Arte como como experiênc ex periência ia John Dewey
Últimos Escritos, 1925-1953 Arte Como Experiência Experiência Organização: Jo Ann Boydston Editora Editor a De Texto: Texto: Harr Harr iet Furst Furst Simon Introdução: Abraham Kaplan Tradução: Vera er a Ribeiro Ribeir o Martins Martins Fontes
A Criatura Viva Por uma das perversidades irônicas que muitas vezes acompanham o curso dos acontecimentos, a existência das obras de arte das quais depende a formação de uma teoria estética se tornou um empecilho à teoria sobre elas. Para citar uma razão, essas obras são produtos dotados de existência externa e física. Na concepção comum, a obra de arte é frequentemente identificada com a construção, o livro, o quadro ou a estátua, em sua existência distinta da experiência humana. Visto que a obra de arte real é aquilo que o produto faz com e na experiência, o resultado não favorece a compreensão. Além disso, a própria perfeição de alguns desses produtos, o prestígio que eles possuem, por uma longa história de admiração inquestionável, cria convenções que atrapalham as novas visões. Quando um produto artístico atinge o status de clássico, de algum modo, ele se isola das condições humanas em que foi cr iado e das consequências consequências humanas humanas que gera na exper exper iência real de vida. Quando Quando os o s objetos artísticos são separados das condições de or igem e funcionamento funcionamento na experiência, constrói-se em torno deles um muro que quase opacifica sua significação geral, com a qual lida a teoria estética. A arte é remetida a um campo separado, onde é isolada da associação com os materiais e objetivos de todas as outras formas de esforço, sujeição e realização humanos. Assim, impõe-se uma tarefa primordial a quem toma a iniciativa de escrever sobre a filosofia das belasartes. Essa tarefa é restabelecer a continuidade entre, de um lado, as formas refinadas e intensificadas de experiência que são as obras de arte e, de outro, os eventos, atos e sofrimentos do cotidiano universalmente reconhecidos como constitutivos da experiência. Os picos das montanhas não flutuam no ar sem sustentação, tampouco apenas se apoiam na terra. Eles são a terra, em uma de suas operações manifestas. Cabe aos que se interessam pela teoria da terra - geógrafos e geólogos evidenciar esse fato em suas várias implicações. O teórico que deseja lidar filosoficamente com as belas-artes tem uma tarefa semelhante a realizar. Se alguém se dispuser a admitir essa postura, nem que seja apenas a título de um experimento
tempor temporário ário,, verá que daí daí decorr decor r e uma conclusão conclusão surpreenden sur preendente, te, à primeir a vista. vista. Para compreend compr eender er o significado dos produtos artísticos, temos de esquecê-los por algum tempo, virar-lhes as costas e recorrer às forças e condições comuns da experiência que não costumamos considerar estéticas. Temos de chegar à teoria da arte por meio de um desvio. É que a teoria diz respeito à compreensão, ao discernimento, não sem exclamações de admiração e sem o estímulo da explosão afetiva comumente chamada de apreciação. É perfeitamente possível nos comprazermos com as flores, em sua forma colorida e sua fragrância delicada, sem nenhum conhecimento teórico das plantas. Mas quando alguém se propõe a compreender o florescimento das plantas tem o compromisso de descobrir algo sobre sobr e as interações interações do solo, so lo, do ar, da água e do sol que condicionam seu crescimento. O Partenon é, por por consenso, uma grande obra obr a de arte. Mas só tem estatura estética na medida em que se torna uma experiência para um ser humano. E se o sujeito quiser ir além do deleite pessoal e entrar na formação de uma teoria sobre a grande república da arte da qual essa construção é membro, terá de se dispor, em algum momento de suas reflexões, a se desviar dele para os o s cidadãos atenienses atenienses apressados, arg umentadores umentadores e agudamente agudamente sensíveis, com seu senso cívico identificado com uma religião cívica de cuja experiência esse templo foi uma expressão, e que o construíram não como uma obra de arte, mas sim como uma comemoração cívica. Esse voltar-se para eles se dá na condição de seres humanos que tinham necessidades, as quais foram uma exigência para a construção e foram levadas à sua realização nela; não se trata de um exame como o que poderia ser feito por um sociólogo em busca de material relevante para seus fins. Quem se propõe teorizar sobre a experiência estética encarnada no Partenon precisa descobrir, em pensamento, o que aquelas pessoas em cuja vida o templo entrou, como criadoras e como as que se compraziam compr aziam com ele, tinham tinham em comum com as pessoas de nossas própr ias casas e ruas. Para compreender o estético em suas formas supremas e aprovadas, é preciso começar por ele em sua forma bruta; nos acontecimentos e cenas que prendem o olhar e o ouvido atentos do homem, despertando seu interesse e lhe proporcionando prazer ao olhar e ouvir: as visões que cativam a multidão -o caminhão do corpo de bombeiros que passa veloz; as máquinas que escavam enormes buracos na terra; a mosca humana escalando a lateral de uma torre; os homens encarapitados em vigas, jogando e apanhando parafusos incandescentes. As origens da arte na experiência humana serão aprendidas por quem vir como a graça tensa do jogador de bola contagia a multidão de espectadores; por quem notar o deleite da dona de casa que cuida de suas plantas e o interesse atento com que seu marido cuida do pedaço de jardim em frente à casa; por quem perceber o prazer do espectador ao remexer a lenha que arde na lareira e ao observar as chamas dardejantes e as brasas que se desfazem. Essas pessoas, se alguém lhes perguntasse a razão de seus atos, sem dúvida forneceriam respostas sensatas. O homem que remexe os pedaços de lenha em brasa diria que o faz para melhorar o fogo; mas não deixa de ficar fascinado com o drama colorido da mudança encenada diante diante de seus olhos e de particip par ticipar ar dele na imaginação. Ele Ele não se mantém como um espectador espectador frio. fri o. O que Coleridge disse sobre o leitor de poesia se aplica, à sua maneira, a todos os que ficam alegremente absortos em suas atividades mentais e corporais: "O leitor deve ser levado adiante não meramente ou sobretudo pelo impulso mecânico da curiosidade, não pelo desejo irrequieto de chegar à solução so lução final, mas pela ativ atividade idade pr pr azerosa do percurso per curso em si". si ". O mecânico inteligente, empenhado em sua atividade e interessado em bem executá-la, encontrando satisfação em seu trabalho e cuidando com genuína afeição de seu material e suas ferramentas, está artisticamente engajado. A diferença entre esse trabalhador e o homem inepto e descuidado que atamanca seu trabalho é tão grande na oficina quanto no estúdio. Muitas vezes, o produto pode não ser atraente para o senso estético dos que o utilizam. Mas a falha, com frequência, está menos no trabalhador do que nas condições do mercado a que seu produto se destina. Se as condições e
oportunidades fossem diferentes, seriam feitas coisas tão significativas para os olhos quanto as produzidas por artesãos anteriores. Tão vastas e sutilmente disseminadas são as ideias que situam a arte em um pedestal longínquo, que muita gente sentiria repulsa, em vez de prazer, se lhe dissessem que ela desfruta de suas recreações despreocupadas, pelo menos em parte, em função da qualidade estética destas. As artes que têm hoje mais vitalidade para a pessoa média são coisas que ela não considera artes: por exemplo, os filmes, o azz, os quadrinhos e, com demasiada frequência, as reportagens de jornais sobre casos amorosos, assassinatos e façanhas de bandidos. E que, quando aquilo que conhecemos como arte fica relegado aos museus e galerias, o impulso incontrolável de buscar experiências prazerosas em si encontra as válvulas de escape que o meio cotidiano proporciona. Muitas pessoas que protestam contra a concepção museológica da arte ainda compartilham a falácia da qual brota essa concepção. E que a noção popular provém de uma separação entre a arte e os objetos e cenas da experiência corriqueira que muitos teóricos e críticos se orgulham em sustentar e até desenvolver. As ocasiões em que objetos seletos e distintos são estreitamente relacionados com os produtos das ocupações habituais são aquelas em que a apreciação dos primeiros é mais abundante e mais aguda. Quando, por sua imensa distância, os objetos reconhecidos pelas pessoas cultas como obras de belas-artes parecem anêmicos para a massa popular, a fome estética tende a buscar o vulgar e o barato. Os fatores que glorificaram as belas-artes, elevando-as em um pedestal distante, não surgiram no âmbito da arte, e sua influência não se restringe às artes. Para muitas pessoas, uma aura mesclada de reverência e irrealidade envolve o "espiritual" e o "ideal", enquanto, em contraste, "matéria" tornouse um termo depreciativo, algo a ser explicado ou pelo qual se desculpar. As forças atuantes nisso são as que afastaram a religião, assim como as belas-artes, do alcance do que é comum, ou da vida comunitária. Historicamente, essas forças produziram tantos deslocamentos e divisões da vida e do pensamento modernos que a arte não pôde escapar a sua influência. Não precisamos viajar até os confins da Terra nem recuar milênios no tempo para encontrar povos para os quais tudo que intensifica o sentimento imediato de vida é objeto de grande admiração. A escarificação do corpo, as plumas oscilantes, os mantos vistosos e os adornos reluzentes de ouro e prata, esmeralda e jade, formaram o conteúdo de artes estéticas, e, ao que podemos presumir, sem a vulgaridade do exibicionismo classista que acompanha seus análogos atuais. Utensílios domésticos, móveis de tendas e de casas, tapetes, capachos, jarr os, potes, arcos ou lanças eram feitos com um primor tão encantado que hoje os caçamos e lhes damos lugares de honra em nossos museus de arte. No entanto, em sua época e lugar, essas coisas eram melhorias dos processos da vida cotidiana. Em vez de serem elevadas a um nicho distinto, elas faziam parte da exibição de perícia, da manifestação da pertença a grupos e clãs, do culto aos deuses, dos banquetes e do jejum, das lutas, da caça e de todas as crises rítmicas que pontuam o fluxo da vida. A dança e a pantomima, origens da arte teatral, floresceram como parte de ritos e celebrações religiosos. A arte musical era repleta do dedilhar de cordas tensionadas, do bater de peles esticadas, do soprar de juncos. Até nas cavernas, as habitações humanas eram adornadas com imagens coloridas, que mantinham vivas nos sentidos as experiências com os animais muito intimamente ligados à vida dos seres humanos. As estruturas que abrigavam seus deuses e os meios que facilitavam o comércio com os poderes superiores eram criados com um requinte especial. Mas as artes do drama, da música, da pintura e da arquitetura, assim exemplificadas, não tinham nenhuma ligação peculiar com teatros, galerias ou museus. Faziam parte da vida significativa de comunidades organizadas. A vida coletiva que se manifestava na guerra, no culto ou no fórum não conhecia nenhuma separação entre o que era característico desses lugares e operações e as artes que neles introduziam cor, gr aça e dignidade. A pintura e a escultura tinham uma ligação orgânica com a arquitetura, já que esta se
harmonizava com a finalidade social a que serviam as construções. A música e o canto eram partes íntimas dos ritos e cerimônias em que se consumava o significado da vida do grupo. A dramatização era uma reencenação vital das lendas e da história da vida grupal. Nem mesmo em Atenas é possível desprender essas artes de sua inserção na experiência direta e, ao mesmo tempo, preservar seu caráter significativo. Os esportes atléticos, assim como o teatro, celebravam e reforçavam tradições raciais e gr upais, instruindo o povo, comemorando glórias e fortalecendo o orgulho cívico. Nessas condições, não é de admirar que os gregos atenienses, ao refletirem sobre a arte, tenham formado a ideia de que ela era um ato de reprodução ou de imitação. Há muitas objeções a essa concepção. Mas a popularidade da teoria é um testemunho da estreita ligação entre as belas-artes e a vida cotidiana; essa ideia não teria ocorrido a ninguém, se a arte fosse distante dos interesses da vida. Pois a doutrina não significava que a arte fosse uma cópia literal de objetos, mas sim que ela refletia as emoções e ideias associadas às principais instituições da vida social. Platão sentiu essa ligação de forma tão intensa que ela o levou à ideia da necessidade de censurar poetas, dramaturgo s e músicos. Talvez ele tenha exagerado ao dizer que a troca da forma dórica pela lídia na música seria uma precursora certeira da degeneração civil. Mas nenhum contemporâneo seu duvidaria de que a música era parte integrante do espírito e das instituições da comunidade. A ideia de "arte pela arte" nem sequer seria compreendida. Então, deve haver razões históricas para o surgimento da concepção compartimentalizada das belasartes. Nossos atuais museus e galerias, nos quais as obras de arte são recolhidas e armazenadas, ilustram algumas das causas que agiram no sentido de segregar a arte, em vez de considerá-la um fator concomitante do templo, do fórum e de outras for mas de vida associativa. Seria possível escrever uma história instrutiva da arte moderna em termos da formação dessas instituições nitidamente modernas que são o museu e a galeria de exposições. Posso assinalar alguns fatos destacados. Quase todos os museus europeus são, entre outras coisas, memoriais da ascensão do nacionalismo e do imperialismo. Toda capital tem de ter seu museu de pintura, escultura etc, em parte dedicado a exibir a grandeza de seu passado artístico, em parte dedicado a exibir a pilhagem recolhida por seus monarcas na conquista de outras nações, a exemplo da acumulação de espólios de Napoleão que se encontra no Louvre. Eles atestam a ligação entre a moderna segregação da arte e o nacionalismo e o militarismo. Não há dúvida de que, em alguns momentos, essa ligação serviu a um propósito útil, como no caso do Japão, que, ao entrar no processo de ocidentalização, salvou muitos de seus tesouros artísticos, nacionalizando os templos que os continham. O crescimento do capitalismo foi uma influência poderosa no desenvolvimento do museu como o lar adequado para as obras de arte, assim como na promoção da ideia de que elas são separadas da vida comum. Os novos-ricos, que são um importante subproduto do sistema capitalista, sentiram-se especialmente comprometidos a se cercar de obras de arte que, por serem raras, eram também dispendiosas. Em linhas gerais, o colecionador típico é o capitalista típico. Para comprovar sua boa posição no campo da cultura superior, ele acumula quadros, estátuas e jóias artísticos do mesmo modo que suas ações e seus títulos atestam sua posição no mundo econômico. Não apenas indivíduos, mas também comunidades e nações, evidenciam seu bom gosto cultural mediante a construção de teatros de ópera, galerias e museus. Estes mostram que a comunidade não está inteiramente absorta na riqueza material, já que se dispõe a gastar seus lucros no patrocínio das artes. Ela erige esses prédios e coleciona seu conteúdo do mesmo modo que constrói catedrais. Essas coisas refletem e estabelecem o status cultural superior, enquanto sua segregação da vida comum reflete o fato de que elas não fazem parte de uma cultura inata e espontânea. São uma espécie de equivalente de uma atitude santarrona, exibida não em relação às pessoas como tais, mas aos
