AS CONVENÇÕES DO GÊNERO DETETIVESCO NO ROMANCE GRÁFICO PAUL AUSTER’S CITY OF GLASS Camila Augusta Pires de Figueiredo
[email protected] Thaïs Flores Nogueira Diniz
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Resumo: Este artigo analisa o romance gráfico Paul Auster’s City of Glass, dos artistas Karasik e Mazzucchelli, uma transposição de 1994 da primeira novela de Paul Auster em The New York Trilogy. O objetivo deste texto é propor um estudo sobre como a narrativa quadrinizada expande e modifica as idéias em “City of Glass”1, de Auster. Comparando as duas obras, observa-se a maneira como o romance gráfico lida com alguns elementos das histórias de detetives tradicionais, especialmente a estrutura e personagens. Meu argumento é que a versão do romance gráfico, em alguns momentos, reforça e, em outros, subverte as convenções do gênero literário conhecido como ficção de detetive.
Abstract: This article analyzes the graphic novel Paul Auster’s City of Glass, by artists Paul Karasik and David Mazzucchelli, a 1994 transposition of Paul Auster’s first novella in The New York Trilogy. The aim of this text is to examine how the comics form expands and modifies the ideas in Auster’s “City of Glass”. By comparing the two, I observe the way the graphic novel deals with certain elements of classical detective stories, especially structure and characterization. My argument is that the graphic version both reinforces and subverts the conventions of detective fiction.
Palavras-chave: City of Glass. Romance gráfico. Transposição de mídia. Ficção de detetive. Keywords: City of Glass. Graphic novel. Media transposition. Detective fiction. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 2, 2011
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Introdução Desde suas origens, histórias de crime e de detetives sempre tiveram grande apelo popular. Datadas do início do século XIX, as primeiras ficções vitorianas de detetives coincidem com o crescimento acelerado das cidades e com os conseqüentes problemas dessa nova vida urbana, particularmente a violência. Por conseguinte, data dessa época também o surgimento de uma polícia investigativa para combater o avanço da criminalidade nas cidades. Desde Edgar Allan Poe, considerado o precursor do gênero, as ficções de detetives tradicionais – em especial a ramificação clássica britânica de influência de Arthur Conan Doyle – enfatizam as habilidades de investigação e interpretação do protagonista racional. Os pontos centrais dessas histórias vêm geralmente ao final, quando o detetive reconstrói o crime, explicando o método lógico que utilizou para observar e interpretar as misteriosas e muitas vezes falaciosas pistas que o conduziram à solução do mistério que envolve o crime. Nos Estados Unidos, a ficção detetivesca tomou rumos diferentes. Raymond Chandler e Dashiel Hammett são considerados os principais autores da corrente hard-boiled, em que o trabalho do detetive/policial “durão” envolve perseguições e armadilhas em uma cidade dominada pela corrupção. Além disso, o protagonista envolve-se fisicamente no combate ao crime, participando de lutas e, muitas vezes, obedecendo ao seu próprio senso de justiça. Tanto a narrativa clássica inglesa como a americana hard-boiled satisfazem ao leitor, uma vez que o detetive/policial consegue, com sucesso, alcançar seu objetivo, posicionando de forma coerente as peças do quebracabeça. Madeleine Sorapure explica que, ao reconstruir a narrativa do crime de maneira lógica e correta, tanto o detetive quanto o leitor alcançam a posição metafísica do autor, que transcende os eventos apresentados no texto (1995, p. 72). No entanto, na chamada ficção detetivesca anti ou meta-ficcional, essa busca pelo conhecimento autoral é frustrado; os papéis do autor, do detetive e do leitor tendem a se misturar. Nesse tipo de ficção, o mundo real não consegue explicar os mistérios da narrativa, dando lugar àquilo que é racionalmente incompreensível, ao caos, ao fantástico e ao mágico. Essa subversão das convenções do gênero da ficção de detetives está presente nas obras de autores pós-modernos como Pynchon, Borges e Auster.
