Ministério da Educação - MEC Universidade Univer sidade Aberta do Brasil Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Tecnologia do Ceará Diretoria de Educação a Distância
LICENCIATURA EM MATEMÁTICA Francisco Regis Alves Vieira Vieira
Filosofa das Ciências e da Matemática Fortaleza, 2011
Créditos Presidente
Dilma Vana Rousseff
Ministro da Educação Fernando Haddad
Presidente da CAPES Joao Carlos Teatine Climaco
Diretor de EaD - CAPES Carlos Eduardo Bielschowsky
Reitor do IFCE
Cláudio Ricardo Gomes de Lima
Pró-Reitor de Ensino Gilmar Lopes Ribeiro
Diretora de EAD/IFCE e Coordenadora UAB/IFCE Cassandra Ribeiro Joye
Vice-Coordenadora UAB Régia Talina Silva Araújo
Coordenador do Curso de Tecnologia em Hotelaria
José Solon Sales e Silva
Coordenador do Curso de Licenciatura em Matemática Priscila Rodrigues de Alcântara
Elaboração do conteúdo Francisco Regis Alves Vieira
Equipe Pedagógica e Design Instrucional
Ana Claúdia Uchôa Araújo Andréa Maria Rocha Rodrigues Carla Anaíle Moreira de Oliveira Cristiane Borges Braga Eliana Alves Moreira Gina Maria Porto de Aguiar Vieira Glória Monteiro Macedo Iraci Moraes Schmidlin Irene Moura Silva Isabel Cristina Pereira da Costa Jane Fontes Guedes Karine Nascimento Portela Lívia Maria de Lima Santiago Lourdes Losane Rocha de Sousa Luciana Andrade Rodrigues
Maria Irene Silva de Moura Marília Maia Moreira Maria Luiza Maia Saskia Natália Brígido Maria Vanda Silvino da Silva
Equipe Arte, Criação e Produção Visual
Ábner Di Cavalcanti Medeiros Benghson da Silveira Dantas Germano José Barros Pinheiro Gilvandenys Leite Sales Júnior José Albério Beserra José Stelio Sampaio Bastos Neto Lucas de Brito Arruda Marco Augusto M. Oliveira Júnior Navar de Medeiros Mendonça e Nascimento Roland Gabriel Nogueira Molina Samuel da Silva Bezerra
Equipe Web
Benghson da Silveira Dantas Fabrice Marc Joye Luiz Bezerra de Andrade FIlho Lucas do Amaral Saboya Ricardo Werlang Samantha Onofre Lóssio Tibério Bezerra Soares
Revisão Textual
Aurea Suely Zavam Nukácia Meyre Araújo de Almeida
Revisão Web
Antônio Carlos Marques Júnior Débora Liberato Arruda Hissa Saulo Garcia
Logística
Francisco Roberto Dias de Aguiar Virgínia Ferreira Moreira
Secretários
Breno Giovanni Silva Araújo Francisca Venâncio da Silva
Auxiliar
Ana Paula Gomes Correia Bernardo Matias de Carvalho Isabella de Castro Britto Wagner Souto Fernandes
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Maria Irene Silva de Moura Marília Maia Moreira Maria Luiza Maia Saskia Natália Brígido Maria Vanda Silvino da Silva
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Aurea Suely Zavam Nukácia Meyre Araújo de Almeida
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Secretários
Breno Giovanni Silva Araújo Francisca Venâncio da Silva
Auxiliar
Ana Paula Gomes Correia Bernardo Matias de Carvalho Isabella de Castro Britto Wagner Souto Fernandes
Catalogação na Fonte: Islânia Fernandes Araújo (CRB 3 - Nº 917) V657f
Vieira, Francisco Regis Alves Filosofia das Ciências e Matemática: semestre VI / Francisco Régis Vieira; Coordenação Cassandra Ribeiro Joye. - Fortaleza: UAB/IFCE, 2011. 172p. : il. ; 27cm. 1. FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS 2. FILOSOFIA DA MATEMÁTICA. MATEMÁTICA. 3. MATEMÁTICA MATEMÁTICA I. Joye, Cassandra Ribeiro (Coord.). II. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. III. Universidade Aberta do Brasil – UAB. IV. Título. CDD – 510.1
Sumário Aula 1 - Filosofia das Ciências e da Matemática ................................ 7 Tópico 1 - Relações entre filosofia das ciências e filosofia da matemática e o ensino de matemática ...............................................8 Tópico 2 - A natureza do conhecimento matemático .........................................18 Tópico 3 - Os precursores da filosofia .............................................................24
Aula 2 - Filosofia da Matemática ........................................................35 Tópico 1 - As correntes filosóficas da matemática..............................................36 Tópico 2 - O construtivismo na matemática e o construtivismo piagetiano ..............50
Aula 3 - Arquimedes e a Noção de Demonstração ..........................59 Tópico 1 - Sobre a natureza das definições matemáticas .....................................60 Tópico 2 - As influências das correntes filosóficas no ensino atual .........................70 Tópico 3 - As características de uma definição matemática e o ensino de álgebra .....82
Aula 4 - As dimensões filosóficas da intuição, seu papel da atividade do matemático e alguns paradoxos ...................................................87 Tópico 1 - As dimensões filosóficas da intuição matemática .................................88 Tópico 2 - O papel da intuição da atividade do matemático ................................94 Tópico 3 - Os paradoxos relacionados à intuição matemática ............................102
Aula 5 - A construção axiomática dos números naturais, inteiros e racionais ............................................................................ 111 Tópico 1 - Um problema antigo relacionado à equação polinomial do segundo grau......................................................................................112 Tópico 2 - As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática II ................120 Tópico 3 - As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática III ...............128
Aula 6 - A construção dos números reais, complexos e considerações finais ................................................... 137 Tópico 1 - As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática III ...............138 Tópico 2 - As dimensões filosóficas dos fundamentos da matemática IV ...............154 Tópico 3 - Uma aplicação de sequência metodológica de ensino por meio de sua história ............................................................................162
Referências Bibliográficas ................................................................ 170
Apresentação Caro estudante, apresentamos o material referente à disciplina de Filosofia das Ciências e da Matemática. De início, recordamos um ensinamento pertinente, atribuído ao filósofo da ciência Karl Popper, e ao matemático Imre Lakatos. O primeiro investigou a Lógica da Descoberta Científica – LDC, enquanto o segundo, em sua vida acadêmica, analisou a Lógica da Descoberta Matemática – LDM. Sustentamos a “impossibilidade”, do ponto de vista filosófico, de compreensão da LDC, por parte do futuro professor, sem um entendimento razoável da LDM, embora muitos defendam o contrário. Para tanto, traçamos, nas aulas iniciais, o cenário filosófico, epistemológico e político, pelo qual identificamos a evolução e a revolução dos paradigmas da Matemática. Nosso objetivo é a busca de um pensamento, de um olhar, de um sentimento filosófico do professor com relação à sua disciplina que, aos olhos dos incipientes, lhes parece uma “ciência dos números”. Acrescentamos que a Matemática é bem mais do que isso, bem mais do que a aplicação tácita de fórmulas. Por fim, trazemos a filosofia pessoal de Bertrand Russell, Henri Poincaré e Morris Kline, com a intenção de inspirar a pedagogia do futuro docente.
Francisco Regis Vieira Alves
Aula 1
Filosofia das Ciências e da Matemática
Nesta parte inicial discutiremos algumas noções introdutórias relacionadas aos campos de investigação da Filosofia da Matemática e das Ciências. Vamos nos deter inicialmente na demarcação e no interesse de cada uma das áreas e em seguida na discussão dos elementos mais interessantes com respeito ao ensino de Matemática. Nesta aula inicial apresentaremos algumas noções fundamentais no âmbito da Filosofia das Ciências e da Filosofia da Matemática, introduziremos também, a partir desta primeira aula e de modo sistemático nas subseqüentes, alguns termos particulares e específicos destas áreas de investigação.
Objetivos Descrever os pressupostos básicos da Filosofia da Matemática comparando-a com Filosofia das Ciências. • Discutir a natureza do saber matemático e alguns exemplos de ordem lógica formal. • Conhecer os principais pensadores que estabeleceram o terreno fértil para a Filosofia da Matemática. •
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01 TÓPICO
RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS E FILOSOFIA DA MATEMÁTICA E O ENSINO DE MATEMÁTICA
OBJETIVO
Descrever os pressupostos básicos da Filosofia da Matemática comparando-a com Filosofia das Ciências.
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a perspectiva do proessor de matemática em ormação, o que podemos tomar como mais signicativo a compreensão da evolução do saber cientíco ou a compreensão do saber matemático cientíco? Neste sentido, é surpreendente encontrarmos pessoas no ambiente acadêmico que se apoiam na crença segundo a qual “é possível compreender o movimento interno impulsionador e de evolução da Matemática a partir da compreensão dos movimentos e da evolução que marcaram determinados períodos históricos num contexto mais amplo e geral”, como o contexto das Ciências. De modo inquestionável, encontramos na SAIBA MAIS! literatura vários pensadores e epistemólogos (JAPIASSU, 1988) que ornecem um depoimento que assegura o papel Epistemologia: Diz respeito ao de modelo deste paradigma para várias outras áreas do estudo da gênese, da estrutura, da organização/evolução dos métodos saber cientíco. e a validade/confiabilidade do Neste sentido, para compreendermos o pensamento conhecimento científico. losóco, necessitamos, em grande parte, nos apropriarmos do pensamento epistemológico. A respeito da epistemologia, Japiassu (1988) az a seguinte distinção: a) Epistemologia, no sentido bem amplo do termo, pode ser considerada
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Licenciatura em Matemática
o estudo metódico e reexivo do saber, de sua organização, de sua ormação, de seu desenvolvimento, de seu uncionamento e de seus produtos intelectuais; b) Epistemologia global (geral), quando trata do saber globalmente considerado, com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua organização, quer sejam especulativos, quer científcos; c) Epistemologia particular, quando trata de levar em consideração um campo particular de saber, quer especulativo, quer científco; d) Epistemologia específca, quando trata de levar em conta uma disciplina intelectualmente constituída em unidade bem defnida do saber, e de estudá-la de modo próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu uncionamento e as possíveis relações que ela mantém com as demais disciplinas. Depois dessas caracterizações, torna-se necessário sublinharmos a ênase que daremos ao longo destas aulas à Epistemologia Específca e, de modo particular, à Epistemologia da Matemática, que possui de modo intrínseco um seu viés losóco. Assim, deendemos a compreensão do movimento losóco da Matemática na medida em que identicamos mudanças e substituições de paradigmas epistemológicos. Deendemos, assim, a impossibilidade de compreendermos a Filosoa da Matemática, muito menos diversos enômenos que evoluem no universo didático, histórico, lógico e metodológico (Figura 1), recorrendo-se apenas à Filosoa das Ciências. Deste modo, daremos ênase aos elementos apresentados abaixo, identicados no item (2):
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Figura 1: Aspectos do saber matemático (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 2)
O diagrama da Figura 2, reproduzida a seguir, nos ajuda a deender que determinados enômenos característicos do âmbito das Ciências não explicam/ caracterizam ou signicam determinadas dimensões do saber matemático, apesar de possuírem uma região de interace comum, todavia tal interace ou região de
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interseção é observada graças à necessidade e insuciência que muitas áreas do conhecimento cientíco apresentam; deste modo, necessitam se apoiar, “importar” e se ‘apropriar’ de determinados paradigmas e métodos próprios da Matemática para seu próprio interior, como garantia de rigor e cienticidade.
A 1 T 1 Figura 2: Relações entre Ciências e Matemática (elaboração própria)
Por outro lado, destacamos, também na Figura 2, uma região pertencente ainda à Filosoa da Matemática que possui vigor próprio, que indicamos por (?), a qual não é encontrada e/ou identicada em mais nenhuma outra área do conhecimento cientíco. Sua importância se explicita na medida em que desenvolvermos nossas considerações acerca do ensino de Matemática que não pode desprezar a dimensão losóca do saber matemático. Para exemplicar, são esclarecedoras as considerações do proessor Jairo José da Silva, quando, em seu livro intitulado Filosoas da Matemática, destaca: A matemática entrou na cultura primeiramente como uma técnica, a de azer cálculos aritméticos e geométricos elementares, e suas origens perdem-se nos primórdios da história. Dentre os povos antigos, os egípcios oram bons matemáticos, como suas realizações técnicas o atestam, mas os babilônios oram ainda melhores. Mas, ainda que essas culturas tenham produzido uma matemática reconhecível como tal, altava a ela o caráter sistemático, rigoroso, puro – isto é, não empírico – e, em grande medida, a indierença com respeito a aplicações práticas e imediatas que caracterizam o conhecimento matemático, tal como entendemos hoje (SILVA, 2007, p. 31). Identicamos em suas palavras uma passagem e transição de um saber matemático especulativo, empírico e desinteressado, apontado e produzido por algumas civilizações mais antigas para um saber matemático de caráter “rigoroso”, “sistemático” e “puro”, como o próprio autor acentua. Ora, este movimento de
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Licenciatura em Matemática
transição, encontrado em determinadas ases históricas mais proeminentes, como as ases históricas discutidas por Silva, são objeto de estudo do que Hilton Japiassu chamou acima da epistemologia especíca da Matemática. A Filosoa da Matemática que por ora discutimos se interessa por questões desta natureza. Além disso, vamos discutir, ainda, outros interesses que podem ser identicados apenas nesta área e em mais nenhuma outra área do conhecimento cientíco (Figura 2). Destacamos outro trecho de Silva (2007, p.34) com a intenção de ilustrar, em nossa discussão losóca inicial, a signicação do termo Filosoa da Matemática. O gênio de Euclides, porém, estava no modo como ele ez isso. A partir de um sistema mínimo e supostamente completo de verdades não-demonstradas e indemonstráveis – axiomas e postulados (posteriormente verifcou-se que altavam pressupostos substituídos pela intuição espacial) -, Euclides, demonstrava racionalmente todos os enunciados de Os elementos. Estava assim criado o método axiomático-dedutivo que viria a servir de modelo para toda a matemática a partir de então: a redução racional (preerivelmente lógica) de todas as verdades de uma teoria e uma base mínima e completa de verdades evidentes ou simplesmente pressupostas. Não havia nada de remotamente similar na matemática não grega.
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Nas palavras do autor, observamos um dos elementos peculiares ao pensamento matemático que infuenciou, séculos mais tarde, várias áreas do conhecimento SAIBA MAIS! cientíco. Note-se que a dimensão epistêmica é sempre exigida para que possamos compreender o caráter O Método axiomático–dedutivo foi sistematizado a partir dos gregos losóco dos saberes cientícos constituídos até nossos evoluiu e se aperfeiçoou, alcançando dias. De ato, Silva (2007) ez menção explicita ao método seu apogeu com o grupo Bourbaki. axiomático-dedutivo, inaugurado pela civilização jônica. A intenção principal consiste em formalizar e descrever o conhecimento Sua unção naquela época assumiu um papel undamental matemático por meio de estruturas do ponto de vista epistemológico, principalmente quando gerais e abstratas. adotamos a seguinte signicação: A epistemologia pode, então ser defnida como o ‘estudo da constituição dos conhecimentos válidos’. O termo ‘constituição’ recobre ao mesmo tempo as ‘condições de acesso’, isto é, os processos de aquisição dos conhecimentos, e as ‘condições propriamente constitutivas, quer dizer, as condições ormais ou experimentais que dizem respeito à validade dos conhecimentos, e as História da Matemática
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condições que dizem respeito, quer às contribuições do sujeito, que às do objeto no processo de estruturação do conhecimento. Portanto, para Piaget, só há ciência quando estiverem reunidos esse três elementos: (1) elaboração de atos; (2) ormalização lógico-matemática; (3) controle experimental (JAPIASSU, 1988, p. 44).
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Notamos no trecho acima o registro de um grande pensador recordado pelo epistemólogo Hilton Japiassu, trata-se do epistemólogo geneticista Jean Willian Fritz Piaget (1896-1980) . Destacamos o grande pesquisador Piaget não só por sua importância no campo cientíco, mas, sobretudo pelo valor de seu estudo sobre a análise e os processos de reormulação de certos conceitos cientícos por meio de uma análise lógica (JAPIASSU, 1988, p. 44). A Matemática para Piaget assumiu um papel imprescindível para a explicação e previsão de inúmeros enômenos observados no âmago do conhecimento cientíco moderno. Antes, porém, de discutirmos um pouco mais a respeito do caráter epistemológico do saber matemático e sua unção no interior de Filosoa da Matemática, sublinhamos a explicação do pesquisador inglês Paul Ernest (1991, p. 3): A flosofa da Matemática é um ramo da flosofa cuja tarea se reete ao tomar em consideração a natureza da Matemática. Esta é um caso especial de epistemologia que leva em consideração o conhecimento humano em geral. A flosofa da Matemática se orienta no sentido de responder algumas questões: Qual é a base do conhecimento matemático? Qual é a natureza da verdade matemática? O que caracteriza a verdade em matemática? O que é uma afrmação e sua justifcação? Por que as verdades em matemática são necessariamente verdades? Ernest conrma a presença e necessidade da adoção de vários pressupostos epistemológicos, corroborando com o que mencionamos nos parágraos anteriores, quando menciona que, ao adotarmos largamente uma abordagem epistemológica, assumimos que conhecimento é qualquer área representada por um conjunto de proposições, aliado a um conjunto de procedimentos capazes de realizar vericação e assegurar sua conabilidade (1991, p. 4). Na citação anterior, observamos alguns questionamentos intrínsecos ao que chamamos de Filosoa da Matemática, que se apresenta como um campo distinto da
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Licenciatura em Matemática
Filosoa das Ciências. Retomando a Figura 2, lembramos que a Filosoa da Matemática é marcada por elementos particulares que não são encontrados nas outras áreas do conhecimento cientíco humano. No início sublinhamos SAIBA MAIS! uma “crença” equivocada segundo a qual muitos ainda Para conhecer um pouco mais sobre a acreditam na possibilidade de se compreender o particular Filosofia das Ciências, acesse o site: partindo-se do geral (). Assumimos que este ponto de http://www.molwick.com/pt/ vista encontrado no locus acadêmico é completamente metodos-cientificos/528-metodosexperimental.html equivocado e interpretamos esta atitude e posicionamento epistemológico como uma espécie de “miopia acadêmica”. Adotamos, por outro lado, o percurso inverso () por acreditarmos que assim poderemos proporcionar melhor entendimento.
Figura 3: Relação entre o caráter particular e o geral dos saberes científicos (elaboração própria)
Para exemplicar de que modo os sintomas da “miopia” e mesmo, em terminados casos, cegueira acadêmica pode ocorrer, recordamos a seguinte caracterização ornecida por Bicudo & Guarnica (2001, p. 19), ao deenderem a supremacia da Filosoa da Educação sobre a Filosoa da Matemática: A Filosofa da Educação, por proceder de modo analítico, crítico e abrangente, volta-se para questões que tratam de como azer educação, de aspectos básicos presentes ao ato do educador como é o caso do ensino, da aprendizagem, de propostas político-pedagógicas, do local onde a educação se dá e, de maneira sistemática e abrangente, as analisa, buscando estender seu signifcado para o mundo e para o próprio homem. De modo semelhante, os mesmos autores denem a Filosoa da Matemática como uma área em que: Proceder conorme o pensar flosófco, ou seja, mediante a análise critica, reexiva, sistemática e universal, ao tratar de temas concernentes à
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região de inquérito da matemática, dierencia-se da matemática, pois não se dispõe a azer matemática, construindo o conhecimento desta ciência, mas dedica-se a entender o seu signifcado no mundo, o sentido que az para o homem, de uma perspectiva antropológica e psicológica, a lógica da construção do seu conhecimento, os modos de expressão pelos quais aparece e materializa-se, cultural e historicamente, a realidade dos seus objetos, a gênese do seu conhecimento (BICUDO; GUARNICA, 2001, p. 27).
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Neste ponto registramos que a “miopia” acadêmica acontece quando pensamos que, de um ponto de vista prático e utilitarista, seria mais importante para o proessor de matemática um razoável conhecimento em Filosoa da Educação em detrimento da Filosoa da Matemática. Tal patologia intelectual pode ocorrer também quando acreditamos de modo ingênuo que, compreendendo a Filosoa da Educação, consequentemente, o proessor compreenderá a Filosoa da Matemática. E, por m, com vistas nais ao ensino de matemática propriamente dito, qual das duas se apresenta de maior relevância para o uturo proessor de matemática? Recordamos um pressuposto simples e recorrentemente descuidado por prossionais que desconhecem o real e o concreto eetivo signicado da regência numa aula de Matemática, que se reere ao ato de que a maior parte do tempo despendido pelo proessor na escola é dedicada à ação de dar aula de Matemática. Assim, a retórica que identicamos na denição ornecida por Bicudo & Guarnica (2001) relativa à Filosoa da Educação, em termos práticos, em nada melhorará ou apereiçoará a ação que mencionamos. Nesse sentido, destacamos a relevância de um saber vinculado e determinado pelo saber matemático que poderá proporcionar o apereiçoamento da ação docente, de acordo com o que exibimos na Figura 1. Antes de apresentarmos nosso argumento nal, discutiremos outras questões levantadas por Bicudo & Guarnica (2001, p. 27) quando armam que: As perguntas básicas da flosofa – “O que existe?”, “O que é o conhecimento?”, “O que vale?” -, são trabalhadas pela flosofa da matemática, ocalizando-se especifcamente nos objetos da matemática. Desdobram-se em termos de “Qual a realidade dos objetos da matemática?”, “Como são conhecidos os objetos matemáticos e quais os critérios que sustentam a veracidade das afrmações matemáticas?”, “Os objetos e as leis matemáticas são inventadas (construídas) ou descobertas?”.
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Mais adiante os autores destacam que o tratamento destas questões é relevante para a autocompreensão da Matemática e necessário para a denição de propostas curriculares, por determinar escolhas de conteúdos, atitudes de ensino, expectativas de aprendizagem, indicadores de avaliação (BICUDO; GUARNICA, 2001, p. 27). Depois destas ponderações, acreditamos ser insustentável a crença de que a ormação em Filosoa da Educação deve anteceder qualquer ormação e inormação relativa à Filosoa da Matemática. Além da maior importância da Filosoa da Matemática, no que diz respeito à instrumentalização eetiva do uturo mestre, assumir este posicionamento implica aceitar o diagrama que propomos (Figura 3), ou melhor, signica compreender o particular, para depois compreender o geral. Vários epistemólogos nos ornecem esta lição, entre eles podemos citar Karl Popper e Thomas Khun . Como tencionamos nesta primeira parte descrever os pressupostos iniciais que adotaremos neste curso, inclusive suas implicações para o ensino de Matemática, recordamos ainda que a Filosoa da Matemática interessa-se por questões de caráter: (i) ontológico: o que existe em Matemática; (ii) epistemológico: como se conhece o que existe em Matemática e o que pode ser considerado conhecimento matemático; (iii) axiológico: quando um conhecimento matemático pode ser considerado como verdadeiro. Estes questionamentos podem nos ornecer elementos para compreender os processos necessários que tornam nossas crenças matemáticas em conhecimento matemático válido.
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Figura 4: Relações entre conhecimento e crença matemática
Muitas destas questões serão discutidas e signicadas dentro da própria Matemática, uma vez que esta é, em tese, a área de maior interesse do uturo proessor de Matemática. Para nalizar, destacamos uma área de investigação, internacionalmente rmada e reconhecida, chamada Filosoa da Educação Matemática. Tal área de inquérito investigativo é assim caracterizada:
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Por ocalizar a matemática no contexto da educação, a Filosofa da Educação Matemática também se coloca questões sobre o conteúdo a ser ensinado e a ser apreendido e, desse modo, necessita de análises e reexões da flosofa da matemática sobre a natureza dos objetos matemáticos, da veracidade do conhecimento matemático, do valor da matemática (BICUDO; GUARNICA, 2001, p. 30).
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Esta área de investigação será retomada por nós no nal de nossos estudos. Assim, para prosseguir de acordo com o que acreditamos ser o mais compreensível para o leitor (Figura 3), detalharemos a partir deste ponto outras questões relacionadas ao saber matemático. Nesta lição, discutimos e demarcamos alguns elementos essenciais relacionados com a Filosoa das Ciências e Filosoa das Matemáticas. No próximo tópico introduziremos outros elementos que dierenciam e distinguem a evolução do saber matemático no contexto cientíco de qualquer outro saber acadêmico.
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Licenciatura em Matemática
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02 TÓPICO
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A NATUREZA DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO
OBJETIVO
Discutir a natureza do saber matemático e alguns exemplos de ordem lógica formal.
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VOCÊ SABIA? Conhecimento a priori: a priori (do latim, « partindo daquilo que vem antes »), expressão do âmbito filosófico que designa uma etapa para se chegar ao conhecimeto válido, que consiste o pensamento dedutivo. Notese que o conhecimento proposicional não pode ser adquirido, incorporado por meio da percepção, introspecção, memória ou testemunho. É, deste modo, uma anterioridade lógica e não cronológica que é designada na noção “a priori”. Tal conhecimento se complementa com o conhecimento a posteriori, que designa aquele que adquirimos com a experiência mundana.
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omo mencionamos sem maiores detalhes na seção anterior, a Matemática, tradicionalmente, oi vista como paradigma para certos conhecimentos, desde que oi erigida há 2500 anos com Euclides, como bem atesta Ernest (1991, p. 4). Nos séculos subsequentes, sua infuência continuou a se mostrar promissora e rutíera para inúmeros campos do saber. De ato, Ernest (1991, p. 4) recorda que: Desde a época de Euclides até o fnal do século XIX, seu paradigma oi explorado para estabelecer a verdade e a certeza. Newton usou alguns elementos no seu Principia encontrados ainda nos Elementos de Euclides; Spinoza em sua estética [...] A matemática desde muito tempo tem sido tomada como onte de muitos saberes da raça humana.
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Ernest adverte que conhecimento é a base na qual assentamos todas nossas armações. Explica ainda que conhecimento a priori consiste em proposições que são produzidas unicamente assentadas ou sustentadas
pela razão, sem o recurso da observação do mundo real (1991, p. 4). Aqui, a razão empregada pelo autor consiste no recurso de lógica dedutiva e signicados de termos, tipicamente encontrados em denições. Em oposição, conhecimento a posteriori ou conhecimento empírico consiste em proposições produzidas com respeito a uma base de experimentos e observações do mundo real. Mais adiante, Ernest (1991, p.4) esclarece: O conhecimento matemático é classifcado como conhecimento a priori, desde que consista de proposições e seja undamentado a partir da razão. Razão que inclui lógica dedutiva e defnições que são usadas em conjunção de axiomas e postulados, como base para a obtenção de inerências. Todavia, a undação do conhecimento matemático consiste em investigar a verdade nas proposições matemáticas, consiste no método dedutivo.
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Vamos trazer para ilustrar nossa discussão o problema relacionado ao princípio de indução matemática abordado pelo matemático Giuseppe Peano (1858-1932). Para tanto, é importante recordarmos o conjunto = {1,2,3,.....,....,...} , que é chamado de conjunto dos números naturais que estão relacionados de modo íntimo com a noção de conjunto enumerável (LIMA, 2004, p. 32). Lima (2004, p. 32) explica que os axiomas de Peano exibem os números naturais como “números ordinais”, isto é, objetos que ocupam lugares determinados numa sequencia ordenada . O axioma de Peano é enunciado do seguinte modo: Existe uma unção injetiva s : ® . A imagem s(n) de cada número natural n Î chama-se o sucessor de ‘n’; Existe um único número natural 1 Î tal que 1 ¹ s (n) para todo n Î ; Se um conjunto X Ì é tal que 1 Î X e s( X ) Ì X , isto é, se n Î X ® s(n) Î X , então X = . Tais condições podem ser reormuladas do seguinte modo: (i’) Todo número natural tem um sucessor, que ainda é um número natural; números dierentes têm sucessores dierentes; (ii’) Existe um único número natural ‘1’ que não é sucessor de nenhum outro; (iii’) Se um conjunto de números naturais contém o número ‘1’ e contém também o sucessor de cada um dos seus elementos, então esse número contém todos os números naturais. Lima (2004, p. 33) principia uma discussão losóca ao declarar que: Do ponto de vista de Peano, os números naturais não são defnidos. É apresentada uma lista de propriedades gozadas por eles (os axiomas) e
História da Matemática
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tudo decorre daí. Não interessa i que os números são; (isto seria mais um problema flosófco) o que interessa é como eles se comportam. Embora os axiomas por ele adotados já ossem conhecidos por Dedekind, tudo indica que Peano trabalhou independentemente. O mais importante não são quais os axiomas ele escolheu e sim qual a atitude que ele adotou, a qual veio a prevalecer na Matemática atual, sob o nome de método axiomático.
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Por outro lado, o que destacamos há pouco nada possui ou apresenta de losóco, todavia a descrição que zemos acima, com destaque para o item (iii), que caracteriza o princípio de indução matemática, é pura Filosoa da Matemática. Caraça (1951, p. 4) reerenda nosso posicionamento quando comenta que: A ideia de numero natural não é um produto puro do pensamento humano, independentemente da experiência; os homens não adquirem primeiro os números naturais para depois contarem; pelo contrário, os números naturais oram-se ormando lentamente pela prática diária de contagens. A imagem do homem criando de uma maneira completa a ideia de número, para depois aplicar à prática da contagem, é cômoda, mas alsa. Note-se que, dependendo do sistema matemático ormal, o conjunto = {0,1,2,3,.....,.....} ou = {1,2,3,.....,.....} A criação de um símbolo para . De ato, quando consideramos a teoria aritmética dos representar o nada constitui um dos números, o primeiro conjunto é assumido, e quando atos mais audazes do pensamento, estudamos os conteúdos de Análise Real, o conjunto é uma das maiores aventuras da razão. assumido sem o zero ‘0’. Lima (2004, p. 150) se maniesta Essa criação é relativamente recente (talvez pelos primeiros séculos da era do seguinte modo: cristã) e foi devida às exigências da Sim e não. Incluir ou não o número 0 no conjunto dos numeração escrita. (CARAÇA, 1951, números naturais é uma questão de preerência pessoal ou, p. 6). mais objetivamente, de conveniência. O mesmo proessor ou autor pode, em dierentes circunstâncias, escrever 0 Î ou 0 Ï . Como assim? Consultemos um tratado de Álgebra. Praticamente em todos eles encontramos = {0,1,2,3,.....,.....}. Vejamos um livro de Análise. Lá achamos quase sempre = {1,2,3,.....,.....} . Ernest (1991) discute o exemplo da vericação que de ato 1 + 1 = 2 , segundo o sistema axiomático de Peano. Para tanto, assumimos os axiomas que garantem que podemos escrever que s(0) = 1 e s(1) = 2 . Também a partir da Aritmética
SAIBA MAIS!
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de Peano, sabemos que x + 0 = x = 0 + x , para todo x Î . Temos também que x + s( y) = s( x + y) , onde x, y Î . Na sequência, o ato banal simbolizado por 1 + 1 = 2 , é vericado ormalmente por Ernest (1991, p. 5), após executar dez passos de inerências lógicas como vemos na Figura 5.
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Figura 5: Passos de inferências lógicas (ERNEST, 1991, p. 5)
Alguns dos elementos discutidos anteriormente apontam para a direção de considerar o conhecimento matemático dotado de verdades universais, inalível e não questionável. Essencialmente construído a partir de verdades estabelecidas a priori. Tal perspectiva é o que Ernest (1991, p. 7) chama de visão absolutista da matemática. De acordo com tal visão, o conhecimento matemático ornece o único modo de alcançarmos a verdade. O autor explica ainda que parte deste poder e caráter absolutista é ortalecido por meio do método dedutivo ormal. Tal terreno é construído a partir da lógica e pode ornecer absoluta certeza ao conhecimento. Ernest (1991, p. 7- 8) salienta ainda que, no primeiro momento, todos os pressupostos básicos são assumidos a partir da exploração de suas provas e demonstrações. Ademais, os axiomas matemáticos são assumidos como verdade e, a partir da necessidade de considerações anteriores, as defnições ormais matemáticas são construídas assumindo também valores lógicos verdadeiros. No segundo momento, as regras lógicas e modelos de inerência devem preservar a verdade e conduzir também à verdade. E, verdade deve ser obtida a partir de verdades, por meio do emprego destes modelos lógicos. Ernest (1991, p. 8) acrescenta ainda que toda armação ou proposição estabelecida num sistema dedutivo deverá conter suas conclusões e, uma vez estabelecido um teorema por meio do método dedutivo, o conhecimento extraído deste teorema deve ser sempre verdadeiro.
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A visão absolutista da matemática encontrou e enrentou vários problemas (ERNEST, 1991, p. 8) séculos mais tarde, todavia nos deteremos neste assunto, de modo pormenorizado, nas próximas aulas. Para concluir, destacamos algumas características do saber matemático, ornecidas por Morris Kline: Outro uso básico da matemática, sobretudo nestes tempos modernos, tem sido ornecer uma organização racional para a natureza dos enômenos. Os conceitos, os métodos e conclusões a respeito de que a matemática constitui o substratum das ciências ísicas. (KLINE, 1964, p. 5).
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Em outro trecho, Kline (1964, p. 6-7) enaltece algumas características da beleza do conhecimento matemático ao declarar que: Além da beleza da estrutura concluída, o uso indispensável da intuição, imaginação árida na criação de provas e conclusões oerece satisação estética de alta para o criador. Se a percepção e a imaginação, simetria e proporção, a alta de superuidade, e adaptação exata entre meios e fns são compreendidas em beleza e são características das obras de arte, então a matemática é uma arte com uma beleza própria [...] Grandes pensadores cedem às modas intelectuais do seu tempo como as mulheres azem a moda no vestuário. Mesmo os gênios criativos para quem a matemática era puramente um hobby prosseguido os problemas que agitavam os matemáticos e cientistas profssionais. No entanto, esses “amadores” e matemáticos em geral, não têm se preocupado principalmente com a utilidade do seu trabalho. Vários autores discutem a natureza do conhecimento matemático. Neste âmbito de refexão, podemos perceber que determinadas acetas losócas dicilmente seriam percebidas por um estudante que não apresente uma ormação em Matemática além da escolar. Este assunto será retomado por nós adiante, por ora, apresentamos, na seção seguinte, alguns dos precursores do pensamento matemático losóco ocidental.
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OS PRECURSORES DA FILOSOFIA
OBJETIVO
Conhecer os principais pensadores que estabeleceram o terreno fértil para a Filosofia da Matemática.
VOCÊ SABIA? Platão é sempre lembrado pelas ideias e concepções que influenciou os românticos da matemática. Nasceu em 428/427 a.C. e foi descendente de uma família ateniense de classe alta.
SAIBA MAIS! Platão sustenta que há ideias eternas e independentes dos sentidos, como o um, o dois, etc., ou seja, as Formas Aritméticas e outras como o ponto, a reta, plano, que são as Formas Geométricas. Quando enunciamos propriedades ou relações entre esses entes, estamos descrevendo relações entre as Formas (CURY, 1994, p. 42).
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esta parte discutiremos alguns dos principais pensadores gregos que mais contribuíram para o estabelecimento inicial de algumas doutrinas na Matemática, com destaque para Platão e Aristóteles. A primeira gura ilustre a ser lembrada quando alamos de Filosoa da Matemática é Platão. No que diz respeito ao período de ormação de Platão, Barbosa (2009, p. 27) explica: É muito provável que Platão, em torno de seus vinte anos, tenha conhecido Sócrates e reqüentado o seu círculo, não com o intuito de se tornar um flósoo, mas com o propósito
de, mediante o estudo da flosofa, aprimorar seus conhecimentos para a vida política. Todavia, o destino, sempre caprichoso, mudaria por completo os rumos de seus objetivos.
Platão identica, nas discussões de sua época, a dicotomia instalada entre a retórica e a losoa. Neste ATENÇÃO! contexto, os sofstas que tinham como objetivo a ormação Sofistas: constituíram de grupos de do espírito e a multiplicidade de métodos determinam esta mestres que viajavam pelas cidades discussão. Neste sentido, Barbosa (2009, p. 28) declara: realizando aparições e eventos públicos para distrair curiosos e Enquanto matemática e flosofa se animam estudantes. Os mesmos cobravam mutuamente na ampliação dos horizontes taxas pelo serviço fornecido. Seu foco especulativos da realidade circundante, a principal concentrou-se no logos ou no discurso, com preocupação nas soística vem a preencher, no contexto do estratégias de argumentação. conhecimento, um espaço outrora vazio, visto que, ao contrário das duas primeiras, não tem como escopo um saber teórico ou científco, mas trata de uma exigência de ordem estritamente prática. O resultado desta discussão oi a primazia do conhecimento enciclopédico e intelectualizante que herdamos até nossos dias; assim sendo, esse novo “saber enciclopédico” (polimathia) e estruturado passou a representar um enômeno que veio a ormular os conceitos ocidentais da educação como diusão do saber (BARBOSA, ATENÇÃO! 2009, p. 28). No que se reere à contribuição especíca de Platão com respeito à Filosoa da Matemática, Barbosa Platonismo: Corrente filosófica (2009, p. 37) adverte: baseada no pensamento do seu precursor, Platão, talvez a mais Quando nos reerimos ao platonismo na conhecida, recordada e de implicações esera da flosofa da matemática, não ainda hoje discutida por estudos podemos atribuir uma doutrina a Platão acadêmicos. Sua escola, dos séculos da mesma orma como associamos, por IV até I a.C. foi responsável pela sistematização e aprofundamento de exemplo, o logicismo a Frege e Russell, suas concepções. isto é, como um corpo de preceitos, um sistema flosófco em sua acepção moderna. E isso ocorre justamente porque não era essa a intenção de Platão. Ele estaria mais preocupado em estimular as pessoas a pensar, colocando deste modo as almas no caminho certo do conhecimento puro e desinteressado, que outrora vislumbraram antes de serem condenadas
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ao devir mundano, a esse doloroso vir-a-ser, e sorer as tribulações do corpo e a ignorância da mente.
Barbosa (2009), no excerto acima, az reerência a uma corrente losóca absolutista da Matemática conhecida como logicismo. Discutiremos as principais características desta corrente nas próximas aulas. De qualquer modo, são esclarecedoras suas palavras na medida em que explicam as intenções iniciais do antigo lósoo, e é interessante conhecer as consequências que tiveram e as implicações desta ideologia ou doutrina do platonismo com relação ao saber matemático. Neste contexto, Barbosa (2009, p. 37) acrescenta ainda: Uma boa parte do platonismo, assim como nós o conhecemos hoje, é, portanto, uma criação posterior a Platão. O platonismo na moderna flosofa matemática é descrito como uma teoria que trata das verdades das proposições matemáticas, sendo “usualmente tomado como um tipo de realismo, equivalente a crença de que os objetos da matemática tais como os números literalmente existem independentes de nós e de nossos pensamentos a respeito deles”.