interesses e ocupações que absorvem a maior parte do tempo e da energia da comunidade. A indústria e o comércio modernos têm um alcance internacional. O conteúdo das galerias e dos museus atesta o aumento do cosmopolitismo econômico. A mobilidade do comércio e das populações, em função do sistema econômico, enfraqueceu ou destruiu o vínculo entre as obras de arte e o genius loci do qual, em época anterior, elas foram a expressão natural. À medida que as obras de arte for am perdendo seu status autóctone, adquirir am um novo status -o de serem espécimes das belas-artes, e nada mais. Além disso, tal como outros artigos, hoje se produzem obras de arte para serem vendidas no mercado. O patrocínio econômico oferecido por indivíduos ricos e poderosos, em muitas ocasiões, desempenhou um papel no incentivo à produção artística. É provável que muitas tribos de selvagens tenham tido seus mecenas. Mas agora, até esse tanto de ligação social estreita se perde na impessoalidade de um mercado mundial. Objetos que no passado foram válidos e significativos, por seu lugar na vida de uma comunidade, funcionam hoje isolados das condições de sua origem. Em vista disso, são também desvinculados da experiência comum e servem de insígnias de bom gosto e atestados de uma cultura especial. Em decorrência das mudanças nas condições industriais, o artista foi posto de lado em relação às correntes principais do interesse ativo. A indústria mecanizou-se, e um artista não pode trabalhar mecanicamente para a produção em massa. Fica menos integrado do que antes no fluxo normal dos serviços sociais. Resulta daí um "individualismo" estético peculiar. Os artistas acham que lhes compete empenharem-se em seu trabalho como um meio isolado de "expressão pessoal". Para não atenderem à tendência das forças econômicas, é comum sentirem-se obrigados a exagerar sua separação, a ponto de chegarem à excentricidade. Por conseguinte, os produtos artísticos assumem em grau ainda maior a aparência de algo independente e esotérico. Juntando a ação de todas essas forças, as condições que criam o abismo que costuma existir entre o produtor e o consumidor, na sociedade moderna, agem no sentido de também criar um abismo entre a experiência comum e a experiência estética. Finalmente, como comprovação desse abismo, aceitamos como se fossem normais as filosofias da arte que a situam em uma região não habitada por nenhuma outra criatura, e que enfatizam de forma despropositada o caráter meramente contemplativo do estético. A confusão de valores entra em cena para acentuar a separação. Questões adventícias, como o prazer de colecionar, de expor, de possuir e exibir, simulam valores estéticos. A crítica é afetada. Há muitos aplausos para as maravilhas da apreciação e as glórias da beleza transcendente da arte, às quais as pessoas se entregam sem levar muito em conta sua capacidade de percepção estética no concreto. Meu objetivo, porém, não é me dedicar a uma interpretação econômica da história das artes, muito menos afirmar que, de forma invariável ou direta, as condições econômicas são relevantes para a percepção e o prazer, ou mesmo para a interpretação de obras de arte individuais. Meu propósito é indicar que as teorias que isolam a arte e sua apreciação, colocando-as em um campo próprio, desvinculado das outras modalidades do experimentar, não são inerentes ao assunto, mas surgem em virtude de condições externas que podem ser explicitadas. Inseridas que estão nas instituições e nos hábitos da vida, essas condições atuam de maneira eficaz, porque trabalham de forma inconsciente. Com isso, o teórico presume que elas estão inseridas na natureza das coisas. No entanto, a influência dessas condições não se restringe à teoria. Como já indiquei, ela afeta profundamente a prática da vida, afastando percepções estéticas que são ingredientes necessários da felicidade ou reduzindo-as ao nível de excitações compensatórias transitórias e agr adáveis. Até para os leitores que são avessos ao que foi dito aqui, as implicações das afirmações já feitas podem ser úteis para definir a natureza do problema: o de recuperar a continuidade da experiência estética com os processos nor mais do viver. A compreensão da arte e de seu papel na civilização não
é favorecida por partirmos de louvores a ela nem por nos ocuparmos exclusivamente, desde o começo, das grandes obras de arte reconhecidas como tais. Chega-se à compreensão buscada pela teoria através de um desvio, retornando à experiência do curso comum ou rotineiro das coisas, a fim de descobrir a qualidade estética que essa experiência possui. A teoria só pode começar a partir das obras de arte reconhecidas quando o estético já está compartimentalizado ou somente quando as obras de arte são postas em um nicho à parte, em vez de serem comemorações, reconhecidas como tal, das coisas da experiência comum. Até uma experiência tosca, se for genuína, está mais apta a dar uma pista da natureza intrínseca da experiência estética do que um objeto já separado de qualquer outra modalidade da experiência. Seguindo essa pista, podemos descobrir como a obra de arte se desenvolve e acentua o que é caracteristicamente valioso nas coisas do prazer do dia a dia. Nesse caso, percebe-se que o produto artístico brota destas últimas, quando o pleno sentido da experiência corriqueira se expressa, do mesmo modo que surgem corantes do alcatrão de hulha, quando ele recebe um tratamento especial. Já existem muitas teorias sobre a arte. Se há alguma justificativa para propor mais uma filosofia do estético, ela tem de ser encontrada em uma nova abordagem. Combinações e permutações entre teorias existentes podem ser facilmente propostas pelos que têm essa inclinação. Para mim, porém, o problema das teorias existentes é que elas partem de uma compartimentalização pronta ou de uma concepção da arte que a "espiritualiza", retirando-a da ligação com os objetos da experiência concreta. A alternativa a essa espiritualização, entretanto, não é a materialização degradante e prosaica das obras de arte, mas uma concepção que revele de que maneira essas obras idealizam qualidades encontradas na experiência comum. Se as obras de arte fossem colocadas em um contexto diretamente humano na estima popular, teriam um atrativo muito maior do que podem ter quando as teorias compartimentalizadas da arte ganham aceitação geral. Uma concepção das belas-artes que parta da ligação delas com as qualidades descobertas na experiência comum poderá indicar os fatores e forças que favorecem a evolução normal das atividades humanas comuns para questões de valor artístico. Poderá também assinalar as condições que bloqueiam seu crescimento normal. Os que escrevem sobre a teoria estética, muitas vezes, levantam a questão de a filosofia estética poder ou não ajudar no cultivo da apreciação estética. Essa indagação é um ramo da teoria geral da crítica, a qual, ao que me parece, não consegue cumprir plenamente sua tarefa, quando não indica o que procurar e o que encontrar nos objetos estéticos concretos. De qualquer modo, porém, é lícito dizer que uma filosofia da arte se torna estéril, a menos que nos conscientize da função da arte em relação a outras modalidades da experiência, a menos que indique por que essa função é tão insatisfatoriamente cumprida e a menos que sugira em que condições essa tarefa seria executada com êxito. A comparação entre a emergência de obras de arte a partir de experiências comuns e o refinamento de matérias-primas em produtos valiosos talvez pareça indigna para alguns, se não uma verdadeira tentativa de reduzir essas obras à condição de artigos manufaturados para fins comerciais. A questão, porém, é que não há louvor extasiado de obras acabadas que possa, por si só, ajudar na compreensão ou na geração de tais obras. As flores podem ser apreciadas sem que se conheçam as interações entre o solo, o ar, a umidade e as sementes das quais elas resultam. Mas não podem ser compreendidas sem que justamente essas interações sejam levadas em conta -e a teoria é uma questão de compreensão. A teoria interessa-se por descobrir a natureza da produção das obras de arte e do seu deleite para a percepção. Como é que a feitura corriqueira de coisas evolui para a forma do fazer que é genuinamente artística? De que modo nosso prazer cotidiano com cenas e situações evolui para a satisfação peculiar que acompanha a experiência enfaticamente estética? São essas as perguntas que a teoria deve responder. Não há como encontrar as respostas, se não nos dispusermos a descobrir os germes
e as raízes nas questões da experiência que atualmente não consideramos estéticas. Depois de descobrir essas sementes ativas, podemos acompanhar o curso de sua evolução até as mais elevadas formas de arte acabada e requintada. E comumente sabido que não podemos, a não ser por acidente, dirigir o crescimento e o florescimento das plantas, por mais encantadoras e apreciadas que sejam, sem compreender suas condições causais. Deveria ser igualmente corr iqueiro saber que a compreensão estética - distinta do puro prazer pessoal - parte do solo, do ar e da luz dos quais brotam coisas esteticamente admiráveis. E essas condições são as condições e os fatores que tornam completa uma experiência comum. Quanto mais reconhecermos esse fato, mais nos descobrir emos diante de um problema, e não de uma solução final. Se a qualidade artística e estética está implícita em toda experiência normal, de que maneira explicaremos como e por que, de modo muito geral, ela não consegue explicitar-se? Por que, para uma multidão de pessoas, a arte parece ser um produto importado de um país estrangeiro para experiência e o estético parece ser sinônimo de algo artificial? Não podemos responder a essas perguntas, assim como não podemos acompanhar o desenvolvimento da arte a partir da experiência cotidiana, a menos que tenhamos uma ideia clara e coerente do que pretendemos dizer com "experiência normal". Felizmente, o caminho para chegar a esse conhecimento está livre e bem sinalizado. A natureza da experiência é determinada pelas condições essenciais da vida. Embora o ser humano seja diferente das aves e das feras, compartilha funções vitais básicas com elas e tem de fazer os mesmos ajustes basais, se quiser levar adiante o processo de viver. Tendo as mesmas necessidades vitais, o homem deriva os meios pelos quais respira, movimenta-se, vê e ouve, e o próprio cérebro com que coordena seus sentidos e seus movimentos, de seus antepassados animais. Os órgãos com que ele se mantém vivo não são apenas dele, mas provêm das lutas e conquistas de uma longa linhagem de ancestrais no mundo animal. Por sorte, uma teoria do lugar da estética na experiência não tem de se perder em detalhes minuciosos, ao iniciar pela experiência em sua forma elementar. Bastam os contornos gerais. A primeira grande consideração é que a vida se dá em um meio ambiente; não apenas nele, mas por causa dele, pela interação com ele. Nenhuma criatura vive meramente sob sua pele; seus órgãos subcutâneos são meios de ligação com o que está além de sua estrutura corporal, e ao qual, para viver, ela precisa adaptar-se, através da acomodação e da defesa, mas também da conquista. A todo momento, a criatura viva é exposta aos perigos do meio que a circunda, e a cada momento precisa recorrer a alguma coisa nesse meio para satisfazer suas necessidades. A carreira e o destino de um ser vivo estão ligados a seus intercâmbios com o meio, não externamente, mas sim de uma maneira mais íntima. O rosnado de um cão que se abaixa sobre sua comida, seu uivo nos momentos de perda e solidão, o abanar da cauda à volta de seu amigo humano, tudo isso são expressões da implicação do viver em um meio natural, que inclui o homem e o animal que ele domesticou. Toda necessidade, digamos, a falta de alimento ou ar puro, é uma carência que denota, no mínimo, a ausência temporária de uma adaptação adequada ao meio circundante. Mas é também um pedido, uma busca no ambiente para suprir essa carência e restabelecer a adaptação, construindo ao menos um equilíbrio temporário. A própria vida consiste em fases nas quais o organismo perde o compasso da marcha das coisas circundantes e depois retoma a cadência com elas - seja por esforço, seja por um acaso fortuito. E, em uma vida em crescimento, a recuperação nunca é mero retorno a um estado anterior, pois é enriquecida pela situação de disparidade e resistência que atravessou com sucesso. Quando o abismo entre o organismo e o meio é grande demais, a criatura morre. Quando sua atividade não é favorecida pela alienação temporária, ela simplesmente subsiste. A vida cresce quando o descompasso temporário é uma transição para um equilíbrio mais amplo das energias do organismo com as das condições em que ele vive.
Esses lugares-comuns biológicos são algo mais do que isso; chegam às raízes da estética na experiência. O mundo é cheio de coisas que são indiferentes ou até hostis à vida; os próprios processos pelos quais a vida se mantém tendem a desajustá-la de seu meio. No entanto, quando a vida continua e, ao continuar, se expande, há uma superação dos fatores de oposição e conflito; há uma transformação deles em aspectos diferenciados de uma vida mais energizada e significativa. A maravilha da adaptação orgânica, vital, através da expansão (e não da contração e da acomodação passiva), realmente acontece. Aí se encontram, em germe, o equilíbrio e a harmonia atingidos através do ritmo. O equilíbrio não surge de maneira mecânica e inerte, mas a partir e por causa da tensão. Existe na natureza, mesmo abaixo do nível da vida, algo além de mero fluxo e mudança. A forma é atingida toda vez que se atinge um equilíbrio estável, embora móvel. As mudanças se entrelaçam e se sustentam. Sempre que essa coerência existe, há persistência. A ordem não é imposta de fora para dentro, mas feita das relações de interações harmoniosas que as energias têm entre si. Por ser ativa (e não algo estático, por ser alheio ao que se passa), a própria ordem se desenvolve. E passa a incluir em seu movimento equilibrado uma variedade maior de mudanças. Só se pode admirar a ordem em um mundo constantemente ameaçado pela desordem - em um mundo em que as criaturas vivas só podem continuar a viver "tirando proveito da ordem que existe em torno delas, incorporando-a a elas mesmas. Em um mundo como o nosso, toda criatura viva que atinge a sensibilidade acolhe a ordem de bom grado, com uma resposta de sentimento harmonioso, toda vez que encontra uma ordem congruente à sua volta. Isso porque só ao compartilhar as relações ordeiras de seu meio é que o organismo garante a estabilidade essencial à vida. E, quando essa participação vem depois de uma fase de perturbação e conflito, ela traz em si os germes de uma consumação semelhante ao estético. O ritmo da perda da integração ao meio e da recuperação da união não apenas persiste no homem, como se torna consciente com ele; suas condições são o material a partir do qual ele cria propósitos. A emoção é o sinal consciente de uma ruptura real ou iminente. A discórdia é o ensejo que induz à reflexão. O desejo de restabelecimento da união converte a simples emoção em um interesse pelos objetos, como condições de realização da harmonia. Com a realização, o material da reflexão é incorporado pelos objetos como o significado deles. Uma vez que o artista se importa de modo peculiar com a fase da experiência em que a união é alcançada, ele não evita os momentos de resistência e tensão. Ao contrário, cultiva-os, não por eles mesmos, mas por suas potencialidades, introduzindo na consciência viva uma experiência unificada e total. Em contraste com a pessoa cujo objetivo é estético, o cientista se interessa por problemas, por situações em que a tensão entre o conteúdo da observação e o do pensamento é acentuada. É claro que ele se importa com a resolução desses problemas. Mas não para por aí; segue adiante rumo a outro problema, usando a solução alcançada apenas como um degrau a partir do qual instaurar novas indagações. A diferença entre o estético e o intelectual, portanto, é um dos lugares em que a ênfase recai sobre o ritmo constante que marca a interação da criatura viva com seu meio. A matéria suprema das duas ênfases na experiência é a mesma, como o é também sua forma ger al. A estranha ideia de que o artista não pensa e de que o investigador científico não faz outra coisa resulta da conversão de uma divergência de ritmo e ênfase em uma diferença de qualidade. O pensador tem seu momento estético quando suas ideias deixam de ser meras ideias e se transformam nos significados coletivos dos objetos. O artista tem seus problemas e pensa enquanto trabalha. Mas seu pensamento se incorpora de maneira mais imediata ao objeto. Em função do caráter comparativamente remoto de seu fim, o trabalhador científico opera com símbolos, palavras e signos matemáticos. O artista desenvolve seu raciocínio nos meios muito qualitativos em que trabalha, e os termos ficam tão próximos do objeto que ele produz que se fundem diretamente com este.
