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Nietzsche São Paulo – 2004
No 16 ISSN 1413-7755
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Nietzsche são indexados por The Philosopher’s Index, Clase e Geodados
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Nietzsche no 16 – São Paulo – 2004 ISSN 1413-7755 Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche Editor Responsável / Editor-in-Chief Scarlett Marton
Editor Adjunto / Associated Editor André Luís Mota Itaparica
Conselho Editorial / Editorial Advisors
Ernildo Stein, Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho
Comissão Editorial / Associate Editors
Alexandre Filordi de Carvalho, Carlos Eduardo Ribeiro, Clademir Luís Araldi, Fernando de Moraes Barros, Ivo da Silva Júnior, Márcio José Silveira Lima, Sandro Kobol Fornazari, Vânia Dutra de Azeredo, Wilson Antônio Frezzatti Júnior
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Apoio: Projeto gráfico e editoração / Graphics Editor: Guilherme Rodrigues Neto Foto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818 Revisão: Mariana Nassar 1.000 exemplares / 1.000 copies
Fundado em 1996, o GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – persegue o objetivo, há muito acalentado, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamento de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acerca de questões que dele emergem. As atividades do GEN organizam-se em torno dos Cadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têm lugar em maio e setembro sempre em parceria com diferentes departamentos de filosofia do país. Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschianos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, por razões profissionais ou não, pela filosofia de Nietzsche. Não exige taxa para a participação. Scarlett Marton
GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – was founded in 1996. Its aim is to gather Brazilian researchers on Nietzsche’s thinking, and therefore to promote the discussion about questions which arise from his thought. GEN’s activities are organized around its journal and its meetings, which occurr every May and September in different Brazilian departments of philosophy. GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche, whether professional or private. No fee for membership is required. Scarlett Marton
Sumário
Nietzsche: a vida e a metáfora
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Nietzsche e a leitura de Do Belo Musical de Eduard Hanslick
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Schopenhauer, Nietzsche e a crítica da filosofia universitária
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Sobre a Metamorfoseabilidade da Experiência em Die Geburt der Tragödie de Nietzsche
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Nietzsche: o pluralismo e a pós-modernidade
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Eric Blondel
Anna Hartmann Cavalcanti
Jarlee Oliveira Silva Salviano
Nuno Venturinha
Marco Parmeggiani
Nietzsche: a vida e a metáfora
Nietzsche: a vida e a metáfora* Eric Blondel **
Resumo: O presente artigo possui um duplo objetivo: trata-se, desde logo, de desmascarar o mecanismo engendrador a partir do qual o homem moralmente determinado acedeu, de acordo com Nietzsche, aos chamados construtos superiores da cultura – ciência, moral, religião etc. – para, a partir de uma inovadora teoria da metáfora e da imagem central da vita femina, trazer finalmente à luz aquilo que, para o filósofo alemão, designa o efetivo plano da imanência e o seu jogo fundamentalmente extramoral. Palavras-chave: metáfora – linguagem – pulsões – vida – morte
Concede-se, de bom grado, que a linguagem de Nietzsche é tão-somente “koenigsberguiana.” Ele, de sua própria parte, proclamou: “Depois de Lutero e Goethe, restaria ainda um terceiro passo a ser dado.”1 Mas então há que se arrancar dessa particularidade, rara entre os filósofos, todas as conseqüências metodológicas que lhe poderiam resultar? Insistiu-se, até o momento, em considerar a escrita “poética” e metafórica de Nietzsche, ora como a simples ornamentação da prosa filosófica – não raro insípida – por parte de um poeta genial, ora como uma decoração que os “literários” tanto privilegiam e que os filósofos se esforçam desesperadamente para
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Tradução de Fernando de Moraes Barros. Professor da Universidade Paris I – Panthéon – Sorbonne.
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pôr de lado. Seria, no entanto, muitíssimo sensato, ou, então, assaz filosófico indagar se o “estilo” de Nietzsche não encarnaria, por sua deliberada escolha pela polissemia metafórica em oposição à neutralidade conceitual, a exigência mesma de uma preferência filosófica determinada, análoga, até mesmo em sua escrita, àquela dos Pré-socráticos. Já que, para Nietzsche, “a metáfora não constitui, para o verdadeiro poeta, uma figura de retórica, mas, antes, uma imagem substitutiva que, no lugar de uma idéia, paira realmente diante de seus olhos” (GT/NT § 8). “Fomos capazes de criar formas muito antes de saber criar conceitos” (XI 25 [463]). E por que não aplicar, desde logo, também esse comentário a Nietzsche e a sua filosofia, como muitas vezes já se fez, sob o modo biográfico ou filosófico, em relação a outras observações bem menos fundamentais? Pois, até agora, prestou-se demasiada ou pouquíssima atenção às metáforas, às imagens, e, em linhas gerais, às formas de discurso em Nietzsche. Dá-se atenção em demasia seja por força de considerar a idiossincrasia de seu estilo como busca poética ou pura literatura destinada a seduzir os filólogos ou entusiasmar os adolescentes – donde o exorbitante privilégio conferido a Assim falava Zaratustra pelos leitores apressados2 –, seja pelo fato de que se abstrai, nesse caso, a expressão do próprio pensamento: o filósofo se acha “esmagado pela estátua”3 do poeta. Dá-se muito pouca atenção porque, sob o pretexto de rigor filosófico ou “cientificidade”, tais metáforas não parecem jamais terem sido consideradas nelas mesmas, a não ser enquanto vestimenta retórica a ser arrancada a fim de que se alcance, pois, conceitos falsamente vaporosos por si próprios. Baseando-se em alguns exemplos e reconduzindo suas “imagens” – ou metáforas – ao seu rigor coerente, pretende-se aqui mostrar, de maneira inversa, que a metafórica de Nietzsche se impõe por uma necessidade especificamente filosófica e que seu discurso é intrinsecamente metafórico em virtude de ser pensamento
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da metá-fora; se se entende, desta feita, tal palavra em seu sentido primevo:4 transporte, transposição, a fim de designar, com Nietzsche, o descompasso corpo-pensamento que estrutura, em termos de sua origem, o desenrolar da cultura. No caso em questão, trata-se da imagem central de um tal pensamento metafórico da metá-fora: a vita femina, aquela que irá prescrever a própria ordem metafórica que se deseja, pois, perseguir e trazer à plena luz. *** Impõe-se a Nietzsche, fundamentalmente, o problema da cultura:5 seu nascimento, seu desenvolvimento, seu mal-estar e seu declínio – o niilismo –, que coincide, talvez, com seu nascimento. Ora, no seu entender, a cultura se constitui, em sua origem, sob a forma e por meio de um tipo de descompasso (a metá-fora) entre os instintos (o “corpo”) e o pensamento ou a expressão. Enquanto ser da cultura, o homem é normalmente doente: “considerado de maneira relativa, o homem é o mais mal-sucedido dos animais, o mais enfermo, o mais perigosamente desviado de seus instintos” (AC/AC §14). Com efeito, o corpo não se manifesta, a seu ver, de maneira imediata, mas deve, na economia da cultura, significar-se a si mesmo, por assim dizer, pela via – pela voz – de uma linguagem sintomática: o consciente ou “espírito”: “‘o espírito’, o tomar-consciência nos aparece cabalmente como sintoma de uma relativa imperfeição do organismo, como um ensaiar [Versuchen], tatear, cometer equívocos [Fehlgreifen], um penoso trabalho em que, inutilmente, lança-se mão de demasiada força nervosa – nós negamos que se possa fazer algo de modo perfeito enquanto se continue a fazê-lo de modo consciente” (Ibid.). A “natureza” (cultural) do homem se define, então, enquanto não-natureza, já que se funda sobre a distância e a cisão: linguagem e pensamento surgem, pois, como superfícies epidérmicas, como a pele que esconde e manifesta as vicissitudes
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do corpo.6 A cultura como doença originária do homem e o homem como ser cultural despontam, então, como que a pele do corpo ou da Terra: “A Terra possui uma pele: e tal pele possui enfermidades. Uma dessas enfermidades chama-se, por exemplo: ‘homem’”. (Za/ZA II Dos grandes acontecimentos). E, “se é normal a condição doentia do homem” (GM/GM III §14), pode-se colocar, com Nietzsche, “a grande questão de saber se podemos prescindir da doença” (FW/GC §120), assim como – e por motivos ainda mais fortes – dessa doença constitutiva e constitucional que é a má consciência: “é uma doença a má consciência, quanto a isso não há dúvida, mas uma doença tal como a gravidez” (GM/GM II §19), “um verdadeiro ventre de acontecimentos espirituais.” (GM/GM II §18) Por meio da má consciência, a vida se torna, pois, “grávida” da cultura: o homem, como doença cultural, nasce então pela e na má consciência, que inaugura o discurso descompassado, metafórico, quase-histérico, isto é, a conversão à linguagem sintomática do corpo.7 O homem, enquanto ser necessariamente cultural, nasce, a ser assim, da dor de uma ruptura original, de uma cisão a qual se pode, em sentido próprio, denominar de matricial, já que ela constitui a “razão” ou a condição estrutural de tudo aquilo que, secundariamente, irá sucedê-la e repeti-la. Com efeito, Nietzsche fala em “ruptura”, em “salto” (GM/GM II §17) em “divórcio com o passado animal” (GM/GM II § 16), em “um pulo e uma queda” (Ibid.). Ora, essa “dor puerperal” que acompanha a culturalização do homem e a ruptura dolorosa com os instintos por ocasião do nascimento do homem na cultura decorre, pois, da má consciência enquanto metáfora originária do corpo. Se acompanharmos a imagem de Nietzsche, iremos perceber que o “trabalho” da má consciência é caracterizado como um recalcamento originário por meio da interiorização do corpo e da “liberdade” dos instintos. Essa volta da “animalidade” sobre si
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mesma implica, igualmente, uma cisão: ela rompe a unidade instintual do corpo, ela quebra o sentido imediato dos “velhos guias, os impulsos reguladores e inconscientemente infalíveis” (Ibid.). Eis que nasce, pelo paradoxal movimento de um recalcamento, a falibilidade do próprio consciente: “Estavam reduzidos, os infelizes, a pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos à sua ‘consciência’, ao seu órgão mais frágil e mais falível!” (Ibid.). A conseqüência do recalcamento dos instintos, de sua separação do inconsciente, constitui, com efeito, o nascimento do consciente: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua ‘alma’” (Ibid.). Do bloqueio operado pela interiorização resulta a amplificação da reflexão, o desvio ou giro, a mudança de direção: o consciente (ou “espírito”) – universo de sintoma – constitui, a ser assim, o novo campo aberto por essa transladação, a qual nós podemos denominar, com Nietzsche, como metá-fora (meta-fÒra) originária instauradora da cultura. “Além disso, os velhos instintos não cessaram repentinamente de fazer suas exigências! Mas era difícil, raramente possível, dar-lhes satisfação: no essencial tiveram de buscar gratificações novas e, digamos, subterrâneas (...) Todo mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora” (Ibid.). Mas essa ruptura dos instintos ocasionada pela má consciência em sua primeira etapa,8 tal cisão engendradora do descompasso consciente-inconsciente é, pois, nitidamente introduzida por Nietzsche como sendo originária, estrutural, quer dizer, constitutiva da humanidade (ou culturalidade) atinente ao homem, ao “homem doente do homem, doente de si mesmo” (Ibid.). Ela condiciona, em realidade, todos os outros descompassos ulteriores como se fosse
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seu próprio princípio, sua promessa, sua “razão”, “como se com ela algo se anunciasse, algo se preparasse, como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um caminho, um episódio, uma ponte, uma grande promessa” (Ibid.). E, de fato, se a cisão que representa a má consciência introduz a culturalidade do homem como natureza de uma não-natureza, como promessa de futuro, como “a mais inquietante das doenças, da qual até hoje não se curou a humanidade” (Ibid.), esse texto de Para a genealogia da moral anuncia, inversamente, e como que “no vazio”, o Übermensch, isto é, um ser para além (über) do homem, curado da “doença homem” e que, para falar com propriedade, já não seria, nesse sentido, um homem. Pode-se perguntar, no momento, se Nietzsche não teria aqui anunciado e enunciado aquilo que Freud irá, depois, chamar de “recalcamento originário” (Urverdrängung), hipótese teórica destinada a dar conta, por recorrência, dos sucessivos recalques do desenvolvimento onto-genético. Mais ainda: à metá-fora originária descrita por Nietzsche, ao deslocamento decorrente da cisão consciente-inconsciente, bem que poderia corresponder o surgimento, em Freud, de uma tópica, a saber, a “cisão” do psiquismo em diversas instâncias, correlata, na maioria dos casos – tal como em Nietzsche –, da pressão da realidade: “As peias da sociedade e da paz” (Ibid.). Com efeito, o recalcamento “se produz nos casos em que a satisfação de uma pulsão, suscetível por si mesma de visar ao prazer, ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências”.9 Trata-se de um mecanismo de defesa, do mesmo modo que a conversão: uma tal Urverdrängung é a “razão” derradeira ou originária (Ur) dos recalques ulteriores e propriamente ditos. Ora, essa “doença da ordem da gravidez” considerada como originária e matricial torna a vida “rica em promessas de futuro”, faz, pois, da vida a “mãe” da cultura. Por conseguinte, ela torna o próprio homem, por sua vez, doente e fértil. Ela produz, em realidade, aquilo que Nietzsche designa “pessoa-mãe”: “Alguém conti-
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nuamente criador, uma ‘pessoa-mãe’, no sentido maior da palavra, alguém que sabe e quer saber apenas das gravidezes e dos partos de seu espírito” (FW/GC § 369). Assim, por conversão – sublimação, regressão etc. – os instintos, desde logo deslocados, anunciam e dão à luz “filhos”, para utilizar aqui a expressão freudiana – curiosamente correspondente.10 Nietzsche exemplifica-os num dos textos póstumos: “A interiorização se produz quando os potentes instintos cuja satisfação é vetada pela organização da paz e da sociedade, esforçam-se para obter uma compensação interna sob o amparo da imaginação.11 A necessidade de hostilidade, crueldade, vingança, violência, volta-se sobre si, ‘regressa’; há, na vontade de conhecer, cupidez e conquista; no artista, a força de dissimulação e de vingança reprimida reaparece” (XII 8[4]). Desse modo, pode-se afirmar que a má consciência é a mãe ou a condição originária da sublimação, assim como o recalcamento originário torna possível, desde o início, a sublimação em Freud (e, de resto, a regressão e a fixação). Ora, se se tem em conta que Freud descreve como atividades de sublimação, sobretudo, a atividade artística e a investigação intelectual, encontrar-se-á uma justificação para as aproximações precedentes numa outra passagem de Nietzsche: “Quando um instinto se intelectualiza, ele assume um novo nome, um encanto novo, uma nova importância. Ele se opõe, com freqüência, ao instinto que se achava em primeiro lugar, como se lhe fosse o contrário (a crueldade, por exemplo).12 Muitos instintos, como, por exemplo, o instinto sexual, são suscetíveis à purificação por meio da inteligência (amor pela humanidade, culto de Maria e dos santos, entusiasmo artístico; Platão acredita que o amor pelo conhecimento e pela filosofia constitui um instinto sexual sublimado). No entanto, sua antiga ação direta subsiste ao seu lado.” (IX 11[124]). A má consciência, forjando o espaço da cultura por meio da cisão meta-fórica que ela própria implica, prediz, pois, uma histó-
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ria, quer dizer, um percurso médio, a errância do pensamento em relação aos instintos como promessa de rebentos hauridos dos impulsos recalcados. Ou, para falar simbolicamente, ela surge como a “mãe” do homem enquanto doença do homem. Ora, a má consciência decerto é uma doença – do homem enquanto homem –, mas também, e de uma maneira ainda mais profunda, a doença da Vida em geral: é a Vida que se acha, aqui, “grávida”. Pois bem, a Vida designa, em Nietzsche, e, em especial, pela metáfora privilegiada da vita femina, a vontade de potência enquanto fecundidade, produtividade, criação, Selbstüberwindung. Nota-se que Nietzsche, ao representar uma tal gravidez da vida apta a dar à luz uma “pessoa-mãe” e, portanto, ao homem artificial como ser da cultura, não se preocupa em desvelar um pai – cumpre então vislumbrar uma incoerência na seqüência metafórica, ou, ao contrário, uma coerência inconscientemente deliberada? Então basta admitir, aqui, um fantasma nietzschiano, uma espécie de “Édipo” filosófico? Em contrapartida, sabe-se igualmente – e aqui uma explicação compatível com a anterior – que a má consciência “faz nascer o espírito maternal, exclusivamente maternal”, gera “aquele tremendo egoísmo de artista, que tem olhar de bronze, e já se crê eternamente justificado na ‘obra’, como a mãe no filho” (GM/ GM II §17), preterindo o pai em benefício do filho, isto é, do pensamento. Ora, não é justamente essa questão do pai que dá originalidade à análise que Nietzsche designou, precisamente, como genealógica? Quem é, pois, o pai do espírito, da consciência? Os filósofos do idealismo metafísico “agem como se fosse a intelectualidade pura e simples que lhes colocasse os problemas do conhecimento e da metafísica (...) Foi contra essa primeira pretensão que eu orientei minha psicologia dos filósofos: a sua especulação mais avessa ao real e a sua ‘intelectualidade’ não são mais que o derradeiro e pálido reflexo de um fato fisiológico: falta-lhes toda decisão livre, tudo é, aqui, instinto” (XIII 14[107]). O idealismo metafísico,
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“filosofia de fachada” (JGB/BM § 289), empenha-se, com efeito, em dar um pai legítimo a seus pensamentos, o consciente, a Razão: esse sujeito consciente e racional permite salvaguardar a fachada moral.13 Mas, em sua investigação genealógica, Nietzsche conta suspeitar14 e pôr em questão o caráter natural de tal pai legítimo. A genealogia se deixa compreender, a rigor, como tentativa de busca (Versuch)15 pelo pai, busca pela paternidade dos pensamentos. Pois, o escondido pai natural que Nietzsche revela e que torna a vida um problema para o filósofo – uma mulher da qual se duvida16 – é o corpo,17 aquilo que “os organizadores natos” da má consciência obrigaram a “passar para o estado latente”.18 Eis o pai natural, o corpo recalcado, interditado, relegado à morte. Tal recalcamento, ocultação ou morte do pai não significa, imediatamente, a decadência, já que na arte, por exemplo, o corpo tem direito a uma palavra desviada, deslocada, metafórica: mas ele constitui, aqui, a possibilidade estrutural, ele torna-a possível sem colocá-la necessariamente em questão, assim como o recalcamento não acarreta, de todo em todo, a neurose. Contudo, na medida em que tal ocultação do pai pela metá-fora anuncia, ao menos, a possibilidade da decadência, não causará espanto as linhas de Ecce homo nas quais Nietzsche se vale de uma compreensão particularmente sutil de tal fenômeno: “A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais rasteiro degrau da vida, a um tempo décadent e começo – isso explica, se é que algo explica, tal neutralidade, tal ausência de partidarismo em relação ao problema global da vida, que acaso me distingue. Para os sinais de ascensão e declínio [Aufgang und Niedergang] tenho um sentido mais fino do que homem algum jamais teve, nisto sou o mestre par excellence – conheço ambos, sou ambos” (EH/EH, Por que sou tão sábio, § 1).
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Ao produzir o homem como ser meta-fórico da cultura, a má consciência traz à luz um homem algo “edipiano”. Sã ou mórbida, a cultura oculta e suprime, em realidade, o seu “pai” – o corpo – por não se consagrar senão aos seus filhos, os pensamentos.19 Por conseguinte, o homem identifica-se – e aqui o homem Nietzsche, psicólogo da décadence – com sua mãe e, não se importando muito com o corpo, torna-se “pessoa-mãe”: homem sem pai, “negligente” para com o corpo, mas prenhe de todas as vicissitudes da cultura. O que se dá, pois, com esse “Édipo” originário, constituído pelo recalcamento originário do corpo e pela cisão vital entre os instintos (inconsciente) e meu pensamento (consciente)? O pai dos pensamentos, o corpo, é recalcado em prol dos rebentos conscientes: a vida, doravante indivisa enquanto “si mesmo”, acha-se cindida entre as pulsões e o eu, ou, em outras palavras, entre o corpo e os pensamentos. Mas essa cisão anuncia em seu desenvolvimento posterior, o qual ela mesma estrutura, a décadence como recalcamento do corpo, isto é, como partenogênese do pensamento pela razão, como divinização do consciente – “É o baixo ventre que impede o homem de considerar-se um deus” (JGB/BM § 141) –, e, ao mesmo tempo, o espírito como Selbstaufhebung, quer dizer, auto-superação,20 auto-supressão da moral. Se a Vida é, então, representada como que cindida ou redobrada pela má consciência, a vita femina21 se oferece, sob o fundo de tal “Édipo”, como a Esfinge que dissimula, desde logo, sua paternidade, sua origem ao homem e a seus pensamentos. Ela se apresenta, numa série de pares estruturalmente fundados pela cisão originária, como interior e exterior, corpo e “alma”, disfarce e realidade insondável. Eis aqui o momento de se tentar analisar, tal como fora previsto, a coerência da metafórica da vita femina no tocante ao que se designou como metá-fora originária, ou seja, a trans-ferência ou deslocamento – instituídos pela má consciência – do corpo relativa-
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mente ao pensamento e à superfície consciente. “Sim, a vida é uma mulher!”22 Essa metáfora da vita femina pode, pois, conduzir a uma visão mais clara da “ontologia” nietzschiana da metáfora enquanto cisão, jogo e ambigüidade do Ser, fundando, a ser assim, uma teoria da cultura como metá-fora. E depara-se aqui com aquilo a que se deveria chamar de discurso “ontológico” – tomado de modo nãoontológico – de Nietzsche, anunciado em termos de uma metáfora da mulher. Poder-se-ia, com efeito, caracterizar a “ontologia” de Nietzsche como feminina – e até mesmo “ginecológica”23 – , já que ela alude ao Ser como uma Mulher sem ser, como aparência e disfarce, ilusão e segredo, uma Mulher sem natureza, isto é, como puro espetáculo: uma Mulher que, “no momento em que se dá, dá-se enquanto espetáculo”24. Dessa forma, se é certo que “a Mulher, o Eterno Feminino [é] uma noção imaginária na qual somente o homem espera acreditar”,25 o filósofo do idealismo metafísico, aquele que cristaliza a vita femina numa essência imaginária, será o único a crer na identidade, na eternidade e na permanência do Ser. Enquanto metáfora privilegiada da Vida, a Mulher é enigma e aparência. A cultura que dela vem à luz se inicia sob a ficção primeira que constitui, pois, o recalcamento do corpo, a dissimulação do pai: ela vive sob uma ambigüidade a ofuscar, por meio da florescência de seus rebentos (pensamento, razão, moral, religião, arte etc), aparências enganosas, sua “duplicidade” estrutural.26 Mas eis que a questão se coloca: trata-se aqui de ingenuidade, pudor ou hipocrisia? Ao refugiar-se na aparência que ela mesma oferece, não se oferecendo senão como aparência e somente como pura aparência, a vita femina não mascara, sob um certo véu, uma realidade que ela gostaria ou precisaria esconder? Ora, ao passo que a problemática clássica da aparência implica, desde sempre, alguma realidade por detrás ou para além da aparência, sem a qual o conceito mesmo seria impensável, tal oposição desaparece em Nietzsche: no seu entender, aparência e realidade não se opõem – nem mes-
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mo por implicação recíproca –, mas coincidem. A aparência e o aparecer constituem a única realidade da vita femina, isto é, como metáfora da metá-fora. Se cumpre encontrar uma oposição, ela encontrar-se-ia, antes, entre a verdade fragmentária do aparecer e a ficção de uma “realidade” do ser, falsa entidade da essência. Com isso é suprimido, como algo nulo, o conceito mesmo de uma verdade para além da aparência, acima ou abaixo do véu. É bem verdade que a Vida nos engana em suas aparições enganosas: mas ela nos engana, não por esconder uma essência ou uma realidade sob as aparências, mas porque ela não possui qualquer essência e estaria mesmo disposta a nos deixar acreditar que, de fato, possui alguma. Sua “essência” é o aparecer. Chamemos a isso pudor: não desvelar tudo, não mostrar, de um só golpe, tudo. Trata-se, correlativamente, de saber se o filósofo é, frente à Vida, um visionário (aquele que vê, por detrás, aquilo que é visível e aparece, sucessivamente, sob o manto), ou, então, um voyeur (aquele que imagina sem ver, que “percebe” o invisível ao supor a realidade daquilo que não é real). Mas todo pudor é, virtualmente, algo erótico, já que esconder significa, igualmente, insinuar:27 “A mulher, ciente do sentimento do homem pela mulher, vem ao encontro de seu esforço de idealização28 ao se enfeitar, ao cuidar de seus passos, sua dança, ao exprimir pensamentos delicados: do mesmo modo, ela pratica o pudor, a discrição, a distância, sabendo instintivamente que ela aumenta, com isso, a faculdade de idealização do homem. Em virtude da extraordinária delicadeza do instinto feminino, o pudor não continua sendo, de modo algum, hipocrisia consciente: ela adivinha que é justamente o pudor real e ingênuo que mais seduz o homem e o força a subestimá-lo. Eis o motivo pelo qual a mulher é ingênua – por uma delicadeza instintiva que lhe sugere a utilidade da inocência. Ela não enxerga, voluntariamente, a si mesma. Nos casos em que a dissimulação atua mais intensamente quando ela está inconsciente, ela se torna, com efeito,
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inconsciente.” (XII 8[1]). Ser pudico é, antes de mais nada, conseguir revelar por meio do esconder, esquecer e fazer com que se esqueça aquilo que está escondido: ingenuidade quase impossível que consistiria em acreditar que não há segundas intenções, segundo plano, além-mundo. É acreditar que não há senão aquilo que se mostra, é acreditar naquilo que é, de fio a pavio, visível. Mas tal ingenuidade pudica vai ao encontro da imaginação voyeurística do filósofo idealista, que inventa ou restitui uma realidade escondida e converte a ingenuidade numa hipocrisia erótica – a qual não se esconderia senão para se insinuar e revelar. Tudo se baseia, pois, na atitude dos filósofos. Ora, tratando-se dos “sistemáticos”, Nietzsche suspeita que eles jamais compreenderam as mulheres.29 O amor pela Vida é “o amor a uma mulher da qual se duvida” (NW/NW Epílogo § 1): o metafísico, de sua parte, a fim de ultrapassar sua dúvida, descerra uma essência falsificada e oculta da vita femina. Pouco importa, a seu ver, a ilusão ou a impostura: “Aquilo que dizem seus desprezadores, uma bela mulher tem, de todo modo, algo em comum com a verdade: ambas proporcionam mais felicidade quando as desejamos do que quando as possuímos” (VIII 19[52]). No entanto, a inocência da Vida, alheia à inteira “realidade” e atenta às aparências somente enquanto vir-a-ser – e é isso, pois, aquilo que constitui propriamente a imagem metafórica da inocência do vir-a-ser – , converte-se, pelo falseamento, em hipocrisia. “Há realidades as quais não ousamos confessar: somos mulheres, possuímos os seus ‘pudores’ femininos... Essas jovens criaturas que dançam perderam de vista, nitidamente, toda a realidade; elas não dançam senão com ideais palpáveis (...) Elas permanecem incomparavelmente mais formosas quando dispõem de um leve penacho, essas lindas criaturas – Oh! Como elas bem o sabem! Elas são mesmo tão mais amáveis do que elas próprias imaginam! Enfim, seus cuidados no vestir igualmente lhes inspiram; seu vestuário constitui sua terceira embriaguez (após o amor e a dança): elas crêem em
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sua costureira como crêem em seu Deus.30 E quem lhes dissuadiria, pois, de tal crença? É a fé que salva! E é saudável admirar-se a si próprio! – A admiração de si protege contra os resfriados! Já passou frio, por acaso, uma bela mulher que sabe se vestir? É certo que não. Inclusive, diria eu, no caso em que ela mal está vestida”. (XIII 17[5]). Eis o filósofo perplexo diante da vita femina, isto é, de todo espetáculo ingênuo, e, portanto, enigmático. Aquele ao qual denominamos como “edipiano” é, pois, o Édipo diante da Esfinge mulher que lhe propõe os enigmas. A “verdade” do filósofo é, como vimos, uma verdade edipiana por meio da morte do pai (corpo), sendo que ele procura pelo verdadeiro como se este fosse, no duplo sentido do termo, obsceno, quer dizer, ao mesmo tempo escondido e indecente. Mas, objeta Nietzsche, “por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência? – O problema do valor da verdade apresentou-se à nossa frente – ou fomos nós a nos apresentar diante dele? Quem é Édipo, no caso? Quem é a Esfinge?” (JGB/BM § 1). Frente a essa espetacular mulher, o filósofo deveria, então, aprender a salvaguardar as aparências e considerar que a “verdade” é indecente: “Talvez esteja nisso o mais forte encanto da vida: há sobre ela, entretecido de ouro, um véu de belas possibilidades, cheio de promessa, resistência, pudor, desdém, compaixão, sedução. Sim, a vida é uma mulher!” (FW/GC § 339). E então já “não saberíamos pensar muito bem acerca das mulheres – o que não é motivo para se enganar a seu respeito (...) É improvável que as mulheres possam esclarecer aos homens aquilo que vem a ser o ‘eterno feminino’: elas não dispõem do distanciamento necessário – e, além disso, a ação de esclarecer sempre foi, propriamente falando, o apanágio natural dos homens. Quanto a tudo aquilo que as mulheres escreveram acerca de suas congêneres, convém guardar uma boa dose de desconfiança; ao escrever, não faz a mulher o que sempre constituiu o ‘eterno feminino’: pintar o rosto?
