Silvério Ronguane
O Ã T A L P
Silvério Ronguane
NOÇÕES B Á SICAS, SICAS, PESSOA, E CONHECIMENTO
ÉTICA
ÍNDICE
Capítulo primeiro: Noções Básicas 1. Que é isto, a Filosofia? 1.1. Definição etimológica da Filosofia. 1.2. Onde e como começou a Filosofia? 1.3. Definições célebres da Filosofia 1.4. As tarefas da Filosofia 1.5. O método da Filosofia 2. Disciplinas da Filosofia
2.1. Cosmologia 2.2. Ética 2.3. Política 2.4. Teoria de Conhecimento e Lógica 2.5. Epistemologia 2.6. Antropologia 2.7. Teologia Racional e Metafísica 2.8. Ontologia 2.9. Estética ou Filosofia da Arte 2.10. Filosofia da linguagem e a Hermenêutica 2.11. Filosofia da Religião 2.12. História da Filosofia 3. Força e fraqueza da Filosofia
Capítulo Segundo: Teoria de conhecimento 1. Introdução 2. A consciência como ponto de partida da Análise do conhecimento 3. A fenomenologia do Acto de conhecer
3.1 Papel do Sujeito e do objecto no acto de conhecer 3.2. Modos de conhecimento humano 3.2.1. Conhecimento Sensitivo 3.2. 2. Conhecimento Racional 3.2.3. Conclusão 4. Certeza e Verdade 4.1.Racionalismo 4.2. Empirismo 4.2.Cepticismo e Dogmatismo 5. Como é que surge o conhecimento no ser humano 5.1. Origem Filogenética do Sujeito cognoscente 5.2. Origem Ontegenética do Sujeito cognoscente 6. Conhecimento Científico 6.1. Conhecimento Científico segundo Kant 6.2. Karl Popper e método científico 6.3. Thomas Kunh e o Conhecimento Científico 6.3.1. Características da Ciência Normal
6.3.2. Conclusão
Capítulo Terceiro: A Pessoa Humana, Ser Individual 1. Introdução: Dimensões e paradoxos 2. Quem sou eu? 2.1. A definição do ser humano a partir da consciência do eu 2.1.1. A dupla face do eu 2.1.2. A insuficiência do eu para definir o ser humano 2.2. O novo conceito do ser humano 3. O homem relacional 3.1 O tu antes do eu 3.2 A revelação do outro 3.3 Ser com os demais 4.1. Formas de relação interpessoa l
4.2. O Amor
4. Amor e Identidade Humana 4.2.1. As três formas de amor 4.2.2 O amor como virtude e causa da virtude 4.3 Ecologia, amor amor da natureza 5. Justiça e Natureza Humana 5.1 A virtude das virtudes 5.2 Justiça como amor ao Bem
Capítulo Quarto: Ética Social 1. Vida comunitária e relações sociais
1.1. Amizade cívica e justiça social 1.2. O Princípio de Subsidiariedade 1.3. O Princípio de Solidariedade 1.4. O Princípio do Primado do Bem Comum 2. A Liberdade 2.1.Tipos de Liberdade 2.2. Liberdade Vista pelos filósofos 3. A Moralidade 3.1 Introdução 3.2 Que norma moral é esta? 3.3 As leis naturais 3.4 As leis leis positivas 3.5 Moralidade formal e moralidade material. 3.6 Mérito e Demérito (Sanção)
Capítulo Quinto: Matrimónio e Família 1. Fenómenos universais 2. Elementos fundamentais
2.1. Os que se unem (os (os nubentes ou cônjuges ou ou esponsais) 2.2. Os que nascem 2.3. A sociedade 3. Vida e ética (Bioética) na Família 3.1. O aborto A. Definição, espécies B. Questões éticas 3.2. Esterilidade 3.2.1. Combate a esterilidade 3.2.2. Problemas éticos na luta contra a esterilidade
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Capítulo primeiro: Noções Básicas
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1. Que é isto, a Filosofia? 1.1. Definição etimológica da Filosofia. Definir etimologicamente uma palavra é procurar-lhe o significado, através através da sua origem (étimo – raiz de uma palavra, logos – palavra, discurso, conhecimento). É conhecer uma palavra, através da sua raiz. Neste nosso caso concreto, será, pois, procurar saber o que significa a palavra
filosofia. A palavra filosofia é grega, e deriva da junção de duas : filos + sofia (
s+
. Filos significa amigo, e sofia é sabedoria. sabedoria. Logo, Filosofia é amor à sabedoria. De certeza que já ouviste falar de amigo da enxada (o que gosta de cultivar a terra), de amigo do mar (o (o que gosta de navegar), de amigo do trabalho (o que gosta do trabalho). É isso mesmo. Na antiga Grécia, falava-se, por exemplo, do filarguros ou o amigo da prata, do filótimos ou o amigo da honra , do filánthropos ou o amigo dos homens. Aliás, ainda hoje, nós usamos esse termo filantropo, para indicar as pessoas dedicadas à causa humana. E, respectivamente, filantropia, que significa amor pela humanidade.
1.2. Onde e como começou a Filosofia? Agora, que já sabes o significado originário da palavra filosofia, é tempo de procurar compreender o que queriam dizer os antigos, quando diziam que alguém era amigo da sabedoria, ou filósofo. E temos aqui um dado muito interessante: os antigos começaram a falar de filósofos, antes de falarem de filosofia. Daí que, ao longo da história, o que venha a ser filosofia depende e dependeu sempre muito dos filósofos em causa. Mas disto falaremos, mais adiante, com mais detalhe. Para já, basta ficares a saber que a Filosofia nasceu na Grécia. Portanto, com os gregos.
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A tradição filosófica já nos acostumou a indicar os nomes de Tales,
Anaximandro e Anaximenes como os três primeiros filósofos, que a humanidade conheceu. Todos eles três viveram na cidade jónica de Mileto, na Grécia. Daí que também se costumem chamar os filósofos jónicos. E de que falavam estes três homens, para merecerem o nome de filósofos? Falavam da origem do mundo, da sua composição, do seu ordenamento, e de muitos outros fenómenos naturais. Por isso mesmo, a filosofia de Tales, Anaximandro e Anaximenes é também designada como naturalismo. E a eles chamaram-lhes os filósofos naturalistas. Exactamente, por gostarem tanto de falar da natureza. E aqui é que está a sua originalidade. Pela primeira vez, na história, alguém ousava falar da natureza, não como de algo gerado ou criado por algum deus, mas sim como de algo com uma sua dinâmica própria, de algo que se podia explicar, sem se ter de recorrer ao sobrenatural. Quer dizer: com estes 3 filósofos jónicos, as grandes figuras das forças primordiais, dos agentes sobrenaturais, de cujas aventuras, segundo a crença dos antigos, o mundo teria emergido, deixaram de ser necessárias, para se poder explicar o aparecimento do mundo e o estabelecimento da ordem natural e dos homens. Com Tales, Anaximandro e Anaximenes, o mundo físico passou a bastar-se a si próprio, e a ser suficiente para para se auto-explicar. Foram eles os primeiros a afirmar que, na natureza, nada existe que não seja natureza, physis. Ensinaram ainda que os processos, pelos quais a natureza apareceu, e se diversificou e se organizou, são perfeitamente acessíveis à inteligência humana. E que, portanto, não era preciso recorrer à religião e aos mitos, para se perceberem os fenómenos naturais. Para os nossos três filósofos jónicos, a natureza não actuou, na origem, de forma diferente daquela com que actua ainda hoje. Para percebermos o alcance desta nova perspectiva, é preciso termos em conta que, na antiguidade, os fenómenos humanos e naturais quotidianos eram explicados através dos actos exemplares executados pelos deuses, nas origens. Por exemplo, se havia água, era porque havia também os espíritos das fontes, e, se chovia, era pelo 4
favorecimento de alguma divindade. divindade. E o mesmo se dizia dos reis: o rei representava um deus ou espírito superior. Isto significa que os homens não eram livres, e recebiam tudo dos deuses, a quem, por isso, deviam submissão, e de quem recebiam as explicações e razões de todas as coisas. Tales, Anaximandro e Anaxímenes não pretendiam afirmar ou negar a existência dos espíritos e deuses. Nem pensavam em discutir as razões do culto e a veracidade das crenças. O que eles quiseram foi mostrar que é possível explicarmos muitos fenómenos naturais, sem recorrermos ao mundo da magia, da religião e da superstição. Este dado é muito importante, já que nos mostra que a primeira Filosofia surgiu na continuação do mito e da religião, e não em rotura com eles. Os primeiros filósofos procuravam explicar o mesmo tipo de fenómenos que os próprios teólogos: os fenómenos da ordem e do Universo.
Em que se distinguiram, então, esses primeiros filósofos Jónios, dos teólogos, dos profetas, dos magos e outros especialistas do além? além? Para eles, não é o que aconteceu nas origens que há de vir agora iluminar o quotidiano. Ou seja, não é o passado que vem explicar-nos o presente. Mas é, antes, o nosso actual quotidiano que nos torna inteligível o que aconteceu nas origens, fornecendo-nos modelos para a compreensão da génese e da regulação do mundo. Assim, eles alertaram-nos para o facto de que os mitos eram criados para se explicar o presente. E que, portanto, era o passado que estava ao serviço do presente, e não o presente ao serviço do passado. As histórias que os magos e sacerdotes contavam, sobre as origens e as razões da ordem, serviam para justificar e manter as práticas e normas actuais ou do presente. Vejamos o que diz, a este respeito, um destacado filósofo da actualidade: A primeira filosofia está mais próxima de uma construção mítica do que de uma teoria científica. A física jónica não tem nada em comum, nem na sua inspiração nem nos seus métodos, com aquilo a que chamámos ciência, nomeadamente ignora tudo sobre a experimentação. Também não é fruto de uma reflexão ingénua e espontânea da razão sobre a natureza. Ela transpõe, sob uma forma laicizada e num vocabulário mais abstracto, a concepção do mundo elaborada pela religião.
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As cosmologias retomam e prolongam os temas essenciais dos mitos cosmogónicos. Dão uma resposta ao mesmo tipo de questão. Não investigam, tal como a ciência, as leis da natureza; interrogam-se, tal como o mito, como foi estabelecida a ordem, como pode o cosmos emergir do caos. Os Milésios vão buscar aos mitos de génese não só uma imagem do universo mas ainda todo um material conceptual e esquemas explicativos: por trás dos elementos da phisis (natureza) perfilam-se antigas divindades da mitologia. Convertendo-se em natureza, os elementos perderam o aspecto de deuses individualizados mas continuam a ser forças activas e animadas, ainda sentidas como divinas. Por muito importante que seja esta diferença entre o físico e o teólogo, a organização geral do seu pensamento continua a ser a mesma. Ambos situam na origem um estado de indefinição onde ainda nada aparece. Jean-Pierre Vernant
Portanto, a Filosofia situa-se entre a ciência e a teologia. Por um lado, ela precedeu a ciência, ao afirmar que o homem é capaz de explicar os fenómenos do mundo natural e humano. Por outro, continuou, como a teologia, a se interrogar, sobre a totalidade da vida. A Filosofia, por um lado, afirma a autonomia do homem, enquanto ser racional, capaz de pensar e de resolver os seus problemas, sem recorrer à religião, à magia, à superstição; e isso é análogo ao que caracteriza a ciência. Mas, por outro lado, a Filosofia é, por excelência, o reino da interrogação, da reflexão, da compreensão, da busca do sentido e do porquê do mundo, do homem e da mulher; e isso é análogo ao que caracteriza o religioso, o mago, e o especialista do sobrenatural. Atentemos, de novo, no testemunho de Jean-Pierre Vernant: Todavia, apesar destas analogias e destas reminiscências, não há verdadeiramente continuidade entre o mito e a filosofia. O filósofo não se contenta em repetir em termos de physis aquilo que o teólogo havia exprimido em termos de poder divino. À mudança mu dança de registo, à utilização de um vocabulário profano, corresponde uma nova atitude mental, um clima intelectual diferente. Pela primeira vez, com os Milésios, a origem e a ordem do mundo adquirem a forma de um problema explicitamente formulado, para o qual é necessário fornecer uma resposta sem mistério, à medida da inteligência humana, susceptível de ser exposta e debatida publicamente, perante o conjunto dos cidadãos, como as outras questões da vida corrente. Assim se afirma uma função de conhecimento liberta de toda a corrente.
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preocupação do carácter ritual. Os físicos (Jónios) ignoram, deliberadamente, o mundo da religião. A sua investigação já nada tem a ver com as formas do culto, a que o mito, apesar da sua relativa autonomia, permanecia sempre mais ou menos ligado. Dessacralização do saber, aparecimento de um tipo de pensamento exterior à religião, não são fenómenos isolados e incompreensíveis. Na sua forma, a filosofia liga-se directamente ao universo espiritual, que nos pareceu definir a ordem da cidade, e que se caracteriza precisamente por uma laicização e uma racionalização da vida social. Mas a dependência da filosofia, em relação às instituições da polis, está patente também no seu conteúdo. Se é certo que os Milésios se apoiaram no mito, eles não deixaram de transformar t ransformar profundamente a imagem do universo, integraram-na num quadro espacial e ordenaram-na de acordo com um modelo mais geométrico. Para construir as novas cosmologias, utilizaram os conceitos que o pensamento moral e político havia elaborado, projectaram no mundo da natureza aquela concepção da ordem e da lei, que, ao triunfar na cidade, havia transformado o mundo humano num cosmos.
É assim que a Filosofia há-de utilizar o diálogo e o debate público, em vez dos dogmas, sentenças e ditos impositivos dos teólogos e seus correligionários, dos magos e outros especialistas do além. Ela há-de valer-se da dialéctica, da imaginação e do génio dos homens, que acreditam, seriamente, que a solução dos problemas terrestres está nas mãos dos homens e das mulheres. Nesta perspectiva, a Filosofia é a materialização da fé em nós mesmos. Portanto, o surgimento da Filosofia coincide com a tomada de consciência do poder e liberdade por parte do homem. Os primeiros filósofos eram cidadãos, que proclamavam, diante dos seus concidadãos, que só o confronto de ideias, a busca incessante, sistemática e livre de soluções poderia melhorar a condição humana. O testemunho é ainda de Vernant: Aparecimento da Polis, nascimento da filosofia: entre estas duas ordens de fenómenos, as ligações são demasiado estreitas, para que o pensamento racional não surja, na sua origem, solidário das estruturas sociais e mentais características da sociedade grega. Assim inserida na história, a filosofia perde o carácter de revelação absoluta, que, por vezes, lhe foi atribuído, ao saudar, na jovem ciência dos Jónios, a razão intemporal , que viera encarnar no Tempo. E a escola de Mileto não assistiu ao nascimento da Razão; ela construiu uma Razão, uma 7
primeira forma de d e racionalidade. Esta racionalidade. Esta razão grega não é a razão experimental da ciência contemporânea, orientada para a exploração do meio físico, e cujos métodos, instrumentos teóricos e quadros mentais foram elaborados, durante os últimos séculos, num esforço árduo e constante, para conhecer e dominar a natureza.
Quando Aristóteles define o homem como um "animal político”,
sublinha aquilo que separa a Razão grega da dos nossos dias. Se, para ele, o homo sapiens é um homo politicus, é porque a própria Razão, na sua essência, é política. De facto, foi no plano político que, na Grécia, a Razão começou por se exprimir e constituir. Para os Gregos, a experiência social tornou-se objecto de uma reflexão política, porque, na cidade, ela se prestava a um debate público. O declínio do mito data do dia em que os primeiros Sábios puseram à discussão a ordem humana, procuraram defini-la em si mesma, tentaram traduzi-la em fórmulas acessíveis à compreensão humana e aplicar-lhe a lei do número e da medida. Assim se foi destacando e definindo um pensamento propriamente político, exterior á religião, com o seu vocabulário, os seus conceitos, os seus princípios e as suas posições teóricas. Este pensamento marcou profundamente a mentalidade do homem antigo; caracteriza uma civilização que, enquanto permaneceu de pé, sempre considerou a vida pública como o supra-sumo da actividade humana. Para o Grego, o homem é inseparável do cidadão; a phrónesis (sabedoria), a reflexão, é o privilégio dos homens livres, que exercem, correlativamente, a sua razão e os seus direitos cívicos. cívicos. Quando nasce, em Mileto, a filosofia está enraizada nesse pensamento político, cujas preocupações fundamentais vai traduzir, e ao qual vai buscar parte do seu vocabulário. É certo que, em breve, se tornará mais independente. Para resolver as dificuldades teóricas, as aporias, que o próprio desenvolvimento das suas posições suscitava, a filosofia teve de, gradualmente, forjar uma linguagem, elaborar os seus conceitos, criar uma lógica, construir a sua própria racionalidade. A razão grega formou-se, menos na relação do homem com as coisas, do que nas relações dos homens entre si. Desenvolveu-se, menos através das técnicas que actuam no mundo, do que através daquelas que exercem influência sobre outrem, e em que a linguagem é o instrumento comum: a arte do político, do orador, do mestre. A razão grega é aquela que, de forma positiva, reflectida e metódica, permite agir sobre os homens e não transformar a natureza. Tanto nas suas limitações como nas suas inovações, ela é filha da cidade. cidade.
Conclusão:
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A Filosofia nasce como uma busca de sentido, em seus vários matizes, tendo como meio a razão, tanto na sua dimensão discursiva (diálogo, debate e discurso), como na sua dimensão reflexiva (interrogação, admiração, questionamento, medo e terror).
1.3.Definições célebres da Filosofia Agora, que já sabes a origem etimológica da palavra Filosofia, e também como ela apareceu, chegou o momento de ensaiarmos alguma definição. Como deves calcular, calcular, não nos vai ser fácil fácil dizer exactamente o que seja a Filosofia. Mas também não é tarefa impossível. Alguns filósofos célebres tentaram defini-la, cada qual, de acordo com as suas próprias concepções. Como já deves ter percebido, ela pode ser vista e definida, a partir de muitas e diversificadas perspectivas. Pelo que o defini-la é já filosofar. Por exemplo, Aristóteles, esse grande filósofo da antiga Grécia, definiu-a nestes moldes: A Filosofia é o estudo das causas últimas de todas as coisas . Enquanto que Descartes, um filósofo francês da modernidade, define-a mais segundo o aspecto metodológico: a Filosofia ensina a raciocinar bem . E vem depois Hegel, um filósofo alemão contemporâneo, e retoma a definição grega, sublinhando o poder abarcador da Filosofia: Filosofia: a Filosofia é o saber absoluto. Mais importante, porém, é vermos como alguns filósofos dos nossos dias perceberam e definiram a Filosofia:
- O que encontramos é apenas isto: disposições heterogéneas do pensar. Dúvida e desespero de um lado, possessão cega de princípios improvados, de outro, opõem-se reciprocamente. Medo e angústia misturam-se com esperança e confiança. Muita vez transparece de longe que o pensar seja um modo de calcular e uma concepção racional livre de toda a disposição. Mas também a frieza do cálculo e a prosaica sobriedade do planejar são características de uma disponibilidade. E não apenas isto; mesmo a razão que se guarda de toda a influência das paixões está disposta, enquanto razão, à confiança na inteligibilidade lógico-matemática de seus princípios. Heidegger
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- A uns, a filosofia aparece como um meio homogéneo, isto é, nela nascem e morrem os pensamentos; nela se edificam os sistemas, para nela se desmoronarem. A outros, a filosofia aparece como uma certa atitude, que resulta de uma livre opção. Ainda a outros surge surge como um determinado determinado campo cultural. cultural. Quanto a nós, seja qual for o ponto de vista, a filosofia, essa sombra da ciência, essa eminência parda da humanidade, não é mais do que uma abstracção hipostasiada. De facto, “ há filosofias”. Ou melhor – porque nunca encontrareis ao mesmo tempo mais do que uma que esteja viva – em certas circunstâncias bem definidas, uma filosofia constitui-se para dar a sua expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos contemporâneos.. J. P. Sartre 1.4.As tarefas da Filosofia Já sabes, pois, que existem vários pontos de vista, vários modos de encarar a Filosofia. Agora, deves estar a perguntar-te a ti mesmo: mas então, afinal, para que serve mesmo a Filosofia? Pois a resposta é: a Filosofia serve para muita coisa. coisa . Um dos filósofos que mais se debruçou sobre essa mesma pergunta foi Immanuel Kant, filósofo alemão do século XVIII. Para ele, a tarefa da Filosofia é ensinar-nos o seguinte: -
Que posso eu saber?
-
Que devo eu fazer, isto é, como devo agir?
-
Que me é permitido esperar?
A primeira tarefa impele-nos para fora de nós mesmos, a fim de indagarmos as possibilidades e limites do conhecimento, da ciência, e, enfim, da acção do homem sobre o mundo. Neste sentido, a Filosofia leva-nos a fazer perguntas, perguntas, tais como: -
O homem conhece?
-
E como sabe que o seu conhecimento é verdadeiro? 10
-
E que significa realmente conhecer?
-
E que tipos de conhecimento existem?
-
E o que é que pode ser conhecido?
-
E por quê conhecer?
-
E para quê conhecer?
-
E para que serve o conhecimento?
-
E como conhecer? È esta, para Kant, a primeira tarefa da Filosofia. Nesta Nes ta óptica, podemos dizer que
o estudante da Filosofia se assemelha a um recém-nascido, que, deslumbrado, com o mundo, para o qual acaba de nascer, faz perguntas sobre tudo o que o rodeia. É, realmente, a primeira fase, a fase da descoberta, do espanto, mas também do receio e do medo. A segunda tarefa da Filosofia, segundo o mesmo Kant, é: olharmos para dentro de nós mesmos, e perguntarmo-nos -
quem somos nós?
-
donde viemos?
- porque viemos? -
e como devemos comportar-nos?
É a fase do homem adulto, que já se não interessa só com o mundo exterior, mas também com seu próprio mundo interior. É o homem adulto, que faz perguntas e procura respostas: -
Vale a pena viver?
-
Como posso ser feliz?
-
E os outros?
-
Porque está o homem na companhia co mpanhia de outros homens?
-
Como devo agir, perante o outro, e perante mim próprio?
-
E os animais, as plantas, as rochas, a natureza toda, porque existem?
-
Qual deve ser a relação do homem, com tudo isso, que o rodeia?
-
Estará o homem sozinho, ou existirão outros seres?
-
Deve, porventura, o homem explicações a outro, que não seja a ele próprio?
-
Existirá algo acima do homem?
-
E a morte? Porque morre o homem? 11
-
E a doença? Porque se sofre, no mundo?
-
Qual é o sentido da vida?
-
Qual é o fim último do homem? E tantas outras!
A terceira e última pergunta tem a ver com as duas primeiras, é a pergunta do homem amadurecido, a pergunta dos mais velhos: -
Há razões para sorrir, perante tudo isto?
-
A que pode aspirar o homem?
-
Existe futuro para a humanidade?
-
Existe uma esperança última, apesar de todas as vicissitudes?
-
Os desejos humanos serão, finalmente, satisfeitos, ou não passa tudo de uma grande ilusão?
-
E a morte? Haverá algo, além da vida terrena?
Para responder a tantas e tão diversificadas perguntas, a Filosofia precisa de um método próprio.
