Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras Departamento de História História da África - 2º Semestre 2013 Profa. Marina de Mello e Souza Henrique Gerken Brasil - n. USP 3734901 Estudo da Sociedade Ibo a partir da obra " O Mundo se Despedaça", Despedaça", de Chinua Achebe
O objetivo deste trabalho é fazer um breve estudo da sociedade Ibo pré-colonial, a partir da representação histórica e cultural presente na obra de estreia do escritor nigeriano Chinua Achebe, O Mundo se Despedaça .
A intenção não é fazer uma análise da obra por meio de conceitos
literários, mas sim identificar as referências históricas e culturais das sociedades africanas que são utilizadas pelo consagrado autor, e, na medida do possível, utilizar noções desenvolvidas ao longo do curso para ajudar na análise dos elementos culturais africanos presentes no livro utilizado. O presente trabalho tem como guia a questão se a referida obra pode ser considerada uma confiável representação dos costumes e tradições de um povo africano. Desse modo, a fim de chegar a uma conclusão para o questionamento, o trabalho irá primeiramente inserir o autor e a obra em seu contexto histórico próprio, e posteriormente pesquisar brevemente a história, a tradição e os costumes do povo Ibo, para, enfim, poder comparar a obra com o levantamento historiográfico. Inicialmente, cabe aqui uma breve introdução sobre o autor em questão, considerado por muitos como o fundador da literatura moderna africana. Chinua Achebe nasceu em 1930, em Ogidi, Nigéria, então colônia britânica. Sua educação inicial foi na língua Ibo, tendo o primeiro contato com a língua inglesa aos oito anos. Aos catorze, Achebe era um dos poucos escolhidos para o colégio do governo, um dos melhores da África Áfr ica ocidental, na cidade de Umuahia. Aos dezoito anos, matriculou-se no curso de Medicina, na universidade em Ibadan, afiliada à Universidade de Londres, onde permanece como estudante até 1953. Eventualmente, mudou seu curso para Literatura (WREN, 1980, p. 1), o que lhe conferiu uma formação literária provavelmente muito parecida com de um graduando inglês, porém, com uma atmosfera intelectual muito diversa, a de uma sociedade em busca de uma identidade. Vale aqui lembrar que a Nigéria torna-se independente apenas em 1960. Como estudante, Achebe publica contos, nos quais já busca relatar sua vida em sua cidade natal. Nos estudos, entra em contato com obras de antropólogos, escritores, missionários e oficiais da colônia, imprimindo no jovem escritor uma sensação de uma Nigéria ao mesmo tempo
próxima e desconhecida (WREN, p. 2). Em 1953, ele recebe o diploma da Universidade de Londres, trabalha como professor por um ano, e em seguida começa uma carreira na transmissão de rádio, na Nigerian Broadcasting Corporation. Em 1958, portanto ainda antes da independência, Achebe publica O Mundo se Despedaça, em inglês. Essa obra, desde então, é uma das obras africanas mais lidas pelos ocidentais, muito utilizada em salas de aula como introdução para os estudos da África pré-colonial (BOOKER, p. 65). Estudiosos da obra de Achebe afirmam que o livro foi uma espécie de resposta a conhecidas obras literárias que descreviam de forma exótica e depreciativa tanto o africano como a África. O autor, por sua vez, afirma que escreveu a obra para “acertar as contas com seus antepassados”, “uma reparação com o passado, um ritual de retorno do filho” (WREN, p. 3). Uma relação apontada pelos críticos é com a obra Mister Johnson, de Joyce Cary, que traz uma descrição superficial, segundo Achebe, da Nigéria e do nigeriano. Em 1977, numa apresentação na Universidade de Massachusetts, Achebe faz duras críticas ao livro Coração das Trevas , de Joseph Conrad, qualificando o autor de “ bloody racist ”
e desqualificando o famoso livro como obra de arte: “ can [such novel] be called a great
work of art [?]. My answer is: No, it cannot. ”
(ACHEBE, 1978, p. 9) 1. Apesar de não ligar
