DIÁLOGOS SOBRE A RELIG RELIGIÃ IÃO O NATURAL
CLÁSSICOS
J. Michelet — O Povo Casmurr o Machado de Assis — Dom Casmurro J.-J. Rousseau — O Contrato Social Mét odo R. Descartes — Discurso do Método N. Maquiavel Maquiavel — O Príncipe Erasmo — Elogio da Loucura Discu rso sobre sobr e o Espírito E spírito Positi Posit i A. Comte — Discurso Cândido Voltaire — Aristóteles — Política Dos Delitos D elitos e das Penas Pen as C. Beccaria — Dos T. Hobbes — Do Cidadão P. Verri — Observações sobre a Tortura Lancelot/Arnauld Lancelot/Arnauld — Gramática de Port-Royc Vários — Poe Poesia sia Lírica Latina Diálogos Diálog os sobre a Religião Reli gião Natur Na tur D. Hume —
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
David Hume
Próximos lançamentos
J.-J. Rousseau — Emílio Espírit o das Leis Le is Montesquieu — O Espírito
TRADUÇÃO
JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES
CLÁSSICOS
J. Michelet — O Povo Casmurr o Machado de Assis — Dom Casmurro J.-J. Rousseau — O Contrato Social Mét odo R. Descartes — Discurso do Método N. Maquiavel Maquiavel — O Príncipe Erasmo — Elogio da Loucura Discu rso sobre sobr e o Espírito E spírito Positi Posit i A. Comte — Discurso Cândido Voltaire — Aristóteles — Política Dos Delitos D elitos e das Penas Pen as C. Beccaria — Dos T. Hobbes — Do Cidadão P. Verri — Observações sobre a Tortura Lancelot/Arnauld Lancelot/Arnauld — Gramática de Port-Royc Vários — Poe Poesia sia Lírica Latina Diálogos Diálog os sobre a Religião Reli gião Natur Na tur D. Hume —
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
David Hume
Próximos lançamentos
J.-J. Rousseau — Emílio Espírit o das Leis Le is Montesquieu — O Espírito
TRADUÇÃO
JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES
RELIGION Título original: DIALOGUES CONCERNING NATURAL RELIGION Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1992
para a presente edição
1.° edição brasileira: novembro de 1992
Tradução: José Oscar de Almeida Marques Preparação do original: Silvana Vieira Revisão tipográfica t ipográfica: : Sandra Rodrigues Garcia Pier Luigi Cabra
Produção gráfica: Geraldo Alves Composição: Antonio Cruz
Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes (CIP) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hume, David, 1711-1776. Diálogos sobre a religião natural / David Hume ; [tradução José Oscar de Almeida Ma rques ; prefácio prefácio de Michael Wrigley]. — São Paulo : Martins Fontes, 1992. — (Clássicos)
Bibliografia.
SUMÁRIO
Prefácio Bibliografia Cronologia Nota Nota ao ao texto texto desta desta traduçã tradução o
VII VI I XIX XXIII XXVII
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATUR NATURAL AL............................................................ 1 Panfilo a Hérmipo .................................................3 Parte I .....................................................................7 Parte II.................................................................. II ..................................................................25 Parte III ..........................................................................45 Parte IV .................................................................57 Parte V ..................................................................69 Parte VI .................................................................79 Parte VII ...............................................................91
PREFÁCIO foi um dos mais im portantes filósofos do século XVIII. Seus escritos percorrem uma ampla variedade de tópicos, tanto filosóficos como de caráter mais geral, indo da economia, política, estética e história até a m etafísica, epistemologia e ética. Seu trabalho mais significativo é o Tratado da Natureza Humana, em três volumes (1739 e 1740), que contém a exposição mais com pleta e detalhada de seu sistema filosófico. Ele redigiu, mais tarde, dois textos mais concisos: a InvestiDavid Hume (1711-1776)
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL VIII porte de Voltaire como "a melhor história já escrita em qualquer idioma", e os últimos terminaram por ser reconhecidos como clássicos da literatura inglesa, estando incluídos, juntamente com 'os ensaios de Francis Bacon, entre os exemplos mais excelentes do gênero já escritos nessa língua. Na qualidade de filósofo, Hume jamais deteve profissionalmente qualquer posto oficial, mas dedicou-se, ao invés disso, a uma variedade de ocupações, atuando sucessivamente como preceptor, bibliotecário e diplomata, até chegar a ser reconhecido, por fim, como a principal figura literária da Grã-Bretanha, podendo viver, de maneira confortável, com a renda proveniente de seus escritos. A base da filosofia de Hume é o princípio em pirista de que todo conhecimento so pode provir da experiência sensível. Isto levou-o não apenas a re jeitar toda a metafísica a priori, do tipo favorecido por Descartes, Leibniz e Spinoza, mas também à conclusão, muito mais radical, de que pouquíssimas de nossas crenças ordinárias e decididamente nãometafísicas podem ser racionalmente justificadas. Esta vertente cética e negativa constitui, porém, apenas um aspecto do pensamento de Hume, o qual
PREFÁCIO
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Ambas as vertentes do pensamento de Hume, positiva e negativa, podem ser vistas operando em suas discussões sobre a religião. Os Diálogos sobre a Religião Natural, escritos entre 1751 e 1755 e sub-
metidos a diversas revisões antes de sua publicação póstuma em 1779, constituem a contribuição mais substancial e influente de Hume á filosofia da religião, e vemos, neste trabalho, a operação do lado crítico e negativo de seu pensamento, quando ele submete as crenças religiosas mais centrais a uma pene trante investigação, a partir da perspectiva do empirismo radical. Em seu outro trabalho mais importante sobre a religião, a História Natural da Religião (1751), Hume adota uma abordagem naturalista das manifestações religiosas, e oferece um relato pioneiro, em termos antropológicos, psicológicos e históricos, da função e da origem das crenças religiosas em diversas épocas e culturas, procurando desse modo explicar por que essas crenças estão tão difundidas, embora sejam, do ponto de vista de sua nacionalidade, completamente injustificáveis. Entre outras de suas discussões mais breves, mas também im portantes acerca da religião, está o ensaio sobre os milagres, que Hume incluiu na Investigação acerca
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
subversivos para serem publicados com segurança enquanto o autor estava vivo. E absolutamente certo que Hume rejeitou todos os aspectos centrais do Cristianismo, e considerou a religião em geral não apenas como falsa, mas também como efetivamente perniciosa. Seria um erro, porém, descrevê-lo como sendo realmente um ateísta. Conta-se que, estando ele uma vez presente a um jantar em Paris na casa do Barão d'Holbach, famoso philosophe e materialista, e tendo a conversação se dirigido para o tema da religião, Hume fez a observação de que nunca, em sua vida, havia encontrado um genuíno ateísta. A isto d'Holbach replicou imediatamente: "Bem, o senhor está com sorte. Há dezessete deles sentados ao redor desta mesma m esa neste exato momento." Não há razão para supor que Hume estivesse sendo insincero na ocasião. Pois, embora ele evidentemente concordasse com d'Holbach e seus amigos philosophes sobre não haver qualquer evidência para justificar a crença na existência de Deus, a diferença entre eles residia no fato de que estes últimos pensavam poder afirmar, com absoluta certeza, que Deus não existe; ao passo que, na perspectiva de Hume, a questão geral sobre a existência de Deus, jun-
PREFÁCIO
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tureza religiosa, e seu argumento não procura esta belecer a impossibilidade de que um milagre venha a ocorrer, mas apenas que nunca poderemos dispor de uma evidência suficientemente forte para estarmos certos de que ele de fato ocorreu. Quanto aos milagres propriamente ditos, Hume é bastante cuidadoso para não negar dogmaticamente a possibilidade de sua ocorrência. Nos Diálogos sobre a Religião Natural, Hume volta sua atenção para a questão da existência de Deus, e é aqui que sua atitude agnóstica frente a es-
sa questão é defendida de forma mais extensa e minuciosa. Poderia parecer, á primeira vista, que o ob jetivo dos Diálogos é menos radical, dado que os participantes concordam, logo de início, que a existência de Deus não pode estar em julgamento, e que
o único ponto em que há lugar para debate diz res peito determinação da natureza desse ser divino. Aqui, no entanto, Hume está de fato sendo insincero, e não pode deixar de sê-lo, para evitar infringir
abertamente os limites fixados pelas convenções que estabeleciam o que era permissível, na época, em m atéria de discussão sobre temas religiosos. E verdade que, na Grã-Bretanha setecentista, esses limites eram
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
Nos Diálogos , Hume rejeita após uma breve discussão (Parte IX) a possibilidade de um argumento a priori para a existência de Deus, mas o principal
foco de interesse é uma longa e detalhada discussão e refutação do argumento conhecido como o Argumento do Desígnio. A idéia central desse argumento é extremamente simples. Sabemos, a partir de nossa experiência, que entidades complexas e altamen-
te organizadas, como as máquinas, não surgem por puro acaso, mas apenas como resultado de um desígnio consciente da parte de um criador dotado de inteligência. Assim, prossegue o argumento, quando consideramos quão imensamente mais complexo e organizado é o universo como um todo, esta-
mos justificados em concluir que a origem dessa or-
dem e, do mesmo modo, o desígnio consciente de um criador dotado de inteligência, embora, neste ca-
so, deva tratar-se de um ser infinitamente mais inteligente e poderoso do que qualquer ser humano. Nas palavras sucintas com as quais um dos personagens de Hume enuncia o cerne do argumento, "O mundo assemelha-se aos produtos do engenho humano; sua causa, portanto, também deve assemelhar-se às desses produtos.'' (Parte VII)
XIII jestosa construção está desprovida de um espírito:' Mas a discussão de Hume mostra conclusivamente que, por mais atraente que possa ser este argumento sob o aspecto emocional, ele se revela, quando analisa de forma cuidadosa e desapaixonada, como logicamente muito frágil, capaz de provar muito pou co ou quase nada. Não vou tentar resumir os muitos defeitos que Hume detecta no Argumento do Desígnio. Em vez disso, deixo ao leitor comprovar por si mesmo o irresistível poder cumulativo da dialética argumentativa de Hume, à medida que ele traz á luz, de modo seguro e sistemático, as falhas cada vez mais profundas que se escondem sob a superfície aparentemente coesa daquele argumento. Para ilustrar, porém, alguns traços característicos de sua discussão, eis aqui alguns dos problemas que Hume levanta contra os defensores do A rgumento do Desígnio. Uma das ob jeções mais óbvias, que Hume introduz na Parte X dos Diálogos, liga-se ao antigo problema da existência do mal. Se Deus é sumamente bom e onipotente, então ele deve tanto querer como ser capaz de criar um mundo sem sofrimentos. No entanto, dado que o mundo está obviamente repleto de sofri PREFÁCIO
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL XIV conceda que a única maneira de explicar a complexidade e a ordem que observamos no universo é considerá-las como resultando de um desígnio inteligente, isto não fornece nenhuma razão para se acreditar que o universo é o produto de um único criador dotado de inteligência. Se a analogia com nossa experiência constitui um princípio válido de argumentação (e esta é uma suposição crucial de todo o Argumento do Desígnio), então pareceria mais provável que uma entidade tão vasta e complexa como o universo tenha sido o resultado do esforço con junto de vários planejadores, cada um dos quais sen-
do responsável por uma parte ou aspecto do projeto total, do mesmo modo que uma equipe d e arqui-
tetos colabora no projeto de uma grande edificação.
E, como se isto já não fosse ruim o suficiente, Hume passa a questionar o ponto fundamental de que todo o argumento depende, que é a idéia de que a única origem possível da ordem e complexidade do
universo é um desígnio intelectual consciente. Contra isto, Hume menciona certos exemplos óbvios, como a reprodução das plantas e animais, nos quais entidades altamente complexas e organizadas surgem sem o concurso de qualquer desígnio consciente des-
XV des que observamos em uma pequena porção do universo, determinadas conclusões acerca da natureza do universo como um todo, e acerca de sua origem. Assim, a estratégia argumentativa geral do Argumento do Desígnio revela-se, em mais um aspecto, como fundamentalmente falaciosa. Hume apresenta sua crítica ao Argumento do Desígnio sob a forma de um diálogo entre três personagens. Dois deles, Cleantes e Demea, argumentam, cada um á sua maneira, em favor da existência de Deus. Demea oscila entre duas posições: em alguns momentos ele defende a possibilidade de uma prova a priori da existência de Deus, enquanto em outros ele insiste que a fé, por si só, é suficiente como garantia da crença nessa existência. Cleantes, em contrapartida, pensa que a existência de Deus só pode ser estabelecida por meio de argumentos a posteriori, ou seja, baseados na experiência, e é ele o defensor do Argumento do Desígnio. O terceiro personagem, Filo, que é indubitavelmente o expositor das concepções do próprio Hume, insurge-se contra qualquer tipo de prova da existência de Deus, e advoga uma postura agnóstica sobre a questão. Diversas razões podem explicar o fato de Hu PREFÁCIO
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL XVI Cleantes (que são, ambos, porta-vozes da religião) algumas das criticas ás provas da existência de Deus, Hume consegue desviar a atenção das plenas implicações agnósticas de sua argumentação. Além disso, Hume pode fazer com que seus personagens comentem o próprio progresso da discussão, de uma ma-
neira deliberadamente calculada para iludir o leitor superficial. O exemplo mais óbvio disto e o veredito final formulado pelo narrador Panfilo, ao declarar que o ponto de vista definido por Cleantes é o mais plausível dos três. E claro que Hume não pretende que esse veredito seja levado a sério, como coincidindo com sua própria posição real sobre o assunto, já que ele o atribui a Panfilo — o qual, devemos lem-
brar, é um discípulo de C leantes e, portanto, alguém de quem se poderia muito bem esperar que viesse a favorecer as concepções de seu mestre. Um exemplo um pouco menos óbvio dessa mes-
ma estratégia ocorre no final da Parte X dos Diálo gos, quando Filo, que havia até então mantido consistentemente uma atitude crítica e cética ante a existência de Deus, inverte subitamente sua posição e passa a concordar com Cleantes quanto à validade do -gumento do Desígnio. Mas o fato de que, tam bé qui, Hu está sendo irônico to e clar
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be uma vivida ilustração no fato de que Mam Smith, amigo íntimo de Hume, considerou os Diálogos — mesmo na forma em que foram redigidos, com suas reais conclusões cuidadosamente disfarçadas — como excessivamente perigosos e subversivos para arriscar-se a atender ao pedido de seu amigo e assegurar sua publicação póstuma. Quando eles foram finalmente publicados, graças ao empenho do sobrinho de Hume, o impressor recusou-se a ter seu nome identificado nos volumes. A influência do argumento de Hume foi profunda, e os Diálogos constituem sem dúvida uma das grandes linhas divisórias nas d iscussões filosóficas so bre a religião. Antes de Hume, quase todos os grandes filósofos tinham admitido que a existência de Deus podia ser demonstrada, e tinham atribuído ao conceito de Deus um papel central em seus sistemas filosóficos. O impacto das idéias de Hume é expressivamente ilustrado pelo fato de que o próximo grande filósofo a sucedê-lo, Immanuel Kant, longe de tentar provar a existência de Deus, argumentou que todas as provas desse tipo são impossíveis, e insistiu em que somente a fé pode constituir-se numa base para a religião. Após Hume, a relação entre a fé e a razão jamais poderia voltar a ser o que era. Seus
BIBLIOGRAFIA
A edição definitiva do texto inglês dos Diálogos encontra-se em Hume on Religion, editado por John V. Price e A. Wayne Colver (Clarendon Press, Oxford, 1976). Este volume contém também um texto definitivo da História Natural da Religião. A edição dos Diálogos preparada por Norman Kemp Smith é indispensável, e contém uma longa introdução (mais de cem páginas) na qual, além de uma grande riqueza de informações sobre as várias
revisões do texto realizadas por Hume, a história de
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL XX J. C. A. GASKIN Hume's Philosophy of Religion. Macmillan, Londres, 1 9 7 8 . Outras importantes discussões, a partir de pontos de vista bastante diversificados, sobre os Diálo- gos e sobre as perspectivas de Hume diante da religião em geral, incluem: R. J. BUTLER "Natural Belief and the Enigma of Hume". Archiv für Geschichte der Philosophie, 1960. NICHOLAS CAPALDI "Hume's Philosophy of Religion: God without Ethics". International Jour'
nal for the Philosophy of Religion, 1976.
J. C. A. GASKIN "God, Hume and Natural Belief". Philosophy, 1974. "
C. A. GASKIN Hume's Critique of Religion". Philosophy, 1976. Journal of the History of GEORGE J. NATHAN "The Existence and Nature of God in Hume's Theism", in D. Livingston e J. King (orgs.) Hume: A Re-evaluation. Fordham Univ. Press, Nova York, 1976. JAMES NOXON "Hume's Agnosticism PhilosoJ.
" .
phical Review, 1 9 6 4 . Reimpresso em V. C. Chap pell (org.) Hume: A Collection of Critical Essays.
Anchor, Nova York, 1966. JAMES NOXON "In Defence of 'Hume's Agnos-
BIBLIOGRAFIA
XXI
KEITH E. YANDELL "Hume on Religious Belief"
in D. Livingston e J. King (orgs.) Hume: A Reevaluation.
O mais abrangente estudo da filosofia de Hume como um todo (um clássico ainda não superado) é: NORMAN KEMP SMITH The Philosophy of David Hume: A Critical Study of Its Origins and Central Doctrines. Macmillan, Londres, 1941.
Importantes trabalhos mais recentes sobre vários as pectos da filosofia geral de Hume incluem: ANNETTE BAIER A Progress of Sentiments: Re flections on Hume's Treatise. Cambridge, Mass., Harvard Univ. Press, 1991. DUNCAN FORBES Hume's Philosophical Politics C.U.P., 1975.
PETER JONES Hume's Sentiments: Their Cicerronian and French Context. Edinburgh Univ. Press, 1982.
DONALD W. LIVINGSTON Hume's Philosophy of Common Life. Univ. of Chicago Press, 1984. YVES MICHAUD Hume et la fin de la philosophie. PUF, Paris, 1983. DAVID MILLER Philosophy and Ideology in Hume's
XXII
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
JOHN P. WRIGHT The Sceptical Realism of David Hume. Manchester Univ. Press, 1983. A biografia definitiva de Hume é: E. C. MOSSNER The Life of David Hume, V . edição revisada, Clarendon Press, Oxford, 1980. Importantes coletâneas de artigos sobre vários as pectos do trabalho de Hume incluem: V. C. CHAPPELL (org.) Hume: A Collection of Critical Essays. Anchor, Nova York, 1966. D. LIVINGSTON e J. KING (orgs.) Hume: A Reevaluation. Fordham Univ. Press, Nova York,
CRONOLOGIA
1976.
K. R. MER RILL e ROBER T SHAHAN (orgs.) David Hume: Many-Sided Genius. Oklahoma Univ.
Press, Norman, 1976. G. R. MO RICE (org.) David Hume: Bicentenary Pa-
Edinburgh Univ. Press, 1977. D. NORTON, N. CAPALDI e W. ROBINSON (orgs.) McGill Hume Studies. Austin Hill Press, pers.
San Diego, 1976. D. NORTON e R. POPKIN (orgs.) David Hume: Philosophical Historian. Bobbs-Merrill, Nova York, 1965.
1711. Nasce em Edimburgo, em 7 de maio, Da-
vid Hume, de uma família da pequena no breza da Escócia.
1712. 1713.
Nasce Jean Jacques Rousseau. Nasce Denis Diderot. Publicação dos Trés diálogos entre Hilas e Filonous de Berkeley, então com 28 anos.
1714. Morre o pai de Hume.
1716.
Nasce Condillac. Leibniz: A monadologia. Morte de Leibniz.
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
1725.
Vico: A ciência nova. Voltaire exilado na Inglaterra. Morte de Isaac Newton. Nas ce L essing. Hume viaja á Françt, onde se instala em
1726. 1727. 1729.
1734.
e depois em La Fléche, no mesmo lugar onde Descartes estudara. Inicia a redação do Tratado sobre a natureza humana. 1737. Retorna a Londres. 1739. Publicação dos dois primeiros livros do Tratado sobre a natureza humana, que não conseguem nenhum êxito. 1740. Publicação do terceiro livro do Tratado sobre a natureza humana. 1741. Publicação dos Ensaios morais e políticos, obra mais fácil e popular com que Hume pretendia superar o fracasso comercial do Tratado; consegue boa acolhida. Reims
D'Alembert: Tratado de dinâmica. 1745. Hume é rejeitado na tentativa de obter a ca1743.
deira de filosofia moral na Universidade de Edimburgo. Torna-se preceptor de um jovem marquês que enlouquece.
CRONOLOGIA
XXV
de rebatizados Investigações sobre o entendimento humano. Montesquieu: O espírito das leis. 1749. Nasce Goethe. Buffon inicia a publicação de sua História natural. 1751. De volta á Inglaterra, Hume publica a Investigação sobre os princípios da moral. E-lhe
negada a cadeira de lógica da Universidade de Edimburgo.
Publicação do primeiro volume da Enciclopédia. 1752. Hume publica os Discursos políticos; redação dos Diálogos sobre a religião natural.
Torna-se bibliotecário da ordem dos advogados de Edimburgo; consagra-se á redação de uma grande História da Inglaterra. 1753.
Morre Berkeley.
Buffon: Buffon sobre o est ilo. 1754. Hume publica o primeiro volume da História da Inglaterra. Morre Christian Wolff. Rousseau: Discurso sobre a desigualdade. 1755. Kant: História geral da natureza e teoria do céu. 1756. Publicação do segundo volume da História
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
personagem da moda; contato com os enciclopedistas. 1766. Retorna a Londres como protetor de Rousseau, que se julga perseguido; as relações entre os dois são de boa amizade, no início, mas logo degeneram. 1767. Rousseau volta para a França. Para esclarecer o desentendimento, Hume redige a "Ex- posição sucinta sobre a contestação entre o sr. H um e e o sr. Rousseau, com as peças justificativas", editada pelos enciclopedistas. 1769.
1770.
1776.
Já rico e famoso, como sempre desejara ser, Hume retorna a Edimburgo.
Diderot: O sonho de DAlembert. Nascem Beethoven e Hegel.
Morre David Hume, em 25 de agosto. Rousseau: Devaneios de um caminhante solitário. Adam Smith: Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações.
1779.
Publicação dos Diálogos sobre a religião tural.
na-
NOTA AO TEXTO DESTA TRADUÇÃO Os Diálogos sobre a Religião Natural de David Hume foram redigidos sob forma de uma longa carta, na qual o personagem Panfilo relata a seu amigo Hérmipo suas lembranças de uma conversação filosófica que presenciara algum tempo atrás. O tempo da narrativa não coincide, assim, com o tempo dos acontecimentos, e Hume não faz uso do recurso — comum em textos dialógicos — de prefixar os nomes dos interlocutores a suas falas, á maneira de um texto teatral. Contudo, algumas edições recentes deste
XXVIII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL gidas apenas a Hérmipo. Visando conciliar as vantagens de uma apresentação dial6gica com o respeito ao contexto epistolar em que ela se situa, a presente edição identifica nominalmente as falas dos participantes Demea, Cleantes e Filo, distinguindo a narrativa de Panfilo pelo uso de tipos itálicos. A exceção desse recurso meramente tipográfico (e da necessária modernização da pontuação), esta tradução é absolutamente fiel ao texto original, segundo a consagrada edição de Norman Kemp Smith. Todas as notas de rodapé numeradas são de autoria de Hume, sendo as notas editoriais introduzidas por asteriscos. José Oscar de Almeida Marques
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
PANFILO A HÉRMIPO Pi se n otou, m eu car o Hé rmipo, q ue, embo ra os filósofo s da A ntigüid ade ten ham tr ansmitido a maior parte de seu s ensinamen tos sob forma de diálogo, ess e método de exposição foi pouco utilizado em épocas posteriores, e raramente teve sucesso nas mãos daqueles que o experimentaram. Na verdade, uma discussão exata e sistemática, tal como hoje se requer dos que se dedicam às investigações filosóficas, conduz naturalmente o expositor ao estilo metódico e didático, no q ual se pode exp licar de imediato e se m preâ mbulos qual é o objetivo visado, procedendo-se, logo em seguida, à dedução das provas que o fundamentam. Parece pouco natural apresentar um sistema sob forma de conver sação; e, se bem que o escritor de diálogos p retenda, ao afastar-se do. estilo direto de exposição, dar um ar mais livre a seu texto e evitar o aparecimento de autor e leitor, ele se arrisca a uma inconveniência ainda maior, fazendo surgir as figuras de pedagogo e discípulo. Ou então, se ele conduz a disputa dentro de
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
um clima natural de compan heirismo, introduzindo uma grande variedade de tópicos e mantendo um equilíbrio adequado entre os participantes, ocorre freqüentemente que muito tempo será gasto em preparações e transições, de tal modo que a graça e elegância do diálogo não poderão, ao final, levar o leitor a sentir se compensado pela ordem, concisão e rigor que a elas são sacrificados. Há, co ntudo, alguns a ssuntos aos q uais a escrita em forma de diálogo é especialmente adequada e, ainda hoje, preferível ao método simples e direto de exposição. Assim , qua lquer tópico de dou trina qu e sej a tão óbvio a ponto de quase não adm itir disputa, mas ao mesmo tempo tão importante a ponto de jamais ser demasiado repeti-lo, parece requerer um tratamento desse tipo, no qual a novidade do estilo pode compen sar a trivialidade do assunto, a vivacidade da conver sação refor çar o precei to e a diversid ade de pon tos de vista apresentados pelos vários personagens afastar a aparência de tédio e redundância. Por outro lado, q ualquer q uestão filosófica que se ja tão obscura e incerta a ponto de não ser possível à razão humana chegar a uma conclusão d efinitiva sobre ela parece levar-no s naturalmente (se é q ue, afinal, devemos ocupar-nos dela) ao estilo de diálogo e conversação. Nos casos em q ue ninguém po de razoavelmente estar seguro é permissível a divergência entre pessoas razoaveis. Opiniões opostas, mesmo que não levem a qualquer decisão, proporcionam um agradável entretenimento; e, se o assunto é curioso e interes sante, o livro de uma ce rta form a nos co nvida à participação, unindo assim os dois maiores e mais puros prazeres da vida humana : estudo e con vivência so cial.
PANFILO A HÉRMIPO
5
Todas essas circunstâncias estão afortunadamente presentes no tema da religião natural. Que verdade poderia ser tão óbvia, tão certa, com o a existência de um Deus, reconhecida mesmo pela s épocas mais ignorantes, e para a qual os gênios mais refinados têm-se empenhado ambiciosamente em fornecer novas provas e argumentos? Que verdade é tão importante quanto esta, que é o sustentáculo de todas as nossas esperanças, o fundamento mais seguro da moralidade, o apoio mais firme da sociedade e o único princípio que nem por um momento deve estar ausente de nossos pensamentos e meditações? E, no entanto, ao tratar dessa verdade óbvia e importante, quão obscuras são as questões que surgem acerca da natureza desse Ser Divino, seus atributos, seus decretos, seu plano providencial! Estas questões sempre foram objeto de disputas entre os homens e, relativamente a elas, a razão humana jamais chegou a alguma conclusão segura. Ape sar disso, trata-se de q uestões de tão grande interesse que somos incapazes de refrear nossa incansável curiosidade sobre elas, mesmo que nossas pe squisas mais acuradas não tenham produzido até agora senão dúvidas, incertezas e contradições. Isso foi o que tive oportunidade de observar al gum te mpo a trás, dur ante a p arte do verão que pas sei, como de háb ito, em casa de Clean tes, ao pre senciar suas conversas com Filo e Demea, das quais já lhe transmiti recentemente um relato algo imperfeit a Sua curiosidade, como você me manifestou na oca foi tão estimulada pelo assunto que me sinto obrisião, gado a entrar em detalhe s mais exatos de seus racioc ínios e a apresentar os diversos sistemas que eles desenvolveram em relação a este tópico tão delicado que
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
é a religião natural. O contraste marcante entre suas personali dades fez co m que você alimentasse e xpectativas ainda mais altas, ao opor a rigorosa inclinação filosófica de Cleante s ao descuidado cetici smo de Filo, ou comparar as disposições de cada um deles à ortodoxia rígida e inflexível de Demea. Minha pouca idade tornou-me um simples ouvinte de suas disputas, e a curiosidade natural à juventude fez com q ue toda a cadeia e o nexo de seus argumentos se imprimissem em minha memória de maneira tão profunda que, se gundo esp ero, a narra ção não irá omitir ou obscurecer qualquer parte significativa deles.
PARTE I
Depois de ter-me juntado ao grupo , que encontrei
reunido na biblioteca de Cleantes, Demea cumprimentou-o pelo gran de zelo que e le dedicav a à minh a educação e pela sua incansável perseverança e fidelidade em relação a todos os seus amigos.
Demea: O pai de Panfilo foi seu amigo íntimo, o filho é seu d iscípulo e pode mesmo ser considerado seu filho adotivo, se julgarmos pelos cuidados que você dedica tarefa de educa-lo em todos os campos úteis da literatura e da ciência. E como estou persuadido de que sua prudência não é menor que sua dedicação, vou comunicar-lhe um princípio que segui em relação a m eus próprios filhos, para verificar até que ponto ele concorda com as praticas que você ado-
ta. O método que sigo na educação deles baseia-se no que disse um autor da Antigüidade: "Os estudan-
tes de filosofia devem p rimeiro aprender lógica, de-
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 10 pois ética , em segu ida física, e só por último devem estudar a natureza dos deuses'. Segundo ele, a ciência da teologia natural, por ser a mais profunda e difícil de todas, exige dos estudantes um juízo plenamente amadurecido, e só pode ser confiada sem perigo ás mentes já cultivadas em todas as demais disciplinas. Filo: Será possível que você demore tanto tempo para começar a ensinar os princípios da religião a seus filhos? Não há nisso o perigo de que eles venham a negligenciar ou rejeitar completamente essas opiniões, das quais quase não terão ouvido falar durante todo o curso de sua educação? Demea: E apenas enquanto ciência, sujeita ao raciocínio humano e á discussão que eu protelo o estudo da teologia natural. Minha principal preocu pação é acostumar suas mentes desde cedo á devoção e, através de constante aconselhamento e instrucomo também, segundo espero, através do ção exemplo —, imprimir profundamente em seus jovens espíritos o hábito da reverência para com todos os princípios da religião. Além disso, á medida que vão percorrendo todas as outras ciências, chamo sua atenção para a incerteza de cada uma delas, para as eternas disputas entre os homens, para a obscuridade de toda filosofia e para as conclusões des propositadas e ridículas a que alguns dos maiores gênios chegaram a partir dos princípios da mera razão humana. Assim, depois de ter adestrado suas mentes na prática de uma apropriada submissão e "
1 . Crísipo, de acordo com Plutarco, De Stoicorum repug-
nantis.