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Já se concedeu, por alguma vez, a profundidade a uma mente feminina? Ou, então, a justiça a um coração de mulher? Ora, sem profundidade ou justiça, qual a serventia dos escritos das mulheres sobre a mulher?” (XI 37[17]). A ser assim, diante do homem teórico, isto é, do homem voyeur (tewr…a significa visão) que invoca as teorias visuais, ou, então, voyeurísticas da contemplação, da evidência, da “visão de Deus”, da intuição, etc., a vita femina aprende a fechar os olhos frente a si mesma e refugia-se na superficialidade do vestuário, da aparência. Ela passa do pudor à ingenuidade (a inconsciência torna-se involuntária), o que não impedirá o filósofo da metafísica de tomá-la por provocante, quer dizer, de pressupor algo por “detrás” da aparência. Ao contrário, o filósofo exigido por Nietzsche31 limitar-se-á voluntariamente à aparência e restituirá à Vida a sua própria inocência ao contemplá-la com uma idêntica ingenuidade, sem segundas intenções nem “pensamento por detrás”.32 No seu entender, a vita femina não dissimula nenhum encanto secreto, mas se oferece, na sucessão de seu aparecer, tal como é, que dizer, como puro espetáculo em pleno vir-a-ser. A rigor, pode-se então dizer que o médico-filósofo irá reconduzir a Vida à inocência do vir-a-ser sem atribuir às suas aparências uma finalidade ou desígnios secretos, sendo a própria finalidade, com efeito, sempre de natureza erótica, já que supõe uma intenção escondida. “O homem criou a mulher – mas a partir de quê? De uma costela de seu Deus – de seu Ideal” (GD/CI, Sentenças e setas, § 13). Conforme a atitude do homem-filósofo, a castidade feminina33 da Vida revestir-se-á de diversos sentidos: pudor, ingenuidade, erotismo ou inocência, sendo que o vir-a-ser da Vida poderá ser interpretado de muitos modos diferentes – tudo aquilo que se pode dizer sobre a vita femina é tão-somente interpretação –, isto é, em função do que é pressuposto pelo filósofo: vergonha daquilo que repugna, recalcamento, dissimulação, intenções eróticas, galanteria
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ou cuidados femininos com o vestuário. Ora, justamente “supondo que a verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar” (JGB/BM, Prólogo). Aquilo que o filósofo não compreendeu é: “que interessa à mulher a verdade! Desde o início nada é mais alheio, mais avesso, mais hostil à mulher que a verdade – sua grande arte é a mentira, seu maior interesse, a aparência e a beleza” (JGB/BM § 232).34 O antifeminismo de Nietzsche não se confunde, pois, com misoginia: é o filósofo da metafísica que colabora, ao contrário, com as feministas, partidários do “eterno feminino”, do “eterno-tedioso da mulher”, do “enfeamento geral da Europa” (Ibid.). Ao taceat mulier de muliere (Ibid.), convém então acrescentar uma advertência correspondente aos filósofos. Em vista disso, pode-se lembrar que a aversão por parte dos filósofos pelo casamento – frisada por Nietzsche – é, no trilho da mesma metáfora, levada em consideração: “De tal maneira o filósofo tem horror ao casamento, e a tudo que a ele poderia conduzir – o casamento como obstáculo e fatalidade em seu caminho para o optimum. Qual grande filósofo foi casado? Heráclito, Platão, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Schopenhauer não o foram; mais ainda, não podemos sequer imaginá-los casados. Um filósofo casado é coisa de comédia, eis minha tese; e aquela exceção, Sócrates – o malicioso Sócrates parece ter-se casado ironice [por ironia], justamente para demonstrar essa tese” (GM/GM III § 7).35 O texto é, sem dúvida, irônico: ele parece ser um pouco menos quando se tem em linha de conta as ulteriores considerações de Nietzsche acerca de Sócrates. Em vista da problemática que nos interessa, podemos concluir que Nietzsche espera, em todo caso, introduzir a alternativa entre uma cultura, metá-fora ou fecundidade
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biológicas e uma metá-fora, cultura ou fecundidade filosóficas. Ele dirá alhures36: Aut liberi, aut libri. À misoginia do filósofo, conseqüência de seu suspeito feminismo, responde, por outro lado, a misologia da vita femina. A mulher não ama nem a filosofia nem a verdade: “Entre mulheres. – ‘A verdade? Oh! Você não conhece a verdade! Não é ela então um atentado a todos os nossos pudeurs?’” (GD/CI, Sentenças e setas, § 16). Com efeito, o conhecimento enquanto visão ou voyeurismo apto a objetivar uma essência tal como a do “eterno feminino”, supostamente escondida por detrás das aparências da Vida, adquire o sentido de uma diabólica visada erótica: “A atração do conhecimento seria mínima, se não houvesse tanto pudor a vencer no caminho até ele” (JGB/BM, Máximas e interlúdios, § 65) e “a ciência ofende o pudor das verdadeiras mulheres. Elas têm a sensação de que se pretende observá-las sob a pele – pior: sob as vestes e os adornos” (JGB/BM, Máximas e interlúdios, § 127). Qual será então a atitude do médico-filósofo frente à Vida? Ele deve admitir que a vita femina dissimula e se disfarça com uma inocente duplicidade, e que ilude, ingenuamente, ao fazer crer a todos os instantes que é – e que apenas é – uma tal aparência, ao passo que ela constitui múltiplas aparências, um confuso e incessante vir-a-ser. Donde a necessidade, por parte do filósofo dionisíaco, de uma vontade de potência intensa, apta a suportar o engano e as contradições da Vida, isto é, em oposição ao voyeurismo impotente do metafísico que, de sua parte, não pode suportar a vida senão a custo de “visões” que a estancam numa imobilidade essencial quase cadavérica, tal como aquela do Ideal. As idéias “sempre viveram do ‘sangue’ do filósofo, consumiram os seus sentidos e até, se nos for dado crédito, o seu ‘coração’. Esses velhos filósofos não tinham coração: filosofar sempre foi uma espécie de vampirismo. Em tais figuras, mesmo em Spinoza, não sentem vocês algo profundamente inquietante e enigmático? Não vêem o espetáculo que aí se desen-
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rola, o constante empalidecimento – a dessensualização interpretada de forma cada vez mais idealista? Não pressentem, ao fundo, como que uma sanguessuga há muito tempo escondida, que começa por atacar os sentidos e enfim lhe restam – e ela deixa – apenas ossos e ruídos? Quero dizer, fórmulas, palavras (pois, perdoem-me, aquilo que restou de Spinoza, amor intellectualis dei, é um ruído, nada mais! O que é amor, o que é deus, se lhes falta qualquer gota de sangue?...)” (FW/GC § 372). A idealização, destinada a suprimir a dívida que a Vida inspira no filósofo, depende de uma atitude necrofílica: “os senhores metafísicos, esses albinos do conceito” (AC/ AC § 17), matam a Vida ao transformá-la num “Ideal”. A sabedoria – dionisíaca – consistiria, então, em manter-se na superfície, em “adorar a epiderme” da vita femina. O próprio Zaratustra, por não tomar essa precaução, permanece triste após seu diálogo com a Vida, que lhe declara: “‘Assim falam todos os peixes’, disseste; ‘aquilo que eles não perscrutam, é imperscrutável. Mas eu sou apenas mutável e selvagem e, em tudo, mulher, e não precisamente uma mulher virtuosa – Muito embora vós, homens, me chameis ‘a profunda’, ‘a fiel’, ‘a eterna’, ‘a misteriosa’. Mas vós, homens, nos presenteais sempre com vossas próprias virtudes – ai de mim, ó virtuosos!’” (Za/ZA II “O canto da dança”). Um texto pertencente ao Prólogo de A gaia ciência, retomado em Nietzsche contra Wagner, convoca toda a metafórica feminina até agora analisada a fim de definir a atitude condizente com o médicofilósofo, que aqui se descobre, igualmente, enquanto artista: “Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de ‘verdade a todo custo’, esse desvario adolescente no amor à verdade – nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos... Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu... Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender e ‘saber’ tudo. ‘É verdade que Deus está em toda parte?’,
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perguntou uma garotinha à sua mãe; ‘não acho isso decente’ – um sinal para filósofos!... Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por detrás de enigmas e de coloridas incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher que tem razões para não deixar ver suas razões? Talvez o seu nome, para falar grego, seja Baubo...?37 Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais – por profundidade!” (FW/GC, Prólogo, § 4). Assim, tal como a criança, a vita femina joga e não se oferece senão enquanto espetáculo, dá-se, pois, no erro e na ilusão. Ao enunciar isso, Nietzsche reencontra, em realidade, a profunda superficialidade dos gregos, e, em especial, a de Heráclito de Éfeso, o Obscuro, que fala em pa•j pa…zwn e já afirmava: fÚdij krÚptesqai f…lei. O Ser, sob a metáfora da vita femina, revela-se como um vir-a-ser múltiplo que se oferece, na aparência e na ilusão, deslocada e ambiguamente, já que “toda a vida repousa sobre a aparência, arte, ilusão, ótica, necessidade de perspectiva e erro”.38 Enquanto explosão do vir-a-ser, Dioniso assume o véu e o aspecto enigmático de Apolo: variação necessária entre ambas as divindades e que poderia, a rigor, ser chamada de metá-fora, ainda mais pelo fato de que, em Nietzsche, ela se exprime numa linguagem por excelência apolínea, quer dizer, pelo discurso metafórico, poético, imagético: “Dioniso fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dioniso: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral” (GT/NT § 21). Ora, nós bem sabemos que a exuberância dionisíaca deve tomar de empréstimo o véu apolíneo, mas também que, sem Apolo, Dioniso levaria ao nada, ao abismo mortal da verdade e seria, ainda assim, o Édipo, isto é, tal como Nietzsche o vê na tragédia grega: “Édipo assassino de seu pai, o marido de sua mãe, Édipo, o
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decifrador do enigma da Esfinge! (...) Sim, o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria, e precisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo do nada há de experimentar também em si próprio a desintegração da natureza” (GT/NT § 9). A decifração do enigma da Esfinge – imagem da Vida – levada a cabo por Édipo voltaria a descobrir, com efeito, que a Vida, tal como se tentou mostrar anteriormente, não pode subsistir sem o esquecimento apto a assassinar o pai, o corpo (as pulsões), ou, noutros termos, que a Vida, assim como a cultura, está fundada sobre a morte do pai – que a vida e a cultura não são, pois, possíveis senão como metá-fora, dissimulação, mentira, deslocamento das pulsões. Pois o que é a vida inteiramente consciente senão a loucura, o trágico absoluto, a morte? Enquanto descompasso, transposição e censura, a metá-fora decerto é aquilo que distingue a neurose da psicose, se se define, com Freud, a psicose como o cumprimento imediato das pulsões em sua totalidade, sem o desvio (o“ent-”) que subtrai a expressão ao império exclusivo do processo primário. “Tal conteúdo geralmente inconsciente se transmuda, por vezes, num conteúdo pré-consciente, e que em seguida se torna consciente, o que se produz, em estados psicóticos, numa vasta escala”.39 Reciprocamente, o sonho, aquilo que afasta parcial e temporariamente a metá-fora, a separação ou o descompasso consciente-consciente, “é uma psicose” (Ibid., p.39). A psicose é, pois, “a ausência do inconsciente”, a “consciência” absoluta das pulsões,40 sendo que a vida não é possível senão pela metá-fora do inconsciente. Cumpre, então, “espiritualizar” seu estado, faz-se necessário “um certo desprezo pelo corpo”, uma “arte de transfiguração”.41 E Nietzsche conclui: “Pois sadio é quem esquece” (FW/GC, “Brincadeira, astúcia e vingança”, § 4). Ascende-se, assim, à inteira compreensão da fórmula de Ecce homo: “Compreende-se o Hamlet? Não a dúvida, a certeza é que enlouquece” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 4). Ora,
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Hamlet – outro “edipiano” famoso, como se sabe desde Freud – compreendeu que “não podemos viver com a verdade”42 e que “há mais coisas, em céus e terras, do que sonhou nossa filosofia”.43 Se Édipo, por sua vez, vaza os próprios olhos a fim de não ver a terrível verdade atinente ao destino das pulsões, Hamlet, de sua parte, joga com as aparências, redobra a aparência no teatro a fim de evitar a verdade que o tornaria propriamente louco, isto é, caso ele não chegasse a simular, mesmo que teatralmente, a própria loucura. “Refugiamo-nos na vida, em sua aparência, falsidade, superficialidade, no seu engano cintilante”44 para escapar da trágica verdade da linguagem das pulsões e resolver a trágica oposição vida-verdade. Assim representada, a verdade é mortal, sendo que a ilusão constitui, aqui, a condição da vida. No entanto, pode-se igualmente dizer: a morte é verdadeira e a vida é “falsa” (assim como se pode dizer que uma mulher é “falsa”). A vida é ilusão, ela nos ilude quanto à morte, ou, melhor ainda: ela é a forma enganosa da morte. “Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara” (FW/GC § 109). Aquilo que comanda essa duplicidade é a vontade de potência enquanto criatividade dionisíaca e ilusão apolínea, ou, então, como dualidade vida-morte, verdadeilusão. Surge, a ser assim, um conflito trágico, quer dizer, irredutível entre verdade e ilusão, morte e vida, já que, face à morte, a vida é ilusão, a última ilusão da morte, sua derradeira astúcia:45 “O conflito trágico. Tudo aquilo que é bom e belo depende da ilusão: a verdade mata – e mata-se a si mesma, na medida em que reconhece que possui, como fundamento, o erro”.46 Inversamente, “a vida necessita de ilusão, quer dizer, de não-verdades tomadas por verdadeiras”.47 Após o médico-filósofo, que decifra os “desprezos do corpo”, entra em cena, pois, o “filósofo do conhecimento trágico”, doravante chamado de “filósofo-artista”: “O filósofo do conhecimento trágico. Ele assenhora-se do desenfreado instinto do conhecimento,
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mas não por meio de uma nova metafísica (...) Tem lugar, para o filósofo trágico, a imagem da existência segundo a qual tudo aquilo que pertence à atividade do conhecimento não surge senão como sendo algo antropomórfico48 (...). Deve-se mesmo querer a ilusão – é ali que se encontra o trágico”.49 Ora, esse último filósofo “demonstra a necessidade da ilusão, da arte, e, em especial, da arte dominando a vida. Não nos é possível produzir novamente uma linhagem de filósofos tal como o fizera a Grécia no tempo da tragédia. Cabe somente à arte, doravante, a tarefa daqueles”.50 Assim, “possuímos a arte a fim de não sucumbir [zugrunde gehen] pela verdade”.51 Face à impotência voyeurística do metafísico, faz-se necessário à Vida um homem potente; esse será, por excelência, o artista, cujos “filhos”, para além da cisão metafísica, glorificam o corpo e permanecem fiéis à Terra: “O que agrada a todas as mulheres piedosas, sejam elas velhas ou jovens? Resposta: um santo que tenha belas pernas, ainda jovem, ainda tolo (...) Os artistas, por pouco que possuam valor, são, mesmo fisicamente, vigorosos, superabundantes, de forte animalidade, sensuais; não se imagina um Rafael sem um certo ardor sexual. Fazer música é uma maneira de fazer filhos;52 a castidade significa apenas economia para o artista.; e, em todo caso, a fecundidade cessa, mesmo no artista, com o poder genético” (XIII 14[117]). Nietzsche evoca, então, os mistérios dionisíacos, nos quais “se exprime a realidade fundamental do instinto helênico”: “O que o heleno garantia a si mesmo com esses mistérios? A vida eterna, o eterno retorno da vida; o futuro prometido e consagrado no passado; o triunfante sim à vida, para além de morte e mudança; a verdadeira vida como sobrevivência coletiva pela geração, pelos mistérios da sexualidade. Para os gregos, por isso, o símbolo sexual era o símbolo venerável em si, o verdadeiro sentido profundo dentro da inteira religiosidade antiga. Toda particularidade do ato de geração, da gravidez, do nascimento, despertava os mais altos e solenes sentimentos. Na doutrina dos Mistérios a dor é declarada santa: as
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‘dores da parturiente’ santificam a dor em geral – todo vir-a-ser e crescer, tudo o que garante futuro condiciona a dor... Para que haja o eterno prazer de criar, para que a vontade de vida afirme eternamente a si mesma, é preciso também que haja eternamente o ‘tormento da parturiente’... Isso tudo significa a palavra Dioniso: não conheço nenhum simbolismo mais alto do que esse simbolismo grego, o das Dionisias. (...) Somente o cristianismo, com seu ressentimento contra a vida no fundamento, fez da sexualidade algo impuro: lançou lodo sobre o começo, sobre o pressuposto de nossa vida” (GD/CI, O que devo aos antigos, § 4). Esse texto, junto com os anteriores, permite-nos apreender a correlação que Nietzsche estabelece, em nível metafórico, entre a arte e a afirmação da vida por meio dos mistérios da sexualidade: o símbolo sexual, “símbolo” da vida, aparece-nos como a metáfora privilegiada, ou seja, considerado como imagem da vida no nível da arte, tal símbolo se redobra a si mesmo, já que é, por sua vez, a própria imagem da fecundidade da arte. Com efeito, por meio da metáfora sexual, a vida é apresentada como fecundidade – e como fecundidade artística: a criatividade meta-fórica da vida se diz no nível de uma metá-fora da procriação. Nesse sentido, a personagem dionisíaca de Peeperkon no Zauberberg de Thomas Mann constitui, pois, a mais convincente encarnação artística da problemática nietzschiana da vida.53 No entanto, o filósofo artista não ignora, enquanto médico-filósofo, que essa bela ilusão da Vida vista como mulher fértil também significa o florescimento ambíguo da Morte, que a Vida é, dado o descompasso pulsões-pensamentos, fundamentalmente doença, e, portanto, ambigüidade mortal. A criatividade da vida implica, com efeito, “que não há substâncias eternamente duráveis” (FW/GC §109). Doravante, a Vida declararia a Zaratustra: “onde há ocaso e cair de folhas, sim, é ali que a vida se sacrifica – por potência” (Za/ ZA II “Da superação de si”). Como metá-fora cultural do corpo sob o fundo da cisão originária, a vida anuncia a morte do corpo, que,
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com ela, é o primeiro a ser cortado. Sabe-se, com efeito, que o espírito “é a vida que se corta a si mesma” (Za/ZA II “Dos ilustres sábios”), já que constitui o recalcamento do corpo, recalque este que traz consigo a sempiterna ameaça de sua anemia total na décadence. A cultura enquanto metá-fora do corpo recalcado é, tal como Dioniso, cindida e tão-só, por assim dizer, o outro da moral, se se entende essa palavra no sentido geral de condições de existência, isto é, como conjunto “de precauções de que se assegura um organismo a fim de se adaptar”54 e em vista do qual a moral metafísica não é senão um caso particular. Ora, decidir-se pela Vida, pela mulher, implica decidir-se, igualmente, pela Morte, ou, então, por uma certa forma de morte. Já que a cultura significa a errância meta-fórica, “moral”, em relação aos instintos, as escolhas culturais oferecer-se-ão, pois, na necessária ambigüidade instaurada pela metá-fora originária. Permanecerão sempre incertas já que, ao se “escolher” este ou aquele destino, este ou aquele tipo de cultura ou moral, termina-se por se escolher este ou aquele tipo de doença, este ou aquele tipo de morte do corpo no espaço aberto pela metáfora. Optar pela vida é, pois, optar por esta ou aquela forma de morte. Uma comparação a Freud impõe-se de modo revelador. Se a morte do corpo é interpretada, em Nietzsche, como metá-fora cultural, o Eros freudiano está, no destino das próprias pulsões, sempre a serviço da pulsão de morte. Inversamente, interpretar a cultura – para Nietzsche, empreender a genealogia da moral – equivalerá a “se perguntar: quão forte é a força? Sobre o que ela se exerce? O que veio a ser da humanidade (ou da Europa) sob a sua influência? Quais forças ela favorece e quais ela oprime? Se ela torna o homem mais saudável, mais doente, mais sutil, mais necessitado de arte etc.?” (XII, 1[53]). Isso significará interrogar a cultura como sintoma, quer dizer, enquanto acordo vida-morte, lançado sobre o descompasso corpo-cultura e instituído pela metá-fora, ou, em termos freudianos, como recalcamento originário.
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Poder-se-ia acrescentar que aquilo que a Nietzsche se apresenta como ambigüidade instaurada pela má consciência corresponde ao que Freud chama de “plasticidade da libido”, isto é, aquilo que viabiliza os diferentes destinos das pulsões a partir do recalcamento originário. A partir dessa estrutura, compreende-se com certa facilidade que a morte – pulsão de morte ou abismo dionisíaco –, considerada como cisão, sempre se promove na vida sob a forma de doença, neurose, cultura ou moral.55 Eis a derradeira ambigüidade da vita femina, a última metá-fora da morte. Sendo que a coincidência com a análise freudiana é por demais impressionante para que se renuncie, aqui, à chance de trazer à baila um dos textos mais explícitos de Freud acerca do problema da ambigüidade metafórica: o ensaio sobre O motivo da escolha do cofre (Das Motiv der Kästchenwahl). Em O Mercador de Veneza e O rei Lear – diz-nos Freud –, a terceira dentre as escolhas deveria ser a Morte. Mas, por uma substituição (Entstellung, ou, em Nietzsche, metá-fora) cujo sonho é muito comum, é pela mais bela que se escolhe. A interpretação do sonho permite concluir que “se escolhe livremente entre as mulheres e que a escolha recai, pois, sobre a Morte, e que, contudo, ninguém escolhe (...) Graças a uma tal substituição, a terceira irmã não é mais a Morte, mas a mais bela, a mais sábia e a mais desejadas das mulheres”, a deusa do amor. No caso do rei Lear, “aquilo que é representado são as três relações que o homem deve necessariamente estabelecer com a Mulher: a genética, a matrimonial e a destrutiva (a Morte). Ou, antes ainda, as três formas por meio das quais deve passar, ao longo da vida do homem, a imagem da Mãe: a mãe ela mesma, a amante, que ele escolhe como imagem desta última, e, por fim, a mãe Terra que então o reassume.56 Em vão o velho se esforça em reassegurar o amor da Mulher tal como o recebera, de início, de sua mãe: somente a terceira das filhas do Destino, a silenciosa deusa da Morte, virá recolhê-lo em seus braços”57 Confirma-se, assim, tanto em Freud quanto em
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Nietzsche, a ambigüidade meta-fórica da vita femina, a metáfora da metá-fora mortal.58 *** A fim de pôr em evidência a seqüência metafórica da vita femina, invocou-se o conceito de metáfora (escrito, por convenção, como metá-fora) de uma maneira quase pragmática: ele precisa, doravante, ser explicitado e fundamentado no discurso de Nietzsche. Pode-se afirmar, desde já, que ele constitui o vínculo que reata, em Nietzsche, a teoria dos instintos com a problemática da cultura, isto é, a partir daquilo que denominamos como cisão ou descompasso originários da má consciência. Com efeito, “a vida não é possível sem o auxílio de um tal aparelho falsificador”59 que constitui, pois, a própria consciência. Entenda-se, com isso, “que deve haver necessariamente na consciência um instinto que exclui, descarta e escolhe, e que não deixa aparecer senão fatos seguros”.60 Assim, em virtude da cisão originária, “o desenrolar dos fenômenos efetivamente ligados ocorre numa região subconsciente; as séries e as sucessões aparentes são os sintomas de encadeamentos reais”.61 Ou, mais precisamente, “o pensamento não constitui o próprio fenômeno interno, mas uma outra linguagem cifrada que exprime uma relação de poder entre os afetos”,62 pois “o pensamento, a sensação e o querer consistem em falsificar por transformação [fälschendes Umgestalten]: por toda a parte, é a faculdade de assimilação que está a operar, sendo que ela supõe a vontade de restabelecer, à nossa semelhança, as coisas exteriores”.63 Ora, é precisamente nesses termos que Nietzsche explica, em seus primeiros escritos, sua teoria da metáfora.64 Esses textos de juventude permitem-nos, pois, acessar a modalidade de uma tal “falsificação” resultante do descompasso metafórico originário, sendo que neles se confirma, uma vez mais, o fato de que a problemática
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da metáfora não pode ser dissociada do problema geral da cultura, abordado por Nietzsche sob o prisma da cultura trágica grega.65 A cultura não se coloca, isto é, não se deixa expor a não ser ao se transpor. MetafÒra, que significa transporte ou deslocamento, transferência ou transposição, designa o fato de que a cultura, enquanto “doença” resultante da cisão originária, dá-se a conhecer, de qual maneira, apenas deslocada em relação a si mesma. Na cultura, “o que é pois a verdade? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas [überlagen], enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões [Illusionen], das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível” (WL/VM § 1). Na cultura como metá-fora, o homem se permite tão-somente adivinhar ou interpretar (Nietzsche utiliza os termos Rätsel, Geheimnis). Por meio das manifestações que preenchem o espaço da cultura, não somos, com efeito, capazes de conhecermo-nos diretamente. Eis o motivo pelo qual Nietzsche, ao refutar a idéia fantasmática de uma visão direta (“intuitiva” ou voyeurística) das pulsões, do desejo, do “interior”, chegará mesmo a dizer que, “em si, não há nada lá dentro [an sich liegt nichts darin]” (M/A § 119). Essa fórmula brutal não significa, em absoluto, que tais sintomas, metáforas, deslocamentos ou transposições por meio das quais a cultura se mostra, sejam pura e simplesmente epifenômenos sem fundamento, mas sim que o desejo (ou a vontade de potência da vita femina) não pode ser hipostasiado, coisificado, realizado numa essência imediatamente visível ou legível, já que, em si mesmo, ele não se dá abertamente, a não ser como ser-interpretado nas manifestações sintomáticas, deslocadas, meta-fóricas da cultura. Dizer-se-á, pois: a cultura interpreta-se a si mesma, sendo que ler a cultura significa interpretar uma interpretação. Compreende-se, desde já, a razão pela qual o discurso
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nietzschiano acerca da cultura enquanto metá-fora não pode deixar de ser, ele próprio, metafórico: “Entre essas duas esferas absolutamente diferentes (a do sujeito e a do objeto) não há causalidade, exatidão, expressão, mas, antes, uma relação estética, ou, poderse-ia dizer, uma transposição indicativa [eine andeutende Übertragung], uma tradução balbuciante [eine anstammelnde Übersetzung] de uma linguagem, em todo caso, estranha: eis por que será preciso uma esfera e uma força intermediárias a fabular livremente [frei dichtenden] e a imaginar livremente [frei erfinden]”.66 Por quê? Porque a relação do homem, enquanto ser da cultura, com o mundo e as “coisas” é, originalmente – poder-se-ia dizer, inclusive, estruturalmente –, metafórica: “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova” (WL/VM § 1). Ser verídico é, desde então, “empregar as metáforas usuais” (ibid.), “mentir em rebanho” (ibid.), “segundo uma convicção sólida” (ibid.). Se a cultura, enquanto relação primitiva como as “coisas”,67 significa, desde logo, deslocamento, transposição (Übertragung, sinônimo de metáfora), tradução (Übersetzung), pode-se, a rigor, chamála de metá-fora. No entanto, vê-se que tal metá-fora não se deixa descrever, para Nietzsche, senão por meio de uma metáfora, e, desta feita, no sentido retórico do termo: em termos do feminino consoante à vita femina e, naquilo que concerne à teoria dos instintos, em termos da assimilação gástrica.68 Uma tal aproximação recíproca explica-se pelo fato de que a metáfora, quer dizer, a transposição é, originariamente, artística: “Fomos capazes de criar formas muito antes de saber criar conceitos”,69 pois, como já dizia o jovem Nietzsche, “o conceito não é outra coisa senão o resíduo de uma metáfora, sendo que a ilusão da transposição artística [künstlerische Übertragung] de uma excitação nervosa em imagens [Bilder], se não
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for a mãe, é, todavia, a avó de todo conceito”.70 A linguagem da cultura, mesmo quando conta enunciar a origem, é metafórica, já que a metá-fora é um fenômeno estético. É nesse sentido que se orienta a inteira reflexão de Nietzsche acerca dos Pré-socráticos; tal reflexão, presente em O nascimento da tragédia e no Livro do filósofo, pode ser inteiramente considerada enquanto um comentário do famoso dito de Heráclito: “oÚte crÚptei. oÚte lšgei, alla shma…nen”. Aqui, toda visão ou compreensão do mundo ou do Ser é apresentada por Nietzsche como algo metafórico, isto é, como linguagem imagética, pré-racional. Por mais que se tente remontar à história da cultura, esta acaba por expressar sua relação com o mundo, quer dizer, consigo mesma, de maneira metafórica: “Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou da água” (PHG/FT § 3). Compreende-se melhor, desde já, o privilégio da arte em Nietzsche, assim como a necessidade – a ele essencial e originária – de anunciar um novo tipo de cultura pelos signos metafóricos e mitológicos de Dioniso, Apolo e Ariadne, e, igualmente, de analisar seu nascimento sob o auxílio das imagens da Mulher, de Édipo, “neikos”, “philia”71 e até mesmo da fisiologia: “O conceito de ser! Como se a mais miserável origem empírica não aparecesse, já, na etimologia da palavra! Pois esse significa, no fundo, respirar: se o homem emprega, ao falar de todas as coisas, uma tal palavra, ele o faz pela metáfora, quer dizer, ele transpõe a todas as outras coisas, por um procedimento ilógico, a convicção segundo a qual ele respira e vive” (PHG/FT § 11). Mas tal reflexão de Nietzsche acerca da metá-fora primitiva enquanto fenômeno artístico se deslocará, mais tarde, em direção a uma teoria dos instintos e da significação que constituirá, pois, o seu fundamento. Que a metá-fora seja um fenômeno artístico e que, de modo recíproco, a arte seja privilegiada por Nietzsche como o paradigma cultural da metá-fora, eis o que prova o fato de que tal teoria dos instintos se ordena a partir do termo Erdichten. No afo-