diretamente seu primeiro livro com a sua dura visão à obra de Conrad, ambos se inserem numa posição coerente do autor, que se mantém por toda a vida, que é o resgate da dignidade dos povos africanos, por meio das suas obras e pela crítica à mentalidade europeia dominante em relação à África, mentalidade essa personificada em Conrad, na visão de Achebe, que desumaniza a África. Em uma entrevista, Achebe afirma que não fez pesquisa formal para escrever o livro. O que ele descreve no livro – conforme suas próprias palavras – são cenas da vida em que ele se interessava, da vida que viveu, do que estava à sua volta, do que ouviu de conversas, principalmente dos mais velhos e de seu pai. Não fez nenhuma pesquisa em bibliotecas (WREN). Interessante notar que um estudioso de sua obra, Emmanuel Meziemadu, empreendeu uma pesquisa histórica sobre religião tradicional Ibo e cristianismo nas obras de Achebe e concluiu que as descrições deste são historicamente corretas (PARKER, p. 31). De todo modo, o objetivo de Achebe na sua primeira obra era fornecer aos africanos uma descrição realista de seu passado pré-colonial, sem o filtro estereotipado do europeu (BOOKER, 65). Para tanto, Achebe impõe um estilo marcante na escrita, absorvendo modos da tradição oral no texto. Tal fato é reconhecido pelos críticos e estudiosos. Achebe, ao longo do livro, introduz na narrativa contos, provérbios e cantos da tradição Ibo, de forma semelhante à introdução dos mesmos na tradição oral, utilizando assim estratégias narrativas, no texto, derivadas da tradição oral (BOOKER, 67). Em vários momentos do livro, por exemplo, Achebe coloca palavras, provérbios e 1
A citada conferência é publicada como artigo: An Image of Africa , e torna-se um marco no movimento póscolonial africano
cantos sem tradução, provocando uma sensação de exclusividade do mundo Ibo, ou seja, o leitor só teria uma imagem completa da cena caso seja Ibo. Ainda, Achebe o escreveu em inglês, o que torna a obra um produto híbrido, afinal influenciado por tradições culturais Ibo e ocidentais. O próprio título do livro é uma referência a um poema do autor irlandês W. B. Yeats, O Segundo Advento 2. Esse poema foi escrito no entre-guerras, e descrevia o ambiente desolador do pós-guerra. Para Achebe, o verso O Mundo se Despedaça tanto descreve as mudanças nas sociedades coloniais quanto critica a visão europeia em relação aos africanos, e como ele quer se desvencilhar dela (PARKER, p. 34). O Mundo se Despedaça,
em poucas palavras, descreve a sociedade Ibo, que habita a região
ocidental interior do Rio Níger, no momento das primeiras grandes entradas dos britânicos na região. Porém, a maior parte do livro se concentra em mostrar especificamente as relações sociais e familiares de um dos membros, Okonkwo, de uma aldeia Ibo, parte de uma composição de nove aldeias, que compõe a vila de Umuófia. Apenas no terço final do livro que o europeu de fato aparece. Tal estratégia narrativa mostra-se deveras interessante, pois os dois terços iniciais não contêm referências temporais ou históricas, permitindo que a sociedade descrita possa ser o exemplo das sociedades Ibo antes mesmo do século XIX. Alguns detalhes deixam transparecer que a região não é completamente isolada do mundo, pois membros da vila possuem arma de fogo (introduzidas pelo comércio) e outros utilizam colheres e cultivam milho (PARKER, p. 44). Assim, a primeira parte é a apresentação sincrônica da sociedade Ibo de Umuófia, cujos eventos presentes e passados estão misturados, não apresentam mudanças e não há indicação da passagem do tempo; no segundo momento, com a chegada dos missionários europeus, a apresentação torna-se diacrônica, colocando à tona transformações, e além de tudo, a sensação de mudanças (PARKER, 45). Achebe coloca, assim, o ponto de vista africano nos eventos que até então eram relatados do ponto de vista europeu. O estranhamento pelo encontro de duas culturas diferentes também ocorre do lado africano. Desse modo, Achebe traz ao leitor as características dos povos africanos como vista pelos próprios, não mais por meio de um filtro ocidental. Em seguida, antes da análise da obra em questão, faz-se necessário trazer breve descrição histórica do povo Ibo, a fim de, posteriormente, compararmos com os elementos descritos por Achebe em sua obra. Como dito anteriormente, o povo Ibo ocupa a hinterlândia da margem oriental do Rio Níger. A zona guineana, considerando o território da atual Costa do Marfim até o Monte Camarões, a oeste do atual Estado do Camarões, já era completamente habitada por vários povos aparentados, como os Ibo, os Akan, os Ewe, os Gã-Adangme, os Ioruba e os Edo, desde o século XI, praticamente nas mesmas regiões que hoje conhecemos (ANDAH, 2010, p. 612). A língua Ibo está 2
Em inglês, The Second Coming. O verso específico é: Things fall apart; the center cannot hold.
