VIDA-NOVA: QUANDO A OCUPAÇÃO VIRA COMUNIDADE Thamires Lima1 1 INTRODUÇÃO Na Europa e em países como Estados Unidos e Canadá, o impacto das ruínas fabris2 coloca-se como uma questão problemática para o debate urbanístico e arquitetônico das cidades pós-industriais. Ela é concebida a partir de paisagens urbanas como terrenos e edificações fabris desativadas, áreas abandonadas e/ou contaminadas que representa a degradação urbana. Como ferramenta analítica o uso da categoria de ruína fabril orienta a análise da produção deste espaço urbano como espaço precário, produto de diversos elementos e sentidos quanto a sua elaboração e sentidos. Na cidade do Rio de Janeiro, ruínas fabris vêm sendo gradativamente ocupados pela população de baixa renda por meio da adaptação de fábricas abandonadas para fins de moradia. No curso do processo de conversão de prédios fabris e terrenos abandonados em ocupações de moradia por parte das populações de áreas periféricas, algumas ocupações de moradia em antigos terrenos fabris e prédios industriais se localizam próximos ou até mesmo no interior de favelas. No Rio de Janeiro, três comunidades na zona norte da cidade foram originárias de invasões a ruínas fabris e já são reconhecidas como favelas ou “comunidades”. O território periférico onde realizo o trabalho de campo, é um antigo terreno fabril de aproximadamente 40.000 m² de uma antiga indústria de laticínios, desativado no final dos anos 90 e que sofreu o processo de invasão em meados de 2000. O terreno está localizado entre as margens de um rio e uma favela, num Complexo de Favelas, no bairro de mesmo nome. De forma a preservar a identidade e segurança dos moradores, foram omitidas informações que revelam a localização exata da invasão de moradia onde realizo meu trabalho de campo. Pelo mesmo motivo, o nome da ocupação e dos entrevistados foram modificados.
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Mestranda do PPCIS/UERJ. E-mail:
[email protected] Alguns autores costumam denominá-las de ruínas fabris e analisam esse processo de abandono
das ruínas industriais denominando-os por brownfields nos EUA (PAGANO E BOWMAN, 2000), friche 2 Alguns autores costumam denominá-las de ruínas fabris e analisam esse processo de abandono das ruínas industriais denominando-os por brownfields nos EUA (PAGANO E BOWMAN, 2000), friche urbaines/industrielles na França (MENDONÇA, 2003) ou vazios urbanos no Brasil (MENEGUELLO, 2009).
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O censo de 2010 do IBGE - a partir da aglomeração dos 3 setores censitários que correspondem ao terreno da fábrica invadido – contabiliza 1.160 pessoas residentes na ocupação. De acordo com os dados de cadastro da Clínica da Família, coletados em 2010, na Marajá há 3.680 pessoas cadastradas e quase 2.000 famílias. Já a associação de moradores da Marajá estima que sua população seja em torno de 5.000 pessoas na área e 1.300 domicílios. O foco deste artigo3 é apresentar, a partir da pesquisa em andamento, as intervenções e práticas de diferentes atores sociais que produzem a territorialidade da Vida-Nova. Ao longo do artigo, apresento três momentos importantes da constituição da Marajá enquanto espaço habitado: o momento de desativação e abandono do terreno fabril, a produção daquela territorialidade a partir de uma outra lógica de produção do espaço, realizado pelo tráfico de drogas local e os moradores, a partir dos dois eventos da invasão ao terreno fabril e no momento presente, os efeitos práticos do reconhecimento daquela área como comunidade. Um acesso juridicamente ilegal a um espaço urbano e sua adequação dentro da política formal, é de fato, outra atuação do Estado frente à ocupação ilegal de ruínas fabris industriais e a representação da população residente sobre o território e sua lógica de habitar. Partindo da hipótese de que ocorrem transformações nos modos de habitar e na produção de territorialidades quando este passa a ser reconhecido como comunidade, minha questão de pesquisa está em desvelar quais os efeitos que o reconhecimento da ocupação de moradia em comunidade exerce sobre os atores sociais e suas formas de articulação no território, bem como sobre a lógica de habitar dos moradores, em termos de representações sobre o espaço e em torno dos seus projetos em torno da moradia e no curso da vida cotidiana. 2 A HISTÓRIA DA INDÚSTRIA DE LATICÍNIOS YOLAT A ocupação industrial da região de Acari/ Fazenda Botafogo começou na década de 80, a partir da criação da Portaria n.º 176 de 21/02/83 do Distrito Industrial de Fazenda Botafogo, que abrigava cerca de quarenta terrenos industriais, situados na região 3
Este texto, adaptado para o formato de paper a fim de ser apresentado no VI Seminário Interno dos Alunos do PPGAS-MN/UFRJ, refere-se a uma versão compactada de um capítulo de minha dissertação de mestrado, sob o título provisório de “Comunidade Majará: precariedade e experiência de habitar em uma ruína fabril”.