O animal vivo não tem de projetar emoções nos objetos vivenciados. A natureza é generosa e maléfica, meiga e rabugenta, irritante e consoladora, muito antes de ser matematicamente qualificada ou mesmo de ser um aglomerado de qualidades "secundárias", como as cores e suas formas. Até palavras como "comprido" e "curto" ou "sólido" e "oco" ainda transmitem a todos, exceto aos intelectualmente especializados, uma conotação moral e afetiva. O dicionário informa a quem o consultar que o uso primitivo de palavras como "doce" e "amargo" não foi a denotação de qualidades sensoriais como tais, mas a discriminação das coisas como favoráveis ou hostis. Como poderia ser diferente? A experiência direta vem da natureza e da interação entre os seres humanos. Nessa interação, a energia humana é acumulada, liberada, represada, frustrada e vitoriosa. Há pulsações rítmicas de desejo e realização, pulsos do fazer e do ser impedido de fazer. Todas as interações que afetam a estabilidade e a ordem no fluxo turbilhonante da mudança são ritmos. Existem o influxo e o refluxo, a sístole e a diástole: a mudança ordeira. Esta se move dentro de limites. Ultrapassar os limites estabelecidos equivale à destruição e à morte, a partir das quais, entretanto, se constroem novos ritmos. A intercepção proporcional das mudanças estabelece uma ordem de padrão espacial, e não apenas temporal: como as ondas do mar, as ondulações da areia onde as ondas fluíram e refluíram ou as nuvens lanosas e as de fundo escuro. O contraste entre a falta e a plenitude, a luta e a realização ou o ajuste depois da irregularidade consumada constituem o drama em que ação, sentimento e significado são uma coisa só. Daí resultam o equilíbrio e o contrabalanceamento. Estes não são estáticos nem mecânicos. Expressam uma força que é intensa, por ser medida pela superação da resistência. Os objetos circundantes beneficiam ou prejudicam. Há dois tipos de mundos possíveis em que a experiência estética não ocorreria. Em um mundo de mero fluxo, a mudança não seria cumulativa, não se moveria em direção a um desfecho. A estabilidade e o repouso não existiriam. Mas é igualmente verdadeiro que um mundo acabado, concluído, não teria traços de suspense e crise e não ofereceria oportunidades de resolução. Quando tudo já está completo, não há realização. Só contemplamos com prazer o Nirvana e uma bemaventurança celestial unifor me porque eles se projetam no pano de fundo de nosso mundo atual, feito de tensão e conflito. Pelo fato de o mundo real, este em que vivemos, ser uma combinação de movimento e culminação, de rupturas e reencontros, a experiência do ser vivo é passível de uma qualidade estética. O ser vivo perde e restabelece repetidamente o equilíbrio com o meio circundante. O momento de passagem da perturbação para a harmonia é o de vida mais intensa. Em um mundo acabado, o sono e a vigília não poderiam ser distinguidos. Em um mundo totalmente perturbado, não seria possível lutar contra as circunstâncias. Em um mundo feito segundo os padrões do nosso, momentos de r ealização pontuam a experiência com intervalos ritmicamente desfrutados. A harmonia interna só é alcançada quando se chega de algum mo do a um entendimento com o meio. Quando ele ocorre em outras bases que não as "objetivas", é ilusório - nos casos extremos, a ponto de chegar à insanidade. Felizmente, para a variedade da experiência, chega-se a entendimentos de muitas maneiras - maneiras decididas, em última análise, pelo interesse seletivo. Os prazeres podem advir mediante o contato fortuito e a estimulação; tais prazeres não devem ser desprezados em um mundo r epleto de dor. Mas a felicidade e o gozo são um tipo de coisa diferente. Surgem por meio de uma realização que alcança as profundezas de nosso ser - uma realização que é uma adaptação de todo o nosso ser às condições de vida. No processo de viver, a consecução de um período de equilíbrio é, ao mesmo tempo, o início de uma nova relação com o meio, uma relação que traz em si o poder de novas adaptações, a serem feitas através da luta. O tempo da consumação é também o de um recomeço. Qualquer tentativa de perpetuar além do prazo o gozo concomitante ao tempo de realização e harmonia constitui um afastamento do mundo. Por isso, assinala a diminuição e a perda da vitalidade. Contudo, através das fases de perturbação e conflito, persiste a lembrança
arraigada de uma harmonia subjacente, cuja sensação frequenta a vida como a sensação de se estar alicerçado em uma rocha. A maioria dos mortais tem consciência de que é comum ocorrer uma cisão entre sua vida atual e seu passado e futuro. Nesse caso, o passado pesa sobre eles como um fardo; invade o presente com uma sensação de pesar, de oportunidades não aproveitadas e de consequências que gostaríamos de desfazer. Assenta-se sobre o presente como uma opressão, em vez de ser um reservatório de recursos com os quais avançar confiantemente. Mas a criatura viva adota seu passado; pode lidar amigavelmente até com suas tolices, usando-as como advertências que ampliam a cautela atual. Em vez de tentar viver do que quer que tenha sido obtido no passado, ela usa os sucessos anteriores para instrumentar o presente. Toda experiência viva deve sua riqueza ao que Santayana denominou, oportunamente, de "reverberações murmuradas" 1. Para o ser plenamente vivo, o futuro não é ominoso, e sim uma promessa; cerca o presente como uma auréola. Consiste em possibilidades sentidas como a posse do que existe aqui e agora. Na vida que é verdadeiramente vida, tudo se superpõe e se funde. Não r aro, porém, existimos em meio a apreensões sobre o que o futuro poderá trazer e ficamos divididos dentro de nós. Mesmo quando não estamos exageradamente ansiosos, não desfrutamos o presente, porque o subordinamos àquilo que está ausente. Dada a frequência desse abandono do presente ao passado e ao futuro, os períodos felizes de uma experiência agora completa, por absorver em si lembranças do passado e expectativas do futuro, passam a constituir um ideal estético. Somente quando o passado deixa de perturbar e as expectativas do futuro não são aflitivas é que o ser se une inteiramente com seu meio e, com isso, fica plenamente vivo. A arte celebra com intensidade peculiar os momentos em que o passado reforça o presente e em que o futuro é uma intensificação do que existe agora. Para apreender as fontes da experiência estética, portanto, é necessário recorrer à vida animal abaixo da escala humana. As atividades da raposa, do cão e do sabiá podem ao menos figurar como lembretes e símbolos da unicidade da experiência que tanto fracionamos, quando o trabalho é um esforço árduo e o pensamento nos distancia do mundo. O animal vivo acha-se plenamente presente, inteiramente participante em todos os seus atos: nos olhares cautelosos, no farejar sensível, no espetar abrupto das orelhas. Todos os sentidos se encontram igualmente no qui vive. Ao observá-lo, vemos o movimento fundir-se com o sentido e o sentido com o movimento, constituindo aquela graça animal com que o ser humano tem tanta dificuldade de rivalizar. O que a criatura viva preserva do passado e espera do futuro funciona como orientações no presente. O cão nunca é pedante nem acadêmico, pois essas coisas surgem apenas quando o passado é cindido do presente na consciência e instituído como modelo a ser copiado, ou como reservatório onde buscar material. O passado absorvido pelo presente faz avançar, empurra para adiante. Há muito de embrutecido na vida do selvagem. Entretanto, no que ele tem de mais vivo, é sumamente observador do mundo que o cerca e sumamente tenso de energia. Ao observar o que se mexe à sua volta, ele também se mexe. Sua observação é ato em preparação e antevisão do futuro. Com todo o seu ser, ele é tão ativo ao olhar e escutar quanto ao espreitar a presa, ou ao se afastar furtivamente de um inimigo. Seus sentidos são sentinelas do pensamento imediato e postos avançados da ação, e não, como tantas vezes são conosco, meras vias pelas quais o material é recolhido, para ser armazenado para uma possibilidade adiada e remota. É a simples ignorância, portanto, que leva a supor que a ligação da arte e da percepção estética com a experiência significa uma diminuição de sua impor tância e dignidade.
A experiência, na medida em que é experiência, consiste na acentuação da vitalidade. Em vez de significar um encerrar-se em sentimentos e sensações privados, significa uma troca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, significa uma interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos e acontecimentos. Em vez de significar a rendição aos caprichos e à desordem, proporciona nossa única demonstração de uma estabilidade que não equivale à estagnação, mas é rítmica e evolutiva. Por ser a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a experiência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa que é a experiência estética.
A Criatura Viva e As "Coisas Etéreas" Por que a tentativa de ligar as coisas superio res e ideais da experiência às raízes vitais básicas é vista, com tanta frequência, como uma traição a sua natureza e uma negação de seu valor? Por que existe repulsa quando as r ealizações superiores da arte refinada são postas em contato com a vida comum, a vida que compartilhamos com todos os seres vivos? Por que se pensa na vida como uma questão de apetites inferiores ou, na melhor das hipóteses, uma coisa de sensações grosseiras, pronta a despencar do que tem de melhor para o nível da lascívia e da crueldade bruta? Uma resposta completa a essas perguntas envolveria a redação de uma história da moral que expusesse as condições que acarretaram o desprezo pelo corpo, o medo das sensações e a oposição da carne ao espírito. Um aspecto dessa história é tão relevante para nosso problema que deve receber ao menos uma menção passageira. A vida institucional da humanidade é marcada pela desorganização. Muitas vezes, essa desordem é disfarçada pelo fato de assumir a for ma de uma divisão estática entre classes, e essa separação estática é aceita como a própria essência da ordem, desde que seja tão fixa e tão aceita que não gere conflitos abertos. A vida é compartimentalizada, e os compartimentos institucionalizados são classificados como superiores e inferiores; seus valores, como profanos e espirituais, materiais e ideais. Os interesses são relacionados uns com os outros de maneira externa e mecânica, através de um sistema de verificações e balanços. Visto que a religião, a moral, a política e os negócios têm seus própr ios compartimentos, dentro dos quais convém que cada um permaneça, também a arte deve ter seu âmbito peculiar e privado. A compartimentalização das ocupações e interesses acarreta a separação entre a forma de atividade comumente chamada de "prática" e a compreensão entre a imaginação e o fazer executivo, entre o propósito significativo e o trabalho, entre a emoção, de um lado, e o pensamento e a ação, de outro. Cada um destes tem também seu lugar próprio, no qual deve permanecer. Assim, aqueles que escrevem a anatomia da experiência supõem que essas divisões são inerentes à própria constituição da natureza humana. A uma grande parte de nossa experiência - tal como efetivamente vivida nas atuais condições institucionais econômicas e jurídicas -é muito verdadeiro que essas separações se aplicam. Só ocasionalmente, na vida de muitas pessoas, os sentidos são carregados do sentimento que provém da compreensão profunda dos significados intrínsecos. Vivenciamos as sensações como estímulos mecânicos ou estimulações irritadas, sem termos ideia da realidade que há nelas e por trás delas: em grande parte de nossa experiência, nossos diferentes sentidos não se unem para contar uma história comum e ampliada. Vemos sem sentir; ouvimos, mas apenas como um relato em segunda mão - segunda mão por ele não ser reforçado pela visão. Tocamos, mas o contato permanece tangencial, porque não se funde com as qualidades dos sentidos
que mergulham abaixo da superfície. Usamos os sentidos para despertar a paixão, mas não para servir ao interesse do discernimento, não porque esse interesse não esteja potencialmente presente no exercício do sensorial, mas porque cedemos a condições de vida que forçam os sentidos a se manterem como excitações superficiais. O prestígio vai para aqueles que usam a mente sem a participação do corpo e que agem vicariamente através do controle dos corpos e do trabalho de terceiros. Nessas condições, o sentido e a carne ficam mal-afamados. O moralista, entretanto, tem uma ideia mais verdadeira das conexões íntimas dos sentidos com o resto de nosso ser do que o psicólogo e o filósofo profissionais, embora seu entendimento dessas conexões siga uma direção que inverte as realidades potenciais de nossa vida em relação ao meio ambiente. Nos últimos tempos, os psicólogos e filósofos têm estado tão obcecados com o problema do conhecimento que tratam as "sensações" como meros componentes dele. O moralista sabe que o sensorial está ligado às emoções, impulsos e apetites. Por isso, denuncia o gozo do olhar como parte da rendição do espírito à carne. Identifica o sensório com o sensual e o sensual com o lascivo. Sua teoria moral é tendenciosa, mas ao menos ele tem consciência de que o olho não é um telescópio imperfeito, projetado para a recepção intelectual do material, a fim de promover o conhecimento de objetos distantes. O "sentido" abarca urna vasta gama de conteúdos: o sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato e o sentimental, junto com o sensual. Inclui quase tudo, desde o choque físico e emocional cru até o sentido em si - ou seja, o significado das coisas presentes na experiencia imediata. Cada termo se refere a uma fase e aspecto reais da vida de urna criatura orgânica, tal como a vida ocorre através dos órgãos sensoriais. Mas o sentido, como um significado tão diretamente encarnado na experiencia a ponto de ser seu próprio significado esclarecido, é a única significação que expressa a função dos órgãos sensoriais quando levados à plena realização. Os sentidos são os órgãos pelos quais a criatura viva participa diretamente das ocor rências do mundo a seu redor. Nessa participação, o assombro e o esplendor deste mundo se tornam reais para ela nas qualidades que ela vivencia. Esse material não pode ser contrastado com a ação, porque o aparelho motor e a própria "vontade" são os meios pelos quais essa participação é levada a cabo e dirigida. Não pode ser contrastado com o "intelecto", porque a mente é o meio pelo qual a participação se torna fecunda através do juízo [senso], pelo qual os significados e valores são extraídos, preservados e colocados a serviço de outras questões, na relação da criatura viva com o meio que a cerca. A experiência é o resultado, o sinal e a recompensa da interação entre organismo e meio que, quando plenamente realizada, é uma transformação da interação em participação e comunicação. Visto que os órgãos sensoriais, com o aparelho motor que lhes está ligado, são os meios dessa participação, toda e qualquer invalidação deles, seja de ordem prática ou teórica, é, ao mesmo tempo, efeito e causa de um estreitamento e um embotamento da experiência de vida. As oposições entre mente e corpo, alma e matéria, espírito e carne originam-se todas, fundamentalmente, no medo do que a vida pode trazer. São marcas de contração e retraimento. Portanto, o reconhecimento pleno da continuidade entre os órgãos, necessidades e impulsos básicos da criatura humana e seus antepassados animais não implica uma redução necessária do homem ao nível dos bichos. Ao contrário, possibilita o traçado de um projeto fundamental da experiência humana sobre o qual se erga a superestrutura da experiência maravilhosa e distintiva do homem. O que há de distintivo no homem lhe permite descer abaixo do nível dos animais. Também lhe possibilita elevar a alturas novas e sem precedentes a união do sentido e do impulso, do cérebro, olho e ouvido, que é exemplificada na vida animal, saturando-a com os significados conscientes derivados da comunicação e da expressão deliberada. O homem prima pela complexidade e pela minúcia das diferenciações. Esse simples fato constitui a exigência de muitas relações mais abrangentes e exatas entre os componentes de seu ser. Por mais