1.5.O método da Filosofia Para melhor apreciarmos o método da Filosofia, é preciso recordarmos o que ficou dito, lá atrás: a Filosofia não foi nem a primeira nem a última a responder àquelas perguntas todas. Antes dela, responderam os mitos, e depois dela, respondeu a ciência. O mito socorria-se socorria-se dos oráculos, oráculos, dos ditos, das sentenças, da adivinhação, adivinhação, supostamente transmitidos pelos deuses, pelos espíritos e outros entes superiores ao homem. A ideia era, pois, fundamentalmente, esta: o homem é incapaz de conhecer seja o que for, se apenas se valer das suas capacidades. Tudo quanto ele sabe foi-lhe comunicado do Além. Ora, a primeira característica do método da Filosofia vai ser a fé nas capacidades racionais do homem, para responder a todas as perguntas. O método da Filosofia é o da justificação lógico-racional e análise crítica. Ou seja, só s ó é filosoficamente válido o que
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passar, com sucesso, pelo crivo da crítica racional, ajustado aos parâmetros da razão e às categorias mentais dos seres humanos. A razão humana só aceita a evidência....... Por outro lado, a Filosofia prefere uma visão de conjunto ao conhecimento parcelar. Busca explicações, para todos os problemas humanos, desde o problema de Deus até ao das pedras. Já vês que o que distingue a Filosofia das outras formas do saber não é o seu objecto de estudo, mas é, antes, a forma como ela encara os vários objectos de conhecimento. Ao contrário da ciência, que não existe senão em referência a uma área restrita e concreta do conhecimento, a Filosofia pretende ser abarcante. Isto é: se eu disser de alguém que ele é cientista, esta minha afirmação pura e simplesmente soa à falso, e enuncia uma certa incompletude. Pois se alguém é cientista só o pode ser, determinadamente, em algum sector ou ramo. Terei de especificar em que área é que ele é cientista. Será, por exemplo, um biólogo, ou um sociólogo, ou um físico, ou um geógrafo, ou um outro especialista. Ao passo que, se eu chamar filósofo a alguém, isso já é, por si mesmo, suficiente. suficiente. Nota importante: é próprio do filósofo duvidar, mas sobretudo, é próprio dele procurar novas soluções. Desta feita, para além do cálculo e da análise racional, a imaginação, a arte, a dissidência, são atitudes filosóficas de inestimável valor. É neste sentido que a Filosofia se afirma como companheira e aliada do homem livre, que se interroga, e questiona os seus concidadãos e todas as realidades. A Filosofia é amiga dos homens insatisfeitos, que buscam sempre o melhor; dos inconformados, dos renitentes, dos proscritos e loucos. Ela é também companheira dos grandes inventores sociais e técnicos, que procuram novas formas de estar na vida e de agir. Ao mesmo tempo, ela habita a alma dos cumpridores, dos dóceis, dos que gostam de aprender, com a experiência veiculada pelos velhos e emanada pela tradição e pelo senso comum, dos que, mais do que interrogar, pretendem aprender, encontrar formas de acção, crenças e convicções que dêem sentido à vida dos que querem ajustar as suas vidas às normas e aos costumes, dos que apreciam a sabedoria da força do grupo, da excelência das práticas costumeiras, das ideologias de vida, que sustentam as nações.
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Portanto, dúvida, por um lado, e crença, por outro, são dois pontos de partida para filosofar. E se, de um lado, encontramos filósofos, que julgam que a Filosofia se basta a si mesma, no sentido de que ela se justifica, pelo prazer e gosto, que o convívio com as ideias oferece, de outro lado, perfilam-se os que defendem que a Filosofia só se justifica pelos seus propósitos, no âmbito da acção, da resolução de problemas concretos. Para estes, a inquirição racional visa sempre um propósito racional . Filósofo não é só aquele que se deixa extasiar com a contemplação do mundo, com a harmonia das leis e beleza das ideias. Mas é também e, sobretudo, aquele que age ou pretende agir no mundo, transformando-o e melhorando as condições de habitabilidade, no globo terrestre.
2. Disciplinas da Filosofia 2.1. Cosmologia
Do ponto de vista histórico, já vimos que os primeiros filósofos eram naturalistas. Isto é, o seu objecto de estudo era o mundo, o universo, o cosmos. Daí que se tenha tornado comum ouvir dizer de Tales, Anaximandro e Anaxímenes que eram fisiólogos, naturalistas.. É verdade que a sua maior preocupação era a de saber como é que do caos naturalistas surgiu a ordem. Ou seja, porque é que o sol, a lua, as estrelas, os mares, os continentes, têm, cada qual, o seu lugar próprio, permitindo que o mundo seja uma espécie de moldura ordenada, onde cada ser, tanto inanimado como animado, tanto racional como irracional, conserva o seu lugar próprio, evitando o caos, a desordem. O tema da ordem foi, por isso, central, no seu pensamento. Seguiam, como vimos, uma tradição, que lhes vinha dos mitos. Foi, por assim dizer, o espanto, perante a harmonia universal, que incitou esses primeiros filósofos a buscarem respostas, a filosofarem. Um facto de extrema importância, para esses filósofos, e provavelmente também para ti. é que a ordem do universo encontra o seu correlato, na ordem das sociedades humanas, formando um contínuo, uma unidade admirável . Como foi possível aos homens criarem tais leis e tal mundo, em que o pobre é tão feliz como o rico, o néscio tão feliz como o sábio? É fácil de ver ( e isto será discutido, com mais pormenores, lá mais à frente) que, para esses primeiros filósofos, a natureza era uma amiga cheia de ensinamentos, e
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digna, por isso, de ser respeitada e acarinhada. O mundo é detentor de uma ordem, que o próprio homem deve respeitar. E, por isso, é reprovável qualquer agressão a essa harmonia, por desejos egoístas ou tecnológicos.
E é assim que a Cosmologia emerge, como a primeira disciplina da Filosofia . E, ontem como hoje, é fácil de perceber que a temática da origem do universo e do homem seja uma disciplina atractiva, e que as suas contribuições se repercutam em todas as esferas da nossa vida. Que o mundo e o homem tenham sido criados por Deus ou não, diz das nossas capacidades de conhecer, diz da nossa responsabilidade perante os outros, diz da razão de ser da organização política, diz também do nosso fim último, e dá sentido ou não à nossa vida. E é exactamente graças a esta amplitude que a Cosmologia vista no âmbito da Filosofia ultrapassa a cosmologia vista no âmbito estritamente científico. Por isto a ultrapassa e por isto se distingue dela. 2.2. Ética
Estas explicações totalizantes, que queriam compreender o mundo e o homem, a partir da sua origem, não tardaram a mostrar-se uma tarefa difícil, senão mesmo impossível. Não tardou, porém, que aparecessem outros filósofos, como Sócrates, cidadão de Atenas, capital da Grécia de então, a chamar a atenção e a dizer: se calhar, o verdadeiro saber ainda não é aquele que nos permite dominar os segredos da natureza e da organização política, mas tão somente aquele que nos permitir sermos melhores, perante nós próprios, e perante o conjunto dos cidadãos, que nos rodeiam . Nesta óptica, a Ética ou Moral Moral emergiu como a disciplina mais importante da Filosofia. Na verdade, a virtude, enquanto distintiva do sábio e interior ao ser humano, acabou por constituir o assunto filosófico mais importante, para Sócrates, um dos filósofos mais marcantes da história,. Pelo que, até hoje, a Moral, a Ética, ficou inscrita como uma disciplina fundamental da Filosofia . 2.3. Política
Mas seria Platão, com os seus Diálogos, a marcar o início da Filosofia, como o seu género favorito. A Platão, aliás, devemos até o conhecimento de quem era o próprio Sócrates, já que é Sócrates o herói principal dos diálogos platónicos. 15
Os primeiros filósofos, como ficou dito, não só acreditavam no diálogo, como meio para atingir o conhecimento, mas também, quando escreviam, faziam-no em forma de diálogo, como testemunham esses emocionantes diálogos, que a pena de Platão nos legou. Foi, pois, com Platão, que a Moral atingiu o seu estatuto político, ao ficar demonstrado que ela não é só algo interior ao ser humano, mas é também algo partilhado e vivido em comum com outros homens. homens . Assim, a Política Política aparece como uma Disciplina importante, talvez a mais importante da Filosofia. Posto que que ela nos leva a perguntar perguntar como devem ser as leis e convivências humanas, como podemos aumentar a justiça e extirpar a injustiça, como podem os homens viver pacificamente, evitando a guerra, como podem eles cooperar juntos, amarem-se uns aos outros, e juntarem as forças, para a consecução dos seus objectivos.. objectivos 2.4. Teoria do conhecimento e Lógica
Mas Platão viu também, e muito bem, que, mais do que o mundo exterior, das pedras, dos animais e de muitos outros seres, o que determina a nossa vida e conduta são as ideias, que temos ou deixamos de ter, sobre as coisas. Pelo que, o verdadeiro amante da sabedoria, o filósofo, deve, antes de tudo, dedicar-se ao mundo das ideias. i deias. Ora, indagar sobre as ideias é procurar a origem do conhecimento. Neste sentido, a Filosofia é Teoria do Conhecimento. Conhecimento. É perguntar como é que o homem pode conhecer, e considerar válido esse conhecimento. É perguntar o que é que é mais importante, no acto de conhecer: se é o ser que é conhecido, ou se é o ser que conhece. Nesta óptica, a teoria do conhecimento é conhecimento é Cognoseologia, e a Lógica é Lógica é parte dela. Ainda que a Lógica, Lógica, dada a sua complexidade e importância, importância, no âmbito, por exemplo, da oratória, do discurso, no meio político, por excelência, e no âmbito da matemática ( e, por isso, da técnica), se constitua como uma disciplina autónoma e independente.. independente
2.5. Epistemologia Mas podemos também voltar a nossa atenção, não já para o acto concreto de conhecer, mas antes para o próprio sistema de saber, que, no mundo de hoje, é
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designado por ciência. Pois, ao dizermos que algo está provado cientificamente, estamos a dizer que é verdadeiro. Estudar o conhecimento, enquanto ciência, é fazer Epistemologia. Temos o direito de distinguir e separar o verdadeiro do falso. Isto é de extrema importância, nas nossas vidas. Sabemos que a possibilidade da ciência conduz ao desenvolvimento tecnológico. Sabemos que é para a melhoria das nossas condições de vida que o conhecimento científico tem, entre nós, uma importância especial. Daí que a Epistemologia seja Epistemologia seja uma das disciplinas mais importantes da Filosofia. A Ciência, enquanto nos dá a possibilidade de agir sobre as coisas, é um meio importante para a Política, já que a acção sobre as coisas tem uma influência capital na acção sobre os outros homens. E isso é o que constitui a acção política. Nem é preciso recordar que, na Política, triunfa quem conseguir mais dinheiro, quem condicionar o comportamento das pessoas que o rodeiam, e as levar a satisfazerem as suas vontades. Recorde-se que o domínio da ciência e da técnica condicionou e condiciona o destino dos povos. Só para dar algum exemplo, foi por causa de um deficiente desenvolvimento científico que os povos de África foram dominados pelos europeus. E, ainda hoje, é o domínio na área económica e bélica que decide quem são os povos que mandam no mundo. . 2.6. Antropologia
Mas ainda não é tudo. O lugar do homem no mundo é também, por óbvias razões, uma questão de não menor importância. A esta Disciplina chamamos-lhe Antropologia, Antropologia , de antropos, que, em grego, significa homem, pessoa humana, tanto o homem como a mulher. A Antropologia Antropologia trata trata de saber quem é o Homem enquanto Homem . 2.7. Teologia Racional e Metafísica
Para os que acreditam em Deus (e, pelo menos até hoje, são a maioria, no globo terrestre), a Filosofia não podia deixar de discutir sobre Deus. E, ao fazê-lo, cria uma Disciplina específica, a que se chama Teologia. Teologia .
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A Teologia, Teologia, porém, enquanto reflexão sobre um ser superior e externo a este mundo, postula a curiosidade sobre um outro mundo, que se situa para além da physis, ou da física, ou da natureza. A esse novo tipo de conhecimento chamamos-lhe Metafísica. Metafísica . Ou seja, a reflexão sobre quanto se situa para além ( metá) do reino da natureza ( physis), do mundo sensível, deste mundo que captamos com os nossos cinco sentidos . 2.8.
Ontologia
Mas a Metafísica Metafísica não poderia ficar reduzida apenas ao mundo dos deuses e espíritos superiores. Tem que ser também o reconhecimento de que o mundo é e existe; em contraposição à não existência e ao nada. Ora, se todas as coisas são e existem, é lógico que a Filosofia comece por se interrogar sobre o que será isto de ser , o que será isto de existir . Para tratar desta questão, que, à primeira vista, até poderia parecer-nos estranha, a Filosofia criou, logo desde o princípio, uma disciplina que se chama Ontologia, Ontologia, e e cujo objecto de estudo é o ser enquanto ser. 2.9. Estética ou Filosofia da Arte Arte
O belo, nas suas várias expressões, desde o artístico até ao dos simples tablóides publicitários, está hoje, nas nossas vidas, de uma forma quase, diríamos mesmo, omnipresente. Uma nova Disciplina tende, pois, a ganhar espaço, nos meandros filosóficos. O seu objectivo é, exactamente, o de se ocupar do belo, da Beleza. Referimo-nos à Estética (não confundir com etiqueta). Pode também designar-se como Filosofia da Estética Arte.. Arte 2.10. Filosofia da linguagem e Hermenêutica
Muitas outras Disciplinas se podem ainda aduzir, relativamente à própria forma de filosofar. É o caso da Filosofia da Linguagem, Linguagem , uma vez que a Filosofia nos remete para o discurso, para a linguagem.
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É também o caso da d a Hermenêutica, Hermenêutica, já que a existência de diversos textos de filosofia vai postular uma forma específica de leitura e interpretação. A Hermenêutica será, pois, a Disciplina que se ocupa do significado e da linguagem da Filosofia . 2.11. Filosofia da Religião
Podemos ainda falar da Filosofia da Religião. Esta indaga, não directamente sobre Deus, mas sim sobre a Religião, de cuja Esta existência, enquanto actividade humana verificável, ninguém duvida . 2.12. História da Filosofia
E, por último, podemos estudar a Filosofia, nas suas etapas, através do tempo. A esta Disciplina chamamos História da Filosofia. Filosofia. Nela, se estudam os filósofos e os respectivos sistemas de pensamento, que que foram aparecendo e afirmando-se, ao longo dos séculos. Poderiam ainda criar-se ou denominar-se outras disciplinas da Filosofia, que aqui não ficaram referidas. Concluindo, o importante é que tenhas ficado com alguma ideia sobre cada uma destas Disciplinas da Filosofia: A Ontologia, a Metafísica, a Teologia, a Filosofia da Religião, a Filosofia Política ou Social, a Ética, a Antropologia, a Teoria do conhecimento, a Lógica, a Filosofia da Linguagem, a Estética, a Hermenêutica e a História da Filosofia. Poderás também perceber facilmente que a Ontologia, a Metafísica, a Teologia e a Filosofia da Religião transcendem o mundo material e sensível, este nosso mundo visível, audível, captável pelo nosso tacto, olfacto, sabor. Tratam, pois, de realidades
supra-sensíveis e espirituais. Ao passo que a Filosofia Política e/ou social encara o homem enquanto membro de um grupo social. E a Antropologia Antropologia trata do Homem enquanto Homem. E a Teoria do Conhecimento, Conhecimento , e a Lógica, e a Filosofia da Linguagem, e a Hermenêutica, Hermenêutica , estas dedicam-se a indagar sobre a própria forma do conhecimento filosófico. Quanto à História, essa prescinde das Disciplinas e ocupa-se da Filosofia como ela foi sendo feita, através dos tempos.
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3. Força e fraqueza da Filosofia Filosofia Como se vê, enquanto, na Ciência, as várias áreas do saber se especializam e autonomizam, só a Filosofia dá aos seus cultores a possibilidade de terem uma visão do conjunto. O mesmo filósofo pode dedicar-se à Filosofia da Ciência, como epistemólogo epistemólogo,, à Teologia Racional, como teólogo teólogo,, à Política, como filósofo político filósofo político,, etc. Além disso, ainda ao contrário da Ciência, cujo objectivo é produzir resultados, dentro da área de uma especialidade, a Filosofia pretende ter sobre essas mesmas realidades um olhar crítico de conjunto. Por exemplo, no caso das conquistas da Medicina ou da Biologia, como a clonagem, ou a interrupção da gravidez, ou a implantação de órgãos, ou a reprodução artificial, a Filosofia pode ajudar a colocar a essas práticas limites humanamente aceitáveis. O mesmo se pode dizer da Física, que precisa da Filosofia, para compreender os dilemas, que o uso dos conhecimentos atómicos e nucleares implica, bem como as fronteiras, que ela coloca, entre o mundo material e o mundo espiritual. Isto, só para citar alguns exemplos. Portanto, ao contrário das Ciências, que são regionalizadas e estão confinadas aos limites, que lhes impõem o seu objecto e o seu método específico, a Filosofia pretende colaborar com as outras formas do saber, e fornecer-lhes um são sentido crítico. A inter-disciplinaridade e o diálogo com outras formas do saber são, portanto, inerentes à Filosofia. Por outro lado, porém, a Filosofia, como qualquer actividade humana, é limitada, e, vezes sem conta, tem-se mostrado insuficiente, para explicar e compreender o drama humano. E daí que o cepticismo cepticismo,, ou seja, a crença de que o conhecimento é impossível, tenha sempre acompanhado a Filosofia, ao longo dos tempos . O cepticismo cepticismo tem assumido, ao longo da História, vários matizes. Desde a negação pura e simples da possibilidade do saber, até à forma dissimulada do relativismo e do dogmatismo absoluto . O relativismo defende que cada homem tem t em a sua própria verdade.
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O dogmatismo absoluto, pelo contrário, contrário, acha que existem verdades únicas, reveladas por este ou aquele demiurgo. E que tais verdades se situam para além de qualquer crítica ou justificação lógica racional. É assim que, ao lado de filosofias nihilistas, nihilistas, cépticas e anárquicas, anárquicas , assistimos ao desenvolvimento de ideologias e credos avessos a qualquer tipo de racionalidade lógica. Estas ideologias, às vezes, tomam a forma de eclectismo. eclectismo. O eclectismo eclectismo é a crença de que todos os sistemas e perspectivas filosóficas podem fundir-se e formar um sistema único e integrado, através da recolha e selecção de quanto existe de verdadeiro, em cada um dos sistemas ou em cada uma das perspectivas. É uma forma de pensar, que tende a fundir perspectivas e ideias de certa maneira até contraditórias, e que implica a existência de um filósofo supremo, com o direito de ajuizar e corrigir todos os sistemas de pensamento, e de discernir, ele só, entre o verdadeiro e o falso, dentro de toda uma história do saber. s aber. Como se nota, o cepticismo e o eclectismo eclectismo são atitudes filosóficas não muito adequadas para a Filosofia. E já que estamos prestes a terminar o primeiro capítulo do nosso estudo, o capítulo introdutório, convém que comeces a familiarizar-te com o nome, e os lugares e os acontecimentos, que ajudaram a escrever a História da Filosofia.
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Capítulo Segundo: Teoria de
Conhecimento
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1. Introdução Lembra-se de que dissemos, no princípio da nossa disciplina, que a Filosofia é amor a sabedoria? Ora, se assim é, então, o capítulo que trata do saber, do conhecimento é muito importante. Pois, este capítulo vai nos ajudar a perceber o que é isso de saber, de conhecer? Como se processa o conhecimento? Como temos garantia de que o que sabemos é verdadeiro? E sobretudo, isso vai nos ajudar a responder a pergunta porquê e para quê conhecer? Numa primeira tentativa de resposta e a começar pela última questão que colocámos, parece óbvio que é graças ao conhecimento que as sociedades evoluíram até chegar onde estão hoje. O que significa que os povos que desprezam o conhecimento normalmente vivem acorrentados à ignorância e a tudo o que lhe é familiar, nomeadamente, à miséria, fome, injustiça, violência e demais desgraças . Ao contrário, as sociedades governadas pela sabedoria não só experimentam épocas de saciedade, glória e fausto, como as suas gentes desenvolvem processos políticos de justiça, igualdade, respeito e cooperação mútua que as torna notáveis no meio de outros povos. Aliás, o mesmo se diz do ignorante em relação ao sábio. Embora o sábio nem sempre é mais feliz e mais próspero do que o ignorante, é consensual que os que mais se evidenciam nas letras e no conhecimento tem mais hipótese de viver melhor do que o contrário. Portanto, podemos dizer sem medo que que o conhecimento é tanto para os povos, como para os indivíduos particulares a chave do sucesso e vida boa. E entende-se aqui por conhecimento tanto aquele que nos franqueia as portas dos segredos da natureza, como do ser humano e das das sociedades que cria. Sábio aqui é, tanto o pastor, o padre, o especialista do oculto, da tradição, o psicólogo, o mais velho, o filósofo, como o médico, o biólogo, o físico, o engenheiro civil, mecânico, informático, o general, o camponês, o operário, a mãe, o pai, etc. Assim sendo, fica claro que numa primeira aproximação, a sabedoria ou conhecimento não são monopólio só dos letrados e instruídos. É característica de todo o homem. Não homem. Não existe homem ou mulher algum totalmente desprovido de conhecimento. Aliás, os próprios animais parecem também ser depositários de algum conhecimento. Por exemplo, sabem o que podem comer e o que não podem; sabem distinguir quando há perigo e fugir dele e animais existem até como os Chipanzé que aparentam alguma
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inteligência com um certo grau de desenvolvimento ou capacidade de armazenar conhecimentos invejável como se diz dos elefantes. Neste sentido, parece claro que a primeira tarefa que temos é distinguir o conhecimento em geral e o conhecimento humano.
2. A Consciência como Ponto de Partida da Análise do Conhecimento Humano A característica mais importante do conhecimento humano é a consciência. Isto é, conhecer sem ter consciência disso, sem se saber, sem se cair na conta de que se conhece, como acontece com as crianças e loucos, não é conhecer. É exactamente isto que acontece com os animais e as máquinas, computadores e rôbotes. Eles sabem sem saber. Só conhecemos verdadeiramente na medida em que temos consciência disso. saber. Assim, todo o conhecimento humano é consciência e toda a consciência é, de certa maneira, conhecimento. Significa isto que a consciência é transparente a si mesma. Mas isto levanta um problema muito grande: é que a mesma consciência que conhece o mundo exterior, que capta a realidade que me circunda e me é exterior, diferente de mim e não sujeita a mim; capta-me também a mim, como sujeito de desejos, apetites, instintos, capaz de escolher e responsável pelas próprias acções. Por isso, há que distinguir dois níveis fundamentais da consciência: o nível subjectivo e o nível objectivo. E ainda há que distinguir no nível subjectivo, a consciência psicológica e consciência ética. Nível Objectivo – a consciência capta o mundo exterior, circundante, diferente do sujeito e independente dele. È dele. È objectiva a consciência no sentido de que o mundo que capta não só é independente do sujeito, como também não sofre nenhuma alteração pelo facto de ser conhecido. É o nível que importa neste capítulo. Nível Subjectivo – a consciência capta-se a si própria e se reconhece como ela que está a operar quando conhece. Mais, ela reconhece como verdadeiro o que capta ou apreende; ela sabe ainda que ao captar o mundo exterior, fá-lo movido pelos seus apetites, desejos e pulsões. Ela não é indiferente, molda os dados e sujeita-os aos seus próprios interesses. Por exemplo, a vista quando vê, faz com que o sujeito experimente sentimentos de repulsa diante do feio ou de agradabilidade diante do belo; que o mesmo sujeito tenha certeza do que capta. Ou sente nojo, reprovação diante do mal e aprovação 24
diante do bem. A consciência conhece e julga, ou seja, conhece através de juízos, podendo ser de validade, estéticos ou éticos. Assim, a consciência tem duas funções: Função Apreensiva e Função Objectivante. Função Auto-apreensiva e Apreensão do Dado Experimental. Experimental. Na Na função autoapreensiva ou auto-consciente, a consciência capta-se a si mesma, torna-se transparente de si e para si. Ela capta-se (apreende-se) como corrente, como fluxo de actos conscientes. E, através destes actos, apreende-se como sendo o sujeito a quem tais actos pertencem. A apreensão do dado experimental, apreensão do que não é ela, é a Apreensão do não não-Eu. Toda a consciência é consciência de algo. Uma consciência sem objecto, não é consciência. Portanto, é consciência de si ou do outro, do não eu. Função Objectivante – Objectivante – a consciência ao mesmo tempo que manifesta uma certa passividade na recepção do dado, ela actua como “legisladora” do modo de receber o dado. O objecto é, deste modo, a síntese do passivamente recebido e da organização activa legislada pela consciência. A consciência não se limita a captar, ela forma, estrutura e organiza o dado. O dado é sujeito as categorias do sujeito . Por exemplo, as categorias do Espaço e do Tempo; sujeito as três dimensões da consciência: altura, cumprimento e largura.
