Original: Herman Dooyeweerd. “La Sécularisation de la Science”. La revue réformée, V (1954), 138138 155. Traduzido do inglês: The secularization of science . Tr. Robert D. Knudsen. Disponível em: <>. Acesso em 21 mar. 2016. Traduzido para o português por Vinícius Silva Pimentel. Atenção! Esta
é uma tradução não oficial, provisória, pendente de revisão, disponibilizada aos participantes do Núcleo Althusius de Estudos em Cosmovisão Cristã com a finalidade exclusiva de facilitar o acesso às leituras propostas. O tradutor não autoriza que este material seja divulgado. Ele será disponibilizado exclusivamente no grupo do Núcleo Althusius no facebook f acebook (https://www.facebook.com/groups/althusiu (https://www.facebook.com/groups/althusius/). s/).
Quando se faz referência à secularização, a secularização da ciência é muitas vezes esquecida. Isso ocorre porque a grande maior parte dos cristãos que desfrutaram de educação científica carece de uma ideia clara da conexão entre o pensamento científico e a religião. Repetidamente se reivindica que, por sua própria natureza, a ciência não-teológica deve ser completamente livre de crenças pessoais, porquanto sua objetividade seria posta em perigo tão logo fosse ela atrelada a quaisquer pressuposições originadas da fé. Essa ideia tem sido aceita sem que se aquilatem suas consequências e sem se perguntar se ela se justifica, seja de um ponto de vista bíblico ou de uma perspectiva científica crítica. Ignora-se que a secularização da vida teria sido impossível à parte da secularização da ciência, bem como que essa secularização científica teve lugar sob a esmagadora influência da secularização religiosa efetuada pelo humanismo pósrenascentista. Nós simplesmente passamos a considerar essa situação como um fait accompli.1 Os perigos de nossa ciência ocidental secularizada têm-nos confrontado de uma nova maneira, contudo, ao vermos o seu efeito devastador em muitos estudantes orientais. Em virtude de seu contato com ela, muitos deles têm sido arrancados arrancado s da fé de seus ancestrais ancestr ais e têm-se tornado presa fácil do niilismo ou do comunismo. Com efeito, como se tem dito, é a tarefa missionária da igreja pregar o evangelho a eles! Eles não entendem, contudo, a separação ocidental entre ciência e fé. A mesma ciência secularizada que secou a sua fé ancestral fará também definhar a semente do evangelho. Isso 1 N.T.P.: N.T.P.: “Fato consumado”, em francês.
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se deve ao fato de que a ciência, secularizada e isolada, se tornou um poder satânico, um ídolo que domina toda a cultura. Seria um equívoco supor que essa secularização da ciência é nada além do resultado natural da diferenciação cultural. Fazer essa suposição implicaria, com efeito, que a religião é apenas um campo particular da cultura. Propagou-se a teoria de que, em sociedades primitivas, a religião de fato se conectava a tudo da vida, mas que, no processo histórico de diferenciação cultural, ela teve de se separar dos demais campos sociais. Mas a religião – religião – até até mesmo a religião apóstata, isto é, a religião que não leva em conta a verdadeira religião revelada por Deus a nós nas Sagradas Escrituras – Escrituras – não não se permite restringir a um campo específico da vida temporal. Em vez disso, ela é a esfera central da existência ex istência humana, a qual confere à vida como um todo a sua orientação última. Diferenciação resulta em desintegração, se não for equilibrada pela integração total da vida. Essa integração total pode ser obtida apenas por meio da religião. É paradoxal que essa última proposição seja sustentada pela sociologia sociolo gia moderna, a mesma que levou as implicações da secularização da ciência ao seu limite extremo. A religião é reduzida a um fenômeno social, explicado em termos causais por meio de uma consciência coletiva, a qual se supõe que encerre o sólido fundamento para a unidade da sociedade.2 Nietzsche, que teve um insight penetrante penetrante acerca das consequências niilistas da ciência secularizada, disse que por meio da ciência o homem matara os seus deuses. No seu tempo, era apenas uma profecia, uma vez que a própria ciência era ainda venerada como co mo uma deusa, a qual conduziria a humanidade pelo caminho do progresso, progresso , da verdade e da liberdade. No presente, contudo, essa es sa profecia profe cia se cumpriu em e m larga medida. A fé no poder da d a ciência para libertar e exaltar a humanidade foi solapada e dissipada pelo historicismo positivista e pelo vitalismo, ambos os quais emergiram como resultado da secularização radical do pensamento moderno. Entrementes, a ciência secularizada jamais cessou de ser a força dominante na cultura ocidental. Muito pelo contrário! O seu poder tem aumentado aumen tado a um nível assombroso, à medida que ela vem possibilitando avanços tecnológicos sem precedentes. É um poder impessoal que tem racionalizado toda a sociedade. Embora não sendo mais venerada como uma deusa, a ciência secularizada pode se manifestar manifes tar como um demônio, imprimindo na alma humana a imagem teorética da realidade que ela criou, uma imagem que não pode se amoldar à fé cristã. É uma vã ilusão supor que a fé cristã tem a ver apenas com o mundo celestial, e nada com a ciência! A ciência secularizada afeta profundamente prof undamente o coração humano. No exato ex ato momento em que alguém a aceita, ela passa a acompanhá-lo ao ler as Escrituras e ao fazer suas orações. Embora a secularização da ciência tenha sido realizada sob a influência do humanismo moderno, pós-renascentista, é também necessário reconhecer quão influente foi 2 N.T.I.: Por exemplo, no pensamento de
Emile Durkheim.