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administrativa da Pavuna, próximo a Acari. Em 1986 foi elaborado um projeto municipal para os Polos Industriais que visava à descentralização das atividades econômicas, a concentração de indústrias poluidoras em áreas mais longínquas do eixo central da cidade e a expansão das áreas industriais. A Zona Industrial localizada na Fazenda Botafogo acolheu indústrias de diferentes gêneros, como químico, metalúrgico, mecânico, produtos alimentares, bebidas, dentre outros. Surge a partir daí, na sua breve história fabril, a unidade Maturá no bairro de Acari (RJ) da empresa Yolat Indústria e Comércio de Laticínios 4 . O centro de distribuição da Parmalat S.A em Acari era o único da empresa localizado no Rio de Janeiro que funcionou, de 1993 a 1997, como indústria de beneficiamento de leite e derivados, com aproximadamente 400 trabalhadores. Em 1997, a Yolat virou Parmalat e todas as operações da empresa na unidade Maturá foram definitivamente transferidas para o município de Nova Iguaçu. A justificativa oficial da Parmalat para o fechamento da unidade Maturá é que em 1998, toda a estrutura interna de logística foi reformulada para a empresa auferir ganhos de eficiência e redução de custos. Assim, no início de 2000, a Parmalat abandonou a estratégia de distribuição pulverizada - em várias regiões do Brasil - dos centros de distribuição. De uma estrutura baseada em um número grande de pontos de distribuição próximos às unidades produtivas, a Parmalat inicia “um novo conceito de logística”, cujo objetivo é promover “uma forte centralização da estrutura em poucos e grandes pontos regionais”, os conhecidos CEDIs, ou simplesmente Centros de Distribuição que passaram
a se concentrar no sul do brasil 5 . Muitas
unidades da empresa foram fechadas nesse período, como Acari (RJ), Lajeado (RS), Feliz (RS) e Salvador (BA). Essas unidades não tinham condições de ganho de escala, estavam distantes demais dos centros consumidores ou estavam ainda mal posicionadas em relação à bacia leiteira do estado/região. Em 2000, o terreno fabril da unidade de distribuição da Rua Maturá em Acari foi completamente desativado. Nesse mesmo ano, uma empresa de auditoria reconhecia que a Parmalat não tinha ainda definido o que fazer com as unidades fabris desativadas ou em fase de descontinuação. 4
No Brasil, a multinacional italiana no setor de alimentos Parmalat fundou a empresa própria brasileira, denominada Yolait Indústria e Comércio de Laticínios Ltda, em 1977, o que marca o início oficial da atuação da Parmalat no Brasil. Trata-se de uma empresa com grande presença no mercado de leite longa vida (UHT), que se expandiu no Brasil a partir do início dos anos 90 através de uma agressiva política de aquisições. 5 A Parmalat S.A. Indústria de Alimentos acompanha, parcialmente, o processo de reespacialização da produção de laticínios no Rio de Janeiro. A queda no emprego no Rio de Janeiro acompanha o fechamento da fábrica de Acari.