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3. Fenomenologia do Acto de Conhecer Por fenomenologia do conhecimento entende-se a descrição do acto de conhecer tal como ele aparece. O primeiro aspecto a ressaltar aqui, é que o conhecimento é, sobretudo, relação sujeito-objecto. Isto é, para se dar um acto de conhecimento é preciso que haja um sujeito que conhece (sujeito ( sujeito cognoscente) cognoscente) e um objecto que é conhecido (objecto cognoscido).. Logo, conhecer é o que acontece quando um Eu (sujeito) apreende um cognoscido) objecto conhecido. Ou seja, o acto de conhecer é a apreensão por parte de um sujeito de um objecto. objecto. Por isso, para um acto de conhecimento é preciso que haja um sujeito cognoscente e um objecto cognoscido. O sujeito é um ser vivo, possuidor de uma consciência, e falando com propriedade, é homem ou mulher. O objecto é qualquer outro ser distinto do que está a conhecer. Embora seja verdade também que o sujeito pode ser objecto quanto se trata de auto-conhecimento, introspecção e auto-reflexão. O sujeito de conhecimento só o é, em função de um objecto e o objecto de conhecimento em função de um sujeito. A função do sujeito é apreender e a do objecto deixar-se apreender. O conhecimento é uma relação actividade. Actividade da parte do sujeito que conhece. Pois, dá-se num sujeito consciente de si, desperto para às coisas circundantes; surge como reacção a um excitante ( se, se considera o objecto que chega de fora). É actividade pela qual o mesmo Sujeito Humano não modifica em nada o ser físico da coisa que se conhece. Essa actividade apenas vai enriquecer e aperfeiçoar o sujeito cognoscente. Tal operação começa e termina dentro do sujeito. É por isso chamada chamada operação imanente, isto é, não transcende o sujeito. Mas atenção: Apreender o objecto não significa fazê-lo entrar no Sujeito. Apenas, reproduz nesse sujeito as determinações do Objecto, numa construção que terá um conteúdo idêntico ao do Objecto. Essa construção operada no conhecimento é a imagem (forma) do objecto. Assim, o objecto do conhecimento não é transformado, nem modificado pelo sujeito. Só o sujeito é que, de alguma maneira, é modificado pelo pelo objecto. Nasce no sujeito a consciência do objecto, a imagem do objecto com o seu
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conteúdo. Também é preciso acrescentar que a iniciativa de conhecer pertence inteiramente ao sujeito.
3.1. Papel do Sujeito e do Objecto no Acto de Conhecer Em primeiro lugar, é preciso dizer que tanto o sujeito como o objecto objecto preexistem ao acto de conhecer. Ou seja, já existiam, já eram seres constituídos antes de entrar no acto de conhecer onde se relacionam. Mais, tinha cada um a sua entidade, eram seres em si mesmos. O que significa que ambos têm a sua entidade própria. Por essa razão, nem o sujeito, nem o objecto se esgotam no acto de conhecer. Continuam a ser o que são depois deste acto de conhecimento. De um lado, temos um sujeito que apreende e capta e de outro, um objecto que que se deixa captar e apreender. Assim, apreender. Assim, o papel do sujeito é sair de si, invadir a esfera do objecto, captar os aspectos, características próprias (propriedades) de uma coisa ou objecto. Ao captar o objecto, o sujeito insere em si, o dado captado, integrando-o de acordo com as suas próprias categorias. Isto significa que o que é captado não é, necessariamente, a coisa em si, mas sim si m a coisa como é percebida, pensada, pelo sujeito. Neste sentido, diz-se que o sujeito objectiva, determina a coisa coisa.. Isto mostra como o sujeito é um sujeito determinante, aberto para o mundo e seu legislador. É porque o objecto está fora do âmbito do sujeito que este tem que ser captado mediante uma incursão do sujeito. Na verdade, mesmo depois de ser captado cognitivamente pelo sujeito, o objecto continua, fisicamente, fora do mesmo. O objecto está sempre em oposição ao sujeito reclamando a sua existência individual. No entanto, é o objecto que, pela sua presença distinta, estimula o sujeito e deixa patente as suas características e propriedades e se deixa determinar. Assim sendo, há quem atribua, no acto de conhecer, mais valor a coisa determinada, conhecida, conhecida, na medida em que sem ela, o sujeito não conhece, não apreende. E, sobretudo, sobretudo, porque é quase quase impossível o sujeito não reagir cognitivamente na presença do objecto. O objecto manifesta-se e exige ser apreendido . Outros porém, pensam o contrário. E dizem que é o sujeito que capta, que estrutura, organiza e determina o dado, o objecto. E estes atribuem mais valor ao sujeito. sujeito.
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Conforme se dê mais valor a um ou ou a outro elemento, teremos teremos duas atitudes de conhecimento, dois modos distintos de conhecer que geram duas grandes teorias sobre s obre o conhecimento humano.
3.2 Modos de Conhecimento Humano A questão que se coloca agora é seguinte: o que o homem capta (vê ou sente, por exemplo) são apenas coisas espaciais e temporais (materiais) privadas de um significado humano? Ou o que ele capta é o mundo organizado e organizável segundo as suas categorias racionais? Com efeito, se é verdade que a consciência não se move num ambiente de ideias puras, nem actua com imagens imagens filtradas da realidade na interioridade da sua consciência, consciência, também é verdade que não conhece senão nos limites das suas categorias racionais. Isto é, você mesmo não conhece nada que não seja tridimensional (que não tenha largura, nem comprimento, nem altura) de acordo com as categorias da razão humana. Nem nada entra na sua mente que não esteja no tempo e no espaço. É por isso que pensadores existem, como Platão, para quem o conhecimento é, essencialmente, obra do sujeito que capta e organiza o mundo. Para estes, a ideia, a razão,, é o motor do conhecimento, daí falar-se do idealismo, do racionalismo. razão racionalismo . Quase na mesma linha se situam aqueles que julgam que o conhecimento verdadeiramente humano se dá pela via do Entendimento Entendimento,, ou seja, do Intelecto. Intelecto. Estes, embora reconheçam que os dados do conhecimento seja colhidos pelos sentidos, pela experiência sensorial, o verdadeiro conhecimento só é possível graças as nossa categorias racionais. A diferença entre o idealismo idealismo e o intelectualismo, intelectualismo , entre os racionalistas racionalistas e os intelectualistas,, é que estes últimos (intelectualistas) intelectualistas (intelectualistas) reconhecem mais o valor dos objectos, no acto de conhecer, mesmo defendendo a primazia do sujeito, enquanto aqueles (idealismo (idealismo e racionalismo) racionalismo ) minimizam em demasia o papel do objecto no acto de conhecer. Porém, doutro lado, pensadores existem, como Aristóteles, que julgam que nada há na mente que não tenha entrado pelos sentidos (visuais, auditivos, olfactivos, gustativo, tactitivo). Ou seja, tudo o que entra na mente, entra através dos olhos, dos ouvidos, do olfacto, do gosto e do tacto. É o chamado conhecimento sensorial ou sensitivo. Para estes, o dado, o objecto é objecto é que estimula o sentido e como tal despoleta 28
todo o processo de conhecer. Por isso, maior atenção dão aos dados, aos factos empíricos, aos objectos materiais, daí falar-se de empirismo, de realismo. Não obstante, parece claro que, embora no conhecimento humano haja estas duas formas de conhecer, distintas, as duas formas estão intimamente ligadas e completam-se. São duas faces da mesma moeda.
3.1.1.
Conhecimento Sensitivo
Parece não haver uma dúvida razoável de que quando se capta um objecto de conhecimento é pelos sentidos que se capta. Sempre que há conhecimento algo ocorre nos sentido, num único ou em todos globalmente. O conhecimento sempre mexe com a nossa sensibilidade. Mesmo quando se imagina, os objectos imaginados são representados sujeitos às condições da nossa sensibilidade. E o que mais, é que a sensação (acto de conhecer pelos sentidos) está subordinada à vida orgânica, pois apreende as coisas concretamente como como estando numa relação com as suas exigências vitais. Tanto é assim que mesmo a mente encontra-se intimamente ligada ao cérebro. Dado que o conhecimento sensitivo está intimamente ligado ao carácter físico do homem, exterior a si, considera-se mais ligado aos objectos. Tanto é assim que os próprios sentidos agem por reacção aos estímulos materiais do mundo exterior ao homem. É comum referir-se aos seguintes estímulos: Estímulos mecânicos – mecânicos – Contacto, pressão – pressão – sentido: tacto. Estímulos físicos - luz, som, calor, electricidade – electricidade – sentido: visão e audição. Estímulos Químicos – Químicos – sucos, ácidos – ácidos – sentido: gosto, olfacto. olfacto . O Conhecimento sensitivo compreende também as seguintes faculdades: f aculdades: Imaginação que é a capacidade que o homem tem de representar um objecto, Imaginação concreto e singular. Implica também uma integração, uma recomposição, uma conservação e reprodução das imagens. A imaginação consiste imaginação consiste fundamentalmente em abstrair da presença real em e m que as coisas têm lugar, para voltar a combiná-las, livremente, noutro espaço. Por isso, ela joga com o espaço. Ela cria por isso como que um mundo irreal, fantasioso de uma forma criativa. Memória que Memória que diz da capacidade que o homem tem de evocar acontecimentos do passado e de os identificar como pertencendo ao passado. Ela joga com o tempo, traz à 29
lembrança. Revive os acontecimentos idos, retém e afasta. Pela memória o homem reencontra-se consigo mesmo, com a sua trajectória vital. Estimativa que Estimativa que põe em evidência o lado instintivo do homem, isto é, o seu lado animal. É a capacidade de apreender as espécies intencionais que não são percebidas pelos sentidos. Implica um juízo de escolha determinada pela própria natureza e sem deliberação racional. É uma espécie de inteligência animal já que funciona automaticamente, instintivamente. Têm basicamente duas funções:
conservação do indivíduo indivíduo buscando, por
exemplo, o alimento; fugindo do perigo; conservação da espécie que espécie que o leva à procura da satisfação sexual, enquanto torna possível a reprodução e reprodução da espécie. A estimativa olha pelo futuro biológico do animal.
3.1.2. Conhecimento Racionalista Diz-se conhecimento racionalista ou, na sua forma extremada, idealista quando se sobrevaloriza as estruturas que formam a inteligência (entendimento e razão) no processo de conhecimento. Existe duas formas de conhecimento racionalista: intuição e discurso. A intuição é uma espécie de visão directa pelo entendimento, enquanto que o conhecimento discursivo é uma sucessão de juízos, dependentes logicamente uns dos outros, a que se dá o nome de Raciocínio. Assim, chama-se inteligência a função intuitiva e razão, a função discursiva. Portanto, o conhecimento pela razão implica várias operações: 1ª Operação: simples apreensão, conceitualização, que consiste em compreender algo sem emitir nenhum juízo sobre ela. Exemplo: Homem, Deus, Mundo, etc. Trata-se aqui de relacionar um objecto com uma ideia, ou seja, de atribuir nomes aos seres. 2ª Operação: Juízo Juízo – consiste em afirmar ou negar uma relação entre duas coisas. Exemplo: o joão é uma criança. Trata-se aqui de relacionar, relacionar, por afirmação ou negação, duas ideias. 3ª Operação: Raciocínio Raciocínio – que consiste em concluir algo a partir do já conhecido: exemplo: havendo nuvens, há-de chover. Trata-se de retirar ideias novas, a partir das já existentes. É fácil de ver como o conhecimento racionalista explica a existência de conceitos universais, feitos a partir de objectos particulares, fornecidos pelo
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conhecimento sensitivo. Por exemplo, os sentidos captam este e aquele homem e o entendimento produz o conceito de humanidade, de homem no geral. O conhecimento sensitivo capta os seres e objectos isoladamente e o conhecimento racionalista relaciona-os ou separa-os. O conhecimento sensitivo dá-se conta dos objectos, o racionalista capta-os e usa-os para deduzir outros conhecimentos ou prevenir situações futuras. O conhecimento sensitivo aproxima o sujeito dos objectos, o racionalista, analisa-os, sintetisa-os. Mas a questão da diferença entre conhecimento sensitivo e racionalista é básica na filosofia e é tão importante que está na base das duas perspectivas filosóficas mais importantes, a saber: o racionalismo ou idealismo e o empirismo ou realismo . Para os idealistas, a começar por Platão, o primeiro grande idealista, só os conceitos universais é que existem verdadeiramente. Pois vejamos, a pergunta que Platão faz é esta: como é que formámos os conceitos abstractos e universais de justiça, beleza, bondade por exemplo? Pois, diz ele, o que os nossos olhos enxergam são actos de justiça ou pessoas justas; pessoas belas ou paisagens belas, mas a justiça em si, ou a beleza em si, escapa ao nosso olhar. Pois bem, actos justos e pessoas justas nascem e morrem; o que é justo hoje pode ser injusto amanhã, no entanto, a ideia de justiça permanece a mesma hoje e sempre. sempre . Donde conclui ele, os actos justos ou pessoas justas não passam de cópias ou sombras da verdadeira justiça sempeterna, s empeterna, imutável e sempre se mpre igual a si mesma. A prova é que a morte de um justo, ou o fim de um acto de justiça, não afecta nem por pouco, a justiça em si. Tanto é assim, que que se não houvesse a justiça em si, seria impossível medir a justeza dos actos e das pessoas, na medida em que nos faltaria um modelo, um referencial único, a partir dos quais seriam medidos os actos e as pessoas justas. Aliás, a nossa consciência é testemunha da unidade e imutabilidade da justiça na medida em que nos diz que mesmo aquelas acções ou pessoas que fingem serem justas, um dia serão desmascarados e, por fim, a justiça brilhará. Se a justiça dependesse dos actos particulares de justiça, ela seria múltipla e diversa. diversa . Mais, dependendo desses actos particulares que nascem e se situam no tempo e no espaço, a justiça seria deferente conforme o tempo e o espaço e até, conforme os indivíduos. Haveria a minha justiça, a sua justiça, a justiça de ontem e a justiça de hoje e assim, o conceito de justiça dependeria dos caprichos e desejos volúveis dos homens e mulheres. E o mesmo se diria da beleza, da bondade, da fraternidade, da liberdade, etc.
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Ora, isto é impossível rematam os idealistas. A nossa ideia da justiça, da bondade, da liberdade e outros conceitos universais é de que eles não mudam com o tempo, não se gastam, não murcham nem morrem, mas sim de que eles permanecem iguais a si mesmos, de que permanecem inalteráveis, mesmo se na sua manifestação concreta sejam divergentes e múltiplos. Ao contrário, os empiristas são de opinião de que os conceitos universais são retirados dos conceitos concretos e particulares. Pois, argumentam eles, ninguém conhece nem sabe o que é a justiça, senão através da visão de actos justos e pessoas justiças. Ninguém justiças. Ninguém saberá o que é a beleza, se não contemplar coisas belas. É das belezas particulares que subimos para as belezas universais e é através do convívio com pessoas justas, com exemplos de justiça que nos tornámos justos e melhores. Sem o hábito de praticar acções justas, sem pessoas justas nem Estados e sociedades justas, o conceito de justiça é um conceito vazio e sem conteúdo. conteúdo. Portanto, concluem os empiristas, o universal é uma pura abstracção do particular. O universal não existe em si, senão como generalização do particular. Os únicos conceitos verdadeiramente existentes são os conceitos particulares.
3.2.3. Intelectualismo: Empirico-Racionalismo O conhecimento sensitivo e o conhecimento conhecimento racionalista formam um único conhecimento, o conhecimento intelectivo. Isto significa que no homem não existem ideias puras, sem conteúdo material. O entendimento sem ser fecundado pelas ideias fornecidas pela sensibilidade não seria capaz de conhecer . conhecer . Para haver conhecimento humano é imprescindível a experiência sensorial. Também se não existisse o entendimento, os sentidos por si só, seriam incapazes de criar conceitos universais, já que quando captam os objectos, estes se apresentam de forma isolada. Portanto, conhecer é abstrair, abstrair, mas é abstrair a partir dos dados fornecidos fornecidos pela natureza, de um objecto particular concreto captado pelos sentidos, deixando de lado os caracteres específicos que o indivíduo reporta, para criar uma ideia abstracta, uma imagem que representa esse mesmo objecto. Tanto a experiência como a Razão são condição necessária de formação das ideias e dos princípios racionais. O que significa que tanto um como outro, tomados separadamente não podem podem fundar o conhecimento conhecimento verdadeiro.
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Para esta corrente, a aquisição dos conhecimentos supõe a intervenção dum poder distinto dos sentidos e da consciência, que é a Razão. Assim, a lei do sujeito pensante é preciso conjugar a lei do objecto pensado. Quer dizer, o conhecimento é possível porque o entendimento volta-se para os dados da fantasia (imaginação), que emanam do conhecimento sensível. A prova é que faltando determinados órgãos sensoriais, falta também o conheciemento ou ideias. Por exemplo, é impossível ao cego ter a ideia da luz ou ao surdo, a ideia do som. O entendimento ou mente estando ligado ao corpo ou cérebro (entidades materiais), precisa de algo material para formar as ideias ideias que não são materiais. Ou seja, o nosso entendimento vocacionado ao conhecimento do universal e imaterial, parte do particular material e se eleva ao universal (imaterial). Exemplo, é dos homens concretos (particulares e materiais) que nos elevamos a ideia da humanidade (universal e incorpórea). E o particular só se apreende através dos sentidos. O sensível só se capta através dos sentidos externos (vista, audição, olfacto, tacto, gosto) aos quais se associam os sentidos internos ( sentido central ou comum, imaginação, memória e a cogitativa) Assim, para o intelectualismo, o objecto do conhecimento intelectivo é o conteúdo do conhecimento sensitivo. Assim se explica que o animal que é também dotado dos sentidos externos não seja capaz de produzir conhecimentos e que a criança que é dotada de entendimento não seja também capaz de conhecer. Ao primeiro falta o entendimento, ao segundo, os dados da experiência sensível.
4. Certeza e Verdade A importância do conhecimento humano só atinge a sua plenitude se, se tiver a certeza de que o que se sabe é verdadeiro. Ora, o que é a verdade? Como é que podemos ter a certeza de que o que sabemos é assim mesmo? Como validar os nossos conhecimentos? Sem resposta a estas questões parece claro que se torna inútil conhecer. Precisámos de ter certeza da validade dos nossos conhecimentos. Com efeito, o valor do conhecimento mede-se pela sua própria finalidade. Mais, o conhecimento tem muitos e
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variados fins: controlo e previsão dos fenómenos naturais e humanos, como acontece com as ciências e a técnica; conforto espiritual, identidade moral e deleite do coração, como acontece com a política, a religião e a arte. Aliás, o conhecimento é uma necessidade vital na medida em que permite o domínio da natureza para a solução dos problemas do homem, tais como: alimentação, vestuário, comunicação, sentido de vida, razão da existência, etc. Tanto é assim que alguns filósofos como Martin Heidegger defendem que a tarefa central da filosofia é a busca do conhecimento; a filosofia neste sentido é sentido é uma analítica do ser e busca da sua verdade, enquanto natureza e enquanto humanidade. É para responder a este anseio pela verdade das coisas e do homem que surgem entre outros sistemas, o racionalismo e o empirismo. Para os primeiros, a verdade é o valor absoluto de uma ideia. ideia. É uma relação perfeitamente inteligível e perfeitamente demonstrada. Donde, a verdade está acima da experiência sensível e do conhecimento sensitivo.. Enquanto para os segundos, a verdade é a experiência mesma, o concreto e o sensitivo mundo das percepções sensoriais.
4.1. Racionalismo (idealismo) Para o racionalismo, a actividade do espírito (mente) manifesta-se em toda a extensão da consciência e esgota todo o processo de conhecimento. São as leis do pensamento que formam a estrutura apriori que tornam possível a própria experiência. A razão é que impõe os princípios directores do conhecimento humano. É ela que impõe aos dados da experiência a sua legislação apriori. Ela é inata a si mesma. E por isso não precisa de impactos externos para conhecer. Da experiência não pode advir a verdade, posto que o conhecimento verdadeiro só pode vir de proposições universais e necessários, já que só o que logicamente for necessário e universalmente válido merece o nome de verdadeiro. O transitório, o provável, o contingente, é relativo e por isso sem direito ao estatuto de verdade. A verdade exige sê-lo sempre e em qualquer circunstância. Precisa de ser absoluta e necessária. Algo ou é ou não é. Não pode sê-lo hoje e a manhã não sê-lo. Não pode ser verdade para mim e mentira para outro. A verdade é por isso apanágio das ideias sempiternas e imutáveis e não do dado sensível. Porém, hoje em dia, existe uma forma de racionalismo que coloca a verdade do lado da subjectividade, não entendido como ideias puras e incorpóreas, mas apenas 34
como assunção do ponto de vista do sujeito pensante . Parte-se do princípio de que sendo impossível conhecer a coisa em si mesma, o mundo como é na sua essência, devemos nos contentar com a forma como ele se nos apresenta a nós. Nesta óptica, o conhecimento é sempre uma perspectiva do sujeito que conhece . Por isso a verdade deve surgir do consenso dos vários sujeitos pensantes, deve ser um consenso intersubjectivo entre sujeitos pensantes, entre homens e mulheres. Este ponto de vista é deveras importante quando se trata de questões políticas, religiosas e morais. Uma vez que é impossível saber, em última análise quais são os sistemas políticos, religiosos, morais, mais verdadeiros, teremos que nos contentar com as opiniões dominantes e correntes em cada época. Há, por isso, que sermos tolerantes, respeitosos e não presumir que as nossas ideias tem o monopólio da verdade . O perspectivismo, também chamado relativismo, defende que a verdade é tão vasta que se manifesta para os vários sujeitos pensantes de formas diferenciadas. Por isso há que buscar consensos, há que ouvir as pessoas, há que aprender a conviver com perspectivas diferentes de vida, tanto do ponto de vista moral, como político e religioso. Tanto é assim, que na política se adopta a democracia, o triunfo das maiorias desde que se garanta o respeito pelas minorias, como a norma suprema da verdade . Ou seja, melhor sistema político, melhores instituições, melhores governantes são aqueles que colhem mais simpatia do povo, são aqueles que conseguem atrair mais simpatias. Nas ciências sociais se adoptam os métodos quantitativos, as estatísticas, para mostrar preferências, anseios, desejos que depois são apresentados como verdades. Na religião e na moral se consagram leis públicas que devem ser respeitadas por todos, ao mesmo tempo que se respeitam as consciências individuais como únicas legisladoras de verdade para cada sujeito pensante e de boa fé.
4.2. Empirismo (realismo) Realismo é como se depreende da própria palavra, a perspectiva que defende a realidade, o dado empírico. Parte do princípio de que o real, o objecto, o dado empírico, existe independentemente da mente do sujeito cognoscente. Para o empirismo, o objecto não é mera produção do sujeito pensante. Conhecer aqui, é, como diziam os clássicos, a adequação do intelecto na coisa; é a assimilação da mente ao ente. ente . Conhecer é apreender o objecto tal como ele é, sem mais. Portanto, há conhecimento verdadeiro quando se dá esta adequação entre a mente e a coisa. 35
O realismo coincide totalmente com o empirismo e defende a possibilidade de conhecer o mundo exterior, visto como independente do sujeito que o conhece. Noutro sentido, é a crença na existência dos conceitos universais. Aqui, só nos interessa o primeiro sentido do empirismo. O que se refere a afirmação da possibilidade do conhecimento do mundo exterior, da sua independência em relação ao sujeito cognoscente e do primado do objecto cognoscido em relação ao sujeito cognoscente. Nesta teoria, há verdadeiro conhecimento quando há concordância do pensamento com o objecto. Todo o pensamento se refere a um objecto (real, imaginário, ideal). A verdade é por isso, adequação entre o pensamento e a coisa. A verdade de uma proposição ou juízo consiste na sua coincidência com a realidade. Uma opinião é verdadeira quando lhe corresponde um facto ou factos . A verdade é, por isso mesmo, uma propriedade das proposições, princípios e opiniões. E tais qualidades não são intrínsecas a estes. O que importa é a relação entre eles e algo distinto, exterior que se chama realidade.
4. 3. Cepticismo e Dogmatismo Face a esta discordância entre os filósofos, já que uns dizem que o verdadeiro conhecimento vem da experiência, ao passo que outros defendem que é produto da mente humana. E dado também que mesmo os que defendem o empirismo divergem muito entre si, acontecendo o mesmo com os racionalistas, é natural que alguns filósofos duvidem e acabem por negar a possibilidade de conhecer ou decidir o que é verdadeiro e o que não é? A esta atitude de dúvida radical sobre a possibilidade do conhecimento ou negação, pura e simplesmente, da capacidade de o homem poder conhecer com segurança seja o que for, chama-se Cepticismo. Ao contrário dos cépticos estão os dogmáticos que acreditam em tudo quanto se lhes diz. Para estes toda a crítica ou discussão não deve existir, os homens tem de aceitar humildemente o que os sábios, os chefes, os mais velhos, e todo o tipo de autoridade, sem nenhum tipo de contestação ou dúvidas . É por isso que o dogmatismo muitas vezes está associada a religião, a superstição e a ditadura. A religião manifestase nos dogmas e ditados das autoridades religiosas que devem ser acatados pura e simplesmente, enquanto que na política seriam as autoridades públicas que se encarregam de mandar e desmandar sem aceitar qualquer discussão ou diálogo. Mesmo
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na escola pode existir um certo dogmatismo quando os professores não aceitam a contribuição dos alunos, as suas dúvidas ou mesmo contestação . O dogmatismo é a rainha dos ignorantes.
