O flme “Noé” e a Bíblia
por Yair Yair Alon Como cabalista, obviamente muitos de meus alunos vieram me falar do lançamento do lme “Noé” e, depois que ele foi lançado, vieram me perguntar o que eu tinha achado da produção. Até bem recentemente eu estava com esse furo em minha cultura geral, pois não tinha visto o lme e, portanto, cava com cara de tacho quando um aluno queria debater comigo a película. Pois bem, agora assisti ao lme e me sinto na obrigação de saldar uma dívida, e de dar, nem que seja en passant, minha visão e opinião sobre a obra. Como todos sabem, o lme gerou muita polêmica, tanto entre religiosos como entre céticos, porque se criticava que o produtor, Darren Aronofsky Aronofsky,, teria tomado liberdades demais na criação da obra. O primeiro ponto a se notar, portanto, é óbvio mas importante: “Noé” não é baseado na Bíblia. Portanto, não se trata de um produtor que tomou liberdades com o texto bíblico, se trata simplesmente de um produtor que se inspirou em outras fontes que não o livro do Gênesis para criar a sua história. Aliás, diga-se de passagem, até onde sei, em nenhum momento o lme foi “vendido” como sendo bíblico... O que parece que houve é que vivemos numa época tão permeada do cristianismo/ evangelismo e a visão de supremacia da Bíblia que as pessoas automaticamente acharam que um l me de Noé tinha que ser baseado em Gênesis. Todos Todos pressupuseram que uma história do dilúvio tinha, obviamente, que ser baseada na narrativa das Escrituras. Mas quem disse que tem que ser assim? Como cabalista, reconheci imediatamente as fontes que Aronofsky usou para criar seu lme e, tenho quase certeza, que ele cou muito feliz em confundir as pessoas dessa maneira, contrariando as expectativas que elas mesmas criaram para si. Além disso, tenho quase certeza que tudo isso foi feito de maneira proposital, e que a verdadeira intenção de Darren Aronofsky era propagar uma visão cabalística da história. De onde eu tirei isso? Primeiro, de referências internas no próprio lme que em breve analisarei. Mas, também, de um fato que me chamou a atenção assim que eu me lembrei dele. Darren Aronofsky Aronofsky cou conhecido pela primeira vez quando lançou um longa-metragem cha mado “Pi” (o lme é de 1998, e não tem nada a ver com “Life of Pi”. Não confundir!)
“Pi” é um lme denso e abstruso, em preto e branco e com poucos diálogos, mas extremamen te interessante, na minha opinião. E do que ele trata? Quer saber o assunto? Com certeza? Cabalá, pura e simplesmente. Acho que com isso consigo provar esse primeiro ponto, de que o lme não é baseado na Bíblia (óbvio) e que nem era intenção do criador que assim o fosse, sua meta era retratar Noé em uma ótica mais cabalística (não tão óbvio). Pois bem, então o lme foi baseado em quê? Quais fontes dão sustentação e evidência às ce nas que podemos ver na tela? O lme “Noé” foi baseado quase que exclusivamente em textos apócrifos (textos que não foram reconhecidos como devidamente inspirados para fazerem parte da Bíblia), sendo, um dos prin cipais, o Livro de Enoque. Enquanto o judaísmo rabínico e as religiões cristãs rejeitam imediatamente textos como esses, a Cabalá (e outras linhas, como a Gnose) os abraçam e os reconhecem como tão importantes quanto qualquer outro texto tradicional. Para a Cabalá, nenhuma fonte tradicional deve ser descartada só por não ter feito parte da Bí blia. É o que acontece com o texto do Midrash, por exemplo. Para este este artigo, analisar a questão em profundidade foge do do nosso nosso objetivo, objetivo, mas para o leitor ter uma ideia ideia do que estou falando, basta saber que o judaísmo rabínico usa o Midrash do seguinte modo: o que me interessa e eu consigo explicar, explicar, eu uso e aceito como válido; as histórias que mais parecem lendas, parábolas complexas ou relatos ilógicos e absurdos, eu deixo de lado e njo que não existem. Para a Cabalá, nada disso: ou se usa todo Midrash, ou não se usa nada dele.
Adão e Eva
Pois bem, uma das primeiras coisas que me chamou a atenção no lme foi Adão e Eva retrata dos como seres luminescentes e descarnados, até o momento em que comem do fruto proibido. Esse motif é básico em todos os textos do Midrash e nas obras primas da Cabalá, como o Zôhar. Eis o que diz, por exemplo, um dos inúmeros trechos do Zôhar que falam sobre Adão e Eva (tradução livre minha): “Quando nosso pai Adão Adão habitava o Jardim do Éden, ele vestia, como todos no céu, uma roupa feita de luz superior superior.. Quando foi expulso do Jardim do Éden e obrigado a submeter-se às necessidades deste mundo, o que aconteceu? Deus, dizem as Escrituras, fez para Adão e para a sua esposa túnicas de pele e os vestiu; antes disso, eles vestiam túnicas de luz, da luz mais alta que havia no Éden...”.