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3 INVADIR PARA HABITAR Logo após a transferência das atividades da Parmalat de Acari para Nova Iguaçú e a interrupção das atividades do centro de distribuição, uma empresa de segurança particular ficou responsável por fazer a segurança do terreno após a desativação das atividades produtivas da fábrica. Em novembro de 1997, a Parmalat enviou um ofício à firma de vigilância e segurança privada contratada, suspendendo o contrato, pois registrou “não ter mais interesse no aumento do quantitativo do Posto de Serviço” da portaria do estabelecimento, por conta da interrupção das atividades. Nesse intercurso, homens ligados ao tráfico de drogas passaram a circular de forma constante pela área do terreno industrial desativado e ocorreu a primeira invasão no terreno fabril, que consistiu no saque dos materiais e equipamentos da fábrica por moradores. Duas interlocutoras que conheci no trabalho de campo, Ellen e Ariana, presenciaram a primeira invasão à Marajá. Segundo Ariana, moradora da Marajá, não há uma resposta da razão pela qual a fábrica foi desativada, pois em um uma determinada semana “os funcionários estavam trabalhando e depois pararam de vir”6. Nessa época, ela morava na favela Beira-Rio, localizada do outro lado da margem do Rio Acari, e conseguia visualizar a fábrica em pleno funcionamento. Após o esvaziamento das atividades produtivas da fábrica, de acordo com Ariana, a notícia da invasão foi bastante difundida dentro do Complexo de Acari, atraindo e estimulando moradores. O evento foi “liberado pelo tráfico” e moradores das favelas do entorno – Beira-Rio e Parque Acari - saquearam objetos, laticínios e “pegaram tudo” do interior da fábrica. Quando questionei a Ariana sobre o que seria esse “tudo”, ela explicou que eram as estruturas da própria fábrica, tais como mesas, balcões, armários, refrigeradores e tudo o que podia ser carregado por uma ou mais pessoas. Ela recorda que todos os participantes desse episódio ficaram surpresos, pois os materiais industriais, suprimentos da fábrica e laticínios foram “largados na fábrica e tava tudo em boa condição”. Os moradores das áreas próximas saquearam “tudo que poderia imaginar”, e esse “tudo” ela fazia questão de reforçar durante nossa conversa. Conforme ia me relatando o episódio, Ariana gesticulava e apontava para áreas específicas das edificações, como as portas, corredores, vão de entrada, pátio e 6
As citações entre aspas e em itálico referem-se as falas dos interlocutores da pesquisa.
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basculantes, de forma a tornar mais compreensível como ocorreu a movimentação das pessoas naquele episódio e descrever os locais por onde passou. Seu relato tinha um tom espontâneo, leve e divertido. Enquanto conversávamos, um de seus filhos interrompeu a conversa. Em seguida, ela disse “Eu tinha a idade dele mais ou menos. Lembro que eu tomei tanto iogurte nesse dia [da invasão]. Hoje eles [referindo-se ao seu filho como adolescente] escolhem até marca.” Ariana tem cerca de 30 anos e participou do processo de invasão, quando ainda morava na favela Beira-Rio. Algum tempo depois desse primeiro episódio de invasão a Marajá, no qual ocorreram os saques, Ariana “ganhou” uma casa em Sepetiba, concedida através de política habitacional da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (CEHAB- RJ). Com isso, mudou com seu companheiro e dois filhos para Sepetiba. A partir desse momento ela deixou de ter notícias sobre o “que estava rolando” na Marajá. Em meados dos anos 2000, há indícios de que o tráfico de drogas começou a utilizar efetivamente o terreno. Como a mata aos fundos da Marajá é considerada uma rota de fuga7 e esconderijo para os traficantes de drogas da área nos momentos de operações policiais, é provável que dada sua localização, homens ligados ao tráfico, tenham delimitado sua presença no terreno desativado com vistas a garantir sua segurança. Em 2001, ocorreu o processo de adaptação da estrutura fabril em local de moradia. Para compreender esse processo, mobilizo o relato de outra interlocutora do campo, a Elisabeth, uma senhora de aproximadamente 70 anos que mora em Acari há pouco mais de 40 anos e que acompanhou a conversão da ruína fabril como ocupação de moradia e reside na Marajá desde a invasão. A primeira visita de Elisabeth na área foi com uma amiga e depois com seu marido. A ocupação e o estabelecimento de moradias foram feitos de forma gradual, entre 2001 e 2004. A permissividade do processo de ocupação da Marajá envolveu um controle estrito do tráfico local, que delimitou o processo de ocupação no território da seguinte forma: as pessoas interessadas em ir “morar na Marajá” deveriam se dirigir ao traficante daquela área específica e lhe pedir o aval para construir um terreno, delimitado em uma área quadricular de tamanho similar ao de uma quitinete. Após 7
A região é chamada de Fim-do-Mundo.
