Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento N.º 232 Agosto 2017 Mensal . Portugal € 3,95(Continente)
As crises fazem aumentar as condutas abusivas no trabalho Aprenda a detetar as pessoas manipuladoras
O seu chefe é um
PSICOPATA? Física O que aconteceu à antimatéria?
Publicidade O futuro da arte de seduzir
Psicologia Para que servem os sonhos?
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A CRISEÍSSEIS DOS M FOI HÁOS 55 AN
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O lugar do saber T
alvez possamos refrasear aquele adágio segundo o qual o saber não ocupa lugar. Talvez o devêssemos ter feito há muito tempo. Talvez se o tivéssemos feito antes não fosse agora necessário parar para respirar fundo perante as notícias. Líderes eleitos em sufrágios que ninguém contesta (embora minados na sua legitimidade por manipulação, mentira, ameaças, etc., tal como fez Hitler para chegar ao poder) entretêm-se a distrair o povo sem nada de útil fazer, enquanto brincam com o fogo: “O que é que eu hei de fazer para animar a malta? Uma guerra? Duas? Não sei, tenho de pensar, mas agora vou ali mandar mais umas bocas incendiárias, para o pessoal não se aborrecer. Afinal, eu prometi-lhes um cruzeiro divertido, tudo incluído, não posso deixar que eles se arrependam do investimento.” O saber não ocupa lugar? Na Turquia, vai deixar de se ensinar a evolução das espécies pela seleção dos mais aptos. Razão? É uma “teoria controversa”, que os jovens de 14/15 anos não têm capacidade para entender. Em contrapartida, será ensinada a versão do Corão, que aliás é a mesma da Bíblia: Adão e Eva, Noé, a Arca, essas coisas. Charles Darwin regressou da sua longa viagem no Beagle muito perturbado. Escreveu no relato, a propósito da Austrália, que parecia que dois Criadores tinham chegado a resultados diferentes partindo do mesmo ponto e tendo o mesmo objetivo: para cada animal e planta do Velho Mundo, havia um equivalente na ilha-continente, mas diferente. “Duas arcas de Noé?”, poderá ter-se perguntado Darwin. Na primeira metade do século XIX, perguntas como esta doíam, especialmente a alguém que estudara teologia e considerara a hipótese de se tornar sacerdote. Darwin levou vinte anos a ganhar coragem para anunciar urbi et orbi as suas conclusões, a maior machadada de sempre na narrativa do Antigo Testamento, que une judeus, cristãos e muçulmanos. Século e meio depois, cresce o Criacionismo nos Estados Unidos, crescem os evangélicos por todo o lado, incluindo Portugal (para não falar no Brasil, onde têm uma importância política determinante), a Turquia de Ataturk embarca numa deriva fundamentalista. O saber não ocupa lugar? Ocupa cada vez menos, infelizmente. O que podemos fazer? Insistir, resistir, nunca desistir. C.M.
232
Agosto 2017
FÍSICA
Os mistérios da antimatéria
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CIÊNCIA
Como funciona a complexidade? SAÚDE
O segredo da longevidade
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ANIMAIS
Um hospital bestial ANTROPOLOGIA
O poder dos símbolos FOTOGRAFIA
O mundo dos drones SOCIEDADE
Sequestrar neurónios SOCIEDADE
Os anúncios do futuro SOCIEDADE
A evolução do reclame
S E N U N E G R O J
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PSICOLOGIA
O mundo dos sonhos NEUROLOGIA
Disparates cerebrais PSICOLOGIA
Trabalhar com um psicopata
38 44 50 56 60 64 70 74 80
ANTROPOLOGIA
Até te comia!
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AMBIENTE
Ciência na praia. Vai de férias? O mais provável é que se encaminhe para a costa, tendo na ideia uns dias passados à beira-mar, entre areias doces e mar azul. Bem pensado! No entanto, há muito mais no litoral do que apanhar sol e mergulhar de vez em quando para refrescar um pouco.
Safaris na costa
Olhe à sua volta e medite no que vê. Nem tudo é mar e sol, certo?
Fidel Castro: sonho e despertar
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HISTÓRIA
Diretor
Edição, Redação e Administração
Assinaturas e edições atrasadas
Carlos Madeira
[email protected] GyJ España Ediciones, S.L.S en C. Calle Áncora, 40 28 045 Madrid
http://www.assinerevistas.com
[email protected]
Coordenador
Filipe Moreira Colaboraram nesta edição
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Máximo Ferreira e Paulo Afonso (colunistas), Alfredo Redinha, Elena Sanz, Esther Paniagua, Isabel Joyce, Janire Rámila, Jorge Nunes, Laura González de Rivera, Luis Muiño, Miguel Ángel Sabadell, Miguel Mañueco, Norberto Fuentes, Pablo Colado, Raquel de la Morena, Roger Corcho e Sergio Parra.
[email protected] Todos os direitos reservados Esta publicação é propriedade exclusiva da GyJ España Ediciones, S.L.S en C. e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é totalmente proibida,
Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01 de acordo com os termos da legislação em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente, tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia, reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com autorização expressa e por escrito da GyJ España Ediciones, S.L.S en C. © GyJ España Ediciones, S.L.S. en C.
Observatório
A melhorsuperterra
O
instrumento HARPS (sigla em inglês de “pesquisador de planetas de alta precisão pelo método da velocidade radial”), que o Observatório Austral Europeu mantém nas suas instalações de La Silla, no Chile, permitiu a uma equipa internacional de astrónomos descobrir uma nova superterra, muito promissora e a
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SUPER
apenas cerca de 400 anos-luz de nós. O planeta cidade para conservar uma atmosfera. Além orbita em torno da anã vermelha LHS 1140, na disso, tem uma densidade muito elevada: é zona habitável do sistema, e, apesar de se encon- possível que seja um mundo rochoso, como trar dez vezes mais perto da estrela do que o nosso, e que também possua um núcleo de nós do Sol, recebeapenas metade da irradiação ferro. Os cientistas suspeitam que, há alguns da Terra. Os investigadores estimam que o pla- milhões de anos (calcula-se que tenhauns 5000 neta tem 1,4 vezes o diâmetro do nosso e 6,6 milhões, um pouco mais do que a Terra), possa vezes a sua massa, o que implica que tem capa- ter tido um oceano de magma à superfície,
E C A P S IA N E L A S E L A H T
Dirigível estratosférico
O
futuro dirigível estratosférico Stratobus, em desenvolvimento na Thales Alenia Space, alcançará uma altitude de 20 quilómetros, uma região da atmosfera que ainda conserva a densidade necessária para sustentar uma nave deste tipo. Como a essa altitude os ventos não ultrapassam os 90 quilómetros por hora, poderá manter-se estacionário graças a um motor elétrico. A ideia do governo francês, que até ao momento investiu 17 milhões de euros na S E IM T E H T / E F F I L C T A R J IS R H C
construção de um protótipo de demonstração deste engenho não tripulado, é que leve a cabo missões de vigilância, por exemplo, para o controlo das plataformas petrolíferas e a luta contra o terrorismo, mas também que realize estudos ambientais. O Stratobus poderá levar entre 250 e 450 quilos de carga. Se se cumprirem os planos, o protótipo começará a ser montado em 2018, e o dirigível operacional entrará ao serviço em 2020 ou 2021. O Audi Quattro lunar, de 35 kg, construído em alumínio e titânio, pode alcançar os 3,6 km/h.
A F C / S S I E
W . M
Um mundo 6,6 vezes mais maciço do que o nosso orbita a anã vermelha LHS 1140, numa zona em que pode ter água líquida à superfície.
rovers Encontro deequipa s engenheiros da alemã PTlunares do último local visitado, até agora, por seres
O
Scientists estão há dez anos a aperfeiçoar um módulo de alunagem e um par o que, por sua vez, teria proporcionado vapor de de rovers que poderão partir para o nosso água à sua atmosfera. Segundo o coordenador satélite dentro de meses. Os responsáveis da equipa, Jason Dittmann, do Centro de Astro- da iniciativa, apoiada pelo Centro Aeroesfísica de Harvard (Estados Unidos), “trata-se pacial Alemão e pela Audi, asseguram que é do exoplaneta mais interessante descoberto possível reduzir significativamente os cusna última década, e o alvo perfeito para levar tos da exploração espacial. Para demonstrá-lo, planeiam fazer pousar os veículos no a cabo uma das missões mais ambiciosas da ciência: procurar provas de vida fora da Terra”. vale de Taurus-Littrow, não muito longe
humanos, em 1972. A escolha tem um lado emocional: encontrar-se-ão com um “antepassado”, o buggy da missão Apolo 17, que está há 45 anos submetido às extremas temperaturas lunares. Cada uma das rodas dos rovers pode girar 360 graus, para aumentar a mobilidade. Os veículos levarão duas câmaras estereoscópicas que permitirão obter imagens panorâmicas tridimensionais, e outra científica, para estudar o terreno lunar. Interessante
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Observatório
R E N S L -E R E L L Ü M R E IN E H / L E F X N A E P O R U E
O maiorlaser de raios X P
erto de Hamburgo (Alemanha), situa-se a Instalação Europeia de Laser de Eletrões Livres de Raios X (XFEL), o laboratório deste tipo mais avançado do planeta. O coração do XFEL (http://www.xfel.eu) é um acelerador de partículas que se estende ao longo de um complexo de 3,4 quiló-
metros de comprimento, na sua maior parte subterrâneo, que permite conseguir um laser de raios X muito brilhante. No passado mês de maio, gerou o seu primeiro feixe, o último teste antes de entrar ao serviço, em setembro. Os responsáveis por esta iniciativa internacional (em que Portugal não
participa) assinalam que o comprimento de onda da radiação laser corresponde ao tamanho de um átomo. Graças a esta propriedade, poder-se-á conhecer a estrutura molecular de novos compostos com possíveis aplicações terapêuticas ou estudar em tempo real as reações bioquímicas.
A OPINIÃO DO LEITOR Cacau, não café No artigo A Evolução da Comida
[SUPER 230, junho 2017], é cometida uma imprecisão, quando se refere que as culturas pré-colombianas negociavam com grãos de café (não havia café na América pré-colombiana). Queriam com certeza referir-se a favas de cacau. Dispenso-me de comentar a atribuição feita 6
SUPER
pelo autor a Cristóvão Colombo de ser o mentor da necessidade de encontrar um caminho marítimo que substituísse a rota terrestre do comércio das especiarias. É que a história não se rescreve... Filipe da Silva Bíblia invertida
Parece que ninguém reparou, mas, na
página 15 da edição especial Bárbaros [maio 2017], a Bíblia ulfilana vem reproduzida de cabeça para baixo. Identificam-se perfeitamente vários caracteres e, nomeadamente, as palavras “missa” e “amén”. Para pessoas mais suscetíveis, isso pode ser considerado grande ofensa e até sacrilégio. Ana Vieira
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SI 232
O Lado Escuro do Universo
O xeque-mate doDARWIN
P
laneado para entrar em funcionamento em 2024, o observatório DARWIN poderá representar finalmente o xeque-mate na caça aos WIMP, os candidatos “exóticos”, maciços e de baixa interação, que se julga poderem constituir a massa escura. O nome do observatório deriva das palavras inglesas para deteção de massa escura com base em xénon líquido, tendo-se já aqui discutido os resultados de experiências como a LUX, ou a XENON 10 e a XENON 100 (e as técnicas relacionadas com as câmaras de projeção temporal), enquanto percursores dos grandes dete-
Alimentação de alta voltagem
Fotossensores superiores
Câmaras de projeção
Refletor
material detetor. O DARWIN é essencialmente um enorme criostato de boa resolução energética, com baixa radiação de fundo garantida por escudos concêntricos, que irá usar umas impressionantes 50 toneladas de xénon líquido. Isto comparando com apenas um par de toneladas na experiência XENON 1T, em funcionamento, desde dezembro de 2016, também nestas grutas italianas que protegem os detetores dos raios cósmicos. A XENON 1T já atinge uma sensibilidade notável com uma secção eficaz WIMP-nucleões de 1,6x10–47 cm2 SUPER
Ânodo
Parede criostática dupla
futuros. Espera-se, atores múltiplos níveis, que o DARWIN arrume de vez a questão dos WIMP como massa escura. Vejamos quais são as características principais e as expectativas relativas a este observatório a instalar nas montanhas italianas de Gran Sasso. Entre as vantagens do xénon líquido, é de notar a luz produzida por interações nucleares com WIMP e a capacidade de aumentar a escala dos detetores de forma relativamente fácil. É de realçar, porém, o baixíssimo nível de interação dos WIMP: muito menos do que um evento por quilograma de xénon líquido por ano. Daí serem necessários detetores mais volumosos, contendo mais toneladas de
8
Criogenia, purificação, aquisição de dados
H C . H Z .U IK S Y H .P IN W R A /D / : P T T H
momento angular nuclear diferente de zero, o que permite testar outros acoplamentos WIMP-nucleões. As expectativas para a “derradeira caçada aos WIMP” são grandes, estimando-se que se possam registar cerca de uma centena de eventos ao longo de vários anos de observações, conforme a massa dos candidatos escuros. A sensibilidade imbatível do DARWIN, dado o seu baixíssimo ruído de fundo, permitirá ainda alargar as suas observações a áreas como a deteção de neutrinos solares da cadeia termonuclear protão-protão, neutrinos de supernovas galácticas
Cátodo Fotossensores inferiores
(com sensibilidade todos os sabores deaneutrinos), duplo decaimento beta no 136Xe (procurando esclarecer se os neutrinos são ou não partículas de Majorana), axiões solares a massas de 50 GeV/c 2 (ou seja, cerca de 50 e partículas galácticas similares aos axiões, vezes a massa do protão). Para se ter uma super-WIMP (candidatos a massa escura noção do que representam estes números, quente), etc. importa dizer que a secção eficaz para interaCom financiamentos e equipas científicas ções de espalhamento de eletrões com neutri- sobretudo europeias (incluindo da Universi7 –45 nos solares Be de baixa energia é de 6x10 dade de Coimbra) e norte-americanas, o relacm2. Ora, o DARWIN quer ir mais além do que tório técnico do DARWIN estará terminado a XENON 1T, pensando-se que venha a atingir em 2019, seguindo-se estudos de engenharia uma espantosa secção eficaz de 2,5x10 –49 cm2 até 2021. Os desafios tecnológicos e científipara WIMP com massas de cerca de 40 vezes cos são diversos e complexos, situando-se a massa do protão. A este nível, a procura de a nível dos fotossensores, da utilização de massa escura tornar-se-á indistinta do irredu- materiais puros, da construção de estruturas tível de fundo causado pelos neutrinos, já de ruído si fantasmagóricos! Qual é a massa dos WIMP, a intensidade dos seus acoplamentos, a sua distribuição galáctica? O DARWIN poderá vir a dar estas respostas num vasto intervalo de massas, cobrindo dos 5 GeV/c 2 aos 10 TeV/c 2. O DARWIN irá ainda explorar acoplamentos WIMP-neutrões que são dependentes do spin , complementando os resultados do Grande Colisionador de Hadrões(LHC, na sigla inglesa) para massas dos WIMP até 1 TeV/c 2. Além disso, o xénon natural tem dois isótopos ( 129Xe e 131Xe) com
criogénicas xénonelíquido está a da –100 ºC), da análise de(odados simulações, reconstrução quadrimensional espaciotemporal dos eventos detetados e da fenomenologia de astrofísica de partículas. As sessões de observação deverão começar em 2022, decorrendo pelo menos durante uma década. Irá o DARWIN fazer história? PAULO AFONSO Astrofísico
N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990, embora sob protesto.
ASTROFESTA 2017 Monsaraz recebe o Universo! 25, 26 e 27 de Agosto Observatório do Lago Alqueva - OLA
Palestras Oficinas Atividades Culturais Observações Solares Observações Noturnas Entrada Livre
Para mais informações: http://www.museus.ulisboa.pt/pt-pt/astrofesta-2017 http://olagoalqueva.pt/events/astrofesta-2017-monsaraz-recebe-o-universo/
Organização / Apoios:
GPS: N 38° 26’ 35.5” W 7° 22’ 01.5”
Histórias do Tejo
O atentado
Cunene
ao
Em 1970, a Ação Revolucionária Armada levou a cabo o seu primeiro atentado: três operacionais roubaram um barco a remos efizeram explodir uma bomba junto ao casco donavio Cunene, fundeado no Tejo, que transportava armas e munições para a Guerra Colonial, mas a operação passou quasedespercebida. a madrugada de 26 de outubro de 1970, dois homens remavam nas pacatas e escuras águas do Tejo na
Lisboa, e viveu escondido os três anos seguintes. Descoberto, levaram-no para uma colónia penal da Guiné-Bissau, mas o escorregadiço
direção da barra, contra a corrente da maré, tão silenciosamente quanto possível. Levavam a bordo canas de pesca, um camaroeiro e um isco para disfarçar, umas sanduíches para matar o bicho, uma garrafa de tinto para dar coragem e duas bombas artesanais para afundar um navio. O atentado aoVera Cruz, um paquete com 185 metros de comprimento e 22 mil toneladas de peso que servia de transporte a militares durante a Guerra Colonial, foi cuidadosamente planeado ao pormenor. Afinal, seria o batismo de fogo da recém-criada Ação Revolucionária Armada (ARA), o braço militar do Partido Comunista Português. Nada poderia falhar. O que sobrava em amadorismo compensar-se-ia pela apaixonada dedicação à causa revolucionária. O plano contava com a participação logística de vários homens e mulheres
N
revolucionário voltou a fugir, saltando onde para se Dacar, no Senegal, e daí para Espanha, juntou aos republicanos. Em 1932, regressou a Portugal e abrigou-se numa casa clandestina do Partido Comunista, até voltar a ser apanhado, em 1936. Gabriel seguiu na primeira fornada de prisioneiros para o Tarrafal, a bordo do navio Luanda , acompanhado pelos marinheiros do Motim dos Barcos do Tejo. Na colónia penal de Cabo Verde, teve a companhia da mulher, Margarida Hervedoso, e do filho, Edmundo Pedro, deportado com apenas 17 anos. Outro estava bem encaminhado. Carlos conseguira filho, João, morreu aos 14 anos, espancado emprego como arquivista no jornal O Século, por fascistas. No Tarrafal, tentou suicidar-se e esperava aproveitar o pé à porta para entrar e assistiu à morte de Bento Gonçalves, o na profissão. Já o da revolução seria mais espisegundo secretário-geral do PCP. Gabriel e nhoso e carregado de perigos, certamente, Edmundo protagonizaram uma audaciosa mas o transmontano idealista transbordava tentativa de fuga do Campo da Morte Lenta, de energia e vontade de entrar em ação. em 1943, mas foram apanhados. Em 1945,
do PCP, mas doisoexecutariam o golpe. Que estranho par,só esse: jovem e impetuoso Carlos Coutinho e o velho rebelde Gabriel Pedro. Aos olhos comuns, passavam por avô e neto. Tanto melhor. Nascido em 1898, Gabriel já andava metido em revoluções desde a adolescência, revelando-se ainda no rescaldo do golpe republicano de 1910. Aderiu ao PCP praticamente desde que o partido foi fundado, participou em várias ações subversivas e, em 1925, já estava a ser deportado para Timor. Escapou atirando-se ao Tejo, quando o navio saía de
regressaram a Lisboa, depois noveVoltou anos ade cárcere. Em 1964, exilou-se emde Paris. tempo de participar nas ações da ARA, apesar de já estar entradote para grandes aventuras: tinha 72 anos. A história de Carlos Coutinho é bem mais curta. Nasceu em Vila Real, no ano em que Gabriel tentou escapar do Tarrafal, e migrou ainda novo para Lisboa. Em 1970, tinha 27 anos (a idade do seu camarada ao contrário…) e dois sonhos: ser jornalista e ajudar a deitar abaixo a ditadura, então encabeçada por Marcelo Caetano. O sonho de ser repórter
10 SUPER
OPERAÇÃOZITA Ao final de umaREVOLUCIONÁRIA agradável tarde de sol outonal em Lisboa, no dia 25, Carlos Coutinho foi esperar a mulher à porta do escritório. Ia inquieto, mas não com a bomba que faria explodir daí a umas horas. A sua preocupação era outra: como contar a Antonieta que se preparava para uma arriscada missão revolucionária, que lhe podia tirar a vida ou, pelo menos, a liberdade? Quando o casal chegou a casa, depois de uma caminhada pela cidade, Antonieta preparou um café e uma surpresa ao marido, que se sentara, absorto, na cozinha.
Despiu a roupa de andar na rua, vestiu um robe e chamou-o para a sala. “Anda beber o café!” Carlos sentou-se no sofá, ignorando a pose sensual da mulher, bebericou o café, acendeu um cigarro e contou-lhe, com falsa descontração, que ia sair para participar numa operaçãozita revolucionária. Antonieta ficou em choque.
O grupo decidira que seria demasiado arriscado embarcar a bomba no Poço do Bispo e combinara que Gabriel navegaria para norte, junto à margem, até ao discreto Cais da Italiana, onde Carlos Coutinho o esperaria com os explosivos. Isso significava voltar para trás (o paquete encontrava-se fundeado a jusante), mas o desvio valia a pena. Gabriel estava à
Pelas 22h20, Gabriel Narciso, encontrava-se, altura da tarefa, dario, idade tinha sidode o camarada Raimundo na Docacom do pescador naqueleapesar mesmo que–conhecia Poço do Bispo. O veterano passara os últimos olhos fechados. Outra vantagem, atendendo dias a vigiar o pequeno porto, para escolher o à penumbra que cobria o Tejo. transporte certo a roubar. Entrou despreocuMais descansado, Raimundo Narciso saiu padamente para um barco a remos, enquanto do Poço do Bispo, pegou no carro e dirigiu-se Raimundo vigiava, nervoso, de pistola no para Alcântara, para levantar as bombas que bolso, um guarda-fiscal que se passeava ali ele mesmo ajudara a construir, num laboperto. Gabriel Pedro saiu da doca como quem ratório improvisado em Arruda dos Vinhos. faz disso rotina e o militar não desconfiou. Notava-se que eram engenhos caseiros – uma A embarcação chamava-seCatraia III, mas o gato lata de gasóleo de 20 litros e outra de tinta assanhado pintado no casco dar-lhe-ia a alcunha de dez litros cheias de explosivos, com três de “Gata Manhosa”, entre os membros da ARA. tentáculos de ferro soldados às latas e ímanes
O alvo inicial dos revolucionários era o Vera Cruz, que transportava tropas de e para as colónias em África. Na foto, o Vera Cruz regressa ao Tejo, em 1971.
Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013) http://bit.ly/1hrY8Zc
Interessante 11
Histórias do Tejo Impacto no exterior
O
comunicado da ARA para a imprensa internacional: “Hoje, dia 26 de outubro, cerca das cinco horas da manhã, um comando da Ação Revolucionária Armada (ARA) levou a cabo com êxito a primeira operação revolucionária armada contra o aparelho de guerra do governo fascista. Em virtude desta ação, ficou alagado e imobilizado na doca de Alcântara, Lisboa, com grande rombo, o navio Cunene, de 16 mil toneladas, que é utilizado para alimentar a guerra de opressão colonial. O comando central da ARA declara que, ao atacar
a máquina de guerra que alimenta a guerra colonial, não estamos contra os soldados, os sargentos e oficiais honrados, forçados a fazer uma guerra que odeiam. Estamos, sim, contra a continuação desta criminosa guerra de opressão colonial que se transformou num flagelo para os povos de Angola, Guiné e Moçambique, e num cancro que corrói a nação, que queima vidas e bens do povo português para servir os interesses dum punhado de monopolistas sem pátria. Estamos solidários com a justa luta libertadora dos povos coloniais. A ARA propõe-se conduzir a sua ação revolucionária no
quadro da luta geral do povo português contra a ditadura fascista e pela conquista da liberdade. Deste modo, a ARA não se desliga da luta revolucionária das massas, da luta dos operários e camponeses, da luta dos estudantes e intelectuais revolucionários contra a política fascista do governo de Marcelo Caetano; antes se propõem secundá-la até à insurreição popular armada que destruirá para sempre a ditadura fascista e o poder dos monopólios e latifundiários, assim como o domínio imperialista no nosso país. Viva a insurreição popular armada!”
nas pontas, para acoplar aos cascos de metal do navio. De Alcântara, o operacional da ARA largou para o Cais da Italiana, perto das Docas dos Olivais, acompanhado de mais dois camaradas e dando boleia a Carlos Coutinho pelo caminho. Carlos entrou no carro de olhos fechados, com a ajuda de Raimundo, para não ver a matrícula do veículo. Cuidados como este eram fundamentais para manter o anonimato de
esconderam-se na sombra de um cargueiro e aguardaram. De vez em quando, espreitavam, com cautela, mas o barco-patrulha não se mexia. A angústia crescia com o avançar da madrugada. Tão perto e tão longe! Gabriel Pedro, o mais inconformado, queria continuar a esperar, até Carlos lhe recordar que os relógios das bombas haviam sido programados para as cinco da manhã. A essa hora, estivessem colados a um navio ou a bordo de
das três da manhã. As bombas rebentariam daí a duas horas, pouco antes da alvorada. Missão cumprida. Na manhã do dia seguinte, os rebeldes acorreram aos quiosques para confirmar que a primeira operação da ARA tinha tido o devido destaque na imprensa: sem publicidade, o impacto seria pouco mais do que nulo. Era muito provável que, tendo consciência disso, a censura não deixasse passar a notícia, mas
cada um, nanopossibilidade haver agentes infiltrados grupo ou de de a PIDE (entretanto rebatizada DGS, Direção-Geral de Segurança) prender um elemento e o obrigar a confessar a identidade dos comparsas, sob tortura. Pela mesma razão, todos u savam pseudónimos entre si. Carlos Coutinho, por exemplo, apresentava-se aos camaradas como Meneses. O grupo parou o automóvel a poucas centenas de metros do local combinado com Gabriel Pedro e atravessou, a pé, um terreno baldio, até chegar ao Tejo. A Gata Manhosa já os esperava. Carlos entrou para o barquito, juntamente com as bombas, material de pesca (para passarem por pescadores caso a guarda-fiscal os mandasse parar), um saco cheio de sanduíches e uma garrafa de vinho – a viagem ainda seria longa. Gabriel Pedro remou para o meio do rio, evi-
um minúsculo barco aa bordo, remos os com dois infelizes revolucionários engenhos explodiriam. O argumento convenceu Gabriel. Era hora de abortar a missão ou pensar numa alternativa. Foi nesse momento que os homens repararam, quase ao lado deles, no Cunene , um grande navio de mercadorias usado para transportar munições para a Guerra Colonial. Em mais meia dúzia de remadas vigorosas, encostaram-se ao cargueiro. Carlos pegou numa escova de aço e esfregou o local onde deveria colocar a bomba maior, centímetros abaixo da linha de água, para os ímanes terem melhor aderência. Instalado o primeiro engenho, seguiram para a hélice, colocaram a segunda bomba e puseram-se em fuga.
Diário de Notícias , o título não, lá violentas estava, noexplosões “Duas provocaram um rombo num porão do navio Cunene, atracado à muralha de Alcântara”, No artigo, o comandante atribuía os rebentamentos a “gases no porão” e desvalorizava o incidente, garantindo que daí a uns dias o Cunene estaria pronto para regressar ao mar. Nem uma palavra a evocar terrorismo ou ação revolucionária. Pouco importava. Nessa noite, Jaime Serra, do comando central da ARA, entrou numa cabina telefónica, ligou para as agências de notícias Reuters, France Press e United Press e leu-lhes o comunicado do grupo a reivindicar o ataque. Pelo menos no estrangeiro, todos ficariam a saber que o Estado Novo tinha inimigos ferozes a miná-lo por dentro. Esta era a primeira de muitas ações. A mais aparatosa aconteceria daí a seis meses: uma série de
tando as luzes olhos que de pululavam nas margens, com ea os naturalidade quem nunca fez outra coisa na vida. O alvo encontrava-se a dez quilómetros de distância, em Alcântara, e a jornada tinha os seus perigos. Nem à noite o Tejo adormece, e, na escuridão, os dois revolucionários quase foram atropelados por um gigantesco cargueiro, depois de evitarem uma traineira, uma draga e dois cacilheiros. Finalmente, a Gata Manhosa avistou o Vera Cruz, mas, quando se aproximavam, uma lancha da polícia marítima que subia o rio parou mesmo atrás do paquete. Gabriel e Carlos
Gabriel já começava dar sinais fadiga, masPedro não deixou Carlosatomar o seude lugar. “Ele não percebia nada daquilo. Dei-lhe os remos quando vínhamos para baixo para descansar um bocadinho, mas ele não sabia remar. Tirei-lhos logo das mãos”, diria, no dia seguinte, a Raimundo Narciso. De qualquer forma, a terra seca não ficava longe: a doca da Rocha do Conde de Óbidos estava logo ali, por detrás de alguns batelões. O problema era encontrar um cantinho para aportar a Gata Manhosa . Acabaram por ter de trepar a um barco e daí saltar para o cais. Pouco passava
bombas Base Aérea de Tancos destruiu 11 aviõesna e 16 helicópteros. Em 1973, a ARA acabaria por depor voluntariamente as armas. Os dois homens responsáveis pelo atentado ao Cunene tiveram sortes muito diferentes. Gabriel Pedro voltou a fugir para Paris e morreu em fevereiro de 1972, sem assistir à queda da ditadura que andara uma vida inteira a combater. Carlos Coutinho foi preso pela PIDE-DGS, em fevereiro de 1973, e ficou detido até ao 25 de Abril de 1974. Depois, conseguiu mesmo tornar-se jornalista, ajudou a fundar o jornal O Diário e publicou vários livros.
