Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
Lorenzo Pigueiras, Eduardo Poza Saura, Fernando Narvarte Fernández, Luis INSTITUTO DE ENERGÍA SOLAR Fedrizzi, María Cristina Zilles, Roberto INSTITUTO DE ELECTROTÉCNIA E ENERGÍA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Aandam, Mohamed Zaoui, Saadia ASSOCIAÇÃO TICHKA
ISBN: 84-7402-329-7 Copyright © 2005 - Madrid, España Edita: Instituto de Energía Solar, Universidad Politécnica de Madrid Disenho e maquetização: La Factoría de Ediciones, S. L. (Madrid) Impresso na Espanha por: Color 2002 (Getafe)
D. L.: M-47.667-2005
Índice Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 2. O que é e como foi feito este guia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 3. O sistema de água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 3.1. Prioridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 3.1.1. Confiabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 3.1.2. Sabor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 3.1.3. Esforço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 3.1.4. Qualidade sanitária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 3.2. Consumo de água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 3.3. Água e energia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 3.4. Água e higiene . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 4. Projetos fotovoltaicos de abastecimento de água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 4.1. Engenharia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 4.1.1. A bomba fotovoltaica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 4.1.2. Infra-estruturas hidráulicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 4.1.2.1. Poços, cacimbas, rios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 4.1.2.2. Reservatórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36 4.1.2.3. Tubulações e outros acessórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .38 4.2. Antropologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 4.2.1. A higiene da água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 4.2.2. A gestão da água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 4.2.3. Organização de usuários e «técnico» local . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 5. Trabalhar com a diversidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Glossário
Símbolo HST HDT
Definição
Unidade
Nível dinâmico de um poço
m
Nível estático de um poço
m
QT QB
Vazão de teste bombeado em um poço
m3/h
Vazão de bombeamento
m3/h
QP
Vazão de água que aporta o terreno por percolação ou infiltração
m3/h
QG
Vazão adicional que aporta o terreno através de galerias escavadas no poço
m3/h
1. Introdução
Em Nova York, o consumo médio de água por habitante é de 500 litros por dia. No pólo oposto se encontra Madagascar, com 5,4 litros, o limite para a sobrevivência. Japão é o segundo e a Espanha, o terceiro país do mundo no consumo de água por habitante, depois dos Estados Unidos. Desde 1977, a Organização Mundial da Saúde estabeleceu em 50 litros por pessoa por dia a «provisão adequada» de água para beber, cozinhar, higiene pessoal e limpeza do lar. O conceito de «Marca d’água»
Arjen Hoestra De 1940 até 1990 o consumo mundial de água se multiplicou por cinco, enquanto que a população mundial se multiplicou por dois (...). Enquanto 9% da população mundial, privilegiada, consome quase três quartos da água doce disponível, quinhentos milhões de homens vivem em estado de estresse hídrico. (...) Se anuncia que em 2015 um bilhão e quinhentos milhões de homens não terão água suficiente. Marie-France, Dupuis-Tate y Bernard Fischesser.
nformações como a desta citação permitem uma abordagem quantitativa ao problema da água. Em termos práticos, e do ponto de vista do engenheiro enfrentando o desafio de projetar e implantar um sistema fotovoltaico para abastecer de água uma população, esta informação é útil para resolver o exercício de dimensionar o sistema encarregado de extrair a água. Este exercício tem interesse e se encaixa perfeitamente no escopo do que comumente se entende por «engenharia». Talvez por isso, tal exercício receba muita atenção em quase todos os textos disponíveis sobre tecnologia fotovoltaica. No entanto, duas razões fazem com que o exercício de «dimensionar a bomba» seja muito menos relevante do que parece indicar a importância que recebe nesses textos.
I
Por um lado, há a incerteza que inevitavelmente acompanha todo dado relativo à realidade rural. Na hora da verdade, sempre é difícil saber quantas pessoas vivem em uma determinada localidade e, ainda mais, saber quantas delas se abastecerão a partir de um determinado ponto de água e como esse número evoluirá no futuro. Para maior abundância, resulta que o custo final de um sistema de bombeamento, parâmetro que rege quase que religiosamente a atuação cotidiana dos engenheiros em geral, não é influenciado em grande medida pelo tamanho de um gerador fotovoltaico, sendo que outros itens independentes do tamanho (transporte, instalação, reservatórios, tubulação, formação, gestão, etc.) são os que no final representam a «parte do leão». A incerteza nos dados de entrada e o moderado impacto econômico do resultado se unem para fazer que cálculos muito detalhados careçam de sentido prático e que critérios de projeto quase que «a olho», na condição de serem razoáveis, conduzem a resultados tão bons como os modelos mais complexos. Por outro lado, e isso sim tem maior importância, o problema da água vai muito além do que representa simplesmente extraí-la. Além disso, é preciso acumulá-la, para garantir a continuidade de seu fornecimento; é necessário garantir que ela chegue em condições higiênicas saudáveis às pessoas; é preciso administrá-la, para que seu consumo se mantenha em níveis razoáveis; e é necessário estabelecer uma organização que mantenha as infra-estruturas em contínuo e correto funcionamento. E, outra vez, não há relação direta entre estas tarefas e o tamanho do sistema de bombeamento. Os assentamentos rurais são como mundos completos em miniatura, cujo tamanho não permite convocar grandes equipes de especialistas em diferentes áreas no momento de projetar e implantar equipamentos fotovoltaicos. Em vez disso, alguns poucos engenheiros, freqüentemente
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apenas um, devem responsabilizar-se por esse conjunto de tarefas, portanto precisam «entender» o «sistema de água» em todos seus aspectos. E este é um bom momento para dizer que, neste contexto, entendemos por «engenheiro» como a pessoa que trata com engenhos, em toda complexidade associada a esses sistemas, mais do que quem tenha obtido um título oficial emitido por uma universidade. Nesse sentido, o «engenheiro fotovoltaico» que lida com os problemas da água deve possuir uma bagagem de conhecimentos e habilidades mais próxima de um generalista do que de um especialista e deve entrar, inclusive, em terrenos que se consideram próprios de outros ramos do conhecimento, como a Sociologia ou a Antropologia. Insistir no conceito de «sistema» e ajudar o engenheiro a lidar com todos os componentes que estão associados com a água é precisamente o motivo principal deste texto e, também, o elemento diferencial que justifica sua elaboração e difusão. Um guia não teria sentido se não fosse assim, posto que, para tratar da parte estritamente tecnológica das bombas, existem já vários outros textos, alguns de notável qualidade. Algumas observações concretas servirão para adiantar o conteúdo deste texto: —
—
—
O problema da água existe em todos os lugares, e não só naquelas regiões afetadas por secas freqüentes. Para sua surpresa, o leitor deve saber que também as populações do Amazonas sofrem problemas de água 1. Este folheto trata deles com o mesmo interesse que dedica aos problemas que padecem as populações do Saara. De fato, a experiência comparada de ambas regiões é um de seus fundamentos. A maioria dos problemas que estão presentes nos sistemas de bombeamento fotovoltaicos práticos afeta os componentes não-fotovoltaicos do sistema. Os estudos feitos são unânimes em mostrar outras coisas: infra-estruturas convencionais, como reservatórios ou tubulações; posicionamento incorreto de equipamentos; choque com hábitos pré-existentes; falta de gestão, etc. E isso não deve ser entendido como um convite a relegar a um segundo plano os aspectos específicos da técnica fotovoltaica, senão como uma chamada de atenção para que tampouco o restante dos aspectos seja relegado. A final de contas, se a bomba fotovoltaica não bombeia, não há mais nada a dizer a respeito. Mas, se o faz, há muita coisa que fica por dizer. Nós, os engenheiros fotovoltaicos, contamos com a dádiva de uma tecnologia excepcionalmente confiável e, por isso e afortunadamente, com freqüência nos vemos diante da tarefa de lidarmos com esse muito que fica por dizer. É uma sorte, mas também uma notável responsabilidade, perante a qual nossa formação convencional se mostra claramente insuficiente. Complementá-la, colocando sobre a mesa a experiência acumulada ao longo de mais de dez anos por grupos de trabalho europeus, africanos e americanos é o objetivo principal deste texto. Com muita freqüência, os projetos de bombeamento fotovoltaico se desenvolvem no campo da denominada «cooperação para o desenvolvimento», no qual se entende que o engenheiro encarregado milita no «bando» dos benfeitores, com um papel destacado de protagonista; enquanto que os usuários finais da água militam no «bando» dos beneficiados, com um papel inerentemente limitado pela escassez de suas capacidades técnicas e econômicas. Assim, por exemplo, é raro que os usuários apareçam como contratantes nas solicitações de projeto, ou que se dedique uma atenção relevante ao estudo de seus costumes anteriores ao projeto. Sem embargo, por mais precário que possa parecer, sempre há um sistema de água anterior ao fotovoltaico e nele se enraízam as idéias e costumes dos usuários. Ignorá-los é como edificar uma casa sem atender à geologia do terreno onde este se assenta. Então, é grande a possibilidade de que apareçam rachaduras nas paredes e, inclusive, de que todo o edifício venha abaixo. Tão protagonista como o muro da casa é o cimento que o sustenta, e tão protagonista como o engenheiro que projeta a bomba
1. A Bacia Amazônica contém 15% dos recursos mundiais de água doce, mas apenas 0,3% da população mundial.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
fotovoltaica é a pessoa que se abastece com ela. Nos meios rurais, não cabem conceitos como o de «Turn-Key» («Chave na mão») nem há serviços profissionais que se encarreguem de operar os equipamentos. Cada localidade é um caso particular que se deve entender e cada equipamento é um instrumento diretamente nas mãos do usuário. É regra geral estruturar os projetos com base em uma atividade central fortemente tecnológica (o fornecimento de bombas, por exemplo) apoiada por algumas atividades paralelas (formação, etc.) que significativamente recebem o nome de «ações de acompanhamento». No fundo, esta divisão reflete a assimetria inerente ao conceito da dualidade benfeitor-beneficiado. O importante é o que faz o benfeitor, enquanto que o bom comportamento do beneficiado não recebe importância. No entanto, seria fácil defender a interpretação contrária, na qual o engenheiro fotovoltaico é precisamente o mais beneficiado (viaja, vê, vive, aprende), enquanto que o usuário é quem definitivamente assume o papel principal no cenário. Não avançaremos mais aqui nos detalhes desta outra interpretação da cooperação. Nos limitaremos simplesmente a deixar sua possibilidade, esperando que isso sirva de incentivo para o esforço de entender o que de verdade há na cabeça e no coração dos usuários.
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2. O que é e como foi feito este guia
ste guia que você tem em mãos, leitor, é um dos resultados do projeto intitulado «Implementation of a PV water pumping programme in mediterranean countries» (Implementação de um programa de bombeamento fotovoltaico nos países mediterrâneos), desenvolvido no âmbito do programa MEDA, que a União Européia realiza como parte de sua cooperação com os países da região mediterrânea.