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Publicada como volume à parte em 1985, “City of Glass” é a primeira novela do livro de Paul Auster intitulado A Trilogia de Nova York (1987). “City of Glass” conta a história de Daniel Quinn, um escritor viúvo que, sob o pseudônimo de William Wilson, relata as aventuras do detetive Max Work. Ao atender uma ligação para o número errado, Quinn assume a identidade de outra pessoa, um detetive chamado Paul Auster, e acaba sendo contratado para seguir o suspeito Sr. Stillman a fim de evitar que um crime aconteça. Não há um crime a ser desvendado, nem um criminoso a ser capturado, somente a suspeita de um crime que pode vir a acontecer. Em 1994, David Mazzucchelli e Paul Karasik transpuseram “City of Glass” para a mídia dos quadrinhos, do tipo denominado romance gráfico. Ao contrário da obra de Paul Auster, a adaptação não teve grande repercussão e obteve apenas uma crítica da Newsweek e uma do The New York Times2. Isso reflete a tendência de depreciação do texto adaptado em relação à obra “original”. A segunda é geralmente considerada uma cópia malfeita do primeiro texto, de onde sempre se perde algo. No entanto, nesse aspecto, concordo com Linda Hutcheon, em A Theory of Adaptation, que observa que o fato de uma obra “ser a segunda não significa que seja secundária ou inferior” (2006, p. xiii)3. Especialmente quando se trata de transposições de mídia4, ou seja, quando um texto é transposto de uma mídia para outra – por exemplo, de romances para os quadrinhos ou de jogos de vídeo games para o cinema – as mudanças são inevitáveis, mas não necessariamente negativas. Assim, ao transpor “City of Glass”, foi necessário respeitar as convenções formais da mídia dos quadrinhos, suas restrições e possibilidades. Da mesma forma, é importante esclarecer que meu propósito neste artigo não é o de demonstrar o que se perdeu na transposição feita por Karasik e Mazzucchelli em relação à prosa de Auster. Ao contrário, interessa-me mais analisar o ato de transposição propriamente dito, em particular as estratégias usadas pelos artistas para transpor certos excertos do texto-fonte, observadas as especificidades da mídia quadrinizada. Nesse sentido, City of Glass demonstra ser um ótimo exemplo de uma adaptação que soube lucrar com as práticas midiáticas específicas dos quadrinhos. Mais do que simples paralelos entre os textos verbal e visual (como em um manual de instruções), City of Glass expande a narrativa de Paul Auster, acrescentando ironia e metáforas. Neste artigo, analisarei como o romance gráfico enfatiza, mais do que a prosa em alguns momentos, as convenções das histórias clássicas de detetives – sua estrutura e personagens.
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A estrutura do gênero detetivesco 1 O método de investigação Ao contrário das narrativas clássicas, que são regidas pelo método da detecção e da razão, “City of Glass” mostra como o acaso afeta o desenrolar da história. Não apenas as escolhas do detetive, mas todos os eventos da narrativa acontecem de maneira arbitrária. É de modo totalmente arbitrário, por exemplo, que o protagonista Daniel Quinn se torna o detetive da estória. Quinn atende a um telefonema para número errado. A pessoa do outro lado da linha pergunta se ele é Paul Auster, o detetive. Compelido pela curiosidade e pela necessidade de dar sentido à sua vida insípida, Quinn responde como se fosse o detetive e aceita trabalhar no caso. O narrador reconhece o papel do acaso nesse episódio: Mais tarde, quando ele pode pensar sobre as coisas que aconteceram com ele, concluiria que nada era real, exceto o acaso. (...) Se pudesse ter acontecido de um modo diferente, ou se tudo estivesse predestinado com a primeira palavra que saiu da boca daquele estranho, essa não era a questão (AUSTER, 2004, p. 3)5.
