Estabelecimento de uma relação determinada entre dois ou mais termos (sujeito e predicado), relação que pode assumir o caráter de ser verdadeira ou falsa. (Aurélio Eletrônico). Perceba que a idéia de juízo aparece muitas vezes relacionada à idéia de verdade e de correção (o juízo moral que estiver conforme o bem será considerado correto). O problema é chegar a um consenso sobre o que seria o bem. 8
Cadernos de Formação
mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo? Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo? Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela indecisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar? Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer? Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções. Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.
O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.
JUÍZO DE FATO E DE VALOR Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é bela”, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor . Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor avaliações sobre coisas, pessoas e situações - são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião. Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis. Os juízos éticos de valor são também normativos , isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto. Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade... Enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral. Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural, uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou detestar. Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar. Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam-se a si mesmos e as suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores. Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a Natureza, percebida como objeto de contemplação. Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral, porque somos educados (cultivados)
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A EXISTÊNCIA ÉTICA
...a Cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam-se a si mesmos e as suas relações com a Natureza, acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alterando-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores.
cultura [Do lat. cultura .] S. f. (...)
5. O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. [Nas ciências humanas, opõese por vezes à idéia de natureza , ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais.] (...) 11. Antrop. O conjunto complexo dos códigos e padrões que regulam a ação humana individual e coletiva, tal como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico, e que se manifestam em praticamente todos os aspectos da vida: modos de sobrevivência, normas de comportamento, crenças, instituições, valores espirituais, criações materiais, etc. (Aurélio Eletrônico)
Cadernos de Formação
9
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.
ÉTICA E VIOLÊNCIA A EXISTÊNCIA ÉTICA
Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício, circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores positivos o bem e a virtude como barreiras éticas contra a violência.
10
Cadernos de Formação
Quando acompanhamos a história das idéias éticas, desde a Antiguidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontra-se o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social. Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto, malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros. Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício, circunscrevem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência. Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime. Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros. A ética é normativa exatamente por isso, suas normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência.
OS CONSTITUINTES DO CAMPO ÉTICO Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética. A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou injusto). A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre , isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas. O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral, principal constituinte da existência ética. O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa , só pode existir se preencher as seguintes condições: ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele; ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis; ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas; ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as regras de conduta. O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas. Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele •
•
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A EXISTÊNCIA ÉTICA
O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito mo- ral, principal constituinte da existência ética.
•
•
Cadernos de Formação
11
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A EXISTÊNCIA ÉTICA
que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade. Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo 3. Do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral.
No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos.
Conseqüentemente, embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus valores são obrigatórios para todos os seus membros), está em relação com o tempo e a História, transformando-se para responder a exigências novas da sociedade e da Cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo. Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os meios para que o sujeito realize os fins. Costuma-se dizer que os fins justificam os meios, de modo que, para alcançar um fim legítimo, todos os meios disponíveis são válidos. No caso da ética, porém, essa afirmação deixa de ser óbvia. Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, a adulação, a má-fé, a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais.
3
A palavra autônomo vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra). Aquele que tem o poder para dar para si mesmo a regra, a norma, a lei, é autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem a capacidade racional para a autonomia é heterônomo. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e nomos; receber de um outro a norma, a regra ou a lei.
12
Cadernos de Formação
No entanto, poderia acontecer que para forçar alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade – não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não. Por quê? Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético. No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos.
A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes. Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e, portanto, forçar-nos à racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em segundo lugar, porque se tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo à nossa consciência, o poder da moral social. Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento das idéias éticas na Filosofia.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A EXISTÊNCIA ÉTICA
ATIVIDADES4 1) O que são senso moral e consciência moral? 2) Dê exemplo de um juízo de fato e um de valor, explicando o que são estes juízos. 3) Elabore uma situação de conflito de consciência e procure analisá-la do ponto de vista moral. 4) Considerando o conceito de violência, dê exemplos de práticas violentas de diferentes tipos.
A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes.
5) Em sua opinião qual é a importância da educação para a formação da consciência ética?
4
As atividades a seguir foram inspiradas nas atividades sugeridas pela autora do texto.
Cadernos de Formação
13
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
14
Cadernos de Formação
A FILOSOFIA MORAL1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Marilena Chaui
ÉTICA OU FILOSOFIA MORAL
ÉTICA E CIDADANIA
Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social.
A FILOSOFIA MORAL
PÁGINAS 15 A 26
No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir dos textos de Platão e de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates. Percorrendo praças e ruas de Atenas – contam Platão e Aristóteles –, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem? As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondose a começar, na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem. Por que os atenienses sentiam-se embaraçados (e mesmo irritados) com as perguntas socráticas? Por dois motivos principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com os fatos constatáveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o que fez fulano na guerra contra os persas”); em segundo lugar, porque, inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes (diziam, por exemplo, “É certo fazer tal ação, porque meus antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e valores, pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas, certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras, embaraçando-se ou irritando-se quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos. Tais confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.
1
Fonte: CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 334-339.
Cadernos de Formação
15
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
... ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Sócrates indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes.
Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos. Sócrates embaraçava os atenienses porque os forçava a indagar qual a origem e a essência das virtudes (valores e obrigações) que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas. Como e por que sabiam que uma conduta era boa ou má, virtuosa ou viciosa? Por que, por exemplo, a coragem era considerada virtude e a covardia, vício? Por que valorizavam positivamente a justiça e desvalorizavam a injustiça, combatendo-a? Numa palavra: o que eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam sido ensinados? Os costumes, porque são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, são considerados inquestionáveis e quase sagrados (as religiões tendem a mostrá-los como tendo sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos). Ora, a palavra costume se diz, em grego, ethos – donde, ética – e, em latim, mores – donde, moral. Em outras palavras, ética e moral referemse ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Sócrates indagava o que eram, de onde vinham, o que valiam tais costumes. No entanto, a língua grega possui uma outra palavra que, infelizmente, precisa ser escrita, em português, com as mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos . Em grego, existem duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e : uma vogal breve, chamada epsilon, e uma vogal longa, chamada eta . Ethos , escrita com a vogal longa, significa costume; porém, escrita com a vogal breve, significa caráter , índole natural , temperamento, conjunto das disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse segundo sentido, ethos se refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e quais vícios cada um é capaz de praticar. Referem-se, portanto, ao senso moral e à consciência ética individuais. Dirigindo-se aos atenienses, Sócrates lhes perguntava qual o sentido dos costumes estabelecidos (os valores éticos ou morais da coletividade, transmitidos de geração a geração), mas também indagava quais as disposições de caráter (características pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam alguém a respeitar ou a transgredir os valores da cidade, e por quê.
16
Cadernos de Formação
Ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates realiza na verdade duas interrogações. Por um lado, interroga a sociedade para saber se o que ela costuma considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os indivíduos para saber se, ao agir, possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter ou sua índole são realmente virtuosos e bons. A indagação ética socrática dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo.
As questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral, porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser estabelecidos, ao encontrar seu ponto de partida: a consciência do agente moral. É sujeito ético moral somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que é o bem não poderá deixar de agir virtuosamente. Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético e saber prático. O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência. Temos conhecimento teorético da Natureza. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética é um saber prático. O saber prático, por seu turno, distingue-se de acordo com a prática, considerada como práxis ou como técnica . A ética refere-se à práxis. Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis. Assim, por exemplo, dizer a verdade é uma virtude do agente, inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que é proferir uma verdade. Na práxis ética somos aquilo que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou virtuosa. Ao contrário, na técnica, diz Aristóteles, o agente, a ação e a finalidade da ação estão separados, sendo independentes uns dos outros. Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida pela ação. A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente e da ação fabricadora. Dessa maneira, Aristóteles distingue a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente com a ação e com a finalidade da ação. Também devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas. Estas não só são definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha . Em outras palavras, quando o curso de uma realidade segue leis necessárias e universais, não há como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer. Não deliberamos sobre as estações do ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela Natureza, isto é, pela necessidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não deliberamos e não decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é e o que será sempre, independentemente de nós. Deliberamos e decidimos sobre o possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e de nossa ação. Aristóteles acrescenta à consciência moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética. A importância dada por Aristóteles à vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática . O prudente é
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
... Aristóteles distingue a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente com a ação e com a finalidade da ação. Deliberamos e decidimos sobre o possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e de nossa ação. Aristóteles acrescenta à consciência moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro
elemento fundamental da vida ética.
práxis (cs). [Do gr. prâxis , ‘ação’.]
S. f. 2 n. 1. Atividade prática; ação, exercício, uso. 2. Filos. No marxismo, o conjunto das atividades humanas tendentes a criar as condições indispensáveis à existência da sociedade e, particularmente, à atividade material, à produção; prática. (Aurélio Eletrônico).
Cadernos de Formação
17
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
O sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de um outro, à tirania das paixões, mas obedece apenas à sua consciência que conhece o bem e as virtudes e à sua vontade racional que conhece os meios adequados para chegar aos fins morais. A busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética.
racionalismo . S. m. 1. Método de
observar as coisas baseado exclusivamente na razão, considerada como única autoridade quanto à maneira de pensar e/ou de agir. (...) 4. Filos. Doutrina que admite, quanto à origem do conhecimento, que este, em última instância, é determinado por princípios racionais, inatos ou a priori , ainda que se possa condicionar a validade do uso desses princípios à disponibilidade de dados empíricos. (Aurélio Eletrônico). Como foi visto no Caderno de Filosofia da Educação (p. 25 e seguintes), a doutrina do filósofo francês René Descartes é um exemplo típico de racionalismo. 18
Cadernos de Formação
aquele que, em todas as situações, é capaz de julgar e avaliar qual a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética, ou seja, entre as várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros. Se examinarmos o pensamento filosófico dos antigos, veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida moral: 1. por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade, que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa; 2. a virtude é uma força interior do caráter, que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão, pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano; 3. a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar, referindo-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber o que está em nosso poder significa, principalmente, não se deixar arrastar pelas circunstâncias, nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação. O sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de um outro, à tirania das paixões, mas obedece apenas à sua consciência – que conhece o bem e as virtudes – e à sua vontade racional – que conhece os meios adequados para chegar aos fins morais. A busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética. Os filósofos antigos (gregos e romanos) consideravam a vida ética transcorrendo como um embate contínuo entre nossos apetites e desejos – as paixões – e nossa razão. Por natureza, somos passionais e a tarefa primeira da ética é a educação de nosso caráter ou de nossa natureza, para seguirmos a orientação da razão. A vontade possuía um lugar fundamental nessa educação, pois era ela que deveria ser fortalecida para permitir que a razão controlasse e dominasse as paixões. O passional é aquele que se deixa arrastar por tudo quanto satisfaça imediatamente seus apetites e desejos, tornando-se escravo deles. Desconhece a moderação, busca tudo imoderadamente, acabando vítima de si mesmo. Podemos resumir a ética dos antigos em três aspectos principais: 1. o racionalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão, que conhece o bem, o deseja e guia nossa vontade até ele; 2. o naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza (o cosmos) e com nossa natureza (nosso ethos ), que é uma parte do todo natural; 3. a inseparabilidade entre ética e política : isto é, entre a conduta do indivíduo e os valores da sociedade, pois somente na existência compartilhada com outros encontramos liberdade, justiça e felicidade. A ética, portanto, era concebida como educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos, apetites e desejos, para orientar
a vontade rumo ao bem e à felicidade, e para formá-lo como membro da coletividade sociopolítica. Sua finalidade era a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também deveriam ser virtuosos.
O CRISTIANISMO: INTERIORIDADE E DEVER Diferentemente de outras religiões da Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. Em outras palavras, enquanto nas demais religiões antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e politicamente organizada, o Deus cristão relaciona-se diretamente com os indivíduos que nele crêem. Isso significa, antes de qualquer coisa, que a vida ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade, mas por sua relação espiritual e interior com Deus. Dessa maneira, o cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética: em primeiro lugar, a idéia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade (a polis ) nem com os outros. Nossa relação com os outros depende da qualidade de nossa relação com Deus, único mediador entre cada indivíduo e os demais. Por esse motivo, as duas virtudes cristãs primeiras e condições de todas as outras são a fé (qualidade da relação de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos outros e a responsabilidade pela salvação dos outros, conforme exige a fé). As duas virtudes são privadas, isto é, são relações do indivíduo com Deus e com os outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um; em segundo lugar, a afirmação de que somos dotados de vontade livre – ou livre-arbítrio – e que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto é, para a transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca). Em outras palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites e desejos, havendo, portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos tornava morais, para o cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais. Qual o auxílio divino sem o qual a vida ética seria impossível? A lei divina revelada , que devemos obedecer obrigatoriamente e sem exceção. O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral: a idéia do dever . Por meio da revelação aos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação e o castigo. Aos humanos, cabe reconhecer a vontade •
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral: a idéia do dever.
•
naturalismo . S. m. (...) 5. Filos.
Doutrina segundo a qual todo con junto de fenômenos pode ser reduzido, por um encadeamento mecânico, a fatos do mundo concreto material sem a intervenção de nenhuma causa transcendente. P. ex.: em moral, doutrina que fundamenta a conduta humana na satisfação dos instintos biológicos. (Aurélio Eletrônico)
Cadernos de Formação
19
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
e a lei de Deus, cumprindo-as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever . Estes tornam morais um sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma ação. Mesmo quando, a partir do Renascimento, a filosofia moral distanciase dos princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética, a idéia do dever permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental. Com isso, a filosofia moral passou a distinguir três tipos fundamentais de conduta: 1. a conduta moral ou ética, que se realiza de acordo com as normas e as regras impostas pelo dever; 2. a conduta imoral ou antiética, que se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo dever; 3. a conduta indiferente à moral, quando agimos em situações que não são definidas pelo bem e pelo mal, e nas quais não se impõem as normas e as regras do dever. Juntamente com a idéia do dever, a moral cristã introduziu uma outra, também decisiva na constituição da moralidade ocidental: a idéia de intenção.
O cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus, entre a alma invisível e a divindade.
Até o cristianismo, a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porém, é uma religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do indivíduo e Deus, entre a alma invisível e a divindade. Como conseqüência, passou-se a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo quanto acontece em nosso interior. O dever não se refere apenas às ações visíveis, mas também às intenções invisíveis, que passam a ser julgadas eticamente. Eis por que um cristão, quando se confessa, obrigase a confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções. Sua alma, invisível, tem o testemunho do olhar de Deus, que a julga.
NATUREZA HUMANA E DEVER O cristianismo introduz a idéia do dever para resolver um problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem e o mal. No entanto, essa idéia cria um problema novo. Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência (vontade, razão, coração) as normas da conduta virtuosa, submetendo-se apenas ao bem, jamais submetendo-se a poderes externos à consciência, como falar em comportamento ético por dever ? Este não seria o poder externo de uma vontade externa (Deus), que nos domina e nos impõe suas leis, forçando-nos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência?
20
Cadernos de Formação
Em outras palavras, se a ética exige um sujeito autônomo, a idéia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós? Um dos filósofos que procuraram resolver essa dificuldade foi Rousseau, no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos. O dever simplesmente nos força a recordar nossa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição exterior. Obedecendo ao dever (à lei divina inscrita em nosso coração), estamos obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à nossa razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa. Uma outra resposta, também no final do século XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se à “moral do coração” de Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais. A exposição kantiana parte de duas distinções: 1. a distinção entre razão pura teórica ou especulativa e razão pura prática; 2. a distinção entre ação por causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade. Razão pura teórica e prática são universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares – podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações, mas as formas da atividade racional de conhecimento e da ação são universais. Em outras palavras, o sujeito, em ambas, é sujeito transcendental, como vimos na teoria do conhecimento. A diferença entre razão teórica e prática encontra-se em seus objetos. A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós, um sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa intervenção; a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária, mas cria sua própria realidade, na qual se exerce. Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidade/liberdade. A Natureza é o reino da necessidade, isto é, de acontecimentos regidos por seqüências necessárias de causa e efeito – é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia. Diferentemente do reino da Natureza, há o reino humano da práxis, no qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade. A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais, tem também
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
A razão teórica ou especulativa tem como matéria ou conteúdo a realidade exterior a nós, um sistema de objetos que opera segundo leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa intervenção; a razão prática não contempla uma causalidade externa necessária, mas cria sua própria realidade, na qual se exerce. Essa diferença decorre da distinção entre necessidade e finalidade/liberdade.
Cadernos de Formação
21
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
Assim, à pergunta que fizemos no capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa natureza espontaneamente passional, Kant responderá que, pelo contrário, a violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos apetites e impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza.
22
Cadernos de Formação
o poder para impô-los a si mesma. Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever. Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecêlo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos. Resta, porém, uma questão: se somos racionais e livres, por que valores, fins e leis morais não são espontâneos em nós, mas precisam assumir a forma do dever? Responde Kant: porque não somos seres morais apenas. Também somos seres naturais, submetidos à causalidade necessária da Natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites, impulsos, desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da Natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causalidade natural inexorável. Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética. A Natureza nos impele a agir por interesse . Este é a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o que desejamos. Além disso, o interesse nos faz viver na ilusão de que somos livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas livremente por nós, quando, na verdade, são um impulso cego determinado pela causalidade natural. Agir por interesse é agir determinado por motivações físicas, psíquicas, vitais, à maneira dos animais. Visto que apetites, impulsos, desejos, tendências, comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do que a razão, a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa parte natural e impor-nos nosso ser moral. Elas o fazem obrigando-nos a passar das motivações do interesse para o dever. Para sermos livres, precisamos ser obrigados pelo dever de sermos livres. Assim, à pergunta que fizemos no capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa natureza espontaneamente passional, Kant responderá que, pelo contrário, a violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos apetites e impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza. O dever, afirma Kant, não se apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos, que definiriam a essência de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada circunstância de nossas vidas. O dever não é um catálogo de virtudes nem uma lista de “faça isto” e “não faça aquilo”. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral. Essa forma não é indicativa, mas imperativa. O imperativo não admite hipóteses (“se… então”) nem condições que o fariam valer em certas situações e não valer em outras, mas vale incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as ações morais. Por isso, o dever é um imperativo categórico. Ordena incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, mas a lei moral interior . O imperativo categórico exprime-se numa fórmula geral: Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma
lei universal. Em outras palavras, o ato moral é aquele que se realiza como
acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma. Essa fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever. São elas: 1. Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza; 2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio; 3. Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais. A primeira máxima afirma a universalidade da conduta ética, isto é, aquilo que todo e qualquer ser humano racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável, válida para todos e em todo tempo e lugar. A ação por dever é uma lei moral para o agente. A segunda máxima afirma a dignidade dos seres humanos como pessoas e, portanto, a exigência de que sejam tratados como fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses. A terceira máxima afirma que a vontade que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e, portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma. A terceira máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o reino humano dos fins. O imperativo categórico não enuncia o conteúdo particular de uma ação, mas a forma geral das ações morais. As máximas deixam clara a interiorização do dever, pois este nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral. O acordo entre vontade e dever é o que Kant designa como vontade boa que quer o bem.
O motivo moral da vontade boa é agir por dever. O móvel moral da vontade boa é o respeito pelo dever, produzido em nós pela razão. Obediência à lei moral, respeito pelo dever e pelos outros constituem a bondade da vontade ética. O imperativo categórico não nos diz para sermos honestos, oferecendonos a essência da honestidade; nem para sermos justos, verazes, generosos ou corajosos a partir da definição da essência da justiça, da verdade, da generosidade ou da coragem. Não nos diz para praticarmos esta ou aquela ação determinada, mas nos diz para sermos éticos cumprindo o dever (as três máximas morais). É este que determina por que uma ação moral deverá ser sempre honesta, justa, veraz, generosa ou corajosa. Ao agir, devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais, isto é, com as máximas do dever. Por que, por exemplo, mentir é imoral? Porque o mentiroso transgride as três máximas morais. Ao mentir, não respeita em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciência, racionalidade e liberdade), pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma informação verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fé do outro. Também não respeita a segunda máxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o gênero humano deveria abdicar
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
O motivo moral da vontade boa é agir por dever. O móvel moral da vontade boa é o respei- to pelo dever, produzido em nós pela razão. Obediência à lei moral, respeito pelo dever e pelos outros constituem a bondade da vontade ética.
Cadernos de Formação
23
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
da razão e do conhecimento, da reflexão e da crítica, da capacidade para deliberar e escolher, vivendo na mais completa ignorância, no erro e na ilusão. Por que um político corrupto é imoral? Porque transgride as três máximas. Por que o homicídio é imoral? Porque transgride as três máximas. As respostas de Rousseau e Kant, embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade, qual seja, explicar por que o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis. A solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior, desfazendo a impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha à nossa.
CULTURA E DEVER
A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva in- dividual e a vontade objetiva cultural. Reali-
za-se plenamente quando interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos espontânea e livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os discutirmos, sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os deseja. O que é, então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a totalidade ética ou moralidade.
Rousseau e Kant procuraram conciliar o dever e a idéia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à moral. No entanto, ao enfatizarem a questão da natureza (Natureza e natureza humana), tenderam a perder de vista o problema da relação entre o dever e a Cultura, pois poderíamos repetir, agora, a pergunta que fizemos antes: Se a ética exige um sujeito consciente e autônomo, como explicar que a moral exija o cumprimento do dever, definido como um conjunto de valores, normas, fins e leis estabelecidos pela Cultura? Não estaríamos de volta ao problema da exterioridade entre o sujeito e o dever? A resposta a essa questão foi trazida, no século XIX, por Hegel. Hegel critica Rousseau e Kant por dois motivos. Em primeiro lugar, por terem dado atenção à relação sujeito humano-Natureza (a relação entre razão e paixões), esquecendo a relação sujeito humano-Cultura e História. Em segundo lugar, por terem admitido a relação entre a ética e a sociabilidade dos seres humanos, mas tratando-a a partir de laços muito frágeis, isto é, como relações pessoais diretas entre indivíduos isolados ou independentes, quando deveriam tê-la tomado a partir dos laços fortes das relações sociais, fixadas pelas instituições sociais (família, sociedade civil, Estado). As relações pessoais entre indivíduos são determinadas e mediadas por suas relações sociais. São estas últimas que determinam a vida ética ou moral dos indivíduos. Somos, diz Hegel, seres históricos e culturais. Isso significa que, além de nossa vontade individual subjetiva (que Rousseau chamou de coração e Kant de razão prática), existe uma outra vontade, muito mais poderosa, que determina a nossa: a vontade objetiva , inscrita nas instituições ou na Cultura. A vontade objetiva – impessoal, coletiva, social, pública – cria as instituições e a moralidade como sistema regulador da vida coletiva por meio de mores, isto é, dos costumes e dos valores de uma sociedade, numa época determinada. A moralidade é uma totalidade formada pelas instituições (família, religião, artes, técnicas, ciências, relações de trabalho, organização política, etc.), que obedecem, todas, aos mesmos valores e aos mesmos costumes, educando os indivíduos para interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura. A vida ética é o acordo e a harmonia entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural. Realiza-se plenamente quando
24
Cadernos de Formação
interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos espontânea e
livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os discutirmos, sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os deseja. O que é, então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva individual e a totalidade ética ou moralidade. Como conseqüência, o imperativo categórico não poderá ser uma forma universal desprovida de conteúdo determinado, como afirmara Kant, mas terá, em cada época, em cada sociedade e para cada Cultura, conteúdos determinados, válidos apenas para aquela formação histórica e cultural. Assim cada sociedade, em cada época de sua História, define os valores positivos e negativos, os atos permitidos e os proibidos para seus membros, o conteúdo dos deveres e do imperativo moral. Ser ético e livre será, portanto, pôr-se de acordo com as regras morais de nossa sociedade, interiorizando-as. Hegel afirma que podemos perceber ou reconhecer o momento em que uma sociedade e uma Cultura entram em declínio, perdem força para conservar-se e abrem-se às crises internas que anunciam seu término e sua passagem a uma outra formação sociocultural. Esse momento é aquele no qual os membros daquela sociedade e daquela Cultura contestam os valores vigentes, sentem-se oprimidos e esmagados por eles, agem de modo a transgredi-los. É o momento no qual o antigo acordo entre as vontades subjetivas e a vontade objetiva rompem-se inexoravelmente, anunciando um novo período histórico. Numa perspectiva algo semelhante à hegeliana encontra-se, no século XX, o filósofo francês Henri Bergson. Como Hegel, Bergson procura compreender a relação dever-Cultura ou dever-História e, portanto, as mudanças nas formas e no conteúdo da moralidade. Distingue ele duas morais: a moral fechada e a aberta . A moral fechada é o acordo entre os valores e os costumes de uma sociedade e os sentimentos e as ações dos indivíduos que nela vivem. É a moral repetitiva, habitual, respeitada quase automaticamente por nós. Em contrapartida, a moral aberta é uma criação de novos valores e de novas condutas que rompem a moral fechada, instaurando uma ética nova. Os criadores éticos são, para Bergson, indivíduos excepcionais – heróis, santos, profetas, artistas –, que colocam suas vidas a serviço de um tempo novo, inaugurado por eles, graças a ações exemplares, que contrariam a moral fechada vigente.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
A moral fechada quando sentida como repressora e opressora, e a totalidade ética, quando percebida como contrária à subjetividade individual, indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados como violência e não mais como realização ética.
Hegel diria que a moral aberta bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise, prestes a terminar, porque um novo período histórico-cultural está para começar. A moral fechada quando sentida como repressora e opressora, e a totalidade ética, quando percebida como contrária à subjetividade individual, indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados como violência e não mais como realização ética.
Cadernos de Formação
25
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A FILOSOFIA MORAL
ATIVIDADES1 1. Que querem dizer ética e moral? Porque podemos perceber os sentidos destas palavras examinando o pensamento socrático? 2. Quais os princípios da ética dos antigos? Porque a tarefa primeira da ética era a educação do caráter? 3. Que inovações éticas surgem com o cristianismo, comparado à ética dos antigos? 4. Qual a diferença entre Rousseau, Kant e Hegel no que se refere à relação entre natureza humana e dever?
1
As atividades a seguir foram inspiradas nas atividades sugeridas pela autora do texto. 26
Cadernos de Formação
MAPA DA VIAGEM (INTRODUÇÃO) 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
José Murilo de Carvalho2
ÉTICA E CIDADANIA
O esforço de reconstrução, melhor dito, de construção da democracia no Brasil ganhou ímpeto após o fim da ditadura militar, em 1985. Uma das marcas desse esforço é a voga que assumiu a palavra cidadania. Políticos, jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples cidadãos, todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política. Não se diz mais “o povo quer isto ou aquilo”, diz-se “a cidadania quer”. Cidadania virou gente. No auge do entusiasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Constituição Cidadã. Havia ingenuidade no entusiasmo. Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquistado o direito de eleger nossos prefeitos, governadores e presidente da República seria garantia de liberdade, de participação, de segurança, de desenvolvimento, de emprego, de justiça social. De liberdade, ele foi. A manifestação do pensamento é livre, a ação política e sindical é livre. De participação também. O direito do voto nunca foi tão difundido. Mas as coisas não caminharam tão bem em outras áreas. Pelo contrário. Já 15 anos passados desde o fim da ditadura, problemas centrais de nossa sociedade, como a violência urbana, o desemprego, o analfabetismo, a má qualidade da educação, a oferta inadequada dos serviços de saúde e saneamento, e as grandes desigualdades sociais e econômicas ou continuam sem solução, ou se agravam, ou, quando melhoram, é em ritmo muito lento. Em conseqüência, os próprios mecanismos e agentes do sistema democrático, como as eleições, os partidos, o Congresso, os políticos, se desgastam e perdem a confiança dos cidadãos. Não há indícios de que a descrença dos cidadãos tenha gerado saudosismo em relação ao governo militar, do qual a nova geração nem mesmo se recorda. Nem há indicação de perigo imediato para o sistema democrático. No entanto, a falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, inclusive por motivos que têm a ver com crescente dependência do país em relação à ordem econômica internacional, é fator inquietante, não apenas pelo sofrimento humano que representa de imediato como, a médio prazo, pela possível tentação que pode gerar de soluções que signifiquem retrocesso em conquistas já feitas. É importante, então, refletir sobre o problema da cidadania, sobre seu significado, sua evolução histórica e suas perspectivas. Será exercício adequado para o momento da passagem dos 500 anos da conquista dessas terras pelos portugueses. Inicio a discussão dizendo que o fenômeno da cidadania é complexo e historicamente definido. A breve introdução acima já indica sua complexidade. O exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais.
MAPA DA VIAGEM (INTRODUÇÃO)
PÁGINAS 27 A 30
... o analfabetismo, a má qualidade da educação, a oferta inadequada dos serviços de saúde e saneamento, e as grandes desigualdades sociais e econômicas ou continuam sem solução, ou se agravam...
Fonte: CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil, o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, 7-13. 2 José Murilo de Carvalho, mineiro de 63 anos de idade, é autor de diversos livros: Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (1987) e A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (1990), ambos editados pela Companhia das Letras; A construção da ordem e teatro de sombras (1996) editado pela Relume Dumará; e Pontos e bordados: escritos de história e política (1998), editado pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais. Ao longo de sua trajetória enquanto cientista político pela Universidade de Stanford, José Murilo tem demonstrado grande capacidade de analisar a história política do Brasil, sobretudo a partir do final do século XIX, já que seu foco é o advento da República entre nós. 1
Cadernos de Formação
27
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA MAPA DA VIAGEM (INTRODUÇÃO)
Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos.
28
Cadernos de Formação
Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico. Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. Esclareço os conceitos. Direitos civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual. É possível haver direitos civis sem direitos políticos. Estes se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Se pode haver direitos civis sem direitos políticos, o contrário não é viável. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos. Os direitos políticos têm como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a idéia de autogoverno. Finalmente, há os direitos sociais. Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A idéia central em que se baseiam é a da justiça social. O autor que desenvolveu a distinção entre as várias dimensões da cidadania, T.A.Marshall, sugeriu também que ela, a cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os
direitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, não se trata de seqüência apenas cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo de seu país. A participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais. Há, no entanto, uma exceção na seqüência de direitos, anotada pelo próprio Marshall. Trata-se da educação popular. Ela é definida como direito social mas tem sido historicamente um pré-requisito para a expansão dos outros direitos. Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive na Inglaterra, por uma razão ou outra a educação popular foi introduzida. Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania civil e política. O surgimento seqüencial dos direitos sugere que a própria idéia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso inglês foi apenas um entre outros. A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu seu próprio caminho. O Brasil não é exceção. Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferenças importantes. A primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à alteração na seqüência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na seqüência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente da mesma coisa. Outro aspecto importante, derivado da natureza histórica da cidadania, é que ela se desenvolveu dentro do fenômeno, também histórico, a que chamamos de Estado-nação e que data da Revolução Francesa, de 1789. A luta pelos direitos, todos eles, sempre se deu dentro das fronteiras geográficas e políticas do Estado-nação. Era uma luta política nacional, e o cidadão que dela surgia era também nacional. Isto quer dizer que a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado. Da cidadania como a conhecemos fazem parte então a lealdade a um Estado e a identificação com uma nação. As duas coisas também nem sempre aparecem juntas. A identificação à nação pode ser mais forte do que a lealdade ao Estado, e vice-versa. Em geral, a identidade nacional se deve a fatores como religião, língua e, sobretudo, lutas e guerras contra inimigos comuns. A lealdade ao Estado depende do grau de participação na vida política. A maneira como se formaram os Estados-nação condiciona assim a construção da cidadania. Em alguns países, o Estado teve mais importância e o processo de difusão dos direitos se deu principalmente a partir da ação estatal. Em outros, ela se deveu mais à ação dos próprios cidadãos.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA MAPA DA VIAGEM (INTRODUÇÃO)
A luta pelos direitos, todos eles, sempre se deu dentro das fronteiras geográficas e políticas do Estado-nação. Era uma luta política nacional, e o cidadão que dela surgia era também nacional. Isto quer dizer que a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação.
Cadernos de Formação
29
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA MAPA DA VIAGEM (INTRODUÇÃO)
A redução do poder do Estado afeta a natureza dos antigos direitos, sobretudo dos direitos políticos e sociais. Se os direitos políticos significam participação no governo, uma diminuição no poder do governo reduz também a relevância do direito de participar. Por outro lado, a ampliação da competição internacional coloca pressão sobre o custo da mão-de-obra e sobre as finanças estatais, o que acaba afetando o emprego e os gastos do governo, do qual dependem os direitos sociais.
30
Cadernos de Formação
Da relação da cidadania com o Estado-naçao deriva uma última complicação do problema. Existe hoje um consenso a respeito da idéia de que vivemos uma crise do Estado-nação. Discorda-se da extensão, profundidade e rapidez do fenômeno, não de sua existência. A internacionalização do sistema capitalista, iniciada há séculos mas muito acelerada pelos avanços tecnológicos recentes, e a criação de blocos econômicos e políticos têm causado uma redução do poder dos Estados e uma mudança das identidades nacionais existentes. As várias nações que compunham o antigo império soviético se transformaram em novos Estados-nação. No caso da Europa Ocidental, os vários Estados-nação se fundem em um grande Estado multinacional. A redução do poder do Estado afeta a natureza dos antigos direitos, sobretudo dos direitos políticos e sociais. Se os direitos políticos significam participação no governo, uma diminuição no poder do governo reduz também a relevância do direito de participar. Por outro lado, a ampliação da competição internacional coloca pressão sobre o custo da mão-de-obra e sobre as finanças estatais, o que acaba afetando o emprego e os gastos do governo, do qual dependem os direitos sociais. Desse modo, as mudanças recentes têm recolocado em pauta o debate sobre o problema da cidadania, mesmo nos países em que ele parecia estar razoavelmente resolvido. Tudo isso mostra a complexidade do problema. O enfrentamento dessa complexidade pode ajudar a identificar melhor as pedras no caminho da construção democrática. Não ofereço receita da cidadania. Também não escrevo para especialistas. Faço convite a todos os que se preocupam com a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-lhe o percurso, o eventual companheiro ou companheira de jornada poderá desenvolver visão própria do problema. Ao fazê-lo, estará exercendo sua cidadania.
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO) 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
José Murilo de Carvalho
Percorremos um longo caminho, 178 anos de história do esforço para Percorremos construir o cidadão brasileiro. Chegamos ao final da jornada com a sensação desconfortável de incompletude. incompletude. Os progressos feitos são inegáveis mas foram lentos e não escondem o longo caminho que ainda falta percorrer. percorrer. O triunfalismo exibido nas celebrações oficiais dos 500 anos da conquista da terra pelos portugueses não consegue ocultar o drama dos milhões de pobres, de desempregados, de analfabetos e semi-analfabetos, de vítimas da violência particular e oficial. Não há indícios de saudosismo em relação à ditadura militar, mas perdeu-se a crença de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade. Uma das razões para nossas dificuldades pode ter a ver com a natureza do percurso que descrevemos. A cronologia e a lógica da seqüência descrita por Marshall foram invertidas no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da seqüência de Marshall Marshall,, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo. Na seqüência inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente do Exec Executivo. utivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo. A base de tudo eram as liberdades civis. A participação política era destinada em boa parte a garantir essas liberdades. Os direitos sociais eram os menos óbvios e até certo ponto considerados incompatíveis com os direitos civis e políticos. A proteção do Estado a certas pessoas parecia uma quebra da igualdade de todos perante a lei, uma interferência na liberdade de trabalho e na livre competição. Além disso, o auxílio do Estado era visto como restrição à liberdade liberdade individual do beneficiado, e como tal lhe retirava a condição de independência requerida de quem deveria ter o direito de voto. v oto. Por essa razão, privaram-se, no início, os assistidos pelo Estado do direito do voto. Nos Estados Unidos, até mesmo sindicatos operários se opuseram à legislação social, considerada humilhante para o cidadão. Só mais tarde esses direitos passaram a ser considerados compatíveis com os outros direitos, e o cidadão pleno passou a ser aquele que gozava de todos os direitos, civis, políticos e sociais. Seria tolo achar que só há um caminho para a cidadania. A história mostra que não é assim. Dentro da própria Europa houve percursos distintos,
ÉTICA E CIDADANIA A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
PÁGINAS 31 A 39
A cronologia e a lógica da seqüência descrita por Marshall foram invertidas no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da seqüência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população.
1
Fonte: CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil, o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,, 2002, p. 219-229. Brasileira 21 9-229.
Cadernos de Formação
31
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
Ligada à preferência pelo Executivo está a busca por um messias político, por um salvador da pátria. Como a experiência de governo democrático tem sido curta e os problemas sociais têm persistido e mesmo se agravado, cresce também a impaciência popular com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo democrático de decisão.
patrimonialismo : Na sociologia
weberiana correspondia a um tipo de dominação política tradicional caracterizadaa pelo fato do soberano caracterizad organizar o poder político de forma análoga a seu poder doméstico (Ricardo Vélez Rodríguez. Oliveira Vianna e o poder modernizador do estado brasileiro . Londrina: Ed. UEL, 1997. p. 22). Esta forma de exercício da autoridade sofre modificações ao longo da história. De uma perspectiva puramente histórica, tanto é possível que ela evolua em direção à formas de governo que adotam a democracia representativa, quanto simplesmente modernizem a administração burocrática sem caminhar neste sentido. ( ensayo. rom.uga.edu/filosofos/brasil/ velez/introd.htm). velez/introd.htm 32
Cadernos de Formação
como demonstram os casos da Inglaterra, da França e da Alemanha. Mas é razoável supor que caminhos diferentes afetem o produto final, f inal, afetem o tipo de cidadão, e, portanto de democracia, que se gera. Isto é particularmente verdadeiro quando a inversão da seqüência é completa, quando os direitos sociais passam a ser a base da pirâmide. Quais podem ser as conseqüências, sobretudo para o problema da eficácia da democracia? Uma conseqüência importante é a excessiva valorização do Poder Executivo.. Se os direitos sociais foram implantados cutivo i mplantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava estav a fechado ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Executivo. O governo aparece como o ramo mais importante do poder, aquele do qual vale a pena aproximarse. A fascinação com um Executivo forte está sempre presente, e foi ela sem dúvida uma das razões da vitória do presidencialismo sobre o parlamentarismo, no plebiscito de 1993. Essa orientação para par a o Executivo Executivo reforça longa tradição portuguesa, ou ibérica, patrimonialismo. patrimonialismo . O Estado é sempre visto como todopoderoso, na pior hipótese hipótes e como repressor e cobrador de impostos; na melhor, melho r, como um distribuidor paternalista de empregos e favores. A ação política nessa visão é sobretudo orientada para a negociação direta com o governo, sem passar pela mediação da representação. Como vimos, até mesmo uma parcela do movimento operário na Primeira República orientou-se nessa direção; parcela ainda maior adaptou-se a ela na década de 30. Essa cultura orientada mais para o Estado do que para a representaç rep resentação ão é o que chamamos de “estadania”, em contraste com a cidadania. Ligada à preferência pelo Executivo está a busca por um messias político, políti co, por um salvador da pátria. Como a experiência de governo democrático democrático tem sido curta e os problemas sociais têm persistido e mesmo se agravado, cresce também a impaciência popular com o funcionamento geralmente mais lento do mecanismo democrático de decisão. Daí a busca de soluções mais rápidas por meio de lideranças carismáticas e messiânicas. Pelo Pelo menos três dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular após 1945, Getúlio Get úlio Vargas, Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor, possuíam traços messiânicos. messi ânicos. Sintomaticamente, Sintomaticamente , nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por não se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com o papel do Congresso. A contrapartida da valorização valorização do Executivo Executivo é a desvalorização do Legislativo e de seus titulares, deputados e senadores. As eleições legislativas sempre despertam menor interesse do que as do Executivo. A campanha pelas eleições diretas referia-se à escolha do presidente da República, o chefe do Executivo. Dificilmente haveria movimento semelhante para defender eleições legislativas. Nunca houve no Brasil reação popular contra fechamento do Congresso. Há uma convicção abstrata da importância dos partidos e do Congresso como mecanismos de representação, convicção esta que não se reflete na avaliação concreta de sua atuação. O desprestígio generalizado dos políticos perante a população é mais acentuado quando quando se trata de vereadores, vereadores, deputados e senadores. Além da cult cultura ura política estatista, ou governis governista, ta, a inv inversão ersão favoreceu favoreceu também uma visão corporativista dos interesses coletivos. Não se pode dizer que a culpa foi f oi toda do Estado Novo. O grande êxito de Vargas Vargas indica que sua
política atingiu um ponto sensível da cultura nacional. A distribuição dos benefícios sociais por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro do sindicalismo corporativo achou terreno fértil fér til em que se enraizar enraizar.. Os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Estado. A força do corporativismo manifestou-se mesmo durante a Constituinte de 1988. Cada grupo procurou pro curou defender e aumentar aumenta r seus privilégios. privi légios. Apesar das críticas cr íticas à CLT, CLT, as centrais sindicais dividiram-se quanto ao imposto sindical e à unicidade sindical, dois esteios estei os do sistema montado por Vargas. Vargas. Tanto Tanto o imposto como a unicidade foram mantidos. Os funcionários públicos conseguiram estabilidade no emprego. Os aposentados conseguiram o limite de um salário mínimo nas pensões, os professores conseguiram aposentadoria cinco anos mais cedo, e assim por diante. A prática política posterior p osterior à redemocratização tem revelado a força das grandes corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação pres ervação de privilégios ou em busca de novos favores. Na área que nos interessa mais de perto, o corporativismo é particularmente forte na luta de juízes e promotores por melhores salários e contra o controle externo, e na resistência das polícias militares e civis a mudanças em sua organização. A ausência de de ampla organização organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. prevalecer. A representação re presentação política não funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da população. O papel dos legisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de intermediários de favores pessoais perante o Executivo. O eleitor vota no deputado em troca de promessas de favores pessoais; o deputado apóia o governo em troca de cargos e verbas para distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia política: os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais. Para muitos, o remédio estaria nas reformas políticas mencionadas, a eleitoral, a partidária, a da forma de governo. Essas reformas e outros experimentos poderiam eventualmente reduzir o problema central da ineficácia do sistema representativo. Mas para isso a frágil democracia brasileira precisa de tempo. Quanto mais tempo ela sobreviver, maior será a probabilidade de fazer as correções necessárias nos mecanismos políticos e de se consolidar. Sua consolidação nos países que são hoje considerados democráticos, incluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de séculos. É possível que, apesar da desvantagem da inversão da ordem dos direitos, o exercício continuado da democracia política, embora imperfeita, permita aos poucos ampliar o gozo dos direitos civis, o que, por sua vez, poderia reforçar os direitos políticos, criando um círculo virtuoso no qual a cultura política também se modificaria. modificar ia. Na corrida contra o tempo, há fatores positivos. Um deles é que a esquerda e a direita parecem hoje convictas do valor da democracia. Quase todos os militantes da esquerda armada dos anos 70 são hoje políticos adaptados aos procedimentos democráticos. Quase todos aceitam a via vi a eleitoral de acesso ao poder. Por outro lado, a direita também, salvo poucas exceções, parece conformada com a democracia. Os militares têm-se conservado dentro
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representação política não funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da população.
corporativismo [De corporativo +
-ismo.] S. m. 1. Doutrina e/ou prática de organização social com base em entidades representativas dos interesses de categorias profissionais: O Estado novo de Vargas inspirou-se no corporativismo fascista. 2. Ação (sindical, política, etc.) em que prevalece a defesa dos interesses ou privilégios de um setor organizado da sociedade, em detrimento do interesse público. (Aurélio Eletrônico)
Cadernos de Formação
33
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
A redução do papel do Estado em benefício de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos políticos. A exigência de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os países a reformas no sistema de seguridade social. Essa redução tem resultado sistematicamente em cortes de benefícios e na descaracterização do estado de bem-estar.