inserida na região falante Kwa, que inclui ioruba e edo, não existindo fronteira muito nítida entre elas (ANDAH, p. 575). Mesmo assim, estudos indicam que começou um distanciamento das línguas há 4 mil anos (ISICHEI, 1997, p. 244). Há de se notar que o termo Ibo é uma generalização, existindo povos com a mesma língua e origem, mas com costumes diferentes. Não há uma identificação pan-ibo, e os próprios Ibo da margem do Níger se identificam como Olu e se referem às comunidades do interior como Ibo (ISICHEI, p. 245). Além dos estudos da língua Ibo, achados arqueológicos indicam que os Ibos vivem no mesmo local há muito tempo, talvez desde o início da história humana. A heartland Ibo é composta pelas atuais cidades de Awka, Owerri e Orlu (ISICHEI, p. 246). A densidade demográfica na região – não só na Ibolândia – foi alta ao longo dos séculos, comparável à densidade do delta do Nilo (ISICHEI, 242). Nessa região Ibo, um centro religioso cresceu e influenciou a religião e os costumes dos povos Ibo. Esse centro, chamado de Nri, pode ser estudado e confirmado pelas escavações do sítio arqueológico de Igbo-Ukwu; sua hegemonia pode ser datada pelo menos desde o século IX, fundada na exploração de ideologias, doutrinas e símbolos religiosos. Esse “reino” Nri, segundo a tradição oral ibo, é a origem das instituições políticas locais, particularmente da sociedade ozo (ANDAH, p. 603), baseada em um sistema de títulos e que inclui a figura ritual do Eze Nri, mais do que um rei, uma referência, considerado, ainda, a origem do inhame e do taro, segundo a tradição (ISICHEI). Essa figura foi importante até o começo do século XX, ainda detendo poder ritualístico e religioso, não muito político, sobre o país Ibo. Sua função estava ligada ao cultivo do inhame e à fertilidade da terra; em afastar poluição ritualística; e em resolver disputas (SHAW, 2010, p. 556). Os sacerdotes de Nri exerciam grande influência, pois eram os encarregados em nomear os títulos de Ozo e Eze – como a organização em pequena escala das comunidades ibo era baseadas em sistemas de títulos, os sacerdotes tinham papel vital (ALAGOA, 2010a, p. 535). O sítio arqueológico de Igbo-Ukwu, citado acima, foi descoberto ao acaso em 1938. Nele, foram encontradas esculturas de bronze, que colocam a cultura Ibo desde pelo menos a Idade do Bronze (ISICHEI, 247). Os trabalhos posteriores indicam que a formação de Estados e a diferenciação social nessa região subsaariana começaram na Idade do Ferro (ISICHEI, 88). Em Igbo-Ukwu foram encontrados ainda tesouros, câmaras de enterro, escravos, tecidos, demonstrando a antiguidade das habilidades de trabalhos têxteis e metalúrgicos. Ainda mais interessante, os estudos indicaram que a influência Nri pode ser mais antiga do que a própria tradição oral conta; além disso, mostram que a região estava ligada ao comércio internacional, fora das rotas do Saara, pois foram encontradas pérolas de vidro e coralina, de origem veneziana (ISICHEI, 247). Ainda, também foram encontradas ferramentas e armas de ferro, o que coloca a cultura material de Igbo-Ukwu, de Ife e de Benin como o apogeu da Idade do Ferro na região (ANDAH, 609). SHAW reitera a hipótese da inserção da região no comércio internacional, considerando que há pouco cobre na região da