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o motivo central do escolasticismo católico, aquele da natureza e graça, em preparar o caminho para essa secularização posterior. poster ior. É a influência dominante desse motivo antibíblico e dualista, outrossim, que até o presente dia tem impedido o protestantismo ortodoxo de cerrar suas fileiras e assumir uma postura positiva e inequívoca contra a secularização da ciência. O que está envolvido aqui não é meramente um protesto contra certas teses claramente antibíblicas da ciência secularizada; é preciso haver um protesto contra o próprio espírito da secularização enquanto tal, contra o dogma da autonomia da ciência com respeito à fé. Esse espírito e esse dogma precisam ser desmascarados. O que está envolvido aqui é nada menos que uma reforma interna do espírito da ciência e da sua concepção teórica da realidade de acordo com o motivo central e bíblico da Reforma. Refo rma. É uma questão de proclamar que existe uma antítese religiosa no pensamento filosófico e científico, como foi demonstrado de modo esplêndido pelo pai do avivamento calvinista na Holanda, o Dr. Abraham Kuyper. Precisamos estar cônscios tanto de nossa parcela de culpa pela secularização da ciência moderna quanto de nossa vocação para guerrear contra o espírito de apostasia que nela se revela. Isso não significa que possamos enfrentar esse espírito em nossa própria força. A batalha a que me refiro é uma de fé, um embate até mesmo contra nós mesmos, no poder do Espírito Santo, um embate que encontra a sua dinâmica numa vida de oração. Antes de tudo, perguntamos por que esse embate é necessário tanto do ponto de vista bíblico como de uma perspectiva científica. Do ponto de vista bíblico, precisamos estabelecer de antemão que a revelação divina tem um motivo central, que é a chave para o conhecimento, e que, em virtude do seu caráter integral e radical, este motivo exclui por completo qualquer concepção dualista do homem e do mundo. Este é o motivo da criação, queda e redenção em Cristo Jesus, na comunhão do Espírito Santo. Esse motivo não é, de modo algum, uma doutrina que possa ser aceita sem a sua operação poderosa em nossos corações. É, acima de tudo, uma força motriz no próprio centro do nosso ser, a chave para o conhecimento de Deus e de nós mesmos que pode abrir para nós a revelação de Deus Deu s nas Escrituras e em toda a obra obr a de suas mãos. É um motivo tão central que é o fundamento até mesmo para a exegese científica da própria Escritura. Esse motivo é tríplice; não obstante, forma uma única peça. É impossível entender o significado verdadeiramente bíblico do pecado e da redenção sem haver compreendido o verdadeiro significado da criação. Ao revelar a si mesmo como o Criador, Deus se revela como a única origem de tudo o que existe. Nenhuma força pode se opor a ele que tenha qualquer poder por direito próprio. Nós não poderíamos estabelecer nenhuma área da vida terrena como um asilo para a nossa autonomia em relação ao Criador. Ele tem o direito sobre tudo em nossa vida, sobre tudo em nosso pensamento e sobre tudo em nossa ação. Nenhuma esfera da vida pode ser divorciada do serviço de Deus. Ao se revelar como o Criador, Deus ao mesmo tempo descortinou ao homem o significado de sua própria existência. Somos criados à imagem de Deus. Tomando o cuidado de nos dissociarmos de 3
todas as especulações da teologia escolástica de inspiração grega, isso significa que aqui Deus nos revela a unidade radical da nossa existência. Assim como tudo da criação centra-se em Deus como sua origem unificada e integral, assim também Deus criou dentro no homem um centro unitário, uni tário, o qual é o ponto de concentração da sua existência temporal com todos os seus aspectos e poderes diversos. Tal é o coração, no sentido religioso da palavra, a fonte da qual procedem as saídas da vida, a alma ou o espírito de nossa existência temporal, isto é, de nossa existência corpórea. Pois a nossa existência corpórea inclui não apenas os aspectos físicos e biológicos de nosso ser, mas também os aspectos racionais e até mesmo a função temporal da fé. No coração do homem, Deus concentrou o significado de toda a realidade terrena. É por isso que a queda humana acarreta a queda da criação temporal inteira. É por isso que, do ponto de vista bíblico, o mundo, como ele se nos apresenta apr esenta nos reinos inorgânico, orgânico org ânico e animal, não pode ser visto como uma u ma coisa-em-si independente do homem. O próprio pr óprio Deus revelou a nós em sua Palavra que ele não vê a criação exceto com referência ao homem. Ela foi arruinada por causa do pecado do homem, e será salva por virtude da redenção humana. É por isso que toda filosofia que nega esse lugar central do homem no mundo é antibíblica, mesmo quando, em roupagem escolástica, sustente ser o macrocosmo uma criação de Deus. Os filósofos tomistas sustentam aceitar incondicionalmente a criação no sentido bíblico. Isso é um equívoco, contudo, porque eles concebem a criação como uma verdade do intelecto e a interpretam à parte da chave para o conhecimento. Em conexão com o sentido bíblico da criação, o significado da queda também se torna claro. Isso pode ser demonstrado brevemente. O homem, que fora criado à imagem de Deus, desejou ser algo em si mesmo, independentemente de seu Criador. O ego humano, considerado como o centro individual de sua existência, é, segundo a ordem da criação, destinado a refletir a imagem de Deus. Uma imagem não pode ser nada em si mesma. É por isso que o conhecimento humano de si mesmo depende do seu conhecimento de Deus. É também por isso que a existência humana, em seu centro religioso, está sujeita à lei de concentração religiosa, a qual não foi revogada pela queda. Todo o poder do diabo se baseia nesta lei de concentração na existência humana, porque, sem essa lei, a idolatria seria impossível. O pecado é uma privação, uma mentira, uma inexistência; mas o poder do pecado é algo positivo, dependente da bondade criada da realidade. Porque o homem foi criado à imagem de Deus, a queda é algo radical, uma queda no centro religioso, na própria raiz da existência ex istência humana, e uma queda do mundo inteiro, que tem seu ponto de concentração no homem. É também por isso que qu e a redenção em Cristo Jesus tem um caráter radical e integral. É a regeneração em Jesus Cristo no próprio coração da nossa existência. A redenção é em Jesus Cristo, o qual é a nova Raiz da raça humana e da terra inteira. Em oposição a toda concepção dualista e dialética, é necessário manter a natureza radical e integral da criação. Significa dizer, como Abraham Kuyper colocou, que não há o menor segmento da vida sobre o qual Jesus Cristo, o soberano supremo, não possa reivindicar direito exclusivo. 4