Estado de bem estar social : “de
modo geral, o Estado de Bem-Estar Social tem como essência a garantia, por parte do governo, de standards [padrões] mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação e educação atribuídos a cada cidadão, não como gesto caritativo mas como direito social. É um modelo que se constrói a partir do século XIX, influenciado pela pressão do movimento operário e pela contribuição de conquistas sociais, como o sufrágio universal, que levaram à democratização da relação Estado/ sociedade”. (KORNIN, T. A crise do estado de bem estar social: eqüidade social x eficiência econômica? , http://www.pr.gov.br/ipardes/ coluna_2000-03-05.html) 34
Cadernos de Formação
das leis e não há indícios de que estejam cogitando da quebra das regras do jogo. Os rumores de golpe, freqüentes no período pós-45, já há algum tempo que não vêm perturbar a vida política nacional. Para isso tem contribuído o ambiente internacional, hoje totalmente desfavorável a golpes de Estado e governos autoritários. Isso não é mérito brasileiro, mas pode ajudar a desencorajar possíveis golpistas e a ganhar tempo para a democracia. Mas o cenário internacional traz também complicações para a construção da cidadania, vindas sobretudo dos países que costumamos olhar como modelos. A queda do império soviético, o movimento de minorias nos Estados Unidos e, principalmente, a globalização da economia em ritmo acelerado provocaram, e continuam a provocar, mudanças importantes nas relações entre Estado, sociedade e nação, que eram o centro da noção e da prática da cidadania ocidental. O foco das mudanças esta localizado em dois pontos: a redução do papel central do Estado como fonte de direitos e como arena de participação, e o deslocamento da nação como principal fonte de identidade coletiva. Dito do outro modo, trata-se de um desafio à instituição do Estadonação. A redução do papel do Estado em benefício de organismos e mecanismos de controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos políticos. Na União Européia, os governos nacionais perdem poder e relevância diante dos órgãos políticos e burocráticos supranacionais. Os cidadãos ficam cada vez mais distantes de seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisões políticas e econômicas são tomadas fora do âmbito nacional. Os direitos sociais também são afetados. A exigência de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os países a reformas no sistema de seguridade social. Essa redução tem resultado sistematicamente em cortes de benefícios e na descaracterização do estado de bem-estar. A competição feroz que se estabeleceu entre as empresas também contribuiu para a exigência de redução de gastos via poupança de mão-de-obra, gerando um desemprego estrutural difícil de eliminar. Isso por sua vez, no caso da Europa, leva a pressões contra a presença de imigrantes africanos e asiáticos e contra a extensão a eles de direitos civis, políticos e sociais. O pensamento liberal renovado volta a insistir na importância do mercado como mecanismo auto-regulador da vida econômica e social e, como conseqüência, na redução do papel do Estado. Para esse pensamento, o intervencionismo estatal foi um parêntese infeliz na história iniciado em 1929, em decorrência da crise das bolsas, e terminado em 1989 após a queda do Muro de Berlim. Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos contribuíram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades culturais baseadas em gênero, etnia, opções sexuais etc. Assim como há enfraquecimento do poder do Estado, há fragmentação da identidade nacional. O Estado-nação se vê desafiado dos dois lados. Diante dessas mudanças, países como o Brasil se vêem frente a uma ironia. Tendo corrido atrás de uma noção e uma prática de cidadania geradas no Ocidente, e tendo conseguido alguns êxitos em sua busca, vêem-se diante de um cenário internacional que desafia essa noção e essa prática. Gera-se um sentimento de perplexidade e frustração. A pergunta a se fazer, então, é como enfrentar o novo desafio.
As mudanças ainda não atingiram o país com a força verificada na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Não seria sensato reduzir o tradicional papel do Estado da maneira radical proposta pelo liberalismo redivivo. Primeiro, por causa da longa tradição de estatismo, difícil de reverter de um dia para outro. Depois, pelo fato de que há ainda entre nós muito espaço para o aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais de representação. Mas alguns aspectos das mudanças seriam benefícios. O principal é a ênfase na organização da sociedade. A inversão da seqüência dos direitos reforçou entre nós a supremacia do Estado. Se há algo importante a fazer em termos de consolidação democrática, é reforçar a organização da sociedade para dar embasamento social ao político, isto é, para democratizar o poder. A organização da sociedade não precisa e não deve ser feita contra o Estado em si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado. Experiências recentes sugerem otimismo ao apontarem na direção da colaboração entre a sociedade e Estado que não fogem totalmente à tradição, mas a reorientam na direção sugerida. A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do surgimento das organizações não-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse público. Essas organizações se multiplicaram a partir dos anos finais da ditadura, substituindo aos poucos os movimentos sociais urbanos. De início muito hostis ao governo e dependentes de apoio financeiro externo, dele se aproximaram após a queda da ditadura e expandiram as fontes internas de recursos. Da colaboração entre elas e os governos municipais, estaduais e federal, têm resultado experiências inovadoras no encaminhamento e na solução de problemas sociais, sobretudo nas áreas de educação e direitos civis. Essa aproximação não contém o vício da “estadania” e as limitações do corporativismo porque democratiza o Estado. A outra mudança tem origem do lado do governo, sobretudo dos executivos municipais dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores. Muitas prefeituras experimentam formas alternativas de envolvimento da população na formulação e execução de políticas públicas, sobretudo no que tange ao orçamento e às obras públicas. A parceria aqui se dá com associações de moradores e com organizações não-governamentais. Essa aproximação não tem os vícios da paternalismo e do clientelismo porque mobiliza o cidadão. E o faz no nível local, onde a participação sempre foi mais frágil, apesar de ser aí que ela é mais relevante para a vida da maioria das pessoas. Mas há também sintomas perturbadores oriundos das mudanças trazidas pelo renascimento liberal. Não me refiro à defesa da redução do papel do Estado, mas ao desenvolvimento da cultura do consumo entre a população, inclusive a mais excluída. Exemplo do fenômeno foi a invasão pacífica de um shopping center de classe média no Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto. A invasão teve o mérito de denunciar de maneira dramática os dois brasis, o dos ricos e o dos pobres. Os ricos se misturavam com os turistas estrangeiros mas estavam a léguas de distancia de seus patrícios pobres. Mas ela também revelou a perversidade do consumismo. Os sem-teto reivindicavam o direito de consumir. Não queriam ser cidadãos mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que reivindicavam era a do direito ao consumo, era a cidadania pregada pelos novos liberais. Se o direito de comprar um telefone celular, um
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
Experiências recentes sugerem otimismo ao apontarem na direção da colaboração entre a sociedade e Estado que não fogem totalmente à tradição, mas a reorientam na direção sugerida. A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do surgimento das organizações não-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse público.
Cadernos de Formação
35
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
tênis, um relógio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os excluídos a militância política, o tradicional direito político, as perspectivas de avanço democrático se vêem diminuídas. As duas experiências favorecem, a cultura do consumo dificulta o desatamento do nó que torna tão lenta a marcha da cidadania entre nós, qual seja, a incapacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos brasileiros em castas separadas pela educação, pela renda, pela cor. José Bonifácio afirmou, em representação enviada à Assembléia Constituinte de 1823, que a escravidão era um câncer que corroia a nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática. A escravidão foi abolida 65 anos após a advertência de José Bonifácio. A precária democracia de hoje não sobreviveria a espera tão longa para extirpar o câncer da desigualdade.
SUGESTÕES DE LEITURA 2
2
Fonte: CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil, o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 231-236. 36
Cadernos de Formação
A análise feita neste livro cobre um vasto período. A literatura pertinente é enorme. As sugestões que se seguem têm apenas a finalidade de facilitar o trabalho dos que quiserem aprofundar o tema. O livro de T.H. Marshall aqui utilizado é Cidadania, classe social e status (Rio de Janeiro, Zahar, 1967). Existem duas histórias gerais do Brasil de boa qualidade. A primeira é a História geral da civilização brasileira , organizada por Sérgio Buarque de Holanda (Colônia e Império) e Bóris Fausto ( Republica). Foi publicada em São Paulo pela Difel em 11 volumes, entre 1960 e 1984. A segunda, mais recente, é parte da Cambridge History of Latin America , organizada por Leslie Bethell e publicada pela Cambridge University Press. Dois volumes já saíram em português pela Edusp. Recentes também, e mais acessíveis, são a História do Brasil de Bóris Fausto (São Paulo, Edusp, 1996), Trajetória política do Brasil , de Francisco Iglesias (Companhia das Letras, 1993), e História geral do Brasil , organizada por Maria Yedda Linhares (Rio de Janeiro, Campus, 9ª ed., 2000). Para o período contemporâneo, há um bom resumo dos acontecimentos em dois livros de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo (Rio de Janeiro, Saga, 1969) e Brasil: de Castelo a Tancredo (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988). Textos mais analíticos podem ser encontrados em Hélio Jaguaribe et alli, Brasil, sociedade democrática (Rio de Janeiro, José Olympio, 1985), e Bolívar Lamounier, org., De Geisel a Collor: o balanço da transição ( São Paulo, Sumaré, 1990). Há alguns ensaios clássicos de interpretação do Brasil de grande relevância para o tema da cidadania, embora não o tratem diretamente nem exclusivamente e adotem perspectivas muito variadas. Cito, por ordem cronológica: Alberto Torres, O problema nacional brasileiro (Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914), Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala (Rio de Janeiro, José Olympio, 1933), Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (Rio de Janeiro, José Olympio, 1936), Nestor Duarte, A ordem privada e a organização política nacional (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939), Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil (Rio
de Janeiro, Forense, 1949), Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras (Rio de Janeiro, José Olympio, 1955), Clodomir Vianna Moog, Bandeirante e pioneiros. Paralelo entre duas culturas (Rio de Janeiro, José Olympio, 1955), Raymundo Faoro, Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro (Porto Alegre, Globo, 1958), Simon Schwartzman, São Paulo e o Estado nacional (São Paulo, Difel, 1975), Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (Rio de Janeiro, Zahar, 1975), Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro (Rio de Janeiro, Zahar, 1979), Richard M.Morse, O espelho de Próspero (São Paulo, Companhia das Letras, 1988). Uma bem-humorada e heterodoxa cronologia política do Brasil, que vai de 1900 a 1980, foi organizada por Darcy Ribeiro e se intitula Aos trancos e barrancos. Como o Brasil deu no que deu (Rio de Janeiro, Guanabara Dois, 1985).
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
Há ainda rica literatura que aborda diretamente o tema da cidadania em seus vários aspectos. O impacto da escravidão sobre a cultura política é discutido de maneira arguta por Joaquim Nabuco em O abolicionismo, publicado pela primeira vez em Londres, em 1883, e republicado varias vezes. A situação do negro na sociedade atual é discutida por Florestan Fernandes em A integração do negro na sociedade de classes (São Paulo, Dominus Editora, 1965) e por Kátia de Queirós Mattoso em Ser escravo no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1988). As desigualdades que afetam a posição de negros e pardos no Brasil de hoje são documentadas por Carlos A. Hasenbalg em Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (Rio de Janeiro, Graal, 1979). As limitações impostas à cidadania pela grande propriedade agrária são objetos de quase todos os ensaios citados acima. Os movimentos messiânicos tiveram em Euclides da Cunha um clássico analista em Os sertões , publicado em 1902. Para estudo mais acadêmico, pode-se consultar Maria Isaura Pereira de Queiroz, O messianismo no Brasil e no mundo (São Paulo, Dominus, 1965). As tendências do movimento operário na Primeira República são discutidas por Bóris Fausto em Trabalho urbano e conflito social (São Paulo, Difel, 1977), as relações entre o liberalismo e a política trabalhista de Vargas são o tema de Luiz Werneck Vianna em Liberalismo e sindicato no Brasil (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976), os esforços do Estado Novo de cooptar o operariado urbano são analisados por Ângela Maria de Castro Gomes em A invenção do trabalhismo (Rio de Janeiro/São Paulo: IUPERJ/Vértice, 1988). A estrutura sindical pós-30 foi estudada por José Albertino Rodrigues, Sindicato e desenvolvimento no Brasil (São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966), e por Leôncio Martins Rodrigues, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil (São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966). A discussão mais bem documentada da participação eleitoral no Império foi feita por Richard Graham em Clientelismo e política no Brasil do Século XIX (Rio de Janeiro, Ed. Da UFRJ, 1997). A cidadania na Primeira República foi discutida por José Murilo de Carvalho em Os bestializados . O Rio de Janeiro e a República que não foi (São Paulo, Companhia das Letras, 1987). O problema dos partidos políticos após 1930 tem uma boa análise em Maria do Carmo C. Campello de Souza, Estado e partidos políticos no Brasil (19301964) (São Paulo, Alfa-Omega, 1976). Rico em informações estatísticas, incluindo dados inéditos de pesquisa de opinião pública anterior a 1964, é o livro de Antônio Lavareda, A democracia nas urnas. Processo partidário eleitoral Cadernos de Formação
37
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
38
Cadernos de Formação
brasileiro (Rio de Janeiro, IUPERJ/Rio Fundo Editora, 1991). Os movimentos associativos da década de 70 e suas relações com a democracia são estudados por Renato Raul Boschi em A arte da associação. Política de base e democracia no Brasil (Rio de Janeiro/São Paulo IUPERJ/Vértice, 1987). As possibilidades da democracia direta após o fim do, regime militar são exploradas por Maria Victória de Mesquita Benevides em A cidadania ativa. Referendo, plebiscito e iniciativa popular (São Paulo, Ática, 1991). Os direitos sociais e sua relação com a cidadania foram abordados por Wanderley Guilherme dos Santos em Cidadania e justiça. A política social na ordem brasileira (Rio de Janeiro, Campus, 1979) e em Alexandrina Moura, org., O Estado e as políticas públicas na transição democrática (São Paulo, Vértice/ Massangana,1989). Ver também Vera da Silva Telles, Direitos sociais: afinal, do que se trata? (Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1999). Sobre legislação social e trabalhista, veja-se Délio Maranhão, Direito do trabalho (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 3ª ed., 1974). Para uma discussão das relações entre a reforma do Judiciário e a democracia, ver José Eduardo Faria, Direito e justiça. A função social do Judiciário (São Paulo, Ática, 1989). Os direitos civis e a violência são discutidos em Dulce Pandolfi et alii, Cidadania, justiça e violência (Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999). Análise da repressão durante a ditadura militar foi feita por Marcos Figueiredo em L.Klein e M. Figueiredo, Legitimidade e coação no Brasil pós-64 (Rio de Janeiro, Forense, 1978). A melhor fonte para informações estatísticas são as publicações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Foram de especial utilidade as seguintes: Anuário estatístico do Brasil , 1998 (Rio de Janeiro, 1999); Estatísticas históricas do Brasil. Séries econômicas, demográficas e sociais, de 1550 a 1988 (Rio de Janeiro, 2ª ed., 1990); Participação político social , 1988 (Rio de Janeiro,1990); Sindicatos. Indicadores sociais. Vols. 1 e 2 (Rio de Janeiro, 1987 e 1988); e a série Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD , cuja última versão é de 1998 (Rio de Janeiro, 1999). Séries estatísticas econômicas e demográficas, acompanhadas de análises precisas, encontram-se em Anníbal Villanova Villela e Wilson Suzigan, orgs., Política do governo e crescimento da economia brasileira,1889-1945 (Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 2ª ed., 1975). Muito útil para indicadores políticos e para dados sobre a repressão política é Que Brasil é este? Manual de indicadores políticos e sociais , organizado por Violeta Maria Monteiro e Ana Maria Lustosa Caillaux, sob a coordenação de Wanderley Guilherme dos Santos (Rio de Janeiro/São Paulo, IUPERJ/Vértice, 1990). Os dados eleitorais para os anos recentes foram sistematizados por Jairo Marconi Nicolau, org., Dados eleitorais do Brasil (1982-1996) (Rio de Janeiro, Revan/IUPERJ, 1998).
ATIVIDADES Após a leitura dos textos de José Murilo de Carvalho, constituam grupos de três pessoas para desenvolver as atividades abaixo. 1) Façam um balanço dos principais direitos civis, políticos e sociais constantes da Constituição de 1988. Consultar a Carta Magna. 2) Discutam e comentem a seguinte afirmação de Sérgio Buarque de Holanda (1988, p.119), extraída de Raízes do Brasil : “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos.”
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA (CONCLUSÃO)
3) Discutam, comentem e registrem a reflexão coletiva sobre três questões relacionadas com a seguinte afirmação: no Brasil, os governos ditatoriais (Getúlio Vargas e os militares) reforçaram os direitos sociais, mas sufocaram os civis e políticos. a) Mostre como essa afirmação pode explicar diferenças entre Brasil e Inglaterra, no que tange à construção dos direitos? b) Ainda, de que modo a afirmação contribui para entender a vitória do regime presidencialista sobre o parlamentarista no plebiscito de 1993? c) Por fim, como aquela afirmação esclarece a falta de força política dos nossos parlamentares (vereadores, deputados e senadores)? 4) Discutam a atualidade da citação abaixo no contexto brasileiro e em seu município, elaborando um pequeno relatório escrito do resultado dos debates. Direitos civis só na lei “A herança colonial pesou mais na área dos direitos civis. O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escravo, herdou a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado. Esses três empecilhos ao exercício da cidadania civil revelaram-se persistentes. A escravidão só foi abolida em 1888, a grande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas do país e a desprivatização do poder público é tema da agenda atual de reformas.” (CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil, o longo caminho. 3 ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 45).
Cadernos de Formação
39
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
40
Cadernos de Formação
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Amartya Sen 2
Na orla do golfo de Bengala, no extremo sul de Bangladesh e Bengala ocidental, na Índia, situa-se o Sunderban – que significa “bela floresta”. É ali hábitat natural do célebre tigre real de Bengala, um animal magnífico dotado de graça, velocidade, força e uma certa ferocidade. Restam relativamente poucos deles atualmente, mas os tigres sobreviventes estão protegidos por uma lei que proíbe caçá-los. A floresta de Sunderban também é famosa pelo mel ali produzido em grandes aglomerados naturais de colméias. Os habitantes dessa região desesperadamente pobres, penetram na floresta para coletar o mel, que nos mercados urbanos alcança ótimos preços – chegando talvez ao equivalente em rúpias a cinqüenta dólares por frasco. Porém, os coletores de mel também precisam escapar dos tigres. Em anos bons, uns cinqüenta e tantos coletores de mel são mortos por tigres, mas o número pode ser muito maior quando a situação não é tão boa. Enquanto os tigres são protegidos, nada protege os miseráveis seres humanos que tentam ganhar a vida trabalhando naquela floresta densa, linda – e muito perigosa. Essa é apenas uma ilustração da força das necessidades econômicas em muitos países do Terceiro Mundo. Não é difícil perceber que essa força fatalmente pesa mais do que outras pretensões, como a liberdade política e os direitos civis. Se a pobreza impele os seres humanos a correr riscos tão terríveis – e talvez a mortes tão terríveis – por um ou dois dólares de mel, poderia ser estranho enfocar apenas sua liberdade formal e liberdades políticas. O habeascorpus pode não aparecer um conceito comunicável nesse contexto. Sem dúvida deve-se dar prioridade, argumenta-se, à satisfação de necessidades econômicas, mesmo se isso implicar um comprometimento das liberdades políticas. Não é difícil pensar que concentrar-se na democracia e na liberdade política é um luxo que um país pobre “não se pode dar”.
NECESSIDADES ECONÔMICAS E LIBERDADES POLÍTICAS Concepções como essas são apresentadas com muita freqüência em debates internacionais. Por que se preocupar com a sutileza das liberdades políticas diante da esmagadora brutalidade das necessidades econômicas intensas? Essa questão, bem como outras afins que refletem dúvidas quanto à urgência da liberdade política e direitos civis, tomou vulto na conferência de Viena sobre direitos humanos, realizada em meados de 1993, e delegados de vários países argumentaram contra a aprovação geral de direitos políticos e civis básicos em todo o planeta, particularmente no Terceiro Mundo. Em vez disso, afirmou-se, o enfoque teria de ser sobre “direitos econômicos” relacionados a importantes necessidades materiais. Essa é uma linha de análise bem estabelecida, e foi veementemente defendida em Viena pelas delegações oficiais de diversos países em desenvolvimento, encabeçados por China, Cingapura e outros países do Leste Asiático,
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
PÁGINAS 41 A 51
Fonte: SEN, A. Desenvolvimento como liberdade . São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 173187.
1
2
Amartya Kumar SEN é economista e filósofo indiano. Sua obra é considerada uma das mais originais na atualidade. É o resultado de uma carreira de estudos e pesquisas desenvolvidas em universidades, na Inglaterra e nos Estados Unidos, com influências que combinam pensamento moral e econômico em cuja reflexão sobressai o problema das desigualdades manifestas em situações de pobreza. Sen procura proporcionar a seus leitores uma avaliação ética que leve em conta a teoria e os fatos econômicos. Em 1998, ele foi agraciado com o Prêmio Nobel de Economia, tendo publicado, desde 1961, mais de 50 títulos entre livros e artigos em periódicos especializados. Alguns trabalhos são exclusivamente de sua autoria, outros em colaboração com significativo número de interlocutores, dentre os quais pode-se destacar James E. FOSTER. Seu texto mais lido e divulgado em vários idiomas tem por título: La desigualdade econômica e apareceu originalmente em 1973, tendo sido recentemente publicado, 2001, em espanhol, pela Fondo de Cultura Económica no México.
Cadernos de Formação
41
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
... o que deve vir primeiro eliminar a pobreza e a miséria ou garantir liberdade política e direitos civis ... As verdadeiras questões que têm de ser abordadas residem em outra parte, e envolvem observar amplas inter-relações entre as liberdades políticas e a compreensão e satisfação de necessidades econômicas.
3
A primeira parte deste capítulo fundamenta-se acentuadamente em meu artigo “Freedoms and needs”, The New Republic , 10 e 17 de janeiro de 1994. 42
Cadernos de Formação
mas não objetada pela Índia ou outros países da Ásia meridional e ocidental, nem pelos governos africanos. Existe nessa linha da análise a retórica freqüentemente repetida: o que deve vir primeiro – eliminar a pobreza e a miséria ou garantir liberdade política e direitos civis, os quais, afinal de contas, têm pouca serventia para os pobres?
A PREEMINÊNCIA DAS LIBERDADES POLÍTICAS E DA DEMOCRACIA Será esse um modo sensato de abordar os problemas das necessidades econômicas e liberdades políticas – em função de uma dicotomia básica que parece solapar a relevância das liberdades políticas porque as necessidades econômicas são demasiado prementes? 3 Afirmo que não, que esse é um modo totalmente errado de ver a força das necessidades econômicas ou de compreender a relevância das liberdades políticas. As verdadeiras questões que têm de ser abordadas residem em outra parte, e envolvem observar amplas inter-relações entre as liberdades políticas e a compreensão e satisfação de necessidades econômicas. As relações não são apenas instrumentais (as liberdades políticas podem ter papel fundamental de fornecer incentivos e informações na solução de necessidades econômicas acentuadas), mas também construtivas. Nossa conceituação de necessidades econômicas depende crucialmente de discussões e debates públicos abertos, cuja garantia requer que se faça questão da liberdade política e de direitos civis básicos. Tentaremos demonstrar que a intensidade das necessidades econômicas aumenta – e não diminui – a urgência das liberdades políticas. Três diferentes considerações conduzem-nos na direção de uma preeminência geral dos direitos políticos e civis básicos: 1) sua importância direta para a vida humana associada a capacidades básicas (como a capacidade de participação política e social); 2) seu papel instrumental de aumentar o grau em que as pessoas são ouvidas quando expressam e defendem suas reivindicações de atenção política (como as reivindicações de necessidades econômicas); 3) seu papel construtivo na conceituação de “necessidades” (como a compreensão das “necessidades econômicas” em um contexto social). Essas diferentes considerações serão discutidas em breve, mas primeiro precisamos examinar os argumentos apresentados por aqueles que vêem um conflito real entre, de um lado, a liberdade política e os direitos democráticos e, de outro, a satisfação de necessidades econômicas básicas.
ARGUMENTOS CONTRA AS LIBERDADES POLÍTICAS E OS DIREITOS CIVIS A oposição às democracias e liberdades civis e políticas básicas em países desenvolvidos parte de três direções distintas. Primeiro, afirma-se que essas liberdades e direitos tolhem o crescimento e o desenvolvimento econômico.
Essa crença, denominada tese de Lee (o nome do ex-primeiro-ministro de Cingapura Lee Kuan Yew, que a formulou sucintamente), foi descrita brevemente no capítulo 14 .
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Segundo, procurou-se demonstrar que, se aos pobres for dado escolher entre ter liberdades políticas e satisfazer necessidades econômicas, eles invariavelmente escolherão a segunda alternativa. Assim, por esse raciocínio, existe uma contradição entre a prática da democracia e sua justificação: a opinião da maioria tenderia a rejeitar a democracia – dada essa escolha. Em uma variante diferente desse argumento, mas estreitamente relacionada, afirma-se que a questão, de fato, não é tanto o que as pessoas realmente escolhem, mas o que elas têm razão para escolher. Como as pessoas têm razão para querer eliminar, antes de mais nada, a privação econômica e a miséria, têm razão suficiente para não fazer questão das liberdades políticas, que estorvariam suas prioridades reais. A presumida existência da um profundo conflito entre liberdades políticas e a satisfação das necessidades econômicas constitui uma premissa importante desse silogismo e, nesse sentido, essa variante do segundo argumento é dependente do primeiro (ou seja, da veracidade da tese da Lee). Terceiro, tem-se afirmado muitas vezes que a ênfase sobre liberdade política, liberdades formais e democracia é uma prioridade especificamente “ocidental” que contraria particularmente os “valores asiáticos”, os quais supostamente são mais voltados para a ordem e a disciplina do que para as liberdades formais e liberdades substantivas. Argumenta-se, por exemplo, que a censura à imprensa pode ser mais aceitável em uma sociedade asiática (devido à sua ênfase sobre disciplina e ordem) do que no Ocidente. Na conferência de Viena de 1993, o ministro das Relações Exteriores de Cingapura alertou que “o reconhecimento universal do ideal dos direitos humanos pode ser prejudicial se o universalismo for usado para negar ou mascarar a realidade da diversidade ”. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China chegou a registrar formalmente a seguinte proposição, aparentemente aplicável à China e a outras partes da Ásia: “Os indivíduos têm de pôr os direitos do Estado antes dos seus próprios direitos”.5
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
4
A “tese de Lee” consiste na defesa de sistemas políticos mais autoritários – com negação de direitos civis e políticos básicos – alegando a vantagem desses sistemas na promoção do desenvolvimento econômico.
5
Citado in John F.Cooper, “Peking`s post-Tiananmen foreing policy: the human rights factor”, Issues and Studies, 30, outubro, 1994, p.69; ver também Joanne Bauer e Daniel A. Bell (eds.), The East Asian challenge for human rights , Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
Este último argumento requer um exercício de interpretação cultural, que reservarei para uma discussão posterior, no capitulo 106. Tratarei a seguir dos outros dois argumentos.
DEMOCRACIA E CRESCIMENTO ECONÔMICO O autoritarismo realmente funciona tão bem? Decerto é verdade que alguns Estados relativamente autoritários (como Coréia do Sul, a Cingapura do ex-primeiro ministro Lee e a China pós-reforma) apresentaram ritmos de crescimento econômico mais rápidos do que muitos Estados menos autoritários (como Índia, Costa Rica e Jamaica). Mas, na verdade, a tese de Lee baseia-se em informações muito seletivas e limitadas, e não em uma análise estatística dos dados abrangentes que estão disponíveis. Não podemos realmente considerar o elevado crescimento econômico da China ou da Coréia do Sul na Ásia uma prova definitiva de que o autoritarismo é mais vantajoso
A análise aqui apresentada e as discussões decorrentes fundamentam-se em meus seguintes trabalhos:” Freedoms and needs”(1994); ”Legal rights and moral rights: old questions and new problems”, Ratio Juris , 9, junho de 1996; ”Human rights and Asian values”, Morgenthau Memorial Lecture, Nova York, Carnegie Council on Ethics and International Affairs, 1997, publicado em forma abreviada em The New Republic , 14 e 21 de julho de 1997.
6
Cadernos de Formação
43
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
Produto Nacional Bruto (PNB):
expressão monetária dos bens e serviços produzidos por fatores de produção nacional, sem descontar rendas provenientes de outros países que contribuíram para a formação da produção nacional de bens e serviços.
7
Ver entre outros estudos, Adam Przeworski et al., Sustainable democracy , Cambridge: Cambridge University Press, 1995; Robert J. Barro, Getting it right: markets and choice in a free society , Cambridge, Mass., MIT Press, 1996. Ver também Robert J. Barro e Jong-Wha Lee, “Losers and winners in economic growth”, Working Paper 4341, National Bureau of Economic Research 1993; Partha Dasgupta, An inquiry into well-being and destitution, Oxford: Clarendon Press, 1993; John Helliwell, “Empirical linkages between democracy and economic growth”, Working Paper 4066, National Bureau of Economic Research, 1994; Surjit Bhalla, “Freedom and economic growth: a vicious circle?”, apresentado no Nobel Symposium in Upsala, “Democracy`s victory and crisis”, agosto de 1994; Adam Przeworski e Fernando Limongi, “Democracy and development”, apresentado no Nobel Symposium in Upsala, já citado. Sobre essa questão, ver também meu estudo, em co-autoria com Jean Drèze, Hunger and public action. Oxford: Clarendon Press, 1989, parte 3.
8
44
Cadernos de Formação
para promover o crescimento econômico – tanto quanto não podemos tirar a conclusão oposta com base no fato de que o país com o crescimento mais rápido da África (e um dos mais rápidos do mundo), Botsuana, tem sido um oásis de democracia naquele continente conturbado. Muito depende das circunstâncias precisas. Na verdade, há poucas evidências gerais de que governo autoritário e supressão de direitos políticos e civis sejam realmente benéficos para incentivar o desenvolvimento econômico. O quadro estatístico é bem mais complexo. Estudos empíricos sistemáticos não dão sustentação efetiva à afirmação de que existe um conflito entre liberdades políticas e desempenho econômico7. O encadeamento direcional parece depender de muitas outras circunstâncias e, embora algumas investigações estatísticas apontem uma fraca relação negativa, outras mostram uma relação fortemente positiva. Tudo sopesado, a hipótese de que não existe relação entre os dois fatores em nenhuma das direções é difícil de rejeitar. Como a liberdade política e a liberdade substantiva têm importância própria, o argumento em favor das mesmas permanece não afetado. Nesse contexto, é ainda importante mencionar uma questão mais básica de metodologia de pesquisa. Não devemos apenas investigar relações estatísticas, mas também analisar e examinar atentamente os processos causais que estão envolvidos no crescimento e desenvolvimento econômico. As políticas e circunstâncias econômicas que conduziram ao êxito econômico países do Leste Asiático são hoje em dia razoavelmente bem compreendidas. Embora diferentes estudos empíricos tenham ênfases diversas, existe agora um razoável consenso quanto a uma lista geral de “políticas úteis”, incluindo abertura à concorrência, uso de mercados internacionais, alto nível de alfabetização e educação escolar, reformas agrárias bem-sucedidas e provisão pública de incentivos ao investimento, exportação e industrialização. Não existe absolutamente nada que indique que qualquer uma dessas políticas seja inconsistente com a democracia e precise realmente ser sustentada pelos elementos de autoritarismo que estavam presentes na Coréia do Sul, em Cingapura ou na China.8 Ademais, ao julgar-se o desenvolvimento econômico, não é adequado considerar apenas o crescimento do Produto Nacional Bruto ou de alguns outros indicadores de expansão econômica global. Precisamos também considerar o impacto da democracia e das liberdades políticas sobre a vida e as capacidades dos cidadãos. É particularmente importante, nesse contexto, examinar a relação entre, de um lado, direitos políticos e civis e, de outro, a prevenção de grandes desastres (como as fomes coletivas). Os direitos políticos e civis dão às pessoas a oportunidade de chamar a atenção eficazmente para necessidades gerais e exigir a ação pública apropriada. A resposta do governo ao sofrimento intenso do povo freqüentemente depende da pressão exercida sobre esse governo, e é nisso que o exercício dos direitos políticos (votar, criticar, protestar, etc.) pode realmente fazer diferença. Essa é uma parte do papel “instrumental” da democracia e das liberdades políticas. Precisarei retomar essa questão importante mais adiante neste capítulo.
OS POBRES IMPORTAM-SE COM DEMOCRACIA E DIREITOS POLÍTICOS? Tratarei agora de segunda questão. Os cidadãos dos países de Terceiro Mundo são indiferentes aos direitos políticos e democráticos? Essa afirmação, feita com grande freqüência, mais uma vez baseia-se em pouquíssimas comprovações empíricas (como ocorre com a tese de Lee). O único modo de comprová-la seria submeter o assunto a um teste democrático em eleições livres com liberdade de oposição e expressão – precisamente as coisas que os defensores do autoritarismo não permitem que aconteçam. Não está nada claro de que modo se poderia verificar a pertinência dessa proposição nos casos em que os cidadãos comuns têm pouca oportunidade política para expressar suas opiniões sobre a questão e muito menos para contestar as afirmações feitas pelos detentores do poder. A depreciação desses direitos e liberdades é sem duvida parte do sistema de valores dos líderes governamentais de muitos países do Terceiro Mundo, mas considerá-la a opinião do povo é afirmar algo que não está provado. Portanto, é interessante notar que, quando o governo indiano, sob a liderança de Indira Gandhi, tentou usar um argumento semelhante na Índia para justificar a “emergência” que ela erroneamente declarara em meados da década de 1970, convocou-se uma eleição que dividiu os eleitores precisamente nessa questão. Nessa eleição decisiva, disputada em boa medida com base na aceitabilidade da “emergência”, a supressão de direitos políticos e civis básicos foi firmemente rejeitada, e o eleitorado indiano – um dos mais pobres do mundo – mostrou-se tão ardoroso para protestar contra a negação de liberdades e direitos básicos quanto para queixar-se de pobreza econômica. No momento em que de certa forma houve um teste da proposição de que os pobres em geral não se importam com direitos civis e políticos, as evidências foram inteiramente contrárias a essa afirmação. Considerações semelhantes podem ser apresentadas observando-se a luta por liberdades democráticas na Coréia do Sul, Tailândia, Bangladesh, Paquistão, Mianmá (ou Birmânia) e outras partes da Ásia. De forma análoga, embora a liberdade política seja amplamente negada na África, tem havido movimentos e protestos contra esse fato sempre que as circunstâncias permitem, apesar de os ditadores militares terem dado poucas oportunidades para isso. E quanto à outra variante desse argumento, a de que os pobres têm razão para abrir mão dos direitos políticos e democráticos em favor de necessidades econômicas? Esse argumento, como já observado, depende da tese de Lee. Como esta tem pouca sustentação empírica, o silogismo não pode fundamentar o argumento.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
No momento em que de certa forma houve um teste da proposição de que os pobres em geral não se importam com direitos civis e políticos, as evidências foram inteiramente contrárias a essa afirmação.
IMPORTÂNCIA INSTRUMENTAL DA LIBERDADE POLÍTICA Passarei agora das críticas negativas dos direitos políticos ao valor positivo desses direitos. A importância da liberdade política como parte das capacidades básicas já foi exposta nos capítulos anteriores. Com razão valorizamos a liberdade formal e a liberdade substantiva de expressão e ação em nossa
Cadernos de Formação
45
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
... nunca uma fome coletiva se materializou em um país ...
9
Sobre essa afirmação, ver meus trabalhos “Development: which way now?”, Economic Journal , 93, dezembro de 1983, e Resources,values and development , Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1984; 1997.
Seria possível argumentar que, na época das fomes coletivas na Irlanda, na década de 1840, a Irlanda era parte do Reino Unido, e não uma colônia. Contudo, não só existia um grande abismo cultural entre a população irlandesa e os governantes britânicos, com um profundo ceticismo dos ingleses com relação aos irlandeses (que remota no mínimo ao século XVI – bem refletido no ferino poema The Faerie Queene , de Edmund Spenser), como também a divisão dos poderes políticos era extremamente desigual. Sobre o assunto em pauta, convém mencionar que a Irlanda era governada como todas as colônias governadas por dirigentes estrangeiros. Ver, sobre essa questão, Cecil Woodham-Smith, The great hunger: Ireland 1845-1849 , Londres, Hamish Hamilton, 1962. De fato, como observou Joel Mokyr, “A Irlanda era considerada pela Grã-Betanha uma nação estrangeira e até mesmo hostil” (Why Ireland starved: a quantitative and analytical history of the Irish economy , 1800-1850, Londres, Allen & Unwin, 1983, p. 291).
10
46
Cadernos de Formação
vida, não sendo irracional que seres humanos – criaturas sociais que somos – valorizem a participação irrestrita em atividades políticas e sociais. Além disso, a formação bem informada e não sistematicamente imposta de nossos valores requer comunicação e diálogo abertos, e as liberdades políticas e direitos civis podem ser centrais para esse processo. Ademais, para expressar publicamente o que valorizamos e exigir que se dê a devida atenção a isso, precisamos de liberdade de expressão e escolha democrática. Ao passarmos da importância direta da liberdade política para seu papel instrumental, temos de considerar os incentivos políticos que atuam sobre os governos e sobre as pessoas e grupos que detêm o poder. Os dirigentes têm incentivo para ouvir o que o povo deseja se tiverem de enfrentar a crítica desse povo e buscar seu apoio nas eleições. Como já mencionado, nenhuma fome coletiva substancial jamais ocorreu em nenhum país independente com uma forma democrática de governo e uma imprensa relativamente livre.9 Houve fomes coletivas em reinos antigos e sociedades autoritárias contemporâneas, em comunidades tribais primitivas e em modernas ditaduras tecnocráticas, em economias coloniais governadas por imperialistas do norte e em países recém independentes do sul, governados por líderes nacionais despóticos ou por intolerantes partidos únicos. Mas nunca uma fome coletiva se materializou em um país que fosse independente, que tivesse eleições regularmente, partidos de oposição para expressar críticas e que permitisse aos jornais noticiar livremente e questionar a sabedoria das políticas governamentais sem ampla censura 10[...].