PARTE I
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modéstia, não hesito mais em introduzi-los nos maiore s mistérios da religião, sem temer aquela presunçosa arrogância da filosofia, que poderia levá-los a rejeitar as mais bem fundadas doutrinas e opiniões. Filo: Sua precaução em incutir desde cedo a devoção nas mentes de seus filhos é sem dúvida razoável, e é exatamente o que se requer nesta era profana e irreligiosa. Mas o que mais me admira em seu plano de educação é o seu método de tirar proveito dos próprios princípios da filosofia e da erudição, os.quais, ao inspirar o orgulho e a auto-suficiência, levam comumente, em todas as épocas, á d estruição dos princípios religiosos. De fato, notamos que as pessoas vulgares, que não estão familiarizadas com a ciência ou com a investigação rigorosa, são habitualmente levadas, pela observação das infindáveis disputas dos sábios, a desprezar por completo a filosofia e, em conseqüência, a aferrar-se cada vez mais tenazmente aos grandes tópicos de teologia que lhes foram ensinados. E aqueles que adentram um pouco o estudo e a investigação, ao encontrar muitas aparências de evidência nas mais recentes e extravagantes doutrinas, passam a supor que nada é demasiado difícil para a razão humana e, rompendo arrogantemente todas as barreiras, profanam os mais íntimos santuários do templo. Mas, e nisto espero contar com a concordância de Cleantes, uma vez que tenhamos deixado de lado a ignorância, que é o remédio mais eficaz, resta ainda um recurso para im pedir essa liberdade profana. Que os princípios de Demea sejam postos em prática e difundidos! Tornemo-nos plenamente conscientes da debilidade, cegueira e estreiteza da razão humana. Que se dê a
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devida atenção ás incertezas e infindáveis contradições que dela provêm, mesmo em assuntos da vida e da prática cotidianas. Tenhamos presentes diante de nós os erros e ilusões de nossos próprios sentidos, as dificuldades insuperáveis que acompanham os primeiros princípios de todos os sistemas, as contradições que decorrem das próprias idéias de matéria, causa e efeito, extensão, espaço, tempo, movimento e, numa palavra, quantidade, em todos seus aspectos, que é o objeto da única ciência que pode com justiça aspirar a alguma certeza ou evidência. Quando esses tópicos são mostrados em suas verdadeiras cores, tal como o fazem alguns filósofos e quase todos os teólogos, quem poderá preservar um grau suficiente de confiança nessa frágil faculdade da razão a ponto de sentir qualquer respeito por suas conclusões sobre tópicos tão elevados, tão abstratos, tão distantes da vida e da experiência cotidianas? Quando a coesão das partes de uma pedra, ou m esmo a com posição de partes que a torna uma coisa extensa, quando esses objetos familiares, repito, são inexplicáveis e contêm aspectos tão incompatíveis e contraditórios, com que segurança poderemos decidir acerca da origem dos mundos ou rastrear sua história de eternidade em eternidade? Enquanto Filo p ronunciava essas pa lavras, pude observar um sorriso nos rostos de Demea e Cleantes. O de Demea parecia transmitir uma franca satisfaçao
com as doutrinas expostas, mas nas feições de
Cleantes pude distinguir um ar astucioso, como se ele tivesse percebido algum gracejo ou calculada malícia no raciocínio de Filo.
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Cleantes: Assim, o que você propõe, Filo, é que a fé religiosa seja edificada sobre o ceticismo filosófico; e você julga que, se a certeza ou evidência for expulsa de todos os outros campos de investigação, ela se refugiará integralmente nessas doutrinas teológicas, adquirindo aí uma força e autoridade su periores . Sa berem os logo mais , qu ando termin ar es ta reunião, se o seu ceticismo é tão absoluto e sincero como você pretende; veremos então se você se retirará pela porta ou pela janela, e se realmente duvida de que seu corpo será submetido á gravidade ou de que pode machu car-se ao cair, como supõe a opinião popular derivada de nossos sentidos falaciosos e de nossa ainda mais falaciosa experiência. E estas considerações, Demea, são suficientes para amenizar, segundo creio, nossa má-vontade em relação a essa seita humorística dos céticos. Se eles estão realmente falando a sério, não incomodarão o mundo por muito mais tempo com suas dúvidas, manhas e disputas; se, porém, se trata de mera pilhéria, talvez não tenham muita graça, mas jamais constituirão um real perigo, quer para o Estado, para a filosofia ou para a religião. Na realidad e, F ilo, parece certo que, em bora um homem, num acesso temperamental e após intensa reflexão sobre as muitas contradições e imperfeições da razão humana, possa renun ciar inteiramente a toda crença e opinião, é-lhe impossível perseverar nesse ceticismo total, ou expressá-lo em sua cond uta, mesmo durante algumas poucas horas. O s objetos exteriores impõem-se á sua atenção, as paixões o solicitam, sua melancolia filosófica se dissipa e, ainda que exerça o mais violento esforço sobre suas inclinações,
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não será capaz de manter por mais tempo sua débil aparência de ceticismo. E qual seria a razão para im por a si mesmo uma tal violência? Este é um ponto acerca. do qual jamais lhe será possível justificar-se de maneira consistente com seus princípios céticos; de tal modo que, no final das contas, nada pode ser mais ridículo do que os princípios dos antigos pirrônicos, caso eles tenham verdadeiramente buscado, como se diz, estender a todos os campos o mesmo ceticismo que aprenderam nas pregações de sua escola, e que deveriam ter confinado a esses limites. Há, sob este ponto de vista, uma grande semelhança entre as seitas dos estóicos e dos pirrônicos, apesar de terem sido antagonistas perpétuos. Am bas parecem estar fundadas nesta máxima errônea: que aquilo que alguém pode fazer algumas vezes e em alguns estados de espírito pode fazê-lo sempre e em qualquer estado de espírito. Quando o espírito se eleva, por meio da reflexão estóica, até um entusiasmo sublime pela virtude e se excita fortemende bem públite com alguma espécie de honra co, esse sublime sentido de dever não será sobrepu jado pelas dores ou sofrimentos corporais mais extremos; e talvez seja possível, por esse meio, até mesmo sorrir e regozijar-se em meio á tortura. Se isto pode algumas vezes ocorrer, de fato e na realidade, com muito mais razão será possível a um filósofo, em sua escola ou mesmo em seu gabinete, provocar em si mesmo um tal grau de entusiasmo e suportar, na imaginação, a dor mais aguda ou o mais calamitoso evento que possa conceber. Mas como poderá ele sustentar esse próprio entusiasmo? Sua propensão espiritual afrouxa e não pode ser voluntariamente restabelecida, distrações afastam-no de seu caminho, ou
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infortúnios o atingem inesperadamente, e a condição do filósofo decai gradualmente até chegará do plebeu.
Filo: Aceito sua comparação entre estóicos e céticos. Mas pode-se ao mesmo tempo observar que, embora a m ente não consiga, no estoicismo, sustentar os vôos mais altos da filosofia, ela ainda preserva , mesmo na queda mais profunda, algo de sua dis posição anterior; e os efeitos do raciocínio estóico vão manifestar-se em sua conduta cotidiana e em todo o teor de suas ações. As escolas da A ntigüidade, particularmente a de Zenão, produziram exemplos de virtude e constância que parecem espantosos aos tempos presentes. Apenas Sabedoria fútil e falsa Filosofia Mas podiam, num grato feitiço, encantar A dor por um instante, ou a angústia; e excitar A Esperança ilusória, ou armar o peito obstinado De tenaz Paciência, como se de aço tríplice*
Do mesmo modo, se um homem habituou-se ás considerações céticas sobre a incerteza e os estreitos li mites da razão, ele não as esquecerá inteiramente quando dirigir sua reflexão para outros assuntos; ao contrário, em todos os seus princípios e raciocínios filosóficos - embora eu não ouse dizer que também
*Vain Wisdom all and false Philosophy. / Yet with a plea-
sing sorcery could charm / Pain, for a while, or anguish; and
excite / Fallacious Hope, or arm the obdurate breast / With stubborn Patience, as with triple steel. ( Milton, Paraíso Perdido, livro II.)
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 16 em sua conduta cotidiana — ele se revelará como diferente daqueles que nunca formaram quaisquer opiniões sobre o assunto, ou que alimentaram sentimentos mais favoráveis á razão humana. Admito que, seja qual for o ponto a que alguém leve seus princípios especulativos céticos, ele deve agir, viver e comunicar-se como qualquer outra pessoa; e não está obrigado a dar qualquer outra razão para sua conduta além da absoluta necessidade em que se encontra de assim proceder. Se ele chega a estender essas especulações para além do ponto ao qual essa necessidade o obriga, e passa a filosofar so bre tóp icos naturais o u m orais, é porque se s ente seduzido pelo prazer e satisfação que encontra ao ocu par seu temp o dess a forma. E le co nsidera, a lém disso, que todas as pessoas, mesm o em sua vida diária, são obrigadas a compartilhar mais ou menos dessa filosofia; que experimentamos, desde nossa mais tenra infância, um contínuo progresso na formação de princípios mais gerais de conduta e raciocínio; que, quanto maior a experiência que adquirimos e mais forte a razão da qual estamos dotados, tanto maior é a generalidade e o alcance que atribuímos a nossos princípios; e que aquilo que denominamos filo- sofia nada mais é que uma operação mais regular e metódica desse mesmo tipo. Filosofar sobre tais tó picos não se d istingue essencialmente do s raciocínios que realizamos na vida cotidiana, e, em função de seu modo mais exato e escrupuloso de p roceder, podemos esperar de nossa filosofia uma estabilidade maior, se é que não uma maior veracidade. Mas quando estendemos o olhar para além dos
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assuntos humanos e das propriedades dos corpos ao nosso redor, e dirigimos nossas especulações para as duas eternidades — antes e depois do estado atual
das coisas, para a criação e formação do universo, para a existência e as pro priedad es d os esp írito s, p ara os poderes e operações de um Espírito universal onipotente, onisciente, imutável, infinito e incom preensível, que existe sem ter um começo nem um fim, é preciso que nos tenhamos afastado muitíssimo de qualquer tendência ao ceticismo, por mínima que seja, para não experimentarmos o temor de que estamos aqui adentrando uma região que se situa muito além do alcance de nossas faculdades. Quando nossas especulações se restringem aos negócios, á moral ou á política, podemos a cada instante apelar para o senso comum e para a experiência, que fortalecem nossas conclusões filosóficas e removem (em parte, ao menos) a desconfiança que acertadamente experimentamos frente a todo raciocínio demasiado sutil e refinado. No caso do s raciocínios teológicos, contudo, não dispomos dessa vantagem; e, ao mesmo tempo, estamos lidando com objetos que são sem dúvida excessivamente vastos para que possamos ap reend ê-los, e que, de todos, são os que mais esforço exigem para que se tornem familiares á nossa compreensão. Somos como forasteiros em uma terra estranha, aos quais tudo parece suspeito e que permanentemente correm o risco de transgredir a s leis e os costumes das pessoas com quem convivem e se relacionam. Não sabemos em que medida deveríamos, nesses assun tos, confiar em nossos métodos usuais de raciocínio, dado que não podemos responder por eles nem mesmo na vida
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ordinária e no domínio ao qual eles são especialmente apropriados, sendo inteiramente guiados, em seu emprego, por uma espécie de instinto ou necessidade. Todos os céticos alegam que a razão, se considerada em abstrato, fornece argumentos irrespondíveis contra si mesma, e que jamais poderíamos sustentar alguma convicção ou certeza, sobre qualquer assunto, se não fosse pelo fato de que os raciocínios céticos, sendo tão refinados e sutis, são incapazes d e se contrapor aos argumentos mais sólidos e naturais, derivados dos sentidos e da experiência. Mas é claro que, no momento em que nossos argumentos perdem essa vantagem e se afastam da vida comum, eles se colocam em pé de igualdade com o ceticismo mais refinado e não podem mais opor-se a ele e contrabalançá-lo. Ambos passam a ter o mesmo peso, e a mente é levada a permanecer em sus pens o entre eles. E é exata men te essa s uspensã o, ou equilíbrio, que constitui o triunfo do ceticismo. Cleantes: Noto porém, com relação a você, Filo, e a todos os céticos especulativos, que sua doutrina e prática estão em fran co desacordo, tan to nos pontos mais abstratos da teoria quanto na conduta da vida diária. Você aceita a evidência sempre que esta se lhe manifesta, não obstante seu pretenso ceticismo. E noto, também, que muitos da sua seita são tão peremptórios quanto aqueles que emitem as mais expressas declarações de certeza e segurança. Não seria ridículo, na verdade, pretender rejeitar a explicação oferecida por Newton para o admirável fenômeno do arco-íris sob o argumento de que essa explicação envolve uma dissecação minuciosa dos raios de luz, obviamente muito refinada p ara a com preen são h uman a? E que diríam os a alguém que, s em
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ter nada em especial a objetar aos argumentos de C o pérnico e Galileu em favor do movimento da Terra, se recusasse a aceitá-los com base no princípio geral de que tais assuntos são demasiado grandiosos e inatingíveis para serem explicados pela estreita e enganosa razão da humanidade? Como você bem observou, há certamente um tipo de ceticismo brutal e ignorante, que inspira ás pess oas ordinárias u m preconceito geral con tra aquilo que não podem en tender com facilidade, e as faz re jeitar todo princípio que exija um raciocínio elaborado para sua prova e estabelecimento. Essa espécie de ceticismo é fatal para o conhecimento, não para a religião, pois se vê que aqueles que o professam com mais fervor dão seu assentimento, não apenas ás grandes verdades do teísmo e da teologia natural, mas até ás doutrinas mais absurdas que a superstição tradicional lhes tenha recomendado. E les crêem firmemente em bruxas, embora não acreditem nem dêem atenção mais simples proposição de Euclides. Mas os céticos filosóficos e refinados sucumbem a uma inconsistência de natureza oposta. Eles levam suas investigações aos recantos mais intrincados da ciência e, a cada passo, dão seu assentimento em pro porção evidência que encontram. São até mesmo obrigados a reconhecer que os objetos mais enigmáticos e remotos são aqueles que a filosofia explica melhor. A luz foi realmente dissecada, e o autêntico sistema dos corpos celestes foi descoberto e verificado. Mas a nu trição dos organismos pelos alimentos constitui ainda um mistério inexplicável, assim corno é incompreensível a coesão das partes da m ateria. Esses céticos são forçados, portanto, em todas
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as questões, a considerar separadamente cada evidência particular, e a conformar seu assentimento ao grau preciso de evidência existente. Essa é sua prática em todas as ciências naturais, matemáticas, morais e políticas. E por que não fazer o mesmo, eu perg unto, no caso da teologia e da relig ião? Por q ue apenas as conclusões desta última espécie deveriam ser rejeitadas com base na suposição geral de uma insuficiência da razão humana, sem qualquer discussão específica da evidência pertinente? Não constitui essa conduta tão desigual uma prova manifesta de preconceito e obsessão? Você diz que nossos sentidos são enganadores, e que nossas idéias — mesmo dos objetos mais familiares: extensão, duração, movimento — estão cheias de disparates e contradições. Desafia-me a resolver as dificuldades ou reconciliar as oposições que nelas se encontram. Não tenho capacidade para uma tarefa tão vasta, nem tempo para realizá-la; e perce bo que ela é supérflua. Sua própria conduta, em todas as circunstâncias, refuta os princípios que você proclama e demonstra a mais firme confiança nos ditames usuais da ciência, da moral, da prudência e do comportamento. Jamais concordarei com a severa opinião daquele autor celebrado , para quem os céticos são uma seita, não de filósofos, mas apenas de mentirosos. Mas posso afirmar (sem ofend er, espero) qu e eles formam uma seita de galhofeiros e humoristas. De minha parte, porém, sempre que me sentir inclinado ao prazer e á diversão, procurarei sem dúvida um entrete2
2. L ' Art de p enser.
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nimento de natureza menos complicada e obscura. Uma comédia, um romance ou, no máximo, um livro de história parecem constituir uma recreação mais natural do que tais sutilezas e abstrações metafísicas. Em vão procurará o cético estabelecer uma diferença entre a ciência e a vida cotidiana, ou entre uma ciência e outra. Os argumentos que se empregam em todas elas, se corretos, são de natureza similar e contêm a mesma força e evidência. E, se houver alguma diferença entre elas, a vantagem estará inteiramente do lado da teologia e da religião natural. Muitos princípios da mecânica baseiam-se em raciocínios extremamente complicados; não obstante, ninguém que aspire ao conhecimento científico, nem sequer um cético especulativo, alega manter a menor dúvida sobre eles. O sistema copernicano contém o paradoxo mais surpreendente e mais contrário ás nossas concepções naturais, ás aparências e aos nossos próprios sentidos; apesar disso, até os monges e os inquisidores estão hoje coagidos a suspender sua oposição a ele. E por que deveria Filo, um homem de espírito tão liberal e instruído, abrigar
indiscriminadamente escrúpulos gerais com relação á hipótese religiosa, que se funda nos argumentos mais simples e óbvios, e que, a menos que se defronte
com obstáculos artificiais, goza de tão fácil acesso e admissão á mente humana? E aqui podemos observar [dirigindo-se a Demea], uma circunstância bastante curiosa na história das ciências. Após a união da filosofia com a religião popular, á época do estabelecimento inicial da religião cristã, nada foi mais usual, entre os que ensi-
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navam a religião, do que as pregações contra a razão, contra os sentidos e contra todos os princípios derivados puramente da indagação e investigação humanas. Todos os tópicos dos an tigos acadêmicos fo ram adotados pelos Padres da Igreja, e desde então foram propagados, durante várias eras, a partir de todas as escolas e púlpitos da Cristandade. Os reformadores abraçaram os mesmos princípios de ra-
ciocínio ou, antes, de pregação; e todos os panegíricos sobre a excelência da fé estavam infalivelmente mesclados de alguns severos ataques satíricos á razão natural. E mesmo um célebre prelado 3 da Igre ja Romana, um homem de vasta erudição que escreveu uma demonstração do cristianismo, compôs
também um tratado que incorpora todas as astúcias do mais atrevido e deslavado pirronismo. Locke parece ter sido o primeiro cristão que se aventurou abertamente a afirmar que a fé não era nada mais
que uma espécie de razão, que a religião era apenas um ramo da filosofia e que uma cadeia de argumentos, similar á que servia para estabelecer qualquer verdade em moral, política ou física, era sempre em pregad a na des cobe rta d e todos os prin cípios de teologia, natural e revelada. O mau uso qu e Bayle e outros libertinos fizeram do ceticismo filosófico dos Padres da Igreja e dos primeiros reformadores difundiu ainda mais o sentimento judicioso de Locke. De um certo modo, todos aqueles que aspiram ao raciocínio e á filosofia admitem hoje que ateu e cético são quase sinônimos. E, assim como é certo que ninguém pode estar falando a sério ao se colocar en3.
Mons. Huet.
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tre os últimos, com muito gosto eu esperaria que fossem igualmente escassos os que seriamente se incluem entre os primeiros. Filo: Você não se lembra da excelente afirmação de Lord Bacon sobre esse tópico? Cleantes: Que a filosofia, quando é pouca, faz do homem um ateu, e quando é muita, converte-o á religião. Filo: Essa também é uma observação muito judiciosa, mas o que tenho em vista é outra passagem, na qual, tendo-se referido ao insensato que servia a Davi e que dissera em seu coração que não há D eus, esse grande filósofo observa que os ateus de hoje em dia revelam uma dupla d ose de insensatez, pois não se limitam a dizer em seus corações que não há Deus, mas proferem igualmente com seus lábios essa im pied ade, tornando-se com isso culpados de mú ltipl a indiscrição e imprudência. Pessoas desse tipo, por mais que estejam falando a sério, não podem ser, parece-me, muito temíveis. Mas embora você me inclua nessa classe de insensatos, não posso deixar de referir-me a uma observação que me ocorre em relação á história do ceticismo religioso e irreligioso com a qual você nos brin dou. Parece-me que há fortes sint omas de oportunismo clerical ao longo de todo esse processo. D urante as épocas de ignorância, tais como as que se seguiram á dissolução das antigas escolas, os sacerdotes perceberam que o ateísmo, o deísmo ou qualquer tipo de heresia só podiam provir do questionamento presunçoso das opiniões recebidas e da crença de que a razão humana estava á altura de qualquer tarefa. A doutrinação tinha, então, uma pode-
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 24 rosa influência sobre os espíritos das pessoas e quase se igualava em eficácia aquelas recomendações dos sentidos e do senso comum pelas quais até o cético mais resoluto deve deixar-se governar. Mas nos tempos presentes — n os q uais a in fluê ncia da d outrinação encontra-se muito diminuída e a s pessoas, graças a uma comunicação mais livre no nível mundial, aprenderam a comparar os princípios popularmente aceitos nas diversas nações e épocas — nossos sagazes teólogos modificaram inteiramente seu sistema filosófico e passaram a falar a linguagem dos estóicos, platônicos e peripatéticos, e não a dos pirrônicos e acadêmicos. Se não confiarmos na razão humana, não nos restará agora qualquer outro princí pio p ara conduzir-nos a relig ião. E assim, es ses reverendos senhores — céticos em um a época, dogmáticos em outra — não hesitam em adotar seja qual for o sistema que melhor lhes convenha para obter ascendência sobre a humanidade, convertendo-o em princípio favorito e dogma assentado. Cleantes: E muito natural que as pessoas adotem princípios pelos quais julgam melhor defender suas doutrinas, não sendo necessário falar em oportunismo clerical para explicar uma atitude tão razoável. E, com certeza, nada p oderia fortalecer mais a suposição de que um dado conjunto de princípios é correto e digno de aceitação do que observar que eles levam ã confirmação da verdadeira religião e servem para derrotar as maquinações dos ateus, libertinos e livres-pensadores de toda espécie.
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Demea: Devo confessar que muito me sur preende a m aneira p ela qual você, C lean tes, conduziu seu argumento ao longo da conversação. Pelo teor de seu discurso, poder-se-ia imaginar que você estivesse defendendo a existência de Deus contra os sofismas dos ateus e infiéis, e precisasse converter-se em paladino desse princípio fundamental de toda religião. Mas isto, espero, não está de modo algum em questão entre nós. Estou convencido de que ninguém ou, pelo menos, ninguém dotado de bom senso jamais m anteve algum a dúvida d iante de u ma v erdade tão certa e auto-evidente. A questão não diz respeito . existência mas á natureza de Deus. E esta, eu afirmo, é-nos completamente incompreensível e desconhecida, dada a fragilidade do entendimento humano. A essência dessa mente suprema, seus atri-
butos, seu modo de existência e a natureza mesma de sua duração; esses e todos os outros aspectos par-
ticulares de um ser tão divino são misteriosos para
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os seres humanos. Criaturas finitas, débeis e cegas que somos, devemos humilhar-nos diante de sua au-
gusta presença e, conscientes de nossas falhas, adorar em silêncio suas infinitas perfeições, que os olhos não podem ver nem os ouvidos escutar e que ao coração humano não é dado conceber. Uma espessa névoa oculta-as da curiosidade humana, e tentar penetrar nessa obscuridade sagrada constitui profana-
ção. A temeridade de perscrutar sua natureza e essência, desígnios e atributos, aproxima-se, de fato, da atitude ímpia de negar sua existência. Mas para que você não pense que minha devo ção levou aqui a melhor sobre minha filosofia, vou
apoiar minha opinião, se é que ela precisa de apoio,
na declaração de uma grande autoridade. Eu poderia citar todos os teólogos que, desde qu ase a fundação da Cristandade, já trataram deste ou de qualquer outro assunto teológico, mas vou limitar-me, no momento, a um que é célebre tanto pela devoção como pela filosofia. Refiro-me ao padre Malebranche4
que, segundo me recordo, assim se exprimiu : "Deve-se dizer que Deus é um espírito não tanto
para expressar positivamente o que ele é, mas para
indicar que ele não é matéria. Ele é um Ser infinitamente perfeito — disso não podemos duvidar. Mas, do mesmo modo que não devemos imagina-lo, mesmo supond o-o corpóreo, como revestido de um cor-
po humano, como afirmaram os antropomorfistas, sob o pretexto de que essa é a figura mais perfeita de todas, também não devemos supor que o espírito de Deus entretém idéias humanas ou se asseme4. Recherche
de la vérité, liv. 3, cap. 9.
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algum modo a nosso espírito, sob o pretexto de que não conhecemos algo mais perfeito que o es pírito humano. Devemos antes acreditar que, assim como ele contém as perfeições da matéria sem ser material ... ele também contém as perfeições dos espíritos criados sem ser espírito, tal como conce Aquele bemos o espírito; e que seu verdadeiro nome é que é, ou, em outras palavras, o Ser sem qualquer restrição, Todo o Ser, o Ser infinito e universal?' Filo: Em face de tão grande autoridade, como essa que você, Demea, invocou, e de mil outras que você poderia invocar, pareceria ridículo de minha parte acrescentar minha simpatia ou expressar minha aprovação sua doutrina. Mas é claro que, quando esses assuntos são tratados por pessoas razoáveis, o que está em questão jamais pode ser a existência, mas apenas a natureza de Divindade. Como você bem observou, a primeira verdade é inquestionável e auto-evidente. Nada existe sem uma causa, e a causa original deste universo (qualquer que ela seja) nós a denominamos Deus, e lhe atribuímos devotamente toda sorte de perfeições. Quem quer que hesite diante desta verdade fundamental merece todas as punições que podem ser infligidas entre filósofos, a saber, o máximo de ridículo, desprezo e desaprovação. Dado, porém, que toda perfeição é inteiramente relativa, jamais devemos imaginar qu e compreendemos os atributos desse Ser divino, ou supor que suas perfeições tê m a lguma analogia ou semelha nça com as perfeições da criatura humana. Sabedoria, pensamento, propósito, conhecimento — tudo isto nós lhe atribuímos com justiça apenas porque tais palavras são honrosas entre os homens, e não dislha de
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 30 pomos de outra linguagem ou de outros conceitos pelos quais pu déssemos exp ressar nossa ad oração por ele. Mas é preciso que tenhamos cuidado para não supor que nossas idéias correspondam de algum modo a suas perfeições, ou que seus atributos tenham alguma semelhança com essas qualidades tal como se manifestam nos seres humanos. E le é infinitamente superior á nossa compreensão e visão limitadas, sendo muito mais um objeto de culto no templo do que de disputa nas escolas. Na realidade, Cleantes, não é necessário recorrer àquele ceticismo afetado que tanto o desagrada para chegarmos a esta conclusão. Nossas idéias só chegam até onde chega nossa experiência, e não temos experiência de atributos ou procedimentos divinos. Não preciso levar meu silogismo à conclusão — você mesmo pode extrai-la. E agrada-me muitíssimo (também a você, espero) que o raciocínio justo e a sólida devoção coincidam, aqui, em suas conclusões, e que ambos estabeleçam a natureza adoravelmente misteriosa e incompreensível do Ser S upremo. Cleantes: [dirigindo-se a Demea]: Para não perder tempo em rodeios, e menos ainda em réplicas á piedosa pregação de Filo, vou explicar rapidamente como vejo este assunto. Olhem para o mundo ao redor, contemplem o todo e cada uma de suas partes: vocês verão que ele nada mais é que uma grande máquina, subdividida em um número infinito de máquinas menores que, por sua vez, admitem novamente subdivisões em um grau que ultrapassa o que os sentidos e faculdades humanas podem descobrir e explicar. Todas essas diversas máquinas, e
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mesmo suas partes mais diminutas, ajustam-se umas às outras com uma precisão que leva ao êxtase todos aqueles que já as contemplaram. A singular adaptação dos meios aos fins, ao longo de toda a Natureza, assemelha-se exatamente, embora exceda-os em muito, aos produtos do engenho dos seres humanos, de seu desígnio, pensamento, sabedoria e inteligência. E, como os efeitos são semelhantes uns aos outros, somos levados a inferir, portanto, em conformidade com todas as regras da analogia, que tam bém as causas são semelhantes, e que o Autor da Natureza é de algum modo similar ao espírito humano, embora possuidor de faculdades muito mais vastas, proporcionais á grandeza do trabalho que ele realizou. E por meio deste argumento a posteriori — e apenas por meio dele — que chegamos a provar, a um só tempo, a existência de uma Divindade e s ua semelhança com a mente e inteligência humanas. Demea: Tomo a liberdade, Cleantes, de dizerlhe que já de início não posso aceitar sua conclusão sobre a semelhança da Divindade com o ser humano, e muito menos aprovar os meios pelos qu ais voce se esforça para estabelecê-la. Ora vejam! Nenhuma demonstração dedutiva da existência de Deus! Nenhum argumento formal! Nenhuma prova a prio- ri! Será que todas as demonstrações nas quais os filósofos até agora tanto insistiram são apenas falácias, apenas sofismas? Será que não podemos, neste assunto, ir além da experiência e da probabilidade? Não direi que isso é uma traição à causa da Divindade, ma s certamente, com essa presunçosa franqueza, você está dando aos ateístas uma vantagem que eles jamais poderiam obter com o mero auxílio do argumento e raciocínio.