É também o acaso que vai definir a escolha de Quinn, em uma estação de trem, ao se deparar com duas versões praticamente iguais do suspeito que deveria seguir, um certo Professor Stillman: “Por um momento, Quinn achou que era uma ilusão, um tipo de aura lançada pelas correntes eletromagnéticas no corpo de Stillman. (...) Não havia nada que ele pudesse fazer agora que não seria um erro. Qualquer escolha que fizesse – e ele tinha de fazer alguma – seria arbitrária, uma submissão ao acaso (p. 56)6.” Portanto, ao contrário do que se espera de uma narrativa de investigação tradicional, em “City of Glass”, os eventos fogem ao controle do detetive. Apesar da habilidade de observação de Quinn no episódio da estação de trem, é impossível identificar o suspeito correto empregando os famosos métodos clássicos de detecção e indução típicos das narrativas de detetives. No romance gráfico, o acaso é representado por imagens duplicadas ou semelhantes, que oferecem ao leitor mais do que uma possibilidade icônica para um único evento. Para o primeiro exemplo dado, o leitor é levado a crer que o telefone que aparece nas imagens dos primeiros quadrinhos é o telefone que Quinn atende. Porém, nos quadrinhos seguintes,
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descobrimos que o telefone que aparece é apenas um desenho na capa de uma lista telefônica, debaixo do verdadeiro telefone que toca. No segundo exemplo, à medida que um “Stillman” se abaixa para pegar sua maleta, o outro aparece atrás, no mesmo quadro. As pistas que aparecem ao longo da narrativa também obedecem à lógica do acaso em “City of Glass”. Nas histórias tradicionais, tais como as protagonizadas por Auguste Dupin e Sherlock Holmes, existem pistas falsas e verdadeiras. A astúcia do detetive consiste em encaixar as pistas certas para a solução do mistério, eliminando as outras. Desta forma, verdadeiras ou falsas, as pistas sempre nos levam a algum lugar na história. Ou abrem novas possibilidades em direção à solução do mistério ou elas eliminam falsas suposições. Nas ficções detetivescas metaficcionais, há uma multiplicidade de possibilidades e pistas sem que haja uma correspondência lógica entre a pista e o seu significado. A conseqüência dessa pluralidade de possibilidades e significados é que, ao final, há sempre questões não respondidas e a solução do mistério dá lugar à não-solução e ao caos. Por causa disso, Quinn decide comprar um caderno vermelho para anotar todos os detalhes do caso que está investigando, na esperança de que “[d]esta maneira, talvez, as coisas não saiam do controle” (p. 38)7, numa tentativa de limitar as possibilidades suscitadas pelas múltiplas pistas e para estabelecer conclusões coerentes daquilo que observa. Apenas no romance gráfico podemos ver o tema da duplicidade neste episódio. Separados por mais de trinta páginas, o leitor observa que o caderno em que Stillman escreve as novas palavras do idioma que está inventando é bastante similar ao caderno que Quinn comprara para escrever suas observações, apenas mais gasto. Quinn acredita que sua experiência como escritor de histórias de ficção de mistério e crime o ajudaria a incorporar o papel do detetive, uma vez que ele já estaria familiarizado com as convenções desse tipo de histórias. No entanto, no mundo ficcional onde Quinn se encontra, seu método de investigação falha: “Era tudo uma questão de método. Se o objetivo era entender Stillman, conhecê-lo bem o suficiente para antecipar o que ele faria em seguida, Quinn havia falhado” (p. 61)8. Na narrativa pós-moderna de Auster, os métodos e hipóteses convencionais não levam a resultados satisfatórios: “Ele sempre imaginou que a chave para um bom trabalho de um detetive era uma atenta observação dos detalhes. (...) Mas depois de lutar para analisar todos esses efeitos superficiais, Quinn não se sentia mais perto de Stillman do que quando começou a segui-lo” (p. 67)9. Scripta Uniandrade, v. 9, n. 2, 2011
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No romance gráfico, uma grade “três-por-três” – uma convenção da mídia dos quadrinhos – é usada mais de uma vez para representar simbolicamente o fracasso, a limitação e o aprisionamento. A grade “trêspor-três” é usada como se fossem as grades da janela do apartamento de Quinn, representando a limitação das habilidades interpretativas do personagem (Fig. 1). Em outros dois momentos, as grades ilustram a infância cruel de Peter Stillman Jr., trancado em um quarto escuro por nove anos (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 27, 45).
Fig. 1 – Grades como convenção (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 61).