E
A estrutura deste projeto, como a de quase todos, obedece a uma lógica que se pode enunciar como «primeiro fazer, para aprender, e ensinar depois, para difundir». De acordo com ela, o projeto se propôs, primeiro, a projetar e executar 52 sistemas fotovoltaicos de bombeamento de água, com um total de 256 kW, distribuídos pela Argélia (10 sistemas/ 59 kW), Marrocos (29/ 138,7 kW) e Tunísia (13/ 58,3 kW). O «fazer» destes sistemas fotovoltaicos foi uma tarefa extensa e, às vezes, dura, mas também extremamente interessante e frutífera. E dela participaram atores muito diversos. O financiamento direto veio da Comissão da União Européia e da Agência Espanhola de Cooperação Internacional, que foi dividido em 80% e 20%, respectivamente. Os participantes oficiais, ou seja, os assinantes do contrato com os financiadores foram o Instituto de Energia Solar da Universidade Politécnica de Madri, IES-UPM, que assumiu a coordenação, e a «Fondation énergie pour le monde» (FONDEM), da parte européia; e um órgão local de cada um dos três países envolvidos: o «Centro de Développemente des Energies Renouvelables (CDER) na Argélia, a «Agencie Nationnal pour la Maitrise de l’Energie (ANME), na Tunísia, e a ONG Tishcka, no Marrocos. O fornecimento e instalação das bombas fotovoltaicas foram objeto de um concurso público internacional, do qual resultou vencedor a empresa Isofotón, que, por sua vez, contou com a colaboração de contratados locais para a execução. Nas infra-estruturas hidráulicas, colaboraram diversas autoridades locais: CDER na Argélia, as delegacias de província do Comisariat Regional au Développement Agricole (CDRA) na Tunísia e as prefeituras de províncias de Ouarzazate e Zagora no Marrocos. E em todo o processo sempre estiveram bastante presentes os usuários. Essa diversidade de atores representa também uma diversidade de pontos de vista, e o mesmo deve ocorrer com as lições aprendidas ao longo de todo o caminho. Essa diversidade constitui a terra sobre a qual florescem os frutos que este projeto pode dar, portanto, não haveria nenhum sentido estabelecer uma lista ordenada de participantes em função de seu protagonismo. Para «ensinar» o que foi aprendido, o projeto também considerou uma diversidade de procedimentos de divulgação: uma página na internet, que inclui uma recompilação de documentos diversos e uma janela aberta a consultas externas; um Seminário de caráter internacional, realizado em Ouarzazate, durante o mês de dezembro de 2005; vários artigos apresentados em revistas e conferências científicas; e a redação deste guia sobre boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico de água. A iniciativa para a redação deste folheto foi do IES-UPM, como cumprimento de suas obrigações de coordenador do projeto. Sua condição de instituição universitária parece casar bem com a atividade de refletir e escrever; logo foi uma obrigação aceita com prazer. Mas, inevitavelmente, o conteúdo deste folheto deve refletir em boa medida seu ponto de vista particular, por mais que seja o resultado do aprendizado em uma tarefa comum. O exercício de escrever tem muito de diálogo entre quem escreve e um interlocutor imaginário que está na cabeça do escritor e que representa o protótipo do coletivo para quem vai dirigido o texto. Pois bem, este texto, ainda que mantenha a pretensão de interessar a um público bastante geral, foi 15
escrito utilizando como interlocutor imaginário um engenheiro empenhado na implantação de projetos concretos, executados em lugares concretos e no âmbito da cooperação. Para que seu empenho chegue a um bom resultado, este engenheiro deverá, primeiro, imbuir-se de paciência e ânimo, que precisará para lidar com uma série de «barreiras» com forte carga de burocracia (solicitações, relatórios, orçamentos, alfândega, notas fiscais, etc.) e onde não faltará a incompreensão e falta de apoio de alguns que, por conta de seus cargos, deveriam se mostrar mais favoráveis. Finalmente, chegará a um povoado e deverá tomar muitas decisões, de ordem técnica e também humana, até conseguir que o projeto seja posto em funcionamento. Este guia está dirigido especificamente ao engenheiro que se encontra precisamente nesta situação. Por outro lado, o que o IES-UPM possa conhecer sobre bombeamento fotovoltaico não procede unicamente da experiência obtida neste projeto MEDA. Como bem disse o poeta, «se faz o caminho ao andar». Felizmente para nós que trabalhamos nele, o caminho do IES-UPM foi feito por outros projetos além deste, e nos levou a trocar experiências com outros empenhados no mesmo que nós. Nesta comparação de experiências aprendemos muitas coisas e ganhamos em generalidade: se o mesmo que ocorreu comigo também aconteceu com outro, a coisa deve ter algo de interesse geral. E para conferir generalidade ao que se diz aqui, convidamos nossos colegas do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo, IEE-USP, a participar conosco ativamente na elaboração deste guia. Sua grande experiência em bombeamento fotovoltaico procede de um contexto geográfico muito distante do nosso, o que não foi impedimento para que entre ambos institutos, ou se assim for preferido, entre as pessoas que trabalham em ambos institutos, haja se desenvolvido um certo sentimento de afinidade que nos permite «cooperar» com fluidez, inclusive em ocasiões como esta, nas quais não estamos formalmente ligados a um mesmo contrato. Assim como as chaves entram nas fechaduras simplesmente porque as formas de umas se parecem às das outras, e não porque sejam de melhor ou pior qualidade, as afinidades são, em boa medida na vida, uma questão de sorte. Assim, pois, o convite do IES-UPM ao IEE-USP não corresponde à pretensão de que o grupo de redatores deste folheto seja particularmente excelente. Corresponde, sim, como foi dito, à idéia de mostrar ao leitor que o que aqui é dito, mesmo tendo sido inspirado por experiências concretas, pode ter muito de validade geral. Por último, ocorre que o trajeto particular do IES-UPM transcorreu em grande parte no Marrocos. De fato, a belíssima região ao sul do Atlas vem sendo alguma coisa como a nossa segunda casa já há oito anos. Não temos reservas de confessar que foi precisamente o intento de manter nossa presença no Marrocos o que serviu de incentivo para vencer a preguiça que gera a perspectiva de ter que superar a grande burocracia —ilustrada, isso sim— a que é obrigada a coordenação de um projeto como este. Das coisas do Marrocos e da região onde se levou a cabo este projeto já sabíamos muito, antes mesmo de iniciá-lo. E temos que dizer que isto não teria sido possível sem a generosa e contínua colaboração de Tishka, a ONG local que é encarregada da interlocução direta com os usuários. A própria inércia das realizações levou a que fosse precisamente o Marrocos o local onde mais equipamentos tenham sido instalados e com maior rapidez. E por isso mesmo Marrocos está muito presente neste guia.
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3. O sistema de água
ualquer tecnologia pode ser entendida como um «sistema» constituído por três elementos bem diferenciados: o hardware, ou conjunto de meios técnicos com suas características peculiares. O software, ou conjunto de métodos e procedimentos que regem o emprego de tais meios técnicos, ou seja, o comportamento e o saber-fazer dos usuários. E o orgware, ou estrutura organizativa sobre a qual se apóia a manutenção do serviço e por meio da qual o sistema interage com outros de natureza diferente.
Q
Todo grupo humano, por mais pobre e primitivo que seja, dispõe de alguma infra-estrutura tecnológica (vasilhas, roldanas, bacias, carrinhos de mão, etc.) para se abastecer de água, e que esta infraestrutura é acompanhada de outros elementos do sistema (costumes, horários, pessoas responsáveis, pontos de venda, etc.). Portanto, todo projeto de bombeamento fotovoltaico representa uma alteração, quase sempre muito importante, de um sistema tecnológico pré-existente. Assim, o processo de implantação de um projeto, longe de se assemelhar a escrever sobre um papel em branco, se parece mais com escrever sobre um papel no qual já existem algumas linhas traçadas. Entender quais são estas linhas, quais marcas deixam sobre o papel, etc. é, obviamente, uma necessidade para que o novo texto seja compreensível e para que o papel se degrade o menos possível. Em geral, o manuseio tradicional (anterior ao projeto fotovoltaico) de água para uso doméstico se ajusta à combinação de dois sistema associados a usos finais diferentes: o consumo humano (para beber, fazer o chá, cocção de alimentos e lavar utensílios de cozinha) e outros usos (higiene pessoal, lavar roupa, dar de beber ao gado, regar pequenos jardins, etc.). Ambos sistemas estão geralmente bem diferenciados desde sua origem. As fontes de água para o consumo humano são escolhidas principalmente pela melhor qualidade da água (sabor e aparência), enquanto que a escolha de fontes destinadas a outros usos atende ao menor esforço requerido para sua elevação e transporte. No Saara (figuras 1 a 3), a água para o consumo humano é extraída manualmente de poços cuja água tem melhor sabor (às vezes apenas um para todo o povoado), com a ajuda apenas de uma corda, uma roldana, um balde com o qual se enchem vários garrafões de plástico, tipicamente de 5 litros de capacidade, que são transportados às residências por meio de asnos ou, se a distância é superior a algumas centenas de metros, com a ajuda de carrinhos de mão. Esses mesmos garrafões servem para armazenar a água nas residências até o momento de sua utilização. Quando se trata de bebê-la diretamente, ela é colocada em uma botija de barro poroso que ao refresca por evaporação, favorecida pela baixíssima umidade relativa característica do clima desta região (figura 4). Mulheres e crianças são encarregadas de ir ao poço para pegar água e esta tarefa é feita duas vezes ao dia. O sistema associado a outros usos difere do anterior pelo fato de que os trabalhos de extração e transporte são reduzidos o quanto possível (poços e rios próximos às residências, independentemente da qualidade da água, bebedouros próximos ao rio, etc.) e também por serem os homens que principalmente se encarregam deste.
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Figura 1. Extração manual de água.
Figura 2. Distribuição à base de garrafões de plástico.
Figu Figura ra 3. Trans ranspo port rtee de de águ água, a, apro aprove veit itan ando do a tra traçã ção o ani anima mall
Figu Figura ra 4. Arma Armaze zena name ment nto o em garra garrafõ fões es de plá plást stic ico o e recip recipie ient ntes es cerâmicos.
Também é freqüente encontrarem-se sistemas baseados em bombas de eixo vertical e movidas por motores Diesel, acionadas por correias de transmissão, como se vê na figura 5. Esta tecnologia, hoje considerada obsoleta, é pouco confiável e fomenta maus hábitos no manejo da água. Por um lado, a própria operação desses motores dá lugar a ambientes muito sujos (manchas de óleo, combustível, etc.) e, por outro, as transmissões mecânicas por correia forçam a que se mantenham os poços abertos e, portanto, expostos à entrada de toda sujeira do ambiente. No passado, essas bombas representaram uma grande ajuda para as populações rurais e é certo que a necessidade de gerenciá-las (operação, combustível, reparos, etc.) fomentou muitas vezes boas práticas de organização, como a medição e tarifação de água; mas também a grande convivência com aqueles maus hábitos de manejo contribuiu a relegar a qualidade sanitária da água ao último lugar das preocupações dos usuários.
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Figura 5. Bomba acionada mediante um motor a diesel através de uma correia de transmissão.
Na Amazônia, a fonte de água para consumo humano usualmente é algum manancial ou riacho de água a mais clara possível, sendo que também se recorre ao armazenamento de água da chuva (figura 6); enquanto que a fonte de água para o resto dos usos é invariavelmente o rio («igarapé») mais próximo (figuras 7 e 8), aos quais recorrem as pessoas para se lavarem e ao qual transportam as roupas e outros objetos para serem lavados. Por estranho que possa parecer aos olhos do não-iniciado —acostumado a associar a Amazônia com uma grande e cômoda disponibilidade de água— é freqüente, particularmente no final dos períodos de seca, que as distâncias que as populações têm de percorrer para acessar a água sejam de vários quilômetros (figura 9), como também a água, geralmente muito parada, tenha um aspecto muito turvo e seja de má qualidade.
Figura 7. «Barreiro» escavado perto de rio para utilização doméstica de água.
Figura 6. Captação de água da chuva.
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Figura 8. Água de «igarapé» na época da seca. A eutrofização é evidente
Figura 9. Mulheres carregando água para as residências
3.1. Prioridades Estudos mais detalhados desses sistemas, nos quais se analisam as peculiaridades de seus três componentes e as conseqüências que deles derivam no momento de se implantarem projetos de bombeamento fotovoltaico nessas zonas, podem ser encontrados em várias referências 2,3, diretamente acessíveis pela Internet. Aqui, nos limitaremos a enfatizar que as prioridades que, em nosso entendimento, os usuários rurais percebem se dão na seguinte ordem: confiabilidade no fornecimento, sabor da água, esforço realizado no manejo e, por último, a qualidade sanitária da água. O estabelecimento dessa ordem de prioridades não resulta de perguntas diretas aos usuários, método este que pode resultar muito equivocado 4, senão da observação de alguns detalhes particularmente relevantes.
3.1.1. Confiabilidade Por exemplo, no Saara se pode constatar que quando um poço está situado fora do povoado, ou seja, a uma certa distância das casas, cada família que busca água o faz com sua própria corda e balde para retirar a água do poço. Este procedimento representa um claro atentado contra a qualidade sanitária da água, na medida em que o próprio manejo desses elementos (que são guardados de um dia para o outro nas dependências dos animais, etc.) leva sujeira para a água. Sem embargo, este tem a vantagem de garantir a segurança de se dispor dos equipamentos sempre que se vai ao poço, em contraste com o que ocorreria com um equipamento comunitário, cuja manutenção em boas condições é sempre mais difícil de se assegurar, o que tornaria bastante provável o cenário de se caminhar até o poço e encontrar-se sem meios de retirar água. Portanto, isso pode ser interpretado como uma manifestação da prioridade que os usuários dão à confiabilidade, neste caso, em detrimento da qualidade sanitária da água. Por razões similares, se observa uma marcada preferência pelo fornecimento de água de poços situados em terras comunitárias e não de um único proprietário, o qual sempre poderia se ver tentado a impedir o acesso à água e a criar situações conflitivas.
2. Fedrizzi, Maria Cristina. Sistemas fotovoltaicos de abastecimiento de água para uso comunitario: Licões apreendidas e procedimentos para potencializar sua difusão . Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. http://www.iee.usp.br/biblioteca/producao/2003/Teses/Tese_Cristina_Fedrizzi.pdf. 3. Narvarte Fernández, Luis. Hacia un paradigma en la electrificación rural descentralizada . Universidad Politécnica de Madrid, Madrid, 2001. http://138.4.46.62:8080/ies/index.html. 4. O leitor que tiver dúvida pode perguntar a seus conhecidos quanta importância dão ao conteúdo dos programas que a televisão apresenta e comparar os resultados com o tempo que dedicam a eles.
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3.1.2. Sabor O sabor da água está relacionado essencialmente com a concentração de sais dissolvidos nela. Quanto maior a salinidade, pior o sabor. A salinidade é expressa em gramas de sal por litro de água, g/l. A medida da condutividade, ou condutância específica, da água é um meio para se avaliar sua salinidade. Quanto maior a salinidade, maior a condutividade. A condutividade é expressa em microsiemens5 por centímetro, µS/cm, e existem equipamentos que a medem diretamente. A tabela 1 apresenta uma interpretação aproximada da relação entre condutividade, salinidade e qualidade da água em termos de sabor. Tabela 1. Relação entre salinidade e sabor da água
Conductividade µS/cm
Salinidade g/l
Qualidade
de 0 a 400 de 400 a 750 de 750 a 1500 mais de 1500
De 0 a 0,25 de 0,25 a 0,5 de 0,5 a 1 mais de 1
boa média medíocre má
A dissolução de sais na água depende essencialmente da composição da rocha sobre a qual está o aqüífero e do tempo que esta permanece em contato com a rocha. Em determinadas circunstâncias, a própria extração da água tende a salinizar os aqüíferos, o que não é raro encontrarem-se poços que tenham sido abandonados por esta razão. A importância que as pessoas dão ao sabor da água se manifesta no fato de que, em quase todos os lugares que conhecemos, a fonte de água destinada ao consumo humano é a única que foi escolhida atendendo quase que exclusivamente a este particular e independentemente de sua distância às casas, que, algumas vezes, chegam a ser de vários quilômetros.
3.1.3. Esforço Uma vez garantida a quantidade de água, e quando é para consumo humano também o seu sabor, as populações procuram minimizar o esforço que devem empenhar na sua extração e transporte. Tal esforço costuma ser muito grande por si próprio e é ainda maior quando se analisa o contexto de escassa disponibilidade energética que assola as populações rurais. A seção 3.3 se aprofunda nesta análise.
3.1.4. Qualidade Sanitária Por estranho que possa parecer aos olhos de nós que vivemos na cidade e estamos habituados a comprar água engarrafada para garantir sua higiene, esta qualidade ocupa um lugar muito pouco relevante entre as preocupações das populações rurais. A compreensão desse fato não tem por que ser sinônimo de aceitá-lo com resignação, mas é de importância capital nos projetos de abastecimento de água. A seção 3.4 trata especificamente deste aspecto. Já foi dito que o processo de implantação de um projeto de bombeamento pode ser entendido como a mudança de um sistema tecnológico para outro. O primeiro está associado com os procedimentos tradicionais para o suprimento de água, enquanto que o segundo está ligado à bomba fotovoltaica.