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MUDANÇA DE ALVO
Caçadores de Estrelas
A galáxia CR7 é a mais brilhante do universo.
CR7 e ondas gravitacionais
A
galáxia CR7 vai constituir, muito provavelmente, o tema que mais curiosidade despertará nos participantes na XXIV Astrofesta, a decorrer nos próximos dias 25, 26 e 27 de agosto, em Monsaraz, nos espaços do Observatório do Lago Alqueva. Nesta época do ano, não é visível a constelação do Sextante, na direção da qual se encontra a galáxia CR7, por o Sol se projetar na constelação do Leão (um pouco acima do Sextante) e, por isso, ofuscar todos
lançarem-se na busca de tão estranhos objetos celestes, às técnicas utilizadas e ao significado e às consequências da descoberta. Como sempre acontece nestes momentos dedicados à divulgação de ciência, os investigadores têm o cuidado de apresentar os assuntos em linguagem simplificada, para se tornarem acessíveis, mesmo a quem não tem formação científicas. Assim sucederá com outros dois temas que constam do programa da Astrofesta (disponível em http://olagoal-
mia, literatura e arte. Haverá ainda momentos para apreciar o cante alentejano ou degustar uma açorda, e ouvir – a espalhar-se peloamplo espaço que engloba a planície e o extenso lago de Alqueva – o som de um carrilhão móvel que, à custa de um notável número e variedade de sinos, recordará alguns temas musicais bem conhecidos. Na noite de 26 para 27 (sábado para domingo), serão repetidos os “passeios pelo céu”, ocasiões em que os participantes serão
os objetos daquelasóparte da acima esferado celeste que, obviamente, estarão horizonte durante o dia. No entanto, oinvestigador português que lidera a equipainternacional que descobriu tão distante galáxia e as particularidades que lhe estão associadas fará a apresentação dos pormenores que levaram a procurar galáxias formadas não muitos milhões de anos depois do Big Bang e, em particular, na direção do Sextante, constelação situada entre o Leão, a Hidra e a Taça. Naturalmente, não faltarão referências às razões que levam um grupo de investigadores de diversos países a
queva.pt), que abordarão o ladoestas escuro do universo e as ondas gravitacionais, últimas a confirmar previsões contidas na teoria de Einstein, no início do século passado, e recentemente detetadas como resultado da “colisão” de dois buracos negros. Outras palestras e atividades necessitarão de menor concentração, como os minicursos de astronomia e de fotografia astronómica, os períodos dedicados à construção e utilização de relógios de sol, quadrantes e astrolábios ou as comunicações (que prometem ser muito interessantes) sobre relações entre astrono-
convidados identificar estrelas constelações, a ouviraalgumas histórias e elendas que lhes estão associadas e a reconhecer direções em que se encontram alguns dos objetos mais notáveis (nebulosas, enxames estelares e galáxias), que terão oportunidade de ver através dos vários telescópios disponibilizados por astrónomos amadores que, nestes eventos, sempre se dispõem a partilhar máquinas e conhecimentos.
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MÁXIMO FERREIRA Diretor do Centro Ciência Viva de Constância
A galáxia de Andrómeda (M31).
O céu de agosto
E
m finais de agosto, altura em que se realiza a Astrofesta, o céu não será
de Espiga, a estrela mais brilhante desta constelação.
nua a mostrar-se – no princípio das noites dos dois meses referidos – no quadrante
muito queno se último pode observar um mêsdiferente antes, oudoseja, terço do mês de julho, com a exceção de que a translação da Terra fará antecipar o ocaso de algumas constelações, ao fim do dia, e, pela mesma razão, fazer com que, nas madrugadas de agosto, se tornem visíveis outras que, um mês antes, ainda eram ofuscadas pelo crepúsculo matutino. Com efeito, ao princípio das noites de finais de julho, a constelação da Virgem vê-se próxima do horizonte, a oeste, avistando-se ainda, à sua direita, algumas estrelas do Leão, em particular Régulo, que marca a cauda do animal ali imaginado, estando a maior parte desta constelação já mergulhada no horizonte. De madrugada – um pouco antes das seis horas –, é visível, a este, parte da constelação de Orionte,
Um mês depois, todopelo o céuque parecerá ter deslizado para oeste, já não serão vistas estrelas do Leão, vendo-se a Virgem (e, com ela, o planeta Júpiter) já muito perto do horizonte, a oeste, encontrando-se então o Escorpião a sul, projetando-se Saturno um pouco à esquerda dessa mesma direção. De madrugada, Orionte estará completamente visível e, “atrás” de si, as duas estrelas (Sírio e Prócion) que, com Betelgeuse (a mais notável de Orionte), constituem o “triângulo de inverno”, assim designado por serem visíveis desde o anoitecer até ao nascer do Sol, nas primeiras noites do inverno. Os resistentes ao sono na Astrofesta terão oportunidade de verificar então que Vénus já não estará no Touro mas – em um mês apenas – atravessou toda a cons-
de noroeste, suficientemente para do permitir apontar telescópios àalta “galáxia remoinho” (M51), quer em julho quer em agosto. Nas madrugadas, a Ursa Maior rasa o horizonte, a norte, tornando então impossível a visibilidade da M51. Em contrapartida, a Cassiopeia encontrar-se-á na sua maior altura e, entre ela e o zénite (o ponto mais alto do céu), será fácil identificar as constelações do Pégaso e de Andrómeda e ver nesta última o único objeto celeste, fora da nossa galáxia, visível à vista desarmada a partir das latitudes de Portugal. Na verdade, a “Grande Galáxia de Andrómeda” (M31), situada a “apenas” 2,3 milhões de anos-luz, vê-se, a olho nu, como uma pequena mancha, visão que pode ser melhorada através de binóculos ou telescópios, embora os olhos
não se avistando as estrelas daque sua consparte inferior (Rígel, Saiph e as três tituem o “cinturão do gigante”), por estarem ainda mergulhadas no crepúsculo matutino. Quanto aos “astros errantes”, Vénus projeta-se na direção de estrelas do Touro (acima de Orionte), enquanto ao princípio das noites se vê Saturno em plena constelação do Ofiúco (um pouco à esquerda de Antares, a notável estrela que marca o “coração” do Escorpião) e Júpiter na Virgem, ligeiramente à direita
telaçãovendo-se dos Gémeos e alcançou o Caranguejo, ligeiramente à direita do bem conhecido “enxame aberto” vulgarmente designado por “Presépio” ou, simplesmente, M44. Os outros – Júpiter e Saturno –, por se deslocarem muito lentamente, mantiveram (quase) as mesmas posições do final de julho. No lado norte, estrelas e constelações também alteraram as suas posições relativamente ao horizonte, embora de modo menos significativo. A Ursa Maior conti-
consigam ver maisdurante do que a ahumanos “preto e não branco”. No entanto, Astrofesta, alguns astrónomos vão captar – e mostrar, em tempo real – a imagem da M31 com câmaras eletrónicas acopladas aos telescópios, nas quais facilmente se verão algumas das cores associadas aos milhões de estrelas que constituem esta nossa “vizinha” e com a qual, de acordo com as deduções atuais, a nossa galáxia tem encontro marcado para daqui uns quatro mil milhões de anos! Interessante 15
Física 9 6 T
K E F E IN
Um enigma primordial
Os mistérios da ANTIMATÉRIA
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Antigaláxias? Por que razão não há um “negativo” da Via Láctea, aqui fotografada por Trevor Dobson no deserto dos Pináculos, na Austrália Ocidental?
Anti-eletrões, antiprotões e antineutrões são os componentes do reverso de uma realidade que formava, teoricamente, metade do Bangem universo após o Big , mas que, agora, apenas se pode recriar laboratório. O que aconteceu ao gémeo oculto da matéria?
Interessante 17
Os seus usos já chegaram a múltiplas disciplinas
A
antimatéria traz consigo o caos e a destruição... O CERN está a construir o reino do anticristo, o inferno na Terra.” Era assim que se exprimia uma tal Emily, num artigo publicado recentemente no portal fundamentalista evangélico The Christian Truther. O que é que o Laboratório Europeu de Física de Partículas, com sede em Genebra, terá feito para ser acusado de trazer o próprio Averno ao planeta? Efetivamente, foi o facto de ter obtido, pela primeira vezna história e após décadas de esforços experimentais, o espectro do átomo de anti-hidrogénio, ou seja, a foto da luz absorvida pelo clone,em negativo, do hidrogénio. Para entender o que significa essa conquista, teremos de recuar 90 anos. A teoria quântica (a que explica o estranho comportamento das partículas subatómicas) conheceu a sua época de ouro entre 1924 e 1927, mas ainda restava muito por fazer. Não se sabia, por exemplo, como incorporar no quadro a relatividade especial de Einstein, que descreve o que acontece quando viajamos a velocidades próximas da da luz.
CONCENTRAÇÃO DE CÉREBROS A 24 de outubro de 1927, teve início em Bruxelas o quinto Congresso Solvay (um ciclo de conferências científicas inaugurado em 1911), sob o título Eletrões e Fotões . Seria considerado, posteriormente, o mais importante da história da física: 17 dos 28 cientistas presentes eram, ou viriam a ser, prémios Nobel. Contudo, o título não refletia a verdadeira intenção do encontro, que era desbravar o caminho criado pela revolução quântica e, como diria o dinamarquês Niels Bohr (1885–1962), “ver qual era a reação de Einstein aos últimos avanços”. Outro dos presentes era Paul Adrien Maurice Dirac (1902–1984), um jovem físico britânico a quem as discussões filosóficas do congresso sobre como interpretar a teoria quântica deixavam indiferente. O seu objetivo era mais concreto: obter uma formulação para o comportamento do eletrão,relativista como se fosse um problema matemático. Para Dirac, incluir a relatividade especial exigia que o tempo entrasse na equação em pé de igualdade com as três dimensões espaciais, isto é, comprimento, largura e altura. A introdução de um espaço-tempo tetradimensional na teoria quântica proporcionava um quarto grau de liberdade ao eletrão, que Dirac identificou, sem muito esforço, como uma característica singular denominada spin. Para visualizá-lo, os físicos imaginaram o
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Vital. A tomografia por emissão de positrões L P S
(PET) já é uma técnica essencial para estudar e diagnosticar perturbações cardíacas, doenças neurológicas e processos cancerosos.
eletrão como uma pequena esfera que girava sobre si mesma, ao estilo dos planetas. Porém, a analogia termina aqui: o spin da partícula subatómica só pode adquirir dois valores, arbitrariamente fixados em +½ e –½. Seja como for, essa propriedade não tinha paralelo na física clássica. Embora a sua interpretação permaneça obscura, sabemos que, na presença de um campo magnético, pode alinhar-se em duas direções: para cima e para baixo. Todos concordavam que Dirac conseguira integrar a relatividade na teoria quântica. Con-
tudo, havia um problema: as duas possíveis orientações dospin envolviam apenas metade das soluções. Para poderem encaixar nos cálculos, o eletrão devia poder passar do estado normal de energia positiva e carga elétrica negativa para outro de energia negativa e carga elétrica positiva. Ninguém observara essa transição. Em dezembro de 1929, Dirac adiantou uma explicação. Suponhamos que existe, no universo, um mar de energia negativa totalmente ocupado por eletrões. Não há maneira
Técnica salva-vidas de saber se estão presentes, pois não interagem: são como o pano de fundo de um palco contra o qual se movem os atores, que seriam o nosso mundo de energia positiva. Porém, pode dar-se o caso de um desses eletrões do lado oculto saltar dali, deixando para trás uma espécie de buraco de energia negativa. Como poderíamos ver esse vazio? Nos nossos intrumentos de medição, surgiria como uma partícula com carga elétrica positiva. Dirac pensou, primeiro, que teria o aspeto do protão, mas os seus colegas argumentaram que o eletrão tem
á é uma ferramenta de diagnóstico corrente, mas a tomografia por emissão de positrões (PET) constitui um verdadeiro milagre da tecnologia. Ao contrário de outras técnicas não-invasivas, como a tomografia axial computorizada (TAC) e os raios X, a PET permite visualizar o metabolismo da glicose ou o fluxo sanguíneo, e não apenas as alterações anatómicas dos tecidos e órgãos. Como funciona? De facto, segue o sinal energético emitido por uma das mani-
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festações da antimatéria: antieletrões ou positrões. O processo os consiste em injetar no paciente um composto radioativo instável que produz as antipartículas. Embora estas desapareçam ao colidir com os seus opostos (os eletrões do corpo humano), cada encontro deixa, em forma de sinal, dois fotões de raios gama, captados pelos detetores ultrassensíveis do tomógrafo. Depois, o dispositivo elabora uma imagem tridimensional com esses clarões. Interessante 19
Continua a ser muito difícil confiná-la em laboratório uma massa duas mil vezes menor, pelo que seria impossível deixar para trás, ao escapar do tenebroso oceano, um buraco duas mil vezes mais pesado. Em 1931, o matemático britânico admitiu: “Estamos perante um novo tipo de partícula, totalmente desconhecida da física.” Expliquemo-lo de outro modo: o cosmos está cheio de eletrões com energia negativa, que permanecem invisíveis aos nossos detetores até um fotão muito energético colidir com um e arrastá-lo para o nosso mundo. Nesse instante, produz-se um vácuo que se comporta como uma partícula gémea, embora com carga positiva: o positrão. Trata-se de um processo conhecido por “criação de pares”. Em sentido inverso, quando um eletrão cai e preenche esse vazio, emite dois ou três fotões gama, e vemo-lo como uma desintegração com o positrão. VIAJAR PARA O PASSADO
Não é algo fácil de perceber,mas trata-se da única interpretação que singrou até que, passado duas décadas, o inigualável Richard Feynman (1918–1988) propôs outra. Em 1949, colocou a seguinte questão: veríamos um eletrão a retroceder até como ao passado? A resposta, surpreendente, é que seria como um positrão Terapia de choque. Entre 2003 a viajar rumo ao futuro. Por conseguinte, afire 2013, a experiência ACE, do CERN, mou, este último não é mais do que um eletrão explorou o potencial dos feixes de antiprotões para destruir células a andar para trás no tempo. Os resultados alcançados Contudo, para além da teoria, seria possível cancerosas. então foram muito prometedores. registar experimentalmente a antimatéria? Em breve se dissiparam as dúvidas. Em 1932, o norte-americano Carl David Anderson (1905– –1991) detetou os primeiros positrões em expe- ímanes, com um polo norte e um polo sul riências com raios cósmicos, essa chuva de magnéticos. fotões e de outros tipos de partículas produNesse caso, o que é um antieletrão ou posizidas pelas grandes deflagrações do universo. trão? O primeiro traço distintivo é possuir Hoje, a palavra “antimatéria” faz-nos pensar carga positiva em vez de negativa. Tal como em naves espaciais a viajar a toda a velocidade acontece quando vemos uma bola a girar num pela galáxia e em estranhas raças de alienígenas. espelho, a sua rotação, ou momento angular, Embora não seja fácil de imaginar, podemos está também trocada, o que o obriga a ter os definir a antimatéria como a imagem especu- polos norte e sul invertidos relativamente ao lar, ouuma invertida, da matéria. distinguem partícula de outra Os tal físicos como conseguimos diferenciar os frutos, através de propriedades como o tamanho, a cor, o cheiro e o sabor. No âmbito subatómico, lidamos com outras características: a massa, a carga, o momento angular e o momento magnético. Os dois primeiros resultados são fáceis de entender, mas o mesmo não se passa com os outros dois. Simplificando, podemos equiparar o momento angular à rotação, e o momento magnético ao facto de as partículas (semelhantes a esferas) se comportarem como
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o momento magnético seja oeletrão, mesmo,embora pois a carga é também revertida.
lidade alternativa causa perplexidade: quando uma partícula e a sua antipartícula entram em contacto, aniquilam-se mutuamente. A destruição de um único grama produz tanta energia como a libertada pela bomba de Hiroshima. Pelo contrário, se tivermos suficiente energia, podemos criar uma partícula e a correspondente antipartícula, como se consegue nos aceleradores, onde se fazem colidir eletrões
e positrões a velocidades próximas luz (desde 1987), ou se fabricam átomosdadedaanti-hidrogénio, a tal façanha alcançada pelo UMA ENERGIA INCOMENSURÁVEL CERN em 1995. O mesmo acontece com o protão e o corresEm dezembro passado, a mesma instituição pondente antiprotão, mas não com o neutrão. obteve um “resultado assombroso”, segundo Como esta última partícula subatómica não Alan Kostelecky, físico teórico da Universidade possui carga, a única inversão possível afeta do Indiana: o espetro de absorção de luz (uma os seus polos magnéticos. Assim, já temos espécie de impressão digital) do anti-hidroas três peças necessárias para construir a génio. O mais importante é que corrobora, antimatéria: um antiprotão e um positrão for- sendo idêntico ao do hidrogénio, a teoria da mam um átomo de anti-hidrogénio. relatividade especial. A característica mais importante desta reaTemos de estar conscientes da comple-
Antimotores
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os anos 80, o físico norte-americano Robert L. Forward (1932–2002) propôs utilizar o peculiar antagonismo entre partículas e antipartículas para propulsar naves especiais. Partia da seguinte hipótese: se aniquilássemos um quilo de matéria com outro de antimatéria, seria libertada energia equivalente a quarenta milhões de toneladas de TNT. A velocidade limite para um motor com esse impulso seria a da luz. Todavia, as coisas não são assim tão simples: 40 por cento da energia desencadeada adquire a forma de radiação gama, que é letal. Isso implica que a nave teria de estar solidamente protegida para não matar os tripulantes. Seria também necessário resolver outro pequeno pormenor de engenharia: baixar os custos para o motor poder ser rentável. A energia necessária para obter um quilo de antimatéria é um milhão de vezes superior à que seria libertada ao aniquilar esse anticombustível num foguete. Pelo menos no nosso universo, se damos mais do que obtemos, a perda é segura.
a chamada “simetria CP”. Esta assegura que, se trocarmos a carga e a paridade (simetria esquerda-direita) a uma partícula, ela continua a comportar-se do mesmo modo. A existência de galáxias, estrelas e planetas só poderia ser justificada se tal não ocorresse. Pouco depois, seria registada uma pequena lacuna na simetria CP: era violada pela teoria que unifica sob uma única formulação o elexidade desta conquista: a antimatéria aniSegundo o modelo-padrão da física, terá sur- tromagnetismo e a força nuclear fraca (a quila-se por completo em contacto com a gido, com o Big Bang , tanta quantidade de responsável por um tipo de desintegração quantidade mais insignificante de matéria. matéria como do seu reverso, pois a conversão radioativa). Infelizmente, esse grau de desOs responsáveis pela experiência ALPHA-2 da energia exige que de um fotão se forme uma fasamento não era para deitar foguetes: o encerraram 1,6 milhões de positrões e 900 mil partícula e a respetiva antipartícula. Ora bem: universo teria apenas matéria suficiente para antiprotões nos extremos opostos de uma se este 50/50 fosse exato, não estaríamos encher uma galáxia. armadilha eletromagnética para serem liber- aqui: os opostos ter-se-iam destruído entre si. Um trabalho publicado na revista Nature tados depois. Formaram-se, de forma natural, Perante um cenário assim, só restam duas Physics, em 30 de janeiro passado, lançou nova 25 mil átomos de anti-hidrogénio em cada 15 soluções. A primeira sugere que o nosso uni- luz sobre o enredo. Outra experiência do CERN N R E C
minutos. No entanto, a maior parte deslocava-se demasiado depressa para poder ser útil. Foram precisos vários anos só para aperfeiçoar a técnica que seleciona os átomos lentos. Depois, era preciso medir a frequência da luz emitida pela transição do anti-hidrogénio, o que fizeram com uma precisão na ordem de duas partes por bilião, segundo revelaram os cientistas na revistaNature. O êxito seria fruto de mais de duas décadas de esforços. O mundo da antimatéria guarda muitos mistérios, mas o mais intrigante reside em explicar por que motivo não existe de forma natural.
verso está dividido eem duas partes, uma com estrelas e planetas a outra com antiestrelas e antiplanetas. Este argumento apresenta um grave inconveniente: a fronteira entre os dois cosmos deveria ser visível pelas constantes explosões que ali se produziriam. A única saída possível é que teria havido um pequeníssimo desequilíbrio, em prol da matéria, no princípio dos tempos. Em 1967, o cientista Andrei Sakharov (célebre dissidente e “pai” da bomba de hidrogénio soviética) demonstrou que a única forma de contornar o problema era se não se verificasse
(a LHCb) observara o que nunca fora visto num acelerador: a formação e a desintegração de um barião e dorespetivo antibarião. Segundo o modelo-padrão, este par deveria comportar-se exatamente da mesma maneira, mas os dados obtidos indicam diferenças de até 20 por cento! Isto já é farinha de outro saco! A confirmar-se o resultado através de um conjunto mais vasto de ensaios, talvez estejamos no bom caminho para compreender por que diabo há tanta matéria no universo e tão pouca antimatéria. M.A.S.
Interessante 21
Ciência N E S R A L IA A K
Estamos rodeados de sistemas sem líder
Como funciona a COMPLEXIDADE?
Voo sincronizado. Este avião da Marinha dos Estados Unidos esteve em perigo, devido a um bando de pássaros que o envolveu quando ia aterrar. As evoluções de grupos de aves, como os estorninhos, são um exemplo clássico da ordem espontânea que surge nos sistemas complexos.
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Os bandos de pássaros, os formigueiros, o cérebro, a economia de mercado, a internet... O mundo está cheio de estruturas em que o todo é mais do que a soma das partes. A ciência estuda estes sistemas em busca de novos dados para entender a realidade.
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Os sistemas complexos evoluem sem coordenação
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ão nomeados generais para comandar exércitos e nenhum navio navega sem comandante. Procuram-se líderes para dirigir países, empresas e mesmo bandos de bairro. O líder define estratégias, antecipa riscos e assume responsabilidades. Tem de convencer os indivíduos sob o seu comando a remarem na mesma direção e, se for necessário, sacrificarem os seus interesses pessoais em benefício do grupo. Todavia, a natureza oferece múltiplos exemplos de formas alternativas de organização. As amebas, os neurónios ou as formigas coordenam-se sem necessidade de um comando central, formando redes sem hierarquias nas quais nenhuma unidade é mais importante do que outra. O conjunto age como se alguém tivesse dado instruções, mas esse alguém não existe. Cada elemento comunica com os que o rodeiam, e dessas interações surge uma ordem previamente inexistente. Que um conjunto de elementos (o todo) acabe por ser muito mais do que a soma das partes é uma propriedade denominada “emergência” nasmultidisciplinar ciências da complexidade, um novo saber que estuda este tipo de sistemas. Melanie Mitchell, professora de ciências computacionais na Universidade do Estado de Portland (Orenon), define-os assim: “Grandes redes de componentes sem controlo centralizado, que obedecem a regras de funcionamento simples, exibem um comportamento coletivo complexo, um processamento sofisticado da informação e uma adaptação mediante aprendizagem ou evolução.”
K C O T S R E T T U H S
Engenharia viva. Uma formiga sozinha está indefesa. Porém, em colaboração com outras, forma uma equipa sem hierarquias, capaz de feitos como construir pontes para ultrapassar obstáculos ou alcançar comida.
A VIDA DOS ROBÔS
Pode parecer que estamos a mover-nos em terreno abstrato, mas estas estruturas estão presentes no nosso quotidiano: realidades tão díspares como os mercados financeiros, os organismos vivos e as redes da internet correspondem às características referidas.
para extrair lições aplicáveis à criação de robôs e redes de comunicação, entre outras coisas. A melhor forma de perceber como funcionam essas estruturas intrincadas e sem hierarquias é observar exemplos reais. Vejamos alguns.
mais otimistas pensamajudar-nos que as ciências daOs complexidade poderiam a compreender enigmas como o da srcem da vida multicelular ou da consciência, dois fenómenos que se entendem melhor se considerarmos a natureza e o cérebro como sistemas complexos descentralizados em que os diferentes elementos se combinam para constituir uma realidade superior. Baseando-se em ferramentas provenientes da teoria do caos, do estudo dos fractais, da estatística e da física, esta nova metodologia procura prever e controlar o comportamento desses sistemas complexos
Para as formigas, construir pontes é um processo sem hierarquias nem planificação. Utilizam os seus corpos como elos para tecer uma cadeia que lhes permite ultrapassar pequenos abismos. São também capazes de coisas como decidir a melhor localização para o formigueiro quando a colónia tem de se mudar. Se depois de deambular, deparam com um local adequado, voltam ao grupo e vão deixando um rasto de feromonas, substâncias químicas que as restantes formigas podem interpretar e seguir. Quando outro membro
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FORMIGAS SEM LÍDER
da colónia capta esse rasto, pode segui-lo; no regresso, pode optar por reforçar o percurso, segregando mais feromonas, o que irá atrair mais formigas; se não o fizer, as feromonas evaporam e o rasto desaparece. Cada formiga contribui para a decisão final por ação ouem porque omissão; no alternativas processo, chega uma altura uma das se impõe e surge uma decisão unânime, sem a intervenção de líderes. Com idêntico procedimento, as formigas estabelecem qual o caminho mais curto até uma fonte de alimento. Os insetos captam os odores com as antenas, e glândulas situadas no abdómen produzem as feromonas que alertam para a presença de comida ou para a proximidade de um inimigo. O seu cérebro, do tamanho de um grão de sal, associa cheiros a ações precisas.“Uma formiga sozinha é uma deceção”, dizem Bert Hölldobler
K C O T S R E T T U H S
E G A
Ordem, por favor! Se desagregarmos as células de larvas de ouriço-do-mar (foto pequena), elas regressam à sua posição srcinal e acabam por dar srcem a um organismo adulto (foto maior).
e Edward O. Wilson no livroViagem às Formigas. a complexidade do desafio; em contraparContudo, em sociedade, são um dos grandes tida, os algoritmos que imitam estes insetos êxitos da evolução. Douglas Hofstadter, pro- resolvem-no com facilidade. fessor de ciências cognitivas na Universidade do Indiana, resume assim o mistério do pequeno FORMIGUEIRO CEREBRAL animal: “Constroem gigantescos e intrincados O nosso sistema nervoso é como um formi-
uma melodia ao mesmo tempo que passeamos, ou manter uma conversa enquanto lavamos a louça. A ciência constata que o sistema nervoso está descentralizado, tal como o descreve o neurocientista norte-americano Michael Gazzaniga.
formigueiros, os cem milquase neurónios do seu cérebroembora não contenham, seguramente, qualquer informação relativa à estrutura do ninho. Nesse caso, como surgem? Onde reside a informação?” Os engenheiros de telecomunicações percebem que a estratégia das formigas resolveproblemas presentes na comunicação de dados e na criação de redes, e estudam como imitá-la. Ao enfrentar o chamado “problema do viajante”, que consiste em encontrar o caminho mais rápido para percorrer um conjunto de pontos, um sistema centralizado falha, dada
Não existe um centro onde parar o resultado do processamento dasvai sensações, nem do qual partam instruções. O que existe são múltiplas redes que cumprem essa missão. “O cérebro é um sistema em grande medida paralelo e distribuído, constituído por uma infinidade de pontos de tomada de decisões e centros de integração”, afirma. “Trata-se de uma máquina composta por milhões de redes que se tornam um mar de forças, e não por soldados individuais que aguardam ordens.” As ciências da complexidade contribuem para o estudo dos dados obtidos do registo da
gueiro que milhares milhõesdiferentes de neurónios seem coordenam parade executar tarefas, desde processar informação visual a ativar os músculos ou pensar. Em vezde comunicarem com feromonas, as células nervosas fazem-no através de neurotransmissores, que as ligam através de sinais químicos e elétricos. Cada neurónio comunica apenas com os seus vizinhos (se todos falassem entre si, o encéfalo teria de ter 20 quilómetros de diâmetro..). Na prática, a rede neuronal divide-se em módulos que executam as suas tarefas em paralelo. Isso explica que possamos trautear
Interessante 25
Estudar a complexidade ajuda a fazer melhores robôs atividade cerebral, e para investigar como se organizam as redes anatómicas do nosso órgão pensante e os diferentes processos que ocorrem nelas. Este conhecimento tem vindo a inspirar a criação de robôs, dominada até recentemente por modelos hierárquicos com um centro de controlo definido. Cada vez mais engenheiros apostam em redes e no estudo de animais sociais, e essa perspetiva deu origem à robótica de enxames. Um robô tem dificuldade em se adaptar a ambientes instáveis, mas um enxame de máquinas é mais adaptável, devido à sua capacidade para comunicar entre si e organizar-se em função do contexto, como se fossem formigas. Por exemplo, os Kilobots da Universidade de Harvard (Estados Unidos) são microrrobôs de três centímetros de diâmetro e altura que comunicam entre si para operar em equipa, sem um coordenador.