2 A identidade dos personagens Em “City of Glass”, Quinn aceita investigar o caso como se fosse um detetive e sente que é capaz de fazer isso com base em sua experiência como escritor de histórias de detetives, sob o pseudônimo de William Wilson. Por isso, ele sabe que nas histórias de detetives tradicionais, existem certos papéis que são típicos, como o do criminoso, da vítima e do detetive. No entanto, na novela de Paul Auster, qualquer tentativa de definir a identidade dos personagens é caótica. Essas identidades não são previsíveis e há várias possibilidades: identidades distorcidas, perda de identidade, identidades trocadas e dupla identidade. Assim que decide comprar um caderno vermelho, Quinn passa a registrar todas as suas impressões a respeito das pessoas envolvidas no caso. Ele chega à conclusão de que Stillman corresponde à idéia do criminoso carismático: “(…) esse não é o rosto de um louco. Ou isso não é uma
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afirmação legítima? Aos meus olhos, pelo menos, parece benigno, se não agradável” (p. 39)10. De acordo com suas anotações, Peter, filho de Stillman, seria a vítima desprotegida, mas não totalmente confiável: “Pequeno Peter. Seria necessário imaginar, ou posso acreditar nisso?” (p. 39)11. Virgínia, a esposa de Peter, guarda semelhanças com a figura da femme fatale das histórias de detetives: “E ainda: por que sinto que não posso confiar nela?” (p. 40)12. Entretanto, percebemos mais tarde que as identidades das pessoas envolvidas no caso não correspondem às expectativas de Quinn. Depois de conversar com Stillman, Quinn conclui que não se trata de um criminoso, mas um idoso desequilibrado. Apesar de sua pouca habilidade em expressar verbalmente, Peter Stillman aparentemente conta a Quinn toda a verdade sobre sua infância cruel. Da mesma maneira, Virginia acaba não correspondendo à figura da femme fatale. O colapso das identidades também se aplica ao protagonista, uma vez que Quinn não consegue executar com sucesso seu trabalho como detetive. No início da história, Quinn nos é apresentado como se não possuísse uma identidade, ou como se uma parte desta tivesse sido perdida com a morte da esposa e do filho: “Quinn não era mais aquele que podia escrever livros, e apesar de que Quinn continuava a existir de várias maneiras, ele não existia para mais ninguém além dele mesmo” (p. 4)13. Ele então tenta assumir outras identidades na tentativa de preencher o vazio em sua vida. Primeiramente, ele se esconde na figura de William Wilson, seu pseudônimo como autor, e depois se identifica com Max Work, o detetive das histórias escritas por William Wilson. Mais tarde, quando começa a investigar o caso, ele assume a identidade de Paul Auster, o detetive: “Lembrar a sensação de vestir as roupas de outras pessoas. (…) Tudo o que posso dizer é isso: escutem-me. Meu nome é Paul Auster. Não é o meu verdadeiro nome (p. 40)14. Além disso, a identidade de Quinn é também construída através de metáforas visuais. Assim como as metáforas verbais, as metáforas visuais “tendem a representar o desconhecido, não-resolvido ou problemático em termos de algo mais familiar e mais facilmente imaginável” (EL REFAIE, 2003, p. 84)15. No entanto, ao contrário das verbais, as metáforas visuais lidam com dois sistemas semióticos: palavras e imagens. Elas geralmente envolvem imagens que metaforicamente ecoam os temas centrais da história e podem fazer referência a episódios anteriores da narrativa ou até mesmo a eventos da vida real.
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Em entrevista ao The Comics Journal, em 1997, David Mazzucchelli explica que a metáfora visual foi a maneira que encontraram de expressar questões presentes na obra de Auster – como a estrutura da linguagem e da identidade – sem que fosse preciso manter toda a parte verbal do texto. Desta forma, as metáforas foram soluções necessárias para representar o não-visual. O emprego das metáforas visuais cria um subtexto dentro da história, acrescentando valores simbólicos e psicológicos à narrativa. No romance gráfico, o recurso da metáfora visual é usado com o propósito de se referir a aspectos da identidade de Quinn em dois momentos. No início da história, ao apresentar-nos ao protagonista, o romance de Auster diz que Quinn estava “[p]erdido, não apenas na cidade, mas em si mesmo também” (p. 4)16. Nos quadrinhos, esse mesmo trecho é ilustrado com os prédios de Nova Iorque se transformando em um labirinto; em seguida, esse labirinto se transforma na impressão digital de Quinn na janela de sua casa (Fig. 2). Portanto, podemos dizer que, no romance gráfico, uma metáfora visual interliga duas idéias diferentes de perda: o fato de Quinn se sentir perdido em Nova Iorque (representado pelo labirinto) e o fato de ter perdido a sua identidade (representado pela impressão digital).
Fig. 2 – A metáfora do labirinto (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p.4).
Mais tarde, quando Quinn perde Stillman de vista e já não há mais nenhuma pista a ser seguida, ele perde também a sua identidade como detetive. A metáfora do labirinto repete-se, mas desta vez ao contrário. A partir da imagem da digital de Quinn na janela, vemos o labirinto. No final de um dos corredores deste, uma porta com um cadeado representa a impossibilidade de solução para o caso (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 85). É uma metáfora visual do fracasso de Quinn como detetive.