5. O siemens é a unidade de medida da condutância no Sistema Internacional. Equivale ao recíproco do ohm.
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Pois bem, um princípio básico da teoria dos sistemas ensina que todo processo de troca passa obrigatoriamente por uma fase instável de transição que pode conduzir a um novo sistema estável (a bomba fotovoltaica funciona corretamente, os usuários se sentem satisfeitos e existe uma estrutura de manutenção eficaz) ou à destruição e abondono do novo sistema. Na primeira situação, dizemos que o projeto teve êxito, enquanto que, na segunda, falamos de fracasso. E outro princípio básico da teoria de sistemas ensina que o que se segue a uma ou outra situação depende essencialmente do «grau de novidade» contido na inovação, entendido como a medida das diferenças entre o sistema inicial (o tradicional) e o sistema final (o da bomba fotovoltaica). Quanto maior é o grau de novidade, maior o risco de fracasso. A c onclusão é que, para que um projeto tenha êxito, há que se procurar minimizar essas diferenças 6. Dessa idéia podem ser derivadas regras concretas de atuação na prática. Respeitar as prioridades dos usuários dos sistemas é a mais importante. E isso quer dizer que o projeto (da bomba fotovoltaica e do resto dos equipamentos: poços, reservatórios, tubulações, etc.) deve atender prioritariamente a confiabilidade; que a bomba, se estiver destinada à água para consumo humano, deve ser instalada precisamente no poço que proporciona a água de melhor sabor; e que, se se pretende que as pessoas utilizem prioritariamente a água da bomba fotovoltaica, é preciso diminuir o máximo possível o trajeto entre os pontos de abastecimento e as casas. De fato, o respeito a essas prioridades é tão importante, que qualquer intenção de avançar nos aspectos formativos e organizacionais que sustentam todo o projeto está condenada ao fracasso se previamente os usuários não estiverem convencidos de que a água sempre sai pelas torneiras e que tem um gosto bom. Assim, o processo de implantação de um projeto pode ser bastante rápido se nas vizinhanças de um lugar já existe alguma outra bomba fotovoltaica que funcione bem (as conseqüentes notícias terão convencido os usuários da qualidade desta tecnologia); mas deverá ser bastante mais lento onde não exista experiência fotovoltaica prévia (será necessário manter-se a bomba em perfeito funcionamento durante alguns meses, para que os usuários vejam por si mesmos 7 que se trata de um equipamento confiável, antes de realizarem-se atividades efetivas de formação e organização); e será ainda mais lento onde anteriormente houve uma má experiência fotovoltaica (então, a espera deverá se prolongar até que os usuários se convençam de que não ocorrerá com a bomba o que sabem, ou supõem, ocorreu com a anterior). Praticamente todas as culturas têm algum refrão do tipo «quem dá primeiro dá duas vezes». Tem razão! Há muitas outras regras de atuação que podem se originar da idéia de tentar minimizar o grau de novidade. Alguns exemplos são:
6. A vida cotidiana esta cheia de situações que podem servir de comparação. Por exemplo, o agradável costume de tomar sol na pria é algo que, salvo raras exceções, não é practicado no inverno, mas sim no verão. Pois bem, se no primeiro dia que vamos à praia permanecemos muitas horas ao sol (o que para a pele desacostumada representa um grau de novidade muito elevado) o resultado é uma queimadura desagradável. Agora bem, se no primeiro dia não ficamos ao sol mais do que alguns minutos (grau de novidade baixo), e nos dias sucessivos incrementamos pouco a pouco o tempo de exposição (o grau de novidade se mantém, de um dia para o outro, relativamente baixo), o resultado é um atrativo bronzeado. Assim, portanto, o resultado final (queimadura ou bronzeado) depende essencialmente do grau de novidade que a pele deve «digerir» em cada caso. Pela mesma razão, tudo que se faz com pressa tem qualidade inferior do que se faz com calma. 7. Maquiavel, falando sobre a timidez com que os beneficiários de uma novidade defendem a seu promotor, diz: esta timidez nasce em parte da incredulidade dos homens, os quais —em realidade— nunca crêem no novo até que adquirem uma experiência firme deste. (O Príncipe, VI).
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
— As pessoas ou grupos sociais relacionados com os assuntos de água devem ser reconvertidos para que mantenham uma posição efetiva equivalente na organização associada à nova bomba. Em particular, o papel prioritário que as mulheres têm no abastecimento tradicional de água faz com que estas devam se sentir parte importante na organização do novo sistema. — Nos lugares onde o abastecimento de água estiver associado a costumes sociais bem enraizados —por exemplo, locais onde ir ao poço sirva como ocasião para reuniões cotidianas— convém optar por distribuir a água por meio de fontes públicas colocadas nos mesmos lugares onde tais costumes se manifestam. — Nos lugares onde a vida transcorre principalmente no interior das casas, convém pensar em sistemas de distribuição que levem a água até o interior das mesmas. Novamente, o leitor interessado em se aprofundar nestes temas pode procurar, por exemplo, a referência 8.
3.2. Consumo de água A descrição da classificação da água para uso doméstico com base na combinação de dois sistemas é útil, também, para entender o consumo de água e, como conseqüência, para estimar o que deve proporcionar uma bomba fotovoltaica. A tabela 2 resume as observações em campo.
Tabela 2. Consumos de água para uso doméstico observados em campo
Sistema
Litros por pessoa dia Meios manuais
Consumo humano Outros usos
de 5 a 10 muito variável
Meios mecânicos de 15 a 20 de 10 a 25
O incremento de consumo ligado à utilização de meios mecânicos (bombas a Diesel, elétricas, etc.) é conseqüência da diminuição de esforço que representa para as pessoas. Obviamente, quanto menor o esforço, maior o consumo. Para estimar o consumo futuro de água, é importante considerar a forma que se adotará para a rede de distribuição e a possível existência de outras fontes de água. Na hipótese de que o poço escolhido para a instalação da bomba fotovoltaica proporcione água suficiente e de boa qualidade, uma rede de distribuição que permita levar água até o interior das casas faz que a água que sai pelas torneiras seja a de melhor sabor (utilizada, portanto, para o consumo humano) e a que se obtém com menor esforço (e, portanto, destinada para outros usos). Então será necessário pensar em bombear até 45
8. Everett M. Rogers, Diffusion of innovation, 3ª ed., 1995.
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litros de água por pessoa por dia. Entretanto, nos locais onde a rede de distribuição se limitará a levar água até algumas fontes públicas e existam, ainda, outras fontes de água de fácil acesso, bastará fornecer 20 litros de água por pessoa por dia. É preciso salientar que os dados disponíveis na literatura sobre consumos de água observados em meios rurais são bastante escassos e, os que existem9,10,11 exibem uma grande variabilidade, que reflete o amplo leque de situações que podem ocorrer na prática, inclusive dentro de uma mesma região. Neste contexto, certamente difuso, os valores entre 20 e 45 litros por pessoa por dia, sugeridos aqui como base para o projeto de bombas fotovoltaicas, geralmente conduzem a situações bastante cômodas durante os primeiros anos de funcionamento dos projetos. Não obstante, é preciso considerar que a grande dinâmica das populações rurais (afetadas por fenômenos como alta natalidade, retorno de emigrantes durante os períodos de férias, incrementos pontuais durante as épocas de colheita, etc.) obriga a considerar o cenário de ter que fornecer água para mais pessoas do que as que constituem a população estável no momento de implantação do projeto12. Por outro lado, também é preciso considerar que, como veremos, o custo de sobredimensionar as bombas é relativamente pequeno, posto que afeta apenas o tamanho do gerador fotovoltaico e que este não representa mais de 20% do custo total dos projetos.
3.3. Água e energia O esforço que devem empenhar os que se abastecem de água pelos meios tradicionais é bem evidenciado quando o analisamos sob a ótica das limitações energéticas próprias da natureza humana. São oportunas as seguintes considerações. — A maneira como as pessoas trabalham melhor mecanicamente é de forma relativamente suave e durante longos períodos de tempo. O ótimo para o trabalho diário se situa em torno de 7 horas de trabalho efetivo. Nestas condições, a potência mecânica que desenvolve uma pessoa-padrão é de aproximadamente 70 W, caso seja um homem, e de 60 W se se trata de uma mulher. Estes valores supõem que o trabalho se realiza essencialmente com as pernas, que a evolução modelou no sentido de tornar bastante eficientes energeticamente, ainda que bastante desajeitadas, o que limita o espectro de atividades que podem ser feitas com elas, o que normalmente se denomina por «trabalho bruto». Quando se trata de realizar trabalhos que requerem certa habilidade, é necessário recorrer aos braços e mãos e, então, a potência mecânica externa que os humanos desenvolvem não passa de 20 W para os homens e 15 W para as mulheres 13.
9. A. Hänel, L. Hoang-Gia, F. Kaboré, B. S. Sy, «The performance of PV pumping systems in the CILSS-Regional Solar Programme: One year of monitoring results in 10 systems» , 13th European Photovoltaic Solar Energy Conference, 482-485, Nice (1995). 10. M. Fedrizzi, R. Zilles, H. Noda, «PV systems implementation experience in the Brazilian Amazon Rain Forest» , VI World Renewable Energy Congress, 875-878, Brighton, (2000). 11. L. Narvarte, E. Lorenzo y M. Aandam, «Patrones de consumo de agua en sistemas rurales de bombeo fotovoltaico», Era Solar , 109, 20-29 (2001). Accesible también en www.ies-def.upm.es. 12. Em Iferd, um povoado no sul marroquino, foi instalada uma bomba fotovoltaica em fevereiro de 1997. O número de casas foi incrementado de 55, à época da instalação, para 80, atualmente. A primeira bomba, de 3,3 kW, teve que ser trocada por outra de 8,5 kW. 13. É interessante comentar que estas cifras, ainda que pareçam pequenas em relação à potência das máquinas que povoam o entorno cotidiano das sociedades modernas (um liquidificador elétrico: 500 W, uma geladeira: 200 W; um carro: 20.000 W, etc.), se comparam favoravelmente com as correspondentes a outros animais e ajudam a explicar a vantagem adquirida pelos humanos na competição pelos recursos da natureza.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
— O esforço necessário para a elevação de água, W, é dado pelo ganho de energia potencial dividido pela eficiência da máquina utilizada para elevá-la η , ou seja: W =
m.g.h η
onde que g representa a constante da gravidade e m e h , a massa e a altura da água. Por exemplo, içar manualmente 100 l de uma altura de 20 m, sem outra ajuda que a de um balde e uma corda e uma roldana, exige: 0,1 m3 1000 Kg 9,8 m2 20 m 3 m s = 65 kJ = 18 Wh W= 0,3
O que, considerando-se as potências mostradas anteriormente, requer mais de uma hora de trabalho de uma mulher. Neste cálculo estimou-se que a eficiência do conjunto balde-corda-roldana não é superior a 30%, atendendo à elevada carga que representam. Estas cifras ajudam a entender a sucessão histórica de máquinas para elevar água. Primeiro (2000 a.C) foi a manivela, movida a mão, mas que utiliza um contrapeso para compensar a carga que representa o recipiente no qual se extrai a água. Depois ( ≈ 300 a.C) as bombas de pedal que, com base nas pernas, permitiram incrementar a potência mecânica aplicada e, com ela, os volumes de água. Tanto as bombas manuais como as movidas a pedal, ainda que tecnologicamente menos evoluídas, seguem vivas na atualidade, nos locais onde não chegam a rede elétrica nem os combustíveis fósseis… nem os painéis fotovoltaicos. Os três podem ser vistos como formas de substituir o trabalho humano, que agora sabemos escasso, por outras formas mais abundantes de trabalho mecânico. Ao preço, isso sim, de incrementar a complexidade do sistema tecnológico correspondente. — O esforço que exige o transporte de água pode ser estimado pensando-se que uma pessoa carregada com um balde de água na cabeça (~ 12 kg) pode caminhar à velocidade de 3 km/h. Assim, o simples abastecimento doméstico de uma família de 10 pessoas, a partir de um poço de 20 m de profundidade situado a 1 km de distância da casa, equivale ao trabalho de uma mulher durante cerca de 6 horas. Como forma de comparação, um sistema de bombeamento fotovoltaico alimentado por um gerador de 1 kW de potência nominal e que elevasse a água até um reservatório situado a 10 m sobre o solo (para favorecer o transporte da água até o ponto de consumo) poderia realizar a mesma tarefa em apenas 2 minutos, e poderia trabalhar diariamente nesse ritmo durante cerca de 5 horas. Então tal bomba realizaria um trabalho de apenas 1.200 Wh (equivalente ao consumo elétrico de uma geladeira convencional). Mas poderia substituir o trabalho de cerca de 300 mulheres! Naturalmente, o leque de situações que podem ser encontradas na realidade é muito mais amplo (diversas distâncias e alturas, diversos meios de transporte: burros, carrinhos de mão, etc.), de tal forma que não será difícil ao leitor imaginar e analisar muitos outros exemplos tão representativos como o desenvolvido aqui. A conclusão final será sempre que o aporte de energia externa aos meios
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rurais, ainda que as quantidades pareçam pequenas em termos absolutos, traz benefícios muito importantes em termos de aliviar a situação das pessoas. O excedente de tempo correspondente, em relação à situação anterior, pode ser empregado em outras atividades que resultem na melhoria de condições de vida: lazer, higiene, educação, negócios, etc. Nesse alívio e em suas conseqüências reside, em última instância, o potencial de ajuda ao desenvolvimento que as bombas fotovoltaicas abarcam. Além disso, representam uma possibilidade real de melhora da qualidade sanitária da água que as pessoas bebem, se a estrutura de distribuição (tubos, reservatórios, torneiras) for projetada com a devida atenção.