Qualquer especulação teológica que tente introduzir uma tensão dialética entre a criação e a recriação em Cristo Jesus, entre o Verbo como Criador e o Verbo como Salvador, Salvad or, é antibíblica! Tampouco há um dualismo entre graça comum e graça especial, como se o reino da graça comum fosse separado do reino de Cristo. Não há nenhuma graça à parte de Jesus Cristo, a nova Raiz da humanidade. Todo o domínio da graça comum é o domínio de Jesus Cristo. A graça comum nada mais é do que a graça para com a humanidade considerada como um todo, a humanidade que ainda não está livre de sua antiga raiz apóstata, mas que é contemplada por Deus em sua nova Raiz, Jesus Cristo. Ela também pertence ao domínio de Cristo, onde o conflito se dá entre o reino de Deus e o reino das trevas. A graça comum não pode ser interpretada como co mo sendo o domínio da natureza, no sentido católico romano, como o preâmbulo autônomo do domínio da graça. Ao contrário, é a esfera da antítese irreconciliável entre a cidade de Deus e a cidade mundana do diabo. É essa mesma antítese religiosa que também controla o domínio da ciência e da filosofia. É inevitável o conflito entre o motivo central da revelação divina e o poder dos motivos religiosos apóstatas, uma vez que cada um deles reivindica o controle do pensamento teórico e da imagem teorética da realidade. A fim de apresentarmos um substituto para a concepção secularizada da realidade, ser-nos-á necessário descobrir a imagem teorética da realidade que seja controlada pelo ponto de vista bíblico. Para realizar essa reforma interna da ciência e da filosofia, contudo, é necessário obter uma ideia clara do ponto de contato interior entre o pensamento teórico e os motivos religiosos centrais que o governam como seu ponto po nto de partida. Do ponto de vista da fé cristã, que deve se sujeitar ao motivo bíblico central em seu significado radical e integral, não é suficiente apenas rejeitar a autonomia da razão teórica. Agostinho, o estimado pai da igreja, fez apenas isso e defendeu energicamente a ideia de que o pensamento não pode encontrar a verdade à parte da iluminação da revelação divina. Era especialmente a relação entre a filosofia e a religião cristã que ele tinha em mente, e ele claramente apontou o perigo de uma invasão do pensamento cristão pela filosofia grega. Mas tal ponto de vista jamais foi acompanhado de uma investigação crítica da própria estrutura interna do pensamento teórico. Por não compreender claramente o ponto de contato interior entre o pensamento filosófico e os compromissos religiosos, Agostinho jamais pôde apresentar uma solução adequada ao problema de uma filosofia cristã propriamente pr opriamente dita. Ele identificou iden tificou esta última questão com outra totalmente diferente, isto é, aquela acerca da relação entre a filosofia e a teologia cristã. Ao negar a autonomia do pensamento filosófico, ele também negou a autonomia da filosofia em referência à teologia. Para ele, era impossível manter a filosofia pagã dos gregos como uma ciência autônoma. Era necessário subordiná-la à teologia dogmática, considerada como a única e verdadeira filosofia cristã. A filosofia deveria se acomodar acomoda r à doutrina cristã. Embora não pudesse ser mais do que uma serva, uma ancilla theologiae, ela poderia auxiliar a teologia de várias maneiras. Observamos, de passagem, que essa ess a ideia da relação entre filosofia e teologia não tem, de modo algum, uma origem cristã. Ao contrário, é a posição defendida por Aristóteles em sua Metafísica, ao lidar com a relação entre a teologia metafísica e as demais ciências. 5
Aristóteles disse que a teologia, a ciência do fim último e do sumo bem, é a rainha das ciências. As demais ciências não poderiam contradizer as suas verdades axiomáticas. Essa tese aristotélica foi transplantada para solo cristão e foi aplicada à relação entre a teologia revelada e a filosofia pagã. Contudo, considerando o seu ponto de partida religioso, não é de surpreender que, para Agostinho, uma teologia natural no sentido aristotélico estava radicalmente excluída. Na posição agostiniana, portanto, a ciência cristã é idêntica à teologia dogmática e todos os campos da ciência devem ser vistos do ponto de vista teológico. Essa posição é sucintamente afirmada na famosa passagem dos seus Solilóquios: “ Deum et animum scire volo. Nihil ne plus? Nihil omnino”.3 Foi essa a posição que dominou o escolasticismo até a renascença do aristotelismo sob Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino. Depois, esse agostinianismo foi progressivamente substituído pela concepção tomista. Concomitantemente, um novo motivo religioso foi inaugurado no pensamento p ensamento cristão, o qual já tivemos a oportunidade de mencionar, isto é, o motivo da natureza n atureza e graça. Obviamente, os termos “natureza” e “graça” já eram bem conhecidos. Pode-se Pode-se encontrá-los também em Agostinho. Porém, ao falarmos de um novo motivo religioso, temos em mente um motivo sintetizador que tentava reconciliar a concepção religiosa dos gregos acerca da natureza com o motivo central da religião cristã. Isso implicava que o mundo criado deveria ser visto sob dois aspectos, um natural e o outro, sobrenatural. O motivo da natureza e graça introduz uma esfera natural como o preâmbulo autônomo de uma esfera esfer a sobrenatural. Essa esfera sobrenatural é a da revelação especial de Deus e da comunhão com ele. Nessa concepção, contudo, a esfera natural se divorcia do motivo bíblico central, a que temos chamado a chave para todo o conhecimento. O motivo bíblico é substituído pelo motivo religioso da concepção grega de natureza. Tomado nesse sentido, o motivo da natureza e graça é intrinsecamente dualista e dialético, pois é na verdade composto de dois motivos religiosos que permanecem numa antítese radical e irreconciliável um com o outro. Examinaremos essa situação com mais detalhes adiante. Como vimos, o motivo bíblico central da religião cristã tem um caráter integral e radical, razão pela qual exclui em absoluto toda concepção dualista da criação. Ele não contém, portanto, qualquer vestígio de uma dialética oculta. Qualquer espécie de dualismo, qualquer dialética no interior do motivo religioso central que controla as atitudes de vida e pensamento de alguém, é sempre fruto f ruto de um impulso que é parcial ou totalmente apóstata desse motivo cristão. Um motivo apóstata nos força a buscar o absoluto dentro do relativo, a isolar um aspecto da realidade criada e elevar esse aspecto isolado – isolado – que que não possui significado algum exceto em sua conexão universal com todos os demais aspectos, exceto em sua relação central c entral com a Origem divina – ao patamar de um ser independente, o qual, em consequência, é deificado. Aquilo que é relativo nada é separado de seus correlativos. Quando um aspecto da 3 N.T.I.:
Agostinho, Solilóquios, I, 7. “Deus e a alma: é isso que desejo conhecer. Nada mais? Nada mesmo.” mesmo.” W.J. W.J. Oates (ed.), Basic Writings of St. Augustine (Nova Iorque: Random House, 1948), I, p. 262.