O PAPEL CONSTRUTIVO DA LIBERDADE POLÍTICA Os papéis instrumentais das liberdades políticas e dos direitos civis podem ser muito substanciais, mas a relação entre necessidades econômicas e liberdades políticas pode ter também um aspecto construtivo. O exercício de direitos políticos básicos torna mais provável não só que haja uma resposta política a necessidades econômicas, como também que a própria conceituação – incluindo a compreensão – de “necessidades econômicas” possa requerer o exercício desses direitos. De fato, pode-se afirmar que uma compreensão adequada de quais são as necessidades econômicas – seu conteúdo e sua força – requer discussão e diálogo. Os direitos políticos e civis, especialmente os relacionados à garantia de discussão, debate, crítica e dissensão abertos, são centrais para os processos de geração de escolhas bem fundamentadas e refletidas. Esses processos são cruciais para a formação de valores e prioridades, e não podemos, em geral, tomar as preferências como dadas independentemente de discussão pública, ou seja, sem levar em conta se são ou não permitidos debates e diálogos. O alcance e a eficácia do diálogo aberto freqüentemente são subestimados quando se avaliam problemas sociais e políticos. Por exemplo, as discussões públicas têm um papel importante a desempenhar na redução das altas taxas de fecundidade que caracterizam muitos países em desenvolvimento. Há, com efeito, muitas provas de que o drástico declínio das taxas de fecundidade verificado nos Estados indianos com maiores proporções de pessoas
alfabetizadas foi muito influenciado pela discussão pública dos efeitos danosos das taxas de fecundidade altas, especialmente sobre a vida de mulheres jovens e também sobre toda a comunidade. Se, digamos, em Kerala ou Tamil Nadu, emergiu a concepção de que uma família feliz nos tempos atuais é uma família pequena, é porque houve muita discussão e debate para que essas perspectivas se formassem. Kerala tem hoje uma taxa de fecundidade de 1,7 (semelhante às da Grã Bretanha e França, e muito inferior à da China, que é de 1,9), e isso foi obtido sem coerção, mas principalmente por meio da emergência de novos valores – um processo no qual os diálogos políticos e sociais tiveram papel fundamental. O alto nível de alfabetização da população de Kerala, sobretudo das mulheres, mais elevado do que o de qualquer província da China, muito contribuiu para possibilitar esses diálogos sociais e políticos [...]. As misérias e privações podem ser de vários tipos – alguns mais passíveis de solução social do que outros. A totalidade das dificuldades humanas seria uma base bruta para identificar nossas “necessidades”. Por exemplo, há muitas coisas que poderíamos ter boas razões para valorizar se elas fossem exeqüíveis – poderíamos desejar até mesmo a imortalidade, [...]. Mas não as vemos como “necessidades”. Nossa concepção de necessidades relaciona-se às idéias que temos sobre a natureza evitável de algumas privações e à compreensão do que pode ser feito sobre isso. Na formação dessas compreensões e crenças, as discussões públicas têm um papel crucial. Os direitos políticos, incluindo a liberdade de expressão e discussão, são não apenas centrais na indução de respostas sociais a necessidades econômicas, mas também centrais para conceituação das próprias necessidades econômicas.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
A ATUAÇÃO DA DEMOCRACIA A relevância intrínseca, o papel protetor e a importância construtiva da democracia podem ser realmente muito abrangentes. Porém, ao apresentar esses argumentos sobre as vantagens da democracia, corre-se o risco de enaltecer excessivamente sua eficácia. Como já mencionado, as liberdades políticas e as liberdades formais são vantagens permissivas, cuja eficácia depende do modo como são exercidas. A democracia tem sido especialmente bem-sucedida na prevenção de calamidades que são fáceis de entender e nas quais a solidariedade pode atuar de uma forma particularmente imediata. Muitos outros problemas não são tão acessíveis assim. Por exemplo, o êxito da Índia na erradicação da fome coletiva não teve um correspondente na eliminação da subnutrição regular, na solução do persistente analfabetismo ou das desigualdades nas relações entre os sexos [...]. Enquanto é fácil dar um caráter político ao flagelo das vítimas da fome coletiva, essas outras privações requerem uma análise mais profunda e um aproveitamento mais eficaz da comunicação e da participação política – em suma, uma prática mais integral da democracia. A inadequação da prática aplica-se também a algumas falhas em democracias mais maduras. Por exemplo, as extraordinárias privações nas áreas de serviços de saúde, educação e meio social dos afro-americanos nos Estados Unidos contribuem para os índices excepcionalmente elevados de mortalidade Cadernos de Formação
47
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
dessa população [...], e isso evidentemente não é evitado pela atuação da democracia americana. É preciso ver a democracia como criadora de um conjunto de oportunidades, e o uso dessas oportunidades requer uma análise diferente, que aborde a prática da democracia e direitos políticos. Nesse aspecto, a baixa porcentagem de votantes nas eleições americanas, sobretudo de afroamericanos, bem como outros sinais de apatia e alienação não podem ser ignorados. A democracia não serve como um remédio automático para doenças do mesmo modo que o quinino atua na cura da malária. A oportunidade que ela oferece tem de ser aproveitada positivamente para que se obtenha o efeito desejado. Essa é, evidentemente, uma característica básica das liberdades em geral – muito depende do modo como elas são realmente exercidas.
A PRÁTICA DA DEMOCRACIA E O PAPEL DA OPOSIÇÃO ... o ativismo dos partidos de oposição é uma força importante tanto nas sociedades não democráticas quanto nas democráticas.
11
Fidel Valdez Ramos, “Democracy and the East Asian crisis”, dis-curso inaugural no Centre for Democratic Institutions, Australian National University, Can-berra, 26 de novembro de 1998, p. 2.
Um fator importante é o alcance da política deliberativa e do uso de argumentos morais em debates públicos. Sobre essas questões, ver Jurgen Habermas, “Three normative models of democracy”, Constellations , 1,1994; Seyla Benhabib, “Deliberative rationality and models of democratic legitimacy”, Constellatinos , 1, 1994; James Bohman e Wiliam Rehg (eds.), Deliberative democracy , Cambridge, Mass.: MIT Press, 1997. Ver também James Fishkin, Democracy and deliberation, New Haven, CT, Yale University Press, 1971; Ralf Dahrendorf, The modern social contract , Nova York, Weidenfeld, 1988; Alan Hamlin e Phillip Pettit (eds), The good polity , Oxford, Blackwell, 1989; Cass Sunstein, The partial constitution, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993; Amy Gutman e Dennis Thompson, Democracy and disagreement , Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996.
As realizações da democracia dependem não só das regras e procedimentos que são adotados e salvaguardados, como também do modo como as oportunidades são usadas pelos cidadãos. Fidel Valdez Ramos, o ex-presidente das Filipinas, explicou essa questão com grande clareza em um discurso que proferiu em novembro de 1998 na Australian National University: Sob um regime ditatorial, as pessoas não precisam pensar – não precisam escolher – não precisam tomar decisões ou dar seu consentimento. Tudo o que precisam fazer é obedecer. Essa foi uma lição amarga aprendida com a experiência política filipina não muito tempo atrás. Em contraste, a democracia não pode sobreviver sem virtude cívica [...] O desafio político para os povos de todo o mundo atualmente não é apenas substituir regimes autoritários por democráticos. É, além disso, fazer a democracia funcionar para as pessoas comuns 11.
12
48
Cadernos de Formação
A democracia realmente cria essa oportunidade, que está relacionada tanto à sua “importância instrumental” como a seu “papel construtivo”. Mas a força com que as oportunidades são aproveitadas depende de vários fatores, como o vigor da política multipartidária e o dinamismo dos argumentos morais e da formação de valores12 . Na Índia, por exemplo, prevenir as fomes coletivas e a fome crônica já era prioridade total na época da independência (como fora também na Irlanda, com sua própria fome coletiva sob o domínio britânico). O ativismo dos participantes políticos foi muito eficaz na prevenção das fomes coletivas e na condenação drástica dos governos por permitir que ocorressem flagrantes fomes crônicas, e a rapidez e a força desse processo fizeram da prevenção dessas calamidades uma prioridade inescapável de cada governo. Ainda assim, sucessivos partidos de oposição têm se mostrado muito dóceis, não condenando o analfabetismo difuso ou a prevalência de uma subnutrição não extrema, mas grave (especialmente entre as crianças), ou ainda a não implementação de programas de reforma agrária anteriormente aprovados por lei. Essa docilidade da oposição tem permitido a sucessivos governos negligenciar inescrupulosamente essas questões vitais de política pública e ficar impunes. Na verdade, o ativismo dos partidos de oposição é uma força importante tanto nas sociedades não democráticas quanto nas democráticas. Por exemplo,
pode-se mostrar que, a despeito da ausência de garantias democráticas, o vigor e a persistência da oposição na Coréia do Sul pré-democrática e até mesmo no Chile de Pinochet (com imensas dificuldades) foram indiretamente eficazes na condução desses países mesmo antes da restauração da democracia. Muitos dos programas sociais que os beneficiaram se destinaram pelo menos em parte a reduzir a atratividade da oposição, que, desse modo, logrou ser eficaz mesmo antes de chegar ao poder13. Outra área que também requer uma participação vigorosa, envolvendo críticas e indicações sobre as reformas, é a da persistência da desigualdade entre os sexos. Quando esses problemas negligenciados se tornam objeto de debate e confrontos públicos, as autoridades têm de dar alguma resposta. E m uma democracia, o povo tende a conseguir o que exige e, de um modo mais crucial, normalmente não consegue o que não exige. Duas das áreas negligenciadas de oportunidade social na Índia – a igualdade entre os sexos e a educação elementar – agora estão recebendo mais atenção dos partidos de oposição e, conseqüentemente, das autoridades legislativas e executivas. Embora os resultados finais venham a emergir apenas no futuro, não podemos deixar de notar as várias iniciativas que já estão ocorrendo (como a proposta de lei requerendo que pelo menos um terço dos membros do parlamento indiano seja composto de mulheres e um programa de educação escolar para estender o direito à educação elementar a um grupo substancialmente maior de crianças). De fato, pode-se mostrar que a contribuição da democracia na Índia não se limitou, de modo algum, à prevenção de desastres econômicos como as fomes coletivas. Apesar dos limites de sua prática, a democracia deu à Índia uma certa estabilidade e segurança sobre as quais numerosas pessoas se mostravam muito pessimistas quando o país se tornou independente em 1947. A Índia possuía então um governo não experimentado, passara por uma divisão ainda não assimilada e apresentava alinhamentos políticos confusos, combinados com a violência grupal e a desordem social bem disseminadas. Era difícil ter fé no futuro de uma Índia unida e democrática. Entretanto, meio século depois, encontramos uma democracia que, considerando todos os altos e baixos, tem funcionado razoavelmente bem. As diferenças políticas em grande medida têm sido disputadas dentro dos procedimentos constitucionais. Governos ascenderam e caíram segundo regras eleitorais e parlamentares. A Índia, uma combinação desajeitada, inauspiciosa e deselegante de diferenças, sobrevive e funciona notavelmente bem como uma unidade política com um sistema democrático – efetivamente mantido coeso por sua democracia operante. A Índia também sobreviveu ao tremendo desafio de possuir diversas línguas importantes e um espectro de religiões – uma heterogeneidade extraordinária de crenças e culturas. Obviamente, diferenças religiosas e grupais são vulneráveis à exploração por políticos sectários, e foram realmente usadas dessa maneira em várias ocasiões (inclusive em anos recentes), causando grande consternação no país. Mas o fato de essa violência sectária ter sido recebida com tal consternação e de todos os setores substanciais da nação terem condenado tais atos fornece, em última análise, a principal garantia democrática contra a exploração estritamente faccionária do sectarismo. Isso é essencial para a sobrevivência e a prosperidade de um país tão marcantemente variado
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
Isso é discutido em Drèze e Sem, Hunger and public action (1989), pp.193-7 e 229-39.
13
Cadernos de Formação
49
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
... embora devamos reconhecer a importância das instituições democráticas, elas não podem ser vistas como dispositivos mecânicos para o desenvolvimento. Seu uso é condicionado por nossos valores e prioridades e pelo uso que fazemos das oportunidades de articulação e participação disponíveis. O papel de grupos oposicionistas organizados é particularmente importante nesse contexto.
14
Também vale a pena observar que os desafios ambientais, quando compreendidos adequadamente, suscitam algumas das questões centrais de escolha social e política deliberativa; ver meu artigo “Environmental evaluation and social choice: contigent valuation and the market analogy”, Japanese Economic Review , 46, 1995. 50
Cadernos de Formação
como a Índia, que pode ter uma maioria hindu, mas também é o terceiro maior país muçulmano do mundo, no qual vivem milhões de cristãos juntamente com a maioria dos siques, parses e jainistas do globo.
OBSERVAÇÃO FINAL Desenvolver e fortalecer um sistema democrático é um componente essencial do processo de desenvolvimento. A importância da democracia reside, como procuramos mostrar, em três virtudes distintas: (1) sua importância intrínseca , (2) suas contribuições instrumentais e (3) seu papel construtivo na criação de valores e normas. Nenhuma avaliação da forma de governo democrática pode ser completa sem considerar cada uma dessas virtudes. Apesar de suas limitações, as liberdades políticas e os direitos civis são usados eficazmente com bastante freqüência. Mesmo nas áreas em que até agora não foram muito eficazes, existe a oportunidade de fazer com que venham a sê-lo. O papel permissor dos direitos políticos e civis (permitindo – e, de fato, encorajando – discussões e debates abertos, política participativa e oposição sem perseguição) aplica-se a um domínio muito amplo, embora tenha sido mais eficaz em algumas áreas do que em outras. Sua comprovada utilidade na prevenção de desastres econômicos é, em si, importantíssima. Quando as coisas correm bem, a ausência desse papel da democracia pode não ser fortemente sentida. Mas ele fala muito alto quando a situação piora, por uma razão ou por outra (por exemplo, a recente crise financeira no Leste e Sudeste Asiático que conturbou diversas economias e deixou destituídas muitas pessoas). Os incentivos políticos fornecidos pelo governo democrático adquirem grande valor prático nesses momentos. Entretanto, embora devamos reconhecer a importância das instituições democráticas, elas não podem ser vistas como dispositivos mecânicos para o desenvolvimento. Seu uso é condicionado por nossos valores e prioridades e pelo uso que fazemos das oportunidades de articulação e participação disponíveis. O papel de grupos oposicionistas organizados é particularmente importante nesse contexto. Discussões e debates públicos, permitidos pelas liberdades políticas e os direitos civis, também podem desempenhar um papel fundamental na formação de valores. Na verdade, até mesmo a identificação de necessidades é inescapavelmente influenciada pela natureza da participação e do dialogo públicos. Não só a força da discussão pública é um dos correlatos da democracia, com um grande alcance, como também seu cultivo pode fazer com que a própria democracia funcione melhor. Por exemplo, a discussão pública mais bem fundamentada e menos marginalizada sobre questões ambientais pode ser não apenas benéfica ao meio ambiente, como também importante para a saúde e o funcionamento do próprio sistema democrático14 . Assim como é importante salientar a necessidade da democracia, também é crucial salvaguardar as condições e circunstâncias que garantem a amplitude e o alcance do processo democrático. Por mais valiosa que a democracia seja como uma fonte fundamental de oportunidade social (reconhecimento
que pode requerer uma defesa rigorosa), existe ainda a necessidade de examinar os caminhos e os meios para fazê-la funcionar bem, para realizar seus potenciais. A realização da justiça social depende não só de formas institucionais (incluindo regras e regulamentações democráticas), mas também da prática efetiva. Apresentei razões para considerar-se a questão da prática fundamentalmente importante nas contribuições que podemos esperar dos direitos civis e das liberdades políticas.Esse é um desafio enfrentado tanto por democracias bem estabelecidas como os Estados Unidos (especialmente com a participação diferenciada de diversos grupos raciais) como por democracias mais recentes. Existem problemas comuns e também problemas díspares.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
ATIVIDADES 1) Identifiquem a inversão de valores entre a proteção dos animais e a falta de proteção das pessoas. 2) Como o maior ou menor grau no uso dos direitos civis e políticos pelos cidadãos afeta o papel construtivo que a democracia desempenha na conceituação das necessidades econômicas em contextos sociais determinados? 3) Utilizem informações e considerações do texto de Amartya Sen para desenvolver as atividades propostas ao final do sétimo artigo do Caderno, de Cátia Silva.
Cadernos de Formação
51
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
A IMPORTÂNCIA DA DEMOCRACIA
52
Cadernos de Formação
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL E DIREITO E SUA INTIMIDADE COM A DEMOCRACIA 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
Aluisio Almeida Schumacher 2
Na fala cotidiana, o direito é freqüentemente apresentado como instrumento de opressão a serviço dos ricos e poderosos. Aparece também como domínio exclusivo de especialistas, advogados e juristas. Estamos habituados a não ver nenhuma relação entre direito e democracia, cuja estabilidade associamos a instituições de representação, eleições diretas regulares e sistemas partidários. Na universidade, essas duas áreas de conhecimento também se apresentam separadamente: o estudo do direito cabe à ciência jurídica, enquanto o problema da democracia está reservado à ciência política. O objetivo deste artigo é contrariar esse estado de coisas. Partir do parentesco entre moral e direito, instituições sociais que desempenham a mesma função normativa básica: realizar a coordenação entre as ações de diferentes atores sociais, viabilizando a cooperação social, apresentar o direito moderno e suas principais funções na sociedade contemporânea e explicitar a relação entre direitos humanos e soberania popular, sugerindo que um depende do outro no que concerne à prática de autodeterminação democrática dos cidadãos. O direito que nos interessa discutir aqui não é o sistema fechado reservado a especialistas, mas a instituição social aberta à moralidade que brota da sociedade. Esperamos com isso apoiar a compreensão de que, em certo sentido, também “produzimos” direito e, por isso, o grau em que ele funciona como instrumento de opressão ou de emancipação depende também de nossas práticas políticas e sociais e do uso que dele fazemos. Dessa compreensão do direito, retiraremos implicações que convergem para não separar o jurídico do político. Trabalharemos para introduzir uma visão mais rica de democracia, a deliberativa ou participativa, não limitada à questão do regime político, mas conectada ao Estado de direito, isto é, ao grau de efetividade dos direitos da cidadania na sociedade. No interior dessa concepção, o direito aparece indissoluvelmente ligado à democracia, cujo desenvolvimento depende das condições de comunicação e procedimentos de formação da opinião e da vontade democráticas, únicas fontes de legitimação das leis e políticas governamentais. A ligação proposta entre direito e democracia parte do seguinte pressuposto geral de qualquer sistema jurídico ocidental: todos os indivíduos são dotados de um grau básico de autonomia e responsabilidade. Premissa que torna: todo indivíduo uma pessoa jurídica, um portador de direitos e obrigações formalmente iguais não só no domínio político mas também nas obrigações contratuais, civis, criminais e tributárias, nas relações com órgãos estatais e em muitas outras esferas da vida social. Presume-se aqui que somos tão autônomos e responsáveis quanto as outras partes que realizam transações conosco. (O’DONNELL, 1998, p.39)
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL... PÁGINAS 51 A 69
O direito que nos interessa discutir aqui não é o sistema fechado reservado a especialistas, mas a instituição social aberta à moralidade que brota da sociedade.
Este texto foi elaborado para compor o Caderno Ética e Cidadania do projeto Pedagogia Cidadã. Agradeço a Alba Munari Schlesinger pela leitura atenta e contribuições e aos colegas Juvenal Zanchetta Jr, Maria das Graças R. Moreira Petruci, PedroTosi e Teresa Malatian pelas sugestões. 2 Professor de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Agronômicas da UNESP – Campus de Botucatu. E-mail: aluisio@fca. unesp.br 1
Cadernos de Formação
53
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
Por isso, para garantir a autonomia das pessoas jurídicas, individual e/ ou coletivamente consideradas, é que as constituições dos Estados-nação asseguram direitos humanos fundamentais. Muitos autores adotam o enfoque da autonomia para teorizar sobre a ligação entre direito e democracia 3 . Aqui, vamos nos orientar basicamente pela reconstrução do direito e da democracia proposta por Habermas (1996). Com base em modelo derivado do uso da linguagem, desenvolvido a partir de 1970, esse autor propõe, nos anos 1980, uma ética da comunicação que, nos anos 1990, incorpora um procedimento democrático e proporciona base para a justificação dos direitos. Em vez de recorrer a abordagens derivadas da idéia do contrato social entre indivíduos racionais isolados, Habermas liga a interpretação e a validação dos direitos à anuência democrática.4 Vejamos inicialmente alguns aspectos que aproximam e afastam direito e moral enquanto instituições sociais.
MORAL E DIREITO: FUNÇÃO SIMILAR E MEIOS DIFERENTES
Com o tempo, essas modalidades sociais de reprovar comportamentos poderiam converter-se em uma estrutura de regras primárias ou de obrigação. Isto é, de regras fundamentais prescrevendo ou determinando a realização ou a abstenção de certos tipos de comportamento; ou, ainda, de regras impondo determinadas obrigações.
3
4
DAHL (1989), DWORKIN (1999), HELD (1987) e muitos outros. Especificamente, sobre o tema da constituição do sujeito autônomo moderno, TAYLOR (1985 e 1989). A ética da comunicação de Habermas adota o seguinte princípio nuclear: “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos (comunicações) racionais” (HABERMAS, 1996, p.107). 54
Cadernos de Formação
Para apresentar a função normativa comum à moral e direito, pensemos numa sociedade sem nenhum tipo de autoridade pública, isto é, sem tribunais nem legisladores, onde o controle da vida social se exerceria somente pela atitude geral do grupo em relação a seus próprios modelos de comportamento. Em tal contexto, práticas contrárias às expectativas sociais poderiam ser objeto de desaprovação. Assim, determinadas expressões faciais ou modalidades de linguagem corporal, com o uso, poderiam se consagrar como maneiras de censurar comportamentos, sendo aprendidas e mantidas de geração em geração. Com o tempo, essas modalidades sociais de reprovar comportamentos poderiam converter-se em uma estrutura de regras primárias ou de obrigação. Isto é, de regras fundamentais prescrevendo ou determinando a realização ou a abstenção de certos tipos de comportamento; ou, ainda, de regras impondo determinadas obrigações. É claro que nossa ilustração só se refere a uma dimensão restrita do que se entende por moral. Nada dissemos a respeito de atitudes e sentimentos individuais em relação a outros sujeitos, nem tampouco sobre a responsabilidade do indivíduo em relação a seu próprio comportamento. Na verdade, estamos somente introduzindo as origens da moral e do direito enquanto instituições sociais construídas pelos próprios sujeitos. E, nesse sentido, nos referindo a práticas e maneiras de fazer coisas que, diferentemente de instintos, têm de ser aprendidas. Para que uma sociedade possa viver exclusivamente sob o império de tais regras primárias, explica Hart (1961, p.89-90), algumas condições precisam ser preenchidas. Em primeiro lugar, as regras devem compreender restrições à liberdade de recorrer à violência, ao roubo e à fraude, tentações que os seres humanos devem poder dominar, para coexistirem em relação de vizinhança. Em sociedades primitivas, tais regras aparecem juntamente com outras, que impõem aos indivíduos obrigações de prestar serviços ou contribuir para a vida em comum. Além disso, mesmo que a sociedade aqui concebida já possa apresentar uma tensão entre os que aceitam as regras e os que as rejeitam, a não
ser quando o receio da pressão social lhes conduza a se conformar, o segundo grupo tem de ficar restrito a uma minoria. Do contrário, organizada de modo tão pouco rígido e com seus membros possuindo mais ou menos a mesma força, a sociedade concebida em nosso exemplo não se manteria. Parte importante dessas regras primárias, lembra Haydon (1999, p.3132), tenderia a auxiliar os negócios da comunidade, protegendo seus membros contra a vulnerabilidade em face de perigos externos, bem como em relação a outros membros da mesma sociedade. Assim, se a comunidade emprega armas para caçar, é razoável supor a existência de normas para mantê-las em condições de uso. Além disso, na medida em que armas de caça podem ser potencialmente letais a membros do grupo, esses também devem ter elaborado normas sobre seu uso correto e segurança. Durante a caça, o comportamento de coordenação das ações dos membros do grupo e a cooperação resultante seriam vitais, pois sua ausência poderia implicar fome para a comunidade. A existência de tais regras faz sentido sem a necessidade de introduzir qualquer distinção entre moral e direito. Nesse contexto, as crianças também aprenderiam que determinadas práticas são admitidas, enquanto outras não. E, isso, bem antes de terem clareza acerca das conseqüências que a violação das regras traz, no mundo dos adultos, para os sujeitos sociais. Boa parte do quadro esboçado vale também para a educação em uma sociedade moderna e complexa como a que vivemos. A partir de expectativas de comportamento, as crianças aprendem, ainda hoje, práticas e maneiras de se comportar. Também aprendem que certas coisas não devem ser feitas. Passam a vivenciar e empregar expressões como ‘deve’ ‘não deve’, ‘pode’ ‘não pode’ e ‘certo’ ‘errado’, noções que reconhecem bem antes da apreensão dos termos ‘moral’ e ‘direito’ e da diferença entre o ‘moralmente incorreto’ e o ‘juridicamente incorreto”. Chegamos assim à noção de que qualquer sociedade necessita de uma estrutura básica de regras sustentadas e comunicadas de geração à geração. Estrutura essa anterior à própria distinção entre moral e direito. No entanto, só uma pequena comunidade – estreitamente ligada por vínculos de parentesco, crenças e sentimentos comuns e dotada de um meio ambiente estável, poderia viver com sucesso sob tal regime de regras que não emanam de nenhuma autoridade. Na ausência dessas condições, três tipos de dificuldades emergiriam (HART, 1961, p. 89-90): a) A incerteza . Se surgirem dúvidas quanto às regras que devem ser usadas em determinado caso ou mesmo com respeito ao alcance de alguma regra, não haveria procedimentos para dirimi-las, tais como a referência a um código (texto) obrigatório ou a uma autoridade cujas decisões têm força obrigatória. Esses dois elementos, código e pessoas dispondo de autoridade, já pressuporiam a existência de regras com características diferentes das primárias. A essa dificuldade que atinge a estrutura social elementar baseada em regras primárias, denomina-se incerteza . b) O caráter estático das regras. Em sociedades simples como a do nosso exemplo, mudanças nas regras só ocorreriam muito lentamente:
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
Chegamos assim à noção de que qualquer sociedade necessita de uma estrutura básica de regras sustentadas e comunicadas de geração à geração. Estrutura essa anterior à própria distinção entre moral e direito.
Cadernos de Formação
55
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
Enquanto as regras primárias impõem obrigações, as secundárias conferem poderes públicos ou privados e determinam a maneira pela qual as primeiras podem ser identificadas, promulgadas, derrogadas ou modificadas, além de estabelecerem definitivamente o fato de sua violação.
5
Pessoa que produz ou desencadeia determinada ação. 56
Cadernos de Formação
através de um processo de desenvolvimento no qual linhas de conduta, inicialmente facultativas, tornam-se habituais e depois obrigatórias. Por meio de processo inverso, de caducidade ou desuso, os desvios, antes severamente punidos, passam a ser tolerados e na seqüência não mais percebidos. Em tal contexto social não seria possível adaptar deliberadamente as regras às circunstâncias, eliminando regras antigas e/ou introduzindo regras novas. Isso pressuporia, novamente, regras diferentes das primárias. c) A ineficácia da pressão social difusa. Quando não há pessoas especialmente habilitadas para constatar, de modo irrevogável e obrigatório, o fato da violação das regras, as controvérsias relativas à questão de saber se determinada regra foi ou não transgredida aparecerão constantemente. Por isso fala-se que, na falta de tais agentes5 habilitados, a manutenção das regras só se dá por uma pressão social difusa, exercida pelos próprios interessados. Para sanar essas três dificuldades, inerentes àquela forma elementar de estrutura social, as regras primárias, que obrigam a realização ou abstenção de certos comportamentos, têm de ser apoiadas por regras secundárias. Regras prescrevendo que homens e mulheres possam, ao realizar certos atos ou pronunciar determinadas palavras, introduzir novas regras, abolir ou modificar antigas; determinar a incidência de regras ou controlar sua implementação e operação. Enquanto as regras primárias impõem obrigações, as secundárias conferem poderes públicos ou privados e determinam a maneira pela qual as primeiras podem ser identificadas, promulgadas, derrogadas ou modificadas, além de estabelecerem definitivamente o fato de sua violação. A introdução de maneiras de lidar com essas dificuldades pode ser considerada como um caminho que vai de um mundo pré-jurídico a um mundo jurídico. O direito vem complementar a fraqueza da moral nos três aspectos acima tratados, mas a moral continua a exercer pressão sobre o direito, suas normas e decisões, através de impulsos normativos que provêm da sociedade. Para combater a primeira dificuldade, a incerteza , Hart (1961, p.92-3) esclarece que o remédio é proporcionar uma regra de reconhecimento . Do ponto de vista histórico, a redação de regras até então não-escritas é uma das etapas que separa um sistema pré-jurídico de um sistema jurídico. O aspecto decisivo está no reconhecimento da referência ao escrito enquanto fonte de autoridade , isto é, como constituindo a maneira correta de resolver dúvidas relativas à existência da regra. Quando a força do escrito intervém, aparece uma forma elementar de regra (secundária) de reconhecimento permitindo identificar decisivamente as regras primárias. Num sistema jurídico desenvolvido, as regras de reconhecimento são mais complexas. Em vez de identificarem as regras referindo-se exclusivamente a um texto ou código, também o fazem por referência a características gerais das regras primárias: seja o fato de sua promulgação por órgão específico, tal como (ato do) poder legislativo; seja que tenham determinada relação com decisões judiciárias, tais como sentenças precedentes a respeito de conflitos particulares. No primeiro caso, parafraseando o exemplo de Dworkin (1999,
p.42-3), é possível dizer que a proposição de que o limite máximo de velocidade nas auto-estradas do estado de São Paulo é 120 quilômetros por hora é verdadeira (melhor seria dizer correta) porque os legisladores que promulgaram a lei estavam no poder e porque o povo paulista aceitou, e continua aceitando, o sistema de autoridade usado nas Constituições estaduais e nacionais. Com relação à modalidade de identificação de regras que recorre a sentenças precedentes, pode-se ilustrá-la com a proposição de que o Estado deve indenizar os presos políticos discriminados e torturados durante a ditadura no Brasil como correta, porque a regra de reconhecimento aceita pelo povo brasileiro transforma as declarações dos juizes em direito. O caráter estático do regime de regras primárias é vencido com regras de mudança . A forma mais elementar desse tipo de regra é a que habilita o indivíduo ou corpo de pessoas a introduzirem novas regras primárias para a regulação da vida do grupo ou de uma categoria de seus membros, eliminando assim as regras antigas. Tais regras possibilitam atividades como testamentos, contratos e transferências de propriedade, além de numerosas estruturas de direitos e obrigações criadas voluntariamente e típicas da vida jurídica. Essas regras que habilitam o indivíduo explicitam em linguagem jurídica a instituição moral que denominamos promessa. O terceiro complemento introduzido no regime elementar das regras primárias, com a finalidade de remediar a ineficácia da pressão social difusa que o caracteriza, consiste, de acordo com Hart (1961, p.94), em regras secundárias habilitando os indivíduos a resolver com autoridade a questão de saber se, em determinadas circunstâncias, uma regra primária foi transgredida. Denominamos regras de decisão às regras secundárias que conferem o poder de dividir as questões. Além de permitirem identificar os indivíduos chamados a julgar, tais regras estabelecem o procedimento seguido. Definem também um grupo de conceitos jurídicos importantes: juiz, tribunal, poder de jurisdição e poder de julgamento. A articulação das regras primárias de obrigação e das regras secundárias de reconhecimento, mudança e decisão constitui a estrutura central de um sistema jurídico. Representa também instrumento extremamente fecundo para analisar grande parte das fontes de perplexidade tanto do jurista como do cientista político. É importante notar que a maior parte das dificuldades de compreensão e deformações que atingem os conceitos jurídicos – por exemplo, tomar a autoridade jurídica simplesmente como fato físico de comando e obediência habituais, esquecendo da questão da legitimidade6, como faz a corrente positivista – provem do fato de que estes implicam uma referência ao que chamamos de ponto de vista interno ou do participante: a perspectiva daqueles que não se contentam em constatar e predizer o comportamento conforme as regras, mas que utilizam as regras como modelos que permitem avaliar seu próprio comportamento e o do outro. Sob o regime simples das regras primárias, esse ponto de vista interno se manifesta em sua forma mais elementar: no fato de essas regras serem invocadas como fundamento de possíveis críticas, justificando apelos à obediência, iniciativas de pressão social e penas para os infratores. Se acrescentarmos as regras secundárias ao sistema, então o campo daquilo que pode ser
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
A articulação das regras primárias de obrigação e das regras secundárias de reconhecimento, mudança e decisão constitui a estrutura central de um sistema jurídico.
6
Na linguagem comum, o termo Legitimidade possui dois significados, um genérico e um específico. No seu significado genérico, Legitimidade tem, aproximadamente, o sentido de justiça ou de racionalidade (fala-se na Legitimidade de uma decisão, de uma atitude, etc.). É na linguagem política que aparece o significado específico. Neste contexto, o Estado é o ente a que mais se refere o conceito de Legitimidade. O que nos interessa, aqui, é a preocupação com o significado específico. Num primeiro enfoque aproximado, podemos definir Legitimidade como sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos. É por esta razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão. A crença na Legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado. (BOBBIO, 1986)
Cadernos de Formação
57
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
Espaços de vida anteriormente regulados por consensos implícitos passam a sofrer intenso questionamento, separando-se à medida em que se intensifica o processo de racionalização da sociedade, isto é, de diferenciação entre questões de fé e questões científicas ...
7
As próximas três partes retomam com muitas supressões e modificações seções do capítulo quarto da tese de doutoramento do autor (SCHUMACHER, 2000). 8 Max Weber, sociólogo alemão (Erfurt, 1864 – Munique, 1920). Jurista de formação, seu livro mais célebre é A ética protestante e o es pírito do capitalismo, em que relaciona significativamente a moral puritana do calvinismo com a racionalização econômica que caracteriza o sistema capitalista. Inicialmente influenciado pelo marxismo, Weber procurou em seguida aplicar às ciências sociais um método compreensivo, esforçando-se em construir, para cada época histórica o tipo ideal e insistindo sobre o processo de racionalização que caracteriza o mundo moderno. Escreveu muitas outras obras sobre sociologia da religião, ciência, sociologia e política social, sociologia e economia. (ROBERT, 1981) 58
Cadernos de Formação
dito e realizado do ponto de vista interno se amplia e se diversifica bastante. Passa a compreender um conjunto de conceitos novos cuja análise requer referência ao ponto de vista interno: as noções de legislação, jurisdição, validade e, em geral, de poderes jurídicos privados e públicos. Antes de discutir o problema da legislação e a questão dos poderes privados e públicos, precisamos verificar como o direito lida com a realidade sócio-cultural complexa das sociedades contemporâneas.
DUALIDADE E FUNÇÃO DO DIREITO MODERNO 7 Nas sociedades modernas, a complexidade vem acompanhada de uma variedade de formas de vida, isto é, de sua pluralização, além de uma individualização das histórias de vida. Em outras palavras, passa a haver inúmeras possibilidades de participar em diferentes grupos sociais e de construir uma história de vida específica, resultante de distintas inserções sociais. Em tal situação, diminuem os valores e convicções passíveis de unirem diferentes formas de vida. De modo que deixam de existir normas e crenças comuns unindo a sociedade como um todo. A pluralização deu origem ao processo histórico-cultural que, desde Weber8 (1963), denominamos de desencantamento do mundo , processo a partir do qual os sujeitos sociais deixam gradativamente de compreender o mundo e a si mesmos com base em concepções religiosas. Consolida-se uma visão moderna de mundo sustentada culturalmente pelas esferas da ciência, moraldireito e arte. Com isso, explica Habermas (1987: I, p.200-228), as questões de ordem cognitiva, normativa e expressiva se desligam das imagens religiosas de mundo e se desenvolvem segundo suas próprias lógicas internas: científica, moral-jurídica, e estética. Assim, enquanto a pluralização e o desencantamento corroem os meios com os quais as comunidades poderiam auto-regular-se com base em crenças normativas e autoridades comuns, cresce em nossas sociedades uma ampla variedade de grupos e subculturas, com visões de mundo, valores e tradições próprias. Situação em que um número cada vez maior de conflitos, sobre diferentes questões, necessita de tratamento por meio da obtenção de acordos explícitos, sob condições em que as bases para se alcançar tais acordos encurtam progressivamente. Espaços de vida anteriormente regulados por consensos implícitos passam a sofrer intenso questionamento, separando-se à medida em que se intensifica o processo de racionalização da sociedade, isto é, de diferenciação entre questões de fé e questões científicas, entre questões de fé e assuntos que dizem respeito à justiça e à moralidade e entre questões de fé e julgamentos estéticos. Além da pluralização e do desencantamento, cabe ainda acrescentar o fato de os processos de diferenciação social imporem, em nossas sociedades, uma multiplicação de papéis sociais, posições de interesse e tarefas funcionalmente especificadas. Essa diferenciação de funções na sociedade não só alcança um número crescente de esferas, como passa também a requerer dos próprios indivíduos a busca do sucesso individual.
Com base nessas considerações, podemos formular o problema da estabilização das sociedades modernas da forma como Habermas (1996, p.26) propõe: a) como integrar socialmente formas de vida desencantadas, internamente diferenciadas e pluralizadas, se simultaneamente cresce o risco de dissenso, particularmente nas esferas de ação que se desligaram de autoridades sagradas e consensos implícitos? b) como obter estabilização num contexto em que a crescente necessidade de integração é pressionada por movimentos contrários, provenientes da economia capitalista – onde os agentes se orientam estrategicamente e decidem segundo seus interesses, observando condições de mercado – e das administrações – onde a estrutura hierárquica afeta a realização coordenada de metas coletivas. Esferas em que a coordenação social se realiza, ora por mecanismos anônimos de mercado que regulam/controlam as conseqüências da ação pelas costas dos atores , integrando-os sistemicamente através do dinheiro, ora através do poder. Cabe ao direito moderno resolver problemas de coordenação social que surgem sob as condições acima descritas: - onde a pluralização da sociedade fragmentou identidades e solapou crenças e convicções passíveis de produzirem consensos entre formas de vida diferentes; - onde requisitos funcionais de reprodução material da sociedade, conduzidos pelo dinheiro e pelo poder, abrem a possibilidade dos indivíduos buscarem seus próprios fins num número crescente de espaços sociais. A solução está em limitar a necessidade de acordo a normas gerais demarcando e regulando áreas de livre arbítrio, através de: a) direitos e estatutos jurídicos que devem proporcionar algo como um ambiente social estável no qual as pessoas possam formar suas próprias identidades como membros de diferentes tradições e perseguir estrategicamente seus próprios interesses como indivíduos; b) leis que devem resultar de processos discursivos que as tornem racionalmente aceitáveis para pessoas orientadas em direção a compreenderem os argumentos umas das outras e a decidirem com base nas razões mais consistentes. Para atores orientados por seu próprio interesse, todas as características da situação se transformam em fatos avaliados à luz de suas próprias preferências. Atores orientados ao entendimento se apoiam numa compreensão conjunta da situação e interpretam os fatos negociados à luz dos melhores argumentos. Contudo, se essas duas orientações esgotam as alternativas disponíveis para sujeitos que agem, então as normas adequadas para integrar socialmente e constranger interações estratégicas precisam lidar com duas condições contraditórias: a) apresentar restrições fatuais que modifiquem a informação relevante de maneira que o sujeito que age estrategicamente se sinta compelido a adaptar objetivamente seu comportamento à linha desejada e; b) simultaneamente, desenvolver uma força social integradora passível de impor obrigações aos destinatários – o que só é possível se as normas forem resultado de processos abrangentes de consulta, argumentação e deliberação social. Considerando que esse tipo de norma requer concordância dos agentes, simultaneamente pela coerção e pela legitimidade, a solução encontra-se no
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
A solução está em limitar a necessidade de acordo a normas gerais demarcando e regulando áreas de livre arbítrio, através de: a) direitos e estatutos jurídicos que devem proporcionar algo como um ambiente social estável no qual as pessoas possam formar suas próprias identidades como membros de diferentes tradições e perseguir estrategicamente seus próprios interesses como indivíduos; b) leis que devem resultar de processos discursivos que as tornem racionalmente aceitáveis para pessoas orientadas em direção a compreenderem os argumentos umas das outras e a decidirem com base nas razões mais consistentes.