3.4. Água e higiene Os europeus não adotaram o quarto de banho no domicílio até o século XIX. E até que Pasteur não demonstrou que se bebia 90% das enfermidades não se implantaram verdadeiros programas de saneamento e controle das água. Mas, ao tornarem-se mais limpos, os homens sujaram enormes volumens de água. (...). A contaminação das águas constitui um dos aspectos mais inquietantes de nossa civilização. Uns 20 bilhões de toneladas de resíduos diversos terminam cada ano nos aceanos. Marie-France, Dupuis-Tate y Bernard Fischesser
A figura 10 mostra mulheres carregando água em um manancial, com os burros dentro da água, como meio de facilitar o carregamento, ainda que o procedimento vá contra a qualidade higiênica da água. Este fato, chocante à primeira vista, é compreensível quando se considera a magnitude do esforço necessário para o abastecimento de água por métodos manuais, tal como vimos na seção anterior.
Figura 10. Precariedade na higiene da água que se transporta para consumo.
A figura 11 mostra garrafões de plástico reciclados para transportar água às casas. A fotografia foi feita no centro-oeste do Brasil não teria nada de particular se não fosse pelo fato de os garrafões procederem do transporte de pesticidas! As boas propriedades mecânicas (exigidas para o manuseio de substâncias tóxicas) facilitam o esforço necessário ao transporte de água, independente do risco de envenenamento! O tratamento de reciclagem que os usuários realizam se limita a lavá-los com água e sabão até que desapareça o cheiro do pesticida!
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
Figura 12. Menina bebendo água diretamente do «igarapé». Figura 11. Garrafões de pesticida utilizados para transportar água.
Ao escasso cuidado que as pessoas têm com a higiene da água soma-se o fato de que, para chegar até a mesa, a água corre por uma infraestrutura aberta em inúmeros pontos (no caso da figura 10, o próprio manancial, e no caso da figura 12 o rio, cujas águas se utilizam directamente, com o risco consequente) que, como conseqüência, permite que a sujeira entre com muita facilidade. As figuras 13 e 14 são outros exemplos disso.
Figura 13. Reservatório de água com ventilações abertas, com risco de entrada de insetos.
Figura 14. Más condições de armazenamento de água para consumo humano.
A partir de uma perspectiva urbana, parece estranho que as pessoas dos meios rurais se mostrem conformadas com situações como as descritas aqui. Sem embargo, temos que recordar que o que hoje são cidades modernas foram tradicionalmente lugares muito insalubres, até que, no final do século XIX, foi difundido o uso da máquina a vapor alimentada por carvão, que permitiu o fornecimento de água em quantidade e com qualidade, e foram instaladas redes de distribuição e coleta de esgoto, que estenderam o serviço à maioria das residências. O certo é que, quando se vive em condições insalubres, e a energia disponível é escassa, a preocupação com a higiene da água não faz sentido. Nós humanos temos natalidade elevada e, nessas condições, é mais rentável energeticamente repor as perdas causadas pela insalubridade do que lutar diretamente contra ela. Não é por casualidade que as taxas de natalidade mais elevadas ocorram precisamente entre as populações mais pobres. Agora bem, compreender esta situação não tem por que levar necessariamente a conformar-nos com ela. O engenheiro fotovoltaico, quando projeta uma bomba destinada ao abastecimento humano,
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dispõe de uma ótima oportunidade de alterar essa situação e lutar diretamente contra a insalubridade. A ocasião proporciona a possibilidade de implantar infra-estruturas fechadas (incluída a fonte), que não permitam a entrada de sujeira na água. Adicionalmente, pode incluir no sistema dispositivos para a cloração. Pelo visto na seção 3.1, não é de se esperar que os usuários tenham no início a mesma preocupação que você com a qualidade sanitária. No entanto, a partir do respeito às outras prioridades dos usuários (em particular, a confiabilidade no fornecimento), é perfeitamente possível aproveitar o clima de confiança e credibilidade para, abonado pelo bom funcionamento das bombas, tentar educar os usuários (que agora dispõem de um excedente de tempo liberado pela bomba fotovoltaica) no sentido de incorporar a qualidade sanitária às suas preocupações cotidianas. A seção 4.2.1 mostra um material didático pensado para servir de ajuda nesta tarefa. Desenvolvido no escopo deste projeto MEDA, foi recebido muito bem pelos usuários quando utilizado em seminários destinados a melhorar a educação e capacidade de gestão destes. É preciso dizer que tais seminários foram realizados quando as bombas estavam em perfeito funcionamento havia já vários meses, portanto os usuários estavam entusiasmados com a nova tecnologia e a confiança comandava suas relações com os promotores do projeto.
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4. Projetos fotovoltaicos de abastecimiento de água
em prejuízo da perspectiva sistêmica proposta na seção anterior, as atividades que o projeto envolve podem ser classificadas em dois grandes blocos, segundo afetem os equipamentos ou as pessoas, respectivamente. Agora nós utilizaremos esta forma de mostrar as coisas, pois tem a vantagem de apoiar-se em um vocabulário com o qual o leitor talvez esteja mais habituado. Abusando da linguagem, utilizaremos o termo «engenharia» para nos referir ao que corresponde aos equipamentos e o termo «antropologia» para nos referir ao que diz respeito às pessoas. Agora, convém evitar a tentação de pensar que ambas coisas podem ser tratadas isoladamente por diferentes especialistas. Ou seja, uma coisa tratada pelos «engenheiros’ e outra, pelos «antropólogos». De fato, isto foi tentado várias vezes no âmbito da eletrificação rural fotovoltaica, mediante a criação de equipes multidisciplinares, sem que em nenhum caso se tenha chegado a resultados particularmente brilhantes. Qualquer um que tenha trabalhado em uma equipe multidisciplinar sabe que se trata de uma tarefa muito difícil. Nas palavras de F. Butera 14 :
S
Cada componente se comunica com o outro por meio da linguagem de sua própria disciplina e concede à sua disciplina grande importância. Quando o grupo começa a trabalhar conjuntamente, resulta ser uma mescla heterogênea de indivíduos, cada um falando sua própria linguagem, que resulta desconhecida aos demais (não-reconhecimento da mensagem). Isto se complica ainda mais pelo fato de que a aparência é como se efetivamente houvesse uma compreensão mútua. De fato, a mesma palavra pode ter um significado no domínio da história da educação de quem a diz, e outro diferente no campo educativo de quem a escuta.
Portanto, temos que insistir na necessidade de que todo aquele que vá envolver-se na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico entenda, por sua vez, de sua engenharia e de sua antropologia, mesmo que faça parte de uma equipe com pessoas de outras disciplinas. Uma fez dito isto, é importante esclarecer que todos os autores deste trabalho têm seu próprio histórico acadêmico como engenheiros e que todos já fizeram parte de grupos interdisciplinares.
4.1. Engenharia Os sistemas de bombeamento fotovoltaico estão geralmente constituídos pelos seguintes componentes (Figura 15):
14. F. M. Butera, Renewable Energy Sources in Developing Countries: Successes and Failures in Technology Transfer and Diffusion, Progetto Finalizzato Energética, pg 134, Roma (1989).
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Figura 15. Partes de um sistema de bombeamento fotovoltaico.
•
Um gerador fotovoltaico, composto de módulos fotovoltaicos interconectados eletricamente, até constituir uma unidade de produção CC, e uma estrutura mecânica de suporte.
•
Um sistema de condicionamento de potência, constituído por um conversor CC/AC, capaz de variar a freqüência e a tensão de saída, em função da potência disponível no gerador, que, por sua vez, é função da irradiância que incide sobre ele.
•
Uma motobomba submergível, constituída pela associação de um motor elétrico de indução e uma bomba centrífuga ou de deslocamento positivo.
Um sistema de fiação elétrica, por onde circula a energia desde o gerador até o motor e que incorpore funções de vigilância e segurança.
•
Uma infra-estrutura hidráulica, que conduz a água desde a fonte, geralmente um poço, até os pontos de fornecimento e que, por sua vez, está constituída por quatro elementos: a própria fonte de água, a condução entre a fonte e a entrada de um reservatório, o reservatório, e a condução deste reservatório até os pontos de fornecimento. Nesta definição, entendemos por condução o conjunto de tubulação, dispositivos de medição e a interface c om o usuário: torneiras, fontes, etc.
•
Um sistema de potabilização de água, nos locais onde as condições sanitárias o façam necessário.
A maioria das bombas fotovoltaicas atuais para fornecimento de água potável a populações rurais corresponde a este esquema e sua faixa de operação se situa entre 50 e 400 m 4 (volume x altura) por
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
dia. Outras configurações (bombas não-submergíveis, baterias, bombas de aríete, etc.) são possíveis e inclusive estão presentes em alguns setores do mercado, principalmente quando os volumes a serem bombeados são pequenos: residências, etc. Em particular, para faixas de operação entre 50 e 400 m 4 por dia, o mercado oferece alguns bons equipamentos com bombas que operam diretamente em CC; isso porque os motores são feitos dessa maneira ou porque incorporam fisicamente o sistema de condicionamento de potência no mesmo bloco. Para uma descrição mais detalhada do estado-da-arte do bombeamento fotovoltaico, remetemos o leitor para as referências citadas no pé-de-página 15. A engenharia dos sistemas fotovoltaicos deve ser orientada de modo que estes equipamentos sejam confiáveis, seguros para as pessoas, eficientes energeticamente, de fácil instalação e manutenção, e que a água que forneçam seja da melhor qualidade. Com muita freqüência, os projetos de bombeamento fotovoltaico são estruturados de tal forma que a saída do poço ou a entrada do reservatório representam uma «fronteira» entre duas atuações bem diferenciadas e encarregadas a diferentes responsáveis. Por um lado, o conjunto constituído pelo gerador fotovoltaico, equipamentos de condicionamento de potência, a bomba, a fiação e as tubulações que levam a água da fonte até a fronteira, geralmente são fornecidos como um todo e encomendados à empresa fotovoltaica que apresenta a oferta mais vantajosa. Por outro, toda a infraestrutura hidráulica desde a fronteira até as torneiras geralmente é deixada nas mãos dos usuários, às vezes com a ajuda de autoridades locais ou de ONGs. Qualquer que seja o caso concreto, esta fronteira de responsabilidades representa uma herança da situação anterior à implantação da bomba fotovoltaica. Para isso contribui, em uma parcela significativa, o diferente prestígio que, ainda que inconscientemente, se associa a cada um dos lados dessa fronteira. Enquanto que para o primeiro se utilizam adjetivos como: inovador, importado, solar, moderno, etc., para o segundo se reservam outros como: convencional, local, tradicional, etc. Em consonância com isso, o primeiro recebe muito mais atenção do que o segundo. E nessa tentação caem engenheiros, políticos, jornalistas e inclusive os próprios usuários. Com todo rigor, o sistema tecnológico associado à água não termina no ponto de abastecimento, senão que inclui também os meios para livrar-se dela uma vez utilizada (esgotos, deságües, etc.). Como as bombas fotovoltaicas favorecem o aumento do fluxo de água, as infra-estruturas de esgoto podem chegar a mostrar sintomas de saturação (empoçamento, etc.). Ainda que, por limitações de espaço, não trataremos especificamente aqui deste tema, o leitor deve se considerar advertido e ponderar que, cada vez que se enfrenta com um problema de abastecimento de água, é conveniente intervir também nas estruturas de esgoto.
4.1.1. A bomba fotovoltaica Quando falamos coloquialmente de «a bomba fotovoltaica», queremos nos referir ao conjunto formado pelo gerador, o condicionamento de potência e a bomba, com a fiação e a tubulação correspondentes. Há muitos anos que o mercado oferece «bombas fotovoltaicas» de boa qualidade.
15. Sistemas fotovoltaicos de abastecimento de água para uso comunitário: lições apreendidas e procedimentos para potencializar sua difusão , M. C. Fedrizzi. USP, 2003. Technologies eurpéennes du pompage socaire photovoltaïque , H. Bonneviot, M. Courillon, Y. Maigne. Systèmes solaires, 2004.
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Não obstante, sua aquisição sempre envolve riscos, associados principalmente ao contínuo aparecimento de inovações técnicas que nem sempre conduzem aos resultados esperados. Assim, é possível deparar-se, em campo, com bombas fotovoltaicas que simplesmente não funcionam. Um caso paradigmático aconteceu na região nordeste do Brasil. Em 1999, uma empresa européia forneceu 801 sistemas com bombas helicoidais, na época muito menos testadas do que as bombas centrífugas. Ocorreu que 337 dessas bombas quebraram antes do primeiro ano de operação, devido a um problema de material do eixo que une o motor à bomba. A ausência de controles durante o processo de aquisição dos equipamentos favoreceu culminar nesta situação e fomentou, ainda, o subseqüente conflito entre os envolvidos. Lamentavelmente, esse problema não teve uma solução ideal, com prejuízo para os usuários e também para a credibilidade da tecnologia fotovoltaica em geral. Convém, por tanto, não baixar a guarda e incorporar nos projetos de bombeamento as boas práticas de, primeiro, elaborar uma especificação técnica cuidadosa e, depois, verificar experimentalmente seu cumprimento. Estas práticas vão sendo incorporadas progressivamente na engenharia convencional e já existem várias fontes de informação a que se pode recorrer para aprender sobre a questão 16. Não obstante, para facilitar a tarefa do leitor, também no âmbito deste mesmo projeto MEDA, elaboramos outro guia intitulado «Especificações técnicas e ensaios de bombas fotovoltaicas», que apresenta um conjunto de especificações técnicas e procedimentos de controle, especificamente pensados para fazer parte dos procedimentos de aquisição de equipamentos.