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realidade criada é deificado, um correlativo desse aspecto se levanta com igual força dentro da consciência religiosa; e a absolutização por ele engendrada se põe em antítese direta com a absolutização daquele primeiro aspecto deificado. Aqui está a origem da dialética no interior dos motivos religiosos estranhos à posição integral e radical da revelação divina. Tal dialética se encontra no interior do motivo religioso que controla a visão grega da natureza. Depois de Aristóteles, constantemente se tem referido ref erido a esse motivo como o da matéria e forma. Uma das consequências do uso desses termos pela metafísica escolástica, que se pretendia autônoma, foi que o seu significado religioso ficou f icou completamente esquecido. esq uecido. O motivo grego da matéria e forma tem um caráter religioso central que é impossível impos sível de apagar em sua aplicação metafísica. Ele tem sua origem num conflito irreconciliável entre a velha religião da natureza e a religião mais jovem dos deuses do Olimpo. Na velha religião, o aspecto da vida orgânica era deificado. A verdadeira divindade era a corrente vital no eterno fluir, a qual não poderia ser confinada a forma alguma, mas da qual periodicamente emergem as gerações de seres vivos que assumem formas individuais e que estão consequentemente sujeitas ao fado da morte, à imprevisível e impiedosa ananke (necessidade). Essa religião, cuja expressão típica era o culto a Dionísio, depreciava o princípio da forma. A divina corrente de vida é informe e, consequentemente, imortal. Eis aqui a origem da concepção grega de matéria. Na antiga filosofia jônia, Physis, a natureza, é concebida exclusivamente nesse sentido religioso. Physis é a própria deidade, a Origem divina de tudo o que nasce numa forma individual, a corrente vital que flui incessantemente segundo a ordem do tempo e que sobrevive à morte de todos os seres finitos. É esse o significado do misterioso fragmento de Anaximandro: “Para aquilo de onde as coisas emergem elas tornam a voltar, como é ordenado, pois elas fazem reparação e satisfação umas às outras por sua injustiça, segundo a ordem do tempo”.4 O significado desse texto pode ser expresso com o auxílio da famosa frase de Mefistófeles, no Fausto de Goethe, se lhe dermos uma leve virada virada grega: grega: Denn alles was gefmt entseht. Ist wert das es zu Grunde geht. Em contraste, a religião posterior dos deuses olímpicos emergiu de uma deificação do aspecto cultural da sociedade grega. É a religião da forma, da medida e da harmonia, a qual encontrou sua mais típica expressão em Apolo de Delfos, o legislador. Os deuses olímpicos deixaram a mãe terra com o seu fluxo vital e seu ameaçador fado da morte. Eles assumiram formas pessoais ideais. Tornaram-se os deuses imortais da cidade. Mas eles não tinham poder sobre o fado que ameaçava os homens mortais. Homero afirma em sua Odisseia: “Pois nem os imortais podem socorrer o pobre homem entregue ao destino cruel”.
4 N.T.I.: Como citado por
Bertrand Russell, History of Western Philosophy , p. 45.