Cadernos de Formação
59
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
9
Força exercida pelo Estado para fazer valer o direito. 10 John Locke, filósofo inglês (Wrington, Somersetshire, 1632 – Oates, Essex, 1704), autor do Ensaio acerca do entendimento humano. Com Carta sobre a tolerância e os Dois tratados sobre o governo civil , aparece como defensor do liberalismo, afirmando que o pacto social não extingue os direitos naturais do indivíduo. (ROBERT, 1981) 11 Jean-Jacques Rousseau, escritor e filósofo genebrês de língua francesa (Genebra, 1712 – Ermenonville, 1788). Ganhou notoriedade com a publicação do discurso Sobre as ciências e as artes . Com o discurso Sobre as origens da desi gualdade (1755), passou a exercer influência considerável sobre o pensamento político moderno. Para precisar seu ideal político, ligado a concepções de educação, publicou o Contrato social e, paralelamente, O Emílio (1762), obra pedagógica cujas idéias religiosas foram condenadas, obrigando-o a deslocar-se continuamente durante anos. No entanto, as reivindicações de liberdade e igualdade inspiraram profundamente as assembléias na França revolucionária. Construiu um sistema político e pedagógico que buscou conciliar a felicidade individual com as exigências da coletividade. (ROBERT, 1981) 12 Immanuel Kant, filósofo alemão (Könisberg, 1724 – 1804). Constituiu a filosofia crítica ou transcendental, isto é, a determinação das condições a priori : a) do conhecimento (teoria) [Crítica da razão pura (1781)]; b) da moral (prática) [Fundamentos da metafísica dos costumes (1785) e (continua) 60
Cadernos de Formação
sistema de direitos, que confere às liberdades individuais a força coercitiva do direito9 . Aspecto que a própria história parece confirmar, já que o núcleo do direito moderno é composto de direitos privados. Eles configuram o alcance legítimo das liberdades individuais e, por isso mesmo, são talhados à busca estratégica de interesses privados. Logo, como assinala Rehg (1996, p.XIX), o direito é um sistema de regras coercitivas e procedimentos impessoais envolvendo também um apelo a razões que, pelo menos idealmente, todos os cidadãos deveriam considerar aceitáveis. Em filosofia, mas também na realidade constitucional das sociedades ocidentais, esse duplo significado do termo encontra correspondência na concepção de direito que se firmou gradativamente a partir das obras de pensadores como Locke10, Rousseau11 e Kant 12 . Os três consideram tanto o caráter positivo do direito coercitivo, que em certo sentido obriga pela ameaça, como também do direito que garante nossas liberdades. Também na linguagem cotidiana, a palavra direito é utilizada com duplo significado: como um sistema de regras (Constituição, código civil, código do consumidor, etc.) que visa organizar a vida em sociedade, definindo o estatuto dos sujeitos e regulamentando suas relações sociais (políticas, econômicas ou familiares) e como prerrogativa de que dispõe cada indivíduo no contexto do sistema de regras, na medida em que reúne condições de aplicar uma dessas regras. A dupla perspectiva das normas jurídicas, como leis da coerção e leis da liberdade, aparece com nitidez no caso dos direitos privados. Ao liberarem os motivos do comportamento conforme as normas, eles toleram uma atitude estratégica do ator em relação à norma, aquela em que o agente contraria a norma apostando que sua contravenção não será descoberta. Simultaneamente, enquanto elementos de uma ordem jurídica legítima, os direitos privados surgem revestidos de uma validade normativa, que supõe reconhecimento e convida os destinatários a seguí-los pelo motivo não coercitivo do dever – o que sugere que uma ordem jurídica deve sempre possibilitar o cumprimento de suas regras independentemente do respeito à lei. Essa análise sobre o modo de validade do direito coercitivo também traz implicações para o processo legislativo. Na medida em que os direitos de comunicação e participação política são constitutivos para a produção de regras legítimas, seu exercício por pessoas que agem simplesmente como sujeitos privados de direito civil é contraproducente. Tais direitos, ao contrário, necessitam de um comportamento comunicativo de cidadãos engajados. Assim, é razoável sustentar, como o faz Habermas (1996, p.32), que o conceito de direito moderno já traz consigo a idéia democrática desenvolvida por Kant e Rousseau, de que a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída sobre direitos, só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da vontade unida e concordante de todos os cidadãos livres e iguais. As leis de coerção devem comprovar sua legitimidade como leis de liberdade através do processo de legislação. Para fazer frente a essa dificuldade, não haveria senão duas possibilidades: ou a ordem legal permanece embutida
numa ética social global subordinada à autoridade de um direito divino (caso dos Estados absolutistas de transição à modernidade); ou as liberdades individuais são complementadas por direitos de outro tipo – de cidadania que não visam à escolha racional (do indivíduo isolado), mas à autonomia (HABERMAS, 1996, p.33). Pois, sem garantias religiosas ou metafísicas, o direito coercitivo forjado para o uso auto-interessado dos direitos individuais, só pode conservar sua força socialmente integradora na medida em que os destinatários das normas jurídicas em seu todo, puderem ao mesmo tempo se compreender como os autores racionais dessas normas. Até aqui, estabelecemos que o direito moderno tem que se adequar, tanto às decisões descentralizadas de indivíduos orientados ao seu próprio sucesso em sociedades de mercado, logo aos requisitos funcionais da complexidade social – como também, manter uma base normativa possibilitando a ligação da justiça com procedimentos que apóiem sua legitimidade. Nos termos mais simples de Rasmussen (1994, p.28), o direito integra a sociedade tanto pelo lado da coerção, como pela condição de possibilidade da implementação dessa coerção, a validade, que só pode ser derivada daqueles a quem se aplica. Qual das duas vai predominar em determinado momento ou deliberação, se coerção ou validade, é uma questão complexa: depende da cultura política da sociedade, do grau de difusão e qualidade da informação, da comunicação pública e das manifestações da opinião pública, do grau de empenho dos diretamente envolvidos no legislativo ou judiciário, dentre outros fatores. Talvez o uso do cinto de segurança em automóveis seja um bom exemplo de lei que conseguiu reunir coerção e validade, mobilizando os fatores mencionados. Podemos agora tratar da relação entre direitos humanos e soberania popular, abrindo caminho para conciliar autonomia privada com pública.
AUTONOMIA PRIVADA E PÚBLICA: DIREITOS HUMANOS E SOBERANIA POPULAR Os direitos humanos e o princípio da soberania do povo constituem as únicas idéias que podem justificar o direito moderno. As tradições políticas liberais concebem os direitos humanos como expressão da autodeterminação moral, enquanto as republicanas tendem a interpretar a soberania do povo como expressão da auto-realização ética. Na visão liberal, os direitos humanos se impõem ao saber moral como algo dado, ancorado num estado natural fictício; ao passo que na interpretação republicana a vontade ético-política de uma coletividade que se auto-realiza não reconhece nada que não corresponda ao próprio projeto de vida autêntico. Enquanto os direitos humanos garantem aos indivíduos uma área de autonomia privada, ao abrigo das incursões do poder político, a soberania popular faz da vontade unificada do povo o fundamento da autoridade política e a garantia da autonomia pública dos cidadãos. Mesmo formando para a representação moderna da justiça um par indissociável, essas aspirações à autodeterminação moral das pessoas e à auto-realização ética dos grupos e comunidades, descrevem no interior das doutrinas do direito um paradoxo nem sempre reconhecido:
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
... o direito integra a sociedade tanto pelo lado da coerção, como pela condição de possibilidade da implementação dessa coerção, a validade, que só pode ser derivada daqueles a quem se aplica.
soberania . [De soberano + -ia 1.] S.
f. (...) 4. Propriedade que tem um Estado de ser uma ordem suprema que não deve a sua validade a nenhuma outra ordem superior. 5. O complexo dos poderes que formam uma nação politicamente organizada. (Aurélio Eletrônico)
(continuação) Crítica da razão prática (1788)]; e c) do julgamento estético [Crítica da faculdade de julgar (1790)]. No domínio da moral, o imperativo “categórico” representa o dever, é um dado da consciência comum da moralidade humana e tem por fundamentos a liberdade e a “autonomia da vontade” em relação às inclinações naturais em buscar a felicidade. (ROBERT, 1981)
Cadernos de Formação
61
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
... a co-originariedade da autonomia privada e pública se revela quando compreendemos o tema da auto- legislação, segundo o qual os indivíduos são simultaneamente autores e destinatários de seus direitos. Tal enfoque possibilita compreender os direitos humanos como condições formais para a institucionalização jurídica dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade, nos quais a soberania do povo assume um caráter vinculante, isto é, ligado por normas.
62
Cadernos de Formação
Em sua acepção liberal, a dominante [em nossos dias], os direitos humanos são geralmente definidos de maneira negativa em relação ao poder político, ao qual impõem limites intransponíveis, necessários para preservar a autonomia moral dos indivíduos e prevenir a tirania da maioria. A anterioridade dos direitos subjetivos sobre o contrato social é o argumento que permite repudiar toda a lei atingindo os atributos imprescritíveis da pessoa, cuja origem (sob a forma de direitos) é em si não-política. Em sua expressão republicana, a soberania do povo é, ao contrário, concebida como a única fonte e instância de realização completa dos direitos individuais, cuja base é essencialmente política e comunitária, sendo que nenhum direito subjetivo poderia lhe pré-existir. (LANGLOIS, 1996, p.311) Para Habermas (1996), esse antagonismo deve ser atribuído à confusão na relação entre direito e moral que enfraquece a coerência teórica do direito. Pelo lado dos liberais, haveria a tendência de fazer a soberania popular depender de princípio moral racional anterior à emergência do político. Já, pelo lado dos republicanos, a igual dignidade dos indivíduos, enquanto membros do corpo social, derivaria da vontade geral. Ao adotar o modelo da linguagem, Habermas (1996, p. 104) quer esclarecer a estrutura discursiva comum do direito e da moral, para mostrar que só uma validação intersubjetiva das normas jurídicas, que apela simultaneamente para a liberdade subjetiva dos indivíduos e para a autodeterminação democrática das comunidades é capaz de conferir legitimidade ao direito positivo. No modelo proposto pelo autor, a co-originariedade da autonomia privada e pública se revela quando compreendemos o tema da autolegislação, segundo o qual os indivíduos são simultaneamente autores e destinatários de seus direitos. Tal enfoque possibilita compreender os direitos humanos como condições formais para a institucionalização jurídica dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade, nos quais a soberania do povo assume um caráter vinculante, isto é, ligado por normas. Em outras palavras, são os direitos humanos que garantem a possibilidade de cada indivíduo atuar como sujeito autônomo livre e igual nos processos coletivos de discussão e decisão acerca das leis para todos. Assim, sem direitos humanos básicos garantindo a autonomia privada dos cidadãos, também não há como institucionalizar juridicamente as condições que permitem a esses cidadãos o exercício de sua autonomia pública. Conseqüentemente, as autonomias privada e pública se pressupõem mutuamente de tal modo que nem direitos humanos nem soberania popular podem pretender a primazia uma em relação à outra. Se quiséssemos dar mais importância a uma em detrimento da outra, nos defrontaríamos com uma dificuldade semelhante àquela da pergunta: quem nasceu antes, o ovo ou a galinha? Logo, a relação interna entre autonomia privada e pública requer um conjunto de direitos abstratos, que os cidadãos devem reconhecer se quiserem regular sua convivência por meio do direito positivo legítimo. Esse “sistema de direitos” fundamentais – que cada regime democrático concreto deve elaborar e especificar, delineando as condições gerais necessárias para a institucionalização de processos discursivos no direito e na política – compreende
cinco categorias amplas (HABERMAS, 1996, p.122-3): (I) direitos a iguais liberdades individuais (subjetivas); (II) direitos relativos ao status de membro de uma associação voluntária de parceiros sob o direito; (III) direitos a proteção jurídica individual; (IV) direitos a iguais oportunidades de participação em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os cidadãos exercitam sua autonomia política e (através dos quais) criam direito legítimo e; (V) direitos a condições sócio-econômicas e ecológicas de vida que garantam iguais oportunidades de utilizar os direitos civis elencados de (I) até (IV). As três primeiras categorias garantem a autonomia privada dos cidadãos e estabelecem o código do direito, através do qual os cidadãos podem se confrontar como sujeitos jurídicos. Na ausência de tais categorias, não há como falar de direito legítimo. Ao reconhecer, na maior medida possível, os direitos fundamentais da pessoa sob a forma de uma liberdade subjetiva igual para todos (I), o código jurídico permanece poroso ou aberto às demandas sociais. A compatibilização entre liberdades subjetivas e direitos subjetivos iguais permite formar um espaço público autônomo. O caráter abstrato e geral dessas liberdades individuais, que se choca com a necessidade do direito positivo encontrar aplicação no interior de limites de tempo e espaço, conduz à especificação de uma segunda categoria: os direitos fundamentais ligados ao estatuto de membro de uma comunidade jurídica livre (II). Por aí, os indivíduos que fazem parte de determinada comunidade recebem a garantia de que não serão excluídos arbitrariamente; podendo livremente emigrar e assim fugir àquelas leis jurídicas. Com esses direitos, institui-se também a distinção entre cidadão e estrangeiro, que deixa a determinação das regras de atribuição da cidadania, de acolhida dos refugiados e de ampliação da comunidade de direito nas mãos dos membros da associação jurídica. A terceira categoria, que completa os requisitos para o estabelecimento do código jurídico, assegura as condições para que pessoas e cidadãos possam exigir seus direitos. De maneira que cada um, que se sentir lesado em seus direitos ou sofrer prejuízo, possa recorrer a uma arbitragem imparcial dos litígios, cuja decisão seja executável por todas as partes. A admissão de direitos judiciários, que estende igualmente a todos a proteção da lei (III), constitui um dos principais alicerces do universo jurídico moderno. Enquanto condições necessárias de possibilidade, essas três categorias de direitos (de liberdade de expressão, de associação e de proteção jurídica) não devem ser entendidas como restrições à soberania do legislador, quer dizer, como direitos liberais fundamentais dirigidos contra o Estado. Constituem princípios jurídicos que orientam a estruturação das constituições. Só garantem a autonomia privada de sujeitos jurídicos, no sentido de que estes sujeitos se reconhecem reciprocamente em seu papel de destinatários de leis, concedendo uns aos outros um status sobre cuja base podem reivindicar direitos e fazer valê-los mutuamente. A quarta categoria de direitos (IV) reconhece a todos e a cada um o poder de participar ativamente, em igualdade de opor tunidades, da formação da opinião e da vontade comuns. Atribui assim à liberdade comunicativa o papel implícito de realizar a união entre os dois princípios normativos do direito moderno: enquanto a formação de uma vontade pública autônoma
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
... essas três categorias de direitos (de liberdade de expressão, de associação e de proteção jurídica) não devem ser entendidas como restrições à soberania do legislador, quer dizer, como direitos liberais fundamentais dirigidos contra o Estado. Constituem princípios jurídicos que orientam a estruturação das constituições.
Cadernos de Formação
63
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
... esse sistema de direitos constitui o meio jurídico mas não o fixa, permanecendo a necessidade de que ele seja desenvolvido de modo politicamente autônomo pelos cidadãos, no contexto de tradições e circunstâncias históricas específicas.
64
Cadernos de Formação
apela para a condição da autonomia privada, esta encontra naquela seu ponto de apoio indispensável. Isso significa que, no horizonte de um espaço público alimentado pelas contribuições dos cidadãos, cabe a eles mesmos definir as formas institucionais e jurídicas que a liberdade comunicativa deverá tomar. Portanto, ao fundamentar o status de cidadãos ativos livres e iguais, os direitos políticos capacitam os cidadãos a mudarem e expandirem seus diferentes direitos e deveres, de modo a interpretar e desenvolver simultaneamente suas autonomias privada e pública. Por fim, a reconstrução dos direitos não esquece das condições materiais de existência necessárias à sustentação da democracia, cujo exercício permaneceria simplesmente formal se não incluísse as necessidades vitais dos indivíduos: a quinta categoria (V) reúne assim os direitos fundamentais a condições de vida sociais, técnicas e ecológicas compatíveis com o exercício igual para todos das liberdades anteriormente enunciadas. Tais direitos sociais devem ser tomados como princípios da vida democrática, elementos indispensáveis ao exercício das autonomias privada e pública, cuja expressão e sustentação não pode ser dissociada da garantia de condições sócio-econômicas e ecológicas básicas. É interessante não perder de vista o sentido de universalidade pretendido para esse sistema de direitos. Não se trata da especificação de um conjunto pré-dado de direitos naturais, mas de um esquema geral de direitos ainda não plenamente desenvolvidos, que os sujeitos jurídicos têm que adotar como pressuposições, caso queiram regular sua vida em comum com meios do direito positivo. Assim, esse sistema de direitos constitui o meio jurídico mas não o fixa, permanecendo a necessidade de que ele seja desenvolvido de modo politicamente autônomo pelos cidadãos, no contexto de tradições e circunstâncias históricas específicas. Após essas considerações passemos à compreensão, no interior do modelo da comunicação, do Estado de direito e da democracia.
ESTADO DE DIREITO, PODER COMUNICATIVO E DEMOCRACIA DELIBERATIVA Para entrarem em vigor e se tornarem coercitivos, os direitos necessitam de organizações que tomem decisões coletivamente vinculantes, isto é, que liguem o todo por meio de normas. Inversamente, essas decisões adquirem seu caráter coletivamente vinculante, graças à forma jurídica em que são for jadas. Dessa conexão interna entre direito e poder político , emerge a necessidade do Estado: de um poder de sanção, organização e execução. Em poucas palavras, “o Estado é o mecanismo que torna o sistema dos direitos e a coerção da lei permanentes” (RASMUSSEN, 1994, p.31). À versão corrente, de que o Estado de direito garantiria apenas a autonomia privada e a igualdade jurídica dos cidadãos, Habermas (1996) contrapõe sua compreensão discursiva da inter-relação entre autonomia privada e pública. Contexto no qual o direito não recebe seu sentido normativo pleno, nem de sua forma , nem de um conteúdo moral a priori , mas de um procedimento de legislação que gera legitimidade. Pois, nesse nível de justificação, só conta
como legítimo o direito que poderia ser racionalmente aceito por todos os cidadãos num processo discursivo de formação da opinião e da vontade. Nessa abordagem do Estado de direito, observa Habermas (1996, p.135), a soberania popular não se incorpora mais numa reunião de cidadãos autônomos identificáveis visivelmente, mas se volta para as formas de comunicação que circulam através de foros sociais e corpos legislativos. Dessa forma, o poder comunicativamente diluído na sociedade pode ligar o poder administrativo do aparelho estatal com a vontade dos cidadãos. O poder do Estado se baseia na ameaça de sanções (apoiadas em instrumentos de força, como o poder de polícia) mas, ao mesmo tempo, é autorizado pelo direito legítimo. Independentemente de sua positividade, o direito reivindica validade normativa; já o poder está à disposição de uma vontade política como meio para a realização de objetivos coletivos, independentemente dos constrangimentos normativos que o autorizam. Visto pelo prisma aqui adotado, o conceito de autonomia política abre uma perspectiva completamente diferente. Ao explicar que a produção do direito legítimo requer a mobilização da liberdade comunicativa dos cidadãos, coloca a legislação na dependência de outro tipo de poder, o poder comunicativo, que ninguém está realmente capacitado a possuir : “O poder surge entre os homens quando agem em conjunto, desaparecendo tão logo eles se dispersam”. De acordo com esse modelo, inspirado em Hanna Arendt, um e outro, direito e poder comunicativo têm sua fonte co-originária na “opinião em torno da qual muitos publicamente se uniram” (ARENDT, 1981, p.213-4). Por isso, essa linha de leitura da autonomia política envolve uma diferenciação no conceito de poder político. Para que as fontes de justiça das quais o direito extrai sua legitimidade não sequem, um poder comunicativo juridicamente gerado deve estar subjacente ao poder administrativo do governo. Por essa via, explica Rochlitz (1993, p.51), Habermas reconstrói o conceito de Arendt no interior da tensão entre poder comunicativo (sinônimo de direito e legitimidade) e poder administrativo (sinônimo de busca estratégica de fins). Toma o uso público da liberdade comunicativa não só sob o aspecto cognitivo, da possibilidade da formação racional da opinião e da vontade, mas também do ponto de vista da força de motivação de convicções discursivamente produzidas e intersubjetivamente compartilhadas. Perspectiva na qual o uso público da liberdade comunicativa aparece também como gerador de potenciais de poder. Habermas (1996) observa então, que Arendt concebe o poder como o potencial de uma vontade comum formada numa comunicação sem coerções. O que lhe permite fazer uma oposição entre poder e violência, contrapondo a força realizadora da comunicação intersubjetiva, que busca o consenso, com a capacidade de instrumentalização da vontade alheia para fins próprios. O poder político aparece como a força que autoriza : se expressa por uma legislação que cria o direito legítimo, fundamentando as instituições, e se manifesta nos atos que fundam a liberdade, instaurando novas instituições e leis, protegendo a liberdade política e resistindo a formas ameaçadoras de repressão.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
Ao explicar que a produção do direito legítimo requer a mobilização da liberdade comunicativa dos cidadãos, coloca a legislação na dependência de outro tipo de poder, o poder comunicativo, que ninguém está realmente capacitado a possuir : O poder surge entre os homens quando agem em conjunto, desaparecendo tão logo eles se dispersam. O poder político aparece como a força que autoriza: se expressa por uma legislação que cria o direito legítimo, fundamentando as instituições, e se manifesta nos atos que fundam a liberdade, instaurando novas instituições e leis, protegendo a liberdade política e resistindo a formas ameaçadoras de repressão.
Cadernos de Formação
65
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
A idéia do Estado de direito pode ser então interpretada como a exigência de que o sistema administrativo, governado pelo código do poder, esteja amarrado ao poder comunicativo da legislação e mantido livre das intervenções ilegítimas do poder social (da força de interesses que podem se afirmar privilegiadamente).
13
Forma de governo em que o estado se constitui de modo a atender o interesse geral dos cidadãos. 66
Cadernos de Formação
Com o conceito do poder comunicativo, no entanto, chegamos apenas à emergência do poder político, não ao uso administrativo do poder já constituído (ou ao processo de exercício do poder). Logo, em seu sentido pleno, o conceito de política também tem de incluir o uso do poder administrativo no interior do sistema político, bem como a competição pelo acesso a esse sistema. Como a constituição de um código de poder supõe que um sistema administrativo seja governado por autorizações para transmitir decisões coletivamente vinculantes, Habermas (1996, p.150) propõe que se considere o direito como o meio através do qual o poder comunicativo é traduzido em poder administrativo. A idéia do Estado de direito pode ser então interpretada como a exigência de que o sistema administrativo, governado pelo código do poder, esteja amarrado ao poder comunicativo da legislação e mantido livre das intervenções ilegítimas do poder social (da força de interesses que podem se afirmar privilegiadamente). Como um todo, a discussão dos princípios do Estado de direito converge para dois resultados gerais. Primeiro, para a noção de poder comunicativo que não deve ser entendida como se fosse a expressão (mais ou menos espontânea) de uma vontade comum, mas como o produto da sobreposição e interligação de uma variedade de discursos e formas de comunicação (mais ou menos institucionalizadas), baseadas em argumentos empíricos, técnicos, prudentes, éticos, morais ou jurídicos. Segundo, para a concepção de que “o exercício legítimo do poder (através do meio jurídico) só pode ocorrer se este permanecer ligado à sociabilidade comunicativa: o governo do povo deve ser o governo do Estado de direito, mas o Estado de direito deve estar ligado ao direito pelo povo” (BAYNES, 1995, p.214). Dessa relação entre poder comunicativo e Estado de direito, decorre uma concepção diferente de democracia, a deliberativa ou participativa. Isso porque, explica Manin (1987, p.351), a fonte de legitimidade não é mais a vontade pré-determinada dos indivíduos, mas o processo de sua formação, quer dizer, a própria deliberação. Contexto em que uma decisão legítima não representa a vontade de todos, mas resulta da deliberação de todos. É o processo, no qual a vontade de todos se forma, que confere legitimidade ao resultado, em vez da soma das vontades já formadas. Por isso, o princípio deliberativo é simultaneamente individualista e democrático. A força da democracia participativa aparece quando confrontamos sua compreensão dos papéis do Estado e da sociedade na ação política, com a visão defendida pelas correntes liberal e republicana. No modelo deliberativo, a política compreende mais do que o governo mínimo do liberalismo e suas variantes contemporâneas, que o restringem basicamente à preservação das condições de funcionamento da economia de mercado sob o Estado de direito. Por outro lado, significa menos do que a ação coletiva de uma sociedade política homogênea, a comunidade tal como é entendida pelo republicanismo13 . Por esse novo modelo de ação política, comenta Rehg (1996, p.XXXI), só o Estado, enquanto sistema político investido do poder de decidir, pode agir . No entanto, sua ação só é legítima se os procedimentos formais do Estado de direito conservarem simultaneamente um caráter comunicativo ou discursivo, preservando, sob condições de complexidade, as fontes democráticas da
legitimidade no público como um todo. Nessa abordagem da democracia, as condições para a formação racional da opinião e da vontade se transferem, do nível das motivações e decisões individuais ou de grupo, para o nível social de processos institucionalizados de deliberação e tomada de decisão. Nesse movimento, procedimentos democráticos e comunicações podem funcionar como filtros, selecionando questões e contribuições, informações e razões, de modo que só sejam consideradas aquelas relevantes e válidas. É importante não perder de vista que essas considerações só se referem à perspectiva normativa ou ideal ligando Estado de direito e democracia. O processo democrático também se defronta com formas de poder social e com a complexidade das sociedades contemporâneas. A respeito dessas questões, as sociologias política e do direito não cansam de chamar à atenção para as diferentes estratégias empregadas por interesses sociais e organizações poderosas para utilizar o processo político em causa própria. Sugerem também que a complexidade funcional das sociedades contemporâneas não permite mais o controle democrático, mas só medidas administrativas indiretas orientadas pelo conhecimento de especialistas. Não há como negar essa realidade. No entanto, a luta contra a dominação e pela emancipação não parece oferecer outro caminho, pelo menos até momento, senão apostar no desenvolvimento do par de autonomias (privada e pública) e na reafirmação constante e renovada do processo democrático, pela introdução contínua de novos temas e desafios institucionais. No contexto do modelo deliberativo, boa parte das expectativas normativas, especialmente da gênese democrática da lei por meio do poder comunicativo, deve ser suportada por estruturas da sociedade civil e da esfera pública , ou seja, por associações, movimentos sociais e foros públicos. Assim, as decisões tomadas em instituições formais de poder devem permanecer abertas aos impulsos provenientes de esferas públicas informais. Mais precisamente, segundo Habermas (1996, p. 374), abertas a uma rede complexa e ramificada de arenas culturais (internacional, nacional, regional e local) que se diferenciam pela densidade da comunicação, complexidade organizacional e alcance: dos públicos episódicos (bares, ruas, etc.), passando pelos ocasionais de eventos e apresentações particulares (manifestações, teatros, concertos, etc.), até a esfera pública abstrata de leitores, ouvintes e espectadores isolados, distribuídos ao longo de extensas áreas geográficas e reunidos através dos meios de comunicação de massa. Mesmo diferentes, esses públicos parciais permanecem, por meio da comunicação pública, permeáveis uns em relação aos outros. Essa permeabilidade pode ser ilustrada pelo exemplo dos movimentos operário e feminista que, ao longo dos séculos XIX e XX, empreenderam uma crítica de dentro ao discurso universalista da esfera pública burguesa, destruindo as estruturas que os constituíam como o outro.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
Para desempenhar esse papel de canal de comunicação, a esfera pública não deve ser subvertida nem por grandes organizações poderosas, nem pela mídia. Do contrário, não poderá ligar discurso público e sociedade civil, possibilitando aos cidadãos identificarem questões sociais candentes e forçar sua consideração formal pelo sistema político.
Para desempenhar esse papel de canal de comunicação , a esfera pública não deve ser subvertida nem por grandes organizações poderosas, nem pela mídia. Do contrário, não poderá ligar discurso público e sociedade civil, possibilitando aos cidadãos identificarem questões sociais candentes e forçar sua consideração formal pelo sistema político. Enquanto agentes, podemos desempenhar esse papel em qualquer espaço social: na escola, no trabalho, na Cadernos de Formação
67
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
rua, em casa, nos jornais, etc. Com razão poderíamos nesse momento indagar: por que deveríamos nos comportar assim, se é difícil e exige tanto esforço? Porque os ideais constantes da idéia de democracia deliberativa fazem parte daquelas concepções normativas de agente racional, vida ética e conhecimento que não são simplesmente uma questão de escolha, mas que são constitutivas de nossa autocompreensão: (a) a noção de que cada um merece, em princípio, igual respeito como agente moral autônomo; (b) a noção de que a autonomia para raciocinar e argumentar é parte inestimável dos sujeitos sociais; (c) a noção da importância da publicidade, especialmente nas esferas do direito e da política; (d) ainda, a noção, subjacente às nossas considerações, de que não há padrões de autoridade independentes dos contextos históricoculturais, os únicos que podem validar pretensões de conhecimento nas áreas científica, jurídica, política e moral – conhecimentos, é claro, sempre falíveis e passíveis de serem melhorados. (COOKE, 2000, p.955) Por essas razões, temos o direito e o dever de lutar politicamente pelo que somos, quer dizer, por condições para nos desenvolvermos plenamente como sujeitos autônomos, individuais e coletivos.
ATIVIDADES A partir da formação de grupos de três, desenvolvam as seguintes atividades: 1) Por meio de consulta à Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, façam um balanço das principais liberdades individuais (subjetivas) lá contidas. 2) Para que existam processos democráticos de formação da opinião e da vontade na política, é imprescindível que todos os cidadãos tenham asseguradas condições básicas de vida nos planos sócio-econômico e ecológico . Expliquem como a falta dessas condições ou direitos fundamentais afeta o processo de deliberação e a participação da vontade de todos na política? Identifiquem uma iniciativa ou proposta para enfrentar esse problema na sociedade brasileira e mostrem como ela funciona ou funcionaria, verificando se ela preserva a autonomia dos beneficiários? 3) Qual foi o papel desempenhado pela sociedade civil e pelas esferas públicas da sociedade brasileira durante o processo político que culminou na renúncia do ex-presidente Fernando Collor em setembro de 1992? 4) Utilizando os conceitos de autonomia privada e autonomia pública , poder comunicativo e poder administrativo, procurem chegar a uma compreensão acerca do funcionamento de uma escola democrática?
68
Cadernos de Formação
Observação: a realização dessas atividades pode envolver pesquisa preliminar. No caso da penúltima, por exemplo, seria importante fazer um levantamento em jornais e revistas da época para entrar no clima político do governo Collor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, H. A condição humana . Rio de Janeiro: Forense Universitária e Salamandra; São Paulo: Ed. Universidade São Paulo, 1981. BAYNES, K. Democracy and the Rechtsstaat: Habermas’s Faktizität und Geltung. In: WHITE, S. K. The Cambridge Companion to Habermas . Cambridge (UK): Cambridge University Press, 1995, p. 201-232. BOBBIO, N. e outros. Dicionário de política . Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. COOKE, M. “Five Arguments for Deliberative Democracy”. Political Studies , v. 48, 2000, 947-969.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA SOBRE A RELAÇÃO ENTRE MORAL...
DAHL, R. A. Democracy and Its Critics . New Haven (Conn.): Yale University Press, 1989. DWORKIN, R. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. HABERMAS, J. Theorie de l’agir communicationel : Tome I: Rationalité de l’agir et rationalisation de la societé. Poitiers: Fayard, 1987. HABERMAS, J.. Between Facts and Norms : Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1996. HART, H. L. A. The Concept of Law . Oxford: Oxford University Press, 1961. HAYDON, G. “Morality in the Narrow Sense”. Journal of Philosophy of Education, v. 33, n. 1, 1999, p. 31-40. HELD, D. Models of Democracy . Stanford: Stanford University Press, 1987. LANGLOIS, L. “Habermas et la reconstruction rationnelle du droit”. Dialogue : Canadian Philosophical Review, v. XXXV, n. 2, 1996, p. 307-326. MANIN, B. “On Legitimacy and Political Deliberation. Political Theory , n. 15,1987, p. 351-377. O’DONNELL, G. “Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América Latina”. Novos Estudos , n. 51, 1998, p. 37-61. RASMUSSEN, D. (1994). “How is valid law possible?”. Philosophy and Social Criticism, v. 20, n. 4, 1994, p. 21-44. REHG, W. Translator’s Introduction. In: HABERMAS, J. Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy . Cambridge (Massachusetts): The MIT Press, 1996 , p. ix- xxxvii. ROBERT, P. (dir.) Le Petit Robert 2 . Dictionnaire Universel des Noms Propres. Paris: S. N. L. – Le Robert, 1981. ROCHLITZ, R. (1993). “De la Justice au Droit. Perspectives de la philosophie politique”. Critique , t. XLIX, n. 548-549, 1993, p. 34-55. SCHUMACHER, A. A. Comunicação e democracia: fundamentos pragmático-formais e implicações jurídico-políticas da teoria da ação comunicativa . 2000. Tese (Doutorado) – Campinas, Unicamp. TAYLOR, C. What is Human Agency. In: TAYLOR, C . Human Agency and Language . Cambridge, New York Port Chester, Melbourne, Sydney: Cambridge University Press, 1985 p. 15-44. TAYLOR, C. Sources of the self: the making of modern identity . Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1989. WEBER, M. Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções. In: GERTH, H. e WRIGHT MILLS, C. (org.).Ensaios de Sociologia . Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963, p. 371410. Cadernos de Formação
69
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
70
Cadernos de Formação
ACESSO À JUSTIÇA: UMA LEITURA DOS DIREITOS E DA CIDADANIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
Cátia Aida Silva2
Tendo o processo brasileiro de redemocratização como pano de fundo, o tema do acesso à justiça pode ser abordado das mais distintas maneiras. Um olhar amplo e instigante certamente passará por títulos e pesquisas de juristas e cientistas sociais preocupados com fenômenos que, à primeira vista, poderiam ser considerados muito diversos. O objetivo deste texto é fazer uma breve discussão das questões privilegiadas por estas pesquisas ao longo das últimas décadas, enfocando sua relação com os debates sobre o aprofundamento da democracia no país. O tema do acesso à justiça pode nos servir de fio condutor que perpassa a discussão de problemas distintos como: a resolução de conflitos coletivos no contexto autoritário, a existência de códigos normativos “alternativos” de resolução de conflitos, a percepção da justiça pelos segmentos mais desfavorecidos da população, a violência e imposição de códigos coercitivos e autoritários de conduta em determinados contextos e regiões, a crítica à tradição jurídica positivista e ao ordenamento jurídico brasileiro, a existência de movimentos urbanos e sociais que reivindicam o direito de acesso a serviços básicos e novos direitos, a inauguração de serviços legais alternativos, o perfil e a opinião dos magistrados a respeito do seu papel, a reforma do Poder Judiciário, pontos de estrangulamento dos processos criminais e as novas atribuições dos promotores de justiça na defesa de direitos coletivos e difusos e no combate à corrupção. Como ressalta Eliane Junqueira (1996), as questões consideradas prioritárias em relação à justiça no Brasil e no exterior no final dos anos de 1970 e início da década de 1980 são muito diversas. No cenário internacional, é divulgado um estudo comparativo de grande monta conduzido por Mauro Cappelletti, que se dedica a discutir a questão do acesso à justiça como problema fundamental dos países centrais, num contexto de demandas crescentes ao Welfare State (estado de bem-estar) e de “explosão de litigiosidade” resultante dos movimentos sociais de cunho étnico e sexual que conquistam novos direitos (Cappelletti e Garth, 1978). O conhecido estudo de Cappelletti usa uma metáfora para ilustrar o caminho percorrido pelos países centrais (Europa e EUA) no enfrentamento do problema do acesso à justiça. A “primeira onda” teria consistido em medidas para ampliar o acesso dos pobres daqueles países à justiça, por meio de diferentes medidas voltadas a efetivar a assistência judiciária (incentivos, subsídios, órgãos especiais, etc). A “segunda onda” teria correspondido aos esforços para tornar possível a representação legal de interesses difusos, concernentes aos direitos dos consumidores, meio ambiente e outros. Estes esforços vieram a modificar muitas concepções e procedimentos do processo civil tradicional, restrito até então à resolução de conflitos entre duas partes individualizadas. Novas modalidades de ações judiciais foram regulamentadas por leis inovadoras, novos elementos foram introduzidos no
ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS... PÁGINAS 71 A 86
1
Fonte: PrimeiraVersão, 106, Ifch, Unicamp, p. 1-34, junho 2002. Este texto foi inspirado nas leituras e debates ocorridos nas aulas da disciplina de pós-graduação “Direitos, Cidadania e Justiça no Brasil Contemporâneo”, ministrada pela autora no segundo semestre de 2001 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
2
Cátia Aida Silva é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e atualmente leciona e desenvolve atividades acadêmicas no Departamento de Ciência Política da Unicamp como pesquisadora de recém-doutorado. É autora do livro Justiça em Jogo: Novas Facetas da Atuação dos Promotores de Justiça (Edusp, 2001) e co-autora, com Maria Filomena Gregori, do livro Meninos de Rua e Instituições: Tramas, Dis putas e Desmanche (Editora Contexto, 2000).
Cadernos de Formação
71
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
No contexto da abertura política, as demandas e conflitos protagonizados por movimentos sociais tornaram-se uma importante referência na avaliação do funcionamento e da estrutura do sistema judicial brasileiro, sobretudo do Poder Judiciário.
72
Cadernos de Formação
processo civil e, entre outras medidas, agências governamentais e nãogovernamentais voltadas especificamente à defesa de tais interesses foram criadas. A “terceira onda” teria englobado, nesses países, uma ampla variedade de reformas para reforçar as mudanças iniciadas com a primeira e a segunda ondas, a saber: mudanças na estrutura dos tribunais, criação de tribunais especializados, novas legislações, uso de pessoas leigas como juízes e defensores, modificações legais para evitar litígios ou facilitar sua resolução, utilização de mecanismos informais e privados de resolução de conflitos (Cappelletti e Garth, 1978). Ora, se os países centrais voltavam-se a inovações e modificações jurídicas capazes de enfrentar os novos tipos de conflitos que surgiam no seio do mundo pós-industrializado e capazes de estender de modo efetivo ao conjunto das suas populações direitos então gozados pela maioria, a situação brasileira era muito diferente (Junqueira, 1996). O processo de abertura política se iniciara, mas o Brasil vivia sob um regime autoritário que impedia o gozo dos direitos mais elementares pelos cidadãos e podia ser definido – e ainda hoje pode ser – como um país em que a imensa maioria da população não tinha acesso à justiça, ou seja, acesso aos meios formais de resolução de conflitos, por razões de ordem social e pela conformação do Poder Judiciário no Brasil. No contexto da abertura política, as demandas e conflitos protagonizados por movimentos sociais tornaram-se uma importante referência na avaliação do funcionamento e da estrutura do sistema judicial brasileiro, sobretudo do Poder Judiciário. Um amplo espectro de movimentos sociais – envolvendo organizações de defesa dos direitos humanos, comunidades eclesiais de base, associações de moradores, movimentos urbanos que reivindicavam a oferta e melhoria dos serviços públicos, movimentos feministas e organizações negras – havia emergido no cenário político dos anos de 1970 e de 1980. Defendendo direitos humanos e sendo portadores de reivindicações por emprego, terra, habitação, saúde, transpor te, educação, esses movimentos contribuíram para o debate em torno da necessidade de mudanças legislativas e institucionais que garantissem novos direitos individuais e coletivos, sobretudo direitos para a população marginalizada e para as minorias (Doimo, 1995; Alvarez, 1997). O tema da democratização do Poder Judiciário foi incorporado à pauta de advogados, juízes, promotores, acadêmicos e militantes de organizações de assistência jurídica e comitês de direitos humanos. A ampliação do acesso das classes mais baixas à justiça, a racionalização e redução dos custos dos serviços judiciários, a simplificação e modificação do processo jurídico nas áreas cível, penal e trabalhista, a representação jurídica de causas coletivas e, finalmente, a mudança na formação e no papel do juiz e dos demais operadores jurídicos (advogados, promotores) foram questões exaustivamente discutidas por especialistas e por diversos grupos da sociedade civil organizada (Faria, 1992). Assim, Joaquim de Arruda Falcão dedica-se, no início dos anos de 1980, a analisar movimentos sociais que, na região metropolitana do Recife, reivindicam o direito à moradia junto às agências de um Estado autoritário e junto a um Poder Judiciário tradicionalmente habilitado a processar demandas individuais. Com base em estudos de casos, Falcão se propõe a discutir a relação
entre justiça legal e justiça social. Os movimentos de invasão de áreas públicas e áreas privadas no Recife, que resultam em negociações ou ações judiciais, acabam mostrando que o direito social à moradia acaba prevalecendo sobre o direito estrito de propriedade previsto no Código Civil da época e que tal correlação acaba sendo aceita por todas as partes envolvidas nos conflitos: proprietários, invasores, Executivo e Judiciário. Em termos substantivos e procedimentais, como aponta o autor, acaba prevalecendo uma “convivência contraditória” entre a ordem legal existente e normas e conceitos jurídicos não-legais produzidos ao longo dos processos de negociação e embate entre invasores e proprietários. Um impasse resulta daí, segundo Falcão: nem a ordem legal mostra força para impor sua concepção de direito de propriedade, nem a ordem informal consegue prevalecer sobre a lei. Falcão nota que este impasse é “politicamente instrumental”, na medida em que a lei, mesmo não se impondo exclusivamente, consegue permanecer dominante e na medida em que os invasores almejam ser reconhecidos pela ordem legal como legítimos beneficiários das moradias invadidas. Todas as partes do conflito teriam utilizado de forma instrumental a dualidade das ordens jurídicas envolvidas para que os conflitos fossem resolvidos de alguma forma (Falcão, 1984). Esta convivência contraditória entre elementos da ordem legal e elementos de uma ordem jurídica “outra”, forjada na relação entre os movimentos de invasão, as agências públicas e o Judiciário, vai ser o foco de análise do trabalho de Falcão (1984) e de Moura (1990). Ambos, discutindo o problema da existência de diferentes ordens jurídicas, usam como referência o conceito de pluralismo jurídico, elaborado por Boaventura de Sousa Santos (1988). Em Falcão, a existência de uma forma de normatividade não-oficial, ao lado do direito estatal, indica uma situação de pluralismo jurídico que pode ser explicada pela incapacidade da ordem legal oficial de absorver conflitos e demandas da sociedade – capacidade que seria um reflexo da crise de legitimidade que alcançava todo o Estado autoritário brasileiro. A solução seria a modificação dos procedimentos e concepções jurídicas de modo que o Poder Judiciário se tornasse um espaço de representação política legítimo, arbitrando de maneira mais “democrática” e “justa” os conflitos desta sociedade. No estudo realizado por Sousa Santos nos anos de 1970, o conceito de pluralismo jurídico salientava a coexistência de procedimentos estatais e nãoestatais de resolução de conflitos, mostrando que em “espaços sociais, mais ou menos segregados, se geram litígios ou disputas processados com base em recursos normativos e institucionais internos” (Sousa Santos, 1988, p.76). Sousa Santos mostra que a Associação de Moradores da favela do Jacarezinho funcionava como um fórum jurídico que ratificava as relações jurídicas (compras, arrendamento de imóveis e terrenos) existentes naquela comunidade – mesmo que ignoradas ou consideradas ilegais pelo direito oficial – e resolvia os litígios decorrentes destas relações. Em torno desta atividade, teria surgido uma prática e um discurso jurídicos que incorporavam seletivamente normas e elementos do direito oficial, chamado pelos moradores de “direito do asfalto”. Sem meios coercitivos para impor as suas decisões, o direito dos moradores da favela – o “direito de Pasárgada” – usava de maior carga retórica que o “direito do asfalto”. Este direito não-estatal subvertia a divisão do trabalho jurídico, aproximando o mediador, os participantes e a audiência e provocando
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
Os movimentos de invasão de áreas públicas e áreas privadas no Recife, que resultam em negociações ou ações judiciais, acabam mostrando que o direito social à moradia acaba prevalecendo sobre o direito estrito de propriedade previsto no Código Civil da época ...