REORGANIZAÇÃO ESPONTÂNEA
O ouriço-do-mar também tem sido muito estudado. Foram feitas numerosas experiências relacionadas com as suas primeiras fases de desenvolvimento, adota alarvas formae de larva. Se pegarmosquando numa dessas desagregarmos as suas células com pinças numa placa de Petri, seria de esperar que o ouriço já não pudesse desenvolver-se. Porém, as células conseguem reorganizar-se sozinhas, e cada uma regressa à posição srcinal. A larva segue, então, o processo habitual até alcançar o estado adulto. Este exemplo não é caso único na natureza. Quando se deposita numa placa células de diferentes tecidos de um organismo, elas tendem a agrupar-se consoante a sua função e a formar cavidades ou pequenos tubos que prefiguram os órgãos de que farão parte. Esta adaptação e o ajustamento às células que se encontram à sua volta são formas de organização que não estão estabelecidas no ADN. “Donde vem essa ordem inesperada? Há algum tipo de decidir informação complexa que permite células de que forma devem criar às estruturas?”, pergunta Ricard Solé, especialista em sistemas complexos, no livro Vidas
D R A V R A H E D E D A D I S R E IV N U
quais nos ensinam que as células podem reordenar-se consoante as circunstâncias. Sem um centro de comando, cada uma é suficientemente versátil para se acoplar às suas homólogas, organizando-s e de uma maneira que ainda não compreendemos. Aqui, surge outro campo de estudo para as ciências da complexidade que talvez possa desvendar enigmas fundamentais para a vida.
trializado que esquecemos como é estranho o nosso sistema económico.” Na nossa sociedade, em vez de um planificador preocupado em assegurar que ninguém fica sem pão, uma extensa rede de empresas e trabalhadores encarrega-se da tarefa: o agricultor cultiva o trigo (o que implica possuir maquinaria, sementes, fertilizantes…); uma fábrica proporciona a levedura; também são
O MISTÉRIO DA ECONOMIA
necessários transportesTodos e padeiros, comcriam as suasa máquinas e utensílios. esses elos cadeia que permite que possamos comprar pão logo de manhã. Cada peça desempenha a sua função da forma mais eficiente possível, e ninguém possui uma visão de conjunto. Funciona, e a história demonstra o fracasso dos sistemas que tentaram controlar todas as fases de produção e distribuição. As ciências da complexidade, apoiadas em disciplinas como a estatística e a economia comportamental, podem ajudar-nos a entender como funciona essa estrutura económica
Em 1989, dois anos antes da queda da URSS, o economista britânico Paul Seabright falou com um funcionário soviético sobre a econoSintéticas. Como explica Charles DeLisi, cientista envol- mia de mercado. “Precisamos de entender o vido no Projeto Genoma Humano, pensava-se funcionamento do sistema”, disse-lhe o russo. que o ADN proporcionava “a lista completa “Por exemplo, quem coordena a distribuição de instruções para o desenvolvimento, deter- do pão em Londres?” A resposta de Seabright minando a ordem temporal e os pormenores foi concisa: “Ninguém.” Ao recordar esta conda formação de todos os tecidos e órgãos”. versa num dos seus livros, o economista classificou a resposta ao seu interlocutor como Contudo, essa visão reducionista seria ultrapassada por experiências como as descritas, as “difícil de acreditar”: “É só no Ocidente indus26 SUPER
E G A
Esperto. O fungo Physarum polycephalum muda de estrutura e ramifica-se para encontrar comida. Porém, não possui qualquer sistema nervoso que dirija a tarefa.
Como a Bolsa. Os Kilobots criados na Universidade de Harvard coordenam-se entre si e funcionam de forma eficaz sem necessidade de uma entidade central de controlo.
baseada na confiança, na “cola invisível”, segundo Seabright, que permitiu formar as nossas extensas redes de trocas, complexas e sem hierarquias. Como recorda o especialista, “fiarmo-nos em estranhos é uma das coisas menos naturais que existem”. Podemos permitir-nos isso graças à criação de instituições como o estado, que proporcionam garantias formais, e, como indica Seabright, “funcionam
crescem. Foi o que fez neste caso: esticar-se (passando sempre pelas zonas com sombra) até dar com os flocos de aveia dispersos e conseguir ligá-los uns aos outros.
comida num labirinto. Oscientistas acreditavam que havia um núcleo de células que controlava o conjunto, mas a tese caiu por terra: cada célula da colónia age sozinha e comunica apenas com as que a rodeiam, com as quais se agrega RESOLVER PROBLEMAS SEM CÉREBRO graças a uma substância que produzem, a Imaginemos, agora, que um dos flocos de acrasina. Este mofo age, à semelhança das foraveia é Tóquio, e que os restantes são os migas, guiado por uma inteligência que nasce núcleos suburbanos que rodeiam a cidade; que da união de elementos simples.
tão bem a maior parte do tempo que chegado já nos esquecemos do milagre que é termos a confiar em gente que não conhecemos”. Em 2010, uma equipa de investigadores britânicos realizou uma curiosa experiência: espalharam flocos de aveia sobre um tabuleiro que iluminaram de forma a apresentar zonas de luz e sombra. Depois, colocaram nesse cenário uma colónia do mofoPhysarum polycephalum, uma espécie de fungo que evita a luz e se alimenta de bactérias e esporos. Para encontrá-los, o organismo muda de estrutura e transforma-se num conjunto de tubos que
as sombras do tabuleiro sãoentão, vales, que e as ozonas luz, montanhas. Veríamos, mofode tinha criado a rede mais otimizada e eficiente de interligação. De facto, a solução que encontrou coincidia com a proposta pelos engenheiros japoneses que tinham concebido a rede ferroviária da região de Tóquio. Como épossível um ser sem cérebro, uma mera agregação de organismos unicelulares, fazer algo assim? No ano 2000, o cientista japonês Toshiyuki Nakagaki já tinha demonstrado que o Physarum polycephalumconseguia encontrar o caminho mais curto que ligava dois pontos com
Se os especialistas em complexidade desvendarem os seus segredos, o fascinante organismo com uma capacidade rudimentar de aprendizagem poderia inspirar a criação de biocomputadores baseados, não no silício, mas em matéria viva. Já se começou atrabalhar em máquinas baseadas nessa forma de vida. O Plasmobot , criado em 2013 por cientistas da Universidade do Oeste de Inglaterra, é um robô elementar que reage a estímulos luminosos e eletromagnéticos, podendo ser programado para deslocar e apanhar objetos. R.C.
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Saúde O C S A B S Í A P O D E D A ID S R E V I N U
Anna Shnyrova, biofísica
O segredo da LONGEVIDADE Os avanços conseguidos pela cientista de srcem russa Anna Shnyrova no intuito de conhecer o funcionamento da vida ao nível mais básico abrem caminho à descoberta de novas formas de combater o envelhecimento e lutar contra as doenças causadas por vírus.
Carreira brilhante. Shnyrova publicou nas principais revistas científicas. O microscópio é a sua ferramenta de trabalho essencial.
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O papel das membranas é chave na divisão celular
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abemos o que é uma célula: a unidade básica da vida. Os seres vivos são formados por células desde que não passam de um simples zigoto e, com a passagem do tempo, as sucessivas divisões celulares permitem que cresçam, amadureçam e envelheçam. Apesar de sabermos muito sobre elas, continuam a ser grandes desconhecidas. Por exemplo, guardam ciosamente um segredo que alguns cientistas se empenham em descobrir: o da longevidade. Um desses investigadores é Anna Shnyrova (nascida em 1979, na Rússia), uma das cinco jovens premiadas com uma bolsa do programa L’Oréal-UNESCO for Women in Science , em 2016. Com um doutoramento em bioquímica e biologia molecular, estuda os processos de reestruturação das membranas celulares com a ajuda de técnicas biofísicas. “É uma área particularmente apaixonante, pois permite-nos pôr um pouco de ordem na desordem da vida”, explica. “Encontrar os mecanismos biológicos fundamentais da vida celular permite entender melhor a célula, tanto na doença como na saúde.” herdou a curiosidade da família, osAnna seus pais também são cientistas, tendopois passado a infância rodeada de investigadores num dos núcleos científicos da antiga União Soviética, onde estudiosos de diferentes áreas se juntavam para potenciar a cooperação interdisciplinar. Toda a sua carreira tem sido dedicada a investigar as membranas celulares, tanto as externas (plasmáticas) como as que fazem parte do extraordinário enigma que é o interior da célula. Acredita que aprenderemos a lutar contra muitas das doenças que existem hoje se controlarmos os processos de formação e reestruturação das membranas celulares. O INVÓLUCRO DOS VÍRUS
Foi no último ano do curso de química que Anna teve o primeiro contacto com as misteriosas membranas celulares. Em concreto, com processo formação celulares. de vírus com invólucro ao partir das de membranas “Podemos imaginar os vírus como pequenas bolsas que levam o seu material genético das células doentes até às sãs. A parede dessas bolsas é formada a partir da membrana da célula infetada, que funciona como recipiente do material infecioso”, explica. A sua tese de doutoramento centrou-se na forma como os vírus criam as bolsas membranosas para se poder propagar. Descobri-la não é apenas interessante por si só; também poderá permitir desenvolver fármacos que enfrentem os vírus, impedindo-os de fabri30 SUPER
Jerónimo! Investigações como as de Shrynova poderão permitir desenvolver terapias antienvelhecimento. Glenn Quillin, que celebrou o 100.º aniversário com um batismo de paraquedas, prefere não esperar sentado.
car o seu meio de transporte: as membranas que os rodeiam. “É um dosprocessos em estudo para poder, por exemplo, combater o VIH, o vírus da sida”, explica a cientista. Após alguns meses de investigação, Anna deu mais um passo em frente no caminho para compreender e controlar o mecanismo através do qual um vírus adquire a sua forma a partir da
membrana celular. Depois de conseguir uma bolsa para prosseguir os seus estudos nosnstiI tutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, observou in vitro , pela primeira vez, o modo como uma partícula de um vírus (em concreto, o vírus da doença de Newcastle) adquire a sua forma. Conseguiu-o graças a uma combinação única de três técnicas: a microscopia de fluo-
S R E T A C
especiais: as dinaminas. “Quando as membranas se dividem, é muito importante que não se perca o que contêm no interior: iões, péptidos e moléculas maiores que intervêm em diversos processos celulares”, afirma. “Poderíamos dizer que as membranas são como um sobrescrito fechado que deve chegar ao seu destino com o conteúdo intacto.” As dinaminas encarregam-se de evitar que os sobrescritos (as membranas) se quebrem no seu processo de divisão; facilitam a separação de forma a não se perder o conteúdo. Porém, o que acontece se falharem e houver um derrame? “Pode haver muitas consequências. Por exemplo, em relação aos neurónios, pode provocar graves doenças neurodegenerativas, como a encefalopatia epilética em crianças”, explica. Eis o busílis da questão: saber por que razão as dinaminas não funcionam bem em certos casos poderá ajudar a corrigir o processo e, com isso, curar as doenças que o funcionamento incorreto provoca.
DEMONSTRAÇÃO EXPERIMENTAL O estudo de Shnyrova e Frolovpermitiu, pela primeira vez, caracterizar com grande pormenor um dos mecanismos que evitam que a membrana se abra. Trata-se de um avanço no conhecimento do mecanismo universal de fissão e fusão das membranas celulares (isto é, do modo como se dividemou se fundem numa só). “Tinham sugeridos mecanismos possíveissido em teoria, masmuitos nenhum tinha sido demonstrado experimentalmente até agora”, sublinha. A descoberta iria permitir-lhes publicar artigos nas principais revistas científicas: um na Science, em 2013, e outro na Nature, em 2015. Anna Shnyrova também conseguiu criar o seu próprio grupo de trabalho na Universidade do País Basco. O objetivo continua a ser conhecer com precisão o funcionamento das membranas para poder entender processos patológicos, estudar o envelhecimento ou averiguar a estratégia de divisão das bactérias para lutar contra infeções. “Creio que a srcem da complexidade humana reside na dinâmica dessasmembranas, pelo que temos de perceber como funcionam para entender a sua evolução e encontrar soluções”, afirma. O seu sonho é consegui-lo e, quem conquistar um Nobel, àsemelhança da suasabe, cientista de referência, Marie Curie, a primeira mulher a obter o galardão (o da Física, em 1903, e o da Química, em 1911). “Tenho uma filha de cinco anos que me pergunta o que é rescência, a microscopia eletrónica e a eletro- cânica de membranas, de Vadim Frolov, na a velhice e se posso fazer algo para impedi-la. fisiologia. Unidade de Biofísica da Universidade do País Gostaria de responder que sim... Embora, Não quis ficar por aí. Era preciso ir mais longe Basco. Ali, começou a estudar a fundo as mem- para ser realista, me contentasse em deixar e entender como funcionam as membranas branas celulares, tanto as plasmáticas como o meu grãozinho de areia no conhecimento intracelulares e o modo como isso condiciona as que envolvem organelos (as diferentes universal e contribuir para que seja mais fácil, o aparecimento de doenças e o próprio estruturas do citoplasma). Em concreto, para a sua geração, decifrar este mundo que envelhecimento. Assim, juntou-se ao recém- interessou-se pelo seu processo de divisão ou nos rodeia”, conclui. -formado grupo de investigação em nanome- fissão, dirigido por um tipo de proteínas muito E.P. Interessante 31
Animais Máquina bem oleada. O hospital possui áreas para animais pequenos e outras para grandes, como este cavalo, chamado Chocolate, prestes a ser submetido a uma intervenção cirúrgica.
L A O R A C E B E R : S O T O F
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Referência em investigação
Um hospital
BESTIAL
Os animais, como os humanos, requerem por vezes cuidados médicos especiais. Acompanhámos o dia a dia do Hospital Clínico Veterinário Complutense de Madrid, uma referência em investigação e ensino.
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No limite. Nos laboratórios do hospital, estudam-se novos tratamentos e curas.
Em pormenor. A unidade de ressonância magnética permite analisar animais de todos os tamanhos.
Formação e investigação são os dois pilares do hospital
O que é que tu andaste a comer? O diagnóstico veterinário é difícil, porque os pacientes não dão informações úteis.
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Médicos do futuro. No hospital, estagiam anualmente entre 350 e 400 estudantes de veterinária. Dadores. O centro dispõe de um banco de sangue para cães e gatos. Os dadores têm de ter um peso mínimo (20 e quatro quilos, respetivamente).
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Vigilância. O serviço de hospitalização e cuidados intensivos acolhe pacientes que precisam de atenção 24 horas por dia.
Não só cães e gatos Na área dos pequenos animais, também se atendem répteis, aves, coelhos, tartarugas...
Trabalho de equipa. Para operar animais grandes, como este cavalo, é precisa uma grande sincronização entre todo o pessoal envolvido, antes, durante e depois da intervenção.
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Trabalho completo. O HCVC oferece especialidades como oftalmologia, dermatologia, endocrinologia, neurologia, oncologia, traumatologia e cardiologia.
Pelas suas salas de operações já passou um leão de 218 quilos
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o Hospital Clínico Veterinário Complutense (HCVC) de Madrid, instalado num edifício de 8000 metros quadrados, tudo funciona de modo semelhante ao de um centro para humanos: tem consultas, salas de radiologia, ecografia e ressonância magnética, zonas de hospitalização, salas de operações e até uma unidade de cuidados intensivos. Além disso, dispõe de laboratórios de apoio ao diagnóstico (biopatologia, anatomia patológica, reprodução, microbiologia, parasitologia...). No total, o HCVC, ligado à Universidade Complutense da
melhores tratamentos e curas, mas também de aperfeiçoar os diagnósticos, desenvolver novas tecnologias, etc.” Por outro lado, não devemos esquecer que tratar de um animal também é zelar pela saúde dos humanos que o rodeiam: “Uma das nossas funções é a prevenção das zoonoses, as doenças dos animais que podem transmitir-se às pessoas.” As instalações do hospital dividem-se em duas áreas principais. Na dos pequenos animais, atendem-se cães, gatos e animais exóticos, enquanto na dos grandes se trata principal-
espanhola, recebe mais de 12 exóticos, mil gatos passado mente cavalos, pelas salas tenha ecapital cães por ano, cerca de 250 animais um leãoembora de cinco anossuas e 218 quilos de incluindo iguanas e tartarugas, e cerca de um peso, que foi operado com êxito a uma fístula milhar de cavalos e ruminantes. dental. “Esse foi um dos casosmais chamativos, Além do trabalho de assistência aos animais, mas também atendemos macacos, uma alpaca, o hospital destaca-se como uma referência na um coala, uma rena e até alguns mochos, formação e na investigação. “O nosso trabalho devido aos convénios com o Zoo Aquarium de fundamental é o ensino, e para este ser excelente Madrid ou o Centro de Recuperação paraRapatem de ser aplicado e inovador, pelo que a aten- ces Noturnas”, explica a diretora, que destaca ção veterinária de qualidade e a investigação um caso exemplar: um cavalo gravemente ferido são dois dos nossos pilares mais importantes”, por uma cornada numa tourada, que foi salvo explica a diretora do HCVC, Consuelo Serres pelos profissionais do HCVC. R.M. Dalmau. “Não se trata apenas de descobrir Interessante 37
Antropologia T R E A B M O B K IC R T A P
Bandeiras, palavras, logotipos
O poder dos
SÍMBOLOS
Estamos rodeados de cores, sons, formas e objetos carregados de significado, que podem influenciar o nosso comportamento até limitesinsuspeitos. empre vivemos rodeados deles: dos petroglifos das cavernas pré-históricas e das primeiras bandeiras e estandartes até aos atuais logotipos das marcas comerciais, passando pelos eloquentes
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pode proporcionar-nos sorte ou confiança em nós mesmos, simplesmente porque assumimos que funciona, como uma espécie de placebo. Escolhemos alguns exemplos curiosos e, por vezes, surpreendentes do poder que os símbolos
smileys emos populares quando acreditaestar a salvo da. Mesmo influência psicológica que exercem, o facto é que todos somos vítimas dos símbolos, em menor ou maior grau: os sinais e objetos com carga conceptual modificam o modo como pensamos e nos comportamos, já que estão profundamente enraizados no imaginário social. Efetivamente, a linguagem humana pode ser definida como um sistema de símbolos, fonéticos e ortográficos. Quando comunicamos, fazêmo-lo através do pensamento simbólico. Alguns caracteres do idioma chinês, por exemplo, são pictogramas, isto é, representam graficamente uma ideia ou uma coisa. Há até uma verdadeira ciência que se dedica a decifrar o significado dos sinais: a semiologia. O poder de certas imagens é inegável: um par de óculos ou um cachimbo, que simbolizam lei-
exercem, explicados pela ciência.
tura, reflexão ou estudo, podem aumentar a nossa inteligência ou a nossa predisposiçã o para abordar um problema de forma mais ponderada. De igual modo, como veremos mais adiante, vulgarizou-se tanto a crença de que as louras são burras que o simples facto de observar a imagem de uma mulher loura pode piorar o rendimento intelectual de uma pessoa, mesmo que seja, por exemplo, um homem careca. Os símbolos também fazem um alimento ou uma bebida acompanhados de determinado rótulo saber melhor, ou um crucifixo incitar a mostrar respeito pelos outros. Um amuleto
estudantes parasem completarem duas tarefas aparentemente qualquer relação. Na primeira, deviam contar os ângulos retos de quatro objetos. Três dessas formas eram idênticas para todos os participantes do estudo, enquanto a quarta era diferente para metade do grupo. Efetivamente, era muito parecida com o símbolo de srcem milenar adotado pelo partido de Adolf Hitler. Terminada a primeira tarefa, todos tiveram de ler um texto em que se descreviam os atos de um indivíduo chamado Donald. A surpresa surgiu quando os estudantes que tinham sido expostos à suástica classificaram
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A CRUZ DO BEM E A CRUZ DO MAL
Os símbolos religiosos exercem tal influência na mente que podemmesmo tornar-nos melhores. Como sugere uma investigação de Adam Alter, psicólogo na Universidade de Nova Iorque e autor do livro Drunk Tank Pink , os cristãos manifestam geralmente comportamentos mais honrados quando contemplam a imagem de um crucifixo. Pelo contrário, quem se exponha a uma forma semelhante a uma suástica, o tristemente famoso emblema dos nazis, mostra-se frequentemente mais severo ao julgar o comportamento dos outros. O fenómeno foi demonstrado numa experiência realizada por Virginia Kwan, da Universidade do Estado do Arizona, e pelopróprio Alter. Os dois especialistas pediram a um grupo de
E G A IM E IR W / R U Z A M IN V E K
Tudo encaixa.Universalmente reconhecível, o símbolo do yin e do yang (harmonia entre contrários) foi popularizado durante a dinastia chinesa Song (séculos X a XIII).
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Uma bandeira não passa de um pano colorido, e no entanto... com maior frequência como indecentes, depravados ou ofensivos os seus deslizes éticos. Assim, embora a cruz cristã e o símbolo do nacional-socialismo possuam uma geometria semelhante, albergam conotações muito diferentes e, por isso, criam efeitos psicológicos diametralmente opostos. Contudo, nem todas as imagens cristãs desencadeiam emoções positivas. Por exemplo, há anos, quando viamuma imagem do papa João Paulo II, muitos católicos sentiam esmorecer o sentimento de virtude, como demonstrou um estudo clássico dos anos 90 dirigido pelo psicólogo Mark Baldwin, da Universidade do Michigan (Estados Unidos). O que seguramente acontecia era que a autoridade daquela figura religiosa recordava aos fiéis a necessidade de acatar elevadas exigências morais, difíceis de cumprir. ESTAS SÃO AS MINHAS CORES!
Sentimentos semelhantes aos religiosos emergem quando alguém contempla a bandeira do seu país, que promove geralmente unidade e camaradagem, pontopaíses. de queimá-la constituir um delito em ao muitos Em Portugal, embora o artigo 332.º do Código Penal diga que quem “publicamente, por palavras, gestos ou divulgação por escrito, ou por outro meio de comunicação com o público”, ultrajar a bandeira ou “faltar ao respeito” que lhe é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, a Constituição, apesar de reconhecer a bandeira nacional como símbolo da soberania da República, da independência, da unidade e da integridade de Portugal, não estabelece qualquer limite à liberdade de queimá-la, conduta que poderia, aliás, revestir-se de um caráter cívico, político, artístico ou outro, tutelado por liberdades fundamentais que a mesma Constituição consagra. De igual modo, mutilar, alterar ou causar qualquer dano fisico à Stars and Stripes foi entendido Supremo Tribunal dos Estados Unidos, empelo 1990, como uma manifestação da liberdade de expressão, não sendo por conseguinte punível. Longe de retirar importância à sua influência psicológica, estes ditames em torno do que é, na prática, um simples pano colorido ainda a realçam mais. Na realidade, não se estaria a agredir um simples objeto, mas o conjunto de adesões emocionais que suscita. A fim de demonstrá-lo, Ran Hassin, da Universidade Hebraica de Jerusalém, desenvolveu um trabalho que seria publicado na revistaPro-
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ceedings of the National Academy of Sciences. Ali, assinalava que os pontos de vista alheios eram tidos em maior consideração pelos israelitas que participavam no estudo, quer fossem de esquerda ou de direita, quando lhes era mostrada uma imagem subliminar da bandeira do país. David A. Butz, psicólogo social na Universidade da Flórida, chegou a umaconclusão seme-
minuciosamente o logotipo das suas marcas e fazem um grande esforço para dotá-lo de significados que reforcem o conceito que pretendem transmitir. Um exemplo clássico é a maçã mordida da Apple, que já se tornou um ícone universal. Inicialmente, os portáteis da Apple mostravam o desenho de pernas para oar quando estavam abertos na frente de outras pessoas, para poder
Perlhante num publicadoBulletin na revista sonality and trabalho Social Psychology , no qual vários norte-americanos tinham de contemplar uma bandeira nacional de grandes dimensões. Os participantes mais apegados às suas cores mostraram menos hostilidade do que aqueles que não a viram, e não teve qualquer influência no espírito dos voluntários alheios aos sentimentos patrióticos.
ficardo direito quando eram ofechados, tiva utilizador. Depois, logotipo na foi perspeinvertido, para que acontecesse o contrário. Com esta estratégia, o gigante de Steve Jobs consolidava e reforçava a mentalidade de que compramos os seus produtos não tanto por nós próprios como, sobretudo, para indicar aos outros que partilhamos a filosofia da marca. O referido logotipo comercial já não é apenas exibido no computador ou no telemóvel, mas também na forma de autocolantes na traseira do automóvel e noutros lugares bem visíveis. A tecnomaçã de Steve Jobs poderia mesmo
A MAÇÃ (MORDIDA) DA CRIATIVIDADE Conscientes da permeabilidade da psique humana aos símbolos, as empresas estudam
Amuletos dão sorte?
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s lojas que vendem talismãs não atraem mais a sorte do que outros lugares, e os seus donos não são mais sortudos do que os outros. Contudo, este tipo de objetos pode, efetivamente, funcionar quando as pessoas que os usam acreditam neles. Se, depois de comprar uma pata de coelho ou uma ferradura, se receber uma ótima notícia, até a pessoa mais cética estará tentada a pensar que o amuleto teve algo a ver com a sorte. Esta propensão mental para estabelecer ligações entre factos não relacionados entre si é conhecida por “apofenia”. Por exemplo, se tirarmos uma boa nota num exame, talvez atribuamos o resultado à caneta que utilizámos. Depois disso, já não iremos fazer qualquer prova sem a nossa caneta da sorte, apesar de não existir qualquer vínculo real entre as duas coisas. Trata-se de um fenómeno muito bem explicado na famosa cena da pena que Dumbo segura com a tromba para poder voar. O pequeno elefante está convencido de que só consegue fazê-lo com essa ajuda mágica. Contudo, ao perdê-la, descobre que sempre foi capaz de vencer a gravidade ao bater as suas
Ânimos quentes. A oposição aos Estados Unidos expressa-se muitas vezes pela queima da sua bandeira, como nesta manifestação em Peshawar (Paquistão).
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grandesum orelhas. podem exercer efeitoOs realobjetos se modificarem o nosso grau de confiança. Isso apenas acontece quando nos deixamos levar pela parte mais emocional do cérebro, criando nexos espúrios entre coisas e acontecimentos.
estimular a criatividade, como revelam as experiências de Grainne M. Fitzsimons, da Universidade Duke (Estados Unidos), publicadas na revista Journal of Consumer Research. Numa delas, pedia-se a dois grupos de pessoas para resolver um problema teórico: ao primeiro, mostrou-se brevemente o logo da Apple, enquanto o segundo viu o símbolo da companhia rival, a IBM. Os primeiros proporcionaram
cara parece-nos melhor do que o de outra mais barata, embora possa conter exatamente o mesmo. Quando se repetiu a experiência com membros do clube vinícola de Stanford (isto é, pessoas que conheciam a matéria), os resultados foram praticamente os mesmos. O sabor das coisas varia, pois, em função do seu prestígio. Por esse motivo, como descobriu Read Montague, diretor do Laboratório
mento do consumidor e promotor do conceito de neuromarketing , que também analisou o cérebro de vários indivíduos e observou que as marcas mais fortes ou conhecidas ativavam as mesmas regiões que os símbolos religiosos.
as soluções mais imaginativas.
Baylor College of Medicine Neuroimagens donuma de Houston (Texas), investigação de 2003: as pessoas sujeitas a uma prova às cegas de Coca-Cola e Pepsi preferem, geralmente, este último refrigerante. Todavia, tudo muda se a prova for feita com as marcas à vista: nessa altura, a maioria escolhe aprimeira. Com a ajuda de ressonâncias magnéticas funcionais, Montague chegou a registar maior atividade numa zona neuronal distinta, consoante provavam a bebida com e sem o rótulo à mostra. No mesmo sentido, é já célebre o estudo de Martin Lindstrom, especialista em comporta-
assimilar os atributos tradicionalmente associados a essa cor: força, energia e beligerância. Talvez por isso, os desportistas rendem mais fisicamente se vestirem de encarnado, como se usassem a capa do Super-Homem. A explicação dos investigadores Morton Walker e Gerald e Faber Birren é que a simples presença do vermelho aumentaria os níveis de adrenalina e a pressão arterial. Um estudo dos antropólogos evolutivos Russell Hill e Robert Barton, da Universidade de Durham (Reino Unido), confirmou a importância do fator cromático nos resultados das
NÃO SE DEIXE ILUDIR PELO RÓTULO
Depreende-se do que foi dito que a apreciação de determinados produtos pode ser afetada pela imagem corporativa que os seus fabricantes conseguem transmitir. Por isso, muitas marcas que todos associamos à exclusividade e ao luxo permitem-se elevar os preços, mesmo que os seus artigos não apresentem melhor qualidade. Encontramos um caso paradigmático no vinho: o conteúdo de uma garrafa
VERMELHO VITORIOSO
Os objetos vermelhos (como é ocaso de tantos carros desportivos, por exemplo) parecem
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À volta do cafezinho
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a nossa cultura, associamos calor com amabilidade e hospitalidade. Contudo, pode ser mais do que uma metáfora, segundo um estudo de 2008 da autoria de Lawrence E. Williams, investigador da Universidade do Colorado, publicado na revista Science. Williams sugere que as
pessoas tendem a avaliar os desconhecidos de forma mais simpática se formarem as suas primeiras impressões em redor de uma chávena de café quente. Parece que é a mesma região do cérebro, a ínsula, que se encarrega de processar a informação relacionada com a temperatura fisica e com
a confiança nas relações interpessoais. É o que explica o psicólogo Adam Alter, numa das suas obras: “A metáfora que associa calor com amabilidade torna-se mesmo extensiva à exclusão social, pois a pessoa sente literalmente frio se ficar socialmente isolada.”