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Filo: O que me causa mais escrúpulos neste assunto não é tanto o fato de que todos os argumentos religiosos tenham sido reduzidos por Cleantes á experiência, mas sim que, mesmo nessa categoria inferior, eles sequer pareçam ser dos mais certos e incontestáveis. Já observamos milhares e milhares de vezes que uma pedra cai, que o fogo queima, que a terra tem solidez; e quando uma nova instância desse tipo se apresenta, fazemos sem hesitar a inferência costumeira. A exata similaridade dos casos dános uma segurança perfeita da ocorrência de um evento similar; e jamais se procura ou se deseja um a evidência mais forte do que essa. Mas sempre que se afasta, por pouco que seja, da similaridade dos casos, diminui-se proporcionalmente a evidência; e ela pode afinal ser reduzida a uma analogia muito tênue, reconhecidamente sujeita a erro e incerteza. Após termos observado a circulação do sangue em criaturas humanas, não temos dúvida de que ela ocorre em Tício e Mévio, mas a circulação do sangue em sapos e peixes conduz, por analogia, apenas a uma suposição, embora forte, de que ela também ocorre nos seres humanos e outros animais. O raciocínio analógico é muito mais fraco quando inferimos a circulação da seiva nos vegetais a partir de nossa experiência de que o sangue circula nos animais; e experimentos mais acurados mostraram o equívoco daqueles que seguiram apressadamente essa analogia imperfeita. Ao vermos uma casa, Cleantes, concluímos com a máxima certeza que ela teve um arquiteto ou construtor, porque ela é exatamente a espécie de efeito que, por experiência, sabemos que procede daquela
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espécie de causa. Mas certamente você não afirmará que o Universo guarda tanta semelhança com uma casa a ponto de podermos inferir, com a mesma certeza, uma causa similar; ou que a analogia seja, aqui, integral e perfeita. A desigualdade é tão marcante qu e o máximo que você pode pretender, nesse caso, é conjeturar, supor ou presumir a existência de uma causa similar; e como essa pretensão será recebida pelas demais pessoas é algo que deixo á sua consideração. Cleantes: Sem dúvida ela seria muito mal recebida; e eu seria merecidamente censurado e recriminado se alegasse que as provas de uma Divindade não passam de suposições ou conjeturas. Mas será de fato tão pequena a semelhança entre o ajuste integral dos meios aos fins em uma casa e no Universo? Entre a organização funcional de suas causas finais? Entre a ordem, proporção e arranjo de cada uma de suas partes? Os degraus de uma escada estão claramente planejados para que as pernas humanas pos sam utilizá-los para su bir, e es ta in ferência é certa e infalível. Também as pernas hu manas estão planejadas para caminhar e subir; e, embora eu conceda que essa última inferência não seja tão inteiramente certa, dada a dissimilaridade que você observou, será isto suficiente para que ela mereça apenas o título de suposição ou conjetura? Demea: Bom Deus, a que ponto chegamos! Defensores zelosos da religião admitindo que as provas de uma Divindade não possuem perfeita evidência! E você, Filo, com cujo apoio eu contava para provar o caráter adoravelmente misterioso da natureza divina, acaso você concorda com essas opiniões
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desvairadas de Cleantes? Pois de que outro nome eu poderia chama-las? E por que poupar minhas censums quando tais princípios são apresentados, e com tal autoridade, diante de um jovem como Panfilo? Filo: Você parece não compreender que estou argumentando com Cleantes em seu próprio terreno, e que, ao mostrar-lhe as perigosas conseqüências de suas teses, espero convertê-lo por fim às nossas opiniões. Mas o que mais o impressiona, segundo vejo, é a apresentação feita por Cleantes do argumento a posteriori. Ao perceber que esse argumento ameaça escapar-lhe das mãos e desvanecer-se no ar, você o supõe insincero, e quase não pode acreditar que ele tenha sido exposto em suas verdadeiras cores. Ora, por mais que eu discorde, em outros aspectos, dos perigosos princípios de Cleantes, devo admitir que ele apresentou corretamente esse argumento, e esforçar-me-ei para expor-lhe o assunto de tal maneira que você não mais abrigara escrúpulos em relação a ele. Se alguém fizesse abstração de tudo o que sabe ou viu, seria em absoluto incapaz de decidir, sim plesme nte a partir de sua s p róp rias idéias, qua l o cenirio que o Universo deveria exibir, ou de dar preferência a uma situação ou estado de coisas entre ou tros. Pois, ji que nada daquilo que ele concebe claramente pode ser tomado como impossível ou como envolvendo uma contradição, todas as fantasias de sua imaginação estariam em pé de igualdade; e ele não seria capaz de oferecer qualquer razão im parcial para aderir a uma idéia ou sistema e rejeitar outros que são igualmente possíveis. Além disso, ao abrir os olhos e contemplar o
PARTE II
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mundo tal como realmente é, ser-lhe-ia impossível identificar de imediato a causa de um evento qual-
quer, muito menos a causa da totalidade das coisas,
ou do Universo. Ele poderia dar rédea larga à ima-
ginação, e ela lhe poderia fornecer uma infinita variedade de relatos e representações, todos igualmente possíveis. Mas, por serem igualmente possíveis, ele não chegaria por si mesmo a uma explicação satisfatória para o fato de preferir um deles aos restantes. E somente a experiência que pode apontarlhe a verdadeira causa de qualquer fenómeno. Note agora, D emea, que, de acordo com este método de raciocínio (e isto, na verdade, é tacitamente admitido pelo próprio Cleantes), se segue que a ordem, o arranjo ou o ajustamento das causas finais não constituem por si sós a prova de um desígnio, mas apenas na medida em que ji se tenha constatado pela experiência que eles procedem de um tal princípio. Por tudo que nos é dado saber a priori, a matéria pode conter originalmente em si mesma a fonte ou o móvel da ordem, do mesmo modo que a mente os contém. Supor que os diversos elementos — a partir de uma causa interna desconhecida — possam arranjar-s e da maneira mais elaborada não é mais difícil do que imaginar que suas idéias, a partir de uma causa interna desconhecida semelhante, venham a dispor-se dessa mesma maneira no interior da grande mente universal. A igual possibilidade dessas duas suposições é admitida; contudo, segundo Cleantes, a experiência nos faz descobrir uma diferença entre elas. Lance ao ar um conjunto de diversas peças de aço, sem talhe ou forma: elas jamais se arranjarão por si mesmas de modo a produzir um
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verso, assim o calor ou frio, atração ou repulsão, e
centenas de outros que são diariamente observados. E uma causa ativa, pela qual algumas partes especí-
ficas da Natureza produzem, como nos é dado ver, certas alterações em outras partes. Mas será legíti-
mo transferir para o todo u ma conclusão acerca das
partes? A disparidade entre os casos não será, porventura, tão grande a ponto de barrar toda inferência e comparação? Será possível aprender algo acerca da geração de um ser humano obs ervando o crescimento de um fio de cabelo? Obteríamos alguma informação sobre o desenvolvimento vegetativo de uma árvore a partir da maneira pela qual brota uma folha, ainda que conhecêssemos perfeitamente esse último processo? Admitindo-se, porém, que se tomem as operações de uma parte da Natureza sobre outra como o fundamento de nossos juízos acerca da origem do
todo (o que é inadmissível), por que se deveria selecionar um p rincípio tão insignificante, tão frágil, tão limitado como o é a razão e o propósito dos animais, tal como esse princípio se apresenta neste planeta? Que mérito especial tem essa diminuta agitação do cérebro que denominamos "pensamento", para que precisemos toma-la como modelo do Universo por inteiro? Nossa parcialidade para com nós mesmos leva-nos constantemente a apresentar as coisas desse modo, mas a boa filosofia deve cuidadosamente guardar-nos contra uma ilusão tão natural. Assim, longe de admitir que a s operações de uma parte no s capacitem a concluir acerta dam ente sobr e á origem do todo, recuso-me a aceitar que qualquer parte proporcione uma regra acerca de outra parte
PARTE II
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se esta última for muito alheia á primeira. Que ba se razoável haveria para concluir que os habitantes
de outros planetas estão dotados de pensamento, inteligência, razão ou de qualquer coisa semelhante a essas faculdades dos seres humanos? Seria possível supor que a Natureza copie incessantemente a si mesma ao longo de um Universo tão imenso, quando seus modos de operação são tão extremamente diversificados mesmo neste pequeno globo? E se, como se pode muito bem supor, o pensamento esti-
ver confinado apenas a este diminuto recanto, tendo mesmo aí uma esfera de ação muito limitada, com que direito poderíamos toma-lo como a causa originária de todas as coisas? Comparada a isto, a pers pectiva estreita do camponês que faz da sua administração doméstica a regra para o governo dos reinos chega a ser um sofisma desculpável. Ainda que viéssemos a estar bastante seguros de que uma razão, ou pensamento, de características humanas estivesse distribuída por todo o Universo, e que sua atividade em outras regiões fosse muitíssimo maior e mais influente do que parece ser neste globo, mesmo assim não posso ver por que as operaçóes de um mundo já constituído, arranjado e ajus-
tado poderiam ser apropriadamente estendidas a um mundo em estado embrionário, que a inda estivesse prog redindo em direç ão à quel a con stituiçã o e arran jo. A observação ensina-nos algo sobre a constituição, o comportamento e a nutrição de um animal adulto, mas é preciso grande cautela ao se transferir essa observação para o desenvolvimento de um feto no
útero, e mais ainda para a formação de um animálculo nas ilhargas de seu genitor. Mesmo nossa
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FARTE II
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li mitada experiência nos mostra que a Natureza possui um número infinito de princípios motores, que se exibem incessantemente em cada mudança de estado e situação; e daríamos mostra da ma is extrema imprudência se pretendêssemos determinar quais prin cípio s inusit ados e desconhecid os teriam g overnado sua ação em uma situação tão incomum e desconhecida como a da formação do Universo. Só nos é conhecida — e muito imperfeitamente — u ma parte m ínim a desse grande sistema e du rante um intervalo muito curto de tempo. Como então poderíamos nos pronunciar conclusivamente acerca da origem de seu todo? Já que as pedras, madeira, tijolos, ferro e latão não conseguem, na presente época e neste diminuto planeta terrestre, dispor-se em arranjos e ordenar-se sem a arte e o engenho humano, chega-se á admirável conclusão de que o Un iverso não poderia ter originalmente atingido sua ordem e arranjo sem alguma coisa semelhante ao artifício humano! Mas por que uma parte da Natureza deveria constituir uma regra para outra parte remotamente situada em relação á primeira? Por que deveria constituir uma regra para o todo? Uma parte ínfima pode prover a regra para o Universo? A Natureza em um dado estado pode constituir-se em uma regra certa para a Natureza em um estado imensamente distinto do primeiro? E você não pode culpar-me, Cleantes, se eu tomo aqui como exemplo a prudente circunspeção de Simônides, que, de acordo com a célebre narrativa, ao ouvir de Hierão a pergunta: Que é Deus ?, pediu um dia para pensar sobre o assunto, e depois dois
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dias mais, prolongando dessa forma indefinidamente o prazo, sem nunca chegar a apresentar sua definição ou descrição. Poderia você censurar-me se eu tivesse respondido, logo de início, que eu não sabia .e qu e estava consciente de que esse assunto excede muitíssimo o alcance de minhas faculdades? Você pode chamar-me quanto quiser de cético e brincalhão, mas o fato é que, tendo-me deparado em tantos outros assuntos muito mais familiares com a s im perfeições e mesmo contradições da razão humana, eu jamais poderia esperar, a partir de suas frágeis con jeturas, obter qu alquer bom resultado em um assunto tão elevado e tão distante da esfera de nossas observações. Após a constatação de que duas espécies de objetos surgem sempre associados, posso inferir, pelo costume, a existência de um deles onde q uer que eu veja que o outro está presente; e a isto chamo um argumento a partir da experiência. Mas seria difícil explicar como esse argumento pode ser aplicado a um caso — como o que estamos p resentemente considerando — no qual os objetos são singu lares, indivduais, sem paralelo ou semelhança específica. Poderá alguém dizer-me seriamente que um Universo Ordenado deve provir de algum pensamento ou artificio de tipo humano, porque disso temos expe` iencia? Para comprovar esse raciocínio, seria preciso que tivéssemos experiência da origem dos mundas, e é claro que não basta ter visto navios e cidaAes serem produzidos pela arte e engenho humanos... 31 A
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o; Filo prosseguia ness e estilo veemente, alternan do, como me pareceu, ironia e seriedade, até que, percertdo que Cleantes dava alguns sinais de impaciêncalou-se de imediato.
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O que eu tinha a sugerir é apenas que você não abuse das palavras e não faça uso de expressões populares p ara subverter raciocínios filosóficos. Como você sabe, faz-se ordinariamente uma distinção entre razão e experiência, mesmo quando o que está em jogo são questões de fato e existência, embora se descubra, ao analisar-se adequadamente essa razão, que ela não é nada m ais que uma espécie de experiência. Provar pela experiência que o Universo tem uma origem mental não é mais contrário ao discurso comum do que provar pela experiência o movimento da Terra. E um sofista poderia levantar contra o sistema copernicano essas mesmas ob jeções que você apress ou-se a oferecer aos meu s raciocínios. Há, por acaso, outras Terras — ele poderia perguntar — que você tenha visto mover-se? Há...
PARTE H
Filo: [interrompendo-o] Sim, há outras Terras! Não é a Lua uma outra Terra, que vemos girando em torno de seu centro? Não é Vênus uma outra Terra, na qual observamos o mesmo fenômeno? Não são as revoluções do Sol também uma con firmação, por analogia, da mesma teoria? Todos os planetas, não são eles Terras que giram em torno do Sol? E os satélites não são Luas que se movem em tornc de Júpiter e Saturno e, em companhia desses planetas primários, em torno do Sol? Essas analogias semelhanças, junto com outras que não mencionei são as ú nicas provas do sistema copernicano, e cab( a você considerar se estão disponíveis analogias dc mesmo tipo para sustentar sua teoria. Na realidade, Cleantes, o moderno sistema d astronomia é hoje tão bem aceito por todos os in
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vestigadores, e tornou-se uma parte tão essencial da
Cleantes:
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nossa educação, mesmo a mais elementar, que não somos usualmente muito cuidadosos no exame das razões sobre as quais ele se funda. Hoje se tornou mera curiosidade o estudo dos que primeiro escreveram sobre o assunto e que, encontrando os preconceitos ainda em pleno vigor, foram obrigados a revolver seus argumentos em todas as direções, a fim de torná-los populares e convenientes. Mas, se examinarmos atentamente os famosos Diálogos de Galileu sobre o sistema do mundo, descobriremos que aquele grande gênio, um dos mais sublimes que ja-
mais existiu, dedicou inicialmente todos os seus esforços a provar que não havia fundamento para a distinção comumente feita entre as substâncias elementares e as celestiais. As escolas, partindo das ilusões dos sentidos, tinham levado muito longe essa distinção e estabelecido que essas últimas substâncias eram não-geráveis, incorruptíveis, inalteráveis, i mpassíveis, ao mesmo tempo que atribuíam ás primeiras todas as qualidades opostas. Galileu, por outro lado, principiando pela Lua, provou sua semelhança com a Terra em todos os pormenores: sua figura convexa, sua obscuridade natural quando não iluminada, sua densidade, sua diferenciação em sólido e líquido, as variações de suas fases, a mútua iluminação da Terra e da Lua, seus mú tuos eclipses, as irregularidades da superfície lunar, etc. Em conseqüência de muitos exemplos d esse tipo, relacionados a todos os planetas, as pessoas viram claramente que esses corpos tinham se tornado objetos próprios de experiência, e que a similaridade de sua natureza nos capacitava a estender os mesmos argumentos e fenômenos de um a outro.
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No procedimento cauteloso dos astrônomos, Cleantes, você pode ler sua própria condenação, ou antes, pode ver que o assunto do qu al você se ocupa excede toda razão e investigação humanas. Pode você pretender exibir qualquer semelhança desse tipo entre a estrutura de uma casa e a geração de um Universo? Acaso já se formaram mundos sob seus olhos, e pôde você observar com vagar o progresso com pleto desse fenômeno, desde a primeira aparição da ordem até sua consumação final? Se é assim, então cite sua experiência e exponha sua teoria.
PARTE III
Cleantes: É admirável como o argumento mais absurdo, nas mãos de um homem engenhoso e inventivo, pode adquirir um ar de plausibilidade! Você não se dá conta, Filo, de que só foi necessário a Copérnico e a seus primeiros discípulos provar a semelhança entre a matéria terrestre e a celestial porque vários filósofos, ofuscados pelos antigos sistemas e apoiados em algumas ap arências sensíveis, tinham negado essa similaridade; mas que não é de modo algum necessário aos teístas provar a semelhança entre os trabalhos da Natureza e os da arte, pois esta similaridade é auto-evidente e inegável? A matéria é a mesma, a forma é igual; que mais é preciso para exibir uma analogia entre suas causas e p ara comprovar que todas a s coisas se originam de uma intenção e propósito divinos? Suas objeções, devo ser franco, não são melhores que os intrincados embustes daqueles filósofos que negavam o movimento, e merecem ser refutadas da mesma maneira: me-
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diante ilustrações, exemplos e casos concretos, mais do que pela argumentação séria e pela filosofia. Suponha, então, que uma voz articulada se tenha feito ouvir nas nuvens, muito mais forte e mais melodiosa do que qualquer outra que a arte humana pudesse produzir; suponha que essa voz se estendesse ao mesmo tempo sobre todas as nações, e falasse a cada uma em sua própria linguagem e dialeto; suponha ainda que as palavras pronunciadas não apenas contivessem um sentido e significado precisos, mas transmitissem alguma recomendação digna em todos os aspectos de um S er benevolente, superior ã humanidade. Poderia você hesitar um só momento acerca da causa dessa voz? Não lhe seria i mperioso atribuí-la instantaneamente a algum desígnio ou propósito? E, no entanto, não posso deixar de considerar que as mesmas objeções (se é que merecem esse nome) que se podem opor ao sistema do teísmo também poderiam ser levantadas contra esta última inferência. Não lhe seria possível dizer que todas as conclusões relativas a fatos estão fundadas na experiência; que, quando ouvimos uma voz articulada na escuridão e inferimos daí a existência de um ser humano, é apenas a sem elhança dos efeitos que nos leva a concluir que há também uma semelhança entre suas causas; mas que essa voz extraordinária, pela sua força, alcance e adaptabilidade a todas as linguagens, tem tão pouca analogia com qualquer voz humana a ponto de não termos razões para supor qualquer analogia entre suas causas; e, por conseguinte, que esse discurso racional, sábio e coerente proveio, voce não sabe por que, de algum sibilo ca -
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PARTE
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sual dos ventos, e não de alguma razão ou inteligência divinas? Nessas manobras você pode enxergar claramente suas próprias objeções; e, segundo espero, também pode ver claramente que elas não poderiam ter mais força em um caso do que no outro. Para fornecer, porém, um exemplo que se aproxima ainda mais da situação que presentemente observamos no Universo, vou introduzir duas suposições que não envolvem nada de absurdo ou improvável. Suponha que exista uma linguagem natural, universal e invariável, comum a todos os indivíduos da espécie humana, e suponha ainda que os livros sejam produtos naturais que se perpetuam da mesma maneira que os animais e vegetais, por descendência e propagação. Muitas expressões de nossos sentimentos envolvem uma linguagem natural: todos os animais têm uma fala natural que, por limitada que seja, é bastante inteligível para os de sua espécie. E, dado que há infinitamente menos partes e menos engenhosidade na mais refinada composição da eloqüência do que no organismo corporal mais tosco, a propagação da Ilíada ou da Eneida é uma su posição mais fácil do que a de qualquer planta ou animal. Suponha, portanto, que você entre em sua bi blioteca, povoada de volumes natu rais que encerram a razão mais refinada e a mais rara beleza. Seria você capaz de abrir um desses livros e duvidar de que sua causa original apresenta a mais forte analogia com a mente e a inteligência? Quando ele raciocina e discorre; quando discute, argumenta e impõe suas teses e pontos de vista; quando ele se dirige ã s vezes ao puro intelecto, às vezes aos afetos; quando reúne,
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 50 organiza e torna atraentes todas as considerações adequadas ao assunto — poderia você persistir em afirmar que tudo isso não tem, no fundo, realmente sentido, e que a primeira conformação desse volume nas ilhargas de seu an tecessor original não procedeu do pensamento e do desígnio? Sei que sua obstinação não chega a esse grau de rigidez, e que mesmo sua encenação e leviandade céticas ficariam envergonhadas diante de tão flagrante absurdo. E entretanto, Filo, se há alguma diferença entre esta suposta situação e o caso real do Universo, a vantagem está toda em favor deste último. A anatomia de um animal fornece muitos exemplos mais fortes de desígnio do que o exame de Tito Lívio ou Tácito; e qualquer que seja a objeção que v ocê adiante contra o primeiro caso, conduzindo-me de volta ao inusitado e extraordinário cenário da primeira formação dos mundos, essa mesma objeção será aplicável à suposição da nos sa biblioteca vegetativa. Escolha, pois, o partido que lhe convém, F ilo, sem am bigüidade ou evasão; e afirme ou que um volume racional não é prova de uma causa racional, ou então admita que todas as obras da Natureza têm uma causa desse tipo. Permita-me ainda observar aqui que este argumento religioso, longe de debilitar-se por esse ceticismo que tanto lhe agrada ostentar, é antes fortalecido por ele, tornando-se mais firme e inquestionável. Excluir todo argumento e raciocínio, qualquer que seja sua espécie, constitui afetação ou loucura. O que todo cético razoável preconiza é apenas re jeitar os argumentos obscuros, remotos e demasiado sutis; aderir ao senso comum e aos simples ins -
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tintos da Natureza; e dar seu assentimento sempre que alguma razão o sensibilize tão fortemente que ele não possa, sem extrema violência, deixar de fazê-
Ora, é claro que os argumentos em favor da religião natural são desse tipo; e nada, a não ser a mais obstinada e perversa metafísica, pode recusá-los. Con-
lo.
sidere, analise o olho; examine sua estrutura e seu
plan o, e diga -me com toda sincerida de s e a idéia de
um planejador não lhe ocorre imediatamente, com tanta força como a de uma sensação. A conclusão mais óbvia, com certeza, é em favor de um desígnio; e é preciso tempo, reflexão e estudo para cole-
tar todas essas frívolas, ainda que intrincadas, objeções que podem dar apoio à descrença. Quem po-
deria contemplar o macho e a fêmea de cada espécie, a correspondência entre suas partes e instintos, suas paixões e o processo integral da vida, antes e
depois da geração, sem tornar-se sensível ao fato de que a propagação das espécies é tencionada pela Natureza? Milhões e milhões de casos semelhantes manifestam-se em cada parte do Universo, e nenhuma linguagem pode transmitir um significado mais in-
teligível e irresistível do que o peculiar ajustamento das causas finais. Que grau de dogmatismo cego não deve, então, ter sido atingido por alguém que rejeita argumentos tão naturais e tão convincentes! Podemos nos deparar com textos de grande beleza que parecem contrariar as regras e que, em oposição a todos os cânones da crítica e à autoridade dos mestres reconhecidos da arte, tocam os sentimentos e estimulam a imaginação. Assim, se o argumento em favor do teísmo contradiz, como você pretende, os princípios da lógica, sua influência universal
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e irresistível prova claramente que pode haver argumentos que compartilham da mesma natureza irregular. Por mais que se insista em raciocínios ardilosos, um mundo ordenado, bem como uma linguagem coerente e articulada, continuarão a ser aceitos como uma prova incontestável de desígnio e intenção. Estou disposto a admitir que os argumentos religiosos não exercem, algumas vezes, a devida influência sobre um selvagem ignorante e bárbaro. Mas isso ocorre não porque sejam obscuros e difíceis, mas porque o selvagem jamais se faz qualquer pergunta sobre eles. De onde surge a peculiar estrutura de um animal? Da união de seus pais. Mas estes, de onde surgem? De seu s pais? A lguns pou cos pas sos levam as coisas tão longe que desaparecem, para ele, em obscuridade e confusão; e tampouco lhe despertam a curiosidade de seguir sua pista. Mas isto não é dogmatismo ou ceticismo, mas sim estupidez: uma condição mental muito distinta do espírito investigativo e perquiridor que o caracteriza, meu engenhoso amigo. Você pode rastrear as causas a partir dos efeitos, você pode comparar os objetos mais distantes e rL.notos, e seus maiores erros provêm não da esterilidade do pensamento e da inventiva, mas sim de uma fertilidade por demais exuberante, que sufoca seu natural bom senso com uma profusão de escrú pulos e objeções desnecessárias. Pude notar ne sse mo mento, meu c aro Hé rmipo, que Filo estava um pouco embaraçado e confuso. Mas, enquanto ele hesitava em prover uma resposta, Demea interveio na discussão e, felizmente para ele, salvou-o do apuro.
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Demea: Devo confessar que seu exemplo, Cleantes, ganha muita força por ter sido formulado a partir de coisas familiares como livros e a linguagem. Mas não haveria também algum perigo nessa própria circunstâ ncia, e n ão p oderíam os ser levados por esse argumento á presunção de imaginar que compreendemos a Divindade e temos uma idéia correta de sua natureza e atributos? Quando leio um livro, penetro na mente e nas intenções do autor e, naquele momento, me converto, de certo modo, nele mesmo, experimentando uma percepção e com preensão imediatas das idéias que percorriam sua imaginação enquanto ele se ocupava da redação daquele texto. Mas é claro que nunca poderemos chegar tão próximos da Divindade. Seus caminhos não são nossos caminhos; seus atributos, embora perfeitos, são incompreensíveis. E o livro da Natureza contém um enigma mu ito mais vasto e inexplicável que o de qualquer discurso ou raciocínio inteligíveis. Os m ais religiosos e devotos de todos os filóso fos pagãos foram, como você sabe, o s antigos platônicos; não obstante, muitos deles, em particular Plotino, declararam expressamente que não se deve atribuir intelecto ou entendimento á Divindade, e que a maneira mais perfeita que temos de adorá-la consiste não em atos de veneração, reverência, gratidão ou amor, mas em uma espécie misteriosa de autoaniquilação ou extinção total de todas as nossas faculdades. São idéias algo exageradas, talvez; mas é , forçoso reconhecer que, ao representarmos a Divindade como sendo tão inteligível e compreensível, e tão similar á mente humana, nos tornamos culpados da mais grosseira e tacanha parcialidade e nos arvoramos em modelo de todo o Universo.
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Todos os sentimentos da mente humana — gratidão, ressentimento, amor, amizade, aprovação, censura, piedade, rivalidade, inveja — referem-se claramente ao estado e á condição do ser humano e estão calculados para preservar a existência e promover as atividades desse ser nessas circunstâncias. Não parece razoável, portanto, transferir tais sentimentos ao Ser Supremo, ou supor que exerçam influência sobre ele; e, além disso, os fenômenos do Universo não fornecem apoio para uma teoria desse ti po. Quanto ás nossas idéias derivadas dos sentidos, todas elas são reconhecidamente falsas e enganosas, e não podem ser consideradas, portanto, como tendo lugar em uma Inteligência suprema. E como as idéias provenientes do sentido interior, somadas a s do sentido exterior, compõem toda a bagagem do entendimento humano, podemos concluir que nenhum dos materiais do pensamento é semelhante, sob qualquer aspecto, na inteligência humana e na Inteligência divina. Considerando-se, por outro lado, a maneira de pensar, como poderíamos estabelecer qualquer comparação entre essas inteligências, ou supo-las de algum modo semelhantes? Nosso pensamento é vacilante, incerto, fugidio, consecutivo e composto; se removêssemos essas características, aniquilaríamos completamente sua essência; e seria, nesse caso, um m ero abuso da terminologia aplicar-lhe o nome de pensamento ou razão. Se ainda parece mais devoto e respeitoso (como realmente é) p reservar esses termos quando se menciona o Ser Supremo, devemos pelo menos reconhecer que seus significados são, neste caso, totalmente incompreensí -
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veis; e que a debilidade de nossa natureza não nos perm ite ap reend er qu aisqu er idéias que tenham a minima correspondência com a inexplicável grandiosidade dos Atributos divinos.
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Cleantes: Parece-me estranho que justamente você, Demea, tão sincero na defesa dos interesses da religião, continue mantendo que a natureza da Divindade é misteriosa e incompreensível, e insista com tanto zelo na afirmação de que ela não possui qualquer espécie de paralelo ou semelhança com as criaturas humanas. Estou pronto a admitir que a Divindade possui muitos poderes e atributos dos quais não temos compreensão; mas se nossas idéias, até onde alcançam, não são corretas, adequadas ou pertinentes no que diz respeito á sua real natureza, então já não sei por que valeria a pena insistir neste assunto. Por que um nome teria tão grande importância, se está desprovido de significação? E como vocês, os místicos, que sustentam o caráter absolutamente incompreensível da Divindade, se distinguiriam dos céticos ou ateus, que afirmam que a causa original de todas as coisas é desconhecida e ininteligível? Muito imprudente seriam eles se, após rejei-
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 60 tar a produção pela mente — quero dizer, mente similar á mente humana, pois não conheço outra —, pretendessem indicar com segurança alguma outra causa inteligível específica; e muito escrupulosos, de fato, se se recusassem a dar a essa causa universal desconhecida o nome de Deus, ou Divindade, e conceder-lhe todos os sublimes elogios e epítetos sem significação que você quisesse exigir deles. Dem ea: Quem poderia imaginar que Cleantes, o sereno e filosófico Cleantes, tentaria refutar seus antagonistas afixando-lhes um rótulo; e, á maneira dos vulgares fanáticos e inquisidores da época, recorresse á afronta e á pregação ao invés do ra ciocínio? Ou será que ele não percebe que esses lugares-comuns podem facilmente voltar-se contra ele, e que a alcunha de antropomorf sta é tão aviltante e de tão perigosas conseqüências quanto a de místico, com a qual ele nos honrou? Considere, Cleantes, aquilo que você está efetivamente afirmando quando representa a Divindade como similar á mente e ao entendimento humanos. Que é a alma do homem? Um composto de várias faculdades, paixões, sensações e idéias; unidas, é verdade, em um só ego ou pessoa, mas ainda assim distintas umas das outras. Quando ela raciocina, as idéias que são as partes de seu discurso arranjam-se em uma certa forma ou ordem, qu e não se preserva integralmente por um só instante, mas dá lugar imediatamente a um outro arranjo. Novas opiniões, novas paixões, novas afecções, novos sentimentos surgem e alteram incessantemente o cenário mental, produzindo nele a maior diversificação e a mais rápida sucessão que é possível imaginar. Como isto poderia ser compa -
61 tivel com a perfeita imutabilidade e simplicidade que todos os autênticos teístas atribuem á Divindade? Por um mesmo ato, dizem eles, ela contempla passado, presente e futuro; seu amor e o io, sua misericórdia e justiça, são uma única operação individual. Ela está inteira em cada ponto do espaço, e está com pleta em cada inst ante da duração. Nenhuma sucessão, nenhuma mudança, nenhuma aquisição ou diminuição. O que ela é não contém qualquer somb r a . de distinção ou diversidade. E o que ela é neste momento, sempre o foi e sempre o será, sem nenhum novo juízo, sentimento ou operação. Permanece fixa em um só estado, simples e perfeito, e não se pode adequadamente dizer que este seu ato é diferente daquele outro, ou que este juízo ou idéia formou-se há pouco e dará lugar, sucessivamente, a um distinto juízo ou idéia. C leantes: Estou preparado para afirmar que todos os que sustentam a perfeita simplicidade do Ser Supremo, no grau em qu e você a expôs, são remata-dos místicos, e devem responder por todas as conseqüências que eu extraí de sua opinião. São, em uma palavra, ateístas, sem o saber. Pois, embora se deva reconhecer que a Divindade possui atributos dos suais não temos compreensão, não nos é jamais permitido conferir-lhe atributos que são absolutamente incompatíveis com a natureza intelectiva que lhe é essencial. A m ente cujos atos, sentimentos e idéias riso são distintos e sucessivos — que é integralmente simples e totalmente imutável — não exibe pen-samento, nem razão, nem vontade, nem sentimen-to, nem amor, nem ódio. Em uma palavra, não é mente, enfim. Dar-lhe esse nome é abusar das pala-
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vras, e poderíamos, com o mesmo direito, falar de uma extensão limitada sem figura, ou de um número sem composição. Filo: Peço-lhe, por favor, que você note contra quem suas censu ras estão agora dirigidas. Você está honrando com a denominação de ateístas quase todos os teólogos íntegros e ortodoxos que já trataram deste assunto; e acabará por ter que se considerar, pelas suas contas, como o único teólogo legítimo do mundo. Mas se os idólatras são ateístas, como penso que é correto afirmar, e os teólogos cristãos também o são, que restaria daquele célebre argumento baseado na concordância universal da humanidade? Como sei, porém, que você não se deixa influenciar muito pelos nomes e pelas autoridades, esforçarme-ei para mostrar-lhe, com um pouco mais de nitidez, as inconveniências do antropomorfismo que você adotou, e provar que não há razões para supor que a mente divina tenha formulado um plano do mundo, constituído de distintas idéias, diferentemente arranjadas, de maneira análoga á de um arquiteto que formula em sua cabeça o plano de uma casa que ele tenciona executar. Não é fácil, confesso, ver o que se poderia ganhar com essa suposição, quer se julgue a questão pela razão, quer pela experiência. Continuamos ainda obrigados a subir mais alto, se quisermos descobrir a causa dessa causa que você designou como satisfatória e conclusiva. Se é que a razão (e me refiro aqui á razão abstrata, derivada das investigações a priori) não emudece invariavelmente perante qualquer questão acerca
63 de causa e efeito, esta sentença, ao menos, ela se aventurará a pronunciar: que um mundo mental ou um universo de idéias exige uma causa tanto quanto a exige um mundo material ou um universo de objetos; e, se seus a rranjos forem similares, deverão requerer causas similares. Pois o que haveria de especial naquele domínio para proporcionar uma diferente conclusão ou inferência? Do ponto de vista abstrato, eles são exatamente iguais, e não há dificuldade que acompanhe uma suposição e que não seja comum a ambas. Por outro lado, quando precisamos forçar a ex periência a pronunciar alguma sentença, ainda que em assuntos que extrapolam sua esfera, tampouco ela pode perceber qualquer diferença significativa es pecífica entre esses dois tipos de mundo, mas reconhece-os como governados por princípios semelhantes e dependentes, em suas operações, de um igual sortimento de causas. Temos espécimes em miniatura de ambos os mundos: nossa própria mente assemelha-se ao primeiro; e um organismo, vegetal ou animal, ao segundo. Que a experiência, portanto, julgue a partir dessas amostras. Relativamente a suas causas, nada parece mais delicado que o p ensa. mento; e, já que essas causas nunca operam d a mesma maneira em duas pessoas, jamais encontramos duas pessoas que pensem de modo exatamente igual. Na verdade, nem sequer uma mesma pessoa pensa - de maneira exatamente igual em quaisquer dois mo- mentos distintos do tempo. Um a diferença de idade, da-condição de seu corpo, de clima, de alimento, de companhia, de livros, de paixões — qualquer um desses aspectos particulares, e outros ainda mais dimi PARTE IV
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
nutos, basta para alterar a peculiar maquinaria do pensamento e comunicar-lhe movimentos e operações muito distintos. Tanto quanto podemos julgar, os organismos vegetais e animais não são tão deli-
cados em seus movimentos, nem dependem de uma variedade tão grande de impulsos e princípios, ajustados de maneira tão peculiar.