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Segundo Silva (2007, p. 37), para Platão, as entidades matemáticas constituem um domínio objetivo independente e auto-sufciente, ao qual temos acesso pelo entendimento . Para outro importante personagem grego, Aristóteles, os entes matemáticos têm uma existência parasitária dos objetos reais – uma vez que os objetos matemáticos só existem encarnados em objetos reais – e só nos são revelados com o concurso, ao menos em parte, dos sentidos. Silva (2007, p. 37-38) dierencia de modo eciente as duas perspectivas desenvolvidas por estes dois pensadores ao declarar que: Para Platão, o mundo real apenas reete impereitamente um mundo puro de entidades pereitas, imutáveis e eternas – os conceitos matemáticos entre elas. Para Aristóteles, o mundo sensível é a realidade undamental, os entes matemáticos são ‘extraídos’ dos objetos sensíveis por meio de operações do pensamento, e os conceitos matemáticos são apenas modos de tratar o mundo real. [...] De um lado o racionalismo de Platão, que atribui à razão humana o poder de penetrar nos domínios supra-sensíveis da matemática, e o seu realismo ontológico transcendente, que afrma que a existência independente dos entes matemáticos num reino ora deste mundo; de outro, o empirismo de Aristóteles, que se recusa a dar morada aos entes matemáticos em qualquer outro reino que não o deste mundo, e o seu realismo ontológico
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imanente, que garante, ele também, uma existência dos objetos matemáticos independentemente de um sujeito [...].
Silva (2007, p. 40) sublinha que, para Platão, existe uma pluralidade de números matemáticos. Para ele, não existem vários números ‘2’, e sim a ideia de dois. Se existisse no mundo ideal apenas um número 2, que sentido teria a identidade 2 + 2 = 4 , na qual comparecem duas instâncias da ideia de ‘2’ (SILVA, 2007, p. 40). Essa identidade não pode ser uma relação entre Ideias numéricas – sendo entidades singulares elas não admitem cópias de si próprias – mas entre números, que precisam então existir em abundância. Platão teve assim que admitir a existência, além da pereita Ideia de 2, das várias instâncias pereitas desta Ideia (SILVA, 2007, p. 40). Outros conceitos estudados por Platão que merecem atenção são os conceitos de números pares e números ímpares. Barbosa (2009, p. 48) acrescenta que os conceitos de par e ímpar permeiam toda a aritmética platônica, sendo eles capazes de gerar todos os outros números. Esta dualidade pode indicar certa concordância com o pitagorismo. E ainda, Platão teria utilizado os números dois e três precisamente por se tratarem dos primeiros par e ímpar , respectivamente. Na Antiguidade, em geral, não se considerava o um como número (BARBOSA, 2009, p. 48). Não podemos esquecer as preocupações de Platão com o ensino e, com respeito a isto, Barbosa (2009, p. 49) ilustra: Voltando ao método da hipótese, ele é também utilizado no Mênon. Nesse diálogo, Platão az uma brilhante exposição do método socrático como instrumento de ensino, quando primeiramente leva o escravo a reconhecer o próprio erro, e depois o induz ao conhecimento certo. O problema colocado para o escravo é o de calcular a área de um quadrado de lado 2. Feito isso, Sócrates questiona o jovem escravo sobre o que aconteceria com cada linha deste quadrado se a sua área osse duplicada [...] Sócrates constrói com ATENÇÃO! o escravo um novo quadrado sobre aquele inicialmente dado, o que tem lados com A filosofia da Matemática de Aristóteles foi desenvolvida, em parte, em medida de 2 pés, prolongando os seus lados oposição a de Platão, pois ele critica a Teoria das Formas, dizendo que ela até que atinjam a medida 4 pés. O escravo não é racional. Para Aristóteles, cada parece estarrecido ao notar que o quadrado objeto empírico, cada ser existente, é construído com as linhas duplicadas do uma unidade e não existe separado de quadrado original tem o quádruplo de sua sua forma ou essência (CURY, 1994, p. 47). área.
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O discípulo de Platão, Aristóteles (384 – 322 a. C.), permitia-se discordar do mestre. Em primeiro lugar, Aristóteles não admitia a existência de um reino transcendente de Ideias e ormas matemáticas. As ormas geométricas e numéricas existem, para Aristóteles, apenas como aspectos de objetos e coleções de objetos reais (SILVA, 2007, p. 43). Para Aristóteles, os objetos matemáticos são uma abstração apenas ou, na pior das hipóteses, uma fcção útil (SILVA, 2007, p. 44). Eles não têm existência separada dos objetos empíricos, são apenas aspectos delas, e se por vezes pensamos como independentes, isto é, não tem maiores consequências. Um objeto empírico é um objeto matemático na medida em que nós podemos considerá-lo do ponto de vista de seu aspecto matemático, ou seja, como um objeto matemático (SILVA, 2007, p. 44). Machado (1994, p. 21) ornece uma distinção interessante quando declara: Enquanto que para Platão, os enunciados matemáticos eram verdadeiros por serem descrições de, ou relações entre, ormas matemáticas de existência objetiva. Aristóteles reabilita o mundo empírico bem como o trabalho do matemático. E recoloca a questão de os objetos matemáticos e os enunciados serem verdadeiros ou alsos não em termos absolutos, mas por serem mais ou menos adequados à representação do mundo empírico, adequação esta relativa a algum fm que se objetiva.
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Dierentemente de Platão, Aristóteles se volta à estrutura das teorias matemáticas, aos sistemas de proposições. Aristóteles vislumbra a necessidade e o método que identicamos até nossos dias que diz respeito à organização das proposições nas hipóteses iniciais, logicamente necessárias e nas proposições dedutíveis a partir delas, tratando especifcamente de estruturar as possíveis deduções (MACHADO, 1994, p. 21). Suas concepções podem ser consideradas as precursoras do pensamento que motivou os princípios que passaram a regular e caracterizar as subdivisões sucessivas da matemática em várias ramicações (no caso das geometrias: Geometria Euclidiana, Geometria Dierencia, Geometria Hiperbólica, Geometria Riemanniana, etc). Silva (2007, p. 45) dierencia o pensamento aristotélico do seguinte modo: Analogamente, para Aristóteles, a matemática estuda objetos sob certos aspectos apenas, uma bola como uma esera, um par de dois livros como dois. Ao azer isso, abstraímos da bola a sua orma geométrica e da coleção de livros sua orma aritmética. Visto assim, Aristóteles, é um empirista em ontologia, pois, para ele, apenas os objetos dos sentidos existem realmente, com um sentido pleno de existência.
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Mas o posicionamento aristotélico produziu respostas inclusive para os limites da abstração humana. Neste sentido, Silva (2007, p. 45) questiona: poderíamos, porém, perguntar, e os números tão grandes que não podem numerar nenhuma coleção real, e as ormas geométricas tão esdrúxulas que não podem dar orma a nenhum objeto real (como o miriágono, o polígono de dez mil lados)? O autor acrescenta que a saída vislumbrada por Aristóteles oi admitir que entre os objetos matemáticos também encontramos ormas ctícias. Essas, no entanto, por serem construtíveis a partir de certas ormas reais, são possíveis na realidade (SILVA, 2007, p. 45). De ato: Um número muito grande pode ser construído, por adição sucessiva de unidades, a partir de qualquer número pequeno dado, e o miriágono pode ser construído a partir de fguras geométricas reais, como círculos e segmentos de reta. Assim, numa compreensão mais ampla, a matemática, segundo Aristóteles, trata não apenas de ormas abstratas atuais, mas também de ormas abstratas possíveis (SILVA, 2007, p. 45).
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Para concluir nossas considerações sobre Aristóteles, vale destacar as ponderações devidas a Machado (1994, p. 22) quando destaca: Em resumo, poderíamos dizer que a posição de Aristóteles no que se reere à relação da Matemática com a realidade pode ser situada, simultaneamente, na origem tanto do realismo como do idealismo modernos, na medida em que, por um lado, reabilita o mundo empírico e, por outro lado, o trabalho do matemático deixa de ser um mero caçador de borboletas no mundo pereito das Formas, vislumbrando a possibilidade dele mesmo ser um ‘abricante’ de borboletas. O posicionamento assumido por Aristóteles em relação à Matemática pode ser compreendido também nas palavras de Silva (2007, p. 46), quando explica: Como a entendo, a abstração aristotélica, a operação pela qual consideramos objetos e coleções de objetos empíricos como objetos matemáticos, comporta também um elemento de idealização. Tratar uma bola como uma esera é uma operação complexa: abstrair-se da bola a sua orma mais ou menos esérica e, simultaneamente, idealizase essa orma, isto é, desconsideram-se as dierenças entre ela e a esera matemática pereita (determinada pela sua defnição como o lugar geométrico dos pontos espaciais eqüidistantes de um centro). Uma esera
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matemática é, assim, a idealização de um aspecto da bola, e só assim ela existe.
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A Matemática como a conhecemos hoje é o exemplo mais puro e clássico de ciência dedutiva, e várias outras áreas do conhecimento buscaram e adaptaram, adaptaram, na medida do possível, alguns de seus pressupostos e paradigmas de rigor. De ato, é relevante a inuencia do pensamento aristotélico no desenvolvimento da ciência em geral (SILVA, 2007, p. 50). Aristóteles entendia a Matemática como um ediício logicamente estruturado de verdades encadeadas em relações de conseqüência lógica a partir de pressupostos undamentais não demonstrados (2007, p. 50). Aristóteles contribuiu também com relação às noções metamatemáticas (propriedades elementares da metodologia das ciências dedutivas) undamentais, como as de axioma, defnição, hipótese e demonstração. Aristóteles critica o modelo de demonstrações em Matemática que conhecemos por redução ao absurdo. O mesmo considera-as não explicativas, isto é, sabe-se que algo alg o é verdadeiro sem saber por que é verdadeiro (SILVA, 2007, p. 52). A este respeito, Silva (2007, p. 52) comenta: Demonstrações por redução ao absurdo (para se demonstrar que uma asserção qualquer A, supõe-se a alsidade de A e obtêm-se como conseqüência uma alsidade qualquer ou, equivalentemente uma contradição. O que mostra que A não pode ser alsa, sendo, portanto, verdadeira) ocorrem com reqüência na matemática grega, em particular no método da exaustão de Arquimedes, que envolve uma dupla redução ao absurdo. A introdução de métodos infnitarios na matemática do século XVII, em VOCÊ SABIA? especial por Cavalieri, visava em grande medida substituir Zenão de Eléia foi um filósofo prédemonstrações por exaustão por demonstrações diretas, socrático e foi discípulo de Parmênides. causais, respondendo assim às demandas aristotélicas. Das suas descobertas, destacamos a dialética clássica, o modo de argumentar que consiste em derivar Em vários aspectos podemos dizer que os germes da contradições das teses do opositor ideia da importância de uma ciência dedutiva e o poder ao seu discurso. Zenão utilizou o da lógica puramente ormal encontram-se nas concepções método na defesa das ideias de Parmênides acerca da unidade do ente aristotélicas. Nesta perspectiva, à matemática ormal não e da impossibilidade do movimento, importa o signifcado nem a veracidade das asserções, mas propondo algumas contradições apenas as relações ormais entre elas (SILVA, 2007, p. 51). ou aporias, que desafiaram os seus contemporâneos e intrigam até nossos Mas isto quer dizer que podemos tomá-la apenas como dias. Ver sua descrição no curso de um jogo ormal sem nenhuma intenção cognitiva? Este História da Matemática. questionamento, ruto de intensas querelas e embates
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políticos entre os matemáticos, será retomado nas próximas aulas, uma vez que não se tem uma resposta de argumentação satisatória. Outro aspecto que merece ser destacado diz respeito às contribuições de Aristóteles com relação a algumas noções que uncionam até nossos dias como pedras angulares para o saber matemático. Um destes exemplos e que oi objeto de refexãoo para Aristóteles diz respeito à noção de innito. refexã Em virtude das ponderações aristotélicas, desenvolveram-se as noções de infnito atual e infnito potencial, entretanto, no que diz respeito ao aspecto ATENÇÃO! matemático desta noção, Georg Cantor (1845-1918) orneceu o acabamento nal, acrescentando alguns Acreditamos que a radical mudança na abordagem sobre o infinito promovida elementos descuidados por Aristóteles. Com relação a tais por Cantor no final do século XIX pode noções, Silva (2007, p. 51) acrescenta: ser melhor destacada com uma análise Devemo-lhes a distinção undamental entre sob três ângulos, que interpretamos como três pontos de vista sobre o o infnito atual e o infnito potencial, ou seja, infinito: o histórico, o filosófico e o entre a noção de uma totalidade fnita em matemático. que sempre cabe mais um indefnidamente – o infnito potencial – e uma totalidade infnita acabada. Segundo Aristóteles, aos matemáticos bastava a noção de infnito potencial. Se bem que esta ideia não corresponde à realidade da prática matemática, uma vez que a noção de infnito atual é essencial a muitas teorias matemáticas, uma vez que a noção de infnito atual é essencial a muitas teorias matemáticas, ela oi, e ainda é, aceita por muitos matemáticos, que não vêem na matemática do infnito senão uma onte de absurdos e contradições. Nas próximas aulas, aulas, nos deteremos um pouco mais nestas duas noções importantes para a Matemática. Para concluir esta seção, discutiremos ainda parte das contribuições devidas à Gottried Wilhelm Wilhelm von Leibniz (1646-1716) e Immanue Immanuell Kant (1724-1804) . Machado (1994) explica que cerca de dois mil anos se passaram para que a obra aristotélica, enquanto Lógica, osse retomada e desenvolvida. Segundo Machado (1994, p. 22), Leibniz ornece uma intensa contribuição ao aceitar a pressuposição aristotélica da orma sujeito-predicado de todas as proposições. E vai além, ao afrmar que o predicado de uma proposição sempre está contido, em algum sentido, no sujeito. Machado (1994, p. 22) esclarece que: Para Leibniz há duas classes de verdades: as verdades da razão e as verdades dos atos. As verdades da razão são necessárias e sua negação não az sentido. A necessidade se exprime através da análise História da Matemática
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e da conseqüente decomposição em proposições mais simples até que se chegue a um ponto em que a necessidade lógica seja transparente. O princípio que regula a análise é o da não-contradição, que engloba o da não identidade e o do terceiro excluído. excluído. ta mbém os axiomas, os postulados Acrescenta ainda que não só as tautologias como também Acrescenta e os teoremas são verdades da razão, ou seja, são verdades cuja negação é impossível de sustentar sem incorrer em contradições (MACHADO, 1994, p. 23). As verdades da razão enunciam que uma coisa é necessária e universal, não podendo de modo algum ser dierente dierente do que é e de como é. Um exemplo evidente das verdades da razão são as ideias matemáticas. É inquestionável inquestionáv el que o triângulo não possua três lados e que a soma dos seus ângulos seja dierente de dois ângulos retos. Outro exemplo interessante de verdade da razão é que um circulo não tenha todos os pontos eqüidistantes do centro. Outra verdade da razão é que não se pode contradizer o que 2+2 seja dierente de 4; é impossível questionar que o todo é maior do que suas partes constituintes. As verdades de ato, por outro lado, são as que dependem de nossa experiência captada no mundo em que vivemos. De ato, elas são obtidas através da sensação, da percepção e da memória. Elas são empíricas e se reerem a coisas que poderiam ser dierentes dierentes do que são, mas podemos identicar causas que sejam assim. Quando dizemos que uma rosa é branca, nada impede que ela possa ser vermelha ou amarela, mas se ela é branca é porque alguma causa a ez deste modo e aparência. Mas não é acidental ou contingente que ela tenha cor e é a “cor” que possui e envolve uma causa necessária. As verdades de ato são verdades porque para elas unciona e empregamos o principio da razão suciente, segundo o qual tudo o que existe, tudo o que percebemos perc ebemos e identicamos, e tudo aquilo que temos experiência possui uma causa determinada e identicável e conhecida. Pelo princípio da razão suciente – isto é, pelo conhecimento das causas – toda a verdade de ato pode tornar-se verdades necessárias e serem consideradas verdades da razão, ainda que para conhecê-las dependamos da experiência mundana. Machado (1994, p. 23) explica ainda que as verdades dos atos são proposições empíricas cuja negação não encontra óbices do ponto de vista lógico. É uma verdade da razão que minha caneta é uma caneta ou que 32 + 42 = 52 . É uma verdade de ato que minha caneta é preta ou que um corpo, abandonado em uma certa altura da Torre de Pisa, cairá até o solo. Machado (1994, p. 23) ornece uma importante distinção: distinção: Dierentemente de Platão, para quem diagramas, fguras, cálculo
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simbólico, oram elementos auxiliares ocasionais, Leibniz acreditava que a representação concreta do pensamento em símbolos adequados era, segundo suas próprias palavras, o “fo de Ariadne” que conduz a mente. E o desenvolvimento que ele imprime à Lógica decorre do seu propósito de criar um método de representar o pensamento através de signos, de características relacionadas com o que se está pensando.
Para concluir esta seção, destacamos a gura emblemática da Imanuel Kant. Sua proposta inicial consiste na distinção de duas classes de proposições. As proposições sintéticas: as que são empíricas, ou as sintéticas a posteriori e as que não são empíricas, ou sintéticas a priori. As proposições sintéticas a posteriori dependem, segundo Kant, da experiência sensível, para sua vericação, para sua validação e aceitação. Ou ainda de modo indireto, uma vez que são consequências de inerências proposicionais passíveis de alguma vericação experimental. Por outro lado, Machado (1994, p. 24) explica que: Já as proposições sintéticas a priori não dependem da percepção sensorial para sua validação, nem são analíticas, isto é, nem a sua negação conduz a contradições. São proposições necessárias por constituírem a base, a condição de possibilidade da ciência, da experiência objetiva. Para Kant, todas as proposições da Matemática são sintéticas a priori. Machado (1994, p. 25) explica este posicionamento ao mencionar que: Os objetos do mundo empírico situam-se no
SAIBA MAIS! Experiência sensível: Este termo possui dupla raiz etimológica. A palavra latina experientia de onde deriva a palavra experiência, é originária da expressão grega. Deriva-se também de um uso específico da palavra empírico.
SAIBA MAIS! Validação: Este termo aqui é empregado no sentido restrito ao âmbito da investigação em Matemática Pura, assim, diz respeito à aplicação de paradigmas de testagem e verificação da confiabilidade dos conteúdos matemáticos obtidos.
SAIBA MAIS! Para a Geometria, o espaço puro é um dos primeiros pressupostos. A Geometria supõe o espaço sob os seus conceitos de polígonos. Por exemplo, a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos (qualquer linha reta = universalidade, em quaisquer condições = necessidade). Embora não tenha em si o princípio de não contradição, e dependa da intuição de espaço e, portanto é sintética, essa afirmação é conhecimento puro ou a priori porque a intuição do espaço está em nossa mente. E uma vez concebida, não depende mais da experiência sensível captada por nossos órgãos sensórios.
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espaço e no tempo. Não é possível estudá-los, conhecê-los, investigálos, percebê-los sensorialmente, sem uma concepção inicial do espaço e do tempo. A estrutura conceitual do par espaço-tempo é que determina o modo como o mundo empírico é apreendido. Esta estruturação é, a uma só vez, sintética e a priori. Ao descrever o tempo e o espaço, descrevemos não impressões sensíveis de algo situado ora de nós, do mundo empírico, mas sim as matrizes permanentes, invariantes, de tais conceitos, que existem em nós, independentemente das impressões sensíveis e que são a condição de possibilidade de atuar no mundo empírico. E a matemática, enquanto se reere ao espaço e ao tempo, é constituída de proposições sintéticas a priori e não analíticas, como anteriormente era considerada.
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Para concluir, ressaltamos que Kant destacou que os matemáticos são os indivíduos “eleitos” para desvendar os segredos do harmônico universo platônico preexistente, de perquiridores de tal mundo pereito universo, ou de criadores de abstrações, de conceitos gerais para explicar o mundo, a partir do impereito material empírico (MACHADO, 1994, p. 25). O principal mecanismo de acesso a tais entes não se dá mais por meios dos órgãos sensoriais, e sim, por meio da razão introspectiva. As ideias repercutidas por estes personagens emblemáticos receberam séculos mais tarde uma enorme atenção de matemáticos e lósoos modernos. O interessante será reservado a uma análise da orma como tais ideologias ainda se maniestam e condicionam as ormas de veiculação e ensino do saber matemático. Na próxima aula, discutiremos as implicações deste pensamento losóco antigo.
ATIVIDADES DE APROFUNDAMENTO 1. Pesquisar exemplos de infinito atual e infinito potencial dentro da Matemática. 2. Pesquisar exemplos de verdades da razão e de verdades dos fatos. 3. Pesquisar exemplos de conhecimentos que não derivam da experiência empírica.
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Licenciatura em Matemática
Aula 2
Filosofia da Matemática
Nas próximas seções, nos deteremos em alguns dos pressupostos fundamentais assumidos pelas principais correntes filosóficas da Matemática. Uma das implicações mais importantes diz respeito à identificação de distorções e incongruências relacionadas ao ensino de Matemática. Tais distorções se referem à interpretação dos fenômenos relacionados a este ensino sob o viés de teorias pedagógicas de campos de saberes não aplicáveis e insuficientes ao saber matemático. Assim, o conhecimento das correntes filosóficas da Matemática poderá instrumentalizar o futuro professor no sentido de proporcionar uma leitura filosófica de sua própria prática docente.
Objetivo: Conhecer as principais correntes absolutistas da Matemática. • Conhecer aspectos do “construtivismo” matemático e os fundamentos da teorização de Piaget e suas implicações para o ensino. •
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AS CORRENTES FILOSÓFICAS DA MATEMÁTICA
OBJETIVO
Conhecer as principais correntes absolutistas da Matemática.
N
esta aula discutiremos as principais correntes losócas da Matemática. Alguns dos autores escolhidos e consultados ao longo do texto as denominam de correntes absolutistas, pelo ato de não conceber o caráter alível do saber matemático. Um comentário introdutório sobre tais correntes podem ser encontradas em Machado (1994, p. 26) quando esclarece que: As principais concepções a respeito da natureza da Matemática, de sua relação com a realidade, a despeito de suas várias raízes e dos inúmeros flósoos envolvidos, convergiram a partir da segunda metade do século XIX, para três grandes troncos. Estas três grandes correntes do pensamento matemático, cada uma das quais pretendendo undamentar a Matemática, sua produção, seu ensino, são o Logicismo, o Formalismo e o Intuicionismo.
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Certamente que a classicação ornecida por Machado (1994) é de caráter esquemático e pedagógico, uma vez que é impossível enquadrar de modo indiscutível todas as concepções nesta camisa-de-orça (MACHADO, 1994, p. 26). No contexto histórico, identicamos que, no nal do século passado, a Matemática haviase desenvolvido enormemente, com os trabalhos de Leonhard Euler, Johann Carl Friedrich Gauss (no século XVIII) e as contribuições, principalmente os resultados obtidos por Georg Cantor (no século XIX). Cury (1994, p. 53) destaca que alguns flósoos matemáticos, no entanto, estavam preocupados com o surgimento de paradoxos e contradições na Lógica e na Teoria dos Conjuntos. Assim, com a intenção de identicar critérios mais rigorosos e conáveis no sentido de undamentar a Matemática, desenvolveram-se três escolas de flosofa, cuja inuência se az sentir até os dias atuais: o Logicismo, o Intuicionismo e o Formalismo (CURY, 1994, p. 53). Ao declarar que seus eeitos ainda podem ser identicados nos dias de hoje, Cury az um parêntese importante que nos auxiliará no aproundamento com respeito à atividade avaliativa em Matemática. Muitos tentam compreender e descrever este enômeno especíco por meio de teorias “importadas” de outros campos do saber, o que resulta em uma leitura e signicação de caráter retórico, pouco operacional no que diz respeito à sua aplicação no ensino eetivo de Matemática. Iniciamos nossa discussão com uma refexão de Russell (1920, p. 18) quando alerta que: Matemática e lógica, historicamente, têm sidoestudos inteiramente distintos VOCÊ SABIA? [...] Mas ambos têm se desenvolvido Bertrand Russell foi um matemático, em tempos modernos; a lógica tornou-se filósofo, lógico e historiador mais matemática e matemática tornoumatemático inglês. se mais lógica. A conseqüência é que agora se tornou completamente impossível traçar uma linha entre os dois, na verdade os dois são um só [..] A prova da sua identidade é, naturalmente, uma questão de detalhe. No excerto acima identicamos a diculdade de traçarmos uma linha divisória entre Matemática e Lógica. De ato, até mesmo mentes brilhantes, como a de Bertrand Russell (1872-1970), destacavam tal empecilho. Mas já que introduzimos a polêmica em torno da Lógica, discutiremos inicialmente alguns aspectos relacionados ao Logicismo. Para alar do Logicismo, é necessário alar de Gottlob Frege (1848-1925).
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Silva (2007, p. 127) acentua que a estratégia logicista de Frege começa com uma releitura das distinções kantianas. Frege nos alerta de saída para nunca conundirmos o lógico com o psicológico. Em sua concepção: A razão é simples, representações são “cópias” das coisas em nossa mente, elas são objetos mentais, e qualquer tentativa de defnir analiticidade em termos de representações mentais corre o risco de ser contaminada pelo psicologismo. Para Frege, essa distinção entre o a priori e o posteriori, é puramente lógica [...] (SILVA, 2007, p. 127).
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No trecho acima, Silva expõe a crítica de Frege ao Psicologismo que maniesta preocupação com a interpretação que possamos dar às nossas representações mentais que construímos no decorrer de nossa existência nita no mundo. Seu posicionamento do valor da Lógica é identicado por Silva (2007, p. 126127) quando menciona: Apesar de concordar com Kant quanto à Geometria, Frege acreditava que a aritmética é analítica, porém em um sentido de analiticidade dierente de Kant. Mais precisamente, para Frege, a aritmética é redutível à lógica, ela nada mais é do que pura lógica. Para azer prevalecer esse ponto de vista, Frege engajou-se numa luta sem quartel contra as flosofas que, segundo ele, comprometiam o caráter da verdade aritmética em particular os empiristas, para os quais a verdade aritmética é uma generalização da experiência, undada em sólida base indutiva; e os psicologistas, para os quais os números são entidades mentais e as verdades aritméticas dependem de leis empíricas que regulam nossos processos mentais; isto é, leis da psicologia.
SAIBA MAIS! O Empirismo é descrito e caracterizado pelo conhecimento científico, a sabedoria é adquirida por intermédio da apreensão perceptual, pela origem das ideias por onde captamos e percebemos as coisas, de modo independe de seus objetivos e significados. E pela relação de causaefeito por onde fixamos nossa mente, o que é percebido/identificado atribui à percepção causas e efeitos.
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Para Frege, uma proposição matemática pode apresentar duas naturezas distintas. De ato, temos uma proposição analítica quando a demonstração desta proposição envolve apenas leis lógicas gerais e denições ormais. Se, pelo contrário, qualquer demonstração de uma proposição recorre ao emprego de verdades de escopo limitado (como os axiomas da geometria), ela será uma proposição sintética . Ademais, quando a mesma proposição utiliza verdades particulares, embora não demonstráveis (como as asserções que expressam os dados imediatos dos sentidos), ela será uma proposição a posteriori. E quando
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em tal proposição observamos que sua demonstração se undamenta em atos e verdades gerais, ela será a priori (SILVA, 2007, p. 127). De modo resumido, temos o quadro sistemático de classicação segundo as concepções de Frege. Proposições
Características
Quanto à demonstração
Proposição sintética
Emprega verdades de escopo limitado para assegurar sua validade
Quando recorre apenas a verdades gerais (a priori)
Proposição analítica
Sua vericação envolve o recurso de leis gerais da lógica e denições ormais
Quando se undamenta em verdades particulares, não demonstráveis (a posteriori)
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Quadro 1: Propriedades das proposições (SILVA, 2007, p. 133)
Dando continuidade ao pensamento da corrente Logicista, encontramos o matemático e lósoo Bertrand Russell. Silva (2007, p. 134) diz que Russell não oi tão pessimista quanto Frege sobre o destino do programa logicista. Seu pensamento pode ser contemplado no seguinte trecho: A matemática é um estudo que, quando iniciado de suas partes mais amiliares, pode ser levado a eeito em duas direções opostas. A mais comum é construtivista, no sentido da complexidade gradativamente crescente: dos inteiros para as rações, os números reais, os números complexos, da adição e multiplicação para a dierenciação e integração e daí para a matemática superior. A outra direção, que é menos amiliar, avança, pela análise, para a abstração e a simplicidade lógica sempre maiores; em vez de indagar o que pode ser defnido e deduzido daquilo que se admita para começar, indaga-se que mais ideias e princípios gerais podem ser encontrados, em unção dos quais o que ora o ponto de partida possa ser defnido ou deduzido. É o ato de seguir essa direção oposta é que caracteriza a Filosofa da Matemática, em contraste comum com a matemática (RUSSELL, 1981, p. 9, apud SILVA, 2007, p. 135). Note-se que, no trecho acima, apesar de extenso, há espaço para a inspiração adequada para nossa discussão. Observamos a distinção do termo construtivismo em Matemática. Russell az indicações concretas a respeito da necessidade de construção
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progressiva dos conceitos matemáticos, passo a passo. Neste sentido, destaca o papel da abstração humana como a capacidade ontológica do indivíduo que proporciona determinados saltos, avanços e retrocessos qualitativos do indivíduo. Nesse sentido, Russell (1981, p. 9) salienta que os antigos geômetras gregos ao passarem das regras de agrimensura empíricas egípcias e proposições gerais pelas quais se constatou estarem aquelas regras justifcadas, e daí para os axiomas e postulados de Euclides, estavam praticando a Filosofa da Matemática . Por outro lado, uma vez atingido os axiomas e postulados, o seu emprego dedutivo, como testemunhamos em Euclides, pertencia à matemática no sentido comum. A distinção entre matemática e flosofa da matemática depende do interesse que inspire a pesquisa e da etapa por esta atingida e não das proposições às quais a investigação esteja aetada (RUSSELL, 1981, p. 9). Russell, considerado um lósoo logicista, ressaltava alguns aspectos que deveriam ser tomados com vigilância pelos próprios logicistas. Em suas palavras, percebemos alguma destas ressalvas: Uma vez toda a matemática pura e tradicional reduzida à teoria dos números naturais, o passo seguinte na análise lógica, oi reduzir essa própria teoria ao menor conjunto de premissas e termos não defnidos dos quais se pudesse ser derivada. Esse trabalho oi realizado por Peano. Ele mostrou que toda a teoria dos números naturais podia ser derivada de três ideias primitivas e cinco proposições primitivas, além daquelas da Lógica pura. Essas três ideias e cinco proposições tornaram-se, desse modo, por assim dizer, as garantias de toda a matemática pura. Seu “peso” lógico, caso se possa usar tal expressão, é igual ao de toda a série de ciências deduzidas da teoria dos números naturais; a verdade das cinco proposições primitivas, desde que, naturalmente, nada haja de errôneo no aparato lógico também envolvido (1981, p. 12).
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A principal tese logicista oi deendida por Russell, Whitehead , na undamental obra Principia Mathematica. O autor pretendia derivar as leias da Aritmética e, de resto, toda a Matemática, das leis da Lógica normativa elementar. Muito cedo, porém, a Lógica aristotélica, mesmo incorporando os desenvolvimentos de Leibniz, bem como os que seguiram, mostrou-se pequena demais para tal tarea (MACHADO, 1994, p. 27). Neste sentido, Machado (1994) aponta os seguintes objetivos propostos pelos logicistas: a) todas as proposições matemáticas podem ser expressas na terminologia lógica; b) todas as proposições matemáticas verdadeiras são expressões de verdades lógicas.
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Cury (1994, p. 54) menciona que alguns dos logicistas mereceram destaque, como Russell e Whitehead. Cury chama atenção para o coroamento das pesquisas de vários matemáticos que antecederam os logicistas. Neste sentido, destacamos o simbolismo exagerado e a ormalização presentes na obra escrita por Russell intitulada Principia Mathematica mostram que, para os seus autores, a matemática existe em um “céu platônico”, desligada dos problemas humanos. Cury (1994, p. 54) destaca, no entanto que: [...] a tentativa de Russell e Whitehead de mostrar que a matemática clássica pode ser reduzida à Lógica não estava completa. Para evitar os paradoxos e as críticas que surgiam à sua obra, Russell teve que edifcar a teoria dos tipos e assumir o axioma do infnito, que não tem caráter lógico estrito, pois é uma hipótese sobre o mundo real. Assim, o programa logicista não teve êxito em sua tentativa de assegurar a visão absolutista da matemática.
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No nal de sua vida, Russell abandonou a visão platônica em que se apoiara nos seus trabalhos iniciais, talvez pelo desencanto em relação às possibilidades de undamentar a matemática (CURY, 1994, p. 54). Machado (1994, p. 27) salienta que: A Lógica elementar contém regras de quantifcação que provêem a matemática de instrumental efciente quando se trata de rases onde esteja bem-estabelecida a caracterização do indivíduo e do atributo, distinção essa que sabemos de raízes aristotélicas. Entretanto, ela não admite, sem enrentar difculdades, regras de quantifcação para expressões bem-ormadas onde atributos são tratados como indivíduos. Assim, rases do tipo “todos os indivíduos i têm o atributo A” ou “existe um indivíduo i que tem o atributo A” não oerecem problemas; mas rases como “todos os atributos A têm o atributo B” ou “existe um atributo A que tem o atributo B” conduziriam a difculdades lógicas. Machado (1994) discute o Paradoxo de Russell, que consiste em uma situação contraditória descoberta por Bertrand Russell em 1901 e que prova que a teoria de conjuntos de Cantor e Frege é contraditória. Consideramos então o conjunto M como denido “conjunto de todos os conjuntos que não se contêm a si próprio como membro. Empregando a notação matemática, escrevemos A é elemento pertencente de M se, e somente se, A não é elemento de A, ou seja, M := {A ; A Ï A} . No sistema concebido por George Cantor, M é um conjunto bem denido. A questão que se apresenta diz respeito da possibilidade de M conter-se a si mesmo?
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Ora, se as resposta é sim, não é membro de M, de acordo com a denição estabelecida há pouco. Por outro lado, supondo que M não se contém a si mesmo, tem de ser membro de M, de acordo mais uma vez com a denição de M. Deste modo, as armações “M é membro de M” e “M não é membro de M” conduzem ambas a inconsistências e contradições. Já no sistema devido a Frege, M corresponde ao conceito e não recai no conceito de sua denição. O sistema de Frege conduz ainda a outras contradições. Para concluir, vamos recordar o Paradoxo do Barbeiro de Sevilha. Tal paradoxo é explicado a partir da Lógica e da Teoria dos Conjuntos. O paradoxo envolve uma aldeia onde, todos os dias um barbeiro az a barba de todos os homens que não se barbeiam a si próprios e a mais ninguém. Ora, tal aldeia pode existir? O raciocínio nos conduz a duas possibilidades: i) se o barbeiro não se barbeia a si mesmo, então terá de azer a barba de si mesmo; (ii) se o barbeiro se barbear a si mesmo, de acordo com a regra estabelecida, ele não pode se barbear a si mesmo. A regra anterior caracteriza uma situação indecidível . O paradoxo costuma ser atribuído a Bertrand Russell, um matemático britânico que no ano de 1901 elaborou este paradoxo para demonstrar a natureza auto-contraditória e inconsistente da teoria dos conjuntos estruturada por Cantor. Não nos deteremos de modo aproundado nestas questões que exigem um conhecimento aproundado de lógica e noções e programação. Machado (1994, p. 27) discute outro paradoxo: Consideremos o conjunto cujos elementos são os catálogos de livros (indivíduos). Diremos que um catálogo é normal (atributo) se ele não se incluir entre os livros que cita; se ele se incluir, será anormal. Consideremos, agora, o conjunto de todos os catálogos normais e organizemos o catálogo de todos os catálogos normais (indivíduo?). Este catálogo será normal ou anormal? Se ele or normal, ele não se incluirá, por defnição deste atributo e, portanto, deverá se incluir uma vez que é o catálogo de todos os catálogos normais, sendo, consequentemente, anormal. Se ele or anormal, ele se incluirá e, portanto, será normal, uma vez que só inclui os normais. E agora?.
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Por oposição de superação destes e outros entraves, identicamos na história o surgimento de outra corrente losóca que, em determinados aspectos, sustentava a superação dos entraves logicistas. Assim, observamos o surgimento do ormalismo, uma das correntes que mais repercutiu no ensino de Matemática (CURY, 1994). Segundo Ernest (1991, p. 10), o ormalismo é uma visão da matemática como
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um jogo ormal sem sentido, constituído de marcas no papel, seguindo regras. O seu maior proponente oi David Hilbert. A corrente ormalista teve em Kant prounda inspiração, assim como em Leibniz, que na sua lógica undou o logicismo. Para Kant, o papel que a lógica desempenha é semelhante ao papel em qualquer outro setor do conhecimento. Podemos caracterizar um pressuposto ormalista a partir das considerações de Machado (1994, p. 29) quando observa que tal corrente: Considera que, sem dúvida, em matemática, os teoremas decorrem de axiomas, de acordo com as leis da lógica. Nega, no entanto, que os axiomas constituem eles mesmos princípios lógicos ou conseqüências, de tais princípios. Admite, isto sim, que eles sejam descritivos da estrutura dos dados da percepção sensível, em particular, do espaço e tempo.
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Seu maior ícone oi David Hilbert (1862 — 1943), um matemático alemão que contribuiu a matemática com ideais inovadoras que se espalharam em diversas áreas da matemática. Nasceu na cidade de Könisberg, atualmente Kaliningrado, onde teve seu período de estudos acadêmicos na Universidade de Könisberg. No ano de 1895 oi nomeado para a universidade de Göttingen, onde lecionou até sua aposentadoria, em1930. David Hilbert é requentemente considerado como um dos maiores matemáticos do século XXX, no nível comparado do de Henri Poincaré. Devemos a ele a lista amosa de 23 problemas, alguns dos mesmos sem solução até os dias de hoje, que Hilbert apresentou em 1900 no Congresso Internacional de Matemáticos em Paris. Hilbert adotou as ideias de Kant em seu ambicioso programa prático que caracterizou o ormalismo. Grosso modo, undamentava-se da seguinte orma: a) A Matemática compreende descrições de objetos e construções concretas, extra-lógicas; b) Tais construções e estes objetos deve ser enlaçados em teorias ormais em que a Lógica é o instrumento undamental; c) O trabalho do matemático deve consistir no estabelecimento de teorias ormais consistentes, cada vez mais abrangentes até que se alcance a ormalização completa da Matemática. (MACHADO, 1994, p. 29) Mais adiante, Machado (1994) levanta as seguintes questões: - Em que consiste uma teoria ormal? - A que objetos ou construções se reerem às teorias ormais? - O que signica ser uma teoria ormal consistente? - O que signica ormalização completa?
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Machado (1994, p. 30) responde que uma teoria ormal consta de termos primitivos, regras de ormação de órmulas a partir delas, axiomas ou postulados, regras de inerências e teoremas . De modo esquemático, vemos o diagrama proposto na Figura 1, em que o autor descreve a organização epistemológica de uma teoria.