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Por fim, depois de falhar como detetive e passar vários meses vivendo nas ruas, Quinn acaba se tornando outra pessoa, surpreendentemente parecida com Stillman, o suspeito do caso que investigava. No romance gráfico, além da já mencionada semelhança do caderno vermelho, outra cena aproxima os dois personagens. Após perambular pela cidade, Stillman descansa no parque, deitado na grama. No final do romance gráfico, temos imagem semelhante de Quinn, deitado na grama do parque para descansar (Fig. 3).
Fig. 3 – Stillman e Quinn (KARASIK & MAZZUCHELLI, 1994, p. 58; 116).
O motivo da dupla identidade também está presente em Auster. Tanto o filho falecido de Quinn quanto o filho do Professor Stillman chamam-se Peter. O filho de Paul Auster (tanto o do personagem quanto o do autor de “City of Glass”) chama-se Daniel. O primeiro nome de Quinn também é Daniel. Em um episódio em particular, a questão das identidades duplas encontra uma forma distinta nos quadrinhos. Ao visitar o personagem Paul Auster, Quinn conhece Daniel, filho de Auster. A princípio, o garoto guarda uma grande semelhança física com o filho falecido de Quinn (p. 95). Mas, além disso, vemos que o filho de Auster segura um ioiô. Não há menção deste detalhe na novela de Auster. No romance gráfico, esse detalhe é relevante porque somos remetidos a uma passagem anterior no romance gráfico, onde o filho falecido de Quinn aparece em um retrato de família, segurando um ioiô (p. 5). Neste sentido, podemos ver como o texto visual acrescenta significados à prosa de Auster, complicando o tema da duplicidade e chamando à nossa atenção os sentimentos de saudade da família e de vazio, que Quinn tenta preencher assumindo a vida de outra pessoa.
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3 A figura do detetive Nas narrativas detetivescas tradicionais, a cobrança de honorários pelo detetive é um hábito. No romance gráfico, isto é ilustrado de maneira interessante. No momento em que o pagamento é mencionado, Quinn se transforma em Max Work, o detetive criado por ele, sob o pseudônimo de William Wilson. Max Work é o típico protagonista das histórias de detetives tradicionais. Suas roupas – capa e chapéu – e seu rosto de linhas angulosas lembram o personagem Dick Tracy, de Chester Gould, estereótipo do detetive tradicional nas histórias em quadrinhos. A figura de Max Work nos quadrinhos é mais marcante do que na história de Auster. Por exemplo, enquanto Quinn ainda pondera sobre a possibilidade de atender ao telefone e se passar pelo detetive Paul Auster, em sua imaginação Work toma a iniciativa e aceita investigar o caso. Em outro momento, enquanto aguarda Stillman na estação de trem, Quinn busca inspiração em um verdadeiro detetive. Na novela, a inspiração vem de Paul Auster, o personagem-detetive: “Ele perambulava pela estação, então, como se estivesse dentro do corpo de Paul Auster, esperando Stillman aparecer” (AUSTER, 2004, p. 51)17. Porém, nos quadrinhos, a figura de Auster é substituída pela de Max Work (Fig. 4).
Fig. 4 – Quinn como Max Work (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 47)
Nas narrativas detetivescas metaficcionais como City of Glass, a realidade da narrativa mistura-se à ficção em diversos momentos. Em duas situações, os personagens da novela se tornam autores e dão vida a outros personagens ficcionais. Stillman cria o personagem Henry Dark para 134
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propagar as suas controversas idéias de uma nova língua; Quinn cria Max Work que, em certas ocasiões, parece mais real do que seu próprio criador: “Há muito tempo, é claro, Quinn parou de pensar em si mesmo como real. Se ele vivesse agora no mundo, seria somente uma cópia, através da pessoa imaginária de Max Work. Seu detetive precisava ser real. A natureza dos livros exigia isso” (AUSTER, 2004, p. 9)18. Sorapure explica que, em “City of Glass”, há uma busca frustrada do detetive por conhecimento autoral (1995, p. 72). Essa busca é ainda mais frustrante para o leitor que, ao final da história, percebe que não há autor e não há conhecimento autoral em que possa confiar: O narrador da história permanece anônimo até o final, quando finalmente se revela, dizendo que sabe apenas parte da história, a parte escrita por Quinn no caderno vermelho. Da mesma forma, não há como localizar os autores ficcionais: Quinn desaparece quando as páginas do caderno acabam e Stillman faz o check-out de um hotel e também desaparece. Lembrando o autor Barthesiano, no mundo pós-moderno de “City of Glass”, há várias figuras autorais, mas todas