Pasárgada. Nome fictício dado pelo
sociólogo e jurista Boaventura de Souza Santos a uma favela do Rio de Janeiro. O objetivo do estudo é investigar o pluralismo jurídico (oficial ou não) que pode existir num mesmo espaço geopolítico. ( www. dhnet.org.br/direitos/militantes/ boaventura/boaventura1d.html )
Cadernos de Formação
73
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
Os estudos de Boaventura de Sousa Santos e Joaquim de Arruda Falcão são exemplos de pesquisas realizadas por juristas debruçados sobre os problemas da coexistência de várias ordens jurídicas e do tratamento inadequado dos conflitos coletivos pelo Poder Judiciário.
74
Cadernos de Formação
a aceitação dos seus instrumentos e forma de resolução de litígios. Como enfatiza Junqueira, em que pese a preocupação do autor com a noção de pluralismo jurídico, ao demonstrar como os moradores utilizam elementos do direito oficial para construir seus próprios recursos normativos de resolução de conflitos, o influente estudo sobre o “direito de Pasárgada” mostra de maneira indireta a impossibilidade de acesso da comunidade do morro carioca às instituições oficiais da justiça (Junqueira, op.cit.). O problema da inacessibilidade de certos litígios e segmentos ao Poder Judiciário é enfocado de maneira diferente ainda por Falcão (1981). Espelhando-se nos conflitos protagonizados por movimentos de moradia e em casos de inadimplência envolvendo milhares de mutuários do Sistema Financeiro de Habitação, Falcão faz referência a conflitos de um “padrão emergente”, relacionados a partes desiguais e não-individualizadas, com graus diferentes de autonomia e ligadas por vínculos de subordinação. Estes conflitos envolviam grandes segmentos da população (comunidades de baixa renda, mutuários, trabalhadores) lutando contra grandes organizações públicas e privadas (órgãos governamentais, empresas). O diagnóstico de Falcão naquele momento era de que o “direito processual atual pulveriza o dano coletivo numa pluralidade de danos individuais” não demandáveis ou dificilmente demandáveis judicialmente (Falcão, 1981, p.11). Falcão alertava para o risco de que estes conflitos, não sendo absorvidos pelo Poder Judiciário, fossem resolvidos em arenas paralelas, informais e até ilegais, gerando mais violência e insegurança nas relações sociais. Os conflitos coletivos que surgiam e as falhas do Poder Judiciário em absorvê-los indicavam a necessidade de modificações profundas nesta instituição. Mais do que isto, tais modificações impunham-se como condição primordial para a democratização plena do Brasil. O alerta de que os conflitos de tipo novo seriam remetidos a arenas ilegais, caso não processados e legitimados pela estrutura judicial, é uma leitura que ainda hoje pode ser resgatada para denunciar os níveis de violência e erosão das relações sociais, associando-os com a inacessibilidade da justiça para a maioria da população. Os estudos de Boaventura de Sousa Santos e Joaquim de Arruda Falcão são exemplos de pesquisas realizadas por juristas debruçados sobre os problemas da coexistência de várias ordens jurídicas e do tratamento inadequado dos conflitos coletivos pelo Poder Judiciário. No mesmo contexto, entretanto, nos deparamos com cientistas sociais que, embora nem sempre preocupados com a questão da justiça strictu sensu, voltam a sua atenção para a violação dos direitos básicos pelo regime autoritário. O problema da violência urbana, agravado pela pobreza da população desassistida dos serviços públicos mais essenciais em regiões metropolitanas de grande concentração, constitui o pano de fundo de pesquisas que procuram denunciar as conseqüências danosas do regime militar. Neste aspecto, os casos de linchamento ocorridos no final dos anos de 1970 são tomados por Maria Victoria Benevides (1982) como uma das formas de violência a que eram submetidas as “classes subalternas” que habitavam as periferias das grandes metrópoles. Casos que chocaram jornalistas, sociólogos e classe média mostravam que os linchamentos não nasciam somente do impulso e da cólera da “turba”, constituída pelos transeuntes que presenciavam casos de roubo e furto e se transformavam em justiceiros, mas também eram praticados
por comunidades consideradas “pacatas e religiosas”. Benevides conclui, por meio da análise de alguns casos relatados na imprensa, que os linchamentos acabavam constituindo uma forma de auto-defesa da população exposta a níveis de violência cotidiana intoleráveis e desassistida dos serviços da polícia e da justiça – instituições desacreditadas e temidas. Situações de estupro e pequenos furtos que, desprezados pela polícia, geravam a revolta de vizinhos e comunidades que se armavam e se organizavam para “vingar” as vítimas e “limpar” as ruas do bairro, prevenido futuras investidas dos “marginais e bandidos”. Mais do que isso, situações que serviam como meio de denúncia de sociólogos e jornalistas a respeito da convivência da população com atos de atentado à vida praticados pelo Estado autoritário (torturas, mortes de prisioneiros políticos, repressão). Situações que também denunciavam a impossibilidade de exercício da cidadania pela população que, frente a frente com os mais violentos tipos de agressão e sem instituições para ampará-la, apoiavam a justiça “feita com as próprias mãos”. Por trás destas práticas, encontrava-se o descrédito da população na justiça e na polícia sintetizada na frase “Não acreditamos na polícia. Rico não vai para a cadeia” (Benevides, 1982, p.110). Os próprios “agentes da lei” reconheciam o tratamento desigual da justiça aos indivíduos em função da existência de leis antidemocráticas e das condições sócio-econômicas dos que caíam nas malhas das instituições judiciais. Ainda no ano de 1979, um juiz gaúcho profere uma sentença que pretende ser uma denúncia das práticas que tornavam-se rotineiras no aparato legal, mas que constituíam uma violação dos direitos básicos dos mais desfavorecidos. Arquivando um inquérito criminal que acusava um desempregado do crime de contravenção de vadiagem, o juiz Moacir Danilo Rodrigues afirmou em sentença: “O (cidadão x), com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais (…) O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho...” Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida.(…) Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. (...) (O acusado) Carrega sacos. Trabalha “em nome” de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema? Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de cana, num boliche da Voluntários às 22 horas e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de “cheques especiais”, é um
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
Os próprios agentes da lei reconheciam o tratamento desigual da justiça aos indivíduos em função da existência de leis antidemocráticas e das condições sócio-econômicas dos que caíam nas malhas das instituições judiciais.
Cadernos de Formação
75
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
... as práticas da polícia, nos casos de pequenos conflitos de natureza pessoal, impediam que os mesmos evoluíssem para delitos mais graves. Mas a função repressiva da polícia ficava mais nítida na mediação dos casos de natureza patrimonial, com uso menos intenso da retórica e mais intenso da violência ou ameaça de violência.
3
Atualmente, o estudo da violência urbana constitui, inclusive, um campo de estudos de considerável importância nas ciências sociais A literatura sobre o tema é ampla e, por isto, cito apenas alguns dos títulos mais conhecidos e recentes: Paixão, 1991; Adorno, 1993 e 1995; Mello, 1998; Zaluar, 1994, 1996 e 2001. 76
Cadernos de Formação
burguês. Este, se é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga a fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la) e fica preso.(...) A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o juiz não é. Por isso: Determino o arquivamento do processo deste inquérito. Porto Alegre, 27 de setembro de 1979. Moacir Danilo Rodrigues Juiz de Direito - 5ª Vara Criminal.” Voltando os olhos para a ação da polícia, vale mencionar uma pesquisa feita no Recife no início dos anos de 1980, que fornece uma imagem da polícia bem distinta daquela consagrada na literatura das ciências sociais, ou seja, de corporação violenta e “aparelho” de controle sobre as classes populares. Luciano Oliveira discute as práticas judiciárias da polícia do Recife na resolução de pequenos conflitos de natureza pessoal (difamações, calúnias, agressões) e patrimonial (furtos, pequenas dívidas) apresentados voluntariamente por pessoas de baixa renda. O autor observou que as práticas da polícia, nos casos de pequenos conflitos de natureza pessoal, impediam que os mesmos evoluíssem para delitos mais graves. Mas a função repressiva da polícia ficava mais nítida na mediação dos casos de natureza patrimonial, com uso menos intenso da retórica e mais intenso da violência ou ameaça de violência. Nos casos de natureza pessoal, a conclusão do autor é de que a polícia agia de acordo com a “expectativa da clientela”, resolvendo-os de maneira “rápida e informal”. Assim, a procura da polícia como instância de mediação de conflitos atesta para Oliveira que “para as classes populares e seus pequenos casos, o poder judiciário real sempre foi outro”, remetendo novamente ao problema do difícil acesso da maioria da população à justiça (1985, p. 93-94). Mas tais práticas parecem cada vez mais remotas diante do aumento da violência urbana, que difunde de forma perversa suas raízes pelas nossas cidades.3 Embora hoje não se possa apontar a existência de um Estado autoritário repressivo como agravante do fenômeno, uma vez que convivemos com a difusão dos direitos políticos mais elementares (direito ao voto, à participação e à associação política) e com o funcionamento de instituições políticas democráticas, a violência urbana está mais do que nunca relacionada ao não exercício da cidadania pelos segmentos mais desfavorecidos da população, vide as graves violações que diariamente presenciamos contra os direitos humanos de pobres, meninos de rua, mulheres, negros, presos, etc. Associada a problemas de ordem mais complexa nos dias que correm, como o crime organizado e o narcotráfico, a violência se volta com mais força contra aqueles mesmos segmentos pobres e discriminados da população que, apesar de viver sob um regime democrático e exercer o direito de voto, encontram-se alijados da proteção do Estado. Nas favelas e periferias, longe e mais do que nunca desconfiada das instituições da polícia e da justiça – às quais não possui estímulo ou recursos para acionar quando envolvida em conflitos cotidianos menos ou mais graves – a população se vê entre, de um lado, a repressão de uma polícia corrupta e violenta e, de outro, as normas autoritárias impostas pelos traficantes de drogas e criminosos. Na ausência
de punição legal a ladrões e estupradores, códigos autoritários de conduta são aplicados por quem detém a força, sem possibilidade de defesa ou discordância por parte daqueles que habitam o mesmo local e são obrigados a se submeter a mais um tipo de violação dos direitos humanos (Pandolfi, 1999; Junqueira e Rodrigues, 1994; Grynspan, 1999). Retomando o texto de Boaventura Sousa Santos, é possível dizer que a caracterização do “direito de Pasárgada” poderia dar lugar a uma crença no caráter libertário da auto-organização de uma comunidade discriminada que não tem acesso ao direito oficial – chamado por Sousa Santos de “direito capitalista”, que expropria e faz parte da lógica do capital e da dominação capitalista.4 O “direito de Pasárgada” representa, assim, um direito acessível, inteligível e aceito pela comunidade porque construído por ela. Podemos encontrar em alguns grupos e autores que utilizam o conceito de pluralismo jurídico uma leitura segundo a qual, dada a inserção das instituições da justiça dentro do aparato do Estado capitalista, o acesso à justiça passa pelas formas de auto-organização populares e autônomas – tema que vamos reencontrar logo adiante na discussão do “direito insurgente”. Porém, esta posição é vista como perigosa por representar uma “faca de dois gumes”. Se, de um lado, estas formas de auto-organização popular sinalizam para experiências participativas, democráticas, libertárias, de outro lado, elas podem significar a imposição de códigos violentos e autoritários presentes na cultura política hierárquica vivida pelos próprios setores populares. A realidade das favelas do Rio de Janeiro hoje e os indícios de que as associações não mais conseguem fazer frente, como expressão da vontade da comunidade, ao tráfico de drogas e à imposição de um código de terror aos moradores é um problema que serve de referência para aqueles que questionam as virtudes de todas as formas de “direito” produzidas e praticadas por grupos da sociedade (Oliveira apud Guanabara, 1996; Junqueira, 1992; Junqueira e Rodrigues, 1994). O estudo de Junqueira e Rodrigues (1994) fornece uma importante contribuição ao tema, ao analisar o papel da Associação de Moradores de uma favela na resolução de conflitos. Tomando como parâmetro a pesquisa realizada por Boaventura de Sousa Santos, os autores mostram que a Associação, na favela estudada, reduz o seu papel de árbitro aos conflitos de edificação e transferência de propriedade. O grupo local de traficantes constitui-se, na segunda metade dos anos de 1980, como locus de intermediação de conflitos relacionados à propriedade, integridade física e relações familiares, impondo meios coativos e violentos. Os moradores, excluídos pelas agências oficiais de resolução de conflitos, não gostam dos traficantes, mas são levados à situação de cumplicidade com a “lei do morro” que impõe a “ordem” – ordem, por sinal, benéfica à “boca de fumo” e sua atividade ilícita. O papel do tráfico demonstra, para os autores, a falência das agências oficiais em regular os conflitos e a dificuldade da Associação se constituir como instância de resolução de litígios, lançando mão do diálogo e do consenso numa “localidade onde os vínculos orgânicos se tornam cada vez mais tênues” (Junqueira e Rodrigues, 1994, p.139). Ao invés de participar de um espaço público comunitário, representado pela Associação, os moradores são obrigados a recolher-se à vida privada, pelo temor das “regras” impostas pelos traficantes.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
O papel do tráfico demonstra, para os autores, a falência das agências oficiais em regular os conflitos e a dificuldade da Associação se constituir como instância de resolução de litígios, lançando mão do diálogo e do consenso numa localidade onde os vínculos orgânicos se tornam cada vez mais tênues.
4
Boaventura de Sousa Santos escreve o texto na década de 1970 e utiliza como eixo teórico fundamentador uma teoria marxista do direito, derivada de uma teoria marxista do Estado. A partir deste eixo teórico, faz a leitura do material empírico, mas dialoga com a antropologia do direito e a lingüística, produzindo um texto rico que possibilita interpretações importantes até hoje. Com base nesta teoria marxista e espelhando-se nos trabalhos de antropologia jurídica, é proposta a comparação entre a microcena, a produção do “direito de Pasárgada”, e as características do direito estatal nas sociedades capitalistas.
Cadernos de Formação
77
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
... a violência urbana atual parece introduzir formas de recolhimento e privatização dos problemas, com a adoção de soluções localizadas e particulares, tirando os indivíduos da esfera pública quando eles são, paradoxalmente, portadores de direitos políticos e vivem numa democracia.
Os depoimentos foram retirados do “Relatório de Pesquisa Qualitativa/Programa de Melhoria em Áreas Metropolitanas Subnor mais” do Governo Federal, datado de fevereiro de 2001 e citado em reportagem do jornal Folha de São Paulo, 02 abr.2001, p.C-1.
5
78
Cadernos de Formação
Para os autores, este fenômeno atesta a importância da presença de instâncias formais com poder de coação que sejam vistas como legítimas pela população, pois que “a auto-regulagem da sociedade civil significa (...) a entrega das populações marginalizadas ao poder de fato da polícia e do crime organizado” (Junqueira e Rodrigues, op.cit., p. 140). O que mais preocupa, ao longo de quase vinte anos de democratização, é a permanência de um sentimento de descrédito e desconfiança da população em relação às instituições que têm a função de garantir-lhe segurança e justiça. Não há como dizer que a violência urbana atual deriva da institucionalização da violência por um regime autoritário, mas também não há como negar que a convivência da população com as práticas violentas das instituições encarregadas de protegê-la persiste e assume a face de um verdadeiro terror em comunidades pobres e na periferia das grandes metrópoles. Por outro lado, o surgimento de grupos ligados à criminalidade que exercem um domínio territorial nas periferias – desafiando ou corrompendo as instituições do Estado – constitui, no cenário atual, um poder paralelo que se utiliza da repressão e de métodos violentos. Assim, a violência urbana atual parece introduzir formas de recolhimento e “privatização” dos problemas, com a adoção de soluções localizadas e particulares, tirando os indivíduos da esfera pública quando eles são, paradoxalmente, portadores de direitos políticos e vivem numa “democracia”. A nova forma que a violência assume dificulta, quando não impossibilita, o exercício da participação dos que estão submetidos a ela. Se, no contexto do Estado autoritário, o crescimento da violência gera protestos contra as práticas violentas dos órgãos estatais e a exclusão política de todos, na década de 1990 as práticas de violação dos direitos dificultam a mobilização das comunidades que mais sofrem com elas. As comunidades temem a represália dos grupos que detêm o poder no âmbito local e temem, igualmente, as medidas institucionais, como as batidas policiais nas favelas que, além de não enfrentar o problema do tráfico, criam pânico nos moradores. Uma pesquisa encomendada pelo governo federal, por exemplo, colheu depoimentos de moradores em favelas de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador e concluiu o que as pesquisas acadêmicas já vêm apontando há muito: a polícia é mais odiada e temida do que o tráfico de drogas nestas comunidades. Um morador descreve indignado o ocorrido numa batida policial: “Meu filho de nove anos levou um tapa na cara (de policiais), eu vou fazer o quê? Eu só xinguei e quase me levaram preso, algemado. Mas por quê? Bateram no meu filho de nove anos, que saiu pra comprar um litro de leite.” (Morador de favela do Rio de Janeiro) A imagem que os moradores têm da polícia é a de uma força inimiga e violenta: “A polícia são as piores pessoas. Eles são os próprios ladrões. Eles são os próprios violentos.” (Moradora de favela em Salvador)5 Assim, a leitura de uma parte dos juristas e cientistas sociais é a de que, no vácuo das instituições de segurança e justiça, brotam formas violentas de fazer justiça sumária e recursos de poder são mobilizados por organizações legais e ilegais. Temos de novo como questão de fundo a inacessibilidade da
maioria da população às instâncias formais de resolução de conflitos. Uma pesquisa pioneira sobre vitimização realizada em domicílios do Rio de Janeiro, traz dados preocupantes sobre a violência urbana. Os entrevistados apontam familiares, vizinhos, policiais e fiscais públicos – além de criminosos – como os responsáveis por furtos, agressões físicas, roubos e extorsões. A probabilidade de alguém ser vítima de agressão praticada por familiar ou conhecido (19 em mil) é praticamente igual ao risco de ser vítima de agressão praticada por desconhecidos (17 em mil). A pesquisa ainda mostra que, de 100 vítimas de roubo, 80 não recorrem à polícia e 20 recorrem. Das 20 que recorrem, sete não registram boletim de ocorrência por enfrentar a recusa da polícia ou por ser convencida do contrário pela força policial. Das 13 pessoas que registram o BO, nada acontece em oito casos e há algum resultado (não necessariamente a sua resolução) em cinco casos, ou seja, em 25% das ocorrências encaminhadas . A grande maioria que não recorre à polícia alega não acreditar ou ter medo (42%), não considerar importante registrar o ocorrido (18%), não ter provas (13%) e outras razões. Analisando outros dados da pesquisa e detectando uma seletividade sócio-econômica, de gênero, idade e cor no atendimento policial, Leandro Piquet Carneiro conclui: “(...) no Rio de Janeiro, a polícia atende mal ao público em geral e particularmente mal ao público que reúne certas características.” (Carneiro, 1999,p.178). Os textos de Dulce Pandolfi (1999) e Mário Grynspan (1999) ratificam o diagnóstico acima, ao discutir dados sobre a percepção dos moradores do Rio de Janeiro a respeito dos direitos e instituições da polícia e da justiça. Pandolfi mostra que os entrevistados dão importância maior aos direitos sociais, em detrimento dos direitos políticos e civis, percebendo-os, ao mesmo tempo, como privilégios ou favores. A autora conclui que as instituições são vistas como “mero instrumento de controle do Estado ou de manipulação do poder e não como garantia de liberdade ou acesso aos direitos da cidadania” (Pandolfi, 1999, p.58). Grynspan argumenta, por outro lado, que a simples “abertura institucional” da justiça não gera um aumento automático da demanda, sendo preciso que a população reconheça as instituições da justiça como legítimas. Entretanto, os dados apresentados pelo autor mostram que a população pesquisada questiona a parcialidade e a eficiência da justiça (incluindo a polícia), percebida pelos entrevistados como “instituição hostil, iníqua e ineficiente” – tanto por aqueles que nunca tiveram acesso à mesma, como por aqueles que a ela já recorreram (Grynspan, 1999, p.106). Neste sentido, pode ser lido o alerta de Sérgio Adorno ao mostrar a discriminação praticada pela justiça penal no julgamento de crimes contra a vida. Na aplicação de sanções pelo tribunal do júri, a vida privada aflora como a esfera cujo comportamento guia a interpretação dos operadores da justiça sobre direitos e deveres públicos consagrados na legislação, tornandose o terreno subjetivo onde podem manifestar-se os preconceitos. Donde a grande probabilidade de que homossexuais e mulheres adúlteras, por exemplo, sejam tratados com maior desconfiança do que outros réus ou vítimas por fugirem ao padrão da “moralidade” vigente. Adorno salienta, assim, que a racionalização da justiça (aperfeiçoamento das leis, celeridade, treinamento
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
... abertura institucional da justiça não gera um aumento automático da demanda, sendo preciso que a população reconheça as instituições da justiça como legítimas.
Cadernos de Formação
79
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
... a redefinição de conceitos como democracia e cidadania, nas últimas décadas, apontaria para um questionamento da cultura autoritária por meio da redefinição das noções de direitos, espaço público e privado, ética, igualdade, diferença, entre outras.
80
Cadernos de Formação
dos quadros) não é capaz de assegurar o “tratamento igualitário” e de democratizar o acesso das classes populares, pois que o problema reside na dificuldade de traduzir “diferenças e desigualdades em direitos (…)”(Adorno, 1994, p.149). Poderiam ser citados outros textos que levantam, diretamente ou indiretamente, a pergunta: por que a consolidação de instituições políticas democráticas no Brasil não foi capaz de estender à imensa maioria da população o exercício dos direitos civis? No início da transição dos regimes autoritários para os regimes democráticos na América Latina e no Brasil, cientistas políticos como Guillermo O’Donnell acentuaram a importância das instituições representativas (eleições, Legislativo, direito ao voto) para a consolidação da democracia, utilizando o conceito de poliarquia – entendida como a existência de condições elementares para o funcionamento de uma democracia política, como liberdade dos cidadãos em formular preferências, expressá-las, apresentá-las ao governo em condições de igualdade com outros cidadãos (O’Donnell, 1988). Mas a existência de uma democracia política sem a contrapartida social leva o próprio O’Donnell a rever os textos escritos nos anos de 1980, reconhecendo os limites das poliarquias instituídas no continente e no país. Em texto mais recente, O’Donnell (1998) chama a atenção para as fragilidades da democracia na América Latina, especialmente no que tange à violação de direitos civis e humanos, considerados fundamentais ao enraizamento da democracia em outras esferas que não a política. Não se pode dizer que nada mudou. Uma série de autores dedica-se a discutir o enraizamento da democracia nas práticas sociais, tendo como pano de fundo as correlações entre cultura e política (Telles, 1994; Dagnino, 1994; Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998).Vera da Silva Telles argumenta que direitos não se resumem a garantias legais e institucionais, mas referem-se a formas de sociabilidade que implicam o reconhecimento do outro como “sujeito de interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas.” (Telles, 1994, p.91-92). Evelina Dagnino mostra como uma “nova noção” de cidadania nasce da prática dos movimentos sociais. Tal “noção” de cidadania não poderia ser lida apenas no plano institucional, mas deveria ser entendida no plano da cultura política, na medida em que procura criar relações mais horizontais entre grupos e pessoas e enfrenta a forte hierarquia social estabelecida entre diferentes grupos sociais – entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, entre brancos e negros (Dagnino, 1994). Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar enfatizam que os movimentos sociais são uma arena crucial para se entender a conexão entre cultura e política porque mostram conflitos entre portadores de diferentes significados e práticas. Cultura remete à política na medida em que, para os autores, sentidos e significados elaborados nas práticas sociais fazem parte de processos que procuram redefinir o poder social. Desta forma, a redefinição de conceitos como democracia e cidadania, nas últimas décadas, apontaria para um questionamento da cultura autoritária por meio da redefinição das noções de direitos, espaço público e privado, ética, igualdade, diferença, entre outras (Alvarez, Dagnino e Escobar, 1998). Ao mesmo tempo, a tradição liberal individualista do ordenamento jurídico brasileiro que subjaz ao enorme e histórico distanciamento entre
instituições da justiça e população leva, então, a reações de grupos e profissionais do direito. Duas das mais conhecidas críticas à tradição formalista do direito brasileiro encontram-se, segundo as definições empregadas por Ricardo Guanabara (1996), nas correntes do “uso alternativo do direito” e do “direito alternativo” - ou direito “achado na rua”, “direito insurgente”, “direito dos oprimidos”. De um lado, a proposta da corrente do “uso alternativo do direito” de utilizar a ordem legal existente em prol de transformações sociais, a partir da prática dos tribunais e em busca de um direito mais “substantivo” e menos legalista. De outro, a aposta da corrente do “direito alternativo” numa cultura jurídica renovada e não-oficial, que surja das experiências dos grupos e movimentos sociais. Até que ponto estas visões levam a soluções e a práticas capazes de enfrentar o problema do acesso à justiça de milhares e milhares de brasileiros? A primeira corrente aposta na reforma das instituições existentes, em termos de concepções, procedimentos e práticas jurídicas, buscando incluir os segmentos marginalizados como clientela da justiça e ampliar a cidadania por meio da arbitragem de conflitos individuais e coletivos. A segunda corrente está comprometida com a criação de um novo direito que questione valores dominantes e reconheça movimentos e práticas sociais como fonte de um vigoroso pluralismo jurídico, considerado mais legítimo que o direito oficial. Ao negar todo o ordenamento jurídico existente, inclusive leis, direitos e garantias conquistados no processo de transição para a democracia, a última corrente é alvo de muitas críticas. Alguns autores acusam-na de acabar colocando no mesmo patamar formas alternativas de resolução de litígios produzidas no interior de movimentos democráticos e formas arbitrárias de resolução de conflitos que se voltam contra as próprias classes populares – como a “lei do morro ou dos traficantes” (Oliveira apud Guanabara, 1996; Junqueira, 1992). A corrente do “uso alternativo do direito” conta com a simpatia de grupos que, situados dentro e de fora do sistema judicial, incluindo intelectuais, crêem na importância das instituições da justiça para o fortalecimento da democracia e apostam no caminho da reforma por acreditar que “os impulsos democratizantes mais promissores devem vir de demandas em favor da ampliação da cidadania civil” (O’Donnell, 1998, p.55). Tão importante quanto o atendimento de demandas coletivas – apregoam – é o acesso do cidadão à resolução efetiva dos conflitos nos quais está envolvido (Werneck Vianna et alii, 1999). O Judiciário seria uma instância fundamental para o fortalecimento da nossa cultura cívica, que poderia ser tomada, segundo a definição de Wanderley Guilherme dos Santos, como o conjunto de expectativas dos indivíduos em relação aos poderes públicos, à sociedade e aos direitos e deveres de cada um (Santos, 1993). Neste sentido, José Murilo de Carvalho nos dá uma importante contribuição ao analisar o desenvolvimento da cidadania no Brasil, mostrando como o caminho clássico percorrido pelas democracias liberais européias foi invertido no país. Aqui, os direitos políticos e sociais tiveram atenção maior dos governos – com todas as nuances que as nossas particularidades lhes conferem – do que os direitos civis, donde a fragilidade da nossa democracia (Carvalho,1993). Desta maneira, a justiça é defendida como instituição fundamental para refazer a crença nas instituições republicanas e democráticas. Donde a grande preocupação com iniciativas e expe-
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
O Judiciário seria uma instância fundamental para o fortalecimento da nossa cultura cívica, que poderia ser tomada, segundo a definição de Wanderley Guilherme dos Santos, como o conjunto de expectativas dos indivíduos em relação aos poderes públicos, à sociedade e aos direitos e deveres de cada um.
Cadernos de Formação
81
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
... os conciliadores tendem a imitar o juiz nos aspectos formais (jeito de se portar, de se vestir), ignorando que fazem parte de uma filosofia jurídica informal e comprometendo, de alguma forma, o papel que deveriam desempenhar.
82
Cadernos de Formação
riências, incluindo a instituição dos Juizados de Pequenas Causas, que procuram ampliar o acesso da população à justiça (Campilongo, 1991; Carvalho, op.cit.; Werneck Vianna et alii, op.cit.; Grynspan, 1999; Junqueira e Rodrigues, 1994). Entretanto, o olhar sobre as iniciativas visando à democratização do acesso ao Poder Judiciário traz à tona a complexidade das reformas institucionais a serem feitas. Pesquisas sobre os Juizados Especiais atestam a inexistência de uma política clara para o perfil e treinamento de conciliadores, aos quais é atribuído um papel fundamental na mediação dos conflitos, na busca de acordos entre as partes e de encaminhamentos rápidos aos demandantes. Geralmente, não se exige diploma dos conciliadores, mas eles tendem a se considerar desprestigiados pelas partes em litígio e inferiorizados na presença de advogados quando não possuem o curso superior de direito, o que comprometeria seu papel na mediação dos conflitos. Estabelecem um difícil convívio com advogados por identificarem que estes utilizam a lógica da justiça formal, que ensina a litigar e a seguir o “jogo de soma zero”, e que iria contra a lógica da justiça informal, uma justiça regida pela busca do consenso e do acordo (Faisting, 1999). Outras pesquisas concluem que os conciliadores tendem a imitar o juiz nos aspectos formais (jeito de se portar, de se vestir), ignorando que fazem parte de uma “filosofia jurídica” informal e comprometendo, de alguma forma, o papel que deveriam desempenhar (Leite, 1999; Werneck Vianna et alii, 1999). Vários autores, embora ressaltando problemas na rotina dos Juizados, vêem a conciliação de forma positiva (D’Araújo, 1996; Werneck Vianna et alii, 1999; Faisting, 1999). Entretanto, Ângela Moreira Leite sustenta que, nos Juizados Especiais de Niterói, a conciliação não estaria funcionando como uma nova forma de distribuir justiça e de possibilitar a construção de um “consenso legítimo”. A autora constatou que, muitas vezes, o conciliador conduz a audiência de forma coercitiva, usando argumentos como a lentidão do processo para obter um acordo que não representaria, assim, a vontade das partes envolvidas e a eliminação do conflito (Leite, op.cit.). Em meio a este debate, nos deparamos com a Constituição de 1988 e com reformas extraordinárias no estatuto e nas atribuições do Poder Judiciário e do Ministério Público, conferindo a estas instituições um lugar primordial no processo de expansão do papel das instituições judiciais – fenômeno que vem sendo tratado pela literatura internacional como processo de “judicialização da política” ou de “politização da justiça” (Sousa Santos et alii , 1996; Tate e Vallinder, 1995; Garapon, 1998). O Poder Judiciário é chamado a mediar conflitos entre Executivo e Legislativo, a partir de novos instrumentos como as ações diretas de inconstitucionalidade, sendo acionado por partidos políticos, associações empresariais e sindicais, governadores e instituições da justiça (Sadek e Arantes, 1994; Faria, 1996; Werneck Vianna et alii , 1999). O Ministério Público, por sua vez, incorpora o papel de defensor da sociedade e dos interesses difusos e coletivos, colocando demandas novas e polêmicas para o Poder Judiciário. Tais demandas, relativas a violações de direitos sociais e coletivos, não-oferta de serviços públicos, omissão e prevaricação dos administradores públicos, levam ao questionamento da legitimidade dos promotores, procuradores de justiça e procuradores da República
como “guardiães” dos interesses dos grupos da sociedade, bem como à reação irada de autoridades públicas que se vêem na condição de réus em processos de improbidade administrativa com repercussões políticas significativas em alguns casos (Sadek, 1997; Arantes, 2000; Silva, 2001a; Silva, 2001b). Ao mesmo tempo, discute-se a necessidade de uma reforma judiciária cujo teor e pauta são objeto de disputa e polêmica nos bastidores políticos e jurídicos: fazer do Judiciário uma instância eficaz para dirimir conflitos entre os agentes econômicos e garantir o crescimento econômico? Fazer do Judiciário uma instituição garante dos direitos substantivos do cidadão, decidindo inclusive contra legem? Qual o papel do juiz: agente técnico e neutro inserido numa estrutura racional e eficiente ou agente político chamado a participar do debate sobre questões constitucionais? (Koerner, 1999). Quanto à atuação dos promotores de justiça (nível estadual) e procuradores da República (nível federal), pergunta-se como estes operadores do direito podem promover os interesses sociais a partir dos anseios e reivindicações da própria sociedade, respeitando os limites orçamentários e concretos dos administradores públicos? (Machado e Goulart, 1992; Arantes, 2000; Silva, 2001a). Como se vê, a exclusão social que tem como contrapartida o não funcionamento ou a ausência do poder público para um contigente enorme de brasileiros – como analisa Wanderley Guilherme dos Santos (1993) por meio de seus conceitos de “hobbesianismo social” e “híbrido institucional brasileiro” – nos coloca numa situação ímpar. Todas as três “ondas” citadas por Cappelletti – acesso à justiça para os segmentos empobrecidos, defesa dos interesses coletivos e difusos e reformas mais “finas” do sistema de justiça – se misturam, levando a um contexto em que diversos tipos de proposta com objetivos distintos, mas interligados, concorrem entre si e dificultam diagnósticos mais precisos e ações mais efetivas. Como questão que perpassa todo o roteiro sugerido acima, encontrase a difícil relação entre as esferas política e jurídica. Se o Poder Judiciário, como um dos três poderes da clássica divisão do poder soberano no regime democrático-liberal, sempre foi um poder político, a emitir soluções políticas e intervir como árbitro nas disputas entre Executivo e Legislativo, hoje as fronteiras do “político” e do “jurídico” parecem se refazer. Na medida em que, no mundo todo, as transformações da democracia apontam para uma corrosão da legitimidade e eficácia dos poderes Executivo e Legislativo, a esfera “jurídica” (representada não só por juízes, mas, no caso do Brasil, por promotores de justiça também) parece convocada a um papel mais abrangente, compartilhando decisões sobre políticas públicas e uso dos recursos administrados pelos governantes em contextos de escassez e disputa (Sousa Santos et alii , 1996; Garapon, 1998; Koerner, 1999). De todo o caminho percorrido até aqui, é possível dizer que a ampliação do acesso à justiça para a maioria da população é um dos desafios da democracia no Brasil e um problema que não será solucionado tão somente com a multiplicação de equipamentos para prestação de serviços judiciários e aumento do número de funcionários e operadores do direito. Embora isto seja necessário, as pesquisas realizadas desde os anos de 1980 mostram que o acesso à justiça passa por mudanças nas concepções, procedimentos e ritos do sistema judicial e nas práticas dos operadores do direito, mudanças que estão ligadas
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
Todas as três ondas citadas por Cappelletti acesso à justiça para os segmentos empobrecidos, defesa dos interesses coletivos e difusos e reformas mais finas do sistema de justiça se misturam, levando a um contexto em que diversos tipos de proposta com objetivos distintos, mas interligados, concorrem entre si e dificultam diagnósticos mais precisos e ações mais efetivas.
Cadernos de Formação
83
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
a práticas profundamente enraizadas na sociedade brasileira.
ATIVIDADES
Com base nas informações contidas nos textos de Cátia Silva e de Amartya Sen, elabore descrição identificando a possibilidade, sempre recorrente, de estarmos expostos a situações de injustiça. 1) Produza um texto de 5 a 10 linhas narrando experiência vivida por você e/ou seus familiares e/ou conhecidos, que experimentaram situações de exclusão social. Classifique os casos segundo os critérios: a) motivação econômica – falta de recursos, b) motivação política – submissão a um poder maior, ou c) injustiça – ausência de tratamento eqüitativo e igualitário. 2) Nesses pequenos e breves textos, sublinhe seus argumentos principais – causas principais de ter se sentido excluído – e, com os (as) outros (as) colegas e a ajuda do professor (a), reuna as principais evidências de exclusão ou humilhação apontadas no quadro abaixo. 3) A seguir, em conjunto com seus (suas) colegas, assinale, para cada tipo de humilhação, de uma a seis manifestações possíveis, classificando-as como violência física (aquela que recorre diretamente ao emprego da força) ou simbólica (aquela que fere o senso de justiça e intimida moralmente as pessoas). O aluno poderá recorrer ao texto da página 105 do Caderno de Filosofia da Educação para diferenciar esses tipos de violência. 4) As quatro formas de exclusão antes mencionadas podem ocorrer nos ambientes familiar, institucional ou social. As causas deverão ser contabilizadas sempre que aparecerem, independentemente de ocorrerem mais de uma vez. 5) Após o preenchimento dos quadros com as classificações das formas de violência simbólica ou física nas colunas, a classe, mais uma vez com a ajuda do professor, contará as incidências de violências físicas e simbólicas verificadas e indicará o quanto elas são recorrentes, totalizando a coluna final e a linha final da tabela. 6) O quadro final da classe será enviado ao coordenador do Caderno Ética e Cidadania. 7) Depois da conclusão do quadro, cada aluno descreverá situações vivenciadas em sala de aula, citando pelo menos duas que também aparecem nos textos inicialmente elaborados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, S. F. “A criminalidade urbana violenta no Brasil: um recorte temático”. BIB , Rio de Janeiro, 35, 1° sem.1993. _______. “Crime, justiça penal e desigualdade jurídica: as mortes que se contam no Tribunal do Júri.” Revista USP . São Paulo, 21: 132-151, mar/mai.1994. ALVAREZ, S.E. “Reweaving the fabric of collective action”, in: FOX, R., STARN, O. (eds.). Between resistance and revolution: cultural politics and social protest . New Brunswick: Rutgers 84
Cadernos de Formação
University Press, 1997. ALVAREZ, S.E., DAGNINO, E., ESCOBAR, A. “Introduction: the cultural and the political in Latin American Social Movements”, in: ALVAREZ, S., DAGNINO, E., ESCOBAR, A. (eds.). Cultures of Politics, Politics of Cultures . Boulder: Westview Press, 1998. ARANTES, Rogério B. Ministério Público e política no Brasil . SP, Tese de doutoramento, FFLCH/USP, 2000. BENEVIDES, Maria Victoria. “Linchamentos: violência e ‘justiça’ popular”. In: DA MATTA, Roberto et alii (orgs). Violência brasileira . São Paulo, Brasiliense, 1982. CAMPILONGO, Celso Fernandes. “Acesso à justiça e formas alternativas de resolução de conflitos: serviços legais em São Bernardo do Campo”. Revista Forense . Rio de Janeiro, 315: 3-17, jul./set.1991. CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant (eds). Access to the justice . Milan/Alphenaandernrijn, 1978. CARNEIRO, Leandro Piquet. “Para medir a violência”. In: PANDOLFI, Dulce Chaves. Cidadania, justiça e violência . RJ: Ed. Fund. Getúlio Vargas, 1999. CARVALHO, José Murilo de. A construção da cidadania no Brasil . México, Fundo de Cultura Econômica, 1993. COUTO, S.A.F.do. Acesso ao Judiciário: o conciliador nos Juizados Especiais no Brasil . SP: Monografia de conclusão de curso, Escola de Sociologia e Política, 2000. DAGNINO, Evelina. “Os movimentos sociais e a emergência de uma nova cidadania”. In: DAGNINO, Evelina (org.) Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994. D’ARAUJO, M.C. “Juizados Especiais de pequenas causas: notas sobre a experiência no Rio de Janeiro”. Estudos Históricos , 1996. DOIMO, Ana M. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro, ANPOCS/Relume Dumará, 1995. FAISTING, A.L. “O dilema da dupla institucionalização do Poder Judiciário: o caso do Juizado Especial de Pequenas Causas”. In: SADEK, M.T. (org.) O sistema de justiça . SP: Idesp/Fund.Ford, 1999. FALCÃO, Joaquim de Arruda. “Justiça social e justiça legal: conflitos de propriedade no Recife”. In: FALCÃO, Joaquim de Arruda (org). Conflito de direito de propriedade: invasões urbanas . Rio de Janeiro, Forense, 1984. FALCÃO, Joaquim. “Cultura jurídica e democracia: a favor da democratização do Judiciário”. In: LAMOUNIER, Bolívar et alii (org.). Direito, cidadania e participação. São Paulo, TAO, 1981. FARIA, José E. Justiça e conflito . São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992. _______. “A crise do Poder Judiciário no Brasil”. Justiça e Democracia . São Paulo, 1:18-64, 1996. GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia . Lisboa, Instituto Piaget, 1998. Folha de São Paulo. Para favela, polícia assusta mais que tráfico . 02 abr.2001, p.C-1. GRYNSPAN, Mário. “Acesso e recurso à justiça no Brasil: algumas questões”. In: PANDOLFI, Dulce Chaves et alii (orgs). Cidadania, justiça e violência . Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999. GUANABARA, Ricardo. “Visões alternativas do Direito no Brasil”. Estudos Históricos . Rio de Janeiro, (9)18: 403-416, 1996. JUNQUEIRA, Eliane Botelho. “O alternativo regado a vinho e a cachaça”. In: ARRUDA JR., Edmundo Lima (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, vol. 2. _______. “Acesso à justiça: um olhar retrospectivo”. Estudos Históricos . Rio de Janeiro, 1996. JUNQUEIRA, Eliane & RODRIGUES, José Augusto de Souza. “A volta do parafuso: cidadania e violência”. In: SANTOS JÚNIOR, Belisário et alii. (org.). Direitos humanos: um debate necessário. São Paulo, Brasiliense/IIDH, 1994.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
Cadernos de Formação
85
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
KOERNER, Andrei. “O debate sobre a reforma judiciária”. Novos Estudos Cebrap, 54: 1126, jul.1999. LEITE, A.M.M. Em tempo de conciliação. Niterói, Dissertação de mestrado UFF, 1999. MACHADO, Antônio A. & GOULART, Marcelo P. Ministério Público e direito alternativo. São Paulo, Acadêmica, 1992. Mello Jorge, M.H. (1988), “Como morrem nossos jovens”. In: Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas , Brasília, CNPD. MOURA, Alexandrina Sobreira de. Terra do mangue: invasões urbanas no Recife . Recife, Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 1990. O’DONNELL, Guillermo. “Transições, continuidades e alguns paradoxos”. In: O’DONNELL, Guillermo & REIS, Fábio Wanderley (orgs.). A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas . São Paulo, Vértice, 1988. pp.41-90. _______. “Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América Latina. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, 51: 37-61, jul.1998. OLIVEIRA, Luciano. “Polícia e classes populares”. Caderno Est. Sociais . Recife, 1(1): 85-94, jan./jun.1985. OLIVEIRA, Luciano. Ilegalidade e direito alternativo: notas para evitar alguns equívocos . Recife, mimeo, 1993. Paixão, A.L. “Segurança privada, direitos humanos e democracia”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, 31, 1991. PANDOLFI, Dulce Chaves. “Percepção dos direitos e participação social”. In: PANDOLFI, Dulce Chaves et alii (orgs). Cidadania, justiça e violência . Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999. SADEK, Maria T. (org.) O Ministério Público e a justiça no Brasil . São Paulo: IDESP/Sumaré, 1997. SADEK, Maria Teresa & ARANTES, Rogério B. “A crise do Judiciário e a visão dos juízes”. Revista da USP. São Paulo, 21: 46-57, mar-maio 1994. SOUSA SANTOS, B. de. O discurso e o poder : ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988. SOUSA SANTOS, B. et alii . “Os tribunais nas sociedades contemporâneas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais . São Paulo, (11)30: 29-61, 1996. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “Fronteiras do Estado mínimo: indicações sobre o híbrido institucional brasileiro”. In: Razões da desordem. Rio de Janeiro, Rocco, 1993. SILVA, Cátia A.P. Justiça em jogo: novas facetas da atuação dos promotores de justiça. São Paulo, Edusp, 2001a. _______. “Promotores de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, 45: 127-144, fev. 2001b. TATE, C. Neal, VALLINDER. The expansion of judicial power . New York: N.Y. Univ. Press, 1995. TELLES, Vera da Silva. “Sociedade civil e construção de espaços públicos”. In: DAGNINO, Evelina (org.) Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994. WERNECK VIANNA, Luiz et alii . Corpo e alma da magistratura brasileira . Rio de Janeiro: Revan, 1997. WERNECK VIANNA, Luiz et alii . A judicialização da política e das relações sociais no Brasil . Rio de Janeiro, Revam, 1999. Zaluar, A. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro, Ed.da UFRJ/Revan, 1994. _______. “A violência na sociedade brasileira: um painel inconcluso em uma democracia não consolidada”. Sociedade e Estado . Brasília, 10:2, jul.-dez. 1995. _______. Da revolta ao crime S.A. São Paulo, Moderna, 1996. _______. “Violência extra e intramuros”. Revista Brasileira de Ciências Sociais ,. São Paulo, 45, fev.2001.