Como, então, poderíamos nos dar por satisfeitos com relação á causa daquele Ser que você toma como o Autor da Natureza, ou, de acordo com seu sistema antropomórfico, daquele Mundo ideal no qual você encontra a origem do mundo material? Não teríam os iguais razões p ara bu scar a origem d esse mundo ideal em outro mundo ideal, ou princí pio intele ctivo? Mas , se nos detem os em alg um p onto e não avançamos mais, d e que serve ter avançado até aí? Por que não nos determos no próprio mundo material? Como poderíamos nos dar por satisfeitos sem avançar in infinitum? E que satisfação, afinal, encontraríamos nessa progressão infinita? Recordemo-nos da história do indiano e seu elefante: ela nunca foi tão adequada como ao presente assunto. Se o mundo material repousa sobre um mundo ideal semelhante, este mundo ideal deve repousar sobre algum outro, e assim indefinidamente. Seria melhor, portanto, jamais lançar os olhos para além do mundo material presente. Ao supor que ele contém em si mesmo o princípio de sua própria ordem, estamos, na realidade, afirmando que ele é D eus; e quanto antes chegarmos aquele Ser Divino, tanto melhor para nós. Quando você dá um passo além do sistema mundano, apenas excita uma disposição inquisitiva que jamais poderá ser satisfeita.
65 Dizer que as diferentes idéias que compõem a razão do Ser Supremo se dispõem de maneira ordenada por si mesmas e em virtude de sua própria natureza é, na realidade, falar sem saber muito bem o qu e se quer dizer. Se isso quer dizer algo, eu gostaria muito de saber por que não haveria igualmente um sentido tão bom na afirmação de que as partes do mundo material se dispõem em ordem por si mesmas e pela sua pró pria natureza. Será que uma da s opiniões pode ser inteligível sem que a outra tam bém o seja? Temos, de fato, experiência de idéias que se dis põem em o rdem p or s i me smas e sem nen hum a cau sa conhecida. Mas temos também, estou certo, uma experiência muito mais vasta de um comportamento semelhante na matéria, a saber, em todos os casos de geração e crescimento vegetativo, nos quais a análise detalhada da causa excede toda compreensão humana. E temos igualmente experiência de sistemas particulares de pensamento e de matéria que g sião apresentam ordem: do primeiro, na loucura, do segundo, na corrupção. Por que, então, deveríamos essencial a um do que 4 pensar que a ordem é mais tt ao outro? E, se ela requer em ambos uma causa, que pt estaremos ganhando com nosso sistema, ao buscar r. $ origem do universo de objetos em um universo similar de idéias? Ao dar o primeiro passo, somos 4orçados a prosseguir para sempre. Portanto, seria prudente de nos sa p arte limitar noss as inves tiga ções ao mundo presente, sem dirigir o olhar para mais ge. Nenhum a satisfaçã o poderá jamais ser alcan por meio dessas especulações, que tanto exceos estreitos limites do entendimento humano. PARTE IV
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Como você sabe, Cleantes, era usual entre os peripatéticos, quando se pedia pela causa de algum fenômeno, recorrer a suas faculd ades o u qu alidade s ocultas, e dizer, por exemplo, que o pão alimentava em virtude de sua faculdade nutritiva, do mesmo modo que o sene purgava devido sua faculdade purgativa. Descobriu-se, porém, que esse su bterfúgio nada mais era que o disfarce da ignorância, e que esses filósofos, embora menos francos, estavam na realidade dizendo a mesma coisa que os céticos ou as pessoas comuns, que confessavam honradamente não saber a causa desses fenômenos. De maneira análoga, ao serem interrogados sobre a causa q ue produz a ordenação das idéias do Ser Supremo, poderiam vocês, antropomorfistas, dar qualquer outra razão que não a de que é uma faculdade racional, e de que essa é a natureza da Divindade? E difícil, contudo, determinar por que uma resposta semelhante não seria igualmente satisfatória para explicar a ordem do mundo, dispensando o recurso a um criador inteligente tal como esse em que você insiste. Bastaria dizer que essa é a natureza dos objetos materiais, e que todos eles estão originalmente de posse de uma faculdade de ordem e proporção. Essas são simplesmente maneiras mais doutas e refinadas de confessar nossa ignorância, e a p rimeira hipótese não apresenta qualquer vantagem genuína sobre a segunda, exceto sua maior conformidade com os preconceitos vulgares. Cleantes: Você expôs esse argumento com grande ênfase e parece não se dar conta de como é fácil contestá-lo. Se eu atribuo uma causa a um evento qualquer, mesmo na vida cotidiana, seria porven -
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tura objetável, Filo, que eu não seja capaz de identificar a causa dessa causa e de respond er a todas as no vas questões que incessantemente podem ser levantadas? Que filósofos poderiam submeter-se a uma regra tão rígida, sendo que confessam que as causas últimas são totalmente desconhecidas e estão conscientes de que os princípios mais aperfeiçoados, aos quais remetem os fenômenos, continuam sendo para eles tão inexplicáveis como aqueles mesmos fenômenos o são para as p essoas comu ns? A orde m e arran jo da Natureza, o notável ajustamento das causas finais, os manifestos usos e propósitos de cad a parte e cada órgão; tudo isso proclama na linguagem mais clara existência de um autor ou causa intelectiva. Os céus e a terra juntam-se no mesmo testemunho; o coro inteiro da Natureza ergue um hino ás glórias de seu Criador. Somente você — ou quas e — perturba esta harmonia geral, levantando complicadas dúvidas, sofismas e objeções. Você me pergunta qual é a causa dessa causa? Não sei, não me preocupo, isso não me diz respeito. Eu encontrei uma Divindade, e aqui detenho minha investigação. Que sigam adiante os que forem mais sábios ou empreendedores. Filo: Não pretendo ser uma ou outra coisa, e talvez por isso mesmo jamais deveria ter tentado ir tão longe, especialmente porque me apercebo que, no final das contas, devo contentar-me com a mesma resposta com a qual, desde o início e sem maiores aborrecimentos, eu poderia ter-me satisfeito. Se tenho de permanecer na total ignorância das causas, sem poder explicar absolutamente nada, que vantagem haverá em livrar-me momentaneamente de uma dificuldade que, como você reconhece, reapaa
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receri de imediato com toda sua força? É verdade que os cientistas da Natureza explicam muito apro pria dam ente efeitos particulares por meio de causas mais gerais, embora essas mesmas causas gerais este jam d estin adas , afin al, a perm anece r totalmente inex plica das; mas certamente eles nunca pensaram que seria satisfatório explicar um efeito particular por meio de uma causa também particular que não admitiria uma explicação melhor que a do próprio efeito. Um sistema de idéias que se auto-ordenasse sem um desígnio prévio não seria minimamente mais ex plicivel do que um sistema material que atingisse do mesmo modo sua ordenação; e não hi , na verdade, mais dificuldade na última suposição do que na primeira.
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Filo: Mas, para mostrar-lhe ainda algumas outras inconveniências de seu antropomorfismo, peço1he que inspecione novamente seus princípios. A igualdade dos efeitos prova a igualdade das causas. Este é o argumento experimental; e também, como você diz, o único argumento teológico. Mas é certo que, quanto maior a igualdade dos efeitos que são observados e a das causas que são inferidas, tanto .mais forte é o argumento. Qualquer afastamento, em cada um dos lados, diminui a probabilidade e torna o experimento menos conclusivo. Você não pode p6r em dúvida esse princípio, nem deve rejeitar suas consequencias. De acordo com o verdadeiro sistema do teísmo, todas as recentes descobertas da astronomia que provam a imensa grandeza e magnificência das obras da Natureza constituem outros tantos argumentos adicionais em favor da Divindade. Contudo, segundo su a hipótese de teísmo experimental, elas se tornam
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outras tantas objeções, ao tornarem o efeito muito menos semelhante aos efeitos da arte e engenho humanos. Pois, se Lucrécio, mesmo aderindo ao antigo sistema do mundo, pôde exclamar: Quis regere imrnensi summan, quis habere profundi, Indu manu validas potis est moderanter habenas? Quis pariter coelos omnes convertere? et omnes aetheriis terras suffire feraces? Ignibus Omnibus inve locis esse omni tempore praesto?*
Se Túlio considerou o seguinte raciocínio tão natural a ponto de colocá-lo na boca de seu epicurista: Quibus enim oculis animi intueri potuit vester Plato fabricam illam tanti operis, qua construi a Deo atque aedificari mundum facit? quae molitio? quae ferramenta? qui vectes? quae machinae? qui ministri tanti numeris fuerunt? quemadmodum autem obedire et parere voluntati architecti aer, ignis, aqua, terra potuerunt?** * Quem é poderoso o bastante para reger o cume e para manter sob seu controle as poderosas rédeas das profundezas? Para fazer girar ao mesmo tempo todo o céu, e aquecer com fogos etéreos todas as terras fecundas? E, ainda, para estar em todos os lugares em todos os momentos? (Lucrécio, De Rerum Natura, II.) (N.T.) ** Qual foi, na verdade, a espécie de visão mental que permitiu a seu mestre Platão contemplar o vasto processo arquitetônico que se atribui a Deus na edificação do mundo? Q ue método de engenharia foi empregado? Quais ferramentas, alavancas e máquinas? Quais foram os executores de uma tarefa tão i mensa? E como foi possível ao ar, fogo, terra e água obedecer e realizar a vontade do arquiteto? (Cícero, De Natura Deorum, I.) (N.T.)
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Se esse argumento, eu repito, teve alguma força nas épocas anteriores, quão mais deve tê-la agora, quan-
do os limites da Natureza se alargam infinitamente e um cenário tão magnífico se abre para nós! Torna-se ainda menos razoável moldar nossa idéia de uma causa tão ilimitada a p artir de nossa experiência dos reduzidos produtos do cálculo e inventividade humanas.
As descobertas feitas por meio do microscópio, medida que revelam um novo universo em minia-
tambem constituem objeções, de acordo com você; e argumentos, do meu ponto de vista. Quanto mais longe levarmos as pesquisas desse tipo, mais seremos forçados a inferir que a causa universal de tudo é imensamente distinta da humanidade, ou de qualquer objeto da experiência ou observação hutura,
manas.
E o que tem você a dizer acerca das descobertas em anatomia, química, botânica?... Cleantes: Essas certamente não constituem ob-
jeções, m as a pena s revelam n ovos exem plos de a rte e engenho. Mais uma vez, trata-se da imagem da mente refletindo-se sobre nós a partir de inúmeros objetos. Filo: Acrescente mente como a humana. Cleantes: Não conheço outra. Filo: E quanto mais se iguale a ela, melhor.
Cleantes: Certamente. Filo: [Com um ar alegre e triunfante] E agora, tes, observe as conseqüências. Em primeiro lu-
, com esse método de raciocínio, você renuncia pretensã o de infinitude em qualquer dos atritos da Divindade. Pois, como a causa deve estar
brida
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 74 em proporção apenas ao efeito, e este, á medida que cai sob nosso conhecimento, não é infinito, de que modo poderíamos pretender, com base em nossas suposições, aplicar aquele atributo ao Ser Divino? Você deverá manter que, ao apartá-lo tanto de toda semelhança com as criaturas humanas, entregamonos á mais arbitrária das hipóteses e enfraquecemos, ao mesmo tempo, todas as provas de su a existência. Em segundo lugar, não há razão, em sua teoria, para que você atribua perfeição á Divindade — mesmo em sua capacidade finita —, ou para que a sup onha isenta de todo erro, engano ou incoerência em suas realizações. Há, nas obras da Natureza, muitas dificuldades que são inexplicáveis, mas que, se admitirmos que a existência de um autor perfeito é provada a priori, solucionam-se facilmente e revelamse como dificuldades que surgem apenas em virtude da limitada aptidão do ser humano, que n ão consegue esquadrinhar relações infinitas. No entanto, de acordo com seu método de investigação, todas essas dificuldades se tornam reais. Talvez se insista que elas fornecem novos exemplos de semelhanças com as obras do artifício e talento humanos; mas vocês está obrigado a reconhecer, ao menos, que nos é impossível distinguir, a partir de nossa perspectiva limitada, se esse sistema contém ou não graves defeitos, ou qual o grau de louvor que merece, em comparação com outros sistemas possíveis ou mesmo reais. Se lêssemos a Eneida para um camponês que jamais teve contato com qualquer outra obra literária, seria ele capaz de julgar esse poema como absolutamente impecável, ou mesmo determinar a posição que lhe cabe dentre as pr oduções do espír ito humano?
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Mas ainda que este mundo fosse um produto tão perfeito, persistiria a in certez a so bre se todas as excelências da obra podem com justiça ser atribuídas ao artífice. Ao inspecionarmos um navio, que idéia elevada não formaremos da engenhosidade do car pinteiro que fabricou uma máquina tão complicada, útil e bela? E qual surpresa não devemos sentir ao descobrir que ele é um mecânico estúpido, que apenas imitou outros e copiou uma arte que, através de uma longa sucessão de épocas, e após múlti plas tentativas, erros, correções, decisões e controvérsias, foi-se aperfeiçoando gradualmente? Muitos mundos poderiam ter sido toscamente elaborados e remendados ao longo de uma eternidade, antes de delinear-se o presente sistema; muito trabalho pode ter-se perdido, muitas tentativas infrutíferas realizadas, e um lento mas ininterrupto progresso pode ter tido lugar, através de eras infinitas, na arte de construir mundos. Quem pode determinar, em tais assuntos, onde reside a verdade; ou sequer conjeturar b que é mais provável, dentre o grande número de hipóteses que se poderia propor, e o número ainda maior das que poderiam ser imaginadas? E que sombra de argumento poderia você oferecer, a partir de sua hipótese, para provar a unida- de da Divindade? Um grande número de homens reúne-se para construir uma casa ou um navio, para edificar uma cidade, para fundar um Estado; por que flão poderiam várias deidades associar-se para conceber e forjar um mundo? Isso nos conduziria, de fato, a uma semelhança ainda maior com o que ocorre nos empreendimentos humanos. Ao dividir o trabalho entre muitas deidades, poderíamos limitar em
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muito os atributos de cada uma delas e nos livrarmos daquele vasto poder e inteligência que seria preciso supor no caso de uma única; e que, em relação ao que você propõe, serve apenas para enfraquecer a prova de sua existência. Se criaturas estúpidas e corrompidas como os seres humanos podem, mesmo assim, unir-se freqüentemente para traçar e e executar um plano, com muito maior razão poderiam fazêlo essas deidades ou demiurgos, a quem podemos atri buir alguns alguns graus graus a mais de perfe perfeição ição.. Multiplicar a a s causas desnecessariamente é, na verdade, contrário a genuína filosofia; mas, no presente caso, tal princípio não se aplica. Se sua teoria tivesse permitido provar com anterioridade a existência de uma única Divindade, possuidora de todos os atributos requeridos para a produção do Universo, seria então, eu confesso, desnecessário (mas não absurdo) supor a existência existência de alguma outra d eidade. Mas, enquanto estiver pendente a questão so bre se s e todos todo s esses es ses atribut a tributos os estão es tão u nidos em u m ú nico sujeito ou dispersos entre vários seres independentes, quais são os fenômenos da Natureza que nos permitiriam decidir a controvérsia? Quando vemos um corpo erguer-se no prato de uma balança, ficamos seguros de que há, no prato oposto — por m ais oculto que esteja á nossa vista — algum contrapeso equivalente; mas permanece a dúvida sobre se esse contrapeso consiste em um agregado de vários corpos c orpos distintos ou de uma única massa uniforme e coesa. E, se o peso requerido é muito maior do que qualquer outro que já tivemos ocasião de encontrar reunido em um só corpo, a primeira suposição se torna ainda mais provável e natural. Um ser inteligen -
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te dotado de um poder e capacidade tão vastos como seria necessário para engendrar o Universo, ou — para para usar usar o termo termo filosófico filosófico da Antigü Antigüidad idadee — um animal tão prodigioso, ultrapassa toda analogia e mesmo toda compreensão. Além disso, Cleantes, seres humanos são mortais, e renovam sua espécie pela geração; e isto é co-
mum a todas as criaturas vivas. Como disse Milton, os dois grandes sexos — masculino e feminino — animam o mundo. Por Por que, então, se deveria excluir exclui r essa condição, tão universal e essencial, daquelas deidades numerosas e limitadas? Eis aí, portanto, a teogonia dos tempos antigos trazida de volta para nós. E por que não se tornar um antropomorfista completo? Por que não considerar a deidade, ou dei-
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dades, como sendo corpóreas, tendo olhos, um nariz, boca, ouvidos, etc? Epicuro sustentava que ninguem tinha observado a razão a não ser em uma figura humana; assim os deuses devem ter figura humana. E esse argumento, merecidamente tão ridicularizado por Cícero, torna-se, de acordo com você, sólido e filosófico. Num a palavra, pal avra, Cleantes Clea ntes:: algu ém que siga sua hi pótese póte se é capaz, capa z, talvez, ta lvez, de as severar seve rar ou conjeturar conje turar que o Universo surgiu em algum momento a partir de algo semelhante a um desígnio, mas, como não pode certificar-se certificar-se de nenhu ma circunstancia para além dessa situação, só lhe resta, a seguir, fixar todos os outros pontos de sua teologia utilizando, com a m áxima liberdade, a imaginação e as hipóteses. Este mundo, por tudo que ele sabe, é muito falho e im perfeito perfe ito se s e com parad o a u m padrão pa drão sup erior; e é a pena s a obra de alguma deidade pueril que o abando-
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nou a seguir, envergonhada de sua desastrada realização. E meramente o trabalho de alguma deidade
inferior e subalterna e constitui motivo de chacota para seus superiores. É o produto produto da velhice e senisenilidade de alguma deidade decrépita e está, desde sua morte, entregue ao próprio destino, movendo-se pelo primeiro primeiro impulso impulso e força força ativa que dela recebeu... recebeu... E justo que você dê mostras de horror, Demea, em face destas extravagantes suposições; mas estas, e mil outras mais, são suposições de Cleantes, não minhas. Todas elas surgem a partir do momento em que se supõe que os atributos da Divindade têm caráter finito. E não posso conceber, de minha parte, que sustentar um sistema teológico tão assombroso e transtornado seja, sob qualquer aspecto, preferível a não sustentar nenhum. absolutamente tais suposiCleantes: Rejeito absolutamente ções, embora elas não me provoquem horror, especialmente sob a forma casual e descuidada com que você as despeja. Ao contrario, elas me dão prazer, quando vejo que mesmo a maxima licença de sua imaginação não lhe permite livrar-se da hipótese do desígnio no Universo, mas obriga-o, a cada passo, a lazer uso dela. A essa admissão eu me apego firmemente; e considero-a como uma fundação suficiente para a religião.
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Demea: Muito frágil deve ser a estrutura que pode pode ser erguida erguida sobr sobree uma fundaç fundação ão tão tão instável instável.. Enquanto Enquanto estivermos incertos sobre se há h á uma ou
muitas deidades, se a deidade ou deidades a que devemos nossa existência são perfeitas ou imperfeitas, subordinadas subordinadas ou superiores, vivas ou mortas, que crédito ou confiança poderemos depositar nelas? Que d evoção ou adoração dirigir-lhes? dirigir-lhes? Que obediência ou veneração prestar-lhes? A teoria da religião faz-se completamente inútil para todos os propósitos da vida; e, mesmo em relação ás conseqüências especulativas, sua incerteza, de acordo com você, deve torná-la de todo precária e insatisfatória. Filo: Para torná-la ainda mais insatisfatória, ocorre-me ainda uma outra hipótese, que certamente ganhará um ar de plausibilidade a partir do método de raciocínio em que Cleantes tanto insiste. O princípio princípio que ele ele toma toma como como funda fundamento mento de toda toda religião é o de 'que causas iguais produzem efeitos
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iguais. Mas há outro princípio do mesmo tipo, que não é menos certo e que deriva da mesma fonte ex perimen tal, a saber: que, sempre que se observa que várias circunstancias conhecidas sao similares, então também as circunstâncias desconhecidas se revelarão similares. Assim, se vemos os membros de um corpo humano, concluímos que ele estará dotado também de uma cabeça humana, ainda que oculta á nossa visão. Do mesmo modo, se vemos uma pequena porção do Sol através de uma fresta na parede, concluímos que, se a parede fosse removida, veríamos o Sol por inteiro. Em suma: este método de raciocínio é tão óbvio e familiar que não é possível alimentar o menor escrúpulo com relação á sua solidez. Ora, se inspecionarmos o Universo até onde nos é dado apreendê-lo, veremos que ele guarda uma grande semelhança com um animal ou corpo organizado e parece obedecer a um princípio semelhante de vida e movimento. Assim, uma contínua circulação de matéria não produz nele desordem alguma; o constante desgaste de todas as partes é incessantemente compensado; observa-se, através de todo o sistema, a mais estreita interdependência, e cada parte ou membro, ao desempenhar suas funções próprias, atua tanto em favor de sua própria preservação como em favor da preservação do todo. Infiro, portanto, que o mundo é um animal e que a Divindade é a alma do mundo, pondo-o em movimento e sendo por ele afetada. Você é muito instruído, Cleantes, para surpreender-se minimamente com esta opinião, que foi mantida, como você sabe, por quase todos os teís -
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tas da Antigüidade, e que ocupa uma posição pre ponderante em se us d iscursos e raciocínios. Pois, em bora os filós ofos antig os tenham algumas veze s considerado o mundo como um artefato produzido por Deus, parece que a idéia mais favorecida por eles é a de tomá-lo como sendo o corpo da Divindade, organizado de modo a tornar-se subserviente a ela. E deve-se confessar que, dado que o U niverso se assemelha mais a um corpo humano do que ás obras da arte e do engenho humanos, a inferência mais correta parece ser em favor da teoria antiga, e não da moderna; se é que nossa limitada analogia pode, de alguma forma, ser apropriadamente estendida á Natureza como um todo. Há também muitas outras vantagens n a primeira teoria que a recomendavam aos olhos dos antigos teólogos. Nada poderia ser mais repugnante a todas as suas concepções — porque nada é mais repugnante á experiência comum — do que a idéia da mente existindo sem um corpo; uma pura substância espiritual que não se manifestava a seus sentidos ou á sua com preen são, e da qual jamais tin ham o bservado um único exemplo em toda a Natureza. Eles conheciam mente e corpo porque percebiam ambos; e, pela mesma razão, sabiam igualmente da existência, em am bos, de uma ordem, arranjo, organização, ou mecanismo interno. E não poderia deixar de parecer-lhes razoável transferir essa experiência ao Universo e su por que também o cor po e a m ente divinos são contemporâneos, apresentando, ambos, uma ordem e arranjo que lhes são naturalmente inerentes e inse paráveis. Eis aqui, portanto, uma nova espécie de antro-
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pomorfismo, Cleantes, sobre o qual você bem poderia refletir; e uma teoria, além disso, que não parece apresentar qualquer dificuldade importante. Você, com certeza, está suficientemente acima dos pre- conceitos sistemáticos para encontrar mai s dificuldades na idéia de que um corpo animal possa estar, por si mesmo ou em virtude de alguma causa desconhecida, dotado originariamente de ordem e organização do que na supos ição de que a mente apresente uma ordem similar. Mas o preconceito vulgar, segundo o qual corpo e mente devem estar sempre acompanhados um do outro, não deve, na minha opinião, ser inteiramente negligenciado, dado que se funda na experiência comum, isto é, no único guia que você admite seguir em todas essas investigações teológicas. E se você afirmar que nossa experiência li mitada não constitui um padrão aceitável para julgar sobre a extensão ilimitada da Natureza, estará abandonando inteiramente sua própria hipótese inicial e será obrigado a adotar, daí em diante, nosso misticismo — como você o denomina — e a reconhecer a absoluta incompreensibilidade da Natureza Divina. Cleantes: Admito que essa teoria, embora bastante natural, nunca me ocorreu antes; e não posso, com base em um exame e reflexão tão breves, dar de imediato minha opinião sobre ela. Filo: Você está sendo, na realidade, muito escrupuloso. Se me coubesse examinar qualquer sistema apresentado por você, eu não procederia com metade dessa cautela e reserva ao levantar-lhe objeções e dificuldades. Apesar disso, se alguma coisa lhe ocorre, você poderia fazer-nos a gentileza de apresentá-la.
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Cleantes: Se é assim, parece-me que, embora o mundo se assemelhe em muitos aspectos ao cor po de um animal, a analogia falha em muitos pontos de extrema importância: não há órgãos senso, riais, não ha uma sede do pensamento ou razão, e não há uma origem única e precisa do movimento e da ação. Ele parece, em suma, apresentar uma se-
melhança mais pronunciada com um vegetal do que com um animal; e, nessa m edida, sua inferência em favor da alma do mundo seria inconclusiva. Em segundo lugar, sua teoria parece implicar a eternidade do mundo, e esse é um princípio que tem contra si, segundo penso, as mais fortes razões e pro babilidades. P ara ver isso, vou sug erir um argu men to que, segundo creio, nenhum autor jamais enfati-
zou. E verdade
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que aqueles que baseiam seus argumentos na origem tardia das artes e ciências, embora suas inferências não careçam de vigor, podem talvez ser refutados por meio de considerações derivadas da natureza da sociedade humana, que oscila sem cessar entre a ignorância e o conhecimento, a liberdade e a escravidão, a prosperidade e a pobreza; de tal modo que não nos é possível, a partir de nossa li mitada experiência, prognosticar com segurança quais eventos podem ou não ser esperados. A sabedoria e a história da Antigüidade parecem ter corrido sério risco de perecer inteiramente após a invasão dos povos bárbaros; e, caso essas convulsões se tivessem prolongado um pouco mais, ou sido um
pouco mais violentas, provavelmente não teríamos hoje conhecimento do que se passou no mundo poucos séculos antes de nossa época. Mais ainda, se não .• fosse pela superstição dos papas — que preservaram
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algum latim estropiado para manter a aparência de uma igrej a antiga e universal — aquela língua poderia ter-se perdido por inteiro; nesse caso, o mundo ocidental, mergulhado em completa barbárie, não estaria adequadamente preparado para receber o idioma e o saber dos gregos, que lhe foram transmitidos após o saque de Constantinopla. Se o conhecimento e os livros tivessem sido aniquilados, até mesmo as artes mecânicas viriam a experimentar uma
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born não haja no mundo clima que lhes seja mais
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decadência considerável; e é facilmente imaginável que a lenda ou tradição pudessem chegar a atribuirlhes uma origem muito mais tardia do que realmente
é o caso. Assim, o tipo comum de argumento contra a eternidade do mundo aparenta ser um tanto precário . Mas parece haver, aqui, a base para um argumen-
to melhor. Lú culo foi o primeiro a trazer as cerejeiras da Asia para a Europa, embora essa árvore pro s pere tão bem em muitos climas europeus a ponto de crescer nos bosques, sem qualquer cultivo. Seria possível que, durante uma eternidade inteira, nenhum europeu jamais tivesse passado pela Asia e pensado em transplantar um fruto tão delicioso para sua
própria terra? Ou, se essa árvore já tivesse alguma vez sido transplantada e difundida, como poderia
ter-se extinguido a seguir? Im périos podem erguerse e tombar, liberdade e escravidão sucederem-se alternadamente, ignorância e sabedoria darem lugar uma á outra, mas a cerejeira continuará a existir nos bosq ues da Grécia, Esp anha e Itália, sem jamais ser
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afetada pelas oscilações da sociedade humana.