importantes que sejam as distinções e r elações assim possibilitadas, a história não termina aí. Há mais oportunidades de resistência e tensão, mais demandas de experimentação e invenção e, por conseguinte, maior ineditismo na ação, maior leque e profundidade do discernimento e maior pungência dos sentimentos. À medida que um organismo aumenta sua complexidade, os ritmos de luta e consumação em sua relação com o meio tornam-se variados e prolongados e passam a incluir em si uma variedade infindável de sub-ritmos. Os projetos de vida são ampliados e enriquecidos. A realização é mais maciça e tem nuanças mais sutis. Com isso, o espaço torna-se algo mais do que um vazio pelo qual perambular, pontilhado, aqui e ali, de coisas perigosas e coisas que satisfazem os apetites. Torna-se um cenário abrangente e fechado no qual se ordena a multiplicidade de atos e experiências em que o homem se engaja. O tempo deixa de ser o fluxo infindável e uniforme ou a sucessão de pontos instantâneos que alguns filósofos afirmaram que é. Ele é também o meio organizado e organizador do influxo e refluxo rítmicos de impulsos expectantes, movimentos de avanço e recuo e de resistência e suspense, com realização e consumação. E uma ordenação do crescimento e do amadurecimento - como disse James, aprendemos a patinar no verão, depois de haver começado no inverno. O tempo, como organização da mudança, é crescimento, e o crescimento significa que uma série variada de mudanças entra nos intervalos de pausa e repouso, de conclusões que se tornam os pontos iniciais de novos processos de desenvolvimento. Tal como o solo, a mente é fertilizada quando está improdutiva, até seguir-se um novo surto de flor ação. Quando um relâmpago ilumina uma paisagem escura, há um reconhecimento momentâneo dos objetos. Mas o r econhecimento em si não é um mer o ponto no tempo. E a culminação focal de longos e lentos processos de maturação. É a manifestação da continuidade de uma experiência temporal ordenada, em um súbito instante ímpar de clímax. Isolado, ele é tão sem sentido quanto seria a tragédia de Hamlet, caso se restringisse a um único verso ou palavra, sem qualquer contexto. Mas a frase "o resto é silêncio" é infinitamente pregnante como conclusão de um drama encenado pelo desenvolvimento no tempo; o mesmo pode ocorrer com a percepção momentânea de uma cena natural. A forma, tal como presente nas artes, é a arte de deixar claro o que está envolvido na organização do espaço e do tempo, prefigurada em todo curso de uma experiência vital em desenvolvimento. Os momentos e lugares, a despeito da limitação física e da localização restrita, são carregados de acúmulos de energia colhida durante muito tempo. O retorno a uma cena da infância, deixada anos antes, inunda o lo cal com uma liberação de lembranças e esperanças refr eadas. Encontrar em um país estrangeiro um conhecido informal de casa pode despertar uma satisfação tão aguda que chega a emocionar. O mero reconhecimento só ocorre quando estamos ocupados com outra coisa que não o objeto ou a pessoa reconhecidos. Assinala uma interrupção ou uma intenção de usar o que é reconhecido como um meio para algo diferente. Ver, perceber, é mais do que reconhecer. Não identifica algo presente em termos de um passado desvinculado dele mesmo. O passado se transpõe para o presente, expan dindo e aprofundando o conteúdo deste último. Aí se ilustra a tradução da pura continuidade do tempo externo para a ordem e organização vitais da experiência. A identificação acena e segue adiante. Ou então define um momento passageiro isolado, marca na experiencia um ponto morto que é meramente preenchido. O gr au em que o processo de viver um dia ou uma hor a quaisquer r eduz-se a rotular situações, eventos e objetos como "tais e quais" em mera sucessão assinala a cessação da vida como uma experiência consciente. As continuidades percebidas em uma forma individual e distinta são a essência desta última. A arte, portanto, prefigura-se nos próprios processos do viver. O pássaro constrói seu ninho, e o castor, seu dique, quando as pressões orgânicas internas cooperam com o material externo para que
as primeiras se realizem e o segundo seja transformado em uma culminação satisfatória. Podemos hesitar em aplicar a isso a palavra "arte", já que duvidamos da presença de uma intenção diretiva. Mas toda deliberação, toda intenção consciente brota de coisas antes organicamente executadas pela interação de energias naturais. Se assim não fosse, a arte se alicerçaria em areia movediça, ou melhor, no ar instável. A contribuição distintiva do homem é a consciência das relações encontradas na natureza. Através da consciência, ele converte as relações de causa e efeito encontradas na natureza em relações de meios e consequência. Melhor dizendo, a consciência em si é a origem dessa transformação. O que era mero choque torna-se um convite; a resistência transformase em algo a ser usado para mudar os arranjos existentes da matéria; as facilidades desenvoltas tornam-se agentes da execução de ideias. Nessas operações, um estímulo orgânico torna-se portador de significados, e as respostas motoras se transformam em instrumentos de expressão e comunicação; deixam de ser meros meios de locomoção e reação direta. Enquanto isso, o substrato orgânico persiste como a base estimuladora e profunda. Fora das relações de causa e efeito da natureza, a concepção e a invenção não poderiam existir. Separada da relação dos processos de conflito e realização rítmicos da vida animal, a experiência seria desprovida de projeto e padrão. Separadas dos órgãos herdados dos antepassados animais, a ideia e a finalidade seriam desprovidas de um mecanismo de realização. As artes primitivas da natureza e da vida animal são a tal ponto o material e, em linhas gerais, a tal ponto o modelo das realizações intencionais do homem que as pessoas de mentalidade teológica imputaram uma intenção consciente à estrutura da natureza - posto que o homem, que tem muitas atividades em comum com o macaco, tende a pensar nelas como uma imitação de seu próprio desempenho. A existência da arte é a prova concreta do que acabou de ser afirmado em termos abstratos. E a prova de que o homem usa os materiais e as energias da natureza com a intenção de ampliar sua própria vida, e de que o faz de acordo com a estrutura de seu organismo - cérebro, órgãos sensoriais e sistema muscular. A arte é a prova viva e concreta de que o homem é capaz de restabelecer, conscientemente e, portanto, no plano do significado, a união entre sentido, necessidade, impulso e ação que é característica do ser vivo. A intervenção da consciência acrescenta a regulação, a capacidade de seleção e a reordenação. Por isso, diversifica as artes de maneiras infindáveis. Mas sua intervenção também leva, com o tempo, à ideia da arte como ideia consciente -a maior realização intelectual na história da humanidade. A variedade e a perfeição das artes na Grécia levaram os pensadores a moldar uma concepção generalizada da arte e a projetar o ideal de uma arte de organizar as atividades humanas como tais - a arte da política e da moral, tal como concebida por Sócrates e Platão. As ideias de concepção, projeto, ordem, padrão e finalidade ou propósito emergiram distinguindo-se dos materiais empregados em sua realização e relacionando-as com eles. A concepção do homem como o ser que usa a arte tornou-se, ao mesmo tempo, a base da distinção entre o homem e o resto da natureza, bem como do vínculo que o liga à natureza. Quando a concepção da arte como traço distintivo do homem foi explicitada, houve a certeza de que, a não ser por uma completa recaída da humanidade abaixo até da selvageria, a possibilidade da invenção de novas artes permaneceria, ao lado do uso das artes antigas, como o ideal norteador da humanidade. Embora o reconhecimento desse fato ainda seja relutante, dadas as tradições estabelecidas antes que o poder da arte fosse adequadamente reconhecido, a própria ciência não passa de uma arte central que auxilia na geração e utilização de outras artes 2.
E costumeiro e, segundo alguns pontos de vista, necessário estabelecer uma distinção entre belasartes e arte útil ou tecnológica. Mas o ponto de vista a partir do qual essa distinção é necessária é extrínseco à obra de arte propriamente dita. A distinção habitual baseia-se simplesmente na aceitação de certas condições sociais existentes. Suponho que os fetiches do escultor negro africano tenham sido considerados excepcionalmente úteis para seu grupo tribal, mais até do que as lanças e a roupa.
Agora, porém, constituem obras de arte e servem, no século xx, para inspirar uma renovação em artes que se tornaram convencionais. No entanto, só são obras de arte porque o artista anônimo viveu e teve experiências muito plenas durante o processo de produção. Um pescador pode comer seu pescado sem por isso perder a satisfação estética que vivenciou ao lançar o anzol e pescar. E esse grau de completude do viver, na experiência de fazer e perceber, que estabelece a diferença entre o que é belo ou estético na arte e o que não é. Se a coisa produzida é ou não utilizada, como potes, tapetes, roupas ou armas, é, intrinsecamente falando, irrelevante. O fato de muitos ou talvez de a maioria dos artigos e utensílios hoje criados para uso não serem genuinamente estéticos é verdadeiro, infelizmente. Mas é verdadeiro por razões alheias à relação entre o "belo" e o "útil" como tais. Onde quer que as condições sejam tais que impeçam o ato de produção de ser uma experiência em que a totalidade da criatura esteja viva e na qual ela possua sua vida através do prazer, faltará ao produto algo da ordem do estético. Por mais que ele seja útil para fins especiais e limitados, não será útil no grau supremo - o de contribuir, direta e liberalmente, para a ampliação e enriquecimento da vida. A história da separação e da oposição nítida e final entre o útil e o belo é a história do desenvolvimento industrial, mediante o qual grande parte da produção se tornou uma forma de vida adiada e grande parte do consumo tornou-se um prazer superposto aos frutos do trabalho alheio. Em geral, há uma reação hostil à concepção da arte que a liga às atividades da criatura viva em seu ambiente. A hostilidade à associação das belas-artes com os processos normais do viver é um comentário patético ou até trágico sobre a vida, tal como comumente vivida. E somente pelo fato de a vida ser usualmente muito mirrada, abortada, embotada ou carregada que se alimenta a ideia de haver um antagonismo intrínseco entre o processo da vida normal e a criação e apreciação de obras da arte estética. Afinal, ainda que o "espiritual" e o "material" sejam separados e opostos entre si, deve haver condições em que o ideal seja passível de incorporação e realização - e isso, fundamentalmente, é tudo o que significa "matéria". A própria maneira como essa oposição se tornou corrente atesta, portanto, a ação generalizada de forças que convertem aquilo que poderia constituir meios de executar ideias liberais em fardos opressivos, e que levam os ideais a serem aspirações frouxas, em um clima inseguro e sem alicerces. Embora a arte em si seja a melhor prova da existência de uma união realizada, e portanto realizável, entre o material e o ideal, há argumentos gerais que apoiam a tese em exame. Toda vez que a continuidade é possível, o ônus da prova recai sobre os que afirmam a oposição e o dualismo. A natureza é a mãe e o habitat do ser humano, ainda que, vez por outra, seja madrasta e um lar pouco acolhedor. O fato de a civilização perdurar e de a cultura prosseguir -e às vezes avançar - é prova de que as esperanças e objetivos humanos encontram base e respaldo na natureza. Assim como o crescimento evolutivo do indivíduo, desde o embrião até a maturidade, resulta da interação do organismo com o meio circundante, a cultura é produto não de esforços empreendidos pelos homens no vazio, ou apenas com eles mesmos, mas da interação prolongada e cumulativa com o meio. A profundidade das reações provocadas pelas obras de arte mostra a continuidade que há entre elas e as operações dessa experiência duradoura. As obras e as reações que elas provocam são contínuas aos próprios processos do viver, conforme estes são levados a uma inesperada realização satisfatória. Quanto à absorção do estético na natureza, cito um caso reproduzido, em certa medida, em milhares de pessoas, mas notável por ter sido expresso por um artista do mais alto quilate, W. H. Hudson. "Quando estou longe da visão da grama crescente e viva, e das vozes dos pássaros e todos os sons rurais, sinto que não estou propriamente vivo." Mais adiante, ele afirma: ...quando ouço pessoas dizerem que não acham o mundo e a vida tão agradáveis e interessantes a ponto de se apaixonarem por eles, ou que encaram serenamente o seu fim, tendo a pensar que nunca
estiveram propriamente vivas, nem viram com uma visão clara o mundo de que pensam tão mal, ou coisa alguma dentro dele nem mesmo um talo de capim. A faceta mística da aguda entrega estética, que a torna tão parecida, como experiência, com o que os religiosos chamam de comunhão extasiada, é relembrada por Hudson a partir de sua vida de menino. Ele fala do efeito nele exercido pela visão das acácias: A folhagem solta e plumosa, nas noites enluaradas, tinha um aspecto encanecido peculiar que fazia essa árvore parecer mais intensamente viva do que outras, mais consciente de mim e da minha presença. [...] [Era algo] semelhante à sensação que uma pessoa teria de ser visitada por um ser sobrenatural, se estivesse perfeitamente convencida de que ele estava ali em sua presença, apesar de calado e invisível, olhando-a atentamente e adivinhando cada um de seus pensamentos. Emerson é constantemente visto como um pensador austero. No entanto, foi o Emerson adulto que disse, bem dentro do espírito da passagem citada de Hudson: "Ao atravessar um simples parque, com suas poças de neve, ao cair da noite o sob o céu nublado, sem ter no pensamento nenhuma ocorr ência de uma sorte especial, desfrutei de uma euforia perfeita. Fiquei feliz a ponto de chegar à beira do temor". Não vejo maneira de explicar a multiplicidade de experiências desse tipo (encontrando-se algo da mesma qualidade em toda reação estética espontânea, não coagida), a não ser com base na entrada em atividade de ressonâncias de disposições adquiridas nas relações primitivas do ser vivo a seu meio, e que são irr ecuperáveis na consciência clara ou intelectual. Experiências como as mencionadas levamnos a uma outra consideração que atesta a continuidade natural. Não há limite para a capacidade de a experiência sensorial imediata absorver em si significados e valores que, em si e por si - isto é, em termos abstratos -, seriam designados como "ideais" e "espirituais". A corrente animista da experiência religiosa, encarnada na lembrança dos tempos da infância por Hudson, é um exemplo em um dado nível de experiência. E o poético, seja qual for o seu veículo, é sempre um parente próximo do animista. E, se nos voltarmos a uma arte que, sob muitos aspectos, se encontra no polo oposto -a arquitetura -, veremos que as ideias, talvez inicialmente moldadas em um pensamento altamente técnico, como o da matemática, são passíveis de incorporação direta sob a forma sensorial. A superfície sensível das coisas nunca é meramente uma superfície. Podemos discriminar a pedra do papel fino e delicado apenas pela superfície, visto que as resistências do tato e a solidez decorrente das tensões de todo o sistema muscular foram completamente incorporadas à visão. Esse processo não para com a encarnação de outras qualidades sensoriais que dão profundidade de sentido à superfície. Nada que o homem já tenha alcançado pelo mais alto voo do pensamento, ou em que tenha penetrado por um minucioso discernimento, é intrinsecamente tal que não possa se tornar o coração e o cerne dos sentidos. Uma mesma palavra, "símbolo", é usada para designar expressões de pensamento abstrato, como na matemática, e coisas como uma bandeira ou um crucifixo, que incorporam um profundo valor social e o significado da fé histórica e do credo teológico. O incenso, os vitrais, o badalar de sinos invisíveis e os mantos bordados acompanham a abordagem do que é considerado divino. A ligação entre a origem de muitas artes e os rituais primitivos torna-se mais evidente a cada incursão dos antropólogos no passado. Só os que estão tão distantes das experiências primitivas, que perderam de vista seu sentido, são capazes de concluir que os r itos e cerimônias eram meros dispositivos técnicos para assegurar a chuva, os filhos varões, a lavoura ou o sucesso na batalha. E claro que eles tinham essa intenção mágica, mas foram persistentemente encenados, podemos ter certeza, apesar de todos os fracassos na prática, por serem intensificações imediatas da experiência de viver. Os mitos foram algo diferente de tentativas intelectualistas do homem primitivo no campo da ciência. O desconforto diante de qualquer fato desconhecido certamente desempenhou seu papel. Mas o prazer com a narrativa, com o aumento e a exposição de uma boa história, desempenhou então seu papel
dominante, tal como faz hoje no crescimento das mitologias populares. Não só o elemento sensorial direto - e a emoção é uma modalidade do sentir tende a absorver todo o conteúdo ideativo, como também, à parte uma disciplina especial, imposta por um aparato físico, subjuga e digere tudo o que é meramente intelectual. A introdução do sobrenatural na fé e a facílima reversão humana ao sobrenatural são muito mais uma questão de psicologia que gera obras de arte do que de um esforço de explicação científica e filosófica. Elas intensificam a vibração emocional e pontuam o interesse pertinente a qualquer ruptura na rotina conhecida. Se a influência do sobrenatural no pensamento humano fosse exclusivamente - ou até predominantemente - uma questão intelectual, seria de certo modo insignificante. As teologias e cosmogonias captaram a imaginação por terem sido acompanhadas por procissões solenes, incenso, mantos bordados, música, o brilho de luzes coloridas e histórias que despertavam reverência e induziam a uma admiração hipnótica. Em outras palavras, chegaram ao homem através de um apelo direto aos sentidos e à imaginação sensorial. A maioria das religiões identificou seus sacramentos com os píncaros da arte, e as crenças mais abalizadas revestiram-se de uma roupagem de pompa e espetáculos grandiosos, que proporcionavam um prazer imediato aos olhos e ouvidos e evocavam emoções maciças de suspense, assombro e reverência. Os voos dos físicos e astrônomos de hoje respondem mais à necessidade estética de satisfação da imaginação do que a qualquer exigência rigorosa de provas não afetivas da interpretação racional. Henry Adams deixou claro que a teologia da Idade Média foi uma construção com a mesma intenção da que erigiu as catedrais. Em geral, essa Idade Média, popularmente considerada como a expressão do auge da fé cristã no mundo ocidental, é uma demonstração do poder dos sentidos de absorver as ideias mais altamente espiritualizadas. A música, a pintura, a escultura, a arquitetura, o teatro e o romance eram servos da religião, tanto quanto o eram a ciência e a erudição. As artes mal chegavam a ter existência fora da Igreja, e os ritos e cerimônias eclesiásticos eram artes encenadas em condições que lhes davam o máximo possível de apelo emocional e imaginativo. Não sei o que daria ao espectador e ouvinte da manifestação das artes uma entrega mais pungente do que a convicção de que elas estavam impregnadas dos meios necessários da glória e da bem-aventurança eternas. As seguintes palavras de Pater merecem ser citadas nesse contexto: O cristianismo cia Idade Média avançou, em parte, por sua beleza estética, algo muito profundamente sentido pelos hinistas latinos, que, para cada sentimento moral ou espiritual, tinham uma centena de imagens sensoriais. Uma paixão cujas válvulas de escape estão vedadas gera uma tensão nervosa na qual o mundo sensível chega ao indivíduo com um brilho e um relevo reforçados - toda vermelhidão se transforma em sangue; toda água, em lágrimas. Daí a sensualidade desvairada e convulsa de toda a poesia da Idade Média, na qual as coisas da natureza começaram a desempenhar um estranho papel delirante. Das coisas da natureza, a mente medieval tinha um senso profundo; mas o senso que tinha delas não era objetivo, não era uma fuga real para o mundo sem nós. Em seu ensaio autobiográfico intitulado A criança na casa, Pater generalizou o que está implícito nessa passagem, dizendo: Em anos posteriores, ele chegou a filosofias que muito o ocuparam na avaliação das proporções dos elementos sensor iais e ideais no conhecimento humano, dos papéis relativos que exercem nele; e, em seu esquema intelectual, foi levado a atribuir pouquíssimo ao pensamento abstrato, e muito a seu veículo ou ocasião sensível. E ste último tornou-se o concomitante necessário de qualquer percepção das coisas, real o bastante para ter peso ou consequência em sua casa do pensamento. [... ] Tornou-secada vez mais incapaz de se importar com a alma oupensar nela senão como estando em um corpo real, oucom qualquer mundo senão aquele em que se encontram a água e as árvores, e onde homens e mulheres têm tal ou qual