86
Cadernos de Formação
Mapa das experiências de exclusão da classe Motivação tipo:
C a u s a s :
CADERNOS DE FORMAÇÃO
descrever tipo: Exclusão/ humilhação
Violência física
Violência Simbólica
Econômica
Total Físico
Total Simbólico
ÉTICA E CIDADANIA ACESSO À JUSTICA: UMA LEITURA DOS...
Política
Injustiça
Eco- Polínômica tica
Injustiça
Física total
Simbólica total
Totais
Cadernos de Formação
87
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
88
Cadernos de Formação
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA: RELAÇÕES PARADOXAIS1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Teresa Pires do Rio Caldeira 2
ÉTICA E CIDADANIA
“Eu queria que existisse ainda o Esquadrão da Morte. O Esquadrão da Morte é a polícia que só mata; o Esquadrão da Morte é a justiça com as próprias mãos. Eu acho que podia existir isso ainda. Tem que fazer justiça com as próprias mãos, mas os próprios delegados fazer, as próprias autoridades, não a gente. Por que que a gente vai pegar o cara e matar? Por que que a gente paga imposto? Pra isso, pra ser vigiado, pra ter melhores condições, corno é que chama?. materiais. Não adianta a gente linchar, o direito tinha que ser deles, o dever é deles, que a gente paga imposto pra isso... A lei tem que ser essa: matou, morreu” Auxiliar de escritório, 18 anos, morador da periferia de São Paulo
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA...
PÁGINAS 89 A 94
“A Constituição de 1988 trouxe consigo um novo conceito, que se fez forte em nossa sociedade: o de cidadania. As pessoas se tornaram mais conscientes de seus direitos, ficaram mais exigentes em relação às instituições, sendo tal fato um convite aos desejosos de bem servir, para uma revisão de postura. A Polícia Militar, em consonância com sua tradição histórica, viu-se movida ao desafio de servir, atendendo ao novo requisito social. A questão não era apenas disponibilizar mais serviços, e sim uma questão de atitude... Com a nova ordem estabelecida, foi preciso mais do que posicionar-se no lugar dos clientes e idealizar produtos. Era preciso ouvi-los, trazê-los para o interior dos quartéis para torná-los parceiros, e assim, obter com clareza o que eles desejavam de nossos produtos... Era preciso uma transformação de um modelo burocrático de gestão, para um novo modelo, o gerencial, que chegou à Polícia Militar do Estado de São Paulo, por meio de um Programa de Qualidade, visando a uma aproximação da população, com a melhoria dos serviços prestados à população.” Site da Polícia Militar do Estado de São Paulo “11. Primeiro Comando da Capital - PCC, fundado no ano de 1993, numa luta descomunal e incansável contra a opressão e as injustiças no campo de concentração anexo à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, tem como lemas absolutos: a liberdade, a justiça e a paz. 13. Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre, semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992, onde [sic] 111 presos foram assassinados, massacre que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos sacudir o sistema e fazer essas autoridades mudarem a prática carcerária, desumana, cheia de injustiça, opressão, tortura e massacres nas prisões. 7. Aquele que estiver em liberdade e bem estruturado, mas esquecer de contribuir com os irmãos que estão na cadeia, será condenado à morte sem perdão. 16... Em coligação com o Comando Vermelho - CV, iremos revolucionar o País dentro das prisões e o nosso braço armado será o terror dos poderosos, opressores e tiranos que usam o anexo de Taubaté e o Bangu I, do Rio de Janeiro, como instrumentos de vingança da sociedade e fabricação de monstros.” O Estatuto do PCC
A crescente violência urbana é seguramente um dos problemas mais intratáveis do Brasil contemporâneo. É também um dos maiores desafios para a democratização efetiva da sociedade. Paradoxalmente, nos últimos vinte anos, tanto a violência urbana como a democracia se enraizaram no Brasil
paradoxo (cs). [Do gr. parádoxon,
pelo lat. paradoxon.] S. m. 1. Conceito que é ou parece contrário ao comum; contra-senso, absurdo, disparate (...) 2. Contradição, pelo menos na aparência: A obsessão da velocidade e o congestionamento do trânsito são um dos paradoxos da vida moderna. 3. Figura (15) em que uma afirmação aparentemente contraditória é, no entanto, verdadeira. 4. Filos. Afirmação que vai de encontro a sistemas ou pressupostos que se impuseram, como incontestáveis ao pensamento. (Aurélio Eletrônico)
1
Fonte: Revista Ciência e Cultura , SBPC, ano 54, n.1, julho-agostosetembro de 2002 (www.sbpcnet. org.br).
2
Teresa Caldeira é professora do Departamento de Antropologia, University of California, Irvine e pesquisadora visitante do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
Cadernos de Formação
89
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA...
... violência e democracia expandiram-se de maneira interligada, complexa, paradoxal e, às vezes, simplesmente surpreendente.
90
Cadernos de Formação
sem que uma tenha conseguido ser um freio para a outra. Ao contrário do que se poderia desejar, a democratização não afetou profundamente vários setores da sociedade. As instituições da ordem – a polícia, o sistema judiciário – têm sido sistematicamente incapazes de garantir à população segurança pública e padrões mínimos de justiça e respeito a direitos. Mas, também ao contrário do que se poderia imaginar, a crescente criminalidade violenta não foi capaz de impedir a consolidação democrática e a legitimação do imaginário de cidadania e direitos que lhe é inerente. Assim, violência e democracia expandiram-se de maneira interligada, complexa, paradoxal e, às vezes, simplesmente surpreendente. Esse padrão de interligação e provocação recíprocas poderia ser analisado de várias maneiras. Uma delas é através da problemática dos direitos. Nos últimos vinte anos, e especialmente na última década, um imaginário de cidadania e direitos consolidou-se na sociedade brasileira e passou a ser uma linguagem comum aos mais distintos grupos sociais e espaços de sociabilidade, servindo de referência a práticas distintas. Os direitos extrapolaram a esfera trabalhista, na qual sempre haviam sido legitimados e eram praticados de forma regulada 1, e, através dos movimentos sociais encontraram nas condições precárias das periferias urbanas outro campo de referenciamento – direito à cidade e à sua ordem legal, direito a asfalto e água, a iluminação e telefonia. Durante os trabalhos da Assembléia Constituinte, as noções de direitos e cidadania estenderam-se ainda mais. A Constituição de 1988 instituiu a nova longa lista de direitos que os movimentos sociais urbanos e os de minorias ajudaram a expandir por meio da apresentação de emendas populares. Esta lista incluiu do direito reprodutivo e licença paternidade ao direito ao usucapião urbano. As novas concepções substanciaram novas práticas: brasileiros e brasileiras aprenderam a invocar seus direitos tanto nas filas de bancos e serviços públicos quanto nos tribunais em que reivindicam seu direito à propriedade urbana e nos serviços em que afirmam seus direitos de consumidores. Mesmo os mais polêmicos aspectos desse repertório, como a defesa de direitos humanos, está hoje bem mais legitimada do que há vinte anos, quando a sua associação à crescente criminalidade violenta fez que direitos humanos fossem equacionados a ‘privilégios de bandido’. De fato, a problemática dos direitos humanos acaba sendo emblemática dos inúmeros paradoxos gerados pelo imbricamento de criminalidade e afirmação de direitos, de violência e democracia. No contexto de transição democrática de meados dos anos 80, o movimento de direitos humanos originário da reivindicação por anistia aos prisioneiros políticos articulou pela primeira vez a defesa dos direitos humanos dos prisioneiros comuns e exibiu publicamente as degradantes condições dos presídios brasileiros. A reação de oposição foi imediata. Ela foi ardilosamente articulada com base na noção de senso comum de que justiça e direitos na sociedade brasileira são exercidos como privilégio. A Justiça é vista pela maioria dos cidadãos como ineficiente, e como algo assegurado a alguns poucos, aqueles que têm acesso a seus intricados mecanismos e podem pagar por bons advogados. Se justiça é privilégio e se a maioria dos cidadãos têm seus direitos sistematicamente violados, por que assegurar direitos a criminosos?, perguntavam os que atacavam os direitos humanos. E assim, uma marca de iniqüidade e
desigualdade social foi articulada para desestabilizar a expansão da democracia e minar uma tentativa de expandir o respeito aos direitos dos cidadãos. Foi necessário uma década para que os movimentos que insistiam na defesa de direitos humanos conseguissem começar a desmanchar algumas das imagens consolidadas pelo ataque aos ‘privilégios de bandidos’. A nova articulação ficou evidente no Plano Nacional de Direitos Humanos aprovado pelo governo federal em 1996 e replicado em alguns estados em seguida. Esse plano, herdeiro das interpretações de direitos humanos de terceira geração e que os concebe amplamente como direitos individuais, sociais e econômicos, define os direitos humanos como ‘direitos de todos os cidadãos’. Assim, tenta retirá-los da associação exclusiva aos prisioneiros e ‘bandidos’ e atá-los aos direitos de todos os grupos marginalizados. A rearticulação começou a ser possível porque uma série de eventos de clara violação de direitos humanos e de grande repercussão na mídia começou a provocar uma mudança na opinião pública (Eldorado dos Carajás, Favela Naval, Cidade de Deus, e finalmente as greves de policiais armados ameaçando a população). Mas o campo de intersecção entre criminalidade e democracia continuou fértil na produção de paradoxos e perversões. Trazer a atuação de forças policiais para dentro dos parâmetros do Estado de Direito é um dos maiores desafios de qualquer processo de transição democrática. No Brasil, os limites desse processo têm sido flagrantes, como indicam as constantes acusações de corrupção das forças policiais e os dados recorrentes sobre abuso do uso de força letal e desrespeito aos direitos humanos de suspeitos e prisioneiros por parte de policiais. Mas não é que as forças policiais tenham ficado imunes ao processo de democratização. O fato de a Polícia Militar do Estado de São Paulo ter sido compelida a tentar reformular a imagem da instituição e a criar um site na internet em que a cidadania e a opinião dos cidadãos aparecem como parâmetros que devem guiar a sua ação, é uma indicação da legitimidade adquirida por essas noções na sociedade brasileira. No entanto, a maneira peculiar pela qual elas se expressam no site da PM de São Paulo – a cidadania como uma invenção da Constituição de 1988; os cidadãos vistos como clientes e a segurança pública como um produto oferecido pela PM – desloca seu significado do campo referencial do Estado de Direito para o do mercado. (Algo não inesperado na era neoliberal3 , poder-se-ia argumentar.) Além disso, se houve mudança no discurso e até mesmo no nível organizacional, não se pode dizer o mesmo da prática. Apesar da determinação dos governadores Mário Covas e Geraldo Alckmin de controlar a violência policial em São Paulo, de reformar as polícias unificando algumas de suas operações, de criar a polícia comunitária, de implantar a ouvidoria da polícia e treinamento em direitos humanos, a PM continuou a matar civis. Os números de mortos que haviam baixado em 1996 e 1997, começaram a subir a partir desse último ano, que coincidiu com a implementação da nova filosofia gerencial. Em 1999, foram 664 mortos pelas duas polícias (a maioria pela PM); em 2000 foram 807, e, em 2001, 703. Esses números correspondem a aproximadamente 10% do total de homicídios da região metropolitana. Entre 1990 e 2001, houve 11.692 morres confirmadas de civis por policiais, a maioria deles sem antecedentes criminais, como indicam pesquisas feitas pela Ouvidoria da Polícia em 1999 e 2000.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA...
3
Neoliberalismo: embora comum nos dias de hoje, essa idéia assume diversas acepções. De forma genérica, pode-se entender o neoliberalismo como uma revisão do liberalismo . O modelo liberal prevê, entre outras questões, que os indivíduos deveriam ser deixados livres para desenvolverem suas iniciativas, de modo que a liberdade de cada um garantiria a liberdade para todos. Por isso, o governo só deveria assegurar as condições de preservação do exercício das liberdades individuais, de comerciar e estabelecer contratos, por exemplo, além de proteger os indivíduos de ameaças internas e externas. Sob as circunstâncias da crise econômica dos anos 80 do século passado, o ideário liberal ganhou novamente força como maneira de induzir o crescimento do setor privado. Nesse novo contexto, as medidas adotadas, pelos governos – diminuição das funções do setor público, privatização de serviços públicos e redução da intervenção do Estado – significaram a volta da ênfase no mercado, como meio de regulação da vida econômica e social, ganhando, por isso, a denominação de políticas neoliberais. Apesar das controvérsias derivadas das diferentes maneiras de se coletar indicadores sociais, pode-se afirmar sem dúvida que a aplicação do receituário neoliberal teve como resultado um aumento do grau de desigualdade das sociedades, mais visível ainda no Brasil.
Cadernos de Formação
91
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA...
Mas o efeito mais perverso do imbricamento entre imaginário de justiça e direitos e violência provavelmente encontra-se nas organizações de presidiários e no ciclo de violência que elas têm imposto nos presídios.
92
Cadernos de Formação
O fato de essas violações continuarem a ocorrer, apesar das mais bem intencionadas políticas para controlá-las, indica claramente os limites do processo de democratização. Pode apontar, ainda, uma das mais perversas ironias desse universo: a de que a polícia que mata pode, na verdade, ser a polícia que atende aos reclamos dos cidadãos desesperançados com a ineficácia da Justiça e descrentes de suas possibilidades de segurança num sistema de grande iniqüidade social. Assim, a violência da PM de São Paulo acaba perversamente satisfazendo seus ‘clientes’, os cidadãos que aprenderam a interpretar a violência da PM como sinal de eficácia – mesmo que a maioria daqueles que articulem a defesa da ‘polícia dura’ venha do mesmo grupo social da maioria das vítimas da PM: os moradores pobres da periferia. Numa total reversão de significado, a polícia que mata acaba vista como aquela que cumpre seu dever e faz cumprir os ‘direitos’ dos cidadãos pobres por justiça e segurança. Mas o efeito mais perverso do imbricamento entre imaginário de justiça e direitos e violência provavelmente encontra-se nas organizações de presidiários e no ciclo de violência que elas têm imposto nos presídios. Foram os defensores de direitos humanos que articularam publicamente o quadro da indignas condições de vida e violações brutais de direitos que caracterizam os cárceres brasileiros. O quadro foi bem fixado no imaginário popular e pode, então, ser mobilizado pelos membros do PCC, que descrevem sua organização como um partido político e legitimam suas ações criminais e o ciclo de terror que comandam nos presídios em nome da justiça, da paz e da liberdade. Nem mesmo o PCC articula-se publicamente sem o imaginário da cidadania e dos direitos! A violência, que têm marcado as ações desses comandos nos presídios brasileiros, assusta mesmo os mais experientes legistas, policiais e membros de organismos de direitos humanos. Eles têm evocado a noção de crueldade para exprimir o espetáculo freqüente não apenas de corpos mortos, mas requintadamente mutilados, violados e exibidos. Como encontrar sentido para essas ações que evocam o referencial de desrespeito aos direitos humanos tal qual denunciado na transição democrática, mas para articulá-lo à criação de um regime de terror dentro dos presídios e nos espaços que conseguem dominar externamente? Como encontrar sentido para essas ações que simultaneamente evocam o discurso de justiça e paz e praticam crueldade? Como encontrar sentido para episódios que nos remetem a imagens de campos de concentração, mas que ocorrem em uma sociedade que se democratiza e cuja mídia continua a cumprir o papel de espetacularizar as violações? Talvez não haja como encontrar sentido. Talvez esse sentido deva ser procurado nos mecanismos que reproduzem aquilo que o filósofo Giorgio Agambem (1998) chama de ‘vida nua’, a vida que pode ser morta, mas que não tem dignidade para ser sacrificável, a vida que pode ser descartada pois foi empurrada para fora dos limites do contrato social e da humanidade2. Como a vida dos internos nos campos de concentração. Talvez esse sentido deva ser procurado naquilo que o filósofo político Étienne Balibar também chama de crueldade: aquelas formas de violência que parecem ser ‘piores que a morte’, e que não se consegue regular sob nenhuma forma de ‘política de civilidade’. Para Balibar (2001), a crueldade contemporânea manifesta-se de formas heterogêneas (genocídios, conflitos étnicos, excessiva pobreza e objetivação de pobres ao redor do Terceiro Mundo, espraiamento da epidemia
da Aids etc.). A crueldade prolifera junto com a globalização e é um experimento no qual a própria possibilidade da política está em questão (como estava no campo de concentração)3. As interligações perversas entre democracia e violência na sociedade brasileira colocam questões cruciais. Se elas não apontam para a impossibilidade da política de maneira tão direta quanto nos casos analisados por Agamben e Balibar, pelo menos parecem sugerir a impotência dos esquemas liberais mais conhecidos para formular interpretações do que se tece hoje na sociedade brasileira e, a bem da verdade, em várias das democracias da ‘terceira onda’4 , em que as violações dos direitos e a crueldade insistem em ser a sombra dos processos de democratização. O caráter paradoxal do que ocorre no Brasil fundamenta tanto pessimismo quanto otimismo: afinal, é inegável o aprofundamento democrático, o único processo do qual se pode pedir reformas que venham de fato a promover justiça. Mas mesmo esse aprofundamento não nos exime da tarefa de inventar novos esquemas explicativos que possam tomar os paradoxos como a regra e o cerne da realidade social, e não como desvio passageiro.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA...
ATIVIDADES Leia com atenção a passagem abaixo. “A Reforma do Estado brasileiro pretende modernizar e racionalizar as atividades estatais, redefinidas e distribuídas em setores, um dos quais é designado Setor dos Serviços Não-Exclusivos do Estado, isto é, aqueles que podem ser realizados por instituições não-estatais, na qualidade de prestadoras de serviços. O Estado pode prover tais serviços, mas não os executa diretamente nem executa uma política reguladora dessa prestação. Nesses serviços estão incluídas a educação, a saúde, a cultura e as utilidades públicas, entendidas como ‘organizações sociais’ prestadoras de serviços que celebram ‘contratos de gestão’ com o Estado. A Reforma [do Estado brasileiro] tem um pressuposto ideológico básico: o mercado é portador de racionalidade sócio-política e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto leva a colocar direitos sociais (como a saúde, a educação e a cultura) no setor de serviços definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e amplia o espaço privado não só ali onde isso seria previsível – nas atividades ligadas à produção econômica –, mas também onde não é admissível – no campo dos direitos sociais conquistados” (Marilena Chaui, ‘A universidade operacional’. Folha de S. Paulo, 9.5.1999, p. 5-3). 1) Embora a autora esteja tratando do tema da perspectiva da universidade pública no Brasil, seu argumento também é válido, como ela mesma afirma, para analisar outros campos da vida social. Tomando como base a citação de Marilena Chaui, o texto de Teresa Pires do Rio Caldeira, além dos artigos de José Murilo de Carvalho, Amartya Sen e Aluisio A. Schumacher,
4
Democracias da ‘terceira onda’: expressão utilizada para apontar nações em que o fenômeno da democracia foi consolidado mais recentemente, sobretudo após longos períodos de regimes ditatoriais. Diversos países da América do Sul teriam passado por isso, como o Brasil, a Argentina e o Chile, que viveram sob ditaduras militares até duas décadas atrás.
Cadernos de Formação
93
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
VIOLÊNCIA, DIREITOS E CIDADANIA...
reflita e, em grupos de três alunos (as), elabore respostas coletivas para as seguintes questões: - Qual a significação da palavra Estado? - O que significa Estado de Direito ? 2) Procure discutir com os colegas as conseqüências da possível transformação de direitos em serviços , em áreas como a saúde e a educação. Como isso se verifica concretamente nos dias de hoje? 3) Segundo Teresa Caldeira, teria havido mudanças mesmo no caso da segurança pública, ao menos no discurso, como se verifica, segundo a autora, no texto da Polícia Militar do Estado de São Paulo colocado na internet . Haveria indícios para mostrar que, também na área da segurança pública, gradualmente os direitos vêm sendo convertidos na idéia de serviços? 4) Teresa Caldeira mostra também outro ângulo da questão da segurança. Diferentemente do discurso, a prática da polícia militar preocupa, pois o número de pessoas mortas por policiais, muitas delas sem antecedentes criminais, aumenta. Parte da sociedade passa a considerar esse procedimento como algo positivo (a afirmação do auxiliar de escritório diz isso com clareza). Nos dias de hoje, com o aumento da visibilidade das ações do crime organizado, além de fatos de grande repercussão (como o recente assassinato de um juiz no interior de São Paulo), tende a crescer ainda mais a aceitação da idéia da ‘polícia que mata’. Procure refletir sobre as conseqüências de se ter uma polícia mais violenta para: a) a sociedade b) a polícia c) a Justiça d) os próprios presos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1) A tese já clássica de que os direitos trabalhistas fundaram uma cidadania regulada é de Wanderley Guilherme dos Santos. Cidadania e justiça: Política Social na Ordem Brasileira . Rio de Janeiro: Campus, 1979. 2) AGAMBEN, G. Homo Sacer - Sovereign Power and Bare Life . Stanford: Stanford University Press, 1998 [1995]. 3) BALIBAR, É. “Outlines of a topography of cruelty: citizenship and civility in the era of global violence”. In: Constellations - An International Journal of Critical and Democratic Theory. 2001, 8(1): 15-29. 94
Cadernos de Formação
CIDADANIA E EDUCAÇÃO 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
João Cardoso Palma Filho2
INTRODUÇÃO O principal objetivo deste texto é apreciar numa perspectiva histórica o modo de evolução da relação cidadania-educação, uma vez que quase sempre a educação de crianças e adolescentes foi vista como necessária à formação da cidadania. Assim é que na história educacional brasileira, mesmo naqueles momentos de fechamento político em que o Estado se dissociava da sociedade civil, criando dificuldades concretas ao exercício da cidadania na sua dimensão mais simples, que é a política, a legislação educacional não deixou de mencionar, como principal finalidade do processo educacional, a formação do cidadão. É bem verdade que nunca foi explícita quanto ao tipo de cidadania que estava propondo. Embora possamos questionar se há possibilidade de se educar para a cidadania, entendemos ser necessário, em caso afirmativo, explicitar de que cidadania se está falando. Todavia, a política educacional brasileira nunca tratou dessas questões, a não ser de modo genérico. Seja como for, entendemos que a educação escolar sempre está a serviço de um determinado tipo de cidadania, e que é a pedra de toque do controle social e econômico. Pode significar conformismo e obediência, mas, dependendo de como o processo educacional se desenrola na triangulação professoraluno-conhecimento, pode também levar ao desenvolvimento intelectual e aumentar a compreensão do educando em relação ao meio natural ou socialmente criado onde vive, e, assim, atuar de um modo não coercitivo, contribuindo para a formação de um indivíduo crítico/reflexivo. Nessa perspectiva, o modo como a educação de crianças e jovens se desenvolve não é neutro em relação ao tipo de cidadania que se busca. Diferentes concepções de educação, mesmo implícitas às vezes, sempre estão presentes no planejamento educacional e curricular. Quando a escola seleciona objetivos educacionais, conteúdos, metodologia e critérios de avaliação do aprendizado, está optando por um determinado projeto educacional, que de forma alguma é neutro em relação à cidadania. Não menos importante é o modo como esses conteúdos são organizados no currículo escolar e como os estudantes a eles têm acesso. Há estudos que mostram que, dependendo de como o currículo escolar é apresentado aos estudantes, sua compreensão é facilitada para alguns setores e dificultada para outros. Igualmente importantes são as condições para a realização do processo de ensino e aprendizagem. A forma de pensar o processo educacional tem variado ao longo do tempo, o mesmo podendo ser dito em relação ao próprio conceito de cidadania, com seus diferentes significados percorrendo a história política da humanidade. Em Atenas, cidadão é aquele homem livre, que participa das decisões
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
PAGINAS 95 A 112
1
Este texto com algumas modificações foi originariamente publicado nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas (julho 1998, nº 104; pp.101-121).
2
Livre-Docente em Política Educacional. Professor Adjunto do Instituto de Artes da UNESP.
Cadernos de Formação
95
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Não se fala mais em educação democrática ou autoritária; há apenas a educação, que deve ser, eficaz e eficientemente, fornecida a crianças e jovens. Triunfa a racionalidade cientifica; administrar a escola, escolher e organizar os conteúdos curriculares são questões não mais políticas, apenas técnicas.
fordismo: Conjunto de princípios
desenvolvidos pelo empresário norte-americano Henry Ford, em sua fábrica de automóveis, com o objetivo de racionalizar e aumentar a produção. Em 1909, Ford introduz a linha de montagem – uma inovação tecnológica revolucionária. Os veículos são colocados numa esteira e passam de um operário para outro, para que cada um faça uma etapa do trabalho. A expressão fordismo vira sinônimo de produção em série. Esse processo tem várias implicações: viável apenas para esse tipo de produção, exige grandes fábricas e forte concentração financeira. Isso leva à formação de sociedades anônimas, que reúnem capitais de diversas pessoas. O novo sistema de propriedade, dividido em ações, cria o anonimato do dono real do negócio (Enciclopédia Brasileira de História Geral: http://geocities.yahoo.com.br/ v i n i c r as h br / h i s t o r i a/g e r al/ fordismo.htm) 96
Cadernos de Formação
políticas; nos séculos XVII, XVIII e XIX, quando se edifica o Estado/Nação com base na cidadania, a educação se torna essencial para a constituição da nacionalidade. Isto é, para a consolidação da nação burguesa é fundamental que os valores culturais sejam socializados para todos, através do processo educacional. No século XX, o deslocamento da educação de elemento político para o técnico obscurece essa relação. O surgimento da chamada administração cientifica, no momento em que o capitalismo inicia o desenvolvimento da sua fase monopolista, retira da educação o seu conteúdo político. Não se fala mais em educação democrática ou autoritária; há apenas a educação, que deve ser, eficaz e eficientemente, fornecida a crianças e jovens. Triunfa a racionalidade cientifica; administrar a escola, escolher e organizar os conteúdos curriculares são questões não mais políticas, apenas técnicas. A execução é separada do pensar; o bom professor é aquele que executa de modo competente o que foi por outros pensado. É o “fordismo” na sala de aula. Dewey talvez tenha sido a única voz discordante e, por isso, não era muito bem visto pelos círculos conservadores norte-americanos. No entanto, nada mais político do que esse modo neutro, “cientifico”, de pensar a educação. Os setores hegemônicos estavam defendendo o tipo de educação e de cidadania que melhor convinha para o desenvolvimento capitalista naquele momento da história humana – “predomínio da cultura do positivismo” é a adequada expressão cunhada por Giroux (1986.p.223) para essa etapa histórica que antecede o advento do fascismo na Europa. No Brasil esse modelo chega com alguns anos de atraso. Vem no bojo das reformas educacionais dos anos 70, quando efetivamente se consolida no país, ao menos nas regiões sudeste e sul, um sistema educacional de massas.
CIDADANIA NÃO SE GANHA, CONQUISTA-SE O que diferencia os paradigmas de cidadania não é o conceito de liberdade, que em todos é central: a diferença reside na forma como cada um deles recepciona o conceito de igualdade. Como é sabido, desde Locke, o liberalismo tem dificuldade em trabalhar com a igualdade: não pode abandoná-la por inteiro, mas com ela não consegue caminhar por muito tempo. Na doutrina liberal clássica, a idéia de igualdade sofre restrições desde o início e não tem o mesmo peso dos demais elementos que integram o credo liberal: individualismo, liberdade, propriedade. Como individualismo, liberdade e propriedade reinam soberanamente, igualdade e democracia sofrem restrições (Cunha, 1991). Assim é que no ideário liberal a igualdade não abrange o campo das condições materiais. A desigualdade material é perfeitamente coerente com o principio liberal de que “os indivíduos não são iguais em talentos e capacidades”, daí decorrendo naturalmente eles não poderem ser iguais em riquezas. Para Voltaire, de acordo com Laski (1973, p. 154): “A propriedade igual para todos é uma simples quimera; só poderia ser obtida
por espoliação injusta”, concluindo logo a seguir: “é impossível em nosso infeliz mundo, que os homens que vivem em sociedade não se dividam em duas classes: os ricos e os pobres”. O conceito de igualdade entre os clássicos do liberalismo fica restrito ao plano das oportunidades. Rousseau parece ser a única exceção, embora não haja homogeneidade de pontos de vista entre os mais importantes autores liberais. Não devemos nos esquecer, a propósito, que Voltaire era, entre todos, o mais aristocrático, devotando mesmo um verdadeiro e obstinado desprezo pela gente mais simples, à qual, segundo ele, bastava apenas propiciar a oportunidade de enriquecimento; mais do que isso seria absolutamente desnecessário (1973, p. 154). Seja como for, a igualdade é um pesado fardo que liberais têm de carregar, como muito bem assimila Laski quando afirma: Como os homens não são individualmente iguais, é impossível querer que sejam socialmente iguais. Pelo contrário, a igualdade social é nociva, pois provoca uma padronização, uma uniformização entre os indivíduos, o que é um desrespeito à individualidade de cada um (1973, p. 154). O liberalismo sempre tendeu a valorizar mais as ações individuais do que as ações coletivas, daí a liberdade sempre sobrepujar a igualdade e, como conseqüência, vê de forma negativa as ações a favor da igualdade, já que esta restringe a ação individual. Para Laski, mesmo que de modo inconsciente, o liberalismo sempre foi propenso a estabelecer uma antítese entre liberdade e igualdade. Viu, na primeira, aquela ênfase sobre a ação individual, da qual, o liberalismo sempre foi zeloso defensor; viu, na segunda, o fruto da intervenção autoritária, cujo resultado final é, em seu ponto de vista, uma restrição da personalidade individual” (1973, p. 154). A meu ver, essa tensão no interior da filosofia social liberal responde pelas ambigüidades da cidadania liberal, que pensa a igualdade, ao contrário da liberdade, em termos de “igualdade perante a lei”, igualdade de direitos entre os homens, igualdade civil. Mesmo em Rousseau (1968), o mais igualitário de todos os liberais e que via na propriedade a origem das desigualdades entre os homens, a aplicação do princípio da igualdade não significava a eliminação das desigualdades sociais, como aponta Cunha, (1991.p.32), quando destaca em Do contrato social o seguinte trecho: a respeito da igualdade, é preciso não entender por esta palavra que os graus de poder e de riquezas sejam absolutamente os mesmos; mas que, quanto ao poder, ele se encontra abaixo de toda a violência e nunca se exerce, senão em virtude da posição social e das leis; e quanto a riqueza, que nenhum cidadão seja suficientemente opulento para poder comprar o outro, e que nenhum seja tão pobre que seja coagido a vender-se. Ao lermos estas palavras do filósofo genebrino, não há como não pensar na fragilidade do regime democrático brasileiro, no qual, com certeza, Rousseau encontraria a evidência empírica do que acabava de afirmar. Como se sabe, o discurso político-filosófico de Rousseau insere-se no quadro geral da filosofia iluminista, em que a razão humana orienta a conduta
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
O liberalismo sempre tendeu a valorizar mais as ações individuais do que as ações coletivas, daí a liberdade sempre sobrepujar a igualdade e, como conseqüência, vê de forma negativa as ações a favor da igualdade, já que esta restringe a ação individual.
Cadernos de Formação
97
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
do indivíduo e legitima a liberdade. Somos livres, porque racionais. Nesse sentido, os conflitos decorrentes da tensão liberdade/igualdade são manifestações da irracionalidade, cuja causa é a falta de esclarecimento do ser humano, que faz com que este deixe de perceber os objetivos comuns: a liberdade e a segurança da propriedade. Percebe-se nessa passagem em Do contrato social, destacada por Cunha, a importância da educação para a existência da liberdade. Não foi por acaso, aliás, que as duas mais importantes obras de Rousseau: Do contrato social e Emílio, a primeira, política e a outra, educacional, tenham sido escritas ao mesmo tempo. Outra também não é a razão para que os ideólogos da Revolução Francesa considerem a construção da cidadania passando obrigatoriamente pela edificação do Estado educador. O plano de Instrução Pública (rapport) de Condorcet e o Projeto de Lepelletier são ilustrativos dessa preocupação da burguesia revolucionária para com a educação popular. São iniciativas que atestaram estar a burguesia naquela quadra da história da humanidade plenamente consciente da impossibilidade de se dissociar a cidadania do processo educativo. Em tal contexto sóciopolítico, a educação adquire grande relevância política.
... a universalização da educação básica não conta mais com o apoio decisivo da classe burguesa, o que não significa afirmar que setores liberais dessa mesma classe não continuem, ao menos no âmbito do discurso político, defendendo a necessidade de se estender a educação escolar aos setores populares.
No entanto, essa visão do processo social por parte da burguesia não sobreviverá ao século XX, quando o capitalismo ingressa no seu estágio mais avançado, deixando para trás o período concorrencial e adquirindo uma feição monopolista, quando a educação, gradativamente e com características próprias em cada país, será esvaziada do seu conteúdo político e dissociada da conquista da cidadania democrática. Nesse momento, a universalização da educação básica não conta mais com o apoio decisivo da classe burguesa, o que não significa afirmar que setores liberais dessa mesma classe não continuem, ao menos no âmbito do discurso político, defendendo a necessidade de se estender a educação escolar aos setores populares. Tal constatação é particularmente verdadeira para o Brasil, nos primeiros trinta anos da vida republicana (Nagle, 1974). Para Laski, (1973) e Vachet (1970), a ideologia liberal forma-se a partir das transformações do poder e do jogo de forças, sustentada pelas mudanças da base material da sociedade européia de fins da Idade Média, responsáveis pelo aparecimento de uma nova formação social, centrada no modo de produção capitalista. A mais importante transformação foi a criação de uma economia de mercado propiciada pela abertura das vias de comunicação com o Oriente. Foram transformações profundas as que ensejaram a emergência de novos atores sociais: o comerciante aventureiro e ao artesão urbano. Para Horta (1994), esses novos atores propiciaram o Desenvolvimento de novos elementos na organização social, o renascimento das cidades e o sistema de franquias e corporações: modernização acelerada pela invenção de técnicas que transformam as condições de vida, economizando energias humanas a animais.
98
Cadernos de Formação
No entanto, como assinala Chizzotti (1980), a transição não foi homogênea. Inglaterra, França e Alemanha trilharam caminhos diferentes na edifica-
ção do Estado capitalista, em que: “o desenvolvimento de uma burguesia, o peso crescente de sua riqueza e força política foram desiguais”. Na Inglaterra organiza-se um Estado absolutista com feições liberais. Hobbes e Locke representam dois momentos distintos, mas que apresentam uma certa continuidade, na formação desse Estado que, embora inicialmente absolutista e posteriormente liberal, continua com o mesmo objetivo político, qual seja, consolidar o poder político da burguesia, já detentora dos meios de produção. Locke construiu uma concepção liberal do Estado, na qual, de acordo com Chizzotti, se atribui a ele “a missão meramente protetora da relação social, dada originariamente pela própria natureza” (p.28). Considerando como paradigmático da concepção liberal, o “caso inglês”, que tem como ponto de partida os acontecimentos iniciados em 1640, e como ponto de chegada o ano de 1688, assim se expressa Chizzotti: Em 1688 consuma-se o processo revolucionário da burguesia inglesa, em aliança com a nobreza fundiária. O equilíbrio entre estruturas feudais e capitalistas consolidou um regime constitucional parlamentar e a ausência de intervenção do Estado no plano econômico. (p.29). É essa dinâmica social que fez com que o processo de formação do Estado liberal inglês tenha sido diferente do “caso francês”. Enquanto na Inglaterra os indivíduos não precisaram abdicar de si e de seus direitos a favor do poder do Estado, como defendia Hobbes a fim de evitar a guerra civil, na França – onde a aristocracia acaba expropriada pela burguesia após ter visto escapar-lhes das mãos o processo de transição que iniciara, e onde o Estado absolutista é completamente desmantelado – dá se o inverso (Chizzotti, 1980.p.29-30). No entanto, o fato de o processo revolucionário ocorrido na Inglaterra ter sido menos tempestuoso do que aquele observado na França não significa que tenha sido menos transformador da realidade. Nesse sentido, Marx e Weber já tinham percebido as peculiaridades do desenvolvimento capitalista na Inglaterra. Marx (1973.p.277) observou que “a Inglaterra foi nesse aspecto o país modelo para os outros países continentais”. Como assinala Brenner (1977.p.75), um devotado estudioso das obras de Marx, “é classicamente na Inglaterra que temos o surgimento da relação tripartite: senhor da terra/proprietário capitalista/trabalho livre assalariado, em torno do que Marx teorizou o desenvolvimento capitalista em O Capital”. Já Weber, ao abordar a questão da implantação do modo de produção capitalista na Inglaterra, rejeitou as explicações puramente tecnológicas e materialistas do tipo: comércio colonial, crescimento da população e a entrada de metais preciosos. Para esse autor, é na religião protestante, mais precisamente na sua vertente de origem calvinista, na medida em que, em última instância, a ética calvinista fornecia uma acabada justificativa para a busca do lucro. Entretanto, é cauteloso nas ligações que estabelece entre o surgimento do capitalismo e a religião protestante. E disso nos dá mostra quando afirma: Não temos a intenção de manter teses tolas e doutrinárias tais como de que o espírito do capitalismo (...) só pode ter surgido como resultado da certos efeitos da Reforma, ou mesmo que o capitalismo como sistema
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Thomas Hobbes : (1588-1679)
filósofo político inglês. Hobbes é conhecido principalmente por ter defendido o governo absoluto por ocasião dos debates em torno da Guerra Civil Inglesa (1642-9). Suas idéias a esse respeito estão formuladas na obra-prima Leviatã (1651). O pensamento político de Hobbes se baseia numa metafísica materialista e numa visão pessimista da humanidade, que seria movida por paixões (isto é, sentimentos irracionais) inatas, especialmente pelo medo da morte violenta. Na ausência de governo, essas paixões levariam os seres humanos a um conflito interminável entre si, a “guerra de todos contra todos”, pela obtenção de meios de subsistência. A vida humana, nessas condições, seria “solitária, pobre,vil, bruta e breve”.( http:// www.uol.com.br/bibliot/enciclop/)
Cadernos de Formação
99
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Arendt (1987) enriquece o enfoque aristotélico, ao conceber a cidadania como o direito a ter direitos, considerado como primeiro direito humano fundamental, do qual todos os demais derivam-se.
econômico é criação de Reforma, pois alguns aspectos do capitalismo eram bem mais antigos. (1968, p. 91) Desse modo, considerava o puritanismo como um último desenvolvimento capaz de reforçar as tendências que haviam distinguido muito tempo atrás a sociedade européia. Weber via na fraqueza do campesinato inglês, ao contrário do que se verificava no caso francês, a razão principal que favoreceu a expulsão do camponês inglês de suas terras. Na Inglaterra, como argutamente observou, jamais houve a emancipação legal dos camponeses. Estes foram expropriados em favor dos proprietários: tornaram-se livres, porém sem terras (1961, p.129). Mas um outro fator também muito contribuiu para que o desenvolvimento capitalista seguisse na Inglaterra a trajetória que seguiu. Para Anderson (1989), “a monarquia feudal da Inglaterra foi de um modo geral muito mais poderosa que a da França”. Entretanto, “a monarquia medieval mais forte do Ocidente finalmente produziu o absolutismo mais fraco e mais curto”. Por último, Weber (1968.p.250-1) considerava ainda que, para o capitalismo poder se estabelecer de modo definitivo, eram necessárias as seguintes ocorrências, que, aliás, reforçavam a primazia da liberdade, entendida principalmente como liberdade econômica, sobre a igualdade: 1) apropriação de todos os bens materiais de produção (terra, aparelhos, instrumentos, máquinas etc.), como propriedades de livre disposição por parte das empresas lucrativas autônomas; 2) liberdade mercantil; 3) técnica racional; 4) direito racional; 5) trabalho livre e 6) comercialização da economia. Esta última condição daria início à chamada especulação econômica, que já nos séculos XVII e XVIII seria responsável por várias “bancarrotas”, tanto na Inglaterra como na França. Weber, todavia, encontrava aspectos positivos nisso por permitir aos homens conscientizar-se de que crises econômicas não são fruto de ações de divindades iradas ou de “espíritos” em rebelião e que os seres humanos podem pensar a transformação do sistema em que vivem.