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rismo 119 de Aurora, Nietzsche explicita, em termos de uma metafórica da assimilação gástrica, aquilo que ele denomina alhures72 como “sua crença na verdade do sonho”. Ele explica que as “fabulações” (Erdichtungen) da vida consciente e dos sonhos “são interpretações de nossos estímulos nervosos durante o sono, interpretações [Interpretationen] muitíssimo livres e arbitrárias dos movimentos sanguíneos e intestinais”. Com efeito, “as leis de nutrição das pulsões permanecem, em todo caso, desconhecidas. Tal nutrição é, pois, obra do acaso: nossas experiências cotidianas nos fazem rejeitar, ora a uma, ora a outra pulsão, uma presa da qual ela se apodera avidamente, mas todo vaivém dessas conjunturas não se acha em nenhuma correlação racional com as necessidades nutritivas das pulsões em seu conjunto”. Nietzsche explica, então, que nossa vida consciente e nossos sonhos se ressentem, enquanto interpretações, de tais estados de gordura excessiva e inanição das pulsões: assim, mesmo se “a vida no estado de vigília não dispõe de tanta liberdade quanto a vida onírica, já que é menos poética [dichterisch], menos desenfreada [zügellos] (...) não se deve concluir, talvez, que nossas pulsões no estado de vigília não fazem nada mais que interpretar os estímulos nervosos e lhes atribuir as ‘causas’ após as suas próprias exigências? Que entre vigília e sonho não há, essencialmente, nenhuma diferença? (…) Que também nossos juízos morais e nossas valorações [Wertschätzung] são só imagens [Bilder] e representações fantásticas [Phantasien] de um processo fisiológico que nos é desconhecido, uma espécie de linguagem convencional apta a designar determinadas excitações nervosas? Que toda a nossa denominada consciência é somente um comentário [Kommentar] mais ou menos fantástico [phantastisch] de um texto inconsciente, talvez incognoscível, mas ressentido? (...) O que são, pois, nossas experiências interiores [Erlebnisse]? Muito mais o que colocamos dentro delas que aquilo que há nelas! Ou, então, não se
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poderia até [gar] dizer: em si, não há nada lá dentro? Experimentar é fabular [Erleben ist ein Erdichen]?” (M/A § 119). Viver é, pois, assimilar, quer dizer, reduzir o diferente73 ao idêntico e transformar a própria “alimentação” das pulsões, mas também interpretar, transformar o idêntico em múltiplo. No sonho – que, aliás, “não se distingue essencialmente da vigília” –, há condensação (assimilação), mas também deslocamento (interpretação). Com efeito, segundo Freud, “ocorre que, em virtude da condensação, um único elemento dentre todos aqueles do sonho manifesto pode corresponder a numerosos elementos dos pensamentos latentes do sonho; em contrapartida, um único elemento de tais pensamentos pode ser substituído, no sonho, por variadas imagens”.74 Ora, condensação traduz, precisamente, a palavra alemã Verdichtung. Tal sinonímia entre Erdichten-Verdichten, assim como as fórmulas dadas por Nietzsche ao sonho, autorizam que se considere o “trabalho do sonho” como paradigmático do movimento da metáfora. A fim de ler o sonho artístico da cultura, será preciso inverter as conversões, diversões ou perversões das pulsões. E a metáfora do ouvido que, nesse caso, Nietzsche emprega a fim de designar tal trabalho de interpretação,75 atesta que o descompasso do signo manifesto é, no sentido latente, uma dissimulação de tipo particular: distância não tanto entre o que se oculta e aquilo que se manifesta, mas, antes, do simples ao múltiplo e do múltiplo ao simples. Uma vez interpretada, a ilusão meta-fórica não se apaga para revelar, aí então, uma verdade ou uma entidade. Tudo se passa, com efeito, como se, dentro de tal criptograma da cultura,76 outras formas metafóricas aparecessem simultaneamente: a genealogia não se dirige ao ataque de um texto “falso” que esconderia, pois, um texto “verdadeiro”, mas se volta para um enigma metafórico.77 Assim: “Quando dizem: ‘Sou justo’ [gerecht], isto soa sempre como: ‘Estou vingado [gerächt]!’” (Za/ZA II “Dos virtuosos”): de gerecht a gerächt, não
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se passa do falso ao verdadeiro, mas de uma metá-fora unívoca à revelação de um outro Leitmotiv, e que não é audível senão na mesma linha fônica; passa-se, sem transição, do simples canto à própria polifonia. O mesmo ocorre no famoso exemplo do “JA” dionisíaco, que também soa, para o leitor-ouvinte da metá-fora, simultaneamente como o “I-A” (relincho) do asno. Tornar-se-á necessária a “delicadeza de ouvido” da qual nos fala Freud,78 assim como aquela de Zaratustra que, ao escutar os ilustres sábios, declara: “e, na verdade, já ouvi também sapos coaxar em seus discursos” (Za/ZA II “Dos ilustres sábios”).79 Interpretar as metá-foras da cultura significará, conseqüentemente, o mesmo que ler, ou, antes ainda, reler – a partir de uma ou outra manifestação –, a metá-fora de uma outra pulsão, equivalerá, enfim, a ouvir diversas vozes lá onde não se escuta senão apenas uma. Mas cumpre igualmente possuir um ouvido capaz de perceber a polifonia ou a polissemia da metáfora, já que esta constitui, em si mesma, a sua própria metá-fora. Nietzsche está igualmente apto a afirmar que o trato com a existência é fabulador ou poético (dichterisch), já que o concebe enquanto Erdichten, condensação, poesia sobre a poesia: “toda forma de cultura [Kultur] começa pelo fato de que uma multidão de coisas é encoberta (...) A elevada fisiologia decerto irá, no que tange ao nosso desenvolvimento, abranger as forças artísticas [künstlerische Kräfte], e não apenas no processo de formação do homem, mas também no do animal: ela dirá que, com o orgânico, tem início também o artístico. As transformações químicas da natureza inorgânica são, talvez, processos igualmente artísticos” (VII 19 [50]). Não há, pois, na origem, nenhum privilégio do conhecimento, mas justamente o contrário: “Não há nenhum conhecimento intrínseco sem metáfora”80 e “todo conhecer é um refletir em formas que são, de qualquer modo, determinadas e que não existem, pois, a priori”.81 Nietzsche não entende, com isso, que tudo não passa de equivalentes ilusões fantásticas, mas, ao contrário, que a ciência, a moral ou
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a religião, ao se passarem por “verdadeiras”, constituem, em realidade, não apenas jogos de aparências, mas aparências enganosas. Somente a arte, enquanto metáfora confessa, é verdadeira: “A arte trata a aparência enquanto aparência, ela não conta, pois, enganar, ela é verdadeira”.82 O critério de “verdade” será, a ser assim, paradoxal: a arte é verdadeira pelo fato de elevar, redobrar a metáfora – daí a ilusão –, cujo jogo, na ciência, moral e religião, é bloqueado. O falso – em realidade, o mórbido – passa a ser, desse modo, designado como bloqueio repetitivo da metáfora. O cotejo com Freud é, justamente nesse ponto, esclarecedor. Aquilo que Nietzsche designa como movimento da metá-fora (por vezes, “faculdade de esquecimento”) corresponde, em Freud, à plasticidade da libido, quer dizer, a “capacidade que a libido tem de mudar com maior ou menor facilidade de objeto e de modo de satisfação”.83 “Beweglichkeit” e “metáfora” sugerem, igualmente, a imagem de transporte e deslocamento. A criança, enquanto perverso polimórfico, é a imagem extrema de uma tal mobilidade metafórica, a qual se opõem as fixações resultantes de uma “viscosidade” ou “inércia” (Klebrigkeit, Trägheit) da libido, seja nas neuroses individuais, seja nas neuroses culturais, bloqueando o movimento metafórico (religião, moral). A décadence seria medida, nesse caso, segundo o maior ou menor grau de plasticidade ou viscosidade – de acordo com a capacidade meta-fórica de unir, no processo secundário, as descargas pulsionais.84 Com efeito, em O mal-estar na civilização, Freud escreve: “Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova”.85 Se a metáfora é a manifestação da faculdade de esquecimento, o mórbido e o falso persistirão, pois, sob a falta de ab-reação e de Erdichten meta-fórica que gera o homem reativo. Por ser um ani-
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mal que interpreta por meio da metá-fora, o homem é um “animal necessariamente esquecido” (cf. GM/GM II § 1): inversamente, o homem reativo ou o homem do ressentimento é incapaz de fazer uso da metá-fora. “Com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’” (Ibid.).86 Ora, na arte, em contrapartida, o homem esquece-se de que ele esquece, que mente, que “metaforiza”, ao passo que o homem reativo se esquece de esquecer. Assim, em Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral), Nietzsche escreve: “Não é senão pelo esquecimento de tal mundo metafórico primitivo, não é senão pelo fato de que o homem se esquece enquanto sujeito e enquanto sujeito da criação artística, que ele vive com algum repouso, alguma segurança e conseqüência” (WL/VM §1). Com efeito, se o homem estivesse ciente de que vive num mundo fundamental e originariamente metafórico, ele sucumbiria à loucura dionisíaca. E a verdade dionisíaca é mortal. Hiperbolicamente, Apolo – o deus do véu – ofusca a metáfora na própria arte, a aparência metafórica da vita femina. Pelo excesso da metáfora, o homem esquece-se enquanto ser originariamente metafórico: ápice da metáfora que é se esquecer a si mesma enquanto tal. Apolo é, pois, a metáfora de Dioniso: na metáfora artística apolínea, perde-se a lembrança da Morte dionisíaca enquanto desabrochamento enlouquecido da metáfora, como florescência infinita da aparência, como perversão polimorfa que chega a ser mortal.87 A metáfora artística surge então como o jogo regrado do Mesmo e do Outro: a metá-fora originária descerra o espaço do Outro como reino da metá-fora dionisíaca, e, em seu acme, como loucura letal. Mas, em Apolo, metáfora da metá-fora, outro do outro, a metáfora esquece-se de si mesma, inocência infantil, ilusão artística:
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“Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar” (JGB/BM § 94). Sob tal perspectiva, “querer o verdadeiro”88 poderia significar, secretamente, “querer a morte”,89 sendo que “a ciência, a partir dessa hipótese, seria uma longa armadilha”,90 já que se engana ao não se deixar enganar, na medida em que quer a morte ao querer o verdadeiro. Se por detrás de Apolo, em seu esquecimento artístico, projeta-se sub-repticiamente o voyeur – o outro do Mesmo – que solidifica a metáfora vital da vita femina numa essência mortal, é o sábio – o mesmo do Outro – que irá, pois, dissimular-se por detrás de Dioniso, destruidor das aparências. Mas ambos “se enganam” ao “não quererem enganar”, isto é, ao irem do semelhante ao Mesmo segundo um processo estritamente primário91 no qual o movimento metafórico da Vida é bloqueado e pelo qual Apolo, como Outro do Outro, auxilia Dioniso. Pois “Dioniso fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dioniso” (GT/NT § 21). Promete-se, aqui, por meio dessas duas divindades, o além-dohumano92 enquanto metáfora da metá-fora, metá-fora do Homem.93
Abstract: This article has a two-faced purpose: firstly, it aims at disclosing the drive mechanism through which the man of ressentiment has resigned himself to the so-called superior culture (science, morality, religion, etc.), and secondly, it hopes to bring to light – in line with an innovative theory of metaphor and through the precious image of vita femina – the very dimension that, according to Nietzsche, characterizes the immanence itself as well as its essentially immoral game. Key-words: metaphor – language – instincts – life – death
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notas Carta a E. Rohde a 22 de fevereiro de 1884. 2 Em Qu’appelle-t-on penser? (Trad. de Becker e Granel. Paris, Puf, [s.d.], p. 48), Heidegger deplora o fato de que tal “livro para todos e para ninguém” tenha “terminado por se tornar um livro para qualquer um”. 3 Za/ZA “Da virtude dadivosa” § 3. 4 Daí a convenção ortográfica que aqui se adota comodamente a fim de distinguir, num primeiro momento, a aceitação retórica (metáfora) do próprio conceito filosófico (metá-fora). 5 Tomamos aqui tal conceito na acepção ampla do termo Kultur, tal como Freud a define, por exemplo, no capítulo III de O mal-estar na civilização (Unbehagen in der Kultur): o termo Kultur “descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos” (Freud, S. O malestar na civilização. Trad. de José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro, Imago, 1974, III, p. 109). 6 Cf. JGB/BM § 32. 7 Poder-se-ia sublinhar, desde já, que Nietzsche, a fim de descrever tal nascimento, lança mão de um metaforismo fisiológico (em realidade, “ginecológico”) o qual nós podemos rigorosamente qualificar como histérico, quer dizer, como se a origem mesma da metáfora não pudesse ser anunciada senão metaforicamente, pela conversão a um discurso corporal. É essa seqüência metafórica que nos propomos a estudar mais adiante. 8 Ou seja, antes de ser usurpada pelo padre asceta. 1
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Laplanche e Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris, Puf, 1987, p. 392. Cf., igualmente, “O recalque”, na Metapsicologia de Freud. 10 “Abkömmlinge des Bewussten”, cf. Freud, Die Verdrängung, 1915, In: G.W., X, p. 250. 11 Cabe comparar, aqui, a oposição freudiana entre processo-primário e processo-secundário, ou, então: princípio de prazer e princípio de realidade. 12 Que se compare, aqui, com a Verkehrung ins Gegenteil (inversão em contrário) freudiana, como, por exemplo, o sado-masoquismo. 13 Acerca do si mesmo consciente, Freud diz que se trata de “uma fachada” (cf. Mal-estar na civilização [edição supracitada]). 14 Cf. FW/GC § 346, MAI/HHI, Prefácio, § 1. 15 Cf. JGB/BM § 42, onde se lê: “Esses filósofos do futuro bem poderiam, ou mesmo mal poderiam, ser chamados de tentadores. Esta denominação mesma é, afinal, apenas uma tentativa e, se quiserem, uma tentação”. 16 Cf. FW/GC, Prólogo, § 3. 17 Cf. ibid. e, em especial, Za/ZA I “Dos desprezadores do corpo”. 18 Cf. GM/GM II § 17. 19 Cf.VIII 19[97], onde se lê: “A tradição fecha os olhos para o vínculo que une a crença e suas conseqüências. As conseqüências renegam seu pai”. 20 Cf. M/A, Prefácio, § 4 21 Cf. FW/GC § 339 22 FW/GC § 339 23 Nenhum desses termos é realmente adequado para caracterizar, em linhas gerais, o “estilo” de tal uso da metáfora. 9
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Por outro lado, o epíteto “feminista” é inutilizável, já que se trataria, aqui, de um equívoco: ela reenviaria a uma tendência violentamente atacada por Nietzsche. 24 Cf. FW/GC § 361 25 Cf. XIII 15 [118] 26 Termo tomado, aqui, por empréstimo de Jean Granier, Le problème de la vérité dans la philosophie de Nietzsche. Paris, Seuil, [s.d.]. 27 “As mulheres selvagens não possuem pudor, já que andam nuas. Eu objeto que as nossas, por se vestirem, possuem-no menos ainda” Rousseau, J-J. Lettre à d’Alembert. 28 O ideal metafísico resulta da projeção, numa realidade imaginária, de uma essência: no caso, o eterno Feminino. 29 Cf. JGB/BM, Prefácio, § 1 30 “A quem sou grata a vida inteira? A Deus – e a minha costureira” (JGB/BM § 237). O deus do véu é, diga-se a propósito, Apolo. 31 Cf. FW/GC, Prólogo, § 2 32 (No original, lê-se: “sans arrière-pensée ni ‘pensée de derrière’” [n.t.]). Nietzsche joga, não sem um pouco de gracejo (que, aliás, ele acredita ser tipicamente “francês”), com essa metáfora: cf. NW/NW, Epílogo, § 2. 33 Cf. FW/GC § 71 34 Em conseqüência, o niilismo é acompanhado de “grosseiras tentativas de cientificidade e autodesnudamento femininos! (...) A mulher quer ser independente: e com tal objetivo começa a esclarecer os homens sobre a ‘mulher em si’” (JGB/BM § 232). 35 Seria muito exorbitante sugerir que o “horror” de Nietzsche ao casamento – “possui-se sempre algo de mais importante a se fazer do que se casar” (Oeuvres posthumes. Trad. de
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H.-J. Bolle. Paris, Mercure de France, [s.d.], § 405, p. 157) – segue de mãos dadas com seu desprezo pela dialética, conceito por excelência conjugal em todos os sentidos? Sócrates, Hegel e... Marx foram casados. 36 Cf. XIII 11[59] e GD/CI Incursões de um extemporâneo § 27 37 Em alemão, lê-se: “ein Weib, das Gründe hat, ihre Gründe nicht sehen zu lassen”, sendo que a intenção licenciosa é vertida, pelos tradutores, com o mesmo tanto de prudência quanto de hipocrisia. A propósito de Baubo, cf. Grimal, P. Dictionnaire mythologique. Paris, Puf, [s.d.]. Numa tarde, em busca de sua filha, e acompanhada por Iacchos – futuro iniciado nos mistérios de Elêusis – Deméter vai parar na morada de Baubo. Esta, por sua vez, oferece-lhe uma sopa, mas Deméter, para a sua total infelicidade, não queria aceitá-la. Humilhada, Baubo levantou, pois, sua vestimenta e lhe mostrou as nádegas; ao vê-la, o pequeno Iacchos aplaudiu. Deméter acabou rindo e terminou, apesar de tudo, por aceitar a sopa. 38 Cf. GT/NT, Tentativa de autocrítica, § 5 39 Freud, S. Abrégé de psychanalyse. Trad. de A. Berman. Paris, Puf, [s.d.], p. 23. 40 Cf. Leclaire, S. Psychanalyser. Paris, Seuil, [s.d.], pp. 12425. 41 Cf. FW/GC, Prólogo, §3 e §4. 42 La volonté de puissance. Trad. de G. Bianquis. Paris, N.R.F., [s.d.], II, § 557, p. 172. 43 Em Shakespeare, lê-se: “There are more things in Heaven and Earth, Horatio, Than are dreamt of in our philosophy” (Hamlet. Londres, Penguin Books, 1994, I. 5, p. 54). 44 La volonté de puissance. Trad. de G. Bianquis. Paris, N.R.F., [s.d.], II, § 323, p. 105.
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Cf. Mann, Thomas. Die Betrogene Le livre du philosophe. Trad. de A. K. Marietti. Paris, AubierFlammarion, [s.d.], III, § 176, p. 203. 47 Ibid. I, § 47, p. 63 48 Esse termo poderia recobrir aquilo que se nos apareceu como o voyeurismo do filósofo, isto é, que projeta seus fantasmas visionários sobre a vita femina, mas poderia igualmente designar a metá-fora originária: cf. ibid. § 77-78, p. 93. 49 Ibid. § 37, p. 53-5 50 Ibid. § 38, p. 55 51 La volonté de puissance. Trad. de G. Bianquis. Paris, N.R.F., [s.d.], I, § 453, p. 338. 52 Essa fórmula ilustra perfeitamente a metá-fora originária. 53 Cf. Mann, Thomas. La montagne magique. Trad. de M. Betz. Paris, Fayard-Livre de poche, [s.d.], II, p. 305-6: “As exigências sagradas da vida enquanto mulher a propósito da honestidade e da força viril (...) A vida, jovem, é uma mulher hábil (...) que, em sua provocação magnífica e embusteira, exige o nosso mais alto fervor”. Pensamos aqui igualmente nas páginas de Freud acerca da etiologia sexual das neuroses e sobre a prescrição, neste caso ideal (cuja cura analítica passa a ser a substituta), mas que “infelizmente, não podemos ordenar” (Cf. Freud, S. Contribution à l’histoire du mouvement psychanalytique. Paris, Petite Bibl. Payot, [s.n.], p. 77-9). 54 Oeuvres posthumes. Trad. de H.-J. Bolle. Paris, Mercure de France, [s.d.] § 666, p. 246. 55 Como isso, aparece claramente a absurdidade da afirmação segundo a qual Nietzsche teria “destruído a moral”: não há vida sem moral ou cultura, que constituem, pois, as 45 46
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metá-foras. É igualmente por esse motivo que “há mais ídolos que realidades no mundo” (GD/CI Prefácio). 56 Lear diz sobre Cordélia: “She’s dead as earth [ela está morta como a terra]”. (Ato I, sc. I, v. 263) 57 Freud, S. Gesammelte Werke, X, p. 24-37. 58 Cf., igualmente, Mann, Thomas. La montagne magique. t. II Mynheer Peeperkorn, p. 316-370. 59 La volonté de puissance. Trad. de G. Bianquis. Paris, N.R.F., [s.d.], I, § 287, p. 286 60 Ibid. § 236, p. 270. 61 Ibid. § 248, p. 273. 62 Ibid. § 290, p. 287. 63 Ibid. § 287, p. 286. 64 Isso será retomado e expresso, em textos mais tardios, nos termos de uma metafórica da “assimilação” digestiva. 65 Poderemos observar até que ponto a linguagem de Nietzsche evoca os termos empregados por Freud em suas análises da Entstellung, quer dizer, da distorção própria do sonho e da cultura em geral. 66 Le livre du philosophe. Trad. de A. K. Marietti. Paris, AubierFlammarion, [s.d.], III, p. 189 (grifo nosso). 67 É nítido que essas [as coisas] não se dão senão enquanto metáforas, daí as aspas. 68 Essa metafórica é, ela mesma, redobrada por uma metafórica política, o que permite, com isso, a aproximação com Freud relativamente à noção de compromisso (cf. Nouvelles conferences, III). 69 Texto supracitado. 70 Le livre du philosophe. Trad. de A. K. Marietti. Paris, AubierFlammarion, [s.d.], III, p. 185
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Freud, S. Analyse terminée et analyse interminable. Cf. La volonté de puissance. Trad. de G. Bianquis. Paris, N.R.F., [s.d], § 229, p. 268. 73 O que também pode ser vertido, tendo em vista a duplicação da metáfora gástrica por uma metáfora política, por “disputa”. 74 Freud, S. Nouvelles conférences sur la psychanalyse. Trad. de A. Berman. Paris, Gallimard, [s.d.], I, p. 30. 75 Cf. Za/ZA Prólogo § 9, GD/CI Prólogo e EH/EH Por que sou tão sábio § 8. 76 Em L’Interprétation des rêves. (Trad. de Meyerson-Berger. Paris, Puf, [s.d.], p. 306), Freud refere-se explicitamente aos trabalhos de Pfister sobre a criptografia, as imagens de adivinhação e os enigmas figurados. 77 Ibid. p. 242: “O sonho é um enigma”. 78 Freud, S. Psychanalyse et médecine. Paris, Gallimard-Idées, [s.d.], p. 143: “Uma certa delicadeza de ouvido, por assim dizer, é necessária para escutar a linguagem do inconsciente recalcado”. 79 Inversamente, duas diferentes metáforas se deixam “ouvir” como sinônimas: “tornar melhor será, imediatamente, sinônimo de corromper” (GM/GM III § 21). 80 Le livre du philosophe. Trad. de A. K. Marietti. Paris, AubierFlammarion, [s.d.], I, § 149, p. 139. 81 Ibid., §123, p. 121. 82 Ibid., III §184, p. 213. 83 Laplanche e Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris, Puf, 1987, p. 315 84 Apolo bem que poderia ser, enquanto Deus da metáfora, igualmente o deus do processo secundário. 71 72
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Freud, S. O mal-estar na civilização. Trad. de José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro, Imago, 1974, V, p. 129. 86 Notar-se-á, em todo o texto, a metáfora gástrica. Apesar de todas as aparências, tal texto impede qualquer redução ao “biologismo”: a digestão é, aqui, metáfora da metá-fora do esquecimento, que remete, por sua vez, à metá-fora originária. O corpo é uma metáfora e não uma “entidade originária”; e eis que Nietzsche precisa: “Uma tal concepção, seja dito entre nós, não impede que se continue sendo o mais rigoroso adversário de todo materialismo” (GM/GM III § 16). 87 “Nosso aparelho psíquico busca, de modo muito natural e em virtude de sua própria constituição, conformar-se ao princípio de prazer, mas, em presença das dificuldades hauridas do mundo exterior, a sua afirmação pura e simples – e em todas as circunstâncias – revela-se impossível, perigosa mesma para a conservação do organismo” (Freud, S. Au-delà du principe de plaisir. Trad. de Jankelevitch. Paris, Petite Bibl. Payot, [s.d.], p. 96). 88 Como supressão da metáfora. 89 Cf. FW/GC § 344. 90 Ibid. 91 “Parece, precisamente, que o princípio de prazer está a serviço das pulsões de morte” (Freud, S. Au-delà du principe de plaisir. Trad. de Jankelevitch. Paris, Petite Bibl. Payot, [s.d.], p. 80). 92 Surhumain, no texto original (n.t.). 93 Doravante, a metá-fora não significa mais Übertragung, transposição, mas propriamente Überwindung, sublimação. 85
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Blondel, E.
referências bibliográficas 1. FREUD, S. Abrégé de psychanalyse. Trad. de A. Berman. Paris: Puf, s.d. 2. _______. Au-delà du principe de plaisir. Trad. de Jankelevitch. Paris; Petite Bibl. Payot,s.d. 3. _______. Contribution à l’histoire du mouvement psychanalytique. Paris: Petite Bibl. Payot, s.d. 4. _______. L’Interprétation des rêves. Trad. de MeyersonBerger. Paris: Puf, s.d. 5. _______. Nouvelles conférences sur la psychanalyse. Trad. de A. Berman. Paris: Gallimard, s.d. 6. _______. O mal-estar na civilização. Trad. de José Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974. 7. _______. Psychanalyse et médecine. Paris: GallimardIdées, s.d. 8. GRANIER, Jean. Le problème de la vérité dans la philosophie de Nietzsche. Paris: Seuil, s.d. 9. GRIMAL, P. Dictionnaire mythologique. Paris: Puf, s.d. 10. HEIDEGGER, M. Qu’appelle-t-on penser? Trad. de Becker e Granel. Paris: Puf, s.d. 11. LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: Puf, 1987. 12. LECLAIRE, S. Psychanalyser. Paris: Seuil, s.d. 13. MANN, Thomas. La montagne magique. Trad. de M. Betz. Paris: Fayard-Livre de poche, s.d. 14. NIETZSCHE, F. La volonté de puissance. Trad. de G. Bianquis. Paris: N.R.F., s.d.
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15. _______. Le livre du philosophe. Trad. de A. K. Marietti. Paris: Aubier-Flammarion, s.d. 16. _______. Oeuvres posthumes. Trad. de H.-J. Bolle. Paris: Mercure de France, s.d. 17. _______. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. Berlim/Munique: de Gruyter/ dtv, 1988. 18. _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Berlim/Munique: de Gruyter/ dtv, 1980. 19. SHAKESPEARE. Hamlet. Londres: Penguin Books, 1994.
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Nietzsche e a leitura de Do Belo Musical de Eduard Hanslick
Nietzsche e a leitura de Do Belo Musical de Eduard Hanslick*1 Anna Hartmann Cavalcanti **
Resumo: Neste trabalho pretendo analisar a leitura de Nietzsche do ensaio Do Belo Musical, do crítico musical vienense Eduard Hanslick, elaborada no período de redação de O Nascimento da Tragédia. A partir de um confronto dos escritos e fragmentos póstumos de 1871 com o ensaio de Hanslick, procuro reconstituir a leitura de Nietzsche, ressaltando o duplo aspecto, crítico e produtivo, de sua interpretação. Palavras-chave: arte e natureza – sentimento – sensação – Nietzsche – Hanslick – A. W. Schlegel.
Introdução Nietzsche leu provavelmente em 1865, pela primeira vez, a obra Do belo musical (Vom Musikalisch Schönen) do crítico musical vienense E. Hanslick. Nesta época, o filósofo era estudante de Teologia em Bonn e aluno de Otto Jahn, estudioso da obra de Mozart e, como Hanslick, crítico do drama musical wagneriano. Os primeiros
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Este trabalho foi apresentado no Colóquio “Vom Umgang Nietzsches mit Büchern zum Umgang mit Nietzsches Büchern” realizado em Weimar, em setembro de 2002. Doutora em Filosofia pelo Departamento de Filosofia do IFCH da Unicamp.
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indícios da leitura de Hanslick encontram-se em um fragmento de março de 1865, no qual Nietzsche discute a relação entre a poesia e a música, referindo-se a uma questão bastante polêmica na época, e discutida em Do belo musical, a da relação entre música e sentimento2. Ao lado deste fragmento o filósofo redigiu uma lista de livros a serem lidos nas férias, na qual menciona o nome de Hanslick3. No outono de 1866, agora estudante em Leipzig, Nietzsche escreve um pequeno texto, bastante crítico, sobre as “As Walkírias” de Wagner, no qual surgem novos indícios da leitura de Do belo musical4. O texto trata de um tema, os limites entre a música e a poesia, que foi objeto de uma acirrada polêmica entre os partidários da concepção da obra de arte total (Gesamtkunstwerk), desenvolvida por Wagner, e os defensores da concepção musical clássica, na qual se afirma a primazia da música absoluta. Nietzsche desenvolve um comentário extremamente irônico sobre o significado do título na ópera wagneriana. O filósofo observa que o título do prelúdio das “Walkírias”, “Tempestuoso” (Stürmisch), tem a função de indicar ao maestro um tempo mais rápido, enquanto o leitor da partitura deve saber que o prelúdio descreve uma tempestade: “O título é, portanto, um programa que enfeitiça o ouvinte colocando diante de sua alma uma imagem poética”5. Nietzsche refere-se aqui à estreita relação entre texto e música que se estabelece a partir do título, sugerindo que o ouvinte passa a compreender a composição musical a partir de seu conteúdo programático. Segue-se a esta observação o irônico comentário: “Se não soubéssemos que se tratava de uma tempestade, então pensaríamos, primeiro, em uma roda rufante, depois, no bramir de um trem a vapor. Escutamos o estalar das rodas, o ritmo uniforme, o interminável e galopante estrondo” (Ibid). Pode-se identificar nesta ironia uma crítica à música programática, na qual o texto passa a determinar o conteúdo da música, de modo que sem o programa indicado pelo título a música deixa de ser compreensível, produzindo as mais disparatadas e es-
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tranhas impressões. Nietzsche sugere, desse modo, que o estabelecimento de uma relação necessária entre texto e música, como o elaborado por Wagner em sua concepção da obra de arte total, tem como conseqüência a perda da autonomia do elemento musical na ópera. Este tema não apenas foi desenvolvido por Hanslick, em Do belo musical, como constitui um aspecto central de sua argumentação. O autor defende o princípio de autonomia da música, enfatizando a especificidade do elemento musical em relação à natureza conceitual do texto. Hanslick observa que um mesmo trecho musical pode ser combinado a diferentes textos, modificando os sentimentos e interpretações despertadas no ouvinte. Isto demonstra, como veremos adiante, a independência do elemento musical em relação ao textual, assim como sugere que o texto, na ópera, determina conceitualmente o conteúdo da música, a qual, separada do texto, não possui conteúdo conceitual, mas puramente musical. Um dos aspectos da crítica de Hanslick à ópera wagneriana dirige-se justamente à subordinação da música ao elemento dramático. De fato, na época da terceira edição de Do belo musical, em 1865, Wagner tinha como princípio estético a concepção de obra de arte total, na qual a música era compreendida como um meio para expressão dramática. Hanslick critica, em diversas passagens, este princípio wagneriano, a partir do qual a música perde não apenas sua beleza própria, mas seu significado, só podendo ser compreendida em relação ao texto. Há, desse modo, um predomínio das concepções da estética musical clássica nestas primeiras reflexões de Nietzsche, expressas sobretudo na prioridade da música absoluta e na atitude crítica em relação à música programática. Mas é justamente esta prioridade da música absoluta que, como veremos, irá unir Nietzsche e Wagner na época de elaboração de O Nascimento da Tragédia.