aparência, e apertam mãos de verdade. A elevação do ideal acima e além do sentido imediato funcionou não apenas para torná-lo pálido e exangue, mas agiu também, como um conspirador com a mente sensual, no sentido de empobrecer e degradar tudo o que é da experiencia direta. No título deste capítulo, tomei a liberdade de buscar em Keats a palavra "etéreos", para designar os significados e valor es que muitos filósofos e alguns críticos supõem serem inacessíveis aos sentidos, por seu caráter espiritual, eterno e universal - exemplificando, com isso, o dualismo comum entre natureza e espírito. Permitam-me citar novamente suas palavras. O artista pode considerar "o Sol, a Lua, as estrelas, a Terra e seu conteúdo [como] um material para formar coisas maiores, isto é, coisas etéreas - coisas maiores do que as feitas pelo próprio Criador". Ao fazer este uso de Keats, tive ainda em mente o fato de que ele identificou a atitude do artista com a do ser vivo, e não apenas o fez no teor implícito de sua poesia, como também, em sua reflexão, expressou explicitamente essa ideia em palavras. Como escreveu em uma carta a seu irmão: A maior parte dos homens segue seu caminho com a mesma instintividade e o mesmo olho indesviável de seus propósitos que há no gavião. O gavião quer um parceiro , assim como o homem olhe para os dois, eles tratam de buscá-lo e obtê-lo da mesma maneira. Ambos querem um ninho, e ambos tratam de consegui-lo do mesmo modo; obtêm seu alimento da mesma forma. O nobre animal humano fuma seu cachimbo para se divertir -o gavião se balança nas nuvens: essa é a única diferença entre suas formas de lazer. E isso que cria a diversão da vida para a mente especulativa. Passeio pelos campos e vislumbro um arminho ou um rato silvestre apressando-se - em direção a quê? A criatura tem um propósito, e seus olhos reluzem com ele. Caminho por entre os prédios de uma cidade e vejo um homem apressando-se - em direção a quê? A criatura tem um propósito, e seus olhos reluzem com ele... Mesmo nisso, porém, sigo o mesmo curso instintivo do mais completo animal humano em que possa pensar, [embora], por mais jovem que eu seja, eu escreva ao acaso, esforçando-me por captar partículas de luz em meio a uma grande escuridão, sem conhecer o significado de qualquer afirmativa, de opinião alguma. Nisso, porém, não estaria eu livre de pecado? Não haverá seres superiores que se divirtam com qualquer atitude graciosa, embora instintiva, em que minha mente possa incorrer, enquanto me entretenho com a vigilância alerta de um arminho ou com a ansiedade de um cervo? Anda que uma briga de rua seja odiosa, a energia exibida nela é esplêndida; o mais comum dos homens é gracioso em sua briga. Vistos por um ser sobrenatural, talvez nossos raciocínios assumam o mesmo tom embora errôneos, podem ser esplêndidos. É exatamente nisso que consiste a poesia. Pode haver raciocínios, mas, quando eles assumem uma forma instintiva, como a das formas e movimentos dos animais, eles são poesia, são esplêndidos; têm graça. Em outra carta, Keats referiu-se a Shakespeare como um homem de enorme "culpa negativa", alguém que era "capaz de se quedar nas incertezas, mistérios e dúvidas, sem nenhuma busca irritadiça dos fatos e da razão". Nesse aspecto, contrastou Shakespeare com seu própr io contemporâneo Coleridge, que deixava se perder uma percepção poética quando ela era cercada de obscuridade, porque não podia justificá-la intelectualmente; não podia, na linguagem de Keats, satisfazer-se com um "sem/conhecimento". Creio que a mesma ideia se expressa quando ele diz, em uma carta a Bailey, que "nunca [fui] capaz, até hoje, de perceber como se pode conhecer verdadeiramente alguma coisa pelo raciocínio consecutivo. [...] Será possível que nem mesmo o maior dos filósofos jamais tenha chegado a seu objetivo sem pôr de lado numerosas objeções?". Com efeito, Keats pergunta se aquele que raciocina também não tem de confiar em suas "intuições", naquilo que lhe advém das experiências sensoriais e emocionais imediatas, mesmo contrariando as objeções que a reflexão lhe apresenta. Isso porque ele diz, em seguida, que "a simples mente imaginativa talvez tenha suas
recompensas nas repetições de seu funcionamento silencioso, que lhe chegam continuamente ao espírito com uma bela subitaneidade" - comentário que contém mais da psicologia do pensamento produtivo do que muitos tratados. Apesar do caráter elíptico das afirmações de Keats, dois pontos emerg em. Um deles é sua convicção de que os "raciocínios" têm uma origem parecida com os movimentos de uma criatura selvagem em direção a seu objetivo, de que eles podem se tornar espontâneos, "instintivos", e de que, ao se tornarem instintivos, são sensoriais e imediatos, poéticos. O outro lado dessa convicção é sua crença em que nenhum "raciocínio", como raciocínio, isto é, excluindo a imaginação e os sentidos, pode alcançar a verdade. Até "o maior dos filósofos" exerce uma preferência animalesca para guiar seu pensamento a suas conclusões. Seleciona e põe de lado, conforme seus sentimentos imaginativos se movem. A "razão", em seu auge, não pode alcançar a apreensão completa e a certeza autônoma. Tem de recair na imaginação - na encarnação das ideias em um senso emocionalmente carregado. Muito se tem discutido o que Keats pretendeu dizer em seus célebres versos: "Beleza é verdade, verdade, beleza eis tudo/ Que sabes na Terra, e tudo que precisas saber," e o que quis dizer com a afirmação cognata em prosa: "O que a imaginação capta como beleza deve ser a ver dade". Grande parte dessa discussão é conduzida ignorando a tradição particular em que Keats escreveu, e que dava sentido ao termo "verdade". Nessa tradição, "verdade" não significa a correção das afirmações intelectuais sobre as coisas nem significa verdade tal como sua acepção é hoje influenciada pela ciência. Denota a sabedoria pela qual os homens vivem, em especial "o saber do bem e do mal". E, na mente de Keats, estava particularmente ligada à questão de justificar o bem e confiar nele, apesar da abundância do mal e da destruição. A "filosofia" era a tentativa de responder racionalmente a essa questão. A crença de Keats em que nem mesmo os filósofos podiam lidar com tal questão sem depender de intuições imaginativas recebeu uma afirmação independente e positiva em sua identificação da "beleza" com a "verdade" - a verdade particular que soluciona, para o homem, o desconcertante problema da destruição e da morte - que tinha um peso muito constante em Keats, justamente no campo em que a vida luta para afirmar a supremacia. O homem vive em um mundo de suposições, mistério e incertezas. O "raciocínio" está fadado a ser falho para ele uma doutrina, é claro, que foi ensinada durante muito tempo pelos que sustentavam a necessidade de uma revelação divina. Keats não aceitava esse complemento e substituto da razão. O discernimento da imaginação devia ser suficiente: "Eis tudo que sabes na Terra, e tudo que precisas saber". As palavras cruciais são "na Terra" - ou seja, em meio a um cenário em que a "busca irritadiça dos fatos e da razão" confunde e distorce, em vez de nos levar ao esclarecimento. Era em momentos da mais intensa percepção estética que Keats encontrava seu consolo supremo e suas mais profundas convicções. Tal é o fato registrado no final da Ode. Em última análise, existem apenas duas filosofias. Uma delas aceita a vida e a experiência com toda a sua incerteza, mistério, dúvida e semiconhecimento, e volta essa experiência para ela mesma, a fim de aprofundar e intensificar suas próprias qualidades - para a imaginação e a arte. É essa a filosofia de Shakespeare e Keats. A experiência ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver. Nas situações de resistência e conflito, os aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação modificam a experiência com emoções e ideias, de modo que emerge a intenção consciente. Muitas vezes, porém, a experiência vivida é incipiente. As coisas são experimentadas, mas não de modo a se comporem em uma experiência singular. Há distração e dispersão; o que observamos e o que pensamos, o que desejamos e o que obtemos, discordam entre si. Pomos as mãos no arado e viramos para trás; começamos e paramos não porque a experiência tenha atingido o fim em nome do qual foi iniciada, mas por causa de
interr upções externas ou da letargia interna. Em contraste com essa experiência, temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução. Então, e só então, ela é integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente de outras experiências. Conclui-se uma obra de modo satisfatório; um problema recebe sua solução; um jogo é praticado até o fim; uma situação, seja a de fazer uma refeição, jogar uma partida de xadrez, conduzir uma conversa, escrever um livro ou participar de uma campanha política, conclui-se de tal modo que seu encerr amento é uma consumação, e não uma cessação. Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualiza dor e sua autossuficiência. Trata-se de uma experiência. Os filósofos, inclusive os empíricos, falaram, em sua maioria, da experiência em geral. A linguagem vernácula, entretanto, refere-se a experiências, cada uma das quais é singular e tem começo e fim. Porque a vida não é uma marcha ou um fluxo uniforme e ininterrupto. E feita de histórias, cada qual com seu enredo, seu início e movimento para seu fim, cada qual com seu movimento rítmico particular, cada qual com sua qualidade não repetida, que a perpassa por inteiro. Uma escada, por mais mecânica que seja, procede por degraus individuais, e não por uma progressão indiferenciada, e um plano inclinado distingue-se de outras coisas, no mínimo, por uma descontinuidade abrupta. A experiência, nesse sentido vital, define-se pelas situações e episódios a que nos referimos espontaneamente como "experiências reais" - aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las: "isso é que foi experiência." Pode ter sido algo de tremenda importância - uma briga com alguém que um dia foi íntimo, uma catástrofe enfim evitada por um triz. Ou pode ter sido algo que, em termos comparativos, foi insignificante - e que, talvez por sua própria insignificância, ilustra ainda melhor o que é ser uma experiência. Como aquela refeição em um restaurante parisiense da qual se diz "aquilo é que foi uma experiência". Ela se destaca como um memorial duradouro do que a comida pode ser. Há também aquela tempestade por que se passou na travessia do Atlântico - uma tormenta que, em sua fúria, tal como vivenciada, pareceu resumir em si tudo o que uma tempestade pode ser, completa em si mesma, destacando-se por ter-se distinguido do que veio antes e depois. Nessas experiências, cada parte sucessiva flui livremente, sem interrupção e sem vazios não preenchidos, para o que vem a seguir. Ao mesmo tempo, não há sacrifício da identidade singular das partes. Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes nas partes homogêneas de um lago. Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À medida que uma parte leva a outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas. Por causa da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento. Resumem aquilo por que se passou e impedem sua dissipação e sua evaporação displicente. A aceleração contínua é esbaforida e impede que as partes adquiram distinção. Em uma obra de arte, os diferentes atos, episódios ou ocorrências se desmancham e se fundem na unidade, mas não desaparecem nem perdem seu caráter próprio ao fazê-lo - tal como, em uma conversa amistosa, há um intercâmbio e uma mescla contínuos, mas cada interlocutor não apenas preserva seu caráter pessoal, como também o manifesta com mais clareza do que é seu costume. A experiência singular tem uma unidade que lhe confere seu nome -aquela refeição, aquela tempestade, aquele rompimento da amizade. A existência dessa unidade é constituída por uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a compõem. Essa unidade não é afetiva, prática nem intelectual, pois esses termos nomeiam distinções que a reflexão pode fazer dentro dela. No discurso sobre uma experiência, devemos servir-nos desses
adjetivos de interpretação. Ao repassar mentalmente uma experiência, depois que ela ocorre, podemos constatar que uma propriedade e não outra foi suficientemente dominante, de modo que caracteriza a experiência como um todo. Há investigações e especulações intrigantes que o cientista e o filósofo recordam como "experiências" no sentido enfático. Em sua significação final, elas são intelectuais. Mas, em sua ocorrência efetiva, também foram emocionais; tiveram um propósito e foram volitivas. No entanto, a experiência não foi a soma desses traços diferentes, os quais se perderam nela como traços distintivos. Nenhum pensador pode exercer sua ocupação, a menos que seja atraído e recompensado por experiências integrais, totais, que valham a pena intrinsecamente. Sem elas, ele nunca saberia o que é realmente pensar e ficaria completamente incapacitado de distinguir o pensamento real do artigo espúrio. O pensar se dá em fluxos de ideias, mas as ideias só formam um fluxo por serem muito mais do que a psicologia analítica chama de ideias. São fases, afetiva e praticamente distintas, de uma qualidade subjacente em evolução; são variações móveis, não separadas e independentes, como as chamadas ideias e impressões de Locke e Hume, e sim matizes sutis de uma tonalidade penetrante e em desenvolvimento. A propósito de uma experiência de pensamento, dizemos tirar uma conclusão ou chegar a ela. Muitas vezes, a formulação teórica desse processo é feita em termos que escondem por completo a semelhança da "conclusão" com a fase que consuma cada experiência integral em evolução. Aparentemente, essas formulações são instigadas a partir de proposições separadas, que são premissas, e da proposição que constitui a conclusão, tal como aparecem na página impressa. Fica-se com a impressão de que primeiro existem duas entidades prontas e independentes, que são manipuladas a fim de dar origem a uma terceira. Na verdade, em uma experiência de pensamento, as premissas só emergem quando uma conclusão se torna manifesta. A experiência, como a de ver uma tempestade atingir seu auge e diminuir gradativamente, é de um movimento contínuo dos temas. Assim como no oceano durante a borrasca, há uma série de ondas, sugestões que se estendem e se quebram com estrondo, ou que são levadas adiante por uma onda cooperativa. Quando se chega a uma conclusão, ela é a de um movimento de antecipação e acumulação, um movimento que finalmente se conclui. A "conclusão" não é uma coisa distinta e independente; é a consumação de um movimento. Portanto, uma experiência de pensar tem sua própria qualidade estética. Difere das experiências que são reconhecidas como estéticas, mas o faz somente em seu material. O material das belas-artes consiste em qualidades; o da experienda que tem uma conclusão intelectual consiste em sinais ou símbolos sem qualidade intrínseca própria, mas que representam coisas que, em outra experiência, podem ser qualitativamente vivenciadas. A diferença é enorme. É uma das razões por que a arte estritamente intelectual nunca será popular como a música. Não obstante, a experiência em si tem um caráter emocional satisfatório, porque possui integração interna e um desfecho atingido por meio de um movimento ordeiro e organizado. Essa estrutura artística pode ser sentida de imediato. Nessa medida, é estética. Ainda mais importante é o fato de que não só essa qualidade é um motivo significativo para se empreender uma investigação intelectual e mantê-la verdadeira, como também nenhuma atividade intelectual é um evento integral (uma experiência), a menos que seja complementada por essa qualidade. Sem ela, o pensamento é inconclusivo. Em suma, a experiência estética não pode ser nitidamente distinguida da intelectual, uma vez que esta última precisa exibir uma chancela estética para ser completa. A mesma afirmação se aplica a um curso de ação que seja dominantemente prático, isto é, que consista em um franco fazer. E possível ser eficiente na ação e não ter uma experiência consciente. Uma atividade pode ser automática demais para permitir uma sensação daquilo a que se refere e de para onde vai. Ela chega ao fim, mas não a um desfecho ou consumação na consciência. Os obstáculos são superados pela habilidade sagaz, mas não alimentam a experiência.