A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CIDADANIA Procuramos discutir em linhas gerais os elementos que caracterizam o surgimento de modo de produção capitalista e a ascensão da classe burguesa ao centro do poder político, quando passa a ser a principal responsável pela direção do Estado, às vezes em aliança com outras classes sociais, como foi o caso da Inglaterra, berço do capitalismo. Ao mesmo tempo, indicamos como traço marcante do paradigma liberal da cidadania a tensão entre liberdade e igualdade. A seguir, vamos retomar algumas questões relacionadas com a cidadania, considerando-as à luz da realidade brasileira contemporânea. Para Aristóteles, cidadania implicava a possibilidade concreta do exercício da atividade política, ou seja, ser cidadão significava poder governar e ser governado. Arendt (1987) enriquece o enfoque aristotélico, ao conceber a cidadania como “o direito a ter direitos, considerado como primeiro direito humano fundamental, do qual todos os demais derivam-se”. Em outros
100
Cadernos de Formação
termos, a cidadania inscreve-se no quadro geral dos direitos fundamentais do ser humano. Embora direito fundamental, a cidadania precisa ser conquistada; não é dada, resulta de um agir conjunto, é uma construção coletiva, opondose, portanto, à concessão, ao privilégio. Não sendo concessão não pode ser revogada ou retirada. O conceito de cidadania em Arendt possui uma abrangência universal, nada tendo a ver com o território ou nacionalidade. É uma qualidade do ser humano, mas que com ele não nasce – precisa ser conquistada. Ou seja, ninguém nasce cidadão; torna-se cidadão. A cidadania não é uma qualidade natural nem apenas do indivíduo, ao contrario, é social. Portanto, a cidadania de Arendt não é a do formalismo jurídico, tão ao gosto das elites brasileiras durante séculos, vinculada que é, em muitos casos, tão somente ao exercício dos direitos políticos. Em Arendt, mais do que em Aristóteles, um profundo comprometimento com o humanismo universal permeia toda a reflexão filosófica e sociopolítica dessa grande pensadora, que tem no Brasil, em Celso Lafer, o seu mais importante estudioso. Weffort (1981.p.139) insere a discussão da cidadania no quadro da desigualdade social, inerente à sociedade de classes. Para ele, “a questão da cidadania dos trabalhadores está intimamente relacionada à questão da articulação entre a liberdade política e igualdade social”. Desse modo, recupera, como já vimos, uma antiga discussão no seio da teoria política, ou seja, a tensão dialética que se estabelece nas sociedades de classe de direção políticodemocrática entre liberdade e igualdade. Tendo como foco essa tensão, desenvolve não uma cidadania geral, mas várias cidadanias particulares. Uns são mais cidadãos que outros. Para esse cientista político o trabalhador brasileiro, quando muito, seria um “cidadão pela metade”, muito mais uma decorrência natural da organização corporativista que cindiu a formação social brasileira do que propriamente uma condição inerente à sociedade estratificada em classes sociais. Weffort atribui grande peso na construção da cidadania desigual à organização corporativa do trabalho. Por sua vez, a tradição jurídica e constitucionalista brasileira tem, de um lado, separado a nacionalidade da cidadania, e, de outro, conferido, pelo menos até a Constituição Brasileira de 1988, um conteúdo muito mais político do que social à cidadania e, mesmo assim, considerando o político de modo muito restrito, isto é, como direito de votar e ser votado. Tem sido, portanto, uma cidadania outorgada, concedida e, desse modo, podendo ser retirada por quem outorgou ou concedeu. A nossa história republicana recente registra inúmeros casos de cassações de direitos políticos que de um dia para outro transformaram cidadãos em não-cidadãos. Está-se longe, pois, do significado que Arendt atribui à cidadania.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Por sua vez, a tradição jurídica e constitucionalista brasileira tem, de um lado, separado a nacionalidade da cidadania, e, de outro, conferido, pelo menos até a Constituição Brasileira de 1988, um conteúdo muito mais político do que social à cidadania e, mesmo assim, considerando o político de modo muito restrito, isto é, como direito de votar e ser votado.
São essas vicissitudes experimentadas pela cidadania em nosso país que talvez expliquem a pletora de adjetivos que a tem acompanhado ao longo de nossa história política: regulada, em recesso, estratificada, emergente, ativa, precária, de segunda classe, tutelada, assistida, democrática etc. Essa, contudo, não é uma situação apenas brasileira. Marshall (1969), num estudo já clássico, fala, no âmbito da Inglaterra, de uma cidadania civil, política e social. Embora ciente de que esse estudo atualmente enfrenta Cadernos de Formação
101
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Weimar (República de): Ao final
da Primeira Guerra Mundial, instaurou-se na Alemanha a República de Weimar, tendo como sistema de governo o modelo parlamentarista democrático. O presidente da república nomeava um chanceler, que seria responsável pelo poder Executivo. Quanto ao poder Legislativo, era constituído por um parlamento (Reichstag). O governo republicano alemão enfrentava uma série de dificuldades para superar os problemas sociais e econômicos gerados pela guerra. O Tratado de Versalhes impunha à Alemanha uma série de obrigações extremamente duras [após sua derrota na Primeira Guerra Mundial]. Mesmo retomando o desenvolvimento industrial, o país sofria com o elevado índice de desemprego e altíssimas taxas inflacionárias. Entusiasmados com o exemplo da Revolução Russa, importantes setores do operariado alemão protestavam contra a exploração capitalista. Em janeiro de 1919, importantes líderes comunistas, como Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht promoveram a insurreição do proletariado alemão contra o regime capitalista. Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht foram assassinados por um grupo de oficiais de direita. A República de Weimar termina depois da ascensão de Hitler ao poder. New Deal: grande projeto implan-
tado por Franklin Delano Roosvelt, presidente dos EUA, de recuperação da economia norte-americana depois da quebra da bolsa em 1929 e da subseqüente depressão econômica americana. As bases do pro jeto eram perdoar todos os endividados agricultores e investir dinheiro a longo prazo, interiorizando o desenvolvimento. (members.tripod. com/~aacastro/global2.htm) 102
Cadernos de Formação
restrições (Andrade, 1993), passo, ainda que de modo introdutório, a considerar alguns aspectos dessa tipologia. Segundo Marshall, os autores clássicos do liberalismo davam inicialmente grande importância à cidadania com conteúdo individualista, estruturada em torno de um homem abstrato, ao mesmo tempo em que ocultava o homem concreto, histórica e socialmente situado. Era a fase dos direitos civis, centrada na liberdade individual, no direito de ir e vir, na liberdade de imprensa, na liberdade de pensamento e de fé, no direito à propriedade, à justiça e no direito de contrair direitos e obrigações por meio de contratos livremente estabelecidos. Enfim, direitos necessários para todos, mas sobretudo essenciais para que a ordem burguesa pudesse sobrepujar a ordem feudal, aristocrática e religiosa. Tanto assim, que esses direitos só foram estendidos ao conjunto da população a partir de século XVIII. Num segundo estágio, já adentrando pelos séculos XIX e XX, firma-se a cidadania com conteúdo político, só reconhecida, entretanto, na Europa, e assim mesmo de modo parcial, que significou o direito de participação do indivíduo no exercício do poder político, quer como membro do corpo político dirigente da sociedade, quer como eleitor dos membros de tal corpo político. Em muitas nações européias, somente ao final dos anos 30 é que as mulheres adquirem o direito de votar e serem votadas. Em seguida, Marshall indica o surgimento da cidadania social, quando se incorpora um mínimo de direito ao bem-estar social e econômico aos direitos individuais e políticos. É a cidadania pela qual gerações de trabalhadores lutaram e que começa a emergir nos anos 30 deste século, principalmente nos países de capitalismo desenvolvido, já na sua fase monopolista, com tímidos reflexos nos países periféricos. No Brasil, curiosamente, alguns direitos sociais são reconhecidos, ao mesmo tempo em que direitos políticos e individuais são negados, durante o Estado Novo. De um modo geral os ditadores que tivemos costumavam dizer que “voto não enche barriga”, embora alguns deles, como foi o caso de Getúlio Vargas, até fossem “bons de votos”. É uma fase que se caracteriza por grandes transformações na base material capitalista, com reflexos na ordem jurídico-constitucional, e que propiciaram a emergência do que passou a ser conhecido como Welfare State, ou Estado do Bem-Estar Social, uma realidade tipicamente européia do pós-guerra, que decreta o fim do modelo econômico do liberalismo clássico. A constituição alemã de Weimar, de 1919, e o New Deal do presidente Roosevelt nos Estados Unidos são dois bons exemplos dessa nova situação. A constituição brasileira de 16 de julho de 1934 incorporou alguns princípios do Estado de Bem-Estar Social, quando tratou da ordem econômica e social (art.115 a 143) e quando no artigo 149 estabeleceu a educação como um direito de todos, tendo como finalidade o desenvolvimento da solidariedade humana. Nesse sentido tornava claro o dever do Estado para com a educação, ao mesmo tempo em que tornava o ensino primário obrigatório para todos, inclusive para os adultos. Todavia, como se sabe, a Constituição de 1934, revogada em 1937 pela Constituição outorgada pelo Estado Novo, na prática nem chegou a ser observada.
Embora não consideradas por Marshall, parece-nos que as tentativas para a construção de um Estado socialista na Rússia, a partir de 1917, forçaram a concessão de direitos de cidadania aos trabalhadores dos demais países da Europa, tendo em vista neutralizar o impacto das mudanças que se verificavam na então União Soviética. Por último, para Marshall, o direito à educação é um traço definidor da cidadania com conteúdo social. Portanto, o acesso aos bens educacionais passa a constituir critério importante para se apreciar o grau de cidadania de um povo. No caso brasileiro, se avaliarmos o grau de cidadania pela ótica do acesso à educação e ficando apenas no âmbito do direito constitucional, concluiremos que esse é um direito sem restrições presente somente na Constituição Federal de 1988, embora tenha figurado, como já salientado, nas constituições de 1934 e 1946. Acontece que só a partir do texto constitucional de 1988 é que se consagra a possibilidade de se exigir do Estado o cumprimento do seu dever para com a educação fundamental obrigatória, conforme reza o artigo 208, que deu à educação a qualidade de um direito subjetivo, a ser exigido por qualquer cidadão mediante mandado de injunção (cf.art.5º da Lei Federal n. 9394 de 25/12/96 - LDB). Lafer (1988), desenvolvendo o princípio formulado por Arendt de que a cidadania é o direito de ter direitos, propõe, com fulcro na categoria dos direitos humanos, uma sistematização diferente daquela formulada por Marshall, a meu ver mais adequada aos nossos dias e de acordo com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro no concerto geral das Nações Unidas. Assim, é a observância dos direitos humanos em seus diferentes níveis, a saber: civil, político, econômico, social e coletivo, que assegurará o exercício pleno da cidadania. Ao conceituá-la lastreada nos direitos humanos, Lafer refuta as teorias políticas que concebem a admissibilidade da cidadania limitada e o princípio da privação da cidadania como uma sanção de natureza jurídico-politica; admissibilidade essa, por exemplo, prevista no texto constitucional de 1969. É verdade que, rigorosamente falando, a Emenda Constitucional n.1 de 1969 não tinha legitimidade. É também a categoria dos direitos humanos que irá fornecer a Buffa (1987) argumentos para afirmar a inexistência entre nós dos direitos do homem e do cidadão, uma vez que no Brasil há um fosso entre elite, que tem tudo, e, portanto, dispensa direitos, e uma legião de excluídos, que ao reclamarem, quando conseguem reclamar, seus direitos de cidadania, são reprimidos pelo aparato jurídico-policial do Estado, mantido com o dinheiro dos contribuintes, que são todos, mas sempre a serviço dos grupos dominantes que empalmam o poder político. A favor da tese defendida por Buffa militam vários episódios de nossa história política e social, que, de tão conhecidos, dispensam apresentação.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
... só a partir do texto constitucional de 1988 é que se consagra a possibilidade de se exigir do Estado o cumprimento do seu dever para com a educação fundamental obrigatória, conforme reza o artigo 208, que deu à educação a qualidade de um direito subjetivo, a ser exigido por qualquer cidadão mediante mandado de injunção (cf.art.5º da Lei Federal n. 9394 de 25/12/96 LDB).
FORMAÇÃO EDUCACIONAL E CIDADANIA Especificamente, qual é a natureza da relação educação/cidadania? É o que procuraremos discutir a seguir. Cadernos de Formação
103
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Para o autor, o discurso pedagógico brasileiro cinde a cidadania em dois territórios; um ocupado pelos ricos, onde a cidadania é inerente à condição humana e outro, habitado pelos pobres, onde o exercício da cidadania precisa ser ensinado.
104
Cadernos de Formação
Nos últimos cem anos não houve reforma educacional no Brasil que não ressaltasse o papel da educação escolar na formação do cidadão. Tanto liberais quanto socialistas muito se empenharam já no início da República na defesa da universalização do ensino primário. Na maioria das vezes não se foi além de declarações genéricas, que pouco efeito prático tiveram. Muitos estudiosos brasileiros já se debruçaram sobre o assunto. Entre eles, destacamos aqueles que consideramos os mais importantes, na perspectiva que estamos adotando neste texto: Arroyo, (1987), Severino (1992), Demo (1988 e 1994) e Coutinho (1994). Arroyo (1987.p.58-63) enriquece o tema de modo original, quando contrapõe ao princípio aceito por liberais e muitos socialistas – que afirma a necessidade de as pessoas serem preparadas na escola para o exercício da cidadania – o desafio para que a educação seja pensada como um processo que se desenrola no interior da prática social e política das classes sociais. Para o autor, o discurso pedagógico brasileiro cinde a cidadania em dois territórios; um ocupado pelos ricos, onde a cidadania é inerente à condição humana e outro, habitado pelos pobres, onde o exercício da cidadania precisa ser ensinado. A esse respeito é importante salientar que a legislação educacional brasileira produzida nos anos 70 encarou a cidadania muito mais como conseqüência de um preparo adequado do que como um processo construído no interior da prática política que se desenrola no contexto da sociedade de classes. Assim é que o modelo de cidadania presente nos textos legais, como, por exemplo, o explicitado pelo artigo 1º da Lei Federal n. 5.692, dá muito valor ao aprendizado do convívio social, com ênfase na cooperação, dando pouca importância às desigualdades sociais. É como se a cidadania fosse algo presente potencialmente em todos os seres humanos, bastando à educação criar as condições adequadas para o pleno desenvolvimento dessa potencialidade. O próprio conceito de convívio social é algo idealizado, sem quase nenhuma problematização sociopolítica. Embora essa visão da relação educação/cidadania tenha sido muito combatida durante os anos 80, com contribuição fundamental de Arroyo nessa direção, ela ressurge revigorada nos anos 90, no bojo de várias reformas curriculares em andamento em vários países centrais e periféricos. A cidadania então se mostra descolada do questionamento das relações de poder que perpassam todo o tecido social e, assim, oculta a discussão em torno da participação dos excluídos no poder. O discurso pedagógico hegemônico na sociedade brasileira, tanto na sua versão tradicional-conservadora quanto na vertente liberal-progressista, ao tocar no ponto da cidadania o faz de modo reducionista, acentuando “a preparação da criança para o convívio social harmônico”, ignorando que a temática se insere em um campo minado pelas relações sociais assimétricas, desiguais e, portanto, conflitivas. Essa “romantização” da cidadania também não escapou à arguta observação de Severino (1992.p.10), quando discute o tema pela ótica da filosofia educacional e afirma: Quanto a isso, muito nos iludiram as concepções essencialistas, idealistas e naturalistas do ser humano, tanto quanto o fez o liberalismo, ao
pretenderem que essa humanização era uma espécie de qualidade existencial intrínseca que podia ser efetivada e experienciada independentemente das mediações histórico-sociais. No fundo, as concepções românticas ou idealistas, ao procederem de modo ideológico, acabam por desqualificar a escola como local de formação da cidadania. Para superar essa postura do pensamento pedagógico, Arroyo aponta para a necessidade de se rever a “relação tradicional entre educação, cidadania e participação política”, em que o povo passe a ser considerado sujeito político no conjunto das relações sociais que estabelece. O autor chega, segundo me parece, ao ponto em que se diferencia radicalmente das posições liberais e mesmo de alguns enfoques socialistas quando considera que a “cidadania se constrói através de um processo que se dá no interior da prática social e política das classes”. Repele, desse modo, a concepção de cidadania imperante nos textos legais e mesmo em alguns materiais didáticos, em que aquela resulta de intervenções externas, como se fosse presente da burguesia às classes subalternas, fazendo com que esses atores sociais deixem de ser vistos como sujeitos históricos, condição que só alcançariam após o preparo consciente para o exercício da cidadania, vindo de fora pela via do processo de escolarização. Arroyo aponta ainda a pouca profundidade com que as ciências da educação têm enfrentado a temática da relação da educação com a cidadania, em grande parte devido ao apego a concepções superadas sobre o social, sobre a historia e sobre o Estado, concluindo pela falta de estudos sobre o papel da educação escolarizada na vida dos indivíduos, dos grupos e das classes sociais. Em síntese, considera então a existência de dois modelos de cidadania que se contrapõem: de um lado, uma cidadania que vem de fora para dentro, uma espécie de cidadania outorgada, em que a escola representa um papel importante como agente formador dos indivíduos para o exercício da cidadania; de outra, a perspectiva que vê a cidadania como uma construção que se realiza “no interior da prática social e política das classes”. No primeiro caso percebe-se claramente a influência liberal, que condiciona o exercício da cidadania à aquisição da escolarização, enquanto no segundo, com a qual Arroyo se identifica, a cidadania se explicita de forma crítica e ultrapassa o espaço escolar, tendo a educação, nesse caso, um sentido mais abrangente que vai além do conjunto das práticas escolares, que, embora sendo práticas sociais, são apenas uma parte destas. Na medida em que liberal e democrático são conceitos diferentes, e às vezes até antagônicos, a relação entre educação e cidadania adquire significados diferentes, em razão de diferentes enfoques sóciopolíticos utilizados para a discussão da temática. Para Coutinho (1994.p.13-26), é a ordem democrática que permite a manifestação da cidadania, ordem esta que se caracteriza pela reunião em um determinado espaço de condições sociais e institucionais, nas quais é possível a participação ativa do ser humano na formação do governo e, por conseguinte, existe a possibilidade de efetivo controle da vida social por parte dos cidadãos. É a ordem social democrática que possibilitará a reunião, na mesma pessoa, do indivíduo e do cidadão. Desse modo, considera a individualidade como inerente à condição humana, e a cidadania como a qualidade que se explicita, quando a ordem social permite a participação de
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Em síntese, considera então a existência de dois modelos de cidadania que se contrapõem: de um lado, uma cidadania que vem de fora para dentro, uma espécie de cidadania outorgada, em que a escola representa um papel importante como agente formador dos indivíduos para o exercício da cidadania; de outra, a perspectiva que vê a cidadania como uma construção que se realiza no interior da prática social e política das classes.
Cadernos de Formação
105
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Às forças democráticas caberia a responsabilidade de buscar caminhos que rompam com o quadro atual, no qual a elite dominante conta com uma escola privada com alguma qualidade e os setores populares são obrigados a se contentar com uma escola pública que não reúne condições mínimas para um funcionamento adequado.
106
Cadernos de Formação
modo pleno nas decisões que são tomadas pelo conjunto social. Assim, seguindo essa linha de raciocínio, Coutinho conclui que a ordem social ,capitalista é incompatível com a vigência da cidadania plena, em razão da divisão da sociedade em classes antagônicas. Argumenta que embora seja o coletivo social que produz os bens sociais (tanto a riqueza material quanto a produção cultural) muitos segmentos sociais são excluídos da reapropriação desses mesmos bens gerados coletivamente. Todavia, considera ser possível ampliar os direitos do cidadão na ordem social capitalista. Para tanto, afirma ser necessário desenvolver a luta social, com base nas leituras que faz de Gramsci e Poulantzas. Estes autores consideravam a socialização da política fenômeno típico de algumas sociedades ocidentais, fato que obrigou o Estado a buscar algum tipo de consentimento dos governados, descartando desse modo o uso exclusivo de meios coercitivos para a manutenção da estabilidade social. De acordo com essa visão, é a combinação em doses adequadas de coerção e consentimento que garante a manutenção da ordem social, evitando as rupturas que poderiam colocar em risco a ordem social capitalista. Essa é uma perspectiva que, a meu ver, se alarga nos anos 90, com a atenuação das polarizações ideológicas, em que o consenso adquire um papel dinâmico, uma vez que alarga a possibilidade de participação dos setores sociais subalternizados, desde que a sociedade consolide o seu funcionamento democrático. Assim, Coutinho considera ser possível nesse quadro democrático, a construção de um projeto alternativo de sociedade no interior do sistema educacional, ainda que no contexto de uma ordem social capitalista. Entretanto, isso não se daria de modo automático. Para tanto, são necessárias três condições. A primeira seria a socialização efetiva do conhecimento socialmente relevante, o que significa tornar realidade a universalização de uma educação básica com qualidade. Essa condição supõe que a luta por uma nova qualidade do ensino se transforme em luta política. Sendo, portanto, relevante para a construção da cidadania democrática. Às forças democráticas caberia a responsabilidade de buscar caminhos que rompam com o quadro atual, no qual a elite dominante conta com uma escola privada com alguma qualidade e os setores populares são obrigados a se contentar com uma escola pública que não reúne condições mínimas para um funcionamento adequado. Uma situação que, para o quadro educacional brasileiro, reflete uma perspectiva de classe que “se torna um poderoso óbice à afirmação da cidadania e, como tal, da democracia” (p.25). A segunda condição diz respeito ao fato de que, para ser democrático, o sistema educacional tem de ser plural, ou seja, acolher no seu interior o pluralismo de idéias a que se refere a Constituição Federal (art.205), assegurando a plena liberdade de expressão para todas as correntes de pensamento que a sociedade abriga. Nesse sentido, causa preocupação a tentativa que vem sendo feita por alguns estados, municípios e mesmo pelo Ministério da Educação que, ao propor Parâmetros Curriculares para o ensino fundamental, vêm insistindo para que os professores assumam uma concepção pedagógica de perfil nitidamente construtivista, em detrimento de outras abordagens. Por último e como terceira condição, Coutinho afirma a necessidade de o sistema escolar ser gerido “pelos seus próprios autores e usuários diretos”
(p.25), desde que nos acautelemos em relação ao desvio corporativista, que será evitado na medida em que a escola estabeleça um consistente dialogo com a sociedade. Concluiremos discutindo a concepção de cidadania explicitada em vários textos por Pedro Demo. É provável que tenha sido este autor um dos que, ao tratar da questão educacional em nosso país, mais se preocupou com o papel desempenhado pela educação escolar na formação do cidadão para a vida democrática. O conceito de cidadania explicitado por Demo e, em certa medida também por Coutinho e Severino, permite repensar a questão da cidadania na sua relação com a base material da formação social brasileira e com a educação. Para Demo, a principal função da escola é viabilizar o acesso da população, independentemente da sua condição social, ao conhecimento socialmente produzido e historicamente acumulado – de certo modo patrimônio da humanidade – que tem sido objeto de disputas em torno das relações de poder. Nesse sentido, a escolarização formal torna possível a existência do cidadão. Essa relação escolarização-cidadania nos remete para a especificidade do papel social da escola. A partir desse enfoque, Demo vai na mesma direção das posições assumidas em relação ao tema da cidadania por Saviani (1983), Libâneo (1985), Mello (1993), Barreto (1989) e Palma Filho (1996), entre outros autores que têm se dedicado a discutir a função precípua da escola e que vêem o desenvolvimento capitalista tanto nos países centrais, quanto nas nações periféricas, como um processo contraditório e conflitivo, em que se articulam uma pluralidade de tendências complexas e heterogêneas. As contradições se expressam num movimento de mudança e de conservação que implica reconhecer que o desenvolvimento capitalista sempre envolve algum tipo de permanência estrutural, a que Gentili (1994) denomina “núcleos invariantes”, sendo um desses núcleos o monopólio do saber (conhecimento). No caso brasileiro, os estudos históricos sobre a educação (Romanelli, 1978; Ribeiro, 1978; Freitag, 1975) permitem concluir que a luta pela quebra do monopólio educacional em mãos das elites insere-se no quadro das lutas sociais e é um dos pontos centrais da luta pela superação da cidadania tutelada ou assistida. Nesse sentido, a luta social pelo acesso ao saber elaborado, que perpassou ao longo de nossa história social os movimentos de massa, é fundamentalmente uma questão política, já que a posse crítica do saber elaborado possibilita ampliar a disputa pelos espaços de poder. Desse modo, a quebra do monopólio do conhecimento é essencial para o exercício da cidadania em toda a sua plenitude, e, como pensa Demo, só será efetivada em termos de cidadania emancipatória se a educação for “além da mera transmissão, cópia, reprodução do conhecimento, para atingir de cheio, sua construção” (Demo, 1995). Segundo Gentili (1994.p.137): “o monopólio do conhecimento, no capitalismo histórico, supôs e supõe a crescente e progressiva distribuição, produção e reprodução da ignorância para as maiorias excluídas”, afirmação
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
... a quebra do monopólio do conhecimento é essencial para o exercício da cidadania em toda a sua plenitude, e, como pensa Demo, só será efetivada em termos de cidadania emancipatória se a educação for além da mera transmissão, cópia, reprodução do conhecimento, para atingir de cheio, sua construção.
Cadernos de Formação
107
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
... a cidadania tutelada e a cidadania assistida, para ficarmos com a terminologia de Demo, encaram a educação como processo de preparação de recursos humanos, isto é, de treinamento, ao enfatizar o aspecto reprodutor, alçando para um segundo plano o caráter transformador que a educação possa vir a desempenhar no processo de formação de crianças e adolescentes.
108
Cadernos de Formação
que nos lembra Coutinho, quando enunciava a possibilidade da construção de projetos educacionais alternativos no seio de uma sociedade capitalista com funcionamento político democrático, mas impossível a cidadania plena no interior da formação social capitalista. Para Demo (1993.p.49-55), quando se pensa em termos do binômio educação/cidadania emancipatória sobressai a função política da educação como instrumento de participação política; todavia, admite outras funções que a educação poderá vir a desempenhar. De resto, são essas outras funções que mais se têm destacado ao longo do processo histórico brasileiro. Dentre elas, a educação vista como preparação de recursos humanos para o sistema produtivo tem sido a mais perseguida pelas reformas educacionais empreendidas nos últimos trinta anos. Corolário dessa visão é aquela outra que vê a educação como um processo formador de habilidades profissionais, com o sentido estrito de treinamento. A meu juízo, essa é a perspectiva que vem orientando também as propostas educacionais oficiais ao longo dos anos 90. Num rápido olhar para os últimos sessenta anos da história educacional brasileira, visualizamos tanto a educação como preparação de recursos humanos, quanto a educação como treinamento, concepção que permeou, nas décadas de 30 e 40, as reformas educacionais levadas a cabo por Getúlio Vargas/Gustavo Capanema. O projeto educacional desse período reforçava no âmbito escolar a existência de dois modelos de cidadania: uma para as elites condutoras e outra para as massas a serem conduzidas. Nesse sentido, a Constituição de 1937 foi absolutamente explícita, restringindo o dever do Estado para com a educação apenas ao terreno da escolarização vocacional, ou seja, treinamento de mão-de-obra. Com a queda do Estado Novo em 1945 e a conseqüente redemocratização do país – realização de eleições gerais e promulgação de um novo texto constitucional em 1946 – a concepção corporativa de organização da sociedade vai cedendo, ainda que lentamente, à visão liberal, a qual procura restabelecer a cidadania política formal, cujo processo será interrompido com o golpe militar de 1964. A partir dos anos 70 o regime militar restaurou as funções que a educação desempenhara durante a ditadura Vargas: formação e treinamento de recursos humanos para o setor produtivo. Desse modo, a reforma educacional de 1971 (Lei Federal n. 5.692,de 11/8/71) visa recuperar a hegemonia da formação técnico-profissional. Demo salienta ainda as funções de transmissão de conhecimentos e de aprendizagem e a função socializadora, ou seja, o papel reprodutor da sociedade por parte da educação. Correndo o risco de sermos esquemáticos e reducionistas, poderíamos afirmar que a cidadania tutelada e a cidadania assistida, para ficarmos com a terminologia de Demo, encaram a educação como processo de preparação de recursos humanos, isto é, de treinamento, ao enfatizar o aspecto reprodutor, alçando para um segundo plano o caráter transformador que a educação possa vir a desempenhar no processo de formação de crianças e adolescentes. Ao se insistir no papel transformador que a educação pode vir a desempenhar no desenvolvimento da cidadania plena, não se está deixando de reconhecer que a educação escolar não é condição suficiente, mas é condição
necessária para desabrochar a cidadania, com vistas à formação do sujeito do desenvolvimento, num contexto de direitos e deveres (Demo,1988 p.52). Este é, aliás, o ponto de vista de Arroyo, Coutinho e Severino. O que Demo propõe é uma ampla reforma educacional, capaz de produzir profundas modificações na formação inicial e continuada dos educadores, nos currículos, nos materiais didáticos e principalmente nos processos de gestão escolar. Desse modo, será possível passar da cidadania tutelada/assistida para a cidadania democrática, que ainda não temos. Para tanto, conclui (1993.p.78), é preciso criar na sociedade uma cultura democrática, na qual “a democracia torna-se cotidiana”(idem,p.79). Nesse contexto, então, Demo vê a construção da cidadania democrática como uma possibilidade que depende da mobilização das diferentes forças sociais que integram a sociedade. Com os anos 90 emergem novos questionamentos em torno da temática da cidadania. A relação educação/desenvolvimento/crescimento econômico e cidadania vem se alterando desde meados dos anos 70, inicialmente nos países do capitalismo avançado, com a base no paradigma fordista. Em outros termos, tudo indica estar superada a fase em que o desenvolvimento capitalista, centrado no crescimento econômico propiciado pela extensão dos setores secundário a terciário da economia, gerava mais postos de trabalho. Atualmente, com o incremento das inovações tecnológicas, tendo como eixo a acelerada informatização do setor produtivo, assiste-se a um fato inusitado: o crescimento econômico não mais responde pela geração de novos empregos, daí as enormes taxas de desemprego verificadas nos últimos anos nos países mais adiantados, apesar do crescimento de suas economias. Mandel (1995), pensador socialista recentemente falecido, referindose ao desemprego nos países capitalistas, assim se expressava: “nos países imperialistas, ele passou de 10 milhões para pelo menos 50 milhões de pessoas, se não mais; no”terceiro mundo”, pelo menos 500 milhões estão desempregados, se não mais”, concluindo que “pela primeira vez, desde o final da Segunda Guerra Mundial, o desemprego está crescendo maciçamente nas sociedades burocratizadas pós-capitalistas”, ao mesmo tempo em que o crescimento da pobreza no Terceiro Mundo “se tornou uma catástrofe histórica” (p.117). Citando estatísticas das Nações Unidas, aponta que mais de sessenta países, com mais de 800 milhões de habitantes, sofreram um declínio absoluto de renda per capitã entre 1980 e 1988 que gira em torno de 30 a 50% nos mais pobres desses países. No caso particular da América Latina, aponta que a renda per capitã” em 1950 era 45,3% da dos paises da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (a OCDE, que agrupa os países imperialistas). Em 1987, ela caiu para 29,7%. Concluindo que: “Décadas de aumentos no Bem-Estar popular perderam-se no decorrer de poucos anos”. Tal situação é muito desfavorável para o processo de construção da cidadania democrática e com certeza acarretará mudanças na relação educação/ cidadania – embora o discurso oficial na área da educação venha apontando em outra direção –, uma vez que será cada vez mais difícil conciliar a expansão
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
... é preciso criar na sociedade uma cultura democrática, na qual a democracia tornase cotidiana (idem, p. 79). Nesse contexto, então, Demo vê a construção da cidadania democrática como uma possibilidade que depende da mobilização das diferentes forças sociais que integram a sociedade.
Cadernos de Formação
109
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
Aqueles que afirmam ser necessária uma educação de qualidade para melhor qualificar o trabalhador esquecem de dizer que, mantidas as coisas como estão, será cada vez menor o numero de trabalhadores qualificados requeridos pelo mercado de trabalho,
das oportunidades educacionais com a contração cada vez maior do mercado de trabalho. Aqueles que afirmam ser necessária uma educação de qualidade para melhor qualificar o trabalhador esquecem de dizer que, mantidas as coisas como estão, será cada vez menor o numero de trabalhadores qualificados requeridos pelo mercado de trabalho, parecendo, portanto, muito pouco provável que alguém tenha sucesso em pleitear mais recursos para o setor educacional apenas argumentando em termos de mercado de trabalho. Muito provavelmente, caso os trabalhadores não consigam mudar o rumo dos acontecimentos, ou seja, se não conseguirem propor estratégias que se contraponham de modo eficaz e duradouro à ofensiva conservadora, teremos e já há sinais muito evidentes disso – a clivagem da sociedade em pelo menos dois tipos de cidadania. Haverá, entre os próprios trabalhadores, de um lado, alguns poucos com elevada qualificação profissional disputando os parcos e bem remunerados empregos e, de outro lado, a imensa maioria jogada na vala comum do desemprego, subemprego, emprego temporário e ocupando as atividades de pior remuneração. Concluindo, entendemos que uma educação voltada para a construção de uma cidadania democrática não pode se orientar apenas por valores advindos das forças do mercado. Ao contrário, deve centrar-se em um currículo (conteúdos e estratégias) que capacite o ser humano para o desempenho de atividades que pertencem aos três domínios explicitados por Severino (1994): “a vida em sociedade, a atividade produtiva e a experiência subjetiva, a integração dos homens no tríplice universo do trabalho, da simbolização subjetiva e das relações políticas” (p.100).
ATIVIDADES 1) O psicólogo norte-americano B.F.Skinner considera que a liberdade é um mito divulgado pelas filosofias e literaturas da liberdade. Em conseqüência propõe um controle sobre o comportamento e a cultura dos homens, caso se queira atingir uma vida plena e feliz. Qual é o seu ponto de vista sobre essa afirmação? 2) Discuta com alguns colegas do curso situações concretas da prática cotidiana dos professores e demais componentes da equipe escolar, que envolvam questões éticas. 3) Pergunte a diferentes profissionais o que eles entendem por liberdade. 4) Acompanhe o noticiário dos jornais durante uma semana e aponte situações que indicam a falta de ética na política.
110
Cadernos de Formação
5) Na sua opinião o que é mais importante para o professor: o compromisso ético ou o compromisso político?
6) O que você entende por ética profissional? 7) Discuta com seus colegas o artigo XXVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, e de se beneficiar das artes e do progresso científico; Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística de que seja autor.” 8) Juntamente com alguns colegas procure elaborar um Código de Ética para o Magistério.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, P. Lineages of the absolute state. Londres: New Left Books, 1989. ANDRADE, V.R.P. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993. ARENDT, H.A Condição humana. Rio de Janeiro: Forense. 1987. ARROYO, M.G. Educação e exclusão da cidadania. In: BUFFA, E. Educação e cidadania: quem educa o cidadão? São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1987. (Col.Polêmicas de Nosso Tempo, 23.) BARRETO,E.S.S. O Planejamento educacional e as novas demandas sociais na área. São Paulo em perspectiva, v.3, n.3, jul-set. 1989. BRENNER, R The Origins of capitalist development: a critique or f neo-smithian Marxism. New Left Review, 1977. BUFFA, E Educação e cidadania: quem educa o cidadão? São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1987. Educação e cidadania burguesas. ( Col. Polemicas de Nosso Tempo,23.) CHIZZOTTI, A Estado, Educação e ideologias: o Estado brasileiro e a ideologia da educação (1930-1979). São Paulo, 1980. Tese (dout) PUC COUTINHO,C.N. Cidadania, democracia e educação. Idéias, n. 24, p.13-26, FDE, 1994. CUNHA,L.A. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. DEMO,P. Cidadania tutelada e cidadania assistida. São Paulo: Autores Associados, 1995. ______.Educação e qualidade. Campinas: Papirus, 1994. ______.Participação é conquista. São Paulo: Cortez, 1993. ______.Pobreza política. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1988. FREITAG, B Escola, Estado e Sociedade. São Paulo: EDART, 1975. GENTILI, P. Poder econômico, ideologia y educación. Buenos Aires: Flacso; Miño y Dávila, 1994. GIROUX, H. Teoria critica e resistência em educação: para além das teorias da reprodução. Petrópolis: Vozes, 1986. HORTA,J.S.B. Planejamento educacional. In: TRIGUEIRO, D.(coord.). Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. LAFER, Celso. A Reconstituição dos direitos humanos. São Paulo: Cia das Letras, 1988. Cadernos de Formação
111
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
LASKI, Harold J. O Liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973. LIBÂNEO,J.C. Democratização da escola: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São Paulo: Loyola, 1985. MANDEL, E. A Crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. Campinas: UNICAMP; Ed. Ensaio, 1995. MARSHALL , T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. MARX, K. El Capital. Crítica de la economía política. México: FCE, 1973. Tomo1.
CIDADANIA E EDUCAÇÃO
MELLO,G.N. Cidadania e competividade: desafios educacionais do terceiro milênio. São Paulo: Cortez, 1993. NAGLE, J. Educação e Sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU, 1974. PALMA FILHO, J.C. As Reformas curriculares do ensino estadual paulista no período de 1960 a 1990. São Paulo, 1996. Tese (dout.) PUC RIBEIRO,M.L.S A Educação no Brasil. São Paulo: Cortez, 1978. ROMANELLI, O.O. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978. ROUSSEAU, J. Do Contrato social. Lisboa: Portugália, 1968. SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Autores Associados, 1983. SEVERINO, A.J. Filosofia da educação: construindo a cidadania. São Paulo: FTD, 1994. _____. Sociedade civil e a educação. Campinas: Papirus-CEDES/ANDE?ANPED, 1992. A escola e a construção da cidadania, p.10. SOUZA, G.G.e. Cidadão brasileiro: a paixão e o devir (o papel da educação na construção da cidadania). Rio de Janeiro, 1991. Diss. (mestr.) UFRJ VACHET, A. L’Idéologie liberale. Paris: Anthopos, 1970. WEBER, M. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura, 1961. _____. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Mestre Jou, 1968. WEFFORT, F. C. A Cidadania dos trabalhadores. In: LAMOUNIER, B. ET AL. (orgs.). Direito, cidadania e participação. São Paulo: T.A. Queiroz, 1981.
112
Cadernos de Formação
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Nilma Lino Gomes2
UMA RELAÇÃO COMPLEXA Educação, cidadania, etnia e raça mantêm relação complexa. Será uma relação inclusiva? Ela aponta para aspectos mais profundos que envolvem o cotidiano, a prática e as vivências vi vências da população negra e branca do nosso País. Aponta, ainda, para os vínculos entre a educação, vista como um processo de desenvolvimento humano, e a educação escolar, escolar, entendida como espaço es paço socio-cultural e instituição responsável pelo trato pedagógico do conhecimento e da cultura. Pretendo, nesse artigo, discutir o tema proposto a partir de um recorte escolar sem, contudo, perder de vista os vínculos com as vivências e os outros espaços sociais em que o educativo acontece. Assim, ao considerar educação,cidadania, etnia e raça, direciono o meu olhar para a escola brasileira e o tratamento que a mesma tem dado à história e à cultura de tradição africana. Pensar uma educação escolar que articule a questão étnica e racial significa abrir espaço para discussões e práticas que vão além de uma proposta curricular ou de uma política educacional específica. Representa o questionamento acerca da centralidade da questão racial na nossa prática pedagógica, pedagó gica, nos projetos e políticas educacionais e na luta em prol de uma sociedade democrática que garanta a todos/as o direito de cidadania. Todos nós sabemos que a educação é um direito social. E colocar a educação no campo dos direitos é reconhecer o direito à diferença difer ença e enfrentar o desafio de implementar políticas públicas e práticas pedagógicas que superem as desigualdades sociais e raciais. Essa é uma questão que precisa ser levada a sério pelos/as educadores/as e formuladores/as de políticas. Ao falar em raça, considero os diversos grupos étnicos e raciais que formam o nosso País. Estou ciente de que existe muita polêmica no meio acadêmico e na própria sociedade brasileira quanto ao uso do termo raça. Alguns intelectuais intelectuais o rejeitam, rejeitam, adotando adotando etnia como como o melhor termo para se discutir as relações entre negros e brancos no Brasil. Segundo eles, os antecedentes históricos do conceito de raça o comprometem, pois o mesmo está ligado à idéia de dominação político – cultural e à antropologia física. Além disso, com o desenvolvimento das Ciências Biológicas, raça passou a ser considerado um conceito cientificamente inoperante. Por mais que essa postura seja uma contribuição ao estudo sobre relações raciais no Brasil e consiga justificar teoricamente o uso do termo etnia, na prática social, quando se discute a situação do negro na sociedade brasileira, raça é ainda o termo mais adotado pelos sujeitos sociais. É também o termo que consegue se aproximar da real dimensão do racismo presente pr esente na sociedade brasileira. Dessa forma, o Movimento Negro e alguns cientistas sociais quando usam o termo raça não o fazem mais alicerçados na idéia de purismo racial nem tampouco de supremacia racial como originalmente foi usado. Ao con-
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA PÁGINAS 113 A 122
etnia . [De etn(o)- + -ia 1.] S. f. An-
trop. 1. População ou grupo social que apresenta relativa homogeneidade cultural e lingüística, compartilhando história e origem comuns. [Neste sentido, tb us., a partir do início do séc. XX, em substituição a termos como nação, povo e raça , para designar as sociedades e grupos até então ditos primitivos .] .] 2. Grupo com relativa homogeneidade cultural, considerado como unidade dentro de um contexto de relações entre grupos similares ou do mesmo tipo, e cuja identidade é definida por contraste em relação a estes. [Sin., nesta acepç.: grupo étnico .] (Aurélio Eletrônico).