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Em novembro de 1868, acontece o primeiro encontro entre Nietzsche e Wagner, iniciando um período de intensa amizade e diálogo entre o jovem filólogo e o conhecido compositor, dos quais se encontram sinais em Beethoven, publicado por Wagner em 1870, e em O Nascimento da Tragédia, publicado no final do ano seguinte. Um aspecto importante a ser ressaltado é a conversão de Wagner, em 1870, à filosofia de Schopenhauer e a mudança, daí decorrente, que ocorre em sua concepção de arte total. De fato, Schopenhauer coloca a música no centro de sua reflexão sobre a arte. Ele estabelece não apenas a primazia da música em relação às outras formas de manifestação artística, como considera a música o mais claro e completo comentário de um acontecimento, excedendo em clareza a própria expressão poética, dado que a música, diferente da poesia, é um modo imediato de expressão. A publicação de Beethoven, em 1870, é expressão desta conversão, na qual Wagner revê e modifica radicalmente a sua concepção do drama como arte total, enfatizando a primazia da música e seu papel de revelar a essência e o em-si da ação dramática6. Em 1871, ano em que Nietzsche dedica-se intensamente à elaboração de sua primeira obra, encontram-se sinais de releitura do ensaio Do belo musical de E. Hanslick. Em uma carta de abril de 71 ao editor Engelmann7, ao qual envia uma primeira versão de O Nascimento da Tragédia, intitulada “Música e Tragédia”, Nietzsche descreve a reflexão estética sobre a tragédia grega desenvolvida em sua obra, enfatizando a importância em relacionar a tragédia com o “estranho enigma de nosso presente”, Richard Wagner. O filósofo pretende, além disso, abordar questões centrais da estética da época, particularmente da estética wagneriana, a partir do que “Hanslick e outros” disseram sobre ela. Entre as anotações elaboradas no início de 71, no período em que Nietzsche envia a carta a Engelmann, encontram-se diversos fragmentos nos quais o filósofo desenvolve a proposta de discutir o
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fenômeno Wagner em sua relação com a polêmica estética da época8. Além destas notas póstumas, Nietzsche escreveu em seu exemplar de Do belo musical, existente atualmente em sua biblioteca póstuma, em Weimar, algumas breves, mas significativas observações nas margens do texto. Parte das observações críticas foi escrita no primeiro capítulo, intitulado “A estética do sentimento”, enquanto as demais se concentram no penúltimo capítulo da obra, intitulado “As relações da música com natureza”, no qual Hanslick discute a relação da arte com a natureza, conferindo à música uma relação com a natureza essencialmente distinta das artes plásticas e da poesia. É possível que as observações manuscritas tenham sido um primeiro esboço do projeto mencionado pelo filósofo a Engelmann, de trazer à discussão as principais questões estéticas da época, abordando tanto a estética wagneriana quanto a de seus opositores, dado que são, em sua totalidade, extremamente críticas às teses de Hanslick. É como se Nietzsche reunisse elementos, nestas observações, para a elaboração desta abordagem crítica. Também Otto Jahn, como vimos, um crítico da ópera wagneriana, constituiu um alvo da crítica de Nietzsche. Entretanto, diferente de Hanslick, que não é mencionado em O Nascimento da Tragédia, a reflexão crítica sobre Jahn desenvolvida nas notas póstumas foi incluída por Nietzsche na seção 19 de sua primeira obra. Como mostra a versão final de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche abandona, no que diz respeito a Hanslick, o projeto mencionado a Engelmann, desenvolvendo, antes, uma veemente crítica às concepções da estética de sua época em relação à ópera, particularmente da subordinação da música ao texto. Se de fato o filósofo releu Hanslick com o propósito de elaborar uma reflexão crítica, ele parece ter encontrado nesta obra um rico e abundante material, particularmente em relação à crítica da ópera e à concepção da música como arte autônoma. A favor desta hipótese falam duas notas, de tom neutro, ambas do início de 1871, na qual Nietzsche
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refere-se à distinção entre forma e conteúdo na música e à concepção de arabesco, desenvolvida pelo crítico vienense para caracterizar a natureza singular das formas musicais9. Refere-se, ainda, à discussão sobre a representação do sentimento na música. Estas questões foram desenvolvidas por Hanslick nos capítulos 3, 5 e 7, os quais, somados aos comentados por Nietzsche nas margens de seu exemplar, correspondem à leitura ou ao conhecimento quase integral das teses do livro. Estas notas permitem estabelecer uma relação produtiva entre a reflexão de Nietzsche sobre a estética musical e algumas das concepções de Hanslick, entre elas a concepção da primazia da música em relação ao texto. Como bem observou Kropfinger, é curioso o fato de Nietzsche, nas notas em questão, referir-se de modo expressamente crítico a Otto Jahn, como o fará também na seção 19 de O Nascimento da Tragédia, e em relação a Hanslick se expressar de modo neutro, como em um comentário10. Estas notas póstumas indicam o duplo aspecto da leitura feita por Nietzsche em 71, constituída tanto por aspectos críticos, quanto por comentários que expressam seu interesse pela estética de Hanslick. A hipótese desenvolvida, a seguir, é que Nietzsche estabelece, no fragmento VII, 12[1], elaborado na época da redação final de sua primeira obra, um singular diálogo com a estética musical de Hanslick. Embora não haja neste texto nenhuma referência a Hanslick, ou a sua obra, a temática nele desenvolvida, particularmente a relação entre arte e natureza e a crítica à estética do sentimento, está estreitamente ligada às teses desenvolvidas em Do belo musical. O estudo deste texto, articulado às notas póstumas, torna possível desenvolver, como veremos, uma reconstituição destes dois aspectos, crítico e produtivo, da leitura feita por Nietzsche em 71. O duplo aspecto desta leitura está ligado à singularidade das concepções estéticas de Hanslick. De um lado, Nietzsche encontra em Hanslick um paradigma da estética que pretende criticar, dado que este concebe a música dentro da categoria do belo, como uma ex-
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periência de contemplação estética, situando-se, portanto, no pólo oposto das concepções de Nietzsche, o qual compreende a música a partir do dionisíaco. De outro, Hanslick é um radical defensor da música absoluta, assim como crítico da subordinação da música ao elemento dramático, reunindo em sua polêmica argumentos e inúmeras citações, tanto de partidários quanto de críticos da música absoluta, que podem ter auxiliado Nietzsche na elaboração de sua própria discussão com a estética de sua época11. Deve-se mencionar, ainda, que Hanslick formula o problema da relação entre música e texto como um problema de forma e conteúdo, o que implica uma discussão sobre as esferas de representação, questões de alto interesse para Nietzsche no contexto de elaboração de O Nascimento da Tragédia. A leitura de Hanslick insere-se, portanto, em um campo complexo de relações. Pretendo reconstituir a leitura de Nietzsche a partir de uma articulação entre as observações manuscritas e os fragmentos póstumos, assim como discutir os desdobramentos que esta leitura teve no fragmento VII, 12[1]. Esta leitura relaciona-se a este texto póstumo, como observado, de uma perspectiva crítica e produtiva. De um lado, o filósofo encontra em Do belo musical um modelo de oposição, ou seja, um modelo em confronto com o qual desenvolve parte de suas teses, sobretudo a da relação entre arte e natureza. De outro, a crítica à estética do sentimento e a relação entre música e texto funcionam como uma confirmação e estímulo ao desenvolvimento de suas próprias teses. 1 No capítulo “As relações da música com a natureza”, Hanslick analisa a relação da música e das demais artes com a natureza. O autor ressalta a relevância do exame desta temática para a estética
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da música, dado que a esta questão estão ligados os mais polêmicos debates sobre a arte, particularmente a questão da natureza e conteúdo da arte musical. Hanslick defende a tese de que a música, diferentemente das demais artes, não possui um modelo na natureza. Enquanto a poesia, a pintura e a escultura encontram uma fonte inesgotável de matérias na natureza, a música recebe desta somente o material para a preparação dos sons, pois a harmonia e a melodia, fatores que determinam a arte musical, não se encontram na natureza, são, antes, produto do espírito humano. Somente um elemento musical pertence à natureza e caracteriza muitas de suas sonoridades: o ritmo. Segundo Hanslick, o ritmo constitui o único elemento sonoro que nasce e se constitui a partir da natureza. O autor enfatiza que o sistema musical não deve ser compreendido como uma invenção arbitrária e convencional, como algo já criado (ein Erschaffenes), mas como algo que está em permanente formação (ein Gewordenes)12. Para esclarecer esta concepção, Hanslick faz, a partir de Jacob Grimm, uma analogia entre a linguagem e a música. A poesia e a música são, segundo Grimm, assim como a linguagem, um produto humano. Ambas são um produto artificial, pois não se encontram na natureza e devem ser aprendidas. Tanto a linguagem como a música foram formadas pelas nações segundo seu caráter, assim como foram continuamente modificadas e aperfeiçoadas. Hanslick procura ressaltar o caráter histórico da arte musical, suas transformações e sua permanente evolução ao longo da história. Não existe, portanto, segundo o autor, um sistema musical na natureza. Além do som, que proporciona à música sua matéria, há, entretanto, um outro significado para “matéria”, o qual nos leva para uma importante questão. Trata-se do objeto, do conteúdo representado pela música. “De onde o compositor retira esta matéria?” (Do belo musical, p.144). Neste ponto reside a diferença central das concepções estéticas de Hanslick e Nietzsche.
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Hanslick argumenta que, diferentemente da música, o belo natural desempenha um papel decisivo nas demais artes, a saber, nas artes plásticas, na escultura e na poesia. A natureza oferece ao pintor ou ao escultor o modelo segundo o qual ele cria, seja para imitálo ou transformá-lo. Do mesmo modo, o poeta cria segundo um modelo que é despertado em sua imaginação a partir do presente ou da tradição. O vasto campo das ações, sentimentos e experiências humanas, cujo modelo ele encontra na natureza, proporciona ao poeta uma fonte inesgotável para sua criação. A concepção de Hanslick é composta por dois pontos principais. Primeiramente, o pintor ou o arquiteto nada podem criar, em sentido estrito, pois tudo o que criam deve ter sido, antes, visto e observado atentamente. Em segundo lugar, o criar do pintor ou do poeta é um contínuo “imitar desenhando” (Nachzeichnen), “imitar formando” (Nachformen). Aqui aparece a diferença central em relação à arte musical: um tal modelo não existe para a música, pois “imitar musicando alguma coisa (Nachmusizieren) não existe na natureza” (Do belo musical, p. 146). Mesmo para o canto popular não há modelo na natureza; este canto corresponde à primeira etapa da arte musical, constituindo, portanto, um produto humano. Enquanto as demais artes expressam um conteúdo, correspondente ao modelo externo que encontram na natureza, a música não repete nenhum objeto conhecido, não expressa por isso nenhum conteúdo ou objeto. Segundo Hanslick, “o compositor não pode transformar nada; ele deve criar tudo de novo” (Do belo musical, p. 146). E a matéria que ele dispõe para sua criação consiste unicamente em sons e relações sonoras. No parágrafo seguinte, Hanslick faz uma breve crítica ao princípio aristotélico de imitação e o define como “princípio de imitação da natureza pela arte”. Refutando este princípio, o autor afirma que a arte não deve imitar servilmente a natureza, mas transformála (Do belo musical, p. 146). Este algo transformado pela arte é
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justamente o modelo oferecido pela natureza, o belo natural. Neste parágrafo concentra-se a maior parte das observações manuscritas de Nietzsche. Ao lado da afirmação: “Para a música, não existe um belo da natureza”, o filósofo coloca um ponto de interrogação que indica o caráter problemático da concepção de Hanslick. Ao lado da observação do crítico musical sobre o princípio aristotélico, Nietzsche escreve: “homem medíocre!” (kleiner Mann!). Enfim, o filósofo comenta a concepção de Hanslick sobre o papel transformador da arte em relação a seu modelo, com as palavras: “antes, imitar a natureza como ela cria. Schlegel. Estét.” (“vielmehr: die Natur nachahmen wie sie schafft. v. Schlegel. Ästh.”)13. Nietzsche faz, neste parágrafo, uma referência essencial às “Lições sobre bela literatura e arte”14, de August Wilhelm Schlegel, onde esta temática é tratada. Esta indicação permite não apenas compreender a interpretação que Nietzsche faz de Hanslick, mas também esclarecer como o filósofo se posicionou nesta polêmica clássica da estética, o da relação entre a arte e a natureza. A.W. Schlegel, em suas “Lições”, observou que os modernos haviam interpretado o princípio aristotélico de imitação de modo muito diferente de seu autor, o que provocou os maiores mal-entendidos e contradições. No princípio aristotélico, segundo o qual as belas artes são imitativas, é indicada a importância do elemento imitativo nas artes, não somente da poesia e da pintura, mas também da música e da dança. Na interpretação dos teóricos modernos, este princípio foi de tal forma modificado que passou a significar que as belas artes devem imitar a natureza. Problemático nesta modificação do princípio é, segundo Schlegel, a indeterminação associada à concepção de natureza, pois se passa a defini-la a partir de um conceito puramente negativo, a saber, como algo existente sem a intervenção humana. A este conceito de natureza acrescenta-se um conceito passivo de imitação, como se a arte nada fosse senão um mero copiar e repetir. Os elementos da criação artística devem nascer e
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ser concebidos segundo uma realidade previamente existente. Schlegel observa que neste conceito de natureza não é abarcada “a totalidade das coisas” (die Gesamtheit der Dinge), mas objetos determinados do mundo exterior (KL, p.90). O principal aspecto da natureza perdido neste conceito é justamente “o seu devir eterno, sua universal força criadora”, que não pode ser suprimido e que não desaparece em nenhum produto individual. Schlegel contrapõe a este conceito negativo uma concepção produtiva, criadora de natureza15, a partir da qual a expressão imitação, assim como o princípio – “a arte deve imitar a natureza” – adquire a sua mais nobre significação. A arte deve criar autonomamente como a natureza, a partir de si, como “uma transformação do imitado segundo leis de nosso espírito, como uma imaginação sem modelo externo” (KL, p. 43). As observações manuscritas de Nietzsche ganham clareza a partir desta reflexão. Ao lado da afirmação de Hanslick de que a arte não deve imitar, mas transformar a natureza, o filósofo escreve: “antes imitar a natureza como ela cria”. A arte não deve imitar ou transformar a natureza, mas criar com autonomia como a natureza, enquanto expressão de sua força própria e criadora. A reflexão de Schlegel permite, desse modo, reconstituir o diálogo de Nietzsche com a estética de Hanslick. Primeiro, o filósofo refere-se, através da menção a Schlegel, à interpretação tradicional do princípio aristotélico, a fim de indicar a ligação de Hanslick com esta interpretação e, por conseguinte, com uma concepção problemática de natureza. Como vimos, Hanslick descreve o princípio aristotélico como um princípio de imitação da natureza, o que o leva a contrapor esta noção de imitação à concepção de que a arte transforma natureza. Para Nietzsche, entretanto, trata-se de enfatizar uma concepção de natureza inteiramente diferente da apresentada por Hanslick, a saber, não da natureza como modelo externo à arte, mas como modelo artístico.
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As observações manuscritas de Nietzsche permitem mostrar, desse modo, como a concepção da relação da arte com a natureza é construída a partir de um diálogo tanto com a estética romântica16, quanto com a estética de seu tempo. A seguir, pretendo mostrar, no fragmento VII, 12[1], a continuidade e o desdobramento deste diálogo na própria obra de Nietzsche. O filósofo interpreta a gênese da canção popular a partir de uma análise da relação da arte, particularmente da poesia e da música, com a natureza como modelo. Uma das principais questões analisadas no ensaio VII, 12[1] é a da gênese e natureza da união entre música e imagem, como chave de compreensão tanto da canção popular, quanto da ópera e da música instrumental moderna. O filósofo observa que muito antes de surgir a música puramente instrumental ocorreu esta união entre a música e a imagem, a qual caracteriza o desenvolvimento da arte grega desde a canção popular até a formação da poesia lírica, do ditirambo e, posteriormente, da tragédia. Nietzsche retoma, aqui, o tema da relação do artista com a natureza, desenvolvido na segunda e sexta seções de sua primeira obra. Na segunda seção de O Nascimento da Tragédia, o filósofo caracteriza o apolíneo e dionisíaco como duas diferentes forças artísticas que brotam da natureza, manifestando-se respectivamente no mundo de imagens do sonho e na embriaguez, como experiência de dissolução da individuação. A relação de imitação se dá justamente em relação a estas disposições artísticas da natureza, as quais são compreendidas como arquétipo, modelo originário (Urbild) do artista. De modo semelhante, no fragmento VII, 12[1], a natureza, definida pelo filósofo como uma natureza “artisticamente pré-figurativa”17, é o modelo de união entre música e imagem. Nietzsche parece enfatizar, a partir desta caracterização da natureza, a relação entre o elemento não-figurativo e figurativo da criação, correspondentes às duas pulsões artísticas do mundo grego, analisadas em sua primeira obra, as pulsões dionisíaca e apolínea. Apolo simboliza as artes da imagem, enquan-
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to o elemento artístico de Dioniso é a música. A canção popular e a lírica e, sobretudo, a tragédia, simbolizam a união entre o elemento apolíneo e dionisíaco, a partir do qual a música, ou seja, o elemento não-figurativo engendra a imagem e a forma apolínea. Os dois elementos da lírica, a música e a poesia, possuem um modelo artisticamente ativo na natureza, o da pulsão apolíneo-dionisíaco que produz formas e figuras. Nietzsche define a natureza como “artisticamente pré-figurativa” (“künstlerische vorbildliche Natur”) tanto para ressaltar o caráter ativamente criador deste modelo, quanto para indicar que o estado característico da criação é um estado préfigurativo, que tende à produção de formas e imagens. O lírico, que cria segundo a natureza artística, não imita as formas ou figuras de seu modelo, mas cria como a natureza, engendrando de si figuras e imagens. O filósofo retoma, de modo significativo, a descrição da relação da arte com a natureza como uma relação de imitação, assim como articula a concepção de natureza como modelo artístico à concepção, central em O Nascimento da Tragédia, da arte apolínea e dionisíaca. Neste parágrafo, Nietzsche tratou do mesmo tema, o da relação da arte com a natureza, abordado em sua leitura do ensaio de Hanslick. Enquanto para o crítico musical a arte não deve imitar, mas transformar a natureza, trata-se para Nietzsche de explicitar uma concepção de natureza inteiramente diferente. A arte deve imitar a natureza como modelo artístico, estabelecendo com esta uma relação ativa de criação, correspondente à união entre as pulsões apolínea e dionisíaca que se manifesta no poeta lírico e dramático. Semelhante a Schlegel, o filósofo compreende a natureza como criação e devir, enquanto ao artista corresponde uma atividade criadora sem modelo externo. O filósofo parece, neste parágrafo, ter empregado a concepção da natureza como modelo criador, elaborada por Schlegel, no contexto de sua própria reflexão sobre a relação entre a arte dionisíaca e apolínea.
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Procurei mostrar, até aqui, como Nietzsche estabelece, a partir de Schlegel, uma leitura crítica da estética musical de Hanslick. A seguir, será abordado o lado positivo desta leitura, elaborado pelo filósofo nos fragmentos póstumos de 1871, particularmente no fragmento VII, 12[1]. Primeiramente, analiso a crítica à estética do sentimento, desenvolvida tanto por Hanslick, em seu ensaio, quanto por Nietzsche no fragmento VII, 12[1], a fim de expor aspectos importantes da recepção do filósofo da estética do crítico musical vienense. 2 Como vimos, Hanslick considera a relação entre arte e natureza como a mais polêmica questão da estética da época, pois está essencialmente ligada à questão do conteúdo da arte, particularmente da música. O principal desdobramento de sua concepção, segundo a qual a música não possui nenhum modelo na natureza, consiste no fato de que à arte musical também não corresponde nenhum conteúdo conceitual. Para o autor, a música é constituída por seqüências sonoras criadas pelo compositor de acordo com relações e leis especificamente musicais, independentes de quaisquer representações. A beleza da arte musical, formada por elementos sonoros, é específica e independente: “Com isto, entendemos um belo que, sem depender e sem necessitar de um conteúdo exterior, consiste unicamente nos sons e em suas ligações artísticas” (Do belo musical, p.61). A partir de tais princípios, o autor elabora uma crítica à estética de sua época, particularmente aquela denominada por ele de “estética do sentimento”. Segundo esta estética, a particularidade da música consiste em despertar e expressar sentimentos. A arte musical seria caracterizada, de acordo com esta concepção, como representação de um determinado sentimento ou afeto.
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Hanslick procura mostrar como a relação da música com nossos sentimentos é distinta da questão de sua fundamentação estética, a qual implica não a análise da música como expressão do afeto, mas da especificidade da beleza e das leis internas da arte musical. O autor estabelece, primeiramente, uma distinção entre sensação e sentimento. A sensação é a percepção (perzipiere) de uma determinada qualidade sensível, uma cor, um som, ao passo que o sentimento é o tornar-se consciente de um estado de espírito, de um bem-estar ou mal-estar. A sensação, caracterizada como o simples perceber a partir dos sentidos, é a condição do prazer estético e constitui a base do sentimento. Enquanto faculdade ou disposição de receber impressões, a sensação possui um caráter indeterminado e genérico, ela representa o entrelaçamento da arte com o sensível, a partir do qual se desenvolve o prazer estético. Para que seja possível um “sentir” (fühlen), observa o autor, é necessário que haja, antes, um “ouvir” (hören)18. O sentimento, por sua vez, pressupõe uma determinação e diferenciação de nossas emoções inexistente na sensação. Os sentimentos de alegria, esperança ou melancolia são, segundo Hanslick, inseparáveis de representações e conceitos que determinam seu conteúdo. Em sua crítica da estética do sentimento, o autor questiona a habitual oposição estabelecida entre o domínio do sentimento e aquele do pensamento racional. O que faz de um sentimento um sentimento determinado como, por exemplo, esperança ou amor, não é de modo algum sua intensidade, pois esta varia em sentimentos iguais ou diferentes: “Somente com o apoio de algumas representações e juízos, no momento de uma forte comoção talvez sejam inconscientes, é que nosso estado de espírito pode concentrar-se exatamente naquele determinado sentimento” (Do belo musical, p.33). Hanslick ressalta que não seria possível reconhecer o sentimento sem estas representações e conceitos, a partir da quais seu sentido é determinado. Sem este “aparato de pensamento”, o sentimento torna-se uma emoção indeterminada,
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uma sensação de bem-estar ou mal-estar vaga e genérica. Desse modo, diferentemente da indeterminação da sensação, que torna possível a percepção das qualidades sensíveis, o sentimento está estreitamente ligado a representações e conceitos. O que torna um sentimento determinado é, como vimos, seu núcleo conceitual. A música, ao contrário, não é composta nem de conceitos, nem de sentimentos, mas de relações e construções sonoras. Hanslick parte do exemplo de uma melodia puramente instrumental, de forte efeito dramático. Nela não encontraríamos nenhum sentimento determinado, como raiva ou fúria, mas tão somente um movimento rápido e apaixonado. Se acrescentarmos, porém, a esta melodia palavras de um amor emocionado, a representação deste sentimento poderia, muito provavelmente, ser também interpretado por ela. O autor cita, como exemplo, uma ária de Orfeu que emocionou milhares de pessoas em sua época, cujo texto era: “J’ai perdu mon Eurydice, Rien n’egale mon malheur” (Do belo musical, p. 45). Boyé, um contemporâneo de Gluck, observou que esta melodia poderia se adaptar, igualmente, às palavras de sentido oposto: “J’ai trouvé mon Eurydice, Rien n’egale mon bonheur”. A música, em suas puras relações, representa, somente, um movimento apaixonado, o qual pode ser associado tanto a estados de tristeza, quanto de alegria. Independente do texto, que determina na ópera o conteúdo, não é possível associar com precisão sentimentos à música. O autor compara a relação entre texto e melodia na ópera a silhuetas, “cujo original, na maior parte das vezes, só reconhecemos quando nos dizem de que se trata” (Do belo musical, p. 47). Também a música instrumental é capaz de despertar uma multiplicidade de associações e sentimentos, sem que seja possível estabelecer uma relação de correspondência entre estas imagens e estados afetivos e o conteúdo sonoro. O autor enfatiza, desse modo, o caráter indeterminado do elemento musical, assim como a relação de exterioridade entre o sentimento e a música. A diversidade
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de interpretações possíveis de uma peça musical indica o caráter simbólico e não necessário entre os estados afetivos e a música. Os sentimentos que atribuímos à melodia resultam de uma dimensão simbólica subjetiva, independente do conteúdo musical: “Ao vermos, no amarelo, ciúme, no sol maior, serenidade, no cipreste, tristeza, essas interpretações tem uma relação fisiológico-psicológica com determinados caracteres desses sentimentos; mas só a tem, de modo preciso, nossa interpretação, e não a cor, o som, por si mesmos” (Do belo musical, p. 39). Hanslick enfatiza a natureza simbólica desta produção de associações a partir da música: “Demos a ela o nome de simbólica, pois não representa de imediato o conteúdo, permanecendo uma forma essencialmente diversa dele” (Do belo musical, p. 39)19. A atribuição de sentimentos à música está relacionada à nossa interpretação, assim como a elementos psicológicos e fisiológicos que determinam nossos afetos, não tendo ligação com a cor ou com o som em si mesmos. Os termos “expressar”, “representar”, “descrever” são impróprios para a abordagem da estética musical, pois supõem que algo seja representado e adequado a seu conteúdo, quando é próprio à música um conteúdo sonoro irredutível ao conteúdo conceitual das representações e sentimentos. Hanslick defende, desse modo, uma concepção particular e autônoma da beleza musical, composta de puras relações musicais. Os sons não possuem nenhum fim ou conteúdo independente das próprias relações sonoras: “O conteúdo da música são formas sonoras em movimento” (Do belo musical, p. 62). Os sentimentos possuem, segundo esta estética formalista, sobretudo significado simbólico; eles permitem, através de analogias, descrever e apreender em imagens a música. A especificidade do símbolo consiste não na coincidência e adequação em relação a um conteúdo, como vimos, mas na produção de semelhanças e analogias. Nietzsche propõe, no fragmento VII, 12[1], repensar e tratar com maior profundidade algumas questões polêmicas da estética
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da época, a saber, as concepções que colocam a poesia e o sentimento como fonte e princípio da composição musical. Estas duas proposições estéticas, tratadas por Nietzsche neste fragmento, correspondem àquelas denominadas por Hanslick de “estética do sentimento”. O filósofo procura colocar em questão a concepção segundo a qual as imagens poéticas ou o sentimento engendram a composição musical, como se a melodia fosse apenas um meio de ilustrar a poesia ou expressar o sentimento. Em sua refutação da primeira concepção, o filósofo enfatiza a impossibilidade de uma imagem, ou idéia poética, constituída por uma forma determinada, engendrar o conteúdo indeterminado e não-conceitual da arte musical. Em seguida, é refutada a concepção segundo a qual a música nasce do sentimento ou de um estado afetivo. Nietzsche faz aqui uma diferença entre o domínio da vontade, estreitamente ligado ao dos sentimentos, e aquele da arte. Enquanto o domínio da arte é caracterizado por um estado liberto da vontade individual, no qual o artista alcança um estado de contemplação desinteressada, o sentimento encontra-se perpassado por representações, expressando uma vontade individual e subjetiva, que pertence a um domínio nãoartístico. Um sentimento de amor ou esperança, que expressa um afeto determinado, não pode criar a partir de si uma melodia, pois um conteúdo determinado não pode engendrar um universal e indeterminado. Para esclarecer a relação entre música e vontade, o filósofo observa que “a vontade é objeto da música, mas não sua origem” (VII, 12[1]). A vontade, como domínio não-artístico, não pode engendrar a música, mas pode servir ao poeta como símbolo, a partir do qual ele traduz em imagens o conteúdo próprio da música: “Estes sentimentos poderiam servir para simbolizar a música: como o faz o lírico, que traduz para si aquele domínio da ‘Vontade’ (...) no mundo alegórico do sentimento”(VII, 12[1]). O lírico interpreta para si o conteúdo indeterminado da música no mundo alegórico das imagens ou dos sentimentos. Para Nietzsche, a música é o ele-
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mento primeiro, sem imagem ou conceito, a partir do qual são engendrados imagens e sentimentos como alegorias ou símbolos de uma melodia. Procuro, a seguir, reconstituir os principais aspectos da leitura de Nietzsche da estética de Hanslick. Para os dois autores, trata-se de rever a questão da estética moderna, segundo a qual o objetivo da música seria representar determinados sentimentos ou imagens. Ambos desenvolvem um duplo argumento para refutar a concepção de que o sentimento não pode ser entendido como fonte e origem da música. Primeiramente, o conteúdo conceitualmente determinado do sentimento diferencia-se, como as imagens poéticas, do conteúdo geral e indeterminado da música. Em segundo lugar, estabelece-se uma contraposição entre a dimensão subjetiva do sentimento, pertencente a um domínio não-artístico, e o compor artístico do músico. Neste ponto, é digno de nota que Nietzsche utilize, em seu texto, não somente a mesma argumentação, mas também uma seqüência de substantivos semelhante àquela empregada por Hanslick. Enquanto este afirma: “O que faz com que um determinado sentimento se transforme num sentimento determinado? Em nostalgia, esperança, amor? O sentimento da esperança é inseparável da representação de um estado futuro mais feliz, que se compara com o estado presente. (...) O amor não pode ser concebido sem a representação de uma pessoa amada, sem o desejo e o anseio de se tornar feliz, de glorificar e possuir esse objeto” (Do belo musical, pp.33-34). Nietzsche observa: “Aquilo que denominamos sentimentos já está perpassado e saturado com representações conscientes e inconscientes e, por isso, não é mais diretamente objeto da música: quanto menos, portanto, poderiam reproduzi-la a partir de si mesmos. Tomemos, a título de exemplos, os sentimentos de amor, temor e esperança: num caminho direto, a música nada mais tem a ver com eles, tão repleto já se encontra cada um desses sentimentos com representações” (VII, 12[1]) Aqui, trata-se, tanto para Hanslick
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quanto para Nietzsche, de estabelecer uma diferenciação entre o domínio indeterminado da música e o domínio determinado, perpassado por representações do sentimento. Que Nietzsche tenha como base, nesta passagem, a leitura de Hanslick, parece corroborado por um fragmento elaborado na mesma época: “A música, a ‘arte mais subjetiva’: em que propriamente não é ela arte? Em sua ‘subjetividade’, isto é, ela é puramente patológica, quando não é uma pura forma não-patológica. Como forma ela é a (arte) mais próxima do arabesco. Este é o ponto de vista de Hanslick. As composições, nas quais predomina a ‘forma que age não-patologicamente’, particularmente Mendelssohn, recebem desse modo um valor clássico” (VII, 9 [98]). Nesta passagem, o filósofo não apenas associa a contraposição entre a dimensão subjetiva do sentimento e o compor artístico do músico, desenvolvida no fragmento VII, 12[1], à reflexão elaborada por Hanslick, como utiliza os mesmos termos, particularmente os termos patológico e não-patológico, empregados pelo autor em seu ensaio. Nietzsche refere-se, nesta nota, aos capítulos 3 e 4 do ensaio de Hanslick, nos quais é elaborada uma distinção entre um modo estético e patológico de recepção da música. O autor procura refutar as teorias que atribuem valor artístico ao efeito da música sobre os sentimentos, estabelecendo uma oposição entre uma recepção estética, puramente contemplativa da música, e uma recepção patológica, a qual remete para uma experiência subjetiva da música, mediada pelos afetos, mencionada por Nietzsche no fragmento. Uma distinção semelhante é feita pelo filósofo no fragmento VII, 12[1], quando diferencia duas formas de recepção da música, aquela subjetiva, mediada pelos sentimentos, e aquela liberta dos afetos, a partir da qual o auditor-artista experimenta contemplativamente a música: “Quem extrai sentimentos como efeitos da música neles tem um reino simbólico intermediário, que pode lhes dar um antegosto da música, contudo o exclui, ao mesmo tempo, de
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seu mais íntimo santuário” (VII, 12[1]). Enquanto o primeiro só experimenta um antegosto da música, o auditor-artista alcança uma vivência mais completa da melodia. Tanto Hanslick, quanto Nietzsche procuram opor uma experiência artística, que possibilita o acesso à música como arte autêntica, a uma experiência patológica, mediada pelo sentimento. Nesta passagem encontram-se claros indícios do interesse de Nietzsche na diferenciação entre uma experiência artística e patológica da música, o qual aponta para uma dimensão produtiva de sua recepção da estética de Hanslick. Diferentemente das observações manuscritas, em sua maior parte críticas, esta anotação parece ter sido retomada no fragmento VII, 12[1], no qual Nietzsche desenvolve a associação entre o sentimento e as representações, assim como dá continuidade à distinção entre o domínio artístico e afetivo da experiência musical. O filósofo encontrou, no ensaio de Hanslick, um interessante e rico material, que parece ter estimulado sua reflexão estética, particularmente no que diz respeito à concepção de sentimento e à distinção entre uma experiência afetiva e artística da música. Mas quando se trata de definir o que se entende por “caráter artístico da música”, a estética de Nietzsche revela-se bastante diferente daquela de Hanslick. Leiamos, mais uma vez, o fragmento: “Como forma ela é a (arte) mais próxima do arabesco. Este é o ponto de vista de Hanslick. As composições, nas quais predomina a ‘forma que age não-patologicamente’, particularmente Mendelssohn, recebem desse modo um valor clássico” (VII, 9 [98]). O filósofo parece interessado nas formas musicais em que prevalece um efeito não patológico, como o arabesco e as concepções de Mendelsohn, que aparecem aqui como exemplos de formas nãopatológicas. Nesta passagem mencionada pelo filósofo, Hanslick refere-se, após descrever o arabesco como uma bela forma sem conteúdo afetivo, aos fatores que dão especificidade às composições de Mendelsohn e Spohr : “O que torna bizarra a música de
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Halévy, graciosa a de Auber, o que produz aquele caráter particular em que reconhecemos de súbito Mendelsohn e Spohr, tudo isso faz com que se retorne às determinações puramente musicais, sem apelar ao sentimento enigmático” (Do belo musical, p. 70). A especificidade da música, segundo Nietzsche seu valor clássico, a qual está associado seu caráter estético, não se apóia em sentimentos, mas em puras relações musicais. Segundo Hanslick, o caráter objetivo do processo criador consiste no fato de o compositor lidar com relações e determinações puramente musicais, compostas por leis internas e por uma lógica própria. Isto não significa que o compositor não seja tomado por sentimentos em sua criação, mas sim que estes não constituem o fator criador decisivo. Hanslick observa, a esse respeito: “Aquilo que é criado pelo compositor sentimental ou pelo engenhoso, pelo compositor gracioso ou sublime, é antes de tudo e sobretudo música, construção objetiva. Suas obras vão se diferenciar pelas suas características inconfundíveis e refletirão, como imagem total, a individualidade de seus criadores; mas todas elas foram compostas por si mesmas, como beleza autônoma e puramente musical” (Do belo musical, p.95). Desse modo, o fator criador decisivo em uma composição não são os sentimentos ou a subjetividade do artista, mas o soar interior de uma melodia, a partir do qual começa o trabalho de criação e elaboração deste tema em todas as suas relações. E, para Nietzsche, o que significa uma “forma que age nãopatologicamente”? Ela está associada, certamente, a um domínio artístico. O filósofo, como vimos, coloca como condição do processo de criação o distanciamento da vontade individual, através do qual o compositor pode expressar a música em sua essência. Da mesma forma, os ouvintes que estão desligados dos afetos podem experimentar de modo mais intenso a música. Somente este estado liberto dos afetos permite, segundo o filósofo, uma experiência mais profunda da arte musical, pois torna possível que o conteúdo
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indeterminado, não-conceitual da melodia, relacionado ao domínio mais íntimo de nossa experiência interna, seja vivenciado. O filósofo faz, neste contexto, uma importante distinção entre os domínios do sentimento e da sensação20. Enquanto o sentimento, perpassado por representações, está associado a um conteúdo conceitual, as sensações são capazes de expressar uma dimensão mais profunda da experiência. Em diversas passagens deste fragmento, Nietzsche descreve as sensações de prazer e o desprazer com imagens musicais. Estas sensações “acompanham, como um baixo fundamental, todas as demais representações”, a simbólica gestual “podemos considerar como um texto estrófico sobre aquela originária melodia da linguagem do prazer e o desprazer” (VII, p.361). As sensações correspondem a um domínio irredutível da experiência, que só pode ser expresso pela música como arte não-conceitual21. A expressão “forma que age não-patologicamente” significa, para Nietzsche, a possibilidade de vivenciar, através da música, um domínio da experiência interna inacessível à linguagem. Este tema foi desenvolvido pelo filósofo em sua crítica da ópera e da exigência, a ela associada, de compreensão da palavra. O ouvinte que experimenta a música como um efeito sobre seus afetos é semelhante àquele que exige compreender as palavras da canção. Como os afetos estão estreitamente ligados a representações e conceitos, a experiência da música através do sentimento permanece presa a um domínio conceitual, através do qual se perde a dimensão tonal. A esta experiência o filósofo contrapõe um ouvinte que canta sua canção, despreocupado se a palavra é compreensível a quem não canta junto: “E como o lírico o seu hino, do mesmo modo canta o povo a canção popular, para si, por ímpeto interior, indiferente se a palavra é compreensível a quem não canta junto. Pensemos em nossas próprias experiências no domínio da arte musical superior: o que compreendemos do texto de uma missa de Palestrina, de uma cantata de Bach, de um oratório de Handel, se quiçá nós mesmos não can-
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tamos juntos? Somente para aquele que canta junto há uma lírica, há música popular: o ouvinte se coloca perante ela como diante de uma música absoluta” (VII, 12[1]). O cantar junto mostra que a música corresponde a um modo de compreensão essencialmente distinto do entendimento, pois não é mediado pelo conteúdo conceitual. A música é a única arte capaz de tornar experienciável, através da expressão tonal, aquele domínio da experiência interna que não se deixa representar por conceitos ou palavras. O significado da experiência artística é, portanto, bastante diferente para Hanslick e Nietzsche. Enquanto o primeiro concebe a composição musical como relação entre sons, assim como compreende a recepção estética como pura contemplação do belo musical, para o filósofo a música possibilita, ao auditor artista, o acesso a uma dimensão tonal desligada do domínio conceitual-figurativo. É importante fazer, ainda, uma observação sobre o modo de ler e de interpretar de Nietzsche. Quando o filósofo utiliza a reflexão de Hanslick sobre a natureza dos sentimentos, através da qual também a recepção artística ou não-artística da arte é analisada, ele o faz somente através de uma transposição que consiste em deslocar conceitos de um determinado campo de significação para outro. Desse modo, o campo de significados dos conceitos empregados por Hanslick é inteiramente modificado. Um exemplo disso é o tema, acima discutido, do caráter artístico da música, tratado por Hanslick em seu ensaio. Nietzsche inseriu este tema em um outro contexto, aquele da sensação, a partir do qual o caráter artístico da música é associado à vivência de uma dimensão não-conceitual da experiência. Em Hanslick, diferentemente, a recepção estética da música conduz a uma experiência puramente contemplativa, que desperta o prazer nas belas formas. Esta transformação do sentido ocorre, também, em relação à distinção entre sensação e sentimento. Hanslick diferencia a sensação, caracterizada como o perceber
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de uma determinada qualidade sensível, do sentimento, descrito como o tornar-se consciente “de um encorajamento ou de um impedimento de nosso estado de espírito, de um bem-estar ou malestar “ (Do belo musical, p. 17). O autor entende a sensação como o início e a condição do prazer estético, formando assim a base do sentimento, o qual pressupõe uma complexa relação de estados psicológicos e fisiológicos. Nietzsche caracteriza a sensação como uma camada mais profunda de nossa experiência interna, desligada do plano da linguagem e das representações, enquanto os sentimentos correspondem a um plano conceitualmente determinado da experiência. O filósofo desloca a distinção de Hanslick para um outro contexto, no qual esta recebe uma significação inteiramente diferente. Jörg Salaquarda fez, sobre o modo de interpretar de Nietzsche, uma importante observação: “Nietzsche jamais recebeu, simplesmente, outros pensamentos, mas sempre se apropriou de maneira muito peculiar daquilo que recebia, na medida em que articulava este pensamento a sua reflexão até aquele momento. Se se quer ser justo com os precursores de Nietzsche através da pesquisa histórica, deve-se então reconstruir, passo a passo, a partir dos textos e anotações, este processo de assimilação”22. O interpretar como um processo de assimilação, como Salaquarda o descreveu, é uma característica central do modo de ler de Nietzsche. Como vimos, determinados aspectos, como o caráter estético e patológico da arte analisado por Hanslick, são transpostos por Nietzsche para o campo de sua própria filosofia, onde recebem sentidos e desdobramentos inteiramente distintos. Foi minha intenção, na elaboração deste trabalho, colocar em foco a primeira leitura de Nietzsche do ensaio Do belo musical de Hanslick, que vem sendo reconhecida e investigada na literatura específica. A partir das observações manuscritas existentes no exemplar de Nietzsche, e das notas póstumas relacionadas ao ensaio de Hanslick, procurei reconstituir a leitura do filósofo, a fim de anali-
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sar o desenvolvimento de seu pensamento, assim como o debate estabelecido por Nietzsche com sua época.