Há também aquelas que relutam na ação, inseguras e inconclusivas como os matizes da literatura clássica. Entre os polos da inexistência de propósito e da eficiência mecânica, situam-se os cursos de ação em que os atos sucessivos são perpassados por um sentimento de significado cr escente, que é conservado e se acumula em direção a um fim vivido como a consumação de um processo. Os políticos e generais de sucesso, que se transformam em estadistas como César e Napoleão, têm em si algo do showman. Por si só, isso não é arte, mas é um sinal, creio eu, de que o interesse não recai exclusivamente, ou talvez não principalmente, no resultado considerado em si (como no caso da mera eficiência), mas sim no resultado como desfecho de um processo. Há interesse em concluir uma experiência. E possível que essa experiência seja prejudicial ao mundo, e que sua consumação seja indesejável. Mas ela tem um caráter estético. A identificação grega da boa conduta com a conduta dotada de proporção, gr aça e harmonia, a kalonagathon, é um exemplo mais óbvio da qualidade estética que distingue a ação moral. Um grande defeito daquilo que passa por moral é seu caráter inestético. Em vez de exemplificar uma ação resoluta e entusiástica, isso assume a forma de concessões parciais e ressentidas às exigências do dever. Mas as ilustrações talvez só façam obscurecer o fato de que qualquer atividade prática, desde que seja integrada e se mova por seu próprio impulso para a consumação, tem uma qualidade estética. Talvez possamos ter uma ilustração geral, se imaginarmos que uma pedra que rola morro abaixo tem uma experiência. Com certeza, trata-se de uma atividade suficientemente "prática". A pedra parte de algum lugar e se move, com a consistência permitida pelas circunstâncias, para um lugar e um estado em que ficará em repouso - em direção a um fim. Acrescentemos a esses dados externos, à guisa de imaginação, a ideia de que á pedra anseia pelo resultado final; de que se interessa pelas coisas que encontra no caminho, pelas condições que aceleram e retardam seu avanço, com respeito à influência delas no final; de que age e se sente em relação a elas confor me a função de obstáculo ou auxílio que lhes atribui; e de que a chegada final ao repouso se relaciona com tudo o que veio antes, como a culminação de um movimento contínuo. Nesse caso, a pedra teria uma experiência, e uma experiência com qualidade estética. Se passarmos desse caso imaginário para nossa própria experiência, veremos que grande parte dele é mais próxima do que acontece com a pedra real do que qualquer coisa que cumpra as condições que a fantasia acabou de ditar. Isso porque, em muito de nossa experiência, não nos interessamos pela ligação de um incidente com o que veio antes e o que vem depois. Não há um interesse que controle a rejeição ou a seleção atenta do que será organizado na experiência em evolução. As coisas acontecem, mas não são definitivamente incluídas nem decisivamente excluídas; vagamos com a correnteza. Cedemos de acordo com a pressão externa ou fugimos e contemporizamos. Há começos e cessações, mas não inícios e conclusões autênticos. Uma coisa substitui outra, mas não a absorve nem a leva adiante. Há experiência, porém ela é tão frouxa e discursiva que não é uma experiência singular. E desnecessário dizer que tais experiências são inestéticas. Portanto, o inestético situa-se entre dois limites. Em um polo, está a sucessão solta, que não começa em nenhum lugar particular e que termina - no sentido de cessar - em um lugar inespecífico. No polo oposto, estão a suspensão e a constrição, que avançam desde as partes que têm apenas uma ligação mecânica entre si. Existe um número tão grande desses dois tipos de experiência que, inconscientemente, elas passam a ser tidas como a norma de toda experiência. Assim, quando aparece o estético, ele contrasta tão nitidamente com a imagem formada sobre a experiência que é impossível combinar suas qualidades especiais com as características da imagem, e o estético recebe um lugar e um status externos.
A descrição feita aqui da experiência que é dominantemente intelectual e prática pretende mostrar que tal contraste não está envolvido no ter-se uma experiência; que, ao contrár io, nenhuma experiência de nenhum tipo constitui uma unidade, a menos que tenha qualidade estética. Os inimigos do estético não são o prático nem o intelectual. São a monotonia, a desatenção para com as pendências, a submissão às convenções na prática e no procedimento intelectual. Abstinência rigorosa, submissão coagida e estreiteza, por um lado, desperdício, incoerência e complacência displicente, por outro, são desvios em direções opostas da unidade de uma experiência. Algumas considerações desse tipo talvez tenham sido o que induziu Aristóteles a invocar a "média propor cional" como designação adequada daquilo que é característico na virtude e no estético. Ele estava formalmente correto. No entanto, "média" e "proporção" não são autoexplicativas, não devem ser tomadas em um sentido matemático a priori, mas são propriedades pertinentes a uma experiência que tem um movimento evolutivo r umo a sua consumação. Enfatizei que toda experiencia integral se desloca para um desfecho, um fim, uma vez que só para depois que as energias nela atuantes fazem seu trabalho adequado. Esse fechamento de um circuito de energia é o oposto da paralisação, da estase. O amadurecimento e a fixação são opostos polares. A própria luta e o conflito podem ser desfrutados, apesar de serem dolorosos, quando vivenciados como um meio para desenvolver uma experiência; fazem parte dela por levarem-na adiante, e não apenas por estarem presentes. Há, como veremos dentro em pouco, um componente de sujeição, de sofrimento no sentido lato, em toda experiência. Caso contrário, não haveria uma incorporação do que veio antes. E que "incorporar", em qualquer experiência vital, é mais do que pôr algo no alto da consciência, acima do que era sabido antes. Envolve uma reconstrução que pode ser dolorosa. Se a fase necessária do submeter-se a alguma coisa é prazerosa ou dolorosa em si mesma, depende de condições específicas. É indiferente para a qualidade estética total, a não ser pelo fato de haver poucas experiências estéticas que são totalmente ubilosas. Decerto elas não devem ser caracterizadas como divertidas e, ao incidirem sobre nós, envolvem um sofrimento que ainda assim é coerente com a percepção completa desfrutada - ou, a rigor, é parte dela. Falei da qualidade estética que arredonda uma experiência, em sua completude e unidade, como emocional. Talvez essa referência cause dificuldades. Tendemos a pensar nos sentimentos como coisas tão simples e compactas quanto as palavras com que os denominamos. Alegria, tristeza, esperança, medo, raiva ou curiosidade são tratados como se, por si só, cada um fosse uma espécie de entidade que entra em cena já pronta, uma entidade capaz de durar muito ou pouco tempo, mas cuja duração, crescimento e carr eira é irrelevante para sua natureza. Na verdade, quando significativas, as emoções são qualidades de uma experiência complexa que se movimenta e se altera. Digo quando significativas porque, de outro modo, elas não passam de explosões e irrupções de um bebê perturbado. Todas as emoções são qualificações de um drama e se modificam com o desenrolar do drama. Diz-se, às vezes, que as pessoas se apaixonam à primeira vista. Mas aquilo por que caem de amores não é uma coisa daquele instante. Onde ficaria o amor, se fosse comprimido em um momento em que não houvesse espaço para a estima e a solicitude? A natureza íntima da emoção manifesta-se na experiência de quem assiste a uma peça no palco ou lê um romance. E concomitante ao desenvolvimento da trama; e a trama requer um palco, um espaço cm que se desenvolver e (empo para se desdobrar. A experiência é afetiva, mas nela não existem coisas separadas, chamadas emoções. Do mesmo modo, as emoções ligam-se a acontecimentos e objetos em seu movimento. Não são privadas, a não ser em casos patológicos. E até uma emoção "anobjetal" exige algo além dela mesma a que se prender e, por isso, gera prontamente uma ilusão, na falta de algo real. A emoção faz parte
do eu, certamente. Mas faz parte do eu interessado no movimento dos acontecimentos em direção a um desfecho desejado ou indesejado. Pulamos de imediato ao nos assustarmos, assim como enrubescemos no instante em que sentimos vergonha. Mas o susto e o recato envergonhado não são, nesses casos, estados afetivos. Em si, não passam de reflexos automáticos. Para se tornarem emocionais, precisam fazer parte de uma situação inclusiva e duradoura que envolva o interesse pelos objetos e por seus desfechos. O pulo de susto transfor ma-se em um medo emocional quando se constata ou se supõe existir um objeto ameaçador, o qual é preciso enfrentar ou do qual convém fugir. O rubor converte-se em uma emoção de vergonha quando, em pensamento, a pessoa liga um ato que praticou a uma reação desfavorável de alguém mais a ela. Coisas físicas, vindas dos confins da Terr a, são fisicamente transportadas e fisicamente levadas a agir e reagir umas sobre as outras, na construção de um novo objeto. O milagre da mente é que algo parecido ocorre em uma experiência sem transporte nem montagem físicos. A emoção é a força motriz e consolidante. Seleciona o que é congruente e pinta com suas cores o que é escolhido, com isso conferindo uma unidade qualitativa a materiais externamente díspares e dessemelhantes. Com isso, proporciona unidade nas e entre as partes variadas de uma experiência. Quando a unidade é do tipo já descrito, a experiência tem um caráter estético, mesmo que não seja, predominantemente, uma experiência estética. Dois homens se encontram; um deles é candidato a um emprego, enquanto o outro detém a possibilidade de decidir a questão. A entrevista pode ser mecânica, composta por perguntas padronizadas, cujas respostas decidem superficialmente o assunto. Não há uma experiência em que os dois homens se conheçam, nada que não seja uma repetição, por meio da aceitação ou r ecusa, de algo que já aconteceu dezenas de vezes. A situação é tratada como se fosse um exercício de anotação em um registro contábil. Mas é possível que ocorra uma interação em que se desenvolva uma nova experiência. Onde devemos buscar uma descrição de tal experiência? Não em registros contábeis nem em um tratado de economia, sociologia ou psicologia organizacional, mas no teatro ou na ficção. Sua natureza e importância só podem expressar-se pela arte, porque há uma unidade da experiência que só pode ser expressa como uma experiência. A experiência é de um material carregado de suspense e avança para sua consumação por uma série interligada de incidenles variáveis. As emoções primárias, por parte do candidato, podem ser a esperança ou a desesperança no início, e a euforia ou o desapontamento no final. Essas emoções qualificam a experiência como uma unidade. Mas, à medida que a entrevista prossegue, desenvolvemse emoções secundárias, como variações do afeto primário subjacente. É possível até que cada atitude e gesto, cada frase, quase cada palavra, produzam mais do que uma oscilação na intensidade da emoção fundamental; em outras palavras, produzam uma mudança de matiz e coloração em sua qualidade, O empregador discerne, por meio de suas próprias reações afetivas, o caráter do candidato. Projeta-o imaginariamente no trabalho a ser feito e avalia sua aptidão pela maneira como os elementos da cena se reúnem e entram em choque, ou se encaixam. A presença e o comportamento do candidato harmonizam-se com suas atitudes e desejos, ou entram em conflito e se chocam. Fatores como esses, de qualidade intrinsecamente estética, são as forças que levam os componentes variados da entrevista a um desfecho decisivo. Entram na resolução de qualquer situação, seja qual for sua natureza dominante, em que haja incerteza e suspense. Por conseguinte, existem padrões comuns a várias experiências, por mais diferentes que elas sejam entre si nos detalhes de seu conteúdo. Há condições a serem satisfeitas, sem as quais a experiência não pode vir a ser. Os contornos do padrão comum são ditados pelo fato de que toda experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive. Um homem faz algo: digamos, levanta uma pedra. Em consequência disso, fica sujeito a algo, sofre algo:
o peso, o esforço, a textura da superfície da coisa levantada. As propriedades assim vivenciadas determinam a ação adicional. A pedra pode ser pesada ou angulosa demais, ou insuficientemente sólida; ou então, as propriedades vivenciadas mostram que ela se presta para o uso a que se destina. O processo segue até emergir uma adaptação mútua entre o eu e o objeto, e essa experiência específica chega ao fim. O que se aplica a esse exemplo simples é aplicável, em termos da forma, a todas as experiências. A criatura atuante pode ser um pensador em seu gabinete de estudos e o meio com que ele interage pode consistir em ideias em vez de uma pedra. Mas a interação dos dois constitui a experiência total vivenciada, e o encerramento que a conclui é a instituição de uma harmonia sentida. Uma experiência tem padrão e estrutura porque não apenas é uma alternância do fazer e do ficar sujeito a algo, mas também porque consiste nas duas coisas r elacionadas. Pôr a mão no fogo não é, necessariamente, ter uma experiência. A ação e sua consequência devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere significado; apreendê-lo é o objetivo de toda compreensão. O âmbito e o conteúdo das relações medem o conteúdo significativo de uma experiência. A experiência de uma criança pode ser intensa, mas, por falta de uma base de experiências anteriores, as relações entre o estar sujeita a algo e o fazer são mal-apreendidas, e a experiência não tem grande profundidade nem largueza. Ninguém jamais atinge uma maturidade tal que perceba todas as conexões envolvidas. Certa vez, um autor (o sr. Hinton) escreveu um romance intitulado The Unleaner [O desaprendedor]. Ele retratava toda a duração infinita da vida após a morte como um reviver dos incidentes ocorridos em uma vida curta na Terra, em urna deseoberta contínua das relações envolvidas entre eles. A experiência é limitada por todas as causas que interferem na percepção das relações entre o estar sujeito e o fazer. Pode haver interferência pelo excesso do fazer ou pelo excesso da receptividade daquilo a que se é submetido. O desequilibrio em qualquer desses lados embota a percepção das relações e torna a experiência parcial e distorcida, com um significado escasso ou falso. O gosto pelo fazer, a ânsia de ação, deixa muitas pessoas, sobretudo no meio humano apressado e impaciente em que vivemos, com experiências de uma pobreza quase inacreditável, todas superficiais. Nenhuma experiência isolada tem a oportunidade de se concluir, porque o indivíduo entra em outra coisa com muita precipitação. O que é chamado de experiência fica tão disperso e misturado que mal chega a merecer esse nome. A resistência é tratada como uma obstrução a ser vencida, e não como um convite à reflexão. O indivíduo passa a buscar, mais ainda inconscientemente do que por uma escolha deliberada, situações em que possa fazer o máximo de coisas no prazo mais curto possível. As experiências também têm seu amadurecimento abreviado pelo excesso de receptividade. Nesse caso, o que se valoriza é o mero passar por isto ou aquilo, independentemente da percepção de qualquer significado. O acúmulo de tantas impressões quanto for possível é tido como "vida", muito embora nenhuma delas seja mais do que um adejo e um gole bebido depressa. Talvez passem mais fantasias e impressões pela consciência do sentimentalista ou do sonhador do que pela do homem movido pela ânsia de ação. Mas sua experiência é igualmente distorcida, porque nada cria raízes na mente quando não há equilíbrio entre o agir e o receber. É necessária uma ação decisiva para que se estabeleça contato com as realidades da vida, e para que as impressões possam r elacionar-se com os fatos de tal maneira que seu valor seja testado e or ganizado. Como a percepção da relação entre o que é feito e o que é suportado constitui o trabalho da inteligência, e como o artista é controlado, em seu processo de trabalho, por sua apreensão da conexão entre o que ele já fez e o que fará a seguir, a ideia de que o artista não pensa de maneira tão atenta e penetrante quanto o investigador científico é absurda.