4.1.2. Infra-estruturas hidráulicas A maior parte dos problemas técnicos observados no campo afeta as estruturas hidráulicas que vão desde a fronteira mostrada anteriormente até as torneiras. O denominado PRS-1 é um exemplo paradigmático. Este programa, levado a cabo pela União Européia, conduziu a instalação, entre 1990 e 1998, de 600 sistemas de bombeamento fotovoltaico na faixa de países do Sahel. Amplamente reconhecido como um capítulo muito importante da história fotovoltaica, este programa foi estruturado utilizando-se a saída dos poços como fronteira para o estabelecimento de responsabilidades. O fornecimento e instalação das bombas fotovoltaicas, propriamente ditas, foram responsabilidade de um único projeto de alcance regional, que impôs controles de qualidade rigorosos. Sem embargo, a infra-estrutura hidráulica ficou sob responsabilidade de um projeto de cada país e, com freqüência, foi deixado ao arbítrio de autoridades locais com escassa formação técnica. As avaliações posteriores17 são bem eloqüentes: «[falando das bombas] hoje se pode afirmar que foi alcançado um nível de confiabilidade elevado, graças às precauções técnicas adotadas pelo programa (…) [mas falando das infra-estruturas hidráulicas] quase a metade das redes de distribuição está subdimensionada, (…) foram observados numerosos problemas técnicos nas tubulações de distribuição, nos reservatórios e nas torneiras (…) quase 30% dos povoados apresentam perdas nas torneiras». As fontes de água, ou manancias, são também pontos de problemas freqüentes. Em particular, quando se trata de fontes que atingem aqüíferos pouco profundos e que já eram utilizadas antes do projeto fotovoltaico. A capacidade destes aqüíferos costuma ser muito sensível ao regime anual de chuvas, chegando à perda total de água em períodos de seca prolongada. Além disso, as características dessas fontes costumam estar adaptadas a métodos de extração pré-existentes (em sua maioria, manuais ou bombas a Diesel de eixo vertical), que quase sempre apresentam vazões de bombeamento inferiores aos que podem ser extraídos pelas bombas fotovoltaicas.
16. José M. Arango et al. Guía para el desarrollo de proyectos de bombeo de agua con energía fotovoltaica . Sandia Nacional Laboratorios, Southwest Technology Development Institute et al, 2001. 17. «Programme Regional Solaire: enseignements et perspectives», 25-28, CILSS, Ouagadougou (1999).
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
Conscientes de que este tema das infra-estruturas hidráulicas no meio rural recebeu pouca atenção na literatura disponível, apresentaremos aqui o que aprendemos no campo, algumas vezes ao custo de sustos consideráveis.
4.1.2.1. Poços, cacimbas, rios A capacidade de um sistema de bombeamento, em termos de volume de água fornecido diariamente, está indubitavelmente limitada por um dos seguintes elementos: fonte, bomba, reservatório ou consumo. Obviamente, o ideal é que o limite ao fornecimento seja determinado pelo próprio consumo dos usuários e que este seja sensato. No entanto, na realidade dos bombeamentos fotovoltaicos ocorre às vezes que o elemento limitante seja outro, sobretudo quando já transcorreu bastante tempo desde sua entrada em serviço, e a própria dinâmica das populações rurais (novos costumes associados à maior disponibilidade de água, crescimento populacional, etc.) fez crescer o consumo. Há bastante tempo a literatura disponível vem insistindo na necessidade de se prestar muita atenção na escolha e preparação das fontes de água, precisamente para se evitar que a partir delas surjam restrições ao fornecimento. A manutenção de tal insistência indica que o problema é importante e que, apesar de contínuas advertências, ainda persiste. De fato, isso também faz parte de nossa experiência no Marrocos, por mais que já faça muitos anos que temos consciência desta realidade e que tenhamos colocado muito empenho em enfrentá-la. O fenômeno físico subjacente é fácil de descrever. Por um lado, durante o processo de bombeamento, o nível de água no interior do poço baixa até que a velocidade de percolação da água através de suas paredes equilibre a velocidade com a que esta é extraída do poço (Figura 16).
Figura 16. Nível dinâmico de um poço.
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Assim, cabe falar de um nível estático, correspondente à situação em que não se extrai nenhuma água e que é uma característica do poço; e do nível dinâmico, correspondente ao bombeamento e que depende da vazão. Obviamente, quanto maior for a vazão, maior será a queda do nível dinâmico. A relação concreta entre vazão e descenso depende de um certo número de fatores, como a permeabilidade do solo, a área de percolação do poço e a espessura do aqüífero. Por outro lado, as bombas devem ser colocadas geralmente de forma que sua tomada de água se situe, ao menos, a um metro do fundo do poço, para evitar que a água absorvida arraste muita areia e danifique a própria bomba. Como conseqüência, a vazão máxima que uma bomba pode extrair continuamente de um poço corresponde à situação em que o nível dinâmico desça precisamente até a tomada de água da bomba. Isto descreve precisamente o que ocorre nos poços de pequeno diâmetro (~ 15 cm) nos quais, o volume de água armazenada, antes de iniciar-se o bombeamento, seja significativamente pequeno. É oportuno salientar que este tipo particular de poço geralmente chega a aqüíferos potentes e profundos 18 e que são obra de empresas especializadas, que incluem entre suas rotinas a caracterização do poço artesiano ao terminar a perfuração. Para isso, extraem água na máxima vazão que os permite alcançar uma situação estável, ou seja, na qual o nível dinâmico permaneça constante. O resultado desse teste é traduzido em três valores: o nível estático, HST, o nível dinâmico, HDT e a vazão de teste, QT; que convém serem guardados de forma sistemática (em muitos países, há inclusive arquivos oficiais com esses valores) e resultam acessíveis para quem for instalar uma bomba nesses poços. Obviamente, um critério de projeto de tal bomba é que sua vazão, QB , seja inferior ao valor de QT. Se QB fosse maior do que QT, esta situação só poderia se manter durante o lapso de tempo em que o nível dinâmico demorasse em descer até a tomada de água da bomba. A partir desse momento, o poço limitaria a vazão a QT e a bomba começaria a absorve uma mistura de ar e água, que poderia ser prejudicial para a própria bomba (falta de refrigeração, funcionamento instável, etc.). De fato, é habitual que todos os bombeamentos, independentemente do tipo de bomba, incluam sempre uma proteção contra a circunstância de «falta de água na bomba», para o caso de essa situação, ainda que tendo sido considerada adequadamente no projeto, ocorrer de forma acidental. Caso se trate de uma bomba fotovoltaica, este critério se aplica a vazão correspondente à condição de máxima irradiação solar (irradiância G = 1000 W/m2). Dessa forma, caso o aqüífero seja estável, ou seja, se os valores de HST, HDT e QT permanecerem invariáveis ao longo do tempo, a possibilidade de que a capacidade da bomba supere a capacidade do poço artesiano é facilmente previsível e evitável no projeto. Então, a evolução da vazão segue aproximadamente a evolução da irradiação solar e é possível estimar o volume total bombeado ao longo do dia 19. Agora bem, quando a bomba fotovoltaica bombeia de um poço artesanal, a evolução da vazão pode ser muito diferente e a estimativa de volume diário pode ser muito incerta. Esses poços normalmente atingem aqüíferos relativamente superficiais (< 50 m) e pouco potentes, que, por si mesmos, variam muito suas características de acordo com o regime de chuvas, tendendo a secar em épocas de seca, precisamente quando é maior a necessidade de água. Esses poços são perfurados com técnicas artesanais (picareta, pá e alguma banana de dinamite) e sua abertura não costuma ser seguida de um teste padronizado de bombeamento, como o descrito anteriormente para poços de pequeno diâmetro. Temos que salientar que tal teste não seria muito útil, já que, por um lado, as características
18. No contexto deste projeto MEDA, foram instaladas bombas fotovoltaicas em poços artesianos cujo nível estátivo está a mais de 200 m de profundidade. 19. Um método aproximado é discutido em Especificaciones técnicas y ensayos de bombas fotovoltaicas , mencionado anteriormente.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
desses poços flutuam muito ao longo do tempo e, por outro, porque esses poços incorporam em si uma certa capacidade de acumulação, que permite desacoplar o ritmo de extração de água do ritmo que percola dentro dele. Nestas condições, o critério de projeto que busca garantir que QB seja inferior a QT perde totalmente o sentido. Voltaremos a este ponto adiante. A informação disponível sobre a capacidade desses poços costuma limitar-se à que podem proporcionar os usuários, traduzindo sua própria experiência em frases do tipo «este poço nunca seca», «este poço dá muita água», etc. Algumas vezes, os poços artesanais são objeto de intervenção por parte de alguma autoridade local (municípios, ministérios relacionados com a hidráulica, etc.). Então, o conseqüente processo administrativo pode encomendar o trabalho a uma empresa especializada e elaborar um expediente no qual figurem os três valores HST, HDT e QT. Agora, seja porque os expedientes são elaborados com pouco rigor, seja por causa da evolução das características dos aqüíferos, o certo é que esses valores costumam tipicamente ser pouco representativos da realidade. Como conseqüência, o engenheiro fotovoltaico que deve instalar a bomba em um poço artesanal enfrenta, quase que inevitavelmente, um nível muito elevado de incerteza. A possível alternativa de restringir as bombas fotovoltaicas aos poços profundos de pequeno diâmetro é difícil na prática, porque a possibilidade de perfurar tais poços está muitas vezes fora do alcance das populações rurais 20. Assim, quando existem e a população confia neles, o engenheiro fotovoltaico não tem outra opção real a não ser recorrer a esses poços e tentar abrir caminho através da incerteza. Paradoxalmente, a própria confiança que a população possa ter em seus poços representa a principal dificuldade inicial. Como não poderia deixar de ser, essa confiança provém da experiência anterior e normalmente está associada a métodos de extração de menor vazão que o que exigem as bombas fotovoltaicas. Por exemplo, para se retirar água de um poço com 15 m de profundidade com um balde de 5 litros, uma pessoa precisa, em média, de um minuto por balde. Com seis pessoas trabalhando ao mesmo tempo, o que já é uma concentração razoável, a vazão que extraem do poço não passa de 30 l/min ou 1,8 m3 /h. Como comparação, uma bomba centrífuga alimentada por um gerador fotovoltaico de 1 kW de potencia nominal, que é relativamente pequeno no contexto do estado-da-arte atual, pode bombear mais de 5 m 3 /h a 25 m de altura. Colocada em um poço com 15 m de profundidade e elevando a água até um reservatório a 10 m de altura, uma bomba poderia extrair 25 m 3 de água por dia, o suficiente para abastecer uma população entre 500 e 1000 habitantes. O engenheiro responsável pela instalação de tal bomba poderia muito bem ter recebido dos usuários a informação de que «este poço de concreto dá muita água e não seca nunca» e, sem embargo, encontrar-se diariamente com situações de poço seco ao instalar a bomba fotovoltaica. E só então poderia convencer a população da necessidade de enfrentar o trabalho e o custo de melhorar seu poço, escavando maior profundidade ou galerias laterais. Pois bem, isto que escrevemos aqui para um caso hipotético, e um poço do qual anteriormente se extraía manualmente a água, é muito similar ao que realmente ocorreu em muitas populações marroquinas que este projeto MEDA equipou com bombas fotovoltaicas, ainda que anteriormente utilizassem bombas a Diesel de eixo vertical, cuja capacidade extrativa é maior do que a correspondente a métodos manuais. São duas as razões para isso. Por um lado, as freqüentes avarias que esses sistemas apresentam e as dificuldades de acesso às vilas (combustível, técnicos, etc.) se unem para fazer que o fornecimento de água sofra interrupções freqüentes e seja caro 21, e ambos fatores
20. O citado PRS-I optou precisamente pela alternativa de instalar bombas fotovoltaicas unicamente em poços artesianos. Logrou, assim, evitar situações de poço seco, mas ao preço de restringir a muitos povoados o alcance de sua atuação —muitos deles simplesmente não têm poços artesianos— e em alguns lugares a população não bebe dessa água, somente quando não existem fontes alternativas. 21. O custo típico oscila entre 0,4 e 1 Euro por m3.
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tendem a manter o consumo em níveis bastante baixos. A bomba fotovoltaica proporciona um cenário de consumo mais regular e, algumas vezes, também mais barato, no qual o c onsumo de água tende a crescer. Por causa disto, os volumes de água bombeada aumentam tipicamente em mais de 30% durante os primeiros meses de funcionamento da bomba fotovoltaica, com o conseguinte aumento das exigências mananciais do poço. Para isso colabora também o regime peculiar de operação das bombas fotovoltaicas, que, por ajustar-se à evolução da irradiação solar, é limitado em tempo (aproximadamente 10 horas por dia) e apresenta seu máximo em torno das horas do meio-dia. Comparando, para um mesmo volume diário de água, a bomba fotovoltaica com outra qualquer que funcione durante o mesmo número de horas mas em regime contínuo, acontece que a vazão da bomba fotovoltaica ao meio-dia é 30% superior a vazão contínua da outra. Combinando estas razões, se conclui que a substituição de uma bomba a Diesel por uma fotovoltaica se traduz em que a vazão máxima de bombeamento pode ser incrementada em até 70% nos primeiros meses de operação da nova bomba. E ainda mais no futuro, caso o fornecimento se mantenha de forma regular. A capacidade dos poços artesianos pode ser incrementada aumentando-se sua profundidade e/ou escavando galerias laterais. Ambas, tecnicamente, incrementam a área de percolação de água desde o aqüífero para o poço, assim como o volume de água armazenada nele. Este armazenamento tem a virtude de permitir que a água mane no poço durante um período maior do que a bomba demora em extraí-la fazendo com que a vazão contínua do poço possa ser significativamente inferior do que o de extração da bomba. No caso extremo, um poço capaz de armazenar um volume de água igual ao que uma bomba fotovoltaica deve extrair a cada dia poderia estar manando água durante 24 horas, enquanto que a bomba a extrairia em apenas 6 horas. É fácil ver que, então, o valor de QT característico do poço poderia ser 5 vezes inferior a vazão da bomba ao meio-dia. A figura 17 representa uma situação assim.
Figura 17. Vazão de recuperação de poço incrementada graças a galerias laterais
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Atualmente, não dispomos de um procedimento bem estabelecido para estimar o que é preciso escavar em um poço artesanal, para adaptá-lo às peculiaridades do bombeamento fotovoltaico. Quando nos defrontamos com esse problema, recorremos a observar quanta água o poço é capaz de fornecer diariamente (por meio de um simples contador de água, instalado rotineiramente na saída de todas as bombas) e como varia o nível dinâmico ao longo de aproximadamente uma hora de bombeamento. Depois, nos apoiamos no «saber fazer» sobre aqüíferos superficiais e poços artesanais, que existe nos meios rurais. Com efeito, contando com essa informação e sabendo de quanto é preciso incrementar o volume de água extraída diariamente, os moradores locais são normalmente capazes de encontrar uma solução para o problema do poço, incluindo a busca dos meios financeiros necessários para a escavação. Naturalmente, isso requer usuários convencidos e motivados e, outra vez, é oportuno recordar que o melhor argumento a favor deste estado de ânimo constitui a experiência direta com uma bomba fotovoltaica que funcione corretamente durante um tempo prolongado.