K C O T S R E T T U H S
e o contrário pode chegar a afetar-nos de O ambiente em que nos movemos dade, forma surpreendente. Culturalmente, permamuito arreigada a ideia de que as louras altera perceções e capacidades nece não são lá muito espertas, de tal maneira que competições desportivas. Em concreto, Hill e Barton analisaram as estatísticas nas provas de taekwondo, boxe, luta grecorromana e luta livre realizadas durante os Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, para comprovar que, quando os combates estavam empatados, a balança se inclinava a favor do atleta de vermelho, em 61 por cento das ocasiões. Hill e Barton atribuíram-no à atitude mais agressiva dos lutadores, mas um estudo posterior, desenvolvido por cientistas da Universidade de Munster (Alemanha), indica que a cor,
tismo pode mesmo mudar a nossa perceção física das coisas. É por isso que, de modo geral, uma caixa preta nos parece mais pesada do que outra branca, embora sejam iguais.
na realidade, comprometia a neutralidade árbitros. A experiência consistia em mudardos digitalmente o equipamento nos vídeos que mostravam aos juízes desportivos. Além disso, o vermelho pode produzir uma tal sensação de urgência que nos faz abrir mais alegremente os cordões à bolsa. De acordo com uma investigação do psicológo Robert Cialdini, da Universidade do Estado do Arizona, os mealheiros vermelhos das ONG são 200% mais eficazes quando se trata de obter dinheiro. Por sua vez, Eva Heller, autora do livro Psicologia da Cor, está convencida de que o croma-
escreverem numa folha as características atribuídas à respeitável profissão, enquanto outro grupo de pessoas tinha de fazer o mesmo, mas desta vez para descrever um bando de hooligans. Em seguida, os participantes tinham de responder a 42 perguntas do jogo Trivial Pursuit . Os resultados indicaram que o primeiro grupo acertou em 55,6% das respostas e o segundo em 42,6%. Não se trata de uma diferença escandalosa, mas seria suficiente para passar ou chumbar num exame de Trivial. Somos, pois, mais espevitados se estivermos rodeados de símbolos que reforcem essa quali-
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ESCRAVOS DO ASPETO EXTERIOR
Se nos rodearmos de símbolos associados à impulsividade e à irreflexão, obteremos piores resultados num teste do que se as imagens transmitirem ponderação e cultura. Dois investigadores holandeses pediram a vários voluntários para imaginarem um professor e para
o simples facto de o pensar pode entorpecer a compreensão. É o que sugere um estudo da Universidade de Nanterre (França), publicado na revista Journal of Experimental Psychology. Os voluntários tinham de responder a uma série de perguntas de cultura geral depois de observar diversas fotografias de mulheres. A pontuação mais baixa foi obtida pelos participantes que contemplaram imagens de mulheres de cabelo claro. Thierry Meyer, coautor do estudo, defende que o resultado demonstra que os dois tópicos (quem nos rodeia e as nossas capacidades) são de alguma maneira contagiosos. Regra geral, a roupa que vestimos e todo o nosso look influenciam não apenas o modo como os outros nos veem como, também, o nosso próprio comportamento. Como escreveu a especialista em moda francesa Yvonne Deslandres (1923–1986): “É um erro dizer que o hábito não faz o monge. No plano social, o que se verifica é precisamente o contrário, e o comportamento não só surge estreitamente ligado ao traje, como este se torna o signo visível de cada função social.” S.P./P.C.
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Fotografia G N E H Z E G
Boa pesca! O chinês Ge Zheng ganhou o prémio para a melhor foto com esta delicada imagem, a que chamou Pescador Junto à Rede. Tirou-a na costa da província de Fujian, no sul do país.
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Imagens à vista de pássaro
O mundo dos DRONES O concurso Sky Pixel Photo recebeu 27 mil imagens aéreas procedentes de 131 países, feitas com os drones da empresa chinesa DJI, que se caracterizam por integrar diferentes tipos de câmaras.
O neozelandês que assina dixonltd colocou-se no centro da zona de descarga de uma barragem e dali pilotou o drone que lhe fez um autorretrato em que é quase invisível. Selfie zenital.
D T L N O X I D
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G N A W G IN B N A H
I IA L G A P O R U A M
Ecos do passado. As caravanas da Rota da Seda cruzaram durante séculos o deserto que ocupa parte da atual região autónoma uigur de Sinkiang (China), na fronteira com a Mongólia e o Cazaquistão. Há quem continue a fazê-lo, principalmente turistas.
Ondas de Verde . Assim se chama esta imagem, galardoada com o segundo prémio na categoria Beleza, na secção para amadores. Foi obtida perto de San Quirino d’Orcia, uma pequena localidade toscana com 2400 habitantes, que já surge mencionada em documentos do século VII.
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Frio (quase) polar. No noroeste da China, os rigores do inverno congelam os lagos e as correntes fluviais. É o que acontece com o rio Hun He, que produz efeitos como este à passagem por Shenyang, uma cidade próxima da fronteira com a Coreia do Norte.
N N A
IM E N N A M O R
Manhã feliz. O estónio Roman Neiman ganhou o prémio da categoria Drones em Uso (profissionais) com esta imagem obtida às primeiras horas do dia junto a um dos muitos lagos que há no seu país. Interessante 47
R E K O L N A C
N A H G N E H C
Nevoeiro na Floresta Negra Este maciço montanhoso do sudoeste da Alemanha é conhecido desde a Antiguidade pela sua grande densidade florestal, que, em muitos locais, tapa por completo a luz solar.
U A L L O N N A M R O N
Geometria rural. Um drone sobrevoa as ordenadas terras de cultivo de Yunnan, província do sul da China. A imagem foi obtida a poucos quilómetros da fronteira com Myanmar (Birmânia).
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A IF F
Torre coroada. A imagem vencedora na categoria Drones em Uso (profissionais) mostra uma construção erguida no século XVI no que hoje é a República Checa, país natal do autor, que assina Fifa. O halo é o rasto de um drone, captado numa longa exposição. G N A W O M A D G IN L
Sobre o vazio. Os 1088 metros de vão tornam a travessia sobre o rio Baling, na província chinesa de Guizhou, no sul do país, uma das maiores pontes suspensas do mundo. A altura desde o nível das águas é de 375 metros (125 andares).
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Sociedade
Publicidade super-eficaz
K C O T S I
Sequestrar NEURÓNIOS
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A rede digital multiplicou o poder de que os anúncios usufruíam há décadas através da rádio e da televisão. Agora, com os megadados, o neuromarketing e outras ferramentas adicionais, a publicidade tem pela frente um horizonte ilimitado.
Convite ao consumo. Na Times Square (Nova Iorque), por onde passam anualmente mais de cem milhões de pessoas, encontram-se alguns dos suportes publicitários mais caros do mundo. Interessante 51
Profissionais. A série Mad Men reflete muito bem a srcem das modernas agências de publicidade.
cidade também se via condenada a tornar-se
Procuram -nos também através deseduzir iniciativas culturais
H
á quem assegure que o ato de anunciar constitui, na realidade, uma tendência muito natural: veja-se as flores, com as suas maravilhosas cores e formas, ou os galos, com a sua plumagem e os seus cantos; até o ser humano, ao procurar convencer os outros, desde tempos primitivos, da sua força ou da sua beleza. O que é tudo isto senão publicidade? Numa sociedade como a nossa, baseada no consumo, a sua importância torna-se evidente, não apenas como motor económico, mas como forma de vida: é nela que se apoiam modas, costumes e mesmo a cultura. Um anúncio bem-sucedido promove o produto em si, mas também projeta os gos-
frase “A república independente da sua casa”, da Ikea, que evoca o mundo íntimo do lar. Se procurarmos num passado mais recente, encontramos a célebre campanha da agência Leo Burnett para o sorteio da Lotaria do Natal espanhola, em 2015: a história de Justino, o segurança de uma fábrica de manequins, com quem os trabalhadores partilham o primeiro prémio da lotaria. Pois bem, segundo o último relatório Gunn Report (índice mundial de excelência criativa em publicidade), publicado em fevereiro passado, esse pequeno filme de animação foi o anúncio mais galardoado do mundo em 2016, com um total de 48 prémios, incluindo um Grand Prix no Cannes Lions , o
tosAssim, e os sentimentos altura. o slogan dosdominantes anúncios dana Nike (“Just festival mais importante a nível internacional. ESCOAR A PRODUÇÃO do it” ), além de ser um êxito para a marca, mostra toda uma filosofia de vida. “Gosta de A omnipresente publicidade começou a torconduzir?”, da célebre campanha da BMW, são nar-se o que é hoje a partir da Revolução Induspalavras que evocam os prazeres de viajar e um trial. A produção maciça decorrente da expansentimento de liberdade. Ficaram também gra- são industrial que surgiu na Inglaterra do vadas na memória coletiva, pelo que implicam século XIX, dinamizada pelo seu império coloem termos de valores sociais (associados a temas nial, precisava de uma propaganda à medida. Havia muitos mais produtos para vender e como a religião, a raça ou a homossexualidade), as polémicas campanhas United Colors muito mais pessoas a quem vender (potenciais of Benetton, assim como o impacto positivo consumidores que também sabiam ler, graças (para mais, vinda de um país monárquico), da à democratização do ensino). Assim, a publi-
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uma verdadeira indústria. Gerida por empresas ou agências publicitárias, encontraria a sua principal via de expansão nos anúncios de jornais e revistas, que abundavam na altura graças, precisamente, à produção em massa. Juntar-se-ia depois, na década de 1920, um suporte alternativo que veio ampliar e conferir som aos anúncios: a rádio. Foi assim que a publicidade começou a sermais invasiva, pois o que se ouve não requer a intenção nem o esforço do ato de ler. Tornar-se-ia ainda mais dominante quando as imagens vieram ilustrar a mensagem: a televisão irrompeu nos anos 50 e, com ela, o caminho a percorrer até aos nossos dias já estava mais do que preparado. Terreno fértil para que ninguém se surpreendesse, já nos anos 90, com o que a internet representaria para a publicidade. Entrámos na era dose megadados ( big data),que do neuromarketing de toda a parafernália a publicidade cavalga hoje, dando por assentes premissas como a importância da apresentação em detrimento de outros recursos competitivos. Invade cada vez mais o espaço privado do indivíduo, e recorre aos truques aprendidos e aos atalhos proporcionados pela tecnologia com o mesmo à-vontade, quer se trate de vender um produto ou de promover um partido político. Como chegámos a este estado de coisas? Alguém deve ter tido a ideia de fazer publici-
K C O T S R E T T U H S
Mercado valioso. Segundo um estudo da Kantar Millward Board, os jovens são os mais impacientes com a publicidade online. Para seduzi-los, deve ter música e humor.
Estudar o cliente George Gallup James Barratt (1841–1914) é considerado omas promotor do marketing moderno, devido foi pioneiro à sua campanha para os sabonetes Pears, no ao promover final do século XIX, ter incluído slogans pensa- o estudo dos para um público específico, a par de ima- da psicologia gens sugestivas, conseguindo assim associar relacionada com as o produto a um nível cultural e de qualidade compras e os que definiu como cânone a imagem da marca. hábitos dos Algumas das suas máximas continuam a fazer consumidores, para conhecer sentido atualmente: “Os gostos mudam as os seus modas, as modas mudam e o publicitário tem gostos e poder de mudar com ambos.” dirigir melhor a publicidade. ANÚNCIOS PERSONALIZADOS
dade como a que existe hoje. O londrino Tho-
Aí temos, pois, a máquina anunciadora e todos os seus recursos a perseguir o consumidor através dos vaivéns que as redes sociais fazem e desfazem com toda a celeridade. Os abundantes dados globais sobre qualquer indivíduo ou assunto do deseja mecanismo cerebral quee oseconhecimento ativa quando se algo, enfatizado pelo neuromarketing, são algumas das ferramentas avançadas. Nas palavras de uma especialista, “os megadados e o neuromarketing são uma grande oportunidade para aumentar a eficácia através da hipersegmentação: informação é poder”. Esse acompanhamento das tendências não teria sido possível (muito menos na atual vertigem de modas e suportes que mudam constantemente) sem a infraestrutura que absorve, arrasta ou reinventa esses movimentos: as Interessante 53
A investigação neurológica ajuda a afinar as estratégias agências. Abarcar numa mesma empresa todas as ações envolvidas na publicidade implicou, na altura, uma verdadeira revolução. Obviamente, a iniciativa surgiu na pátria da Revolução Industrial por excelência, a Inglaterra do início do século XIX. Em 1800, um certo James White foio primeiro que, além de adquirir espaços publicitários para as companhias, redigia os anúncios. A partir de então, tanto em Inglaterra como nos Estados Unidos, a ideia pegou e foi sendo completada por grandes agências que fizeram história e foram configurando a atual fórmula. Quem viu a série televisivaMad Men terá uma ideia muito aproximada de como trabalhavam essas agências nos anos 60: efetivamente, a série funciona por vezes quase como um documentário sobre como era a publicidade numa época de que somos os herdeiros diretos.
ESPECIALIZAÇÃO E DIVERSIFICAÇÃO
Hoje, porém, a especialização e a diversificação estão na ordem do dia das agências. Há as que cobrem todo o processo (contratação, criatividade, difusão, criatividade, acompanhamento...) e as que apenas vendem recorrendo ao outsourcing para os restantes serviços; há as que canalizam as campanhas de publicidade encomendadas por anunciantes diretos e outras agências para os meios de comunicação social, e as que apenas se focam na internet. Cada modelo de empresa de publicidade, além de procurar a receita infalível, dá o uso adequado a conceitos e técnicas que têm vindo a definir os aníncios nos últimos tempos. No século XIX, já ocorria aos publicitários recorrer à psicologia, à sociologia e à linguística para melhor definir objetivos e tarefas. No século XX, investigadores como George Gallup e Daniel Starch criaram empresas de pesquisa para estudar a fundo o comportamento e a mentalidade das pessoas em termos de compras e hábitos. Instintivismo, comportamentalismo, psi-psicanálise e motivacionismo são correntes cológicas às quais os anúncios continuam a recorrer, como demonstram os contributos de psicólogos como John B. Watson e Walter D. Scott. Uma frase do segundo ficaria inscrita no ideário da publicidade moderna: “O homem tem sido chamado animal racional, mas poderia ser designado, com grande acerto, criatura da sugestão.” É aí que reside o busílis da questão: era necessário sugestionar o potencial consumidor, e nada melhor do que fazê-lo de forma direta. 54 SUPER
P I S B / T IS O N E B E I L E M A
Até à última sinapse As empresas recorrem cada vez mais à neurociência para entender o que desperta o interesse dos consumidores.
Trata-se de uma das ideias que tornaram Albert Lasker e a sua atividade na Chicago da primeira metade do século passado no germe do marketing contemporâneo. Seduzir o consu-
a ser colocada quando a publicidade ampliou os seus meios de expansão. Em 1919, as emissoras de rádio norte-americanas começaram a emiti-la em forma de ladainha, como hoje
midor indiretamente, através uma de incentivos culturais ou sociais, tornou-se ideia generalizada, como se pode ver pelo patrocínio de todo o género de atividades promovidas por marcas e empresas. Essa publicidade indireta descobriu uma mina sem fundo no mundo digital, até alcançar o nível invasivo que colide, agora, contra a ética individual e o cansaço do público. Como dizem os especialistas, não se deve saturar e atacar a privacidade do consumidor, mas proporcionar ofertas personalizadas e adaptadas às necessidades de cada um. Na realidade, a questão já tinha começado
acontece em todo o planeta.e,Depois, os programas patrocinados logo asurgiram seguir, a promoção de produtos feita pelos próprios locutores. A ênfase da palavra continua a ser atualmente muito eficaz, sobretudo nas emissoras de música, onde os anúncios são facilmente apreendidos pelos ouvintes. No final dos anos 90, os novos canais televisivos e o aparecimento da TV por cabo e satélite revolucionaram por completo o mercado da publicidade. O contínuo bombardeamento de mensagens publicitárias destina-se a atrair, por todos os meios, a atenção de um público
As raízes do desejo
O
recurso à neurociência para aprofundar o conhecimento do consumidor é um dos expedientes em que se apoia a publicidade atual. É o passo que se segue à informação proporcionada pelos inquéritos, os quais procuram dar a conhecer, estatisticamente, os gostos e as reações a determinados produtos ou ideias. Ir para além dessas respostas conscientes implica penetrar no encéfalo para saber quais são os processos inconscientes que são ativados quando o potencial consumidor pensa e decide. Não se trata, pois, de uma nova forma de marketing, mas de implementar os estudos exigidos por este. Para chegar às raízes cerebrais, o neuromarketing baseia-se em técnicas simples, como o acompanhamento do movimento ocular, a análise de expressões faciais e experiências comportamentais. São também utilizados métodos mais complexos baseados em sensores, como é o caso da biometria, que avalia os sinais físicos (transpiração, respiração, frequência cardíaca e movimento dos músculos faciais) e da neurometria, que mede os sinais do cérebro que propiciam a atividade elétrica (eletroencefalografia) e o fluxo sanguíneo (ressonância magnética funcional). Os dados que resultam deste tipo de investigação são utilizados, por exemplo, perfilarpor as uma ligações redor da ideiapara projetada mar-em ca, as reações face às inovações de um produto, a eficácia real de determinado estilo de anunciar e a influência ilógica ou irracional do meio na decisão de comprar algo. Englobariam as reações do consumidor, provocadas pela imaginação que diversões de todo o tipo (música, jogos, desportos, etc.) ativam e, também, o papel inspirador do que está no ecrã, em termos de publicidade e compras online.
cada vez mais informado e exigente, através da inovação das técnicas e dos conteúdos publicitários. Estatísticas internacionais mostram que este tipo demarketing continua a ser
publicitário Gary Thuerk. Depois, em 1993, mostrar, em qualquer momento, anúncios que chegou o primeiro banner e, passado um ano, ampliam a oferta dos produtos procurados). a primeira página comercial de venda de publiA partir do ano 2000, surgiriam mais possicidade (HotWire). bilidades quando gigantes como o Google , o
mais eficaz, ao conjugar a força demensagens eo cenários, ocupar as quotas demaior audiência e permitir uma publicidade seletiva segundo o tipo de programa, o público-alvo e mesmo as coordenadas geográficas e culturais.
Em 1996, aainovação pelaa oferecer mão dae DoubleClick, primeira surgiu empresa a desenvolver anúncios na internet. No final da década, os pop-ups (janelas abertas sem o consentimento do utilizador, geralmente com anúncios de produtos ou serviços, que surgem frequentemente em portais de notícias e entretenimento), que a empresa ExitExchange assegura ter inventado, foram a alternativa ao banner; embora este tenha recuperado importância a partir de 2007, graças ao retargeting (tecnologia que localiza, através de cookies , os gostos do utilizador para lhe
UM NOVO MUNDO
Isso não retira força à ideia de que ainternet está a abrir caminho com crescente força, na tentativa de ocupar o primeiro lugar no pódio em cada vez mais setores de audiência. Tudo começou com o primeiro spam enviado por correio eletrónico, em 3 de maio de 1978, pelo
Facebook Twitterconverteram , o YouTube e o recurso publicidade online num fundamental,a inventando as suas próprias fórmulas. “Foi a democratização da publicidade”, diz José Leon, diretor-geral criativo de uma agência publicitária ibérica. “A internet e o mundo digital, graças aos baixos custos de investimento e produção, favoreceram a incorporação de novos anunciantes e a eclosão de projetos pessoais independentes, afastados das grandes estruturas e dos espartilhos das multinacionais publicitárias.” M.M.
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Sociedade Y T T E G /
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Armas de persuasão maciça
Os anúncios do FUTURO Ninguém tem dúvidas: a promoção de produtos no mundo digital é imparável. Para assegurar a sua sobrevivência, imprensa, rádio e televisão procuram apanhar a boleia da internet. Uns e outros falam de interagir com o consumidor sem o oprimir. Haverá uma receita mágica para isso?
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Visão de negócio. A realidade virtual gera a participação ativa do consumidor, os que permite às marcas chamar a atenção para os seus produtos. Empresas como a North Face (na foto) recorrem cada vez mais à RV para vender os seus artigos, dar visibilidade à marca e tornar as compras mais divertidas para o cliente.
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A internet das coisas vai trazer anúncios para cada momento
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futuro já chegou. A frase, embora gasta, é totalmente oportuna neste caso, pois algumas das tendências publicitárias que o futuro antevê já se encontram entre nós. Pelo menos em teoria, pois tudo gira em torno da interação com o utilizador permitida hoje pela tecnologia. O âmbito digital publicitário não cessa de desbravar caminhos para chegar ao indivíduo, saber o que lhe vender e, também, como, quando e onde fazê-lo. Não se trata de persegui-lo, mas de garantir que todo esse exercício, incluído em jogos, atividades ou simplespesquisas, faça parte, sem se tornar invasivo, do mundo do consumidor, de tal modo que este tenha sempre à mão um verdadeiro escarapate informativo no momento de comprar. “As pessoas têm um papel ativo nesta nova equação e consomem os conteúdos que querem, que procuram e que partilham”, diz José Rull, especialista em comunicação publicitária. “Esses conteúdos tornaram-se um bem de consumo, algo que nos define. Diz-me o que vês e o que partilhas
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e eu nunca, dir-te-eiaquem és. Por deve isso, agora mais doà que publicidade estar ligada tar é essa fonte inesgotável de informação cultura, ter o sentido do momento.” O problema é que o públicopode acabar por que são os megadados (big data). Automatizar sentir-se cansado e farto de ser constantemente a utilização de um volume de dados tão grande a nível global, ou mesmo nacional, é um invadido pela publicidade, em especial na internet. De facto, esse cansaço levou a que, assunto pendente para a tecnologia digital, e a nos Estados Unidos, um terço dos utilizadores tarefa exigirá programas potentes, que clastenham instalado programas para bloquear os sifiquem e tornem a informação acessível em anúncios. Isso é um motivo de preocupação tempo útil. Para isso, será necessário recorrer à para os profissionais do setor, que estudam inteligência artificial e a máquinas que possam como evitar o excesso de anúncios, como aprender. Nesse sentido, o supercomputador doseá-los e racionalizá-los, e quem deve dar o Watson, da IBM, que pode processar dados em primeiro passo em termos de autorregulação. massa através de um sistema cognitivo, é um bom ponto de partida. ASSUNTO ESPINHOSO As novas ferramentas terão também de lidar Por enquanto, parece ser um assunto espi- com uma tendência publicitária que está hoje a nhoso, embora devesse atenuar a irritação dos dar os primeiros passos e fará parte do nosso utilizadores o facto de “saber que muitos servi- futuro: a reinvenção do já velho preceito da çoscontributo da internetcomercial existem edos sãodados”, gratuitos graças ao indica Rull. Vejamos o exemplo de um serviçodenominado sponsored data (dados patrocinados). Essa estratégia comercial, ainda desconhecida na Europa mas popular em países como os Estados Unidos, consiste em navegar deforma gratuita no telemóvel, sem gastar dados, a troco de interagir com uma marca (por exemplo, navegando pelo seusite de compras, pela aplicação ou por conteúdos que patrocina), o que lhe assegura maior ligação com o consumidor. Outro dos problemas que teremos de enfren-
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publicidade indireta,pelo agora através das possibilidades oferecidas mundo digital. Assim, vídeos, música, imagens ou reportagens, que fluem através de qualquer dispositivo, tornam-se protagonistas de uma mensagem em que o produto anunciado ocupa um lugar secundário, embora isso não impeça que seja captada e recordada pelo público. Neste campo, a realidade virtual tem um futuro prometedor, como mostram os primeiros passos dados com dispositivos como os Oculus Rift, a PlayStation VRe a HTC Vive, embora, por enquanto, seja o vídeo o protagonista da
opção pela publicidade indireta, que descolou em 2016 e prosseguirá nos próximos anos. Trata-se de um conteúdo personalizado e pensado para determinados segmentos da população, o que irá evitar os incómodos próprios da invasão maciça causada pela utilização dos megadados. Será fundamental que os vídeos, com o produto anunciado em segundo plano, representem sempre uma experiência atraente e satisfatória para o consumidor. O TRIUNFO DO TELEMÓVEL
No âmbito dos anúncios indiretos, assim como no panorama da publicidade em geral, o suporte por excelência será o telemóvel. Já aconteceu, em 2016, em países como a China, e, segundo relatórios da agência Zenith sobre previsõesem de 2017 investimento publicitárioo acompunível mundial, deverá ultrapassar tador, tornando-se o principal suporte publicitário online. Motivo? O telemóvel é o dispositivo que mais utilizamos quando pretendemos fazer consultas na rede digital. As grandes marcas estão a preparar-se para esse horizonte, a começar pela Google, que começou a considerar as aplicações como uma ferramenta que permite mais interação publicitária do que as páginas. Neste quadro, irão desempenhar um papel cada vez mais relevante os assistentes digitais
Pelotão da frente. O investimento publicitário na internet móvel cresce todos os anos. O da China tornou-se um mercado pioneiro neste sentido.
penham, e continuarão a fazê-lo, um papel importante na indústria da moda, no estilo de vida e nos produtos de design”, explica Matthias Schmidt, membro da comissão executiva da Scholz & Friends, uma das principais agências europeias. Schmidt afirma que viu muitos trabalhos que procuram inovar o meio. “Havia dispositivos em papel que funcionavam com energia solar, novas formas de usar autocolantes publicitários nas revistas ou em postais, ou anúncios que se transformavam em ramos de flores. Todavia, o futuro não reside em tentar ser interativo, mas precisamente no seu passado: uma ideia simples e perfeitamente executada que seduza o coração e a mente.” Na opinião dos especialistas, há outra via que permitirá aos anúncios em papel sobreviver: a exclusividade e o âmbito bem definido, face ao campo do mundo digital, que dificilmente se pode delimitar mesmo com recurso à mais sofisticada tecnologia. No caso da rádio, foram dados os primeiros passos para permitir a interação com os ouvintes. Estes já podem enviar mensagens de texto à emissora e, graças à nova rádio de alta definição (HDR), receber em tempo real informação sobre, por exemplo, o lugar mais próximo onde comprar um produto. Outra via de interação que apresenta um horizonte promissor para este tipo de publicidade é a rádio àmomento la carte, que permite ouvir um programa no escolhido.
(ao estilo da atual Siri, assim como os que vierem a ser desenvolvidos a curto prazo, cada vez mais sofisticados e eficazes), os quais irão transitar por estes novos suportes publicitários no intuito de guiar o utilizador através da informação, quer se trate de uma reportagem sobre qualquer tema ou de um vídeo musical. Todos estes sistemas parecem encaminhar-se para a internet das coisas (conceito que se refere à interligação dos objetos do quotidiano com a rede digital), o que prolonga indefinidamente o território da promoção de produtos. Esta interligação de todas as facetas da nossa vida será ainda mais fluida quando se generalizar a utilização dos wearables, dispositivos tecnológicos inseridos na roupa e nos acessórios que irão proporcionar dados sobre os nossos
lado. Os universos digital e publicitário estão predestinados a evoluir juntos. É o que deixa claro Susan Wojcicki, diretora-executiva do YouTube, a propósito da ferramenta TrueView (o anunciante só tem de pagar quando o utilizador vê o seu anúncio), como meio de atrair publicidade para o mundo do vídeo.
gostos e hábitos. Isso irápara facilitar muito as estratégias das marcas se promoveram, no momento e modo oportunos, e permitirá que nos chegue uma publicidade mais personalizada e, por conseguinte, mais útil. Os conteúdos publicitários vão adaptar-se ao quotidiano das pessoas. Nesse sentido, a geolocalização que os wearables permitem será um fator a favor das empresas. Assim, por exemplo, é provável que, no futuro, quando estivermos a fazer compras no supermercado, chegue ao nosso relógio digital a promoção especial de um produto que está mesmo ali ao
dade artística que asnem máquinas não poderão assumir, nem agora num futuro próximo. A solução para a publicidade em papel poderia passar por regressar aos conteúdos com qualidade visual e mensagem, uma tendência que podemos observar nos Estados Unidos, onde grandes marcas voltaram a acreditar nas possibilidades deste suporte: nos últimos anos, não cessaram de surgir novas revistas, sobretudo no terreno empresarial. Um exemplo é a Pineapple, publicada pela Airbnb, a plataforma digital para o arrendamento de casas particulares. “As revistas impressas ainda desem-
Por sua vez, a televisão está a otimizar os seus recursos para manter a liderança publicitária. Assim, aumentam as iniciativas em que usa outros suportes, sobretudo telemóveis, com os quais pode criar uma ligação que permita emitir publicidade nos momentos mais oportunos e em sintonia com o público. Essa interligação poderá captar gostos e tendências, E OS MEIOS TRADICIONAIS? como se fosse de telemóvel para telemóvel, O que acontecerá aos anúncios na imprensa, para conceber a própria publicidade e facilitar na rádio e na televisão? Por enquanto, esses o processo de compra. meios continuam muito presentes, e o seu Graças ao seu formato e à sua posição domifuturo está assegurado a curto e médio prazo, nante, a televisão possibilita um targeting precisamente por continuarem a ser os mais imediato: isto é, permite dirigir a mensagem humanos. Na publicidade escrita, é preciso publicitária a um público específico, do qual seduzir o potencial consumidor com uma cena se sabe a priori que programas irá ver e a que estática impressa, e isso implica uma criativi- horas. Os canais mais importantes apressam-se a colocarque à disposição das grandes marcas recursos lhes permitam patrocinar, ou mesmo criar, os seus próprios espaços televisivos, de forma cada vez mais ágil e flexível: desde a menção “este programa é patrocinado pela marca X” até concursos e reportagens em que o anunciante esteja presente, de uma ou outra forma, ou até faça parte do guião. A verdade é que a publicidade online é cada vez mais importante, mas ainda não substitui por completo nem tem a força da dos grandes meios de comunicação social. M.M.