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O motivo grego da forma divina originou-se dessa religião cultural e evocava de novo, como seu oposto, o motivo da matéria, o motivo do eterno fluir da vida e da morte. Esses dois motivos antagônicos estavam no interior do motivo central dialético do pensamento grego. Eles continuamente dirigiam esse pensamento a direções opostas. Todas as tentativas de reconciliá-los falharam, pois ninguém foi capaz de lançar mão de um princípio que transcendesse a sua antítese última. Uma vez que não havia qualquer possibilidade real de uma síntese, síntes e, a única alternativa era declarar a primazia de um motivo, em detrimento do outro. Assim, a antiga filosofia da natureza deu a primazia ao princípio da matéria e menosprezou o princípio da forma. A metafísica de Platão e de Aristóteles fez o oposto. O deus de Aristóteles é a forma pura, e o princípio da matéria ou do eterno fluir se torna o princípio da imperfeição, o qual contende com a forma enquanto alvo do seu movimento.. movimento Essa antítese religiosa dos motivos da forma e matéria também se expressa na concepção grega da natureza humana. O homem é composto de forma racional e matéria perecível. A natureza humana carece de uma unidade radical. Isso acontece porque, na religião apóstata tanto quanto na verdadeira religião, o conhecimento humano de si mesmo depende de seu conhecimento de Deus. Uma vez v ez que o deus de Aristóteles nada é senão uma u ma deificação do aspecto cultural da forma, e uma vez que esse deus é ele mesmo confrontado com o princípio eterno da alternância de vida e morte como um poder autônomo, o homem é concebido como um ser engolido pelo mesmo dualismo. É por essa razão que q ue a visão grega da natureza é incompatível com a visão bíblica da criação. Ex nihilo nihil fit : nada procede do nada! Essa é a essência da sabedoria grega
concernente à origem do mundo. Precisamente por essa razão, o pensamento grego podia aceitar a ideia de um demiurgo divino que dá forma form a à matéria preexistente. A própria matéria informe, contudo, não pode ter sua origem no princípio divino da forma. A ideia grega da origem do mundo é dualista e dialética; e, porquanto por quanto o motivo escolástico da natureza e graça desejava reconciliá-la com a doutrina da criação da igreja, esse motivo também estava enredado numa dialética religiosa. Parece ser uma lei geral de tal dialética o fato de que a consciência religiosa primeiro tenta reconciliar os elementos elementos últimos e antitéticos antitéticos envolvidos em seu motivo-base; todavia, a síntese se desintegra e retorna à antítese original tão logo a consciência passe a refletir criticamente acerca de seu ponto de partida. O tomismo desenvolveu uma concepção sintética do motivo da natureza e graça. O nominalismo de Ockham e Averróis , nos séculos XIV e XV, dissolveu a síntese tomista e reduziu r eduziu os seus termos a uma rígida antítese. Nessa visão antitética, não há qualquer ponto de contato con tato entre natureza e graça. É verdade que Guilherme de Ockham deu novamente a primazia ao motivo da graça, o que envolvia depreciar a esfera do natural até concebê-la como nada além de um substrato para a esfera sobrenatural. Ockham negava que a razão natural pudesse chegar ao conhecimento metafísico e a uma teologia natural. Segundo esse ramo do nominalismo, os universais, isto é, os conceitos de genus e species, não têm existência real à parte do 8
entendimento humano. Eles são apenas símbolos que remetem r emetem às coisas individuais incluídas em sua extensão; mas aqueles não têm com estas nenhuma conexão interna. E, uma vez que, segundo ele, a ciência se limita ao conhecimento das relações entre universais, o critério da verdade científica é posto dentro do próprio entendimento humano. A despeito de quão depreciada seja, a razão natural é completamente divorciada da revelação divina. É completamente secularizada. O próprio pensamento tomista atribuía certa autonomia à razão natural; mas essa autonomia era concebida de modo muito relativo. De fato, segundo a concepção sintética do motivo escolástico da natureza e graça, verdades naturais, as quais nada são além de um preâmbulo para as verdades sobrenaturais, jamais podem contradizer as verdades da revelação. O escolasticismo se engaja numa contínua adaptação do pensamento grego ao dogma eclesiástico, um empreendimento que é completamente impossível sem uma acomodação mútua dos motivos religiosos que dominam essas duas concepções de pensamento. Tão logo a concepção sintética do motivo da natureza e graça se dissolveu, e tão logo os dois motivos religiosos foram novamente postos um contra o outro em sua antítese original, a ciência não mais podia achar lugar para uma acomodação da ciência natural à doutrina da igreja. O processo de secularização da ciência atingia o seu ápice. A teologia dogmática cristã, que Agostinho e Tomás de Aquino haviam elevado ao patamar de uma ciência sagrada e a qual declaravam ser a rainha das ciências, não mais era reconhecida como uma ciência no verdadeiro sentido da palavra. Toda a ciência foi relegada à esfera da razão natural. A igreja podia, com efeito, condenar as visões propagadas pela ciência secularizada; mas não podia recorrer a nenhum tribunal científico, como antes recorria à teologia em seus doutores angélicos. Dali por diante, até mesmo a efetividade da excomunhão dependia inteiramente do poder político da igreja, que se desvanecia, e do relacionamento pessoal do cientista com as autoridades eclesiásticas. Depois de vir à tona a dialética religiosa e sua antítese no motivo da natureza e graça, havia duas direções nas quais a ciência ocidental poderia se desenvolver. Ou o pensamento cristão poderia retornar ao motivo bíblico central e levar em consideração a necessidade de uma reforma interior do pensamento científico, ou o nascente processo de secularização da ciência poderia se intensificar, pela condução de um novo motivo religioso, um produto da completa secularização da religião cristã. A primeira possibilidade se apresentava em conexão com o grande movimento histórico da Reforma. A segunda possibilidade aparecia no humanismo moderno, que logo obteve a posição dominante no desenvolvimento histórico da nossa cultura moderna. A Reforma não poderia oferecer outras credenciais senão a reivindicação de ser uma reforma interna, num verdadeiro sentido bíblico, da doutrina da igreja, da sociedade e, com efeito, de toda a vida. Não era apenas um movimento teológico e eclesiástico. Ao conclamar por um retorno ao puro espírito das Sagradas Escrituras, ela atraía o poder diretivo do motivo bíblico central em seu significado integral e radical, que abraça todas as esferas