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Figura 1: Teoria formal segundo Machado (1994, p. 30)
Machado (1994, p. 30) explica o diagrama acima ao esclarecer que: Os termos primitivos descrevem os objetos concretos de que trata a teoria. As regras de ormação de órmulas organizam o discurso a respeito destes objetos, distinguem as órmulas bem-ormadas das que carecem de signifcado. Os axiomas são as verdades básicas, iniciais, que devem se apoiar na evidência empírica. As regras de inerência determinam as inerências legítimas e distinguem, dentre as órmulas bem-ormadas, as que constituem os teoremas, que são verdades demonstráveis a partir dos axiomas, em última análise. Como se sabe, o sistema ormal elaborado por Euclides para a Geometria, durante mais de dois mil anos, permaneceu soberano como descritivo da estrutura perceptual do espaço. Tendo como termos primitivos as noções de ponto, reta e plano, Euclides enunciou os cinco postulados para este sistema ormal: P 1 : É possível traçar uma linha reta de qualquer ponto a qualquer ponto; P 2 : Qualquer segmento de reta nito pode ser prolongado indenidamente para constituir uma linha reta; P 3 : Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer, pode-se traçar um círculo de centro naquele ponto e raio igual à distância dada; P 4 : Todos os ângulos retos são iguais entre si;
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P 5 : Se uma reta cortar duas outras de modo que os dois ângulos interiores de um mesmo lado tenham soma menor que dois ângulos retos, então as duas outras retas se cruzarão, se prolongadas indenidamente, do lado da primeira reta em que se encontram os dois ângulos citados.
A 2 T 1 Figura 2: Interpretação do 5º postulado euclidiano por Machado (1994, p. 31)
Ainda com reerência ao trabalho erigido por Euclides, destacamos o trecho interessante do trabalho de Machado (1993, p. 103) quando explica que:
Machado (1994, p. 32) explica ainda que Euclides assumiu outros cinco princípios de caráter mais geral, de natureza que julgava lógica e que seriam utilizados em todas as matérias. Estes princípios ele chamou de axiomas: A1 : Duas coisas iguais a uma terceira coisa são iguais entre si; A2 : Se parcelas iguais orem somadas a quantias iguais os resultados obtidos serão iguais; A3 : Se quantias iguais orem subtraídas de quantias iguais, os restos obtidos serão iguais;
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A4 : Coisas que coincidem umas com as outras são iguais entre si; A5 : O todo é maior do que cada uma das partes. Machado (1994, p. 32) sublinha que a ideia subjacente à fxação dos postulados e axiomas é que eles sejam de tal modo evidentes que ninguém deles duvide. E a partir deles que todos os atos geométricos, todos os teoremas são demonstrados. Por outro lado, um problema proundo de natureza losóca diz respeito ao caráter de “evidência” atribuído aos axiomas e postulados. Neste sentido, Machado (1994, p. 32) sublinha que: A análise da afrmação do 5º postulado perturbou a muitos matemáticos desde o início, uma vez que ele parecia menos evidente que os demais, anômalo em algum sentido que não era explicitamente percebido. Na verdade, o 5º postulado parecia um teorema como os inúmeros demonstrados por Euclides e não altaram candidatos, ao longo dos séculos, a tentarem demonstrá-lo a partir dos outros quatro.
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O problema maior apontado no trecho acima diz respeito ao caráter não tão evidente do 5º postulado. Como consequência deste caráter de incredibilidade e alta de consenso da comunidade, não altaram candidatos, ao longo dos séculos, a tentarem demonstrá-lo partir dos outros quatro (MACHADO, 1994, p. 32). Como essa ideia se mostrou impraticável e tratou-se de uma tarea não trivial, os esorços se modicaram na tentativa de substituição do 5º postulado por outro enunciado de natureza mais simples ou evidente. Todavia, tais iniciativas mostraram que existem muitos outros princípios geométricos capazes de substituir o 5º postulado, sem que o sistema ormal (Figura 1) perca qualquer de seus teoremas (MACHADO, 1994, p. 32). A partir daí, a História da Matemática descreve o advento das Geometrias Não Euclidianas. Nestas novas geometrias, coisas estranhas e propriedades que contrariam nossos sentidos, erigidos a partir dos modelos euclidianos, são exploradas. Por exemplo, podemos recordar o problema que descreve que partindo de um ponto da Terra, um caçador andou 10 km para Sul, 10 km para Leste e 10 km para Norte, voltando assim ao ponto de partida. Aí encontrou um urso. Qual a cor do urso? À primeira vista, podemos imaginar que esta situação problema não possui solução e, portanto, o caçador não retornaria ao ponto de partida, como mostra o esquema da gura 3. No entanto, não podemos esquecer o ato de que a Terra não é uma superície plana, mas curva. Assim, a solução está à vista: andando 10Km segundo aquelas três direções perpendiculares, o caçador só voltará ao ponto inicial de partida se iniciar sua caminhada no Pólo Norte. Mas enquanto ao urso?
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Com a história toda se desenvolve no Pólo Norte, só pode ser um urso polar e por isso um urso de cor branca. Toda a diculdade na solução deste problema passa pelo ato de pensarmos na Geometria sobre um plano. Note-se que desde o século passado, com o aparecimento de Geometria Não Euclidiana, surge uma nova solução para este problema.
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Figura 3: O problema do urso polar envolvendo noções de geometrias não euclidianas
.
Vamos pensar ainda que o caçador está no Pólo Sul e a Terra possui círculos concêntricos, com comprimentos distintos. Um desses círculos terá 10 km de comprimento então, qualquer que seja o ponto, situado a 10km para a direção norte desse círculo, satisará as condições e exigências do problema inicial. De ato, o caçador anda 10 km para a direção Sul e chega a esse circulo; em seguida anda 10km para a direção Leste e dá uma volta completa; ao andar 10km para a direção Norte, retorna ao mesmo ponto de origem. Nesta nova solução esta ainda o urso, todavia, não existem ursos no Pólo Sul. Se bem que os ursos não tem relação alguma com a Matemática, tem? No século XVIII, o matemático italiano Sachieri ez outro tipo de tentativa: em vez de demonstrar o 5º postulado de Euclides, a partir dos demais postulados ou de propor um substituto mais evidente, ele investigou a independência deste postulado em relação aos outros quatro (MACHADO, 1994, p. 33). Seu plano é descrito por Machado (1994, p. 33) do seguinte modo: [...] era admitir os quatro primeiros postulados e negar o 5º postulado, para eeito de discussão, considerando o novo sistema ormal resultante. Naturalmente ele [Sachieri] esperava, com este novo sistema, chegar
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a absurdos, a contradições que revelassem a necessidade ormal do 5º postulado. No entanto, curiosamente, Sachieri não obteve o que esperava, não deparou com nenhuma inconsistência, tendo, isto sim, demonstrado muitos resultados considerados “estranhos” e que se caracterizariam, mais tarde, como os teoremas de uma nova Geometria.
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Na sequencia, exibimos a Figura 4, na qual visualizamos alguns dos resultados emblemáticos da Geometria euclidiana que podem não ser esperados nas Geometrias não euclidianas, como a propriedade que diz que a soma dos ângulos internos de um triângulo vale dois ângulos retos conorme demonstrada por Euclides.
Figura 4: Um triângulo nas geometrias não euclidianas
Assim como o ormalismo, o intuicionismo tem raízes em Kant e Brouwer. Nesta corrente losóca, a intuição resultante da introspecção resulta em evidenciar a verdade das proposições matemáticas e não a observação direta de objetos externos (MACHADO, 1994, p. 39). Em relação ao intuicionismo, encontramos na literatura que essa escola: [...] parte do pressuposto contrário ao dos logicistas, pois considera que há algo errado com a matemática clássica. Pensavam, então, os intuicionistas, em reconstruí-la desde os alicerces e, para isso, só aceitavam a parte da matemática construída a partir dos números naturais (CURY, 1994, p. 55). Machado (1994, p. 39) esclarece que, para os intuicionistas, a Matemática é uma atividade totalmente autônoma, autossuciente. A pretensão dos logicistas de
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reduzi-la à logica ou dos ormalistas de alcançar uma ormalização rigorosa resulta em mal entendidos undamentais sobre a natureza da matemática. Para Brouwer, os ormalistas concebiam a Matemática como constituída de duas partes: um conteúdo especíco, autônomo e uma linguagem que dependia, para o seu crédito, da Lógica. Por outro lado, o ponto de vista do intuicionismo, é: [...] o de que a matemática é uma construção de entidades abstratas, a partir da intuição do matemático, e tal construção prescinde de uma redução à linguagem especial que é a lógica ou de uma ormalização rigorosa em um sistema dedutivo. Admitem os intuicionistas a utilidade dos sistemas ormais, mas os consideram produtos acessórios resultantes de uma atividade autônoma, construtiva. E, com certo desprezo, atribuem à linguagem matemática uma unção essencialmente pedagógica (MACHADO, 1994, p. 40).
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Para concluir esta seção, destacamos que esta corrente losóca soreu vários reveses, parte deles oram assentados em atos matemáticos que aparentemente resultavam de contradições em relação às inormações obtidas por intermédio da intuição matemática. Em outras aulas, nos deteremos um pouco mais na compreensão de uma habilidade cognitiva que chamamos de intuição, e que proporciona uma atitude losóca na Matemática. Na próxima seção, dierenciaremos e traçaremos algumas críticas e distorções ao ensino de Matemática que assume o pressuposto construtivista.
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O CONSTRUTIVISMO NA MATEMÁTICA E O CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO
OBJETIVO
Conhecer aspectos do “construtivismo” matemático e os fundamentos da teorização de Piaget e suas implicações para o ensino.
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esta aula abordaremos uma palavra recorrentemente explorada e aplicado em situações e domínio epistêmicos completamente distintos dos quais eetivamente se originou. De ato, o termo “construtivismo” se espalhou com tanto vigor que na atualidade não se encontra ninguém não se autodenomine um construtivista. O equívoco acadêmico diz respeito ao desconhecimento de dois pressupostos losócos. O primeiro é o construtivismo no seio da própria Matemática e o segundo, mais popularizado, o construtivismo piagetiano. Para compreendermos um pouco mais do primeiro a ponto de distingui-lo do segundo, destacamos Machado (1994, p. 41) quando comenta os principais elementos inconsistentes e que receberam críticas das correntes absolutistas da Matemática do seguinte modo: O logicismo pretendeu undar a matemática nas leis gerais do pensamento sem que nunca penetrasse nas características específcas,
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na gênese dessas leis lógicas. O ormalismo pregou que os sistemas ormais, que utilizavam essas mesmas leis, constituiriam em si o objeto da matemática, independentemente de suas interpretações. Mas também não deu grandes passos no sentido de investigar o mecanismo que possibilita a concordância, mais cedo ou mais tarde, destes sistemas abstratos com o real através das interpretações. O intuicionismo deixou em permanente penumbra a dinâmica das intuições que conduziam os matemáticos à criação de seu mundo autônomo. Nunca esclareceu o modo como se mesclavam as concepções a priori sobre o espaço e o tempo e as construções dos matemáticos.
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De modo semelhante ao discutido por Ermest (1991), neste trecho acima Machado aponta de modo consistente os pontos mais delicados das correntes que discutimos na seção anterior. Ademais, Machado (1994) insere nesta discussão as ormulações de Piaget, todavia, antes de discutirmos seu ponto de vista, torna-se imperioso compreendermos a corrente losóca construtivista pertencente à Filosofa da Matemática, que se dierencia de modo substancial do construtivismo piagetiano. Neste sentido, Ernest (1991, p. 11) declara que o programa construtivista diz respeito à reconstrução do conhecimento matemático (e reormulação da prática ATENÇÃO! matemática). Seu objetivo caracterizou-se por rejeitar argumentos não construtivistas, tais como os argumentos O princípio do Terceiro Excluído de Cantor relacionados a não enumerabilidade do conjunto diz que uma proposição pode ser verdadeira se não for falsa e só pode ser dos números reais, e as leis da lógica relacionada ao falsa se não for verdadeira. Princípio do Terceiro Excluído. Os construtivistas da Matemática mais conhecidos oram Brouwer e Arend Heyting (1898-1980) que oi um matemático holandês. Ademais variadas dimensões do construtivismo podem ser identifcas hoje em dia (ERNEST, 1991, p. 11). Esta corrente losóca reúne matemáticos que acreditam que a Matemática clássica necessita ser reconstruída a partir de métodos e raciocínio adequado. Os construtivistas assumem que tanto as verdades matemáticas como os objetos existentes da matemática precisam ser estabelecidos por meio de métodos construtivos (ERNEST, 1991, p. 11). Ernest (1991, p. 12) explica que, considerando a clássica demonstração de existência matemática em demonstrações, deve-se de modo similar demonstrar a necessidade lógica da existência, e uma prova construtiva da existência pode mostrar como construir o objeto matemático cuja existência é deendida . Por outro lado, os
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construtivistas não demonstraram que existem problemas inescapáveis diante de problemas clássicos de matemática (ERNEST, 1991, p. 12). Todavia, de modo semelhante às outras correntes losócas absolutistas, a perspectiva construtivista na Matemática, em alguns resultados, mostrou-se inconsistente em relação a alguns resultados da Matemática clássica. Com respeito a esta tendência vericada, Jairo (2007, p. 143) esclarece: Considerando a linguagem e os métodos caracteristicamente construtivos da matemática grega, o construtivismo remonta à Antiguidade Clássica. Mas como uma flosofa da matemática, em particular uma ontologia e uma epistemologia, ele é mais moderno; Kepler oi talvez o primeiro a dizer explicitamente que uma fgura geométrica não construída não existe. Mas o pioneiro na elaboração de uma flosofa construtivista da matemática oi Kant e, de um modo ou de outro, todos os flósoos da matemática de orientação construtivista são seus herdeiros.
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Kant não hesitou em negar como matemática tudo aquilo que não osse atual ou potencialmente construído, neste sentido, as raízes quadradas de números negativos oram seriamente evitados. Segundo o próprio Kant, essas raízes são pseudonúmeros, por não admitirem exemplifcação intuitiva (SILVA, 2007, p. 143). No entanto, oi no nal do século XIX, primeiras décadas do século XX, que o construtivismo ganhou maior vigor na comunidade de matemáticos. Jairo (2007, p. 145) comenta ainda que: Construtivistas, como Poincaré e Brouwer, preeriam deixar Deus e a lógica para apelar para a intuição humana. Eles acreditavam que é no interior da consciência humana e suas vivências que os números naturais se constituem e suas verdades se undamentam. Não há, segundo eles, como defnir esses números em termos mais elementares. Poincaré, além de ridicularizar todo o projeto logicista, criticou, como mencionamos há pouco, as tentativas de Dedekind de defnir o conceito de número natural. São esses os herdeiros legítimos de Kant. Até o momento já dispomos de elementos teóricos que nos permitirão comparar o construtivismo piagetiano com o construtivismo na Matemática. Provavelmente o que ambos possuem de comum é a identicação de elementos essenciais pertencentes à cognição humana que precisam ser ativados e estimulados de modo conveniente (MAIO, 2002) para que possamos esperar uma razoável aprendizagem. O construtivismo piagetiano apresenta várias distorções no contexto de ensino
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aprendizagem, apesar de seus pressupostos iniciais indicarem elementos dierenciados de natureza epistemológica e losóca. Seu principal expoente oi Jean Piaget (1896-1980), que sempre maniestou proundas inspirações no conhecimento matemático. Para ele, as soluções clássicas do problema da relação da Matemática com a realidade se encerravam no dilema: ou a matemática se impõe, a priori, à realidade empírica, ou a matemática é construída a partir de construções abstratas que emergem da realidade (MACHADO, 1994, p. 42). Machado (1994, p. 42) explica o dilema piagetiano ressaltando: Em outras palavras, as soluções clássicas do problema da relação da matemática com a realidade se encerram no dilema: ou a matemática se impõe, a priori, à realidade empírica, ou a matemática é construída a partir de construções abstratas que emergem desta realidade. Em outras palavras, as soluções caracterizam ou uma proeminência do sujeito do conhecimento ou uma proeminência do objeto do conhecimento, permanecendo presas a esta dicotomia.
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Piaget, dierentemente de muitos pontos de vista passados, propôs que a relação da Matemática com a realidade não possa se undar no sujeito pensante (apriorismo) e nem apenas no objeto pensado (empirismo), mas numa interação intensa entre sujeito e objeto. Todavia, não podemos destacar esta atitude como original, afnal todas as soluções anteriores, poderiam, pelo menos enquanto discurso, se pretender captando tal interação (MACHADO, 1994, p. 42). Machado (1994, p. 42) acrescenta que: A originalidade da posição de Piaget consiste na situação da interação sujeito-objeto no interior do sujeito. Por esta via, elege, naturalmente, a Psicologia como seu undamental instrumento para as explicitações desta interação. Não uma psicologia qualquer, mas a Psicologia Genética [...]. A utilização da Matemática em todos os seus estudos é muito marcante. Observamos a relevância dessa área do conhecimento, a partir das próprias palavras de Piaget, que caracteriza os objetivos de uma pesquisa ao mencionar que: O objetivo desta nota não se trata de elaborar um novo procedimento de cálculo logístico, mas unicamente de pesquisar se as operações de adição e subtração, próprias da Álgebra e da Lógica, são suscetíveis, uma vez colocadas sob orma de igualdade, de abricar um verdadeiro grupo. A única novidade, do ponto de vista do cálculo lógico, é de ter
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generalizado a operação inversa da adição: a “subtração lógica”, interpretando o que os logicista chamam de “negação” (PIAGET, 1937, p. 99, tradução nossa.) No excerto acima, identicamos o vocábulo conhecido na Matemática como “grupo”. Mais adiante no mesmo artigo, o próprio Jean Piaget discute propriedades ATENÇÃO! especicas relacionadas com a noção de grupo quando menciona: Em Matemática o conceito de Grupo é dado como um conjunto de elementos Cremos ter encontrado analogias de estruturas do que associados a uma operação que concerne a composição, a associatividade e inversas. Quanto combina dois elementos quaisquer à operação idêntica, uma dierença undamental se opõe para formar um terceiro elemento Para se qualificar um grupo, o conjunto e ao grupo lógico com respeito aos grupos aritméticos: cada a operação devem satisfazer algumas igualdade desempenha um papel idêntico com respeito à condições chamadas de axiomas de igualdade de ordem inerior. Esta oposição, que se relaciona grupo: associatividade, identidade e com respeito ao bloqueio de classes umas sobre as outras na existência de elementos inversos. A ubiquidade dos grupos em inúmeras ausência de interação na lógica mostra que muito dierente áreas – dentro e fora da matemática – os tornam um princípio central nas possível entre os dois tipos de grupos, e destacamos outras (PIAGET, 1937, p. 100, tradução nossa). ciências.
É patente o emprego constante de Piaget de estruturas matemáticas para a descrição/ compreensão de várias operações cognitivas de pensamento da criança. Parece-nos um ponto de vista bastante equivocado tentar apresentar a teoria elaborada por este pensador ao uturo proessor de Matemática sem alar/relacioná-la com a própria Matemática. Neste sentido, destacamos um trecho de um artigo de Jean Piaget relacionado com as relações de igualdade algébrica estabelecidas pela criança.
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Para concluir, Machado (1994, p. 43) destaca as proundas preocupações de Piaget com a Matemática ao declarar que: Grosso modo, sua proposta é de undar a lógica nessa moderna Psicologia, científca e objetiva. Ele pretende que, em sua origem, as operações lógico-matemáticas procedam diretamente das ações mais gerais que podemos exercer sobre objetos ou grupos de objetos. Elas consistem em estabelecer correspondências contar, reunir, associar, dissociar, ordenar, etc. A gênese das operações lógico-matemáticas deve ser buscada, segundo ele, neste aspecto de atividade coordenadora das ações ísicas mais elementares.
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Deste modo, a perspectiva losóca de Piaget pode ser descrita do seguinte modo, no que diz respeito ao desenvolvimento da Matemática: 1) os entes matemáticos originam-se da coordenação das ações ísicas mais gerais que o sujeito exerce sobre o objeto; 2) desta ligação, tais entes se distanciam mais e mais do objeto concreto, entretanto, conservam o poder de reunirem ao objeto, de se reencontrarem com a realidade imediata em todos os níveis, de dizerem respeito à realidade, por mais alto que seja o vôo alcançado. Mais adiante, Machado (1994, p. 43) levanta algumas questões de ordem losóca: a) Como, apesar deste aastamento da realidade, o pensamento matemático segue ecundo? b) O que possibilita este constante acordo com a realidade? Qual a condição de possibilidade de tal compatibilidade? Piaget responde alguns destes questionamentos quando declara que o pensamento matemático é ecundo porque, ao ser uma assimilação do real às coordenadas gerais da ação, é, essencialmente, operatório (PIAGET, 1978, apud MACHADO, 1994, p. 44). Assim, alguns de seus pressupostos envolvem a intenção de explicar as operações de composição das ações básicas em novas ações mais complexas que se estabelecem e se sobrepõem às anteriores, na dependência de um caráter de operacionalidade. Para Piaget, é inexato dizer que os entes matemáticos e as estruturas matemáticas se ormam a partir do objeto isolado. Para ele, o pensamento matemático em relação à realidade ísica: É criação e agrega a ela em lugar de abstrair algo ou de extrair sua matéria... antecipa experiências, em alguns casos, antes que se produzam, e lhes proporciona marcos antes que a idéia de tais experiências haja germinado no pensamento (PIAGET, 1978, apud, MACHADO, 1994, p. 44).
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Na Figura 5 abaixo, descrevemos as relações que podem ser estabelecidas entre o sujeito do conhecimento (indivíduo) e um objeto matemático. Note-se que vários pensadores discutem as ormas (dimensão losóca) e maneiras da ocorrência de um enômeno (dimensão cognitiva) que conhecemos por abstração matemática, que, depois da perspectiva piagetiana, passou a ser melhor compreendido.
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Figura 5: Relações estabelecidas entre sujeito e objeto matemático diante à realidade
Machado (1994, p. 46) exalta o ponto de vista original piagetiano quando declara que: O ato de Piaget ter concentrado seus esorços na Psicologia teve como conseqüência uma aparência de maior aproximação de seu trabalho da prática docente o que conduziu a diversas tentativas de undamentação de uma didática para a matemática. Entretanto, o superdimensionamento da componente psicológica da atividade didática, em detrimento de outros atores, requentemente mais proeminentes, é um dado que compromete tais tentativas, por não ser circunstancial, mas sim inteiramente decorrente da visão piagetiana da relação da matemática com a realidade. Para concluir esta aula, destacamos que, no ambiente da ormação de proessores, muito se ala a respeito do construtivismo piagetiano e nada se comenta ou se discute a respeito do construtivismo na Matemática. Com relação a este ato é necessário estabelecer alguns pontos de vigilância. Com relação ao primeiro ponto, evidenciamos com preocupação o discurso retórico a respeito do construtivismo piagetiano no ambiente de ormação, todavia, como vimos em alguns exemplos, Piaget apoiou ortemente sua teoria na Matemática e desenvolveu raciocínio metaóricos e analogias entre as operações cognitivas e as
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estruturas algébricas matemáticas (MAIO, 2002). Desse modo, sem dispor de uma ormação razoável em Matemática. não se pode esperar compreender Piaget. Ademais, as pessoas costumam valorizar a ace visível da Matemática, e neste sentido, a dimensão lúdica recebe destaque, entretanto a beleza ou curiosidade realçada por um educador adquire sentido na medida em que compreendemos também o modelo lógico-matemático que reside nestas aplicações, alias, observamos com requência exemplos de aplicações supérfuas que, no nal das contas, em nada acrescentam ao conhecimento do uturo proessor de Matemática. O segundo ponto que requer vigilância se reere à necessidade de adquirirmos um “olhar losóco” do conhecimento matemático. De ato, observamos vários exemplos de pensadores que destacam a ‘beleza’ do saber matemático quando vislumbrado por meio de uma perspectiva losóca, embora o domínio do conteúdo seja ainda uma condição imprescindível para esta visão losóca. O terceiro ponto que requer vigilância se relaciona com os desdobramentos e consequências das correntes flosófcas ( ormalismo, logicismo e intuicionismo) que discutimos nas seções anteriores. Veremos que algumas delas mostraram-se mais marcantes do que outras e conseguiram um espaço maior de infuência, tanto no que diz respeito à atitude do proessor, quanto ao que pode ser relacionado à sua práxis em sala de aula. Algumas destas “distorções” e “incongruências” no ensino de Matemática são determinadas, em maior ou menor parte, por algumas dessas correntes losócas. Nesse ponto, identicamos um discurso acadêmico, ancorado em conhecimentos que apresentam campos epistêmicos distintos da própria Matemática, todavia empregados de modo inadequado e supercial para explicar/ signicar/compreender as distorções no ensino desta ciência. Para encerrar, salientamos nesta aula a discussão em torno das correntes losócas absolutistas da Matemática. Neste rol de posicionamentos losócos, discutimos o construtivismo na Matemática e o distinguimos do construtivismo de Piaget. Com relação a um observador mais atento, as conseqüências destas tendências podem ser observadas no ambiente escolar em nossos dias e não podem ser conundidas com movimentos pedagógicos inerentes às outras áreas do conhecimento.
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Aula 3
Arquimedes e a Noção de Demonstração
Na aula passada, estudamos as correntes absolutistas da Matemática, conhecidas como formalismo, logicismo e intuicionismo. Nesta aula, mostraremos outras correntes filosóficas que, embora tenham apresentado uma origem não necessariamente no seio da Matemática, influenciaram diretamente os matemáticos de vários séculos passados. Duas delas serão destacadas, o nominalismo e o essencialismo. O interessante será a compreensão da práxis do professor que pode se enquadrar numa destas correntes filosóficas.
Objetivo: Reconhecer os aspectos filosóficos relacionados às definições matemáticas. • Identificar as influências das correntes filosóficas no ensino atual de Matemática. • Identificar as características de uma definição matemática vinculando-as ao ensino. •
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SOBRE A NATUREZA DAS DEFINIÇÕES MATEMÁTICAS
OBJETIVOS
Reconhecer os aspectos filosóficos relacionados às definições matemáticas.
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esta aula abordaremos aspectos especícos relacionados ao ensino da Matemática. Fatores que para um observador descuidado podem parecer naturais e de caráter neutro, todavia, recebem ainda infuencia das correntes losócas. Assim, recordamos que uma das diculdades que os alunos enrentam no estudo da Matemática diz respeito à exigência das operações de pensamento realizadas sobre objetos conceituais idealizados, as quais, em muitos casos, são regidas por propriedades extraídas das demonstrações. Parte destes condicionantes é indicada por Maroger (1908, p. 67) ao declarar que: Não é sufciente conhecer os primeiros princípios da especulação matemática e a natureza das demonstrações, é necessário também preocupar-se com as noções, os objetos do pensamento que ormam a matéria do raciocínio. Estes objetos matemáticos são criados por meio das defnições.
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As defnições matemáticas, como Maroger explica, assumem um papel essencial para a compreensão dos objetos da Matemática. E não se pode perder de vista que a compreensão de tais objetos depende do seu caráter sintático, semântico e das propriedades intrínsecas condicionadas pelas suas regras ormais explicitadas a priori ou a posteriori, com reerência ao momento do estabelecimento de suas respectivas denições ormais dentro de uma teoria. Em muitos casos, teoremas, corolários e regras caracterizarão o modo de manipular, calcular, empregar e, de modo essencial, de compreender e raciocinar com determinados objetos. Uma denição matemática condiciona uma determinada manipulação e/ou operação mental. De ato, Maroger (1908, p. 67) explica que a defnição tem precisamente por objetivo assegurar uma especifcação semelhante, de ornecer uma realidade, subjetiva ao menos, no sentido flosófco da palavra, a um objeto do pensamento. Quando denimos axiomaticamente um objeto matemático ou realizamos ormalmente a sua construção, adquirimos a possibilidade de distinguir/dierenciar este objeto denido dos demais. Adquirimos a possibilidade de raciocinar e conjecturar sobre tal objeto, que agora passa a ser um objeto de nosso pensamento, de nossa refexão. Neste sentido, Buet (2003, p. 20) recorda que D´Alembert atribuía importância às denições pois elas abreviam o discurso, e a inexatitude de uma defnição pode impedir a obtenção da verdadeira signifcação da palavra . Por outro lado, em Matemática, não se pode perder de vista que estamos numa espécie de camisa de orça, dentro de um sistema teórico ormal. Assim, seu uso constante a todo o momento é exigido. Em virtude deste ato, devemos car atentos no sentido de respeitar as propriedades previamente existentes ao objeto denido. Acrescentamos que uma única condição, mais absoluta, será requerida para a validade de uma defnição: que esta não implica numa contradição, em outros termos, que o objeto defnido seja possível (MAROGER, 1908, p. 67). Maroger adverte que a criação/estabelecimento de uma defnição matemática, por um lado, não pode ser abusiva, e, por outro, não pode ser comparada à liberdade de um poeta. Ela esta condicionada e amarrada ao sistema teórico em que determinado objeto matemático é denido. Por exemplo, quando nos reerimos ao Cálculo Dierencial e Integral, estamos sujeitos a determinadas regras particulares que se dierenciam das regras peculiares à Álgebra baseada em modelos nitos. Maroger (1908, p. 68) discute uma questão undamental ormulada do seguinte modo: Todos os objetos, todas as noções de especulação matemática, podem ser denidos? Dito de outro modo, não existem noções que sabemos caracterizar o
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mais claro possível e que, portanto, podem permanecer indeníveis, de orma rigorosa? Maroger acrescenta que, depois de Pascal, não se pode mais conceber tal idéia (1908, SAIBA MAIS! p. 68), uma vez que Blaise Pascal (1623-1662) oi um matemático que se destacou, entre outros motivos, pela Blaise Pascal foi um matemático francês sua preocupação demasiada com o papel das defnições em que contribuiu para a sistematização do método científico e a pesquisa em Matemática. Matemática. Com o intuito de enriquecer nossa discussão e extrair algumas implicações relacionadas aos objetos da Matemática, adotamos provisoriamente as distinções assumidas por Maroger. Assim, diremos resumidamente que existem dois tipos de defnições matemáticas. A saber: Defnições matemáticas que necessitam das propriedades características do objeto matemático denido, as quais podemos demonstrar sua existência; Defnições matemáticas que prescindem do objeto denido, sem demonstrar sua existência. Maroger assinala que a dierença entre as duas caracterizações remonta a episódios sobre a história do pensamento matemático e acrescenta ainda que as VOCÊ SABIA? denições do primeiro tipo denem o objeto, enquanto a segunda somente caracteriza-o e são chamadas apenas Henri Poincaré foi considerado por caracterizações. Resumidamente, as defnições, de ato, por muitos como um matemático universal. Com trabalhos nas áreas de são as primeiras e, em termos losócos, são chamadas de: Matemática e Física Teórica. defnições reais, causais, por generação ou genéticas. Veremos que no primeiro caso, em que as defnições requerem a vericação do objeto denido, podem ocorrer diculdades, sobretudo de compreensão, nas situações ordinárias do seu ensino. Por outro lado, um aspecto mencionado pelo autor é que uma defnição é a melhor possível, quando podemos legitimá-la de uma orma mais simples possível (MAROGER, 1908, p. 71). Neste contexto de discussão, vale lembrar que não existe somente uma única orma de se defnir um objeto que lhe é submetido (MAROGER, 1908, p. 71). Assim, dependendo de nossos objetivos, no caso do matemático prossional são investigativos, mas, também, podem ser objetivos com vistas ao ensino, temos a possibilidade de escolher a denição que melhor nos apraz e/ou a denição que proporciona melhores condições ao entendimento. O matemático Jules-Henri Poincaré (1854-1912) maniesta em sua obra prounda preocupação com a compreensão e entendimento dos iniciantes. Dentre os vários
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aspectos que oram objeto de análise por parte de Poincaré (1904), destacam-se suas preocupações relacionadas à intuição matemática e as defnições matemáticas. Poincaré questiona sobre o papel das demonstrações em Matemática, interroga se a compreensão de uma demonstração de um teorema se limita a examinar sucessivamente cada silogismo e constatar que são corretos. Pergunta ainda se no caso de compreendermos uma defnição matemática, se seria sufciente constatar que não se obteria uma contradição com o seu emprego (POINCARÉ, 1904, p. 258). Mais adiante ele sublinha que, para cada palavra, é necessário se acrescentar uma imagem sensível; é necessário que a defnição matemática evoque tal imagem e que a cada passo da demonstração pode-se observar sua evolução. Somente nesta condição ocorrerá a compreensão. (POINCARÉ, 1904, p. 259). Poincaré questiona a posição tradicional de seus contemporâneos ao declarar que para compreender as propriedades que geraram uma defnição, é necessário apelar à experiência ou a intuição, sem o que os teoremas VOCÊ SABIA? seriam pereitamente rigorosos, mas pereitamente inúteis Louis Liard foi Professor da École (POINCARÉ, 1904, p. 263). Entretanto, como encontrar Normal de Paris, lecionava Filosofia e um enunciado conciso que satisaça ao mesmo tempo as Letras. Foi diretor do ensino superior em um ministério francês. regras da lógica e ao nosso desejo de compreender o local novo de uma noção dentro da ciência matemática, e a necessidade de pensar por meio de imagens? Poincaré destaca a importância do raciocínio intuitivo na produção das defnições matemáticas que não podem ser meramente arbitrárias e baseadas puramente em argumentos lógicos. Finaliza dizendo que grande parte das defnições matemáticas, como demonstrou Louis Liard, são verdadeiras construções edifcadas sobre noções mais simples (POINCARÉ, 1904, p. 268). Na tese de doutorado Des défnitions géométriques et des défnitions empiriques , Louis Liard (1846-1917) desenvolve uma prounda refexão sobre os elementos essenciais que constituem as defnições matemáticas. Logo no início do seu trabalho, o reerido autor explica que descrevemos as representações e denimos as ideias. Descrever é determinar a circunscrição de um indivíduo; defnir é determinar a circunscrição de uma idéia. A descrição se az por acidente, e a defnição por meio de essência (LIARD, 1873, p. 7). Liard discute a origem das noções geométricas que derivam da experiência, como podemos observar no seguinte trecho: Em toda fgura existem elementos, os quais se podem encontrar sua origem na experiência, a saber: o conteúdo, o limite e a orma
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do conteúdo, a exterioridade da fgura com respeito ao pensamento. Um teorema enuncia a relação entre uma fgura e uma propriedade geométrica; a defnição nos az conhecer a essência de uma orma determinada. Quando dizemos que a defnição é uma generalização de nossa experiência, queremos dizer generalização entre as noções que compreendem a fgura e sua orma (LIARD, 1873, p. 31)
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Talvez o matemático mais amoso pela criação de “boas” notações tenha sido, segundo Cajori (1929, p. 181), G. W. Leibniz. Num de seus manuscritos, comentados por Couturat (1901, p. 86), Florian Cajori esclarece que os algarismos árabes possuem sobre os algarismos romanos a vantagem de melhor expressar a “gênese” dos números, e em seguida sua defnição, de sorte que sejam mais cômodos, não somente pela orma de escrevê-los, mas também pelo cálculo mental . Cajori recorda que Leibniz mostrou a importância atribuída aos signos e as condições de sua utilidade. A invenção do Cálculo Infnitesimal procede da pesquisa de símbolos os mais apropriados (COUTURAT, 1901, p 87). O matemático conrma a perspectiva de Leibniz sobre a importância capital e a procuidade vantajosa de um símbolo bem escolhido. Veremos agora de que maneira a notação relacionada a uma defnição pode intererir diretamente na aprendizagem e no ensino do Cálculo quando nos atemos a uma análise pormenorizada de natureza losóca. Por exemplo, já comentamos em textos passados que Cauchy e D´Alembert graavam o símbolo de limites como Lim ( x) , enquanto em notação moderna os livros adotam a notação lim x®a (x ) . A vertente losóca essencialista exaltava a dimensão construtiva dos objetos matemáticos. Aristóteles, por exemplo, se reere às defnições matemáticas como uma espécie de discurso, que deve exprimir a essência das coisas. Em sua tese, Buet (2003, p. 29), valendo-se das palavras de Aristóteles, ilustra assim seu ponto de vista: Para conhecer a essência, é necessário encontrar o gênero ao qual pertence à coisa e seu tratamento particular que dierencia esta coisa das outras . Observando este último excerto, quando analisamos um objeto cuja natureza é essencialmente algébrica, identicamos aspectos que não se mostram ausentes em relação a outro objeto de natureza essencialmente geométrica. Em relação a esta última categoria de objetos, Bonnel (1870, p. 28) aponta como uma qualidade essencial de uma defnição geométrica é que a gura, que deve ser denida, seja possível. E acrescenta que, para demonstrar que uma construção é possível, é sufciente explicitar o meio de executá-la. Na Figura 1, destacamos alguns elementos relacionados ao ensino.
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A 3 T 1 Figura 1: Relações identificadas no ensino de Matemática (elaboração própria).