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“Watchers”
O universo do “Noé” de Aronofsky é completamente cabalístico, no sentido que existe um mundo superior, superior, espiritual, bom e elevado; e um mundo inferior, material, ruim e rebaixado. Isto vale não apenas para os lhos e lhas decaídos de Adão e Eva, mas também para os anjos caídos (aqueles seres de pedra), descritos explicitamente como espíritos aprisionados em “corpos” materiais feitos de lava derretida resfriada. Esses seres de pedra foram outro alvo de muitas críticas por parte dos espectadores: “Mas que bichos são esses? esses? A Bíblia não fala nada deles! Que viagem!” viagem!” Realmente, o capítulo 6 do Gênesis (aliás, capítulo algum de livro algum da Bíblia) fala de gi gantes gan tes de pedra que seriam anjos caídos e que resolveram ajudar Noé a construir a arca. Mas o Livro de Enoque e outros textos apócrifos falam. No lme esses gigantes são chamados de “Watchers” “Watchers” (algo como Guardiões, ou Vigias). Na Cabalá, esses são os Nelim, anjos que teriam descido à terra, se apaixonado pelas mulheres huma nas, e que teriam copulado com elas, criando a raça de gigantes. Segundo o Livro de Enoque, esses Nelim teriam se tornado demasiadamente humanos ao vi rem para a terra, perdendo contato com o Criador e com a luz espiritual que originalmente os guiava. Eles se “humanizaram”. Na verdade, segundo algumas lendas, eles caram piores do que humanos, fazendo coisas tão bárbaras que nem humanos fariam (estupros, incestos, roubo, morte). Isso teria ocasionado o dilúvio. Mas, para a Cabalá, como quem já a estudou sabe, nada é 100% bom ou 100% mau. Tudo tem o potencial de ser as duas coisas e, ao estar em um estado, o poder de mudar para outro (o que se chama teshuvá). No lme, esses gigantes de pedra se redimem ajudando Noé e, nesse momento, ao morrerem, eles mudam de pele e voam de volta para os céus novamente, como luz, como anjos. Se havia dúvida de que esses Watchers seriam os Nelim, Aronofsky dá o nome de alguns deles: Samyaza, Magog e Ramil. Adivinhem! Todos Todos nomes tirados do Livro de Enoque, como anjos que passaram pelo proces so de humanização descrito acima.
Noé e Deus
Outro fato que causou revolta entre os espectadores foi o caráter mesquinho e malévolo de Noé e até do próprio próprio “Criador”, como Ele é chamado no lme. Acontece que para p ara a Cabalá, quando você fala de Deus, ou do Criador, você nunca está real mente falando Dele e de Sua essência, mas sim de uma manifestação Dele. 3
Por isso, em hebraico, existem diversos nomes que poderiam ser traduzidos como “Deus”, e, ao mesmo tempo, nenhum deles se refere à Deus mesmo. Temos Temos os termos Elohim, Iavé, Adonai, Adonai, Hashem etc, sendo todos eles referências a atributos divinos, mas não a Deus propriamente dito. Para a Cabalá, a verdadeira “divindade”, se é que se pode chamar assim, seria Ein Sof. Pois bem, o “Criador” que aparece no lme Noé seria Elohim na história bíblica, um Nome de Deus ligado ao julgamento e à severidade. Elohim é aquele Deus que nos aparece como baixo, arro gante, ciumento, exclusivista, violento e rasteiro. É o Deus que, na verdade, muita gente não gostaria de ter. Quando olhamos para a Bíblia sem nossas visões religiosas das coisas, se vemos Deus descrito como sendo esse Elohim, automaticamente paramos para pensar: “Mas, como? Isso pode ser Deus?! Onde estão o amor e a bondade?” Elohim é o atributo de Deus responsável por criar esse mundo físico, baixo e material, que pouco tem de espiritual e elevado. Esse é o Nome que exige exclusividade de culto e que ameaça matar quem não proceder dessa maneira. Esse também é o Nome que tenta manter Adão e Eva longe do verdadeiro conhecimento divino e que ameaça com a morte (mais uma vez) caso o fruto seja comido. Esse é o Nome que expulsa o homem do paraíso. Em outras palavras, no lme “Noé” todo a referência ao Criador é uma referência a Elohim e Noé, obviamente, atua como agente desse atributo divino. Noé fala em nome de Elohim e tem suas atitudes baseadas no julgamento e na severidade (a Será de Guevurá, pela Cabalá). No lme, Tubal-Caim e seu clã são maus e do mal, mas o próprio Noé também se mostra muito mau quando abandona a namorada de Ham e quase mata duas crianças recém-nascidas. Essas passagens mostram a ligação com o julgamento e a severidade que Noé tinha, por meio das visões recebidas de Elohim. Aliás, segundo a Cabalá, todos temos dentro de nós as forças de julgamento e de bondade, de severidade e de misericórdia. Todos podemos podemos nos conectar com o Nome Elohim, ou o seu oposto, El (a Será de Chéssed). Outro trecho do Zôhar, falando sobre como os seres humanos tem tanto o bom como o mau dentro de si, arma: “Dois seres [Adão e a serpente] tiveram relações com Eva e ela concebeu de ambos e deu à luz dois lhos. Cada um seguiu um dos progenitores masculinos e seus espíritos se separaram, um para um lado, lado, o outro para o outro, assim assim como, similarmente, similarmente, seus caráteres. caráteres. No lado de Caim estão os da espécie do mal; no de Abel, uma classe mais misericordiosa, mas não ainda totalmente benéca. Ambos são vinho bom misturado com vinho ruim”. No lme, então, então, todo mundo mundo está adorando adorando a Elohim, o Deus Deus que quer quer destruir a todos. todos. Tanto Tanto Tubal-Caim quanto Noé têm cenas idênticas, olhando para o céu e perguntando: “Por que não falas comigo?”. “O Criador” abandonou a todos porque tem a intenção de matar a todos.