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Sociedade
Do papiro ao spot televisivo
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A evolução do RECLAME
O atual fenómeno da publicidade tem as suas raízes mais profundas na própria evolução do homem, desde que, nos alvores da civilização, começou a organizar-se economicamente em torno das compras e vendas. Desde então e até aos nossos dias, foi este o seu percurso. Interessante 61
Os primeiros anúncios foram criados na Antiguidade
Em cada lar. A rádio, primeiro (aqui, foto de 1920), e a televisão, depois, mostraram-se terrenos férteis para a missão de levar a promoção comercial a grandes públicos.
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emontemos ao momento em que os seres humanos se estabeleceram em comunidades baseadas na agricultura. Quando alguns verificaram que tinham material de sobra e tiveram a ideia de vendê-lo aos seus vizinhos, surgiu a promoção como forma de assegurar a venda dos excedentes. Temos provas de que civilizações tão antigas como a egípcia utilizaram papiros para anunciar os seus produtos, um suporte que foi também habitual entre os comerciantes da Grécia e da Roma clássicas. Testemunho ainda mais sólido são as inscrições encontradas em paredes como as das ruínas de Pompeia, onde os frescos com propaganda de produtos permanecem intactos. Anúncios semelhantes foram também encontrados em vestígios arqueológicos da América, de África e da Ásia. O anúncio mais antigo de que se tem conhecimento na China surge descrito no livro Shijing (séculos XI–VII a.C.): um som de flautas de bambu atraía os clientes nas barracas de rebuçados. É da época da dinastia Song (séculos X–XII)em queforma data uma placa de e compara um logotipo de coelho quecobr servia imprimir cartazes de uma fábrica que comercializava agulhas de costura. Entretanto, na Europa medieval, território culturalmente devastado desde a queda de Roma, a população iletrada continuava a escutar os pregoeiros para decidir o que comprar e a quem, como os antigos gregos e romanos. Esses primeiros publicitários, que por vezes compunham as cantilenas além de entoá-las aos quatro ventos, chegaram a organizar-se num grémio com estatutos escritos, no século XIII, e a usar insígnias para identificar os vendedores que representavam. ESTREIA NA IMPRENSA
A primeira notícia de que se tem conhecimento da utilização da imprensa para um anúncio Salisbury data de 1480, e promovia as águas de (Inglaterra). Contudo, foitermais só no século XVI que esse recurso se tornou mais habitual, como demonstra a estratégia comercial-propagandística da família alemã Fugger, uma das primeiras holdings europeias, com a sua atividade publicitária inserida nas chamadas “folhas de notícias”, precursoras dos jornais. O invento também seria bem aproveitado pelas grandes companhias que surgiram no século XVII a expensas do colonialismo. Cada vez se tornavam mais necessários os espaços específicos para anúncios, e surgem 62 SUPER
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em Londres os primeiros lugares reservados a cartazes de publicidade. É também na capital inglesa que nasce, em 1611, a primeira agência de anúncios comerciais e, em 1625, o primeiro reclame incluído numa publicação periódica, o Mercurius Britannicus. Algum tempo depois, em 1667, é lançado, no mesmo país, o Public Advertiser , o primeiro semanário de conteú-
dos exclusivamente comerciais. O equivalente norte-americano, o Daily Advertiser, seria apenas lançado em 1730. Cerca de 20 anos depois, surgiria, em França, o Annonces, Affiches et Avis Divers , um suplemento publicitário do jornal La Gazette. No século XIX, o aparelho publicitário irá conquistar a independência e iniciar o caminho
Company, ou a norte-americana Lawson & Barker, cujo principal objetivo era conseguir espaços onde anunciar para uma carteira mais ou menos fixa de clientes. O LUGAR DOS CRIATIVOS
É nessa época que surgem agências que ainda hoje têm peso, como a J. Walter Thompson, e também nessa altura que profissionais veem crescer a sua função como criativos. Antes do final do século XIX, acrescentarão mais um serviço aos que já tinham: as informações sobre mercados. Simultaneamente, o progresso da fotografia e da linotipia favorece o desenvolvimento gráfico da propaganda comercial em jornais e cartazes. É o boom da imagem, embora fosse em breve surgir o impacto sonoro da rádio. Em 1929, nos Estados Unidos, um terço dos lares possui um aparelho recetor, e a agência J. Walter Thompson já produz 23 horas semanais de programas, financiados por 18 anunciantes. Na altura, a visualidade continua a ser território do cartaz, que beneficia do intenso fluxo artístico da época. Assim, os cartazes de anúncios irão alcançar uma elevada qualidade pela mão de correntes pictóricas como o impressionismo, a art nouveau, o simbolismo, o cubismo e o surrealismo. DOS PRODUTOS À IDEOLOGIA Entretanto, o capitalismo, alimentado pelo crescente consumismo, já entrou na fase dos grandes monopólios, cujo poder favorece a investigação no domínio da publicidade: novas ciências e técnicas somam-se ao objetivo de saber como vender mais e melhor. Lições bem aprendidas e aplicadas (sobretudo na rádio, suporte preponderante na altura) e, chegados à Segunda Guerra Mundial, a publicidade já amadureceu até estar muito perto do marketing, que irá mostrar o seu novo saber na propaganda política de ambos os lados. Será mais importante ainda durante a posterior guerra fria, quando tanto os propagandistas norte-americanos como os russos aperfeiçoaram a sua capacidade de seduzir e convencer. Enaltecer o American Way of Life e demonizar o termo “comunista” são façanhas
históricas do marketing ocidental. Nessa altura, já entrarapolítico no palco das promoções e da publicidade a televisão: embora o seu contributo como ferramenta de manipulação política e social tenha sido importante (tanto rumo à singularização como empresa. A atinova-iorquina. Perante o interesse dos anun- no passado como agora), o papel primordial vidade irá centrar-se, primeiro, na compra e ciantes, o New York Sun contratou, em 1833, continua a ser o comercial e publicitário, o que venda de espaços publicitários, tarefa que os os primeiros angariadores de publicidade. se deve em grande parte ao ímpeto profissiomais poderosos assumem por completo, como Depois de ficar demonstrado que se tratava de nal das agências norte-americanas dos anos aconteceu, em 1828, com um bem-sucedido uma atividade lucrativa, surgiram as primeiras 60 e 70. Até aos nossos dias, em que a publifabricante de sabonetes (e, depois, de pasta agências de publicidade, a partir de 1840, que cidade encontrou no mundo digital o suporte de dentes) chamado William Colgate, o qual aproveitaram a experiência de companhias perfeito para poder continuar a evoluir. chegou a adquirir espaços em toda a imprensa publicitárias britânicas como a Newton & M.M. Interessante 63
Psicologia K C O T S I
Ainda guardam muitos segredos
O mundo dos SONHOS
A neurociência já dispõe de ferramentas para entrar no cérebro e ver o que se passa enquanto sonhamos. O objetivo é decifrar a utilidade adaptativa dessas misteriosas imagens, sons, histórias e sensações que experimentamos ao dormir.
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No reino de Morfeu. Quando sonhamos, alteram-se as leis físicas do mundo em que nos movemos: podemos voar, ser invisíveis e viver acontecimentos contrários à lógica.
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Na natureza,há sempre um fim: os sonhos têm um objetivo
Sob observação. Experiências como esta permitem seguir as constantes vitais dos voluntários e compreender melhor o que se passa nas várias fases do sono.
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alvez tenha sonhado alguma vez que está a voar. Carl Sagan escreve, em Os Dragões do Éden , que se trata de uma reminiscência nostálgica do nosso cérebro de primata arcaico sobre esses “dias do passado em que saltávamos de ramo em ramo”. Outros especialistas sugeriram que os sonhos são fruto de bombardeamentos aleatórios de sinais elétricos que têm srcem no bulbo raquidiano, aterram no neocórtex e produzem associações fortuitas que depois interpretamos e dotamos de sentido ao despertar, como quem tenta ver um rosto na Lua ou uma forma numa nuvem. Todavia, para a maior parte dos cientistas, estas teorias estão erradas. Na natureza, tudo tem um sentido. Se sonhamos cerca de duas horas por noite, deve servir para algo importante do ponto de vista evolutivo e adaptativo. Porém, para quê? Os especialistas não chegam a um consenso. Será que, na realidade, sonhar serve para um monte de coisas? As técnicas de neuroimagiologia permitiram retratar a vertiginosa atividade encefálica enquanto dorme: consome 80 ela? por Segundo cento da energia dosecorpo. O que faz com o neurocientista Jonathan Winson, da Universidade Rockefeller (Estados Unidos), os sonhos são a forma como a nossa memória integra a informação recebida quando estamos acordados. Durante a chamada fase REM (rapid eye movement, ou movimento ocular rápido), que é uma das etapas do sono em que temos ten“A fase REM parece importante para gravar voltamos a viver uma experiência dolorosa dência para ter sonhos vívidos, construímos recordações relacionadas com procedimentos num sonho, aprendemos a processar e aceitar estratégias comportamentais baseadas nas experiências do dia, que depois armazenamos. e emoções. A fase NREM[movimento ocular não os terríveis sentimentos que nos desperta. rápido], para consolidar a memória episódica.” Numa experiência da Universidade de SONHAR PARA SOBREVIVER A hipótese de que sonhamos para aprender Berkeley (Califórnia), o neurologista Matthew Nas suas experiências com primatas, Winson coaduna-se com o facto de os recém-nascidos Walker projetou aos participantes uma série demontrou que os períodos REM correspon- passarem mais de oito horas, todas as noites, de imagens violentas. Os de um grupo viam as dem a grande atividade no hipocampo, área em REM; os adultos, menos de quatro. Contudo, fotos duas vezes num dia, sem terem dormido cerebral destinada a processar a memória. o mais extraordinário é que é antes de nascer pelo meio. Os outros voltavam a vê-las no dia “Sonhamos para sobreviver e para refrescar que mais sonhamos: o feto passa quinze horas seguinte, depois de terem repousado. Pois recordações necessárias à sobrevivência”, diz Winson. No mesmo sentido, Jessica Payne, psicóloga na Universidade do Arizona, afirma: “Os sonhos refletem um processo biológico de consolidação da memória a longo prazo, ao fortalecer as ligações neuronais que gravam acontecimentos recentes e integrá-las com o conhecimento armazenado anteriormente.” Payne demonstrou que sonhar aumenta os níveis de cortisol, um neurotransmissor essencial nas estruturas cerebrais associadas às recordações. Além disso, sugere que cada fase do sonho ativa um tipo diferente de memória:
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porJim diaHorne, na fasediretor REM. do Laboratório do Sono da segunda bem, os segundos com mais calma sessão doreagiam que os primeiros. As ima-na Universidade de Loughborough (Reino Unido), gens cerebrais mostraram que, durante a fase afirma que sonhar constitui, para o neonato, REM, a amígdala (responsável pelas emoções) “uma maneira de ensaiar o funcionamento do e o córtex pré-frontal (encarregado do proencéfalo em desenvolvimento”. Contudo, se cesso racional) se mostravam muito ativos, não possui recordações, qual é o material oní- talvez para digerir o impacto das imagens e rico? Talvez sonhe com os movimentos e sons aliviar a tensão. que capta no útero, ou com a sensação de flutuar no líquido amniótico. Poderia ser um treinopara ENTRENTAR OS PERIGOS DA VIDA a exposição sensorial que o aguarda ao nascer. E se os sonhos fossem uma espécie de campo de treino para aprender a enfrentar os perigos Para Ernest Hartmann, psiquiatra da Unida vida? Antti Revonsuo, professor de neuversidade Tufts (Estados Unidos), quando
Olhos delatores
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epois de muitas noites a observar como dormem os bebés para poder concluir a sua tese de pós-graduação na Universidade de Chicago (Estados Unidos), Eugene Aserinsky comprovou que se alternavam ciclos em que o globo ocular se movia muito, sob a pálpebra, com fases em que quase não se registava movimento. Juntamente com o seu professor de fisiologia, Nathaniel Kleitman, que dirigira os primeiros estudos sobre o sono nas décadas de 30 e 40, analisaram o fenómeno em adultos, de forma sistemática, através de eletroencefalogramas. Estes pioneiros da investigação do sono descobriram que havia correlações muito interessantes com diferentes reações fisiológicas. Durante a fase REM, registava-se uma intensa atividade elétrica no neocórtex, aumentava a frequência cardíaca e respiratória e sucediam-se uma série de padrões rítmicos irregulares a indicar que algo se passava na mente das pessoas adormecidas. Segundo Kleitman, o globo ocular movia-se durante um sonho tal como o faria, acordado, para olhar à sua volta. Pela primeira vez, tinham encontrado uma forma instrumental de detetar e medir o cé-
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rociência e psicologia nas universidades de Skövde (Suécia) e Turku (Finlândia), e autor da teoria da simulação de ameaças, afirma que sonhar é “um primitivo mecanismo biológico de defesa, evolutivamente selecionado pela sua capacidade para simular repetidamente acontecimentos ameaçadores”. Revonsuo considera que o conteúdo onírico não é aleatório, mas nos confronta com eventos prováveis na vida real para podermos ensaiar
tigação, que dois terços dos sonhos contêm uma ou mais ameaças dirigidas a quem dorme. As pessoas sonham tomar medidas defensivas ou evasivas adequadas, embora sem êxito em 15 por cento dos casos. “Os sonhos transportam-nos para situações extremas, para treinarmos como reagir e sentir. As crianças aprendem assim o que significa sentir medo, esperança, dor, surpresa e ansiedade, e como fugir do perigo. O mundo onírico
diferentes maneiras de oscom enfrentar e ultrapassar. Podemos sonhar o que sentimos quando o nosso parceiro é infiel, o que fazer se houver um incêndio em casa, como reagir a um chefe que nos grita... Se viver na selva, talvez entre no seu sonho um leão a atacá-lo ameio da noite. Trata-se, segundo Revonsuo, de ensaiar respostas adaptativas a acontecimentos críticos para a sobrevivência e a saúde emocional. A sua proposta foi bem recebida pela comunidade científica e deu srcem a numerosos estudos. António Zadra, psiquiatra da Universidade McGill (Canadá), concluiu, numa inves-
é como um teatro. vemos aprendemos o que Quando é a traição, a vingança, o, ódio. São estas narrativas que surgem na nossa mente durante a noite”, explica Nicholas Humphrey, professor de psicologia na Universidade de Nova Iorque. Simultaneamente, os sonhos “proporcionam-nos uma perceção do mundo que não poderíamos ter de outra maneira”, diz: “Por exemplo, muitas parteiras costumam sonhar que dão à luz, mesmo que não tenham filhos. Isso ajuda-as a entender as emoções das mulheres a que dão assistência.”
rebro sonhador. Em trabalhos posteriores, comprovou-se que é nesta fase REM (que ocorre, aproximadamente, durante até 90 minutos, três ou quatro vezes por noite) que temos os sonhos mais vívidos.
APRENDIZAGEM INVERSA
Estas hipóteses parecem razoáveis, mas há outras. Além de ter descoberto, em conjunto com Watson, a estrutura molecular do ADN, o neurocientista britânico Francis Crick desenvolveu, em 1983, juntamente com o matemático Graeme Mitchison, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), a teoria da aprendizagem inversa. A teoria afirma que sonhamos para esquecer,
Hamlet
é, os sonhos processam e apagam da mente aisto informação inútil. É como se fosse uma ecologia cerebral destinada a reduzir a saturação informativa produzida pela sobre-estimulação do córtex e pelas associações indesejáveis, que estes especialistas dividem em obsessões e fantasias. Para eles, a função do sono REM é tornar o cérebro mais eficiente e pequeno do que seria se tivesse de classificar e armazenar toda a informação recebida durante a vigília. A experiência onírica lida, sobretudo, com elementos experienciados ou aprendidos no passado imediato. Segundo Mark Blagrove, Interessante 67
Uma técnica ajuda a eliminar 80 por cento dos pesadelos diretor do Laboratório do Sono da Universidade de Swansea (Reino Unido), a maior parte provém de recordações do próprio dia ou, quanto muito, da última semana. Zadra pensa o mesmo: “A maioria centra-se num punhado de preocupações pessoais que giram em torno de interações sociais, com a família, os amigos e os colegas de trabalho.” Além disso, embora as histórias extravagantes tenham maior impacto, o mais frequente é os acontecimentos passados no sonho serem realistas e triviais. Oitenta por cento dos relatos analisados no seu estudo foram descritos pelos participantes como “pouco ou nada estranhos”. Apenas 6% dos cenários oníricos poderiam ser considerados como exóticos ou fantásticos. Por outro lado, o conteúdo dos sonhos não é apenas visual, embora as zonas mais ativas do cérebro enquanto se sonha sejam os lóbulos temporal e parietal, encarregados de processar as imagens. Noutra experiência de Zadra, com 164 voluntários, constatou-se que 33% dos homens e 40% das mulheres tinham sonhado com cheiros ou sabores.
K C O T S R E T T U H S
DE FORA PARA DENTRO
As sensações físicas que experimentamos enquanto dormimos também se incorporam no conteúdo onírico? Tudo indica que sim. O psiquiatra Tore Nielsen, da Universidade de Montréal (Canadá), demonstrou que o sistema límbico do encéfalo incorpora a sensação de dor na narrativa do sonho. Além disso, fá-lo de forma realista: o indivíduo reconhece o tipo de dor e a parte do corpo afetada. Foi possível comprová-lo aplicando estímulos nocicetivos a voluntários adormecidos quando entravam na fase REM. Quase todos se agitavam no sono e procuravam maneiras de se livrar, oniricamente, da fonte de suplício. Acontece também o oposto e, por vezes, transferimos para o mundo real o que sonhá-
Desde o princípio dos tempos que se considera que o material onírico está carregado de mensagens: “Reflete o estado emocional do sonhador ou compensa determinados esforços para procurar um certo equilíbrio psíquico. Para além de poder reforçar funções cognitivas (memória, atenção), é uma ferramenta essencial do ponto de vista psicoterapêutico”, diz o psicólogo Jordi Borrás, especialista no estudo dos sonhos. Sigmund Freud, pai da psicanálise e pioneiro no estudo da interpretação dos sonhos, atribuía
mos. Falardas enquanto sonha não é raro (metade criançasse e 5% dos adultos fazem-no). Os sonâmbulos conseguem mesmo atar os atacadores dos sapatos, conduzir ou lutar enquanto dormem. Dez por centro das crianças e 4% dos adultos já tiveram alguma vez esta perturbação do sono, que ocorre na fase NREM, pode durar entre alguns segundos e mais de trinta minutos e é geralmente seguida de amnésia. Normalmente, o sonambulismo não é grave, exceto se se manifestar de forma violenta ou se puder provocar acidentes. Ao contrário da convicção popular, deve-se
à atividadepovoada onírica adefunção de reprimidos aliviar a tensão psíquica, desejos que surgiriam distorcidos ou latentes para se tornarem mais aceitáveis. Propunha chaves para decifrá-los e, passado um século, ainda se continua a trabalhar com eles em psicoterapia. Pede-se, por exemplo, ao paciente que conte o seu sonho do ponto de vista de cada um dos intervenientes envolvidos, para que possa integrar diferentes aspectos de si próprio. Por sua vez, a terapia cognitivo-comportamental utilizada pela maior parte dos psicólogos defende que os sonhos refletem a conce-
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acordar o sonâmbulo, sobretudo se estiver prestes a fazer algo perigoso ou indecoroso. MENSAGENS CIFRADAS
ção do mundo do indivíduo e são úteis para identificar padrões de pensamento distorcidos ou desadaptativos, os quais devem ser trabalhados nas sessões. Segundo Zadra, “os estudos empíricos demonstram que o seu conteúdo está muito relacionado com as preocupações do quotidiano ou com traumas não ultrapassados, como acontece no caso dos pesadelos recorrentes”: “Além disso, os sonos das pessoas afetadas por certos distúrbios mentais são diferentes daqueles dos indivíduos saudáveis.” Por exemplo, é típico da depressão sonhar com agressões e não recordar pormenores do ambiente, enquanto os esquizofrénicos são propensos aos pesadelos e menos inclinados a experimentar emoções. MAUS SONHOS
De acordo com Blagrove, “não é tão importante descobrir a mensagem oculta como aproveitar o sonho para ampliar a perspetiva”: “À semelhança de um filme, que por vezes nos ajuda a ver a nossa vida de uma maneira diferente, os sonhos podem proporcionar uma perspetiva mais rica de nós próprios.” Borrás considera que eles “deixam claro o nosso potencial, capacidades que desconhecemos e estão à espera de ser despertadas”. Não podemos deixar de referir os pesadelos,
Sexo para todos
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egundo Freud, o sexo está presente, de forma explícita ou encoberta, no conteúdo de todos os sonhos. O psicanalista austríaco tinha razão, de acordo com um estudo da Universidade de Trent (Canadá), dirigido por David King e Teresa DeCicco. Trinta e oito por cento dos participantes afirmaram ter tido um sonho erótico na última semana, e 100% dos homens e 66% das mulheres também os tinham tido alguma
Pesadelos recorrentes. Entre 4 e 8 por cento dos adultos padecem de sonhos angustiantes, como o de ser perseguidos ou cair interminavelmente.
um tormento para 4% a 8% da população adulta que os tem habitualmente, os quais se distinguem pela sensação de medo e ansiedade que provocam. Quando são recorrentes (um tema habitual é o de que alguém nos persegue ou ataca), são considerados um distúrbio do sono e requerem tratamento. Noventa por cento das pessoas com síndrome de stress pós-traumático revivem nos seus sonhos o acidente, a guerra, a violação ou a tortura a que sobreviveram. Foi para elas que Barry Krakow, diretor do Centro Internacional Maimónides para o Tratamento dos Pesadelos, no Novo México, criou a terapia de ensaio de imagens, que consiste em reescrever o sonho recorrente alterando o resultado final, para deixar de ser
estudados por Stephen LaBerge, fisiólogo e psicólogo da Universidade de Stanford (Estados Unidos), o qual começou a fazer as suas experiências na década de 80. Trata-se de uma atividade em que a pessoa adormecida tem consciência de que está a sonhar e pode manipular voluntariamente o desenvolvimento do seu filme onírico, de forma espontânea ou induzida por aprendizagem e prática.
traumático. A técnica funciona em 80% dos casos. Por exemplo, uma paciente imaginou que enfrentava o seu violador com um taco de basebol; um homem trocou o ruído das explosões na guerra no Afeganistão pelo som das ondas numa praia. À força de visualizar, durante a vigília, um desenvolvimento diferente da história, em que um final feliz substitui o traumático, a maior parte das pessoas afetadas consegue modificar o sonho. O poder de moldar a realidade onírica dá mais um passo com os chamados “sonhos lúcidos”,
sonhar comnoumcérebro ato sexual idênticas da alterações e noproduz corpo (aumento temperatura, respiração acelerada, ejaculação ou secreção vaginal durante o orgasmo) doque quando se faz amor plenamente desperto. Segundo LaBerge, “a nossa atividade ou inatividade ao sonhar pode afetar-nos profundamente em relação ao que fazemos em estado de vigília”. Como olharia para esse colega de trabalho com o qual sonhou ter um encontro apaixonado ou um confronto encarniçado? Com base nos estudos de LaBerge, foram concebidas diferentes técnicas, mais ou menos
vez no último ano. Cerca de 48% afirmaram que tais encontros eróticos não eram tão satisfatórios como os reais, mas, em contrapartida, 16% tinham muito mais prazer a sonhar com sexo do que a praticá-lo. Mais de um em cada cinco tinha sempre orgasmo quando o erotismo se introduzia nos seus sonhos. Só em 20% dos sonhos eróticos das mulheres e em apenas 14% dos masculinos é que aparecia o parceiro. Os homens sonhavam mais em ter sexo com várias mulheres em simultâneo ou em público. Por sua vez, os casados tinham menos sonhos eróticos do que os solteiros. Aparentemente, quanto maior satisfação sexual na vida real, menos erotismo onírico.
eficazes, para desenvolver essa capacidade de alterar o sonho em direto, mas ainda não se sabe por que resulta mais numas pessoas do que noutras. Um estudo dirigido por Jayne Gackenbach, da Universidade MacEwan (Canadá), revelou que os adeptos habituais dos videojogos têm mais sonhos lúcidos do que a média. Frank Bosman, da Universidade de Tilburg (Países Baixos), considera que isso tem lógica: “Não é estranho que se possa, quando se está MODIFICAR O SONHO habituado a manipular uma personagem num LaBerge descobriu que as áreas do cérebro jogo digital, fazer o mesmo num sonho. que se ativam e as constantes vitais que se As duas realidades têm muito em comum. Em modificam ao fazer certas coisas durante um ambas, as leis físicas não nos limitam, podemos sonho lúcido são as mesmas que são ativadas dar saltos incríveis, voar, falar com seres mágiquando se faz o mesmo acordado. Por exemplo, cos. Além disso, têm o mesmo propósito cognitivo: treinar-nos da vida real.” Embora se saibapara que situações todos sonhamos, ainda não se esclareceu por completo por que motivo algumas pessoas quase nunca se recordam dos seus sonhos. Na opinião de Jordi Borrás, isso está relacionado com o facto de “uma das áreas cerebrais que funcionam de forma irregular quando sonhamos é a que está associada à memória a curto prazo, pelo que não é de estranhar que, ao despertar, com o cérebro ainda a processar a transição, alguns não consigam reter as imagens que estavam a ver”. L.G.R.
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Neurologia
Os er ros dos neurónios
Disparates CEREBRAIS
Consideramos que o nosso órgão pensante representa o apogeu da evolução. É verdade, mas nada é perfeito. De facto, ele engana-se frequentemente. Por vezes, engana-nos. Eis algumas das situações mais frequentes. “ONDE ESTÃO AS CHAVES?”
que pensamos. Isso explica o motivo pelo qual Vai chegar tarde ao concerto e, mesmo antes de proliferam as teorias da conspiração e as pseuabrir onde a porta sair de casa, que não sabe pôspara as chaves. Aindaverifica agora acabou de as ver! Grayden Solman, especialista em psicobiologia e professor da Universidade do Hawai, demonstrou que essa situação tão comum se produz devido à falta de sincronização entre duas áreas cerebrais: a que controla os movimentos, que funciona a todo o gás, e a responsável pela perceção consciente, que não consegue acompanhar o ritmo da primeira. Por outras palavras, se correr de um lado para o outro à procura das chaves, não permite que o seu sistema visualprocesse cada objeto. Por isso, por vezes, o que procura está diante do seu nariz e não se apercebe até decidir deter-se para olhar e pensar.
dociências, apesar das tentativas de ou, refutá-las com base em argumentos verídicos, também, por que custa tanto deixar de fumar. O viés de confirmação está também por detrás do fenómeno conhecido por “ilusão de frequência”, que surge quando escolhemos um nome para o filho recém-nascido e descobrimos que estamos rodeados de pessoas que se chamam assim, ou do que faz que nos pareça, depois de comprarmos um carro, que a estrada está cheia de veículos iguais. A PRESSA É MÁ CONSELHEIRA
Quando recebemos informação, o nosso
Calma! Um estudo da Universidade Vanderbilt (Estados Unidos) demonstrou que o encéfalo age de forma diferente quando estamos com pressa e não nos detemos para raciocinar e pesar as consequências dos nossos atos. Desse modo, perdemos precisão e tomamos
órgão está muito longe de der de pensante forma objetiva e imparcial. De responfacto, processa o que lhe é comunicado consoante o chamado “viés de confirmação”, que não é mais do que a tendência para filtrar os dados em busca de provas e argumentos que confirmem os nossos preconceitos, ao mesmo tempo que atribuímos menos importância e credibilidade aos raciocínios e factos que nos contradizem. Tão evidente é essa tendência que, de acordo com um estudo da Universidade do Estado do Ohio, dedicamos 36 por cento mais tempo a ler aquilo que confirma o
piores decisões. Em concreto, produz-se nos neurónios do córtexa alteração pré-frontal, que se ativam comantecedência quando temos de reagir com a máxima rapidez, como um carro de corrida a aquecer os motores mas ainda longe do seu momento ótimo. Além disso, os investigadores mostraram que, quando temos de dar uma resposta rápida, são ativadas células dessa mesma região cerebral que, todavia, se desligam quando a mesma pergunta é formulada sem a pressão do tempo. O modo rápido de resposta é menos preciso e pode conduzir a decisões precipitadas e erradas.