O pintor tem de vivenciar conscientemente o efeito de cada pincelada que dá ou não saberá o que está fazendo nem para onde vai seu trabalho. Além disso, tem de discernir uma relação particular entre o agir e o suportar em relação ao todo que deseja produzir. Apreender tais relações é pensar, uma das modalidades mais exigentes do pensamento. A diferença entre os quadros de diferentes pintores se deve tanto a diferenças de capacidade de levar adiante esse pensar quanto a diferenças de sensibilidade à simples cor e a diferenças na destreza da execução. No que concerne à qualidade básica dos quadros, a diferença, com efeito, depende mais da qualidade da inteligência empregada na percepção das relações do que de qualquer outra coisa embora, é claro, não se possa separar a inteligência da sensibilidade direta, além de ela estar ligada, ainda que de maneira mais externa, à habilidade. Toda ideia que desconhece o papel necessário da inteligência na produção de obras de ar te se baseia na identificação do pensamento com o uso de um tipo de material específico de signos verbais e palavras. Pensar efetivamente, em termos das relações entre qualidades, é uma exigência tão severa ao pensamento quanto pensar em termos de símbolos verbais e matemáticos. Aliás, uma vez que é fácil manipular as palavras mecanicamente, a produção de uma autêntica obra de arte provavelmente exige mais inteligência do que a maior parte do chamado pensamento que se dá entre os que se orgulham de ser "intelectuais". Procurei mostrar, nesses capítulos, que o estético não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro, seja pelo luxo ocioso ou pela idealização transcendental, mas que é o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a toda experiência nor malmente completa. Essa é a realidade que considero a única base segura sobre a qual se pode erigir a teoria estética. Resta sugerir algumas implicações da realidade subjacente. Na língua inglesa não há uma palavra que inclua de forma inequívoca o que é expresso pelas palavras "artístico" e "estético". Visto que "artístico" se refere primordialmente ao ato de produção, e "estético", ao de percepção e prazer, a inexistencia de um termo que designe o conjunto dos dois processos é lamentável. Às vezes, o efeito disso é separá-los um do outro, é ver a arte como algo que se superpõe ao material estético ou, por outro lado, leva à suposição de que, como a arte é um processo de criação, a percepção dela e o prazer que dela se extrai nada têm em comum com o ato criativo. Seja como for, há um certo incômodo verbal no fato de ora sermos compelidos a usar o termo "estético" para abranger o campo inteiro, ora a limitá-lo ao aspecto perceptual receptivo de toda a operação. Refiro-me a esses fatos óbvios como preliminar de uma tentativa de mostrar que a concepção da experiência consciente como a percepção de uma relação entre o fazer e o estar sujeito a algo permite compreender a ligação que a arte como produção, por um lado, e a percepção e apreciação como prazer, por outro, mantêm entre si. A arte denota um processo de fazer ou criar. Isso tanto se aplica às belas-artes quanto às artes tecnológicas. A arte envolve moldar a argila, entalhar o mármore, fundir o bronze, aplicar pigmentos, construir edifícios, cantar canções, tocar instrumentos, desempenhar papéis no palco, fazer movimentos rítmicos na dança. Toda arte faz algo com algum material físico, o corpo ou alguma coisa externa a ele, com ou sem o uso de instrumentos intervenientes, e com vistas à produção de algo visível, audível ou tangível. Tão acentuada é a fase ativa ou do "agir" na arte que os dicionários costumam defini-la em termos da ação habilidosa, da habilidade na execução. O Oxford Dictionary a ilustra com uma citação de John Stuart Mill: "A arte é o esforço de perfeição na execução", enquanto Matthew Arnold a chama de "habilidade pura e impecável". A palavra "estético" refere-se, como já assinalamos, à experiência como apreciação, percepção e deleite. Mais denota o ponto de vista do consumidor do que o do produtor. É o gusto, o gosto; e, tal como na culinária, a clara ação habiIidosa fica do lado do cozinheiro que prepara os alimentos, enquanto o gosto fica do lado do consumidor, assim como, na jardinagem, há
uma distinção entre o jardineiro que planta e cuida e o morador que desfruta do produto acabado. Essas próprias ilustrações, porém, assim como a relação existente ao se ter uma experiência entre o agir e o ficar sujeito a algo, indicam que a. distinção entre o estético e o artístico não pode ser levada a ponto de se tornar uma separação. A perfeição na execução não pode ser medida ou definida em termos da execução; implica aqueles que percebem e desfrutam do produto executado. O cozinheiro prepara a comida para o consumidor, e a medida do valor do que é preparado se encontra no consumo. A mera perfeição na execução, julgada isoladamente em seus próprios termos, provavelmente poderia ser mais bem alcançada por uma máquina do que pela arte humana. Por si só, ela é técnica, no máximo, e existem grandes artistas que não figuram nas fileiras superiores dos técnicos (a exemplo de Cézanne), do mesmo modo que há grandes pianistas que mio são grandes no plano estético, e que Sargent não é um grande pintor. Para que a habilidade seja artística, no sentido final, ela precisa ser "amorosa"; precisa importar-se profundamente com o tema sobre o qual a habilidade é exercida. Vem-nos à mente um escultor cujos bustos sejam maravilhosamente exatos. Talvez seja difícil dizer, na presença da fotografia de um deles e de uma fotografia do original, qual é a da pessoa em si. No plano do virtuosismo, eles são admiráveis. Entretanto, resta saber se o criador dos bustos teve uma experiência pessoal, a. qual se interessou por fazer com que fosse compartilhada pelos que observam seus produtos. Para ser verdadeiramente artística, uma obra também tem de ser estética - ou seja, moldada para uma percepção receptiva prazerosa. E claro que a observação constante é necessária para o criador, enquanto ele produz. Mas, se sua percepção não for também de natureza estética, será um reconhecimento monótono e frio do que foi produzido, usado como estímulo para o passo seguinte, em um processo essencialmente mecânico. Em suma, a arte, em sua forma, une a mesma relação entre o agir e o sofrer, entre a energia de saída e a de entrada, que faz que uma experiência seja uma experiência. Graças à eliminação de tudo o que não contribui para a organização recíproca dos fatores da ação e da recepção uns nos outros, e em vista da escolha apenas dos aspectos e traços que contribuem para sua interpenetração recíproca, o produto é uma obra de arte estética. O homem desbasta, entalha, canta, dança, gesticula, molda, desenha e pinta. O fazer ou o criar é artístico quando o resultado percebido é de tal natureza que suas qualidades, tal como percebidas, controlam a questão da produção. O ato de produzir, quando norteado pela intenção de criar algo que seja desfrutado na experiência imediata da percepção, tem qualidades que faltam à atividade espontânea ou não controlada. O artista, ao trabalhar, incorpora em si a atitude do espectador. Suponhamos, à guisa de ilustração, que um objeto finamente elaborado, cuja textura e proporção sejam sumamente agradáveis à percepção, seja tido como obra de um povo primitivo. Depois, descobrem-se provas que revelam tratar-se de um produto natural acidental. Como coisa externa, ele continua a ser exatamente o que era antes. Mas deixa prontamente de ser uma obra de arte e se transforma em uma "curiosidade" natural. Passa a ter lugar em um museu de história natural, e não em um museu de arte. E o extraordinário é que a diferença assim produzida não é apenas de classificação intelectual. Cria-se uma diferença na percepção apreciativa, e de maneira direta. Portanto, a experiência estética - em seu sentido estrito - é vista como inerentemente ligada à experiência de criar. Quando estética, a satisfação sensorial dos olhos e ouvidos o é porque não existe sozinha, mas ligada â atividade de que é consequência. Até os prazeres do paladar têm para o gastrônomo uma qualidade diferente da que apresentam para alguém que meramente "goste" dos alimentos ao comê-los. Essa diferença não é apenas de intensidade. O gastrônomo tem consciência de muito mais do que o sabor da comida. Nesse sabor, tal como diretamente experimentado, entram qualidades que dependem da referência a sua fonte e a sua forma de preparação, ligada a critérios de excelência.