Nigéria e não se conhece locais remotos de exploração do minério naquele momento, implicando na importação via terrestre (SHAW, 556) 3. Enfim, a datação por carbono-14 dos objetos encontrados indica a existência de uma cultura altamente refinada já no século IX entre os povos ibo, cujas sociedades eram baseadas em grupos de linhagem. Pode-se observar também que era usado o método da cera perdida na elaboração das esculturas de bronze. (RYDER, 2010, p. 404). Em termos de relações sociais e políticas, os Ibo, tanto tem tempos modernos quanto antigamente, viviam em grupos de vilas, compartilhando identidade comum, por meio de um mapa mental, traçando sua origem a um ancestral comum. A organização do espaço reflete essa mentalidade, pois cada vila vincula sua origem a um descendente daquele ancestral comum (ISICHEI, p. 248). Os Ibos, assim, era sociedades baseadas em grupos de linhagem, ou linhageiras, onde não há poder centralizado e os clãs ou linhagens vivem lado a lado, independentes mas vinculados (RYDER, 392). Como ISICHEI (p. 243) aponta, uma afirmação da identidade Ibo é justamente “os Ibo não tem rei”. O sistema democrático Ibo era variável, com as vilas sendo governadas pelos anciões, pois mais próximos dos ancestrais. O poder local era baseado numa hierarquia de títulos pessoais, idade e sociedades secretas. Interessantemente, os títulos não eram herdados, mas sim conquistados, por meio de gastos extravagantes e pureza ritualística. O poder concentrado era evitado, como mostram registros do século XIX, com a existência de vários portadores do título de Eze (ISICHEI, 248). Apesar disso, alguns grupos Ibo, especialmente aqueles mais próximos à margem oriental do Níger, adotaram instituições reais, ao entrar em contato com comunidades com instituições similares (ALAGOA, 2010a, p. 535). Outro elemento importante do sistema sócio-político Ibo eram os oráculos. Estes eram estabelecidos como mecanismo de controle do sistema, consistindo numa sanção religiosa. Alguns obtiveram mais influência que outros, e inclusive no momento do tráfico negreiro, o oráculo de Arochukwu teve importância, pois o povo Aro era importante negociador de escravos (ALAGOA, p. 536). A agricultura, por sua vez, existia na região pelo menos há 3 mil anos, especialmente a cultura do inhame, óleo de dendê, okro (quiabo), egusi (abóbora) e noz de cola (ALAGOA, p. 535). Com a chegada dos europeus, o crescente tráfico negreiro torna-se fator de grandes mudanças. Os Estados Ibo localizados à margem do Rio Níger foram um dos primeiros a participar do trato, e, no século XIX, tinha participação no comércio de dendê. No século XVIII e início do XIX, os principais pontos de escoamento de escravos eram justamente os portos da margem oriental do delta do Níger. A maior parte dos escravizados provinha do interior Ibo (ALAGOA, p. 536). As características políticas das sociedades Ibo, como descritas acima, acabaram por deixá-las mais vulneráveis ao comércio de escravos. A população densa e a organização em pequenas unidades políticas, sem qualquer poder centralizado, deixavam o país Ibo aberto à exploração de escravos, 3
SHAW foi um dos exploradores do sítio arqueológico de Igbo-Ukwu, na década de 50. RYDER, 404.