5. Como é que surge o conhecimento no ser humano? Esta questão surge da verificação de que só o Homem é capaz de conhecer de uma forma racional e sistemática. Na verdade, os outros seres, incluindo os outros seres vivos distintos do homem, mesmo os mais evoluídos como os Chipanzés, estão destituídos da capacidade de conhecer. Como é que surgem então, as estruturas cognitivas no Homem? Como é que só o cérebro humano é capaz de produzir uma mente capaz de conhecimento?
5.1. Origem Filogenética do Sujeito Cognoscente Cognoscente Humano A Filogénese é a história da origem das espécies biológicas; é o estudo do processo evolutivo das estruturas biológicas de adaptação ao Meio Ambiente até ao aparecimento da actividade psíquica do homem actual. A origem filogenética do sujeito cognoscente torna-se importante se tivermos em conta que a mente é produto do cérebro. cérebro . A questão é mostrar como dos seres mais simples, como os átomos, se evoluiu até a formação de estruturas tão complexas como o cérebro capaz de produzir a mente. mente . Esta questão torna-se ainda mais interessante se tivermos em conta que muitos outros seres contemporâneos do homem, habitando mo mesmo meio ambiente são incapazes de produzir conhecimentos. Ora, se é verdade que esses seres tiveram a mesma origem que o homem, como foi possível o desenvolvimento de estruturas cognitivas no homem e só nele? Isto significa que o problema da origem filogenética do sujeito cognoscente humano é uma tentativa de encontrar o processo de origem das estruturas cognitivas do Homem Contemporâneo C ontemporâneo . E, dado que a estrutura cognitiva do homem está associada ao cérebro e ao sistema nervoso central, é natural que a filogenia gravite em volta do cérebro. E para descortinarmos os momentos cruciais da evolução da actividade cerebral, focalizaremos a nossa atenção para a sua manifestação exterior, a saber:
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1. Uso e fabrico de utensíios (ferramentas) – homo habilis. Quer isto dizer que o uso e fabrico de ferramentas representa uma fase importante da humanização já que pressupõe uma mediação, uma diferenciação clara entre o sujeito humano e a natureza. 2. Posição erecta e libertação das mãos. A aquisição da verticalidade e a consequente transformação das mãos mãos em instrumentos de acção sobre a natureza bem como como a destreza nos movimentos resultantes da posição erecta, teve uma influência radical na relação entre o homem e o seu meio ambiente . 3. Produção e conservação do fogo . A partir do momento em que o homem domestica o fogo e passa a usar em seu favor, tanto para se proteger como para queimar e assar, o homem deu um passo decisivo na sua vida. 4. Uso da linguagem articulada e comunicação simbólica . O uso da linguagem é outro aspecto crucial na humanização, pelo alcance que teve o poder se comunicar com os outros e permitir uma maior conjugação de esforços. É claro que todas estas fases foram acompanhadas por um desenvolvimento progressivo tanto do cérebro como de todo o sistema nervoso central que foi capaz de acomodar e assimilar todas estas transformações.
5.2. Origem ontogenética do conhecimento humano Dado que a filogénese apenas nos mostra as várias fases que conduziram ao surgimento dum cérebro capaz de produzir uma mente conhecente, é preciso acrescentar a ontogénese que é o processo de desenvolvimento de cada indivíduo actual, desde o seu nascimento até a sua morte. Tal morte. Tal como a espécie humana de que é parte, que precisou de muitos anos para evoluir até atingir as formas de racionalidade que apresenta hoje, cada indivíduo particular, durante o seu desenvolvimento, quase que repete as principais modificações que a sua espécie sofreu. Assim, em cada homem a inteligência progride, adapta-se transformando as estruturas já existentes em função das variações do Meio, acomodando-se. Integra factos novos nas estruturas cognitivas pré-existentes, acomodando-se. dinâmico entre o sujeito e o meio assimilando-os. Resultando daí um equilíbrio dinâmico ambiente. E tal como na filogénese, este processo interno corresponde também a adaptação do seu organismo e cérebro as novas realidades e, sobretudo, a lenta aquisição da posição erecta, o uso e fabrico de utensílios, a descoberta e uso da linguagem, etc. Trata-se de um processo lento que pressupõe uma aprendizagem 38
laboriosa e empenho pessoal. pessoal . O que significa que se s e bem que o homem ou mulher nasce já com uma certa disposição para o conhecimento, essa disposição só se torna efectiva, mediante um esforço árduo e persistente. Portanto, a razão no homem é uma potencialidade diferenciada em indivíduos também distintos, na medida em que alguns têm maiores possibilidades que outros, mas essa diferenciação vai se agravando com o crescimento, já que alguns se cultivam e se exercitam mais que outros . Também é verdade que essa diferenciação, diferenciação, muitas das vezes, não é no sentido de que uns tenham mais de que outros, mas sim de que uns tem maiores possibilidades para adquirirem certas habilidades e conhecimentos que outros. É nesta óptica que podemos falar de diferenças de inteligência ou de vários tipos de inteligências. Exemplo: inteligência prática, teórica; imaginativa; mimética, etc.
6. Conhecimento Científico Tal como acabamos de dizer, o conhecimento pode ter várias matizes. Podemos por exemplo, falar do conhecimento do senso comum aquele comum aquele que se obtém mediante uma observação simples da realidade, sem se m recorrer à metodologias complicadas ou rigorosas. Deste tipo de conhecimento fazem jus as máximas e adágios populares. Também podemos falar de conhecimento referindo-nos as habilidades dos artistas para artistas para reportar a realidade através da sua imaginação poética e como estes existem muitas outras formas de apreensão da realidade. De todas estas formas, lugar de destaque tem o conhecimento científico. O conhecimento científico é, antes de mais, um método que prima pelo rigor baseado na experiência e experiência e que só aceita como válido o que for submetido ao acervo da crítica e da justificação lógico-racional. lógico-racional.
6.1. Conhecimento Científico segundo Kant É por isso que para Kant embora o conhecimento científico esteja ligado a experiência não se esgota nele. Diz o autor que pelas suas generalizações este conhecimento ultrapassa o âmbito estrito da experiência e incorpora aspectos próprios do intelecto e racionalidade pura. Deste modo, para este autor, o conhecimento científico é uma
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síntese entre o empirismo e o racionalismo à semelhança do dizem os intelectualista. Oiçamos o próprio Kant: Não há dúvida de que todo o nosso nosso conhecimento começa começa com a experiência experiência.. Com efeito, como poderia ser despertada para o seu exercício a capacidade de conhecer se não fosse pelos objectos que impressionam os nossos sentidos e que, por um lado, produzem representações por si mesmos, e, por outro lado, põem em funcionamento a nossa faculdade intelectiva a fim de que compare, ligue ou separe estas representações, e elabore assim a matéria bruta das impressões sensíveis para delas extrair um conhecimento dos objectos, a que se chama experiência? Deste modo, cronologicamente, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todos os conhecimentos principiam. Mas se todo o nosso conhecimento principia com a experiência, daí não resulta que proceda todo da experiência. A experiência ensina-nos que alguma coisa é desta ou daquela maneira, mas não que ela não possa ser de outro modo. Se, pois, primeiro, se encontra uma proposição cujo pensamento implique a necessidade, tem-se um juízo a prior; se essa proposição não é, por outro lado, derivada de nenhuma outra que valha ela própria por seu turno como proposição necessária, necessária, ela é absolutamente a prior . Em segundo lugar, a experiência nunca dá aos seus juízos uma verdadeira e estrita universalidade, mas apenas uma universalidade suposta e comparativa (por indução) que não tem outro sentido senão este: tanto quanto observámos até aqui, aqui, nunca se encontrou excepção excepção para esta ou para aquela regra. regra. Por conseguinte, um juízo pensado com uma estrita universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma excepção é admitida como possível, não deriva da experiência, mas é válida absolutamente a priori. priori. A universalidade empírica não é, portanto, senão uma acréscimo arbitrário de validade; faz-se de uma regra válida na maior parte dos casos, como por exemplo, na proposição: todos t odos os corpos têm peso, uma lei que vale para todos. todos. Quando, pelo contrário, um juízo possui essencialmente uma estrita universalidade, nisso se conhece que provém de uma fonte particular do conhecimento, a saber de uma faculdade de conhecimento a prior. Necessidade e estrita universalidade, são, pois, as marcas seguras de um conhecimento a prior e estão indissoluvelmente unidas uma à outra. Kant, Crítica da Razão Razão Pura, Introdução, Introdução, 2ª edição, I-II, B 1-6, pp. 31-34, 31-34, Paris, P.U.F. P.U.F.
Assim, a teoria de Kant enquanto uma tentativa de síntese entre o empirismo e o racionalismo mais se assemelha ao intelectualismo. Pois, para ele, o conhecimento é o produto duma síntese entre as formas ou estruturas do Entendimento (Pensamento) e a matéria (objectos sensíveis), fornecidos pelos sentidos. Há conhecimento quando a matéria sensível é apreendida pela razão que a organiza e estrutura. Com efeito, a consciência nunca atinge a matéria tal como ela é. É sempre uma matéria ordenada ou seja organizada, estruturada, pela razão que o homem ou mulher atinge. Ninguém conhece a matéria em si, nem tão pouco nenhuma ideia é uma ideia
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pura, destituída de forma sensível. O que se conhece não é nunca a matéria em si, é, por exemplo, a matéria em forma de barro, de areia, de pessoa, de papel, de parede, de água, de ar, etc. O mesmo se diga do que consideramos imaterial, seja Deus ou espíritos, sempre se apresentam a nossa razão com forma de homem, de animal, de árvore, ou qualquer outra forma e nunca na mais pura idealidade. Por isso, na óptica de Kant, o verdadeiro conhecimento, o conhecimento conhecimento científico será sempre a partir da experiência e sujeito as categorias da nossa razão, comandadas pelas categorias do espaço e do tempo. Não acede a nossa sensibilidade algo trans-temporal e trans-espacial. trans-espacial . É na relatividade do espaço e do tempo que nós conhecemos. Só conhecemos, por conseguinte, o relativo, o contingente, o finito. O absoluto, o intemporal, é, por conseguinte, problemático e inacessível à mente humana . Assim, para Kant só é possível conhecer verdadeiramente o que está sujeito ao espaço e ao tempo e a partir da experiência. Mas dado a natureza racional do homem que o projecta para o intemporal, o universal e trans-espacial, o homem postula Deus, postula a transcendência, o pós-morte, o além tempo e para lá do espaço, embora se trate de algo que escapa a sua mente e está para além do verdadeiro e do falso. É a condição mesmo do conhecimento e do homem e da mulher. Concluindo, as formas apriori do entendimento, da razão (as intuições do espaço e do tempo – não sujeitos à experiência, os princípios imutáveis, universais e necessários da causalidade, da identidade, finalidade, substância, também não sujeitos à experiência) precisam para para produzir conhecimentos do concurso dos dados aposteriori da experiência sensível. Para haver conhecimento é tão necessário a matéria dada pela experiência como a forma, anterior a qualquer experiência sensível. A sensibilidade fornece as intuições e do entendimento nascem os conceitos. Sem a sensibilidade nenhum objecto nos seria dado e sem entendimento nenhum objecto seria pensado. Os pensamentos sem conteúdos são vazio e as intuições sem razão são cegas. Não obstante esta síntese rigorosa de Kant, existem outros autores mais contemporâneos que se debruçam sob o conhecimento científico, dentre os quais se destaca Karl Popper e Thomas Kunh.
6.2. Karl Popper e o Método Científico Para Popper só é cientificamente válido o que for facilmente testável e falseável. falseável. Isto é, 41
o conhecimento científico é tal que qualquer indivíduo pode testá-lo e entendê-lo, já que não depende do arbítrio sensual de ninguém. Por isso o conhecimento científico visa eventos regulares e repetíveis que podem ser traduzidos em leis e regras com o fim de fazer previsões e predições sobre o futuro, controlo, produção e técnica . Mas nada melhor que ouvir o próprio Popper que cita Kant: Kant foi talvez o primeiro pri meiro a compreender que a objectividade dos enunciados científi cos se liga de perto com a construção das teorias – com o uso de hipóteses e de enunciados universais. Somente quando certos eventos ocorrem em concordância com regras ou regularidades, como no caso dos experimentos repetíveis, é que alguém pode, em princípio, testar nossas observações. Nem mesmo levamos nossas próprias observações muito a sério ou aceitamo-las como observações científicas, até que as tenhamos repetido ou testado. É somente através de tais repetições que nos podemos convencer de que não estamos tratando de uma simples “coincidência” isolada, mas de eventos que, devido a sua regularidade e reprodutividade, são em princípio testáveis intersubjetivamente. Todo físico experimental conhece esses surpreendentes e inexplicáveis “efeitos” aparentes que talvez podem ser até mesmo reproduzidos em seu laboratório durante algum tempo, mas que finalmente desaparecem sem deixar vestígios. De fato, pode-se definir o efeito físico cientificamente singnificativo como sendo aquele efeito que qualquer pessoa pode regularmente reproduzir, desde que leva a cabo o experimento apropriado da maneira prescrita.
A ciência só trabalha com factos passíveis de observação, de experimentação, por vários indivíduos, em oposição as especulações, suposições, dogmas, que não provém da experiência, nem aceitam a crítica. Assim, experiências ou percepções privadas ou pessoais não podem ser matéria para ciência. Para ser comprovado cientificamente é mister que os enunciados sejam publicamente publicamente observáveis. Isto é, é preciso preciso que a experiência ou percepção permita que um público maior possa ter acesso a ela, que os passos seguidos sejam claros e que todo aquele que quiser seguir os mesmos passos tenha os mesmos resultados. Por isso isso o teste está intimamente ligado a falsificabilidade. falsificabilidade. Ou seja, um enunciado, um evento candidato a ser considerado científico ao ser testado abre a possibilidade, com o aperfeiçoamento dos instrumentos de observação, por exemplo, de vir a se mostrar falso. Por exemplo, o enunciado que diz que todos os metais conduzem energia,
só é válido enquanto não for descoberto um metal que não
satisfaz esta condição de conduzir energia.
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Quer dizer isto que para Popper as verdades científicas são sempre provisórias e devem estar permanentemente sujeitas a revisão. Donde, a ciência não oferece verdades absolutas, apenas resultados cada vez mais testados e daí maior fiabilidade. Não é possível um enunciado ou uma teoria verdadeira de forma terminal e concludente. O que é próprio da ciência é a mudança, na medida em que novos progressos podem trazer novos resultados. As verdade científicas estão sempre em constante progresso e avanço, visto que novas experiências trazem sempre novos e mais interessantes resultados .
6.3. Thomas Kunh e o conhecimento Científico Para Thomas Kuhn a ciência não se desenvolve por acumulação de descobertas e invenções individuais, nem tão pouco a diferença entre ciência e mito é tão grande como isso. isso. Portanto, o progresso científico não é cumulativo. Nem a ciência é um conhecimento exacto, em oposição ao conhecimento mítico, como queriam os empiristas. O que determina o tipo de conhecimento científico que se usa é o paradigma, o modelo seguido na época, época , já que existem vários paradigmas que se revezam ao longo da história.
O paradigma é um corpo implícito de crenças metodológicas e teóricas, que permitam a selecção, avaliação e crítica. crítica . Para servir este paradigma, é criado um conjunto de publicações especializadas, são fundadas sociedades e empenham-se homens e mulheres. É este esforço que redunda no desaparecimento dos outros paradigmas, conversão dos cientistas renitentes e afirmação definitiva de um único paradigma. Assim, os cientistas longe de serem inventores e criadores, são pessoas especializadas e muito familariazadas com um conjunto de crenças, métodos, instrumentos e formas de actuação que partilham entre si, formando uma verdadeira escola de trabalho . Assim, podemos dizer que um paradigma é um padrão ou modelo aceites. Este paradigma para se afirmar precisa de se confrontar e lutar com outros modelos iguais que disputam o mesmo espaço, porquanto no princípio, apresenta-se apenas como uma mera promessa de sucesso. Há prática normal normal da ciência ou ciência normal quando essa promessa promessa se torna realidade, isto é, quando através de um trabalho de limpeza que parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma, este triunfa e se afirma . 43
Assim, é o tal paradigam que determina o que é que merece ser considerado um problema científico, que tipo de experiências e observações são válidas, que tipo de teorias são capazes de fazer previsões válidas. A importância da ciência normal não consiste em descobrir novidades substantivas de importância capital, mas sim porque os resultados obtidos contribuem para aumentar o alcance e a precisão com os quais o paradigma pode ser aplicado .
6.3.1. Característica da ciência normal a) Testar a engenhosidade dos especialistas na solução dos problemas previstos pelo paradigma; b) Delimitação de enunciados de leis, conceitos e teorias com estatuto de científicos; c) Compreensão do mundo e ampliação da precisão e da ordem que lhe foi imposta
6.3.2. Conclusão A posse de um paradigma paradigma proporciona ao praticante de uma especialidade amadurecida regras que lhe revelam a natureza do mundo e da sua ciência. O cientista modelo é alguém equipado para solucionar problemas concretos. A formação dos cientistas faz-se através de manuais
e treinos contínuos. A mudança de paradigma surge quando o
paradigma anterior se mostra inapto e incapaz de resolver certos problemas. Esta incapacidade provoca uma crise entre os praticantes da ciência e o surgimento de uma luta e competição entre candidatos à paradigma até surgir, de novo, o paradigma vencedor e o reinicio da ciência normal. Desta maneira, fala-se de revoluções científicas para denominar os momentos de mudança de um paradigma para outro. Essa revoluções são mais próximas das revoluções políticas em que todo o vocabulário e métodos de trabalho são abruptamente modificados. Fala-se também de incomensurabilidade de paradigmas na medida em que estes diferem entre si e usam métodos que não tem nada a ver com os outros. Numa palavra, o paradigma é um veículo para a teoria cientifica: nessa situação o paradigma informa sobre as entidades que a natureza contém ou não contém, bem como as maneiras segundo as quais essas entidades se comportam. Quando os paradigmas mudam, ocorrem alterações significativas nos critérios que determinam a legitimidade, 44
tanto dos problemas como das soluções propostas. Um paradigma organiza e olha para o mundo à sua maneira. O paradigma nunca diz como o mundo é, apenas como alguém ou um grupo de indivíduos vem o mundo. O paradigma reporta sempre uma perspectiva de olhar e de lidar com o mundo, mas não revela nem pode revelar o que o mundo seja na sua essência, que isso não está nunca ao alcance do homem.
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Capítulo Terceiro: A pessoa humana
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1. Introdução: Dimensões e paradoxos De certeza que já ouviste definir que o Homem é um animal racional. racional . Mas afirmar, pura e simplesmente, que o Homem é um ser orgânico dotado de razão é, hoje, reconhecidamente insuficiente, e está longe de nos revelar a natureza e o destino da pessoa humana. Essa afirmação leva-nos a considerar o Homem em duas dimensões distintas e aparentemente irreconciliáveis. Por um lado, o Homem é um ser corporal, com impulsos, para não dizermos instintos, que no-lo apresentam como um animal entre vários outros. Mas, por outro lado, ele é também um ser dotado de razão, um ser espiritual, distinto, senão mesmo inimigo, do animal, ao qual está ligado, e com o qual está condenado a coexistir. E tudo isso acaba por nos levar a uma visão dualista do ser humano. Mas as filosofias de cariz existencialista e personalista definem o Homem como um ser relacional: o homem, ou a mulher, é um eu, que existe junto com os outros, no mundo, para se realizar, ou seja, para ser feliz . Está-se, portanto, a ver, que, por um lado, o homem, ou a mulher, existe como um
eu ou como uma pessoa singular, única, irrepetível na sua individualidade e diferença , e, por isso, digna de ser respeitada e estimada como tal; mas, por outro lado, essa pessoa existe inserida numa comunidade concreta de outros seres humanos iguais, com os quais tem de interagir, em relações, tanto t anto de cooperação, como de conflitualidade. Longe de ser um espírito descarnado e isolado, o Homem existe num corpo material,, numa comunidade histórica, e também em material e m toda a comunidade humana. Assim, o Homem sente que tem uma vocação a cumprir: a missão de, antes e por cima de tudo, ser feliz e ajudar os outros a sê-lo também. Daí que a palavra e a verdade, enquanto canais que o ligam aos outros e a si mesmo, bem como os valores e a historicidade e sentido da existência existência constituam os pilares fundamentais de se ser homem ou mulher. Mas o tema da realização e do sentido convocam-nos, de imediato, para a questão do fracasso e da frustração, que atinge o seu ponto mais dramático na morte. Daí que a temática da esperança e do futuro de cada homem homem ou de cada mulher, em particular, e de todos os homens e mulheres, em geral, bem como do mundo, em que
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habitamos, se apresente indissociável da vocação do homem e da mulher, enquanto homem e mulher. Por isso, a primeira pergunta, que cada um de nós se fará a si mesmo, de certeza que será esta:
2. Quem sou eu? Antes, porém, de continuarmos, precisas de recordar que esta maneira de perguntar:
quem sou eu em vez de perguntar que sou eu, não é indiferente. O pronome relativo quem remete-nos para alguém, para as pessoas. Enquanto o pronome relativo que nos remete para as coisas. Temos duas perguntas igualmente importantes, mas muito diferentes uma da outra. A primeira é esta: quid est Homo - que é o Homem, que sou eu
? A segunda é esta: quis est Homo, quem é o Homem, quem sou eu? Repara que nós podemos perguntar quem é Deus, quem é o homem, mas já não poderíamos perguntar quem é o leão. E podemos perguntar que é o leão, que é o
homem, mas não poderíamos perguntar que é Deus. Na verdade, o problema antropológico, por excelência, que hoje se nos coloca, é o de sabermos se o homem é um ser (individual) (individual ) orientado, em primeiro lugar, para o mundo, no qual, por acaso, existem outros homens, ou se, pelo contrário, o homem é uma pessoa em comunhão com outras pessoas, no mundo, e que, mediante essa comunhão, é que vai descobrindo o mundo circundante . Conforme for a resposta a esta questão, assim teremos uma Antropologia ou outra. Uma Antropologia polarizada em torno de uma consciência individual e autosuficiente,, de uma consciência que pretenda bastar-se a si mesma, orientada, em suficiente primeiro lugar, para o conhecimento objectivo e o domínio do mundo material, mediante a ciência e a técnica, técnica , corre o risco constante de já não poder mais reconhecer
as dimensões pessoais, éticas e religiosas do homem. É que, assim, antes de um homem se reconhecer no rosto do outro homem seu igual, choca com o mundo material, e, por causa disso mesmo, o outro não passará de mais uma dessas realidades, sem nome nem dignidade. Ao contrário, uma Antropologia que atribua a primazia à comunhão imediata do homem com o outro homem, no mundo, rechaça a auto-suficiência do eu e sente-se
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totalmente polarizada para a responsabilidade de cada homem frente ao outro, e pela necessidade de se realizar só em comunhão com ele. Aqui, o conhecimento e domínio do mundo e das coisas está submetido ao reconhecimento do homem por parte do homem. O encontro com o outro constitui um dinamismo concreto, que abre o homem à transcendência e à esperança religiosa. No mundo actual, estão, pois, em competição essas duas formas de responder à questão «quem sou eu?». Convém, pois, que demos, aqui, um pequeno enquadramento histórico da questão. Poderemos, assim, apreciar melhor a beleza e grandeza da Segunda resposta, que é a resposta que, para todos os efeitos, se mostra mais acertada, e é hoje mais seguida, no universo dos filósofos.
2.1. A definição do ser humano a partir da consciência do d o eu Dizer, como hoje dizemos, que o homem ou mulher é um ser relacional constitui uma autêntica conquista da humanidade. Mas tal conquista levou tempo a alcançar.. Descartes, um dos filósofos que marcaram a passagem da filosofia medieval para o pensamento moderno, definia o homem pela consciência que tem de si. E, correlativamente, via o homem ou mulher como solitários, fechados em si mesmos e isolados dos outros. É a isso que nós chamamos consciência do eu ou egologia (ego + lógos, loghía =
eu + discurso, tratado do eu, discurso centrado no eu ). Não quer dizer que se negasse a coexistência do homem ou mulher com outros. O que se quer dizer é que essa coexistência não se considerava fundamental, para a realidade e realização humana. Essa forma de considerar e definir o homem acabava por orientá-lo para o domínio despótico do mundo e dos outros, como sentenciou Hobbes, quando afirmou que cada homem é lobo para o outro homem ( homo homini lupus)
2.1.1 A dupla face do eu Essa Antropologia de um eu solitário ( egologia) teve duas expressões: -
Uma, seguiu a linha racionalista e idealista, que absolutiza a importância da consciência individual, que pensa o mundo, e minimiza a densidade do mundo
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material e o valor do corpo. -
outra, seguiu a linha empirista, que absolutiza a importância do mundo material e do corpo, corpo, e minimiza a densidade e a consistência da consciência.