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da vida terrena. No domínio da ciência, a Reforma tinha, pela graça de Deus, uma grande oportunidade de realizar uma reforma básica da instrução universitária nos países que se tinham alinhado a ela. Infelizmente, a Reforma não aproveitou tal oportunidade. O magnificente programa de Melanchthon Melanchthon para a reforma da educação não era de modo algum inspirado pelo espírito bíblico. Ao contrário, possuía um espírito humanista filológico, que foi acomodado à doutrina luterana e deu origem a uma nova filosofia escolástica. Esta última, por sua vez, preparou o caminho para a secularização humanista no tempo do Iluminismo. Nas universidades calvinistas, Theodore Beza restaurou o aristotelianismo como a verdadeira filosofia, adaptando-a à teologia reformada. Essa reforma protestante do conhecimento científico criou uma aberração ao adotar novamente a máxima dualista: “Em busca de fé, deve-se deve-se ir a Jerusalém; em busca de sabedoria, deve-se deve-se ir a Atenas”. Foi igualmente igualmente desencorajador ver, no século XVII, o celebrado teólogo reformado Voetius protestando contra as inovações inovaçõ es de Descartes como um paladino do aristotelismo. O espírito verdadeiramente bíblico que havia inspirado as Institutas da religião cristã de João Calvino foi derrotado pelo espírito escolástico da acomodação, absorto pelo motivo antibíblico da natureza e graça. Foi a força diretiva desse motivo dialético, herança do catolicismo romano, que restringiu a força da Reforma e que, por mais de dois séculos, eliminou a possibilidade de um real adversário adver sário à secularização da ciência. Essa secularização foi realizada por completo sob a influência religiosa do humanismo moderno. É verdade que o humanismo afirma categoricamente que o processo de secularização foi nada mais que o corolário do próprio espírito científico. Isso era, contudo, um dogma bastante acrítico, o qual temos desmascarado como tal em nossa investigação crítica da estrutura interna do pensamento científico. Jamais houve uma ciência que não fosse fundada em pressuposições de natureza religiosa, tampouco jamais haverá. Significa dizer, com efeito, que toda ciência pressupõe uma certa visão teórica da realidade a qual envolve uma ideia das relações mútuas havidas entre seus vários aspectos, e que essa ideia, por sua vez, é intrinsecamente dominada por um motivo religioso central ao pensamento. O humanismo moderno, que após o Renascimento dominou mais e mais a concepção da ciência, tinha ele próprio um motivo religioso central, o qual desde Immanuel Kant tem sido chamado o motivo da natureza e liberdade. É impossível entender as tendências últimas da moderna secularização da ciência sem que se tenha uma visão clara do significado religioso desse motivo. Pois, assim como o pensamento escolástico foi enganado por ter negligenciado a natureza natur eza religiosa do motivo grego gre go da forma e matéria, também está completamente enganado acerca da real natureza do motivo humanista aquele que pensa ser ele apenas a formulação de um problema exclusivamente filosófico. Mais uma vez, é a influência do dogma da autonomia do pensamento o responsável por esse erro crasso.
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O motivo da natureza e liberdade é de caráter dialético. Ele não emergiu, entretanto, da colisão de duas religiões diferentes, mas simplesmente de uma secularização do motivo bíblico central da criação, queda e redenção. Essa secularização aparece já no início do humanismo na Renascença italiana. Um renascimento puramente secular é proclamado. A concepção bíblica de regeneração é desnaturada e se torna a expressão do novo motivo humanista da liberdade. Este último nada mais é que uma secularização do tema bíblico da liberdade em Cristo Jesus, o resultado da redenção. Ele proclama a autonomia humana, a qual pretensamente deve realizar uma revolução copernicana no centro do seu ser, na religião. A personalidade humana é elevada à posição de um fim último, um “Selbstweck”, um fim em si mesmo. O moderno homem autônomo deseja criar um deus à sua própria imagem, que ele possa justificar em uma teodiceia racional. Leibniz criou um deus no espírito do ideal humanista de ciência, um deus que é o grande geômetra, que pode analisar o todo da realidade em um cálculo infinitesimal. Aqui o cálculo infinitesimal, o qual fora introduzido por Leibniz na matemática, é deificado. Rousseau, o qual lutou apaixonadamente contra a deificação da ciência matemática, criou um deus que correspondia ao sentimento de liberdade da d a personalidade autônoma. Immanuel Kant criou um deus que é o postulado da razão prática, um deus segundo a imagem de uma moralidade autônoma a qual proclama a personalidade humana como seu fim último. Não é por mero acaso que há divergências entre as concepções humanistas de Deus – Deus – todas todas as quais lhe atribuem o lugar de Criador, porém num sentido secularizado. Isso revela a tensão dialética dentro do motivo religioso central da liberdade. Já dissemos que esse motivo humanista emergiu de uma secularização do tema bíblico da liberdade em Jesus Cristo, considerada como fruto da redenção. Na religião cristã, esse motivo tem um sentido radical, pois se refere à unidade da raiz da existência humana, ao coração, aquele que transcende a diversidade dos vários aspectos da ordem temporal do mundo, aquele no qual toda essa diversidade é concentrada numa unidade espiritual que é à imagem de Deus. Tão logo essa ideia cristã de liberdade foi secularizada, isto é, presa à órbita da realidade terrestre com toda a sua variedade de aspectos e transformada na ideia humanista de autonomia, ela foi condenada a tornar-se ambígua. A tendência religiosa inata que impulsiona alguém a buscar o conhecimento de Deus e de si mesmo tomou, então, uma direção apóstata. Na busca de si mesmo e do seu deus, o moderno homem autônomo está, de fato, em busca de ídolos. Ele perdeu de vista o Deus que se revela nas Sagradas Escrituras e o homem tal como criado à imagem de Deus. Não surpreende, portanto, que o motivo religioso da liberdade autônoma humana divergiu em dois motivos mutuamente excludentes, ambos os quais são tidos por independentes e absolutos. O motivo da liberdade autônoma evocava, evoc ava, antes de tudo, um novo ideal de personalidade com respeito à vida religiosa e moral, um ideal pelo qual o homem se recusava a submeter-se a qualquer norma prática que não fosse imposta a si mesmo por sua própria razão. Em segundo lugar, evocava o motivo da dominação da natureza pela ciência