sem uma proteção de um Estado organizado. Curiosamente, mesmo sendo grande fornecedor de escravizados, o país Ibo não teve contato com o europeu até o fim do século XIX. Os primeiros relatos da Ibolândia são datados de meados do século XIX, por comerciantes e missionários. Em relação aos missionários, apesar de um primeiro momento de resistência, o povo Ibo era aberto a influências estrangeiras, especialmente à conversão (ALAGOA, 2010b, p. 856-858). A presença europeia e o comércio de escravos, foram, portanto, importantes fatores de mudanças. Ainda assim, ALAGOA afirma que, apesar da importância econômica do comércio de escravos – cuja troca por produtos não era justa – para o desenvolvimento das sociedades, o comércio interno e a troca de produtos agrícolas era mais importante (p. 872). Ainda, afirma, os fatores externos não tiveram consequências profundas imediatas, e as populações gozaram de certa autonomia, no que tange a costumes e hábitos. Durante o período colonial, assim, as populações locais não perderiam inteiramente a sua cultura, as suas instituições e sua identidade (p. 373). Isso talvez ocorreu pela dificuldade britânica em estabelecer o malfadado indirect rule colonial, presente em outras colônias, onde, por meio de chefes locais aliados aos britânicos, conseguiam administrar os territórios. Com a autoridade política difusa dos Ibo, os britânicos adotaram um sistema de administradores e oficiais (GRISWOLD, 200, p. 9). Com esta visão panorâmica tanto de Achebe quanto do povo Ibo, retoma-se a questão que guia este trabalho: a obra primeira de Achebe, O Mundo se Despedaça , pode ser considerada uma representação da história africana; da cultura, da sociedade e das tradições do povo ibo précolonial? Na obra em questão, encontramos diversos elementos que foram acima descritos. A sociedade descrita por Achebe, em resumo, é uma sociedade ordenada, baseada em hierarquia de deuses, ancestrais, anciões e famílias, cujo cotidiano gira em torno da agricultura; possui momentos de festa, lazer e cerimônias (WREN, p. 10). A aldeia onde se passa boa parte da narrativa faz parte de um conjunto de nove aldeias, compondo a vila fictícia de Umuófia, representando o modo tradicional societário (ACHEBE, 2009, p. 23 e p. 108). Além disso, ao longo da narrativa, fica claro que se trata de uma comunidade linhageira, onde os mais velhos decidem assuntos cotidianos (por exemplo, ACHEBE, p. 47). A figura do oráculo também está presente, cuja sacerdotisa tem forte influência, como numa disputa conflito entre aldeias (p. 36). O oráculo citado é um dos mais influentes da Ibolândia: Agbala, da região de Akwa. No início do livro, há uma cena onde um visitante vai à moradia do personagem principal, Okonkwo, para cobrar uma dívida. Segue-se todo um ritual prévio à discussão, envolvendo sementes de cola, contas e giz (este significando a paz), a fim de assegurar à discussão tranquilidade e evitar o antagonismo (WREN, p. 28 e ACHEBE, p. 27). Essa é uma cena que lembra diretamente a tradição africana descrita por Hampatê BÁ (p. 168), pois afirma que o homem está ligado à palavra que profere; desse modo, a própria coesão da
sociedade repousa no valor e no respeito à palavra. Achebe, narrando a cena, deixa claro: “Entre os ibos, a arte da conversação é tida em alto conceito, e os provérbios são o azeite de dendê com o qual as palavras são engolidas” (ACHEBE, p. 27). A tradição oral também está narrada na obra tanto nos momentos em que Okonkwo conta histórias para seus filhos quanto em alguns momentos em que transcreve, sem traduzir, cantos e provérbios ibos (pp. 79, 126, 137). Outro sistema de resolução de disputas é descrito por Achebe (pp. 107-113), baseado tanto na ancestralidade quanto no sistema de títulos característico das sociedades ibos. No livro, para julgar um marido que bateu na esposa, um grupo de nove mascarados – entre eles os mais velhos e os possuidores de títulos, como Okonkwo – surge, num ritual, representando as nove aldeias de Umuófia. Esse grupo é chamado de egwugwu, e perguntam e ouvem para decidir o caso. O sistema de títulos, que foi descrito acima, também faz parte da narrativa da obra de Achebe. Tanto WREN (p. 78) quanto RHOADS (p. 66) observam que o sistema de títulos é uma maneira de redistribuição de riqueza, pois para receber um título, o membro da comunidade deve doar parte de sua riqueza para o clã. No início do