1
2
Fonte: AZEVEDO, J. C. de e outros. Utopia e democracia na educação cidadã . Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS/ Secretaria Municipal de Educação, 2000, p. 245-257. Professora do Departamento de Administração Escolar da FaculFaculdade de Educação da UFMG. Algumas partes desse artigo foram inspiradas em dois outros textos da autora, citados nas referências bibliográficas.
Cadernos de Formação
113
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Raça é aqui entendida como um conceito relacional que se constitui histórica, política e culturalmente.
114
Cadernos de Formação
trário, usam-no com uma nova interpretação, baseados em uma reapropriação reaprop riação social e política do termo, construída pelos próprios sujeitos negros. Usamno, ainda, porque, no Brasil, o racismo e a discriminação racial que incidem sobre a população negra ocorrem não somente em decorrência dos aspectos culturais presentes na vida desses sujeitos, mas pela conjugação entre esses aspectos (vistos de uma maneira negativa) e a existência de sinais diacríticos que remetem esse grupo a uma ancestralidade negra e africana. Dessa forma, ao discutirmos discuti rmos as relações entre negros e brancos no Brasil, não podemos desconsiderar o peso dos aspectos raciais. É nessa perspectiva que utilizo o termo raça nesse artigo. ar tigo. Raça é aqui entendida como um conceito relacionall que se constitui histórica, política e culturalmente. Rejeito o deterrelaciona minismo biológico e incluo três outras dimensões para a análise da questão racial, a saber: a geográfica, a histórica e a política. Nessa perspectiva, ao discutir sobre educação, cidadania e raça, refiro-me a todas as implicações que essa discussão acarreta para o segmento negro da população. Isso Isso inclui o debate sobre a falta de garantia de uma escola de qualidade e de políticas públicas voltadas voltadas para a população negra e pobre pobr e desse País. A implementação de políticas educacionais e práticas educativas democráticas não pode prescindir da realidade sociocultural brasileira. O Brasil é uma imensa nação cujas características principais não se reduzem às desigualdades socioeconômicas. É um país marcado, também, pela diversidade cultural e racial. Dessa forma, as práticas e políticas educacionais voltadas para os setores populares não podem desconsiderar a interferência das diferenças étnico/raciais nas condições de vida e na trajetória do povo brasileiro. A escola tem refletido que a conquista da cidadania se dá de maneira diferente para negros e brancos no Brasil e que o acesso e a permanência bem-sucedida na escola possuem um recorte de classe e de raça? Ao propor uma educação cidadã que articule a questão racial, tanto os/as educadores/as quanto os/as formuladores/as de políticas devem estar cientes da complexidade que envolve a história e a trajetória escolar do segmento negro no Brasil. Nos últimos anos, alguns estudos e pesquisas têm mostrado que o acesso e a permanência na escola variam de acordo com a raça/etnia da população. Ao analisar o acesso à escola e a vida escolar de alunos negros e brancos, algumas pesquisas têm concluído que as trajetórias dos/as alunos/as negros/as apresentamse bem mais acidentadas do que as desenvolvidas pelos/as alunos brancos/as. O índice de reprovação nas escolas públicas também demonstra que q ue há uma estreita relação entre a educação escolar e as desigualdades raciais na sociedade brasileira. brasi leira. O aprofundamento dessas questões aponta para a necessidade de repensar a estrutura, os currículos, os tempos e os espaços escolares. É preciso considerar que a estrutura estr utura rígida da escola brasileira encontrase inadequada às diferentes trajetórias e histórias de vida da população negra e pobre deste País. Nesse caso, ao pensarmos a relação entre a estrutura escolar e as particularidades étnicas e raciais da população brasileira veremos, com mais clareza, o quanto o seu caráter é excludente. A relação entre educação, cidadania e raça também chama a nossa atenção para algumas particularidades sobre a cultura de tradição africana no
Brasil que merecem ser consideradas pela educação. Uma delas é que apesar de possuir um traço cultural e uma descendência comum, o povo negro não se constitui em um bloco homogêneo. Mesmo que o racismo e a discriminação discri minação racial marquem de forma contundente a vida de todos/as os/as negros/as brasileiros/as, esse grupo possui interesses, necessidades e desejos diferentes de acordo com a localização geográfica, nível socioeconômico, geração e crenças religiosas. Mesmo diante de tantas particularidades, ser negro no Brasil possui um ponto comum que atravessa a trajetória de toda a comunidade negra: o fato de ser um povo imerso em uma história de luta. A demanda por uma educação escolar de qualidade e democrática faz parte dessa história. A comunidade negra sempre lutou pelo direito de ter uma escola digna para os seus filhos e suas filhas. A escola, muitas vezes, desconh desconhece ece e desconsid desconsidera era essa realida realidade. de. Ac Acredireditamos que só o fato de lutarmos pela democracia na escola já garante a igualdade de tratamento a todos /as. Essa crença é um grande equívoco. equívoco. Em alguns momentos, as práticas educativas que se pretendem iguais para todos acabam sendo as mais discriminatórias. Essa afirmação pode parecer paradoxal mas, dependendo do discurso e da prática educativa desenvolvidos, pode-se incorrer no erro da homogeneização em detrimento do reconhecimento das diferenças. Partir do pressuposto de que os sujeitos presentes na escola são todos iguais e que por isso possuem uma uniformidade de aprendizagem, de culturas e de experiências e que aqueles que não se identificam com esse padrão uniforme são defasados, especiais e lentos é incorrer em uma postura e uma prática discriminatórias. Quantas vezes encontramos essa concepção e essa postura no cotidiano das nossas escolas? Ainda nos falt Ainda faltaa avan avançar çar muit muitoo para com compreen preender dermos mos que o fato de serm sermos os diferentes uns dos outros é o que mais nos aproxima e o que nos torna mais iguais. Sendo assim, a prática pedagógica deve considerar a diversidade dive rsidade de classe, de sexo, de idade, de raça, de cultura, de crenças, etc., presentes na vida da escola, e pensar (e repensar) o currículo e os conteúdos escolares a partir dessa realidade tão diversa. A construção de práticas democráticas e não discriminatórias implica o reconhecimento do direito à diferença e isso inclui as diferenças raciais. Aí, sim, estaremos articulando educação, cidadania e raça. Por isso, a proposta de uma educação cidadã que assuma a importância da questão racial não significa a construção de uma escola desigual. É preciso superar uma idéia que paira no imaginário educacional de que explicitar as diferençass e propor uma escola que as incorpore no seu currículo representa diferença rep resenta uma postura política que opõe igualdade e diversidade. Caminhar nessa direção é um equívoco, pois o respeito à diversidade diversi dade de grupos étnico/raciais presentes presente s no Brasil está dentro da lógica da igualdade e dos direitos sociais e não da desigualdade.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Em alguns momentos, as práticas educativas que se pretendem iguais para todos acabam sendo as mais discriminatórias. Essa afirmação pode parecer paradoxal mas, dependendo do discurso e da prática educativa desenvolvidos, podese incorrer no erro da homogeneização em detrimento do reconhecimento das diferenças.
Diante dessas questões, que caminhos poderíamos seguir para concretizar uma educação que considere considere a raça como uma questão que merece um trato pedagógico e um lugar lugar nas nossas políticas educacionais? Um Um deles é a revisão dos valores e dos padrões considerados aceitáveis por todos/as dentro da instituição escolar. Cadernos de Formação
115
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Ser diverso não é um problema. Afirmar positivamente uma identidade racial também não. Ser diverso e portador de uma identidade racial são aspectos constituintess da nossa constituinte formação humana e também uma construção social e histórica.
3
Considerando o termo raça de maneira ressignificada, como explicitei no início desse ar tigo.
116
Cadernos de Formação
Sabemos que a escola privilegia um padrão de ensino, de aluno/a e de professores/as a ser seguido. segui do. Um padrão que incorpora uma noção de homem, de mulher, mulher, de sujeito social. Um padrão que, geralmente, é a representação de uma determinada realidade social e de classe. Qual será o padrão que impera na escola brasileira? Um olhar mais atento sobre a realidade escolar nos mostrará que a nossa escola ainda prima por um padrão branco, masculino, heterossexual e jovem jovem.. Outro caminho importante no sentido de articular escola, cidadania e raça é a superação do medo e/ou desprezo à diversidade. Seria interessante abrir um debate nas escolas para discutirmos com profundidade sobre a complexidade da diversidade cultural. Ser diverso não é um problema. Afirmar positivamente uma identidade racial também não. não. Ser diverso e portador por tador de uma identidade racial são aspectos constituintes da nossa formação humana e também uma construção social e histórica. É importante considerar esses dois lados da questão para não cairmos em um naturalismo exacerbado. Ao destacarmos as diferenças raciais não estamos apelando para a pureza das raças e nem dando ênfase ao dado biológico mas, sim, realçando o caráter político que essas diferenças assumem ao longo da história da humanidade. Por isso, seria interessante inte ressante discernir a especificidade especif icidade da raça como um elemento da nossa condição humana e a construção social da raça 3 ao longo da história da nossa sociedade. Esse ponto poderá ajudar a esclarec esclarecer er por que não é tão simples classificar as pessoas como negras e brancas no Brasil e por que muitos negros acabam por negar a sua pertinência racial e cultural. Ao longo da nossa forma formação ção histór histórica, ica, marca marcada da pela colo colonizaç nização, ão, escra escravividão e autoritarismo, o imaginário social construído sobre os negros não foi o mais positivo. Esse imaginário possibilitou a incorporação de teorias raciais repletas de um suposto cientificismo que durante muito tempo atestaram a inferioridade do negro, a degenerescência do mestiço, o ideal do branqueamento, a primitividade da cultura negra e a democracia racial. Teorias e mitos hoje rejeitados pela academia e pelos/as educadores/as? Nem tanto... Essas teorias e concepções raciais ainda estão presentes na atualidade e continuam exercendo força ideológica não apenas entre e ntre a comunidade branca mas entre parcelas significativas da comunidade negra. Elas não surgiram espontaneamente e nem são frutos de meras transposições de pensamento externo. Elas se alimentam e terminam por legitimar o racismo presente no imaginário social e na prática brasileira. A superação de tais teorias, hoje, na sociedade brasileira deve, e muito, à luta da comunidade negra no seu cotidiano e nas mais diferentes formas de organização política. Diante do exposto, acredito que a dificuldade existente entre a maioria da população brasileira quanto à identificação racial é fruto da construção histórica da negação, do desprezo e do medo do diferente, principalmente quando este diferente está relacionado diretamente à herança ancestral africana. Esse apelo à homogeneização ainda é muito forte no Brasil Brasil,, apesar da apologia da miscigenação racial. Mesmo que a mídia e a própria escola utilizem a miscigenação como um forte argumento no seu discurso sobre as relações raciais, a idéia de um país racial e culturalmente miscigenado ainda é, para as elites brasileiras e para uma grande parcela da população, motivo de medo
ou de desprezo. Por mais sedutores que os discursos sobre a miscigenação e a democracia racial possam parecer, é preciso tomar cuidado, pois ambos tendem a encobrir a relação entre desigualdades sociais e raciais ao longo da formação da sociedade brasileira. Por tudo isso, afirmo que ser negro, no Brasil, possui uma complexidade maior e não se restringe a um dado biológico. É uma postura política. É declarar explicitamente o vínculo com uma cultura ancestral, com a herança cultural africana recriada e ressignificada em nosso País. No Brasil, ser negro é tornar-se negro. O conhecimento dessas questões poderá nos ajudar a superar o medo e/ou desprezo às diferenças raciais ainda presentes na escola e na sociedade. Entender essa complexidade é uma tarefa dos/as profissionais da educação. É tarefa de uma escola que se quer cidadã e, por isso mesmo, não pode deixar de incluir a questão racial no seu currículo e na sua prática. E, por último, pensar em alguns caminhos que nos ajudem a propor uma educação cidadã que inclua a raça significa garantir, na prática escolar, o princípio constitucional da proibição do racismo. O que isso representa? Representa a superação de práticas veladas e explícitas de racismo no interior da escola que vão desde a escolha do professor, ao tratamento dado aos pais/mães e aos alunos/as negros/as. Significa rever as enunciações sobre o negro e a criança negra na escola, ouvir as vozes e os silêncios sobre questão racial no cotidiano escolar. Mas há de se tomar cuidado! Garantir uma escola igual para todos e que respeite a particularidade do povo negro não depende apenas de preceitos legais e formais. Não podemos acreditar numa relação de causa e efeito entre a realidade educacional e o preceito legal. Por mais avançada que uma lei possa ser é na dinâmica social, no embate político e no cotidiano que ela tende a ser concretizada ou não. E a realidade social e educacional sobre a qual uma lei pretende agir (por mais justo que o preceito legal possa nos parecer) é sempre complexa, conflituosa, contraditória marcada pela desigualdade social e racial. É dela que surgem as leis. Por isso nenhuma lei pode ser considerada neutra. Dessa forma, não basta apenas apregoar que o racismo é um crime inafiançável. Há de se compreender melhor o que é um crime de racismo. Que atitudes devemos tomar diante de uma prática racista? Quantas vezes já fizemos essa discussão em nossas reuniões pedagógicas? Os/as educadores/as estão instrumentalizados/as quanto a essa questão? Quem pode afirmar que a escola nunca pratica o racismo? Que atitudes a direção da escola assume diante de um/a professora que discrimina um/a aluno/a negro/a? Sem dúvida, a existência de princípios democráticos e igualitários na lei representa um avanço social e político e estes devem ser reconhecidos por todos/as os/as educadores/as. Mas a existência do texto legal só se transformará em direito para toda comunidade escolar na medida em que a escola construa, no seu interior, práticas concretas inclusivas que não discriminem e nem excluam nenhum grupo social, cultural, étnico e religioso, principalmente, aqueles que já trazem consigo um histórico de exclusão e discriminação como, por exemplo, o povo negro. A revisão dos currículos, a construção de uma relação ética e respeitosa entre professores/as e alunos/as, o entendimento do/a aluno/a como sujeito
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Por tudo isso, afirmo que ser negro, no Brasil, possui uma complexidade maior e não se restringe a um dado biológico. É uma postura política. É declarar explicitamente o vínculo com uma cultura ancestral, com a herança cultural africana recriada e ressignificada em nosso País. No Brasil, ser negro é tornar-se negro.
Cadernos de Formação
117
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Pensar a articulação entre educação, cidadania e raça é mais do que uma mudança conceitual ou um tratamento teórico. É uma postura política e pedagógica. É considerar que a educação lida com sujeitos concretos. Por isso, não basta conhecer o/a aluno/a apenas no interior da sala de aula e no cotidiano escolar. É preciso estabelecer vínculos entre a vivência sociocultural, o processo de desenvolvimento e o conhecimento escolar.
118
Cadernos de Formação
sociocultural e não somente como sujeito cognitivo, a compreensão de que os sujeitos presentes nas escolas vêm de diferentes contextos sociais e culturais e possuem diferentes visões de mundo são princípios de uma educação cidadã. O reconhecimento de que esses sujeitos são homens e mulheres que pertencem a diferentes grupos étnico-raciais e a consideração de que tal pertinência imprime marcas na construção da identidade racial dos mesmos são princípios de uma educação cidadã que considera e inclui a questão racial. Pensar a articulação entre educação, cidadania e raça é mais do que uma mudança conceitual ou um tratamento teórico. É uma postura política e pedagógica. É considerar que a educação lida com sujeitos concretos. Por isso, não basta conhecer o/a aluno/a apenas no interior da sala de aula e no cotidiano escolar. É preciso estabelecer vínculos entre a vivência sociocultural, o processo de desenvolvimento e o conhecimento escolar. O contato com os grupos culturais e religiosos da comunidade, com associação de moradores, com organizações do movimento social pertencentes à comunidade na qual o/a aluno/a está inserido/ a pode ser um caminho interessante. É o meio social e cultural que nos dá as bases para a nossa inserção no mundo. Ele é o lugar das nossas tradições, dos costumes, dos valores, das crenças que, na maioria das vezes, se chocam com os valores da escola. É nesse meio que o/a aluno/a negro/a desenvolve o complexo processo de construção das identidades sociais. E a identidade racial é uma delas. Conhecer, respeitar e tratar pedagogicamente essas diferentes experiências socioculturais é um dos passos para a construção de uma escola democrática. Assim, possibilitar o diálogo entre as várias culturas e visões de mundo, propiciar aos sujeitos da educação a oportunidade de conhecer, encontrar, defrontar e se aproximar de outras culturas é construir uma educação cidadã.
POR UMA EDUCAÇÃO CIDADÃ QUE INCLUA A IDENTIDADE E A CULTURA DE TRADIÇÃO AFRICANA Como foi dito anteriormente, ser negro, no Brasil, é mais do que um dado biológico, é uma construção histórica e política. Entender como a questão da raça se construiu historicamente em nosso País nos ajudará a compreender a complexidade que envolve a construção da identidade racial dos negros e mestiços brasileiros. Por isso, não podemos ignorar a raça. Ao discutirmos a questão racial no Brasil devemos considerar os aspectos étnicos e também raciais. Na minha opinião, raça e etnia não são sinônimos. Elas falam sobre dimensões diferentes dentro de uma mesma questão. Mesmo que vejamos os negros como um grupo étnico, não podemos desconsiderar as particularidades que os remetem a uma ascendência africana, a um padrão físico e estético. A existência dessas particularidades interfere na forma como o racismo, a discriminação e o preconceito racial incidem na vida de sujeitos negros e brancos. Interferem, também, na forma como se dá o processo de construção da identidade racial desses dois segmentos étnico-raciais no Brasil. Existe uma série de comportamentos, rituais, tradições e heranças e todo um contexto histórico e político que interfere no processo de construção da identidade étnico-racial de qualquer grupo humano. É um processo complexo para todos nós. Contudo, essa discussão não pode ser feita
desarticulada de uma análise que considere a herança cultural, a ressignificação da cultura, as relações de poder, as redes de sociabilidade, as mudanças sociais e políticas, a miscigenação, os deslocamentos geográficos presentes na trajetória e na história de todo grupo étnico-racial. Enquanto pode ser alardeada como sendo o lado exótico, sensual, cultural, que faz do Brasil um país festivo, alegre, sempre ligado ao som e à música (explorando ao máximo o mito da democracia racial), a herança cultural africana é muito bem explorada pela mídia, pelo governo, pela escola. Porém, quando se trata de analisar a atual situação dos descendentes de africanos, o racismo, a invisibilidade do negro na política e nos cargos de poder, as diferentes formas como os negros são discriminados na escola e na sociedade, essa herança cultural africana não é levada em consideração. Essa realidade revela a especificidade do racismo que assola a sociedade brasileira. Um racismo diferente daquele que acontece nos Estados Unidos ou que foi legitimado durante o extinto regime do Apartheid na África do Sul. O racismo no Brasil é um caso complexo, pois ele se afirma através da sua própria negação. Ele é negado de forma veemente no discurso da sociedade e da escola, mas mantém-se presente no sistema de valores que regem o comportamento da nossa sociedade expressando-se através das mais diversas práticas discriminatórias. Portanto, ao construirmos uma escola que contemple a história e a real situação do povo negro, não podemos desconsiderar essa ambigüidade do racismo brasileiro. Precisamos compreendê-la, desvelá-la e combatê-la. Dessa maneira, um ponto a ser considerado em uma proposta educacional que assuma a educação dos negros como uma tarefa política e pedagógica deve ser a compreensão do que significa o processo de construção da identidade racial para os sujeitos negros. Assim como tantos outros processos de identificação, o racial é construído dentro da relação de alteridade – nós e os outros – e em determinado contexto histórico, político e cultural. Sendo assim, ao mesmo tempo em que os negros buscam a sua identidade, não podem fazê-la sem enfocar a sua diferença em relação à sociedade ou aos outros grupos sociais e instituições. Esse processo implica a tentativa de diminuir as diferenças internas do próprio grupo e a articulação em torno da reivindicação de direitos, resultando na construção de um sujeito político. Parafraseando Jurandir Freire Costa, a escola ainda está assentada numa ideologia racial que faz do predicado branco, da brancura, o “sujeito universal e essencial” e do sujeito branco um predicado contingente e particular. Essa brancura ainda está muito arraigada no pensamento pedagógico e na prática escolar. O ideal da brancura, tão incrustado em nossa história, torna-se uma abstração e é reificado e colocado na condição de realidade autônoma, independente. Dessa forma, o padrão branco torna-se sinônimo de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica, a idéia da razão. A paz, o belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. A violência, a feiúra, a injustiça, as contendas são negras. Ao branco atribui-se a cultura confundida como ilustração. Ao negro atribui-se a cultura confundida como exotismo e/ ou primitividade.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Enquanto pode ser alardeada como sendo o lado exótico, sensual, cultural, que faz do Brasil um país festivo, alegre, sempre ligado ao som e à música (explorando ao máximo o mito da democracia racial), a herança cultural africana é muito bem explorada pela mídia, pelo governo, pela escola. Porém, quando se trata de analisar a atual situação dos descendentes de africanos, o racismo, a invisibilidade do negro na política e nos cargos de poder, as diferentes formas como os negros são discriminados na escola e na sociedade, essa herança cultural africana não é levada em consideração.
Cadernos de Formação
119
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Enquanto a educação escolar discutir a questão racial como um problema do negro, negando-se a considerá-la como uma questão colocada para toda a sociedade brasileira, continuaremos dando muito espaço para os mais diversos equívocos e para práticas intencionalmente racistas.
120
Cadernos de Formação
Diante dessa realidade tão complexa, como poderá o/a educador/a desconsiderar a importância da construção da identidade racial da criança, do/a adolescente e do/a jovem negro/a? Como será que a criança negra se vê refletida na escola? E na sociedade? A escola tem possibilitado aos/as alunos / as e professores/as negros/as condições adequadas para a construção de uma imagem positiva de si mesmos/as, do povo negro, da ascendência africana, da estética, da corporeidade, enfim, da cultura negra? Será que a situação é tão séria assim? Será que nós, educadores/as, tão comprometidos com a prática da democracia e com a construção de uma educação cidadã, incorremos nesse erro? Infelizmente, tenho que responder que sim. Enquanto a educação escolar discutir a questão racial como um “problema do negro”, negando-se a considerá-la como uma questão colocada para toda a sociedade brasileira, continuaremos dando muito espaço para os mais diversos equívocos e para práticas intencionalmente racistas. Não se pode pensar em uma educação que contemple a cidadania se partimos do pressuposto de que as questões colocadas pelos negros, pelas mulheres, pelos portadores de necessidades especiais devem ser tratadas pela escola simplesmente para atender a reivindicação desses sujeitos. Nesse ponto, gostaria de enfatizar que é dever e obrigação da escola criar condições e construir práticas que atendam a esses e outros segmentos que estão dentro dela, pois ela é uma instituição social e um direito de todos os cidadãos/ãs. Essa discussão ajuda a revelar o verdadeiro rosto do racismo e nos ajuda a compreender que a repressão e a opressão do racismo incide sobre o sujeito negro de tal maneira que, muitas vezes, ele mesmo é levado a desejar, a invejar, a introjetar e projetar uma identificação com o padrão branco em oposição à história do seu grupo étnico – racial e dos seus antepassados. Esse é um dos mecanismos através dos quais a violência racista se manifesta. Um outro ponto que poderíamos destacar diz respeito ao papel que a cultura, mais especificamente a cultura de tradição africana, ocupa na escola. No ambiente escolar, a cultura ainda é vista como algo externo aos indivíduos e não como um dos conteúdos constituintes de todos os modos de vida de uma sociedade. Dentro dessa concepção restrita, a cultura de tradição africana é reduzida às danças, à música, ao futebol, à sensualidade da mulata, ao carnaval. Por fim, ela acaba se restringindo às datas comemorativas e às meras “contribuições” para a formação da sociedade brasileira. Outras vezes ela é retrata como a cultura da violência e da exclusão: os meninos de rua, os traficantes que ocupam a favela, os detentos, os meninos que assaltam os carros da classe média quando estes param diante do semáforo, os mendigos queimados nos cantos da rua. É muito provável que diante de uma ênfase nesse aspecto, as crianças negras e brancas desenvolvam uma imagem negativa sobre o negro. Seria, então, papel da escola questionar por que esse grupo étnico-racial e não outro encontra-se nessas condições. Não seria oportuno para a escola lançar um olhar positivo sobre a cultura de tradição africana? Possibilitar aos alunos o contato com a imagem positiva do negro que, aos poucos, vem sendo retratada na mídia, em publicações específicas? Relembrar pensadores/as, políticos/as, cantores/as , artistas e intelectuais negros do passado e da atualidade? Não seria interessante resgatar a própria história
de vida dos/as alunos/as, ressaltando a luta das famílias para manter seus filhos na escola, para dar-lhes uma educação digna? A escola não poderia lançar um olhar sobre a beleza da estética negra, das artes, da religião, da música e a estreita relação entre a tradição cultural africana e o cuidado com a natureza e com o meio ambiente? Dessa forma, mudaremos o foco do nosso olhar sobre a educação e sobre a cultura de tradição africana. Entenderemos que a educação escolar é um recorte do processo educativo mais amplo, vivido por todo e qualquer indivíduo. E que os vínculos entre o que acontece dentro e fora da escola nos ajudarão a repensar os nossos currículos, nossas práticas e nossos valores dando lugar à construção de uma escola mais democrática. Através desse entendimento, a questão racial será vista de uma forma positiva, rompendo com o imaginário negativo sobre a população negra que ainda está muito arraigado em nossa sociedade e em nossa escola. Entender a beleza, a sensibilidade e a radicalidade da cultura de tradição africana, impregnada de norte a sul deste País e não somente no segmento negro da população é um aprendizado a ser incorporado por aqueles que cuidam da educação escolar. A cultura de tradição africana recriada no Brasil é bela e cheia de sabedoria. Nela, tanto o homem quanto a mulher são vistos na sua totalidade e não como fragmentos. Nesse modo de ser e ver o mundo, as várias dimensões do ser humano são destacadas: a racional, a ética, a estética, a corpórea, a espiritual, a ecológica, a política etc, dimensões construídas ao longo do acontecer humano e nos diferentes ciclos da vida. Quem sabe, assim, a escola poderá desencadear um processo de mudança de lógicas, de valores e de práticas e a tradição oral, a corporeidade, a ecologia, a estética e a diversidade dos vários grupos étnico/raciais sejam incorporadas como constituintes do processo educativo, como dimensões do currículo e da prática escolar? Poderemos, então, desenvolver práticas pedagógicas que entendam a educação escolar como um processo que vai além do letramento e da consciência revolucionária. Compreenderemos, então, o significado e a abrangência da cultura de tradição africana na construção e constituição da nossa sociedade. Dessa maneira, estaremos, sim, mais próximos da articulação entre educação, cidadania e raça.
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
Entender a beleza, a sensibilidade e a radicalidade da cultura de tradição africana, impregnada de norte a sul deste País e não somente no segmento negro da população é um aprendizado a ser incorporado por aqueles que cuidam da educação escolar. A cultura de tradição africana recriada no Brasil é bela e cheia de sabedoria. Nela, tanto o homem quanto a mulher são vistos na sua totalidade e não como fragmentos. Nesse modo de ser e ver o mundo, as várias dimensões do ser humano são destacadas: a racional, a ética, a estética, a corpórea, a espiritual, a ecológica, a política etc, dimensões construídas ao longo do acontecer humano e nos diferentes ciclos da vida.
Cadernos de Formação
121
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
EDUCAÇÃO CIDADÃ, ETNIA E RAÇA
ATIVIDADES 1) Em grupo de três alunos e, partindo do texto de Nilma Lino Gomes, leia os relatos abaixo registrados e faça uma interpretação das causas que levam as crianças Rodrigo, José Carlos, Lígia e Sueli a pensarem e a agirem da forma que relatam. Essas causas devem ficar separadas do seguinte modo: a) as que são fruto de preconceito de raça, b)as que são fruto de preconceito sócio-econômico e c) as que são fruto de preconceito racial e de condição sócio-econômica. 2) Produza um texto com o título: O que fazem as pessoas negras que eu conheço. Nesse texto, fale sobre onde elas trabalham e/ou o que fazem e relate também como e onde você as conheceu. Depois disso, o/a professor/a irá contar quantas pessoas negras o grupo conhece e construir um quadro das atividades de trabalho que essas pessoas negras realizam, tendo em conta o texto de Nilma Lino Gonçalves.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARCELOS, Luiz Cláudio. Educação: um quadro de desigualdades raciais. In: Estudos afroasiáticos . Rio de Janeiro, n.23, p.37-69, dez.1992. COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p.1-16. GOMES, Nilma Lino. Iguales y diferentes: escuela y diversidad cultural. In: GENTILI, Pablo (coord.) Ciudadania y educación: la formación ética como pratica de la libertad. Buenos Aires: Santilllana, 1999. GOMES, Nilma Lino. Educação e relações sociais: refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: LIMA, Ivan Costa e ROMÃO, Jeruse (orgs.). Educação popular afro-brasileira. Florianópolis: núcleo de Estudos Negros-NEN, 1999. MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria do Ensino Fundamental, 1999, p.137-149. NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogo de espelhos . São Paulo: EDUSP, 1993. ROSEMBERG, Fúlvia e PINTO, Regina Pahim. Trajetórias escolares de estudantes brancos e negros. In: MELO, Regina Lúcia Couto de e COELHO, Rita de Cássia Freitas (orgs.) Educação e discriminação dos negros . Belo Horizonte: IRHJP, 1988, p.27-51.
122
Cadernos de Formação
OS SENTIDOS EXPRESSOS POR QUATRO VOZES NUNCA OUVIDAS 1
CADERNOS DE FORMAÇÃO
“É lindo ouvir a voz dos silenciados. Uma vez rompido o silêncio, não será mais possível emudecê-los”. Branca Moreira Alves RODRIGO JOSÉ CARLOS LÍGIA SUELI
ÉTICA E CIDADANIA
OS SENTIDOS EXPRESSOS POR QUATRO...
PÁGINAS 123 A 126
Em todas as fases da vida, as pessoas, e não importa origem e condição social, elaboram projetos de vida futura, calcados na percepção que têm de suas existências, na forma como as contingências diárias e os sentimentos as marcam,e nos objetivos que pretendem atingir, como os destes alunos que puderam expressar um pouco sobre suas vidas. Mostram como vêem e lidam com o que lhes acontece, se e como conseguem superar as limitações que lhes são impostas e o modelo de representação de si mesmos, dos outros e da escola. Dão a conhecer o seu dia-a-dia na escola pública, na medida em que esse pequeno universo é vivido por eles nas suas relações sociais com outros, sob condições objetivamente dadas. E , sem constrangimento, deram voz às inquietações de suas almas que é dar curso aos seus sonhos impressos nos projetos de vida.
Rodrigo “Eu me chamo Rodrigo, tenho 13 anos, estou na sexta série, sempre estudei aqui nesta escola. Meu pai é motorista e minha mãe doméstica. Fui reprovado na segunda série, não lembro mais da professora. Dos professores que estão dando aula para mim eu gostei de dois professores o seu Evair e dona Josimar. Eu me dei bem com o jeito deles, eles me tratam como aluno normal, sem fazer diferença nenhuma. São gente fina. Não tem nenhum professor que eu não goste, nem inspetor, nem servente, e também a diretora. Gosto de todos. O que eu mais gosto é...apesar de no período da tarde não ter quase nada, o que tem mais gostoso é Educação Física. Não tem novidade como a turma da manhã. Eu gostaria de ficar aqui no ano que vem, mas eu vou fazer o SENAI, é uma pena, eu gosto muito daqui. Devido a gente ser de cor, tem algum colega que faz brincadeira; agora depende da brincadeira e da pessoa. Meu pai fala que a pessoa que é branca, que tem a pele branca acha que é mais, mas eu não devo ficar atrás dela não, que a gente tem que estudar pra mostrar que a gente não tá por baixo dele.
1
Fonte: LOPES, Ademil. Escola, socialização e cidadania: um estudo da criança negra numa escola pública de São Carlo. São Carlos: EDUFSCar, 1995, p. 103-108.
Cadernos de Formação
123
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
OS SENTIDOS EXPRESSOS POR QUATRO...
Quando começam com essas brincadeiras, por exemplo outro dia tinha dois urubus andando no telhado da escola e o Júlio disse:- “olha lá os irmãos do...vieram esperá-lo mais cedo hoje”, e aí todo mundo deu risada. Quando tá fora de aula então eu falo: –“oh! Vão parar de brincadeiras”, então quando falo, sabe, eles sabe. Quando alguns amigos fazem brincadeiras, não me sinto magoado, só que eu não gosto, respondo do mesmo jeito. Com relação a querer virar branco, eu comentei lá na vila sobre o Michael Jackson, eu acho uma bobeira dele, porque se uma pessoa tiver que fazer sucesso, ela tem, acho que ele acha que a turma, que o branco, deve estar contente, mas o grande lá em cima não deve estar. Porque foi Deus que deu a cor para ele. Eu não decidi o que vou fazer no futuro, quero fazer muitos cursos, até um dia em que eu encontrar uma coisa que eu goste para continuar fazendo. Viver para mim é uma coisa muito importante, viver é fazer um pouco de cada coisa, porque a vida tem coisa que a gente não conhece. Eu quero ir aprendendo sempre”.
José Carlos Eu tenho 15 anos, estou na oitava série, estou aqui nesta escola desde a quinta série. Não tenho pai e minha mãe é viúva e trabalha como empregada doméstica. Gosto dessa escola, mais do que a outra onde estudei, lá é mais movimentada, tem bastante atividades. Tem professores que são legais e tratam os alunos bem, sem restrição, mas tem alguns que são chatos, se acham o dono da vontade da gente, são cheios de querer dar moral. Tem alguns que ficam na marcação da gente, você virou pra pedir alguma coisa ou fala com o colega, o “cara” já berra “fica quieto aí seu...” Tem uns que são racistas e só vêem o cabelo enroladinho da gente; é suficiente pra gente começar pra gente começar a se dar mal. Tem aula que é uma bagunça e a professora deixa e aí sobra sempre pra gente que é escurinho. Um dia, minha mãe veio aí reclamar e falou com o professor. Eu estava junto. Ela veio reclamar da bagunça e por que fiquei com a nota baixa. Na minha classe tem uns caras que são racistas, ficam o tempo todo tirando sarro. Olha o negrão, como é feio e dão risada. Um dia eu não agüentei, o gordo me xingou de fedido, aí eu levantei, fui lá, dei um “bico” nele. A professora colocou os dois para fora; fomos para a diretoria. Lá eu contei o que tinha acontecido e aí eu assinei o livro de advertência e ele foi suspenso. Da outra vez quando o Paulo xingou minha mãe, daí eu parti pra cima dele, ele foi suspenso. Às vezes quando preciso copiar alguma matéria porque faltei, ninguém me empresta o caderno, ficam enrolando, enrolando, passa o tempo e nada. 124
Cadernos de Formação
Lígia
CADERNOS DE FORMAÇÃO
Eu fui reprovada por duas vezes por motivo de mudança de meus pais, estudei em Itirapina e em Ibaté, depois transferi-me para escola Gabriel Félix do Amaral e agora estou aqui no Sebastião. Moro com meus pais e os dois trabalham para manter a casa, somos dois irmãos, minha irmã está no período da tarde.
ÉTICA E CIDADANIA
Nas outras escolas em que estudei acho que fui bem tratada, pelo menos nunca ocorreu nenhum problema, nos outros colégios nunca percebi incentivo ao preconceito. Mas não levando pelo lado pessoal, aqui há um incentivo ao preconceito, e é bem aberto, dá pra perceber, até professores incentivam e maltratam pessoas negras. Infelizmente essa é a realidade. Na cabeça das pessoas brancas (existem exceções) o negro sempre continuará escravo, para servi-lo até o fim dos tempos. Na minha classe o preconceito não é só racial, existe preconceito até entre eles mesmos (dependendo da escola que cada um veio). Com relação aos da classe não conheço bem a todos, mas os que me relaciono mais parecem e tratar bem; não sei se é só na aparência, pois como eu disse: há dúvidas, pois o que vemos é o lado exterior de cada pessoa e o que eles sentem ou pensam, fica meio obscuro. Acho que por alguns sou discriminada, só que a maioria me trata bem quando precisam de mim (dinheiro, caderno emprestado). Muitas vezes, os professores pensam que está obscuro o que eles dizem sobre o negro, mas por mais que eles escondam, fica claro que também eles discriminam o negro. Um dos professores que procuram sempre esclarecer os alunos sobre estes problemas foi o professor Evair, quando eu estava no Gabriel Félix. A gente percebe a discriminação e o preconceito pela maneira de olhar, pelas brincadeiras. Eu fui criada de uma maneira bem aberta, não tenho preconceito por causa de minha cor, tanto é que a maioria de meus amigos são brancos e eu gosto deles. Não realizaria o tratamento que o Michael Jackson fez, mas isso vem da cabeça de cada um, da maneira de vida, ele por exemplo sofria rejeição dentro da própria família. Quando ocorreu aquele problema comigo na barraca 2 não me exaltei, pois para mim minha consciência é o que importa, minha capacidade. Eu tenho orgulho da minha cor, do que sou, e pouco me importa o que os outros dizem, por isso não preciso mudar de cor, quem gosta de mim, vai ter que gostar do jeito que eu sou. Eu sou feliz assim, por isso não vou mudar para ser aceita.
Sueli Eu não sei o nome do meu pai e o da minha mãe, eu não os conheci. Eu moro com minha avó e minha tia. Minha avó tem 70 anos e cuida da casa e minha tia é empregada doméstica.
OS SENTIDOS EXPRESSOS POR QUATRO...
2
Disseram que sua presença na barraca atrapalharia as vendas da quermesse da qual a escola estava participando na praça central da cidade.
Cadernos de Formação
125
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
OS SENTIDOS EXPRESSOS POR QUATRO...
Comecei a estudar aqui no Sebastião este ano (1992), antes eu estudava no Paulino Carlos, fui reprovada na segunda série e aí eu parei de estudar, quando quis voltar já não tinha vaga. A professora que está dando aula agora é legal e está me dando a maior força, a professora do Paulino Carlos me tratava bem, mas eu não gostava muito dela, ela não colocava na lousa e não explicava. Todo mundo reclamava da professora. Aqui é bem melhor que o Paulino, os serventes, inspetores, a diretora todo mundo trata bem a gente. Gosto de tudo que é feito aqui, da merenda, das brincadeiras, só não gosto quando chega a hora de ir embora para casa. Eu nunca fui tratada de forma diferente aqui, os colegas de classe sempre brincam comigo: me chamam de “carvãozinho”, não ligo por que sei que é brincadeira, mas na rua eu não gosto, aí me deixa chateada. Para falar a verdade...ah...eu não gosto de ser preta não, se eu pudesse fazer como o Michael Jackson está fazendo para ficar branco eu também faria. Meu sonho é ser branca...é diferente, e diferente em tudo...né. No futuro quero ser professora, professora de piano. A escola está me ajudando para o futuro, estou aprendendo mais; a gente vai ficando mais esperta. Eu gosto de desfilar também, já participei de desfile no Flor de Maio, foi muito legal. Quando participei do desfile aqui na escola não achei diferença e não fiquei com vergonha. Mas eu quero ser professora de piano, acho que ainda vou conseguir dinheiro para comprar um, minhas amigas têm piano (teclado), quem paga o estudo é o pai delas. Quem ajuda na minha casa é o meu irmão, ele mora perto de casa, ele ajuda em tudo, ele dá roupa, sapato, um monte de coisa e também me dá dinheiro pra sair no final de semana. Aos sábados eu vou dançar no Ítalo com minhas amigas, eu não namoro porque não acho graça, ah...eu nunca me apaixonei por ninguém, eu nunca namoraria um branco...porque eu não sei. Eu me acho feia, quando olho no espelho me sinto esquisita, quando acordo pela manhã com o cabelo espetado fico com bronca, por causa do cabelo. Quando eu não vou para a escola, eu deito e durmo; é chato ficar em casa sem fazer nada. Tenho televisão, mas não gosto. Eu vou sempre dançar no Flor de Maio, quando tem baile ou quando vem cantor. Lá vai branco também, mas nunca me tiraram pra dançar. O que mais gostaria mesmo...eu queria ver minha mãe e meu pai, eu só tenho um irmão, tenho muita solidão.
126
Cadernos de Formação
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
Cadernos de Formação
127
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
128
Cadernos de Formação
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
Cadernos de Formação
129
CADERNOS DE FORMAÇÃO
ÉTICA E CIDADANIA
130
Cadernos de Formação
S S A A R N I T E G L Á P &
EDITORA E GRÁFICA LTDA. RUA JÚLIO DE CASTILHOS, 1.138 CEP 03059-000 - SÃO PAULO - SP Tels: (11) 6618-2461 - 6694-3449 e-mail:
[email protected]