morrem ou desaparecem no final. Ao final da narrativa, é evidente que o “real” e o ficcional se misturam na cabeça de Quinn, debilitado por permanecer durante vários meses nas ruas, em busca do Professor Stillman. Por várias vezes, o protagonista se questiona se o que estava acontecendo era real. Ao final da investigação, diante da não-solução do mistério, Quinn rememora seus passos, procurando falhas em seu método e questionando a própria sanidade. Stefano Tani explica que, em narrativas metaficcionais, “o confronto não é mais entre um detetive e um assassino, mas entre o detetive e a realidade, ou entre a mente do detetive e seu senso de identidade, o que está desmoronando, entre o detetive e o ‘assassino’ em si mesmo” (citado em SORAPURE, 2004, p. 76)19. Assim, uma vez que o protagonista é pouco confiável, não sabemos se os eventos da narrativa realmente aconteceram ou se foram um produto de sua imaginação. Além disso, tal como em Marco Polo e Robinson Crusoé, o narrador de “City of Glass” clama pela fidelidade e veracidade dos fatos. No entanto, é preciso lembrar que o narrador é, antes de tudo, um leitor que vai conferir a própria interpretação da história do caderno vermelho, conforme escrita por Quinn. É ele(a) quem vai projetar sentido e organizar o texto. Tornamonos, portanto, leitores de segunda-mão da história de Quinn. No romance gráfico, à medida que a narrativa se aproxima do final, o desenho se torna mais primário, quase um rascunho, como se Quinn Scripta Uniandrade, v. 9, n. 2, 2011
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tivesse a visão embaçada ou como se tivesse perdido o foco no caso misterioso. Nesse momento, o narrador intervém tanto na porção verbal quanto na visual do texto: a imagem de uma máquina de escrever e letras como as de uma máquina de escrever revelam o narrador por detrás da história, no exato momento em que Quinn “começava a perder seu controle” (KARASIK AND MAZZUCCHELLI, 1994, p. 107)20. Nas últimas páginas, os quadrinhos se soltam da grade três-por-três e se transformam em páginas individuais, que flutuam e se vão como se levadas por um redemoinho. Essas páginas individuais não possuem imagens, somente palavras escritas com a fonte comics sans. A última abandona completamente essas duas convenções de quadrinhos: a página dividida em quadros é substituída por uma página em branco, onde as imagens e o texto são colocados de maneira solta, e a fonte comic sans é substituída por um texto escrito com letras como as de uma máquina de escrever.
Considerações finais No processo de transposição de um sistema de signos para outro ou mesmo de uma mídia para outra, é bastante comum que se obedeça à hierarquia da primazia, em que a primeira obra é mais apreciada. Isso ocorre porque o processo de transposição geralmente ocorre da mídia menos popular para a mais popular como, por exemplo, na transposição de romances para o cinema e deste para jogos de vídeo game. Nas transposições, é também comum que haja uma preferência da palavra sobre a imagem. A primeira é sempre considerada mais complexa e subjetiva. Em qualquer caso de transposição, tende-se a cobrar fidelidade da obra transposta à obra que lhe serviu de inspiração. Entretanto, conforme as mais recentes críticas sobre adaptação apontam, ainda que a proximidade entre o texto-fonte e o texto-alvo seja necessária para que o leitor/ espectador/jogador reconheça a transposição como tal, as modificações são inevitáveis, já que as adaptações sempre estarão sujeitas ao contexto em que estão inseridas, sejam esses midiáticos ou culturais. Quando transpuseram “City of Glass”, David Mazzucchelli e Paul Karasik tiveram de lidar com as cobranças típicas feitas às transposições. Tais cobranças, no entanto, certamente foram agravadas pelo fato de que as histórias em quadrinhos sempre foram consideradas literatura infantojuvenil, de fácil interpretação. Este artigo procurou mostrar a importância 136