Não se p assa ram ainda d ois m il anos desd e qu e as vinhas foram transplantadas para a França, em-
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favorável. Há três séculos, cavalos, vacas, ovelhas, suínos, cães e cereais eram desconhecidos na Amé rica. Será possível que, durante os ciclos de toda uma eternidade, nunca tenha surgido um Colombo que inaugurasse a comunicação entre a Europa e aquele continente? Seria o mesmo que imaginar que as pessoas pudessem usar meias por dez mil anos sem nunca terem pensado em inventar ligas para prendê-las. Todas estas parecem constituir provas convincentes da juventude, ou mesmo infância do mundo, dado que estão baseadas na operação de princípios mais constantes e estáveis do que os que dirigem e governam a sociedade humana. Nada menos do que uma convulsão total dos elementos seria requerida para a destruição de todos os animais e vegetais de origem européia que hoje são encontrados em todo o mundo ocidental. Filo: E qual é o argumento de que você dispõe contra tais convulsões? Provas poderosas e quase inquestionáveis podem ser recolhidas por toda a Terra para o fato de que cada um a das partes deste globo permaneceu por muitas eras inteiramente submersa em água. E, ainda que se supusesse que a ordem é insep arável da matéria, e inerente a ela, a matéria pode ser suscetível de muitas e vastas pertur bações , atravé s dos infinitos períodos da duração eterna. As mudanças incessantes ás quais cada parte da matéria está sujeita parecem sugerir a ocorrência de transformações gerais desse tipo, embora se possa observar, ao mesmo tempo, que todas as mudanças e degradações das quais temos experiência não são mais do que passagens de um estado de ordenação para
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outro; e que a matéria não pode jamais permanecer em um estado de total deformidade e confusão. O que observamos nas partes podemos inferir em relação ao todo; pelo menos, esse é o método de raciocínio no qual você baseia toda a sua teoria. E se eu estivesse obrigado a defender algum sistema particular dessa natureza (o que jamais faria de bom grado), não haveria nenhum que eu considerasse como mais plausível do que o que atribui ao mundo um princíp io d e or dem etern o e iner ente , em bora acom panhado de grandes e ininterruptas perturbações e alterações. Isto solucionaria de um a vez todas as dificuldades; e se a solução, por ser tão geral, não é inteiramente completa e satisfatória, é pelo menos uma teoria á qual cedo ou tarde precisaremos recorrer, seja qual for o sistema que tivermos adotado. De que forma as coisas poderiam ter chegado a ser como são se não houvesse em algum lugar, no pensamento ou na matéria, um princípio ordenador inerente e originário? E indiferente a qual dos dois concedemos nossa preferência. Em qualquer hipótese, cética ou religiosa, o acaso não pode ter lugar. Tud o está certamente governado por leis fixas e invioláveis; e, se a essência mais recôndita das coisas viesse a abrir-se para nós, descobriríamos então um cenário do qual presentemente não podemos ter a menor idéia. Em lugar de admirar a ordem dos seres naturais, veríamos claramente que lhes teria sido absolutamente impossível apresentar, no mais ínfimo detalhe, qualquer outra disposição. Se alguém desejasse reviver a antiga teologia pagã que sustentava, como lemos em Hesíodo, que este globo era governado por trinta mil deidades, nas -
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89 cidas dos poderes desconhecidos da Natureza, você, Cleantes, naturalmente retrucaria que nada se lucra com essa hipótese; e que é igualmente fácil su por q ue todos os homens e animais — seres mais numerosos, mas menos perfeitos — tenham brotado sem intermediação de uma fonte desse tipo. Le ve essa mesma inferência um passo adiante e você constatará que uma sociedade de numerosas deidades é tão compreensível quanto uma única deidade universal que contenha em si mesma os poderes e perfeições daquela sociedade como um todo. Você deverá admitir, assim, que todos estes sistemas — o ceticismo, o politeísmo e o teísmo — estão, de acordo com os princípios que você defende, em pé de igualdade; e que nenhum deles apresenta qualquer vantagem sobre os outros. E disto você poderá concluir que seus princípios são falaciosos.
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Filo: Ao examinar, contudo o antigo sistema da alma do mundo, surge-me de súbito uma nova idéia que, se for correta, deve levar quase ruína todos os seus raciocínios e destruir até mesmo as inferências mais primordiais s quais você dedica tanta confiança. Se o Universo apresenta uma maior semelhança com organismos animais e vegetais do que com os produtos do artifício humano, é provável que sua causa se assemelhe mais ás causas dos primeiros do que ás dos segundos; e sua origem deveria ser atribuída mais apropriadamente geração ou vegetação do que razão ou desígnio. Sua conclusão, mesmo de acordo com seus princípios, surge então como falha e defeituosa. Demea: Peço-lhe que estenda um pouco esse argumento, pois não posso compreendê-lo muito bem na forma concisa em que voce o expressou. Filo: Nosso amigo Cleantes, como você bem ouviu, parte da suposição de que toda questão de
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fato só pode ser decidida pela experiência para declarar que é apenas por esse meio que se pode provar a existência de Deus. O mundo, diz-nos ele, assemelha-se aos produtos do engenho humano; sua causa, portanto, também deve assemelhar-se ás des-
ses produtos. Aqui se poderia observar que a operação de uma parte muito pequena da Natureza — a
saber, o ser humano — sobre outra parte igualmente pequena — a saber, a m atéria inanimada que está ao alcance desse ser — é a regra pela qual C leantes julga acerca da origem do todo; e que objetos tão desproporcionais são aferidos por ele segundo o mesmo padrão individual. Deixando de lado, porém, as objeções que vão nessa direção, eu afirmo que há outras partes do Universo (além das máquinas resultantes da invenção humana) que guardam uma semelhança ainda maior com a textura do mundo, e que, por essa razão, dão ensejo a uma conjetura mais plausível acerca da origem universal desse sistema. Essas partes são os animais e os vegetais. E evidente que o mundo é mais semelhante a um animal ou vegetal do que a um relógio ou tear; assim, é mais provável que sua causa se assemelhe causa dos primeiros, que é a geração, ou vegetação. Podemos inferir, assim, que a causa do mundo é alguma coisa similar ou análoga geração ou vegetação. Demea: Mas como conceber que o mundo possa surgir de algo semelhante á vegetação ou geração? Filo: Muito facilmente. Do mesmo modo que uma árvore espalha suas sementes nos camp os vizinhos e ocasiona o surgimento de outras árvores, a ssim também o grande vegetal — o mundo, ou este sistema planetário — produz dentro de si certas se-
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mentes que, dispersando-se no caos circund ante, fazem germinar novos mundos. Um cometa, por exemplo, é a semente de um mu ndo; e, após atingir o pleno amadurecimento, pela passagem de um sol a outro e de uma estrela a outra, é finalmente lançado em meio aos elementos informes que jazem por toda parte ao redor do U niverso, fazendo brotar imediatamente um novo sistema. Ou então, se supusermos (pelo gosto da variedade, pois não vejo outra vantagem) que este mundo é um animal, um cometa será o ovo desse animal; e, assim como um avestruz põe seu ovo na areia, a qual, sem nenhum cuidado posterior, choca o ovo e produz um novo animal, da mesma forma... Demea: Compreendo-o agora. Mas que suposições desatinadas e arbitrárias são essas? De que dados dispõe você para tão espantosas conclusões? Essa semelhança superficial e imaginária do mundo a um vegetal ou um animal seria porventura suficiente para ratificar a mesma inferência em relação a am bos? Será que objetos que são em geral tão amplamente distintos deveriam ser tomados como padrão um para o outro? Filo: Precisamente! Esse é o ponto sobre o qual venho insistindo durante todo o tempo. Afirmei, além disso, que não dispomos de dados para decidir acerca de qualquer sistema de cosmogonia. Nossa experiência, em si mesma tão imperfeita e tão limitada tanto em alcance como em duração, não nos pod e ofe recer qualque r con jetura plaus ível acerc a da totalidade das coisas. Se, porém, formos obrigados a nos fixar em alguma hipótese, qual seria a regra, eu pergunto, pela qual deveríamos guiar nossa esco-
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lha?
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Há qualquer outra regra, que não a grande si-
milaridade dos objetos comparados? E não é verdade que uma planta, ou um animal, procedente da geração ou vegetação, guarda uma semelhança m ais marcante com o mundo do que a observada em qualquer máquina artificial, procedente da razão e do desígnio? Demea: Mas o qu e é essa vegetação e geração de que você fala? Pode você explicar suas operações e dissecar a refinada estrutura interna de que elas de pendem? Filo: Ao menos tanto quanto Cleantes pode ex plica r as opera ções da razã o, ou diss ecar a estrutura interna da qual ela depende. No entanto, quando eu vejo um anim al, posso inferir, sem qualquer dessas laboriosas investigações, que ele proveio da geração; e isso com uma certeza tão grande quanto aquela com que você conclui que uma casa foi erguida pelo desígnio. Estas palavras, "geração e "razão", indicam somente certos poderes e atividades "
naturais, cujos efeitos conhecemos, mas cuja essência nos é incompreensível; e nenhum desses princí pios, mais do que o outro, se destaca o suficiente
de modo a ser tomado como um padrão para a Natureza em sua totalidade. Na realidade, Dem ea, p ode-se razoavelmen te es pera r que, quan to mais ampla a pers pectiva c om q ue encararmos as coisas, melhor ela nos guiará em nossas conclusões acerca desses assuntos extraordinários e magníficos. Há, apenas neste pequeno recanto do mundo, quatro princípios: razão, instinto, geração e vegetação, que são similares uns aos outros e são causas de efeitos semelhantes. Que número de outros
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princípios não poderíamos naturalmente supor como existindo na imensa extensão e variedade do Universo, se nos fosse dado viajar de um planeta a outro, e de um sistema a outro, a fim de examinar cada parte dessa trama prodigiosa? Qualquer um desses quatro princípios mencionados acima (e centenas de outros que se abrem á nossa conjetura) é ca paz de nos fornecer uma teoria para julgar sobre a origem do mundo; e constitui uma flagrante e extraordinária parcialidade restringir por completo nossa perspectiva ao princípio que governa a operação de nossas próprias mentes. Se esse princípio se tornasse com isso mais inteligível, tal parcialidade poderia ser de algum modo desculpável. Mas a razão, na sua trama e estrutura internas, é-nos na verdade tão pouco conhecida quanto o instinto e a vegetação; e talvez nem mesmo a palavra natureza" — esse termo vago e indeterminado ao qual o vulgo "
tudo refere — seja, no fundo, mais inexplicável. Os
efeitos desses princípios são-nos todos conhecidos pela experiência; mas os princípios mesmos, e sua maneira de operar, são totalmente ignorados. E dizer que o mundo proveio da vegetação não é menos inteligível, ou menos conforme à experiência, do que dizer que ele proveio de uma divina razão ou invenção, no sentido em que C leantes a concebe. Demea: No enta nto, parece-me qu e, s e o mundo tivesse uma qualidade vegetativa e pudesse semear as sementes de novos mundos em meio ao caos infinito, esse poder constituiria, mais uma vez, um ar-
gumento adicional para a existência de um propósito em seu autor. Pois de onde poderia originar-se uma faculdade tão admirável, se não do desígnio? Ou ainda, como poderia a ordem brotar de algo que
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 98 é incapaz de perceber a ordem que está fazendo surgir? Filo: Basta apenas que você olhe ao seu redor para obter a resposta a essa ques tão. Uma árvore con fere ordem e organização a uma outra árvore que dela procede sem ter qualquer conhecimento dessa ordem. O mesmo ocorre a uma animal em relação a sua prole, e a um pássaro em relação a seu ninho; e casos dessa espécie são até mais freqüentes no mundo do que aqueles em que a ordem surge da razão e do artifício. Dizer que toda essa ordem característica dos animais e vegetais provém, em última instancia, do desígnio é pressupor a própria tese que se deseja estabelecer. Não podemos decidir essa im portante questão a não ser provando a priori que a ordem está inseparavelmente ligada, por sua pró pria natu reza, ao pensam ento; e qu e ela , por si m esma ou com base em princípios fundamentais desconhecidos, não pode jamais ser inerente á matéria. Além disso, Demea, uma objeção como essa que você levantou não poderia de modo algum ser utilizada por Cleantes, pois equivaleria a renunciar a uma defesa que ele já empregou contra uma de minhas objeções. Quando lhe perguntei pelas causas daquela suprema razão e inteligência á qual ele reduz todas as coisas, ele observou que a impossibilidade de responder satisfatoriamente a tais questões não poderia jamais ser admitida como uma objeção em qualquer espécie de filosofia. "Devemos parar em algum lugar", diz ele, "pois jamais estará ao alcance da capacidade humana explicar as causas fundamentais ou exibir a s derradeiras conexões de quaisquer objetos. E suficiente que cada um dos passos
99 esteja apoiado, até onde pudermos chegar, pela ex periência e obse rvação:" Ora, é inegável que a veg etação e a geração fazem parte, tanto quanto a razão, dos princípios ordenadores da Natureza que nos são revelados pela existência. Se eu baseio meu sistema cosmogônico nos primeiros, de preferência ao último, isso e uma simples decorrência da minha escolha: a questão parece ser inteiramente arbitrária. E quando Cleantes me pergunta pela causa dessa grande faculdade vegetativa ou gerativa, tenho o mesmo direito de pedir-lhe a causa de seu grande princípio racional. Tanto eu como ele já concordamos em evitar esse tipo de questões; e no presente caso é de seu especial interesse manter-se fiel ao acordo, pois, a julgar pela nossa experiência imperfeita e limitada, a geração apresenta algumas vantagens sobre a razão, já que diariamente presenciamos o surgimento desta última a partir da primeira, e nunca o contrário. Compare, eu lhe peço, as conseqüências de cada uma das posições. O mundo, digo eu, parece-se a um animal; portanto ele é um animal; portanto proveio da geraç ão. S ão passos amplos, confesso, mas cada qual preserva uma pequena aparência de analogia. Para Cleantes, o mundo parece-se a uma máquina; portanto ele é uma máquina; portanto proveio do desígnio. Também aqui os passos são am plos, sendo a analogia, contudo, menos convincente. E, se ele pretende levar minha hipótese um passo adiante, remetendo o grande princípio da geração que eu defendo ao desígnio ou razão, eu p osso, com maior autoridade, usar da mesma liberdade para acrescentar um passo a mais em sua hipótese e remeter seu princípio racional a uma geração divina, PARTE VII
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ou teogonia. Tenho, a meu favor, pelo menos uma
PARTE VII
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Cleantes: Sou obrigado a confessar que a ta-
leve sombra de evidência experimental, o que constitui o máximo que se pode alcançar no presente assunto: há incontáveis casos em que se observa a razão surgindo do princípio de geração, mas não temos nenhuma experiência de seu surgimento a partir de qualquer outro princípio.
refa de levantar dúvidas e objeções á qual você, Filo, se propôs convém-lhe melhor do que a qualquer dos homens que p resentemente vivem, e parece serlhe, de um certo modo, natural e inevitável. Tao grande é a fertilidade de sua invenção que não me en-
güidade ficaram tão fascinados com essa analogia a ponto de explicarem un iversalmen te a o rigem da Natureza por meio de um nascimento e copulação animal. Também Platão, tanto quanto nos é possível compreendê-lo, parece ter adotado uma idéia semelhante em seu Timeu. Os brâmanes asseveraram que o mundo surgiu de uma aranha infinita, que teceu de suas entranhas toda essa complicada massa, e que a seguir o aniquila, no todo ou em parte, reabsorvendo-o e dissolvendo-o em sua própria essência. Temos aqui uma espécie de cosmogonia que nos p arece ridícula, pois uma aranha é um animal pequeno e desprezível, cujas operações jamais estaremos inclinados a tomar como um modelo para o Universo inteiro. Contudo, mesmo em relação ao que se observa em nosso mundo, também há, neste caso, uma nova espécie de analogia. E se existisse um planeta habitado exclusivamente por aranhas (o que é bem poss ível), essa inferência pareceria ali tão natural e inquestionável como a que, em nosso planeta, atribui a origem de todas as coisas ao desígnio e inteligência, conforme a concepção de Cleantes. E lhe será difícil dar uma boa razão para não admitir que um ventre seja ca paz, tão bem quanto um cérebro, de tecer um sistema ordenado.
ficuldades que você incansavelmente suscita contra
Hesíodo e todos os demais mitólogos da Anti-
vergonho de admitir meu despreparo para resolver metodicamente, de imediato, todas as inauditas dimim, mesmo percebendo claramente, de modo geral, que elas são falaciosas e errôneas. E não tenho nenhuma dúvida de que você próprio — não tendo
a solução tão a seu alcance quanto a objeção — está presentemente na mesma condição; e deve do mesmo modo reconhecer que tanto o senso comum c omo a razão lhe são inteiramente contrários e que as excentricidades que você nos propõe podem talvez levar á perplexidade, mas nunca ao convencimento.
PARTE
VIII
Filo: Aquilo que você atribui á fertilidade de minha invenção deve-se inteiramente ã natureza do assunto. Nos Nos assun assuntos tos adeq adequad uados os ao ao âmbito âmbito estreito da razão humana só há, normalmente, uma única conclusão que traz consigo plausibilidade ou convencimento; e todas as outras suposições que não aquela parecem, a uma pessoa de bom juízo, totalmente absurdas e fantasiosas. Mas em questões como as de que presentemente nos ocupamos, centenas de perspectivas contraditórias podem preservar um certo grau de analogia imperfeita, e a inventividade dispõe aqui de um amplo campo para exercerse . Acredito que eu poderia, sem grande esforço intelectual, propor agora mesmo outros sistemas cosmogônicos que teriam uma leve aparência de verdade, embora as chances de que o seu sistema, ou qualquer um dos meus, seja o sistema verdadeiro se jam de de mil, de um um milhão milhão contra contra um. um. E se eu revivesse, por exemplo, a velha hipótese
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DIÁLO DIÁLOGO GOS S SOB SOBRE RE A REL RELIGI IGIÃO ÃO NATU NATURAL RAL
epicurista? É comum considera-la — e creio que com como o sistema sistema mais absurd absurdo o que que já foi justiça just iça — como prop osto, mas ma s nã o estou es tou certo de q ue, com algu mas ma s poucas poucas alterações alterações,, ela não não poss possaa vir vir a adqu adquirir irir uma uma ligeira aparência de plausibilidade. plausibilidade. Em vez de su por que a matéria é infinita, como o fez Epicuro, vamos supô-la finita. Um número finito de partículas só é suscetível de finitas transposições; e, em uma duração eterna, deve ocorrer que cada ordem ou posição possível seja exemplificada um núm ero infinito de vezes. Nosso mundo, portanto, com todos seus eventos, mesmo os mais insignificantes, já foi anteriormente produzido e destruído, e o será de novo, sem qualquer limite ou restrição. restr ição. Ninguém Ninguém que tenha uma clara concepção dos poderes do infinito, em comparação ao finito, poderá jamais duvidar desta conclusão. Demea: Mas isto pressupõe que a matéria pode adquirir movimento sem que intervenha um agenvontade. te, ou primeiro motor, dotado de vontade. Filo: E que dificuldade haveria nessa suposição? Qualquer acontecimento, antes de ser experimentado, é igualmente obscuro e incompreensível, e todos eles, após a experiência, surgem como igualmente claros e inteligíveis. O movimento, em muitos casos, seja pela gravitação, pela elasticidade ou pela eletricidade, inicia-se na matéria, sem que se conheça um agente que o tenha t enha voluntariamente voluntariamente iniciado; e supor que nesses casos sempre há um tal agente não seria mais do que mera hipótese, e uma hipótese que nãd traz consigo qualquer vantagem. O início do movimento na própria matéria é a priori tão con -
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cebível quanto sua comunicação a partir da mente, ou da inteligência. Além disso, por que o movimento não poderia ter-se propagado por impulso, através de toda a eter-
nidade, de modo que a mesma porção dele, ou qua-
se a mesma, ainda se preserve no Universo? Tudo o que se perde pela composição do movimento ganha-se em sua resolução. E, sejam quais forem as causas disto, é certo que a matéria esta, e sempre esteve, em contínua agitação, até onde se pode saber pela experiên experiência cia huma humana na ou pela pela tradiçã tradição. o. Não Não ha, ha, provav provavelmen elmente, te, em todo todo o Universo, Universo, uma uma só só partípartícula de matéria que esteja, neste momento, momento, em re pouso pouso absolu absoluto. to. E esta mesma consideração, com com a qual nos de param paramos os no no curso curso do do argum argumento ento,, sugere sugere ainda ainda uma uma nova hipótese cosmogônica que não é de modo alguma absurda e improvável. Haveria um sistema, uma ordem, uma organização das coisas mediante a qual a m atéria pudesse preservar essa agitação incessante que lhe parece essencial e, ao mesmo tem po, po, manter manter cons constan tantes tes as formas formas que que ela produz produz?? E claro que ha uma tal organização, pois é isso, de fato, o que sucede em nosso mundo presente. O movimento incessante da matéria deve, portanto, em um número finito de transposições, chegar a produzir essa ordem ou organização; e essa ordem, uma vez estabelecida, deve se auto-sustentar, pela sua pró pria natureza natureza,, ao longo longo de muitas muitas eras ou mesmo mesmo da eternidade. Ora, onde quer que a m atéria se equilibre, arranje e ajuste de modo a preservar, apesar de seu contínuo movimento, uma constância nas formas, sua disposição devera necessariamente apresen-
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tar a mesma aparência de arte e engenho que presentemente observamos. observamos. As p artes de cada forma devem manter uma relação entre si e com o todo; e este, por sua vez, deve estar relacionado com as outras partes do Universo, com o meio no qual a forma subsiste, com os materiais de que se serve para reparar seu desgaste e deterioração, e c om toda outra forma que lhe seja hostil ou favorável. Uma falha em quaisquer desses aspectos destrói a forma; e a matéria da qual ela se comp õe libera-se e fica mais uma vez á mercê de movimentos e agitações irregulares, até que venha a unir-se a alguma outra forma regular. Se nenhuma forma desse tipo estiver pre para da p ara recebê-la, receb ê-la, e se houv er uma u ma grande gran de quan tidade dessa matéria degradada no Universo, então o próprio Universo estará inteiramente desordenado, quer se trate do frágil embrião de um mundo em seus primórdios que é desse m odo destruído, ou da carcaça apodrecida de um mundo debilitado pela velhice e enfermidade. Em qualquer dos casos so brevém brevém o caos, caos, até que um númer número o finito, finito, mas mas inincontável de circunvoluções produza, por fim, algumas formas cujas partes e órgãos estejam ajustados de modo a sustentar as formas e m meio a um fluxo contínuo de matéria. Suponha-se (pois nos esforçaremos para variar o modo de expressão) que a matéria tivesse sido lançada em uma posição qualquer por uma força cega e não-direcionada; é evidente que esta primeira posição será, com toda probabilidade, a mais confusa e desordenada que se pode imaginar, sem qualquer semelhança com as obras do engenho humano que, paralelamen parale lamen te simetria das partes, revelam um acor -
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do dos meios aos fins e u ma tendência á autopreservação. Se a força atuante cessar após essa operação, a matéria deverá permanecer para sempre em desordem, persistindo um imenso caos desprovido desprovido de qualquer medida ou atividade. Suponha-se porém que a força atuante, seja ela qual for, continue presente na matéria: a primeira posição dará lugar imediatamente a uma segunda que será igualmente, com toda probabilidade, tão desordenada como a primeira, e assim por diante, através de uma longa sucessão de mudanças e circunvoluções. Nenhuma ordem ou posição particular permanece inalterada sequer por um mom ento. ent o. A força forç a origin or igin al, man tendoten do-se se em atividade, transmite uma agitação permanente á matéria; e cada uma das situações possíveis se produz e é instantaneamente destruída. Se um vislumbre ou esboço de ordem assoma por um momento, é instantaneamente afastado e confundido pela força incessante que opera sobre todas as partes da matéria. Assim prossegue o Universo por muitas eras, numa sucessão contínua de caos e desordem. Mas não seria possível que ele viesse por fim a estabilizar-se, estabilizar-se, sem perder seu movimento e atividade (que, como supusemos, supusemos, são inerentes i nerentes a ele), e le), mas preservando, preservando, apesar disso, uma aparência uniforme em meio á mudança e flutuação contínuas de suas partes? D e fato, vemos que isso é o que ocorre em nosso presente Universo. Cada indivíduo está em perpétua mudança, bem como cada parte de cada indivíduo; mas o todo, não obstante, permanece aparentemente o mesmo. Não seria razoável esperar a ocorrência de u ma situação desse tipo, ou mesmo estar seguro dela, a partir partir das das circunvo circunvoluções luções eternas eternas da matéria matéria nãonão-
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 110 direcionada? E não poderia ser esta a explicação de toda a aparente sabedoria e engenho que se manifesta no Universo? Basta uma pequena consideração deste assunto para se perceber que esse ajuste, caso se alcance por meio de uma estabilidade aparente nas formas, associada a um movimento real e per pétuo das partes, proporciona uma solução plausível, se não verdadeira, da dificuldade. E fútil, portanto, insistir sobre a serventia das partes nos animais ou vegetais e sobre o singular ajuste de umas ás outras. Muito me agradaria saber como seria possível a subsistência de um animal cujas partes n ão estivessem assim ajustadas! P ois n ão vemos que sua morte segue-se de imediato sempre que cessa esse ajuste, e que sua matéria, degradando-se, procura algum a nova forma? Ocorre, n a verd ade, que as partes do mundo estã o tão be m ajustadas que uma forma regular se apropria imediatamente dessa matéria corrompida. E poderia o mundo subsistir, se as coisas não se passassem dessa maneira? Não deveria ele dissolver-se, tanto quanto o animal, e passar por novas situações e arranjos, até que, em um número imenso, mas finito de etapas, reassumisse, por fi m, a ordem presente, ou alguma ordem semelhante? Cleantes: Você fez bem em dizer-nos que essa hipótese ocorreu-lhe repentinamente no curso da discussão. Se você a tivesse examinado com vagar, logo descobriria as insuperáveis objeções a que ela está exposta. Você diz que nenhuma forma pode subsistir a menos que possua os poderes e ó rgãos requeridos para sua subsistência; alguma nova ordem ou organização deve ser tentada, e assim por diante, sem interrupção, até que se chegue, por fim, a alguma
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ordem que possa sustentar-se e manter-se. Mas de onde proviriam, de acordo com essa hipótese, as muitas conveniências e vantagens que os seres humanos e todos os animais possuem? Dois olhos e dois ouvidos não são absolutamente necessários para a subsistência da espécie. A raça humana poderia ter-se propagado e preservado sem cavalos, cães, vacas, ovelhas e todos os inumeráveis frutos e produtos que servem ao nosso gozo e satisfação. Se os camelos não tivessem sido criados para que os homens os emp regassem nos desertos arenosos da Africa e da Arábia, teria o mundo se dissolvido por causa disso? Teriam
a sociedade e a espécie humanas se extinguido imediatamente se não houvesse os ímãs que comunicam á agulha sua extraordinária e utilíssima direção? Ain-
da que os ditames da Natureza se caracterizem em geral pela frugalidade, exemplos desse tipo estão longe de serem raros, e qualquer um deles constitui uma prova suficiente de designio, e de um designio benevolente, que deu origem á ordem e arranjo do Universo. Filo: Pelo menos você pode inferir com segurança que a hipótese precedente é, nessa medida, incompleta e imperfeita, o que não hesito em conceder. Mas seria razoável esperar obter um sucesso maior em qualquer tentativa desta natureza? Poderíamos pretender edificar um sistema cosmogónico i mune a toda objeção e isento de qualquer aspecto
incompatível com nossa limitada e imperfeita experiência da analogia da Natureza? Sua própria teoria não pode, com certeza, atribuir-se qualquer uma dessas vantagens, ainda que você tenha recorrido ao antropomorfismo para melhor preservar um acordo
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com a experiência comum. Vamos pô-la prova novamente. Em todos os exemplos que já presenciamos, as idéias são copiadas dos objetos reais e são ectípicas, não arquetípicas, para expressar-me em termos eruditos. Você reverte essa ordem e dá precedência ao pensamento. Em todos os casos que presenciamos, o pensamento não tem influência sobre
a matéria, exceto naqueles em que essa m atéria está de tal modo conjugada ao pensamento a ponto de
exercer igualmente uma influência recíproca sobre ele. Nenhum animal pode mover alguma coisa sem intermediação, a não ser os membros de seu corpo; e, na verdade, a igualdade entre ação e reação parece ser uma lei universal da Natureza. Sua teoria, porém, está em contradição com esta experiência. Esses exemplos, e mu itos outros que seria fácil coligir (particularmente a concepção da mente, ou sistema de pensamento, como algo eterno; em outras pala-
vras, um anim al não-gerado e imortal), esses exem plos, repito, poderiam ensinar-nos a ser sóbrios em nossas condenações mútuas e fazer-nos ver que, assim como nenhum sistema desse tipo deve jamais ser aceito com base em uma frágil analogia, do mesmo modo nenhum deles deve ser rejeitado por causa de uma pequena incongruência. Pois essa é uma inconveniência da qual, com justiça, pode-se declarar que nenhum sistema está isento. Admite-se que todos os sistemas religiosos estão expostos a grandes e insuperáveis dificuldades. Cada um dos competidores experimenta por sua vez o triunfo enquanto se empenha na ofensiva e denu ncia os absurdos, as barbaridades e as doutrinas perniciosas de seu antagonista. Mas todos eles, em con -
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junto, proporcionam um triunfo completo ao cético, que lhes diz que nenhum sistema deve ser adotado com relação a esses tóp icos; e isto pela simples razão de que não se deve jamais dar o assentimento a um absurdo, em qualquer assunto que seja. Uma suspensão integral do juízo é, para nós, o único recurso razoável nestes casos. E se, como normalmente se observa, todos os ataques entre teólogos são bemsucedidos e nenhuma defesa o é, quão completa não será a vitória daquele que, junto com toda a humanidade, se mantém sempre na ofensiva e não ocu pa, de sua parte, um terreno fixo ou residência permanente que estivesse em todas as ocasiões obrigado a defender!
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Demea: Mas se são tantas as dificuldades que acompanham o argumento a posteriori, não seria melhor apegarmo-nos ao simples e sublime argumento a priori, o qual, ao oferecer-nos uma dem onstração infalível, elimina desde o início todas as dúvidas e dificuldades? Além disso, este argumento permite-nos provar a infinitude dos atributos divinos, coisa que, segundo receio, jamais poderia ser esta bele cida com certeza a partir de qua lquer outra con sideração. Pois como poderia um efeito que é finito ou, por tudo que sabemos, poderia sê-lo; como poderia um tal efeito, eu repito, servir de prova para uma causa infinita? E também é muito difícil, se não absolutamente impossível, deduzir a unidade da natureza divina simplesmente a partir da contemplação das obras da Natureza; e mesmo a uniformidade por si só do p lano, admitindo-se que haja tal uniformidade, não nos dá qualquer garantia desse atri buto. Ao passo que o argumento a priori...