Assim como a produção deve absorver em si as qualidades do produto, tal como percebidas, e ser regulada por elas, a visão, a audição e o paladar tornam-se estéticos, por outro lado, quando a relação com uma forma distinta de atividade classifica o que é percebido. Há um componente de paixão em toda percepção estética. No entanto, quando somos tomados pela paixão, como na raiva, no medo ou no ciúme extremos, a experiência é decididamente inestética. Não se sente uma relação com as qualidades da atividade que gerou a paixão. Por conseguinte, faltam ao material da experiência elementos de equilíbrio e proporção. É que estes só podem estar presentes quando, como na conduta que tem graça ou dignidade, o ato é controlado por um senso refinado das relações que ele sustenta - sua adequação à ocasião e à situação. O processo da arte em produção relaciona-se organicamente com o estético na percepção - tal como Deus, na criação, inspecionou sua obra e a considerou boa. Até ficar perceptualmente satisfeito com o que faz, o artista continua a moldar e remoldar. O fazer chega ao fim quando seu resultado é vivenciado como bom - e essa experiência não vem por um mero julgamento intelectual e externo, mas na percepção direta. O artista, comparado a seus semelhantes, é alguém não apenas especialmente dotado de poderes de execução, mas também de uma sensibilidade inusitada às qualidades das coisas. Essa sensibilidade também orienta seus atos e criações. Ao manipularmos, tocamos e sentimos; ao olharmos, vemos; ao escutarmos, ouvimos. A mão se move com a agulha usada para gravar ou com o pincel. O olho acompanha e relata a consequência daquilo que é feito. Graças a essa ligação íntima, o fazer posterior é cumulativo, e não uma questão de capricho nem de rotina. Em uma enfática experiência artístico-estética, a relação é tão estreita que controla ao mesmo tempo o fazer e a percepção. Essa intimidade vital da ligação não pode ser alcançada quando apenas a mão e os olhos estão implicados. Quando ambos não agem como órgãos do ser total, existe apenas uma sequência mecânica de senso e movimento, como em um andar automático. A mão e o olho, quando a experiência é estética, são apenas instrumentos pelos quais opera toda a criatura viva, impulsionada e atuante durante todo o tempo. Portanto, a expressão é emocional e guiada por um propósito. Graças à relação entre o que é feito e o que é sofrido, há na percepção um sentido imediato das coisas como compatíveis ou incompatíveis, reforçadoras ou interferentes. As consequências do ato de fazer, tal como transmitidas nos sentidos, mostram se aquilo que é feito transmite a ideia que está sendo executada ou assinala um desvio e uma ruptura. Na medida em que o desenvolvimento de uma experiência é controlado, em referência a essas relações imediatamente sentidas de ordem e realização, essa experiência passa a ter uma natureza predominantemente estética. O impulso para a ação torna-se um impulso para o tipo de ação que resulte em um objeto satisfatório na percepção direta. O moleiro molda o barro para fazer um pote útil para guardar cereais, mas o faz de um modo tão regulado pela série de percepções que resumem os atos sequenciais do fazer que o pote é marcado por uma graça e encanto duradouros. A situação geral é a mesma ao se pintar um quadro ou esculpir um busto. Além disso, há em cada etapa uma antecipação do que virá. Essa antecipação é o elo que liga o fazer seguinte a seu efeito para os sentidos. O que é feito e o que é vivenciado, portanto, são instrumentais um para o outro, de maneira recíproca, cumulativa e contínua. O fazer pode ser enérgico, e o sofrer pode ser agudo e intenso. Contudo, a menos que se relacionem entre si para formar um todo na percepção, a coisa feita não é plenamente estética. O fazer, por exemplo, pode ser uma exibição de virtuosismo técnico, e o vivenciar, uma onda de sentimentos ou um devaneio. Quando o artista não aperfeiçoa uma nova visão em seu processo de fazer, ele age
mecanicamente e repete algum velho modelo, fixado como uma planta baixa em sua mente. Uma dose incrível de observação e do tipo de inteligência exercido na percepção de relações qualitativas caracteriza o trabalho criativo na arte. As relações devem ser notadas não apenas com respeito umas às outras, duas a duas, mas ligadas ao todo em construção; são exercidas tanto na imaginação quanto na observação. Surgem irrelevâncias que são distrações tentadoras; sugerem-se digressões disfarçadas de enriquecimento. Há momentos em que a apreensão da ideia dominante se enfraquece e o artista é inconscientemente levado a preenchê-la, até seu pensamento voltar a se fortalecer. O verdadeiro trabalho do artista é construir uma experiência que seja coerente na percepção ao mesmo tempo que se mova com mudanças constantes em seu desenvolvimento. Quando um escritor põe no papel ideias já claramente concebidas e coerentemente ordenadas, é porque o verdadeiro trabalho foi feito previamente. Ou então, ele talvez confie em que a maior perceptibilidade induzida pela atividade e sua transmissão sensível orientem sua conclusão do trabalho. O mero ato de transcrição é esteticamente irrelevante, a não ser na medida em que entra integralmente na formação de uma experiência que se move para a completude. Até a composição concebida mentalmente, e portanto fisicamente privada, é pública em seu conteúdo significante, visto que é concebida com referência à execução em um produto que é perceptível e que pertence, portanto, ao mundo comum. Caso contrário, seria uma aberração ou um sonho passageiro. A ânsia de expressar através da pintura as qualidades percebidas de uma paisagem é contígua à demanda de lápis ou pincel. Sem uma encarnação externa, a experiência permanece incompleta; em termos fisiológicos e funcionais, os órgãos dos sentidos são órgãos motores e se ligam por meio da distribuição de energias no corpo humano, e não apenas anatomicamente, a outros órgãos motores. Não é por uma coincidência linguística que "edificação", "construção" e "obra" designam tanto um processo quanto seu produto final. Sem o significado do verbo, o do substantivo permanece vazio. O escritor, o compositor musical, o escultor ou o pintor podem retraçar, durante o processo de produção, aquilo que fizeram anteriormente. Quando isso não é satisfatório, na fase perceptual ou em andamento da%experiência, eles podem, até certo ponto, começar de novo. Esse retraçar não é fácil de realizar no caso da arquitetura - o que talvez seja uma das razões de haver tantas construções feias. Os arquitetos são obrigados a levar suas ideias à conclusão antes que ocorra a tradução delas em um objeto completo da percepção. A impossibilidade de construir simultaneamente a ideia e sua encarnação objetiva impõe uma desvantagem. No entanto, eles também são forçados a elaborar suas ideias em termos do meio de encarnação e do objeto da percepção final, a não ser que trabalhem de maneira mecânica e rotineira. É provável que a qualidade estética das catedrais medievais se deva, em certa medida, ao fato de sua construção não ter sido tão controlada quanto são as de hoje por projetos e especificações feitos de antemão. Os projetos iam crescendo junto com as construções. Entretanto, mesmo um produto próprio de Minerva, sendo artístico, pressupõe um período anterior de gestação, no qual os atos e percepções projetados na imaginação interagem e se modificam mutuamente. Toda obra de arte segue o plano e o padrão de uma experiência completa, fazendo que ela seja sentida de maneira mais intensa e concentrada. Não é muito fácil, no caso de quem percebe e aprecia, compreender a união íntima do fazer com o sofrer, tal como se dá no criador. Somos levados a crer que o primeiro simplesmente absorve o que existe sob forma acabada, sem se dar conta de que essa absorção envolve atividades comparáveis às do criador. Mas receptividade não é passividade. Também ela é um processo composto por uma série de atos reativos que se acumulam em direção à realização objetiva. Caso contrário, não haveria percepção, mas reconhecimento.
A diferença entre os dois é imensa. O reconhecimento é a percepção refreada antes de ter a possibilidade de se desenvolver livremente. No reconhecimento, existe o começo de um ato de percepção. Mas esse começo não é autorizado a servir ao desenvolvimento de uma percepção plena da coisa reconhecida. É detido no ponto em que serve a uma outra finalidade, como ao reconhecermos um homem na rua para cumprimentá-lo ou evitá-lo, e não para ver o que há nele. No reconhecimento, tal como no estereótipo, recaímos em um esquema previamente formado. Um detalhe ou arranjo de detalhes serve de pista para a simples identificação. No reconhecimento, basta aplicar esse simples contorno ao objeto presente, como um estêncil. Às vezes, no contato com um ser humano, temos a atenção chamada para traços, talvez apenas de características físicas, dos quais antes não tínhamos conhecimento. Percebemos nunca ter conhecido aquela pessoa, não tê-la visto em um sentido pregnante. Começamos então a estudá-la e "absorvê-la". A percepção substitui o mero reconhecimento. Há um ato de reconstrução, e a consciência torna-se nova e viva. Esse ato de ver envolve a cooperação de elementos motores, embora eles permaneçam implícitos, em vez de se explicitarem, e envolve a cooperação de todas as ideias acumuladas que possam servir para completar a nova imagem em formação. O reconhecimento é fácil demais para despertar uma consciência vívida. Não há resistência suficiente entre o novo e o velho para assegurar a consciência da experiência vivida. Até o cão que late e abana o rabo alegremente ao ver seu dono voltar é mais plenamente vivo em sua acolhida do amigo do que o ser humano que se contenta com o mero reconhecimento. O simples reconhecimento satisfaz-se quando se afixa uma etiqueta ou um rótulo apropriado, tendo "apropriado" o sentido daquele que serve a um propósito externo ao ato de reconhecer - do mesmo modo que um vendedor identifica mercadorias por uma amostra. Ele não envolve nenhuma agitação do organismo, nenhuma comoção interna. Mas o ato de percepção procede por ondas que se estendem em série por todo o organismo. Assim, não existe na percepção um ver ou um ouvir acrescido da emoção. O objeto ou cena percebido é inteiramente perpassado pela emoção. Quando uma emoção despertada não permeia o material percebido ou pensado, ela é preliminar ou patológica. A fase estética ou vivencial da experiência é receptiva. Envolve uma rendição. Mas a entrega adequada do eu só é possível através de uma atividade controlada, que bem pode ser intensa. Em grande parte de nossa interação com o que nos cerca, nós nos retraímos, ora por medo - nem que seja de gastar indevidamente nossa reserva de energia - ora por preocupação com outras questões - como no caso do reconhecimento. A percepção é um ato de saída da energia para receber, e não de retenção da energia. Para nos impregnarmos de uma matéria, primeiro temos de mergulhar nela. Quando somos apenas passivos diante de uma cena, ela nos domina e, por falta de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos pressiona. Temos de reunir energia e colocá-la em um tom receptivo para absorver. Todos sabem que é preciso um aprendizado para enxergar através de um microscópio ou um telescópio, ou para ver uma paisagem tal como o geólogo a vê. A ideia de que a percepção estética é assunto de momentos ocasionais é uma das razões para o atraso das artes entre nós. O olho e o aparelho visual podem estar intactos, e o objeto pode estar fisicamente presente - a Catedral de Notre Dame ou o retrato de Hendrickje Stoffels pintado por Rembrandt. Em um sentido simples, os objetos podem ser "vistos". Podem ser olhados, possivelmente reconhecidos, e ter os nomes corretos ligados a eles. Mas, por falta de uma interação contínua entre o organismo total e os objetos, estes não são percebidos, decerto não esteticamente. Um grupo de visitantes, conduzido por um guia em uma galeria de pintura, tendo a atenção chamada para tal ou qual ponto alto, aqui e ali, não percebe; só por acaso é que há sequer interesse em ver um quadro por seu tema vividamente realizado.
Para perceber, o espectador ou observador tem de criar sua experiência. E a criação deve incluir relações comparáveis às vivenciadas pelo produtor original. Elas não são idênticas, em um sentido literal. Mas tanto naquele que percebe quanto no artista deve haver uma ordenação dos elementos do conjunto que, em sua forma, embora não nos detalhes, seja idêntica ao processo de organização conscientemente vivenciado pelo criador da obra. Sem um ato de recriação, o objeto não é percebido como uma obra de arte. O artista escolheu, simplificou, esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com seu interesse. Aquele que olha eleve passar por essas operações, de acordo com seu ponto de vista e seu interesse. Em ambos, ocorre um ato de abstração, isto é, de extração daquilo que é significativo. Em ambos, existe compreensão, na acepção literal desse termo - isto é, uma reunião de detalhes e particularidades fisicamente dispersos em um todo vivenciado. Há um trabalho feito por parte de quem percebe, assim como há um trabalho por parte do artista. Quem é por demais preguiçoso, inativo ou embotado por convenções para executar esse trabalho não vê nem ouve. Sua "apreciação" é uma mescla de retalhos de saber com a conformidade às normas da admiração convencional e com uma empolgação afetiva confusa, mesmo que genuína. As considerações já apresentadas implicam a semelhança e a dessemelhança, graças a ênfases específicas, entre uma experiência, no sentido pregnante, e a experiência estética. A primeira tem uma qualidade estética; se assim não fosse, seu material não se configur aria em uma experiência coerente singular. Não é possível separar entre si, em uma experiência vital, o prático, o intelectual e o afetivo, e jogar as propriedades de uns contra as características dos outros. A fase afetiva liga as partes em um todo único; "intelectual" simplesmente nomeia o fato de que a experiência tem sentido; e "prático" indica que o organismo interage com os eventos e objetos que o cercam. A mais complexa investigação filosófica ou científica e a mais ambiciosa iniciativa industrial ou política têm, quando seus diversos ingredientes constituem uma experiência integral, qualidade estética. É que, nesse momento, suas partes variadas se interligam, em vez de meramente sucederem umas às outras. E as partes, por sua ligação vivenciada, movem-se para uma consumação e um desfecho, e não para uma mera cessação no tempo. Além disso, tal consumação não espera na consciência até que toda a empreitada se conclua. É antecipada durante todo o processo e reiteradamente saboreada com especial intensidade. Todavia, as experiências em questão são predominantemente intelectuais ou práticas, e não distintivamente estéticas, em função do interesse e do propósito que as iniciam e as controlam. Em uma experiência intelectual, a conclusão tem valor por si só. Pode ser extraída como uma fórmula ou uma "verdade", e pode ser usada em sua totalidade independente como um fator e um guia em outras investigações. O fim, o término, é importante não por si, mas como integração das partes. Não tem outra existência. Uma peça teatral ou um romance não são a frase final, mesmo que os personagens sejam descartados como vivendo felizes para sempre. Em uma experiência nitidamente estética, algumas características atenuadas em outras experiências se revelam dominantes; as subordinadas tornam-se controladoras a saber, as características em virtude das quais a experiência é uma experiência integrada e completa por si só. Em toda experiência integral existe forma, porque existe organização dinâmica. Chamo a organização de dinâmica por ela levar tempo para ser completada, por ser um crescimento. Há início, desenvolvimento, consumação. O material é ingerido e digerido pela interação com aquela organização vital dos resultados da experiência anterior que constitui a mente do trabalhador. A incubação prossegue até que aquilo que é concebido seja partejado e tornado perceptível como parte do mundo comum. Uma experiência estética só pode compactar-se em um momento no sentido de um clímax de processos anteriores de longa duração se chegar em um movimento excepcional que abarque em si todas as outras coisas e o faça a ponto de todo o resto ser esquecido. O que distingue
uma experiência como estética é a conversão da resistência e das tensões, de excitações que em si são tentações para a digressão, em um movimento em direção a um desfecho inclusivo e gratificante. Vivenciar a experiência, como respirar, é um ritmo de absorções e expulsões. Sua sucessão é pontuada e transformada em um ritmo pela existência de intervalos, períodos em que uma fase é cessada e uma outra é inicial e preparatória. William James fez uma comparação oportuna entre o curso de uma experiência consciente e os voos e pousos alternados de um pássaro. Os voos e pousos ligam-se intimamente uns aos outros; não são um punhado de alçamentos não relacionados, seguidos por alguns saltinhos igualmente não relacionados. Cada lugar de repouso, na experiência, é um vivenciar em que são absorvidas e incorporadas as consequências de atos anteriores, e, a menos que esses atos sejam de extremo capricho ou pura rotina, cada um traz em si um significado que foi extraído e conservado. Tal como no avanço de um exército, todos os ganhos do que já foi efetuado são periodicamente consolidados, sempre com vistas ao que será feito a seguir. Se nos movemos depressa demais, afastamo-nos da base de suprimentos - da acumulação de significados -, e a experiência torna-se agitada, superficial e confusa. Se demoramos demais, depois de haver extraído um valor líquido, a experiência morre de inanição. A forma do todo, portanto, está presente em todos os membros. Realizar e consumar são funções contínuas, e não meros fins localizados em apenas um lugar. O gravador, o pintor ou o escritor encontram-se no processo de completar algo a cada etapa de seu trabalho. A cada momento, têm de preservar e resumir o que se deu antes como um todo e com referência a um todo que virá. Caso contrário, não há coerência nem segurança em seus atos sucessivos. A sucessão de feituras no ritmo da experiência confere variedade e movimento; protege o trabalho da monotonia e das repetições inúteis. As vivências experimentadas são os elementos correspondentes no ritmo e proporcionam unidade; protegem o trabalho da falta de propósito de uma mera sucessão de excitações. Um objeto é peculiar e predominantemente estético, gerando o prazer característico da percepção estética, quando os fatores determinantes de qualquer coisa que se possa chamar de experiência singular se elevam muito acima do limiar da percepção e se tornam manifestos por eles mesmos. ***
Notas 1. "Essas flores conhecidas, essas notas bem lembradas dos pássaros, esse céu com seu brilho intermitente, esses campos arados e relvados, cada qual com uma espécie de personalidade que lhe é conferida pela sebe caprichosa, coisas como essas são a língua materna de nossa imaginação, a língua carregada de todas as associações sutis e inextricáveis deixadas pelas horas fugazes da infância. Nosso prazer ao sol, na grama alta de hoje, talvez não passasse de uma tênue percepção de almas cansadas, não fossem o sol e a grama de anos distantes, que ainda vivem em nós e transformam nossa percepção em amor/' (George Eliot, em O moinho sobre o r io). 1. "O Sol, a Lua, a Terra e seu conteúdo são um material para formar coisas maiores, isto é, coisas etéreas - coisas maiores do que as feitas pelo próprio Criador." (John Keats) 2. Desenvolvi este ponto em. Experience and Nature [Experiência e natureza], no Capítulo 9, "Experiência, natureza e arte". No que concerne à colocação atual, a conclusão encontra-se na afirmação de que "a arte, forma de atividade carregada de significados passíveis de uma posse imediatamente desfrutada, é a culminação completa da natureza, e a ciência, no sentido apropriado, é