Figura 18. Sistema de bombeamento fotovoltaico de superfície instalado em uma plataforma flutuante.
Na Bacia Amazônica, conforme avança a época da seca, a água de alguns «igarapés» vai progressivamente se enlameando e se contaminando, até tornar-se imprópia para o consumo doméstico. Então, não cabe o recurso de bombear diretamente do igarapé, mediante um equipamento colocado sobre uma plataforma flutuante (figura 18); e é preferível recorrer à perfuração de um poço que chegue diretamente ao aqüífero. Quando a profundidade desses aqüíferos é excessiva, pode-se optar por perfurar poços nas margens dos igarapés, de tal forma que
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os poços se abasteçam destes, tal como mostra a figura 19. É certamente chocante que, durante boa parte do ano, o bombeamento seja feito de um poço situado no meio do rio! Esta opção, desenvolvida originalmente em um projeto piloto de bombeamento fotovoltaico na região do Alto Solimões no Estado do Amazonas 22, está permitindo manter um fornecimento de água adequando, tanto em quantidade como em qualidade, ao longo de todo o ano, independentemente do nível de água do igarapé.
Durante a época de seca
Durante a época de chuvas
Figura 19. Poço escavado na margem de um «igarapé».
4.1.2.2. Reservatórios
Sobre os reservatórios, é preciso saber que, além de armazenar a água para desacoplar os horários de bombeamento dos horários de consumo, de tal forma que os usuários possam servir-se de água a qualquer momento do dia e nos dias de insolação baixa, cumprem as funções de manter a pressão necessária para que a água circule comodamente pela rede de distribuição e de servir como decantador para que a água perca a areia e outros materiais que possam ser transportados em suspensão. Para cumprir estas funções, o reservatório deve ter uma capacidade equivalente a aproximadamente o dobro do consumo diário, estar elevado de 1 m a 10 m acima das torneiras e
22. Projeto que faz parte do programa «Trópico Unido», financiado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil em 1977.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
dispor de saída de água situada a cerca de 20 cm acima do fundo do reservatório. Por sua própria natureza, os reservatórios de água dispõem de superfícies relativamente grandes e com numerosas aberturas (portas, janelas, passagem de tubos) e estão colocados em lugares elevados, por isso são elementos particularmente suscetíveis à entrada de sujeira e devem, portanto, ser mantidos com cuidado especial. O esvaziamento dos reservatórios é uma operação que deve ser considerada como parte de seu funcionamento rotineiro, para limpeza periódica, reparo de danos, etc. Isto significa que, com certa freqüência (tipicamente entre 2 e 6 vezes por ano), é preciso voluntariamente verter vários metros cúbicos de água. Todos os reservatórios que conhecemos dispõem de uma saída, posicionada no fundo, destinada precisamente para isso. Sem embargo, o mais raro é encontrar reservatórios nos quais se tenha previsto alguma maneira para controlar a água vertida. Em muitos casos, a água simplesmente se espalha pelos arredores do reservatório, até que a evaporação natural e as infiltrações do solo a façam desaparecer. Entretanto, a água tem tempo de fazer poças, que, além de insalubres, constituem um elemento muito pernicioso do ponto de vista educativo, já que a imagem de uma poça representa a antítese de tudo que significa o uso cuidadoso da água. Para evitar esses inconvenientes, é preciso prever algum modo de controlar a água vertida, conduzindo-a a algum lugar específico e, ainda melhor, tentar dar a essa água alguma utilidade: fabricação de tijolos, por exemplo. No Marrocos nos deparamos com uma situação curiosa, associada à substituição de bombas a Diesel por outras fotovoltaicas. O procedimento tradicional de operar as bombas a Diesel de eixo vertical é totalmente manual e consiste em dar o arranque e mantê-las funcionando até encher o reservatório e a água sair por um vertedeiro posicionado um pouco abaixo do nível de entrada de água. Quando o operador da bomba observa diretamente esta situação (a saída de água pelo vertedeiro pode ser vista a várias centenas de metros de distância), ele interrompe o bombeamento. Por outro lado, ocorre que as bombas fotovoltaicas incorporam sempre algum tipo de proteção automática contra a situação de «reservatório cheio». A forma mais difundida de se implantar essa proteção consiste em instalar, no interior do próprio reservatório, um sensor de nível, que, mediante um cabo, envia ao conversor um sinal para interromper o bombeamento. Outra forma, particularmente conveniente quando a distância entre o reservatório e o conversor é grande (digamos, 100 metros ou mais), consiste em instalar um bóia no final da tubulação pela qual entra água no reservatório, e intercalar um pressostato em algum ponto dessa mesma tubulação, mas próximo ao inversor. Dessa forma, quando o reservatório fica cheio, a bóia fecha a saída de água (igual ao que ocorre com as cisternas dos banheiros de nossas casas), e, pelo fato de a bomba continuar funcionando, a pressão no interior da tubulação aumenta até superar o patamar estabelecido no pressostato. Então, este dá a ordem de parada ao inversor. Agora bem, se no reservatório existe um vertedeiro situado abaixo do nível de entrada de água, ocorre que a bóia nunca chega a fechar a tubulação e a bomba nunca chega a parar. Em vez disso, o bombeamento se mantém indefinidamente e a água é desperdiçada continuamente pelo vertediro. A forma mais evidente e mais rápida de evitar esta situação lamentável consiste simplesmente em tampar a saída do vertedeiro. Por outro lado, esta solução pode acarretar, por exemplo, se a bóia quebrar, que o reservatório chegue a transbordar de forma descontrolada. Por isso, a melhor solução é preservar o vertedeiro em funcionamento, mas modificá-lo para que o nível de água, quando começa o transbordamento, esteja situado acima do nível de atuação da bóia. A figura 20 mostra esta situação.
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Figura 20. Elevação da boca do vertedeiro (direita).
Podemos entender a surpresa do leitor, ao constatar que um elemento de aparência tão humilde como um simples vertedeiro receba aqui um comentário tão extenso. Sem embargo, estamos convencidos de que a engenharia fotovoltaica, ao menos quando se trata de sistema de eletrificação rural, deve estender suas considerações ao serviço como um todo. De outra forma, a confiabilidade do serviço pode ser seriamente comprometida, inclusive por detalhes de aparência ínfima. Os problemas «não-fotovoltaicos» são mencionados repetidamente como a causa principal de dificuldades nos projetos «fotovoltaicos» e precisamente o bombeamento de água pode servir como paradigma desta situação, como vimos várias vezes ao longo deste texto. A substituição de geradores a Diesel por outros fotovoltaicos foi indicada como um setor de crescente relevância no futuro 23. Quando elaboramos as especificações técnicas que regularam a compra dos equipamentos fotovoltaicos destinados a este projeto MEDA, nós mesmos não fomos capazes de prever este problema do vertedeiro. Solucioná-lo depois foi a causa de muita preocupação, por isso, pensamos que seria bom advertir quanto a ele a quem possa se encontrar em situações similares. 4.1.2.3. Tubulações e outros acessórios
As tubulações e o restante dos acessórios que compõem a rede de distribuição (torneiras, hidrômetros, registros, etc.) constituem o elemento que, com maior freqüência, se deixa totalmente aos cuidados das capacidades técnicas dos usuários e encanadores locais. Esta prática, que, outra vez, pode ser interpretada como uma forma de minimizar o grau de novidade associada aos projetos, permite a participação efetiva dos usuários e melhoria de sua capacidade para reparar futuras avarias, portanto deve ser fomentada ativamente nos projetos. Agora bem, não se deve esquecer que todas as avaliações que conhecemos mostram a existência de numerosas deficiências nas redes de distribuição e que essas deficiências afetam negativamente a qualidade do serviço. Em nosso entendimento, temos que procurar a principal razão dessa situação lamentável no que alguns definiram como o «atrevimento do conhecimento superficial». Este fenômeno psicológico consiste em se autoconvencer de que se sabe o suficiente sobre um tema do
23. Vallvé X., Gafas G., Arias C., Mendoza J. J., Torra C. «Electricity costs of PV-hybrid vs. Diesel in microgrids for village power», 17th European Photovoltaico Solar Energy Conference, Munich, 2001; 1960-1965. Hoffmann W., Aulich H. A., Viaud M. «European PV Industry Roadmap», 19th European Photovoltaic Solar Energy Conference, Paris, 2004; 3175-3177.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
qual se carece totalmente de experiência e de conhecimentos profundos. Entre outras coisas, esse fenômeno leva quem sofre dele a pensar que esse «algo» é uma realidade bastante fácil e que, como conseqüência, ele mesmo e sem maior preparação prévia pode se encarregar efetivamente de sua execução e manutenção. Esta espécie de amnésia sobre o que se ignora acontece bastante e afeta quase todos os atores que participam dos projetos de bombeamento. Os engenheiros não são uma exceção e para isso contribui o baixíssimo peso que as humildes tubulações recebem em numerosos cursos de formação que se ministram sobre a eletrificação rural, que tendem a se ocupar de assuntos de aparência mais sofisticada, como, por exemplo, a física do funcionamento interno das células solares, a estimativa dos diferentes componentes da irradiação solar ou o dimensionamento dos geradores fotovoltaicos. Esta tendência, compreensível pelo fato da necessidade de se exercitar as habilidades duramente adquiridas durante os anos de estudo na universidade, deve ser combatida, pois acaba sendo prejudicial na hora de executar projetos em campo. O tema vem de longe. No começo do século XVI, o humanista espanhol Juan Luis Vives, preocupado com o desprezo que as classes intelectuais mostravam pelos assuntos técnicos mais populares, convida o «homem culto» a que «não tenha vergonha de ir às lojas e aos trabalhadores e perguntar e aprender com os artesãos as peculiaridades de sua profissão; porque, de muito tempo os sábios desdenharam de descer a este plano e ficaram sem saber uma porção incalculável de coisas que têm muita importância para a vida…» 24. Esperamos que esta citação colabore para que os engenheiros atuais prestem mais atenção ao que entendem por coisas simples dos artesãos. Disso poderão obter benefícios para si mesmos e para o bom resultado de seus projetos. Erros relevantes que se cometem com freqüência nas redes de distribuição são: enterrar as tubulações de tal forma que fiquem propícias a fugas de água; não dispor de elementos suficientes para poder isolar seções da rede no caso de reparos (quando não existe mais de um registro na saída do reservatório, a manutenção de qualquer avaria obriga a se cortar o fornecimento de água para toda a população); e não proteger esses elementos mediante a construção de caixas de cimento, ou similares, que permitam acesso e facilidade para utilizá-las com segurança. Para o engenheiro verdadeiramente interessado, é muito fácil encontrar a informação sobre como projetar e executar corretamente as redes de distribuição de água. As pressões baixas, que são típicas nos meios rurais, facilitam muito esse trabalho. Na seção seguinte, é fornecida alguma ajuda para fazer os usuários participarem dessa preocupação.
4.2. Antropologia Todo projeto de cooperação para o desenvolvimento deve ser entendido como uma oportunidade de mudança, não só de um sistema tecnológico para outro, mas também do nível de educação das pessoas, no sentido de elevar sua compreensão daquilo que constitui o entorno no qual se desenvolve sua vida cotidiana e do que pode ser feito com ele. Paulo Freire foi, provavelmente, quem melhor escreveu sobre a educação das populações rurais, que considerava um aspecto fundamental de sua liberdade. O leitor interessado pode consultar suas obras. Um tratamento rigoroso do tema da educação está fora do alcance deste manual e também fora da capacidade de seus redatores. Nos limitaremos a apresentar algumas reflexões originadas de nossa própria experiência sobre a formação de usuários no que tange à higiene da água e à gestão de sua infra-
24. Este texto pertence ao livro De tradendis disciplinis, publicado em 1531 e pode ser traduzido como «Sobre a forma de transmitir conhecimentos.
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estrutura. Como em todo processo educativo, não se pode aspirar obter resultados imediatos decorrentes da mera realização de reuniões de trabalho, nas quais o promotor do projeto (ou seja, no caso, você) disserta sobre a estreita relação entre doenças e qualidade sanitária da água, ou sobre a importância de cotizar uma conta para garantir a manutenção. Para que isso resulte eficaz, o processo educativo tem que ser mais continuado, aberto e recíproco. O «educador» deve se manter em estreito contato com a realidade na qual se desenvolve o projeto, até entender seus segredos e razões e conseguir que a comunicação com os «educandos» se estabeleça em termos que resultem compreensíveis para estes e estimulem sua curiosidade. Agora bem, de qualquer forma, em algum momento se deverá fornecer alguma coisa parecida com um manual que lhe permita ser sistemático na ação. Nós o fizemos quando, já na fase avançada do projeto MEDA, tivemos reuniões sistemáticas com todos os usuários. Previamente, as bombas haviam demonstrado seu bom funcionamento e nós havíamos analisado cuidadosamente o uso de água que faziam as populações. Assim, uns e outros sabíamos bastante bem do que falávamos nessas reuniões. Para introduzir os temas, preparamos alguns slides de apoio, que apresentamos nesta seção, na esperança de que, junto com os comentários correspondentes, sirvam melhor que outra coisa para mostrar ao leitor o que pensamos tenha sido, e ainda continua sendo, uma experiência educativa positiva da qual se podem extrair algumas lições de validade geral. 4.2.1. A higiene da água
Os usuários percebem o problema de higiene da água de forma muito diferente da que percebem os promotores dos projetos. Isso representa uma dificuldade importante em qualquer processo de comunicação, já que supõe tentar convencer de que tem um problema a alguém que não o sente dessa forma. Para combater esta dificuldade: —
—
—
As iniciativas de formação de usuários devem esperar até que estes confiem na qualidade da nova tecnologia e que se tenha estabelecido um clima de confiança com os promotores do projeto. O discurso deve se apoiar em elementos observados sobre a realidade cotidiana dos usuários. Tanto os esquemas quanto as fotografias dos slides incluídos nesta seção não são mais do que um exemplo adaptado a uma realidade particular das bombas fotovoltaicas implantadas por este pro jeto MEDA no Magreb. Sua correta compreensão exige ter em mente que os sistemas de abastecimento incluem a distribuição de água até o interior das casas e que aproveitam boa parte das infra-estruturas existentes anteriormente, geralmente associadas a bombas a Diesel. Temos que insistir que, se bem que a argumentação apresentada aqui possa ter muito de geral, cada projeto concreto deve desenvolver seus próprios instrumentos adaptados às peculiaridades de sua realidade. As recomendações concretas devem se apoiar no contraste entre bons e maus exemplos, sempre observados na realidade. Aos benefícios didáticos originados de ensinar o que se faz mal e como melhorá-lo se soma o de fomentar uma espécie de competência saudável entre os usuários, em favor do prestígio associado ao reconhecimento público de fazer bem suas «tarefas».