Como consequência da discussão anterior, perspectivamos duas vias possíveis de serem adotadas no ensino. Na primeira via, o proessor de Matemática apresenta uma preocupação maior em discutir os principais aspectos e propriedades (essência) de um objeto matemático particular, só então passará a discutir as condições epistemológicas que propiciam assegurar a existência e unicidade do objeto. Na segunda via, aparentemente a maior preocupação do proessor reside em assegurar a existência de um objeto, mesmo que possa ou não contar com a compreensão dos seus estudantes. Em seguida, o proessor passa a preocupar-se com a essência do objeto. Nota-se que, no ensino acadêmico, identicamos, na maioria dos casos, a predominância da segunda trajetória. De ato, aparentemente, para o proessor do locus acadêmico, é mais “cômodo” ou eciente, explorar existência ® essência . Entretanto, vale recordar que os alunos deste nível de ensino possuem uma fexibilidade cognitiva bem mais elaborada do que estudantes comuns do nível escolar. Lima (2004, p. 44) az uma refexão interessante quando comenta: Isto explica (embora não justifque) a defnição dada no dicionário mais vendido do país. Em algumas situações, ocorrem em matemática defnições do tipo seguinte: um vetor é o conjunto de todos os segmentos de reta do plano que são eqüipolentes a um segmento dado. (defnição por abstração). Nessa mesma veia, poder-se-ia tentar dizer que: “numero cardinal de um conjunto é o conjunto de todos os conjuntos equivalentes a esse conjunto”. Ademais, parece-nos importante lembrar que a atividade demonstrativa, seja ela auxiliada por uma construção geométrica ou não, se estabelece e adquire o caráter
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de validade dentro de um sistema simbólico. Couturat (1901, p. 88), por sua vez, comentou que para Leibniz tais sistemas devem ser concisos: eles são destinados a abreviar o trabalho do espírito, condensando qualquer tipo de raciocínio. A partir daí, vemos a utilidade ou a necessidade em Matemática, na qual os teoremas são, segundo a expressão rancesa de Couturat (1901, p. 88), “abregés de pensée”. Leibniz, citado por Couturat (1901, p. 89) orneceu uma prounda refexão que não pode ser esquecida pelo proessor de Matemática quando sublinhou que a raca capacidade do espírito não pode abranger e nem ser exposto ao mesmo tempo além do que um pequeno número de ideias, nem eetuar de uma única vez mais do que uma dedução imediata e simples. O matemático alemão desenvolveu uma verdadeira teoria da denição, pois os únicos princípios primeiros para Leibniz são as denições. Uma demonstração, para ele, parece um encadeamento de defnições e distingue, na arte de demonstrar, duas outras artes: a arte de defnir (l´art de defnir) e a arte de combinar defnições (l´art de combiner les défnitions) (BUFFET, 2003, p. 31). Como vimos, vários matemáticos e lósoos destacam e caracterizam o papel das denições matemáticas. Outro aspecto que pode ser encarado como uma consequência imediata desta preocupação diz respeito à compreensão que o proessor de Matemática precisa possuir para antever os aspectos positivos e os aspectos negativos, com relação ao entendimento dos estudantes, vinculados à natureza de uma defnição matemática. Ou de outra orma, existem denições mais adaptadas ao ensino do que outras? Existem defnições matemáticas ormais mais intuitivas do que outras? No que se reere à caracterização lógica de uma denição, qual a melhor e mais acessível ao entendimento dos aprendizes? Questionamentos desta natureza são incongruentes com teorias generalistas para o ensino. Por outro lado, quando assumimos desde o início a importância do estudo da losoa própria da Matemática, nos instrumentalizamos com mecanismos mais precisos para a análise de nossa realidade, para compreender a esera de práticas do proessor de Matemática. Vejamos um exemplo no qual evidenciamos de que modo a natureza de uma denição matemática pode intervir diretamente no ensino de Matemática. No ensino ordinário, os estudantes aprendem o conceito e são apresentados à denição ormal de unção bijetora, quando existe uma aplicação : A ® B , de modo que (i) "x, y Î A, com x ¹ y ® (x) ¹ (y) ; (ii) ( A) = B . A primeira é conhecida como injetividade e a segunda propriedade diz respeito à sobrejetividade. Por outro lado, do ponto de vista da lógica, temos outra ormulação equivalente a que descrevemos em (i), declarando que: (iii) "x, y Î A , se (x) = ( y ) ® x = y .
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Se admitirmos (i) como inerência direta, o que descrevemos em (iii) é sua contrarrecíproca. E sabemos que p ® q ( direta ) Û ~ q ® ~ p (contra-recíproca) . O problema metodológico é: Qual das duas ormas de denir uma propriedade da unção : A ® B é mais viável para o ensino do que a outra.? Qual das duas denições envolve uma melhor interpretação geométrica? Por exemplo, se consideramos a denição (i), dados "x, y Î A, com x ¹ y , digamos x < y , poderemos determinar os elementos no plano ´ . Notamos na Figura 2-I que podemos representar suas imagens no gráco. A diculdade é conseguir condições ormais de vericar que (x) ¹ (y) . Muitos matemáticos ormalistas desacreditavam o raciocínio matemático apoiado em guras e desenhos. Por outro lado, para vericar a condição equivalente (iii), necessitamos da condição geométrica descrita algebricamente por (x) = ( y ) . Note-se que na Figura 2 do lado direito, necessitaríamos vericar que não pode acontecer x < y e também que x > y . Nota-se que, no primeiro caso, nossa preocupação metodológica recairá sobre a necessidade de vericar, do ponto de vista lógico, que (x ) < ( y ) ou (x) > ( y ) . Por outro lado, no caso de (iii), o esorço didático recai sobre a necessidade de vericação que não pode ocorrer a condição x < y e também a outra possibilidade x > y . Deste modo, dependendo da denição de injetividade adotada, o proessor enrentará maiores ou menores diculdades metodológicas.
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Figura 2: Representação de funções injetoras (elaboração própria).
De modo semelhante, podemos descrever a condição (ii) ( A) = B por (iv) " y Î B , existe x Î A tal que y = (x ) . Neste caso, a denição ormal de unção sobrejetora trata de uma questão pouco trivial e de conteúdo indiscutivelmente losóca, conhecida como existência de um objeto x Î A , de modo que sua imagem
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realiza o valor numérico, por meio da regra ormal característica da unção geral : A ® B . Sua negação pode ser mais complicada ainda, de ato, na Figura 3, lado esquerdo: Como investigar um possível elemento que nunca poderá realizar a propriedade desejada que declara a igualdade ( A) = B ?
A 3 T 1 Figura 3: Representação de funções sobrejetoras (elaboração própria).
Antes de concluir esta seção, destacamos algumas ponderações de cunho losócas devidas a Lima (2004, p. 60) quando desenvolve as seguintes declarações sobre o conjunto dos números reais intimamente ligadas à noção de existência: Um espírito mais crítico indagaria sobre a existência dos números reais, ou seja, se realmente se conhece algum exemplo de corpo ordenado completo. Em outras palavras: partindo-se dos números naturais (digamos, apresentados através dos axiomas de Peano) seria possível, por meio de extensões sucessivas do conceito de número, chegar à construção dos números reais? A resposta é afrmativa. Isto pode ser eito de varias maneiras. A passagem crucial é dos racionais para os reais, a qual pode ser o método de cortes de Dedekind ou das sequencias de Cauchy (devido a Cantor), para citar apenas os dois mais populares. Nota-se ainda que, dependendo da vertente losóca assumida, determinados argumentos indicados por Lima (2004) não são aceitos como conáveis. Na seção seguinte estabeleceremos alguns ambientes de atuação do proessor nos quais identicamos os condicionantes, os entraves e as concepções herdadas a partir das correntes absolutistas da Matemática.
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AS INFLUÊNCIAS DAS CORRENTES FILOSÓFICAS NO ENSINO ATUAL
OBJETIVO
Identificar as influências das correntes filosóficas no ensino atual de Matemática.
C
omo comentamos nas aulas anteriores, ant eriores, pessoas que carregam consigo apenas uma aprendizagem e único contato com a Matemática a partir do cenário escolar, como estudantes, dicilmente conseguem perceber, descrever, identicar e compreender os condicionantes demarcados ao longo dos séculos provenientes das correntes losócas que apresentam um caráter epistemológico de raízes proundas no saber matemático. Tall ato pode ser observado na postura Ta po stura pedagógica pedagógica do ensino escolar e, de modo especial, nas práticas avaliativas que se desenvolvem em torno do saber matemático. Como já descrevemos na disciplina de Didática da Matemática, o maior problema enrentado pela maioria dos cursos de graduação no Estado do Ceará diz respeito à situação em que o uturo proessor de Matemática não estuda na graduação aquilo que vai ensinar. Ademais, parte do que se estuda na graduação compõe-
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se de disciplinas que veiculam saberes de natureza epistemológica de outras áreas do conhecimento, distintas da Matemática, portanto nem sempre são aplicáveis, adequadas e sucientes para a explicação/predição de enômenos intrínsecos da Matemática. De modo particular, reorçamos nossa última argumentação nos valendo das palavras pala vras de Souza e Fernandes (2010, p. 28): Por isto, é necessário que, na prática avaliativa, para que esta realmente seja desenvolvida de orma qualitativa, é necessário que o proessor tenha compreensão das concepções e princípios de avaliação. A partir daí, ao tomar conhecimento de conceitos avaliativos, das reeridas metodologias e dos instrumentos de avaliação, tal prática provavelmente se tornará mais efcaz.
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No que diz respeito à atividade avaliativa do proessor de Matemática, quando lemos o excerto acima, obteríamos uma resposta pelo menos provisória provisória das seguintes questões: O que signica uma prática avaliativa em Matemática de natureza qualitativa? Que concepções condicionam/determinam e modelam as relações que são travadas em torno do saber escolar? De onde são provenientes e/ou originados, do ponto de vista epistemológico, os conceitos avaliativos? A que metodologias específcas os autores Souza e Fernandes (2010) se reerem ou mesmo azem menção? O que caracteriza a “ efcacidade” de uma prática avaliativa para os autores Souza e Fernandes (2010)? Em relação a que campo ou esera de práticas azem reerência? E conhecendo-a, como operacionalizá-la de ato, em sala de aula, no ensino de Matemática? Em nossa realidade, encontramos proessores recém ormados, com pouca maturidade e limitada eciência prático-operaciona prático-operacional,l, repletos de teorias desconexas, e que são obrigados a responder estes e outros questionamentos de orma solitária, desamparados pela universidade. Diante de nossos objetivos e da limitação de espaço deste material, não nos deteremos em cada uma destas questões, entretanto algumas delas merecem uma maior atenção. Neste sentido, assumimos não ser muito produtivo para o proessor de Matemática adquirir toda uma retórica a respeito do “processo avaliativo” se ele mesmo não consegue elaborar um instrumento de avaliação que dierencie o caráter quantitativo e qualitativo de entendimento do saber matemático. Ademais, com relação aos saberes e raciocínios mobilizados num instrumento de avaliação do conhecimento matemático do estudante, o proessor deve identicar raciocínios intuitivos e raciocínios lógicos- ormais empregados empregados pelo mesmo mesmo..
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Outros elementos que merecem atenção dizem respeito ao ato de avaliar a aprendizagem em relação a um conceito de Matemática ou à denição vinculada ao reerido conceito. Embora o aproundamento destas questões tenha sido realizado na disciplina de Didática da Matemática, é oportuno destacar a sugestão ornecida por Souza e Fernandes (2010, p. 28) quando aconselham: Todavia, a avaliação é um processo que deve ser realizado a partir dos resultados obtidos das atitudes tomadas pelo educando diante do saber escolar. Diante da atividade do aluno, o proessor deve analisar não apenas o resultado como também os saberes mobilizados pelo aluno para chegar a resposta fnal. Assim, o proessor poderá perceber o nível de conhecimento do aluno e analisar se ele necessita ou não de acompanhamento, bem como quais ações pedagógicas são necessárias para que o aluno continue o processo de aprendizagem.
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O motivo diz respeito basicamente ao ato de que estes autores se apóiam em undamentações teóricas erigidas a partir de outra esera de práticas, distinta do campo de atuação do proessor de Matemática, e que se mostram insucientes neste âmbito particular. Por outro lado, em sua tese, Cury (1994) desenvolve sua argumentação relativa ao enômeno avaliativo na medida em que analisa e identica as infuências das correntes losócas da Matemática no ensino. Em relação a este ato, Cury (1994, p. 69) conclui: Parece-nos que a visão absolutista da matemática está presente nesse procedimento dos proessores: ele acreditam que, eetivamente, na existência, em matemática, de uma verdade absoluta que não pode ser sujeita a criticas e correções e, por extensão, de uma maneira de azer, uma resolução certa que deveria ser seguida por todos [...] Quando os proessores de matemática constroem um gabarito, já estão estabelecendo uma verdade única, isolada para os alunos. Outro agravante pode ser citado: ao avaliar a prova separadamente das outras atividades desenvolvidas durante o período de aprendizagem, ou seja, do próprio trabalho da sala de aula, do estudo individual ou dos trabalhos de casa, o proessor isola o processo de aprendizagem de seu produto. Mais adiante acrescenta um interessante ponto de vista quando comenta: Na correção de cada questão, surge, em nossa opinião, novamente o laivo absolutista, agora em sua versão ormalista, quando o
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proessor considera que as regras ormais de uso do conteúdo são mais importantes do que o signifcado que é atribuído a esse conteúdo. E são as regras que contam na avaliação, uma vez que ela é eita com base no uso das mesmas regras em uma prova. Mesmo quando o proessor salienta sua preocupação com o desenvolvimento da questão, essa observação se reere ao encadeamento lógico dos raciocínios, à elegância, à correção, ao rigor das provas apresentadas, ou seja, àqueles elementos valorizados pela comunidade matemática, segundo os quais um trabalho na área pode ou não habilitar-se a ser lido pelos membros da comunidade (CURY, 1994, p. 69).
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Cury (1994) az reerência às concepções, práticas de ensino, rituais introjetados, cristalizados e condicionados pelas correntes absolutistas ou por seus prolongamentos. Tais concepções e visões sobre o conteúdo e seu ensino dicilmente podem ser explicados por teorias oriundas de outros campos epistêmicos, nomeadamente as teorias do campo pedagógico das ciências humanas. Basta evidenciar, por exemplo, que, se um educador observar que quando o proessor considera que as regras ormais de uso do conteúdo são mais importantes do que o signicado que é atribuído a esse conteúdo, esse educador interpretará tal enômeno a partir da corrente pedagógica tecnicista, o que nos parece um equívoco e desconhecimento gritante. Mas se um matemático observar o mesmo ato interpretará e identicará as infuências diretas da corrente losóca ormalista, devida a David Hilbert. Outra infuência considerável das correntes losócas é observada nas determinações curriculares na Matemática. Nota-se que não nos reerimos a um currículo qualquer, de uma área do conhecimento geral e, sim, de modo especíco, ao currículo de Matemática. Uma obra que merece destaque e que oi amplamente divulgada nos Estados Unidos, no nal da década de 60, é O racasso da Matemática Moderna, do matemático norte-americano Morris Kline, um protagonista da reorma do ensino da Matemática que ocorreu na segunda metade do século XX, um período que inclui os programas da Nova Matemática. Em 1956, Proessor de Matemática, revista publicada por Kline, responsabiliza os proessores pelos racassos dos alunos. Kline (1976, p. 34) escreveu: Há um problema estudantil, mas também existem três outros atores que são responsáveis pelo estado atual da aprendizagem matemática, ou seja, os currículos, os textos, e os proessores . O discurso tocou um nervo, e as mudanças começaram a acontecer. Reproduzimos abaixo um trecho do livro no qual o autor descreve o estado e as características equivocadas do currículo de Matemática daquela época.
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Embora o currículo tradicional tenha sido algo aetado nos últimos anos pelo espírito de reorma, suas características básicas são acilmente descritas. Os primeiros seis graus da escola elementar são dedicados à aritmética. No sétimo e oitavo graus, os alunos aprendem um pouco de álgebra e os atos simples de geometria, tais como órmulas para a área e o volume de fguras comuns. O primeiro ano de escola secundária preocupase com álgebra elementar, o segundo com geometria dedutiva e o terceiro com mais álgebra (geralmente denominada álgebra intermediária) e com trigonometria. O quarto ano de escola secundária geralmente abrange geometria sólida e álgebra adiantada [...] Houve, requentemente, várias criticas sérias que se aplicam ao currículo. A primeira critica diz respeito à álgebra presente no mesmo que orça o aluno a memorização em detrimento da compreensão (KLINE, 1976, P. 19).
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Vale destacar que a predominância ainda nos dias de hoje do pensamento algébrico é observada quando encontramos pessoas, com conhecimento limitado em Matemática que a concebem como a “ ciência dos números”. Esta visão constitui, dentro dos pensamentos do senso comum, o mais limitado e equivocado ponto de vista. Mas o que merece ser observado é que o currículo criticado por Kline oi o resultado de pressões de grupos políticos de matemáticos, em determinada época histórica, que determinaram e apontaram os paradigmas mais importantes do saber matemático naquela época. Ainda nos deteremos nestes e outros aspectos, principalmente na identicação dos atores losócos, mas antes disso, em outro trecho abaixo, observamos as determinações do currículo sobre a práxis do proessor, identicadas e caracterizadas por Kline (1976, p. 20) de modo eciente ao mencionar que: Uma boa proessora sem dúvida esorçar-se-ia por auxiliar os alunos a compreender o undamento lógico deste processo, mas, via de regra, o currículo tradicional não dá muita atenção à compreensão. Confa em exercícios para azer com que os alunos sigam acilmente o processo. Após aprenderem a somar as rações numéricas, os alunos enrentam a somar rações onde letras se acham envolvidas. Conquanto se 3 2 empregue o mesmo processo para calcular? os passos + x+ a x +a individuais são mais complicados. Novamente o currículo confa em que os exercícios transmitam a lição. É solicitado ao aluno que aça as somas em inúmeros exercícios até que as possa realizar com acilidade.
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Kline, como constamos a seguir, descreve de modo melancólico a análise do currículo com relação aos conceitos de Álgebra e de Geometria e aponta um dos conhecimentos que são menos aproundados nos cursos de graduação. Tal conhecimento diz respeito à Geometria Plana e Espacial herdada de Euclides. E o mais curioso em nossos dias é que se perguntarmos a um aluno da escola regular suas preerências, ele exclamará sem pestanejar que preere Álgebra em vez de Geometria. O que ocorre de mais irônico, para não dizer trágico, é que se zermos a mesma pergunta para um proessor de Matemática recém ormado, ele dirá também que preere ensinar Álgebra, em detrimento da Geometria dedutiva. Com respeito a tal cenário, Kline (1976) observa: Após um ano deste estudo de álgebra, o currículo tradicional passa para a geometria euclidiana. Nela a matemática torna-se subitamente dedutiva, isto é, o texto começa com defnições das fguras geométricas e com axiomas ou asserções que presumivelmente são “obviamente verdadeiras” acerca das fguras. Eles provam depois teoremas aplicando o raciocínio dedutivo aos axiomas. Os teoremas seguem um ao outro numa sequência lógica; quer dizer, as demonstrações dos teoremas posteriores dependem das conclusões já estabelecidas nos anteriores. Esta mudança repentina de álgebra mecânica para a geometria dedutiva certamente transtorna a maioria dos alunos. Até então, em seu estudo de Matemática, não aprenderam o que “demonstração” é e tem que estar senhor deste conceito além, da aprendizagem da própria matéria (p. 22).
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Por m, Kline aponta um problema que depende da visão e das concepções que o proessor de Matemática constrói, ao longo de sua carreira, sobre a Matemática. Neste sentido, se o docente não consegue identicar e compreender a “beleza” do conhecimento matemático, nunca conseguirá transmitir tal sensação para seus educandos, sem alar nos casos em que o proessor leciona Matemática por que não encontrou outra maneira de garantir sua subsistência material ou por que está a espera de uma outra oportunidade prossional. Com respeito a isto, Kline (1976, p. 23) declara no trecho abaixo: Além de poucas alhas que já descrevemos, o currículo tradicional sore do deeito mais grave que se pode lançar sobre qualquer currículo: alta da motivação. A própria matemática – para empregarmos as palavras do amoso matemático do século vinte, Hermann Weyl, - tem a qualidade não humana da luz estelar, brilhante e nítida, porém, ria.
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É também abstrata. Trata de conceitos mentais embora alguns, como os geométricos, possam ser visualizados. Dadas ambas as considerações, de sua qualidade ria e caráter abstrato, muito poucos são os estudantes que se sentem atraídos por esta matéria de ensino (p. 23).
No trecho acima, o matemático acentua a importância do desenvolvimento de mecanismos que instigam e motivam os estudantes a estudar Matemática. Antes de discutirmos alguns pontos mais próximos de nossa discussão losóca, destacamos oportunamente trecho de um pensamento dos autores Moreira e Silva (1995, p. 7). O currículo há muito tempo deixou de ser apenas uma área meramente técnica, voltada para questões relativas a procedimentos, técnicas e métodos. Já se pode alar agora em uma tradição crítica do currículo, guiada por questões sociológicas, epistemológicas. Embora questões relativas ao “como” do currículo continuem importantes, elas adquirem sentido dentro de uma perspectiva que as considere em sua relação com questões que perguntem pelo “por quê” das ormas de organização do conhecimento escolar.
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O trecho acima nos serve de modo eciente para discutir linhas de pensamento que em nada explicam, caracterizam ou prevêem as mudanças ocorridas ao longo dos séculos no currículo de Matemática. Nossa posição é clara no sentido de que não adianta buscar ormar o uturo proessor para a cidadania, no sentido de desenvolver um ensino inclusivo, prazeroso, “lúdico”, se ele mesmo não consegue azer seus alunos compreenderem o motivo e a justicativa pela qual multiplicamos as linhas pelas colunas de uma matriz. Em outras palavras, antes de tomar consciência de que o campo curricular não constitui apenas uma técnica, o uturo proessor deve compreender que a constituição do currículo de Matemática sempre oi o resultado do embate e do jogo de poder entre matemáticos, num determinado período histórico em que o saber matemático sempre serviu de paradigma para a evolução das sociedades e para a undamentação de outras áreas do saber, e não o contrário. Neste sentido, Santos (2008, p. 176) recorda as ideias dierenciadas do ísico teórico e epistemólogo Thomas Khun (1922-1996), quando comenta que: Muitos dos opositores da idéia de revolução em matemática argumentam que as verdades nesse campo são sempre preservadas, mesmo com o aparecimento de novas teorias. Por esse motivo, o uso do conceito de revolução nestes casos é um erro, já que esse conceito traz
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consigo aquilo que oi chamado a pouco de princípio de destituição do antigo regime.
Mais adiante, Santos (2008) dierencia o campo epistêmico do saber matemático de outros campos do saber. A partir de suas palavras reerendamos nossas posições de crítica com respeito à aplicação de “teorias pedagógicas” para explicar/caracterizar os movimentos próprios de evolução do saber matemático. Santos (2008, p. 177) indica elementos que não encontramos e/ou identicamos nestas teorias quando declara: E de ato as verdades matemáticas são, pelo menos em algum nível de consideração, preservadas com o aparecimento de totalmente novas teorias. No entanto, para que essas verdades sejam preservadas, e para que continuem a ter uma aplicação eetiva dentro da matemática, surge à necessidade de serem reavaliadas e remodeladas dentro dos parâmetros indicados pelas novas escolas e teorias matemáticas.
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Santos (2008, p. 177) indica ainda o locus cientíco onde devemos nos acomodar para o desenvolvimento de uma análise losóca adequada ao acrescentar que: As revoluções em matemática se parecem com certos eventos que, por vezes, também percebemos ocorrer nas ciências naturais. A teoria da relatividade de Einstein é, sem dúvida, um marco na história da ísica e da astronomia contemporânea. Depois de Einstein componentes curriculares em cursos de graduação e de pós-graduação tiveram que ser revistos, novos campos de pesquisa oram abertos, livros escolares se tornaram ultrapassados. Em suma, a ísica e a astronomia do século XX em diante não pode mais ser considerada a mesma desde então. As tradições no currículo de Matemática são guiadas por questões de ordem particular da própria Matemática e uma epistemologia também particular. E antes de explorar de modo equivocado a necessidade de compreensão do porquê da constituição do conhecimento matemático escolar, o proessor deve compreender a própria constituição do seu currículo de graduação, a constituição do currículo escolar de Matemática, e o motivo pelo qual estuda mais Cálculo Dierencial e Integral em detrimento de Geometria Plana. Dois equívocos precisam ser apontados aqui. O primeiro diz respeito à sensação de que o proessor, ainda nos cursos de graduação, acha que “sabe” Geometria Plana, entretanto não sabe. De ato, encontramos vários trabalhos acadêmicos dando conta da precária atenção dos
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ormadores de proessores no ambiente de graduação. Assim, admite-se que o proessor sabe este conteúdo e priorizam-se tópicos de Matemática avançada. Neste contexto de discussão é que a Filosoa da Matemática pode ornecer um viés de análise privilegiada para o proessor. Nesse sentido, seria auspicioso para o proessor saber identicar os desdobramentos e condicionantes das antigas correntes losócas da Matemática em sua sala de aula, na própria maneira de conceber, assim como saber explicar o signicado do conhecimento matemático. A título de exemplo, Cury (1994, p. 44) discute um condicionante interessante ao armar que: Vemos, aqui, germe da seleção pela matemática, pois ela servirá para os eleitos. Quando estudada em proundidade, propicia-lhe chegar à verdade. O seu uso para os cálculos cotidianos é considerado desprezível, assim como eram os mercadores e negociantes rente aos guerreiros. Está estabelecida a separação entre a matemática pura e a aplicada, com a evidente valorização da primeira (p. 44).
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Assim, o uturo proessor precisa ser ormado no sentido de compreender estes condicionantes,que agem e condicionam, de modo velado e com pouca nitidez, a aprendizagem dos estudantes, escolhendo e selecionando os “eleitos”, os que possuem mais habilidade com a Matemática. Esse tipo de unção social, esse tipo de “unil social”, assumido há séculos pela Matemática, precisa ser compreendido pelo proessor e não será a partir de teorias gestadas numa esera de práticas completamente distantes da esera de prática do proessor que o docente tornará sua ação mais ecaz. Esta unção de “seleção” é reorçada pela herança e hegemonia de concepções absolutistas no ambiente de ensino/aprendizagem, como a descrita por Santos (2008, p. 98): Frege se reere aos axiomas como aquelas verdades irreutáveis, para as quais, contudo, não é possível nenhuma prova. Trata-se, portanto, de um contra-senso tentar ornecer uma prova para uma verdade autoevidente, seja devido à natureza dessa verdade, que não admite, em princípio, uma reutação, seja devido ao teor extremamente primitivo do conteúdo do que é expresso na proposição. Os dois casos, muitas vezes, se identifcam numa única e mesma condição, aquela que determina se uma afrmação pode ou não ser considerada um axioma do ponto de vista clássico, uma verdade imediata e inabalável. Em outro ragmento, Santos (2008, p. 99) destaca que: O conhecimento legítimo é um dado irreutável, visto que é autoevidente ou é obtido por meio de uma demonstração. Um conhecimento
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se identifca sempre com uma afrmação verdadeira sobre algo. Isto é, um conhecimento é sempre a compreensão de uma verdade. Não é possível, portanto, um conhecimento sobre algo que não exista, dado que nenhuma verdade, assim como nenhuma alsidade, pode ser afrmada sobre o que não existe.
Para concluir esta seção, destacaremos de modo breve alguns pensamentos de Imre Lakatos (1922 – 1974), que se graduou em Matemática, Física e Filosoa, e então iniciou suas pesquisas em Filosoa da Matemática. Também se dedicou à Filosoa da Ciência. Ele oi ativo em Filosoa da Matemática entre os anos de 1950 e 1967, com algum trabalho retomado em torno de 1973. Seu maior trabalho em Filosoa ATENÇÃO! da Matemática oi Provas e Reutações, republicado postumamente em 1976. Falibilismo é a doutrina filosófica segundo a qual não podemos ter Com respeito a Lakatos, Jesus (2002, p. 75) comenta a certeza de qualquer forma de que o matemático húngaro é considerado alibilista conhecimento. devido à infuência do alseacionismo e do alibilismo de Popper. Wittgenstein, por sua vez, ora é considerado o mais estrito fnitista, ora um convencionalista. Mas o que o caracterizou mesmo oi a sua singularidade na tradição losóca. Jesus (2002, p. 78) esclarece que: Lakatos considera que a ciência constitui um dos jogos lingüísticos legítimos. A flosofa da ciência, não. Segundo ele, o principal crime dos flósoos da ciência de antanho – e dos flósoos da matemática e da lógica – oi tentar erigir-se a si mesmos em um novo jogo de linguagem, autônomo com respeito à ciência. Além disso, continua Lakatos, os flósoos tradicionais queriam estabelecer um jogo de linguagem incorreto com regras explícitas – os wittgensteinianos dizem mecânicas – que separassem a ciência da pseudociência, e com critérios explícitos de progresso e degeneração dentro da ciência. Mais adiante, Jesus (2002, p. 80-81) dierencia o olhar e a análise generalista de Karl Popper com o olhar e o posicionamento losóco de Lakatos quando declara: Paul Ernest situa as raízes da flosofa da matemática de Lakatos em Hegel, em Polya e em Popper. Seguramente este último ora uma das maiores inuências no pensamento de Lakatos. Alguns paralelos dão conta dessa inuência: a metodologia de Popper é chamada de lógica da descoberta científca; a metodologia de Lakatos: lógica da descoberta matemática (LDM), o que é uma transposição direta, segundo Ernest. História da Matemática
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Outro exemplo é o nome do maior trabalho de Lakatos, Provas e reutações é um jogo direto sobre Conjecturas e reutações de Popper.
A partir de Lakatos, a LDM passa a ser objeto de estudo losóco nas ciências da Matemática. De modo sistemático, Jesus (2002) propõe a seguinte tabela explicativa que distingue o pensamento generalista de Popper (LDC – Lógica da Descoberta Cientíca) da visão especíca e particular de Lakatos (LDM – Lógica da Descoberta da Matemática), conorme guras 4 e 5.
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Figura 4: Diferença entre LDC e LDM (JESUS,2002, p. 81)
Figura 5: Comparação entre LDC e LDM (JESUS, 2002, p. 81)
Mais adiante, Jesus estabelece importantes dierenças entre posicionamentos losócos assumidos por Popper e Lakatos. Jesus (2002, p. 81) recorre à análise do neo lósoo Paul Ernest ao sublinhar que: Além dessas semelhanças, Ernest chama a atenção para uma dierença importante. Para Popper, não haveria conexão necessária entre o novo problema ou nova conjectura e a conjectura original (reutada) e na sua metodologia nada poderia ser dito sobre a gênese de conjecturas porque esta pertenceria ao contexto da descoberta, e não à flosofa da ciência. Para Lakatos, ao contrário, existiria uma continuidade essencial entre a conjectura primitiva e a conjectura melhorada. A conexão é que a crítica, a análise e o ortalecimento da prova da conjectura primitiva é o que levariam à nova conjectura. Portanto, os contextos da descoberta e da justifcação são mantidos juntos, ao passo que, para Popper, eles são separados. E prossegue armando que Em Provas e reutações, Lakatos propõe uma teoria da criação do conhecimento em matemática que Ernest considera que pode ser
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representada como segue: Dado um problema matemático (P) e uma teoria matemática inormal (T) um passo inicial na gênese de novo conhecimento é a proposta de uma conjectura (C). O método de provas e reutações é aplicado a essa conjectura, e uma prova inormal da conjectura é construída e então submetida à crítica, levando a uma reutação inormal. Em resposta a essa reutação, a conjectura, e possivelmente também a teoria inormal e o problema original, são modifcados ou trocados em uma nova síntese, completando o ciclo (JESUS, 2002, p. 91).
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O posicionamento alibilista, a partir de Lakatos, proporcionou um grande avanço no que diz respeito às doutrinas absolutistas do passado. Jesus (2002, p. 124) desenvolve uma comparação interessante que pode iluminar nosso entendimento ao armar: Uma área central da controvérsia entre absolutismo e alibilismo na flosofa da matemática trata da distinção entre os contextos da descoberta e da justifcação. Para os absolutistas, o contexto da justifcação e o da descoberta dizem respeito a domínios distintos do conhecimento; por isso, devem ser mantidos separados. O contexto da justifcação lidaria com condições objetivas e lógicas do conhecimento, com a atividade racional da avaliação e da validação do conhecimento constituído; portanto, lidaria com um objeto pertencente ao domínio da epistemologia e da flosofa da matemática. O contexto da descoberta trataria de circunstâncias contingentes da invenção humana ou histórica, e por não ser um processo racional, não poderia ser tratado lógica e objetivamente, constituindo, portanto, um objeto pertencente ao domínio da psicologia ou da história da matemática. Certamente esta discussão requer páginas e páginas para que possamos compreender o pensamento de Imre Lakatos, entretanto não poemos deixar de ressaltar que este posicionamento de Lakatos adquiriu vigor tanto na Filosofa da Matemática como na Filosofa das Ciências. Como já discutimos na seção passada, é improvável a compreensão do aprendiz por meio da seguinte trajetória geral ® particular . Assim compreendendo, a Lógica da Descoberta Matemática (LDM), por exemplo, se tornará mais acessível ao entendimento do movimento proposto por Popper, denominado pelo próprio de Lógica da Descoberta Cientíca (LDC), que se caracteriza pela trajetória particular ® geral . Na próxima seção veremos alguns exemplos especícos do ensino de Álgebra, que recorre de modo requente às denições matemáticas ormais.
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AS CAR CARA ACTERÍSTI CTERÍSTICAS CAS DE UMA DEFINIÇÃO MATEMÁTICA E O ENSINO DE D E ÁLGEBRA ÁLGEBRA
OBJETIVO
Identificar as características de uma definição matemática vinculando-as ao ensino.
N
as aulas próximas aulas introduziremos a discussão de outras correntes losócas que se ocuparam pela investigação cientíca losóca acerca da natureza das denições matemáticas. O consenso nesta seara de perquirição não é preponderante e regra entre os pensadores, todavia, antes de discutirmos suas vertentes de modo individualizado, vale recordar que Kluth (2005, p. 12) explicita o papel das denições matemáticas e dos teoremas que uncionam como guias construtores de denições na atividade algébrica do alunos, quando menciona: A apresentação das estruturas da Álgebra nos livros de Matemática dá-se por meio de defnições. Espera-se que, lendo-as e possuindo um prévio conhecimento de outras defnições e teoremas, os signifcados das estruturas da Álgebra possam vir à tona, como uma articulação
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de resultados plenos de sentido matemático, dos quais possam ser deduzidas asserções que constituirão a teoria num processo lógicodedutivo, caracterizando-se como o estudo das estruturas. Esse é o movimento do pensar que se mostra na construção do conhecimento das estruturas da álgebra nos livros de Álgebra em geral e, em particular, no livro que vinha sendo adotado no programa da disciplina de Álgebra Abstrata que eu ministrava.
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Kluth (2005, p. 175), em determinado momento, indica as consequências e condicionamentos impostos pelas correntes losócas absolutistas quando comenta: ao educar-se, tendo como material de apoio a Matemática, evidenciase, na maioria das vezes, o pensar técnico, prático e utilitário em detrimento dos aspectos essenciais da Matemática como uma Modulação de mundo. [...] o conhecimento aproundado e amplifcado dos objetos da Matemática, que englobam técnicas, teorias, análises e reexões sobre essa Modulação, possam auxiliar os Educadores Matemáticos a exercerem sua proessoralidade, até mesmo nas ações cotidianas mais comuns, como por exemplo, ao decidir qual defnição vai apresentar aos seus alunos. [...] As defnições podem, ou não, apresentar a priori sintético e a priori estrutural. Observamos no trecho uma refexão eita pela autora, uma proessora de Matemática. Destaca-se sua preocupação com respeito ao domínio aproundado do conhecimento que se tenciona explicar/ensinar. Sem tal aproundamento, um ensino “lúdico” e apoiado em atividades “prazerosas”, como muitos desavisados deendem, torna-se um episódio rápido e passageiro, uma vez que, no momento da avaliação, por meio de condicionantes absolutistas, é bem mais ácil ater-se ao gabarito das provas. Principalmente no caso da Álgebra em que a linguagem, e, portanto, o domínio sintático, em detrimento do domínio semântico, é priorizada. De ato, neste contexto, o domínio sintático encobre muitos signicados dos conceitos. No nal, resta ao aluno apenas as habilidades algorítmicas que uncionam, embora não orneçam ou construam um signicado do que se esperava esperava ser aprendido. Por exemplo, quando se toma S = 1 + a + a 2 + ........ , logo o proessor de Matemática, multiplica a expressão: a × S = a + a 2 + a3 + ........ . Portanto, temos S = 1 + (a + a 2 + ........) = 1 + a × S Þ S = 1 + a × S Û (1- a ) × S = 1 . 1 Ou seja, S = . Neste tipo de “malabarismo algébrico”, não nos atemos de 1- a
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modo recorrente ao signicado dos elementos pertencentes às inerências lógicas empregadas, e sim à própria simbologia. Mas quando refetimos a respeito do que oi obtido, vemos que a soma de parcelas innita 1 + a + a 2 + ........ é equivalente à execução exe cução de duas operações apenas. apenas. A primeira, uma subtração da unidade por “a”, em seguida a divisão da unidade “1” por “1-a”. Isto oi motivo de desconança para muitos matemáticos do passado. Exemplos como estes e outros são discutidos por Otte (1991) (199 1) quando descreve o raciocínio algorítmico. Tal raciocínio proporciona, na maioria dos casos, a resolução e a obtenção da resposta esperada pelo proessor, todavia, qual o signicado dos valores encontrados? Na gura abaixo, vemos a ilustração de um labirinto. Por meio de uma instrução ou por meio de um conjunto de regras a priori conhecidas (Figura 5), um estudante perdido dentro deste labirinto certamente conseguirá sair e se livrar desta situação periclitante. Entretanto, Entretanto, Otte (1991) questiona se o estudante se torna mais sábio ou inteligente pelo ato de conseguir lograr êxito na situação.
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Figura 6: A metáfora do Labirinto desenvolvida por Otte (1991, p. 286).
1. Escolha uma direção inicial arbitrária, chame-a de “norte” e vire-se para essa direção; 2. Vá em direção ao “norte” em linha reta até encontrar um obstáculo; 3. Vire à esquerda até que esse obstáculo esteja à sua direita; 4. Contorne o obstáculo, mantendo-o à sua direita até que a volta total (incluindo a volta inicial do passo 3) seja igual a zero. De modo semelhante, vemos isto ocorrer no ensino de Álgebra. Os estudantes aprendem rotinas que envolvem “malabarismos algébricos” algébrico s” descritos e estabelecidos de modo arbitrário pelo proessor. Tais rotinas “uncionam”, adquirem status de conduzir os estudantes sempre a um resultado. Basta entrarmos com os dados iniciais e obteremos uma resposta. As próprias regras encerram o caráter de verdade
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e justicam e determinam toda a aprendizagem. Na História da Matemática, estes condicionamentos e obstáculos losócos são apontados num trecho de um livro de Caraça (1951, p. 166), que denuncia: De todas as surpresas que a história das Matemáticas nos apresenta, a menor não é certamente esta – que, antes de os números negativos serem considerados como verdadeiros números, já eram conhecidas e praticadas quase todas as regras operatórias sobre os números complexos, coisa que parece simplesmente absurda, uma vez que, os números complexos resultam de raízes quadradas de números negativos. A razão é esta – que os matemáticos se resignavam ao ormalismo, consentindo em criar e usar aquelas regras convenientes para eetuar um calculo que ornecesse um resultado desejado; mas daí a considerarem todos os símbolos sobre que operavam como números, isto é, uma grande distancia, aquela distancia que separa um simples expediente de manipulação, do cuidado, mais proundo, da compreensão (p. 166).
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Os elementos apontados acima podem ser registrados acilmente em sala de aula, a partir da práxis do proessor de Matemática, entretanto seria ingênuo entendê-los como elementos isolados em uma esera de práticas especícas do nosso proessor. Assim, preerimos um posicionamento crítico e losóco no sentido de interpretar estes e outros condicionantes como herança das visões losócas de matemáticos dos séculos passados. Na próxima aula, abordaremos outro tema polêmico e de natureza losóca. Assim como no caso das denições matemáticas ormais, esta utura temática apresenta um caráter de neutralidade, todavia veremos que está condicionada à dependência da corrente losóca predominante do momento histórico em que está inserida.
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Aula 4
As dimensões filosóficas da intuição, seu papel da atividade do matemático e alguns paradoxos
A capacidade ontológica humana, característica de uma habilidade cognitiva que chamamos de intuição, revelou enorme importância tanto para a pesquisa como para a atividade do matemático, e consequentemente do professor. Nesta aula, discutiremos alguns elementos epistemológicos e filosóficos relacionados a uma temática que recebeu atenção e reflexão de matemáticos, filósofos, epistemólogos, psicólogos, entre outros estudiosos interessados na capacidade do homem produzir conhecimento.
