COMPARAÇÃO A comparação entre "Os Lusíadas" e a "Mensagem" impõe -se pelo próprio facto de esta ser, a alguns séculos de distância e num tempo de decadência - o novo mito de pátria portuguesa.
Os Lusíadas
Homens reais com dimensões heróicas mas verosímeis;
Heróis de carne e osso, bravos mas nunca infalíveis;
Mensagem
Heróis mitificados, desincarnados, carregando dimensões simbólicas Brasão
Terra Nun’Álvares
Pereira
Mar Infante
Mar Português
D. Henrique
O encoberto
Herói colectivo: o povo português Virtudes e manhas D. Sebastião (rei menino) a quem Os Lusíadas são dedicados;
“tenro e novo ramo”
Celebração do passado – passado – história história
Narrativa comentada comentada da história de Portugal (cf. Jorge Borges de Macedo) Teoria da história de Portugal Três mitos basilares: o o
o
(de uma terra de dimensões conhecidas parte-se à descoberta descoberta do mar e constrói-se um império. Depois o império se desfez e o sonhos e o Encoberto são a raiz a esperança de um Quinto Império) Heróis individuais exemplares (símbolos) D. Sebastião mito “loucura sadia” Sonho, ambição (repare-se que d. Sebastião é a última figura da história a ser mencionada, como se se quisesse dizer que Portugal mergulhou, depois do seu desaparecimento num longo período de letargia) Glorificação do futuro – futuro – símbolos símbolos Messianismo a mola real de Portugal Metafísica do Ser português Tudo é mito
Adamastor Velho do Restelo A ilha dos amores
“o mito é o nada que é tudo”
acção
império feito e acabado
Ar D. Sebastião
Façanhas dos barões assinalados Temporalidade
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contemplação altiva rejeição do real Portugal indefinido, atemporal Saudade profética saudades do futuro Matéria dos sonhos Atemporalidade mística
Síntese pagão e cristão D. Sebastião como enviado de Deus para alargar a Cristandade
Síntese total (sincretismo religioso) Portugal como instrumento de Deus (os heróis cumprem um destino que os ultrapassa) Rosto da Europa que aguarda expectante o que virá
cabeça da Europa
Poetas da ausência
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Do que foi ou do que poderá vir a ser Intervalo multissecular
Os Lusíadas
Mensagem
Viagem, aventura, risco (elementos viris) D. Sebastião físico Império terreno Evocação Portugueses
D. Sebastião mítico Elemento onírico O encoberto O desejado Império Espiritual Invocação Atitude Metafísica Essência de Portugal Abstracção
( um império que já não é)
O projecto da Mensagem é o de superar o carácter obsessivo e nacional d’ Os Lusíadas no imaginário mítico-poético nacional. Os Lusíadas conquistaram o título de “evangelho nacional” e foram elevados à categ oria de símbolo nacional. A Mensagem logo no seu título aponta para um novo evangelho, num sentido místico, ideia de missão e de vocação universal. O próprio título indicia uma revelação, uma iniciação. Pessoa previa para breve o aparecimento do “Supra -Camões” que anunciará o “Supra-Portugal de amanhã”, a “busca de uma Índia Nova”, o tal “porto sempre por achar”. A Mensagem entrelaça-se, através de um complexo processo intertextual, com Os Lusíadas, que por sua vez são já um reflexo intertextual da Eneida e da Odisseia. Estabelece-se portanto um diálogo que perpassa múltiplos tempos históricos. Pessoa transforma-se num arquitecto que edifica uma obra nova, com modernidade, mas tam bém com a herança da memória. Em Camões memória e esperança estão no mesmo plano. Em Pessoa, o objecto da esperança transferiu-se para o sonho, daí a diferente concepção de heroísmo. 1