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Cleantes: Você
parece raciocinar como se essas vantagens e conveniências do argumento em abstrato fossem provas plenas de sua solidez. Mas, em
minha opinião, é preciso inicialmente decidir qual é, dentre os argumentos dessa espécie, aquele ao qual você escolheu referir-se. Trataremos, em seguida, d e determinar qual o valor que devemos atribuir-lhe, julgando -o po r si mesm o e n ão pela u tilidade d e suas conseqüências. Demea: O argumento no qual insisto é aque-
le comumente reconhecido. Tudo o que existe deve ter uma causa ou razão para sua existência, pois é absolutamente impossível que alguma coisa produza a si mesma, ou seja causa de sua própria existência. Ao remontar, assim, dos efeitos ás causas, ou bem prossegu imos através de u ma suces são infinita, sem jama is a lcançar uma caus a ú ltim a, ou bem temos de recorrer por fim a uma causa última que existe necessariamente. Mas pode-se provar que a primeira su-
posi ção é absurda, pois, na cadeia ou su cessã o infinita de causas e efeitos, cada efeito singular tem sua existência determinada pelo poder ou eficácia daquela causa que o precede imediatamente, ao passo que a cadeia ou sucessão eterna, tomada em conjunto, não terá qualquer causa ou determinação. E, no entanto, é evidente que ela requer uma causa ou razão, tanto quanto qualquer objeto particular que co-
meça a existir no tempo. E razoável perguntar por que essa particular sucessão de causas teria existido desde a eternidade, e não qualquer outra sucessão, ou mesmo nenhuma sucessão. Se não há um ser necessariamente existente, qualquer suposição que se possa formular é igu almente poss ível; as sim, q ue nada
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tivesse existido desde toda a eternidade não seria um absurdo maior do que a existência dessa sucessão de causas que constitui o Universo. O que foi, então, que determinou que algo existisse em vez de nada, e que conferiu um ser a uma possibilidade particular, excluindo as restantes? Supusemos que não há causas externas, e o acaso é uma palavra sem significação. Foi, talvez, o nada? Mas este jamais poderia prod uzir qualq uer coisa. E precise, portanto , recorrer a um Ser necessariamente existente, que traga a ra- zão de sua existência em si mesmo; e que só á cu sta de uma flagrante contradição se poderia supor que não existisse. Há, conseqüentemente, um tal Ser — ou seja, há uma Divindade. Cleantes: Não vou perm itir a Filo (emb ora s ai ba que nada lhe agrada mais do que levantar objeções) apontar a fraqueza desse raciocínio metafísico. Ele me parece tão obviamente infundado e, ao mesmo tempo, de tão pouca relevância para a causa da verdadeira devoção e religiosidade, que eu mesmo vou aventurar-me a mostrar sua falácia. Começo por notar que há um absurdo evidente na pretensão de demonstrar uma questão de fato, ou de prová-la por meio de qualquer argumento a priori. Nada é demonstrável a menos que seu contrário implique uma contradição. Nada que é distintamente concebível implica uma contradição. Tudo que concebemos como existente também podemos conceber como inexistente. Assim, não há qualquer ser cuja não-existência implique uma contradição. Conseqüentemente, nenhum ser pode ter sua existência demonstrada. Apresento este argumento como totalmente decisivo, e estou disposto a basear a controvérsia inteira sobre ele.
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Supõe-se que a Divindade é um ser necessariamente existente, e busca-se explicar a necessidade de sua existência pela asserção de que, se conhecêssemos integralmente sua essência ou natureza, perceberíamos que é tão impossível que ele não exista como que duas vezes dois não sejam quatro. Mas é claro que isso jamais poderá ocorrer enquanto nossas faculdades permanecerem tal como presentemente são. Sempre nos será possível, a qualquer momento, conceber a nãoexistência daquilo que antes supusemos existir; e tam pouco está a mente submetida á necessidade de su por que qualquer objeto p ersistirá exis tindo para sem pre, da man eira pela qual est amos su bmetidos á necessidade de supor sempre que duas vezes d ois são qua" tro. Assim, as palavras "existência necessária não têm significação; ou, o que dá na mesma, não têm nenhuma significação que seja consistente. Mas, além disso, por que não poderia esse Ser necessariamente existente, de acordo com essa pretensa explicação de necessidade, ser constituído pelo próprio universo material? Não ousamos afirmar que conhecemos todas as qualidades da matéria; e, por tudo que podemos decidir, ela pode possuir algumas qualidades que, se fossem conhecidas, fariam sua não-existência aparecer como uma contradição tão grande como a de que duas vezes dois sejam cinco. Só tenho conhecimento de um único argumento empregado para provar que o mundo material não é o Ser n ecessariamente existente; e esse argumento deriva-se da contingência tanto da matéria como da forma do mundo. "Qualquer partícula de matéria", diz-se 5 , pod e ser concebida como sofrendo aniqui"
5 . Dr. Clarke.
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lação, e qualquer forma pode ser concebida como sofrendo alteração. Tal aniquilação ou alteração não é, portanto, impossível" No entanto, pareceria grande parcialidade não reconhecer que o mesmo argumento se estende igualmente á Divindade, tanto quanto nos é dado concebê-la; e que a mente pode, pelo menos, imaginá-la como não-existente, ou como tendo seus atributos alterados. Se algo faz essa não-existência aparecer como impossível, ou seus atributos como inalteráveis, deve tratar-se de certas qualidades desconhecidas e inconcebíveis; e não há razão para que tais qualidades não possam pertencer também á matéria, pois, dado que são completamente desconhecidas e inconcebíveis, não se poderá jamais provar que elas lhe sejam incompatíveis. Acresça-se a isto o fato de que, ao se esquadrinhar uma sucessão eterna de objetos, parece absurdo perguntar por uma causa geral, ou primeiro autor. Como poderia haver uma causa de algo que existe desde a eternidade, se essa relação envolve uma prioridade no tempo e um começo de existência? Além disso, em uma tal cadeia ou sucessão de objetos, cada parte é causada pela precedente e é causa da que lhe vem a seguir. Onde está, pois, a dificuldade? Mas o todo, você diz, precisa ter uma causa. Minha resposta é que a união dessas partes em um todo, assim como a união de várias províncias diferentes em um reino, ou de vários membros distintos em um corpo, realiza-se simplesmente por um ato arbitrário da mente e não tem influência sobre a natureza das coisas. Se eu lhe tivesse mostrado as causas particulares de cada indivíduo de uma coleção de vinte partículas materiais, seria muito pou-
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co razoável que você me perguntasse, a seguir, pela
causa das vinte como um todo. Pois ela já foi suficientemente explicada ao se explicarem as causas das partes. Filo: Embora os raciocínios apresentados por você, Cleantes, sej am suficientes para eximir-me de levantar novas dificuldades, não posso deixar de ressaltar ainda um tópico adicional. Aqueles que se ocu pam da aritmética observam que os produtos de 9, se se adicionam os algarismos de que são formados, resultam sempre em 9 ou em algum outro produto de 9 menor do que aquele de que se partiu. Assim, a partir de 18, 27, 36, que são produtos de 9 , obtém-se 9 pela adição de 1 a 8, 2 a 7 , 3 a 6. Do mesmo modo, também 369 é um produto de 9, e a adição de 3, 6 e 9 resulta em 18 , que é um produto de 9 menor do que aquele de que se partiu 6 . Um observador superficial poderia, ao contemplar uma regularidade tão admirável, tomá-la como o resultado do acaso ou de um desígnio, mas um algebrista com petente a reconhece imediatamente como obra da necessidade, e pode demonstrar que ela resulta invariavelmente da natureza desses números. Não é plausível, pergunto, que a organização integral do Universo seja regida por uma necessidade semelhante, embora nenhuma álgebra humana possa fornecer uma chave para a solução da dificuldade? E, em vez de nos admirarmos com a ordem dos seres na-
turais, não poderia ocorrer que — caso pudéssemos penetrar na natureza recôndita dos corpos — chegássemos a ver claramente a razão pela qual seria ab6.
République des Lettres, agosto de 1685.
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solutamente impossível que eles viessem, alguma vez, a admitir qualquer outra disposição? Como é perigosa a introdução da idéia de necessidade na presente discussão, e quão naturalmente ela leva a uma inferência diretamente oposta à hipótese religiosa! Deixando de lado, porém, todas essas abstrações e limitando-nos a tópicos mais familiares, eu me aventuraria a observar, adicionalmente, que o argumento a priori raras vezes tem sido considerado muito convincente, exceto por pessoas de inclinações metafísicas que estão acostumadas a raciocínios abstratos e que, descobrindo com auxílio da matemática que o entendimento leva freqüentemente á verdade através de caminhos obscuros e em oposição ás primeiras aparências, transferem o mesmo hábito de pensamento a as suntos nos quais ele não d everia ter lugar. Outras pessoas, mesmo dotadas de bom senso e bastante inclinadas á religião, sempre reconhecem alguma deficiência em tais argumentos, ainda que não sejam capazes, talvez, de explicar claramente onde ela reside; o que é uma prova certa de que as pess oas semp re derivaram e sempre d erivarão sua religiosidade de fontes que n ão se confundem com esta espécie de raciocínio.
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Demea: Confesso que também sou de opinião que cada pessoa, de um certo modo, experimenta em seu próprio peito a verdade da religião; e, a partir do conhecimento de sua própria estupidez e miseria, de preferencia a qualquer raciocínio, e levada a buscar a proteção daquele Ser do qual ela e toda a Natureza dependem. Mesmo os melhores momentos da vida estão impregnados de angústia e aborrecimento, de tal maneira que o futuro continua sendo o objeto de todas as nossas esperanças e temores. Estamos incessantemente olhando á frente, e esforçando-nos por apaziguar, por meio de orações, cultos e sacrifícios, aqueles poderes desconhecidos que sabemos, por experiência, serem muito capazes de nos atormentar e oprimir. Que recurso restaria a nós, criaturas tão desgraçadas, se a religião não nos sugerisse alguns métodos de expiação e não aplacasse os terrores que constantemente nos assaltam e atormentam?
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Filo: Estou na verdade convencido de que o melhor e, de faco, o único método de despertar em todas as pessoas um correto sentimento 'de religiosidade é a descrição imparcial da miséria e perversidade dos seres humanos. E, para essa finalidade, requer-se muito mais o talento da eloqüência e da i maginação vivida do que a habilidade nos raciocínios e argumentos. Haveria necessidade de provar aquilo que todos já sentem dentro de si mesmos? O que é necessário, simplesmente, é fazer-nos, se possível, sentir isso de maneira mais íntima e ajuizada. Demea: Na realidad e, as p ess oas já estão suf icientemente convencidas dessa grande e melancólica verdade. As misérias da vida, a infelicidade do ser humano, as corrupções gerais de nossa natureza, o gozo insatisfatório dos prazeres, riquezas e honras: tais frases já se tornaram quase proverbiais em todas as linguagens. E quem poderia pôr em dúvida aquilo que todas as pessoas proclamam com base i mediata em seus próprios sentimentos e experiências? Filo: Nes te p onto, os s ábios e o vulgo es tão em perfeito acordo; e toda a literatura, sacra ou profana, tem insistido sobre o tópico da miséria humana, com a eloqüência mais patética que a dor e a melancolia podem inspirar. Os poetas, que falam a partir do sentimento, sem dispor de um sistema, e cujo testemunho tem, portanto, maior autoridade, excedem-se em imagens desse tipo. Desde Homero até o dr. Young, toda a tribo dos inspirados sempre reconheceu que nenhuma outra forma de representar as coisas poderia convir ao sentimento e observação de cada indivíduo.
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Demea: Quanto ás autoridades, nem é preciso que você as procure. Lance os olhos por esta bi blioteca de Cle ante s. E u m e atreveria a afirma r qu e, com exceção dos autores de ciências especializadas, tais como a química ou a botânica, os quais não têm oportunidade de tratar da vida hu mana, dificilmente haverá um único desses inumeráveis autores que não tenha sido levado, pelo sentimento da miséria humana, a expressar, em uma ou outra passagem, um a queixa ou confissão dessa miséria. Todas as proba bilidades, pelo menos, estão a fav or disso, e não posso recordar-me de nenhum autor que tenha sido tão extravagante a ponto de negar tal coisa. Filo: Quanto a isso, peço-lhe que me desculpe, mas Leibniz negou-o, e foi talvez o primeiro 7 a arriscar uma conjetura tão ousada e paradoxal; ou, pelo menos, o primeiro a fazer dela algo essencial para seu sistema filosófico. Demea: E exatamente por ser o primeiro não deveria ele ter-se dado conta de seu erro? Será este um assunto no qual os filósofos podem propor-se a fazer descobertas, especialmente em época tão tardia? E poderia alguém esperar, mediante um simples desmentido (pois o assunto dificilmente admite argumento), pôr abaixo o testemunho unânime da humanidade, fundado no sentimento e na reflexão? E por que deveria o ser humano pretender escapar do fado de todos os outros animais? A crediteme, Filo, a Terra inteira está amaldiçoada e corrom-
7. Essa opinião foi sustentada, antes de Leibniz, pelo dr. King e por um pequeno número de outros autores, embora jamais por alguém tão célebre como aquele filósofo alemão.
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pida . U ma guer ra p erpétua está defla grada entre todas as criaturas vivas. A necessidade, a fome e a privação estimulam os fortes e corajosos; o medo, a an-
siedade e o terror inquietam os fracos e tímidos. O ingresso na vida angustia o recém-nascido e seus infelizes pais. A debilidade, a impotência e a aflição acompanham cada estágio da vida, que termina, por fim, em agonia e horror. Filo: Observe ainda os singulares artifícios em pregad os p ela Natureza p ara ama rgurar a vida de to-
do ser vivo. Os m ais fortes lançam-se sobre os mais
fracos e mantêm-nos em perpétuo terror e ansiedade . Os mais fracos, por sua vez, atacam muitas vezes os mais fortes e os atormentam e importunam sem descanso. Considere a raça inumerável dos insetos, que se procriam no corpo de cada animal ou que, voando ao seu redor, cravam-lhe seus aguilhões. Esses insetos têm outros, ainda menores que eles pró prios, que, por sua vez, os atormentam. Assim, de um lado e de outro, frente e atrás, acima e abaixo, cada animal está cercado de inimigos, dedicados sem cessará sua desgraça e destruição. Demea: Somente o ser humano parece constituir-se numa exceção parcial a essa regra. Pois, pe-
la reunião em sociedade, ele pode facilmente dominar leões, tigres e ursos, cuja maior força e agilidade os capacitariam naturalmente a fazer dele sua presa. Filo: Pelo contrário, é principalmente aqui que se tornam mais visíveis as máximas uniformes e igualitárias da Natureza! E verdade que o ser humano pode, pela associação, sobrepujar todos os seus inimigos reais e tornar-se senhor de toda a criação animal. Mas também não é verdade que ele imediata -
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mente cria para si inimigos i maginários, os demônios de sua fantasia, que o perseguem com terrores
supersticiosos e arruinam todos os deleites da vida? Seu prazer, segundo ele imagina, torna-se um crime aos olhos desses demônios; seu alimento e repouso aparecem-lhes como desrespeitoso e ofensivo. Mesmo o sono e os sonhos fornecem novas ocasiões de terror angustiante; e a própria morte, seu refúgio
contra todos os outros males, só tem a lhe oferecer o temor de penas inumeráveis e eternas. A aflição que o lobo traz ao rebanho medroso não é maior do que a que a superstição produz no coração angustiado dos miseráveis mortais. Considere além disso, Demea, a própria sociedade por meio da qual conseguimos sobrepujar aqueles animais selvagens, nossos inimigos naturais: quantos novos inimigos ela não levanta contra nós, e quantas penas e aflições ela não ocasiona? O homem é o maior inimigo do homem. Opressão, injustiça, des prezo, ultraje, violência , su blevação, guerra, calú nia, traição, fraude: tudo isto serve aos seres humanos para atormentarem-se mutuamente; e a sociedade que formaram logo seria por eles dissolvida, se não fosse pelo temor dos males ainda maiores que devem necessariamente resultar de sua separação. Demea: Contudo, embora esses ataques externos por parte de animais, de homens e de todos os elementos formem um terrível catálogo de desgra-
ças, eles não são nada em comparação com aqueles que surgem dentro de nós m esmos, provenientes da condição desequilibrada de nossa mente e nosso cor po. Quantos não estão submetidos ao prolongado tormento das enfermidades? Ouça a enumeração patética do grande poeta:
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Pedra interna e úlcera, cólicas agudas, Furor demoníaco, melancolia prostrante, E demência lunática, atrofia corrosiva, Extenuação e pestilência devastadora. A agitação era horrível, e profundos os gemidos; O Desespero cuidava dos enfermos, correndo de leito [em leito. E, por sobre eles, a Morte triunfante seu dardo Brandia, mas tardava a ferir, embora amiúde invocada Com juras, como o maior bem e derradeira esperança*
As desordens mentais, embora mais ocultas, não são talvez menos lúgubres e opressivas. Remorso, vergonha, angústia, cólera, desilusão, ansiedade, medo, desalento, desespero: quem já terá passado pela vida sem ter sido cruelmente assaltado por esses atormentadores? E quantos não são os que dificilmente chegam a experimentar qualquer sensação melhor do que essas? A labuta e a pobreza, tão detestadas por todos, são o destino inescapável da imensa maioria; e os poucos privilegiados que gozam de ócio e opulência jamais alcançam a satisfação ou a verdadeira felicidade. Todos os bens da vida, em conjunto, não seriam suficientes para tornar alguém muito feliz, mas todos os males juntos torna-lo-iam sem dú vida muito desgraçado; e qualquer um deles (e quem estaria livre de todos?), mais ainda: a mera ausência * Intestine stone and ulcer, colic-pangs, / Demoniac frenzy, moping melancholy, / And moon-struck madness, pining atrophy, / Marasmus, and wide-wasting pestilence. / Dire was the tossing, deep the groans: Despair / Tended the sick, busiest from couch to couch. / And over them triumphant Death his dart / Shook: but delay'd to strike, though oft invok'd / With vows, as their chief good and final hope. ( Milton, Paraíso Perdido, livro XI.)
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de um bem (e quem poderia possuí-los todos?) é muitas vezes suficiente para tornar a vida indesejável. Se um estranho chegasse de súbito a este mundo, eu poderia exemplificar seus males mostrandolhe um hospital cheio de doentes, uma prisão apinhada de malfeitores e endividados, um campo de batalha salp icado de carcaças , um a frota nau frag ando no oceano, uma nação desfalecendo sob a tirania, fome ou pestilência. Mas para onde deveria conduzi-lo se quisesse revelar-lhe o lado alegre da vida e dar-lhe uma idéia de seus prazeres? A um baile, a uma ópera, á corte? Ele poderia muito bem pensar, e com razão, que o que lhe esta sendo exibido e apenas uma nova variedade de pesares e desgostos. Filo: Não é possível escapar desses exemplos chocantes, a não ser por meio de apologias que agravam ainda mais a denúncia. Por que, eu me pergunto, teriam todas as pessoas se queixado incessantemente, em todas as épocas, das misérias da vida?... Alguém poderia dizer que ' elas não têm uma boa razão para isso, e que essas queixas procedem apenas de um caráter descontente, lamuriento e ansioso... Mas poderia haver, eu replico, uma garantia mais certa dessa miséria do que esse temperamento desventurado? Contudo, poderia dizer meu antagonista, se eles são realmente tão infelizes quanto pretendem ser, por que insistem em permanecer vivos?... Insatisfeitos com a vida, temerosos da morte* * Not satisfied with life, afraid of death.
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Este, eu afirmo, é o grilhão oculto que nos mantém aprisionados. Não e o suborno, mas o terror que nos faz perseverar em nossa existência. Meu antagonista poderia insistir em que essas queixas se difundiram por toda a espécie humana simplesmente a partir de uma susceptibilidade equivoca, com a qual se comprazem alguns espíritos refinados... Mas qual é essa susceptibilidade, eu pergunto, que se está acusando? Não é ela senão uma maior sensibilidade a todos os prazeres e sofrimentos da vida? E se as pessoas de temperamento delicado e refinado, ao estarem tão mais dotadas de vida que as demais, só conseguem ser muito mais infelizes, que opinião deveremos formar da vida humana em geral? Que as pessoas permaneçam em repouso, diz nosso adversário, e elas se sentirão aliviadas. Elas são os agentes espontâneos de sua própria miséria... Não! eu respondo. Um torpor angustiado será a conseqüência de seu repouso, assim como a desilusão, contrariedade e transtorno se seguem de sua atividade e ambição. Cleantes: Posso observar em algumas pessoas algo semelhante ao que vocês mencionam, mas confesso que sinto pouco ou nada disso em mim mesmo, e espero que não se trate de algo tão comum como vocês o representam. Demea: Se você não experimenta em si mesmo a miséria humana, permita-me congratulá-lo por tão feliz peculiaridade. Outros, aparentemente os mais venturosos, não se envergonharam de proclamar suas queixas nos tons mais m elancólicos. Consideremos o caso do grande e afortunado imperador Carlos V, no momento em que, cansado das glórias
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humanas, renunciou a todos os seus imensos domínios em favor de seu filho. No último discurso que realizou, naquela ocasião memorável, ele confessou publicamente que as maiores felicidades que já tinha experimentado estiveram mescladas com tantas adver sidades que ele podia ve rdadeiramente dizer que nunca tinha gozado de qualquer satisfação ou alegria. E
teria ele obtido alguma felicidade maior na vida reclusa em que buscou abrigar-se? Se pudermos dar crédito ao relato de seu filho, seu arrependimento teve início no próprio dia da renúncia. A ventura de C icero alçou-se, desde inícios modestos, até o máximo brilho e renome, mas quão patéticas são as queixas sobre os males da vida contidas em suas cartas privadas, assim como em seus discursos filosóficos! E, em conformidade com sua pró pria experiência, ele nos apresenta Catão, o grande, o afortunado Catão, assegurando em sua velhice que, se lhe fosse oferecida uma nova vida, ele rejeitaria a de que presentemente dispunha. Pergunte a você mesmo, pergunte a qualquer de seus conhecidos, se eles concordariam em viver de novo os últimos dez ou vinte anos de suas vidas. Não! Mas os próximos vinte anos, eles dizem, serão melhores: E do aluvião da vida esperam obter O que as primeiras e vivazes correntezas não puderam ofertar.* * And from the dregs of life, hope to receive/What the first sprightly running could not give. (Dryden, Aurengzebe, ato IV, cena 1.)
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E assim descobrem, por fim (tal é a extensão da miséria humana: ela reconcilia até mesmo as contradições), que se queixam simultaneamente da brevidade da vida e de sua frivolidade e tristeza. Filo: Será possível, Cleantes, que, após todas estas
reflexões, e infinitas outras que se poderia sugerir, você possa ainda perseverar em seu antropomorfismo e declarar que os atributos morais da Divindade, sua justiça, benevolência, misericórdia e retidão, tenham a mesma natureza dessas virtudes nas criaturas humanas? Seu poder, admitimos, é infinito: tudo o que ela quer é executado. Mas nem o ser humano
nem qualquer outro animal é feliz; portanto, ela não quer sua felicidade. Sua s abedoria é infinita: ela nunca
se engana na escolha dos meios para um certo fim. Mas o curso d a Natureza não tende para a felicidade humana ou animal; portanto, esse curso não foi estabelecido com tal propósito. Não há, em todo o âm bito do conhecimen to humano , inferências m ais certas e infalíveis que estas. Em que aspecto, então, sua
benevolê ncia e misericórd ia se assemelha riam á be-
nevolência e misericórdia humanas? As velhas questões de Epicuro permanecem sem resposta. A Divindade quer evitar o mal, mas não é ca paz disso? Então ela é impotente. Ela é capaz, mas não quer evitá-lo? Então ela é malévola. E la é capaz de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém o mal?
Você, Cleantes, atribui um propósito e intenção
á Natureza (e creio que com justiça). Mas qual, eu
lhe pergunto, é o objetivo desse artifício e mecanismo singulares que ela nos exibe em todos os animais? A mera preservação dos indivíduos e a propagação
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das espécies? Se esse é o seu propósito, basta, á primeira vista, que tais classes de seres s ejam meramente preservadas no Universo, sem qualquer cuidado ou preocupação pela felicidade dos membros que as compõem. Nenhum recurso destinado para esse fim, nenhum mecanismo que vise simplesmente a dar prazer ou conforto, nenh um cabedal de p ura alegria ou contentamento, nenhuma gratificação sem alguma carência ou necessidade que a acompanhe. Ou, pelo meno s, o s p oucos fenôme nos des ta espécie são contrabalançados por fenômenos opostos de importância ainda maior. Noss o sen tido da música, d a harmonia, e, na verdade, de todos os tipos de beleza, proporciona satisfação sem que seja absolutamente necessário para a pres ervaç ão e a propagação da espécie. Por ou tro lado, como são atrozes os padecimentos que provêm da gota, dos cálculos, das enxaquecas, das dores de dentes e do reumatismo; todos estes sendo casos em que o dano ao mecanismo animal é ou pequeno ou incurável. A alegria, o riso, os divertimentos e folguedos parecem satisfações gratuitas que não têm conseqüências adicionais; o mau-humor, a melancolia, o descontentamento e a superstição são sofrimentos com a mesma característica. Como, então, a benevolência divina poderia exibir-se no sentido em que vocês, antropomorfistas, a concebem? Somente nós, os místicos, como lhe agrada chamarnos, podemos dar conta dess a estranha mescla de fenômenos, ao derivá-la de atributos infinitamente perfeitos, embora incompreensíveis. Cleantes: [sorrindo] E terá você, Filo, finalmente revelado suas verdadeiras intenções? Fiquei, de fato, um pouco surpreendido pelo seu longo acordo
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 138 com Demea, mas percebo que você estava, durante todo esse tempo, montando ocultamente a artilharia contra mim. E devo confessar que você se deparou, agora, com um assunto digno de seu nobre es pírito de oposição e controvérsia. Se lhe for possível estabelecer este ponto e provar que a humanidade é infeliz ou corrompida, isso trará imediatamente o fim d e toda religião. Pois de que valeria estabelecer os atributos naturais da Divindade se seus atri butos morais permanecem duvidosos e incertos? Demea: Você se choca muito facilmente com opiniões as mais inocentes e mais geralmente difundidas, mesmo entre pessoas pias e religiosas; e é muito surpreendente que um tópico como este, referente á maldade e miséria humanas, receba as acusações de ateísmo e profanação. Pois não é verdade que todos os mais devotos teólogos e pregadores que já exercitaram sua retórica nesse fértil assunto chegaram facilmente a encontrar a solução de todas as dificuldades que possivelmente o acompanham? Este mundo não é senão um ponto em comparação com o Universo; esta vida, apenas um momento em com paração com a eternidade. Os fenômenos malignos presentes serão, portanto, corrigidos em outras regiões e em alguma época futura da existência. E então, com os olhos abertos para uma perspectiva mais ampla das coisas, os seres humanos perceberão a conexão integral das leis gerais e serão capazes de identificar, cheios de veneração, a benevolência e a retidão da Divindade, através de todos os labirintos e meandros de sua providência. Cleantes: Não ! Nã o! E ssas s uposiç ões arbitrá-
139 rias não podem jamais ser admitidas, já que contradizem os fatos visíveis e inquestionáveis. Como se poderia conhecer alguma causa se não a partir de seus efeitos conhecidos? Como se p oderia provar alguma hipótese se não pelos fenômenos que presenciamos? Fundar uma hipótese sobre outra é construir inteiramente sobre o ar, e o máximo que podemos atingir por meio de tais conjeturas e ficções é a determinação da mera possibilidade de nossa opi nião, mas jamais nos será possível, com base nisso, estabelecer sua realidade. O único método para dar suporte benevolência divina (e é deste que e stou disposto a fazer uso) é negar completamente a miséria e a maldade humanas. Suas descrições são exageradas, suas concepções melancólicas são na maior parte imaginárias, e suas inferências contradizem os fatos e a experiência. A saúde é mais comum que a doença, o prazer é mais comum que a dor, e a felicidade e mais comum que a miséria. E, para cada dissabor que experimentamos, obtemos, ao final das contas, uma centena de alegrias. Filo: Admitindo-se esse seu ponto -de vista, que é, no entanto, extremamente duvidoso, você deve ao mesmo tempo reconhecer que a dor, ainda que seja menos freqüente que o prazer, é infinitamente mais violenta e duradoura. Uma hora de sofrimento é muitas vezes capaz de suplantar um dia, uma semana, um mês de nossas triviais e insípidas alegrias; e quantos já não passaram dias, semanas ou meses em meio aos mais agudos tormentos? Dificilmente haverá um único caso de prazer em que se atinja o êxtase ou arrebatamento; e em nenhum caso essa sen PARTE X
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sação poderia manter-se por muito tempo em seu grau mais intenso e elevado. Os humores se evaporam, os nervos relaxam, o organismo se desordena, e o gozo rapidamente degenera em fadiga e desconforto. Mas freqüentemente a dor — Deus meu, quão freqüentemente! — cresce até se tornar uma tortura e agonia; e, quanto mais ela se prolonga, mais se converte em genuína agonia e tortura. A paciência se exaure, a coragem desfalece, somos tomados pela pros tração, e nada pode interromper nosso sofrimen to a não ser a remoção de sua causa, ou então aquele evento que é o único remédio para todos os m ales, mas que, devido ã nossa natural insensatez, encaramos com horror e consternação ainda maiores. Contudo, para não insistir mais nesses assuntos — embora sejam óbvios, corretos e importantes ao extremo — permito-me censura-lo, Cleantes, por ter conduzido a controvérsia para uma questão perigosíssima e instaurado, sem se dar conta, um ceticismo total com relação aos tópicos mais essenciais da teologia natural e revelada. Que diz você?! Que o único método de estabelecer uma base sólida para e religião exige admitir que a vida humana é afortunada e que a perpetuação da existência, neste mundo presente, com todas as suas dores, enfermidades, tormentos e desatinos, é desejável e digna de preferência! Mas isto é contrario ao sentimento e experiência de todos, e contrario, portanto, a uma autoridade tão bem estabelecida a ponto de não poder sofrer qualquer abalo. Contra essa autoridade, nenhuma prova decisiva poderá jamais ser apresentada, nem e possível que você chegue a calcular, avaliar e comparar todos os sofrimentos e prazeres das vidas de todos os homens e animais. Por conseguinte,
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ao fazer com que o sistema da religião se baseie por inteiro em um tópico que, pela sua própria natureza, deve permanecer para se mpre incerto, você está tacitamente confessando que esse próprio sistema é igualmente incerto. Concedendo-lhe, porém, esse ponto que jamais poderá s er digno de crédi to — ou, p elo m enos, para o qual você jamais será capaz de fornecer uma prova —, a saber, que a felicidade dos animais, ou pelo menos dos seres humanos, excede, nesta vida, a soma de seus sofrimentos, isso ainda não lhe servira para nada. Pois isso não é de modo algum aquilo que deveríamos esperar de uma potência, sabedoria e bondade infinitas. Por que haveria, afinal, qualquer desgraça no mundo? C ertamente, não por acaso. Ela deve, então, provir de alguma causa. S erá proveniente da intenção da Divindade? Mas ela é perfeitamente benévola. Será contrária a suas intenções? Mas ela é onipotente. Nada pode abalar a solidez deste raciocínio, tão conciso, claro e convincente, a menos que se declare que esses assuntos estão fora do alcance de qualquer faculdade humana, e que nossos padrões habituais de verdade e falsidade a eles não se aplicam. Tal é o ponto sobre o qual venho continuamente insistindo, mas que você, desde o início, rejeitou com desprezo e indignação. Não me oponho, porém, a recuar voluntariamente desta minha posição, embora negue que você possa forçar-me a tanto. Concederei, assim, que o sofrimento ou a desgraça dos seres humanos é com patível com o infinito poder e benevolência da Divindade, mesmo no sen tido que você dá a esses atri butos. Mas de que lhe serve essa concessão? Não basta
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a mera possibilidade dessa compatibilização: você deve provar a vigência desses atributos puros, simp les e incondicionais, partindo dos fenômenos mesclados e confusos que presenciamos e apenas a partir deles. Que belas esperanças você pode alimentar! Ainda que tais fenômenos fossem totalmente puros e não mesclados, o fato de que são finitos os tornaria insuficientes para essa finalidade. Quão mais difícil, então, será a tarefa, dado que eles também apresentam tamanho desacordo e discrepância! Neste ponto, Cleantes, sinto-me bem á vontade em meu argumento. Aqui, a vitória é minha. Quando discutíamos, antes, os atributos naturais de inteligência e propósito, tive que mobilizar todas as sutilezas céticas e metafísicas para escapar dos apuros em que você me colocou. Em muitos aspectos do Universo e de suas partes, especialmente destas últimas, a beleza e a adequação das causas finais im pres sion am-n os c om u ma força irresistív el, a tal p onto que todas as objeções aparecem-nos como m eros ardis e sofismas (de fato, segundo creio, é isso que elas realmente são), e não podemos sequer imaginar como n os seria possível atribuir-lhes alguma im portância. Mas não há qualquer aspecto da vida humana ou da condição da humanidade a partir do qual, sem cometer a m áxima violência, pudéssemos inferir os atributos morais ou chegar a conhecer aquela infinita benevolência, associada a um poder e sabedoria infinitos, que apenas os olhos da fé nos perm item disc ernir. E a su a vez, agora, de emp unhar este pesado remo e esforçar-se para defender suas sutilezas filosóficas contra os ditames da simples razão e experiência.