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conhecer a “vida da pessoa”, suas possibilidades financeiras e materiais para edificar a moradia, o interessado poderia se instalar ali. Questionei como era esse processo de ter um “pedaço da Marajá” em função das condições financeiras e do que Elisabeth chamou de “vida da pessoa”. Ela explicou que a trajetória de vida era avaliada a partir dos locais onde a pessoa morou, se residiu em qual comunidade, no que trabalhava e se tinha família e filhos. Já as condições financeiras eram confirmadas a partir dos seguintes processos: o interessado deveria comprar o lote de seu interesse com o “dono” da área da Marajá, o “falecido neguinho”. Na época, Elisabeth acredita ter pago algo em torno de mil reais. Em seguida, o interessado tinha de construir a base da casa e demarcar o território com o material de construção. Se após determinados dias a moradia não tivesse sido edificada, o que basicamente consistia em levantar algumas fileiras verticais de tijolos, de aproximadamente uns “60cm de altura do chão sem as divisões internas ainda”, o pequeno terreno da futura casa era cedido para outrem interessado. Essas eram as regras instituídas pelo tráfico. Segundo Elisabeth “foi tudo muito ordenado, eles tomaram conta direitinho e a divisão deu certinho”, porque ela e o marido passaram por esse processo e construíram a casa sem problemas. Durante a construção, Ellen instalou uma lona dentro do terreno ainda aberto para formar o “teto da casa e garantir que não iam fazer nada”, conforme seu marido construía as paredes. A desconfiança aqui era relativa a outros futuros moradores e não a um possível furto de materiais de construção realizado pelos traficantes pois como bem disse Elisabeth “eles não conseguiam ficar 24 horas por dia tomando conta da obra”. Assim, ela montou uma pequena cozinha com fogão e pia ainda com a obra em andamento e foi “dando um jeito” até levantar toda a casa. Nessa época, ela trabalhava como cobradora de ônibus e revezava o “tomar conta da obra” com seu marido, que trabalhava como motorista de ônibus. Seu último endereço foi em uma das entradas da Marajá, numa rua asfaltada típica da zona norte da cidade. Por conhecer o padrão das casas da Rua Maturá, questionei Ellen quais os motivos a levaram a alugar sua casa que tem uma localização mais próxima ao hospital municipal e se mudar para a Marajá. Para ela, um conjunto de fatores a estimularam a ir para esse território. Um dos motivos apresentados foi que teria vivenciado dois episódios de tiroteio, no qual em um deles viu a bala passar ao lado de
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seu ouvido e quase atravessar sua cabeça. Depois desse momento, Elisabeth refletiu: “falei pra Deus que não ia ficar mais ali em Acari, foi um sinal”. Além disso, acrescentou que por causa da tranquilidade que havia no terreno, ainda pouco ocupado por moradores e com muita vegetação ao redor, decidiu se mudar. A tranquilidade era garantida em função da localização espacial de sua casa, que a faz sentir menos medo, porque “os homens [BOPE] só chegam aqui por um acesso, é difícil ter surpresa; eles tem que chegar por aquele paredão, senão ficam encurralados pelos caras daqui”. Em outros momentos, descreve que sua antiga casa serve hoje para “fazer aluguel” apesar de não elencar este último fato como motivo principal. A organização das práticas burocráticas de ordenamento da ocupação do espaço, realizada pelo tráfico de drogas, nos leva a afastar-se de uma visão que analista esse ator social apenas pela ótica do crime, da violência e da ilegalidade para compreendê-lo com um dos atores sociais que possuem legitimidade naquele espaço. Jan Daniel (2015, p.86) aponta que a governança territorial e a autoridade de grupos armados estabelece um sistema flexível de controle através dos quais esse grupo obtém legitimidade, o que na pesquisa permite olhar como a atuação desses diferentes atores sociais não necessariamente se chocam, mas se conformam e coexistem. A partir das análises de Jan Daniel (2015) e Feltran (2010) de que o universo do crime vai muito além dos atos ilícitos e do tráfico de drogas, é preciso atentar que a dimensão do crime envolve uma lógica política que produz ordenamento urbano. 4 O ESPAÇO DA FÁBRICA COMO ESPAÇO DE MORADIA Apesar da intervenção pontual de programas e políticas públicas sob esses espaços ocupados que servem de habitação popular, diferentes localizações espaciais dessas ocupações de moradia acabam por acarretar outros destinos na lógica de habitar e outras formas de governança por parte dos atores sociais sobre tais espaços. As ocupações de indústrias abandonadas apresentam aspectos morfológicos, urbanísticos, socioeconômicos e jurídicos que representam singularidades em relação às favelas. Martins (2014), a partir do estudo de caso das ocupações na Avenida Brasil, destaca algumas particularidades na dimensão arquitetônica e de uso do espaço de ocupações de moradias em ruínas fabris, tais como a ocupação organizada de estrutura arquitetônica adaptada, não orgânica; diferentes usos no interior do mesmo edifício; integração física com a cidade formal; definição urbanística, endereço reconhecido