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Muitas resenhas críticas estranharam a mudança de Noé, que, na arca, se torna um maníaco homicida querendo matar as duas netas recém-nascidas. Não há nada de estranho nisso. nisso. Na opinião opinião do diretor, Noé está está adorando adorando um atributo menor menor de Deus, o de um maníaco maníaco homi homi cida. Quanto mais Noé se torna el a esse “Deus”, mais Noé se torna homicida. Ele vai se transfor mando cada vez mais em “imagem do deus”, a mesma “imagem do deus” constantemente mencionamencionada (e encarnada) pelo vilão Tubal-Caim. E onde tudo isso quer nos levar? Ao desfecho do lme. Em sua visão original, Noé vê o dilúvio e ele mesmo está se afogando. Só os animais utuam na superfície, na segurança da arca. Não há nenhuma indicação de que Noé se salvará. Ele não sabe como explicar as coisas para a sua família: anal, ele está afundando enquanto os animais, “os ino centes”, se salvam. Parece que “O Criador”, que proporciona essa visão a Noé, quer que todos os seres humanos morram. Mas Noé decepciona “O Criador”. Ele não acaba com todas as vidas, do jeito que seu deus quer que ele faça. “Quando eu olhei para aquelas duas meninas, meu coração se encheu somente de amor”, diz ele. Agora Noé tem algo que “O Criador” não tem: amor amor.. E misericórdia. Noé se conectou com com o Nome El. Noé transcendeu seu lado lado negativo e maléco, e, portanto, portanto, transcendeu sua visão do mundo e da divindade. Noé transcendeu e superou aquela divindade ciumenta e homicida.
Conclusão
Há uma tonelada de imagens, citações e temas da Cabalá neste lme e eu não conseguiria citar todas elas neste único texto. Por exemplo, caram de fora meus comentários sobre a serpente e a pele que os personagens colocam no braço como lactérios (telin), cando iluminados... Eu não veria o lme de novo apenas para cavucar detalhadamente todas essas referências, até porque o lme lme é interessante interessante mas de de um mero ponto de vista vista cinematográco, cinematográco, achei a maior parte do lme chata. Diga-se de passagem, “Pi”, que mencionei anteriormente, é muito melhor melhor.. Aliás, “Life of Pi”, que falei para vocês não confundirem, é melhor ainda! O que posso dizer, tendo visto o lme apenas uma vez, é o seguinte: Darren Aronofsky produziu uma releitura da história de “Noé” sem embasamento algum na Bíblia. É uma releitura r eleitura totalmente cabalística, baseada em fontes apócrifas, no Midrash e no Zôhar. Zôhar. 5
De todos os líderes religiosos (cristãos ou judeus) que condenaram o lme por “não seguir a Bíblia”, me espanta que nenhum que eu conheça ou tenha visto tenha identicado uma subversão agrantemente cabalística ou apócrifa do relato bíblico. A maioria dos meus alunos me deixou muito feliz em vir me falar do lme como sendo total mente cabalístico. Isso me mostra que os olhos de alguns estão bem abertos para esse tipo de referên cia na cultura popular. Isso muito me alegra. Mas o fato de os líderes religiosos não terem percebido isso, na verdade, me preocupa um pou co. Com toda discussão a respeito do lme eu comecei a pensar no valor que estamos dando à Bíblia hoje (não que não tenhamos que dar) em detrimento de outras fontes de conhecimento tradicionais tão importantes quanto. Me preocupa um pouco o fato de ver que os líderes religiosos estão em uma “cegueira” na qual só importa um lme feito conforme a narrativa bíblica canônica, e um lme que se inspira em fontes cabalísticas milenares é tido com desprezo e logo jogado de escanteio. Se os espectadores em geral não perceberam as referências cabalísticas e não gostaram do lme, acho normal e, talvez, como eu disse, até foi algo planejado por Aronofsky. Aronofsky. Mas esperava, sim, uma reação muito diferente dos líderes religiosos: r eligiosos: como pregar um mundo de amor e de aceitação à diversidade se uma obra que não se baseia no cânone é tão atacada como se fosse o próprio demônio vivo encarnado na terra?
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