Objetivo: Reconhecer as características e os aspectos filosóficos da intuição matemática. • Descrever o papel da intuição na atividade investigativa. • Identificar paradoxos e situações em que o raciocínio intuitivo conduz a falsas concepções. •
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01 TÓPICO
AS DIMENSÕES FILOSÓFICAS DA INTUIÇÃO MATEMÁTICA
OBJETIVO
Reconhecer as características e os aspectos filosóficos da intuição matemática.
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as aulas passadas discutimos as losoas absolutistas da Matemática. Destacamos também algumas de suas consequências no ensino atual e suas condicionantes com respeito à práxis do proessor de Matemática. Nesta aula, detalharemos uma discussão relacionada à intuição matemática. Veremos que matemáticos, epistemólogos, lósoos e outros pensadores, se detiveram à busca de compreender tal aculdade psíquica que intervém em todo momento na criação matemática. Mas não se pode alar de intuição sem mencionarmos outra característica ontológica do ser humano conhecida por percepção. De ato, o interesse pela percepção que nos permite captar, entender e interpretar o mundo que nos cerca remonta à história dos povos antigos. A civilização helênica, de modo insuperável, oi a que deu a maior contribuição, o que permitiu distinguila de outras civilizações. De ato, os gregos, desde cedo, refetiram sobre a relação
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entre homem e objeto e sobre os elementos da relação estabelecida que permitem compreender e investigar propriedades intrínsecas do objeto. Entendemos bem esse posicionamento dos antigos gregos quando observamos as armações de Aristóteles, presentes no texto Boutroux (1908) quando declarava que: Querer conhecer os atos, não apenas do modo como se apresentam mas, também, do modo como devem ser é querer resolver o contingente e o necessário. É necessário, todavia, investigar as condições pelas quais o espírito concebe algo como necessário; em outras palavras, é necessário inicialmente encarar a ciência em sua orma, abstração eita do seu conteúdo: é o objeto da lógica (BOUTROUX, 1908, p. 116, tradução nossa.)
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Étienne Émile Marie Boutroux (1845-1921), lósoo e historiador rancês, descreveu a preocupação de Aristóteles em conhecer e sistematizar os dados VOCÊ SABIA? pesquisados. Boutroux destaca, ainda, como vemos no nal do excerto acima, que um dos elementos que podem Os jônios, ou jônicos, representavam promover o entendimento na investigação do espírito é a um povo indo-europeu e ficaram conhecidos pela grande organização Lógica. social e tradição militar. Participaram Um dos povos da Grécia Antiga, os jônicos atribuíam ativamente da expansão grega e papel de relevo às ciências matemáticas que recorrem à colaboraram significativamente com o desenvolvimento da cultura na Grécia Lógica para o estabelecimento de diversos undamentos, apesar de, em sua origem, a Matemática não ter obedecido Antiga, principalmente, da ciência e do racionalismo. Os jônios foram um dos a regras explícitas e órmulas bem ormadas que quatro povos que formaram o povo explicassem sua gênese. Desse modo, a contribuição desse grego, junto com os aqueus, eólios e dórios. povo helênico, no sentido da sistematização e depuração (Disponível em: ) a partir dos nossos sentidos, é inigualável. Recorremos mais uma vez a Boutroux, que extrai um ensinamento infuenciado pela tradição helênica, quando arma que: No que concerne à inteligência, uma boa educação aprimora e dirige as aculdades, mais do que orça a memória. Existem dois exercícios da aculdade: um é livre, é o jogo; o outro imposto é o trabalho. Este último é obrigatório por si mesmo e no ensino não é substituído pelo primeiro. A aculdade da intuição deve ser ormada antes do entendimento. Todo ensino será inicialmente intuitivo, representativo e técnico (BOUTROUX, 1908, p. 394, tradução nossa.) História da Matemática
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No nal do excerto, vemos claramente a orientação e valorização de um ensino intuitivo, entretanto, se desconhecemos a natureza, a onte, o propósito e as possibilidades alcançadas pelo entendimento humano ao azer uso da habilidade ou aculdade intuitiva, caminharemos por uma via inrutíera que torna inexequível seguir o ensinamento de Boutroux. A intuição mereceu atenção de Immanuel Kant (1724-1804). Kant assegurava que um conceito permanecia vazio a menos que o mesmo se correspondesse com a intuição; intuição é necessária para o estabelecimento de uma realidade objetiva do conceito, isto é, a possibilidade de uma instância (KANT, apud PARSONS, 2008, p. 8). Kant se interessou de modo especial pelas guras geométricas na Matemática, as quais denominava ormas (empíricas) ou objetos. Nas provas, tais objetos são construídos intuitivamente (no sentido de que podem ser intuídos). Representações intuitivas surgem também na Matemática a partir de outros objetos, embora para os números de modo particular estas surgem a partir de uma intuição mais indireta do que as ormas geométricas (KANT apud PARSONS, 2008, p. 8). Parsons (2008, p. 8) dedica algumas páginas de sua obra para explicar o termo em inglês “intuitability”, que traduziremos por a capacidade de aprender por intuição. Parsons caracteriza o mencionado termo na acepção de uma condição geral dos objetos. O autor recorda que Kant empregava o termo intuição (intuition) como uma representação imediata de um objeto individual (2008, p. 8). Por outro lado, que signicado atribuímos ao termo “imediato” (immediate)? Conorme o autor, este termo oi ruto de intensa polêmica. Retornando à discussão do termo intuitability e o papel da intuição, observamos que seu conceito ocupa um lugar não trivial de discussão entre dierentes noções que merecem atenção por parte de lósoos e matemáticos. Na Matemática, a importância do seu papel oi deendida por alguns e atacada por outros, como recorda Parsons (2008, p. 139). Num âmbito losóco, intuição é mencionada em ambas as relações estabelecidas com objetos e relações com proposições. Parsons usa as expressões “ intuition o ” e “ intuition that” para marcar as duas relações possíveis na perspectiva de alguns lósoos. Para compreender o signicado do termo “intuition o ” e “intuition that” e o seu emprego no âmbito losóco, recorremos as suas ponderações: O que ornece à “intuition o” um importante local na flosofa é provavelmente o ato de que Kant´s Anschauung é intuição de objetos. Todavia, Kant certamente conere ao conhecimento intuitivo uma indicação do que seria uma espécie de “intuition o”. Eu penso ser bastante claro que Kant possuía tal concepção, porém não as designou
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pelo termo Anschauung ou igualmente usado como na rase anschauliche Erknntnis (PARSONS, 2008, p. 140, tradução nossa.)
Pode-se alar, seguindo-se esta tradição de infuencia kantiana, em intuição de objetos e intuição de verdades, embora, neste último caso, alguns dilemas e ambiguidades de âmbito losóco precisem ser esclarecidos. Parsons (2008, p. 140) diz que quando temos uma intuição sobre à (proposição), isto signifca que seguimos tal proposição. Por exemplo, quando um flósoo ala sobre suas ou sobre as intuições dos outros, isto requentemente signifca que a pessoa em questão está inclinada a acreditar, pelo menos no início da inquirição, ou apenas como uma matéria do senso comum. Nesse sentido, as intuições não precisam ser sempre verdadeiras. Elas podem ser guias bastante alíveis para o alcance da verdade. Parsons analisa as concepções e os sentidos atribuídos por guras ilustres ao termo intuição. Quando menciona Descartes, explica que o lósoo e matemático rancês dierenciava intuição de dedução. Em sua acepção, a conclusão de uma inerência poderia não ser intuição. Na discussão das ontes de conhecimento, não apenas a intuição seria distinguível dos resultados dos argumentos envolvendo inerências, porém tais resultados poderiam não se tratar de intuição, embora possivelmente uma proposição possa ser ou não conhecida por intuição (PARSONS, 2008, p. 142).
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Mais adiante, o autor destaca que a explicação de Descartes de intuitio apresentada na Regras (Rules) ornece uma analogia com percepção. E é claro que se SAIBA MAIS! reere a intuition that nos exemplos que Descarte ornece Quer saber um pouco mais sobre na Regra Terceira para todo proposição (PARSONS, 2008, Edmund Husserl, acesse http:// p. 144). Já em relação a Leibniz, Parsons arma que o educacao.uol.com.br/biografias/ edmund-husserl.jhtm lósoo e matemático alemão não usa tais analogias como Descartes, em suas explicações acerca do conhecimento claro e distinto na obra “ Meditations on Knowledge, truth and ideas” (1684). E existe um contraste comparativo entre intuitivo (intuitive) e o conhecimento cego ou simbólico. Nesse sentido, conhecimento de uma noção é intuitivo quando podemos considerar todos os seus componentes ao mesmo tempo (PARSONS, 2008, p. 145). Outra gura emblemática discutida por Parsons é Edmund Husserl, para quem a noção de intuição assume uma posição de signicância geral. Na sua teoria, equivale aos atos ou experiências intencionais que constituem nossa consciência e às relações
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com o objeto. Tal relação é realizada ou cumprida se o objeto se apresenta à intuição (ou ao menos representado na imaginação); no caso da intuição atual (actual intuition) (PARSONS, 2008, p. 145). Por outro lado, pode-se identicar uma estreita conexão dos pensamentos kantianos e husserlianos, como destaca Parsons, no que diz respeito à noção de intuition that e intuition o . De acordo com Kant, intuition (que nós temos observado como intuition o ) em Matemática conere evidência ao que é imediato, como, por exemplo, o caso dos axiomas. Mas, evidentemente, a imediaticidade de um julgamento origina-se da construção da intuição sobre um objeto (PARSONS, 2008, p. 146). Parsons (2008, p. 146) explica ainda que: Tipicamente, uma proposição envolve reerências aos objetos, evidência envolverá a intuição destes objetos, porém eles azem parte dos constituintes de estágio de acontecimentos que são intuitivamente presentes, pelos menos no caso ideal SAIBA MAIS! (tradução nossa). Acesse http://pt.wikipedia.org/wiki/ Kurt_G%C3%B6del e conheça um Parsons analisa também a perspectiva de Gödel, pouco da vida e obra de Kurt Gödel. matemático austríaco, para quem deve existir algo semelhante à percepção na teoria dos conjuntos. Ele recorda que em virtude da clareza de determinadas proposições e declarações na teoria dos conjuntos, pode-se contar neste caso com a intuition that. Certamente que esta possui um estrito vínculo com a intuition o e, neste sentido, vale observar que a intuition that permanece de algum modo vinculada a intuition o. E intuition o é algo que se pode esperar quando a intuition that é análoga à percepção, desde que um dos elementos centrais da percepção seja a própria presença do objeto percebido. Por exemplo, sabemos por percepção que minha bicicleta é azul ao vê-la. Alguém que nunca viu minha bicicleta nunca saberá algo sobre a mesma por meio da percepção num sentido mais direto (PARSONS, 2008, p. 147). As palavras de Parsons são promissoras no âmbito do ensino de Cálculo Dierencial e Integral. De ato, quando comparamos os estudantes submetidos ao ensino tradicional desta matéria, que privilegia a ormalização e o estabelecimento da verdade de enunciados a respeito da derivada parcial, com os estudantes que são levados a conhecer o reerido objeto por intermédio de crenças perceptuais adequadas, depreendemos, a partir da dierença estabelecida por Parsons, que os primeiros conhecem o objeto derivada por intermédio da intuition that e nunca
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construirão nenhuma crença por meio da percepção. No segundo caso, os estudantes contam com a própria presença (na tela do computador) do objeto que chamamos de derivada parcial. Retomando nossa discussão losóca, sublinhamos que debilidade da intuição sensível, segundo Bunge (1996, p. 21) é a onte de nossos juízos de percepção . Deste modo, sempre corremos algum risco ao desenvolver raciocínios rápidos e breves, alicerçados por crenças perceptuais e, neste patamar, não se pode contar com o alcance da verdade matemática. De ato, Bunge (1996, p. 60) comenta que hoje se compreende que nem todas as entidades, relações e operações se originam na intuição sensível e se reconhece que a evidência não serve de critério de verdade e que as provas não podem se apresentar somente por fguras, pois os raciocínios são invisíveis . Desse modo, com o racasso das intuições sensíveis e espaciais (ou geométricas) como guia para a construção da Matemática, observamos o surgimento de concepções matemático-losócas que caracterizariam a intuição pura. Nesse contexto, uma corrente de pensamento matemático denominada intuicionismo matemático (discutida na aula 2) se caracterizou como: a) uma reação contra os exageros do logicismo e do ormalismo ; b) uma tentativa de resgatar a Matemática do naurágio que parecia ameaçar no início do século, como o resultado do descobrimento dos paradoxos na teoria dos conjuntos; c) um produto menor da flosofa kantiana (BUNGE, 1996, p. 61). Na próxima seção discutiremos a relevância e a unção da intuição na atividade do matemático prossional.
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02 TÓPICO
O PAPEL DA INTUIÇÃO DA ATIVIDADE DO MATEMÁTICO
OBJETIVO
Descrever o papel da intuição na atividade investigativa.
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ecididamente, quando nos atemos ao enômeno do ensino de Matemática, questionamos até que ponto esta claro para o entendimento do proessor de Matemática, o papel e as ormas de maniestação do raciocínio intuitivo. Para compreender tal unção inerente à atividade matemática, torna-se imprescindível que entendamos o caráter de ubiqüidade da intuição matemática, tanto no contexto escolar como no contexto acadêmico. O matemático Jean Dieudonné (1906-1992) descreve uma maneira particular na qual a intuição exerce seu papel coercitivo, ao declarar que: Semelhantemente a vida da maioria dos sábios, a vida do matemático é dominada por uma curiosidade insaciável, uma vontade de resolver os problemas estudados que confrmam sua paixão e que conduzem à realização de uma abstração quase total da realidade do ambiente; as
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distrações ou excentricidades matemáticas célebres não possuem outra origem. É que a descoberta de uma demonstração não se obtém em geral sem o auxílio de períodos de concentração intenso que se renovam possivelmente por meses ou anos até que o resultado pretendido seja alcançado (DIEUDONNÉ, 1987, p. 19, tradução nossa.)
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A intuição matemática sempre despertou o interesse de muitos lósoos. Parte desses interesses se caracterizava pela compreensão do tipo de ligação que a intuição permite, especialmente, com a verdade ou, pelo menos, com a ausência do erro. Observamos uma refexão particular do lósoo inglês John Locke (1632-1704), sobre o conhecimento geométrico presente na Matemática. Stewart (1821, p. 23) destaca este episódio ao lembrar que: Há muito tempo Locke destacou, à respeito dos axiomas da Geometria, estabelecidos por Euclides, que embora a proposição seja inicialmente enunciada em termos gerais, e posteriormente azendo recurso na particularidade de suas aplicações, como o princípio previamente examinado e admitido, todavia a verdade não é menos evidente neste último caso do que no padrão inicial. Ele observou mais adiante que em algumas de suas aplicações que a verdade de cada axioma é percebida pela mente e, todavia, a proposição geral, distante do local onde oi assentada e da verdade que encerra, é apenas uma generalização verbal do que, em instâncias particulares, oi aceito como verdade (tradução nossa). Stewart aponta a preocupação maniesta por Locke a respeito da origem ou a onte da verdade matemática. A verdade deste tipo de saber é originada nos enunciados mais gerais e distanciados das aplicações ou nos casos particulares em que vemos suas aplicações? Em situações mais perceptíveis e menos abstratas a verdade matemática está mais próxima do nosso entendimento? Um elemento que merece atenção diante da situação pouco complexa observada por Locke que é exemplicada por Mill (1869) diz respeito à possibilidade de que enquanto tal verdade não se estabelece, enquanto a incerteza sobre o que conhecemos da Geometria e como conhecemos não or reduzida a zero, a intuição desempenhará um papel importante. Mas é possível reduzir a zero nossas incertezas com a intenção de atingirmos a verdade durante a investigação? Qual ou quais verdades podemos identicar no saber matemático? E na condição de se atingi-la, de onde partimos e como saber se a
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alcançamos? Algumas destes questionamentos não constituem simples tareas para se responder em poucos parágraos, entretanto destacamos os que se aproximam da nossa temática. Por exemplo, existe uma verdade única na Matemática? Guerrier (2005, p. 12), por exemplo, destaca que: A questão de saber se a verdade vincula-se ao domínio da Matemática ou ao domínio da Lógica é uma questão bem antiga. Aristóteles distinguia as verdades de ato (vérités de acto) e as verdades necessárias (vérités nécessaires). Aquelas obtidas como conclusão de um silogismo concluído a partir de premissas verdadeiras; e as últimas são os objetos da Lógica (tradução nossa).
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E enquanto buscamos e ainda não alcançamos uma verdade necessária, como chamava Aristóteles, raciocinamos intuitivamente? E nesta condição, ou seja, SAIBA MAIS! por meio da intuição, obteremos tal verdade? A História da Ciência evidencia o Vale lembrar que Frege considera que não se pode sempre recurso ao apelo intuitivo para a confar na intuição (GUERRIER, 2005, p. 13). Todavia, para edificação posterior de várias teorias. que haja a compreensão e a certeza de estarmos azendo Na Física, Almaraz (1997, p. 11) recorda que Einstein obteve, por meio uso da intuição, mesmo no caso em que buscamos uma de imagens mentais, indícios intuitivos verdade necessária , como na prática comum do matemático, que o serviram para elaborar a Teoria necessitamos denir o vocábulo “intuição matemática”. da Relatividade. Neste momento nos deparamos com outro entrave histórico e losóco. De ato, Boutroux (1920, p. 224) lembra que: Pascal, melhor do que Descartes caracterizou a intuição. E o mesmo escreveu uma vez: Nós conhecemos a verdade, não somente pela razão, mais, sobretudo pelo coração; e é por esta última sorte que nós conhecemos os princípios primeiros, e é neste terreno que raciocinamos, e não existe outro ponto de partida, outra sorte de combater... E é sobre este conhecimento do coração e do instinto que a razão se apóia e undamenta todo o seu discurso (tradução nossa). Mais adiante Boutroux adverte que: Os intelectuais modernos, contudo, não buscam eles mesmos explicar, eles não pretendem compreender completamente em que consiste e em que condições podem agir por intuição. As defnições que eles ornecem permanecem na maioria das vezes negativas. As verdades matemática, dizem eles, não são nem conseqüência de atos experimentais e nem
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resultado de construções ou deduções lógicas. Portanto, eles supõem um modo de percepção que não se conunde, nem com a experiência dos sentidos, nem com o raciocínio. Temos consciência deste modo de percepção por alguns instantes de pratica (no trabalho de descoberta), e nos parece que ele não se assemelha a nenhum conhecimento demonstrativo (BOUTROUX, 1920, p. 225, tradução nossa).
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Ficam patentes nas armações de Boutroux duas dimensões a considerar: a primeira relaciona o caráter aetivo/motivacional, enquanto a segundo diz respeito ao campo epistêmico. Sublinhamos o termo aetivo/motivacional, uma vez que, na atividade do matemático, apesar de nem sempre ser claro para o próprio investigador, a busca pela estética se relaciona de modo íntimo com a ação de descoberta e invenção. Burton (2004, p. 66) desenvolveu um interessante estudo que ornece certos indícios promissores. Ele caracterizou três características da estética: a unção generativa, a unção avaliativa e a unção motivacional. Com reerência às três características mencionadas, explica: A unção generativa oca no papel da estética na invenção e descoberta matemática; a avaliativa tipicamente se maniesta nos próprios julgamentos de um produto matemático, tal como um teorema; a unção motivacional relaciona-se com o papel da estética na medida em que induz ou inspira a atividade matemática. Outra igualmente importante dimensão que se deve considerar é a epistemológia baseada na estética deve apresentar uma unção de: De que modo opera ou unciona a estética como um modo de conhecer? (BURTON, 2004, p. 66, tradução nossa). No trecho acima observamos a relação entre a unção generativa da estética com a invenção e descoberta. Note-se que, nesses momentos, o matemático, sob um ponto de vista psicológico, habita um mundo de incertezas, inseguranças e dúvidas. Situação bem dierente da execução de uma prova matemática que requer exatidão, generalidade, conexões lógicas e o conhecimento da estrutura matemática com a qual está lidando. Burton ressalva que, no âmbito de obtenção de um caminho para a aquisição de conhecimento, a unção generativa da estética adquire, na opinião dos matemáticos participantes do seu estudo, um caráter de acessibilidade, interesse, satisação, simetria, transparência e surpresa. Burton (2004, p. 71) relata, em seu estudo empírico que envolveu a participação de cerca de 80 participantes, que os matemáticos não alaram a respeito do papel da imaginação. História da Matemática
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A estética, para a maioria dos entrevistados, era concebida como um produto da cultura dos matemáticos, dentro desta, a comunidade a constitui como: estrutura, compacidade, conexão ou qualquer outra categoria uncional para a obtenção de conhecimento, particularmente, na relação com o produto matemático, provas e teoremas. Por outro lado, é importante distinguir o cognitivo do aetivo. E no caso destes dois modelos componentes, a estética e a intuição parecem ser inexplicavelmente interconectadas (BURTON, 2004, p. 72). Burton (2004, p. 72) acrescenta ainda que a intuição ornece, para muitos, a energia convincente que motiva e justifca o trabalho necessário na produção de estética a qual um número de matemáticos chama de “euphoria” que SAIBA MAIS! acompanha a resolução de problema. Embora para muitos, Sauriau (1881, p. 121) diz que quando ainda que nem todos destes matemáticos tenham sido mencionamos, por exemplo, a palavra consultados no seu estudo, a estética e a intuição parecem ‘triângulo’, ou se a vemos escrita, preencher dierentes unções psicológicas, evidenciamos imaginamos imediatamente a figura geométrica que aprendemos associar uma exaltação no reconhecimento da ligação da estética a este som ou letras. E de modo mais conectada com a prova. similar, se pronuncio ou escrevo esta Hadamard (1945, p. 41) nos ornece uma palavra, sabemos que a mesma não faltará em me sugerir uma concepção interessante explicação a respeito da noção de estética e semelhante. Assim, as palavras prova ao mencionar que: possuem a propriedade de despertar Pode ser surpreendente ver a sensibilidade emocional evocada em nossos espíritos certas imagens, que são o que denomino de significação. nas demonstrações matemáticas que, aparentemente, interessam apenas ao intelecto. [...] Esta é a verdadeira estética do sentimento que todos os matemáticos conhecem, e certamente pertence à sensibilidade emocional (tradução nossa). Assim como outros pensadores, Jacques Salomon Hadamard (1865-1963) comenta o papel do elemento aetivo, tanto na descoberta como na invenção matemática, que o mesmo az questão de dierenciar. Hadamard discute também outros elementos nem sempre explícitos na atividade do matemático que se relacionam de algum modo com a aculdade intuitiva. Com esta perspectiva, Hadamard discute os momentos em que o matemático trabalha de modo consciente na atividade solucionadora de problemas e outros momentos em que ocorrem determinados enômenos mentais sem o controle intencional e um pensamento sistemático. Hadarmard discute alguns pontos de vista ornecidos por Henri Poincaré. Recorda que Poincaré salientava a importância da intervenção de uma atividade consciente, após uma atividade mental inconsciente, não apenas para o emprego de uma linguagem conveniente, mas também para verifcar e precisar os resultados
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nais, uma vez que é agrante a insistência de Poincaré na atribuição de uma signifcação geométrica antes mesmo de possuir uma demonstração (ROBADEY, 2006, p. 1999). No que diz respeito à verifcação dos resultados, Hadarmard (1945, p. 64) esclarece que o sentimento de certeza absoluta que acompanha a inspiração geralmente corresponde à verdade; porém, este pode nos enganar . Em todo caso, seja num momento de esorço mental consciente ou estágio mental inconsciente em que se encontre o matemático, as imagens mentais e representações que alicerçam uma ideia particular proporcionam o terreno para a atividade intuitiva. Neste sentido, Souriau (1881, p. 12) explica: As imagens que concebemos a cada momento não surgem do caos, mas de um pensamento anterior. Antes que nossas ideias se combinem numa ordem presente, elas possuíam já certa SAIBA MAIS! ordem, ou nosso espírito já apresentava Sauriau (1881, p. 128) explica que determinada organização. Na medida em a linguagem é capaz de substituir o que em concebemos um pensamento novo, pensamento, uma vez que as palavras consideramos certo tipo de inteligência podem substituir as ideias, ao menos provisoriamente, e ver de que modo adquirida, e tal inteligência determinará, pode ser feito o emprego de signos no pelo menos em parte, o tipo de pensamento trabalho da invenção. que conceberemos (tradução nossa). Hadamard discute algumas das ideias de Paul Souriau, como a que destacamos no trecho acima. A expressão “pensar de lado” teve origem com Paul Souriau (1852 – 1926), com seu livro “Théorie de L’Invention”, de 1881. Tal atividade mental requer o emprego da intuição, na medida em que o indivíduo percebe a necessidade de relacionar as ideias objetivadas quando ‘pensava de lado’, e as ideias principais que buscava compreender. Notamos que, em todo caso, as ideias se combinam na dependência das imagens que ormamos. Por outro lado, quando alamos do aluno ou do indivíduo que tenta compreender um raciocínio empregado por um matemático prossional, identicamos diculdades consideráveis, uma vez que: Na procura de se abstrair ao máximo, o matemático se priva de uma determinada sorte de intuição e priva de modo similar o leitor que não compreende mais o porquê das defnições e acredita se perder numa nuvem escura (QUENNEAU, 1978, p. 23). Quenneau aponta um hábito peculiar na rente investigativa que em muitos casos se maniesta na sala de aula do locus acadêmico. Paradoxalmente, observamos uma História da Matemática
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mudança do modus operandi do matemático. De ato, enquanto, em sua pesquisa, as imagens mentais e representações provisórias auxiliavam seu raciocínio, na sala de aula, guras ou representações que ornecem ideias particulares podiam ser evitadas, em detrimento do alcance das ideias mais gerais que explicam os teoremas que devem ser discutidos. Além disso, no âmbito de sua pesquisa, os problemas são atacados, em muitos casos de modo indireto e de modo sistemático; entretanto, no seu ensino, apresenta argumentações diretas para a resolução denitiva de situaçõesproblema. Acrescentamos que, em muitos casos, o tempo didático não permite o exercício da ‘incubação’ das ideias que, para Hadamard, possibilitava a combinação e recombinação das ideias, de modo consciente ou não, com a expectativa do alcance, de modo individual, de uma solução. Com isto temos a oportunidade de proporcionar que o estudante vivencie situações de euoria e contentamento em virtude do alcance de um objetivo. Com consequência, o estudante não alcança o prazer de uma descoberta matemática, como consequência do exercício de sua imaginação; e assim, não compreende o que signica azer Ciência. Hadamard (1945) comenta de modo pitoresco o papel de imaginação quando considera que: Imaginação, por si só, não possibilita azer Ciência, entretanto, em certos casos, devemos explorá-la. Primeiramente, ocando o objeto que desejamos considerar, prevenimos os desvios de percurso [...] Imaginação pode ser essencial na solução de problemas por meio de várias deduções, e os resultados precisam ser coordenados após uma completa enumeração (p. 86, tradução nossa.)
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Em sentido contrário, não azemos Ciência e, de modo particular, não azemos Matemática quando desenvolvemos em nossos estudantes o hábito de exploração de sua capacidade imaginativa. Resulta na eliminação paulatina do espírito inventivo do estudante, que, segundo a opinião de Souriau (1881, p. 106), deve ser curioso e original. Com isto, o estudante permanece indierente à descoberta de uma verdade matemática e não ará nenhum esorço para pensar . Mas para pensar energicamente, é necessário o estabelecimento de um objetivo e o desejo de alcançá-lo, é necessário, em uma única palavra, ser curioso (SOURIAU, 1881, p. 106). Nesta seção analisamos alguns aspectos e elementos que explicam e se relacionam de modo íntimo com a intuição. Na sequência, discutiremos alguns exemplos particulares nos quais poderemos observar de que modo nossa intuição acarreta em conclusões errôneas, paradoxos, surpresas inesperadas e uma fagrante contradição com a teoria matemática ormal.
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03 TÓPICO
OS PARADOXOS RELACIONADOS À INTUIÇÃO MATEMÁTICA
OBJETIVO
Identificar paradoxos e situações em que o raciocínio intuitivo conduz a falsas concepções.
E
m vários contextos nos deparamos com atos matemáticos estranhos. De ato, desde os períodos escolares aprendemos que o conjunto dos números pares e o conjunto dos números impares azem parte da ‘coleção’ que chamamos de números naturais, todavia, ormalmente alando, podemos armar que existem mais naturais do que pares? Ou que existem mais números naturais do que ímpares? Outro conceito explicado de modo intuitivo e vago no contexto escolar é conhecido como números racionais e irracionais. No contexto acadêmico (LIMA, 2010), encontramos argumentações dando conta que dado um intervalo (a, b) , no mesmo podemos encontrar tanto um número racional como um número irracional. Ora, argumentações como esta não constituem demonstrações ormais, todavia, tais propriedades relacionam-se com algumas operações aprendidas na academia
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que preservam propriedades intrínsecas que podem contrariar nossos sentidos. Neste sentido, um dos nossos primeiros exemplos é discutido por Caraça (1951, p. 14) quando menciona que: A nossa operação da contagem vai ainda ornecer-nos o modelo (mas agora só o modelo) do que há a azer para comparar os vários tipos de infnito. Vimos que se realiza uma contagem azendo corresponder objetos a números; ‘Vejamos 58 será possível estender a ideia de correspondência aos conjuntos infnitos. Nada mais ácil; pela correspondência, a cada elemento vem associado antro pelo pensamento; não há mais que supor que esta operação - azer corresponder a - se pode repetir indefnidamente. Ora, se já aceitámos, duas vezes, a possibidade de repetição ilimitada dum certo ato mental porque não a admitir agora? Assentemos, portanto, em que se estende a conjuntos infnitos a noção de correspondência e vamos transportar para eles, tanto quanto possível, as coisas já adquiridas, em especial a noção de equivalência, tão importante, corno vimos, na contagem das coleções fnitas - se, entre os elementos de dois conjuntos infnitos, puder estabelecer-se uma correspondência biunívoca, esses dois conjuntos dizem-se equivalentes. O trecho de Caraça az reerências a vários aspectos interessantes. Inicialmente, o autor menciona a necessidade de realizarmos uma contagem dos elementos de um conjunto. Nos tempos atuais, quando dispomos de um conjunto A que apresenta uma quantidade nita de objetos, que podemos denotar por Car ( A) < ¥ ( Car := cardinalidade ), por denição, diz-se que isto ocorre quando existe uma bijeção : In ® A , onde In = {1,2,3,....., n} . Por exemplo, se temos dois conjuntos nitos A, B Ì U , onde Card (A) = n e Card (B ) = m , e se A Ì B , então, devemos ter que n £ m . Assim, por denição, podemos considerar duas bijeções : In ® A e ' : I m ® B , onde In Ì Im = {1,2,3,....,m}. Por exemplo, quando consideramos os conjuntos dos pares e ímpares à := {n = 2k, k Î } e I := {n = 2k + 1, k Î } , notamos que à I = Æ . Ademais, podemos intuir que Ã, I Ì , entretanto podemos realizar uma inerência visual na seguinte listagem:
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SAIBA MAIS! Paradoxo e antinomias: Em sentido amplo, «paradoxo» significa o que é «contrário à opinião recebida e comum», ou à opinião admitida como válida. Em Filosofia, paradoxo designa o que é aparentemente contraditório, mas que apesar de tudo tem sentido. Em Matemática, fala-se muitas vezes de paradoxo matemático ou paradoxo lógico, ou seja, de uma contradição deduzida no seio dos sistemas lógicos e das teorias matemáticas.
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2 4 6 8 10 12 14 ........ 2n 1 2 3 4 5 6 7 n De modo particular, relacionado com a noção de conjuntos innitos e outras noções, encontramos na matemática e na lógica um intenso debate que caracterizaram paradoxos.
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Uma das maneiras conhecidas de mostrar que o conjunto ´ é enumerável, isto é, que existe uma bijeção entre ´ e , (onde = {0; 1; 2; …} é o conjunto dos números naturais), é exibir uma bijeção de ´ sobre , inspirada na gura: (0; 0) (0; 1) (0; 2) (0; 3) … (1; 0) (1; 1) (1; 2) (1; 3) … (2; 0) (2; 1) (2; 2) (2; 3) … (3; 0) (3; 1) (3; 2) (3; 3) … … … … … Observando-a, podemos conjecturar a seguinte enumeração dos elementos do conjunto x : (0; 0); (1; 0); (0; 1); (2; 0); (1; 1); (0; 2); (3; 0); (2; 1); (1; 2); (0; 3);… Ou seja, colocamos, sucessivamente, os pares ( a; b) tais que a soma a + b assuma os valores 0; 1; 2; 3; …, e dentro da cada grupamento que tenha a + b constante (correspondente, na gura, a uma das diagonais indicadas), ordenamos os pares pela ordem natural de sua segunda componente. Obtém-se então a seguinte bijeção: : ´ → (0; 0) → 0 (1; 0) → 1 (0; 1) → 2 (2; 0) → 3 (1; 1) → 4 (0; 2) → 5 …………. Observamos que (x; y) é o lugar que ocupa (x; y) nesta enumeração (como estamos incluindo 0 em N , é preciso começar a contar a partir do 0-ésimo lugar). Uma questão interessante é construir uma órmula para esta unção e utilizar esta órmula para provar que é realmente uma bijeção descrita em : x ® . Para isto, seja (x; y) ´ . Observando a gura, vê-se que se ( x; y) or tal que x + y = s > 0, então o par (x; y) é precedido, pelo menos, por todos os pares ( u; v) tais que u + v = 0; 1; 2;…;s – 1.
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Existe um par que tem soma 0, dois que têm soma 1, e assim por diante, até s pares s(s + 1) que têm soma s – 1, de modo que esses pares são em número de 1 + ... + s = . 2 Além disto, já na sua diagonal, o par ( x; y) é precedido por y pares. (x + y)( x + y + 1) ( x + y) 2 + x + 3 y + y= Portanto, f( x; y) = . 2 2
Finalmente, constata-se diretamente que esta órmula também é válida se ( x; y) = (0; 0). Podemos então armar que é dada pela órmula analítica:
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: ´ ® ( x + y )2 + x + 3 y f( x; y) = 2
Eis um exemplo clássico em que nossa intuição parece contrariar o modelo lógico a partir da constatação de que sendo a unção bijetora, concluímos, por denição, que os conjuntos x e possuem a mesma quantidade de elementos. Para ilustrar e relacionar com os nossos conhecimentos sobre Cálculo, plotamos o gráco da unção : ´ ® e damos ênase aos pares ordenados do plano (x, y) Î ´ nos quais a unção originariamente está denida. Para cada ponto desta superície associamos uma imagem pertencente ao eixo (0,0, z ) Î ´ ´ .
Figura 1: Representação geométrica da função : ´ ®
Lima (2004, p. 42) ornece um exemplo interessante quando considera a situação em que Y é a base de um triângulo e X um segundo segmento paralelo a Y, unindo os outros dois lados desse triângulo. Toma ainda o ponto P o vértice oposto à base Y. Obtém-se assim uma correspondência biunívoca do tipo : X ® Y associando a cada ponto x Î X , o ponto (x ) onde a semirreta Px intersecta a base Y. Veja na Figura 2, lado esquerdo.
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Figura 2: Exemplos de Lima (2004) que contrariam a intuição
Na Figura 2, do lado direito, discute um exemplo no qual temos o conjunto X = C -{P } obtido retirando da circunerência o ponto ‘P’ e Y uma reta perpendicular ao diâmetro que passa por P. Defnindo-se uma correspondência biunívoca : X ® Y pondo, para cada x Î X , ( x) := interseção da semi-reta Px com a reta Y (LIMA, 2004, p. 43). Neste caso estabelecemos que os conjuntos X = C -{P } e Y possuem o mesmo numero cardinal, ou seja, podemos denir, no sentido de Lima (2004), uma correspondência biunívoca entre os mesmos. Em outros exemplos curiosos ornecidos por Domingues (1991), encontramos a unção f ( x) =
x
1+ x
denida em : ®] - 1,1[ , tomada como bijetora. Assim, por
meio da denição anterior, os conjuntos e ] -1,1[ possuem a mesma cardinalidade de elementos.
Figura 3: Bijeção entre a reta e um intervalo (DOMINGUES,1991, p. 247)
Por outro lado, antes de exibir tal unção, Domingues discute a possibilidade de se estabelecer uma bijeção entre os intervalos ]0,1[ e [0,1]. Neste sentido, o autor 1 1 1 1 explica que tomando [0,1] = A È {0,1, , ,....,...} e que ]0,1[= A È { , ,....,...} , 2 3 2 3 1 1 onde se tomou A = [0,1] -{0,1, , ,....,...} . A unção desejada denida em 2 3 :[0,1] ®]0,1[ é denida do seguinte modo:
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1 1 1 {0,1, , , ,....,...} È A 2 3 4 ß
1 1 1 { , , ,....,...} È 2 3 4
ß Identidade ou de modo analítico temos:
A
ìï 1 ïï se x=0 ïï 2 ïï 1 1 ( x) = ïí se x= ïï n+2 n ïïx se x Î A ïï ïïî
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Domingues (1991, p. 247) declara que tal unção é injetora, assim os intervalos ]0,1[ e [0,1] possuem a mesma cardinalidade. Num modelo geométrico relacionado ao Calculo Dierencial e Integral, o matemático Morris Klein (1908-1992) discute a noção de reta tangente a uma curva, no contexto de construção da derivada de uma unção. Questiona a partir de um desenho (Figura 4) se podemos acreditar que a curva e a reta candidata à tangente em um ponto possuem de ato apenas um ponto de interseção?
Figura 4: Desenho sugerido por Klein em 1893 em relação a noção intuitiva de derivada
Outro matemático de não menor importância (c. Figura 5) comenta as ilusões de ótica provocadas por ilustrações e guras. Em sua análise, a atividade intuitiva do observador desempenha papel undamental. Neste, como nos casos passados, nossas aculdades intuitivas, por meio de conclusões por vezes imediatas, tácitas, podem nos conduzir a equívocos e estimular o desenvolvimento de alsas concepções ou raciocínios inconsistentes, do ponto de vista lógico matemático.