Expressão de Jacinto Prado Coelho
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Pessoa identifica-se com os heróis da Mensagem ou neles se desdobra num processo lírico-dramático. O amor da pátria converte-se numa atitude metafísica, definível pela decepção do real, por uma loucura consciente. Revivendo a fé no Quinto Império, Pessoa reinventou um razão de ser, um destino para fugir a um quotidiano absurdo. O assunto da Mensagem é a essência de Portugal e a sua missão por cumprir. Portugal é reduzido a um pensamento que descarna e espectraliza as personagens da história nacional. A Mensagem é o sonho de um império sem fronteiras nem ocaso. A viagem real é metamorfoseada na busca do “porto sempre por achar”. “A M ensagem comparada com Os L usí adas
é um passo em frente. Enquanto Camões, em Os L usíadas , conseguiu fazer a síntese entre o mundo pagão e o mundo cristão, Pessoa na M ensagem conseguiu ir mais longe estabelecendo uma harmonia total, per feita, entre o mundo pagão, o mundo cristão e o mundo esotérico.” (Cirurgião: 1990,19) “A M ensagem é algo mais, muito mais, que uma mera viagem temporal e espacial pela
mitologia, pré-história e história de Portugal. É essencialmente uma viagem pelo mundo labiríntico dos mistérios e dos enigmas e dos símbolos e dos signos secretos, em demanda da verdade.” (Cirurgião: 1990,155) Cirurgião, António - 1990 O olhar esfíngico da Mensagem de Fernando Pessoa INLC, Ministério da Educação
A Mensagem reparte-se em dois vectores:
busca ôntica – procura da essência da lusitanidade e definição da nossa idiossincrasia inquirição – questionação do mesmo histórico a seguir e a fazer seguir como projecto nacional colectivo
Pessoa é um exemplo desta obsessão nacional – a espera de um Messias. A história de Portugal não oferece problemas à elaboração de um mito nacional. Ela está cheia de elementos e contém já um grande mito, o sebastianismo. Pessoa distinguiu o seu sebastianismo, apelidando-o de racional. O regresso de D. Sebastião é associado ao aparecimento do Quinto Império. Pessoa abandona os Impérios materiais para elaborar impérios espirituais – Grécia, Roma, Cristandade, Europa pósrenascentista e, agora, Portugal. O Quinto Império já estava escrito nas trovas do Bandarra e nas quadras do Nostradamus. O nacionalismo tradicional é superado por um nacionalismo cosmopolita. Pessoa, criador do fundo e da forma do mito, anuncia-se como um supra Camões. A realidade é activada pelo Mito (força catalizadora).
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DIFERENÇAS OS L USÍAD AS
M EN SAGEM
Os Lusíadas são quer pelas características estilístico-formais, quer pelo conteúdo e respectiva estruturação, uma epopeia clássica, de natureza predominantemente narrativa A expansão que Camões exalta e a cujo prosseguimento exorta D. Sebastião é terrena, alicerça-se na luta movida ou a empreender contra os Infiéis, tem como motivação profunda a fé católica. O sebastianismo de Camões pode definirse como existencial, na medida em que nesse D. Sebastião de “tenro gesto”, depositou ele todas as ardorosas esperanças, incitando-o à conquista do Norte de África e oferecendo-lhe os seus préstimos como cantor de tão sublime empresa (I, 6-8 e X 155-156) A origem e a progressiva consolidação da nacionalidade revelam um influxo divino transcendente, no qual o milagre desem penha um papel relevante (III, 45-46) Em Camões, põem-se no mesmo plano a memória e a esperança.