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porém informal (domicílios improvisados); heterogeneidade e diversidade dos ocupantes; auto- organização e gestão comunitária como processos inovadores; regime de condomínio; e diferentes necessidades de intervenção para regularização fundiária e urbanística/arquitetônica. As descrições de Martins sobre a configuração desses espaços de moradia precária me fizeram refletir sobre os aspectos que incidem sobre a organização desses espaços e como eles também atuam sobre os modos de governança locais, e que por isto não devem ser tratados somente como um fenômeno similar ao da constituição das favelas. Nesse caso, o trabalho de campo antropológico pode dar conta dessas questões de habitabilidade cotidianas e de uso do espaço, como defende a autora. Martins (Ib., 2014) defende que é preciso entender qual lógica de habitabilidade consiste em espaços desse tipo. Se o próprio uso naturalizado do termo “invasão” é constantemente utilizado, fundamental é entender o que ele significa de forma mais detalhada. É necessário que sejam analisados os processos de constituição daquele espaço a partir do olhar nativo, dos moradores e dos atores sociais presentes para se compreender a experiência de morar e suas narrativas de circulação nos territórios da cidade. A experiência dos moradores dessas áreas na relação com o Estado, os instrumentos políticos e a política se materializa nessa interação da população local em alguns contextos organizacionais (BIRMAN, FERNANDES e PIEROBON, 2014), como o papel da Associação de moradores, programa de saúde da família e no cotidiano de suas vidas. É interessante nesse sentido, perceber como o processo de ocupação da Marajá em seu processo de consolidação física e material foi constituída através de uma governança do tráfico local que organizou o território, loteou e dividiu as áreas dos prédios e do terreno fabril para moradia. Sob o ponto de vista dos moradores que estiveram presentes durante esse processo, isso foi considerado um ponto forte do antigo chefe do tráfico local da área, que coordenou essas ações de forma bastante eficiente. Na Marajá, o ordenamento do processo de construção das moradias no interior dos blocos da fábrica e no entorno da fábrica ocorreu de forma concomitante. Consequentemente, o processo de ocupação realizado no entorno da fábrica visualmente estabeleceu uma padronização no tamanho das residências que também são consideradas parte da ocupação, uma vez que para os moradores são originárias da mesma temporalidade. Nesse caso a
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territorialidade da ocupação e seu sentido de unidade estende-se para além dos muros fabris. O terceiro andar, caracterizado por menor circulação de pessoas e casas fechadas era também referenciado, por alguns moradores com que conversei, como a parte mais degradada da área e as justificativas para considerar esse andar degradado eram bastante elaboradas em torno de silêncios e conversas escapadas. Os silêncios e os não-ditos estão presentes na descrição de certos espaços durante o trabalho de campo e mesmo que eu tenha visitado essas áreas que os moradores resistem em descrever, meu posicionamento é esperar que eles falem algo ainda que de forma difusa. No caso da Marajá, alguns espaços no interior das fábricas, aparentemente eram moradias totalmente fechadas, mas o silêncio em torno daqueles espaços vazios dão indícios de que o uso de determinados espaços é dedicado a atividades que não podiam ser claramente assumidas, como as atividades do tráfico de drogas. O silêncio estava, de fato, tecendo um pano de fundo sobre a uma governança do tráfico local evidente pelo fato dos moradores não descreverem certas especificidades do espaço. Seguindo Capranzano (2005), é nesse silêncio que a tensão dramática sobre nosso objeto de estudo se localiza também, e, por conseguinte, é nesse não dito que podemos refletir sobre esse pano de fundo constitutivo dessa forma de habitar local. A associação de moradores, possui um espaço físico na rua que dá acesso principal aquela área, e localiza-se num espaço de estrutura de pequeno galpão fabril onde também funciona uma igreja evangélica no turno da noite. A Associação de Moradores da Marajá sempre teve J.C a frente. J.C trabalha de manhã no CEASA de Irajá e fica as tardes na Associação, mas circula bastante pelo território e pelo entorno de Acari. J.C tem aproximadamente 50 anos, está no seu segundo casamento e tem uma filha de 13 anos. Sua esposa também mora na Marajá e sua casa é localizada no final da rua “Entrada do prédio 1”. Em muitos momentos, os próprios moradores reconhecem que ele, representante da associação, tem seu valor por realizar consertos e ajustes no território na questão da infraestrutura de água e esgoto. No cotidiano da semana, durante as tardes, a Associação fica aberta e quem fica no balcão é Marly, moradora da Marajá, que fica dando apoio e assistência ao J.C, tanto tomando conta das cartas e correspondências que ficam na associação quanto repassando informações diversas aos moradores.