Na primeira expressão, perfilaram-se, como como já dissemos, filósofos como Descartes. Para ele, está em primeiro lugar a consciência egológica, que pensa o mundo: “penso, logo existo ( cogito, ergo sum)”. Assim, a verdade fundamental do homem está na pessoa individual, enquanto
reflectindo sobre si mesma. No acto de pensar é que a existência do eu se impõe, com certeza indiscutível. Com efeito, pensar sobre si mesmo é o que significa, do ponto de vista etimológico, a palavra consciência (com + ciência). A lógica desta perspectiva é simples e clara: a ciência, enquanto mero conhecer, têm-na também os animais. Na medida em que conhecem os seus parceiros e crias, e distinguem o comestível do não comestível, e reconhecem os seus donos, etc. Mas a si mesmos é que eles não se podem reconhecer. O burro não sabe que é burro. Só o Homem é que tem a capacidade de captar-se a si mesmo como Homem. Portanto, só o homem, ou a mulher, tem consciência, que é essa capacidade de se conhecer a si mesmo, como um ente vivente e racional, de se pensar a si mesmo como um ser
pensante. O Homem, com essa característica fundamental de se pensar a si mesmo, antes de tudo o mais, só indirecta e posteriormente é que poderá aceder ao conhecimento do outro, por analogia, ou seja, por semelhança. se melhança. É claro que essa anterioridade não é necessariamente cronológica, temporal. Segundo esta maneira de ver, o Homem, primeiro, capta-se a si mesmo, isoladamente, como ser pensante; e, só depois, é que capta a sua exterioridade corporal: palavras, sons, gestos, etc. E só posteriormente é que ele se dá conta de que, entre as coisas que descobre e conhece fora do seu pensamento e do seu corpo, existem algumas expressões análogas àquelas com que ele exprime a sua interioridade. E daí ele conclui que essas expressões só podem ser causadas por um sujeito igual a ele. E esse sujeito é o outro.
2.1.2 A insuficiência do eu para definir o ser humano Tu próprio já deves ter percebido que, nesta dinâmica de pensar o eu, o outro perde muito da importância, que lhe é devida. Já que só indirecta e posteriormente é que ele é
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captado. E há ainda um outro perigo muito maior: ao captar o outro, por semelhança comigo, é muito grande a minha tendência de reduzir todos os outros à minha pessoa. Historicamente, essa tendência reducionista, que quer medir o outro através do próprio
eu, acabou por traduzir-se no domínio e desprezo do outro. Este só podia ser verdadeiramente humano, se pensasse e agisse como eu e conforme os meus gostos e apetites. Nesta perspectiva, a diferença é vista como inferioridade, senão mesmo como provocação. Além do mais, ao reduzirem o outro à categoria de coisa e ao quererem assimilá-lo, à força, geraram o totalitarismo e colectivismo igualitário, responsável pela colonização, totalitarismo e aniquilamento do diferente. Na mesma linha do eu solitário, o empirismo privou o eu da sua autonomia, em relação ao corpo material, submetendo-o aos próprios instintos e apetites, e tornando problemática a sua dissemelhança com os outros animais, reduzido que ele fica à equação dos seus sentidos. Trata-se, portanto, de um eu sem alma, já que a própria vida psíquica tem de ser vista no mesmo nível da realidade material. Nesta perspectiva, o homem, ou mulher, é convidado a responder positivamente a todas as exigências dos seus instintos carnais. A degradação dos homens e mulheres, que capitularam, perante os apetites do corpo, transformando seus corpos em arcas de todos os vícios, é por demais elucidativa. Dispensa mais análise. Assim sendo, só nos resta a outra perspectiva, a que parece mais correcta, e é, por isso, muito seguida, hoje em dia.
3. O homem relacional 3.1. O tu antes do eu A. Muito antes de conhecerem seja o que for, homem e mulher, quando chegam ao mundo, a primeira realidade com que imediatamente i mediatamente contactam, é um tu: a mãe. Esta é, para Martin Buber e para Emanuel Levinas, a verdade do homem homem e da mulher, tais quais existem e são conhecidos.
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Segundo M. Buber, antes de toda e qualquer relação com o mundo, e independentemente dele, cada eu tem uma relação com um tu. Sendo que esse outro (o
tu) se apresenta de forma imediata, sem conceitos nem fantasias. Esta relação primordial não admite, por isso, nem intermediários nem analogias. Mais, trata-se de um tu, que, de forma alguma, está submetido a um eu ou dependente dele. Logo, o domínio do eu sobre o tu é, na origem, desconhecido, tal como o domínio do tu sobre o eu. O encontro do eu e do tu primordiais está longe de ser conflituoso. É, antes, um encontro de amor. E, longe de implicar conhecimento, o primeiro encontro entre o eu e o tu, impõe-se e estabelece uma relação de parentesco, feita de dor, nudez e fragilidade.. Mas é E. Levinas que, de forma mais vincada, mostra a prioridade do outro, na sua fragilidade perante o eu. Para este filósofo, é na nudez do rosto que o outro se revela, se manifesta. O outro exige ser reconhecido no mundo, pelo facto de ser, constitutivamente, um ser indigente. O
outro está aí diante de ti, não porque tu o pensaste, nem porque tu formulaste alguma teoria que prova a existência dele, não. O outro aí está, e pronto. O outro irrompe, assim, na existência do eu, impõe-se por si mesmo; assoma-se, com a sua própria luz, e torna impossível qualquer tentativa de ser recusado ou rejeitado. Tu não podes senão reconhecer a sua presença.
3.2. A revelação do outro A presença do outro em mim é um facto primordial e elementar da existência. Embora se não deixe captar ou demonstrar, impõe-se, de tal maneira, que ao filósofo só lhe resta a tarefa de mostrá-lo e examiná-lo criticamente, fazendo ver que é impossível negar essa mesma verdade. De facto, o outro impõe-se, como o rosto da mãe, no momento do nascimento. Mas também como o rosto do pai, que gerou a nova vida do filho que acaba de nascer. E como o dos outros todos, que testemunham e tornam possível esse momento único, da vinda de mais um ente ao meio de nós. É possível, porém, alargar este horizonte, com Levinas, para incluir todo o homem ou mulher, que esteja diante de mim, a exigir reconhecimento: é o pobre, é a viúva, é o órfão, é o esfomeado, esfomeado, é, enfim, toda a criatura indigente, que está aí, e me pede pede para ser reconhecida, e quer que eu seja alguém para ela.
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É nesse sentido, também, que constituem para mim um desafio a apaixonada ou apaixonado, o companheiro ou a companheira de trabalho, o vizinho ou a vizinha, o companheiro de viagem, de turma, de grupo. E até mesmo o adversário e o inimigo. Em todo o tempo e lugar, ele irrompe, de forma tão flagrante, que não necessita de formular explicitamente a sua petição de reconhecimento. Basta a sua presença, para eu sentir o apelo à responsabilidade. É por isso que, diante dele, eu sinto aceitação ou repulsa, ódio ou amor, indiferença ou compromisso. Inserido na ordem das outras pessoas, eu sinto-me capaz de fazer escolhas, de acolher, de entregar-me ou de simplesmente recusar o outro. Assim sendo, é dupla a certeza desse outro, que se me impõe: -
ele afecta a minha existência, como outro ser, que se me revela e se me dá a conhecer, independentemente de mim e da minha inteligência
-
e afecta também o carácter fundamentalmente ético da minha existência, mediante o qual toda a existência se vê ligada ao reconhecimento do outro, isto é, à aceitação do outro diferente de mim, mas que pode querer ou recusar que eu seja alguém diante dele.
É desta forma que o outro constituirá para mim um Dom ou um pesadelo. Semelhante e igual a mim, esse outro exige, no entanto, ser reconhecido, na sua diferença e especificidade. Ele é outro, e recusa diluir-se em e m mim. Nem tão pouco aceita ser reduzido aos meus apetites e desejos. Também ele é um ser de desejos, de projectos e de sonhos, que podem colidir ou conectar com os meus.
Ele é ela, na sua expressão sexual irredutível e diferente de mim. Ele é o outro, de outra etnia, religião, ou credo político, disposto a levar a sua avante. Ele é o companheiro, que coopera, mas, por isso mesmo, está disposto a competir comigo. Ele é, sobretudo, o indigente, que reclama a minha ajuda e socorro.
3.3 Ser com os demais E é assim que o ser com os demais, e, sobretudo, para os demais, para os outros, se constitui como o próprio núcleo da existência humana. Isto, não só porque é um dado 53
indiscutível e acima de qualquer controvérsia que existem muitos outros semelhantes, com quem tu mesmo compartilhas o espaço terreno; mas também porque o ser com os
outros, no seu significado mais profundo e mais genuíno, significa que o homem nunca está sozinho. A sua existência está toda ela orientada para os outros, em comunhão com eles. O outro está de tal maneira presente na vida pessoal de cada um, que afecta todas as dimensões pessoais. O homem não existe, coexiste com os outros. Daí que o sentido da existência esteja ligado ao chamamento do outro, que quer ser alguém diante de ti, e que te convida a ser alguém diante dele, no amor, e na construção de um mundo melhor. É assim que tu mesmo não te concebes fora da tua realidade familiar, dos grupos a que pertences, do país, onde nasceste e vives, e do mundo em geral. Os outros importantes, que tiveram ou têm um papel fundamental na tua vida, deixaram em ti bem entranhadas as marcas desta fraternidade universal, que envolve a todos. Ignorá-los, ou tentar ignorá-los, é ignorar-se a si s i mesmo. A nossa vida é feita em diálogo com os outros. Diálogo, que tanto pode implicar ódio e rejeição, como amor e acolhimento. Mas mesmo o ódio e o rancor são gritos que reclamam o amor e a partilha. Somos, irremediavelmente, parte da vida dos outros, e eles são partes da nossa.
4. Amor e Identidade Humana 4.1. Formas de relação interpessoal Que formas formas de relação interpessoal existem? Sumariamente, existem quatro formas de relação interpessoal: -
a indiferença
-
o ódio
-
a justiça
-
e o amor.
É claro que a justiça e o amor constituem um par inseparável. Nos seus antípodas encontramos o ódio, como conflito e como indiferença. indiferença.
4.2. O amor Tomar consciência de mim mesmo, como pessoa humana, implica constituir-me como centro de dignidade, de bondade, de valor único e irrepetível da dignidade e 54
criatividade. Não de uma forma espontânea, mas sim através de um processo lento e contínuo, durante toda a vida, tal como em outras dimensões da existência, como o crescimento, a consciência da sexualidade, etc. Mas é preciso considerar também que é através do amor e da sua linguagem que isso acontece. Quando uma criança é tratada como alguém, pelos pais, pelos familiares e por todas as pessoas que a rodeiam, inicia nela este processo, que não terminará senão com a morte. E para o homem que tiver fé, seja em Deus, seja em outros espíritos ou entidades supra-naturais, tal pessoa continuará a ser tratada como alguém, digna de estima e respeito, mesmo depois da morte. Na verdade, mesmo se o amor faltasse, f altasse, seria ainda pelos seus opostos, o ódio e a indiferença, que o crescimento da criança seria norteado. O amor, portanto, quer por sua presença, quer por sua ausência, é e será sempre determinante, na sua vida.. Portanto, é legítimo pensarmos que o mais fundamental, na pessoa humana, nem é a reflexão racional, nem é a contemplação da natureza infra-humana, nem é a busca dos valores abstractos e impessoais, nem é a transformação técnica e científica do mundo, que se consegue pelo trabalho árduo e pelo esforço. O facto mais fundamental é que toda a pessoa humana é interpelada pela outra pessoa humana: na palavra, no trabalho, mas sobretudo, no amor. É amando, nas palavras e nas obras, que a pessoa humana se vai fazendo pessoa humana, perante o outro. Uma pessoa que nunca tenha experimentado o amor seria antropologicamente um ser morto, semelhante a qualquer besta da selva.
4.2.1. As três formas de Amor. Os antigos gregos distinguiam três formas do amor: o amor erótico (éros), o amor
de simpatia ( filía, amizade) e o amor caritativo (ágape). O amor erótico é também designado como amor concupiscente. Ou seja, aquele amor que resulta das próprias carências afectivas do homem. O qual, tal como os animais, precisa do outro não só para se sentir completo, como também para sobreviver, enquanto espécie. Aquela música, a que os jovens costumam chamar «romântica», e de que tu provavelmente tanto gostarás (pelo menos menos muitos dos da tua idade ficam louquinhos por 55
ela) é deveras reveladora deste tipo de amor todo sensações: és a única da minha vida!
Tu és tudo para mim! Eu sem ti não sou nada ! Se não me responderes, morrerei! É uma forma elementar, superficial, epidérmica de amar. De certa maneira, representa um primeiro estágio, indicador inequívoco inequívoco da nossa natureza carente. É fácil de ver como o amor, a este nível, pode desembocar na instrumentalização do
outro, visto apenas como objecto, para eu satisfazer, com ele, as minhas próprias carências. A este nível epidérmico, tu olharás para o outro apenas em função de ti. Este amor apenas erótico ou concupiscente é, por isso, considerado uma expressão egoísta do amor. Se algum mérito há-de ter será apenas o de favorecer a sobrevivência do homem como espécie. O amor verdadeiramente dito, o autêntico amor humano, começa no segundo estádio ou nível : o amor de simpatia ou de filía (amistoso). O exemplo mais acabado desta forma de amar é o amor das mães, que tudo fazem para o bem dos seus filhos. Nesta expressão do amor, aquele que ama redobra-se em esforço, para o bem daquele a quem ama. Por isso, se lhe chama também amor benevolente. É o amor de quem se entrega e se dá ao outro, sem reservas, e cuja existência ganha tanto mais sentido quanto mais servir o amado ou a amada. Este é o amor típico dos casais, de pais e filhos, dos amigos. E finalmente, temos o amor perfeitamente gratuito e gracioso, o amor eterno e universal, o amor a todo o género humano, independentemente dos laços afectivos. E a este amor perfeito chamamos-lhe caridade, ágape. Aqui, chegámos ao perfeito altruísmo. Que consiste em centrar-se perfeitamente no
outro, fazer do outro, e não de mim, o meu centro de gravidade. Este amor agápico é incondicional. Não depende das posses do amado, nem das suas qualidades físicas, psíquicas ou intelectuais. Apenas se ama e se é amado, por ser pessoa. Este amor é ainda desinteressado, no sentido de que não busca a sua própria vantagem, ou enriquecimento, nem outras formas de explorar o outro. Ao contrário, promove a colaboração de ambas as partes. E, por último, há que dizer que este amor de caridade é também fidelidade a uma pessoa, no tempo e no espaço, espaço, embora cheio de criações e recriações.
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4.3. Amor, como como virtude virtude e causa da virtude virtude Para melhor conhecimento do que é este amor, e das virtudes que suscita, oiçamos o que dele diz Platão, o grande filósofo da Grécia antiga: Por minha parte, afirmo-vos que, entre todos os deuses bem-aventurados, o Amor (se é lícito dizê-lo, sem incorrer na cólera divina...) é o mais aventurado deles, porque os excede a todos, em beleza e em virtude. E excede-os em beleza, vejamos como: antes de mais, Fedro, é ele o mais jovem dos deuses; uma prova convincente aí a tens na atitude do próprio deus, ao f ugir a sete pés da velhice – e se ele é veloz! Mais veloz, pelo menos, do que seria para desejar, quando é a nós que nos atinge... Ora a velhice representa justamente aquilo que o Amor odeia por natureza, e de que nem ao de leve se aproxima! A aproxima! A sua companhia são os jovens e é sempre entre eles que se encontra, pois, como reza o velho provérbio e com razão, o semelhante semelhante junta-se sempre ao que lhe é semelhante. Por isso, embora em muitos aspectos concorde com Fedro, neste não posso concordar: que o Amor seja mais antigo do que Cronos (o deus do tempo). Afirmo-vos, pelo contrário, que ele é o mais jovem dos deuses e a sua juventude, eterna. Mais ainda: esses velhos conflitos que Hesíodo e Parménides contam acerca dos deuses (se é que eles não mentiam) deram-se sob o reino da Necessidade e não do Amor. Mutilações, aprisionamentos recíprocos e quantas outras atrocidades – nada disso teria acontecido, se o Amor estivesse entre eles! Pelo contrário, seria uma era de amizade e de paz, à semelhança do que agora sucede, desde que o Amor reina sobre os deuses. O Amor é, portanto, jovem. E além de jovem, delicado.... delicado.... Para nos fazer sentir a delicadeza do deus, era mister um artista como Homero, o mesmo que qualifica de deusa e delicada a sua Atena – ou, pelo menos, afirma a delicadeza dos seus pés – por estes termos: “Delicados são, de verdade os seus pés; o solo não chega sequer a pisá-lo, pois é entre as cabeças dos que que caminha” . Ora, o exemplo de que se serve, para pôr em evidência a delicadeza da deusa, afigurase-me justamente feliz: o de que não caminha sobre asperezas, mas sobre o que é macio! E do mesmo exemplo nos iremos socorrer, para realçar, com respeito ao Amor, a sua delicadeza. É que também ele não caminha sobre o solo (nem sobre os crânios, de resto, pouco macios...), mas, antes, se move e habita em tudo o que de mais brando existe. Porque são, efectivamente, os temperamentos e as almas dos deuses e dos homens que ele elege como sua morada, e, mesmo assim, não indiscriminadamente:
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qualquer uma que se lhe depare com um temperamento rude, rejeita-a; mas àquela que possui um temperamento maleável, essa sim, passa a habitá-la! E eis porque, ao tocar, com os seus pés e com todo o seu ser, no que há de mais macio entre as coisas macias, possui, por força, uma extrema delicadeza. Ele é, pois, sumamente jovem e delicado. E, além disso, de compleição subtil ... ... sim, fosse ele rígido e como poderia insinuar-se em toda a parte, ou passar despercebido, sempre que entra no íntimo de cada alma e dela se escapa depois? Da sua maleabilidade e subtileza de forma há, de resto, um indício convincente: essa elegância natural, que toda a gente é unânime em atribuir-lhe ao mais alto grau. O facto é que entre disformidade e amor há uma guerra sem tréguas! Por outro lado, da beleza da sua tez fala, por si, a vida de deus entre flores; dado que não toma por morada o que não floresce ou já está murcho, trate-se de corpos, de almas ou seja do que for... Só quando encontra um sítio adornado de flores e perfumes, aí pousa e se instala. Sobre a beleza do Amor, eis, pois, o essencial, ainda que muita coi sa fique por dizer. E, posto isto, importa que passemos a referir a virtude do deus, realçando, desde já, o seu principal aspecto: o de que não comete nem sofre injustiças, seja contra um deus ou da parte de um deus, seja contra um homem ou da parte de um homem. Mesmo se alguma coisa o afecta, não é por violência pessoal que é afectado, (violência não liga com amor!), nem tão pouco ele a exerce nos seus actos; uma vez que é de livre vontade que cada um serve ao amor . Ora, todo o acordo que resulta do assentimento voluntário de duas partes são as leis, rainhas da cidade, que o proclamam justo. Mais, além da justiça, o amor participa, ao mais alto grau, da temperança .. . É ponto assente que a temperança consiste no domínio sobre os prazeres e os instintos – e, ainda, que não há prazer mais forte do que o amor!! Ora, amor!! Ora, se os outros são mais fracos, como não pensar que fiquem sujeitos ao amor e que este os domine? Logo, nesse domínio sobre os prazeres e os instintos residirá a temperança excepcional do Amor. E quanto à coragem, é fora de dúvida – ao Amor nem mesmo Ares (deus da guerra) resiste, e eis porquê: não é Ares que subjuga o Amor, mas sim o Amor que subjuga Ares. Ora, ter alguém sob o seu jugo significa ser o mais forte. E se o Amor vence aquele que excede todos os outros em coragem, como não há-de ser ele de todos o mais corajoso? Falou-se, já, portanto, na justiça, na temperança e na coragem do deus. Falta referir a sua sabedoria, uma vez que importa, na medida do possível, evitar omissões.. omissões E para que também eu preste as honras à minha arte, tal como Erixímaco prestou à sua, começo por falar na sabedoria do deus, como poeta: um poeta tão hábil, que sabe, inclusive, transmitir a outros a sua arte! Certo é que todo o homem bafejado pelo Amor, mesmo antes avesso às Musas, Musas, adquire o Dom da poesia...
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E aí tens, Fedro, a ideia que faço do Amor: justamente porque possui, ao mais alto grau, beleza e virtude, é que, depois, se torna, para os outros, fonte de idênticos dons. Ocorre-me até esta expressão em verso, para dizer que é ele quem estabelece Entre os homens a paz, a bonança nos mares açodados, O dormir sossegado dos ventos, o sono isento de cuidados . É ele quem apaga em nós a ideia de sermos estranhos uns aos outros, e nos comunica sentimentos de familiaridade, através de reuniões como estas, que ele promove. Nos festivais, nas danças, nas missas, ei-lo, como nosso guia, abrindo-nos as vias para a delicadeza, fechando-as para a rudeza. Liberal em dons de simpatia, inacessível aos da malquerença. Alegre e amável. Venerável aos olhos dos homens superiores, e admirável aos dos deuses; objecto de inveja para os que o não partilham e para os que o partilham, um bem desejável, pai da Volúpia, da Doçura, do Requinte, das Graças, do Desejo e da Saudade; propício aos bons, desatento aos maus; no sofrimento e na inquietude, na saudade e nas conversas, o piloto, o marinheiro, o camarada e o salvador por excelência: excelência: ornamento de todos os deuses e homens sem excepção; enfim, o corifeu de suprema beleza e virtude, que cada homem deve seguir e invocar com belos hinos, associando-se ao cântico, que o Amor canta, para fascinar o espírito de todos os deuses e de todos os homens.
Resumindo, são as seguintes, na óptica de Platão, as virtudes, que deve ter o homem que quer ser, verdadeiramente, homem: a sabedoria, a justiça, a temperança e a coragem.
4.4. Ecologia, amor da natureza Mas, hoje em dia, para a nossa sensibilidade e filosofia de vida, amar não significa amar só o seu semelhante de aqui e agora. Significa muito mais. Amar é preocupar-se com todos os homens de todos os lugares. É preocupar-se com a sorte do Homem de hoje e de amanhã. E quem se preocupar desse modo com o Homem, saberá, de certeza, que é preciso cuidar do meio ambiente, para que continue a ser habitável . Saberá que deve evitar a poluição e gastar, de forma responsável, os recursos de que dispõe o globo terrestre, para que, nem hoje, nem amanhã, amanhã, a vida possa vir a faltar ao Homem. Homem. Amar é, sobretudo, reconhecer que o que mais estimamos no Homem é a sua vida, única e irrepetível. irrepetível. E esta mesma vida tem que ser respeitada nos outros seres: nas plantas, nos animais, e em todos os ecossistemas. ecossistemas.
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É assim que surge a preocupação com o meio ambiente. Por um lado, temos esse Dom precioso que é a vida. Por outro, temos o ambiente, que torna possível a vida humana e o progresso. Respeitar o ambiente é preparar a vida para as gerações vindouras, é garantir a continuidade da nossa espécie. Mas é também lutar por um mundo mais saudável. É reconhecer e amar a vida presente em outros seres, e é assumir uma atitude responsável, para que os recursos naturais possam ser extraídos e distribuídos de forma racional, razoável e, sobretudo, solidária. Numa palavra, é assumir uma atitude sábia e filosófica, perante o mundo, perante os outros, e perante si mesmo.