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Figura 5: Gravura analisada por Klein (1985), que exemplifica a perspectiva linear
Assim como Felix Klein, Morris Kline e Henri Poincaré reerenciaram os equíivocos e contradições nos quais podemos incorrer quando apoiamos nossas conclusões predominantemente na intuição. Não que isto caracterize um deeito ou limitação que deve ser evitado e eliminado na atividade do matemático, ou na atividade do proessor e do aluno, entretanto é preciso atenção e vigilância no momento em que temos de utilizá-las. Mas aí intervém outra diculdade, a saber: quando de ato mobilizamos um raciocínio intuitivo? Quando ATENÇÃO! compreendemos algo, a partir de uma relação estabelecida Como já salientamos no curso de com um objeto matemático, por intermédio da intuição? Cálculo, grafamos o símbolo de limites Quais as características da intuição? com “L” maiúsculo. Assim faziam No ensino as respostas para estas questões possuem também os matemáticos Cauchy e M. Young. caráter indispensável para quem tenciona atuar no ensino. Caraça (1951, p. 233) aponta problemas no uso da linguagem matemática e da língua materna quando analisa o conceito de sequências de números reais denotadas por {xn }nÎ . Neste sentido, modernamente dizemos que uma sequência converge quando Limn®+¥ xn = L . Caraça considera que podem ter o mesmo signicado as seguintes sentenças: (i) a sucessão enumerável {xn }nÎ tem por limite L; (ii) a sucessão enumerável {xn }nÎ tende para L; (iii) a sucessão enumerável {xn }nÎ converge para L. Note-se que a opção por uma ou por outra
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expressão destacada por Caraça (1951) dependerá de uma preerência individual do solucionador de problemas e, nesta escolha, a intuição guiará o raciocínio, até de modo às vezes inconsciente. Na Figura 6, exibimos o comportamento de sequências numéricas que convergem. Baseando-se apenas nas guras, você, aluno, acredita æ n ö÷ æ 50n ö que vale Limn®+¥ çç ÷÷÷ = 0 ou que Limn®+¥ ççç ÷ =1? è n! ø è n + 1ø÷
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Figura 6: Exemplos de sequências de números reais convergentes
Para concluir esta seção, salientamos mais uma vez a dimensão losóca do raciocínio intuitivo. Algumas características do raciocínio intuitivo deverão ser caracterizadas, do ponto de vista psicológico. Nesta aula, tencionamos salientar seus aspectos losócos e epistemológicos. Muitos destes aspectos não são simples de se detectar e compreender. Por outro lado, o que deve car claro para o uturo proessor de Matemática é que, se desconhecemos as características, a natureza, a unção e a dimensão criativa da intuição na atividade matemática, nunca conseguiremos promover e estimular raciocínios desta natureza. Anal é bem mais ácil; e digamos “concreto”, estimular e desenvolver um ensino de Matemática baseado no pensamento algorítmico (OTTE, 1991). A ponta do iceberg na rente pedagógica é um ensino baseado em regras e memorização. Para os leigos, com pouca ou nenhuma ormação em Matemática, tal situação se explica dizendo: “Ah... Isto é culpa da metodologia do proessor!”. Ou dirão ainda “A matemática é a ciência dos números!”. Com maior preocupação, escutamos alguns desavisados se pronunciarem: “Vamos estimular o lúdico para que tudo que mais prazeroso!”. Concepções dessa natureza são recorrentes no ensino de Matemática, principalmente no discurso de pessoas que carregam consigo o saber matemático restrito ao escolar, entretanto uma visão e uma ormação losóca dessa ciência proporcionará um olhar critico do proessor de Matemática no sentido de questionar e evitar a evolução de concepções retrógradas, ideias inócuas e crenças equivocadas e pouco undamentadas.
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Aula 5
A construção axiomática dos números naturais, inteiros e racionais
Nas aulas passadas, apresentamos e discutimos o caráter filosófico dos Axiomas de Peano. Tal discussão torna-se essencial na medida em que tencionamos formar a visão epistemológica do futuro professor de Matemática. Nesta aula, retomaremos este assunto com o auxílio de argumentos axiomáticos modernos os quais Giuseppe Peano (1858-1932) não dispôs de métodos axiomáticos modernos para a construção e verificação das inclusões Ì Ì discutidas no contexto escolar. Concluiremos ainda nesta aula, a partir do desenvolvimento teórico devido a Ferreira (2010), que tanto as inclusões Ì Ì como outros fatos matemáticos admitidos de “modo intuitivo” no contexto escolar são completamente equivocados e formalmente incorretos.
Objetivo: •
Descrever a construção axiomática dos números naturais, inteiros e racionais.
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01 TÓPICO
UM PROBLEMA ANTIGO RELACIONADO À EQUAÇÃO POLINOMIAL DO SEGUNDO GRAU
OBJETIVO
Apresentar situações-problema de civilizações antigas que envolvem a equação quadrática.
N
as aulas passadas, tecemos algumas considerações acerca do conjunto . Nesta aula discutiremos algumas propriedades axiomáticas e teoremas interessantes que proporcionam resultados inesperados quando conrontados com nossa intuição. Neste sentido, recordamos que Ferreira (2010, p. 22) dene um conjunto X infnito quando existe uma unção injetora : ® X . Diz ainda que um conjunto é dito fnito quando não or infnito. Ou seja, um conjunto é innito quando contiver um subconjunto Y em bijeção com , o que também se expressa dizendo que Y é eqüipotente a . Acrescenta que: Há outras defnições de conjuntos infnitos (portanto, de conjuntos fnitos) obviamente equivalentes à que demos acima. Vale a pena comentar que uma das defnições, que é devida a Cantor, porque ela
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rompeu com o paradigma milenar grego de que o todo é sempre maior do que suas próprias partes. Um conjunto diz-se infnito quando existe uma bijeção entre ele e um subconjunto próprio dele (FERREIRA, 2010, p. 22).
Vale recordar a unção denida por Peano: (i) Axioma: Existe uma unção injetiva s : ® . A imagem s(n) de cada número natural n Î chama-se o sucessor de ‘n’; (ii) Axioma: Existe um único número natural 1 Î tal que 1 ¹ s (n) para todo nÎ ; (iii) Axioma: Se um conjunto X Ì é tal que 1 Î X e s( X ) Ì X , isto é, se n Î X ® s(n) Î X , então X = . Muitas das propriedades do conjunto dos números naturais conhecidas de modo intuitivo podem ser vericadas de modo axiomático e deveriam ser conhecidas pelo uturo proessor. Ferreira (2010, p. 23) enuncia o teorema: Seja a unção s : ® a unção sucessor, então, tem-se: i) s(n) ¹ n para todo n Î ; ii) Im(s (n)) = -{0} .
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Demonstração: Vamos admitir a unção sucessor s : ® . Denimos o conjunto A := {n Î tal que s(n) ¹ n}. Desejamos vericar que A = , ou seja, nenhum número natural é sucessor de si mesmo. Para tanto, usaremos o axioma (iii). De ato, notamos que A := {n Î tal que s(n) ¹ n} ¹ Æ , uma vez que s(0) ¹ 0 , para n = 0 Î , pois 0 Ï Im(s (n)) e s(0) Î Im(s (n)) . Vericaremos agora que se k Î A , então s(k ) Î A . De ato, se k Î A , pela denição deste conjunto s(k ) ¹ k . Aplicando a unção sucessor a ambos os membros, segue injetora que s(k ) ¹ k ® s (s (k )) ¹ s (k ) \ s(k) Î A . Pelo axioma (iii), chamado de Princípio da Indução, concluímos que A = . Para vericar (ii) Im( s (n)) = -{0} , usaremos o Princípio da Indução do seguinte modo: A = {0} È Im(s(n)) Ì . Ademais 0 Î A e vimos que se k Î A , então s(k) Î A . Logo A = e 0 Ï Im(s (n)) \ Im(s (n)) = -{0}. Ferreira (2010, p. 24) denota * = -{0} e diz que todo elemento de * é sucessor de um único número natural, que se chama seu antecessor . A partir disto, deniremos de modo axiomático as operações de soma (+) e multiplicação ( × ) de números naturais. Ferreira (2010, p. 24) dene a adição de dois números naturais, m e n designada
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ìïï(i) m + 0 = m por m + n e denida recursivamente do seguinte modo: í . ïïî(ii) m + s(n) = s(m + n)
A defnição acima nos ornece, então, a soma de um número arbitrário ‘m’ com ‘0’: m + 0 = m (FERREIRA, 2010, p. 25). ii i Ela nos dá também a soma de ‘m’ com s(0) : m + s(0) = s(m + 0) = s(m) (*). Temos, (*) ii ainda, usando as propriedades (i) e (ii): m + s(s(0)) = s (m + s(0)) = s(s (m )) (**). (**) ii Temos também: m + s(s( s(0))) = s(m + s (s(0))) = s (s(s(m ))) . A ormalização deste processo se dá pelo Princípio da Indução e nos mostra que a soma m + n está denida para todo par m, n Î . Introduziremos a amiliar notação para os números naturais que conhecemos desde nossa inância. Note-se que, quando denimos, a soma m + n está denida para todo par m, n Î . Até este momento não mencionamos nenhuma propriedade relacionada à comutatividade destes objetos, ou seja, m + n = n + m . Na sequência começaremos a caracterizar axiomaticamente esta propriedade.
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Definição: Indicaremos por ‘1’ (lê-se “um”) o número natural que é sucessor de 0, ou seja, i s s s = = \ + = + = 1 (0) . Notamos assim que 1 (0) 1 0 (0) 0 s (0) . Em seguida, Ferreira (2010, p. 25) enuncia a proposição
Proposição: Para todo número natural m, tem-se s(m) = m + 1 e s(m) = 1 + m . Portanto 1+ m = m +1 .
Demonstração: Como resultado desta proposição vericaremos a comutatividade da expressão 1 + m = m + 1 para este caso particular. De ato, a partir de (ii) escrevemos deinição ii i m + 1 = m + s(0) = s (m + 0) = s (m ) \ m + 1 = s (m ) . Falta vericar que s (m ) = 1 + m . Para tanto, Ferreira (2010, p. 26) emprega a seguinte estratégia: consideremos deinição o conjunto A := {m Î ; s(m)=1+m} . Claramente A ¹ Æ , pois s(0) = 1 . Mas vimos que 1 = s(0) \ s(0) = 1 + 0 , segue que 0 Î A ¹ Æ . Seja então m Î A , assim escrevemos (Hipótese de Indução - HP) s(m)=1+m . Vamos mostrar que s(m) Î A . HI ii De ato, notamos que s(s(m )) = s(1 + m ) =1 + s (m ) . Isto é, s(m) Î A . Pelo axioma 3 de Peano, teremos A := {m Î ; s(m)=1+m}= . Ferreira (2010, p. 26) prossegue explicando que como era de se esperar, passaremos a adotar a notação indo-arábica (de base dez) para os elementos de ; já temos os símbolos ‘0’ e ‘
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proposição
1 = s (0) ’. Deniremos: s(1) = 1 + 1 = 2 ; s(2) = 2 + 1 , s(3) = 3 + 1 e assim por diante. Reparamos as diculdades para vericar uma propriedade simples como s(m) = m + 1 = m + 1 . Daqui em diante, a partir dessas considerações axiomáticas, escrevemos: {0, s(0), s( s(0)), s (s (s (0))),.....} = {0,1,2,....}. A questão que se coloca agora é: contém outros elementos além destes? Se a resposta or negativa, teremos concluído que os axiomas de Peano realmente ormalizam a nossa ideia intuitiva de conjunto de números naturais? (FERREIRA, 2010, p. 26). Assim, poderemos enunciar o seguinte teorema. Teorema1 : = {0,1,2,3,....} .
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Demonstração: Seja S o conjunto S := {0,1,2,3,....}, desejamos estabelecer a igualdade acima. Ferreira (2010, p. 26) esclarece que S oi construído como um subconjunto de que contém o ‘0’, ou seja, 0 Î S e também o sucessor de qualquer elemento nele contido. Pelo principio da Indução, concluímos que S = . Ferreira (2010, p. 27) comenta ainda que 0 ¹ 1 , mas não sabemos ainda comparar ‘0’ com ‘1’, isto é, não ormalizamos ainda a ideia intuitiva de que ‘1’ é maior do ‘0’. Isso decorrerá a partir da defnição de uma relação de ordem em , que estabeleceremos proposição posteriormente. Para ilustrar, Ferreira (2010, p. 27): 1 + 1 = s (1) = 2 , 2 + 1 = s (2) = 3 , e ainda temos: ii
ii
2 + 2 = 2 + s (1)= s (2 + 1) = s (2 + s (0))= s (s (2 + 0)) = s (s (2)) = s (3) = 4 . ii
Por m temos 0 + 2 = 0 + s (1) = s (0 + 1) = s (1) = 2 . Ferreira (2010, p. 27) destaca que algumas propriedades da adição, que admitíamos como intuitivamente óbvias, são demonstradas no teorema seguinte com base nos axiomas de Peano e nas defnições precedentes. Teorema2 : Sejam m, n e p números naturais arbitrários. São verdadeiras as armações: i) Propriedade associativa da adição: m + (n + p) = (m + n) + p ; ii) Propriedade comutativa da adição: n + m = m + n ; iii) Lei do cancelamento da adição m + p = n + p Þ m = n .
Demonstração: Mostraremos inicialmente (i). Para tanto, xando os naturais m, n Î quaisquer, aplicaremos indução sobre ‘p’. Seja agora o conjunto A( m ,n ) := { p Î tal que m+(n+p)=(m+n)+p}Ì . De imediato, inerimos
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que
A( m ,n ) ¹ Æ , visto que 0 Î A( m ,n ) . Com eeito, basta notar que i i m+(n+0)=m+n=(m+n)=(m+n)+0 . Mostraremos que se k Î A( m ,n ) ® s (k ) Î A( m,n ) . De ato, notamos que, admitindo a hipótese indutiva k Î A( m,n ) , escrevemos: ii
ii
m+(n+s(k))= m + s(n + k) = s(m + (n + k))
A 5 T 1
Hipótese de indução
=
ii
s ((m + n) + k ) =(m + n) + s(k)
Segue que A( m,n ) := { p Î tal que m+(n+p)=(m+n)+p}= . Para vericar o item (ii), inicialmente necessitamos vericar que m + 0 = 0 + m , "m Î . Em seguida, xando m Î , dene-se o conjunto Cm := {n Î tal que n+m=m+n} . E por indução deve-se concluir que Cm := {n Î tal que n+m=m+n}= . A Lei do cancelamento ca como exercício para você, leitor. Deniremos em seguida propriedades relacionadas à multiplicação de números naturais.
Definição: A multiplicação de dois números naturais, m e n, é designada por m × n e denida ìïïm × 0 = 0 recursivamente do seguinte modo: í . ïïîm × (n + 1) = m × n + m
TEOREMA: Para m, n e p naturais arbitrários, valem as proposições abaixo: i) m × n Î , isto é, a multiplicação de ato é uma operação em ; ii) existência do elemento neutro multiplicativo 1× n = n × 1 = n ; iii) distributividade m × (n + p) = m × n + m × p e (m + n) × p = m × p + n × p ; iv) associatividade m × (n × p) = (m × n) × p ; v) m × n = 0 Þ m = 0 ou n=0 ; vi) comutatividade m × n = n × m .
Demonstração: Ferreira (2010, p. 30) destaca que novamente usa-se o Princípio da Indução para demonstrar todos os seis itens. Note-se que a importância do item (i) é que denimos uma ‘nova’ operação com dois números naturais m e n Î , denotada por m × n e precisamos garantir que, quando aplicada tal ‘operação’, continuamos ainda com um número natural. É o que quer dizer a implicação m × n Î . Faremos agora o item (ii), notando inicialmente que n × 1 = n . De ato, temos ii i n × 1 = n × (0 + 1) = n × 0 + n = 0 + n = n , usando a denição de multiplicação. Agora, por indução, veremos que 1× n = n . De ato, já temos, por denição, 1× 0 = 0 e, pela hipótese indutiva, escrevemos 1× n = n . Na sequência investigamos a expressão Hipótese
1× (n + 1) = 1× n + 1 = n + 1 . Segue o resultado. Para vericar (iii), Ferreira (2010,
116
Licenciatura em Matemática
p. 30) considera m.n Î arbitrários e, em seguida, usa indução sobre ‘p’. Seja então Pm ,n ( p) a armação caracterizada pela propriedade que tencionamos vericar, ou seja, m × (n + p) = m × n + m × p . Observamos que P m ,n (0) é verdade, pois m × (n + 0) = m × n deinição e m × n + m × 0 = m × n + 0 = m × n . Logo, m × (n + 0) = m × n + m × 0 . Vericaremos por indução que, se Pm ,n ( p) é verdade, então vale Pm ,n ( p + 1) . Com eeito, observamos que definição
m ⋅ (n + [ p + 1]) = m ⋅ ((n + p ) +1)
=
A 5 T 1
hipotese
m ⋅ (n + p ) +m
=
m ⋅n +m ⋅ p + m ⋅1 =
= m ⋅ n + (m ⋅ p + m ⋅ 1) = = m ⋅ n + (m ⋅ p + m ) = m ⋅ n + m ⋅ ( p +1).
Após desenvolver todas estas essas propriedades do ponto de vista axiomático, Ferreira (2010, p. 31) destaca que a relação de ordem em nos permitirá comparar os números naturais, ormalizando a ideia intuitiva de que ‘0’ é menor do que ‘1’, que é menor do que ‘2’, e assim por diante .
Definição: Uma relação binária R em um conjunto não vazio A diz-se uma relação de ordem em A quando satiszer as condições, para quaisquer x, y, z Î A , Re1: reexividade xRx ; Re2: antissimetria se xRy e yRx , então x = y ; Re3: transitividade se xRy e yRz , então xRz . Um conjunto não vazio A, munido desta relação de ordem, diz-se um conjunto ordenado. Na sequência, deniremos uma relação de ordem em através da operação da adição, tornando-o, portanto, um conjunto ordenado.
Definição: Dados m, n Î , dizemos que mRn se existir p Î tal que n = m + p .
Exercício: Mostre que é uma relação de ordem em . Denição: Para m, n Î , se mRn , onde R é a relação da denição anterior, dizemos que m é menor do que ou igual a n e passaremos a escrever o símbolo £ no lugar de R; assim, m £ n signicará mRn . Ferreira (2010, p. 32) destaca que a expressão “m é menor ou igual a n”, embora gramaticalmente incorreta, é de uso corrente desde o Ensino Fundamental. Mais adiante, Ferreira (2010) estabelece as notações: 1) Se m £ n , mas m ¹ n , escrevemos m < n e dizemos que m é menor do que n;
História da Matemática
117
2) Escrevemos n ³ m como alternativa a m £ n . Leremos n é maior do que ou igual a n; 3) Escrevemos n > m como alternativa a m < n . Leremos n é maior do que m.
TEOREMA (LEI DA TRICOTOMIA): Para quaisquer m, n Î , temos uma e apenas uma das seguintes relações: a) m < n b) m = n c) m > n
A 5 T 1
Demonstração: Deixamos para você, aluno, azer... Ferreira (2010, p. 34) comenta que a lei tricotomia equivale a dizer que, dados m, n Î , tem-se, necessariamente que m £ n ou m ³ n , isto é, dois naturais quaisquer são sempre comparáveis pela relação de ordem acima defnida. Por isso, uma relação de ordem que satisaz à lei da tricotomia é chamada de relação de ordem total. A partir desta relação, enunciamos os seguintes teoremas.
TEOREMA: (Compatibilidade da relação de ordem com as operações em ) Sejam a, b, c Î quaisquer. São válidas as seguintes implicações: i) a £ b Þ a + c £ b + c ii) a £ b Þ ac £ bc .
Demonstração: Deixamos para você, aluno, azer..
TEOREMA: (Lei do cancelamento da multiplicação) Sejam a, b, c Î , com c ¹ 0 , tais que ac = bc , então a = b .
Demonstração: Deixamos para você, aluno.
TEOREMA: Sejam a, b Î . Então a < b se, e somente se, a + 1 £ b .
Demonstração: Deixamos para você, aluno.
118
Licenciatura em Matemática
Para concluir esta parte inicial relativa à importante construção axiomática dos números naturais, apresentamos um teorema que refete um ato intuitivo claro desde o Ensino Fundamental: o de que todo subconjunto não vazio de números naturais possui um menor elemento (FERREIRA, 2010, p. 36). Observamos que tal propriedade não é vericada no conjunto dos números racionais. Por exemplo, se consideramos o subconjunto dos números racionais positivos, ele possui um menor elemento (Por quê?) (FERREIRA, 2010, p. 36). Já no conjunto dos números inteiros, só possuem elemento mínimo os subconjuntos que são limitados ineriormente. Formalmente, dizemos que um elemento a de um conjunto ordenado A é um menor elemento de A, se a £ x , para todo x Î A . Se a relação de ordem é total em A, tem-se um menor elemento, quando existe, é único, também chamado de elemento mínimo de A. Ele se denota por min( A) . De modo similar, dene-se maior elemento ou elemento máximo de um conjunto A, denotado por max( A) .
A 5 T 1
TEOREMA (PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO – PBO) Todo subconjunto não vazio de números naturais possui um menor elemento.
Demonstração: Deixamos para você, aluno. Concluímos este tópico destacando a importância, para o proessor de Matemática, de compreender e dominar a axiomática ormal subjacente à construção dos números naturais e, principalmente, de saber responder o questionamento reerente ao que é um número natural. Prosseguimos com a construção dos números inteiros.
História da Matemática
119
02 TÓPICO
A 5 T 1
AS DIMENSÕES FILOSÓFICAS DOS FUNDAMENTOS DA MATEMÁTICA II
OBJETIVO
Descrever a construção axiomática dos números inteiros.
N
o tópico anterior, alamos dos números naturais. Neste tópico prosseguimos a construção Ì . Sabemos que os números inteiros necessitaram de um tempo maior para serem completamente compreendidos, principalmente pelo ato de determinadas intuições equivocadas, construídas em anos iniciais da ormação escolar, precisarem ser esclarecidas. Nesse sentido, destacamos que, no inicio do capítulo reerente à construção axiomática dos números inteiros, Ferreira (2010, p. 41) explica que: Em estão defnidas duas operações que denominamos de adição e multiplicação. No Ensino Fundamental, os números inteiros negativos e suas propriedades são introduzidos para dar signifcado a certas subtrações, do tipo: 3 - 5, 8 - 13, etc . Uma vez introduzidos tais números, são “defnidas” as demais operações com eles, como: 3 - (-5),(-8) × (-3),8 ¸ (-4),(- 3)2 , etc. As aspas devem-se ao ato de que tais “defnições” são dadas de modo ingênuo, não rigoroso, numa tentativa de estender as operações aritméticas e suas propriedades no conjunto para o conjunto . E é isso mesmo o que está acessível ao estudante do Ensino Fundamental (embora mais se espere de seu proessor de matemática, para quem este livro oi escrito).
120
Licenciatura em Matemática
Ferreira (2010, p. 41) discute ainda que oi dessa orma empírica que os números inteiros negativos oram descobertos e aplicados na expressão matemática de certas situações e na resolução de problemas . Todavia, do ponto de vista do rigor matemático, apenas admitir a existência de números inteiros negativos e incorporá-los ao conjunto não é adequado. Além disso, temos em as operações de adição e multiplicação. A subtração, como entendemos na matemática elementar, não é, a rigor, uma operação em , conorme discutiremos mais adiante, em um exercício. Por essas razões, não seguiremos a linha adotada no Ensino Fundamental. O que aremos é construir esses números negativos a partir da estrutura aritmética que temos em , através das noções básicas de Teoria dos Conjuntos e de relações de equivalência ( FERREIRA, 2010, p. 42). A estratégia de Ferreira (2010) constitui-se em denir uma relação de equivalência no conjunto x . Assim, o autor concluirá que um número inteiro será então defnido como uma classe de equivalência dada por essa relação. O conjunto dos números inteiros será, portanto, o conjunto dessas classes de equivalência (p. 42). Lembramos que uma relação de equivalência sobre um conjunto não vazio X, segundo Aragona (2010, p. 9), é uma relação (binária) entre os elementos de X, que podemos indicar, por exemplo, por ‘~ ’, que tem as três propriedades seguintes: Re1) x ~ x , "x Î X (refexiva); Re2) Se x Î X , y Î X e x ~ y então y ~ x (simétrica). Re3) Se x Î X , y Î X , z Î X e x ~ y , y ~ z então x ~ z (transitiva). Mais adiante, Ferreira (2010) explica que sua estratégia será denir duas operações aritméticas em e mostrar que contém uma cópia algébrica do conjunto , num sentido que precisaremos na sequência. Por m, o autor declara que a operação de subtração em que, restrita a elementos da cópia de em , trará signifcado às operações do tipo 3 - 5 e às demais operações.
A 5 T 2
TEOREMA: A relação ‘ ~ ’ em x denida por (a, b) ~ (c, d ) quando a + d = b + c é de equivalência.
Demonstração: Vejamos cada um dos itens que exigem vericar para que de ato tenhamos uma relação de equivalência, entretanto, antes de desenvolvermos a demonstração ormal, vale destacar o comentário de Ferreira (2010, p. 43): [...] se admitirmos por um momento a nossa noção intuitiva de números inteiros e de subtração, notamos que a + d = b + c Û a - b = c - d , isto é, dois pares ordenados são equivalentes segundo a defnição
História da Matemática
121
acima, quando a dierença entre suas coordenadas, na mesma ordem, coincidem. [...] É esta a orma que os matemáticos do fnal do século XIX encontraram para iniciar a construção do conjunto sem mencionar subtração, mas trazendo na sua essência o germe dessa operação, tendo como ponto de partida o conjunto e suas operações, as noções de produto cartesiano e de relação de equivalência [...].
A 5 T 2
Após estas explicações losócas, para vericar a refexividade, observamos que (a, b) ~ (a, b) , pois temos sempre a + b = b + a , como propriedade herdada desde o conjunto . Para vericar a simetria descrita por (a, b) ~ (c, d ) , basta recorrer mais uma vez à comutatividade em , isto é, Em (a, b) ~ (c, d ) Û a + d = b + c Û c + b = d + a Û (c, d ) ~ (a, b) . Para vericar a transitividade, podemos inerir que, se (a, b) ~ (c, d ) e (c , d ) ~ (e, ) , então (a, b) ~ (e, ) . Mas esta demonstração deixamos como tarea para você, aluno. Denotaremos por (a, b) a classe de equivalência do par ordenado (a, b) pela relação ‘ ~ ’, isto é, (a, b) := {( x, y) Î x tal que (x,y) ~ (a, b)} . Por exemplo, podemos observar os elementos pertencentes às seguintes classes: i) (3,0) = {(3,0) ,(4,1) ,(5,2) ,(6,3) ,.......,....}; ii) (0,3) = {(0,3) ,(1,4) ,(2,5) ,(3,6) ,.......,....}; iii) (5,2) = {(3,0) ,(4,1) ,(5,2) ,(6,3) ,.......,....}. Notamos que (3,0) = (5,2) que é consequência de um teorema que pode ser acilmente demonstrado (ver exercícios no nal desta aula). A próxima denição é crucial para nossa construção. DEFINIÇÃO: x O conjunto quociente ou x ~ é constituído pelas classes de equivalências ~ (a, b) , se denota por , e será chamado de conjunto dos números inteiros. Assim, æ x ö÷ estabelecemos = çç ÷ = {(a, b) tal que (a,b) Î x} . è ~ ø÷ A partir desta denição, descreveremos o modo de operar os elementos deste novo conjunto. Assim, poderemos alar da noção de adição e subtração em . Temos agora (a, b) ~ (x, y) que equivale a (a, b) = (x, y) , expressa pelo ato de que a + y = b + x « (a - b) = x - y . Vamos utilizar esta observação como ponto de partida para buscar uma defnição rigorosa de adição de inteiros (FERREIRA, 2010, p. 44). Veremos então o que deveria ser (a, b) + (c, d ) . Neste sentido, Ferreira (2010, p.44) argumenta que se (a, b) expressa, em essência, a “dierença”
122
Licenciatura em Matemática
( a - b) ,
e
(c , d )
expressa
( c - d ) ,
a
( a - b) + ( c - d ) = a - b + c - d = a + c - b - d
matemática
elementar
nos
dá
associatividade
=
(a + c ) - (b + d ) . E esta
última expressão se traduz, no nosso contexto, como a classe (a + c, b + d ) . Passando a limpo, obtemos a defnição ormal de adição de inteiros, sem mencionar subtrações de naturais nem elementos da matemática elementar (FERREIRA, 2010, p. 45).
A 5 T 2
DEFINIÇÃO: æ x ö÷ Dados (a, b) e (c, d ) em = çç ÷ , deniremos a soma de dois elementos è ~ ø÷ (a, b) + (c, d ) := (a + c , b + d ) .
Ao defnirmos objetos que envolvem classes de equivalências, é necessário verifcarmos que tais defnições não dependem de como os representamos em classes (FERREIRA, 2010, p. 45). Nesse sentido, Ferreira (2010, p. 45) observa que, pela defnição, teríamos (3,5) + ( 4,1) = (7,6) . No entanto, temos também (2,4) = (3,5) e (3,0) = ( 4,1) , logo deveríamos ter (2,4) + (3,0) também igual a (7,6) . E pela defnição dada, (2,4) + (3,0) = (5,4) , elizmente, é igual a (7,6) . Mostraremos agora que isso vale, em geral, isto é, a defnição dada não depende dos representantes das classes de equivalências envolvidas. Neste caso, dizemos que a adição de números inteiros está bem denida.
TEOREMA: Se (a, b) = (a ', b ') e (c, d ) = (c ', d ') , então (a, b) + (c, d ) = (a ', b ') + (c ', d ') , isto é, a adição de números inteiros + está bem denida.
Demonstração: Sabemos pelo teorema anterior que, se (a, b) = (a ', b ') , então (a, b) ~ (a ', b ') Û a + b ' = b + a ' . Por outro lado, temos (c, d ) = (c ', d ') , então, (c, d ) ~ (c ', d ') Û c + d ' = d + c ' . Logo, temos: (a, b) + (c, d ) := (a + c , b + d ) e (a ', b ') + (c ', d ' ) := (a '+ c ', b '+ d ') . Ferreira (2010, p. 46) verica que os dois segundos membros coincidem. Mas isto equivale a vericar que (a + c) + (b '+ d ') = (b + d ) + (a '+ c ') . O resto deixaremos a seu cargo, aluno.
TEOREMA: A operação de adição em é associativa, comutativa, tem (0,0) como elemento neutro e vale a lei do cancelamento, como em . Além disso, vale a propriedade do elemento oposto (ou simétrico, ou inverso aditivo): dado (a, b) Î , existe um único (c, d ) Î tal que (a, b) + (c, d ) = (0,0) Î . Este (c , d ) Î é o
História da Matemática
123
elemento (b, a) Î .
Demonstração: Deixamos a seu cargo, aluno. DEFINIÇÃO: Dados (a, b) Î e (c, d ) Î , denimos o produto (a, b) × (c, d ) como sendo o inteiro (ac + db, ad + bc) .
A 5 T 2
TEOREMA: A multiplicação em está bem denida, isto é, se (a, b) = (a ', b ') e (c, d ) = (c ', d ') , então (a, b) × (c, d ) = (a ', b ') × (c ', d ') .
TEOREMA: A multiplicação em é comutativa, associativa, tem (1,0 ) como elemento neutro da multiplicação e é distributiva em relação à adição. Além disso, vale a propriedade do cancelamento multiplicativo, isto é, se a, b , g Î , com g ¹ (0,0) , então se ag = bg ® a = b .
Demonstração: Deixamos para você, leitor. Ferreira (2010, p. 50) explica que como em , vamos comparar os elementos de através de uma relação de ordem. Com motivações análogas àquelas que precederam as defnições de adição e de multiplicação, temos a seguinte defnição:
Definição: Dados os inteiros (a, b) Î e (c, d ) Î , escrevemos (a, b) £ (c, d ) , quando a + d £ b + c . Os símbolos ³,< e < defnem-se de orma análoga à que fzemos para a relação de ordem em (FERREIRA, 2010, p. 50). Como nos casos da adição e multiplicação, verica-se que a relação de ordem denida por Ferreira (2010) está bem denida. Os símbolos de desigualdade utilizados para a relação de ordem em são os mesmos que utilizamos para a relação de ordem em , mas o contexto deixará claro que ordem está sendo considerada (FERREIRA, 2010, p. 50).
TEOREMA: A relação
124
£
denida acima é uma relação de ordem em , ou seja, é refexiva,
Licenciatura em Matemática
antissimétrica e transitiva. Além disso, essa relação é compatível com as operações em , isto é, para quaisquer a, b , g Î ,vale: a) a £ b Þ a + g £ b + g ; b) se a £ b e g ¹ (0,0) Þ ag £ bg ; c) (Lei da tricotomia): apenas uma das situações seguintes ocorre: a = (0,0) ou a > (0,0) ou a < ( 0,0) .
A 5 T 2
Demonstração: Deixamos a seu cargo, leitor. DEFINIÇÃO: Dado (a, b) Î , dizemos que: i) (a, b) é positivo quando (a, b) > (0,0) ; ii) (a, b) é não negativo quando (a, b) ³ (0,0) ; iii) (a, b) é negativo quando (a, b) < (0,0) ; iv) (a, b) é não positivo
quando (a, b) £ (0,0) . Ferreira (2010, p. 52) observa que (a, b) ³ (0,0) Û a + 0 ³ b + 0 \ a ³ b . Analogamente, se (a, b) > (0,0) Û a + 0 > b + 0 \ a > b . Ademais, se (a, b) £ (0,0) Û a £ b . Essa observação está de acordo com a ideia de que a classe de equivalência (a, b) Î representa a “dierença a - b ”. Tornaremos essa ideia precisa mais adiante, ao nal das observações após o próximo teorema. Observamos ainda que se (a, b) Î é positivo, como vimos que a > b , então existe m Î * tal que a = b + m . Esta igualdade equivale a (a, b) = (m,0 ) . Analogamente, se (a, b) Î é negativo, então existe m Î * tal que (a, b) = (0, m) . Essas observações levantadas por Ferreira (2010, p. 52) e o princípio da Tricotomia nos dizem que: = {( 0, m) tal que m Î * } È{(0,0)}È{(m,0) tal que m Î * } sendo uma união disjunta. A partir desta constatação, utilizaremos as seguintes notações: * * *+ = {(m,0) tal que m Î * } , - := {(0, m) tal que m Î } , + = *+ È {(0,0)}, - = *- È {(0,0)} . Note-se ainda que o conjunto dos números inteiros não negativos, + , está em bijeção com . Esta bijeção é bastante especial porque mostra que + é uma “cópia algébrica” de , no sentido dado pelo teorema seguinte (FERREIRA, 2010, 51).
TEOREMA: Seja : ® dada por f( m) = ( m,0) . Então, é injetora e valem as propriedades: i) (m + n) = (m) + (n) ; ii) ( mn) = ( m) ( n) ; iii) Se m £ n então (m) £ (n) .
História da Matemática
125
Demonstração: Deixamos a seu cargo, aluno. Ferreira (2010, p. 53) comenta ainda que o conjunto ( ) = + tem, pelo teorema acima, a mesma estrutura algébrica que . Por exemplo, 3 + 5 = 8 em , corresponde, via , a (3,0)+(5,0) = (8,0) . Do mesmo modo, 3 × 5 = 15 se preserva, via , como (3,0) × (5,0) = (15,0) . Finalmente, a relação 3 £ 5 se preserva, via , como (3,0)£(5,0) , o que confrma nosso comentário do início desta seção de que a ordem em é uma extensão da ordem de (FERREIRA, 2010, p. 53). Assim, do ponto de vista das operações aritméticas e da ordenação, + é indistinguível de . Embora, no nosso contexto, não seja um subconjunto de , sua cópia algébrica + o é (FERREIRA, 2010, p. 53). Na sequencia, notamos que : ® acima chama-se uma imersão de em . Esta imersão mostra que é innito. Obtemos, então, sob a identicação de com + , via , que: = {-m tal que m Î * } È {0} È * = {...,...,-m,.... - 2,-1,0,1,2,...., m,....} como no Ensino Fundamental. Em seguida, Ferreira (2010. p. 54) mostra que, à semelhança de , o conjunto é bem ordenado.
A 5 T 2
DEFINIÇÃO: Seja X um subconjunto não vazio de .Dizemos que X é limitado ineriormente se existe a Î , tal que a £ x , para todo x Î X . Um tal a se chama cota inerior de X. Analogamente, denimos subconjunto de limitado superiormente e cota superior dele.
TEOREMA (PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO PARA ) Seja X Ì não vazio e limitado ineriormente. Então X possui elemento mínimo.
Demonstração: Seja a uma cota inerior de X , isto é, a £ x Û x - a ³ 0 , "x Î X . Consideremos o conjunto X ' = {x - a| x Î X} . Claramente, vemos que X ' = {x - a| x Î X}Ì (identicado com + ) e, pelo Princípio da Boa Ordenação em , o conjunto X ' possui elemento mínimo, digamos m ' . Assim, m ' Î X ' e m ' £ y , para todo y Î X ' . Armamos que m = m '+ a é um elemento mínimo do conjunto X . Primeiramente, Ferreira (2010, p. 55) explica que m Î X , pois m ' = m - a Î X ' . Em segundo lugar, m £ x , "x Î X , uma vez que isso equivale a m - a £ x - a , para todo x Î X , ou seja, m ' £ y , " y Î X ' , que é verdade pela denição de m ' . Logo, m é o elemento mínimo de X.
126
Licenciatura em Matemática
Em seguida, Ferreira (2010, p. 55) enuncia o seguinte corolário. COROLÁRIO: Seja x Î tal que 0 < x £ 1 , então x = 1 .
Demonstração: Use como sugestão o conjunto A = { y Î | 0
A 5 T 2
COROLÁRIO: Sejam n, x Î , tais que n < x £ n + 1 , então x = n + 1 .
Demonstração: Deixaremos para você, aluno. DEFINIÇÃO: ìïïx se x ³ 0 x x Seja Î , denimos o valor absoluto de s, denotando por = í . ïïî-x se x<0 DEFINIÇÃO: Um elemento x Î diz-se inversível se existe y Î tal que xy = 1 . PROPOSIÇÃO: Os únicos elementos inversíveis em são 1 e -1.
Demonstração: Seja então x Î * um elemento inversível, tal que xy = 1 . Segue a partir da propriedade de módulo 1 = 1 = xy , e como x ³ 0 , y temos xy = x y = 1 \ x > 0 e y > 0 . Assim, podemos concluir x ³ 1 e y ³ 1 , multiplicando a última desigualdade por x . Segue y ³ 1 Þ 1 = x × y ³ 1× x ³ 1× 1 = 1 \ 1³ x ³ 1 Û x = 1 ou x=- 1 .
que, ³0, que que
Exercício:
ìï2n - 1 se n>0 Mostre que (n) = ïí é uma bijeção de : ® . ïïî-2n se n £ 0 Para concluir esta seção, vale destacar as considerações de Ferreira (2010, p. 57) ao mencionar que Cantor rompeu o paradigma grego de que “o todo é sempre maior do que suas partes próprias”, como vimos também na aula anterior. Cantor caracterizou conjuntos infnitos que podem ser colocados em bijeção com uma parte própria sua (FERREIRA, 2010, p. 58). Nesta aula procedemos com a construção axiomática dos números inteiros. Na aula seguinte. abordaremos a construção dos números racionais, denotados por , ao discutir as inclusões Ì Ì . Os números que, no senso comum, são interpretados como “pedaços de pizza” ou “partes de um bolo” no contexto escolar, evidenciam uma acepção supercial que não pode ser suciente para um uturo proessor de Matemática.