livro, o personagem que busca a dívida de Okonkwo o faz pois está juntando os recursos para a obtenção do título de Idemili, o terceiro mais importante (ACHEBE, P. 27). Acima também foi observado que os povos ibos possuíam armas de fogo, colocando-os, desse modo, perto das rotas de comércio, já nos momentos de relação com o europeu. No livro, a arma de fogo tem papel importante, pois numa cena, especificamente o ritual para o funeral de um cidadão ilustre de Umuófia, a arma de Okonkwo dispara acidentalmente e mata o filho do falecido (p. 143). Esse é um ponto central do livro, pois, pela decisão dos anciões, Okonkwo deve se exilar por 7 anos. Ele obedece e vai para a aldeia de sua mãe, e ao retornar, já encontrará seu mundo se despedaçando, com a presença do homem branco tornando-se mais forte. Cabe observar aqui um elemento histórico inserido por Achebe na narrativa. Em nenhum momento há referências temporais, mas uma cena pode datar os eventos. Durante seu exílio, Okonkwo recebe a informação de que uma aldeia, Abame, foi arrasada pelo homem branco (pp. 156-162). Pelo diálogo, entende-se que Abame foi destruída após a morte de um homem branco, que surgiu em uma bicicleta na região da aldeia. Assustados, os habitantes de Abame mataram o homem e penduraram sua bicicleta numa árvore. WREN (p. 13) identifica a cena com o “incidente da bicicleta”, ocorrido e relatado em 1905. Um britânico, de bicicleta, perdeu-se na região e parou para conseguir informações. Entretanto, foi morto. Eventualmente, uma expedição punitiva foi organizada e destruiu algumas comunidades, numa das primeiras grandes incursões na Ibolândia. À guisa de conclusão, pode-se observar outros inúmeros elementos no livro presentes na bibliografia pesquisada sobre o povo Ibo. Como dito acima, Achebe, apesar de afirmar não ter feito
pesquisas formais em bibliotecas, fez um excelente trabalho em representar a cultura, a sociedade e a política Ibo em seu livro de estreia. Pelo breve apontamento logo acima, creio que não há dúvida de que a obra analisada apresenta fidedigna representação (em que pese licenças poéticas próprias da literatura) de um povo africano e seus costumes, num período ainda sem as distorções que seriam causadas pela presença do homem branco. Entretanto, após a leitura da bibliografia levantada, pode-se ir além da proposta inicial. Considerando Achebe um homem do seu tempo, ou seja, do momento da descolonização africana e também do pós-colonialismo, sua obra não é apenas a representação do seu passado; é a busca pela retomada de valores, tradições e princípios, perdidos na colonização e desvalorizados no discurso do desenvolvimento pós-independência. Achebe escreve para fornecer aos seus patrícios autoconfiança, para mostrar, aos africanos e ocidentais modernos, que a sociedade Ibo possuía princípios e valores que podem sustentar uma sociedade; possuíam instituições democráticas, tolerância a outras culturas, redistribuição de riquezas, sistema de justiça, arte, capacidade de mudança, entre outros. A sociedade narrada por Achebe não era perfeita, continha suas falhas, como o personagem principal, e essas falhas acabam por levar ao debacle de toda uma comunidade. Mas ela tinha dignidade, humanidade, e é isso que Achebe busca. Lembrando que a obra é publicada antes da independência, o mundo que se despedaça, ou o mundo que Achebe quer ver despedaçado, é aquele da colônia inglesa, é aquele da mentalidade onde a África e o africano são destituídos de sua dignidade e humanidade. Contestar e deslocar as narrativas colônias, como as de Cary e Conrad, significa a apropriação de modos etnográficos de representação, a fim de provar que as comunidades africanas do passado não eram nem primitivas nem sem história (OSEY-NIAME, 1999, p. 149) e que essa história pode servir como parâmetro para a sociedade moderna africana. Achebe é um dos primeiros nesse luta, de acabar com a imagem dominante de que a África é a antítese da Europa, e portanto do mundo civilizado. Numa brilhante analogia literária, Achebe coloca bem como era, e continua sendo, o imaginário tanto europeu quanto ocidental, em relação à África (ACHEBE, 1978, p. 13): “ Africa is to Europe as the picture is to Dorian Gray – a carrier onto whom the master unloads his physical and moral deformities so that he may go forward, erect and immaculate.”
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