5. Justiça e Natureza Humana 5.1. Justiça a virtude das virtudes Sabes que a sabedoria é o que tu buscas, enquanto estudante de Filosofia, isto é, enquanto introduzido na iniciação do amor do saber. Sabes também que, para te lançares a esse empreendimento, precisas de muita coragem. Sobretudo, da coragem para te dominares e venceres a ti mesmo. Ou O u seja, para te libertares dos teus próprios instintos sensuais, e evitares a escravidão, que costumam provocar os prazeres advindos da bebida, do fumo, das drogas, da luxúria e demais vícios, e para te revestires da temperança. Agora, vais tentar perceber a justiça, que consideramos a virtude das virtudes. Na verdade, o amor não é possível, nem pode ser cabalmente entendido, sem a promoção do outro, no mundo material e social. A vontade de reconhecer o outro enquanto outro, na sua singularidade e diferença, leva, infalivelmente, à criação de um sistema de justiça social, de distribuição e redistribuição tendencialmente igualitária dos bens, e do reconhecimento dos direitos fundamentais do ser humano. Amar alguém é trabalhar e lutar para que ele coma, beba, se vista, tenha uma habitação condigna, e para que se eduque e instrua, e para que esteja integrado numa cultura própria, e para que viva em segurança e possa desenvolver livremente todas as dimensões da sua existência.
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Significa isto que quem ama não pode ignorar que o homem ou mulher é um ser corpóreo, necessitado, chamado a realizar-se juntamente com os outros. O que implica i mplica o reconhecimento dos direitos, e a criação de um sistema de justiça. Nesta óptica, a justiça pode constituir uma barreira individual, advinda advinda do direito de se defender dos ataques dos outros. É o reconhecimento, portanto, de que, devido ao carácter egológico do homem, o conflito é inevitável. i nevitável. Mas também revela a incapacidade de alguns homens e mulheres para mutuamente se reconhecerem e amarem, bem como a limitação de tudo o que é humano. A justiça exprime a nossa contingência, a nossa limitação. Há sempre tensão entre as estruturas criadas pelo homem, os direitos constituídos, e as exigências concretas de um maior reconhecimento do homem pelo homem. Cabe ao homem ajuizar do seu ideal de homem, através de normas, que fundamentalmente exprimem o seu desejo, sentir e pensar. Serão essas normas da justiça que, nas circunstâncias concretas, hão-de levar o homem a voltar sempre ao seu ideal existencial. Essas normas é que que constituem o sistema de justiça de um povo. São instituídas por um acordo intersubjectivo, entre todos os indivíduos, que constituem esse povo. E, normalmente, são consignadas em Cartas Constitucionais, embora estejam como que inscritas nos costumes e hábitos, bem como na consciência individual de cada homem e mulher. A esta justiça perene, que nos constitui como homens e mulheres, é que os antigos, e ainda os hodiernos, querem referir-se, referir-se, quando falam do caminho do bem, em oposição ao caminho do mal.
5.2. Justiça como amor ao Bem Platão, através de Sócrates, seu herói preferido, é, sem dúvida, o filósofo que mais nos revelou a estreita ligação entre o amor e o bem. Esse bem que, em grego, é o mesmo que o belo (ágathon). Com efeito, o que é amar, senão desejar desejar o amante (aquele que ama) ama) o bem ao seu amado? Certamente que, alguma vez, sentiste que amavas alguém. Por exemplo, a tua mãe, o teu pai, um amigo ou uma amiga, ou a tua avó. Terás certamente notado que o que
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mais desejavas para eles era que tudo lhes corresse bem, que tudo para eles fossem belezas e sucessos. Pois bem, para o Sócrates de Platão, amar alguém é desejar-lhe o melhor. E isso significa que o amor é, em si mesmo, o desejo ardente do bem. Ao amarmos, isto é, ao desejarmos o bem para este ou para aquele, ao querermos que a beleza esteja neste ou naquele, como pensamos das pessoas que amamos, surge o sinal inequívoco de que lhes queremos, acima de tudo, t udo, o bem. Portanto, segundo este Sócrates de Platão, o ideal é que, a partir das pessoas amadas, das pessoas que julgamos belas, nós ascendamos ao conhecimento do belo e do bem. E que, a partir dos actos bons e belos, alcancemos o bem e a beleza em si mesmos. E que, portanto, em vez de nos fixarmos nos corpos belos, possamos, através deles, aspirar ao conhecimento do verdadeiro belo, à prática só do que é belo e bom. Que, portanto, as coisas e as pessoas belas, ou aquelas a que desejamos o bem, nos sirvam, então, dizia Sócrates, para nos estimular ao conhecimento e amor pelo Bem em si mesmo. Ninguém poderia dizer que ama alguém, se, ao amá-lo, a má-lo, não desejasse conhecer os pais que o trouxeram ao mundo. Nem seria verdadeiro o amor, que não suscitasse na pessoa que ama, o desejo de participar da vida da pessoa amada, de conhecê-la melhor, e de fazer da vida dela a sua própria vida. É assim que, para o nosso filósofo, desejar o bem, o belo, a alguém, sem desejar conhecer e possuir esse mesmo bem e essa mesma beleza, não faz sentido. Portanto, para Sócrates, o amor das coisas boas e belas é, antes de mais, amor ao bem e ao belo em si mesmos. As coisas belas e boas devem, necessariamente, conduzir-me ao conhecimento cada vez mais profundo do bem e do belo. Devem levar quem quem ama as coisas belas e boas a amar e a suspirar pelo próprio bem e pelo próprio belo. Vejamos, então, como é que Platão exprime essa ideia , pela boca do seu Sócrates:
-
É um facto que todos os seres humanos são dotados de fecundidade, não só
no seu corpo, mas também no seu espírito, e que, ao atingirem a idade própria, a sua natureza aspira a gerar. Só que não conseguirão gerar na fealdade, mas apenas no que é belo.
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Ora a união entre o homem e a mulher é propriamente um acto de gerar. gerar. E há nisto algo de divino, que subsiste em cada ser vivo, mortal por natureza, como forma de imortalidade – a fecundidade e a procriação. procriação. Estas, Estas, no entanto, não podem realizar-se na desarmonia desarmonia e em desarmonia, tal como o Belo se encontra em harmonia. Essa a razão, por que, quando um ser fecundo se aproxima de um objecto belo, se enche de bem-estar e de alegria, e, distendendo-se, gera e dá à luz. Mas, se, em vez do belo, for feio, ele fecha-se sobre si mesmo, sombrio e angustiado, volta costas, e recusa-se a gerar, arrastando consigo o peso doloroso da sua fecundidade. Daí, pois, a emoção intensa, que invade o ser fecundo, já pleno de seiva, à vista do Belo, cuja posse o liberta de um verdadeiro sofrimento de dar à luz! Pois o alvo do Amor não é, de facto, o Belo, como tu supões, Sócrates... - Então qual é? -
Gerar e criar no Belo!
- Pode ser... - Não tenhas dúvida! - Asseverou Asseverou ela. - E gerar, concretamente concretamente porquê? - Porque a geração é, para o ser mortal, como que a possibilidade de se
perpetuar e imortalizar. Ora, de acordo com os pressupostos em que assentámos, é forçosamente à imortalidade que o homem aspira, através do Bem – se é certo que o amor do Bem é o desejo de possuí-lo para sempre! E daí concluirmos, por força, que o Amor tem igualmente em vista a imortalidade. -
Qual achas tu que seja, Sócrates, a causa de tal desejo e amor? Ou não sentes o que há de invulgar no comportamento de todos os animais, os que andam sobre a terra e os que voam, quando os assalta o impulso de gerar? Não gerar? Não vês como todos eles, tocados pelo mal de amor, procedem, primeiro, em vista a unirem-se entre si e, depois, a alimentarem a sua descendência? E como se dispõem, até os mais fracos, a lutar por ela, contra os mais fortes, e mesmo a dar por ela a própria vida? E como sofrem, voluntariamente, a fome, para que as suas crias tenham de comer, e se sacrificam, de mil outras maneiras? maneiras ?
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Pelo que diz respeita aos homens, poder-se-á julgar que eles procedem assim por reflexão. Mas, com respeito aos animais, qual a causa do impulso amoroso, que os leva a um tal comportamento? Sabes dizer-mo? - Muito bem, esclareceu. Se estás, de facto, convicto de que a finalidade
natural do amor é aquela que tantas vezes lhe assinalámos, de comum acordo, não há razão para te admirares! Na mesma ordem de ideias, também aqui a natureza mortal procura, consoante as suas possibilidades, perpetuar-se e ser imortal. Mas essa possibilidade só lhe é dada, mediante este processo, o da geração, que vai repondo, continuamente, um novo ser distinto na vez do antigo... E não é, afinal, o que se passa com cada ser vivo, a quem nós reconhecemos, enquanto vive, uma existência e uma identidade próprias? Sim, nós dizemos que é o mesmo indivíduo, desde a infância até à velhice, e, contudo, ele jamais retém as mesmas características: nos cabelos, na carne, nos ossos, no sangue, em todo o seu corpo: ora nasce, continuamente, para umas, ora ora morre para outras... outras... Mas, além do corpo, também a sua alma é afectada: estados de espírito, hábitos, opiniões, desejos, prazeres, alegrias, receios.. Nenhuma destas coisas permanece sempre em cada indivíduo. Umas vão nascendo, outras desaparecendo... E ainda mais extraordinário é o que se passa com os nossos conhecimentos: assim como surgem, assim se vão. De tal sorte que nunca somos os mesmos, no que respeita aos nossos conhecimentos. Pois cada um deles, considerado em si mesmo, está sujeito a idêntica mudança. De facto, o que chamamos estudar, que implica, senão um conhecimento que pode escapar- nos? E o esquecer que é senão a fuga de um conhecimento? E é assim que o estudo, ao implantar um novo conhecimento, no lugar do que se vai, permite que ele se salvaguarde, aparentemente sem alteração. Ora, é também por este processo que todo o ser mortal salvaguarda a sua continuidade – não à semelhança do divino, que existe sempre e em tudo é igual a si mesmo – deixando um novo ser distinto, igual a ele, quando envelhece e morre. Só graças a este artifício, Sócrates, é que o ser mortal participa da imortalidade, tanto no corpo como em tudo o mais. Com os seres divinos, 64
é diferente. Não estranhes, portanto, que todo o ser se desvele, com o que é, por natureza, um rebento de si mesmo: em cada um, esse zelo e esse esforço se conjugam em vista à imortalidade. Se queres, presta só atenção, pelo que respeita aos homens, à sua ambição de glória: é natural que te espantes da sua insensatez. A não ser que medites no que acabei de te dizer, e te convenças de que o seu comportamento comportamento estranho estranho se deve à paixão de se tornarem célebres e assegurarem, assim, uma fama imortal, que perdure para todo o sempre. Para atingir tal objectivo, eles estão dispostos a correr todos os riscos, mais ainda do que pelos próprios filhos. Dispostos a gastar toda a sua fortuna, a passar por sofrimentos de toda a ordem, mesmo mesmo com sacrifício da própria vida! A meu ver, cada homem dá o máximo de si, na esperança de um mérito imortal e de um nome glorioso, que lhe corresponda. E tanto mais facilmente, na medida em que for superior. Pois o que o move é o amor da imortalidade. Portanto, uns são fecundos, segundo o corpo, e voltam-se de preferência para as mulheres. Esta é a sua maneira de amar, convictos como estão de que, através dos filhos que criam, asseguram a sua imortalidade, a memória do seu nome, e uma bem-aventurança que perdure para todo o sempre. Outros são fecundos, segundo a alma... Pois, não tenhas dúvida, há homens cuja alma possui uma fecundidade ainda superior à do corpo. Fecundidade para criar e produzir o que à alma compete. E o que é que compete, afinal, à alma gerar, senão sabedoria e as demais formas de virtude? Entre estes podemos contar não apenas todos os poetas criadores de obras, como ainda, no domínio da técnica, todos os artífices reconhecidamente dotados de espírito inventivo. - Mas a forma mais nobre e bela da sabedoria sabedoria é, de longe, a que respeita
à organização dos Estados e da vida familiar, e que, em concreto, designamos por temperança e justiça. justiça. Ora, quando um ser, cuja alma participa do divino, traz, desde a infância, os germes dessas duas virtudes, e, ao chegar a idade própria, o assalta o impulso de gerar, é então, salvo erro, que ele se põe em campo, lançando-se na procura do Belo, onde lhe será possível gerar: porque na fealdade, como se sabe, jamais o fará! Daí que, em razão da sua fecundidade, se desvele com os 65
corpos belos e não com os feios. E se a sorte lhe fizer encontrar uma alma igualmente bela, nobre e bem formada, o seu desvelo atinge o auge, por uma união entre ambos! Junto de um ser humano assim, instantaneamente lhe virão recursos, para discorrer sobre a virtude, sobre os deveres e as ocupações próprias de uma pessoa de bem – e empreenderá a missão de educar. Pois o contacto com o que é belo, o convívio com ele, permitir-lhe-ão, então, creio eu, gerar e dar à luz os frutos que, há muito, trazia em si. E com a imagem dele sempre presente, presente, quer esteja perto quer longe dele, alimentará em comum com ele o que acaba de produzir. - E é assim que os homens desta têmpera se prendem por laços bem mais
fundos do que os laços que nos prendem aos filhos. E guardam entre si uma amizade mais duradoira, porque também os filhos, que resultam da sua união, são mais belos e imortais... imortais... Todo o homem que tenha os olhos postos em Homero, em Hesíodo e em outros poetas de mérito, não deixará, por certo, de preferir os filhos como estes aos filhos da humana geração, e de lhes invejar a descendência, que eles deixam após si, e que, em virtude da sua imortalidade, lhes confere a glória e um nome imortal. É assim mesmo. E, se queres, repara
só
para os filhos que Licurgo deixou na
Lacedemónia. Como eles se tornaram a salvaguarda desta cidade, e, a bem dizer, de toda a Grécia! Ou então para Sólon. Como ele se tornou venerado na vossa cidade, graças às leis que gerou! E o mesmo diremos de outros homens, que, nas mais diversas partes, tanto entre os Gregos como entre os Bárbaros, fizeram nascer toda a espécie de virtude, com a produção de belas e variadas obras. Em sua honra, e graças a filhos deste género, já inúmeros cultos foram, até agora, instituídos, mas ainda nenhum deles o foi em atenção aos filhos mortais. Pois bem, é necessário necessário que todo aquele que empreender empreender o caminho recto, para chegar a este fim, comece, desde jovem, a procurá-lo, procurá-lo, na beleza dos corpos. E, se o seu guia o orientar como deve, ele há-de amar primeiro um único corpo, e, desde logo, gerar belos discursos. Em seguida, porém, terá de compenetrar-se de que a beleza deste ou daquele corpo é irmã da que reside em outro. E, como, necessariamente, o alvo da sua 66
busca é o belo que se manifesta na aparência física, absurdo seria não reconhecer que a beleza de todos os corpos é uma e a mesma coisa! Consciente desta verdade, passará então a votar-se ao amor de todos os corpos belos, e a libertar-se do excesso que o prendia a um único, relegando-o, como coisa de baixo valor. Chegados aqui, é, pois, tempo de avaliarmos quanto a beleza espiritual é superior à beleza física. De tal maneira que uma alma bem formada, mesmo num corpo sem atractivos, será suficiente para lhe inspirar amor e solicitude, para o levar a gerar discursos de igual valia e a pôr o seu zelo naqueles que elevam os jovens. jovens. E essa é a via, por onde será inevitavelmente levado a contemplar a beleza das ocupações e das leis, e a dar-se conta de como toda essa beleza está unida, por um estreito parentesco, a si mesma! E, deste modo, pouco crédito dará à beleza física. Depois das ocupações, é para os conhecimentos que o seu guia deve orientá-lo. Para que possa, por sua vez, apreender a beleza destes, e contemplar a extensão extensão do Belo já alcançada. alcançada. Não mais com os olhos olhos do escravo, que, preso a uma forma particular de beleza (seja esta a de um jovenzinho, ou a de uma jovenzinha, ou a de uma ocupação), se torna, em sua escravidão, mesquinho e aviltante. Mas antes com os olhos postos no oceano sem fim do Belo, imerso na sua contemplação... Agora sim, é a vez de dar à luz uma imensidade de discursos belos e magníficos, de pensamentos nascidos do seu inesgotável amor ao ser, até que, já pleno de força e grandeza, descubra, enfim, a existência de um conhecimento único, que vem a ser o conhecimento deste próprio Belo. Aquele que, até aqui, foi orientado nos mistérios do amor, que contemplou as coisas belas, na sua ordem correcta e progressiva, já quase no termo da iniciação amorosa, avistará, de súbito, um espectáculo surpreendente – o Belo, na sua verdadeira natureza, esse mesmo Belo, Sócrates, que era o alvo de todos os esforços passados ! Uma natureza eterna, que, antes de mais, não nasce nem morre, não cresce nem murcha. E que, depois, não é bela deste modo ou feia daquele, ou bela num momento e noutro já não.
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Mais ainda: esse Belo não lhe surgirá aos olhos, sob forma de um rosto, de umas mãos, do quer que pertença a um corpo. Nem tão pouco sob forma de pensamento, de conhecimento ou de qualquer coisa existente em algo diverso dele – por exemplo, um ser vivo da terra, do céu ou de qualquer outro sítio. Pelo contrário, surgir-lhe-á em si e por si, como forma única e eterna, da qual participam todas as outras coisas belas, por um processo tal, que a geração e a destruição de outros seres em nada a aumentam ou diminuem, e em nenhum aspecto a afectam. Ora, quando alguém, graças à prática de amar correctamente os jovens ou as jovens, se eleva acima da realidade sensível, e começa a distinguir esse Belo de que falamos, já pouco lhe falta para atingir a meta. E aqui tens tu o recto caminho, pelo qual se chega ou se é conduzido por outrem aos mistérios do amor. P artindo artindo da beleza sensível, em direcção a esse Belo, é sempre a ascender, como que por degraus: da beleza de um único corpo à de dois; da beleza de dois à de todos os corpos; dos corpos belos às belas ocupações; e destas, à beleza dos conhecimentos. Até que, a partir destes, se alcance esse tal conhecimento, que não é senão o do Belo em si mesmo, e se fique a conhecer, ao chegar ao termo, a realidade do Belo. Se algum momento da vida existe, caro Sócrates, que valha a pena ser vivido pelo homem, é certamente esse, em que o homem contempla o Belo em si! Um dia que tu chegues a esta visão, nada te parecerá comparável: nem o ouro nem o vestuário, nem mesmo os jovens ou as jovens, cuja beleza agora te põe a cabeça à roda, a ti como a tantos outros... Sim, outros... Sim, para usufruirdes sempre da presença dos vossos queridos ou das vossas queridas, de modo a jamais vos separardes deles, vós seríeis até capazes, caso fosse possível, de passar sem comer nem beber, ocupados unicamente em olhar para eles e usufruir do seu convívio. Que devemos, pois, pensar de uma pessoa, a quem fosse dado contemplar o Belo em si mesmo, verdadeiro, puro e sem mistura, e que, em vez da infecta carne humana, das cores e de tantas outras insignificâncias votadas à morte, pudesse apreender o Belo divino, na simplicidade da sua natureza?
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Crês, ajuntou, que seria uma vida sem interesse a do homem que tem os olhos postos nesse alvo, e que, ao contemplá-lo, pelo processo adequado, se encontra em união união com ele? Ou não sentes que somente a esse, quando olha o Belo, pelos meios que o tornam visível, será dado gerar, não já imagens de virtude ( pois não é mais a uma imagem que ele se apega ), mas a virtude verdadeira, uma vez que é ao real que está apegado? Mais: não achas que o facto de ele gerar e alimentar a verdadeira virtude lhe permite ser querido aos deuses, e que, se há alguém de entre os homens, que possa tornar-se imortal, será esse, precisamente? Foram estas, pois, pois, Fedro e demais amigos, amigos, as palavras, com que Diotima Diotima me convenceu. E, porque fiquei convencido, me esforço, agora, por meu turno, por convencer os outros de que, na aquisição deste bem, a natureza humana não encontrará facilmente auxiliar melhor do que o amor! Esse o motivo, por que vos declaro que todo o homem deve prestar homenagem ao Amor, como também eu presto. Sim, tudo o que lhe diz respeito é, para mim, objecto de devoção especial, que eu recomendo aos outros também. E, por isso, não deixo nem deixarei, dentro das minhas possibilidades, de de elogiar o Amor, pelo seu seu poder e pela sua coragem. coragem. Sócrates, o grande filósofo da antiguidade, também dedicou algumas páginas a satisfazer a sua curiosidade, sobre este tema do amor. Provavelmente, já terás sentido como o facto de amar nos suscita sentimentos contraditórios. Não te preocupes, é da natureza do amor essa ambiguidade de sentimentos. Oiçamos, a esse propósito, o próprio mestre Sócrates dissertar, mais uma vez, sobre ele Desta vez, fê-lo, contando-nos uma história, sobre a origem do amor. Esta, que se segue é, com efeito, uma história. Mas, nem por isso, ilustra menos de quanta riqueza o amor se reveste:
Quando nasceu Afrodite (deusa do enamoramento), os deuses reuniram-se num festim, onde, entre vários outros, se encontrava o Engenho, filho da Sabedoria.
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Depois de jantarem, eis que aparece a Pobreza, a mendigar os restos – como é costume, em ocasiões de festa... – e ali ficou, junto à porta. Entretanto, o Engenho, já embriagado do néctar (que é o alimento dos deuses), foi para o jardim do deus supremo, e tão pesado se sentia, que adormeceu. Então a Pobreza, que, na sua natural indigência, suspirava por vir a ter um filho com o Engenho, deitou-se junto dele, e, assim, assim, concebeu o Amor. Eis a razão, por que o Amor Amor nos surge como companheiro companheiro e servidor servidor de Afrodite (a deusa dos enamorados). Concebido, nas festas em honra do nascimento dela, é, por natureza, apaixonado do Belo, pois que Afrodite é bela. Por outro lado, a sua condição de filho do Engenho e da Pobreza ditou-lhe o seu destino. Condenado a uma perpétua indigência, está longe do requinte e da beleza, que a maior parte das pessoas nele imagina... Rude, miserável, descalço e sem morada, estirado sempre por terra e sem nada que o cubra, é assim que o Amor dorme, ao relento, nos vãos das portas e dos caminhos: a natureza, que herdou de sua mãe, faz dele um inseparável companheiro da indigência. Do lado do pai, porém, herdou o mesmo espírito ardiloso, à procura do que é belo e bom, a mesma coragem, persistência e ousadia, que fazem dele o caçador temível, sempre ocupado em tecer qualquer armadilha. Sedento de saber, e inventivo, passa a vida inteira a filosofar este hábil feiticeiro, mago e também sofista (retórico). Deste modo, ele não é, por natureza, nem mortal nem imortal. No mesmo dia, tanto floresce e vive, conforme estiver senhor dos seus recursos, como morre, para voltar à vida, graças à natureza de seu pai. Mas os seus achados achados escapamlhe continuamente das mãos, de tal maneira que nunca se encontra nem na indigência nem na riqueza: antes, num meio termo, que é, de igual modo, o meio termo entre a sabedoria e a ignorância. A verdade é esta: nenhum deus ama o saber ou deseja ser sábio (pois que já o é). Nem N em qualquer outro, que possua o saber, se dedica à filosofia, do mesmo modo que não são também os ignorantes que a ela se dedicam, ou que aspiram a ser sábios! A ignorância, efectivamente, acarreta consigo este peso: os que julgam possuir, em suficiência, a beleza, a bondade e a inteligência, nada disso possuem. E quem se não crê destituído não aspira, consequentemente, a um bem, de cuja falta se não apercebe. Como qualificaremos qualificaremos os que se dedicam à filosofia, filosofia, se não são sábios sábios nem são ignorantes? 70
São intermediários entre ambos os extremos, como indubitavelmente sucede com o Amor: pois se a Sabedoria se conta entre as mais belas coisas e se o Amor é amor do Belo, forçosamente o Amor terá de ser filósofo. E, como filósofo, terá de situar-se no meio termo, entre sábio e ignorante. Ora a causa de tais características reside justamente na sua origem: por um lado, um pai sábio e engenhoso; e por outro, uma mãe desprovida de sabedoria e de recursos. E aí tens, pois, a natureza natureza deste génio.
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Capítulo Quarto:
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Ética Social
1. Vida comunitária e relações sociais Já percebeste que a pessoa humana é, por natureza, um ser relacional, isto é, social. É social, no sentido em que, seja por necessidade, por carência, ou por simpatia, ou por outra razão, a verdade verdade é que nenhum homem ou mulher se basta si mesmo/a. Só para dar um exemplo, nós verificamos que o homem precisa da mulher e viceversa, para se perpetuarem, como espécie. O homem é social, também em razão da abundância: para se sentir confortável, feliz, precisa de outros seres humanos, para partilhar; no sentido de que, mesmo na hipótese de se bastar sozinho a si mesmo, ainda precisa de quem o aprecie, de alguém alguém com quem possa jogar, conviver, conviver, etc. Daí o facto de que somos sempre convidados a tomar posição diante diante do outro, aceitando-o, ou negando-o. No entanto, a rejeição sistemática dos outros conduz, inevitavelmente, à degradação e desumanização do sujeito em causa. Assim sendo, devo tratar os outros como pessoas, sob o risco da minha própria despersonalização.