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Nos momentos extraordinários, tais como em situações de enchentes, a Associação de Moradores é um ponto de articulação fundamental, pois é para lá que vão as doações de mantimentos para os moradores. Em sua rotina cotidiana, é um espaço que recebe as correspondências dos moradores e onde ficam guardados materiais de obra destinados aos esporádicos mutirões de conserto de infraestrutura autoconstruída de água e esgoto naquela área. Essas articulações de mutirão são práticas coletivas que partem da mobilização dessa própria figura, o J.C, e destinam-se principalmente aos consertos da infraestrutura de água e esgoto. Nas situações extraordinárias de enchentes, os mutirões coletivos acontecem e envolvem todos os moradores. Todavia, no cotidiano, J.C é quem na maioria das vezes realiza os reparos sozinho. J.C, em minhas idas a campo, sempre dialoga comigo sobre as dificuldades em “trazer projetos” para a Marajá. Além disso, retrata com satisfação sua capacidade de se fazer circular pelo território e não ter medo de ir nas “outras partes de Acari” para estabelecer contato com outros representantes de associações de moradores da área. Ao fazer sua própria reflexão em relação a atuação no papel de presidente da associação, ele faz questão de destacar sua capacidade de dialogar com o governo e prefeitura – sempre descrito de forma vaga e desconexa porque ele não explicita nem cita quais e quem são seus contatos durante nossos encontros em campo –. Para ele, estar na associação desde a sua fundação é fruto de seu senso de organização e iniciativa, estes dois últimos demonstrado em termos práticos quando ele conta sobre os episódios de enchentes e sobre as obras que acontecem na área. Suas falas sobre prefeitura, governo, política e remoção ressoam bastante e geram efeitos na produção de moralidades naquele local. Um ponto de partida para entender essas questões é a partir da percepção do espaço elaborada por esse ator local. 5 QUANDO A OCUPAÇÃO VIRA COMUNIDADE Desde a minha retomada ao campo observo na paisagem da ocupação a verticalização das moradias, através do uso da laje por aqueles que construíram casa fora da fábrica. Para alguns moradores, isso se institui como um dos projetos possíveis para fazer renda, através do aluguel pois o mercado imobiliário na área é bastante movimentado. Algumas vezes circulei pelo espaço com J.C, da Associação de Moradores, e pedi que me acompanhasse pela Marajá. Algumas casas - que não se localizam no prédio fabril,
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mas que estão circunscritas no antigo terreno da fábrica - já apresentam um processo de verticalização com investimento em finalização e acabamento com massa corrida, pintura, porcelanato e janelas de vidro. Em uma de nossas caminhadas na Marajá, disse: “Nossa mas olha essa casa, acabamento bom, tem cerâmica e tudo! ”. Ele me respondeu: É mole, o pessoal constrói em cima pra fazer dinheiro. Mas depois a gente é removido e aí o dinheiro vai todo pro ralo. O Estado não vai te pagar o acabamento bonito da casa, não vai querer nem saber. Aí também chove e perde tudo, mas pelo menos perde a metade né. A parte de baixo vai embora, a parte de cima fica.
Paradoxalmente em um outro encontro, ele me disse que soube por uma fonte de contato político que a prefeitura não ia mais “tirar o pessoal dali”, que os políticos tinham avisado a ele: “informação quentíssima, Pedro Paulo8 disse que vai garantir luz e água aqui, por isso que a obra já tá rolando”. Ao mesmo tempo que o presidente da associação durante anos, segundo meus interlocutores, levanta a questão da remoção, em conversas pessoais comigo ele descreve que esse processo não acontecerá. De certa forma, noto que perpetuar essa insegurança garante que ele seja visto como alguém que possui informações políticas e conhecimento da situação política externa a Marajá. J.C destacou em algumas conversas que a interlocução da Associação de Moradores da Marajá com os agentes comunitários de saúde é consolidada desde 2009. Isso porque desde 2009, a ocupação de moradia da Marajá já é fruto de um regime de governança por parte do Estado pela presença dos agentes comunitários de saúde e seu papel na gestão do território, a partir do viés da saúde e do controle epidemiológico por meio das estatísticas de famílias e residentes. Com a inauguração da Clínica da Família ao lado do Hospital de Acari, a equipe de agentes comunitários da Marajá elaborou o primeiro mapa, delimitando as ruas e seus respectivos nomes, e fazendo a contagem das casas para cadastro no SUS. Esse processo ocorreu através de interlocução com a Associação de Moradores, através do qual obtive o primeiro mapa da área.