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Cleantes: Não tenho escrúpulos em admitir que sempre estive inclinado a suspeitar que a repetição freqüente da palavra "infinito"; com a qual n os deparamos em todos os autores teológicos, mais se aproxima do discurso laudatório do que daquele p ro priamente filosófico; e que todos os propósitos do raciocínio, e mesmo da religião, estariam melhor servidos se nos contentássemos com expressões mais precisas e moderadas. Os termos "admirável", "excelente", "sumamente grande", "sumamente sábio" e "sumamente santo" bastam para preencher a imaginação das pessoas; e tudo que os ultrapassa, além de conduzir a absurdos, não tem qualquer influência sobre os afetos e sentimentos. Assim, ao abandonarmos toda a analogia humana neste assunto, como parece ser sua intenção, Demea, estaremos, eu temo, abandonando toda religião e privando-nos de qualquer idéia do grandioso objeto de nossa adoração. Se, por outro lado, preservarmos a analogia hu-
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 146 mana, jamais nos será possível conciliar os atributos infinitos com qualquer mistura de maldade no Universo, e muito menos provar a vigência desses atributos a partir dessa mistura. Supondo-se, no entanto, que o Au tor da Natureza seja finitamente perfeito, embora excedendo em muito a humanidade, será possível fornecer, então, um a justificação satisfatória da maldade natural e moral, e qualquer fenômeno renitente passa a ser passível de explicação e ajuste. Um mal menor pode então ser escolhido com o fito de evitar-se outro maior, e certas inconveniências podem ser aceitas para que se atinja um fim desejável. Em uma palavra, a benevolência, regulada pela sabedoria e limitada pela necessidade, poderia produzir um mundo exatamente como este que conhecemos. Ficarei muito satisfeito, Filo, em ouvir de você — que sempre está tão disposto a oferecer perspectivas, reflexões e analogias — uma opinião acerca desta nova teoria, de maneira detalhada e sem interrupções. Se, posteriormente, considerarmos que essa teoria é merecedora de nossa atenção, poderemos , com mais vagar, retom á-la de form a mais metódica. Filo: Não há razão para que eu crie um mistério em torno de minhas opiniões; assim, vou expor, sem qualquer cerimônia, aquilo que m e ocorre com relação a essa proposta. Penso que é preciso admitir que, se uma inteligência muito limitada e completamente não familiarizada com o Universo estivesse segura de que ele é o produto de um ser muito benévolo, sábio e poderoso, embora finito, ela formaria de antemão, a partir dessas conjeturas, uma idéia do Universo muito diferente daquela que nós,
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por experiência, temos dele; e não poderia jamais i maginar, simplesmente a partir das informações de que dispõe acerca dos atributos da causa, que o efeito, tal como nos aparece nesta vida, poderia conter tantos vícios, miséria e desordem. Suponha-se agora que essa pessoa fosse trazida ao mund o, ainda segura de que ele é o produto de um tal ser sublime e benévolo. Ela poderia, talvez, ficar surpreendida e desapontada, mas nem por issgseria levada a abandonar sua crença anterior se essa crença estivesse fun dada em algum argumento bastante sólido, pois uma inteligência limitada deve reconhecer sua própria cegueira e ignorância e deve admitir que pode haver muitas explicações para esses fenômenos , embora tais explicações escapem para sempre sua compreensão. Suponhamos, porém, que essa criatura, assim como de fato ocorre no caso dos seres humanos, não esteja antecedentemente convencida da existência de uma inteligência suprema, benevolente e poderosa, mas precise chegar a essa crença a partir das coisas tal como elas lhe aparecem. E claro que isto altera completamente o quadro, pois ela jamais encontrará qualquer razão que dê apoio a uma tal conclusão. Ainda que ela esteja plenamente convencida da estreiteza de seu entendimento, isso não a ajudará a formular alguma inferência sobre o caráter benigno dos poderes su periores, já que essa inferência deve basear-se naquilo que lhe é conhecido, e não em algo que ela ignora. Quanto mais você exagerar sua fraqueza e ignorância, mais desconfiada ela se tornará, e maiores serão suas suspeitas de que assu ntos como esses estão fora do alcance de suas faculdades. Você está obrigado, portanto, a argumentar com ela
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partindo apenas dos fenômenos conhecidos e a deixar de lado toda suposição ou conjetura arbitrárias. Se eu lhe mostrasse uma casa ou um palácio onde não houvesse um único aposento confortável ou aprazível, onde as janelas, portas, lareiras, corredores, escadas e toda a organização do edifício fossem causa de ruído, confusão, fadiga, obscuridade, e calor e frio extremados, você com certeza culparia o projeto do edifício, sem perder tempo em maiores averiguações. Seria inútil que o arquiteto exibisse sua perspicácia provan do que m aiores males decorreriam da alteração desta porta ou daquela janela. Pode ser que tudo o que ele diz seja estritamente verdadeiro, e que a alteração de um pormenor, mantendo-se as demais partes do edifício, só pudesse conduzir ao agravamento das inconveniências. Mesmo assim, você provavelmente declararia que, se o arquiteto fosse competente e bem-intencionado, ele poderia ter planejado o conjunto e ajustado suas partes de tal modo que todas essas inconveniências, ou a maioria delas, fossem corrigidas. O fato de que tanto ele como você próprio ignorem como poderia ser esse planejamento não constitui, de nenhum modo, um argumento contra sua possibilidade. Ao constatar quaisquer inconveniências ou defeitos na construção, você invariavelmente culpará o arquiteto, sem entrar em maiores considerações. Repito, em suma, a questão. O mundo, considerado globalmente e da maneira pela qual ele nos aparece nesta vida, não é porventura diferente daquilo que um ser humano, ou um ser igualmente limitado, poderia esperar de antemão do produto de uma Divindade muito poderosa, sábia e benevolen -
149 te? Somente um estranho preconceito poderia levar alguém a negar tal coisa. Disso concluo que, por mais que ele seja consistente — dadas certas suposições e conjeturas — com a idéia de uma Divindade desse tipo, o mundo jamais será capaz de nos proporcionar uma inferência relativa á existência dessa Divindade. Meras conjeturas, em especial quando está excluída a infinitude dos atributos divinos, talvez possam ser suficientes para provar uma consistência, mas jamais pod erão prover as bases de um infe rência c omo aquela. Parece haver quatro circunstâncias das quais de pendem todos ou a maior parte dos males que afligem as criaturas sensíveis; e não é impossível que todas essas circunstâncias sejam n ecessárias e inevitáveis. Sabemos tão pouco acerca daquilo qu e ultra passa a vida cotidiana, ou mesmo acerca da própria vida cotidiana, que, no que diz respeito á organização do Universo, não há conjetura, por extravagante que seja, que não possa ser correta e, reciprocamente, que não possa ser errônea, por mais plausível que seja. Ao entendimento humano, mergulhado nesta profunda ignorância e obscuridade, convém apenas ser cético ou, pelo menos, cauteloso e não admitir nenhuma hipótese, muito menos hipóteses que não estejam apoiadas em alguma aparência de plausibilidade. Ora, afirmo que essa é precisamente a situação de todas as hipóteses relativas ás causas do mal e ás circunstâncias de que ele depende . Nenhuma delas aparece minimamente á razão humana como necessária ou inevitável, e é só a mais extrema liberdade da imaginação que pode levar-nos a supô-las como tal. PARTE XI
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A primeira circunstância que abre caminho para o mal é aquela disposição ou organização da criação animal pela qual tanto a dor como.o prazer são empregados para estimular todas as criaturas á ação e para torná-las atentas á grande tarefa da autopreservação. Mas o simples prazer, em seus diversos graus, parece, ao entendimento humano, suficiente para esse prop ósito. Todos os an imais poderiam muito bem permanecer em um estado de gozo contínuo e, ao serem instados por alguma das necessidades da Natureza, tais como a sede, fome e cansaço, poderiam sentir, em vez de dor, uma diminuição de prazer que seria suficiente para levá-los a buscar o objeto necessário á sua sobrevivência. Os seres humanos perseguem o prazer tão avidamente quanto evitam a dor; ou, pelo menos, poderiam ter sido construídos para agir desse modo. Parece, assim, que seria perfeitamente possível dar prosseguimento a todas as atividades necessárias á vida sem que a dor j amais interviesse. Aque se deve, então, o fato de os animais estarem sujeitos a uma tal sensação? Se lhes é possível viver uma hora sem ela, eles poderiam muito bem gozar de uma isenção perpétua. A prod ução desse sentim ento exigiu um arranjo de seu s órgãos que é tão específico como aquele necessário para dotá-los da visão, audição òu qualquer um dos sentidos. Deveremos, sem dispor de qu alquer razão visível para isso, supor que urn tal arranjo era necessário? E seria aconselhável construir algo sobre essa conjetura, como se se tratasse da verdade mais inquestionável? Mas a simples capacidade para sentir dor não poderia produzir a dor se não fosse pela segunda circunstância, a saber, que o mundo está governado por
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leis gerais; e isto não parece de modo algum necessário para um ser perfeito em alto grau. É verdade que, se tudo foss e governado por volições particulares, o curso da Natureza se veria constantemente interrompido e ninguém poderia empregar sua razão na condução de sua vida. Mas não poderia essa inconveniência ser corrigida por meio de outras volições particulares? Em suma, não poderia a Divindade ter exterminado todo o mal, onde quer que ele se encontrasse, e produzido todo o bem, sem qualquer preparação ou longas sucessões de causas e efeitos? Além disso, é preciso que se considere que, de acordo com a presente organização do mundo, o curso da Natureza, embora suposto como exatamente regular, não nos aparece, porém, dessa forma. M uitos eventos são incertos, e muitos frustram nossas expectativas. A saúde e a doença, o bom tempo e as tempestades, em conjunto com infinitos outros acidentes cujas causas são desconhecidas e variáveis, exercem grande influência tanto sobre a sorte das pessoas individuais como sobre a prosperidade das associações públicas. E, na verdade, toda a vida humana depende, de um certo modo, desses acidentes. Portanto, um ser que conhecesse os princípios secretos do Universo poderia facilmente, através de volições particulares, direcionar todos esses acidentes para o bem da humanidade e tornar o mundo inteiro feliz, sem se revelar em nenhuma dessas operações. Uma frota cujos propósitos fossem benéficos á sociedade poderia encontrar sempre ventos favoráveis, príncipes benevolentes poderiam gozar de boa saú de e viver uma vida long a, pessoas n ascidas
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 152 para o comando e o exercício da autoridade poderiam ser dotadas de bom temperamento e disposições virtuosas. Uns poucos eventos como estes, conduzidos de maneira regular e ajuizada, modificariam a face do mundo; e, no entanto, não parecem ser mais aptos a perturbar o curso da Natureza ou confundir a conduta humana do que a presente organização das coisas, onde as causas são secretas, variáveis e complexas. Alguns pequenos toques efetuados no cérebro de Caligula, durante sua infância, poderiam tê-lo convertido em um Trajano. Uma onda um pouco mais alta que as demais, ao sepultar César e seu destino no fundo do oceano, poderia ter restituído a liberdade a uma parcela considerável da humanidade. Por tudo que sabemos, pode haver boas razões pelas q uais a Providência n ão interveio d essa m aneira, mas nós as desconhecemos. E, embora a mera su posição de que tais razões existem possa ser suficiente par" resguardar a conclusão relativa aos atributos divinos, ela não pode, com certeza, ser suficiente para estabelecer essa conclusão. Se tudo no Universo é regido por leis gerais, e sP ns animais são suscetíveis á dor, parece inescapavel a conclusão de que alguns males devem originarse nos diversos choques de matéria e nas diversas confluências e oposições das leis gerais; mas esses males seriam, ainda assim, muito raros, se não fosse pela terceira circunstância que m e proponho a examinar, isto é, a grande parcimónia com que todos os poderes e faculdades estão distribuídos entre os seres particulares. Os órgãos e as capacidades de todos os animais estão tão bem ajustados, e atendem tão bem ás exigências de sua preservação que, até onde alcan -
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çam a história e a tradição, não parece haver uma única espécie no Universo que se tenha extinguido. Cada animal tem todos os dotes requeridos, mas esses dotes estão distribuídos segundo uma economia tão escrupulosa que qualquer diminuição significativa leva á completa aniquilação da criatura. Onde quer que haja aumento de um poder, há um decréscimo proporcional dos outros. Animais que se so bressaem pela veloc idad e são, n ormalmente, desprovidos de força. Aqueles que possuem ambas, ou bem apresentam alguma imperfeição em seus órgãos dos sentidos, ou bem são afligidos pelas necessidades mais insaciáveis. A espécie humana, que se destaca principalmente pela razão e sagacidade, é, de todas, a mais necessitada e a mais deficiente em vantagens corporais: carece de vestuário, armas, alimento, habitação e não dispõe de nenhuma das conveniências da vida, exceto as que obtém por meio de sua própria habilidade e engenho. Em suma, a Natureza parece ter feito um cálculo exato das necessidades de suas criaturas e, como um amo inflexível, concedeu-lhes poderes e recursos pouco maiores que os es tritamente suficientes para cobrir essas necessidades. Um pai condescendente, ao contrário, teria fornecido uma larga provisão para precaver contra acidentes e assegurar a felicidade e bem-estar da criatura mesmo na mais desafortunada conjunção de circunstâncias. Os caminhos da vida não estariam todos tão rodeados de precipícios, a ponto de o menor desvio do caminho seguro, por engano ou necessidade, ser o bastante para conduzir-nos á miséria e á ruína. Alguma reserva, alguns recursos adicionais deveriam ter sido providenciados para garantir a felicidade, e não de-
veria ter havido uma economia tão rígida no ajuste dos poderes ás necessidades. O Autor da Natureza é inconcebivelmente poderoso; admitese que sua força é grande, se não de todo inexaurível, e não há qualquer razão, até onde podemos julgar, para que ele observe essa estrita parcimônia no trato com suas criaturas. Teria sido melhor, caso seu poder fosse ex-
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tremamente limitado, que ele tivesse criado um menor número de animais e os dotado de mais faculdades para sua felicidade e preservação. Não se p o-
derá jamais considerar como prudente um construtor que se compromete com um plano que vai além daquilo que seus recursos lhe permitiriam concluir.
Não estou exigindo , para remediar a m aior parte dos males que afligem o ser humano, que ele deva possuir asas da águia, a velocidade do cervo, a força do boi, as garras do leão, a couraça do crocodilo ou do rinoceronte; e muito menos reclamo a sabedoria de um anjo ou querubim. Contento-me em escolher a intensificação de um único poder ou faculdade de sua alma. Que ele seja dotado de uma maior propensão para a operosidade e o trabalho, de uma motivação e atividade mental mais vigorosas, de uma inclinação mais constante para o desem penho e a concentração. Que a espécie inteira possua naturalmente uma diligência semelhante áquela que muitos indivíduos conseguem cultivar pelo hábito e reflexão, e as mais benéficas conseqüências, sem qualquer mescla de dissabor, serão o resultado imediato e necessário desse dote. Quase todos os morais da vida humana, assim corno os naturais, surgem da indolência; e se nossa espécie, pela constituição original de suas disposições, estivesse imu -
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155 ke a esse vício ou enfermidade, seguir-se-iam imeliatamente o cultivo perfeito da a melhoria las artes e manufaturas e a execução precisa de tolo ofício e tarefa; e os homens poderiam atingir pietamente e de sú bito aquele estágio de sociedade que nesmo o governo mais disciplinado só con segue alançar de forma imperfeita. Mas como a diligência um poder, e o mais valioso de todos, a Natureza larece determinada, em conformidade com suas dietrizes costumeiras, a distribuí-la entre os homens maneira mais parcimoniosa possível e a puni-los everamente pela sua deficiência ao invés de recom,ensá-los pelas suas realizações. Ela moldou as dis■osições humanas de tal maneira que só a mais vioenta necessidade pode obrigá-los a trabalhar, e mo,iliza todas as outras carências para sobrepujar, pemenos em parte, a falta de aplicação e para dotá Ds de alguma parcela dessa faculdade da qual ela julou conveniente despojá-los naturalmente. Deve-se econhecer, aqui, que nossas exigências são muito nodestas e, por isso mesmo, tanto mais razoáveis. e estivéssemos reclamando os dotes de uma argúia e julgamento superiores, de uma apreciação mais efinada da beleza e de uma sensibilidade mais aguada para a benevolência e a amizade, poderíamos ,uvir, como resposta, que estamos impiamente pre2,ndendo romper a ordem da Natureza, que querealçar-nos a um grau mais elevado de existência, que as dádivas que solicitamos, não sendo adequaas a nosso estado e condição, só nos poderiam ser ocivas. Mas é penoso, ouso repeti-lo, é penoso o ato de que, estando mergulhados em um mundo 10 repleto de carências e necessidades, no qual quase
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DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 156 todos os seres e elementos ou são nossos inimigos ou recusam-nos sua assistência, tenhamos também que lutar contra nosso próprio temperamento e estejamos privados dessa faculdade que, apenas ela, poderia fazer frente a esses múltiplos males. A quarta circunstância da qual provêm a miséria e os males do Universo é a operação imprecisa de todos os dispositivos e princípios que compõem a grande máquina da Natureza. D eve-se reconhecer que há poucas partes do Universo que, á primeira vista, não servem a algum propósito e cuja remoção não acarretaria um visível defeito ou desordem no todo. As partes relac ionam-se toda s u mas ás outras, e não se pode tocar em nenhuma delas sem que as outras sejam afetadas, em maior ou menor grau. Mas deve-se ao mesmo tempo observar que nenhuma dessas partes ou princípios, por mais útil que seja, está tão perfeitamente ajustada a panto de manterse precisamente dentro dos limites compatíveis com sua utilidade; mas todas elas arriscam-se, a qualquer momento, a tombar em um extremo ou outro. Poder-se-ia imaginar que essa grande obra não rece beu os retoques finais de seu construtor, tão malacabadas são todas as suas partes e tão grosseiros os traços de sua execução. Os ventos, por exemplo, são requeridos para fazer circular os vapores pela sup erfície do globo e para ajudar os homens na navegação. Quantas vezes, porém, erguendo-se em tempestades e furacões, eles não se tornam perniciosos? As chuvas são necessárias para nutrir todas as plantas e animais da Terra; mas quantas vezes elas não escasseiam e quantas vezes não se tornam excessivas? O calor é exigido por toda a vida e vegetação, mas nem sempre ele é encontrado na proporção devida.
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Da mistura e secreção dos humores e sucos do cor po dep end e a saú de e o des envolvimen to d o an imal, mas as partes não desempenham regularmente suas funções próprias. Que poderia ser mais útil do que as paixões da m ente: ambição, vaidade, amor, cólera? E, no entanto, quantas vezes elas não excedem seus limites e ocasionam as maiores convulsões na sociedade? Nada há de tão vantajoso no Universo que não se torne com freqüência nocivo, por seu excesso ou falta; e a Natureza tampouco se resguardou, com o devido cuidado, contra toda desordem e confusão. Airregularidade talvez não seja jamais tão grande a ponto de causar a destruição de uma espécie, mas é muitas vezes suficiente para trazer a ruína e a miséria aos indivíduos. Da confluência, portanto, dessas quatro circunstâncias depende todo o mal natural, ou sua maior parte. Se todas as criaturas vivas fossem incap azes de sentir dor, ou se o mundo pudesse ser administrado por volições particulares, o mal não poderia jamais ter tido acesso ao Universo. E, se os animais estivessem dotados de uma ampla provisão de poderes e faculdades, maior do que a requerida pela estreita necessidade, ou se os vários dispositivos e princípios do U niverso estivessem ajustados de m odo a preservar para sempre o correto equilíbrio e meiotermo, deveria haver muito pouco malefício em com para ção ao que p rese ntem ente experimen tamos. Q ue devemos, então, concluir em tal situação? Diríamos que essas circunstâncias não são necessárias e que poderiam facilmente ter sido alteradas durante o pro jeto do Universo? Esta parece ser uma decisão demasiado presunçosa p ara criaturas tão cegas e igno-
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL 158 rantes. Sejamos mais modestos em nossas conclusões. Admitamos que, se a benevolência da Divindade (entendendo-se uma benevolência semelhante humana) pudesse ser estabelecida com base em quaisquer razões aceitáveis a priori, esses fenômenos, por inconvenientes que fossem, não bastariam para subverter aquele princípio e poderiam facilmente, de alguma maneira insuspeitada, ser reconciliados com ele. Mas não deixemos também de afirmar que, como essa benevolência não pode ser estabelecida de antemão, mas deve ser inferida dos fenômenos, não pode haver nenhum fundamento para essa inferência enquanto existirem tantos males no Universo e enquanto esses males — na medida em que se permita ao entendimento humano julgar sobre esses as suntos — nos aparecerem como tão facilmente remediáveis. Sou suficientemente cético para conceder que as aparências perversas podem ser compatíveis, apesar de todos os meus raciocínios, com atri butos do tipo que você supõe, mas com certeza jamais poderão provar a vigência desses atributos. Uma conclusão como essa não pode provir do ceticismo, mas deve ter origem nos fenômenos e em nossa confiança nos raciocínios que deduzimos desses fenomenos. Olhe para o Universo ao nosso redor. Que quantidade imensa de seres, animados e organizados, sensíveis e ativos! Você admira essa prodigiosa variedade e fecundidade. Observe, porém, mais de perto as existências dotadas de vida, que são os ú nicos seres dignos de consideração. Como são hostis e destrutivas umas para com as outras! Quão incapazes, todas elas, de proverá sua própria felicidade! Como
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são odiosas e desprezíveis aos olhos do observador! Tudo isso não nos oferece senão a idéia de um a Natureza cega, embebida de um grande princípio vivi-
ficador, que despeja de seu regaço sua prole defei-
tuosa e degenerada, sem qualquer discernimento ou
cuidado maternal! E aqui que o sistema maniqueísta surge como uma hipótese apropriada para resolver a dificuldade. E, sem dúvida, ele é em vários aspectos muito sedutor e mais plausível que a hipótese comum, ao
fornecer uma explicação viável para a estranha mistura de bem e mal que a vida nos apresenta. Mas se considerarmos, por outro lado, a perfeita uniformidade e concordância das partes do Universo, não descobriremos aí quaisquer sinais do combate en-
tre um ser maligno e outro benéfico. Há, na verdade, uma oposição entre as dores e os prazeres nos sentimentos das criaturas sensíveis; mas não são, afinal, todas as operações da Natureza levadas a cabo por meio de uma oposição de princípios, a saber, quente e frio, úmido e seco, leve e pesado? A conclusão correta é que a fonte original de todas as coisas é inteiramente indiferente a todos esses princí pios e não tem o bem em maior estima que o mal, assim como não lhe importa o calor sobre o frio, a aridez sobre a umidade ou a leveza sobre o peso. Podem-se formular quatro hipóteses relativas ás
causas primeiras do Universo: que estão dotadas de bondade perfeita, que são perfeitamente malévolas, que estão em oposição e apresentam tanto bondade como malícia, e que não possuem nem uma nem outra. Fenômenos mesclados são incapazes de fornecer uma prova para os dois primeiros princípios,
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que não apresentam mistura. Por outro lado, a uniformidade e estabilidade das leis gerais parecem oporse ao terceiro. E o quarto princípio, portanto, que surge de longe como o mais plausível. O que foi dito acerca do mal natural aplica-se, com pouca ou nenhuma variação, ao mal moral; e não temos mais razões para inferir que a retidão do Ser Supremo assemelha-se á retidão humana do qu e
teríamos para afirmar que sua benevolência se assemelha á benevolência humana. E de se supor que há até mesmo mais razão para recusar-lhe sentimentos morais do tipo dos que experimentamos, pois o mal moral, na opinião de muitos, predomina muito mais sobre o bem moral do que o mal natural so bre o bem natural. Mas ainda que não se deva admitir isto, e ainda que a virtude existente na humanidade deva ser reconhecida como excedendo em muito seus vícios, mesmo assim os antropomorfistas como você continuarão experimentando grande embaraço frente ao problema de dar uma explicação para a existência desses vícios, enquanto houver a menor porção de-
les no Universo. Uma causa deve ser-lhes atribuída, sem que se pos sa recorrer á causa prime ira. Ma s co -
mo todo efeito deve ter uma causa, e essa uma outra, vocês serão obrigados a conduzir a progressão in infinitum, ou então, a deter-se naquele princípio
original que é a causa última de todas as coisas. Demea: Pare, contenha-se! Para onde o carrega sua imaginação? Aliei-me a você para provar que a natureza do Ser Divino é incompreensível e para refutar os princípios de Cleantes, que pretendia medir tudo pelas regras e padrões humanos. M as agora
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descubro que você está mobilizando todos os tópicos dos maiores infiéis e libertinos e traindo aquela causa sagrada que aparentemente defendia. Será você, então, secretamente, um inimigo ainda mais perigoso que o próprio Cleantes? Cleantes: E você demorou tanto tempo para perce bê-lo? Acredite-me, Dem ea, seu amigo Filo está desde o início divertindo-se ás nossas custas; e devese reconhecer que os argumentos. pouco cuidadosos da nossa teologia vulgar forneceram-lhe uma excelente ocasião para exercitar sua zombaria. E certamente estranho que doutores e teólogos ortodoxos tenham acalentado tão afetuosamente tópicos como a total fragilidade da razão humana, a incompreensibilidade absoluta da natureza divina, a miséria imensa e universal dos seres humanos e sua perversidade ainda maior. E verdade que em épocas de estupidez e ignorância esses princípios podem ser abraçados sem perigo, e talvez nenhum outro ponto de vista seja mais adequado para promover a superstição do que aquele que encoraja a admiração cega, a desconfiança e a melancolia da humanidade. Não obstante, nos tempos presentes... Filo: Não dirija tantas censuras á ignorância desses reverendos senhores. Eles sabem muito bem como adaptar seu estilo aos novos tempos. A c aracterização da vida humana como fútil e miserável e o exagero dos males e sofrimentos a que os seres humanos estão sujeitos foram tópicos extremamente populares nas épocas passadas. Contudo, nos últimos anos, percebe-se que os teólogos começam a recuar dessa posição e a manter, embora ainda com alguma hesitação, que há mais benefícios do que m a-
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les, e mais prazeres que sofrimentos, mesmo nesta vida. Quando a religião dependia exclusivamente do temperamento e da doutrinação, julgou-se apropriado encorajar a melancolia, pois é certo que essa é a disposição de espírito que mais prontamente leva a humanidade a recorrer aos poderes superiores. Mas como a s pess oas aprenderam agora a form ular princípios e a derivar conseqüências, tornou-se necessário rearranjar as fortificações e lançar mão de argumentos capazes de resistir a pelo menos algum exame e esquadrinhamento. Essa é a mesma mudança (e provém das mesmas causas) a que já me referi em conexão com o tópico do ceticismo. E assim Filo le vou até o fim se u espírito d e oposição e sua censura às opiniões estabelecidas. Mas, como pude ob servar, De mea nã o ficou nad a satisfeito com essa última parte da discussão e, valendo-se de um pre texto qualquer, logo a seguir abandonou nossa com panhia.
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Após a saída de Demea, Cleantes e Filo continuaram a palestra da seguinte maneira. Cleantes: Temo que nosso amigo estará pouco disposto a tratar mais uma vez deste tema em sua presença, Filo; e eu mesmo, para dizer-lhe a verdade, preferiria discutir com cada um de vocês em se parado um assunto tão sublime e interessante. Seu espírito de controvérsia, aliado ã sua aversão pela superstição vulgar, leva-o a singulares extremos quando envolvido em um debate; e não há nada que você poupe nessas ocasiões, por mais sagrado e venerável que seja, mesmo a seus próprios olhos. Filo: Devo confessar que sou menos cauteloso em questões de religião natural do que em quaisquer outros assuntos; de um lado porque sei que, neste ponto, jamais poderei corromper os princípios de qualquer pessoa de bom senso; e, de outro, porque ninguém que me considere uma pessoa de bom senso
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irá, estou certo, interpretar mal minhas intenções. Você, em particular, Cleantes, com quem convivo em uma intimidade sem reservas, sabe muito bem que, apesar das liberdades que tomo nas discussões e da minha predileção por argumentos inusitados, ninguém tem um sentimento religioso mais profundamente inculcado em seu esp írito, nem dedica uma adoração mais profunda ao Ser D ivino, tal como ele se revela á razão através do inexplicável plano e artifício da Natureza. O pensador m ais desatento e estúpido depara-se em toda parte com um propósito, uma intenção, um desígnio; e isto não pode ser permanentemente rejeitado mesmo pelos mais empedernidos defensores de sistemas absurdos. A máxima de que a natureza nada faz em vão foi sancionada por todas as escolas a partir da mera contemplação das obras da Natureza, sem nenhuma finalidade religiosa; e a firme convicção de sua veracidade fa, com que um anatomista, ao observar algum novo órgão ou canal, não se sinta satisfeito até que tenha descoberto também sua utilidade e propósito. Um dos grandes fundamentos do sistema copernié a máxima de que a natureza age pelos métodos mais simples e escolhe os meios mais apropriados a um fim qualquer, e freqüentemente os astrónomos
formulam, sem que se dêem conta disso, este sólido
fundamento da devoção e religiosidade. O mesmo se observa nas outras partes da filosofia; e, dessa forma, todas as ciências nos levam quase insensivelmente ao reconhecimento de um Autor originário e inteligente, sendo a autoridade dessas ciências tanto maior á medida que não professem explicitamente essa intenção.