História da Matemática
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03 TÓPICO
A 5 T 21
AS DIMENSÕES FILOSÓFICAS DOS FUNDAMENTOS DA MATEMÁTICA III
OBJETIVO
Descrever a construção axiomática dos números racionais.
P
arece-nos temerário para o uturo proessor de Matemática saber exemplicar os números racionais somente por meio de exemplos concretos como “pedaços de pizza” ou “pedaços de bolo”. Assumimos que o proessor deve conhecer bem mais do que o estudante e ter condições de interpretar a teoria ormal subjacente a cada situação de ensino. Com relação a um ato semelhante, destacamos que, no início da construção do conjunto dos números racionais, Ferreira (2010, p. 61) comenta que: No Ensino Fundamental, aprendemos que um número racional é a “razão” ente dois números inteiros. Assim, por exemplo, o número 3 é a “razão” entre 3 e 5. O termo “razão” naquele contexto signifca 5 3 “divisão”. Dessa orma, é o mesmo que 3 : 5 , que tem o mesmo 5 resultado da divisão 6:10 , o qual se escreve como 0,6 . No nosso contexto, os termos “razão”, “divisão” e mesmo “ração” devem ser defnidos com base no que já temos, isto é, o conjunto dos números inteiros e suas propriedades algébricas.
128
Licenciatura em Matemática
Ferreira (2010, p. 61) observa ainda que em estão defnidas apenas as operações de adição, de multiplicação e a subtração, que é um caso particular da adição : a - b , que é por denição a + (-b) , onde -b é o simétrico de b. Ferreira (2010, p. 61) explica ainda que: Poderíamos tentar defnir a divisão de modo análogo à defnição de subtração, ou seja, a : b = a × b-1 , onde b-1 é o inverso multiplicativo de b, isto é, o número que multiplicado por b resulta no neutro multiplicativo 1 (do mesmo que o simétrico de b é o número -b , que somando a b resulta o neutro aditivo 0). O problema é que os únicos elementos inversíveis de são o 1 e o -1 [...] logo não az sentido a defnição de divisão acima, dentro dos propósitos de uma defnição rigorosa de número racional.
A 5 T 3
Ferreira (2010, p. 62) destaca ainda que, para se chegar a uma denição adequada, novamente trabalha-se com o conceito de relação de equivalência, do mesmo modo que empregamos para defnir um número inteiro a partir do conceito de número natural. Consideremos o conjunto x* := {( a, b) tal que a Î e b Î * } . Denimos nele a relação (a, b) ~ (c, d ) Û ad = bc . Em seguida temos o seguinte teorema.
TEOREMA: A relação (a, b) ~ (c, d ) Û ad = bc é de equivalência.
Demonstração: Ferreira (2010, p. 62) diz que a prova de que ~ tem as propriedades refexiva e simétrica ca como exercício. Quanto à propriedade transitiva, se (a, b) ~ (c, d ) e (c , d ) ~ (e , ) , então queremos mostrar que (a, b) ~ (e, ) , isto é, se ad = bc e c = de , então a = be . Multiplicando ambos os membros da primeira igualdade por ‘’ e da segunda igualdade por ‘b’, obtemos ad = bc e bc = bde , onde segue que ad = bde , cancelando d ¹ 0 , obtemos o que queríamos. É por causa deste último detalhe da demonstração que partimos de x* e não de x (FERREIRA, 2010, p. 62). DEFINIÇÃO: a Dado (a, b) Î x * , denotamos por (que se lê “a sobre b”) a classe de equivalência b a do par (a, b) pela relação ~ acima. Assim, = {(x, y) Î x* se (x,y)~(a,b)} . b
TEOREMA (PROPRIEDADE FUNDAMENTAL DAS FRAÇÕES) Se (a, b) e (c, d ) são elementos de x* , então
a c = Û ad = bc . b d História da Matemática
129
Demonstração: Deixaremos a seu cargo, leitor. a . Trata-se de b uma classe de equivalência com respeito à relação de equivalência que acabamos de introduzir (FERREIRA, 2010, p. 63). Temos agora um signifcado preciso para o símbolo de ração
A 5 T 3
DEFINIÇÃO: Denotamos por , e denominamos conjunto dos números racionais, o conjunto quociente de x * pela relação de equivalência ~ , isto é, a x * ) ( = = { tal que a Î e b Î * } como no Ensino Fundamental ~ b (FERREIRA, 2010, p. 63). A partir de agora, podemos denir algumas operações neste conjunto, dotando-o, portanto, de uma estrutura algébrica que estudaremos posteriormente. No Ensino Fundamental, aprendemos que Ì . É claro que do nosso ponto de vista atual isso não az sentido, pois os elementos de são classes de equivalência de pares inteiros, logo de natureza dierente da dos números inteiros (FERREIRA, 2010, p. 64). Ferreira (2010, p. 64) destaca ainda que: No entanto, veremos que existe uma aplicação injetora de em que “preserva” as operações aritméticas e, dessa orma, permite que a imagem de em por essa aplicação seja uma cópia algébrica de em . Assim, do ponto de vista da álgebra, poderemos considerar como um subconjunto de . Note a analogia com a imersão de em .
DEFINIÇÃO: a c Sejam e números racionais, isto é, elementos de . Denimos as operações b d a c ad + bc chamadas de adição e de multiplicação, respectivamente, por: (*) + = e bd bd a c ad + bc (**) = . bd bd
TEOREMA: As operações + e × estão bem denidas.
Demonstração: Deixaremos para você, leitor.
130
Licenciatura em Matemática
TEOREMA: O conjunto , munido das operações acima, tem as propriedades algébricas de 0 1 , onde o elemento neutro aditivo é e o neutro multiplicativo é . Além disso, 1 1 a 0 c a c 1 dado ¹ Î , existe Î tal que = , isto é, todo elemento não nulo de b 1 d b d 1 tem inverso multiplicativo.
A 5 T 3
Demonstração: Deixaremos para você, leitor. De modo semelhante ao que ez no conjunto dos números inteiros, Ferreira (2010, p. 67) dene a seguinte relação de ordem em . DEFINIÇÃO: a c a c Sejam e números racionais, com b, d > 0 . Escrevemos £ , quando b d b d a c ad £ bc e dizemos que é menor do que ou igual a . b d
TEOREMA: A relação .
£ , introduzida acima, está bem denida e
é uma relação de ordem em
Demonstração: Deixaremos para você, aluno.
TEOREMA (LEI DA TRICOTOMIA) Dados r , s Î , um, e apenas uma, das situações seguintes ocorre: ou r = s , ou r < s ou s < r .
Demonstração:
a c e s = Î , com b, d > 0 , vamos comparar os inteiros ad b d e bc . Pela Lei da Tricotomia em , ou ad = bc , em cujo caso ocorre r = s , ou ad < bc , em cujo caso ocorre r < s , ou ad > bc , em cujo caso ocorre s < r . Além disso, a validade de uma das armações exclui a validade das outras. n Em seguida, Ferreira (2010, p. 68) dene a unção i : ® por i(n) = , para 1 todo n Î . Esta é a unção de que alamos anteriormente, que “imerge” em . Assim, podemos enunciar o seguinte teorema.
Escrevendo r =
História da Matemática
131
TEOREMA: A unção i : ® , acima denida, é injetora. Além disso, ela preserva as operações e a relação de ordem de em no seguinte sentido: 1. i(m + n) = i(m) + i(n) 2. i(m × n) = i( m) × i( n)
3. se m £ n , então i(m )£ i(n) .
A 5 T 3
Demonstração:
m n = Û n × 1 = m × 1 Û n = m (1-1). 1 1 Mostremos que i : ® preserva a estrutura algébrica de . Do seguinte modo deinição n m deinição n × 1 + m × 1 n + m deinição i ( n ) + i( m ) = + = = = i(m + n) . De modo semelhante, 1 1 1× 1 1 vericamos as outras condições. n Assim, o conjunto i() = { tal que n Î } é uma cópia algébrica de em , 1 no sentido de i : ® i() Ì . Essa imersão de em também mostra que é innito, já que contém uma cópia de que é innito e enumerável. Antes de demonstramos os teoremas mais importantes que encerram esta seção, enunciamos o lema.
No item (i) temos que se i(m) = i(n) Û
Exercício: SejamXumsubconjuntodeumuniversoUe {An }nÎ Ì U umaamíliadesubconjuntos de U. Mostre que X \ (UnÎ An ) = ÇnÎ ( X \ An ) e X \ (ÇnÎ An ) = ÈnÎ ( X \ An ) , UnÎ An = {x Î U tal que x Î A n , para algum n Î } lembrando que e ÇnÎ An = {x Î U tal que x Î A n , " n Î } . Lema1 : Todo subconjunto innito de é enumerável.
Demonstração: Seja X um subconjunto innito de e x0 seu menor elemento, que existe devido ao Principio da Boa Ordem. Como X é innito, o conjunto Y0 = X -{x0 } ¹ Æ . Seja agora x1 o menor elemento de Y 0 . De modo indutivo, obteremos por meio deste raciocínio os elementos x0 , x1 , x2 , x3 ,....., xn . Em seguida, obtemos o elemento xn+1 como o menor elemento de Yn = X -{x0 , x1 , x2 , x3 ,......, xn } ¹ Æ , para todo n Î . Caso contrário, o conjunto X seria nito. Armamos agora que: = X = {x0 , x1 , x2 , x3 ,......, xn ,.....,....} = {x0 } È{x0 , x1} È{ x0 , x1, x2} È ..... = ÈnÎ An onde An = {x0 , x1 , x2 , x3 ,......, xn } . De ato, pelo exercício anterior, podemos escrever que X \ (UnÎ An ) = ÇnÎ ( X \ An ) = ÇnÎ (Yn ) . Assim, se existisse mais algum x Î X - (UnÎ An ) , tal que x Î [ÇnÎ (Y n )] , e como tal, deveria ser maior do que x0 , com mesma razão, deve ser maior do que x1 , por estar em Y 1 , e, assim,
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Licenciatura em Matemática
sucessivamente. Deste modo, x deveria ser maior do que xn , para todo n Î . Nesse sentido, o conjunto innito X = {x0 , x1 , x2 , x3 ,......, xn ,.....,....} Ì Ix , onde Ix = {1,2,3,......, x} e seria, portanto, nito, uma contradição. No que segue, Ferreira (2010, p. 70) aplica o Teorema Fundamental da Aritmética. Seu enunciado intuitivo, segundo Ferreira, pode ser descrito por: todo número natural maior do que 1 pode ser expresso como produto de números primos. Além disso, essa atoração é única, a menor da ordem dos atores . a Lema2 : Todo número racional positivo , ( a, b > 0 ), pode ser escrito, de modo b m único, como uma ração irredutível, isto é, na orma , onde m e n são relativamente
A 5 T 3
n
primos entre si, isto é, não possuem atores primos em comum.
Demonstração: Deixaremos como tarea para você, leitor. PROPOSIÇÃO: *+ é enumerável.
Demonstração: Consideremos os números racionais escritos na orma irredutível, dada pelo lema æmö anterior. Seja : *+ ® dada por çç ÷÷÷ = 2m × 3n . O teorema Fundamental da ènø Aritmética e a unicidade da representação de rações na orma irredutível, dada pela proposição acima, mostram que é 1-1 e tem como imagem um subconjunto innito de , que é, enumerável. TEOREMA: é enumerável.
Demonstração: Basta escrever = *- È{0}È *+ . Para concluir com algumas propriedades a mais do conjunto , sublinhamos que este conjunto está munido das duas operações, adição e multiplicação, estudadas acima (FERREIRA, 2010, p. 72). Pode-se denir a partir destas operações, mais duas a subtração e a divisão, simbolizadas por “ - ” e “ ¸ ”, respectivamente, da seguinte orma: se r , s Î , dene-se r - s = r + (-s ) como em e, se s ¹ 0 , r ¸ s = r × s -1 . Ferreira (2010, p. 72) destaca que, estritamente alando, a divisão não seria em , uma vez que seu domínio não é x e sim x* . Por m, Ferreira (2010, p. 73) sugere o interessante exercício.
História da Matemática
133
Exercício: Mostre que não é bem ordenado, isto é, existem em subconjuntos não vazios, limitados ineriormente que não possuem elemento mínimo. Apesar de não ser bem ordenado como e , possui todas as propriedades aritméticas de , além da propriedade de que todo elemento não nulo possui inverso. Na linguagem algébrica, qualquer conjunto munido de duas operações, + e × , com propriedades aritméticas análogas às de chama-se de corpo. Se, além disso, um corpo estiver munido de uma relação de ordem compatível com suas operações aritméticas, ele é chamado de corpo ordenado. Assim, é um exemplo de corpo ordenado (FERREIRA, 2010, p. 73). Na próxima aula, estudaremos a construção axiomática dos números reais. Se, até este momento, o leitor não captou a “essência” de tudo o que está sendo estabelecido, ou melhor dizendo, não compreendeu a dimensão losóca do que oi discutido, aconselhamos uma releitura do todo o trecho anterior em que descrevemos a construção dos racionais. Em termos práticos do oício, achamos comprometedor um egresso de um curso de graduação em Matemática desconhecer a “natureza” e não saber dizer o que de ato é um número natural, um inteiro ou um número racional. Nem muito menos compreender as razões de sua existência. Retomaremos estas questões preocupantes na última aula. E antes de concluir esta seção, cabe reorçar algumas argumentações e pontos de vista assumidos desde o início do curso. O primeiro diz respeito à importância, para quem tenciona ser proessor de Matemática, de conhecer, compreender e transmitir a natureza dos objetos com os quais lida. Sublinhamos bem no início do curso a situação lastimável em que encontramos pessoas que concebem a Matemática como a “ciências dos números”. Pararaseando Platão, estas pessoas possuem, em nosso entendimento, um “espírito pesado” para a Matemática, pois a Matemática é bem mais do que isso. De ato, vimos nas aulas passadas situações em que a existência de um certo objeto é a priori admitida e, a partir da orça de uma teoria axiomática desenvolvida e um ormalismo adequado, não se chega a outra conclusão dierente da real existência daquele objeto. A história da Matemática é marcada por eventos dessa natureza. Situações nas quais nem mesmo os matemáticos prossionais sabiam ao certo com que lidavam, mas admitiam e aceitavam sua existência com a intenção de extrair alguma propriedade logicamente aceitável. Ora, isto é Filosoa da Matemática pura! Destacamos o excerto abaixo creditado ao grande matemático Morris Kline.
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Em suas palavras, observamos alguns conselhos e cuidados no que diz respeito ao ormalismo excessivo no ambiente escolar ao declarar que: As origens históricas dos conceitos e processos matemáticos não têm naturalmente necessidade de ser a abordagem pedagógica. Contudo, uma objeção válida à criação de novos conceitos e operações através dos mais antigos é a alta de sentido do que é apresentado. Por exemplo, para introduzir números negativos, alguns textos modernos perguntam, “Qual o número que somado a 2 dá 0? Eles então apresentam – 2 como o número que se requer. Como o dizem alguns textos, 2 é o único inverso aditivo para 2. Mas esta introdução de -2 não dá a compreensão que a declaração, “Antimatéria é aquela substância que adicionada à matéria produz vácuo”, dá qualquer compreensão da antimatéria. Ao criar matemática por meio das questões matemáticas e estender a novos domínios, leis ou axiomas que prevalecem nos estabelecidos anteriormente, a matemática isola-se de todos os outros corpos do conhecimento. Ela existe pelo que representa e é presumivelmente autosufciente. Parece então que, por acaso, as estruturas dedutivas assim construídas se ajustam [...] (KLINE, 1976, p. 99).
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Note-se, porém, que este ormalismo e articialismo, condenado por Kline, não pode ser de completo desconhecimento do proessor, anal, é impossível conceber uma abordagem intuitiva para um conceito matemático se desconhecemos de modo consistente seu comportamento e natureza dentro da teoria ormal a qual pertence. Espera-se, assim, do proessor de Matemática, encerradas estas aulas, saber declarar, de ato, do que se trata e qual a natureza de um número natural, inteiro ou racional. Compreender que as inclusões Ì Ì tratam-se de “criações pedagógicas” que podem tornar menos tortuosos o entendimento dos pequenos, todavia, ormalmente alando, o proessor sabe que isto está equivocado, como explica Ferreira (2010). Para nalizar, antecipando um pouco de nosso próximo assunto, que proporcionará escrever Ì Ì Ì , destacamos que existem várias ormas de construir os números reais. Um dos métodos possíveis é caracterizado por sequências de Cauchy de números racionais (o completamento de ), descrito por Aragona (2010). A vantagem deste método, segundo o autor, é que ele nos leva de orma rápida e natural à representação decimal dos números reais que oi a orma em que estes números oram conhecidos durante muito tempo antes de ter sua teoria devidamente estruturada (ARAGONA, 2010, p. 39).
História da Matemática
135
Por outro lado, em termos de economia, optamos pela construção do campo do reais desenvolvida por Ferreira (2010). O autor emprega a noção de cortes de Dedekind . Com respeito ao contexto escolar de introdução do conjunto dos reais , Ferreira (2010, p. 78) comenta em tom de crítica: No Ensino Fundamental, os números reais são geralmente introduzidos de uma maneira um tanto empírica e seu estudo não costuma ir além de algumas operações algébricas elementares. Basicamente, o que dizse nesse nível sobre os números reais é o seguinte: admite-se que a cada ponto de uma reta está associado um número real. Há pontos que não correspondem a números racionais (o que é ácil verifcar usando a diagonal do quadrado de lado 1). A esses pontos sem abcissa racional correspondem os números irracionais. Outra orma de introduzilos é a seguinte: admite-se ou, em alguns casos, demonstra-se que a representação decimal de números racionais é periódica. Concluise por defnir número irracional como sendo aqueles (cuja existência é admitida) que possuem representação decimal não periódica. Ao conjunto constituído pelos racionais e irracionais dá-se o nome de conjunto dos números reais. Note que, em ambas as abordagens, somos conduzidos a admitir a existência de números não racionais: no primeiro caso, para dotar todo ponto da reta de uma abcissa e, no segundo caso, para conceber qualquer desenvolvimento decimal como número (no caso, os não periódicos). Em ambos os casos, no entanto, raramente se toca na natureza destes novos números [...].
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Concluímos ressaltando que tencionamos descrever nesta aula a construção dos conjuntos numéricos. Como comentamos no início da aula, julgamos comprometedor um proessor tentar ensinar um conceito sem mesmo compreendê-lo, nem saber dizer do que trata a natureza desse conceito. Foi com esta intenção que descrevemos as construções dos conjuntos anteriores. Nas aulas seguintes iniciaremos a longa construção axiomática dos números reais e números complexos.
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Licenciatura em Matemática
Aula 6
A construção dos números reais, complexos e considerações finais
Nesta última aula, discutiremos alguns aspectos formais a respeito dos números reais e dos números complexos. Lima (2004) critica de modo veemente a forma pela qual são introduzidos tais conceitos no ensino escolar. Além de serem introduzidos de forma indevida e de modo equivocado, na medida em que não se conhece sua natureza em essência, dificilmente o professor percebe tais problemas, uma vez que nem sempre na graduação se dá a ênfase devida a esses conceitos. Com a reflexão que propomos nesta aula, buscamos, assim, evitar esse problema no âmbito da formação do futuro professor.
Objetivos: Descrever a construção axiomática dos números reais; • Descrever a construção axiomática dos números complexos. •
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01 TÓPICO
A 5 T 21
AS DIMENSÕES FILOSÓFICAS DOS FUNDAMENTOS DA MATEMÁTICA III
OBJETIVO
Descrever a construção axiomática dos números reais.
N
esta aula abordaremos construção axiomática dos números reais. Vale sempre destacar a importância de o uturo proessor conhecer e compreender, ormalmente alando, a natureza de um número real. Desse modo, sublinhamos as considerações de Ferreira (2010, p. 77): O conceito de número real é um dos mais proundos da matemática e, [...], remonta aos gregos da escola pitagórica, com a descoberta da incomensurabilidade entre o lado e a diagonal de um quadrado. A construção desse conceito passou por Eudoxo (século IV a.C.), com sua teoria das proporções, registrada nos Elementos de Euclides, e só oi concretizada no século XIX, [...]. Os matemáticos alemães, Cantor e Dedekind, construíram os números reais a partir dos racionais por métodos dierentes, respectivamente conhecidos por Classes de
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Licenciatura em Matemática
Equivalências de Sequências de Cauchy e por Cortes de Dedekind. O último, [...], inspirou-se na Teoria das Proporções de Eudoxo.
Antes de apresentarmos de modo axiomático a construção dessas novas entidades conceituais, que desde a escola chamamos de números reais e com essa denominação nos acostumamos, sem muitos questionamentos, recordamos que se conta que, no templo de Apolo, situado na ilha de Delos na Grécia, existia um altar com orma geométrica de uma gura que hoje é conhecida como cubo. Havendo uma peste em Atenas, um habitante da cidade, em busca de auxílio divino, dirigiu-se a Delos para consultá-lo sobre o extermínio da peste. A divindade respondeu que, se osse construído um altar no templo de Apolo cujo volume medisse o dobro do existente, mantendo-se a mesma orma, a peste seria eliminada. Em termos matemáticos, isto equivale a ornecer um cubo de aresta ‘a’; construir um cubo de aresta ‘x’, cujo volume seja o dobro do volume conhecido, que denotamos modernamente pela equação x 3 = 2a 3 . De modo particular, tomamos a = 1 \ x 3 = 2 . Este problema antigo não oi resolvido, uma vez que não existe em tal solução para x 3 = 2 , sem alar no ato de os gregos não disporem ainda de um conjunto mais ‘completo’ do que este. Este ato envolvendo um problema antigo explica que o corpo oi ‘completado’ e obteve-se um conjunto maior, que modernamente chamamos de corpo dos reais (denotado por ), no qual a equação possui solução. Esse problema oi resolvido de modo consistente com a introdução dos números irracionais por Richard Dedekind (1831-1916). De ato, a partir da equação obtida no mesmo problema, apenas no plano, obtemos x 2 = 2 e, a partir dos elementos de História da Matemática, vericase que não existe q Î que satisaz q2 = 2 . Assim, uma possibilidade é o estudo das aproximações racionais para a equação x 2 = 2 . Introduzimos a seguinte noção: denomina-se raiz quadrada de 2, a menos de uma unidade, por alta, o maior número inteiro n Î tal que n2 < 2 < (n + 1)2 . Assim, diz-se que o número n + 1 é denominado de raiz quadrada de ‘2’ a menos de uma unidade por excesso. No caso inicial, para n = 1 , que implica que a solução de x 2 = 2 satisaz 1 < x < 2 . A seguir, realizamos as aproximações decimais da solução desta raiz que se encontra entre 1 e 2. 1 Denomina-se raiz quadrada de 2 a menos de por alta, ao maior número inteiro 10 2 2 æ n ö÷ æ n + 1ö÷ de décimos cujo quadrado é menor do que 2. Isto equivale a çç ÷÷ < 2 < çç ÷ . è10 ø è 10 ø÷ n +1 Reparamos agora que o número é a raiz quadrada de 2, por excesso e por 10 menos de um décimo. Para proceder ao cálculo desta outra aproximação, toma-se o
História da Matemática
A 6 T 1
139
intervalo [1,2] e divide-se em dez partes iguais por meio dos pontos: 1; 1,1; 1,2; 1,3; 1,4; 1,5; 1,6; 1,7; 1,8; 1,9; 2. Usando a inequação anterior, obtemos (1,4)2 < 2 < (1,5)2 . 1 Deste modo, 1,4 é a solução aproximada de x 2 = 2 a menos de por alta e 1,5 por 10 excesso. Logo, a solução ‘x’ desta equação se encontra no segmento [1,4;1,5] . 1 Para a obtenção de soluções aproximadas de x 2 = 2 a menos de , por alta 100 e por excesso, divide-se este segmento em dez partes iguais descritas por: 1,4; 1,41; 1,42; 1,43; 1,44; 1,45; 1,46; 1,47; 1,48; 1,49; 1,5. De modo semelhante ao caso anterior, podemos obter que (1,41)2 < 2 < (1,42)2 , que representa a solução 1 da equação x 2 = 2 , a menos de por alta e 1,42 por excesso. Logo a solução 100 encontra-se no intervalo de extremos [1,41;1,42]. A ideia agora a repetir, por meio do raciocínio indutivo, o processo, e as soluções serão aproximadas a menos de: 1 1 1 1 1 . 3 , 4 , 5 , 6 , ,...., 10 10 10 10 10n Em seguida, construímos as classes de aproximações F, por alta, e por excesso E das soluções de x 2 = 2 , ao tomarmos: F := {1;1,4;1,41;1,414;1,4142;....} e E := {2;1,5;1,42;1,415;1,4143;....}. Mais adiante, passamos a observar que os quadrados dos números de F são menores do que 2 e os de E são maiores. Ademais, percebemos que, de um modo geral, os números de F são da orma 1a1a2 a3 ....an e os de E são da orma 1a1a2 a3 ....(an + 1).. , sendo ai um algarismo de 0 a 9. Tem-se, portanto: 1a1a2 a3 ....an < x < 1a1 a2 a3 ....( an + 1).... . Representaremos agora por xn os elementos de F e yn os elementos de E.Dessa 1 orma: yn - xn = n , y n > xn para n=1,2,3,... . De modo resumido enunciamos a 10 proposição.
A 6 T 1
Proposição: Não existe elemento máximo em F e não existe elemento mínimo em E.
Finalmente, por meio da construção das classes E e F, como vimos acima, e de suas propriedades, é possível denir a solução que buscamos para a equação x 2 = 2 , ato que oi investigado proundamente por Dedekind . Precisamos da seguinte denição. Definição: Um conjunto A Ì é dito um elemento máximo a Î A (resp. mínimo), quando a ³ x , "x Î A
Exemplo: Observamos que o elemento mínimo do conjunto A = é o número ‘0’. Por outro lado, o conjunto A = {x Î | 0
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Licenciatura em Matemática
x para todo x Î , temos 0 1 é cota superior para o conjunto A = {x Î | 0
A 6 T 1
A partir destas denições, dizemos que, se um conjunto não vazio A Ì de todas as cotas superiores possui um elemento mínimo, é chamado de supremo de A e denotamos por Sup( A). De modo análogo, se um conjunto não vazio A Ì de todas as cotas ineriores possui um elemento máximo, é chamado de ínfmo de A e denotamos por In ( A) . Vejamos então uma denição importante a seguir. Definição: Um conjunto a de números racionais diz-se um corte se satisfizer as seguintes condições: i) Æ ¹ a ¹ ; ii) se r Î a e s < r (s Î ) , então s Î a ; iii) para cada a Î a , existe c Î a tal que a < c (em a não existe elemento máximo). De modo equivalente, podemos definir também que: i’) Æ ¹ a ¹ ; ii’) se a Î a , então para todo b Î tal que b ³ a , deveremos ter b Î a . iii’) para cada a Î a racional, existe c Î a tal que c < a (não existe elemento mínimo).
A ideia geométrica do conjunto acima que chamamos de corte de Dedekind é a de “cortar” a reta em duas semirretas. Destacamos que “cortar” signica decompor em dois conjuntos A e a , tais que = A È a e = A Ç a = Æ . E se r Î A e a Î a , então r < a . Por exemplo, o conjunto a = {x Î | x>0 e x2 > 2} . De ato, vemos que 0 Ï a e 2 Î a = {x Î | x>0 e x2 > 2} ¹ Æ , satisazendo (i). Por outro a Î a = {x Î | x>0 e x2 > 2}
b ³ a > 0 \ b2 > a2 > 2 ® b2 > 2 , p ou seja, b Î a que satisaz (ii). Finalmente, se a Î a , com a = , então q 2 2 æ p ö p p > 0 e ççç ÷÷÷ = 2 > 2 « ( p2 - 2q2 ) > 2 , assim, escrevemos notamos que q q è q ø÷
lado, se
e
História da Matemática
141
n× p p < = a , para todo n × q +1 q n× p n× p p n Î . De ato, basta observar que 0 < < = = a . Assim, n × q +1 n × q q precisamos mostrar que não existe elemento mínimo, mas tomando n = 8q , 8q × p 64q2 × p2 2 obtemos c := , observando que c = 2 2 > 2 . De ato, vemos que: 8q × q + 1 (8q + 1) 1 1 + « 32q2 ( p2 - 2q2 ) > 1 + 16q2 « ( p2 - 2q2 ) > 2 32q 2 p2 - 2q2 = m ³ 1 . Por outro lado, notamos que
A 6 T 1
2
2
4
2
2
2
32q ⋅ p − 64q −16q > 1 ↔ 32q ⋅ p > 64 q 2
32q ⋅ p
(8q
2
2
2
)
2
>1 ↔
+1
64q ⋅ p
(8q
2
4
2
+16q +1
2
2
)
>2
+1
Vejamos alguns exemplos concretos. 3 a) O conjunto a = x Î | x< é um corte. De ato, notamos que tomando 5 2 2 3 2 Î e < , assim, vale o item (i). No caso do item (ii), considerando r = Î a , 5 5 5 5 3 2 notamos que, se s Î e s < , então, s < \ s Î a . Para vericar que o conjunto 5 5 3 não admite elemento máximo. a = x Î | x< 5 3 b) O conjunto a = x Î | x> não é um corte. Deixamos como exercício. 5 c) O conjunto a = {x Î | x ³ 0} não é um corte. De ato, vemos que 0 Î a ¹ Æ satisaz (i). Ademais, se a Î a = {x Î | x ³ 0} , para todo b ³ a ³ 0 \ b ³ 0 , assim, b Î a e vale (ii’). Por outro lado, notamos que não vale (iii’) se a = 0 ; não podemos obter um elemento c Î a tal que c < 0 . 8 e) O conjunto a = x Î | - 3 £ x< não é um corte. Deixamos como 5 exercício. ) O conjunto a = {x Î | x< - 1} não é um corte. De ato, apesar de -2 Î a = {x Î | x< - 1} ¹ Æ (vale i), vericamos que se r Î a e s < r <-1 , com s Î , então s <-1 . g) O conjunto a = {x Î | x<0} é um corte. De ato, observamos que -1 Î a ¹ Æ (i) e que, se r Î a e s < r (s Î ) , temos p r < 0 , com = s < r < 0 \ s < 0 (ii). Por m, notamos que, para todo r Î a , temos q r + 0 r r r < = < 0 , com Î a (iii). 2 2 2
{
{
}
{
}
}
{
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Licenciatura em Matemática
}
h) O conjunto a = {x Î | x<0 ou (x ³ 0 e x2 < 2} é um corte. De ato, notamos que x = -1 < 0 e (-1)2 = 1 < 2 , portanto, para x£0 , Vamos vericar a condição (ii) tomando -1 Î a ¹ Æ . r Î a = {x Î | x>0 ou para x £ 0 e x2 < 2} . Temos dois casos a considerar, se r £ 0 e s Î , com s < r , logo s < 0 e s Î a . No caso em que r > 0 e r 2 < 2 com s < r (s Î ) , temos as possibilidades: s < 0 < r ou 0 < s < r . Mas se s < 0 , temos que s Î a . No segundo caso, se 0 < s < r « 0 < s 2 < r 2 < 2 \ s 2 < 2 , assim, s também pertence ao conjunto a = {x Î | x<0 ou (x ³ 0 e x2 < 2} . Na condição (iii), se r Î a = {x Î | x<0 ou (x ³ 0 e x2 < 2} , podemos ter r < 0 , neste caso, tomamos s = 1 , com r < s e s 2 < 2 . No outro caso, quando r > 0 e r2 < 2 , vamos tomar h=2 - r 2 > 0 então, temos r 2 +h=2 e 0 0 e r2 < 2 . Para tanto, consideramos 2 æ ö÷ h h 2rh h2 2 2 ç + . Notamos, o elemento g = r + . Segue que g = çr + ÷÷ = r + è 5 5ø 5 25 todavia que r < 2 \ 2rh < 2 × 2h e observe que 0 < h < 2 ® 0 < h2 < 2h , logo 2rh h2 4 h h2 22h 2 2 2 g = r + + < r + + < r2 + 0 e g 2 < 2 (g Î a) e g >x , que é um corte.
A 6 T 1
Proposição: Seja a um corte, p Î a e q Ï a . Então,
q> p .
Demonstração: Vamos negar a propriedade desejada acima, ou seja, supor que q £ p . Como admitimos que a é um corte, já temos de graça a condição (i). Por outro lado, se q £ p , onde p Î a e q Î , então, pelo item (ii) da denição, deveríamos ter que q Î a , o que implica uma contradição. Assim, necessariamente, temos q > p . Observamos que a negação da propriedade ornecida por esta proposição pode ser útil, assim, caso tenhamos um corte a , com p Î a e se q £ p , necessariamente, obtemos que q Î a , que é basicamente a condição (iii). Proposição: Se r Î e a = {x Î | x
História da Matemática
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Demonstração: Vejamos que o conjunto a = {x Î | x
A 6 T 1
Teorema: Seja a = {x Î + | x2 <2} È *- . Então a é um corte que não é racional.
Deixamos as condições (i) e (ii) para discutir mais adiante. Quanto à condição (iii), devemos provar que, se x Î a , então existe y Î a , com y > x (não admite elemento máximo). Isso é óbvio se x £ 0 . Mas vamos supor que x > 0 , com x 2 < 2 . Para encontrarmos um elemento ‘y’ nas condições acima, tomaremos h Î *+ tal que 2 (x + h) < 2 e pôr y = x + h . Vamos trabalhar com a condição (x 2 + 2h × x + h2 ) < 2 e reparamos que poderíamos resolver tal inequação. Por outro lado, não perdemos a generalidade admitindo que h < 1 , assim, obteremos (x 2 + 2h × x + h2 ) < (x 2 + 2h × x + h) e esta expressão ca menor do que h<1
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Licenciatura em Matemática
2 se tomarmos: 2 - x2 2 2 2 <2 x + 2h × x + h < 2 « 2h × x + h < 2 - x « h(2x + 1) < 2- x « h < . (2x + 1) 2 - x2 2 - x2 Desde que esta expressão seja positiva, tomaremos h < min{1, }, (2x + 1) (2x + 1) com h Î + e y = x + h , e obteremos y 2 = (x + h)2 < 2 \ y Î a e y>x . É um corte.
A 6 T 1
Notação: Denotaremos por  o conjunto de todos os cortes, ou seja,  := {a| a é um corte} .
Na sequência, veremos que se podem denir duas operações em  , denotadas por “+” e “ × ”, e uma relação de ordem. Proposição: Sejam a, b Î Â . Dizemos que a é menor do que b e escrevemos a < b quando b \ a ¹Æ.
Ferreira (2010, p. 82) comenta os seguintes exemplos: *
a)
æ3ö 4 > çç ÷÷÷ , è5ø *
*
pois
æ3ö 2 Î 4 \ çç ÷÷÷ . è5ø *
De
ato,
reparamos
que
æ 3 ö÷* 3 3 4 :={x Î | x<4} e çç ÷÷ := {x Î | x< } e que 2 < 4 , todavia, 2 > . è 5ø 5 5 *
1 * * Î 1 \ 0 . Verique! 2 c) (-3)* < (0)* , pois -1 Î 0* \ (-3)* .Notamos que -1 Î 0* = {x Î | x<0} e * -1 Ï (-3) = {x Î | x< - 3} . b) 1* > (0)* , pois
Definição: Se a Î Â e a > 0 * , a chama-se corte positivo. Se a > 0* , a é dito corte negativo. Se a ³ 0* , a se chama corte não negativo e se a £ 0* , a se chama corte não positivo.
Teorema (tricotomia): Para a, b Î Â , uma e apenas umas das possibilidades ocorre, a = b ou a < b ou a > b .
Demonstração: Deixamos como tarea para você, leitor.
História da Matemática
145
LEMA: Sejam a, b Î Â , então: i) se a < b Û a Ì b e a ¹ b ; ii) a £ a Û a Ì b .
Demonstração: Deixamos como tarea para você, leitor.
A 6 T 1
Teorema: A relação ‘ £ ’ é uma relação de equivalência em  .
Demonstração: Deixamos como tarea para você, leitor. Teorema: Sejam a, b Î Â . Se g := {r + s | r Î a e s Î b } , então g Î Â .
Demonstração: Mostraremos que o conjunto acima satisaz as três condições de corte. Notamos que estamos admitindo que a, b ¹ Æ , portanto g ¹ Æ . Sejam t Î - a e y Î - b , e observamos que, por denição, t > r , "r Î a e u > s , "s Î b . Assim, obtivemos t + u > r + s , "r Î a e "s Î b , ou seja, t + u Ï g , logo g ¹ . Na condição (ii), notamos que, se r Î g e s r . Pelo ato de que r Î g , escrevemos r = p + q, com p Î a e q Î b , que por sua vez são cortes. Assim, existe p ' Î a, com p'>p e q' Î b , com q'>q , portanto tomamos s = p '+ q Î g , que é maior do que r. Definição: Para a, b Î Â , definimos a + b como sendo o corte do teorema anterior, ou seja, a + b := {r + s | r Î a e s Î b } . Teorema: A adição de cortes em  é comutativa, associativa, e possui elemento 0* como neutro.
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Licenciatura em Matemática
Demonstração: Com a comutatividade descrita por a + b = b + a , reparamos que, se r Î a + b , podemos escrever r = p + q , e pela comutatividade da soma de números racionais, escrevemos r = p + q = q + p Î b + a . Portanto, a + b Ì b + a , e, de modo semelhante, vericamos que a + b É b + a . A associatividade é descrita por a + (b + g ) = (a + b ) + g .
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LEMA: Sejam a Î Â e r Î *+ , então o conjunto {s + m × r | m Î } não é limitado superiormente em .
Demonstração: Deixamos a seu cargo, leitor. Ferreira (2010, p. 85) apresenta o seguinte lema. LEMA: Sejam a Î Â e r Î *+ , então existem números racionais p e q tais que p Î a , q Ï a , q não é cota superior mínima de a e q - p = r .
Demonstração: Vamos tomar um elemento qualquer s Î a e consideremos a sequência s, s + r , s + 2r , s + 3r , s + 4r ,......, s + nr . Notamos que essa sequência não é limitada superiormente, e a é limitado superiormente e s Î a , então existe um único inteiro m ³ 0 tal que s + mr Î a e s + (m + 1)r Ï a . Se s + (m + 1)r não or cota superior mínima de a , tome p= s+ mr s + (m + 1)r or cota superior mínima de a , tome e q = s + ( m + 1)r . Se r p = s + mr + e q = s + ( m + 1)r . 2 Definição: Seja a Î Â . Existe um único b Î Â tal que a + b = 0 * . Como no caso dos inteiros e racionais, tal elemento b denota-se por -a e se chama simétrico (ou inverso aditivo) de a.