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de considerarmos as possibilidades e restrições de cada mídia. Para isso, utilizamos uma abordagem que buscou ressaltar positivamente as diferenças entre a prosa de Auster e o romance gráfico. Ao analisarmos a maneira como cada mídia aborda as convenções do gênero das tradicionais histórias de detetives, concluímos que ambas mencionam o método de investigação, as pistas e os personagens típicos, mas tratam essas convenções de maneiras diferentes em cada obra. Em relação ao modo de utilização das imagens nos quadrinhos, observamos como os elementos visuais acrescentam significados e subtextos à narrativa de Auster. Desta forma, podemos dizer que cada obra proporciona ao leitor experiências distintas, mas igualmente interessantes e ricas. Notas 1 Esclareço que, enquanto “City of Glass” (entre aspas) se refere a uma das novelas que compõem o livro The New York Trilogy, da autoria de Paul Auster, o romance gráfico Paul Auster’s City of Glass será referido neste artigo como City of Glass (em itálico). 2 De acordo com Martha Kuhlman, em “The Poetics of the Page: City of Glass, the Graphic Novel”, 2004, s/n. 3 Neste artigo, todas as traduções são minhas, exceto quando explicitado. Minha tradução de “to be second is not to be secondary or inferior” 4 Conforme explica Irina O. Rajewsky, transposição de mídia é “a transformação de um dado produto midiático (um texto, um filme, etc.) ou de seu substrato em outra mídia”. Nesta categoria, “o texto, filme, etc. original, é a ‘fonte’ do recém-formado produto midiático (2005, p. 51). As outras duas categorias da intermidialidade são: combinação de mídias e referência intermidiática. 5 Todas as referências a esta obra serão documentadas no corpo do trabalho apenas com o número da página.Versão em inglês:“Much later, when he was able to think about the things that happened to him, he would conclude that nothing was real except chance. (…) Whether it might have turned out differently, or whether it was all predetermined with the first word that came from the stranger’s mouth, is not the question”. 6 Versão em inglês: “For a second Quinn thought it was an illusion, a kind of aura thrown off by the electromagnetic currents in Stillman’s body. (... ) There was nothing he could do now that would not be a mistake. Whatever choice he made – and he had to make a choice – would be arbitrary, a submission to chance”. 7 Versão em inglês: “[i]n that way, perhaps, things might not get out of control”.
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Versão em inglês: “It was all a question of method. If the object was to understand Stillman, to get to know him well enough to be able to anticipate what he would do next, Quinn had failed” 9 Versão em inglês: “He had always imagined that the key to good detective work was a close observation of details. (…) But after struggling to take in all these surface effects, Quinn felt no closer to Stillman than when he first started following him”. 10 Versão em inglês: (…) this is not the face of a madman. Or is this not a legitimate statement? To my eyes, at least, it seems benign, if not downright pleasant”. 11 Versão em inglês: “Little Peter. Is it necessary for me to imagine it, or can I accept it on faith?” 12 Versão em inglês: “And yet: why do I feel she is not to be trusted?” 13 Versão em inglês: “Quinn was no longer part of him that could write books, and although in many ways Quinn continued to exist, he no longer existed for anyone but himself ”. 14 Versão em inglês: “To remember what it feels like to wear other people’s clothes. (…) All I can say is this: listen to me. My name is Paul Auster. That is not my real name”. 15 Versão em inglês: “tend to represent the unknown, unresolved or problematic in terms of something more familiar and more easily imaginable”. 16 Versão em inglês: “[l]ost, not only in the city, but within himself as well”. 17 Versão em inglês: “He wandered through the station, then, as if inside the body of Paul Auster, waiting for Stillman to appear”. 18 Versão em inglês: “He had, of course, long ago stopped thinking of himself as real. If he lived now in the world at all, it was only at one remove, through the imaginary person of Max Work. His detective necessarily had to be real. The nature of the books demanded it”. 19 Versão em inglês: “the confrontation is no longer between a detective and a murderer, but between the detective and reality, or between the detective’s mind and his sense of identity, which is falling apart, between the detective and the “murderer” in his own self ”. 20 Versão em inglês: “began to lose his grip”. REFERÊNCIAS AUSTER, P. City of Glass. The New York Trilogy. London: Faber and Faber, 2004, p. 1-158. EL REFAIE, E. Understanding visual metaphor: the example of newspaper cartoons. Visual Communication, v. 2, p. 75–95, 2003. Disponível em:
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Artigo recebido em 08 de agosto de 2011. Artigo aceito em 03 de outubro de 2011.
Camila Augusta Pires de Figueiredo Mestre em Literatura Inglesa pela UFMG. Thaïs Flores Nogueira Diniz Pós-doutora pela University of London; Doutora pela UFMG e Indiana University at Bloomington. Professora Associada da FALE/UFMG.
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