Abstract: This article intends to analyze Nietzsche’s reading of the essay On the Musically Beautiful, by the Viennese musical critic E. Hanslick, elaborated in the period of Nietzsche’s writing of The Birth of Tragedy. Through a contrast between the posthumous writings and fragments of 1871 and Hanslick’s essay, it reconstitutes Nietzsche’s reading in order to analyze the double aspect, critical and productive, of his interpretation. Keywords: art and nature – sentiment – sensation – Nietzsche – Hanslick – A.W. Schlegel.
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O tema do presente trabalho, a primeira recepção de Nietzsche da estética de E. Hanslick, surgiu durante o estágio de doutorado que desenvolvi, em Weimar, nos primeiros meses de 2001. Ao longo deste trabalho, no qual eu pesquisava as fontes utilizadas pelo filósofo no período de elaboração de O Nascimento da Tragédia, deparei-me com o ensaio de Hanslick na biblioteca de Nietzsche em Weimar. O que nele me chamou atenção foram as observações manuscritas, em sua maior parte críticas, feitas pelo filósofo nas margens de seu exemplar. A leitura do ensaio de Hanslick, assim como um exame da literatura secundária, na qual é ressaltado o aspecto crítico da leitura de Nietzsche e em poucos casos seu aspecto produtivo, despertou meu interesse para a importância deste tema. As observações manuscritas feitas pelo filósofo trazem não
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apenas dados novos e essenciais para a compreensão de sua leitura da estética de Hanslick, mas oferecem indicações de grande importância no que diz respeito a sua recepção da estética romântica. Nietzsche faz, em suas anotações, uma referência a A.W. Schlegel que permite situar a sua leitura de Hanslick em um contexto maior do debate estético, assim como associá-la à reflexão sobre a arte elaborada na época de redação de O Nascimento da Tragédia. Neste trabalho, procuro reconstituir, a partir das observações manuscritas e dos fragmentos póstumos, a primeira leitura feita por Nietzsche do ensaio de Hanslick, assim como os efeitos desta leitura na elaboração do fragmento VII, 12[1], particularmente nas noções de arte e natureza, bem como de sensação e sentimento aí desenvolvidas. Agradeço a Stiftung Weimarer Klassik o apoio financeiro, sem o qual o desenvolvimento desta pesquisa não teria sido possível. Agradeço a Marie-Luise Haase e a Olaf Pluta o imprescindível apoio na decifração das observações manuscritas de Nietzsche, bem como sua atenção e incentivo ao longo da elaboração desta pesquisa. Sobre esta primeira recepção de Nietzsche do ensaio de Hanslick ver JANZ, C.P “Nietzsche als Überwinder der romantischen Musikästhetik” in: ALBERTZ, J. Kant und Nietzsche – Vorspiel einer kuenftigen Weltauslegung? Freie Akademie, 1988 e KROPFINGER, K. “Wagners Musikbegriff und Nietzsches ‘Geist der Musik’” in: Nietzsche-Studien 14 (1985). NIETZSCHE, F. Historisch-kritische Gesamtausgabe. orgs. H.J.Mette/K.Schlechta. Vol. 3, München, 1994, p. 99. HANSLICK, E. Do Belo Musical. Trad. Nicolino Simone Neto. Editora da Unicamp, 1989. Ver NIETZSCHE, F. Historisch-kritische Gesamtausgabe. hrsg. Von H.J.Mette/K.Schlechta. Vol. 3, op. cit, pp. 207208.
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Sobre este tema ver BORCHMEYER, D. e SALAQUARDA, J. Nietzsche und Wagner. Stationen einer epochalen Begegnung. Insel Verlag, 1994, p.1279-80. 7 NIETZSCHE, F. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe in 8 Bänden, org. por. G. Colli u. M. Montinari. Vol. 3, München, 1986, p. 194. 8 Ver, particularmente, os fragmentos 9(33), (36), (37-42), os quais foram escritos como anotações e esboços para “Música e Tragédia” . Nietzsche, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), ed. G. Colli/M.Montinari. De Gruyter, 1980, Vol.7. 9 Cf. Fragmentos 9(8) e 9(98) in KSA, Vol. 7. 10 Ver sobre isso o comentário de Kropfinger in KROPFINGER, K. “Wagners Musikbegriff und Nietzsches ‘Geist der Musik’” In Nietzsche-Studien 14 (1985), p. 4. 11 Para uma detalhada análise sobre Nietzsche, Hanslick e Wagner ver BORCHMEYER, D. Das Theater Richard Wagner: Idee-Dichtung-Wirkung. Stuttgart, Reclam, 1982 e SCHMIDT, B. Der ethische Aspeckt der Musik. Nietzsches Geburt der Tragödie und die Wiener Klassiker Musik. Würzburg, 1991. Particularmente o trabalho de B. Schmidt e o já citado artigo de Kropfinger analisam a leitura de Nietzsche do ensaio de Hanslick, assim como enfatizam sua importância no primeiro período da obra do filósofo. 12 Ver HANSLICK, E. Do Belo Musical, p.140. 13 Estas observações encontram-se, como mencionado, no exemplar de Nietzsche existente em sua biblioteca em Weimar. HANSLICK, E. Vom Musikalisch-Schoenen: ein Beitrag zur Revision der Aesthetik der Tonkunst. (Citado como VMS) 3a edição. Leipzig, 1865. 14 SCHLEGEL, A.W. Die Kunstlehre. Kritische Schriften und Briefe II. Org. E. Lohner. W. Kohlhammer Verlag, Stuttgart, 1963, S 42-43. Citado como KL. 6
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Esta crítica ao princípio de imitação e representação na arte, assim como o desenvolvimento de uma concepção da relação do artista com sua obra como uma relação de expressão são aspectos centrais da estética romântica e de sua crítica à estética clássica. Ver sobre este tema a obra de TODOROV, T. Teorias do Símbolo. Papirus, 1996, pp. 193 – 211 e o artigo de SELIGMANN-SILVA, M. “Alegoria, hieróglifo e arabesco: Novalis e a poesia como poiesis” in Poesia Sempre. Nr 14, agosto de 2001. 16 Para uma análise da recepção de Nietzsche da primeira estética romântica ver o artigo de BEHLER, E. “Nietzsche und die Frühromantische Schule” in: Nietzsche-Studien 7, (1978). 17 Utilizei, ao longo do trabalho, a tradução do fragmento VII, 12[1] elaborada por GIACOIA JUNIOR, O .Mimeo, s/d. 18 Sobre esta distinção entre sensação e sentimento ver Do belo musical, pp. 17-19 e, também, p. 64. 19 “Symbolisch nannten wir sie, indem sie den Inhalt keineswegs unmittelbar darstelllt, sondern eine von diesem wesentlich verschiedene Form bleibt”. HANSLICK, E. Vom MusikalishSchoenen: ein Beitrag zur Revision der Aesthetik der Tonkunst. Leipzig: Reclam, 1982, p.54. 20 No momento de fechamento deste artigo tive conhecimento do texto, recentemente publicado, de LANDERER e SCHUSTER. “Nietzsches Vorstudien zur Geburt der Tragödie in ihrer Beziehung zur Musikästhetik Eduard Hanslick”, Nietzsche-Studien 31 (2002). O objetivo dos autores foi o de analisar a importância da estética musical de Hanslick na reflexão elaborada por Nietzsche nos trabalhos anteriores e preparatórios a O Nascimento da Tragédia. Os autores analisam fragmentos póstumos de 1871, particularmente o fragmento VII, 12[1], a fim de mostrar os reflexos da estética de Hanslick, sobretudo da noção de sentimento, na crítica a Schopenhauer desenvolvida por 15
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Nietzsche no fragmento VII, 12[1]. Com relação à noção de sentimento há, sem dúvida, uma convergência entre o presente trabalho e o artigo de Landerer e Schuster. Cabe observar, entretanto, que os autores não comentam, em sua análise, o conceito de sensação, a partir do qual, como procuro mostrar, é possível identificar não apenas a afinidade, mas a diferença da estética de Nietzsche em relação a de Hanslick. 21 Para uma minuciosa análise da primeira reflexão de Nietzsche sobre a música, particularmente sobre a possibilidade de uma superação dos limites do conhecimento linguístico-conceitual através da arte musical ver FIGL, J. Die Dialektik der Gewalt. Patmos Verlag, 1984, especialmente pp. 153-160. 22 SALAQUARDA, J. Nietzsche und Lange. In NietzscheStudien 7 (1978), p. 243.
referências bibliográficas 1. BEHLER, E. Nietzsche und die Frühromantische Schule in Nietzsche-Studien 7, (1978). 2. BORCHMEYER, D. Das Theater Richard Wagner: IdeeDichtung-Wirkung. Stuttgart: Reclam, 1982 3. BORCHMEYER, D. e SALAQUARDA, J. Nietzsche und Wagner. Stationen einer epochalen Begegnung. Insel Verlag, 1994.
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Nietzsche e a leitura de Do Belo Musical de Eduard Hanslick
4. FIGL, J. Die Dialektik der Gewalt. Patmos Verlag, 1984. 5. HANSLICK, E. Do Belo Musical. Trad. Nicolino Simone Neto. Campinas: Editora da Unicamp, 1989. Ed. alemã HANSLICK, E. Vom Musikalisch-Schoenen: ein Beitrag zur Revision der Aesthetik der Tonkunst. 3. edição. Leipzig, 1865. 6. JANZ, C.P “Nietzsche als Überwinder der romantischen Musikästhetik” in: ALBERTZ, J. Kant und Nietzsche – Vorspiel einer kuenftigen Weltauslegung? Freie Akademie, 1988 7. KROPFINGER, K. “Wagners Musikbegriff und Nietzsches ‘Geist der Musik’” in: Nietzsche-Studien 14 (1985). 8. LANDERER, Chr. e SCHUSTER, M.O. “Nietzsches Vorstudien zur Geburt der Tragödie in ihrer Beziehung zur Musikästhetik Eduard Hanslick”, Nietzsche-Studien 31 (2002). 9. NIETZSCHE, F. Historisch-kritische Gesamtausgabe. orgs. H.J.Mette/K.Schlechta. Vol. 3, München, 1994. 10. _______. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe in 8 Bänden, org. por. G. Colli u. M. Montinari. Vol. 3, München, 1986. 11. _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), ed. G. Colli/M.Montinari. Vol.1 e 7. De Gruyter, 1980. 12. SELIGMANN-SILVA, M. “Alegoria, hieróglifo e arabesco: Novalis e a poesia como poiesis” in Poesia Sempre. Nr 14, agosto de 2001. 13. SCHLEGEL, A.W. Die Kunstlehre. Kritische Schriften und Briefe II. Org. E. Lohner. W. Kohlhammer Verlag, Stuttgart, 1963.
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14. SCHMIDT, B. Der ethische Aspeckt der Musik. Nietzsches Geburt der Tragödie und die Wiener Klassiker Musik. Würzburg, 1991. 15. TODOROV, T. Teorias do Simbolo. Papirus, 1996. 16. SALAQUARDA, J. “Nietzsche und Lange” in: NietzscheStudien 7 (1978).
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Schopenhauer, Nietzsche e a crítica da filosofia universitária
Schopenhauer, Nietzsche e a crítica da filosofia universitária Jarlee Oliveira Silva Salviano *
Resumo: Temos em Schopenhauer e Nietzsche duas filosofias edificadas à margem do terreno da filosofia universitária, da filosofia de cátedra. Na alvorada do século XXI, numa época em que a discussão sobre o ensino da filosofia ocupa a ordem do dia, as críticas derramadas por eles no borbulhante caldeirão das temáticas relacionadas ao magistério filosófico preservam o frescor de sua atualidade. Trata-se de colocar em evidência o papel do filósofo, o próprio estatuto da filosofia e da relação desta com o Estado e a religião. Palavras-chave: Schopenhauer – Nietzsche – Filosofia universitária – Extemporaneidade
Penso que o título aqui empregado traz consigo a exigência de uma explicação prévia às intenções deste texto. O uso do termo crítica é confessadamente de inspiração kantiana. Este expediente, longe de possibilitar a isenção de qualquer responsabilidade, parece a princípio nos lançar em uma enrascada. Se tivermos em mente o sentido dado pelo filósofo alemão a este conceito, uma crítica da filosofia universitária deveria anteceder as discussões em torno das condições pragmáticas do ensino da filosofia, empreendendo uma análise do próprio estatuto do magistério filosófico, o lugar da filo-
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Doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo. Bolsista CNPq.
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sofia na universidade, o papel do professor de filosofia e a relação da filosofia com o Estado e a religião. Uma empreitada assaz árdua. Se constatamos que a filosofia contemporânea é essencialmente universitária, como afirma Paulo Arantes (ARANTES 1, p. 23), a questão do ensino da filosofia se torna um problema que se apresenta inevitavelmente a todo aquele que dela se ocupa hoje. Não é difícil notarmos em nós e à nossa volta os sinais dos vícios acadêmicos a serem apontados aqui. De um modo ou de outro parecemos todos afetados por eles, sejam os mais antigos ou os de última geração (no entanto, talvez a simples consciência disto, à maneira socrática, seja já um grande avanço). Para citar alguns destes vícios, conforme nos mostra Gonçalo Palácios, em um ensaio intitulado De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio, temos: confundir o comentar com o filosofar (a comentariologia); o abuso das citações, em linguagem vernácula ou estrangeira; o etnocentrismo filosófico, seja em relação à língua ou à cultura; os mitos da erudição e da especialização; o obscurantismo (vale lembrar que a principal desconfiança em relação a Schopenhauer, na recepção de sua filosofia, estava relacionada à clareza de seus escritos!); o sociologicismo e o psicologicismo, ou seja, a redução da obra de um autor a certos aspectos de sua vida privada ou de sua inserção social, etc. Uma vasta bibliografia tem sido produzida a respeito deste assunto, o qual acompanha de mãos dadas o problema da filosofia no Brasil. Entretanto, nunca fora colocado em xeque de forma tão veemente como agora, o lugar da filosofia dentro de uma universidade – ainda que as discussões sobre o seu ensino acompanhem toda a sua história. Se não for incoerente o dito popular que afirma que vê melhor quem está de fora, talvez fosse interessante tomarmos como fio condutor de nossa reflexão as críticas de Schopenhauer e Nietzsche sobre a filosofia universitária, tendo em vista que estes pensadores produziram suas obras à margem dos muros da academia. Além
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disto, a atualidade do pensamento de ambos (no que se relaciona ao nosso problema) por si só justifica a importância da abordagem aqui proposta. As críticas de Schopenhauer à filosofia de cátedra percorrem boa parte de seus escritos, mas é em Sobre a filosofia universitária, que compõe os Parerga e paralipomena (1851), que elas adquirem uma maior abrangência. Na terceira de suas Considerações extemporâneas (1874), intitulada Schopenhauer como educador, Nietzsche retoma as invectivas feitas por Schopenhauer à academia. No que diz respeito a Nietzsche, portanto, nosso estudo tem em vista tão somente a primeira fase de seu pensamento, na qual se inclui este ensaio. Podemos afirmar que o objetivo final do texto é uma análise do pano de fundo sobre o qual se assenta este escrito do jovem Nietzsche. Assim, a impressão de que Nietzsche ocupa lugar secundário é só aparente, pois sabemos que o autor de O nascimento da tragédia está ainda neste momento bastante próximo do pensamento schopenhaueriano. Uma aproximação entre a terceira Extemporânea e Sobre a filosofia universitária nos mostrará que a briga de Schopenhauer contra a filosofia universitária de seu tempo era também a de Nietzsche. Ambos tomam um ponto de partida comum: a distinção entre a verdadeira filosofia, a filosofia não-acadêmica, que tem como único objetivo a verdade, e a falsa filosofia ou filosofia aparente; ou ainda: a distinção entre o verdadeiro filósofo (que toma a filosofia como um fim) e o pseudofilósofo (o sofista, segundo Schopenhauer) que a toma como um meio. Neste último, o filósofo de profissão, o conhecimento filosófico seria praticado como meio de subsistência (ganha-pão) ou de alcance de prestígio. Estas distinções, sabe-se, não se dão pela primeira vez nesta metade do século XIX (quando vieram a público estas críticas schopenhauer-nietzschianas), mas pode-se dizer que já eram nascidas quando a filosofia engatinhava. Refiro-me à polêmica no período clássico da filosofia grega entre os “filósofos oficiais” (Sócrates,
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Platão e Aristóteles) e os Sofistas. A denúncia que se ouviu principalmente da Academia platônica dizia respeito ao comércio em que se transformara a filosofia nas mãos de Protágoras, Górgias e companhia. Estes pseudofilósofos, diziam seus críticos, pretensos conhecedores dos segredos da natureza e da essência do homem, ensinavam a quem quisesse a arte da retórica, da oratória, da persuasão, sem a menor preocupação com a verdade. Por algumas Dracmas não hesitavam em desrespeitar os princípios básicos da racionalidade grega. Este fora o pecado original dos Sofistas: obter com o ensino da filosofia o seu ganha-pão. Ainda que algumas críticas da Academia procurassem revelar o absurdo do relativismo protagórico, este não era, no entanto, o maior escândalo que incendiava o chão sob as sandálias dos acadêmicos. Não importava o quanto a doutrina sofista poderia contribuir para a compreensão acerca da teoria do conhecimento, da ética, da política, da justiça etc., os primeiros professores da história cometeram o maior dos sacrilégios possíveis contra a filosofia da antiga Hélade. Eram comerciantes da sabedoria (sophia) e por isto deixavam de ser seus amigos (philos-sophos). A filosofia deveria ser o ponto de contato entre os homens e a divindade. Ela desvelava o divino na natureza; a verdade não poderia ser senão contemplada. Custou caro aos Sofistas a subversão da clássica imagem pitagórica do filósofo, que poderia ser comparado àquele que nos jogos apenas assiste enquanto alguns competem e outros praticam o comércio. Uma curiosa inversão pode então ser observada na história da filosofia: na antiguidade, severas críticas partiam dos domínios da academia em direção à filosofia não-acadêmica dos Sofistas considerada uma pseudofilosofia. Decorridos cerca de vinte e quatro séculos, os Sofistas, diria Schopenhauer, adentraram a academia e expulsaram a verdadeira filosofia, que agora vaga ao léu sem um teto. Doravante a crítica parte do lado de fora em direção ao interior da academia, onde confortavelmente se assentam em suas cadeiras
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os professores de filosofia Fichte, Hegel e Schelling, chamados por Schopenhauer sugestivamente de Sofistas. Entretanto, a acusação é a mesma: praticam uma falsa filosofia, pois a tomam como um meio de subsistência e não como um fim em si mesmo. Deve-se notar, assim, que as críticas schopenhauerianas à filosofia universitária têm como alvo aquela filosofia ensinada na Universidade do início do século XIX. Ele não proporá o fim do magistério filosófico, mas uma mudança profunda em relação a ele. O pano de fundo daquele ensaio de 1851 precisa ser estendido para uma melhor compreensão do problema. De certa forma, este ensaio responde a duas afirmações kantianas sobre o ensino da filosofia. Em O conflito das faculdades (1798) Kant procura mostrar que a faculdade de filosofia, considerada como faculdade inferior diante das outras (teologia, direito e medicina), deveria ser o único espaço da crítica e da liberdade de pensamento que seriam salvaguardadas em relação às imposições do Estado. Outra não menos otimista prescrição kantiana (exposta no ensaio Resposta à pergunta: o que é a Ilustração de 1783) refere-se à distinção entre o uso público e o uso privado da razão: ainda que, no segundo caso, enquanto funcionário do Estado, o sábio seja limitado no uso da razão, o livre curso da Ilustração pode se dar no seu uso público, destinado ao público letrado. Diante disto Schopenhauer apresentará uma análise pessimista sobre a relação da filosofia com o Estado e da possibilidade de uma sociedade ilustrada. O uso da razão é sempre interessado, diz ele, pois é em última instância sempre determinado pela Vontade, e deste modo os interesses do Estado sempre estarão presentes na prática do magistério filosófico. Antecipando-se a Freud, o filósofo introduz, na discussão sobre a relação razão/vontade, a idéia de inconsciente. A vontade é a essência metafísica do homem. Esta mesma Vontade cega, inconsciente e sem finalidade seria o fundo ontológico de toda a natureza. O que é o númeno, aquilo que está para além do fenômeno? Pergun-
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tava Kant. É a Vontade, responde Schopenhauer. Subverte assim o princípio lógico-ontológico da tradição. No homem, a razão, serva da vontade, fora criada por esta para servi-la. O cérebro (fonte do raciocínio e do entendimento) nada mais é que objetivação, materialização da vontade de conhecer. Ademais, outras forças no homem têm mesmo a primazia sobre o impulso cognitivo, como a sexualidade, por exemplo, pois está mais próxima da necessidade da preservação da vida: a Vontade é em Schopenhauer Vontade de viver (Wille zum Leben), em Nietzsche, sabe-se, será Vontade de potência (Wille zur Macht). Quanto à segunda questão, o otimismo de uma sociedade ilustrada esbarra, segundo ele, na aristocracia da natureza. Vejamos a questão mais de perto. É constante na crítica schopenhaueriana a distinção entre a filosofia como livre investigação da verdade (estando esta tão somente a serviço da natureza e da humanidade) e a filosofia como profissão, a serviço do governo. Já em sua Crítica da filosofia kantiana (1819), Schopenhauer procura revelar aquilo que chamará de segredo público (ou seja, um fato conhecido, mas escondido, não comentado): “É digno de nota, como característica da filosofia universitária, de que modo aqui se mostra a porta à verdade, sem rodeios, quando ela não quer resignar-se e sujeitar-se, com as palavras: – Rua, verdade! Podemos prescindir de ti. Devemos-te algo? Tu nos pagas?” (SCHOPENHAUER 8, p. 163). A não primazia da verdade na filosofia de cátedra se deve ao fato de que o professor de filosofia, em nome de um cargo e de um salário (meios de satisfação de sua vontade), promete obediência ao Estado – na época de Schopenhauer, os cargos eram ocupados por indicação do ministério da cultura, através de lista tríplice apresentada pela Universidade; no entanto, esta lista não era sempre levada em conta. Tal obediência, procura mostrar o filósofo, revelase em última instância como submissão à religião do Estado: “engo-
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le teu pudim, escravo, e vende mitologia judaica por filosofia”, escreve Schopenhauer (SCHOPENHAUER 9, p. 8) (à esta obediência ao Estado e à religião, Nietzsche acrescentará a submissão à ordem social e à organização militar). Enquanto o verdadeiro filósofo procuraria a chave para o enigma da existência, os professores de filosofia visariam com seu ensino o prestígio e um meio de subsistência. É sabido que Schopenhauer via no Espírito absoluto de Hegel e no Eu fichtiano resquícios da ontologia teológica cristã. Schopenhauer foi o pioneiro nesta crítica, mas não foi o único. Quanto à filosofia de Fichte, em direção a qual a aguda crítica schopenhaueriana lançava a acusação de lentes de aumento dos erros kantianos, podemos dizer (conforme apresentação de Maria Lúcia Cacciola na tradução de Sobre a filosofia universitária) que “o juízo de Schopenhauer sobre Fichte leva em conta uma atenuante: o fato de Fichte ter perdido em Jena sua jus legendi por não ter submetido sua filosofia a pressupostos religiosos. Mas é logo acusado de, por temor, dar à sua filosofia um tom cristão, transformando em Deus o ‘eu asoluto’” (id., ibid., p. XXII) Até que ponto, poderíamos indagar, a dependência do filósofo em relação ao estipêndio pago pelo Estado e a imposição de um regime de trabalho podem alterar o rumo de uma produção filosófica? E quanto à obrigação de filosofar com hora marcada, de ter que diariamente ostentar a aparência de sábio, de falar para um público estranho coisas tão íntimas? A despeito do que dissera Diderot pela boca do Sobrinho de Rameau: “meus pensamentos são minhas rameiras” (DIDEROT 3, p. 263), talvez devêssemos afirmar que os pensamentos de um filósofo são para ele o que para uma jovem donzela são as partes pudendas de seu corpo. Estas críticas schopenhauerianas, posteriormente reiteradas por Nietzsche, revelam o caminho contrário de um verdadeiro sábio: parecer sábio. Sócrates estava certo! Neste sentido, talvez não fosse incoerente comparar, como o faz Schopenhauer, a relação entre os filósofos
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e estes sofistas modernos com a relação entre as moças que se entregam por amor e as prostitutas. Sabe-se que Hegel adiantara a publicação da Fenomenologia do espírito pressionado pela cobrança de dívidas. Recentemente foi publicado um pequeno livro sob o curioso título A vida sexual de Immanuel Kant (trata-se de uma engenhosa ficção) em que é descrita uma suposta série de conferências proferidas em 1946 por um fictício filósofo francês chamado Jean-Baptiste Botul. Ali é citada uma carta de Hegel a um amigo em que o filósofo se felicita pela nomeação para a Universidade de Berlim. Diz ele: “Alcancei meu objetivo terrestre, pois, com um cargo e uma mulher amada, tem-se tudo que é preciso neste mundo”. O autor faz seguir a esta citação o seguinte comentário: “Palavras terríveis! Onde está a grandeza do filósofo? Um cargo e uma mulher...” (BOTUL 2, p. 36). Em outra passagem, o filósofo francês refere-se aos Discursos de Epicteto (50-125 d.C.), em que se encontra “uma lista penosa dos deveres conjugais: aquecer a água da panela, acompanhar as crianças à escola (não podiam ir sozinhas por causa dos pederastas), prestar serviços ao sogro, obter para a mulher lã, óleo, cama e copo. Panelas e moleques! Filosofa-se com isso! Sem falar da sexualidade conjugal... Porque o corpo do marido pertence à mulher e não o inverso. E o desejo feminino é imperioso” (id., ibid., p. 33). A forma mais acabada desta submissão ao governo, diz Schopenhauer, se encontra no filisteísmo da hegelharia, em que o Estado é visto como o organismo ético absolutamente perfeito. Esta dependência dos professores de sua época em relação aos órgãos estatais só pode encontrar uma explicação, segundo ele: o homem, como toda a natureza animal, só reconhece como motivos para as suas ações tudo aquilo que se relaciona à comida, à bebida e aos cuidados com a cria. Acrescente-se a isto a vaidade e a ânsia diante das honrarias e temos o homem em sua essência. O verdadeiro filósofo
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é aquele detentor de uma anomalia rara: deve travar uma verdadeira luta contra a sua própria natureza. Estes Quixotes da filosofia pensam para si – conforme concordará Nietzsche, referindo-se ao próprio Schopenhauer – enquanto que na filosofia acadêmica, a filosofia de fiandeiras (Rockenphilosophie), a filosofia mercenária, a boneca de madeira movida por fios alheios, a filosofia de diversão (Spaaâphilosophie), a filosofia de jardim de infância, enfim, nesta filosofia pensa-se para outros. “Escutar cantar os roucos e ver dançar os coxos é penoso” (SCHOPENHAUER 9, p. 34), afirma Schopenhauer referindo-se ao ensino da filosofia universitária. Numa crítica semelhante (proferida em uma de suas conferências intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino de 1872) afirmará Nietzsche: “é verdadeiramente um espetáculo para deuses ver um Hefesto da literatura se aproximar coxeando para nos servir alguma coisa” (NIETZSCHE 6, p. 105). Outro expediente comum desta filosofia, denunciado por Schopenhauer, revela a extemporaneidade deste. Trata-se do modo como os professores procuram a qualquer custo escrever seu nome na história da filosofia, através da referência em suas aulas de publicações de colegas. Poderíamos aqui aplicar a fórmula elaborada pela crítica do professor Roberto Romano da Unicamp, referindo-se à filosofia atual: “eu te cito, se você me citar!”. Não menos impiedoso, Schopenhauer buscará numa sátira de Marcos Terêncio (116-27 a.C.) o comentário a este expediente: “Nada mais obsequioso que dois mulos, coçando um ao outro” (SCHOPENHAUER 9, p. 34). A respeito da produção e da atividade acadêmica destes operários da filosofia, assevera Schopenhauer: “esses senhores, justamente porque vivem da filosofia, tornam-se atrevidos a ponto de se nomearem a si mesmos filósofos, de também pressuporem que lhes cabe a última palavra e a decisão nos assuntos da filosofia e, por fim, anunciarem reuniões de filósofos (uma contradictio in