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Pormenores. Cérebro humano no Museu de Ciência de Londres. A ciência começa a entender alguns dos seus funcionamentos estranhos.
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Há dezenas de condenados por erros da memória
Contradições. Apesar de ter passado cinco anos no Beagle (na gravura, encalhado junto ao rio Santa Cruz, na Argentina), Charles Darwin dava-se muito mal com a navegação, tanto que decidiu não voltar a pôr os pés num barco. O enjoo provém das mensagens contraditórias enviadas pelos sentidos.
A DORMIR? NÃO PARECE... Enquanto dormimos, o cérebro transborda de atividade, mas os centros motores bloqueiam para assegurar que não nos mexemos demasiado... desde que não sejamos sonâmbulos. Segundo demonstraram o neurologista espanhol Antonio Oliviero e os seus colegas do Hospital Nacional de Paraplégicos de Toledo, esse distúrbio do sono é muito frequente nas crianças, porque possuem quantidades insuficientes de GABA, um neurotransmissor fundamental para desligar o sistema cerebral que controla os movimentos. Isso faz as instruções que os neurónios motores enviam aos músculos não se interromperem, nem sequer durante o sono. Por isso, apesar de estarem mergulhados num estado de transe, os sonâmbulos sentam-se na cama, abrem os armários ou saem para a rua, colocando-se em perigo. Por vezes, o problema não se corrige quando se atinge a idade adulta, e alguns sonâmbulos chegam a sentar-se ao volante.
RECORDAÇÕES FALSAS “Lembras-te daquelaevez em aque te perdeste no centro comercial ficaste chorar até que uma senhora idosa se aproximou de ti e ajudou a encontrar-me?”, pergunta a mãe. “Sim, claro, como se tivesse acontecido ontem”, responde o leitor. Contudo, o episódio nunca aconteceu. Há duas décadas, uma experiência da psicóloga Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia, demonstrou que se pode convencer pelo menos uma em cada quatro pessoas de quese perderam num centro comercial quando eram crianças. Com a ajuda de uma fotografia manipulada, é possível persuadir um em cada dois indivíduos de que viajaram num balão na infância. Definitivamente, criar uma falsa recordação não é muito complicado. Esse defeito de fabrico do cérebro humano pode acarretar graves problemas. Demasiados suspeitos de delitos foram condenados injustamente
dações verdadeiras como para as falsas. Em ambos os casos, são ativados grupos específicos de células do hipocampo (engramas), que deixam vestígios orgânicos na memória de cada experiência que temos... ou pensamos ter tido.
deque serem acusados por testemunhas edepois vítimas asseguravam reconhecê-los sem margem para dúvida, até que o ADN demonstrou que se tratava de uma falsa memória, como evidencia o Projeto Inocência, da Califórnia, que dispõe de uma longa lista de pessoas absolvidas após conseguir a anulação da sentença por identificação incorreta por parte das testemunhas oculares. O mais surpreendente é que cientistas do MIT, ao esquadrinhar os mecanismos neuronais, comprovaram que os processos da memória autobiográfica ou episódica são idênticos tanto para as recor-
de um.comunicação A ilusão táctildireta deve-se aoofacto desomanão Após haver entre córtex FRASES um acidente ARMADILHADAS aéreo na fronteira entre dois tossensorial, que processa o tato, e o motor, países, onde são sepultados os sobreviventes? que move os dedos. Quando se fricciona o Volte a ler a pergunta. Bingo! Os sobreviventes nariz com a ponta de ambos os dedos, o cérebro, não são enterrados. Contudo, cientistas comdesconhecendo que eles estão cruzados, retira provaram que metade das pessoas cai na conclusões incorretas e deduz que estamos armadilha e acredita que se está a falar das a tocar em dois objetos (narizes) diferentes. vítimas. Como é que essa ilusão semântica nos engana? Especialistas da Universidade de GlasAFOGADO EM DADOS gow (Escócia) examinaram o cérebro de vários Quanto mais informação o cérebro tem para indivíduos enquanto escutavam frases semedeliberar, menos acerta nas suas decisões. lhantes. Descobriram que os participantes A ciência mostra que o excesso de dados pode não analisavam o que ouviam palavra por pala-
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tornar-se contraproducente quando se trata de fazer escolhas corretas. Com recurso à ressonância magnética, cientistas da Universidade de Temple (Estados Unidos) demonstraram que o córtex pré-frontal trabalha de cada vez que é preciso processar informação complexa para ILUSÃO DE NARIZES fazer planos ou tomar decisões. Contudo, Colocar o dedo do meio sobre o indicador não lhe quando o volume de dados excede determidará boa sorte, mas pode alterar a sua perceção nado limite, detém-se. Assim, se tomarmos táctil. Se cruzar esses dedos e os deslizar pela uma decisão nessa altura, não será sensata ponta do nariz no sentido horizontal, é provável nem irá basear-se em toda a informação. que sinta que tem dois apêndices nasais em vez
vra, mas em bloco e por alto. É por isso que nos escapam palavras fundamentais que mudam o sentido da frase. Esta forma rápida e geralmente eficiente de processar a linguagem pode prejudicar-nos por vezes: por exemplo, quando lemos um documento jurídico. Sabendo isto, responda agora a outra pergunta: de que cor era o cavalo branco de D. José?
vogais, que não costumamos confundir, nem sequer nestes jogos de palavras, pois os neurónios encarregados da sua pronunciação funcionam de forma independente.
tigres, tigres comem trigo de umemtrago”. O factotrês de termos tanta dificuldade jogar aos travalínguas deve-se à imperfeição donosso órgão pensante. Segundo um estudo publicado na revistaNature, a área do córtex cerebral que coordena os movimentos da língua, da laringe e dos lábios, que permitem a fala, organiza-se em função dos músculos utilizados para pronunciar cada sílaba. Neste exemplo, há muitas sílabas seguidas que contêm sons da mesma categoria, os quais se sobrepõem no cérebro e levam a que tenhamos tendência para trocar as consoantes. O mesmo não acontece com as
provém do encéfalo, e não do mundo real. O processamento ocorrido nas áreas cerebrais implicadas na visão permite que o nosso órgão pensante preencha lacunas e utilize experiências passadas para criar a imagem que espera ver, e isso produz ilusões óticas. Outros sentidos também dão srcem a equívocos por causa das expectativas. Uma experiência recente demonstrou que, ao tocar num objeto azul e noutro vermelho que se encontram à mesma temperatura, o vermelho parece-nos sempre mais quente. A razão é que, ao vermos essa cor, esperamos sempre que esteja mais
VEMOS O QUE ESPERAMOS VER
Perante a visão de algo familiar, o cérebro não toma apenas em consideração a informação que chega aos olhos: também a interpreta, PROBLEMAS COM A LÍNGUA acrescentando dados prévios. Segundo uma Não culpe os músculos da língua se não conse- investigação da Universidade Carnegie Mellon gue pronunciar corretamente “um tigre, dois (Estados Unidos), 20 por cento do que vemos
quente do que o azul, e isso altera a nossa perceção, embora o tato desminta a ideia.
CEGUEIRA À MUDANÇA Está a caminhar pela rua e um transeunte aproxima-se de si, de mapa na mão, para lhe perguntar o caminho para determinado lugar. Enquanto olha o mapa, outra pessoa ocupa, sigilosamente, o lugar do turista que lhe pediu ajuda. Perceberia ao levantar os olhos do papel? Está convencido de que sim, mas a verdade é que, em metade dos casos, daria as instruções ao seuOnovo interlocutor se aperceber da troca. mesmo poderia sem acontecer em relação a uma pergunta no local de trabalho que o pusesse a refletir. Foi o que demonstraram, numa experiência, os psicólogos norte-americanos Dan Simons e Daniel Levin, os quais designaram o curioso fenómeno por “cegueira à mudança”. Pode ser explicada pelo facto de os nossos cérebros não conseguirem registar uma alteração importante no campo visual se a visão deste for interrompida, nem que seja por um brevíssimo período de tempo. E.S.
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Psicologia Y T T E G
Pessoas cr uéis e sem empatia
O azar de trabalhar com um PSICOPATA A incerteza provocada pela crise económica favoreceu um tipo de executivo cruel e sem empatia, capaz de tudo para conseguir os seus propósitos. As empresas estão a deixar de admitir o ambiente asfixiante de pressão a que submete os seus subalternos.
de Middlesex (Reino Unido), explica, no seu livro Corporate Psychopaths – Organizational Destroyers, que o ambiente de crise criou uma constante rotação de funcionários e transformou as empresas num caldo de cultura para esse tipo de pessoas. Os psicopatas, à semelhança dos predadores no mundo animal, precisam de mudar de cenário com frequência: quando são detetados, o seu potencial diminui. Num mercado instável e volúvel, sentem-se completamente à vontade.
m 2016, a imprensa fez eco de um sin- cionários a deslocar-se para outras cidades. As UM CASO PARADIGMÁTICO
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gular caso pela vez, vários altosjudicial: quadros deprimeira uma grande empresa (a France Telecom) iam ser julgados por comportamento amoral. A Procuradoria-Geral francesa abrira um inquérito para apurar a sua responsabilidade na vaga de suicídios de trabalhador es da companhia registada entre 2006 e 2009. Os executivos em causa teriam iniciado, em 2005, uma política brutal de restruturações: suprimiram 22 mil postos de trabalho e obrigaram dez mil fun-
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condições tão cruéis que, em três anos, mais de 50eram escolheram a morte. A crise económica veio potenciar a figura do chefe psicopata, aquele que não hesita em despedir funcionários com décadas de dedicação à empresa para proporcionar substanciais lucros aos investidores. Em muitos setores da sociedade (na política, no mundo das artes, na advocacia...), promove-se essa forma de ser, e a recessão contribuiu para acentuar a tendência. Clive Boddy, professor da Universidade
O caso da empresa norte-americana Enron é paradigmático. O seu presidente, Kenneth L. Lay, conseguiu convencer os trabalhadores, em palestras multitudinárias, a comprar ações, embora soubesse que se estavam a afundar na Bolsa. Lay já cometera uma fraude semelhante noutra empresa, que fora denunciada, mas isso não o impediu de prosseguir as suas táticas enganadoras. Segundo Boddy, em tempos de crise económica, os CEO são contratados para despedir funcionários ou explorá-los ao
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São indiferent es aos efeitos causados nos trabalhadores máximo. Esses dirigentes narcisistas, despojados de empatia, só pensam em aumentar os seus lucros e as suas comissões, e assumem-no sem remorsos. Foi o que aconteceu na France Telecom. Didier Lombard, o principal administrador investigado, tinha aterrado na companhia em 2005 e ocupou o cargo até 2010. Instaurou uma política destinada a criar um clima laboral asfixiante. Diz-se que, numa das primeiras reuniões, afirmou: “Vou fazer com que as pessoas saiam de uma maneira ou de outra, pela porta ou pela janela.” A frase era premonitória, já que a segunda opção seria a escolhida por alguns trabalhadores para se suicidar. CARACTERÍSTICAS INSANAS
Segundo a lista de características de um chefe psicopata elaborada por Robert Hare, trata-se de pessoas que não conseguem colocar-se na pele dos outros e que podem tomar decisões frias, baseadas em objetivos materiais. Os seus afetos são superficiais: têm uma atitude simpática, ideal para causarem uma boa impressão inicial, mas nunca se se comprometem. Agradam a muitos, mas não envolvem com ninguém, uma combinação perfeita para os negócios. Além disso, são narcisistas e acreditam que as normas morais foram feitas para os outros: é lícito infringir a lei se for útil para os seus objetivos. Não se sentem culpados quando fazem outros sofrer para conseguir os seus fins, e possuem uma arma fundamental: uma fúria que assusta os subalternos. Seria normal considerar as características descritas por Hare como moralmente insanas, mas é evidente que podem revelar-se úteis, durante algum tempo, para uma organização. É por isso que tantas empresas contratam e compensam (com poder, fama, prestígio ou riqueza) esses indivíduos frios, coléricos, maquiavélicos, competitivos e prepotentes. Em 2010, o próprio Hare e o psicólogo Babiak apresentaram um estudo baseadoPaul em entrevistas com mais de 200 executivos de grandes empresas. O resultado mostrou que quatro por cento tinham tendências psicopatas, quatro vezes mais do que se verifica noutras ocupações profissionais. No livro Snakes in Suits – When Psychopaths Go to Work, Hare e Babiak recordam que a cultura popular assimilou demasiado o estereótipo do psicopata com o de um assassino em série. Assim, exemplos como o de Hannibal Lecter ou Dexter contribuem para que se esteja alerta 76 SUPER
Vítima do tirano. Os pais de Matsuri Takahashi com fotos da filha. A jovem japonesa atirou-se da varanda por já não aguentar as jornadas de 20 horas na agência de publicidade Dentsu.
contra esses indivíduos. Contudo, estamos mais desprotegidos em relação a alguém que finge, numa entrevista de trabalho, ser encantador, eficaz, resoluto e inteligente. O próprio Dexter falava dessa capacidade no primeiro episódio da série: “Muitas das interações
pessoas em campos de concentração. Durante o julgamento que o condenou, Adolf Eichmann apresentou-se como um dirigente eficaz que executava com mão firme as ordens dos seus superiores. Mostrava-se surpreendido com as acusações, porque se limitara “a cumprir
são falsas. estou sempre ahumanas fingir, e finjo muitoSinto bem.”que Custa aceitar que, por detrás da máscara de chefe ideal e capaz de tirar a empresa do buraco, se esconde um psicopata. É geralmente visto como um executivo abnegado que não tem outro remédio senão despedir pelo bem de todos.
o seu dever”. Um quadropelo atual de perfil psicopático, caracterizado egocentrismo, pela falta de empatia e pelo maquiavelismo, poderia alegar algo semelhante. Diria, sem dúvida, que o seu comportamento se deve ao compromisso assumido com a empresa, que o seu encanto pessoal serve para atrair clientes e que a sua manipulação calculista é uma ferramenta útil para os objetivos da organização. Estes executivos escudam-se na sua eficácia. A verdade é que, nas entrevistas de selecção para esses cargos, poucas vezes se toma em consideração fatores da personalidade; ape-
NO CUMPRIMENTO DO DEVER Em Eichmann em Jerusalém – Um Estudo Sobre a Banalidade do Mal, a escritora Hannah
Arendt analisou a personalidade deste oficial nazi, responsável pela morte de milhares de
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Traços da psicopatia
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fim de entender por que motivo as empresas contratam esse tipo de quadros, Robert Hare, professor da Universidade da Columbia Britânica (Canadá), elaborou uma lista de características da personalidade psicopata. Na sua opinião, estas são as mais frequentes: • Loquacidade, encanto falso e superficial. • Egocentrismo e sentido exagerado do seu valor pessoal. ropensão para o tédio e baixa tolerância à frustração. • Mentira patológica e tendência para desiludir os que o rodeiam. • Autodomínio do comportamento e da linguagem, falta de sinceridade. • Ausência de remorsos e de culpabilidade. • Escassa profundidade dos sentimentos. • Insensibilidade e falta de empatia. • Estilo de vida parasita. • Tendência para a cólera e falta de controlo comportamental. • Relações sexuais promíscuas. • Problemas precoces de comportamento. • Ausência de metas realistas a longo prazo. •P
mpulsividade. omportamento irresponsável como pai ou mãe. • Incapacidade para aceitar responsabilidade pelos seus atos. • Versatilidade nas sua próprias infrações à lei. • Abuso de drogas ou álcool não diretamente provocado pelo comportamento antissocial. •I •C
nas se examinam as habilitações. É por isso que eles chegam tão alto. Segundo uma investigação da Bond University (Austrália), 21% dos CEO analisados possuíam traços psicopáticos significativos, como ausência de empatia, abuso da mentira, superficialidade, crueldade
karoshi, para os suicídios causados pela pressão
sem remorsos ou umBrookes, historialcoordenador de violência.do O psicólogo Nathan estudo, afirma que se trata de variáveis que podem ser detetadas em qualquer teste simples de psicopatia, mas não foram diagnosticadas porque ninguém fez perguntas nesse sentido na entrevista de trabalho. Pouco a pouco, o fenómeno está a diminuir, não por razões éticas, mas por motivos económicos: o psicopata corporativo acaba por ter um efeito negativo nos negócios. Até no Japão, país conhecido pela brutalidade das suas práticas laborais (existe mesmo um termo,
por já nãode conseguir suportar jornadas secutivas vinte horas. A jovem fizeracon105 horas extraordinárias no último mês. Em 1991, a companhia recebera uma advertência das autoridades após o suicídio de um jovem que não conseguira ter uma única folga no último ano e meio. Ishii demitiu-se porque sabia que conduzir pessoas ao suicídio não favorecia a imagem da agência de publicidade. Porém, há muito que o nome da empresa era associado àssuas práticas ditatoriais. É esse o problema dos psicopatas: chega uma altura em que já não é possível ocul-
tar as consequências dos seus atos, e mesmo laboral), um executivo tóxico afeta a reputação quem os contratou acaba por se arrepender da empresa. Há alguns meses, Tadashi Ishii, de ter recorrido a estratégias negativas. presidente da agência de publicidade Dentsu, demitiu-se depois de se saber que a jovem EFEITOS CONTRAPRODUCENTES Matsuri Takahashi se tinha atirado da varanda Boddy estudou, ao longo de alguns anos, os efeitos deecontratar CEO como inicialmente o que foi descrito, observouum que, embora as características psicopáticas tivessem sido bem recebidas (de facto, fora selecionado por ter esse perfil), o mal-estar não tardaria a instalar-se. A estratégia, baseada na intimidação e na ameaça constante de despedimentos, produziu consequências negativas no clima laboral. A ausência de rumo, a inibição da criatividade e a falta de inovação conduziram a uma diminuição dos lucros e a uma situação de apatia por parte dos trabalhadores. Por outro lado, o acesso generalizado à internet e às Interessante 77
Avalie o seu chefe
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esponda a estas perguntas para averiguar a probabilidade de estar a ser vítima de um psicopata como chefe. Escolha um número entre 1 e 5. 1 significa que a frase não se aplica ao comportamentodo seu chefe; 2, que apenas acha que ele é assim em raras ocasiões; 3, que se aplica ao seu comportamente e caráter em metade das ocasiões; 4, que parece mesmo ele quase sempre; 5, que o descreve na perfeição. 1) É alguém que agrada muito às pessoas com quem tem uma relação superficial, e desagrada por completo aos que têm de sofrer as consequências dos seus atos. 2) Gosta muito de situações em que detém o poder. É cruel de forma gratuita. 3) Nunca aceita a responsabilidade pelos seus erros. 4) A sua frieza em momentos de tensão surpreende muitos trabalhadores 5) Considera-se muito superior aos outros. 6) Todas as decisões que toma são em benefício próprio. 7) Não tem empatia e é incapaz de se colocar na pele dos outros. 8) É viciado em situações de tensão: cria conflitos e oferece-se para enfrentá-los mesmo quando não é necessário. 9) Mente e oculta informação com nefrequência, por vezes sem qualquer cessidade. 10) Mostra um comportamento sedutor e erótico em múltiplas ocasiões, que nada têm a ver com sentimentos. 11) Procura sempre a comunicação face a face e evita as mensagens escritas. 12) As suas metas são muito ambiciosas, quase impossíveis de alcançar. 13) Não parece ter amigos; apenas contactos laborais com pessoas que lhe interessam profissionalmente.
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14) Em muitas ocasiões, não parece ter emoções. Apenas as mostra em situações triviais (ri-se quando todos riem, finge tristeza quando os outros choram...). 15) Bebe ou consome drogas diariamente. 16) Tomou decisões prejudiciais para os seus funcionários sem qualquer tipo de emoção. 17) Irrita-se demasiado quando as coisas não correm como quer. 18) Provém de outra empresa ou de outra área laboral e é difícil contactar as pessoas
O clima de ameaça constante destrói o ambiente aboral l interação com um executivo: frente a frente e
redes torna mais fácil denunciar as práticas desse tipo de indivíduos. Muitos dos escândalos associados a chefes psicopatas foram conhecidos porque se tornaram virais. O poder destes indivíduos diminui quando a comunicação não é face a face, segundo um estudo da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) sobre a influência da tríade do mal (psicopatia, narcisismo e maquiavelismo) característica dos chefes psicopatas. A experiência submetia várias pessoas a dois tipos de
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virtual. Os resultados mostraram que o estilo psicopático é eficaz em direto, quando se pode recorrer à comunicação não-verbal, mas perde força na interação digital. Durante anos, o psicopata corporativo foi utilizado pelas empresas para escravizar os trabalhadores e reduzir, sem contemplações, o número de postos de trabalho. Quando surgiam problemas, a tática dos predadores ajudava-os a sair impunes dos seus atos. Patrick Bateman,
com quem trabalhou nos empregos anteriores. 19) Tem um genéro de olhar fixo e perfurante que assusta muitas pessoas. 20) É muito impulsivo e zanga-se quando não consegue o que quer. Resultados
Se somar as pontuações obtidas, obterá um total cuja nota máxima é cem. Esse total será a percentagem de psicopatia que pode atribuir ao seu chefe.
o CEO de Wall Street que protagoniza o filme Ame ric an Psy cho , capaz de assassinar um colega para conseguir uma carta de apresentação,época. foi o estereótipo de chefe determinada Pouco a pouco, esseem estilo está a a ser substituído por uma liderança mais amável e empática. Na France Telecom, após a saída dos quadros processados, foi nomeado um novo diretor que apresentou uma série de medidas (salário variável dos CEO em função de rendimentos de ordem social, redução das horas extraordinárias e criação de espaços de convívio) para melhorar o clima laboral. Parece que os tempos estão a mudar, e talvez nos possamos ver livres destas sinistras personagens. L.M.
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Antropologia
Seremos canibais por natureza?
Até teCOMIA! O impulso de comer carne humana (por necessidade, fanatismo ou desejo) foi frequentemente considerado tabu, mas a verdade é que também foi uma constante na história da nossa espécie.
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Legítima defesa. No Paleolítico, os nossos antepassados caçavam membros de grupos rivais para proteger e ampliar o território e para controlar os recursos.
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A primeira razão do canibal é a falta de outros recursos
E a seguir? Em 1552, o soldado alemão Hans Staden (mostrado com barba, nesta ilustração de Theodor de Bry) foi capturado por índios antropófagos brasileiros, com os quais viveu durante nove meses. O relato das suas peripécias foi um êxito editorial.
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esossaram-no. Cortaram-lhe os pés, as mãos... todos os membros. Tiraram-lhe as vísceras e o coração. Os denunciantes disseram que foi assassinado no pátio e que os seus pedaços foram colocados em sacos e distribuídos. Foi cozinhado em água com sal para evitar o fedor, e alguns órgãos foram consumidos em rituais. Os rins, o fígado, o coração... O resto foi posto de parte.” Foi com este impressionante relato que um guarda prisional revelou, em julho de 2015, uma prática comum em algumas cadeias brasileiras: os membros de uma fação, conhecida por Anjos da Morte, matavam e devoravam presos rivais. “São loucos, psicopatas. Não há uma lógica de diálogo com eles”, concluía o funcionário. A verdade é que, para além do cenário onde ocorreram este e outros casos semelhantes, a notícia demonstra que o canibalismo ainda possui uma extraordinária força na psique humana. Não é por acaso que é considerado um dos grandes tabus da nossa civilização. Basta ouvir o termo para nos parecer que recuamos até um passado remoto, uma época de selvajaria crueldade em que imperavam o instinto e aesuperstição. O canibalismo produz-se quando um animal se nutre de indivíduos da sua espécie. Entre os seres humanos, também poderíamos falar de antropofagia (dos vocábulos gregos anthropos, “homem”, e fagein, “comer”). A palavra “canibalismo” provém da descoberta da América, quando os conquistadores souberam da existência dos caribes, indígenas que se alimentavam de carne humana. PRÁTICA ANTIGA
Desde quando se realiza esta prática? O banquete canibal mais antigo de que se tem conhecimento terá ocorrido há 800 mil anos, em Atapuerca (Espanha). Em 1994, uma equipa de investigadores dirigida pelo paleontólogo Juan Luis Arsuaga e pelo biólogo José Human Evolution indicava que os nossos ante-
mente, de uma questão meramente alimen-
Bermúdez de Castro descobriu que os Homo que se refugiavam, na altura, na antecessor
tar”,Atapuerca. indica Arsuaga, codiretor das escavações em
caverna de Gran Dolina tinham um singular regime de alimentação: a par de restos de animais, encontraram os ossos de duas crianças, dois adolescentes e dois adultos jovens que exibiam marcas feitas com utensílios de pedra. Parecia que tinham sido descarnados. Segundo os especialistas, seria prova de um ato de antropofagia, embora os hominídeos que fizeram parte da ementa não pareçam pertencer ao grupo que controlava o abrigo. Um estudo publicado na revista Journal of 82 SUPER
passadosaopraticavam de canibalismo idêntico observadoum emtipo chimpanzés, animais que, muitas vezes, matam e comem as crias dos seus rivais. “Os H. antecessor realizavam ataques de baixo risco para defender o seu acesso aos recursos e poder expandir-se”, explica o paleoantropólogo Eudald Carbonell, coautor do estudo. Queriam evitar a concorrência, pelo que eliminar os elementos mais jovens era mais eficaz e menos perigoso. Além disso, eram uma fonte de alimento. “Não se observam sinais de um comportamento ritualístico entre eles. Tratava-se, segura-
POR NECESSIDADE
É evidente que a fome pode explicar o canibalismo. Efetivamente, não é preciso recuar até um passado remoto para observar o fenómeno. Ao longo dos séculos, foi uma prática mais ou menos recorrente, nomeadamente em tempos de guerra. “Despojados os numantinos de qualquer alimento, sem cereais, gado ou ervas, comeram primeiro as peles cozidas. Depois, também carentes delas, alimentaram-
Banquetes de priões
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m 1955, o médico australiano Vincent Zigas começou a estudar uma misteriosa doença que afetava exclusivamente os membros da tribo fore, da Papuásia/Nova Guiné. Os nativos chamavam-lhe kuru, que significa “tremor”: os afetados tinham ataques de riso que não conseguiam conter e fortes convulsões, seguidas de uma crescente fraqueza, demência, paralisia e, finalmente, a morte. O processo durava cerca de seis meses. O kuru afetava sobretudo as mulheres adultas, numa proporção de oito para um relativamente aos homens, o que deixava os médicos ainda mais perplexos. Em 1959, o veterinário e patologista William Hadlow descobriu uma relação entre este problema e outra doença neurodegenerativa própria de ovelhas e cabras, conhecida por scrapie. Por fim, passado dois anos, descobriram a sua verdadeira srcem. Tudo se devia a um estranho costume das mulheres da tribo, o qual consistia em comer o cérebro dos seus defuntos, três dias depois do óbito. Aparentemente, os miolos continham uma proteína infeciosa, o prião PrPSc, que causa a doença de Creutzfeldt-Jakob, assim comopossui, os sintomas já descritos. O kuru pois, uma certa relação com a encefalopatia bovina espongiforme, ou “doença das vacas loucas”, transmitida pelo consumo de alimentos contaminados pelo prião.