Demonstração: Ferreira (2010, p. 86) supõe a condição em que se tem a + b1 = a + b2 = 0 * . Na sequência, associatividade
escreve b2 = b2 + 0* = b2 + (a + b1 ) = (b2 + a ) + b1 = 0* + b1 = b1 . Por outro lado, a demonstração da existência do simétrico depende, no entanto, da situação considerada (FERREIRA, 2010, p. 86).
História da Matemática
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Ferreira (2010, p. 86) ornece a ideia de como construir o elemento simétrico, considerando, inicialmente, um caso particular de a = 3* . É de se esperar que o simétrico seja (-3)* . Temos: a = 3* = {r Î | r<3}, (-3)* = {s Î | s< - 3} . E ainda que 3* + (-3)* = {r + s Î |r Î 3* s Î (-3)* } . Necessitamos vericar que 3* + (-3)* Ì 0 * e vice-versa. Seja t Î 3* + (-3)* , então t = r + s , onde r < 3 e s < -3 . Logo, t = r + s < 3 + (-3) = 0 e portanto t < 0 e t Î 0* . Seja agora t Î 0* , ou seja, t < 0 . Para fxar as ideias tomemos t = -2 e como expressar o -2 como uma soma r + s com r < 3 e s < -3 ? (FERREIRA, 2010, p. 86). Reparamos que, pelo lema anterior, existem r Î 3* e r' Ï (-3)* , com r ' ¹ 3 (=cota superior mínima de 3* ) , tais que r '- r = 2 ou ainda -2 = r + (-r ') , como r ' > 3 , então -r ' <-3 , ou seja, -r ' Î (-3)* . Tentaremos utilizar as ideias desse caso particular no caso geral (FERREIRA, 2010, p. 86). Dado a Î Â , o candidato ao caso -a é o conjunto obtido pelos negativos dos elementos que estão ora de a , com exceção da eventual cota superior mínima de a . Mais precisamente, seja b = { p Î |- p Ï a e - p não é cota superior mínima de a} . Observamos que (-3)* = { p Î |-3 Ï 3* e - p não é cota superior mínima de (-3)* } . Ferreira (2010, p. 86) sublinha que, no caso geral, não temos necessariamente cortes racionais e, então, o símbolo (-a)* pode não azer sentido. Mostremos que b é um corte e que a + b = 0* . Como de costume, precisamos vericar as três condições. As condições (i) e (ii) deixaremos como atividades e vericaremos a condição (iii). Com esta intenção, Ferreira (2010, p. 87) toma r Î b . Queremos mostrar que podemos encontrar s > r em b . Como -r é cota superior de a , mas não é mínima, logo existe t Î , com -t < -r , tal que -t é cota superior de a e, portanto, -t Ï a .
A 6 T 1
Seja então s =
r +t
2
. Temos -t < -s < -r , de modo que -s é cota superior de a .
Em seguida, o autor verica que vale a propriedade a + b = 0 * . Definição: Como
nos
casos
de
e ,
definimos
a
subtração
a - b = a + (-b ) , "a,b Î Â .
Teorema(compatibilidade da relação de ordem com a adição): Sejam a, b , g Î Â tais que a £ b . Então a + g £ b + g .
Demonstração: Deixamos como tarea para você, leitor.
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Licenciatura em Matemática
em
Â
por
Ferreira (2010, p. 87) dene uma multiplicação em  , seguindo os mesmos passos realizados na denição da adição e de suas propriedades. Nota-se que o tratamento da multiplicação em  seja tecnicamente um pouco mais complicada, o mesmo autor segue o tratamento e as demonstrações para o caso da adição. Ferreira repara, todavia, que alguns ajustes são necessários para uma denição precisa da multiplicação. Para tanto, enuncia o teorema.
A 6 T 1
Teorema: Para a, b , g Î Â , com a ³ 0* e b ³ 0* , seja g := *- È {r Î | r=pq , com p Î a, q Î b , p ³ 0 e q ³ 0} .
Demonstração: Deixamos como tarea para você, leitor. Definição: Dado a Î Â , definimos o valor absoluto de a ( ou o módulo de a ), representado por a , do seguinte modo
ìïa se a ³ 0 * a =ï í ïï-a se a £ 0 * î
.
Definição: Sejam a, b , g Î Â , definimos: ìï-( a b ) se a > 0 * e b < 0 * ou a < 0* e b > 0* ïï * * * * ab = ï í( a b ) se a < 0 , b < 0 ou a > 0 e b > 0 ïï ïï0 se a = 0* e b = 0 * îï
Teorema: A multiplicação de cortes é comutativa, associativa, tem 1* como elemento neutro e se a, b , g Î Â , vale: i) a(b + g ) = ab + ag ii) a × 0 * = 0* iii) ab = 0* se, e somente se, a = 0 * ou b = 0* iv) se a ³ b e g ³ 0* , então ag £ bg v) se a ³ b e g < 0 * , então ag ³ bg vi) se a ¹ 0 * em  , então existe um único b Î Â tal que ab = 1* . Tal corte chama-se de inverso de a e denota-se por a-1 .
História da Matemática
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Teorema (regra dos sinais): Sejam a, b Î Â , então valem as propriedades a) (-a) × b = a × (-b ) = -(a × b ) . b) (-a) × (-b ) = (a × b ) .
Demonstração:
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Deixamos como tarea para você, leitor. Proposição: Seja a Î Â , temos que r Î a se, e somente se, r * < a .
Demonstração: Deixamos como tarea para você, leitor. Proposição: * Sejam a, b Î Â e a < b , então existe um corte racional r * tal que a < r < b .
Demonstração: Deixamos a seu cargo, leitor. Ferreira (2010, p. 90) comenta que o conjunto  munido de duas operações é uma relação de ordem obedecendo às mesmas leis aritméticas dos racionais. Além disso, a aplicação j : ®  dada por j(r ) = r * é injetora e preserva a adição, multiplicação e ordem. O autor explica ainda que obtivemos uma cópia algébrica de um conjunto em outro, desta vez, j() é uma cópia de em  , sendo j() precisamente o conjunto dos cortes racionais (FERREIRA, 2010, p. 90). Recordamos um teorema que assegura a existência de cortes não racionais. Portanto, podemos armar que  - j() ¹ Æ . Em seguida, Ferreira (2010, p. 91) apresenta a importante denição. Definição: O conjunto dos cortes  será, a partir de agora, denominado de conjunto dos números reais e é denotado por . Os cortes racionais serão identificados, via a injeção j : ®  , com os números racionais. Todo corte que não for racional será denominado numero irracional.
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Notação: A identificação de j() com nos permite escrever Ì . O conjunto - representa o conjunto dos números irracionais.
Mais adiante, Ferreira (2010, p. 91) sublinha, ao tempo em que prossegue sua elaboração, que os resultados seguintes mostram que, apesar da semelhança entre as propriedades aritméticas e de ordem entre e , há uma importante propriedade em que não possui a da completude.
GUARDE BEM ISSO! Para o professor de Matemática, destacamos o seguinte alerta de Ferreira (2010, p. 91): um número real é um conjunto de números racionais.
Teorema (Dedekind): Sejam A e B subconjuntos de tais que: 1) = A È B
2) A Ç B = Æ
3) A ¹ Æ e B ¹ Æ
4) se a Î A e b Î B, então a
Demonstração: g1 e g 2 , Vamos supor que existam dois números nas condições do enunciado acima, com g1
Corolário: Nas condições do teorema anterior, ou existe em A um número máximo, ou, em B um número mínimo.
Demonstração: Deixamos para você, leitor.
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Concluímos este tópico discutindo as propriedades axiomáticas que permitem construir ormalmente os números reais. Sublinhamos sempre a importância de compreender sua essência, embora muitos dos aspectos estudados não pertençam ao universo de compreensão dos estudantes. Partimos do pressuposto que o proessor de Matemática deve ser conhecedor de um saber bem mais aproundado do que seu aprendiz, inclusive para analisar e identicar lacunas, deciências e inconsistências nos livros adotados no ambiente escolar. Na pior das hipóteses, saber o que é de ato um número real e que, ormalmente, a inclusão Ì apresentada no contexto escolar não tem sentido. A seguir, discutiremos a construção axiomática dos números complexos.
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Licenciatura em Matemática
A 6 T 1
02 TÓPICO
A 5 T 21
AS DIMENSÕES FILOSÓFICAS DOS FUNDAMENTOS DA MATEMÁTICA IV
OBJETIVO
Descrever a construção axiomática dos números complexos.
O
s números complexos chamam a atenção dos estudantes até mesmo pela própria nomenclatura adotada tradicionalmente. De ato, aos olhos do aprendiz, como signicar e interpretar de um objeto que de início já o denominamos de “complexo”? Nesta aula abordaremos esta noção de modo axiomático no sentido de nalizar a construção dos principais conjuntos numéricos do ensino escolar. Observamos que Ferreira (2010, p. 113) menciona que: No Ensino Médio, os números complexos são introduzidos a partir da chamada “unidade imaginária”, i, com a propriedade de que i2 = -1 . Eles são defnidos então, como expressões da orma a + bi , onde a, b Î , sujeitas às regras operacionais conhecidas dos números reais. Assim, por exemplo,
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Licenciatura em Matemática
(3 + 5i) × (7 - 2i) = 21- 6i + 36i - 10i2 = 21+ 10 + 29i = 31+ 29i Ou seja, manipulam-se tais expressões como expressões algébricas reais, sob a condição extra de que i2 = -1 .
Do ponto de vista do rigor matemático, é necessário justicar cuidadosamente a origem de um tal numero ‘i’. Por outro lado, a construção rigorosa dos números complexos a partir dos números reais é mais simples do que todas as que realizamos até agora (FERREIRA, 2010, p. 113). No Ensino Médio, aprendemos que dois números complexos, a + bi e c + di , são iguais apenas quando a = b e c = d , o que nos lembra a igualdade entre os pares ordenados (a, b) e (c, d ) . É esse o ponto de partida para a construção dos complexos (FERREIRA, 2010, p. 113). Assim, dene-se a soma (a + bi)+(c + di) = (a + c) + (b + d) i e
A 6 T 2
(a + bi) × (c + di) = (ac - bd ) + (ad + bc) i .EmseguidaFerreira(2010, p.114)esclarece admitíssemos um número complexo como sendo um par ordenado de números que se
reais, portanto sem mencionar o símbolo ‘i’, poderíamos defnir as operações acima do seguinte modo: (a, b) + (c, d ) = (a + c, b + d ) e (a, b)× (c, d ) = (ac - bd , ad + bc) . Temos ormalmente a seguinte denição.
Definição: Consideremos o conjunto ´ = 2 e nele definamos a adição e a multiplicação com acima. O conjunto 2 , denotado por essas operações, será denominado conjunto dos números complexos e denotado por .
Teorema: As operações em têm as seguintes propriedades: a adição e a multiplicação são comutativas, associativas e têm elemento neutro. (0,0) para a adição e (1,0) para a multiplicação. Além disso, dado (a, b) Î seu simétrico existe, -(a, b) , e é (-a,-b) , æ a -b ö÷ 1 e se (a, b) ¹ (0,0) , seu inverso existe (a, b)- e é ççç 2 , ÷ . Finalmente, a è a + b2 a2 + b2 ø÷ multiplicação é distributiva e relação a adição.
Demonstração: Deixamos como exercício para você, leitor. Ferreira (2010, p. 115) explica que podemos imergir em e observa inicialmente que um número complexo arbitrário (a, b) Î pode ser escrito da orma (a, b) = (a,0) + (b,0) × (0,1) , ou seja, utilizando-se apenas de pares ordenados com a segunda coordenada nula, (a,0 ) , e (b,0 ) , e o número complexo especial (0,1) . Consideremos agora a seguinte unção k : ® dada por k(x ) = (x,0) . História da Matemática
155
Definição: A função k : ® é injetora e preserva as operações de adição e multiplicação, isto é, k ( x + y ) = k (x ) + k ( y ) e k ( x × y ) = k (x ) × k ( y ) .
Demonstração: Deixamos como exercício para você, leitor.
A 6 T 2
De modo similar aos casos estudados anteriormente, aqui também temos em uma cópia algébrica de , k( ) , o que nos permite identicar com k( ) e, portanto, considerar Ì . Admitindo essa identifcação e adotando ‘i’ para o número complexo (0,1) , a expressão para (a, b) = (a,0) + (b,0)(0,1) pode ser escrita como a + bi , como azíamos no Ensino Médio (FERREIRA, 2010, p. 115). Note ainda que i2 = (0,1) 2 = (-1,0) , o que identicamos com o real -1. Sob a notação acima, os complexos do tipo a + bi , com b ¹ 0 , chamam-se números imaginários, e, além disso, a = 0 , obtemos os imaginários puros. Essas denominações têm sua origem na resistência histórica em se admitir os complexos como números. Observe que o termo “imaginário” vem no sentido de contraposição a “reais”. Observamos ainda que as propriedades aritméticas de , dadas pelo teorema anterior, são as mesmas que as de (que são as mesmas que as de ). Assim, um conjunto, munido de duas operações que podemos continuar denotando por + e × , possuindo essas propriedades aritméticas chama-se corpo. Apesar de aspectos semelhantes, há grandes dessemelhanças entre os três corpos , e , como acentua Ferreira (2010, p. 116). O autor recorda ainda que os corpos e , como já tínhamos visto, são dotados de uma relação de ordem compatível com as suas operações e são, portanto, ambos corpos ordenados, sendo um corpo ordenado completo e um corpo ordenado não completo. Observamos que é impossível dotar de uma relação de ordem compatível com as suas operações aritméticas. Intuitivamente, não temos como dizer se 3 é maior ou menor do que 3i ou do que 2 + i , por exemplo. Dessa orma, é um corpo não ordenável. Por outro lado, Ferreira (2010, p. 116) acentua que possui uma propriedade algébrica importante. Tal propriedade é descrita no teorema: todo polinômio não constante com coefcientes complexos admite uma raiz em . Devido a este resultado atribuído a Gauss, o teorema é chamado de Teorema Fundamental da Álgebra. E o conjunto é dito algebricamente echado. Berlingho e Gouvêa (2004, p. 177) recordam um ato semelhante envolvendo nada menos do que Renée Descartes (1596-1650), que, no século XVII, indicava que, para encontrar os pontos de interseção entre uma circunerência C e uma linha r (Figura
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Licenciatura em Matemática
1), encontramos uma equação quadrática e tal equação conduz a raízes quadradas de grandezas negativas quando C Ç{r } = Æ . Assim, para a maior parte, o sentimento era a aparência de soluções “impossíveis” ou “imaginárias” que dava um sinal de que o problema não possuía qualquer solução. Todo o problema advinha da desconança dos matemáticos com respeito aos números complexos.
A 6 T 2 Figura 1:: Descrição geométrica da situação envolvendo o conceito de números complexos (BER� LINGHOFF; GOUVÊA, 2004, p. 123).
Para concluir a discussão em torno da construção dos conjuntos numéricos que tradicionalmente são apresentados no contexto escolar satisazendo a seguinte cadeia Ì Ì Ì Ì Ì ???? , Ferreira (2010, p. 122) acrescenta a interessante discussão em torno das questões que podemos elaborar em relação à seguinte pergunta: Os conjuntos numéricos param por aí? Ou seja, pode ser imerso propriamente em algum outro conjunto de números? O autor declara que a resposta para tal questionamento é armativa e recorda que o conjunto pode ser imerso no anel dos quatérnios de Hamilton. Ademais, declara: Entretanto, não tem mais a estrutura algébrica de corpo porque a multiplicação deixa de ser comutativa. Os quatérnios são hoje utilizados em robótica, computação gráfca e em outras áreas da ciência. Por sua vez, os quatérnios podem ser imersos nos octônios, no qual a multiplicação não é mais associativa. Os octônios tem importantes aplicações em ramos da ísica como relatividade especial e teoria das cordas, além de se relacionarem com outras estruturas matemáticas como os grupos de Lie excepcionais (FERREIRA, 2010, p. 122-123). Para concluir, sublinhamos nossos posicionamentos assumidos desde o início deste curso. Tais posicionamentos assumem um compromisso epistemológico com a ormação do proessor de Matemática. Desse modo, embora de modo introdutório, discutimos determinados tópicos pertencentes aos undamentos da Matemática e seu inevitável caráter losóco.
História da Matemática
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Tais escolhas devem infuenciar o olhar e o exercício do oício do proessor, anal, concordamos com Thom (1992, p. 24) quando explica que quer desejemos ou não, toda pedagogia matemática, mesmo aquela menos coerente, repousa sobre a flosofa da matemática. Portanto, não discutimos uma pedagogia desinteressada e aplicável a todas as áreas do conhecimento cientíco. Discutimos e alertamos sobre a importância de uma “pedagogia da Matemática”, que, inevitavelmente, deve possuir seus undamentos epistemológicos e losócos, os quais apresentamos, pelo menos em parte, aqui. Recordamos que algumas questões losócas negligenciadas em cursos de ormação de licenciados dizem respeito à dimensão axiológica do saber matemático que abordamos nas aulas iniciais. Mais especicamente alando, a questão sobre a verdade ou a alsidade dos enunciados matemáticos.
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O modelo standart no locus acadêmico de busca da verdade de propriedades do tipo: (a + an )n a 2 = b2 + c 2 (Teorema de Pitágoras) ou S n = 1 (soma dos termos) se restringe em 2 seguir passo a passo uma demonstração até se alcançar a tese; contudo, os próprios modelos de inerências e a natureza da argumentação não são discutidos. É inapropriado o proessor transmitir a impressão de que as decisões em sala de aula e as escolhas eitas em cadeias de raciocínio deste tipo são sempre baseadas na certeza matemática. Neste sentido, concordamos com Brochard (1884, p. 5) quando lembra que a maior parte dos homens, nas circunstâncias da vida, se decide baseando-se na crença e não na certeza . Além disso, encontramos vários exemplos de teorias na História da Matemática e das Ciências que apresentavam uma sustentação sólida e consistente, em determinados momentos históricos e, em outros, tiveram suas bases enraquecidas em virtude de determinadas reutações e questionamentos, haja vista o surgimento de novos pontos de vista. É justamente o caso da teoria de Isaac Newton (1643-1727), que oi bem estabelecida e conrmada no século XVIII e questionada séculos mais tarde. De ato, Popper (1972, p. 34) lembra que a teoria de Einstein veio mostrar que a teoria newtoniana não passa de uma hipótese ou conjectura e seu valor se mede, sobretudo por sua alsicabilidade. Ou seja, com Einstein, evidenciamos o levantamento de determinadas conjecturas que se mostraram verdadeiras e que negaram ou alsearam enunciados essenciais da teoria de Newton. VOCÊ SABIA? Em exemplos como este, percebemos que a própria noção de verdade e alsidade, a noção do rigor matemático, de existência, Shapiro (2000, p. 166) explica que de consistência e a noção de completude de uma teoria matemática Gôdel admitia G uma sentença na linguagem T. Se T é consistente, então vai se modicando no decorrer dos séculos. G não é teorema de T. Faz parte de nossa missão, como proessores ormadores,
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evitar a alsa impressão em nossos alunos de que o conhecimento matemático, desde o seu nascedouro, se apresenta daquela orma “bonitinha” como o encontramos nos livros didáticos, descritos axiomaticamente por uma linguagem moderna adotada pelo proessor na escola. Anal, até mesmo a linguagem ou o sistema de representação semiótica empregado na Matemática evolui, uma vez que os símbolos e classicações em Matemática são historicamente determinados. Eles são arbitrários no sentido de que símbolos e classicações numa SAIBA MAIS! linguagem são escolhidos. Desta orma eles podem ser vistos numa perspectiva enomenológica em que tais símbolos possuem Sertafi (2008, p. 125) lembra que Leibnitz colocou em circulação cerca signifcados particulares e derivam de experiência individual do de doze novos símbolos, que o mesmo seu uso (SERTAFI, 2008, p. 53). queria testar e selecionar o mais O caráter arbitrário que mencionamos se maniesta de orma apropriado. Porém, todos eles dotados sutil e velada. Um proessor consciente sabe que simbologias de uma extraordinária imaginação simbólica e otimismo inveterado. são “enterradas” e descartadas em razão de suas limitações, ambiguidades ou alta de operacionalização; mas, de modo autoritário, vemos a adoção, sem nenhuma explicação, de determinadas notações que obtiveram mais êxito do que outras, contudo não nos lembramos de que elas representam a VOCÊ SABIA? superação dos erros, das incompreensões e as inseguranças de matemáticos do passado. Ernest (1991, p. 7) explica que a visão Temos aí uma ace deste absolutismo quando priorizamos absolutista da matemática consiste em certas verdades imutáveis. O o caráter sintático da linguagem, que passou por proundas conhecimento matemático nesta modicações em vez do seu caráter semântico. Paradoxalmente, perspectiva se constitui a partir de o teor e a visão absolutista, o caráter rigoroso e ormal da verdades absolutas e irrefutáveis. Matemática parecem ser mais “cômodos” no que se reere à transposição didática do saber. Na prática, no ambiente acadêmico, o próprio método axiomático de estruturação e organização deste saber é usado como “metodologia de ensino”. SAIBA MAIS! Denunciamos que o grande equívoco é aplicar um método de construção e constituição do saber matemático no ambiente Sertafi (2008, p. 125) Shapiro da pesquisa como uma “metodologia de ensino”, haja vista que (2005, p. 176) explica que o termo estruturalismo é associado ao grupo o primordial no método axiomático é a abstração da abstração, inolvidável chamado Bourbaki. Dentre enquanto isso, no ensino escolar, deveríamos primar pela as suas propostas, o método axiomático intuição, pelo raciocínio heurístico. poderia fornecer a unificação dos diversos ramos da Matemática e Nesse sentido, recordamos as colocações losócas do apenas ele tornaria a Matemática matemático Freudenthal (2002, p. 145) quando declara que se inteligível. o construtivismo signifca algo didático, devemos indicar o que
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esperamos construir . Mas, inelizmente, os indicadores de nossa realidade nos azem concordar com Gattegno (1960, apud, PIAGET et al.,1960, p. 159) quando conclui que a maior parte dos proessores de matemática considera que sua tarea consiste em azer os estudantes racionar logicamente e não importa a que custo. Advertimos que a concepção do curso de ormação deverá ser um ator condicionante e determinante na utura identidade profssional construída pelo egresso de um curso de graduação. Vale a pena comparar as duas concepções possíveis que exibimos nas ilustrações abaixo.
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Figura 2: Fluxograma do currículo de formação de professores de Matemática que não estabelece conexão entre os saberes específicos e pedagógicos (elaboração própria).
Reparamos que, na Figura 2, descrevemos o modelo obsoleto de ormação mais identicável e mais explorado em vários cursos de graduação no Brasil. Por outro lado, na Figura 3, a seguir, recordamos a concepção de ormação assumida no decorrer das aulas de Filosoa das Ciências e da Matemática. Deixamos para você, leitor, a prerrogativa de eetuar suas próprias escolhas.
Figura 3:: Fluxograma proposto para uma adequada formação do professor de Matemática (elabo� ração própria).
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Concluímos esta destacando a importância de divisarmos a dimensão losóca do saber matemático. Observamos que nas ultimas aulas, em que descrevemos, embora de modo “apressado”, em virtude da concisão necessária neste material, a construção axiomática dos conjuntos numéricos. Torna-se uma exigência, deste modo, que o proessor amplie sua própria visão da Matemática e transmita um signicado bem mais amplo do que o signicado usual e restrito ornecido pelos livros didáticos. Entretanto, o “livro didático” será nosso objeto de discussão em um uturo próximo.
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03 TÓPICO
A 5 T 21
UMA APLICAÇÃO DE SEQUÊNCIA METODOLÓGICA DE ENSINO POR MEIO DE SUA HISTÓRIA
OBJETIVO
Apresentar uma aplicação de uma sequência de ensino para conteúdos de História da Matemática.
G
rugnetti & Rogers (2000, p. 53) explicam que a História da Matemática pode atuar não apenas como um ator de ligação entre tópicos de Matemática, como também as ligações entre a Matemática e outras disciplinas. Os reeridos autores desenvolvem uma análise na perspectiva da História da Matemática e discutem como determinados saberes podem ser mediados no ensino. Entretanto, no âmbito do ensino de Matemática, assumimos a necessidade da adoção de uma proposta metodológica que viabilize a abordagem de conteúdos matemáticos por meio de sua história. Assim, adotaremos a “proposta teóricometodológica apresentada por um grupo de Educadores Matemáticos do Estado do Ceará” (BORGES et al, 2001, p. 3) denominada Sequência Fedathi – SF que possibilita a criação de um clima experimental que retrata o os momentos e as diculdades enrentadas por um matemático prossional em busca da constituição de um saber.
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A reerida sequência de ensino prevê os seguintes níveis: • Nível 1 Tomada de posição – apresentação do problema ou de um teorema. Neste nível, o pesquisador-proessor apresenta uma situação-problema (possivelmente (possivelm ente no âmbito da História da Matemática) para o grupo de alunos, que devem possuir meios de atacar mediante a aplicação do conhecimento a ser ensinado. •
Nível 2 Maturação – compreensão e identicação das variáveis envolvidas
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no problema relacionado à História da Matemática (destinado a discussão e debate envolvendo os elementos: proessor-alunos-saber ).). •
Nível 3 Solução – apresentação e organização de esquemas/modelos que
visem à solução do problema. Aqui, os alunos organizados em grupos, devem apresentar soluções e estratégias, que possam conduzir aos objetivos solicitados e convencer com suas argumentações outros grupos. •
Nível 4 Prova – apresentação e ormalização do modelo matemático a ser
ensinado. Aqui, a didática do proessor determinará em que condições ocorrerá a aquisição de d e um novo saber que deve ser conrontado conrontad o com os saberes matemáticos atuais, inclusive as modicações condicionadas pela evolução e modernização do mesmo. A adoção de uma proposta metodológica para o ensino das sequências de Fibonacci e de Lucas é justicada a partir da evidencia de que, na literatura da área de História da Matemática, obtida por meio de um levantamento bibliográfco e análise de livros, ocorre escassez de uma discussão mais aproundada e das implicações possíveis extraídas a partir das relações conceituais entre as sequências supracitadas, além do quadro acadêmico preocupante preocupante descrito por Bianchi (2006) e Stamato (2003). Encontramos também nas armações de Lima (2001(a)) preocupantes preocupantes conclusões a respeito da qualidade do livro didático de Matemática, de modo particular, na abordagem abordag em de d e sequências numéricas. Deste modo, de acordo com a sugestão de Lima, desenvolveremos algumas considerações consideraç ões que podem evitar determinadas concepções concepç ões e hábitos indesejados na aprendizagem dos estudantes. Uma concepção acilmente identicada diz respeito a um ensino de Matemática que não evidencia as relações conceituais. conceituais. Deste modo, como descrev descrevemos emos na Figura 1, discutimos um assunto que possibilita uma ampla ligação conceitual interna à própria Matemática. “Tal ligação precisa ser compreendida de modo local e global por parte do proessor interessado em seu ensino” (ALVES; BORGES NETO, 2010, p.3). Além disso, ao observarmos as conexões e implicações possíveis e conhecendo a natureza da complexidade dos conceitos envolvidos, podemos prever os momentos didáticos em que cada noção pode ser explorada e antever os possíveis obstáculos ao aprendizado.
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Passamos assim a descrever uma proposta de aplicação teórica dos conteúdos de sequência de Fibonacci e de Lucas, segundo o modelo que nominamos de “estendido”.
A 6 T 3 Figura 2: Relações conceituais exploradas (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 5).
Honsberger (1985, p. 104) menciona, sem ornecer muitos detalhes, que, “não existe diculdade em estender a seqüência de Fibonacci no sentido indenidamente oposto”. De ato, notamos que: 1 = 0 + -1 \ -1 = 1 ; 0 = -1 + -2 \ -2 = -1 ,..., etc. Sucessivamente temos: {f-n }nÎ :{......; f-n ;...; f-8 ; f-7 ; f-6 ; f-5 ; f- 4 ; f-3 ; f-2 ; f-1 ; f0 } { ....;...... ; - 21; 13 ; - 8 ; 5 ;- 3 ; 2 ;- 1 ; 1 ; 0}
(1)
Destacamos que, em nenhuma das obras consultadas, encontramos a descrição da sequência de Fibonacci para o conjunto dos inteiros negativos. Entretanto, usando o mesmo princípio para a orma geral n = n-1 + n-2 , estabelecemos SAIBA MAIS! -n = -n-1 + -n-2 , n Î . Acrescentamos ainda que o modelo matemático descrito por n = n-1 + n-2 , Conheça mais sobre a história do matemático Giovanni Domenico pode ser considerado, numa linguagem atual, como Cassini acessando o site http://www. uma singela modelagem da geração de coelhos; todavia, apprendre-math.info/portugal/ o mesmo não podemos dizer em relação à sequência historyDetail.htm?id=Cassini {-n }nÎ . De modo análogo, lembrando que L1 = L0 + L-1 \ L-1 = L1 - L0 = -1 , temos a seguinte regra L-n = L-n-1 + L- n-2 , para n Î . Exibimos a sequência: {L-n }nÎ :{..; L-n ;...; L-8 ; L-7 ; L-6 ; L-5 ; L-4 ; L-3 ; L-2 ; L-1 ; L0 } { ...; ...;.. .... .... .. ;
(2)
; 18 ; - 11 ; 7 ; - 4 ; 3 ; - 1 ; 2 }
A vantagem desta ormulação pode ser compreendida, por exemplo, a partir da órmula n+1 × n-1 - n2 = (-1)n demonstrad demonstradaa pela primeira vez vez por Giovanni Domenico Cassini (1625-1712), em 1680, como explica Koshy (2007, apud ALVES; BORGES NETO, p. 134). Vamos agora realizar o mesmo raciocínio para a sequência descrita
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æ0 1 ö÷ æ 0 ÷=ç por -n = -n-1 + -n-2 . A matriz adequada será dada por Q = çç çè1 - 1ø÷÷ èçç -1 1
-1 ö÷ ÷. -2 ø÷÷
æ ö De modo análogo e com algum esorço, concluímos Q n = çç -n+1 -n ÷÷÷ . Aplicando èç -n -n-1 ø÷ um argumento semelhante ao de Honsberger, obtemos a seguinte identidade -n+1 × -n-1 = (-1)n + - n2 , para n Î . Assim, tomando-se os modelos {-n }nÎ e {L-n }nÎ , que chamaremos de “sequências estendidas”, podemos inerir propriedades surpreendentes. surpreenden tes. Vamos Vamos exemplicar nossa armação sugerindo su gerindo o seguinte problema: prob lema: Qual o comportament comportamentoo geométrico de {-n }nÎ e {L-n }nÎ ?
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Faremos agora o passo a passo do processo metodológico da aula sobre sequência. Nível 1 Tomada de posição – apresentação do problema ou de um teorema.
Destacamos que tal questionamento é pouco usual. De ato, notamos que a noção de sequência é explorada, eminentemente, “num quadro aritmético e algébrico” (LIMA, 2001(b), p. 123). Assim, a partir da listagem (1) e (2), podemos estimular os estudantes na construção dos seguintes grácos. grácos.
Figura 3: Apresentação geométrica das sequências (ALVES; BORGES NETO NE TO,, 2010, p. 8).
Certamente que sem o auxílio computacional, não conseguimos descrever Certamente descrever o gráco acima para valores muito grandes. Assim, no nível 2 empregamos o aparato tecnológico. Nível 2 Maturação – compreensão e identicação das variáveis envolvidas no
problema. (Destinado à discussão e debate envolvendo os elementos: proessoralunos-saber ). ).
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A partir da observação da gura 4, o proessor deve salientar aos seus estudantes o caráter limitado e insuciente, no sentido de prever o comportamento das sequências. Inclusive, usando o sotware Maple 10 , notamos que, de modo semelhante ao modelo tradicional, o mesmo ornece apenas os valores positivos da sequência, denida para inteiros positivos. Reparamos as aproximações por casas decimais descritas pelo programa na gura 3. Tal listagem pode gerar alguma estranheza nos estudantes, uma vez que, segundo o modelo de Fibonacci, não poderiam existir 4,9999999956 casais de coelhos. Neste nível, o proessor poderá estimular atividades numéricas. Por exemplo, a partir da gura 6, -2n = - 2n e -(2n+1) = 2n+1 para o caso do gráco de {-n }nÎ . E de modo equivalente, os alunos podem debater o comportamento do gráco da sequência de Lucas, entretanto, respeitando o poder de síntese desta aula, nos restringiremos daqui em diante ao caso da sequência de Fibonacci estendida {-n }nÎ .
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Nível 3 Solução – apresentação e organização de esquemas/modelos que visem à
solução do problema relacionado a História da Matemática. A partir das propriedades conjecturadas no nível 3, a saber -2n = - 2n e -(2n+1) = 2n+1 , o proessor necessita instigar a turma na compreensão de que tais propriedades são insucientes para responder o problema inicial. Aqui, evidenciamos uma importante característica da SF, que busca evitar uma aparência supercial do conhecimento matemático. Tal aparência supercial leva os estudantes a pensarem que para todo problema encontramos uma resposta denitiva e conclusiva. Neste caso, o mestre sabe que a resposta para o problema exige bem mais do que algumas linhas de argumentação e, além disso, deve conhecer a priori as possíveis propriedades necessárias e antever as diculdades reais à evolução do conhecimento em discussão pela turma. No próximo nível, o proessor convencerá seus alunos a respeito das argumentações que apresentam maiores chances de êxito, mesmo que parcial, para o problema. Nível 4 Prova – apresentação e ormalização do modelo matemático a ser
ensinado. Admitindo que seja verdade que -2n = - 2n e -(2n+1) = 2n+1 , poderíamos armar que o comportamento geométrico da sequência de Fibonacci de termos pares estendida será o mesmo comportamento da sequência tradicional, a menos de um sinal, o que provocará a simetria no gráco. E no segundo caso, poderíamos concluir que os termos ímpares, tanto da sequência tradicional como a sequência de Fibonacci estendida, devem ser idênticos, entretanto ambas produzem respostas parciais
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para nosso problema inicial. Para vericar tais igualdades, seguimos a sugestão de Benjamin; Quinn (2005, p. 143), que propõem a vericação da seguinte igualdade -n = (-1)n+1 × n para nÎ. Mas assumindo por indução a igualdade -n = (-1)n+1 × n , necessitamos provar que -(n+1) = -n-1 = (-1)(n+1)+1 × n+1 = (-1)n+2 × n+1 . Usamos -(n-1) = (-1)n-1+1 × n-1 = (-1)n × n-1 , assim:
A 6 T 3
Hipótese
-n+1 = -n + - n-1 \ - n-1 = - n+1 - - n = n
= (−1) ⋅ fn−1 − (−1) n
= (−1) ⋅
(fn
−1
)
n +1
n
n
⋅ fn = (−1) ⋅ fn−1 + ( −1) ⋅ fn =
+ f n = (−1)
n +2
⋅ f n +1
“O pensamento matemático pode apoiar os estudantes em diversos modos quando estudam história” (GRUGNETTI; ROGERS, 2000, p. 53). A investigação de evidências primárias e o processo de decisão de quais são os resultados e atores chave em cada evento proporciona uma visão global e interconectada aos jovens, entretanto o proessor necessita se apoiar em concepções e teorias que possam viabilizar um ensino/aprendizagem produtivo, com o suporte da História da Matemática. A proposta metodológica denominada Sequência Fedathi visa um ensino desta ciência que preserva alguns traços característicos do momento de criação e descoberta de um matemático. Deste modo, uma das variáveis na pesquisa é a ormulação de situações-problema intrigantes que exigem bem mais do que o exercício do pensamento algorítmico (OTTE,1991, p. 285). Em nosso caso, evidenciamos em várias obras a ausência da exploração de propriedades intrigantes entre as sequências de Fibonacci e de Lucas. Apenas em Honsberger (1985), encontramos a breve sugestão de desenvolver propriedades com o que nomeamos de sequência estendidade de Fibonacci . A partir dela, desenvolvemos também algumas propriedades para a sequência estendida de Lucas . Seguindo o raciocínio encontrado nos livros consultados, adaptamos os resultados obtidos para a primeira sequência na segunda. Na gura 3 exibimos nossa última relação descrita de modo signicativo por meio de uma interpretação geométrica. Respeitando os limites de síntese deste artigo, salientamos, de modo resumido, o caso das relações com a noção de convergência de sequências. Descobrimos que o quociente n+1 converge (BENJAMIN; QUINN, n 2005, p. 157). O mesmo resultado pode ser compreendido de modo intuitivo e inormal num curso de História da Matemática, quando recorremos à tecnologia. De modo surpreendente, não identicamos, na literatura pesquisada, o comportamento
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de Ln+1 L descrita do lado direito da Figura 4. n
A 6 T 3 Figura 4: Comportamento geométrico do quociente (ALVES; BORGES NETO, 2010, p. 8).
Finalizamos este tópico salientando a diculdade enrentada pelos proessores com vistas a uma eetiva exploração em sala de aula. Com mencionamos anteriormente, muitos dos conhecimentos apresentados ao proessor em ormação envolvem um saber de “caráter informacional”, e não um as obras consultadas “caráter operacional”. Alertamos que, na maioria dos casos, o proessor, por si só, não consegue realizar as necessárias ligações entre teoria e prática, principalmente o incipiente na carreira. Desse modo, buscamos discutir e explorar nestes tópicos um caráter operacional do saber matemático com um viés eminentemente histórico. Sua importância é destacada por Dambros (2006, p. 5) ao relatar que: Dentre as justifcativas apresentadas pelos deensores do estudo da história da matemática pelo proessor, há uma insistentemente citada: o proessor que conhece a história da matemática compreende a matemática como uma ciência em progresso e construção, como uma criação conjunta da humanidade e não como uma ciência pré-existente, um presente acabado de Deus, descoberta por gênios e por isso incontestável.
Este caráter de “saber universal”, maniestado de modo peculiar na Matemática, é histórico. Ele perpassa e infuencia toda a ormação dos ormadores de proessores e, por último, infuenciará a ormação do licenciado. Muitos destes condicionamentos podem ser entendidos, na medida em que nos atemos à própria constituição, evolução e determinação dos currículos de Matemática, desde o Brasil colônia até os dias atuais. Neste sentido, Miorim (1995, p.192) discute que:
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Na 3ª série a articulação entre a aritmética e a álgebra continua através da ampliação do estudo de unções, de sua representação gráca e das equações e desigualdades algébricas. Na geometria percebe-se claramente o rompimento com o modelo euclidiano, quando é proposto o estudo de proposições undamentais que servem de base à geometria dedutiva, das noções de deslocamentos elementares no plano; translação e rotação de guras e, em seguida, uma série de estudos especícos sobre guras relações métricas e homotetia. É a pulverização da geometria dedutiva eucliana.
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Em suas considerações, notamos a denúncia a respeito das reormas históricas envolvendo o currículo de Matemática, que, em alguns casos, proporcionaram um eeito nocivo à Educação. Os elementos apontados pela pesquisadora Maria Ângela Miorim constituem elementos da História da Educação Matemática.
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