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adiecto, pois filósofos raramente estão juntos no dual e quase nunca no plural) – e, então, eles acorrem em rebanhos para deliberar sobre o bem da filosofia” (SCHOPENHAUER 9, p. 70). Definitivamente, o filósofo alemão encontra poucas possibilidades de ser praticada na Universidade uma filosofia séria e honesta. No entanto, repito, sua briga é contra aquela filosofia e aqueles filósofos de sua época, principalmente contra as filosofias de Hegel, Fichte e Schelling. Para Schopenhauer, entre ele e Kant não se escrevera uma linha sequer que não fosse pseudofilosofia. É devido a esta oposição filosófica acirrada em relação àqueles filósofos que a artilharia schopenhaueriana voltou-se tão violentamente contra a academia. O próprio Schopenhauer por duas vezes tentou lecionar em Berlim, fracassando em ambas. Na primeira tentativa, fez questão de escolher o mesmo horário das aulas de Hegel para as suas preleções. O resultado, como se sabe, foi decepcionante: enquanto Hegel falava para um auditório lotado, quatro ou cinco alunos assistiam a Schopenhauer. Havia, segundo ele, um complô armado pela academia para ocultá-lo no silêncio. Assim, enquanto ele pôde viver tranqüilamente com os rendimentos da herança paterna, os professores de filosofia seguiriam seu caminho de deturpação das doutrinas dos grandes gênios da humanidade. Neste sentido, poder-se-ia tomar a crítica Schopenhaueriana como inadequada à nossa realidade se concordarmos com alguns filósofos da atualidade (conforme, por exemplo, Roberto Gomes e Gonçalo Palácios) em que não existe uma filosofia brasileira, ou seja, que não há qualquer filosofia sendo ensinada nas Universidades, à qual poderíamos direcionar uma crítica. Ademais, certamente a relação da filosofia com o Estado e a religião hoje é bem diferente. No entanto, caberia indagar se elementos que apontavam para uma falta de liberdade da filosofia (como a famigerada lista tríplice) não foram simplesmente substituídas (que dizer da redução dos prazos da pós-graduação determinada pela pressão das instituições que fi-
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nanciam a pesquisa? Que dizer de uma greve de alunos pela contratação de professores e condições básicas de estudo? Que dizer quando um dos mais eminentes filósofos brasileiros da atualidade é citado num jornal como o ideólogo de FHC?). Por outro lado, a teoria schopenhaueriana da aristocracia da natureza lhe serviu para explicar o fenômeno do aparecimento do gênio. A natureza é pródiga, diz ele. As inteligências corriqueiras são produzidas aos montes diariamente. Deste montante, em momentos muito raros surgem os gênios, os quais, na maioria das vezes têm que lutar contra a mediocridade de sua época para se impor. É assim que Schopenhauer analisa a sua luta, e a decadência da cultura de seu tempo. O espírito de uma época, diz ele, é determinado pela filosofia dominante. A distinção entre a verdadeira filosofia e a filosofia universitária está ligada à distinção entre o gênio e o filisteu. O gênio é o filósofo em que se verifica aquela anomalia rara citada atrás. Acima dos interesses mundanos o gênio, afirma Schopenhauer em um póstumo, é “o acima-do-homem (Übermenschliches) e o divino(Göttliches), pela potência (Macht) que faz com que ele se liberte da vontade” (conforme Cacciola) (SCHOPENHAUER 9, p. XXX). Como afirmará Nietzsche em Assim falou Zaratustra: vêm ao mundo homens demais. Para os supérfluos, inventou-se o Estado. Diante de críticas tão severas contra a falta de liberdade da filosofia, não é de admirar que o jovem Nietzsche tenha declarado sua admiração por Schopenhauer: “Eu o compreendia”, diz Nietzsche, “como se ele estivesse escrito para mim” (NIETZSCHE 5, p. 25). Em sua terceira Consideração extemporânea, ainda fortemente influenciado por Schopenhauer, ele distingue o filósofo verdadeiro (o filósofo de ouro) do pseudofilósofo (feito de falso ouro). Quanto à tese da aristocracia da natureza Nietzsche afirma que a natureza é má economista, esbanjadora e pródiga, pois suas despesas são superiores ao que ela recebe em troca, através das obras dos indivíduos
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de gênio. Numa crítica à massificação da cultura, Nietzsche coloca que assim como existe uma moeda corrente existiria também numa determinada sociedade o homem corrente (NIETZSCHE 6, p. 94). A única saída para a filosofia universitária, segundo Schopenhauer, seria então a redução ao mínimo do espaço do professor em suas preleções, para que este não represente o papel de filósofo. A tarefa do professor de filosofia deveria então, propõe ele, restringirse a dar as coisas mastigadas e, acima de tudo, não tomar sofistas por filósofos. Estranha proposta, para quem, no mesmo ensaio defende o pensar por si mesmo! Como soa estranha diante das denúncias sobre a falta de pensamento próprio dos críticos contemporâneos da filosofia universitária! Somente por escrito, conclui ele, em suas obras, portanto fora da academia, seria permitido ao professor travar conhecimento com os filósofos. Ademais, diante do caráter inacabado da filosofia, o seu ensino deve se diferenciar do ensino das outras ciências. Assim, Schopenhauer propõe uma mudança radical nos cursos de filosofia. É preciso que estes constem de apenas duas disciplinas: a Lógica, pois se trata de uma ciência constituída e rigorosamente demonstrável; e a História da filosofia, de Tales a Kant, exposta sucintamente e cursada em apenas um semestre. No final das contas, quando se esperava uma descrença radical de Schopenhauer em relação à filosofia das Escolas, percebe-se uma aproximação com Kant e a teoria dos usos privado e público da razão. A exceção encontra-se em que para o primeiro, partindo do fato de que a razão é sempre determinada pela vontade, que é portanto sempre interessada e sempre sujeita aos interesses do Estado, o seu uso privado, ou seja, dentro de uma Universidade, deveria ser o mais restrito possível. Nietzsche, por outro lado, (diante da imponência do Estado e diante do fato de que lhe é dada a tarefa impossível de distinguir a verdadeira filosofia da falsa) prevê a total supressão da filosofia universitária. E sobre a tumba desta, conclui o filósofo, deveria es-
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tar estampado: “Ela não afligiu ninguém!”. Insistindo um pouco mais, poderíamos dizer, com Roberto Gomes (em sua Crítica da razão tupiniquim), que “a filosofia não pode prescindir de sua missão primeira: destruir um mundo”. E o que é a filosofia? Responde ele em seguida: “a mim parece isto: dizer o contrário” (GOMES 4, p. 32). Enquanto Gonçalo Palácios, no ensaio citado, afirma que devemos dizer o que pensamos mesmo sob o risco de sermos presos, perseguidos ou vilipendiados, Nietzsche não é menos radical ao afirmar que este deve ser mesmo o critério do verdadeiro filosofar: incomodar, afligir, correr o risco da perseguição. Diante disto, talvez nos reste apenas torcer para que a cada dia sejam mais raras as aplicações daquelas provas de filosofia a que se refere Nietzsche, em que o neófito, ao final suspira aliviado: “graças a Deus que não sou filósofo, mas cristão e cidadão do meu Estado” (NIETZSCHE 5, p. 88).
Abstract: Schopenhauer’s and Nietzsche’s philosophy was built alongside sphere of the universitary philosophy, of the cathedratic philosophy. At 21st century’s dawn, in a time in which the discussion about the teaching of philosophy is in the agenda, their critics (spilled in the bubbling cauldron of the themes connected with the philosophical teaching profession) preserve the freshness about your actuality. It’s a question of showing the philosopher role, the philosophy statute self, and the relation between philosophy, state and religion. Key-words: Schopenhauer – Nietzsche – Universitary philosophy – Extemporaneity
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referências bibliográficas 1. ARANTES, Paulo Eduardo. Cruz Costa, Bento Prado Jr. e o problema da filosofia no Brasil – uma digressão. In: Salma T. Muchail (org). A filosofia e seu ensino. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1995. (Série eventos) 2. BOTUL, Jean-Baptiste. A vida sexual de Immanuel Kant. Trad. Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Ed. UNESP, 2001. 3. DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. Trad. Marilena Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Pensadores). 4. GOMES, Roberto. Crítica da filosofia tupiniquim. São Paulo: Cortez, 1982. 5. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Considérations inactuelles III: Schopenhauer éducateur. In: Ouvres philosophiques completes. Trad. Henri Alexis Baatsch. Paris: Gallimard, 1988. 6. _______. Sur l’avenir de nos établissements d’enseignement. In: Ouvres philosophiques completes. Trad. Jean-Louis Backés. Paris: Gallimard, 1988. 7. PALÁCIOS, Gonçalo Armijos. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: Ed. UFG, 2000. 8. SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da filosofia kantiana. Trad. Maria Lúcia M. e O. Cacciola. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 9. _______. Sobre a filosofia universitária. Trad. Maria Lúcia M. e O. Cacciola e Márcio Suzuki. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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Sobre a Metamorfoseabilidade da Experiência em Die Geburt der Tragödie
Sobre a Metamorfoseabilidade da Experiência em Die Geburt der Tragödie de Nietzsche1 Nuno Venturinha*
Resumo: A proposta deste artigo é apresentar um problema fundamental do empreendimento nietzschiano. O primeiro livro de Nietzsche, O nascimento da tragédia, lança luz sobre a possibilidade de uma metamorfose empírica, que depende de uma intuição revolucionária da natureza humana. O elemento mais significativo da metamorfose da experiência em O nascimento da tragédia consiste no caráter complementar do apolíneodionisíaco. Essa questão é de fundamental importância para a filosofia do conhecimento – em sua relação intrínseca com a investigação antropológica. Assim, o artigo pretende delinear essa epistemologia problemática, que se radica numa ligação naturalizada com uma forma de ser questionável. Palavras-chave: apolíneo – dionisíaco – epistemologia – metamorfose.
Introdução Este artigo constitui um registro de uma leitura de Die Geburt der Tragödie de Nietzsche. Essa leitura determina-se pelo confronto com a idéia de uma possibilidade de metamorfose da experiência. Este é, no nosso entender, um tema original e propriamente nietzschiano, encontrando-se pela primeira vez explanado na histó*
Doutorando da Universidade Nova de Lisboa. Bolsista da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
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ria da filosofia ocidental de uma forma concreta por Nietzsche e nunca tendo posteriormente atingido no pensamento de outros autores o alcance que comporta na démarche nietzschiana. A temática da metamorfoseabilidade da experiência será, assim, indagada por nós através de uma interpretação do percurso filosófico de Nietzsche. Porém, este trabalho não pretende ser senão uma aproximação a essa problemática que se delineia, como julgamos, a partir da obra matricial da concepção filosófica nietzschiana. O propósito desta circunspeção é, então, mostrar que Die Geburt der Tragödie não pode ser compreendida como uma genealogia histórica da tragédia, mas como um texto fundacionalmente filosófico, como uma visão da filosofia no seu todo – constituindo um móbil privilegiado para uma apercepção da totalidade do pensamento nietzschiano na sua gênese2. O objetivo interpretativo não passa, portanto, por apresentar uma leitura deste texto isolado de toda a obra subseqüente, i. e., analisando pari passu os diversos fenômenos, os vários complexos temáticos, mas, fundamentalmente, tratase de procurar entender uma tese filosófica que constitui um objeto problemático imprescindível, uma proposta que se elabora através da tematização do conceito de “dionisíaco”. A intuição dessa estrutura de sentido, formulada primordialmente no primeiro livro de Nietzsche, apresenta-se como decisiva, na medida em que expõe um âmbito significacional indeclinável para o estudo filosófico enquanto este se repercute numa possibilidade de acompanhamento da vida na sua forma mais íntima; quer dizer, através da leitura dos textos nietzschianos, especialmente de Die Geburt der Tragödie, é possível considerar uma problemática absolutamente pertinente para o progresso científico, para o progresso de uma comunidade humana, de tal sorte que é necessário circunscrever os aspectos construtores e destruidores dessa visão – a haver tais aspectos –, por forma a caracterizar de um modo tão rigoroso quanto possível o sentido dessas teorias, o seu fundamento, a sua
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extensão. É com base nestas diretrizes que se procurará compreender Nietzsche, perceber a essência do “dionisíaco”, e extrair conclusões que poderão ser determinantes para a nossa situação na existência. Esta indagação tem por fito, em primeiro lugar, verificar de que maneira a “herança” schopenhaueriana influenciou Nietzsche naquilo que diz respeito ao estabelecimento da sua posição, ou seja, como patamar de acesso ao elemento “dionisíaco” enquanto superação da ‘vontade de negação da vida’ (Wille zur Verneinung des Lebens) (OE 1, p. 16; KSA I, 19). A tônica da análise é colocada numa contraposição entre as doutrinas de Schopenhauer, nomeadamente em Die Welt als Wille und Vorstellung, e de Nietzsche, de modo a caracterizar as oscilações de sentido operadas pela compreensão nietzschiana. Seguidamente intentar-se-á reunir os elementos que possibilitem uma análise da reciprocidade daquilo que Nietzsche chama “apolíneo” (apollinisch) e “dionisíaco” (dionysisch). Estas determinações conceptualizam dois impulsos antagonistas, mas que, ao mesmo tempo, se reconciliam numa “medida” (Maass)3, a qual se encontra patente na tragédia grega. É a investigação dessa “medida”, da sua necessidade, do modo como se elabora na representação trágica, bem como o isolamento das duas modalidades possibilitantes, que estará em causa no segundo momento deste trabalho. Por último apresentar-se-á o próprio conceito de “dionisíaco” como pedra angular da tendência nietzschiana para a sua valorização contra a “inimizade” que experimenta pelo “apolíneo”; ou seja, Dioniso é, ao longo de Die Geburt der Tragödie e, mormente, de toda a sua obra posterior, o deus no qual Nietzsche se revê e para o qual faz tender as palavras de Zaratustra, numa efetivação desse estado original numa metábasis, trazida concomitantemente à expressão pela figura do “além-do-homem” (Übermensch), criador da “vontade de potência” (Wille zur Macht). Os matizes basilares desta progressão de pensamento serão verificados numa sinopse sintética mas
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determinativa, susceptível de manifestar as dificuldades e as conseqüências que se nos deparam perante tal efetivação – realização de sentidos habitualmente distantes da nossa forma de estar perante as coisas, algo que extravasa, por completo, a nossa “naturalidade” (“naturalização”), a nossa “perspectiva”. De facto (e de jure?), Nietzsche não apenas propõe uma identificação de estruturas do real que estão presentes no nosso quotidiano, ainda que de forma inexplícita – qualquer coisa que vem confirmar a experiência – , mas, decididamente, pretende operar uma revolução no humano, no modo de ser humano, e, assim, buscar uma outra humanidade (ou “além-da-humanidade”), sendo esta anunciada, tendendo para uma efetuação, correspondendo a uma atualização das idéias apresentadas nos textos – tendo o caráter de uma profecia. A dificuldade não diz respeito somente, pois, à compreensão daquilo para o qual as análises nietzschianas nos remetem mas à execução disso mesmo – se se pretender realizá-lo – , aporia que suscita a precisão de um confronto autêntico com os problemas para ratificar a aceitação ou a recusa de tal concepção. 1. Da “vontade de negação da vida” à “vontade de pessimismo”. Princípios ontológicos da antropologia de Nietzsche. No “Versuch einer Selbstkritik” a Die Geburt der Tragödie e no capítulo dedicado a esta obra em Ecce homo. Wie man wird, was man ist4 Nietzsche lembra ao leitor que um título menos ambíguo para Die Geburt der Tragödie teria sido Griechenthum und Pessimismus, denominação que figura na última edição, intitulada Die Geburt der Tragödie. Oder: Griechenthum und Pessimismus (Neue Ausgabe mit dem Versuch einer Selbstkritik [Nova edição com o ensaio de autocrítica], 1886), na qual já não aparece a intitulação original, Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik [O Nascimento da
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Tragédia a partir do Espírito da Música], presente nas primeiras edições (1872 e 74). Qual é, por conseqüência, a importância do conceito de “pessimismo” (Pessimismus) no horizonte do pensamento nietzschiano, na medida em que, ao ser considerado com extrema acuidade nesses estudos autocríticos, surge como uma possibilidade de identificação do fundo da obra? In fine, como é possível estabelecer este conceito como princípio ontológico da antropologia nietzschiana? Escreve Nietzsche: “Adivinha-se com isto onde se situava o grande sinal de interrogação acerca do valor da existência. Será o pessimismo necessariamente o sinal do declínio, da decadência, da imperfeição, dos instintos fatigados e enfraquecidos? – como era entre os Indianos, como é, aparentemente, entre nós, homens ‘modernos’ e europeus? Haverá um pessimismo da força? Uma propensão intelectual para o que é duro, horrível, malvado, problemático na existência feita de bem-estar, de transbordante saúde, de abundância existencial?” (OE 1, p. 8). Esta compreensão que tem em vista conferir resposta à pergunta do livro, a saber, “o que é o dionisíaco?” (was ist dionysisch?)5, elabora uma inversão da forma como naturalmente percebemos o “sofrimento” (Leid), ou seja, como algo a despedir, como um índice que patologicamente promove uma fuga a tal disposição. Precisamente, Nietzsche entende que o sofrimento não deve ser negado, como em Schopenhauer, mas deve ser afirmado, em toda a sua plenitude, pois essa é a matriz do humano, conduzindo a sua negação a uma fraqueza, a uma superficialidade – sintomas da decadência da fase otimista dos Gregos. A intuição nietzschiana, intuição fundamental de Die Geburt der Tragödie, é a de que originalmente o humano é sofrimento e que qualquer fuga a essa naturalidade – à “seriedade da existência” (Ernst des Daseins)6 – corresponde a uma desvalorização, a uma artificialidade. Nietzsche fala, justamente, de uma época anterior, tendente para a apetência do horrível – uma
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“vontade de pessimismo” –, a do mito trágico, a qual permitia uma sintonia com o “fundamento da existência” (Grund des Daseins) (OE 1, p. 12; KSA I, 16). A sua suspeita é apresentada deste modo: “[…] se os Gregos, justamente na riqueza da sua juventude, tivessem uma vontade para o trágico e fossem pessimistas?” (OE 1, p. 13); e conclui a sua hipótese interpretativa da seguinte forma: “E se, por outro lado e vice-versa, os Gregos, justamente nas épocas da sua dissolução e fraqueza, se houvessem tornado cada vez mais otimistas, mais superficiais, mais histriônicos, mais ardentes mesmo após a lógica e logicização do mundo, portanto em simultâneo ‘mais serenos’ e ‘mais científicos’?” (OE 1, p. 13). A tese nietzschiana coloca-se, assim, como uma conseqüência inversa da leitura de Schopenhauer, mais concretamente de Die Welt als Wille und Vorstellung, visado criticamente nos capítulos 5 e 6 do “Versuch einer Selbstkritik”. Nietzsche mostra, exatamente, o quanto está distante da posição schopenhaueriana determinada por si como uma ‘vontade de declínio’ (Wille zum Untergang) (OE 1, p. 15; KSA I, 18). E é esta inversão que funda a sua antropologia, é a compreensão ontológica da “vontade” (Wille) como algo para o qual se deve tender, se deve “querer” (willen), que possibilita uma reversão ontológica trazida à expressão pela figura de Dioniso, pelo “poder dionisíaco” (dionysische Macht) (OE 1, p. 31; KSA I, 32). Diz Nietzsche: “Que pensava porém Schopenhauer sobre a tragédia? ‘O que dá a tudo o que é trágico o particular impulso de elevação’, diz ele, Mundo como Vontade e Representação, II, p. 495, ‘é o desabrochar do reconhecimento de que o mundo, a vida, não pode dar nenhuma verdadeira satisfação, logo que não vale a nossa dependência: nisso consiste o espírito trágico – ele conduz portanto à resignação.’ Ó quão diferente é o modo como me falou Dioniso!” (OE 1, p. 16). Aquilo que está em causa é uma “superação”, um “querer”, que se estabelece no modo do “criar”7, um “pessimismo” que se situa “para além do bem e do mal” (jenseits von Gut und
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Böse), qualquer coisa para a qual os nossos conceitos não são suficientes, um outro modo de ser, “além-do-humano”, cuja característica fundamental é a autenticidade enquanto fixação à vida, seguimento da verdade8 – paradoxalmente, uma “vontade de verdade” (Wille zur Wahrheit). Esta, assumindo a forma de uma “vontade de potência”, é descrita por Nietzsche nos termos seguintes, insuficientes para uma exposição do seu conteúdo, mas, em todo o caso, os mais expressivos no interior da “inexpressividade”9 de tal estadode-coisas: “(…) um ‘deus’ se quiser, mas decerto apenas um deus de artista, totalmente irrefletido e imoral, pretendendo compenetrarse do seu prazer e da sua autoglorificação imediatos tanto no ato de construir como no de destruir, no bem e no mal, libertando-se ao criar mundos da necessidade da abundância e sobreabundância, do sofrimento das oposições que lhe são impostas” (OE 1, p. 14). Esta apresentação do escopo nietzschiano reveste-se de uma importância fulcral para a formação de uma síntese apreensiva do sentido. Descoberto um âmbito significacional que permite uma instalação do humano na verdade, desvelando a anterior situação – que é a nossa – como um campo de “falsidade”, a pergunta que se coloca é: como é possível aceder a esse espaço primitivo, cuja determinação autêntica da vida pode promover uma metamorfose de perspectiva, entendida conseqüentemente, se aquilo para o qual se tende é um “acontecimento”, para falar como Deleuze, que implica um abandono de todos os nossos conceitos – porque “falsos”, porque “construídos”? 2. A complementaridade do “apolíneo” e do “dionisíaco”: identificação do sentido numa sustentabilidade do modo de ser. Este trabalho delimita-se a partir da circunscrição de um âmbito de inteligibilidade fundamental, promotor de uma possibilidade
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de compreensão do humano que importa considerar, sob pena de restringirmos o nosso alcance analítico a uma multiplicidade de estruturas da existência, perdendo o confronto com esse sentido de “profundidade do ser”, que a especulação nietzschiana traz à expressão através da conceptualização de uma perspectiva “dionisíaca”. E esta modalidade, ausente da experiência comum, é permeável a uma identificação do seu teor? No “Versuch einer Selbstkritik” Nietzsche fornece-nos uma indicação preciosa da forma como este problema se lhe colocou. Escreve ele sobre a intuição que deu título à obra colocada por nós sob foco temático: “A partir da música? Música e tragédia? Gregos e música da tragédia? Gregos e a obra de arte do pessimismo? A espécie humana até então mais perfeita, mais bela, mais invejada, com maior poder de sedução para a vida, os Gregos – como assim? precisamente eles tinham necessidade da tragédia? Mais ainda – da arte? Para quê – arte grega?…” (OE 1, pp. 7-8). É curioso notar que nos comentários a um texto no qual o deus Apolo figura constantemente Nietzsche quase não se lhe refira (apenas uma vez), mas somente ao deus Dioniso. Quer o “Versuch einer Selbstkritik”, quer o comentário a Die Geburt der Tragödie em Ecce homo privilegiam Dioniso, o “dionisíaco” – esse é o limite da obra. Então, como se explica a importância dada por Nietzsche à complementaridade dos elementos “apolíneo” e “dionisíaco”, afirmada desde o início do texto? Qual a função de Apolo, se aquilo que importa para Nietzsche é Dioniso? O que a indagação nietzschiana leva a cabo no confronto com a representação trágica é uma escatologia que permite uma compreensão de si mesma; ou seja, em causa está a admissão do “subsolo oculto de sofrimento e conhecimento” (Untergrund des Leidens und der Erkenntniss) (OE 1, p. 40; KSA I, 40) na sua comensurabilidade a uma perspectiva compreensiva desse sentido. A dificuldade passa, justamente, por aceder à significação da “síntese de deus e bode
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no sátiro” (Synthesis von Gott und Bock im Satyr) (OE 1, p. 12; KSA I, 16), sendo esta facultada, apenas, através de uma representação, i. e. da representação do primitivo estado “dionisíaco” em complementaridade com uma forma “apolínea” de expressão. Efetivamente, nós só temos acesso ao “dionisíaco” através de um medium; este elemento formal permite abrir (dentro da sua formalidade) um espaço significacional que tende para a sua destruição (da própria forma possibilitante), mas que, por intermédio de uma “medida”, assegura a manutenção do sentido numa forma representativa, filtragem “apolínea” por individuação da “desmedida” para a qual tende o estado “dionisíaco”, potenciador do sentido fundamental.10 Refere Nietzsche: “O sátiro vive, enquanto coreuta dionisíaco, numa realidade religiosamente reconhecida, sob a sanção do mito e do culto. O fato de a tragédia principiar com ele, de através dele falar a sabedoria dionisíaca da tragédia, constitui aqui um fenômeno que nos é tão estranho como o surgir da tragédia a partir do coro” (OE 1, p. 57-8). Tendo a sua origem no ditirambo11, a tragédia, mais concretamente o coro12, tem a possibilidade de, pela mediação da expressividade formal “apolínea” (que constitui uma medida ontológica, o caráter representacional da existência), constituir um sentido potenciador da vida, que está mais próximo do fundo das coisas13. O coro dos sátiros exprime, precisamente, a “nostalgia” (Sehnsucht) pelo estado original14, mas isso só é possível porque o sátiro ainda pertence a este modo de ser que é o nosso – embora tenha poucas mediações relativamente ao informe, à desmedida própria do “dionisíaco”15. Sem esta comunicabilidade de sentido o “dionisíaco” seria desconhecido para nós. Há, portanto, um registro em forma interrogativa, uma notícia de algo, embora não seja possível constituí-lo verdadeiramente, a não ser num deslize para o abismo “dionisíaco”. E no último capítulo de Die Geburt der Tragödie Nietzsche alerta para a necessidade de manutenção do “dionisíaco” em comple-
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mentaridade com a forma “apolínea”, numa medida ontológica. São estas as suas palavras: “Daquele fundamento de toda a existência, o subsolo dionisíaco do mundo, só pode chegar à consciência do indivíduo humano exatamente tanto quanto puder ser superado por aquela força apolínea de transfiguração, de tal modo que estes dois impulsos artísticos são obrigados a desenvolver as suas forças numa proporção de rigorosa alternância, de acordo com a lei da eterna justiça. Onde os poderes dionisíacos se erguerem de forma tão impetuosa, como presenciamos, já Apolo deverá ter descido até nós, envolvido numa nuvem; os seus mais exuberantes efeitos de beleza serão contemplados por uma próxima geração” (OE 1, p. 171). 3. Dioniso como enigma. A segunda parte deste trabalho terminou com uma citação de Nietzsche, do capítulo 25 de Die Geburt der Tragödie, na qual o autor reclama a exigência da manutenção da perspectiva numa representação formal “apolínea”, ainda que esta deva potenciar uma delimitação do caráter “dionisíaco” da vida. Ora, a questão que se coloca é: tendo a inquirição nietzschiana descoberto um horizonte significacional fundamental, o âmbito “dionisíaco”, através de uma dissonância no campo formal “apolíneo”, estrutura da individuação, que nos possibilita um acesso ao mundo tal como o conhecemos, como podemos assimilar esse sentido fundacional sem que percamos nada dele? Quer dizer, como é que o “dionisíaco” pode na verdade ser vivido por nós, sem que a experiência não seja mais do que uma bravata? E isso é possível, podemos despojarmo-nos, libertarmo-nos autenticamente do principium individuationis e mergulharmos no “dionisíaco”, mesmo que, com esse salto, abandonemos – como parece óbvio – a forma compreensiva? Como é possível uma relação entre as modalidades de existência?