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É com satisfação que ouço Galeno discorrer so bre a estrutura do corpo humano. Ele nos diz8 que a anatomia do homem revela a presença de mais de 600 músculos diferentes; e quem quer que os examine com a devida atenção descobrirá que há, em cada caso, pelo menos dez diferentes circunstâncias cujo ajuste precisou ser efetuado pela Natureza para que se atingisse o fim que ela tinha em vista: forma adequada, tamanho justo, exata localização das diversas extremidades, a posição mais alta e mais baixa do todo, a necessária inserção dos vários nervos, veias e artérias; de tal modo que terá sido necessário formular e executar, apenas no caso dos músculos, mais de 6000 diferentes objetivos e intenções. Quanto aos ossos , ele calculou que são 284; e os diversos propósitos visados pela estrutura de cada um são aproximadamente quarenta. Que prodigiosa exi bição de engenhosidade, mesmo nessas partes simples e homogêneas! E, se considerarmos a pele, os ligamentos, os vasos, as glândulas, os humores, os diversos membros e extremidades do corpo, a que grau não se elevará nosso assombro, em proporção ao número e á complexificação das partes tão habilidosamente ajustadas! Ao avançarmos mais e mais nessas pesquisas, descobrimos novas exibições de engenho e sabedoria; mas continuamos a vislumbrar, a distância e fora de nosso alcance, novos espetáculos na refinada estrutura interna das partes, na organização do cérebro, no tecido dos vasos seminais. Todos esses engenhosos d ispositivos repetem-se em cada uma das diversas espé cies de animais, com admirável diversidade e exata adequação, de modo a 8. De forrnatione
foetus.
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convir aos diferentes propósitos com que a Natureza engendra cada uma dessas espécies. E se a irreligiosidade de Galeno, mesmo na época em que essas ciências naturais estavam ainda imperfeitamente desenvolvidas, não pôde opor-se a tão notáveis manifestações, a que nível de teimosa obstinação não terá chegado um filósofo de nossa época que seja ca paz de pôr hoje em dúvida uma Inteligência Suprema! Se me fosse dado encontrar um filósofo dessa espécie (e agradeço a Deus por serem eles tão raros), eu lhe dirigiria a seguinte pergunta: supondo-se que houvesse um Deus que não se revelasse de maneira i mediata aos nossos sentidos, poderia ele fornecer provas de sua existência mais fortes do que tudo isso que aparece no cenário da Natureza? Pois que outra possibilidade restaria a tal Ser Divino senão re produzir a organização presente das coisas, exibindo de maneira suficientemente óbvia sua engenhosidade em um grande número de casos de modo que mesmo os mais estúpidos não possam equivocar-se acerca deles, permitindo vislumbres de talentos ainda mais grandiosos, que demonstram sua prodigiosa su perioridade diante da nossa estreita compreensão, e mantendo muitas outras coisas completamente ocultas aos olhos dessas criaturas imperfeitas? Ora, de acordo com todas as regras do raciocínio correto, cada fato deve ser considerado inquestionável quando recebe apoio de todos os argumentos pertinentes á sua natureza, ainda que esses argumentos não sejam, em si mesmos, muito numerosos ou concludentes. E quão mais inquestionáveis não serão, portanto, no caso em pauta, no qual o número de argumentos não pode ser calculado pela razão humana, e sua força não pode ser avaliada pelo entendimento!
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A tudo isso que você tão bem enfa-
tizou, eu ainda acrescentaria que uma grande vantagem do princípio teísta é a de ser o único sistema cosmogônico que pode ser tornado inteligível e com pleto, sem no entanto deixar de preservar, sob todos os aspectos, uma forte analogia com aquilo que diariamente observamos e experimentamos em relação ao mundo. A comparação do Universo a uma máquina produzida pelo artifício humano é tão óbvia e natural, e justifica-se por tantos exemplos de ordem e propósito na Natureza, que deve sensibilizar imediatamente todas as imaginações não preconceituosas e obter aprovação universal. Ninguém que se esforce por enfraquecer essa teoria pode pretender
ter sucesso por meio de sua substituição por ou-
tra teoria precisa e determinada. Basta-lhe levantar
dúvidas e dificuldades e alcançar, por meio de imagens estranhas e abstratas, aquela suspensão do julgamento que constitui, neste caso, o limite extremo de suas aspirações. Mas esse estado de espírito, além de ser em si mesmo insatisfatório, não poderia de modo algum ser sustentado com firmeza em face das espantosas manifestações que nos impelem continuamente na direçãoda hipótese religiosa. A na-
tureza humana, movida pela força do preconceito, é capaz de aderir com teúacidade e perseverança. a um sistema falso e absurdo; mas penso que é absolutamente impossível sustentar ou defender qualquer
sistema que esteja em oposição a uma teoria funda-
da em razões vigorosas e manifestas, em uma pro pensão natural e na educação que se recebeu desde a infância. Filo: De minha parte, estou tão pouco inclina-
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do a admitir a possibilidade de uma suspensão do julgamento no presente caso que chego a suspeitar que esta controvérsia abriga, antes, urha disputa terminológica, e em grau maior do que usualmente se imagina. E evidente que as obras da Natureza apresentam uma grande analogia com os produtos do artifício humano; e, de acordo com todas as regras do raciocínio correto, deveremos inferir, se porventura as tomarmos como tópico de argumentação, que suas causas são análogas na mesma proporção. Contudo, dado que também existem diferenças consideráveis, temos razões para supor que as causas serão proporcion almente diferentes, e, e m espe cial, temos que atribuirá Causa Suprema um grau de poder e atividade muito maior do que o que já se teve ocasião de observar na humanidade. Assim, a existência de uma Divindade está aqui plenamente atestada pela razão; e se levantamos a questão sobre se é ou não adequado, com base nessa analogia, denominá-la mente ou inteligência, não obstante a vasta diferença que se pode razoavelmente supor entre ela e as mentes humanas, que será isto senão uma simples controvérsia verbal? Ninguém pode negar as analogias entre os efeitos, e seria quase impossível furtarmo-nos á investigação acerca das causas. A conclusão legítima dessa investigação é que também as causas apresentam uma analogia. E se não nos contentarmos em atribuirá causa primeira e suprema o nome de Deus, ou Divindade, mas quisermos variar a designação, que nos restaria senão chamá-la Mente, ou Pensamento, dado que se supõe com justiça que ela guarda uma considerável semelhança com essas coisas?
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As disputas verbais, tão abundantes nas investigações filosóficas e teológicas, desagradam ás pessoas de juízo saudável; e sabe-se que o único remédio para esse abuso deve provir das definições claras, do caráter preciso das idéias postas em jogo pela argumentação e do uso rigoroso e uniforme dos termos que são empregados. Mas há um tipo de controvérsia que, pela própria natureza da linguagem e das idéias humanas, está envolvida.em perpétua ambigüidade e é totalmente incapaz de atingir uma certeza ou precisão razoáveis, a despeito de todas a s precauções e definições. Trata-se das controvérsias ligadas aos graus de qualquer qualidade ou aspecto. Podese discutir por toda a eternidade sobre se A níbal foi um homem ilustre, ou muito ilustre, ou sumamente ilustre, sobre qual o grau de beleza possuído por Cleópatra, sobre qual o título de louvor atribuível a Tito Lívio ou Tucídides, sem que a controvérsia chegue a qualquer decisão. Em tais casos, as partes podem estar de acordo quanto ao sentido e divergir quanto aos termos, ou vice-versa, e serem incapazes, no entanto, de definir seus termos de modo qu e uma delas possa ter acesso ao s ignificado que a outra lhes atribui. A razão disso é que os graus d essas qualidades não são suscetíveis, como a quantidade e o número, de qualquer mensuração exata que pudesse fornecer um padrão para a controvérsia. No caso da disputa relativa ao teísmo, mesmo um exame extremamente superficial já é suficiente para revelar que ela e dessa natureza e, por conseguinte, meramente verbal; ou talvez, que ela é ainda m ais incuravelmente ambígua, se é que isso é pos sível. Pergunto ao teísta
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se ele não admite que há uma diferença enorme e i mensurável — dado que incompreensível — entre a mente humana e a divina. Quanto, mais devoto ele for, tanto mais prontamente decidirá pela afirmativa e mais disposto estará a engrandecer a diferença. Ele chegará até mesmo a afirmar que a natureza da diferença é tal que não poderia ser exageradamente ampliada. Dirijo-me em seguida ao ateísta — o qual, eu afirmo, s6 o é nominalmente e jamais poderia sê-lo com sinceridade — e pergunto-lhe se não há, em vista da coerência e da visível harmonia de todas as partes deste mundo, um certo grau de analogia entre todas as operações da Natureza, em todas as épocas e ocasiões; e se a decomposição de um nabo, a geração de um animal e a estrutura do pen samento humano não seriam a tividades qu e mantêm, com toda probabilidade, alguma analogia remota umas com as outras. Ser-lhe-á impossível negar tal coisa; ele prontamente o reconhecerá. Tendo obtido essa concessão, obrigo-o a recuar ainda mais, perguntando-lhe se não é provável que o princípio que inicialmente produziu essa ordem e continua a mantê-la neste Universo n ão manteria igualmente alguma analogia remota e insondável com as outras operações da Natureza e, de resto, com a organização da mente e do pensamento humanos. Por mais que relute, ele deverá finalmente dar seu assentimento. Mas então — pergunto a am bos os antagonistas — qual é precisamente o ponto sobre o qual os senhores divergem? O teísta concede que a inteligência original é muito diferente da razão humana, ao passo que o ateísta admite que o princípio original ordenador mantém com ela alguma analo -
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gia remota. Estarão os cavalheiros dispostos a polemizar sobre gradações e a embarcar em uma disputa que não tem um significado preciso e que não per-
mite, conseqüentemente, qualquer conclusão? Não me admiraria, caso sejam tão obstinados, vê-los adotar insensivelmente a posição oposta, passando o teís-
ta a exagerar a dissimilaridade entre o Ser Supremo e as criaturas frágeis, imperfeitas, inconstantes, efê-
meras e mortais, e o ateísta, por sua vez, a engrandecer a analogia entre todas as Operações da Natureza, em quaisquer épocas, situações e circunstâncias. Considerem, portanto, onde reside o verdadeiro núcleo da controvérsia; e, se não lhes for possível abandonar tais disputas, procurem ao menos curar-se de seus ressentimentos. E aqui, Cleantes, devo igualmente reconhecer
que, assim como as obras da Natureza mantêm uma analogia muito maior com os efeitos de nossa arte e engenho do que com os de nossa benevolência e justiça, temo s razões para inferir que os atribu tos na-
turais da Divindade apresentam, relativamente aos atributos humanos, uma semelhança maior do que a que se manifesta entre seus atributos morais e as virtudes da humanidade. Mas qual é a conseqüência disto? Simplesmente que as qualidades morais do ser humano são, em sua esfera, mais imperfeitas que
suas capacidades naturais. Pois, dado que se adm ite que o Ser Supremo é perfeito em absoluto e por inteiro, aquilo que dele mais se diferencia estará, pro-
porcionalmente, mais afastado do padrão supremo de retitude e perfeição 9 . 9. Parece evidente que a disputa entre céticos e dogmáticos é inteiramente verbal ou, pelo menos, só diz respeito aos
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Essas, Cleantes, são minhas opiniões sinceras so bre este assunto; opiniões que, como você bem sa be, sempre abriguei e defendi. Mas minha veneração pela genuína religiosidade é proporcional ao meu repúdio pelas superstições vulgares; e não posso negar que experimento um prazer especial em exacer bar estes últimos princípios de modo que dêem lugar ás vezes ao absurdo, ás vezes á impiedade. E. você sabe que todos os fanáticos, embora professem mais aversão por esta última do que pelo primeiro, com freqüência são igualmente culpados de amb os. Cleantes: Devo dizer que tendo a pensar de maneira oposta. A religião, por mais corrompida que esteja, ainda é melhor que a ausência total de religião. A doutrina de uma condição futura é uma garantia tão forte e necessária da moral que jamais poderíamos abandoná-la ou dar-lhe pouca importância. Observamos diariamente os grandes efeitos produzidos pelas recompensas e punições temporárias e finitas; quão maiores, então, não serão os resultagraus de dúvida e convicção que devemos admitir em relação a todos os raciocínios; e tais disputas, em última análise, são habitualmente verbais, não permitindo qualquer conclusão precisa. Nenhum filósofo dogmático recusa a pre sença de dificuldades, tanto com relação aos sentidos como em relação a toda ciência, nem nega que essas dificuldades sejam completamente insolúveis através de um método regular e lógico. E nenhum cético contesta o fato de que essas dificuldades não nos eximem da absoluta necessidade de p ensar, acreditar e raciocinar acerca de assuntos de toda espécie, e, até mesmo, de dar muitas vezes nosso assentimento de maneira confiante e segura. Assim, a única diferença entre essas seitas, se é que m erecem esse nome, é que o cético, movido pelo hábito, capricho ou inclinação, insiste mais nas dificuldades, ao passo que o dogmático, pelas mesmas razões, privilegia a necessidade.
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dos que se poderia esperar daquelas que são infinitas e eternas? Filo: Se a superstição vulgar é de fato tão saudável para a sociedade, como explicar que a história
nos forneça tantos exemplos de suas conseqüências nefastas para os assuntos pú blicos? Tumultos, guerras civis, perseguições, derrubadas de governo, tirania e escravidão, tais são as funestas conseqüências
que têm lugar sempre que a mente humana a ela se submete. Se, em qualquer narração histórica, o es pírito de religiosidade é algum a vez mencionado, podemos estar certos de nos deparar, logo a seguir, com um detalhamento das desgraças que o acompanham. E nenhuma época pode ser mais feliz ou mais pros pera do que aquelas que não o levam em conta, ou que o ignoram. Cleantes: A razão disso é óbvia. A função pró-
pria da relig ião é discip linar o coração hum ano, humanizar a conduta das pessoas, infundir o espírito da sobriedade, ordem e obediência. E, como sua operação é silenciosa e apenas reforça os preceitos da moralidade e da justiça, ela corre o risco de passar des percebida e de confundir-se com esses outros preceitos. Quando chega a sobressair-se e a atuar sobre os homens como um princípio separado, é porque ela se afastou de sua esfera própria, tornando-se me-
ro disfarce para a facciosidade e a ambição. Filo: E esse será o destino de toda religião, a menos que seja do tipo filosófico e racional. E mais fácil escapar de seus raciocínios, Cleantes, do que de meus fatos. Que recompensas e punições finitas e temporárias tenham tão grande influência não nos autoriza a inferir que aquelas infinitas e eternas se-
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rão ainda mais eficazes. Considere, eu lhe peço, o apego que temos pelas coisas do presente e o pouco interesse que manifestamos por objetos mu ito remotos e incertos. Quando os teólogos invectivam a forma mundana de agir e comportar-se, sempre representam esse princípio como sendo o mais forte que se pode imaginar (o que de fato ele é) e descrevem quase toda a humanidade como jazendo sob a influência dele e submersa na mais profunda letargia e despreocupação perante seus interesses religiosos. No en tanto, esses mesm os teó logos, ao contestar seus antagonistas especulativos, supõem que os motivos da religião são tão poderosos a ponto de, sem eles, ser impossível a subsistência da sociedade civil e não sentem o mínimo constrangimento diante de tão patente contradição. A experiência atesta que a menor parcela de honestidade e benevolência naturais tem mais efeito sobre a conduta humana do que as mais pomp osas considerações sugeridas pelas teorias e sistemas teológicos. A inclinação natural de uma pessoa exerce sobre ela uma influência constante, está sempre presente ã mente e mescla-se a todas as suas idéias e decisões, ao passo que os motivos religiosos, nos casos em que chegam a ter algum efeito, operam apenas de maneira intermitente, e é muito difícil que o espírito venha a habituar-se completamente a eles. A mais potente força gravitacional, dizem os filósofos, é infinitamente pequena em comparação ao impulso mais tênue; no entanto, não há dúvida de que a gravidade mais fraca chegará, por fim, a prevalecer sobre um grande impulso, porque nenhum golpe ou empurrão pode repetir-se com a mesma constância da atração e da gravitação.
177 Outra vantagem da inclinação é que ela põe a seu serviço toda a inventiva e engenhosidade da mente e, quando contraposta aos princípios religiosos, procura todos os método s e artifícios p ara contorn álos — no que quase sempre é bem-sucedida. Quem pode explicar o coração humano, ou dar a razão de todos os estranhos pretextos e desculpas que as pessoas usam como justificativa para seguir as inclinações que se opõem a seus deveres religiosos? Isto é bem entendid o na sociedade; e só os tolos depositariam menos confiança em um homem simplesmente por ter ouvido dizer que, em virtude do estudo e da filosofia, ele alimenta algumas dúvidas esp eculativas acerca de assuntos teológicos. E quando temos de lidar com uma pessoa que faz grande alarde de sua religiosidade e devoção, qual é o efeito disso so bre muitos que são considerados prudentes, se não o de pó-los em guarda para não serem logrados e iludidos por ela? Note-se ainda que os filosófos, que cultivam a razão e a reflexão, têm m enos necessidade de motivos desse tipo para manter-se dentro dos limites da moral, e que as pessoas comuns, que são as únicas que poderiam necessitar de tais estímulos, são com pletamente incapazes de aderir a uma religião tão depurada a ponto de propor que o único meio de agradar ã D ivindade é comportar-se de maneira virtuosa. Supõe-se, em geral, que rituais frívolos, êxtases arrebatados ou uma credulidade fanática podem conseguir os favores do Ser D ivino. Não é necessário recuar ã Antigüidade ou percorrer regiões longínquas para encontrar exemplos dessa degenerescência: entre nós mesmos já houve quem se tornasse PARTE XII
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culpado do ato abominável — do qual não há paralelo entre as superstições egípcias e gregas — de vociferar expressamente contra a moralidade, afirmando que o menor crédito ou confiança nela depositado acarretará seguramente a perda do favor divino. Mas mesmo que a superstição ou o fervor não se coloquem em direta oposição á moralidade, o mero desvio da atenção, a instituição de uma nova e fútil espécie de mérito e a absurda maneira pela qual classificam o que é digno de louvor ou censura trarão, com certeza, a s mais perniciosas conseqüências e enfraquecerão ao extremo o apego das pess oas aos preceitos naturais de justiça e humanidade. Da mesma forma, dado que esse princípio de ação não se identifica com nenhum dos motivos familiares que regem a conduta humana, ele só pode operar sobre o caráter de forma intermitente, e necessita de um esforço constante para sua ativação, de modo a fazer com que o zeloso fanático se sinta satisfeito com sua própria conduta e seja levado a cumprir suas tarefas votivas. Mu itas atividades religiosas são executadas com aparente fervor, embora o coração esteja, durante esse tempo, frio e inerte. Adquire-se gradualmente o hábito da dissimulação, e a fraude e insinceridade tornam-se o princípio dominante. Daí a razão do reparo, tão comum, de que o mais elevado zelo religioso e a hipocrisia mais profunda, longe de serem incompatíveis, estão em geral e com freqüência unidos na mesma personalidade individual. Os efeitos perversos desses hábitos, mesmo na vida ordinária, são fáceis de imaginar. Quando, porém, interesses religiosos estão envolvidos, não há
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moralidade que seja suficientemente forte para coi bir o faná tico ardoros o, e o caráter sa grad o da causa glorifica todos os meios dos quais se pode lançar mão para prom ove-la. A atenção dirigida de maneira fixa e exclusiva para um assunto tão importante como a salvação eterna tende a extinguir os sentimentos benevolentes e a engendrar um egoísmo estreito e mesquinho. E essa disposição de espírito, ao ser encorajada, consegue esquivar-se facilmente de todos os preceitos gerais de caridade e benevolência. Assim, os motivos ligados á superstição vulgar não têm grande influência sobre a conduta geral, e sua operação, nos casos em que chegam a predominar, tampouco favorece a moralidade. Haveria, em política, algum princípio geral mais certo e infalível do que o que recomenda que tanto o número como a autoridade dos sacerdotes sejam mantidos dentro de limites muito estreitos, e que o magistrado civil impeça, em todas as circunstâncias, que o feixe de varas e a machadinha venham a cair em tão perigosas mãos? Contudo, se o espírito da religião popular fosse tão benéfico á sociedade, é claro que u m princípio oposto deveria prevalecer, pois um número maior de sacerdotes, dotados de maior autoridade e riqueza, produzirá, em qualquer ocasião, um crescimento do espírito religioso. E se ca be aos sacerdotes dirigir esse espírito, por que não deveríamos esperar uma vida sumamente santificada e uma maior benevolência e moderação da parte de pessoas devotadas á religião, que estão continuamente inculcando-a nos demais e que devem, elas mesmas, estar embebidas de uma boa parte dela?
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Qual é então a razão para que, de fato, o máximo que um hábil magistrado pode pretender com relação á religião popular seja tirar dela algum proveito e evitar, na medida do possível, as conseqüências perniciosas que ela pode trazer para a sociedade? E, mesmo tendo em vista um objetivo tão modesto, todos os meios que ele emprega para atingi-lo estão cercados de inconveniências. Se ele só permite uma única religião para seus súditos, d everá sacrificar, em nome de uma incerta perspectiva de tranqüilidade, todas as considerações relativas á liberdade pública, á ciência, a razão e a inventividade — e ate mesmo sua própria independência. Se, por outro lado, ele for condescendente para com diversas seitas (o que constitui a atitude mais prudente), deverá preservar uma indiferença perfeitamente filosófica em relação a todas elas e refrear cuidadosamente as pretensões da seita dominante; caso contrário só poderá esperar infindáveis disputas, alterações, facciosismos, perseguições e levantes civis. Concedo que a verdadeira religião não tem essas conseqüências nocivas; mas o que devemos levar em conta é a religião tal como ela habitualmente tem sido encontrada no mundo. Não me ocupo, tampouco, da doutrina especulativa do teísmo, o qual, sendo uma espécie de filosofia, deve compartilhar da influência benéfica desta, embora esteja, ao mesmo tempo, sujeito a idêntica inconveniência de achar-se sempre restrito a um número muito pequeno de pessoas. E verdade que todas as cortes judiciais requerem juramentos, mas é questionável se a autorida de d essas cortes provém de qualquer religião popular. E
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a solenidade e a importância da ocasião, o cuidado
com a reputação e a reflexão sobre os interesses gerais da sociedade que constituem os principais fatores limitativos que operam sobre a humanidade. Pou-
ca importância é atribuída aos juramentos alfandegários e políticos, mesmo por parte de alguns que têm a pretensão de seguir os princípios de honestidade e religião. E, entre nós, a declaração de um qua-
cre é posta em pé de igualdade-com o juramento de qualquer outra pessoa. Bem sei que Políbio atribuiu a má fama dos testemunhos d os gregos a preponde-
rância da filosofia epicurista; mas também sei que os testemunhos dos cartagineses tinham, nos tem pos antigos, uma reputação tão baixa quanto a dos depoimentos dos irlandeses na época presente, em bora estas observações vulgares não devam ser ex-
plicadas pelas mesmas razões. Sem dizer, além disso, que o testemunho dos gregos já era mal-afamado antes do advento de Epicuro; e Eurípedes 10, em uma
passagem para a qual chamo sua atenção, desferiu um admirável golpe satírico contra sua nação, com
referência a essa característica. Cleantes: Tenha cautela, Filo, tenha cautela! Não leve as cois as tão long e e não deixe que seu zelo contra a falsa religião ponha a perder se u respeito pela que é verdadeira. Não abandone esse princí pio, o primeiro, o único grande consolo na vida e nosso principal apoio em meio a todas as investidas da adversidade. A consideração mais satisfatória que pode ser sugerida pela imaginação humana é a do genuíno teísmo, que nos representa como a obra de 10. Ifigênia em Tauris.
182 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL um Ser perfeitamente bom, sábio e poderoso, que nos criou para a felicidade e que, tendo implantado em nós um imenso desejo pelo bem, irá prolongar nossa existência por toda a eternidade e transportarnos para uma variedade infinita de cenários, a fim de satisfazer esse desejo e tornar nossa felicidade com pleta e duradoura. A condição mais afortunada que nos é possível imaginar, em seguida a desse próprio Ser (caso se permita a comparação), é de estar sob sua guarda e proteção. Filo: Essas aparências são atraentes e sedutoras ao extremo; e, no que diz respeito ao verdadeiro filósofo, são mais do que simples aparências. Mas aqui, assim como no caso anterior, ocorre que, ao se levar em conta a maioria da humanidade, as aparências são enganosas, e os terrores da religião habitualmente prevalecem sobre seus consolos. Admite-se que as pess oas nunca estão tão d ispos tas a recorrer ás práticas devotas como quando abatidas pelo desgosto ou prostradas pela enfermidade. Não é is to u ma prova d e qu e o esp írito relig ioso não se acha tão intimamente unido á alegria quanto á aflição? Cleantes: Mas os seres humanos, quando aflitos, encontram alívio na religião. Filo: Algumas vezes; mas é natural supor que eles formarão, desses seres desconhecidos, uma idéia condizente com o estado de espírito triste e melancólico com que se dirigem á sua contemplação. Em conseqüência disto, vê-se que as imagens terríveis predominam em todas as religiões; e mesmo nós, após termos empregado as mais sublimes expressões em nossas descrições da Divindade, caímos na mais re -
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les contradição ao afirmar que os condenados são infinitamente mais numerosos que os eleitos. Posso mesmo dizer que nunca houve uma religião popular que tenha descrito a condição das almas dos que m orreram em cores capazes de despertar, na humanidade, o desejo d e que haja efetivamente uma condição como essa. Tais modelos refinados de religião são meramente o produto da filosofia. Pois a morte se interpõe entre os filhos e a perspectiva de um estado futuro, e esse acontecimento é tão ofensivo á Natureza a ponto de lançar forçosamente uma sombra sobre todas as regiões que se situam para além dele e sugerir á maioria da humanidade as idéias de Cérbero e as Fú rias, demônios e torrentes de fogo e enxofre. E verdade que tanto o medo como a esperança têm lugar na religião, pois essas duas paixões, em ocasiões diversas, excitam o espírito humano; e cada uma delas constrói o tipo de divindade que lhe é mais conveniente. No entanto, sempre que um homem se achar aprazivelmente disposto, ele estará pronto para os negócios, para visitas, ou para qualquer espécie de entretenimento, e naturalmente se empenhará nessas atividades, sem sequer pensar em religião. Se estiver melancólico e deprimido, não terá nada a fazer a não ser meditar sobre os terrores do mundo invisível e mergulhar ainda mais fundo na aflição. Pode certamente ocorrer que, após ter assim gravado profundamente as opiniões religiosas em seu pensamento e imagin ação, sobreven ha u ma m udança em sua saúde ou nas circunstâncias capaz de resta belecer seu bom hum or e, oferecend o-lhe agradáve is perspectivas para o futuro, faça-o passar para o ou-
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tro extremo de alegria e triunfo. Mas ainda assim se deverá reconhecer que, como o terror é o princí pio primordial da religião, ele também é a paixão que nela predomina, não admitindo senão breves intervalos de satisfação. Nem é precis o dizer que esses acess os d e ale gria excessiva e entusiástica, ao debilitar os humores, pre param o caminho para acessos semelhantes de terror e prostração, e que só um estado de espírito calmo e equilibrado e capaz de proporcionar o máximo de felicidade. Mas é impossível que alguém se mantenha nesse estado enquanto se sentir mergulhado em tão profunda obscuridade e incerteza, sus penso entre uma eternidade de alegria e uma eternidade de sofrimentos. Não surpreende que uma tal opinião conduza desarticulação do arcabouço mental, lançando-o na confusão mais extremada. E, em bora essa opin ião raramen te opere d e form a tão cons tante a ponto de exercer sua influência sobre a totalidade das ações, ela é, no entanto, capaz de ocasionar uma considerável ruptura no temperamento, pro duzindo aquela tristeza e melancolia tão notáveis em todas as pessoas devotas. E contrário ao senso comum nutrir apreensões e temores por conta de uma opinião, qualquer que seja ela; ou imaginar que o uso de nossa razão, por mais livre que seja, possa trazer-nos algum risco quanto vida futura. Tal idéia envolve tanto um absurdo como uma incoerência. E um absurdo acreditar que a Divindade tenha paixões humanas, e logo uma das mais vis dentre elas, como o apetite insaciável pelos aplausos. E é incoerente supor que, tendo essa paixão humana, a Divindade não tenha
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também outras, em especial, um desprezo p elas opiniões de criaturas que lhe são tão manifestamente inferiores. "Conhecer Deus", diz Sêneca, "é adorá-lo." Qualquer outra espécie de adoração é, na verdade, absurda, supersticiosa e até mesmo ímpia. E la o degrada vil condição da humanidade, que se deleita com súplicas, pedidos, presentes e adulações. Ainda assim, essa é a menor das impiedades das quais a su perstição é culpada. Em geral, ela rebaixa a Divindade a uma condição muito inferior á dos seres humanos, representando-a como um demónio caprichoso que exerce seu poder de forma irracional e desumana. Se esse Ser Divino estivesse propenso a ofender-se com as maldades e loucuras dos estúpidos mortais que ele mesmo criou, os adeptos da maioria das superstições populares estariam certamente em péssima situação. E, dentre os membros da raça humana, só uns poucos mereceriam sua graça, a saber, os teístas filosóficos, que abrigam, ou antes, se esforçam por abrigar idéias adequadas acerca de suas divinas perfeições. Do mesmo modo, as únicas pessoas que fariam jus sua compaixão e indulgencia seriam os membros da seita — igualmente rara — dos cé ticos filosó ficos, os quais, dev ido a uma desconfiança natural acerca de sua própria capacidade, suspendem ou se esforçam por suspender todo e qualquer julgamento relativo a assuntos tão sublimes e extraordinários. Se a teologia natural, como parecem sustentar alguns, se resolve inteiramente na simples proposição (embora algo ambígua ou pelo menos indefinida) de que a causa ou as causas da ordem no Univer-