O discurso apresentado aqui se fundamenta em duas idéias básicas. Por um lado, que a limpeza da água é um bem em si mesmo, além de repercutir positivamente na saúde. Por outro, que a água está limpa em sua origem25 e que, portanto, é preciso evitar que ela se suje no trajeto até a mesa. A apresentação destas idéias foi feita assim:
25. Isto deve sempre ser verdade se o projeto escolheu adequadamente a fonte de água.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
Descreve a tecnologia anterior ao projeto fotovoltaico, colocando em evidência sua propensão a sujar a água. No caso do Magreb, tanto as cordas e baldes como as bombas a Diesel de eixo vertical obrigam o contato freqüente com a água, o que faz com que os poços sejam mantidos continuamente abertos e fiquem propensos à entrada de sujeira, que pode provir tanto do entorno (pássaros defecando diretamente sobre os poços são uma realidade), como dos próprios meios de extração (cordas e baldes sujos, queda de combustível e óleo lubrificante, etc.). Isto permite apresentar o problema não tanto como fruto da ignorância ou da negligência das pessoas, mas como fruto das circunstâncias nas quais estas se vêem obrigadas a viver. Se o primeiro soa como uma acusação, e pode provocar rejeições, o segundo soa como compreensão e pode fomentar confiança. Slide 1.
Descreve a tecnologia associada ao projeto fotovoltaico, destacando que já não é necessário o contato com a água antes do ponto de distribuição, o potencial de limpeza que disso decorre e os pontos onde existe risco de entrada de sujeira. Slide 2.
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Descreve a fonte atual de água e os cuidados a serem tomados para protegê-la da entrada de sujeira. É importante detectar possíveis maus hábitos herdados da situação anterior e insistir que estes não devem ser trasladados para a nova situação. Por exemplo, no Magreb está muito difundida a idéia de que os poços devem «respirar» e de que para isso convém que estes não disponham de nenhuma tampa (o que se pode interpretar como uma forma de facilitar a extração). Fazendo eco a esta crença, explicamos que os poços podem respirar simplesmente através das pequenas aberturas que sempre acompanham as tampas, passagem de canos, etc. Slide 3.
Slide 4.
Descreve o reservatório atual de água, enfatizando o fato de que, por sua própria localização, se trata de um elemento muito exposto à entrada de insetos, que têm um grande potencial para sujar a água. Por exemplo, no Magreb são lamentavelmente freqüentes as pragas de gafanhotos, que são combatidas com pesticidas. As populações são conscientes de que os pesticidas não são bons para a saúde (de fato, abandonaram o hábito, em outros tempos bastante difundido, de comer os gafanhotos). A descoberta de gafanhotos mortos no interior de alguns reservatórios sem proteção contra a entrada de insetos (ver figura 13) foi aproveitada em termos didáticos para insistir na necessidade dessa proteção. Na mesma ordem de coisas, convém enfatizar o fato de que, por causa de suas grandes paredes e das tubulações que as atravessam, os reservatórios são propensos a apresentar perdas de água. As poças resultantes são atrativos para insetos e animais em geral (cães, asnos, etc.) de onde, outra vez, há risco de contaminação e a necessidade de reparar tais goteiras com rapidez, de restringir o acesso ao reservatório e de prever canais que recolham possíveis vazamentos de água e as conduzam a algum lugar controlado. O slide inclui também uma fotografia de um vertedeiro modificado, para explicar o problema descrito na seção 4.1.2.2.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
Descreve a rede de tubos, colocando em evidência que a forma mais imediata de estender-los, que consiste em seguir o traçado dos caminhos e enterrá-los a uma pequena profundidade, é justamente a mais propensa a ocasionar perdas, particularmente se a terra que preenche as calhas contém elementos perfurantes, como pedras com cantos agudos que, ajudadas pelo peso das pessoas e animais que transitam por cima, se convertem em autênticos perfuradores de tubos. Algumas das redes de distribuição herdadas de situações anteriores ao projeto MEDA sofriam perdas praticamente todas as semanas, de modo que os usuários percebiam este fato como um problema real, ainda que não fossem conscientes de que, além de originar perdas de água e obrigar a cortes no fornecimento, para reparos, os locais de perdas também permitem a entrada de sujeira e contaminação 26, se, como é freqüente, em suas imediações existe material orgânico em decomposição (excremento de animais, lixo das casas, etc.). A extrema dureza do terreno nessa região dificulta muito o uso de calhas profundas. No entanto, é mais fácil encontrar areia nas imediações dos povoados —nos leitos dos «oued»— de modo que nossa proposta de enterrar os tubos em uma capa de areia, que amortece muito o efeito daqueles perfuradores de tubulações, foi bem recebida e, felizmente, mostrou-se uma medida muito eficaz. Slide 5.
26. Em particular, nas ocasiões em que, por razão de danos, manutenção, etc., a pressão da água é eliminada, o que permite que a umidade que rodeia os vazamentos se difunda para o interior dos tubos.
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Em função das circunstâncias, algumas vezes é possível ir mais além do que representa o mero cuidado com a água (sem dúvida, o mais importante) e incluir nos projetos de bombeamento fotovoltaico alguma técnica de tratamento. A cloração é particularmente atrativa, porque se trata de uma técnica muito difundida (é possível comprar equipamentos e reposição em quase qualquer país) e cujo produto consumido, a água sanitária, está amplamente disponível em todos mercados, como produto para alvejar a roupa. A experiência do projeto MEDA com a cloração teve aspectos positivos (os usuários aceitam razoavelmente bem o cloro, sob a condição de que as quantidades sejam moderadas) e negativos (alguns sistemas de cloração ficaram longos períodos inativos, simplesmente por falta de reposição da água sanitária), sem que caiba ainda falar de conclusões ou recomendações definitivas. Este slide insiste na necessidade de prestar atenção às tarefas rotineiras que o funcionamento destes equipamentos exige: manter sempre uma reserva de água sanitária e, quanto existem27, limpar os filtros. Slide 6.
27. O projeto MEDA optou por uma tecnologia de cloração automática, cujos equipamentos têm a propriedade de que a injeção de cloro é produzida por impulsos do próprio fluxo de água, o que tem a vantagem de não precisar de nenhuma fonte de energia adicional. No entanto, o funcionamento desses equipamentos é bastante sensível à areia contida na água. Em contraste, outro projeto anterior desenvolvido na mesma zona optou por outra tecnologia de cloração automática, que injeta cloro por meio de uma pequena bomba elétrica. Esta tecnologia requer a instalação de um sistema fotovoltaico adicional (de uns 30 W de potência nomial), mas seu funcionamento é mais confiável.
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Boas práticas na implantação de sistemas de bombeamento fotovoltaico
4.2.2. A gestão da água
Obviamente, a manutenção obrigatória das bombas fotovoltaicas tem um custo financeiro, que pode chegar a ser elevado caso ocorra uma avaria que afete a bomba ou o inversor 28. A necessidade de poder fazer frente a esta situação é colocada repetidamente como uma justificativa para tentar convencer os usuários de que devem se organizar e cotizar regularmente pela água que consomem, para, assim, garantir a perenidade do serviço. No entanto, a realidade ensina que a existência de usuários dispostos a pagar não é suficiente. Também é preciso contar com um serviço técnico capaz de reparar danos em prazos pequenos; e para que o custo desse serviço seja razoável, é preciso que atenda a um número de instalações suficientemente grande para que a manutenção represente uma fonte de entradas suficientemente estável. O tamanho mínimo de um mercado capaz de sustentar uma estrutura profissional de manutenção é uma questão aberta e que ainda não tem uma resposta geral 29. Mas, quase que com independência de qual seja o caso, a criação de condições para que tal mercado chegue a se materializar está fora do alcance de projetos típicos de Ajuda e Desenvolvimento, e entra mais propriamente na esfera do institucional e do «macro» e, como conseqüência, sua abordagem não cabe neste texto, mas cabe dizer que, afortunadamente, a tecnologia fotovoltaica está em expansão,
28. A confiabilidade da tecnologia atual é caracterizada por valores médios do MTBF (Mean Time Between Failures) na faixa de 6 a 8 anos. 29. Para uma idéia aproximada do alcance desse mercado mínimo, pode-se supor, por exemplo, que tal estrutura precisa reparar três equipamentos por mês para se sustentar. Então, sua sobrevivência exige um parque de 225 bombas dentro de seu raio de ação. Obviamente, se a empresa realiza outras atividades (instalações elétricas, etc.) as exigências do parque fotovoltaico diminuem.
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o que faz com que cada vez haja mais lugares onde se podem encontrar empresas fotovoltaicas que oferecem equipamentos e serviços a custos razoáveis. Obviamente, nos lugares em que seja esse o caso, os projetos concretos devem apoiar-se nelas o máximo possível. Agora bem, em nosso entendimento, as organizações de usuários e as práticas sistemáticas de gestão podem e devem ter um papel mais amplo do que o da mera arrecadação de fundos para fazer frente à manutenção. Em particular, podem constituir-se em uma forma de aprendizado, tanto para os usuários como para os promotores dos projetos, e também uma forma de comunicação entre estes atores. Em nossa experiência consta, por exemplo, que o fato de registrar sistematicamente dados de operação (consumos, ocorrências, etc.) ajuda os usuários —tanto ou mais do que qualquer cursinho de caráter pontual— a compreender em profundidade o funcionamento de seus sistemas, reduz o sentimento de «estranhamento» face a equipamentos que são relativamente sofisticados e os leva a levantar questões e alternativas que se revertem positivamente no cuidado que eles têm com os equipamentos e, portanto, o benefício que obtêm deles 30. Por sua parte, tais dados são de um valor inestimável para os promotores, na medida em que constituem um registro da história evolutiva dos projetos, indispensáveis para entender o que de verdade ocorre no lugar concreto considerado e poder enfrentar possíveis ocorrências nas melhores condições, e também permitem acumular experiência para melhorar a capacidade de predição e dimensionamento de futuros projetos. Isto é particularmente importante porque, apesar da inquestionável maturidade tecnológica das atuais bombas fotovoltaicas, o certo é que são muitas as incertezas que ainda existem com respeito a sua implantação no meio rural. Por outro lado, a coleta e o tratamento sistemático dos dados de operação obrigam a manterem-se contatos rotineiros entre promotores e usuários. Assim, estes sentem que seus assuntos são motivo de interesse para o mundo exterior a seus povoados, o que se reverte positivamente em sua auto-estima e preenche de sentido sua tarefa, sempre tediosa, de registrar periodicamente números cuja utilidade não poderiam entender se simplesmente fossem acumulados em algum caixote do povoado. Além disso, quando participam vários povoados num mesmo projeto, o contraste entre suas respectivas experiências abre as portas à comunicação horizontal, ou seja, entre os próprios povoados, o que contribui para romper o sentimento de isolamento e de posição marginal que afeta a muitas populações rurais. Por estas razões, prestamos atenção especial à preparação dos formulários de coleta de dados 31. Cada um deles está associado a um aspecto particular da exploração do sistema. De forma concreta: dados gerais do lugar (formulário A; periodicidade mensal), bombeamento de água (formulário B; periodicidade diária), consumo de água (formulário C; periodicidade mensal), gestão financeira (formulário D; periodicidade mensal) e manutenção (formulário E; periodicidade mensal). Seus conteúdos são auto-explicativos. A título de exemplo, nas duas páginas seguintes, apresentamos os formulários correspondentes ao bombeamento de água e gestão financeira. No primeiro, foi incluído um gráfico (que os próprios usuários vão elaborando dia após dia) pensado para visualizar a evolução do ritmo de bombeamento e alertar sobre qualquer possível anomalia (por exemplo, perdas inadvertidas na rede de distribuição) que o altere de forma significativa.
30. Zilles R. y Morante F. «Ah meter: a useful tool for user demand management». Proceedings of the 17th European Photovoltaic Solar Energy Conference . Munich, 2001; págs. 2080-2082. 31. O conjunto de formulários está disponível no site www.ies-def.upm.es.
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Todos formulários foram impressos em um papel autocopiante, de tal forma que, ao preenchê-los, é gerada automaticamente uma cópia de cada um deles. A organização local marroquina responsável pelas relações com os usuários —a ONG Tiscka— recolhe periodicamente as cópias, processa os dados mediante uma aplicação informática muito simples e faz chegar os resultados aos povoados, o que fomenta o sentimento de reciprocidade em sua relação com os usuários. Entre outras coisas, este esforço conduziu à criação de um banco de dados de interesse geral, cuja utilização permitiu avançar significativamente na compreensão das pautas de consumo dos usuários 32.