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autônoma e uma reconstrução de toda a realidade segundo o modelo da nova ciência natural fundada por Galileu e Newton. Isto é: evocava o ideal de ciência. Esse novo ideal de personalidade e esse novo ideal de ciência que haveria de dominar a concepção de natureza tinham, ambos, sua origem no motivo humanista de liberdade; mas eles se opunham um ao outro em uma tensão dialética religiosa. Na medida que a visão teorética da realidade era moldada pelo pelo ideal científico de dominação da natureza, não restava espaço para a liberdade autônoma da personalidade humana no domínio da sua atividade prática. O ideal racionalista da ciência secularizada desenvolveu uma visão da realidade estritamente determinista, desprovida de toda estrutura de individualidade e concebida como uma cadeia fechada e rígida de causa e efeito. O novo ideal de ciência secularizava o motivo mo tivo bíblico da criação. O poder criador cr iador era atribuído ao pensamento teórico, ao qual se deu a tarefa de demolir metodicamente as estruturas da realidade tal como dadas na ordem divina da criação, a fim de recriá-las teoreticamente segundo a sua própria imagem. A orgulhosa afirmação de Descartes, repetida por Kant5 – “ – “Dai-nos o material e vos construiremos um mundo” mundo” – , e a afirmação de Thomas Hobbes de que o pensamento teórico pode criar assim como o próprio Deus são ambas inspiradas pelo mesmo motivo humanista, o motivo da liberdade criativa do homem concentrada no pensamento científico. Portanto, o próprio ideal evocado pelo motivo religioso da liberdade criativa, o ideal da ciência em sua forma naturalista original, destruía por sua visão teórica mecanicista do mundo a própria liberdade humana que lhe trouxera à existência. De um lado estava a ciência autônoma, do outro, a ação autônoma; de um lado estava o novo ideal matemático e mecanicista de ciência, do outro, o novo ideal da personalidade livre e autônoma. Estes se tornaram mutuamente antagônicos por causa da dialética interna ao motivo religioso humanista. A isso Kant atribuiu a alcunha do conflito entre natureza e liberdade. Se alguém busca evitar a estrutura dialética da religião apóstata, depara-se com a necessidade de dar primazia a um desses dois motivos humanistas em detrimento do outro. Assim como o pensamento grego começou dando a primazia ao motivo religioso da matéria – o motivo do informe e eterno fluxo de vida e morte – , assim também o pensamento humanista começou dando a primazia ao ideal determinista da ciência secularizada. Cria-se firmemente que uma ciência secularizada e deificada seria capaz de conduzir a humanidade pela senda da liberdade e do progresso. Mas, com Rousseau, teve início uma apaixonada reação em nome da liberdade e contra o ideal de ciência. Rousseau depreciava esse ideal e deu a primazia pr imazia religiosa ao motivo da liberdade pessoal corporificada numa religião sentimental. Desiludido, ele virou as costas
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Immanuel Kant, “Allgemeine Naturgeschichte des Himmels ”, Immanuel Kant s Werke (Grossherzog Wilhelm Ernst Ausgabe), II, p. 267. ’ ’
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para a cultura ocidental, dominada pela ciência, e proclamou a regeneração da sociedade pelo espírito da liberdade. Kant tentou separar esses dois motivos antagônicos reservando um domínio próprio para cada um deles. De um lado, o ideal mecanicista de ciência foi limitado ao domínio da natureza, rebaixado ao nível de um mundo puramente fenomênico e concebido como o construto do entendimento autônomo humano, o legislador deste mundo, a origem da lei natural. De outro lado, o ideal da liberdade liber dade autônoma, identificado com a ideia de pura vontade, foi elevado ao status metafísico de uma norma que transcendia o mundo fenomênico da natureza. Dentro desse reino supersensório da liberdade, era a razão prática a origem autônoma da lei moral. Assim como ocorreu com Rousseau, a primazia religiosa foi dada ao motivo da liberdade. Essa ideia Kantiana de autonomia da vontade foi concebida em moldes racionalistas. De um lado, o verdadeiro ego, o verdadeiro autos humano foi identificado com o nomos, com a formulação geral da lei moral. Por toda a extensão de sua ética, não havia espaço em Kant para a individualidade da personalidade humana. De outro lado, o motivo humanista da liberdade criativa não poderia contentar-se em ocupar um domínio puramente ideal; não poderia contentar-se em abrir mão da realidade empírica, identificada com a natureza, para ao ideal racionalista ra cionalista de ciência. Esse motivo, assim como o motivo do controle científico da natureza, precisava criar um mundo à sua própria imagem. Foi exatamente nesse ponto que o romantismo e o idealismo pós-kantiano desejaram erradicar os resquícios de racionalismo que ainda estavam atrelados às concepções de liberdade e de natureza. Uma nova concepção do ideal de personalidade livre e autônoma foi então desenvolvida, uma concepção que não mais buscava o verdadeiro ego humano, o verdadeiro autos do homem em uma norma geral, uma lei moral, um nomos; antes, ao contrário, considerava a verdadeira norma da moralidade um simples reflexo da individualidade criativa da personalidade livre. A verdadeira moralidade, então, segue a disposição e vocação individual. Essa nova concepção de liberdade era incompatível com qualquer lei geral. A “moralidade burguesa” burguesa” e o legalismo de Kant foram substituídos por uma “moralidade de índole” índole”. É impossível julgar um colosso como Napoleão pela mesma norma moral que se aplica a um homem ordinário! Ao mesmo tempo, desenvolveu-se uma nova concepção de sociedade humana. Sob a influência do ideal matemático e mecânico de ciência, a sociedade fora dissolvida em um agregado de indivíduos atomísticos desprovidos de individualidade. Não havia espaço para uma concepção de comunidade enquanto totalidade individual. Contudo, a nova concepção do ideal de personalidade livre, que tinha espaço apenas para o indivíduo livre de toda lei geral, caiu no extremo oposto. Ela criou uma imagem universalista da sociedade, segundo a qual o homem individual é nada mais que um membro da comunidade individual terrena, de uma totalidade que o encerra completamente e que produz suas leis e sua ordem social como um reflexo do seu espírito autônomo individual. Segundo essa visão 13