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Pedro Paulo é político filiado ao PMDB, .anunciado como candidato a prefeitura nas próximas eleições e comanda a Secretaria Executiva de Coordenação de Governo da Prefeitura do Rio de Janeiro, na gestão atual do prefeito Eduardo Paes
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Em 2014, a favela da Marajá foi incluída na lista de comunidades a serem classificadas como área de especial interesse social (AEIS) e reconhecida como comunidade, através do Decreto no Diário Oficial em outubro de 2014, a partir do Projeto de Lei nº 509/ 2013 do vereador Jorge Felippe (PMDB). Meses antes desse decreto, quando ainda realizava trabalho de campo na região, rumores dariam conta de que as pessoas seriam removidas para prédios do Minha Casa Minha Vida e que uma equipe técnica da secretaria de habitação fazia visitas esporádicas ao território, com um corpo de técnicos e uma arquiteta, a fim de fazer a medição do terreno e as delimitações da área que compreendia a invasão para a futura remoção das casas. Os moradores desconheciam que aquele processo tinha em vista o reconhecimento da área habitada. As temporalidades do habitar são transformadas e implicadas a partir de projetos de urbanização em favelas. Há transformações e novas representações em relação ao ontem, ao hoje e aos futuros em torno da moradia e da casa. Nesse caso, os projetos que se dão em torno dessas esferas estabelecem um diálogo tenso com as tramas presentes, envolvendo moradores e a associação de moradores. Os boatos fazem parte da rotina daquele local, sobretudo as fofocas a partir dos projetos de verticalização das moradias e a sensação de instabilidade desses projetos pela ameaça de remoção. Uma de minhas interlocutoras, Alice, a qual tenho aos poucos estabelecido um contato mais próximo me sugere análises nesse sentido. Com aproximadamente 40 anos, é mãe de uma filha pequena e casada com um ex-motorista de ônibus, agora motorista de táxi. Natural do Paraná, Alice veio para o Rio de Janeiro procurar trabalho. Durante anos trabalhou como cuidadora de idosos na zona sul. Conheceu seu atual marido na Vila do João (Manguinhos) e quando decidiram se casar, o marido soube por conhecidos da oportunidade de construir uma casa na Marajá. Foi ele quem construiu a casa sozinho, após comprar o terreno. Alice se mudou para a Marajá no ano de 2008, quando a casa já estava pronta. A casa está localizada na rua 3, com os fundos da residência voltado para as margens do Rio Acari. Com muros altos e grandes, garantindo pouca visibilidade para quem está do lado de fora da casa, ela considera que sua casa tem um bom padrão perante as outras do entorno. Em nosso primeiro contato, ela trabalhava no Mercadinho Ponto Zero, o único que existia no interior da Marajá, no acesso ao bloco 1. Alice era a única funcionária do mercadinho, que abria pelas manhãs e às tardes. No início desse ano, seu patrão a
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demitiu, pois estava endividado e não tinha como arcar com o dinheiro que dava semanalmente a ela. Em algumas idas a campo a acompanhei na Clínica da Família, o que me possibilitou circular por esses espaços e entender um pouco de seu cotidiano como moradora. Assim como outras mulheres, ela diz circular pouco por Acari, pois “no lado de lá as operações são muito violentas, não tem hora pra acontecer”. Desde o final do ano passado, Alice se disse bastante surpreendida com as obras que vem sendo realizadas na Rua Maturá. Nas minhas recentes idas a campo, funcionários de obras da Prefeitura estão constantemente no local fazendo obras, instalando grandes tubulações na rua principal que dá acesso a Marajá e J.C, presidente da associação, praticamente atua braçalmente com eles. Observei, por exemplo, algumas vezes ele coordenando os próprios operários da obra, desde o horário da execução das obras até opinando sobre as peças e materiais utilizados, numa posição de chefe e vigia das obras. J.C não informa publicamente que essas obras são fruto do reconhecimento da Marajá como AEIS/comunidade. Seu costume é dizer que as obras foram “pedido para vereadores locais”. Alguns moradores com quem conversei desconhecem a origem da demanda das obras, já outros, como Alice, desconfiam que depois que as obras acontecerem, “eles também podem remover a gente”. A questão da remoção e dos projetos em torno da casa apareceram no meu campo como um desabafo dos meus interlocutores e um conflito em torno da confiança com a Associação de Moradores, principalmente de Alice, embora eu me posicione como alguém que está realizando um levantamento histórico da ocupação. Foi numa das minhas caminhadas com ela, voltando da Clínica da Família, que fica ao lado do Hospital de Acari que ela me propôs a refletir sobre essa questão. Em suas inseguranças quanto a remoção, o projeto de ter uma casa em cima para alugar já que estava desempregada ou um apartamento do MCMV, ela me pedia conselhos sobre o que fazer. Ao mesmo tempo que não consegue se lembrar da presença de políticos locais querendo fazer política na área onde mora, se questiona “quem tá mandando fazer essas obras aqui?”. De fato, as políticas urbanas e processos de reordenamento e transformação no espaço, instituem palavras de ordem ao mesmo tempo que propiciam conflitos, processos e mudanças que impactam a percepção dos moradores sobre o território e sobre atores locais.