4.2.3. Organização de usuários e «técnico» local Todo projeto de cooperação exige um interlocutor que represente os usuários perante os promotores e alguma pessoa que se responsabilize pela gestão diária dos sistemas (limpeza, registro de dados, cobranças, etc.). Tanto para um como para outro, é preciso que os usuários adotem alguma forma de organização, que os promotores devem reconhecer e favorecer. Em geral, as organizações de usuários melhoram a coesão interna das populações rurais, o que muitas vezes tem efeitos colaterais positivos, à margem do estritamente relacionado com a própria bomba fotovoltaica. Mas não é menos certo que existe o risco de refletir possíveis conflitos sociais préexistentes e que isso pode chegar a afetar negativamente a gestão das bombas fotovoltaicas. Conhecemos casos em que os «comitês de água», aproveitando as habilidades adquiridas com a gestão da água, serviram para solicitar e promover outros serviços; mas também conhecemos outros casos em que, longe de assumir a representação do conjunto da população, os sistemas foram controlados por um dos bandos em conflito, provocando que outros optassem por condutas impróprias: falta de pagamento, etc. Para minimizar este risco, é, de novo, útil a idéia de tentar minimizar o grau de novidade que os projetos incorporam, apoiando-se, na medida do possível, em organizações locais já existentes e respeitando a ordem social anterior ao projeto 33. A eleição das pessoas encarregadas da gestão diária dos sistemas é um tema de muita relevância, posto que, inevitavelmente, adquirem mais poder do que gozavam anteriormente ao projeto, e essa nova posição pode despertar receios nos demais. De novo, convém apoiar-se em pessoas que já exerciam funções similares no sistema anterior. Quando não existem, convém ser paciente, procurar nas fases iniciais dos projetos que a informação correspondente chegue a quantas pessoas for possível e esperar por fases mais avançadas para que, já com conhecimento de causa, sejam as próprias organizações de usuários as que elejam as pessoas, entre alguns candidatos previamente aceitos pelos promotores com base em suas capacitações.
32. «Lessons from a PV pumping programme in south Morocco», Luis Narvarte, Eduardo Lorenzo y Mohamed Aandam. Progress in Photovoltaics: Research and applications . Volume 13, Issue 3: Mayo 2005, páginas 261270. «Patrones de consumo de agua en sistemas rurales de bombeo fotovoltaico», Luis Narvarte, Eduardo Lorenzo, Mohamed Aandam, Era solar , num. 109, págs. 20-29, 2002. 33. Às vezes, este respeito é difícil de ser mantido, porque a ordem social pré-existente pode rejeitar as própias convicções éticas dos promotores. Como tudo aquilo que se refere a questões éticas, o que se pode dizer a respeito sempre é discutível. O que nós podemos dizer é que quem se decidir a utilizar um projeto de cooperação como instrumento para mudar a ordem social das populações afetadas deve estar advertido de que sua aposta tem um alto risco de rejeição.
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5. Trabalhar com a diversidade M. C. Fedrizzi
ão faltam experiências que mostram como tecnologias energéticas bem consolidadas não conseguem funcionar satisfatoriamente em certos contextos rurais. Isto ocorre basicamente por dois motivos. O primeiro é não considerar que a tecnologia exógena deve acoplar-se ao sistema tecnológico local, o que conduz a que sistemas baseados em bombas fotovoltaicas de última geração terminem falhando por causa das precariedades da infra-estrutura local. O segundo motivo é não considerar o fato de que a tecnologia seja inserida em um contexto social que deve querer e aceitar a inovação que esta representa, porque a não-aceitação e a falta de organização local conduzem a grandes fracassos.
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Por estas e outras razões, na hora de introduzir as inovações, e com independência de qual seja a tecnologia utilizada, é preciso considerar algumas questões intrínsecas à dinâmica da população local. São realizados numerosos estudos destinados a averiguar qual é a opção mais adequada para energizar uma determinada região e, muitas vezes, se conclui que o tipo de tecnologia a ser utilizada é menos relevante que o respeito às especificidades locais na hora de conceber, implantar e manter os sistemas. À primeira vista, poderia se pensar que existem soluções padronizadas para os problemas de abastecimento de água de populações rurais. Sem embargo, não é o que mostra a realidade. Um projeto de abastecimento para uma população localizada em uma zona árida, na qual não existe nenhuma outra fonte de abastecimento próxima, pode diferir muito de um projeto de abastecimento para uma população situada em uma zona úmida e com recursos hídricos alternativos abundantes, como água da chuva ou rios. As restrições ao fornecimento podem ocasionar transtornos muito mais graves no primeiro caso do que no segundo. O tipo de manancial, a geologia local, a qualidade da água, ademais das características geográficas e culturais, vão ter seu papel na concepção final do projeto e não devem ser descuidados. Conhecer em profundidade o problema a ser solucionado, e também as formas de abastecimento pré-existentes ao projeto, é de grande utilidade para otimizar os recursos disponíveis para que os usuários aceitem o serviço e para reduzir os impactos negativos de um projeto. O conhecimento do sistema pré-existente será de grande ajuda na determinação do volume de água que deve ser posto à disposição dos usuários do novo modelo. Outra questão básica está relacionada com as características sócio-econômicas da população afetada e com o seu grau de organização. A forma de se introduzir a nova tecnologia e as condições materiais e de formação dos usuários têm efeitos muito importantes na utilização e manutenção dos equipamentos. Por isso, antes de ir adiante com um projeto, é muito útil visitar a população receptora e também contatar outras possíveis entidades que trabalhem com a comunidade desde algum tempo atrás: instituições que prestam serviços nas zonas rurais (saúde, educação, etc.), organizações religiosas e ONGs. Um mínimo conhecimento da cultura local é imprescindível, desde o início do projeto, para não cometer nenhuma falta de delicadeza desde os primeiros contatos. Dependendo do grau de rigidez e de conservadorismo dos costumes da população com a qual se vai trabalhar, o surgimento de situações embaraçosas pode pôr em risco a introdução do novo sistema.
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Para facilitar o entendimento e a aceitação do projeto por parte dos futuros usuários, é importante que exista uma boa comunicação entre os atores envolvidos no mesmo. Sem embargo, em muitos casos a população receptora e os técnicos que vão implantar o projeto falam idiomas diferentes. Então se faz necessário recorrer ao serviço de um intérprete, que, preferencialmente, conheça bem a cultura local. Este artifício teve que ser utilizado tanto pelos espanhóis que implantaram sistemas de bombeamento em comunidades berberes de Marrocos, como os brasileiros que implantaram o sistema de bombeamento no próprio Brasil, mas em comunidades indígenas da etnia tikuna, que, em sua maioria, não dominam a língua portuguesa. Esta situação acrescenta um grau de dificuldade ao desenvolvimento do projeto, mas que é perfeitamente superado quando há vontade de ambas as partes. Seguindo o dito popular de que «uma imagem vale mais do que mil palavras», nos apoiaremos em registros fotográficos de algumas localidades visitadas por nós, para ilustrar a diversidade de que trata este texto. A observação das imagens dará uma idéia ao leitor da diversidade encontrada em campo e ajudará a contextualizar o trabalho do engenheiro/antropólogo no serviço de abastecimento de água em comunidades remotas. A simples observação da paisagem na qual se integra a comunidade receptora tornará visível ao leitor a situação do regime hídrico local e, em parte, também as dificuldades que os técnicos enfrentam para implantar o projeto.
A figura 21 corresponde ao primeiro dos casos aqui descritos. Mostra as proximidades de uma comunidade rural berbere do Marrocos, localizada em uma região extremamente árida, ao sul da cordilheira do Atlas, em cuja paisagem predomina a pedra, a areia e a terra seca. Assolada por uma seca prolongada ao longo das últimas décadas, a região sofreu acelerado aprofundamento dos lençóis freáticos e a redução drástica da agricultura, até o ponto de provocar a emigração massiva de boa parte de sua população ativa. O acesso a um sistema de abastecimento de água mediante captação em poços profundos representa a própria sobrevivência da comunidade. Em tal contexto, observamos detalhes reveladores de um alto grau de organização no que se refere às questões da água, como, por exemplo, a manutenção de um serviço de vigilância do poço e equipamentos durante as 24 horas do dia.
Figura 21. Paisagem típica da região do vale do Draa. Iferd. Marrocos
As figuras seguintes mostram as distintas formas de utilização da água, caracterizadas por hábitos de higiene pessoal e de limpeza doméstica que requerem quantidades muito pequenas de água. Por exemplo, a louça costuma ser ensaboada toda de uma só vez e, em seguida, enxaguada em uma bacia
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em que, para 37 copinhos dos utilizados tipicamente para o chá, são consumidos menos de dois litros de água (Figura 22). Algo parecido ocorre com a higiene antes das refeições: o anfitrião molha as mãos do visitante com um jarro de água e, depois de ensaboadas, as enxágua com outro jarro de água. Este ritual é repetido com todos os comensais e faz com que a água utilizada para lavar as mãos seja muito pouca (Figura 23). Ademais, não se utilizam pratos individuais durante as refeições. Em vez disso, as pessoas se servem diretamente com as mãos a partir de um prato coletivo colocado no centro da mesa, o que reduz substancialmente a água empregada para posteriormente lavar a louça.
Figura 22. Lavagem de louça em uma comunidade berbere.
Figura 23. Lavagem de mãos antes da refeição em uma comunidade berbere.
Outra questão a ser destacada é que as residências não têm banheiras ou duchas. O banho é feito com apenas uma bacia de água, com periodicidade semanal e, ademais, a água servida é utilizada para regar as plantas cultivadas no interior dos pátios das casas ou para os vasos sanitários. A figura 24 mostra o detalhe típico de um quarto de banho nessa região e a figura 24 mostra uma jarra metálica utilizada para esquentar a água destinada à higiene pessoal. O fogão fica no pátio interno da casa, perto do quarto de banho. Também pudemos constatar que as roupas são lavadas esporadicamente, o que representa, outra vez, um fator importante na economia de água.
Figura 24. Utensílios do quarto de banho.
Figura 25. Jarra metálica utilizada para esquentar água para a higiene pessoal.
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O segundo caso descrito aqui se localiza no oeste da Amazônia brasileira, no rio Alto Solimões, onde vivem populações indígenas e «caboclas». Com um clima tropical úmido, marcado pela sucessão de épocas de muita chuva e épocas de estiagem, a região sofre o fenômeno de enchimento dos rios, cujas águas variam de nível até 12 m de altura. Dependendo do perfil do terreno, esta variação do nível de água pode significar uma distância de várias centenas de metros e, inclusive, de alguns quilômetros. No período de chuvas, as águas se aproximam e chegam a inundar as comunidades ribeirinhas, formadas por palafitas, com mostra a figura 26. Nessa época, a população utiliza água de chuva para o consumo humano. Mas na época da seca, não só a chuva diminui, mas também as águas dos rios se afastam das comunidades e se tornam barrentas, o que as torna impróprias para o consumo humano.
Figura 26. Paisagem típica da Amazônia brasileira. Rio Solimões.
Mas inclusive na época da seca, em comparação com o caso anterior, esta região dispõe de recursos hídricos consideráveis e o rio faz parte da vida das pessoas. Neste caso, o maior problema reside na qualidade da água. O banho é uma atividade importante e ocorre várias vezes ao dia. Ele é utilizado para a higiene, para refrescar e também serve de ocasião de encontro e diversão. A louça e a roupa também são lavadas diariamente no mesmo rio, mediante o uso de uma balsa flutuante que permite ficar acima do nível da água. A figura 27 mostra uma cena típica da vida cotidiana das populações ribeirinhas da Amazônia, na qual se observam mulheres e meninas lavando roupa e louça, e meninos se banhando e brincando na mesma balsa. Neste mesmo ponto é coletada a água destinada a consumo humano e preparação de alimentos, como ilustra a figura 28.
Figura 27. Cena típica da vida ribeirinha no Alto Solimões. Mulheres lavam louça e roupa e meninos brincam no rio .
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Figura 28. Utilização de água na preparação de alimentos.
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As peculiaridades mostradas anteriormente para cada caso devem estar presentes na elaboração dos projetos, desde a concepção até sua implantação no terreno. Conhecer o sistema pré-existente de utilização de água em cada localidade e sua organização social pode marcar a diferença entre o êx ito e o fracasso em um projeto. A aceitação e a incorporação de mudanças nos hábitos da população vão depender diretamente de os usuários perceberem algum tipo de melhora. No caso das comunidades marroquinas, por exemplo, é totalmente factível cobras pela água consumida em cada habitação e destinar o montante à manutenção dos sistemas. Sem embargo, tal situação seria inviável no caso das comunidades amazônicas, que, além de terem um poder aquisitivo inferior, dispõem da possibilidade de recorrer a outras fontes de água, ainda que distantes e com qualidade de água inferior, o que inibe qualquer disposição de pagar pela água consumida. Neste caso, só cabe pensar em projetos implantados a fundo perdido. Em outra ordem de coisas, é preciso comentar que, inclusive quando se conhece substancialmente a região na qual se vai implantar o projeto, a ação peculiar do meio ambiente local sobre os equipamentos pode ocasionar situações inusitadas, como as que veremos a seguir, que representam um risco para o sucesso do projeto. A peculiaridade dos problemas apresentados reside no fato de que não poderiam ter sido evitados, por causa da falta de notícias prévias sobre situações similares que pudessem ter servido de alerta e no fato de terem sido causados pela fauna específica de cada lugar. O primeiro caso foi a destruição por insetos das juntas de fechamento das caixas que abrigam os equipamentos eletrônicos, o que põe em risco sua integridade pelo fato de a umidade relativa da zona ser extremamente elevada (Figura 29). No segundo caso, outro tipo de inseto perfurou severamente a estrutura de madeira que havia sido construída para suportar três reservatórios de água, cada um com 500 l de capacidade, o que pode causar um acidente sério em conseqüência da fragilidade da estrutura (Figura 30). No terceiro caso, os cupins roeram a capa protetora isolante e parte do cobre do cabo que leva o sinal da bóia do reservatório até o conversor, ocasionando a parada da bomba. A dificuldade de detectar o problema residia no fato de que o cabo estava enterrado ao longo de mais de 200 metros, o que tornou a avaria difícil de ser localizada (Figura 31). O quarto caso, talvez o mais surpreendente, foi o ataque de um crocodilo a um sistema flutuante de bombeamento instalado em um rio. O ataque destruiu parte da tubulação de saída de água e provavelmente se deveu à aparência «escamosa» do tubo ter levado o crocodilo a confundi-lo com um peixe (Figura 32).
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Figura 29. Junta de borracha danificada por insetos.
Figura 31. Cabo de sinal de nível de água no reservatório, danificado por cupins.
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Figura 30. Madeira de suporte de reservatórios perfurada por insetos.
Figura 32. Mangueira de sucção de una bomba flutuante, atacada por um crocodilo.