Composta de 44 breves poemas, escritos em diversas épocas e agrupados em 3 partes fundamentais, é um poema épicolírico, por vezes de tom elegíaco O Quinto Império não se insere na esfera do sensível; é um império espiritual (de inspiração ocultista), provavelmente da Cultura e/ou da Língua Portuguesa. O sebastianismo de Pessoa enquadra-se na esfera do mito, porquanto o seu referente, o rei, é apenas uma sombra, uma ausência, um silêncio, um vazio; em suma, é o Desejado, o Encoberto (poemas “O des e jado”, “As Ilhas Afortunadas”, o “Enco berto” Também os primórdios e o subsequente e gradual afirmar-se da nação portuguesa dependem da vontade divina, sem que, todavia, o factor milagre seja mencionado. Em Pessoa, não, porque o objecto da esperança se transferiu para o sonho, a utopia, e daí uma concepção diferente de heroísmo. Ao fim duma caminhada plena de sacrifícios, o herói pessoano não conhece (em consequência de um misticismo sem objecto definido, determinado) a felicidade, a plenitude resultante do triunfo; apresenta-se pelo contrário, possuído de uma infinita insatisfação, duma grandeza de alma que, gerando infelicidade, justifica a vida (“O das Quinas” e “O Quinto I mpério” Os heróis pessoanos são mitos, puros receptáculos de valores simbólicos. O herói ideal de Pessoa situa-se na esfera do imaginário, do utópico, e ostenta, como traço peculiar e determinante, essa “loucura” de sinal positivo que faculta ao homem a possibilidade de se libertar da apatia improfícua e asfixiante duma vida onde não caibam os ideais, o sonho. Em Mensagem sobressai particularmente a invocação das figuras heróicas ou o seu
Na epopeia camoniana, o fragoso percurso do herói é (como reflexo da ética cristã) coroado, recompensado pela imortalidade na terra e pela beatitude no céu (IX, 8891). Verifica-se, neste caso, uma ascensional divinização.
Os heróis camonianos surgem como homens corajosos, sonhadores, empreendedores, mas de dimensões humanas, sujeitos a fragilidades e limitações. Por conseguinte, o herói paradigmático de Camões evidencia sempre uma notável ponderação. N’Os Lusíadas predomina a evocação dos heróis.
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auto-retrato. A tarefa do autor de “O Encoberto”, mais temerária foi a de descer do mito como suprema realidade para a verdade futura de um destino tão prodigioso que os prodígios reais nada mais fossem que sinais e signos da sua iniciação. Em Mensagem os mitos, mais do que uma sublimação da história, operam uma transfiguração que remete para a zona da transhistória, onde as entidades são arquétipos.
A empresa de Camões foi a de elevar ao nível do mito a prosa da realidade enquanto acto e acção da lusa gente.
N’Os Lusíadas, através dos mitos, sublima-se a história, as navegações com as suas angustias e as suas recompensas (os mitos do “Velho do Restelo”, do “Ad amastor” da “Ilha dos Amores”). O objecto do canto são os portugueses mencionados na proposição, i. e., aqueles que se imortalizaram “por obras valerosas”. Na contextura do poema camoniano avultam processo característico do género épico: a emulação, com base em frequentes alusões à epopeia, clássica e antiga, das gestas lusitanas com as de outros povos. Na epopeia camoniana, a temporalidade abrange duas esferas: a humana (rala) e a mítica. O espaço onde se desenrolam as acções, quer humanas quer divinas, é, em geral, objecto de cuidada descrição. o estilo camoniano, ortodoxamente alatinado no léxico e na sintaxe, caracteriza-se por “um som alto e sublimado”, “hua fúria grande e sonorosa (…) de tuba canora e belicosa”.
O assunto do poema não são os portugueses ou eventos concretos, mas a essência de Portugal e a sua missão de cumprir (cf. “Viriato”, e “D. Dinis” com os correspondentes passos d’Os Lusíadas VIII, 6 e III, 96-98) Mensagem, apesar de embebida em sugestões colhidas n’Os Lusíadas, conseguiu libertar-se de explícitas referências textuais camonianas. O poema de Pessoa situa-se num tempo mítico (morto, estático), um não-tempo. A atmosfera mítica prescinde quase integralmente das notações de espaço. No estilo de Pessoa, embora persistindo os latinismos lexicais e sintácticos, só aqui ou além surge um sopro épico.
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