1.1. Amizade cívica e Justiça social Isto significa que, como acima ficou dito, o relacionamento entre os seres humanos deve seguir o caminho da justiça e do amor. Com efeito, a justiça e o amor são os dois pólos que delimitam a única forma de relacionamento correcto e plenamente humano. É que a justiça é já um amor incipiente, o limite abaixo do qual há ofensa. Justiça é querer para outrem o que lhe é devido. É, portanto, um bem-querer, bem-querer, uma forma de amar. E o amor, por sua vez, já inclui a justiça. Sem justiça, não há verdadeiro amor. É assim que o amor e a justiça mutuamente se completam: a justiça distingue, o amor une; a justiça guarda distâncias, o amor aproxima e abraça. A justiça deixa que o outro seja, respeita-o a ele e ao que é seu; enquanto que o amor quer que o outro seja, e visa a união; onde já se não fala de meu e de teu, mas sim de nós e de nosso. É natural, portanto, que a justiça seja mais objectiva, e considere o outro, pela função e lugar que ele ocupa na sociedade. Enquanto que o amor dará antes prioridade à inter-subjectividade, às relações inter-pessoais.
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E conforme sublinhemos mais um ou mais o outro, teremos dois tipos diferentes de organização social. Se privilegiamos privilegiamos a justiça, sobressaem
as relações societárias, próprias próprias das das
sociedades complexas. Ao passo que, se insistimos mais no amor, sobressairão as relações comunitárias. Por comunitárias. Por exemplo, em casa, quererás ser tratado mais com base nas relações de amor do que nas de justiça; ao passo que, na escola, e mais ainda no emprego, privilegiarás mais a justiça. É neste contexto que o amor pode, às vezes, chocar com a justiça: na verdade, se o teu professor te desse as notas guiado pelos seus sentimentos de amor e não conforme a justiça, mesmo tu havias de te sentir ofendido. Também é importante recordar que a distinção entre comunidade de amor e sociedade de justiça tem grande importância para as sociedade naturais (comunidades) e para as sociedades livres (sociedades propriamente ditas). A sociedade ou comunidade familiar é natural, no sentido em que ninguém pode crescer sadiamente, sem o calor de uma família. De modo idêntico, a sociedade política nacional, até certo ponto, é também natural. Ao contrário, a sociedade civil (no que se refere às diversas associações cívicas) ou a mundial, como a ONU, são livres, ou seja, dispensáveis. A diferença entre sociedades e comunidades, isto é, entre sociedades naturais e sociedades livres, não é consensual consensual e pode variar, variar, consoante os autores. autores. Mas, dado que a organização social, que, aqui e agora, engendra as leis, a que todos estamos vinculados, e através das quais se persegue a almejada justiça, é a sociedade estatal, vulgarmente chamada Estado, a que todos pertencemos, convém percebermos melhor o seu fundamento. Aqui, destaca-se John Rawls, filósofo americano. Para este autor, só é legítimo o Estado, que emana do acordo entre os cidadãos de um certo território. Oiçamo-lo: Oiça mo-lo:
Admitamos, para assentar ideias, que uma sociedade é uma associação de pessoas, mais ou menos auto-suficientes, as quais, nas suas relações, reconhecem, como vinculativas, certas regras de conduta, e, na sua maioria, agem de acordo com elas. Suponhamos ainda que estas regras especificam um sistema de cooperação concebido para fomentar o bem dos que nele participam.
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Assim, embora uma sociedade sociedade seja uma tentativa de cooperação, que visa obter vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada, simultaneamente, tanto por um conflito como por uma identidade de interesses. Há identidade de interesses, uma vez que a cooperação cooperação torna possível uma vida, que, para todos, é melhor do que aquela que cada um teria, se tivesse de viver apenas pelos seus próprios esforços. esforços . Há conflito de interesses, i nteresses, uma vez que os sujeitos não são indiferentes à forma como são distribuídos os benefícios acrescidos, que resultam da sua colaboração, já que, para prosseguirem os seus objectivos, todos preferem receber uma parte maior dos mesmos. É necessário um conjunto de princípios, que permitam optar, entre as diversas formas de ordenação social, que determinam esta divisão dos benefícios, bem como obter um acordo sobre a repartição adequada dos mesmo. Estes princípios são os da justiça social: são eles que fornecem um critério, para atribuição de direitos e deveres, nas instituições básicas da sociedade, e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social. Assim, dir-se-á que a sociedade é bem ordenada, quando não só é concebida para aumentar o bem dos respectivos membros, mas é também efectivamente regida por uma concepção pública da justiça. Ou seja, trata-se de uma sociedade, em que, por um lado, cada um aceita os mesmos princípios da justiça, sabendo que os outros também os aceitam, e, por outro, as respectivas instituições básicas geralmente satisfazem esses princípios, sendo reconhecidas como tais. tais. Nesta situação, ainda que os sujeitos possam formular, uns contra os outros, exigências excessivas, eles reconhecem, apesar disso, um ponto de vista comum, a partir do qual serão decididas as respectivas pretensões. pretensões . Se as inclinações humanas se orientam para a prossecução do interesse próprio, tornando necessária a vigilância mútua, o seu sentido público da justiça torna possível e segura a associação de todos. Entre sujeitos com objectivos e fins díspares, a partilha de uma concepção pública da justiça constitui a regra fundamental de qualquer associação humana bem ordenada.
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É certo que as sociedades existentes raramente estão bem ordenadas, nos termos agora expostos, dado que a determinação do que é justo ou injusto é, normalmente, objecto de disputa. Os princípios que devem definir os termos básicos de qualquer associação são, eles próprios, objecto de discórdia. E, no entanto, pode ainda afirmar-se que, apesar do desacordo, cada um dos seus membros tem uma concepção da justiça. Ou seja, todos reconhecem a necessidade de um conjunto específico de princípios, para a atribuição de direitos e deveres básicos, e para a determinação do que se entende ser a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação em sociedade, e estão dispostos a afirmá-la. afirmá-la . Assim, é natural que se considere que o conceito de justiça é distinto das várias concepções da justiça, sendo sendo definido pelo papel que desempenham em comum estes diversos conjuntos de princípios, estas diferentes concepções da justiça,. Assim, os defensores das diferentes concepções da justiça podem, apesar disso, estar de acordo, quanto ao facto de que as instituições são justas, quando não há discriminações arbitrárias, na atribuição dos direitos e deveres básicos, e quando as regras existentes estabelecem um equilíbrio adequado, entre as diversas pretensões, que concorrem para a atribuição dos benefícios da vida em sociedade.. sociedade O acordo, quanto a esta definição de instituição justa, é possível, porque as noções de discriminação arbitrária e de equilíbrio adequado, que estão incluídas no conceito de justiça, são deixadas em aberto, por forma a que cada um as possa interpretar, de acordo com os princípios da justiça que aceite. Estes princípios destacam quais as semelhanças e as diferenças entre as pessoas, que sejam relevantes para a determinação dos direitos e deveres, e permitam especificar qual divisão dos benefícios é que é adequada adequada.. Parece evidente que esta distinção, entre o conceito de justiça e as diversas concepções da justiça, não resolve quaisquer questões importantes. Ela limita-se a identificar o papel dos princípios da justiça social. A Existência de algum consenso, sobre as concepções da justiça, não é, no entanto, a única condição prévia, para uma comunidade humana viável. Há outros problemas sociais fundamentais, nomeadamente os relativos à coordenação, eficiência e estabilidade. Assim, os projectos individuais dos 76
diversos sujeitos devem poder articular-se em conjunto, de forma a que as respectivas actividades sejam mutuamente compatíveis e possam ser levadas a cabo, sem que sejam gravemente violadas as legítimas expectativas de cada um. um . Além disso, a execução desses desses planos individuais deve deve conduzir à realização dos dos objectivos sociais, de uma forma que seja eficiente e conforme à justiça. Finalmente, o sistema de cooperação em sociedade tem de ser estável: deve ser respeitado, de forma mais ou menos regular, e as suas regras básicas devem ser voluntariamente seguidas. E, quando se verificam infracções, devem existir forças estabilizadoras, que impeçam novas violações, e que se orientem para restabelecer o acordo existente. É, porém, evidente que estas três questões estão ligadas ao problema da justiça. Na ausência de um certo grau de consenso, sobre o justo e o injusto, é claramente mais difícil, para os sujeitos, coordenarem os seus planos, de forma eficiente, de modo a preservarem os acordos mutuamente benéficos. A desconfiança e o ressentimento afectam os laços da civilidade, e a suspeição e a hostilidade levam os homens a actuar, por formas, que, normalmente, evitariam. evitariam . Assim, se a função particular das concepções da justiça é a de especificar os direitos e deveres básicos e determinar a forma apropriada da distribuição, o modo, pelo qual uma dada concepção o faz, afecta, necessariamente, os problemas de eficiência, coordenação e estabilidade. Em geral, não podemos avaliar uma concepção da justiça, apenas pelo seu conteúdo distributivo, por mais útil que este possa ser, na identificação do conceito de justiça. Devemos ter, igualmente, em consideração as suas consequências mais vastas; pois, embora a justiça goze de alguma prioridade, sendo a mais importante virtude das instituições, também é verdade que, em igualdade de circunstâncias, uma determinada concepção de justiça é preferível a uma outra, quando as suas consequências mais gerais forem mais desejáveis. Por instituições, entendo um sistema público de regras, que determina ocupações e posições, acompanhadas pelos seus respectivos direitos e deveres, poderes e imunidades, imunidades, e coisas semelhantes. semelhantes. Tais regras especificam certas formas de agir, umas permitidas e outras proibidas; e, quando ocorrem violações, encarregam-se das penalidades e defesas, e assim por diante.
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Como exemplo de instituições ou, de forma mais geral, de práticas sociais, poderíamos pensar em jogos e rituais, tribunais e parlamentos, mercados e sistemas de propriedade. propriedade. Ao dizer que a instituição e, por conseguinte, a estrutura básica da sociedade, é um sistema público de regras, entendo que qualquer um, que esteja engajado neste sistema, saberá se as regras e a sua própria participação nas actividades definidas pelas regras são o resultado de um acordo, ou não. Um indivíduo, ao tomar parte numa instituição, saberá quais os papéis que lhe cabem e quais os que cabem aos outros. Os princípios de justiça devem ser aplicados aos acordos sociais, compreendidos como públicos, neste sentido, onde as regras de certa subdivisão de uma instituição só são conhecidas pelos que a ela pertencem. pertencem. Os dois princípios poderiam ser formulados como segue: Primeiro – cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade, sendo que esta última deve ser igual à dos outros e a mais extensa possível, na medida em que seja compatível com uma uma liberdade similar de outros indivíduos. Segundo – as desigualdades económicas e sociais devem ser combinadas, de forma a que ambas -
correspondam às expectativas de que trarão vantagens para todos
-
e sejam ligadas a posições e a órgãos abertos a todos.
Num comentário geral, estes princípios se aplicam, principalmente, à estrutura básica da sociedade (Estado), como ficou dito. Eles deverão governar a atribuição de direitos e deveres, assim como regular a distribuição dos benefícios sócioeconómicos. ( John Rawls em Uma Teoria de Justiça) Estes dois princípios de John Rawls, que são fundamentais, presidem à constituição dos Estados Liberais e permitem o seu correcto funcionamento. Ao longo da história, foram sendo enunciados de diversas maneiras. Por exemplo, na Revolução Francesa, foram designados por: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Hoje em dia, é comum chamarem-se: Princípio de Subsidieariedade, Solidariedade e Primado do Bem Comum.
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1.2. Princípio de Subsidiariedade Este Princípio defende que a actividade social é de natureza subsidiária, isto é, visa promover as pessoas, e não substituí-las. Daqui se depreende o seguinte: A colectividade, sociedade ou Estado, não deve impedir as pessoas de fazerem o que podem e querem legitimamente fazer. Por exemplo, o Estado ou Sociedade não deve impedir as pessoas de possuírem bens privados, ou, em nome de alguma religião ou mesmo ideologia política, impedir as pessoas de praticarem um desporto, uma religião, ou fazerem parte de um partido político, de uma organização social, cultural, tribal, linguística, salvo se isso, de facto, ofendesse e limitasse os direitos dos outros, ou da sociedade, como um todo. O Estado não deve, substituir-se às pessoas, a não ser, com o acordo delas, para as libertar, em ordem a actividades preferidas. Deve possibilitar, isto é, criar as condições e proporcionar as ajudas, que tornem possível aos membros fazerem, por si mesmos, o que, sem tais ajudas, não estariam em condições de fazer. Por exemplo, o Estado deve criar condições, para que as pessoas mais pobres possam contrair empréstimos bancários, servindo o Estado como avalista, afim de que elas possam desenvolver actividades lucrativas, ou possuir bens, que, de outro modo, não conseguiriam ter. Só em casos específicos e excepcionais, é que a sociedade ou Estado deverá e poderá substituir algum membro da sociedade ou grupo de indivíduos. Por exemplo, é de bom tom que o Estado seja proprietário de escolas, hospitais e outros serviços indispensáveis, que, devido à sua complexidade e natureza, não poderiam ser cabalmente exercidos por singulares.
1.3. O Princípio de Solidariedade O princípio de solidariedade é a expressão do vínculo recíproco que existe entre pessoas e sociedade, entre indivíduos e colectividade, ou da inter-ligação e interdependência que reina entre todos aqueles que constituem a pluralidade unificada, que quer ser a vida em grupo. Do ponto de vista ético, pois é disso que se trata, o Princípio de Solidariedade exprime a mútua responsabilidade do indivíduos e da sociedade, em ordem ao bem comum.
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Com efeito, é eticamente reprovável que alguém esteja bem, a “curtir”, como se diz, quando outras pessoas, seus semelhantes e irmãos, não têm um tecto para dormir, um pão para matar a fome, ou mesmo mesmo um gole de água, para enganar enganar a sede. Significa isto que a sociedade, como um todo, tem uma grande responsabilidade, para com os doentes, os marginais, os proscritos, os estrangeiros, e todo o tipo de incapacitados e vencidos da vida, independentemente das causas que levaram a essa situação. É uma responsabilidade, que, não só é de indivíduo para indivíduo e do Estado para o indivíduo mas é também de povo para povo, e de Estado para para Estado. O dever de ajudar faz parte da estrutura tanto do indivíduo como dos grupos, de ele que é parte.
1.4. Princípio do Primado do Bem Comum O princípio do Primado do Bem Comum quer exprimir a subordinação moral dos membros da sociedade ao todo social, de que são partes. O bem do todo tem primazia sobre o bem particular das pessoas, individuais ou colectivas, que dele fazem parte. Embora este princípio deva ser entendido dentro dos próprios limites, parece ser claro que uma sociedade inteira não pode jamais ficar refém dos interesses particulares dos indivíduos ou grupos de indivíduos. É por isso que, só para exemplificarmos, um indivíduo pode ser chamado a defender o seu País, de uma agressão externa, mesmo sabendo que isso poderá significar para ele o sacrifício da própria vida. Ainda a título de exemplo, parece evidente que, em casos de epidemia, nenhum interesse de lucro ou farmacêutico pode inviabilizar a distribuição dos medicamentos a todos os necessitados. É por isso que este princípio aponta imediatamente para o destino universal dos bens, no sentido de que nenhuma outra razão, economicista, por exemplo, pode justificar que alguém possa morrer à fome, havendo alimentos que cheguem. Isto, porém, não significa que as pessoas existem em função e apenas ao serviço da colectividade ou do Estado. A pessoa humana é, por sua vez, a razão de ser dos Estados e das Pátrias. Pelo que, a pessoa não pode ser sacrificada, de qualquer maneira. Por exemplo, não faz sentido o sacrifício de milhares de pessoas, por uma ideologia ou credo, quando isso podia muito bem evitar-se, pelo recurso ao diálogo. Os interesses egoístas, mesmo que fossem os de uma Nação, não justificam a aniquilação nem que seja de uma só vida humana. 80
2. Liberdade Dizer que o Homem é, por sua própria natureza, natureza, livre, é defender, com Kant, que o Homem pertence ao reino dos fins. Isto é, que ele é um fim em si mesmo. Que ele não pode ser usado ou instrumentalizado, para qualquer outro fim, que não seja o da sua própria promoção e felicidade. felicidade. Ser livre significa ter um princípio interno ou capacidade fundamental de dirigir as próprias acções, de forma a que a pessoa possa chamá-las minhas, tuas, suas. A Liberdade é inerente a todo o género humano. E há quem lhe chame livre
arbítrio. Liberdade opõe-se, no sentido negativo, a inconsciência, a loucura, a irresponsabilidade física ou moral. Donde se depreende que o Homem não está submetido às forças deterministas da natureza, nem à tirania do Estado, da Sociedade, ou dos demais em geral. A Liberdade significa que o Homem não só age, como também sabe que o faz . Ela quer significar que a acção humana é pensada, reflectida, com conhecimento de causa, com razões, e em conformidade com as próprias convicções. Ser livre é, por isso, ser maduro e crescido. É superar alienações várias, como: a superstição, o medo, a sujeição social, política, económica, jurídica, o domínio das paixões e do egoísmo, os vínculos imaturos com outras pessoas, incluindo os pais. É o autodomínio e a retirada da tutela de outrem . É possuir-se a si mesmo, é determinar as linhas da própria existência, é a ausência de pressões externas. A minha liberdade implica que eu realizo o meu ser e existência, com plena consciência de o fazer. Mas ser livre é, sobretudo, desejar e anelar pelo bem. bem . Para os antigos, isto radica no facto de todo o ser se converter em verdade e bondade. bondade . Todo o ser é verdadeiro, na medida em que tudo o que é, é susceptível de conhecimento pela inteligência e, do mesmo modo, susceptível de ser querido e desejado, porquanto é bom bom..
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2.1. Tipos de Liberdade Assim sendo, podemos distinguir entre liberdade sociológica e liberdade psicológica.. psicológica A liberdade é sociológica, enquanto a pessoa humana procura sempre não se confundir com a sua comunidade, nem muito menos deixar-se engolir por ela; sem, com isso, prejudicar a sua natureza social. É livre, livre, neste sentido, quem não está preso nem é escravo. Esta Liberdade é, assim, autonomia. Autonomia Autonomia do do indivíduo, em relação ao todo, a que pertence. A liberdade é psicológica, psicológica, na medida em que o Homem toma consciência do seu eu, distinto de todos os outros eus, e distinto de de tudo quanto o compõe. Daí a necessidade de autodomínio autodomínio de todas as sua pulsões (instintos) interiores. É livre neste sentido, o Homem Adulto, e mais livre ainda quando não sujeito ao domínio dos vícios e paixões da natureza (álcool, drogas, prostituição, gula, riquezas, poder, etc) Portanto, o homem tem consciência da sua liberdade interior , base da sua liberdade social. O homem está ligado a necessidades, que não são, nem muito menos, apenas as físicas. Logo, há que dominar-se a si mesmo, e ser responsável, pelos outros, e por tudo quanto o rodeia. É nesta liberdade que radica a própria moral. Posto que, longe de, pura e simplesmente, reagir aos estímulos, o homem pode e deve escolher as suas acções. acções . E deve escolher, de acordo com a sua humanidade. Há acções mais humanizantes e acções menos humanizantes. É esta escolha que determina a moralidade das acções humanas. Recorda: Se, para o meu semelhante, sou um EU e um TU, eu sou dialogante. Se sou dialogante, sou responsável. Se sou responsável, sou livre. Liberdade implica responsabilidade. Ser livre é dispor de si. E dispor de si é ser disponível, é pôr-se à disposição. Ser livre é possuir-se. E possuir-se é abrir-se ao risco da relação com o TU, e ao futuro do seu projecto existencial.
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2.2. Liberdade vista por alguns filósofos A Liberdade é a capacidade de escolher entre coisas várias, entre coisas contrárias. É a capacidade de escolher o melhor, de escolher o que quero e não o que me apetece, de chegar a ser o que sou, a atingir a minha identidade. A minha liberdade é a minha aptidão para dispor de mim, em ordem à minha realização pessoal. É a possibilidade que eu tenho de construir o meu próprio destino, de poder escolher tanto os meios como os fins. Disse Sartre que « O Homem é o ser condenado a ser livre». E Heidegger observou que na « apaixonada liberdade perante a morte» entendida como a finalidade consumadora do do existir, é que se põe à prova a verdadeira verdadeira têmpera da liberdade. E Jaspers afirmou: «A liberdade só existe com a transcendência e por meio da transcendência». A liberdade é situada, é condicionada, é real, mas de-limitada, relativa « A liberdade é a faculdade do definitivo» ( J.B.METZ ) « ... é o poder de obrar para a eternidade» (RAHNER). Inclui compromisso fiel e fidelidade comprometida A Liberdade é solidária.
Na modernidade e na actualidade, a liberdade humana tem sido negada de várias formas e com várias várias teorias. Assim, o condutismo e engenharia social defendem social defendem que o ambiente é que é o factor determinante do comportamento humano. A chamada utopia skinneriana skinneriana prediz que a futura sociedade será controlada pelos peritos em psicologia social. A sociobiologia e engenharia genética defende que o que determina o nosso comportamento humano são os genes. genes. E prediz que que a sociedade futura será controlada controlada pela « direcção precisa baseada no conhecimento biológico» ( E.O.WILSON ). Para estes, a ética é um fenómeno de natureza exclusivamente biológica.
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Alguns influenciados pela cibernética, engenharia de computadores e inteligência artificiall defendem que o Homem não passa de simples máquina, e que, no futuro, vai artificia vai ser o moço de recados dos robots.
3. Moralidade 3.1. Introdução Já terás certamente percebido que as pessoas, bem como as colectividades, que as representam, incluindo o Estado, têm obrigações umas para com as outras, e cada uma delas perante ela mesma. Por exemplo, quanto à ideia de bem, de que já falámos muito, deves ter entendido que o que o bem é algo a fazer e o mal é algo a evitar. Ora, a natureza desta obrigação, a que o filósofo Emmanuel Kant chamou
imperativo categórico, é o princípio da obrigação moral, no sentido de que existem actos ou atitudes, cuja omissão ou prática tornam o homem ou mulher menos humanos, senão mesmo inumanos ou desumanos Essa obrigação deriva do facto de o homem ou mulher serem obrigados, ou seja, entidades de deveres e direitos. A moralidade é propriedade dos actos humanos e só destes. Ela refere-se aos actos e aos seus autores, devido aos quais há maldade ou bondade. Actos morais ou humanos são actos que dizem da conformidade ou desconformidade com a norma moral.
3. 2. Que norma moral é esta? Por que razão um acto pode tornar alguém reprovável ou não? Para Kant, a norma moral advém da reciprocidade, que os indivíduos devem uns aos outros, enquanto livres e iguais. Isto é, o primeiro princípio da moralidade é aquele que me diz para não fazer aos outros aquilo que não gostaria que os outros me fizessem a mim. Ou seja, para Kant, eu devo agir de tal maneira, que a minha acção seja universal. Isto é: se ela fosse praticada por outros, eu não encontraria encontraria razão nenhuma de censurar censurar quem a praticou.
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Por exemplo: embora me possa parecer que a mentira, em certos momentos, me é benéfica a mim, a verdade é que, se fossem os outros a mentir-me a mim, eu certamente que não havia de gostar. Isto basta para que a mentira seja reprovável. O alcance da justificação kantiana é muito grande, embora talvez não seja suficiente ou suficientemente forte, para obrigar as pessoas todas, ou fazê-las sentiremse obrigadas a fazerem o bem e a evitarem o mal. Daí que os autores distingam dois tipos de leis, a que estamos obrigados: -
As leis naturais
-
e as leis positivas
3.3. Leis naturais As leis naturais são as leis constituídas por directrizes morais, que se fundam na natureza do homem, independentemente de qualquer intervenção positiva da autoridade. Há que distingui-las das leis físicas, como são, por exemplo, a necessidade de comer ou de beber. Também podem ser definidas como resultantes resultantes da natureza racional do do homem. Os ditames da razão é que exprimem, objectivamente, qual deve ser o procedimento do homem, para poder ser autenticamente homem. Portanto, a razão por que estas leis nos obrigam é que, se as não cumprirmos, perdemos o direito de nos considerarmos a nós mesmos como pessoas racionais. Por exemplo, a mãe que lança o filho num caixote do lixo. A todos parecerá evidente, independentemente das razões sociais que porventura a tenham levado a isso, que tal mulher agiu de forma desnaturada. Ou um pai que viola a própria filha. Não merece ser considerado como homem. E por aí adiante.