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Uma resposta possível poderia ser dada a partir da teoria de que se na forma “apolínea” – na qual permanecemos naturalmente – temos uma notícia do “dionisíaco”, na forma “dionisíaca” teríamos uma notícia do “apolíneo” e, logo, uma compreensão. Simplesmente, esta teoria é dogmática, na medida em que concebe o estado “dionisíaco” como uma perspectiva, como uma forma apreensiva do real idêntica à nossa, somente com variações, mantendo-se as formas cognitivas que possibilitam uma representação. Essa compreensão envolve, pois, um dogmatismo, a assunção de que se compreende o “dionisíaco”, quando as indicações de Nietzsche continuamente o caracterizam como um modo de ser que não é, apenas, diferente, mas é outro, qualquer coisa para a qual os nossos conceitos falham absolutamente. Conceptualizar o “dionisíaco” é tornar o informe “apolíneo”. Escreve Nietzsche: “Falava aqui [O Nascimento da Tragédia] em todo o caso […] uma voz estranha, o apóstolo de um ‘deus’ ainda ‘desconhecido’, temporariamente escondido sob o capuz do erudito, sob a gravidade e morosidade dialética do alemão e até sob as maneiras ruins do wagneriano; encontrava-se aqui um espírito com carências estranhas e ainda por nomear, uma memória a transbordar de questões, experiências, coisas ocultas, às quais se juntava o nome de Dioniso como mais um sinal de interrogação; falava aqui – como foi dito com desconfiança – algo como uma alma mística e quase de ménade, alma essa que, de forma atormentada e arbitrária, quase indecisa sobre se pretendia comunicar-se ou ocultar-se, balbucia por assim dizer numa língua estranha. Deveria ter cantado essa ‘nova alma’ – e não falado!” (OE 1, p. 11).16 Esta formulação, levada ao extremo em Also sprach Zarathustra. Ein Buch für Alle und Keinen17, traduz, precisamente, a tendência de Nietzsche para efetuar o “dionisíaco” e não para manter a representação formal “apolínea”. O que é o Übermensch senão aquele que realizará as palavras proféticas de Zaratustra?18 Nietzsche apercebeu-se, depois de Die Geburt der Tragödie, de que a efetivação
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do “dionisíaco” teria de comportar uma “superação” da perspectiva, uma saída para fora do modo de ser humano, uma “além-dahumanização”, e, formalmente, a partir de Menschliches, Allzumenschliches. Ein Buch für freie Geister19 começa a estabelecer determinações que têm em vista essa realização. No entanto, e até ao fim da sua vida, Nietzsche apenas nos deixou indicações, quer dizer, até ao momento do colapso de Janeiro de 1889 Nietzsche escreve e, por isso, mantém-se numa perspectiva “humana”; depois do colapso Nietzsche nada mais diz. Esta é a matriz da teoria nietzschiana da representação e da linguagem. O programa analítico empreendido, conducente a uma consciência da finitude do humano no seu acesso ao mundo, revela que a “falsificação” de que precisamos para viver assenta numa lógica que importa ultrapassar, sendo o terminus ad quem, naquilo que é possível conjeturar, uma região de experiência na qual a intensificação corporal “substitua” a superficialidade consciente; ou seja, o corpo passaria a ser o dinamismo no qual o inconsciente se produziria enquanto tal, numa discursividade alógica.20 Conclusão Ao longo deste trabalho procurou-se explicitar a dificuldade de apropriação compreensiva daquilo a que Nietzsche chama o “dionisíaco”, tomando como base as determinações presentes em Die Geburt der Tragödie na sua comensurabilidade aos textos subseqüentes que elaboram doutrinas desenvolvidas relativamente à problemática inicial, como se pode comprovar pela leitura dos textos autocríticos. Efetivamente, o “dionisíaco” ocupa o centro do pensamento de Nietzsche, é o seu limite teleológico. Porém, a sua efetivação conduz não a uma realização “pacífica” de algo, mas, pelo contrário, a uma problematicidade. O “dionisíaco” comporta uma
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indecisão e é uma possibilidade de problema, não um problema que seja possível colocar desde logo. Aquilo que esteve em causa não foi, por conseguinte, uma leitura interpretativa da obra, mas o apuramento de uma determinada problemática, a metamorfoseabilidade da experiência, a qual tem um resultado “trágico”, ambíguo; quer dizer, se é possível caracterizar Die Geburt der Tragödie – e, por extensividade, toda a filosofia nietzschiana – enquanto tendência dionisíaca para o “monstruoso”, para o “caótico”, como interpreta Deleuze, é também possível uma interpretação suspensiva desta obra. O resultado “trágico” de Die Geburt der Tragödie é a irresolutividade, a indecisão que o “dionisíaco” provoca, pois, constituindo-se como uma possibilidade de sentido, provoca, pela incapacidade da sua compreensão, uma impossibilidade de sustentação de qualquer “tese” sobre si, quer positiva, quer negativa – e tudo isto aquém de uma pergunta pela sua exeqüibilidade. Na verdade, se nós não temos capacidade para julgar o “dionisíaco”, como podemos tender para ele, para qualquer coisa que pode levar à destruição, à incapacidade de retorno? Mas como podemos também afirmar que o “dionisíaco” é qualquer coisa que se deve evitar, sob pena de perdermos a nossa “humanidade”, se nunca lá estivemos, se os nossos conceitos apenas valem para esta “humanidade”? Por que não arriscar, jogar a vida num sentido que pode ser potenciador? Este problema deveria ser o problema menos nietzschiano que existe, um problema que Nietzsche imediatamente “resolveu” e do qual procuramos apresentar uma sinopse crítica na primeira parte do texto. Não é o medo, a fraqueza, que aniquila todos os instintos viris da existência? Não é isso que deve ser ultrapassado e querer a vida em toda a sua amplitude, mesmo nos aspectos mais dramáticos, como uma possibilidade de alegria? Não é esse o convite de Dioniso, e o seu seguimento, porventura, o maior ato de misticismo possível, o tomar o risco como elemento sagrado, seguindo o seu
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deus, mesmo que ressoem “prenúncios de tempestade”21 – jogar a vida nisso que se acredita?22 Ficou por estudar um problema que não poderia ser estudado aqui, a saber, o da “verdade” em Nietzsche, que se apresenta embrionariamente em Die Geburt der Tragödie e que começa a ser desenvolvido minuciosamente no ensaio “Ueber Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne”23 de 1873. As relações dos diversos fenômenos da “perspectiva” natural que Nietzsche analisa e critica, enquanto insustentáveis, possibilitantes de uma queda das determinações “naturais” (“naturalizadas”) e, por arrastamento, de uma outra configuração do modo de ser, assente num desprendimento de todas essas determinações que, para Nietzsche, são “artificiais”, “culturais” (aquilo que assegura, de todo em todo, a “humanidade do humano”, a sua sobrevivência, ou seja, a “ilusão”, o “engano”, o “erro” – o que em Die Geburt der Tragödie é traduzido pelo “apolíneo”), permitiria caracterizar de uma forma bem mais exata as idéias abordadas ao longo deste trabalho. A dificuldade que temos em desapossarmo-nos desse prendimento à “verdade”, i. e. de uma orientação na vida, qualquer que ela seja, está bem patente na “vontade de verdade mística” nietzschiana. Será Dioniso o último Deus, aquele para além do qual já não se acredita, já não se busca a “verdade”? Abstract: The purpose of this paper is to present a foundational problem of the Nietzschean philosophical proposal. Nietzsche’s first book, The Birth of Tragedy, sheds light upon a possibility of an empirical metamorphosis, which depends on a revolutionary insight into human nature. The most significant element to the metamorphosability of experience in The Birth of Tragedy consists in the Appollonian-Dionysian complementary character. This issue is of fundamental importance for the Philosophy of Knowledge – in its intrinsic relation to the anthropological inquiry. Thus, the article intends to set out this problematic epistemology, which roots in a naturalized fastening to a questionable way of being. Key-words: Apollonian – Dionysian – epistemology – metamorphosis.
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notas Friedrich Nietzsche: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA) in 15 Bänden, Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari, Walter de Gruyter, Berlin/ New York, Neuausgabe 1999 (1980, 1988) (Kritische Gesamtausgabe: 1967-1977). Die Geburt der Tragödie. Oder: Griechenthum und Pessimismus: KSA I, 9-156 (“Versuch einer Selbstkritik”: 11-22). Edição portuguesa: Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche (OE), 7 volumes, Introdução Geral de António Marques, “Friedrich Nietzsche: Imoralismo e Verdade. Apresentação de Alguns Tópicos da Filosofia de Nietzsche”, OE 1 (O Nascimento da Tragédia e Acerca da Verdade e da Mentira), pp. v-lxxiii, Relógio D’Água, Lisboa, 1997-2000. O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo: OE 1, pp. 5-211 (“Ensaio de autocrítica”: pp. 7-20), Tradução (pp. 5-172), Comentário (pp. 173-178) e Notas (pp. 179-211) de Teresa R. Cadete, Prefácio de António Marques, “O Nascimento da Suprema Máscara: Dioniso”, pp. lxxvii-lxxxv. Os “Epílogos” (Nachworte) de Colli, escritos originalmente em italiano para a edição da Adelphi e traduzidos para alemão na KSA, estão reunidos no livro Scritti su Nietzsche, Adelphi, Milano, 1980. Edição portuguesa: Escritos sobre Nietzsche, Tradução e Prefácio de Maria Filomena Molder, “Ensinamento sobre a experiência da veneração”, pp. viixix, Relógio D’Água, Lisboa, 2000. 2 No “Epílogo” de Giorgio Colli podemos ler: “Mas O Nascimento da Tragédia não é uma interpretação histórica. Precisamente no momento em que parece desenvolver-se como tal, transforma-se numa interpretação de todo o helenismo e, como se não lhe bastasse sequer esta perspectiva incerta, torna-se definitivamente numa visão filosófica total” (COLLI 2, p. 8). 1
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A primeira ocorrência deste termo (que atualmente se grafa Mass), a partir da qual Nietzsche introduz “desmedida” ou “excesso” (Uebermaass ou, na grafia actual, Übermass), é no capítulo 4 de Die Geburt der Tragödie, KSA I, 40. As citações seguirão a grafia original que se encontra na KSA. 4 KSA VI, 255-374 (“Die Geburt der Tragödie”: 309-315). Edição portuguesa: Ecce Homo. Como vir a ser o que se é, OE 7 (O Anticristo, Ecce Homo e Nietzsche contra Wagner), pp. 109-242 (“O Nascimento da Tragédia”: pp. 172-178), Tradução de Paulo Osório de Castro, Prefácio de António Marques, “No Fim do Círculo: Nietzsche contra Wagner ou Dioniso contra Cristo”, pp. iii-ix. 5 Escreve Nietzsche: “Sim, o que é o dionisíaco? Neste livro está uma resposta a tal pergunta – nele fala um ‘conhecedor’, o iniciado e apóstolo do seu deus” (OE 1, p. 12). 6 Encontramos esta expressão logo no início da obra, concretamente no “Vorwort an Richard Wagner”, KSA I, 24 [“Prefácio a Richard Wagner”, OE 1, pp. 21-22]. O substantivo neutro Ernst pode ser traduzido por “seriedade”, “gravidade”, “sinceridade”, “exactidão”, termos que conduzem, numa só expressão, a uma identificação entre “autenticidade” e “fundo problemático da vida”. 7 Uma interessante especificação do conceito de “criação” é apresentada por Gilles Deleuze em Différence et répétition, PUF, Paris, 1968, III, “L’image de la pensée”, p. 177: “Quand Nietzsche distingue la création des valeurs nouvelles et la récognition des valeurs établies, cette distinction ne doit, certes, pas être comprise d’une manière relative historique, comme si les valeurs établies avaient été nouvelles en leur temps, et comme si les nouvelles valeurs demandaient simplement du temps pour s’établir. Il s’agit en vérité d’une différence formelle et de nature, et le nouveau reste pour toujours nouveau, dans sa puissance de commencement et de recommencement, comme l’établi était établi dès le début, 3
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même s’il fallait un peu de temps empirique pour le reconnaître.” 8 Cf. KSA VI, 311; 312. 9 Cf. KSA I, 13. 10 Cf. KSA I, 41. 11 Cf. KSA I, 33. 12 Cf. KSA I, 52; 59, 60, 62, 63. 13 Diz Nietzsche: “É com base neste conhecimento que temos de entender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco que se extravasa, de forma contínua e sempre renovada, num mundo apolíneo de imagens.” (OE 1, p. 65); e continua: “Assim, o drama constitui a simbolização apolínea de formas dionisíacas de conhecimento e de repercussão […].” (Ibidem) 14 Cf. KSA I, 57-58. 15 Esta “desmedida” é identificada com “embriaguez”, “êxtase” (Rausch), ou seja “esquecimento-de-si”, precisamente aquilo que a metafísica ocidental critica. Cf. KSA I, 2829; 30. 16 No prefácio a OE 1 António Marques refere: “[…] Nietzsche é, neste primeiro período da sua obra, kantiano quanto baste: a coisa em si é-nos inacessível pelo logos ou discurso racional/argumentativo e nenhuma nomeação objectiva dessa entidade é plausível. Mas se essa é uma situação antropológica inevitável, o que não é inevitável é o esquecimento dessa situação, isto é, um encerramento no puro fenoménico, no instituído, como se este fosse tudo, sem janelas para o não fenoménico, o não instituído. Este é o núcleo n’O Nascimento da Tragédia: como no ensaio sobre a verdade e a mentira, o problema consiste em activar uma memória de um objecto originalmente não dissimulado, não deslocado em linguagem que o represente e por isso
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mesmo o esconda. Essa é certamente uma memória de um lugar e objectos míticos. Mas a filosofia de Nietzsche desenvolve já nesta altura um elemento ou uma qualidade que a vai definir: o perspectivismo. Como funciona ele aqui? Pela ficção de um mundo possível, visto ou imaginado a partir de um outro sujeito com qualidades praticamente descontínuas em relação às nossas. O mundo visto da perspectiva dionisíaca é, neste quadro, um mundo possível e descontínuo em relação ao nosso fenoménico. Descontínuo, no entanto reconhecível como mundo possível. Como seria um mundo sem dissimulação instituída pelo logos? Essa é a experiência e a simulação mais importante segundo O Nascimento da Tragédia.” (pp. lxxxiv-lxxxv) 17 KSA IV. Edição portuguesa: Assim Falava Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém, OE 4, Tradução de Paulo Osório de Castro, Prefácio de António Marques, “Zaratustra e o Renascer do Trágico”, pp. iii-xxx. 18 Cf. KSA I, 21-22; 118-119; 132; KSA 6, 313; 314. 19 KSA II. Edição portuguesa: Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres, OE 2, Tradução de Paulo Osório de Castro, Prefácio de António Marques, “’Humano, Demasiado Humano’: Objectividade e Possibilidade do Juízo Moral”, pp. iii-xiii. 20 Sobre estes problemas Deleuze tem um texto esclarecedor na Logique du sens (Les Éditions de Minuit, Paris, 1997 [1969]), pelo menos produtor de aporias suficientemente interessantes para que possamos reflectir melhor sobre esta problemática. Escreve ele na quinzième série, “des singularités”, pp. 130-131: “Ce furent toujours des moments extraordinaires, ceux où la philosophie fit parler le Sans-fond et trouva le langage mystique de son courroux, de son informité, de son aveuglement: Boehme, Schelling, Schopenhauer. Nietzsche fut d’abord de ceux-là, disciple de Schopenhauer, dans la Naissance de la Tragédie, quand il fit parler Dionysos
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sans fond, l’opposant à l’individuation divine d’Apollon, et non moins à la personne humaine de Socrate. C’est le problème fondamental de ‘Qui parle en philosophie?’ ou quel est le ‘sujet’ du discours philosophique? Mais, quitte à faire parler le fond informe ou l’abîme indifférencié, de toute sa voix d’ivresse et de colère, on ne sort pas de l’alternative imposée par la philosophie transcendantale aussi bien que par la métaphysique: hors de la personne et de l’individu, vous ne distinguerez rien... Aussi la découverte de Nietzsche est-elle ailleurs, quand, s’étant libéré de Schopenhauer et de Wagner, il explore un monde de singularités impersonnelles et pré-individuelles, monde qu’il appele maintenant dionysiaque ou de la volonté de puissance, énergie libre et non liée. Des singularités nomades qui ne sont plus emprisonnées dans l’individualité fixe de l’Etre infini (la fameuse immuabilité de Dieu) ni dans les bornes sédentaires du sujet fini (les fameuses limites de la connaissance). Quelque chose qui n’est ni individuel ni personnel, et pourtant qui est singulier, pas du tout abîme indifférencié, mais sautant d’une singularité à une autre, toujours émettant un coup de dés qui fait partie d’un même lancer toujours fragmenté et reformé dans chaque coup. Machine dionysiaque à produire le sens, et où le non-sens et le sens ne sont plus dans une opposition simple, mais co-présents l’un à l’autre dans un nouveau discours. Ce nouveau discours n’est plus celui de la forme, mais pas davantage celui de l’informe: il est plutôt l’informel pur. ‘Vous serez un monstre et un chaos’… Nietzsche répond: ‘Nous avons réalisé cette prophétie’. Et le sujet de ce nouveau discours, mais il n’y a plus de sujet, n’est pas l’homme ou Dieu, encore moins l’homme à la place de Dieu. C’est cette singularité libre, anonyme et nomade qui parcourt aussi bien les hommes, les plantes et les animaux indépendamment des matières de leur individuation et des formes de leur personnalité: surhomme ne veut pas dire autre chose, le type supérieur de tout ce qui est. Etrange discours qui devait renouveler la
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philosophie et qui traite le sens enfin non pas comme prédicat, comme propriété, mais comme événement.” No prefácio mencionado Maria Filomena Molder observa: “Assim Falava Zaratustra é a obra de Nietzsche em que as palavras parecem surgir da esfera das experiências primitivas, de tal modo que as suas palavras não se referem, por meio de transposições imaginativas, a sentimentos e conceitos já instituídos e constituídos. A expressão nietzschiana não revela outra expressão, mas aquilo a que Colli chama a ‘imediatez’, o fundo da vida. Por isso os seus conceitos são símbolos de qualquer coisa que não tem figura, são expressões nascituras.” (pp. xvi-xvii) 21 A expressão é de Colli in Dopo Nietzsche, Adelphi, Milano, 1988 (1974), p. 103. Colli percebeu, de uma maneira extraordinária, que Nietzsche, aquele que queria abolir toda a verdade, toda a crença, é, no entanto, o maior dos místicos, aquele que arriscou a vida como nenhum outro, o que seguiu o seu Deus, Dioniso, sacrificando a sua própria vida. 22 Cf. KSA VI, 313. 23 KSA I, 873-890. Edição portuguesa: “Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral”, OE 1, pp. 213-232, Tradução de Helga Hoock Quadrado.
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Sobre a Metamorfoseabilidade da Experiência em Die Geburt der Tragödie
referências bibliográficas 1. COLLI, G. Dopo Nietzsche. Milão: Adelphi, 1988. 2. _______. Scritti su Nietzsche. Milão: Adelphi, 1980. Edição portuguesa: Escritos sobre Nietzsche, Tradução e Prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio D’Água, 2000. 3. DELEUZE, Gilles. Différence et repetition. Paris: PUF, Paris, 1968 4. _______. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1997. 5. NIETZSCHE, F. Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche. Organizada e prefaciada por António Marques. Lisboa: Relógio D’Água, 1997-2000. 6. _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA) in 15 Bänden, Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari, Walter de Gruyter, Berlin/New York, Neuausgabe 1999.
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Nietzsche: o pluralismo e a pós-modernidade* Marco Parmeggiani**
Resumo: A crise da subjetividade foi a problemática que marcou o século XX nas diversas manifestações da cultura e, especialmente, da filosofia. Os fundamentos dessa crise, contudo, encontram-se já no século XIX. Partindo desses pressupostos, o presente artigo objetiva esboçar as linhas básicas do pluralismo como tarefa fundante do pensamento nietzschiano, tanto no âmbito teorético como no da cultura, da sociedade e da antropologia. Palavras-chave: pluralismo – pós-modernidade – perspectivismo
A crise da subjetividade foi a problemática que marcou o século XX nas diversas manifestações da cultura e especialmente da filosofia, sobretudo durante sua última metade, e que, sem dúvida, persistirá premente durante o novo século. Mas os fundamentos dessa crise encontram-se já no século XIX. Entre as grandes figuras desse século, uma parece alçar-se no horizonte gradativamente, até chegar, imponente, a ultrapassar-nos. Porque talvez nenhuma gerou tanta distância, produziu fratura entre si mesma e sua época. Nietzsche foi o único pensador – incluindo também os do século XX – que, com relação à reflexão da crise do sujeito, envolveu to-
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Tradução: Vânia Dutra de Azeredo. Colaborador Honorário do Departamento de Filosofia na Universidade de Málaga.