irracionalista, são as nações, consideradas como totalidades, que determinam a individualidade de seus membros. Em tal visão, não há mais espaço para os direitos do homem como tal. Não é mais o homem em geral que se conhece; é apenas o homem individual considerado como um membro de sua nação – nação – Alemanha, Alemanha, Inglaterra, França etc. Alinhada a essa nova concepção de liberdade, deveria haver também um remodelamento da concepção de natureza, a qual Kant havia entregado ao ideal racionalista e mecanicista de ciência. Por meio de um modo dialético de pensar, que não teme contradições, tentou-se realizar uma síntese entre os dois motivos antagônicos que tinham sua fonte no ponto de partida religioso do humanismo. Tentava-se descobrir a liberdade dentro da natureza e a necessidade natural dentro da liberdade. Não é de modo algum surpreendente que nesse clima espiritual, nutrido pelo espírito conservador da Restauração, que dominou a primeira parte do século XIX, o velho ideal de ciência, coberto como estava pelo método analítico das ciências exatas, tivesse perdido toda a sua atratividade. Surgiu progressivamente um novo ideal de ciência, voltado para a historicidade. Assim como o modelo de pensamento matemático e mecânico dominaram a filosofia racionalista, essa nova ideia histórica de ciência emergiu do motivo religioso humanista da autonomia humana. Mas esse novo modo histórico de pensamento pens amento não estava de modo algum interessado em reduzir a realidade à formulação geral de leis universais. Ao contrário, ele depreciava esse pensamento racionalista como incapaz de penetrar o cerne da individualidade criativa. O pensamento histórico buscava sua matéria nos fatos individuais irrepetíveis. Desejava interpretá-los segundo o seu caráter individual, como pertencentes a um período específico de desenvolvimento, como a Renascença, o Iluminismo, a Restauração etc. E, assim como o ideal de ciência mecanicista e matemático criou uma imagem mecanicista e racionalista de toda a realidade, o novo ideal histórico de ciência criou um mundo à sua própria imagem. Toda a realidade passou a ser vista da perspectiva histórica, que foi elevada a posição absoluta. O pensamento histórico criou um mundo histórico, no cerne do qual não mais havia espaço para outros aspectos irredutíveis da vida. A própria natureza foi transformada numa natureza histórica, um contínuo processo evolucionário criativo. Num tal sistema, a história cultural da humanidade era considerada um estágio mais avançado da história natural. Porém, assim como se descobriu que o ideal mecanicista de ciência era antagônico ao motivo humanista de liberdade, assim se percebeu que o novo ideal histórico de ciência era um adversário ainda mais perigoso ao ideal humanista da personalidade livre e autônoma. Enquanto esse novo historicismo estava sob as rédeas do idealismo, que não poderia pensar p ensar no processo p rocesso histórico de outra forma senão como o desabrochar, d esabrochar, no tempo, da ideia eterna da humanidade autônoma, o historicismo não podia revelar suas implicações extremas. Mas o idealismo pós-kantiano, do qual brotara o pensamento histórico, foi esmigalhado durante a segunda parte do século XIX. O historicismo também escrutinou as 14
ideias supostamente eternas do humanismo a partir do seu aspecto histórico e, com isso, reduziu-as a nada mais que produtos ideológicos do processo histórico. Ao se emancipar do idealismo, o historicismo se tornou positivista. O evolucionismo biológico de Darwin e do marxismo transformou o pensamento histórico numa direção naturalista. Ambos possuíam uma fé inabalável no poder libertador da ciência! Esse ideal religioso de ciência secularizada, por sua vez, não mais estava protegido das implicações niilistas do historicismo extremo. Os fundamentos f undamentos do velho ideal mecanicista e determinista de ciência foram destruídos no início do século XX, como resultado da descoberta da teoria quântica da energia. A hipnose da evolução darwiniana foi seguida por um desiludido despertar, quando a pesquisa histórico-crítica demonstrou que suas construções apriori da evolução da vida cultural e social não concordavam, em absoluto, com os fatos melhor provados. Ademais, as duas guerras mundiais aniquilaram a fé no poder enaltecedor da ciência e da razão autônoma. Diante de todos esses fatos, o historicismo positivista pôde se expressar em sua forma mais consistente e extrema, destruindo por sua vez os fundamentos da verdade científica. Ele nutriu um sentimento de declínio, o qual teve sua expressão filosófica no existencialismo humanista e no famoso livro de Spengler, O declínio do Ocidente. *** Assim traçamos até o seu fim a secularização da ciência em seu desenvolvimento dialético. Buscamos demonstrar que esse processo desastroso foi dirigido por motivos religiosos antibíblicos e que nem o catolicismo romano nem o protestantismo estão isentos de sua parcela de responsabilidade pelo desenvolvimento desse espírito científico secular. Ambos são responsáveis por essa secularização, na medida que se esqueceram da natureza integral e radical do motivo bíblico e seguiram o motivo escolástico da natureza e graça. Agora, somos confrontados com o fato de que nossa cultura ocidental está espiritualmente desarraigada, um estado de coisas impensável à parte do processo de secularização da ciência. Para os filhos da Reforma calvinista, não deveria haver espaço para par a perder tempo em longas discussões escolásticas a respeito de se tanto a ciência como a filosofia também pertencem ao reino de Jesus Cristo ou se elas, em vez disso, pertencem ao domínio de uma razão natural. Essa discussão não precisa ir adiante, pois, como mostramos, não há razão natural que seja independente da força motriz religiosa que controla o coração da existência humana. Para nós, há apenas dois caminhos abertos: a acomodação escolástica, que, em virtude de seus desdobramentos dialéticos, resulta em secularização, ou o espírito da Reforma, que demanda uma reforma interior e radical do pensamento científico pelo poder diretivo do motivo bíblico. 15
Lembremo-nos das palavras do nosso Salvador: “ Ninguém pode servir a dois senhores” senhores”. E oremos para que Deus envie trabalhadores fiéis à sua seara, a qual é a terra inteira e, portanto, inclui também o domínio do conhecimento científico.
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