3.4. Leis positivas As leis positivas, por seu lado, são as leis fixadas por alguma autoridade . Resultam, portanto, de alguma intervenção e convenção humana. Elas apenas nos obrigam, enquanto reconhecemos a essa sobredita autoridade o poder de fixar para nós o que é correcto ou incorrecto. Esta autoridade pode ser adstrita a um Deus, aos espíritos superiores, aos mais velhos, aos chefes, aos pais, ou mesmo às Instituições.
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Geralmente, as leis positivas emanam da Constituição ou Lei Básica, que cada povo ou nação erige, para regular as relações entre os indivíduos, que compõem esse mesmo Estado.
Resumindo: A lei natural é constituída pelas directrizes morais, que se fundam na natureza do homem, independentemente de qualquer intervenção positiva da autoridade. autoridade. A lei natural é é o conjunto das exigências morais, que resultam, para o homem, da natureza racional que tem; conjunto de ditames da razão, que exprimem objectivamente qual deve ser o procedimento do homem, para ser autenticamente humano; expressão expressão do que o homem deve ser, por ser aquilo que é; expressão do dinamismo da pessoa humana Lei natural e direito natural são, muitas vezes, usados como sinónimos; quando se distinguem, direito natural designa o que na lei natural é jurídico. Lei positiva positiva designa a lei (norma ou regra) do agir humano posta (posita) historicamente numa determinada sociedade. Tradicionalmente, distingue-se em divina e humana, conforme proceda de Deus ou dos homens A lei positiva é positiva é um ditame da razão prática (causa formal), ordenador da acção humana (causa material) para o bem comum (causa final), emanada da autoridade social competente (causa eficiente ). Roque Cabral, em Enciclopédia Logos. III
Na doutrina clássica, só é verdadeira lei a prescrição justa, que esteja de acordo com a recta razão (entenda-se conforme a natureza das coisas). Ao contrário, na modernidade, a lei é essencialmente injunção do poder. Desde que o indivíduo reconheça a legitimidade do poder, é obrigado a cumprir todas as leis que ele estabelecer. E porquê? Porque, dizem, é impossível determinar, com rigor absoluto, qual é a natureza íntima das coisas.
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Daqui resulta o conflito, entre o legal e e o legítimo. que é permitido pelas leis positivas, isto é, imposto pela pela autoridade, Legal é tudo o que que legitimamente detém o poder. Ao passo que legítimo seria o que estivesse de acordo com a recta razão, e, por isso mesmo, de acordo com a natureza. É claro que para muitos autores modernos, legalidade e legitimidade se confundem, na medida em que, na impossibilidade de determinar como as coisas deviam ser, de acordo com a recta razão, temos de nos contentar com o que estabelece o acordo intersubjectivo, inter-individual. Pelo que, ninguém pode, legitimamente, transigir, nas leis da comunidade política ou Estado, a que pertence. O máximo que poderá fazer é tentar persuadir os seus concidadãos, para que se modifiquem as leis que considera injustas. Mas, enquanto as leis estiverem em vigor, é necessário cumpri-las, e qualquer transgressão delas é ilegítima. Ao contrário, os que defendem a existência de uma ordem natural das coisas, mas sobretudo a capacidade que cada homem tem de conhecer essa pretensa existência de uma ordem natural das coisas, defendem que nem todas as leis das Nações e Estados, resultantes do acordo entre os cidadãos, são justas. Pelo que, se o indivíduo de boa fé entender que, de facto, o não são, tem não só o direito, mas também a obrigação de as transgredir e de opor-se a elas, com todas as suas forças.
3.5. Moralidade formal e moralidade material É também comum distinguir-se a moralidade formal da moralidade material: Por Moralidade formal entende-se formal entende-se a moralidade subjectiva ou pessoal. É a tomada de posição, por parte de um sujeito moral (pessoal), perante o bem e o mal; o permitido e o não permitido; o correcto e o incorrecto. Enfim, é a forma como cada pessoa se relaciona com a norma moral, constitutiva da moralidade. A Moralidade Material ou Material ou objectiva é a moralidade que o acto tem, em si mesmo, se abstrairmos de ele ser livremente realizado. A Moralidade Material Material é intrínseca, se resultar do que é o próprio acto. Por exemplo, roubar é moralmente mau. E é extrínseca ou positiva, se tem origem numa disposição positiva vinda de alguma autoridade. 87
A Moralidade Material extrínseca Material extrínseca ou positiva compreende todos os actos ilegais, ou seja, não permitidos pela lei. Por exemplo, fugir do serviço militar obrigatório. Disto resulta que os actos humanos podem ser bons ou maus, permitidos ou não permitidos, correctos ou incorrectos, lícitos ou ilícitos, ilícitos, conforme estejam ou não em conformidade com a moralidade. Esta adesão à moralidade ou a rejeição dela comporta vários níveis. Daí que se possa falar de actos graves ou actos leves, de acordo com o empenhamento pessoal, resultante do maior ou menor conhecimento e da advertência ou não advertência do sujeito. Para se avaliar o grau de bondade ou de malícia, é preciso ter em conta estes três elementos: a intenção ou finalidade do agente, a acção realizada, e as circunstâncias envolventes.. Ou seja: o sujeito, o objecto e as condicionantes. envolventes
3.6. Mérito e Demérito (Sanção) Do sobredito, fácil te será concluir que, do ponto de vista moral, o homem, ou a mulher, tanto pode pode merecer como pode desmerecer, pelos seus actos. Ou seja, a pessoa, que agir moralmente bem, precisa e deve ser reconhecida, recompensada, retribuída. Mais: também é fácil de ver que o mérito mérito é é uma exigência de reconhecimento da acção moral, independentemente dos seus efeitos benéficos. Da mesma forma, a acção moralmente má má desmerece, isto é, deve ser punida, castigada, sancionada. Daqui se depreende que as acções morais nunca são neutras. neutras . Ou merecem aprovação, ou merecem reprovação, conforme forem meritórias ou não.
Merecer ou desmerecer, perante quem? Quem deve, em última análise, punir ou castigar as acções moralmente más? O primeiro primeiro aspecto a ressaltar é que a acção moral merece ou desmerece, em si mesma,, sem referência a ninguém. No sentido de que, em virtude de o homem e a mesma mulher serem seres morais, a prática da imoralidade cria um mal-estar no indivíduo, que a praticar. Por isso se diz que o mérito ou demérito de alguma acção é produzido pela própria acção. Por acção. Por exemplo, um autêntico homem, ou mulher, se roubar, há de sentir-se mal, pode até chegar chegar a sentir-se sentir-se nojento. nojento.
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Nesta perspectiva, a acção imoral provocará, no seu autor, um efeito do género daquele que provoca num indivíduo uma alimentação má ou uma u ma falta de higiene Tudo isso, porém, é ainda insuficiente, para justificar a necessidade de um agir irrepreensível. Do mesmo modo que os efeitos da má alimentação ou da falta de higiene não bastariam para persuadir toda a gente a ter cuidados higiénicos e de alimentação. Além do mais, a aparente felicidade dos maus, o poder dos perversos, e a riqueza dos desonestos, bem como o prazer de que parecem gozar os imorais , suscita em cada um de nós a necessidade de algo mais, para sancionar os actos morais. É assim que os Estados criam sistemas de castigo e punição para os faltosos, e, por outro lado, chegam a criar prémios para os cumpridores. Nem sempre, porém, os actos legais ou ilegais coincidem com as exigências éticas. Pelo que, o sistema judicial também se mostra insuficiente para responder ao apelo do mérito e da sanção. Uma vez que existem Estados corruptos, em que os maus triunfam e os bons penam. Para além de que é sempre possível escapar à justiça e lucrar com as próprias imoralidades. Pelo que, parece óbvia a exigência de alguém capaz de: -
Avaliar, com exactidão, o valor moral de todas as pessoas, de todas e cada uma das suas acções, por mais ocultas que elas tenham ficado, mesmo para os próprios autores
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Querer, com total imparcialidade e empenho, reconhecer todos os méritos correspondentes
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Ter domínio total sobre todos os seres, e capacidade, para castigar ou premiar, conforme o caso.
Ora, um ser com estas características, só Deus. Só Ele, de facto, é omnisciente, omnipotente e inteiramente bom. Daqui se depreende que as exigências morais, mesmo não demonstrando a existência de Deus, o postulam, o exigem. Em todo o caso, a degradação dos povos, e mesmo a dos indivíduos amorais e imorais, parece o suficiente, para nós percebermos que, independentemente de existir ou não um Deus, o bem é meritório e o mal merece castigo. E é por existirem actos meritórios e actos que devem ser sancionados sancionados que os homens e as mulheres mulheres criam listas de atitudes e comportamentos comportamentos aceitáveis, permitidos, a que, genericamente, se dá o nome de virtudes, e outras de atitudes e comportamentos 89
inaceitáveis e não permitidos, a que se dá o nome de vícios vícios.. E, no mesmo sentido, falamos de valores e contravalores. contravalores . Estas listas de virtudes podem fundamentar-se nas leis e direitos naturais, sendo, por isso, universais. Por exemplo, os direitos humanos e humanos e as acções contra a natureza, natureza , e os vícios e contravalores, como é o caso do incesto e do homicídio. homicídio . Mas podem também derivar de leis positivas, fixadas pelas cartas constitucionais dos Estados, ou pelos costumes das nações e povos concretos concretos.. Se é verdade que existem actos maus, independentemente de qualquer contexto social, também será verdade que a definição do justo e do injusto, do bom e do mau, pode variar, de comunidade para comunidade, e de época histórica para época histórica. Por exemplo, a poligamia, que, hoje, à luz do desenvolvimento social, em que vivemos, nos parece inaceitável, enquanto negação da igualdade entre os sexos, ontem, para os nossos pais e avós, não era proibida. Por isso, ao lado das virtudes fixas e eternas, encontramos eternas, encontramos um conjunto de virtudes variáveis. Pelo que a verdadeira escola e lugar da virtude continua a ser a comunidade concreta a que cada um de nós pertence. A começar pela família, passando pelo bairro ou clã; religião ou país, a que pertencemos. E só a partir daí se poderá falar de direitos e deveres universais e de toda a humanidade. Por isso, no próximo capítulo, vamos falar um pouco da família, que, como sabemos, é o núcleo básico do nosso desenvolvimento.
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Capítulo Quinto:
Matrimónio e
Família
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1. Fenómenos universais Antes de mais, há que reconhecer que Família e Matrimónio são fenómenos universais. No universais. No sentido de que não se conhece nenhuma sociedade, sem uma instituição, que desempenha as funções de unidade económica (produção e consumo), reprodução, educação e socialização das crianças, e que é, ao mesmo tempo, lugar privilegiado do exercício da sexualidade, e que obedece a certas normas fundamentais comuns . Como outros valores humanos, o Matrimónio e a Família têm regras e formas muito diferenciadas, segundo as várias sociedades. E, através dos tempos, têm sofrido evoluções consideráveis, na forma como se compõem, se estabelecem e permanecem. Nessa variedade e evolução, a modalidade conjugal monogâmica estável revela-se estável revela-se a mais comum e a mais moderna.
2. Elementos fundamentais Uma análise destas duas realidades sociais tem que ser feita a partir destes três elementos fundamentais: os fundamentais: os que se unem, os que nascem, e a sociedade
2.1. Os que se unem (os nubentes ou cônjuges ou esponsais) São seres integralmente sexuados. E dizer sexual é muito mais que dizer genital. Isto é: o ser homem, ou ser mulher, é muito mais do que ter apenas uns órgãos genitais masculinos ou femininos. Em todas as dimensões da pessoa humana estão presentes as relações sexuais. Estas são, pois, muito mais abrangentes que as relações meramente genitais. Isto significa que os que se unem não são apenas dois corpos, são duas pessoas, na plena integridade de sua sexualidade. sexualidade. Por isso, uma relação homem-mulher , que não seja motivada pelo amor, em que se não realize a união de duas vontades livres, mas que seja apenas motivada por constrangimentos económicos, hedonistas, instituais, é degradante.
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De igual modo, toda a relação, que não mereça mereça aprovação social, social, por implicar mentira ou traição dos que mais nos estimam: pais, amigos, parceiros, comunidade, etc, será uma relação mutilante, no sentido em que vem romper a cadeia do amor, exactamente, onde devia atingir a sua plenitude. A sexualidade humana, embora obedeça a impulsos impulsos interiores interiores indiscutíveis, não é totalmente instintual, instintual, como a dos animais. Por isso, implica uma aprendizagem, um contexto social, e um controlo vindo das dimensões superiores . Sem o que, ela se perverte, e nos corrompe e escraviza.. A sexualidade é, por esta razão, uma linguagem natural e, sobretudo, cultural. E pode ser verdadeira e amadurecida, ou mentirosa e pueril. pueril. A autêntica sexualidade conduz à união de duas pessoas, que se entregam e se acolhem mutuamente, de modo total e incondicional. O que implica que o exercício correcto da sexualidade exclui terceiros, e requer tempo. tempo . A relação sexual é, pois, relação de corpo-sujeito corpo-sujeito em em oposição à relação de corpoobjecto (que objecto (que acontece, quando alguém tem, como fim, apenas tirar do outro o prazer ou outras benesses). É uma relação significante, enquanto forma de comunicação e diálogo. Pode, por isso, exprimir uma vontade egoísta de busca de auto-satisfação, posse e domínio ( e então perverte-se); ou doação pelo amor, exigindo aceitação e correspondência, sem correspondência, sem os quais, seria violência, ódio e engano. Em suma, a sexualidade humana é conjugal, é monogâmica, é duradoira, é potencialmente procriadora ou ou parental, é social e é institucional.
2.2. Os que nascem Onde há filhos, haja pais. pais . Ou seja, para uma pessoa humana acabar de nascer, precisa de dois úteros: úteros: o da mãe e o da família. família . Acima de tudo, precisa do par progenitor: um par p ar unido, estável, que lhe assegure o modelo masculino e feminino, e tudo o resto.
2.3. A sociedade O bem-estar social depende da saúde das famílias, enquanto lugares de nascimento e de crescimento.
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Assim, a sociedade exige dos que se unem que firmem a sua aliança, através do casamento institucional, institucional, nas suas várias formas. O que exclui uma procriação espontânea e uniões a eito e de qualquer maneira. A sociedade, bem como a saúde física e mental dos que nascem, exige uma família unida, estável e duradoira. E só muito excepcionalmente admite a dissolução da família ou divórcio, como divórcio, como uma solução extrema, mas, nem por isso, menos trágica e derradeira.
3. Vida e ética (Bioética) na família f amília Sendo a família, o lugar previlegiado da transmissão da vida, a questão do aborto e da esterilidade surgem como dois grandes problemas a ter em conta em qualquer abordagem sobre a família. Tu próprio pode ser que já tenhas tido conhecimento de experiências traumáticas acontecidas com amigos, com familiares ou conhecidos teus. Comecemos, então, pelo abordo
3.1.
O aborto
3.1.1. Definição, espécies Por aborto entende-se a interrupção da gravidez, quando o feto ainda não é viável, isto é, capaz de viver fora do útero materno. O aborto é espontâneo, quando acontece, sem intervenção do homem. E é provocado, quando quando resulta da intervenção humana. A primeira pergunta, que se põe, ao falarmos do aborto, é se o mesmo deve ou não ser permitido? A julgar pelas estatísticas, parece que sim. Pois a OMS indica cerca de 30 milhões, senão mais, de abortos anualmente realizados, em todo o mundo. E a situação no nosso país, de certeza que não é menos dramática. Porém a experiência também mostra que qualquer acto abortivo cria sérios problemas morais, psicológicos e físicos, sobretudo sobretudo aos seus autores. Mesmo assim, nem todos os abortos provocados são provocados são iguais. A literatura, sobre esta matéria, distingue vários tipos de aborto, a saber:
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o aborto terapêutico, que terapêutico, que se realiza, quando a condução da gravidez até ao fim constitui um sério risco para a vida da mãe.
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O aborto ético ou humanitário, humanitário, quando deriva de o facto de a gravidez ser consequência de uma acção delituosa, como a violação, o incesto, etc.
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O aborto eugénico, que eugénico, que é praticado, quando existe um risco muito grande de que o novo ser esteja afectado por anomalias gravíssimas ou malformações congénitas.
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O aborto psico-social, que é realizado por motivações pessoais, familiares, económicas, sociais da mulher. E esta tem sido a causa mais comum indicada para o aborto, pela maior parte das mulheres que o praticam, e, por coincidência, também a mais inaceitável. Esta razão é, de facto, insuficiente e condenável, não só porque, a ser aceite, legitimaria todos os abortos, como também porque revela uma grande dose de egoísmo, de irresponsabilidade, de comodismo e de menosprezo pela vida de outras pessoas.
3.1.2. Questões Éticas do Aborto A razão pela qual o aborto não deve ser tolerado é porque destrói a vida de outra pessoa, e entra, portanto, na categoria categoria do crime do assassínio, ou homicídio. -
O feto ainda não é pessoa - contra-argumentam os defensores das práticas abortivas. E surge, imediatamente, a pergunta:
-
E então quando é que começa, exactamente, a vida humana, no desenvolvimento embrionário?
As opiniões são diversas, e podem ser resumidas no seguinte quadro: Começo do direito à vida
Fase embrionária
Dia ou mês
Fecundação
Zigoto
Primeiro dia
Anidação
Blastocisto
14 dias
Fim da organogénesis
Feto
Dois meses
Viabilidade
Bébé Prematuro
21 Semanas
Nascimento
Recém nascido
9 Meses
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Fecundação – fusão dos elementos masculino e feminino, isto é, do esperma e do óvulo.. Esta fusão dá origem ao zigoto ou célula-ovo. óvulo Este momento é crucial, na medida em que dá início a uma realidade biológica humana, distinta da dos seus progenitores, com um código genético único e irrepetível, e já com dinamismo autónomo. Anidação – Anidação – implantação do ovo no endométrio, dentro do útero . Por ocasião do término deste processo de anidação, que começa entre o 5.º e o 6.º dia, para acabar no 14.º , surge a possibilidade de o embrião se poder dividir e dar origem a gémeos. O que coloca, como é evidente, a questão da individualização, que pressupõe a base da personalização. Também o facto de cerca de 50% dos óvulos fecundados não chegarem à fase da anidação coloca questões sérias à humanização, antes deste momento. Fim da organogénesis ou formação do feto - aquisição da forma humana, por parte do novo ser. Quer dizer, o novo ser adquire o aspecto humano: constituição da cabeça, com os seus olhos, nariz e boca; das extremidades, da maioria dos órgãos internos. O que significa a passagem da fase embrionária para a fase fetal . Além do mais, por este período, mais concretamente, por volta do 43.º dia, aparece o primeiro sinal sinal de actividade eléctrica cerebral, cerebral, embora ainda sem substância cinzenta, e ainda com um traçado do electroencefalograma de tipo subcortical. Ora, dado o facto de a paragem da actividade cerebral ser identificada com a morte, a formação e início do funcionamento do córtex cerebral coloca questões importantes, em relação à humanização. Viabilidade – refere-se à possibilidade de o novo ser poder viver fora do útero, embora precise ainda de um apoio especial médico. médico. Perante tudo isto, quais são, pois, as questões éticas do aborto? De tudo quanto acabamos de referir, conclui-se, como bem defendeu o ginecólogo G. Garbelli, que, para a Biogenética, o concebido, logo na sua face embrionária de ovo (zigoto), já pertence à espécie humana . É, indiscutivelmente, singular , isto é, é, distinto
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dos seus progenitores. E E adquire, imediatamente, um mecanismo de programação do próprio plano de desenvolvimento, desenvolvimento, funcionando com modalidades autónomas . Assim, acrescenta ainda Garbelli, o óvulo fecundado é um ser humano, pela sua
origem, pela sua finalidade; pelas suas virtualidades ou potencialidades humanas, que, enquanto tais, são completas, logo no acto da concepção. Isto não significa que a tarefa da sua hominização já tenha terminado. O homem, até à sua morte, é sempre um projecto-de-ser-homem, um ser-humano-em-evolução. Porém, ao longo deste processo, já não registará saltos qualitativos assinaláveis, qualitativos assinaláveis, embora tenha momentos decisivos, em sua evolução. O ovo ou zigoto humano é, desde logo, distinto do ovo de qualquer outro animal ou ser não humano. E é tanto mais condenável interromper este movimento evolutivo do embrião humano, quanto mais fraco e desprotegido ele se mostra, por ocasião da sua concepção e desenvolvimento embrionário ou fetal. É verdade que alguns querem fazer depender a hominização desse novo ser, da sua capacidade relacional, da sua aceitação pelos pais, ou mesmo da aquisição de uma cultura. Mas nós rejeitamos essa pretensão, na medida em que todas essas características podem faltar também em pessoas adultas. E quanto maiores forem as deficiências de uma pessoa, a este nível, tanto mais elas traduzirão uma sua extrema debilidade, e tanto maior deverá ser o nosso empenho em a proteger e defender. Assim temos também de proteger e defender a humanidade do embrião ou do feto. Nesta lógica, ainda que, embora com muita prudência, pudessem, eticamente, ser tolerados e aceites o aborto terapêutico, o eugénico e o ético ou humanitário , o aborto psico-social ou doutro tipo é condenável, proibido e inaceitável. inaceitável.
3.2. A Esterilidade 3.2.1. Combate à esterilidade e questões ética correlativas Para lutar contra a esterilidade, tanto masculina como feminina, dispõe, hoje, a ciência, de um conjunto de técnicas designadas por Reprodução Medicamente Assistida (RMA). São eles: -
a Inseminação artificial (IA);
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a Transferência Intratubária de Gâmetas (GIFT);
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a Transferência Intratubária de Zigotos (ZIFT); 97
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e a Fertilização in vitro, seguida de transferência de embriões (FIVETE).
Por inseminação artificial (IA) entende-se (IA) entende-se a transferência mecânica de espermatozóides, previamente recolhidos e tratados, tratados, para o interior do aparelho genital genital feminino. Por Transferência Intratubária de Gâmetas entende-se a transferência de gâmetas (espermatozóides e ovócitos), previamente isolados, para o interior das trompas uterinas, de modo a que só aí se dê a sua fusão. Donde, a fecundação tem lugar in vivo. Por transferência Intratubária de Zigotos (ZIFT) (ZIFT) entende-se a fusão dos gâmetas in
vitro, e posterior transferência, depois da fusão, para o interior das trompas uterinas. Quanto à FIVETE ou seja, fertilização in vitro e transferência dos embriões, ela acontece, quando o zigoto ou os zigotos são incubados in vitro, no mesmo meio, em que surgiram, até que se dê a sua segmentação. O embrião ou embriões resultantes (no estádio de duas a oito células) são, então, transferidos para o útero ou para as trompas.
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Os espermatozóides espermatozóides podem podem ser mantidos congelados, por períodos indefinidos, em condições que lhes permitam reter suficiente actividade, e armazenados em bancos de esperma.
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Quanto aos ovócitos ovócitos é, é, por agora, tecnicamente insatisfatório o seu congelamento e armazenamento.
Quanto à proveniência dos materiais biológicos, nas técnicas supracitadas, os espermatozóides e os ovócitos ovócitos podem provir do do casal, casal, e, nesse caso, a Reprodução homóloga.. Medicamente Assistida Assistida (RMA) diz-se homóloga Se, pelo contrário, um ou ambos os tipos de gâmetas do casal não são viáveis, e se recorre a um dador de espermatozóides espermatozóides ou/e de ovócitos, ovócitos, exterior ao casal, a heteróloga.. Reprodução Medicamente Medicamente Assistida (RMA) diz-se heteróloga Quando a mulher, por alguma razão, não pode engravidar, apesar de possuir gâmetas viáveis, viáveis, recorre-se à mãe de substituição, substituição, que criará o embrião em suas 98
entranhas, para, depois, entregar o filho aos dadores dos gâmetas. gâmetas . Mas casos existem,em que a mãe não só recebe o embrião, como também contribui com os seus ovócitos. Disto, resulta a dissociação dos elementos. Os elementos de paternidade e de maternidade estarão separados. O que O que permite falar-se não só de pai e mãe ou mãe ou de pai de pai e mãe adoptivos adoptivos,, mas também de pai e mãe biológicos biológicos e de pai e mãe sociais, sociais, como categorias diferenciadas.
FICHA TÉCNICA Autor: Silvério Ronguane Arranjo gráfico: Faustino Lessitala Nº de Registo: Maputo, Março 2009 99