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6 CONCLUSÃO No decorrer deste artigo realizei apontamentos sobre o trabalho de campo em andamento a partir dos atores sociais que se articulam e se fazem ali presentes. Da constituição de uma ruína fabril desativada, aos eventos de invasão e conversão de moradia, até o momento presente em que esta é reconhecida como comunidade, procuro mostrar a construção de um espaço de moradia em que se entrelaçam práticas políticas do estado com iniciativas e modos de viver de seus moradores. Como alguns pesquisadores já vem destacando, na escala da análise da política há efeitos diferenciados da gestão do espaço urbano em em áreas de pouca visibilidade na cidade do Rio de Janeiro. É preciso nesse sentido, atentar para o fenômeno da conversão de ruínas fabris em espacos de moradia, da relação entre pobreza e produção de territorialidades possíveis. Mais além, é preciso compreender os efeitos diferenciados das políticas em torno das ocupações de moradia, na produção do cotidiano, no modo de habitar, na circulação e controle de pessoas. Em relação ao processo de invasão, procurei mostrar que na própria ambiguidade das datas e da produção daquele espaço como “local de moradia”, a percepção da invasão traz em si a legitimação dos atores que “produzem” a Marajá desde o seu início como espaço de moradia. A partir de dois eventos marcantes relacionados à invasão: a permanência do tráfico no terreno fabril, o “aval” para a invasão e saqueamento dos moradores, para em seguida, o controle estrito a partir do parcelamento do terreno da fabrica e o controle sobre a construção do espaço, demonstra que ponto fundamental nesses dados é observar como tratar o tráfico de drogas a partir da ideia de “governança criminal”. Nessas tramas que caracterizam essas territorialidades é que pretendo, captar o processo de construção dessas formas específicas de habitabilidade por parte dos moradores, buscando pensar antropologicamente outros regimes de territorialidades e governança possíveis no espaço urbano, no qual governanças estatais e criminais não são contrapostas, mas estão completamente imbrincadas na produção daquele espaço. Em relação ao processo de reconhecimento, busco fazer uma leitura das práticas do estado, requer ir além da leitura dos documentos e sim entender em que contextos, tramas eles foram produzidos. As trajetórias dos moradores desde o processo de invasão
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e suas reflexões sobre o cotidiano e as tramas presentes passam assim a ser eixos de reflexão possíveis pois apresentam escolhas, circunstâncias e considerações bem elaboradas em torno de seus projetos.
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RESUMO A partir desta comunicação pretendo discutir a refuncionalização de ruínas fabris em ocupações de moradia existentes dentro ou próximo as favelas, compreendendo-as como uma nova estratégia de habitação popular. O estudo de caso parte de uma ocupação de moradia em Acari, na zona norte da cidade, onde realizo a pesquisa de campo em andamento no mestrado. Busco compreender em que medida ocorre m transformações políticas quando o território deixa de ser uma ocupação de moradia numa ruína fabril e passa a ser registrado como área de especial interesse social, mobilizando percepções dos grupos, articulações e instituições presentes no território. O que pretendo é fomentar o debate sobre como a população em sua vida cotidiana constrói sua experiência de “habitar na cidade” demonstrando aspectos espaciais, sociais, históricos e habitacionais desse estudo de caso a luz das tramas e conflitos presentes. Por fim, busco compreender os efeitos da produção de territorialidades periféricas e da gestão política dessas áreas à luz do fenômeno do reconhecimento da ocupação de moradia em comunidade. Palavras-chave: habitação popular, ocupação (de moradia), Rio de Janeiro
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