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dos os aspectos da existência, da cultura e do conhecimento humano. Outros, também grandes – Heidegger, por exemplo –, só abordaram a problemática sob aspectos que, embora importantes, eram particulares. A radicalidade de seu pensamento atinge o fulcro da subjetividade moderna: o sujeito do conhecimento. Seu questionamento radical abre as vias para uma superação da metafísica e da Modernidade. Todavia, o problema, para Nietzsche, não é propriamente desfazer-se da metafísica e abandoná-la no passado; mas sim, uma vez reconhecido que a crise radical do sujeito já é dada, conseguir ‘instalar-nos’ e ‘mover-nos’ nela. O perspectivismo representa, nesse caso, um dos intentos ou tentativas (Versuchung) básicas. É a ferramenta mais efetiva que Nietzsche utiliza para pôr à prova e ‘congelar’ a força ilusória do conceito de sujeito cognoscente, e libertar o conhecimento humano do permanente auto-engano com que, durante séculos, as forças da moral têm trabalhado dia a dia, em cada rincão de nossa vida, para submetê-lo e bloqueá-lo: o sujeito único com sua verdade única. Sobre esses pressupostos, o presente artigo objetiva esboçar as linhas básicas do pluralismo como tarefa fundante (gründende Aufgabe) do pensamento nietzschiano, tanto no âmbito teorético como no da cultura, da sociedade, da antropologia, etc. Linhas que procuraram deslindá-lo de outras proposições pluralistas dominantes em nossa pós-modernidade. Na atualidade, nada é mais reivindicado do que o pluralismo. Nada está tão na ordem do dia como a diversidade de opiniões, de crenças, de formas de pensar e inclusive de sentir. O pluralismo é a palavra mágica de nossa época “pós-moderna”. No fundo, ninguém acredita em um “único padrão”, na vigência de valores absolutos e menos ainda de verdades absolutas. A opinião comum, em todos os âmbitos da atividade humana, prefere a pluralidade de pontos de vista, antes da unicidade. Mas este fenômeno se estendeu até afetar o indivíduo em si mesmo. Não se reivindicam somente necessida-
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des de indivíduos com crenças e opiniões distintas e sim algo mais: a coexistência no mesmo homem de formas de pensar e de sentir distintas. Valoriza-se aquele que não se encerra em uma perspectiva, que não se agarra a um “gosto” específico, que não busca forjar uma personalidade esgotando sua individualidade sob certas qualidades muito determinadas. Valoriza-se a versatilidade anímica e de pensamento. Esta dissolução do sujeito foi antecipada e descrita admiravelmente por Musil, na figura do ‘homem sem qualidades’: “De seu aspecto não podes decidir seu ofício, e, contudo, não parece um homem sem profissão. Figura-te como és: sabe sempre o que tem que fazer; sabe olhar nos olhos de uma mulher; pode refletir com agilidade a qualquer momento e é capaz de lutar. Tem engenho, vontade, é despreocupado, valente, perseverante, resolvido, prudente... não quero adentar-me numa análise, pode ser que possua todas essas qualidades. Mas ele não as possui. Elas fizeram dele o que ele é, marcaram seu caminho e, sem dúvida, não lhe pertencem. Quando está indignado, há algo nele que ri. Quando está triste, prepara-se para fazer alguma coisa. Quando um sentimento o comove, o rejeita. Toda ação má parece-lhe, desde algum ponto de vista, boa. Somente uma possível conexão determinará seu juízo sobre um fato. Para ele não há nada firme, tudo é transformável, tudo é parte de uma totalidade, de inumeráveis totalidades, talvez de uma supertotalidade que ele desconhece por inteiro. Por isso, todas as suas respostas são respostas parciais; seus sentimentos, opiniões; e de toda coisa não lhe interessa o ‘que’, mas o ‘como’ marginal, a ação secundária e acessória”1. Certamente, não são poucos, ou não se lhes ouve pouco, os detractores apocalípticos, os que vertem todas suas suspeitas sobre essa maneira de ser plural do homem pós-moderno. No fundo sentem-se como todo o mundo – sem qualidades –, mas não o aceitam e experimentam esse pluralismo como uma carência que lhes rói por dentro. Hoje em dia ser dogmático volta a ter o mesmo atrativo
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que teve nos tempos de Platão e do primeiro cristianismo. De modo que o mentir a si mesmo, o não reconhecer nossa condição, o não fazer uso dela e atribui-la à liberdade viciada do homem atual, o convencer-se a cada momento do dia de que os valores e verdades absolutos são possíveis – a condição do primeiro cristão, segundo descreve Nietzsche no Anticristo2 –, é o único que volta a se entusiasmar, que volta a sustentar nossa existência como um único sentido vigoroso que a ultrapassa. Os guias da moral voltam a vociferar que os valores e verdades absolutos são o único caminho para sair desse estado de dissolução, como se eles não houvessem sido a causa direta dela. Desde logo, em nossa época pós-moderna a confusão não domina pouco. O pluralismo não é único, mas há de muitos tipos, e com mais razão tratando-se dele. É curioso que os defensores do pluralismo caiam precisamente nas antigas dicotomias, do mesmo modo que ocorre com os dogmáticos: pluralismo/monismo de verdades e valores, de forma que se não se é um, se é o outro. O pluralismo consiste, justamente, em romper as dicotomias e em reconhecer, portanto, que certas formas de pluralismo podem distanciar-se mais de outras formas de pluralismo mesmo do que de todo monismo. As relações entre as formas de pensar e sentir já não são lineares, nem os espaços que as configuram são quadriculados. A fim de evitar o dogmatismo, nem tudo vale. O pluralismo não deve ser uma mera empresa de reação, que se conforma em assinalar ‘o que não se deve fazer’, do que se há de afastar, mas ser cada vez mais de afirmação positiva. A nós interessa distinguir o pluralismo nietzschiano, para captar melhor a especificidade de seu perspectivismo e de sua filosofia da interpretação. Não se deve confundir nem com o localismo nem com o ecletismo, imperantes hoje em dia. O localismo é a reação previsível dos velhos códigos frente ao indelével movimento de decodificação ao qual o capitalismo submete sociedades, culturas e indivíduos – sob este ponto de vista, a
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globalização, tão em voga atualmente, não é mais do que um desdobramento ulterior . Como nota Deleuze, a peculiaridade do capitalismo é que seus dispositivos de poder não se baseiam em processos de codificação, como ocorria nas sociedades pré-capitalistas3. Sua grande força de expansão e permeabilização do social e do individual reside em que utiliza como elemento aquilo que constituía a subversão e o terror para os outros tipos de sociedade: os processos de decodificação. Ali onde se estende o livre mercado e sua lei da oferta e da procura, destroem-se os costumes, os usos, as instituições, quer dizer, os códigos que sustentavam as sociedades antigas. O capitalismo gera a perda da ‘terra’, como o ‘lugar’ de enraizamento do indivíduo, da sociedade, da cultura. Todavia, este enraizamento não se processa em um lugar qualquer, mas somente naquele lugar que dá sentido, dá razão, justifica, sem ter ele mesmo uma justificação, uma razão ulterior. A terra é a expressão daquele lugar que exerce a função de fundamento (Grund) sem sê-lo propriamente, porque dá sentido e razão sem ter ele mesmo um sentido ou uma razão. É como o fundo, que sem ser figura, é o que constitui e dá sentido à figura que se forma sobre ele. No âmbito da cultura toma a forma da ‘tradição’. A esfera da tradição, o enraizamento na terra, está para além, ultrapassa a esfera da utilidade e da calculabilidade, a esfera do cálculo exaustivo das razões e das conseqüências, do homo oeconimicus. Contrariamente ao que se crê, a essência da tradição não é funcionar como um sentido último, absoluto, que dá sentido a nossa existência. O enraizamento na tradição é um submergir as próprias raízes na terra, quer dizer, na ausência de sentido, mas em seu significado positivo, não no negativo da carência, enquanto é fonte plena de múltiplos sentidos, metas, fins e valores para nossa existência. Não se deve confundir a crítica nietzschiana da moral e do pensamento metafísico com a crítica ilustrada à tradição. O questionamento da moral não é propriamente um questionamento da tradição,
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mesmo sendo certo que a moral configurou certa tradição que é a que Nietzsche ataca especificamente. Nietzsche não recusa toda a tradição, o conceito de tradição em si, mas unicamente a tradição moral. Mais ainda, desde O nascimento da tragédia, questiona a visão moral do mundo por constituir-se e funcionar como condição de possibilidade de toda tradição. Sócrates e sua ironia representam a arrogância do entendimento que se põe por cima da tradição da qual depende intrinsecamente, para julgá-la desde uns supostos valores absolutos4 Os valores e sentidos incondicionados, próprios da visão moral do mundo, não conformam a tradição porque a negam em suas bases existenciais. Ésquilo e Sófocles fundam suas raízes nesse solo-fundo (Boden) da tradição, extraindo dele, como condição a priori, multiplicidades de sentido que por isso mesmo são irredutíveis às dicotomias morais5. Pelo contrário, Eurípides põe em questão e desliga-se petulantemente da tradição helênica, desde um sentimentalismo da moral, em que tudo se resolve no conflito ‘dramático’, no combate entre o Bem e o Mal – ainda que não tenha fim –, em busca de uma razão última –Grund, o grande guia do Bem – capaz de proporcionar um sentido autêntico a nossa existência, separando-nos do fundo múltiplo e caótico que a constitui6. Frente a estes incessantes processos de ‘desterritorialização’7 dos quais se alimenta o capitalismo, os grupos humanos e suas culturas reagem ressuscitando em si mesmos atavismos ancestrais. Nietzsche considera ilusória e nefasta a pretensão de recuperar esse solo originário da tradição, conservando e reanimando usos, costumes, crenças e valores peculiares da ‘nação’8. A forma preponderante que assume o localismo, em sua época mas também na nossa, é o nacionalismo. O nacionalismo, por um lado, é ilusório porque essa recuperação não pode ser mais que externa e superficial, quase exótica, pois fica reduzida a incluir de novo em nossa existência elementos que já são completamente estranhos a ela. Mas, por outro lado, o nacionalismo é nefasto porque não percebe que esses
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elementos tradicionais, peculiares de cada nação européia, estão sustentados por valores básicos absolutamente ‘falsos’: os valores morais. De modo que, se o fim de toda tradição é o acréscimo da vida, as tradições tal e como se constituíram na Europa em última instância são tradições niilistas que negam o fim mesmo para o qual funcionam. O nacionalismo termina sendo então uma das melhores formas modernas de continuar a tarefa da moral: bloquear a criatividade dos indivíduos e das sociedades. O que talvez caracteriza melhor a nossa época ‘pós-histórica’, em todos os âmbitos do saber e das artes, seja o ecletismo. O homem atual parece adotar, em todos os âmbitos da vida, uma atitude eclética: seleciona desenvoltamente aqui e ali o que por momentos lhe convém, lhe interessa, o estimula ou o convence, desvinculando idéias, percepções e afetos das totalidades nas quais estão integradas. Renuncia a adscrever-se em um ponto de vista determinado, já não vê necessidade em esgotar até o fundo as possibilidades de uma perspectiva, mas prefere tomar de cada uma o que em cada momento lhe convém. ‘Eclético’, eklektikós, procede do verbo grego eklégo, que significa escolher. O eclético é aquele que, diante das diversas maneiras de pensar e sentir o mundo e a si mesmo, não assume uma em bloco, mas escolhe de cada uma o que mais lhe convence. No âmbito filosófico, o sentido do ecletismo deriva da transformação que sofreram as antigas escolas filosóficas gregas a partir de começos do século II a. C. Também nesse caso solidificou um pluralismo que pareceu parar a história do pensamento durante séculos: já não havia evolução de umas escolas a outras, nas quais se sucediam perspectivas mutuamente excludentes, mas a coexistência em um espaço comum de elementos soltos muito diversos (aristotélicos, platônicos, estóicos, pitagóricos, etc.), abertos a uma possibilidade infinita de combinação entre si. Acusou-se o ecletismo de proceder de maneira superficial: não se podem extrair conteúdos parciais e isolados das totalidades as quais pertencem e
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lhe dão um sentido específico; isto conduz a um processo de justaposição de conteúdos heterogêneos, que gera muitas incoerências. Na realidade, ao eclético do final do século XX as incoerências não preocupam; degusta a nova possibilidade de albergar incoerências na própria forma de ser e de pensar. As incoerências e contradições convertem-se nas vias privilegiadas pelas quais o pluralismo se desenvolve. Por isso, nossa época pós-moderna é cada vez mais pósracional, e não simplesmente pós-racionalista. Costuma-se proclamar que a razão absoluta entrou em crise, porém sem entender corretamente este acontecimento. O que entrou em crise não foi só a razão do idealismo ou do racionalismo, mas a razão mesma enquanto valor em si. Está cada vez mais difundido, entre intelectuais, artistas e homens comuns, a convicção de que a razão não conduz por si mesma nem à verdade nem ao bem, nem tampouco pode por si mesma aproximar-nos deles em um progresso sem fim que os persiga como metas ideais. Uma certa espécie de relativismo predomina cada vez mais: a razão – em especial a razão científica –, o pensamento dedutivo que esclarece os problemas, a base do exame crítico de argumentos e fatos, não conduz a teorias verdadeiras, mas unicamente ‘mais úteis’, com as quais podemos controlar e manipular melhor a realidade. Isto ocorre em todos os âmbitos nos quais se aplica, não somente nas ciências da natureza, mas também nas ciências humanas e sociais. A razão não nos ensina como é a realidade, mas somente como manejá-la. No âmbito prático, a razão passou de subministradora do critério último para a ordenação do comportamento humano individual e coletivo a um mero instrumento técnico a serviço das outras dimensões humanas: os desejos, as emoções, os sentimentos e etc. Tem-se a íntima convicção – ainda que haja quem não queira reconhecê-lo – de que a razão já não pode decidir em último termo o que está bem e o que está mal, mas que deve limitar-se a satisfazer o melhor possível nossos desejos e instintos. O homem contemporâneo está convencido de que somente
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como razão técnica ou instrumental a razão segue sendo poderosa e impondo sua influência tirânica. Toda esta pós-racionalidade (teórica e prática) justifica a atitude eclética atual diante das contradições e incoerências; frente à racionalidade, ela prefere tomar o caminho oposto e imbuir-se do caráter contraditório da vida. Na realidade, o defeito do ecletismo é outro. A atitude eclética é um sintoma claro de debilitamento da capacidade criativa no indivíduo. O eclético justapõe, não compõe nem desenvolve, porque se limita a mesclar de maneira engenhosa elementos heterogêneos. É fácil ver, sobretudo no campo da arte, que o paradigma do eclético é a mescla. Não pode chegar com ela a nada ulterior porque lhe falta justamente capacidade criativa. Ao longo da história houve grandes temperamentos sintéticos, capazes de assimilar os elementos mais heterogêneos e convertê-los em próprios: Bach, Mozart ou Stravinski são exemplos claros. Mas ao eclético lhe falta precisamente essa capacidade de fazer próprios elementos tão distintos. Tampouco são suas as ‘estruturas abertas’ das vanguardas artísticas, como na música norte-americana – Charles Ives ou Elliot Carter –, baseadas na ausência mesma de relações formais entre os componentes9: estas formas geram algo mais do que a mera mescla e possuem a assinatura inconfundível de seu autor. A mescla eclética não logra gerar nada novo e se decompõe em seus elementos frente ao interlocutor enfastiado. Tudo isso se conecta plenamente com o fato de que nossa pós-modernidade é também, no campo artístico, a era das pós-vanguardas10. Do mesmo modo no plano do pensamento, o eclético contemporâneo perdeu o ânimo explorador e experimentador das vanguardas artísticas desse século, porque só lhe preocupa restabelecer códigos comuns, consensos, processos de comunicação garantidos, etc. – além disso, dispõe de toda uma ampla e complexa teoria ética que o justifica. Em definitivo, o ecletismo é um falso pluralismo, porque nasce da incapacidade, da carência de espontaneidade e criatividade próprias do ser humano.
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Ainda que com outros termos, Nietzsche já analisava uma situação parecida da cultura em 1873, em sua primeira Consideração extemporânea, David Strauss, o devoto e o escritor. Utilizava os conceitos de estilo e epigono. “A cultura é antes de tudo a unidade de estilo artístico em todas as manifestações vitais de um povo. [...] A barbárie [...] a carência de estilo e a mistura caótica de todos os estilos”11. Nietzsche analisava o caso particular da Alemanha, onde este fenômeno estava se dando de modo marcante: “O homem alemão de nossos dias vive imerso, sem dúvida, nessa mistura caótica de todos os estilos. [...] Cada uma das visadas a sua própria indumentária, as suas próprias habitações, as suas próprias vivendas, cada um dos passos dados pelas ruas de suas cidades, cada uma das visitas realizadas às lojas dos mercadores da moda artística. [...] O que há aí é uma justaposição e uma superposição grotesca de todos os estilos possíveis”12. O homem converte-se em um sujeito abstrato: usa como há muito tempo os diversos estilos possíveis de vida de uma maneira que não afetam seu ser, porque no fundo já não há ser algum que pudessem afetar: “O homem alemão amontoa ao seu redor as formas, cores, produtos e objetos raros de todos os tempos e de todos os lugares e com eles fabrica aquele colorido diverso de feira de coisas modernas que logo seus doutos hão de considerar e formular como o ‘moderno em si’; ele mesmo permanece, por sua parte, sentado tranqüilamente em meio a essa confusão de todos os estilos”13. Nietzsche denuncia antes de tudo o que, sob aparência de pluralidade e vasta tolerância, não é produtivo: essa forma vital carece de “uma cultura real e efetiva, uma cultura produtiva [eine wirkliche, productive Kultur], qualquer que seja seu valor”14. “Mas se salta aos olhos que nem nossa vida pública nem nossa vida privada levam em si a assinatura de uma cultura produtiva e dotada de estilo”15. Esse é a tríade de Nietzsche para revelar a essência do homem pós-moderno: se a cultura consiste essencialmente em possuir um estilo de vida, ter estilo é ser produtivo.
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Nietzsche utiliza assim o conceito de epigono para caracterizar a cultura do fim do século XIX. A “epigonalidade” não é uma propriedade oculta, mas uma condição conscientemente reconhecida e assumida com satisfação pelo homem do final do século. Mais do que inventar essa conceptualização, Nietzsche a assinalou e a ressaltou, a pôs em evidência, no texto de Strauss, como sintoma inequívoco de decadência na cultura alemã. “Excogitaram o conceito de ‘idade de epígonos’ com o único fim de estar tranqüilos e de poder dispor do veredicto recusador de ‘obra de epígono’ para opôlo a toda inovação incômoda”16. O sentimento epigonístico reconhece a impossibilidade para o “último homem” de ir além dos mestres consagrados. Esta impossibilidade converte-se em um dever quando se reconhece que nem se pode nem é desejável explorar novos caminhos no pensamento, na arte e na vida. A idade de epígonos é uma nova época com relação à idade anterior de busca e exploração. Já não há nada para buscar porque todas as possibilidades já estão aí disponíveis em qualquer momento. Depois do imenso esforço dos grandes mestres, não tem sentido criar novas formas de sentir e de pensar: só cabe parafraseá-los, parodiá-los, ou imitá-los. Os motivos, como sempre que se tenta bloquear pujantes forças vivas, são morais: não é aceitável para o bem-estar social a carga de destruição afirmativa – com seus ingredientes inevitáveis de violência e crueldade – que supõe toda exploração de novas vias; só é útil uma atitude construtiva. “Enquanto se simulava odiar o fanatismo e a intolerância em todas as suas formas, o que no fundo se odiava era o genius dominador e a tirania das exigências de uma cultura real e efetiva; por isso foi pelo que se aplicaram todas as forças em causar um efeito paralisador, embotador ou dissolvente em todos aqueles lugares onde acaso coube aguardar movimentos frescos e poderosos”17. A conseqüência de tudo isso é que nas épocas epigônicas se segue cultivando, e inclusive promove-se mais do que nunca, a arte e o pensamento, mas procurando sempre que não
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afetem o conjunto de nossa existência. Pondo a vista tantas propostas distintas e simultâneas, essas épocas dão uma forte aparência de pluralismo. Mas o homem epigônico prefere a segurança mais do que o risco, a utilidade mais do que a efetiva auto-superação, e só lhe interessa dedicar-se à arte e ao pensamento profissionalmente – desde logo, não surpreende que as coincidências com nossa época deixam de ser iluminadoras –. Nietzsche inventou um termo para assinalar o registro do espírito epigonístico: Bildungsphilister, o filisteu da cultura, o “cultifilisteu”. Se na vida estudantil alemã, filisteu “designa a antítese do filho das Musas, do artista, do autêntico homem da cultura”18, o “cultifilisteu” “diferencia-se da idéia universal do gênero ‘filisteu’ por uma crença supersticiosa: o cultifilisteu cria a ilusão de ser ele mesmo um filho das Musas e um homem da cultura”.19 O epígono também cultiva a arte e o pensamento, mas sempre dentro de limites muito precisos, marcados pelas formas de poder estabelecidas: “Ele permitiu a todo mundo, e a si mesmo, sofismar, investigar, estetizar um pouco, antes da tudo fazer poesia e música, também fabricar quadros, assim como filosofias completas: só que, por Deus, entre nós tudo tinha que seguir igual a antes”20. De modo surpreendente, aqui Nietzsche se aproxima de Marx: estas formas de poder são antes de tudo a divisão do trabalho e o capitalismo burguês, que levam a efeito uma cisão entre o indivíduo e sua força produtiva: “Muito lhe agrada, certamente, entregar-se de quando em quando aos simpáticos e temerários excessos da arte e da historiografia cética, e não tem em pouca estima as excitações causadas por tais objetos de distração e entretenimento: mas separa rigorosamente a ‘seriedade da vida’, quer dizer, sua profissão, seus negócios, além de sua mulher e seus filhos, das zombarias, e destas últimas fazem parte mais ou menos tudo aquilo que se relaciona com a cultura”21. Tais condições “materiais” provocam a marginalização e o exílio das vanguardas artísticas: “Por isso, pobre da arte que começa a tomar-se a sério a si mesma e propõe
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exigências que atentem contra sua ganância, seu negócio, seus hábitos, quer dizer, contra sua seriedade de Filisteu... aparta seus olhos de semelhante arte como se estivesse vendo algo obsceno, e com o gesto próprio de um guardião da castidade adverte a toda virtude necessitada de amparo que nem sequer se lhe ocorra mirar”22. O homem epigonal começa a elaborar, já no final do século XIX, um conceito que lhe permitirá neutralizar todo intento de auto-superação, de ultrapassamento das redes de poder: a saúde. Em virtude da medicalização e psiquiatrização progressivas que a sociedade sofreu ao longo do século XX , ficou patente o enorme efeito de dissuasão e controle que podem ter novos conceitos junto a novas práticas sociais: “Para qualificar seus próprios hábitos, seus modos de considerar as coisas, seus repúdios e suas preferências, o filisteu inventa ainda a fórmula ‘saúde’, que tem uma eficácia geral, e com ela passa por cima de todos os desmancha-prazeres incômodos, arremessando sobre eles a suspeita de que são uns enfermos e uns extravagantes”23. Esta saúde é oposta à “grande saúde” teorizada por Nietzsche, pelo menos em um aspecto básico: a saúde do último homem funciona como o princípio de conservação (do indivíduo e da coletividade), enquanto a “grande saúde” funciona como o princípio de auto-superação, contido na dimensão do Versuch. O ensaio e o experimento deslocam a vida incessantemente aos seus últimos limites, ao seu limiar. O pluralismo nietzschiano não tem nada a ver com o ecletismo. O ecletismo não se compromete com as possibilidades que toma, não se imbui delas; adota permanentemente uma atitude de desapego com a qual combina sem amarras isto ou aquilo, sem lhe importar muito os conteúdos específicos; só lhe interessa achar novos estímulos. Com todo seu pluralismo, o eclético atual conserva indelével a mitologia do sujeito: a categoria de escolha supõe um agente, sem coações exteriores ou interiores, que livremente pode dispor das possibilidades segundo suas preferências. O ecletismo é
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quase a apoteose da subjetividade: o sujeito reduz-se a mero sujeito sem qualidades intrínsecas porque dispõe livremente delas. Frente a ele, o pluralismo nietzschiano segue uma direção inteiramente distinta: na dimensão do Versuch, um experimento condutor (Leitversuch) é o “congelamento” implacável do conceito metafísico de sujeito, até conseguir extrair suas conseqüências extremas. O eclético nega-se a reconhecer a “injustiça necessária” de toda perspectiva, de todo ponto de vista, e por isso aspira no fundo ao mesmo a que aspirava o pensamento metafísico: alcançar um ponto de vista situado fora de toda perspectiva, ou, o que é o mesmo, uma perspectiva que abarque todas – ainda que seja como ideal inatingível e regulador. Esta perspectiva absoluta é o fulcro do conceito metafísico de sujeito, e em fundar sua possibilidade baseia-se toda a ‘metafísica da subjetividade’. Não é a subjetividade o que faz possível a prática e o conhecimento fora de toda perspectiva, mas é a negação do perspectivismo o que dá sentido a subjetividade ocidental. A prova é que o postulado de uma perspectiva absoluta aninha no começo mesmo da metafísica ocidental, em Platão, embora só mais tarde, com Descartes, adquirirá sua plena configuração como sujeito, depois de haver passado por um necessário processo de cristianização (Agostinho de Hipona). Em conclusão, o pluralismo nietzschiano não tem nada a ver com o ecletismo pós-moderno, porque Nietzsche o elabora como perspectivismo, para congelar a ilusão metafísica do sujeito, que de maneira tão efetiva segue atuando sob as formas mais recentes de pensamento. Qual é a vinculação efetiva entre morte de Deus e morte do sujeito? Circula uma trivialização dos conceitos nietzschianos, pela qual se crê achar a atualidade de seu pensamento no diagnóstico do tempo presente. O mal-entendido reside em assumir os conceitos de morte de Deus e morte do sujeito, estabelecendo entre eles uma relação causal que não é própria. Pensa-se que, para Nietzsche, a morte de Deus é o acontecimento histórico que está provocando
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no mundo moderno a morte do homem. A perda da transcendência está gerando na existência humana uma carência total de sentido. O homem vive desorientado, sem estímulo, sem exigência nem capacidade para integrar suas múltiplas vivências em um único curso e forjar assim, pouco a pouco, sua personalidade. A vida avança dando solavancos sem poder manter um rumo fixo, o indivíduo dispersa-se e cada vez torna-se mais difícil salvar a coesão social. Mas quem assim interpreta – salvando a inquestionabilidade de vários fenômenos concretos – está dominado pelo sentimento de reação ante o niilismo contemporâneo, pois anseia recuperar a vigência dos antigos valores absolutos, o sentido da transcendência. É a típica atitude moral, que, como diz Nietzsche, intenta lutar contra a decadência e recuperar a antiga virtude. A interpretação nietzschiana da conexão entre morte de Deus e morte do sujeito é bem distinta. É prévia não a morte de Deus, mas a morte do sujeito, enquanto representa as condições sob as quais se produz o acontecimento da desvalorização dos valores supremos. Nietzsche insiste que com ambos conceitos intenta descrever não o processo efetivo do niilismo, mas a sua lógica24. Nossa época caracteriza-se pelo acontecimento da morte de Deus porque seu processo histórico é a nadificação da existência humana: o progressivo afloramento do nada que jazia latente na forma ocidental de vida. Marcada pelo cristianismo e pela moral, a vida ocidental foi sendo construída, com um ou outro desvio, na base de um permanente negar-se a si mesma as condições essenciais a toda forma vital; a vida tem-se desenrolado a expensas de bloquear os campos de força sobre os quais se baseia toda a vida. A expressão acabada desta auto-negação vital – deste nada – é o Deus cristão e os valores que representa. Funcionavam como um plano de transcendência que garantia e assegurava essa forma vital completamente contraditória em si mesma. Portanto, a tese de Nietzsche é que só esse tipo existencial de niilismo larvado tornou possível a criação do Deus cristão: foi sua condição
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de possibilidade, mas não sua causa, já que este tipo existencial originou-se em outros lugares, com outros conceitos – a solução alternativa à mesma exposição, que costuma contrapor Nietzsche ao cristianismo, é o budismo e seu conceito de nirvana. Com a nadificação da vida ocidental, com a dissolução conseqüente do homem ocidental naquilo que configura sua própria identidade, a transcendência perde pouco a pouco as condições existenciais, as configurações de força que a imbuíam de sentido. É a morte do sujeito o evento histórico-existencial que provoca a morte de Deus, e não o contrário. Por isso, a grande contribuição de Nietzsche não é o anúncio da morte de Deus – velho anúncio já em sua época – mas o haver entendido e interpretado de maneira muito mais penetrante o acontecimento em si mesmo – com relação a um Schopenhauer, um Feuerbach, etc. –: explorando, recorrendo às forças que o levam a efeito, até o ponto de achá-las plasmadas na condição niilista do homem ocidental. Esta encerra em si mesma um complexo de forças, que havendo permitido seu desenvolvimento, agora transbordam-na, laceram-na e fendem-na no irrefreável processo de sua autodissolução. Por conseguinte, o objetivo de Nietzsche não é ressaltar a tragicidade do evento da morte do sujeito, como fizeram tantos pensadores apocalípticos no século XX; mas ao contrário: manter o que de trágico e dramático já lhe havia conferido a criação de transcendências – pois se fazia para tentar estancar ou inverter o processo, para “combater” a decadência – , a fim de compreendê-lo e assumi-lo plenamente. A morte do sujeito não é o acontecimento trágico de nossa época, porque bem compreendido tem sido desde o princípio o evento fundante da civilização ocidental: aquele que de maneira latente porém não menos operante tem condicionado todas as manifestações de nossa civilização. É o evento que em nossa época aflora como morte de Deus.
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Abstract: Crisis of subjectivity is the dilemma which marked the 20th century in its main cultural expressions, especially in philosophy. The foundations of this crisis, however, are already given in the 19th century. Setting out from these presuppositions, the present article intends to draw the basic outlines of pluralism as the fundamentals of Nietzsche’s thought, as much in the theoretical range as in culture, society and anthropology. Key-words: pluralism – post-modernity – perspectivism
notas R. Musil, El hombre sin atributos, trad. J. M. Sáenz, Barcelona: Seix Barral, vol. I, 1993, 4 ed., (1969), lib. I, parte I, § 17, p. 80. Corrigimos ligeiramente a tradução. 2 “Moral da história: toda palavra na boca de um ‘primeiro cristão’ é uma mentira, toda ação que ele realiza, uma falsidade instintiva” (AC/AC, § 46). 3 Cf. G. Deleuze, El antiedipo. Capitalismo e esquizofrenia, trad. F. Monge, Barcelona: Paidós, 1985, cap. III, §§ 9 e 10, p. 229-269. 4 Cf. sobretudo a exaustiva análise de G. B. Smith, Nietzsche, Heidegger and the transition to postmodernity. Chicago: University of Chicago, 1996. 5 Pense-se como é difícil enquadrar sob a dicotomia moral bom/mau tragédias como Os sete contra Tebas, Os Persas e todo Sófocles. 6 Sobre como a razão construtiva é o pressuposto último do pensamento moral e metafísico, veja-se meu livro Perspectivismo y subjetividad em Nietzsche, Málaga: Analecta Malacitana, 2002, cap. I, p. 57-64. 1
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Utilizo o termo adotado por Deleuze, embora não sob o mesmo conceito, cf. G. Deleuze – F. Guattari, Mil mesetas. Capitalismo e esquizofrenia, trad. Vázquez Pérez, Pre-Textos, Valencia, 2 ed., cap. 9, p. 213-237. 8 São numerosos os textos da crítica ao nacionalismo, um lugar privilegiado de condensação acha-se em Para além de bem e mal, § 256. 9 Cf. C. Kühn, Tratado de la forma musical, trad. M. A. Centenero Gallego, Barcelona: Labor, 1992, p. 29-32. 10 Note-se a esse respeito a diferença substancial entre o delineamento atual de um compositor que tem pertencido às vanguardas musicais da segunda metade do século XX, György Ligeti, e as atitudes pós-modernistas. Sua inaudita energia criadora só podia conduzir Ligeti a declarar seu distanciamento expresso com relação à falta de compromisso e Versuchung em grande parte da pós-modernidade: “minhas composições escapam completamente a toda categorização: não são nem ‘de vanguarda’ nem ‘tradicionais’, nem tonais nem atonais. E certamente tampouco pósmodernas”. U. DIBELIUS, György Ligeti. Eine Monographie in Essays, Schott, Mainz, 1994, p. 35-36. Em suas últimas obras-primas – o “Concerto para piano e orquestra” ou “Estudos para piano” – reúne uma multiplicidade de elementos heteróclitos, que derivam dos grandes mestres do teclado clássico (Scarlatti, Chopin, Schumann, Debussy), das peças para piano mecânico de Nancarrow, de certos fraseados jazzísticos (Monk e Evans), de ritmos e timbres das músicas da África susbsriana, e das matemáticas (formas fractais), mas “compondo-as” umas com outras de tal maneira que o resultado gerado é inteiramente pessoal e impele sem cessar a mente, a sensibilidade e afetividade até seus próprios limiares de percepção. 11 Consieraciones intempestivas I. David Strauss, el confessor y el escritor (e fragmentos póstumos), ed. Sánchez Pascual, Madrid: Alianza, 1988, § 1, p. 30-31. 7
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Idem, § 1, p. 30-31. Idem, § 1, p 32. 14 Id. ibidem. 15 Idem, § 2, p 34. 16 Idem, § 2 p 41. 17 Idem, § 2, p 42. 18 Idem, § 2, p 35. 19 Idem. 20 Idem, § 2, p 43. 21 Idem, § 2, p 44. Modifico consideravelmente a tradução. 22 Idem, § 2, p 44. Modifico consideravelmente a tradução. 23 Idem, § 2, p 44-45. 24 Cf. meu livro Mudando reposa. Desafios de Nietzsche, Málaga: Ágora, 2002. 12 13
referências bibliográficas 1. DELEUZE, G. El antiedipo. Capitalismo e esquizofrenia, trad. F. Monge, Barcelona: Paidós, 1985. 2. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil mesetas. Capitalismo e esquizofrenia, trad. Vázquez Pérez, Pre-Textos, Valencia. 3. DIBELIUS, U. György Ligeti. Eine Monographie in Essays, Schott, Mainz, 1994. 4. KÜHN, Tratado de la forma musical, trad. M. A. Centenero Gallego, Barcelona: Labor, 1992, p. 29-32.
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5. MUSIL, R. El hombre sin atributos, trad. J. M. Sáenz, Barcelona: Seix Barral, vol. I, 1993. 6. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe. Berlim/Munique: de Gruyter/dtv, 1980. 7. _______. Consieraciones intempestivas I. David Strauss, el confessor y el escritor (e fragmentos póstumos), ed. Sánchez Pascual, Madrid: Alianza, 1988. 8. PARMEGGIANI, Marco. Perspectivismo y subjetividad em Nietzsche, Málaga: Analecta Malacitana, 2002. 9. _______. Mudando reposa. Desafios de Nietzsche, Málaga: Ágora, 2002. 10. SMITH, G. B. Nietzsche, Heidegger and the transition to postmodernity. Chicago: University of Chicago, 1996.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição Colli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais. I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche: I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche: GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia) DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor) HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida) SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador) WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth)
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MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1)) VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças) WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra) M/A – Morgenröte (Aurora) IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina) FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência) Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra) JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal) GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral) WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner) GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos) NW/NW – Nietzsche contra Wagner I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição: AC/AC – Der Antichrist (O anticristo) EH/EH – Ecce homo DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso) II. Siglas dos escritos inéditos inacabados: GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego) ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia) DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo) GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico) BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino)
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CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos) PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos) WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral) Edições: Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./ DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986. Forma de citação: Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/ CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo, indicará o aforismo. Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano, conforme o caso, indicará a parte do texto. Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.
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Contents
Nietzsche: life and metaphor
7
Nietzsche and the reading of Eduard Hanslick’s On the Musically Beautiful
53
Schopenhauer, Nietzsche and the critic of universitary philosophy
85
On Metamorphosability of Experience in Nietzsche’s Die Geburt der Tragödie
99
Nietzsche: pluralism and post-modernity
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Eric Blondel
Anna Hartmann Cavalcanti
Jarlee Oliveira Silva Salviano
Nuno Venturinha
Marco Parmeggiani
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INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES 1. Os trabalhos enviados para publicação devem ser inéditos, conter no máximo 55.000 caracteres (incluindo espaços) e obedecer às normas técnicas da ABNT (NB 61 e NB 65) adaptadas para textos filosóficos. 2. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de até 100 palavras, em português e inglês (abstract), palavras-chave em português e inglês e referências bibliográficas, de que devem constar apenas as obras citadas. Os títulos dessas obras devem
ser ordenados alfabeticamente pelo sobrenome do autor e numerados em ordem crescente, obedecendo às normas de referência bibliográfica da ABNT (NBR 6023). 3. Reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças. Os relatores de parecer permanecerão em sigilo. Só serão considerados para apreciação os artigos que seguirem a convenção da citação das obras de Nietzsche aqui adotada.
NOTES TO CONTRIBUTORS 1. Articles are considered on the assumption that they have not been published wholly or in part else-where. Contributions should not normally exceed 55.000 characters (including spaces). 2. A summary abstract of up to 100 words should be attached to the article. A bibliographical list of cited references beginning with
the author’s last name, initials, followed by the year of publication in parentheses, should be headed ‘References’ and placed on a separate sheet in alphabetical order. 3. All articles will be strictly refereed, but only those with strictily followed the convention rules here adopted for the Nietzsche’s works.
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Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em torno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão nietzschiana. Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrompeu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à sua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidade destes cadernos. Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernos Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano. Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto ao Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam difundir ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de autores estrangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos e mestrandos ou mesmo graduandos. Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernos Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly - every May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a professional Brazilian context for contemporay readings of Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishing translations of contemporary European and American scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s philosophy. Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internationally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal has already made its mark as a forum for innovative work by both new and established scholars. Contributors to the journal have included Wolfgang MüllerLauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel Haar, and Richard Rorty. Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes place at the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernos Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a current circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge to the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries and research instituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects and particularly on Nietzsche’s thought.
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