N IO T C E L L O C E V I H C R A
exemplo, não se alimentar de familiares. Num dos grupos, apenas sobreviveu um indivíduo, que foi encontrado pelas equipas de salvamento rodeado dos cadáveres meio comidos dos seus antigos companheiros. Dos 87 expedicionários, só 48 chegariam à Califórnia. CERIMÓNIA RITUAL
O canibalismo não surge apenas em consequência de uma necessidade fisiológica. Pode
-se de carne humana. No começo, da carne
uma viagem longa e perigosa, que incluía a
dos quedesdenhando morriam, que cozinhavam em os pedaços; depois, a dos doentes, mais robustos dedicaram-se a matar os mais fracos.” Segundo o historiador grego Apiano, a faltade alimentos em 133 a.C. generalizou a antropofagia entre os defensores da cidade de Numância, cercada pelas tropas do general romano Cipião Emiliano. A tragédia da expedição Donner, já noséculo XX, é outro exemplo do recurso ao canibalismo por necessidade. Em abril de 1846, um grupo de 87 pessoas liderado pelo pioneiro George Donner partiu do Illinois rumo à Califórnia. Era
travessia do desertoatravessá-lo, do Grande Lago Salgado. O também ocorrer comoàs parte de uma cerimónia. Enquanto tentavam tornou-se fenómeno remonta srcens da magia (isto óbvio que a falta de comida (tinham perdido é, a tentativa para manipular o meio, incluindo muitas cabeças de gado) iria tornar-se um grave outros indivíduos, através de rituais), há pelo problema. Não tardaram a surgir conflitos e, menos 22 mil anos, no Paleolítico, quando oser quando os membros da expedição chegaram humano dependia quase por completo da caça à serra Nevada, no meio de uma tempestade para sobreviver e tinha de enfrentar inúmeros de vento e neve, a fome era tão atroz que perigos. alguns acordavam de noite a tentar morder Nessas circunstâncias, era fundamental a os companheiros. O grupo dividiu-se noutros figura do xamã, o intermediário entre asforças mais pequenos e, quando o canibalismo se tor- da natureza e o homem, que já aparece em nou inevitável, alguns estabeleceram regras algumas pinturas rupestres com máscaras que em relação aos corpos dos falecidos, como, por lembram certos animais. Estas imagens são Interessante 83
Comer carne humana pode provocar prazer sexual exemplo do que alguns antropólogos denominam “magia simpática”, através da qual os nossos antepassados acreditavam poder controlar os animais se os pintassem. Essa associação poderia também explicar por que motivo, em algumas tribos antropófagas, se pensava que um guerreiro podia adquirir o poder de um adversário se comesse a parte do seu corpo em que acreditava residir essa força. Ao longo da história, podemos encontrar inúmeros exemplos de canibalismo ritual. Quando o conquistador Hernan Cortés e os seus homens entraram em Tenochtitlan, a capital do império asteca, em 8 de novembro de 1519, foram testemunhas de cruéis sacrifícios humanos que culminavam com uma cerimónia antropofágica. Na sua História Geral das Coisas da Nova Espanha, o monge franciscano Bernardino de Sahagún descreve o processo: “Depois de lhe terem arrancado o coração e derramado o sangue num recipiente feito de casca de abóbora, que era entregue ao amo do homem assassinado, fazia-se rolar o corpo pelas escadas da pirâmide. Ia parar a uma pequena praça situadapornacuacuacuiltin base. Ali, alguns anciãos, conhecidos , apoderavam-se dele e levavam-no para casas a que chamavam calpulli, onde o corpo era desmembrado e dividido para poderem comê-lo.” Segundo o relato, os braços e as pernas eram cozinhados com pimentos, tomate e flores de abóbora. RESPEITO PELOS DEFUNTOS
Podemos encontrar outros exemplos desta prática nas tribos dayak e iban do Bornéu, cujos membros devoravam o coração dos inimigos para se apoderarem da sua coragem. Alguns indígenas da bacia do Orinoco faziam algo de semelhante, mas, antes, assavam o corpo e reduziam tudo a pó. A ideia era misturar as cinzas nas suas bebidas. “Os kukukus da Nova Guiné davam a comer aos rapazes a carne de um guerreiro jovem e forte, paratambém lhes infundir força os e brio. surasa de África obrigavam maisOs novos comer carne humana para serem mais valentes em combate”, narra Manuel Moros no livro História Natural do Canibalismo. Moros destaca que, por vezes, a vítima não era um inimigo. Dá como exemplo os waris da Amazónia, que praticavam uma forma de endocanibalismo que consistia em ingerir a carne dos seus familiares e de outros indivíduos chegados. Na sua opinião, tratava-se de uma das formas mais respeitosas de tratar os seus defuntos. “O ato de comer o corpo num funeral era a promessa 84 SUPER
IS R A L O P / A D O N A T A K I H S O T I H
Sem remorsos. Issei Sagawa posa com jornais e revistas em que contou como matou e devorou a estudante Renée Hartevelt.
de uma nova relação, transformada, entre os vivos e os mortos”, escreveu a etnógrafa Beth A. Conklin, que conviveu com os indígenas entre 1985 e 1987. Primeiro, deixavam o corpo entrar em decomposição durante três dias, ao ar livre, para depois o assarem e comerem, principalmente, o fígado, o coração e o cérebro.
Jürgen Brandes, um homem que conhecera através da internet. De acordo com o que Meiwes afirmou no julgamento, os dois tinham estabelecido um pacto segundo o qual ele lhe cortaria o pénis e o cozinharia para o comerem juntos. Feito isso,
Meiwes assassinou e desmembrou Brandes, gravando tudo em vídeo. Em seguida, congelou alguns pedaços para os consumir posteA terceira variante deste tipo de práticas é a riormente. Os psiquiatras forenses declararam mais repudiada, pois não é motivada por uma que o réu, que seria condenado a prisão pernecessidade alimentar nem está associada a pétua, apresentava graves distúrbios mentais padrões culturais de grupos primitivos. Alguns e agira movido por impulsos sexuais. estudiosos chamam-lhe “canibalismo sexual”; Uma história semelhante aconteceria em outros, “canibalismo criminal” ou “patolónovembro de 2013, também na Alemanha. gico”. Um dos casos mais representativos Wojciech Stempniewicz e Detlev Guenzel ocorreu em Rotemburgo (Alemanha), em 2001. tinham-se conhecido pela internet e decidiram Na noite de 9 para 10 de março, Armin Meiwes encontrar-se. O primeiro era um indivíduo soliassassinou e devorou parcialmente Bernd tário que tinha a fantasia de ser assassinado IMPULSO PATOLÓGICO
A lei do mar
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urante muito tempo, a expressão foi utilizada para definir uma tradição marinheira que considerava lícito o recurso ao canibalismo se, por exemplo, um grupo de náufragos ficasse abandonado à sua sorte e não pudesse dispor de outros alimentos. Em 1641, soube-se que marinheiros britânicos tinham permanecido à deriva no Caribe durante 17 dias. Sem comida nem água, tiraram à sorte quem devia ser sacrificado, como ditava a lei do mar. O escolhido aceitou o seu destino e os restantes beberam-lhe o sangue e comeram o corpo. Depois de salvos, foram acusados de homicídio, mas o juiz absolveu-os, falando de uma “necessidade inevitável”. Um dos casos mais conhecidos deste canibalismo de sobrevivência é o da La Meduse, uma fragata francesa que naufragou ao largo da costa africana, em 1816. Com os seus restos, os marinheiros construíram uma jangada que devia ser rebocada pelos botes salvavidas. Apinharam-se ali 147 pessoas. Contudo, o capitão, que estava numa das lanchas, viu que o peso era excessivo e decidiu cortar as amarras. Os ocupantes da jangada acabaram por se matar uns
Sem remorsos 2. O assassino em série russo Andrei Chikatilo arrancava pedaços de carne às suas vítimas, por pulsão sexual.
Y T T E G / E L R E E K E D S E G
R O E G
aosseoutros, e os dos sobreviventes tiveram de alimentar mortos, que punham a secar ao sol. Os passageiros do voo 571, que se despenhou numa remota zona montanhosa dos Andes, em 1972, também concordaram em comer carne humana quando já não havia nada para levar à boca. As equipas de salvamento chegaram 72 dias depois do acidente.
e devorado; o segundo, um sádico que se sentira atraído por uma curiosa oferta: podia esquartejar uma vítima predisposta. O ato decorreu na cave da pensão de que Guenzel era proprietário, onde realizava sessões sadomasoquistas. “Nunca pensei que cairia tão
corpo foi devorando, pouco a pouco, ao longo de vários dias. O que causa este tipo de antropofagia? Uma das hipóteses mais aceites defende que por detrás destes atos se oculta um distúrbio de srcem sexual, uma espécie de sadismo levado
balismo não é uma doença, mas um comportamento compulsivo que data dos alvores dos tempos e cujos resíduos se manifestam, hoje, em pessoas que fogem da normalidade psíquica. Não devemos esquecer que tais resíduos são o que sustenta essa mistura de fascínio e
baixo”, diria, dada altura,provar no vídeo quecomera gravou do crime. Nãoa foi possível que parte do corpo de Stempniewicz, mas os investigadores não conseguiram recuperar o cadáver inteiro. A lista de canibais sexuais inclui também Albert Fish (1870–1936), um violador e assassino de crianças que chegou a comer algumas, Andrei Chikatilo (1936–1994), responsável por, pelo menos, 52 mortes (bebia o sangue das vítimas, cuja carne também arrancava com os dentes), e Anna Zimmerman, uma jovem alemã que matou, em 1981, o namorado, cujo
ao extremo. UmScher, estudo coordenado pelo psicólogo Steven daEastern Illinois University, parece confirmá-lo. Em 2002, o investigador realizou um inquérito entre pessoas que diziam sentir-se atraídas pelo canibalismo. O trabalho mostrou que esse desejo só se manifestava se se sentissem sexualmente atraídas pela potencial vítima. Outros especialistas indicam uma desordem mental, provavelmente relacionada com distúrbios psicopatológicos, como a esquizofrenia, ou da personalidade, como a psicopatia. Como sublinha um psiquiatra forense, o cani-
repulsa a sociedade ademonstrar por tudoque o diz respeito aocontinua canibalismo. Todavia, o antropólogo Francis Edgar Williams (1893– –1943), que estudou alguns dos últimos comedores de homens da Nova Guiné, não tinha tantas certezas. Na obra Orokaiva Society (1930), afirma que estes não tinham outra razão para o canibalismo do que o simples desejo de comer carne humana, acrescentando que, de um ponto de vista antropológico, os nossos preconceitos em relação a tal prática são sumamente desconcertantes. J.R.
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U N E G R O J : S O T O F
Reserva vital. O pernilongo surge nas grandes zonas húmidas, onde frequenta sobretudo salinas e lagoas, como a de Melides.
Descubra a natureza do litoral
Safaris na COSTA Quando as temperaturas sobem, parece que todas as estradas do país desaguam à beira-mar. Porém, a costa lusa tem outros motivos de interesse além das praias. O biólogo Jorge Nunes convida-o a descobrir os habitats naturais e as espécies animais e vegetais mais emblemáticas do litoral português. Interessante 87
No litoral rochoso, sobressaem os cabos
C
ostuma escolher um destino de férias tendo em conta as circunstâncias ecológicas do mesmo? Aproveita os períodos de ócio para conhecer os valores naturais da região onde está hospedado? Independentemente de quais foram as suas respostas, saiba que são cada vez mais os turistas estrangeiros e nacionais que valorizam estes aspetos e que procuram atividades de contacto com a natureza. Os novos turistas que escolhem Portugal como destino já não se interessam apenas pelo binómio sol-praia, pela qualidade das zonas balneares ou pela oferta de animação noturna e gastronomia, mas valorizam, igualmente, o património natural e histórico, os costumes, os saberes e os modos de vida regionais. Por tudo isto, o ecoturismo é uma atividade económica em notória ascensão e com grande futuro. O turismo ecológico no litoral pode incluir atividades tão diversas como caminhadas por trilhos costeiros, visitas guiadas e de exploração do mundo natural, passeios a cavalo, em veículos todo-o-terreno (bicicletas, jipes, etc.),
Grutas e poças. Os habitats rochosos albergam normalmente anémonas (na imagemdemais pequena), que se alimentam pequenos crustáceos ou peixes, capturados pelos tentáculos.
observaçãoe de aves etc.), e de mamíferos marinhos (golfinhos baleias, mergulho recreativo, fotografia de natureza e vida selvagem, entre outras, que podem aliar o prazer do ar livre com as comodidades de sofisticados serviços hoteleiros. Isto porque, ao contrário do que se poderia pensar, não estamos a falar de “turismo de pé descalço”. Ao que parece, os ecoturistas incluem todos os estratos sociais, abrangendo cada vez mais pessoas com nível elevado de estudos e com disponibilidade económica, o que lhes permite combinar, amiúde, a exploração da natureza com outras atividades culturais e recreativas, realizadas com tranquilidade, longe do bulício das grandes massas humanas. Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o Algarve, a Madeira e os Açores distinguem-se das demais regiões portuguesas por serem
natureza apresenta, assim, um potencial relevante para o desenvolvimento da economia regional, surgindo como uma boa solução para resolver os problemas de sazonalidade de que padecia o turismo algarvio. Um estudo encomendado pela Região de Turismo do Algarve demonstrou que este segmento turístico, que inclui nichos como o pedestrianismo e a observação de aves, representava, já em 2014, 23% das dormidas na região. Tal como acontecia no turismo emgeral, também neste setor a oferta e a procura eram variadas: havia quem explorasse a região por conta própria e quem procurasse requintes
A proliferação de publicações deste género, a exaltar e divulgar os valores naturais das várias regiões e as atividades de natureza que aí se realizam, passou a ser uma regra por todo o país, desde os quase despovoados concelhos raianos até aos municípios populosos do litoral. No Turismo do Porto e Norte de Portugal (http://www.portoenort e.pt), por exemplo, também se encontram diversos livros digitais gratuitos direcionados para o turismo verde, como o Guia de Turismo de Natureza e o Guia
destinosoupreferenciais para atividades de lazer, recreio férias. Curiosamente, em todos estes locais assistiu-se, nos últimos anos, ao crescimento exponencial do turismo de natureza, do turismo de saúde e bem-estar e do turismo náutico, de modo a responder a uma crescente demanda dos consumidores. No Algarve, por exemplo, registou-se, desde 2009, um aumento de mais de 50 por cento no número de empresas dedicadas ao ecoturismo, sendo este um setor em grande ascensão e impulsionador de uma série de produtos e serviços que lhe estão associados. O turismo de
principescos. Embora a observação da como natureza no Algarve não seja propriamente participar em luxuosos safaris africanos, também não tem de ser necessariamente frugal. A aposta no ecoturismo fica bempatente nas diversas publicações disponibilizadas aos turistas (http://www.turismodoalgarve.pt), entre as quais se encontram guias e brochuras ligadas à descoberta do património natural, como, por exemplo, oGuia de Turismo de Natureza do Algarve, o Guia de Percursos Pedestres do Algarve e a Brochura da Observação de Aves de Portugal, entre muitas outras.
vimento doTurismo turismo2020 em,Portugal, cido como verifica-semais queconheo setor pretende assumir um papel fundamental no desenvolvimento económico do país e na sua coesão territorial, suportado na sustentabilidade e na competitividade de uma oferta turística diversificada, que inclui, como não podia deixar de ser, o turismo de natureza. Aliás, entre os valores que suportam esta visão, destacam-se a qualidade do património natural (mar e natureza), a que se juntam o património cultural (história e cultura), a hospitalidade e a excelência dos serviços turísticos.
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de Ciclovias, Ecopistas e Ecovias do Norte de Portugal, entre outros.
Folheando o plano de ação para o desenvol-
pelo vento para a parte superior das praias) e as restingas ou barreiras (acumulações de areia e seixos, que formam barreiras à entrada das baías). Incluem-se ainda as lagunas (extensões de água salobra separadas do mar por barreiras arenosas), os tômbolos (pequenas ilhas rochosas ligadas a terra por faixas resultantes da acumulação de areias e seixos) e os estuários (partes terminais dos rios que se costumam alargar quando se aproximam do mar, onde se formam geralmente sapais alagadiços: zonas periodicamente alagadas pela subida e descida das marés). Ao contrário das costas rochosa e arenosa, que constituem, geralmente, um litoral exposto aos humores marinhos, ou seja, fusti-
mental o conhecimento das geoformas, que Se percorrermos a orla costeira continental resultaram de vários fatores: características em voo de gaivota, de Caminha a Vila Real de das formações rochosas, erosão marinha, acuSanto António, contabilizaremos cerca de mulação de sedimentos (sobretudo de srcem 848 quilómetros e verificaremos que, afinal, fluvial) e movimentos tectónicos. o nosso litoral é muito mais do que mar e sol. Da interação desses fatores, surgiram os chaAs paisagens costeiras que hoje contemplamos mados “acidentes da linha de costa”. Nos de resultaram dos milenares avanços (transgres- srcem erosiva, merecem destaque as platasões) e recuos (regressões) das águas mariformas de abrasão (zonas onde as ondas escanhas, do movimento perpétuo das marés e, vam as bases das arribas, tornando-as instáobviamente, da ação humana. veis) e as arribas ou falésias (formações rochoDo ponto de vista geomorfológico, podemos sas em escarpa sobre o mar), que, quando dizer que, grosso modo, se distinguem dois tipos deixam de sofrer a ação erosiva das ondas, de costa: a rochosa e a arenosa. Na primeira, passam a chamar-se “arribas fósseis”. Existem
gadomarítima, pelos fortes ventos e pela intensa agitação as baías, enseadas e outras reentrâncias da orla costeira são um litoral abrigado, onde o vento, a ondulação e as correntes marítimas são muito mais suaves. Incluem-se também neste lote a foz dos rios, onde podem existir estuários, rias, deltas e sistemas lagunares, e as lagoas costeiras. Estes são habitats muito particulares, pois não só estão sob a influência marítima, mas encontram-se sujeitos a grandes variações no teor de salinidade das águas. Este pode variar desde água quase doce, durante a época mais pluviosa, até valores de elevada salinidade, quando desce o nível das águas, durante a estiagem. João Alveirinho Dias, docente da Universidade do Algarve, lembra a variedade de geoformas costeiras portuguesas, a começar pelas praias, que podem ser arenosas contínuas
incluem-se as arribas altas (comde mais 50 metros, o que equivale à altura umde prédio de 16 andares), de onde se obtêm panorâmicas deslumbrantes que deixam sem respiração até o visitante mais viajado, e as arribas médias e baixas (com menos de 50 m), riquíssimas do ponto de vista faunístico e botânico. Na segunda, insere-se a costa baixa, que forma habitualmente as apetecíveis praias (mais de 350, que correspondem a cerca de 40% da orla costeira), muito procuradas pelosveraneantes. Para conseguir entender toda a diversidade, dinâmica e complexidade do litoral, é funda-
(costaalentejana de Aveiro),eencastradas (muitas da costa vicentina), cascalhentas (algumas da costa minhota) e de sopé de arriba (Quarteira). A dinâmica das areias cria ainda as restingas arenosas (como o Cabedelo, na foz do rio Douro), os corpos dunares litorais (Troia), as ilhas arenosas na dependência de rios(Bugio, no Tejo) e as ilhas-barreira (sistema lagunar da ria Formosa). No que respeita às arribas, encontramo-las talhadas em formações pouco consolidadas (como as da Quarteira), em formações carbonatadas bem consolidadas (Sagres), em for-
DIVERSIDADE COSTEIRA
ainda as grutas litorais (fendas formadas pelo desgaste de uma arriba), os cabos (formações rochosas mais resistentes, que se projetam para o interior do oceano), os farilhões r(ochas isoladas que resistem à erosão marinha), as penínsulas (extensões de terra rodeadas de mar por todos os lados menos por um) e as baías ou enseadas (reentrâncias da costa). Nos que se srcinaram devido à acumulação de sedimentos, contam-se as praias (depósitos de areia e seixos transportados pelo mar), as dunas (cordões arenosos geralmente paralelos que resultaram da areia transportada
Interessante 89
No Barlavento algarvio, predominam praias rochosas mações xisto-grauváquicas (costa alentejana e vicentina), em corpos dunares (Maceda) e rochas vulcânicas (Almadena). Além disso, temos o litoral baixo rochoso (como em diversos troços do Minho), os corpos laguno-estuarinos (lagoa de Albufeira), lagunas costeiras de barreira (ria Formosa) e estuários (Mondego, Tejo, Sado, etc.). Mais de mil quilómetros quadrados da orla costeira estão cobertos por dunas. Um bom exemplo são as vastas extensões dunares da Região Centro, que constituem um areal quase contínuo com mais de 140 quilómetros. Estas constituem sistemas de elevada fragilidade e “formam importantes reservatórios de areia que funcionam como sistemas defensivos de reconhecida eficácia contra os avanços do mar, principalmente por ocasião dos grandes temporais”, salienta Alveirinho Dias. Olhando para o extremo sul do país, o litoral algarvio divide-se fisiograficamente em duas regiões distintas: uma ocidental, o Barlavento, e outra oriental, o Sotavento. Enquanto o Barlavento, que se estende desde o cabo de São
Peixe curioso. Os cabozes (foto mais pequena) não têm escamas e conseguem sobreviver fora de água durante a maré baixa.
Vicente até à Quarteira, apresenta uma costa abrupta e alcantilada onde predominam as praias rochosas com falésias, interrompidas amiúde por pequenas prainhas no sopé das arribas, o Sotavento, que vai da Quarteira até Vila Real de Santo António, ostenta essencialmente praias arenosas.
entanto, do tipo de praia, uma vez que as praias rochosas e arenosas, devido às suas distintas características edafoclimáticas, revelam faunas e floras diferentes. Em geral, as praias rochosas, embora sejam varridas pelo perpétuo movimento das ondas e flageladas pelas HABITATS VARIADOS tempestuosas brisas marítimas, oferecem uma A grande variedade de geoformas costeiras superfície dura que facilita a fixação de algas, existentes em Portugal reflete-se, naturalplantas e animais, possibilitando uma biodivermente, numa diversidade de habitats naturais sidade elevada, que encontra refúgio seguro e seminaturais, a que estão associados agru- nas múltiplas saliências, fendas, fissuras e grupamentos vegetais característicos e populatas oferecidas pelas rochas. ções de organismos invertebrados e verteJá as praias de areia, como constituem subsbrados singulares. Detenhamo-nos em alguns tratos instáveis (sujeitos às permanentes altedos mais curiosos, como a faixa intermareal e rações provocadas pelo movimento da água os cordões dunares. do mar e pela força do vento), acolhem flora A faixa intermareal, também designada por e fauna aquáticas relativamente mais pobres:
interior de pequenos búzios) e às curiosas pulgas-do-mar. Os despojos trazidos pelo mar (sejam de srcem natural ou de proveniência humana) podem esconder ainda outras surpresas, como ovos e conchas de chocos, cápsulas dos ovos de pata-roxa (tubarão costeiro que vive essencialmente sobre fundos de areia) ou de raia, conchas de bivalves e caracóis, pinças e carapaças de crustáceos, conchas de bivalves e caracóis, ouriços-do-mar, peixes mortos e até, em situações particulares, cadáveres de tartarugas e mamíferos marinhos. Quem chegar cedo à praia ou puder ficar até ao entardecer tem boas hipóteses de observar ainda diversas aves aquáticas (como gaivotas, pilritos, borrelhos, ostraceiros e garças), que aproveitam esses períodos de acalmia para se
“zona intertidal”, corresponde à zona entre marés e é um ambiente extremamente hostil, influenciada pelo constante movimento da água e dos seus efeitos (intercalando períodos de imersão e de emersão, ao ritmo da subida e descida das marés). As criaturas que vivem nesta zona de fronteira entre o mar ea terra são autênticas sobreviventes: vivem fustigadas pela força das ondas, pelas variações bruscas da salinidade e da temperatura e pelo risco iminente de desidratação. A variedade de organismos que poderão ser observados na faixa intermareal depende, no
alimentarem beira-mar.de Nas praias que se localizam nas àimediações estuários ou zonas húmidas, como lagoas costeiras ou desembocaduras de pequenos rios ou ribeiros, a observação ornitológica pode realizar-se ao longo de todo o dia. Todavia, são as praias rochosas, nomeadamente as mais abrigadas, que merecem destaque, por ostentarem uma elevada diversidade de espécies, num espaço relativamente limitado. São comuns os caranguejos, as estrelas, os ouriços, os camarões e vários moluscos (mexilhões, lapas, burriés, caramujos, etc.).
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vermesbivalves poliquetas, pequenos crustáceos e alguns a que se juntam, esporadicamente, insetos, aves e mamíferos vindos da zona terrestre. Embora a variedade de seres vivosaquáticos seja menor nas praias arenosas, não faltam motivos de interesse parao naturalista amador. São os locais ideais para procurar conchas trazidas pela ondulação e para investigar os tufos de algas (arrancados nos substratos rochosos e arrastados pelas correntes), que servem de abrigo a pequenos burriés, aos casa-alugada (minúsculos caranguejos que se refugiam no
feros continentais pela água salgada, a salinização dos solos (especialmente os que são usados para fins agrícolas na faixa costeira), a destruição de infraestruturas humanas (habitações, estradas e espaços desportivos e de lazer) e a abrasão marítima das falésias. A vegetação dita “dunar”, exclusiva do litoral arenoso, encontra-se adaptada a um meio agreste de substrato instável. Merece realce pelas suas peculiaridades biológicas e pelo inestimável papel que desempenha na estabilização das areias e na formação dos sistemas dunares, que, embora permanentemente modelados por brisas e tempestades, são a melhor proteção contra a erosão costeira. Numa viagem desde as areias irrequietas da zona superior da preia-mar até aos solos monas, camarões, estrelas, polvos e esponjas, entre muitos outros. Se não tiver coragem para meter a cabeça debaixo de água, poderá dirigir-se na direção contrária, à cata dos habitats terrestres de influência marítima, que é como quem diz: das falésias e arribas, das plataformas elevadas, sobranceiras à linha de costa, ou dos cordões dunares. Estes habitats não são diretamente afetados pelas águas marinhas ou apenas o poderão ser esporadicamente, em ocasiões de fortes tempestades. Apesar disso, sofrem influência constante do mar, tanto através da dispersão de aerossóis salinos srcinados pela ondulação e pela agitação das águas e transportados pelos ventos, como pela ação mecânica dos fortes e quase constantes ventos
estabilizados mais para o interior, podem distinguir-se diferentes comunidades de plantas que, conforme aumenta a distância ao mar e se vão aquietando os ventos e as areias, se tornam cada vez mais complexas e com maior número de espécies. Se tomarmos como exemplo a vegetação dunar do litoral norte de Portugal, na primeira linha vegetal, chamada “duna embrionária”, somente algumas plantas anuais altamente resistentes conseguem sobreviver, pois os riscos de submersão por água do mar e o enterramento pelas areias são ameaças constantes: o feno-das-areias ( Elymus farctus ), o sapinho-da-praia ( Honckenya peploides ), a eruca-marítima (Cakile maritima), a barrilheira (Salsola kali) e a corriola-marinha (Polygonum maritimum) são alguns exemplos. Mais além, na denominada “duna primária”
mente cobertas por uma miríade de organismos. mareiros, pela penetração de toalhas freáticas salgadas ou salobras (sobretudo, no caso de MANTAS ARENOSAS litorais baixos arenosos) e pelo transporte e Quem for mais afoito e tiver curiosidade pela deposição de areias marinhas. sobre o que se passa no limite inferiorda baixaAs mantas arenosas, e em especial os ecos-mar (infralitoral) poderá colocar a máscara, sistemas dunares que lhes estão associados, o tubo respirador e as barbatanas para fazer são sistemas de elevada fragilidade e formam mergulho em apneia (superficial ou a pequena importantes reservatórios de areia que funcioprofundidade, sustendo a respiração) nam como barreiras defensivas de reconhee espreitar o admirável mundo submarino. cida eficácia contra os avanços do mar, prinTrata-se de uma zona geralmente forrada cipalmente por ocasião dos grandes tempopor inúmeras espécies de algas e com grande rais. A sua função protetora não se fica por aí, diversidade de animais marinhos: peixes, ané- pois também evitam a contaminação dos aquí-
ou “duna branca”, surgem comunidades herbáceas vivazes dominadas pelo estorno (Ammophila arenaria), acompanhado por um grande número de outras espécies, como a luzerna-das-praias (Medicago marina), os cordeirinhos-das-praias (Otanthus maritimus), o cardo-marítimo (Eryngium maritimum), a morganheira-das-praias ( Euphorbia paralias ) e o lírio-das-praias (Pancratium maritimum), entre outras. Os tapetes de estorno são verdadeiros protetores das dunas. Com uma média de crescimento de um metro quadrado por anoe uma extensa rede de raízes sob os montículos de
Durante a baixa-mar, os moluscos refugiam-se nas suas conchas, que fechamhermeticamente (como os mexilhões) ou fazem aderir às rochas (como as lapas), retendo a água essencial ao funcionamento das suas brânquias. Quanto aos crustáceos, como os caranguejos, as navalheiras e as sapateiras, protegem-se nas fendas húmidas das rochas, que partilham geralmente com pequenos polvos. Já os peixes, os camarões, as anémonas, as estrelas e os ouriços, devido à sua fragilidade e à grande dependência hídrica, escolhem as poças de água, também conhecidas como “poças de maré”, onde mantêm a sua atividade habitual. Apesar das difíceis condições de vida nas praias rochosas, devido ao rebentamento constante das ondas, quase todas as rochas estão usual-
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As dunas desempenham um papel vital de contenção areia, sustêm as dunas e criam condições para que muitas outras plantas dunares aí possam sobreviver. Nas areias estabilizadas da duna secundária, também conhecida como “duna cinzenta”, onde domina a madorneira (Artemisia campestris), aparecem igualmente a granza-da-praia (Crucianella maritima), a luzerna-das praias, o lírio-das-praia s, o estorno e o goivo-da-praia (Malcomia littorea). Além da riqueza e da diversidade botânica que caracterizam os sistemas dunares, estes constituem igualmente o lar de curiosos animais. Os mais comuns são sem dúvida os diversos insetos, alguns habitantes exclusivos dos ecossistemas dunares, como borboletas, gafanhotos, aranhas, louva-a-deus, grilos-da-areia, bichas-cadelas-da-areia e formigas-leões-da-areia. Entre os bichos mais discretos, contam-se os anfíbios (como o sapo-de-unha-negra e o sapo-corredor, que surgem principalmente em noites húmidas), os répteis (como o sardão, a lagartixa de Carbonell e a lagartixaos mamíferos (como o-de-dedos-dentados), coelho, o ouriço-cacheiro e a raposa, que mesmo quando não se observam diretamente são denunciados pelas pegadas que deixam na areia) e várias aves marinhas que aí vivem, procuram alimento, encontram abrigo ou se reproduzem (borrelhos, pilritos e gaivotas, entre outras). Toda a sucessão ecológica e dinâmica dos sistemas dunares está altamente dependente da cobertura vegetal, pelo que deve evitar-se o seu pisoteio (sempre que possível, devem utilizar-se os passadiços sobrelevados que atravessam as zonas dunares), dado que essa é a principal causa de destruição das dunas. ÁREAS PROTEGIDAS
A riqueza paisagística e fauno-florística do litoral português levou à criação de 16 áreas
A ria Formosa situa-se entre as penínsulas arenosas do Ancão e da Manta Rota, estendendo-se ao longo de 60 quilómetros do litoral algarvio. A maior parte desta área (envolve os concelhos de Faro, Loulé, Olhão, Tavira e Vila Real de Santo António), de grande valor ecológico, científico, económico e social, corresponde a um sistema lagunar de grandes dimensões, que está separado do mar por um cordão de ilhas-barreira (Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas), mais ou menos paralelo à costa. Estas ilhas protegem um intrincado labirinto de sapais, canais, zonas de vasa e ilhotas. Além destes habitats, existem ainda dunas, salinas, lagoas de água doce e salobra, cursos de água, áreas agrícolas e matas, contribuindo para a existência de uma
protegidas de âmbito nacional, regional e local destaque grande diversidade florística e faunística, com (parques naturais, reservas naturais, paisagens para a avifauna residente, migraprotegidas e monumentos naturais) e de diver- dora e nidificante. sos sítios da Rede Natura 2000 ao longo da orla Muito mais haveria a dizer sobre os habitats, marítima continental, a que se juntam muitas a flora, a fauna, a geologia, a história e a cultura outras nos Açores e na Madeira. da ria Formosa e dos demais parques naturais Nos parques naturais, incluem-se Litoral costeiros. No entanto, a escassez de espaço Norte, Sintra-Cascais, Arrábida, Sudoeste não nos permite alongar-nos, podendo os Alentejano e Costa Vicentina e Ria Formosa, leitores mais curiosos espreitar o portal do cujos nomes denunciam a sua localização geo- Instituto da Conservação da Natureza e das gráfica, com exceção da última designação, Florestas (http://www.icnf.pt). que, outrora, era conhecida como “Ria de Faro” No portal do I CNF encontram-se também ou “Ria do Vale Formoso”. informações interessantes e úteis sobre as
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reservas naturais (Dunas de São Jacinto, Berlengas, Estuário do Sado e Lagoas de Santo André e da Sancha), a paisagem protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica e os monumentos naturais (Cabo Mondego, Pedreira do Avelino, Pedra da Mua e Lagosteiros, estes dois últimos integrados no Parque Natural da Arrábida). O monumento natural do Cabo Mondego, por exemplo, é um local de rara beleza, onde as abruptas escarpas da serra da Boa Viagem (Figueira da Foz) se atiram ao mar, interrompendo um extenso campo dunar que se estende por mais de 50 km, desde a barra de Aveiro até Quiaios. Também é um marco paleontológico, pois foi aqui que se realizou uma das primeiras descobertas e escavações de pegadas de dinossauros a nível mundial. EXPLORAR A NATUREZA
A vantagem de visitar as áreas protegidas é que existe imensa informação disponível sobre o património histórico-natural, desde os painéis informativos até brochuras, folhetos, guias de campo e mapas com percursos pedestres e/ou de bicicleta e itinerários de automóvel, que permitem descobrir os recantos mais emblemáticos e recônditos de cada espaço natural e os seus segredos e curiosidades. Muitas áreas protegidas também fazem
Frágeis. Várias aves marinhas, como os borrelhos (foto mais pequena) procuram alimento, encontram abrigo ou reproduzem-se nas dunas.
parte da Rede Natura 2000: uma rede ecológica europeia, criada em 1992, que resultou da publicação da Diretiva Habitats, assim chamada porque visava proteger os habitats naturais mais vulneráveis e as espécies de fauna e flora mais ameaçadas. Esta inclui “sítios de importância comunitária” (SIC) e “zonas de proteção especial” (ZPE), destinadas a garantir a conservação das espécies avícolas e dos seus habitats (constantes do Anexo I da Diretiva Aves), bem como das aves migratórias de ocorrência regular no espaço europeu. Fora da rede nacional de áreas protegidas, mas dentro da Rede Natura 2000, encontram-se ainda diversos SIC e ZPE litorais que vale a pena explorar: Barrinha de Esmoriz, Ria de Aveiro, Dunas de Mira, Gândara e Gafanhas,
da lagoa costeira de água salobra, considerada um habitat prioritário. Esta foi srcinada pela deposição de areia junto à foz de uma pequena linha de água, com a formação de um cordão dunar que é aberto sazonalmente para renovação da água. A lagoa tem associada uma área de floresta sub-higrófila de árvores caducifólias, habitat que em Portugal se distribui de forma pontual e maioritariamente na Beira Litoral. Outras lagoas costeiras que vale a pena visitar são, por exemplo, Óbidos, Albufeira, Santo André e Sancha e Salgados. Estas, juntamente com os estuários, os sapais e as salinas, são zonas húmidas de grande importância para a conservação da natureza, nomeadamente para descanso, alimentação, abrigo e nidifica-
Peniche-Santa Cruz, Lagoa de de Albufeira, Lagoa Pequena, Comporta-Ga lé, Ria Alvor, etc... Normalmente, para estas não existe tanta documentação disponível. No entanto, os leitores poderão encontrar fichas com a caracterização de cada área sob os pontos de vista biogeográfico e ecológico, com a indicação das espécies e dos tipos de habitat mais importantes, no portal do ICNF. Com o intuito de aguçar a curiosidade dos leitores, espreitemos, com brevidade, o que dizem as fichas sobre, por exemplo, a Barrinha de Esmoriz, cuja importância reside na presença
ção de milhares de aves (limícolas, marinhas, rapinas e passeriformes) que ali habitam ou por lá passam em migração, marcando sazonalmente a paisagem com a sua presença. Já agora, os melhores pontos para observação de aves marinhas localizam-se, geralmente, em promontórios, especialmente durante os períodos de passagem migratória. Alguns dos mais famosos são os cabos Carvoeiro (Peniche), da Roca e Raso (entre Sintra e Cascais), Espichel (Sesimbra), Sardão (costa alentejana) e de São Vicente, e as pontas de Sagres e da Piedade (litoral algarvio).
Todavia, os promontórios não têm apenas aves: apresentam, amiúde, elevado interesse botânico, comunidades vegetais bem estruturadas, em bom estado de conservação e com elencos florísticos relevantes, contendo numerosos endemismos lusitanos e ibéricos. O mesmo acontece com as falésias e arribas e as plataformas elevadas, sobranceiras à linha de costa, submetidas à salsugem. Para quem não sabe identificar as espécies, tanto vegetais como animais, há inúmeros guias de campo e diversas aplicações para telemóveis e portais na Internet que auxiliam nessa tarefa: Flora-on (http://www.flora-on. pt), Aves de Portugal (http://www.avesdeportugal.info), (https://www.birdid.no) ou NaturdataBirdId (http://naturdata.com). Existe mesmo a possibilidade de criar um caderno de campo online, com registos escritos, fotográficos e em vídeo dos organismos observados, através, por exemplo, do eBird (http:// ebird.org), da plataforma BioDiversity4All (http://www.biodiversity4all. org) ou da aplicação para telemóveis Obsmapp (disponível em http://m.observado.org). Deste modo, além de partilhar as observações com outros utilizadores, também é possível colaborar com a comunidade científica, que pode fazer estudos a partir dos registos inseridos pelos cidadãos. Se, apesar de todas estas dicas, não se sentir capaz de se tornar explorador da natureza por conta própria, pode sempre inscrever-se nas ações da Ciência Viva no Verão (http://www. cienciaviva.pt), em todo oe são país, entre 15 deque julhodecorrem e 15 de setembro, orientadas por especialistas de instituições científicas, associações, etc. A descoberta das áreas protegidas costeiras, dos habitats litorais e dos seus peculiares habitantes não oferece a adrenalina de uma expedição na savana africana, mas será, com toda a certeza, uma forma interessante de combater o tédio das longas horas de praia e permitirá jornadas inesquecíveis de observação da vida selvagem. J.N.
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História
O legado de Fidel Castro
Sonho e
DESPERTAR 94 SUPER
Fidel Castro e a sua revolução despertaram paixões diversas, ilusões e desilusões, amores e ódios… Eis o testemunho de Norberto Fuentes, que esteve muito próximo do líder cubano.
Passado, presente e futuro. Esta imagem
Y T T E G
simboliza a incerteza atual sobre o r umo que Cuba vai tomar: um antigo carro dos anos 50 passa junto a um cartaz pró-revolução, a 27 de novembro de 2016, dois dias depois da morte de Fidel.
inha quatro telefones pretos em cima da secretária, à esquerda. Foi
T
aparelhos passou aatravés históriadestes da revolução nasque últimas décadas. Através deles, Fidel articulou argumentos, ordens, nomeações e compromissos. Poucos o sabem, mas dedicou noites a fio a falar com congressistas e senadores norte-americanos – quanto mais ferozmente opositores, melhor – para, com um tom veemente “Saulo, Saulo, porque me persegues?”, lhes explicar o seu programa revolucionário e os seus desejos de paz e prosperidade ede acabar com a injustiça em solo cubano. Foram noites inteiras nessa atividade. “Senador, com sua
licença. Chamada de longa distância. De Havana. Diz que é Fidel Castro. Não. Não é
na tecla, como se fosse uma bicada, mas, para não estragar as unhas (que estranha exigên-
nenhuma brincadeira. Por vezes, na outra Fidel pontaCastro.” do gabinete, a conversar com ele sobre qualquer assunto, tive oportunidade de presenciar a forma vagarosa como carregava nas teclas dos telefones. Tinha uns dedos compridos e finos, com as unhas cuidadosamente arranjadas e provavelmente pintadas, como só os chefes da Máfia de Havana usavam nos anos 50; uns dedos, sem dúvida, delicados, dir-se-iam femininos, e ainda mais femininos quando recebia as chamadas e carregava na tecla que o oficial de segurança lhe indicava. Dava uma pancadinha
cia), limava-as emdisse-me forma pontiaguda. “Esta merda”, uma vez, de telefone na mão. Numa sala contígua, atendendo o telefone, estava o tenente-corone l Cesáreo, um veterano da sua escolta, que me tinha honrado com o benefício de virar as costas quando eu falava com o Comandante. Deduzi, por isso, uma de duas coisas – ou a minha pessoa gozava da mais absoluta de todas as confianças ou o tenente-coronel o fazia pelo facto de não reconhecer em mim um perigo potencial. Era suposto eu saber que “Esta merda” eram todos os telefones deteclas no mundo. Tinha Interessante 95
Não podia estar sozinho: satisfazia-se com a ilusão
Ícone. Os revolucionários (Fidel saúda, em cima de um camião) entraram em Havana no dia 8 de janeiro de 1959.
sido uma noite animada pela surpreendente atitude de Fidel. Foi uma noite em que me senti muito próximo dele, mas que, aomesmo tempo, me desconcertava. O facto é que se mostrava cheio de uma espécie de sentimento de solidariedade. Não parecia que lhe bastasse a minha admiração natural pela sua pessoa, pelos seus feitos enquanto comandante da revolução. Queria algo mais. Era um sábado de fevereiro ou março de 1984. Fidel mostrou-me o seu último troféu: um enorme charuto, com cerca de um metro de comprimento, colocado sobre uma base de madeira, enviado pelo sindicato de uma fábrica de charutos puros que acabava de ganhar um prémio de produção. “O que é que achas? Ganham um prémio e enviam-me este charuto. São nobres.” UMA SOLIDÃO IMENSA
Na verdade, havia mais do que inocência neste diálogo. Algo que, vão-me perdoar, era não apenas perturbador, mas inspirador de compaixão. Talvez não houvesse alguém melhor do que eu, naquele momento, para processar toda a informação que estavaporque a ser produzida e atuar como era necessário, sou escritor e porque aprendi ardu amente a lição do meu mestre Hemingway quando dizia que um escritor tinha de se habituar à sua própria solidão. Aquele homem não era umescritor, era seguramente, por natureza, um assassino tão implacável como temperamental e não podia ser escritor porque lhe faltava uma verdadeira capacidade de abstração e porque o seu pensamento não era parabólico e, portanto, não podia conceber morais da história; razão para que nos anos seguintes tivéssemos argumentos de sobra para nos transformarmos em inimigos de morte – e de morte fomos, companheiro –, mas, naquela noite provavelmente de fevereiro, com as minhas calçasLevi’s e com as suas eternas calças de campo da guerra na selva, éramos dois seres equipados apenas
teve um arrepio, e perguntou-me, de modo imperativo, “Que horas são?”, como se não tivesse relógio. Claro que me dei conta de que eu próprio já estava à espera da sua próxima investida. “São sete, comandante.” “Perto das sete”, disse, pensativo. Evidentemente, ainda era muito cedo para o efeito que queria produzir. “Daqui a nada são nove horas e eu ainda estou a trabalhar.” Voltou ao seu tom de autocomiseração: “Sábado à noite e eu a trabalhar.” É muito difícil responder a uma afirmação destas sem descambarmos no plano
quase involuntariamente, o tom exato que o momento requeria. Disse-lhe: “Ninguém no mundo iria acreditar nisso.” Adorou a frase. Na verdade, eu estava a pensar que ninguém no mundo iria acreditar que eu estava com Fidel Castro, numa situação em que não sabia como o entreter, naquele momento, e a frase escapou-me num tom mais elevado. “A sério?”, perguntou, com o rosto iluminado. “Ninguém”, insisti, de forma convincente. “Um sábado à noite, e eu aqui, a trabalhar, enquanto o povo anda por aí, a divertir-se. É verdade que nin-
com as nossas solidões como navajos com seus pequenos tesourose,de bugigangas, nadaos mais tínhamos para partilhar, dois náufragos que trocam acenos de desespero ao longe, na vastidão do oceano, e de imediato, motivados por correntes contrárias e que não dominam, continuam a caminhar, cada um com o seu rumo. “Caramba”, disse para mim próprio. “Que solidão, a deste homem.” Recolocou o troféu de tabaco na estante que estava atrás dele e deve ter pensado que ainda não tinha atingido o objetivo que queria, porque deu um suspiro profundo, ou melhor,
inclinado da e desnecessária adulação. Tãomais difícilabsoluta como ignorar a vontade de uma personagem deste calibre, que a única coisa que está a pedir (e quer e necessita) é que lhe façamos um elogio, que lhe digamos que está a sacrificar-se pelo seu povo e que não tem descanso na sua entrega e nada refreia a sua dedicação total à pátria, na verdade, a toda a humanidade. Enfim, estava desesperado por mimos. “Não, caramba, Comandante”, disse eu, quase como quem dá a alguém os pêsames pela morte do pai, quando, melancólico, consegui,
guém iria acreditar.” Ninguém. ditou. Nem sequer soube disso.Ninguém acre-
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REDUTO INVIOLÁVEL E FORTIFICADO
De qualquer forma, eu tive consciência, naquela noite, de que as coisas banais, embora consumam uma grande parte da nossa existência, nunca são reconhecidas pela história. O problema era, então, saber se ele, outra pessoa qualquer, ou até eu próprio, poderia escrever sobre isso. Bem… Se comecei com estas memórias pessoais aquilo que deve ser a introdução a esta monografia dedicada a
dores estavam no estacionamento do outro lado do muro da casa e voltou para dentro. A seguir, apareceu no mesmo pátio o coronel Joseíto – José Delgado –, o chefe da sua guarda pessoal, que se virou para o grupo e disse, num autêntico tom de súplica: “Meus senhores, por favor, saiam dessa entrada e parem de olhar para cá, para ele pensar que está sozinho.” Em todo o meu tempo de convívio com Fidel, guardo este momento como o mais patético de todos. Demasiado inteligente para saber que era impossível estar só, parecia
O julgamento da história
N
a quinta-feira, dia 1 de janeiro de 1959, era madrugada, Fidel Castro acabara de derrotar um dispositivo militar que os partidários de Batista descreviam como “os 40 mil efetivos” e Fidel, em reiteradas conversações comigo, calculou “pelo menos 70 mil homens e umas 700 esquadras de polícia”. O certo é que ti-
Implícito na cena, o lado patético – termo que não utilizo de forma pejorativa – é revelador de uma personalidade em permanente luta por um perímetro de intimidade que o tornasse inviolável. Isto revelou-se, e justificou-se ideologicamente, de muitas formas, e trouxe, até, dividendos inesperados. A ideia – difundida pelas palavras do próprio Fidel Castro – de que não devia misturar a sua vida pessoal com a política. Nesse caso, nada melhor do que a sua guarda pretoriana para traçar e defender essa
nha conseguido o impossível: no momento mais alto da guerra fria e no meio da histeria anticomunista dos Estados Unidos, ganhou uma guerra e ocupou Cuba com o seu exército de camponeses e desprotegidos e um punhado de estudantes para, logo a seguir – num curto espaço de dois anos –, estabelecer um bastião comunista quase nas praias da Flórida. Com uma Casa Branca dirigida por um general comandante em chefe de todas as tropas aliadas da Segunda Guerra, um Dwight Eisenhower que se apressou a reconhecê-lo como governante legítimo, mas que não teve capacidade nem intuição para ver para
fronteira. É aqui que se marca a sua verdadeira preocupação: dispor do melhor serviço de escolta do mundo. Ideia e escolta que logo lhe servem (logicamente) para grandes festejos e casas de segurança ou, como aconteceu numa certa ocasião, para tentar iludir a perseguição consFidel Castro nos seus momentos finais, foi tante que Celia Sanchez – a companheira do porque achei que o leitor iria gostar de uma tempo de guerrilha na serra Maestra – lhe abordagem sobre a sua vida e não de uma montou por todo o país quando soube dos interpretação académica, sobretudo devido à seus devaneios amorosos com Dalia Soto del proximidade temporal da nossa personagem, Valle. No que toca à família, é preciso dizer que e ao facto de, neste momento, se encontrar este conceito de fortaleza foi levado ainda nessa espécie de interregno pelo qual passam mais a sério. Estou a falar da família oficial, os homens que fazem a história; um período a desta senhora, Dalia, e dos cinco filhos que com que podemos simplesmente chamar “fama”. ela teve, em ordem decrescente: Alex, Alexis, A 31 de agosto de 1986, depois de uma longa Alejandro, António e Ángel. viagem de 17 horas de Havana – com escala De vez em quando, nos últimos tempos, na ilha do Sal, em Cabo Verde –, Fidel Castro surgiram algumas fotos da intimidade familiar
ondecubanos se dirigia processo de uns deeste cabelo desgrenhado e determinados que marchavam sobre Havana nos tanques capturados ao exército de Batista. A verdade é que faltavam apenas dois anos e quatro meses para Fidel, utilizando material de guerra soviético, aniquilar uma brigada dos Estados Unidos (ou recrutada, treinada, armada e lançada para o combate pelos Estados Unidos, o que, para o caso, vale o mesmo), na baía dos Porcos; demoraria exatamente três anos para que as suas esquadras de aviões de combate MiG desfilassem a bel-prazer, fazendo piruetas, trepando para os céus, sobre a Praça
aterra em Harare (Zimbabwe) para participar na Cimeira dos Países Não Alinhados. Ficou alojado numa casa nos arredores da cidade, que os especialistas do Ministério do Interior tinham preparado e que serviria depois de residência permanente do embaixador cubano. Tinha um pequeno jardim murado, contíguo à porta principal, e a casa era recuada. Ao meio-dia, calmamente, Fidel saiu de casa e foi ao pátio interior, com um roupão comprido que lhe dava pelos tornozelos, e de pantufas. Deu uns passos com as mãos nos bolsos do roupão, quando se deu conta de que alguns colabora-
da Revolução Havana, ao mais estrito estilo dadePraça Vermelha em Moscovo. Seriam precisos apenas três anos e dez meses para que Cuba se convertesse num ponto de estacionamento de ogivas nucleares soviéticas. Fidel esteve, assim, prestes a fazer-nos desaparecer da história, incluindo as provas da nossa existência, premindo o botão, a ver de que lado se posicionaria.
contentar-se com essa ilusão. No entanto, e naturalmente, podia estar sozinho, mas com a garantia da presença de uma companhia reforçada dos comandos das Tropas Especiais, vindos de Havana e armados até com foguetes antiaéreos portáteis. PERÍMETRO DE INTIMIDADE
O T C A T N O C
que institucional foram publicadas de fugas Cuba, foi masdea resigreação sobrefora estas nação: era normal que acontecesse, porque os filhos tinham crescido e seguido o seu caminho. Não os podiam ter sempre debaixo de olho. Na verdade, bem vistas as coisas, para além de umas escassas fotos publicadas em revistas cor-de-rosa fora de Cuba, foi uma vitória do Serviço de Segurança Pessoal, porque, até serem maiores, ninguém teve acesso sequer a imagens dos pequenos. Tudo teve srcem num critério criado por Fidel Castro – um critério político, embora
Interessante 97
Só depois de adultos deixou fotografar os cinco filhos ele o quisesse transformar numa questão de segurança: segundo as suas próprias palavras, muitas vezes ditas num círculo mais restrito de amigos, tratava-se de não contaminar a família com os seus subordinados. Isso não se aplicava apenas ao povo. Nem sequer Raul Castro teve acesso a essa família e às suas casas. Raul ficou louco de alegria no dia em que o seu filho Alejandro, já com mais de vinte anos, pôde conhecer alguns dos primos, dois dos filhos de Fidel, de forma informal, numa festa. Foi um momento de exaltação para o general do Exército e chefe das Forças Armadas (e atual presidente de Cuba), quando soube disso; chamou os subordinados que estavam por perto e mandou buscarvodka para brindar ao encontro. Não era apenas o contacto entre primos. O acesso de Raul e os seus familiares, tal como de qualquer outro cidadão, à piscina térmica sob o telhado da famosa clínica CIMEQ, estava vedado quando Dalia queria utilizá-la. As explicações para a conduta de Fidel e para a cortina de proteção em que fez viver a sua família podiam ser múltiplas, mas oargumento
O sonho de Angola
F
oi, sem dúvida, a operação mais ambiciosa e que mais fama e benefícios políticos trouxe a Fidel Castro, mas começou com um desastre: o de Che Guevara no Alto Zaire (Congo). 24 de abril de 1965: o argentino – como Fidel chamava ao seu lugar-tenente da guerrilha da serra Maestra – chega ao Congo, atravessando o lago Tanganica; Che Guevara e 13 cubanos – depois chegaram mais – que o acompanham neste desígnio. A aventura termina sem grande sucesso, como tanto lhes agradava (ao argentino e a ele). Não receberam apoio do povo e o movimento revolucionário zairense parecia uma piada de mau gosto. O povo irredutível do Alto Zaire, como ficou demonstrado, está mais interessado em ter comida na mesa do que conseguir a libertação definitiva da humanidade por via do socialismo científico. Fidel – através de mensagens transmitidas por rádio ou pessoalmente – deixa a decisão de retirada nas mãos de Che, e este dá-se conta de que Havana o está a atirar para a jaula dos leões. Assim, o argentino retira. Está de novo nas margens do lago Tanganica, enquanto espera pela lancha militar que o há de ir buscar, quando escreve um dos últimos apontamentos no seu diário de
básico terminava inexoravelmente CIA. Claro campanha no Alto Zaire: “É assim que passo as últimas horas, desolado e perque essa é também uma desculpa na externa. Eu diria – devido às minhas observações bem próximas – que as razões podem ser tão íntimas como as que revelou o coronel Joseíto naquela manhã em Harare: sentir-se só. Assim, até ao desde tenra idade. Então, no silêncio da minha final, o que temos é um homem que dava sinais imaginação, não surgiu apenas a vida de Fidel de distração permanente, metódica. Enfim, um Castro como um projeto, mas percebitambém, homem coberto por uma carapaça de enigmas nesse momento, que ia ser algo mais complie que teve o apoio de todo o aparelho repressivo cado do que um trabalho académico. Na verde um estado para conseguir atingir o objetivo. dade, não podemos escrever mais uma biografia de Fidel Castro, daquelas que enchem as MULTIPLICIDADE DE PONTOS DE VISTA estantes. O próprio conceito de biografia, assuContudo, eu pensei que tinha descoberto mido em todo o seu rigor, obriga-nos a fazer uma brecha no momento depenetrar a couraça parte, seja de que forma for, da luta á– bastante j por imperativos meramente profissionais. Se a cansada e gasta – entre revolucionários e história de Fidel Castro se podia escrever com contrarrevolucionários; quer dizer, leva-nos a menor ou maior facilidade, sem sequer ter tomar partido. de consultar todos os jornais ou fazer buscas, Temos de atravessar uma selva de contra-
plexo, até que, às duas da manhã, chegam os botes.” Porém, dez anos depois, exatamente a 10 de novembro de 1975, já com Che Guevara enterrado numa pista de aviação na selva boliviana, Fidel inicia a maior aventura militar jamais levada a cabo por um país subdesenvolvido: a conquista de Angola. Mais do que uma empresa militar, parece fruto da imaginação. Separados por 12 mil quilómetros de Atlântico, e tendo Angola onze vezes o tamanho de Cuba, esta faz desembarcar em Luanda o primeiro destacamento de 82 homens das Tropas Especiais para conter o avanço dos exércitos regulares da África do Sul e do Zaire e o movimento de guerrilhas locais dirigidos pela UNITA e pela FNLA, armados por quase todo o mundo (a China comunista, Israel, a África do Sul, os Estados Unidos). É a hora de Fidel. Uma hora que dura 15 anos e da qual sai vitorioso. A expectativa norte-americana de que Angola se convertesse num Vietname cubano não se concretizou. No final, depois de enviar mais de meio milhão de homens, Fidel sofreu 2000 mortes; destas, um terço aconteceu em combate; outro terço, em acidentes; o outro, por doença. A iniciativa deixou na mão de governos autónomos os desde três nações: Angola, Namíbia e atinos própria África do Sul.
como o ensaio ou a história, e muito mais ainda, porque é o único completamente livre. No caso da presente monografia, foi esse o desafio. A historiadora e jornalista norte-americana Barbara Tuchman afirmou, na sua formidável obra As Armas de Agosto : “O que a imaginação é para o poeta, os atos são-no para o historiador. A sua opinião nasce da seleção, a arte da sua composição.” Será a apreciação do leitor que determinará se o encontro de autores, pontos de vista e trabalhos reunidos no presente volume supera a marca de uma colagem e, inclusivamente, de uma boa e sólida antologia. N.F.
Google nesta era decom e internet gratuitos, para édições aprender algumas coisas. Acontar primeira reconstituir uma certa ordem cronológica que aeúnica forma de realmente a as ações que protagonizou, todos sabemos que história é sem juízos morais. A segunda, é a isso nos levaria apenas ao limite das aparências. velha premissa de Hemingway de que se deve Não pode ser de outra forma com a vida de um contá-la na primeira pessoa para que nos conspirador, um conspirador obstinado que, em considerem idóneos para contar a vida de um todo o seu percurso político, tudo o que nos deu político que atraiu a atenção mundial nos últiforam pistas falsas. mos 50 anos. Este, na minha opinião, é um Apercebi-me disso no dia em que cheguei a barco que só se pode controlar quando seestá uma simples conclusão literária. A novela da ao leme. Em minha casa, como escritor, era aí revolução cubana tinha de passar por esta que eu tinha de estar, tomar a decisão de personagem. Este foi precisamente o desafio fazê-lo e manter a convicção de que a novela é que me levou a escrever, a tornar-me escritor, um instrumento de conhecimento tão válido
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N.R. – Este é o artigo de introdução à edição
especial SUPER História sobre Fidel Castro e Cuba, antes, durante e depois da sua vida. Para conhecer o revolucionário, o ditador e o líder quase invulnerável a todas as intrigas, procure-a numa banca perto de si. Norberto Fuentes, nascido em Havana, em 1943, é escritor e jornalista. Participou na revolução e foi amigo de Fidel Castro até 1989. Em 1993, tentou fugirde Cuba num barco. Conseguiu sair da ilha em 1994. Desde então, vive nos Estados Unidos.
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