B ENJAMIN B LECH & R O T D OLINER
EGRE REDO DOS S DA DA CAPELA O S SEG SISTINA As Mensagens Secretas de Michelangelo no Coração do Vaticano Tradução Saulo Adriano OBJETIVA 2009 Para Martha e Marvin Usdin, os dois anjos guardiões mais jovens que eu já conheci R O Y D OLINER
Para a minha família, os anjos que Deus me enviou para alegrar a minha jornada pela vida A BINO B ENJAMIN B LECH R ABINO
SUMÁRIO Prefácio Introdução LIVRO UM No Começo 1 O que é a Capela Sistina? 2 A linguagem perdida da arte
3 Nasce um rebelde 4 Uma educação muito especial 5 Expulso do jardim e atirado no mundo 6 Assim quis o destino
LIVRO DOIS Uma Visita Particular à Capela Sistina 7 Cruzando o umbral 8 A abóbada do céu 9 A casa de Davi 10 Os quatro cantos do universo 11 Uma companhia de profetas 12 O caminho do meio 13 Críticas na despedida LIVRO TRÊS Além do Teto 14 De volta à cena 15 Os segredos do Juízo do Juízo Final 16 Os últimos segredos 17 "Um mundo transfigurado" Conclusão: Afinal, o que é a Capela Sistina? Agradecimentos
PREFÁCIO Conoscersi è il miglior modo per capirsi — capirsi è il solo modo per amarsi (Conhecer uns aos outros é a melhor maneira de nos compreendermos; e compreender uns aos outros é a única maneira de nos amarmos) Este provérbio antigo e sábio falou diretamente ao meu coração assim que comecei a ler este livro fascinante escrito pelo rabino Benjamin Blech e Roy Doliner.
Este adágio é uma observação valiosa no que se refere não apenas às relações entre os seres humanos, pois fala, talvez, com mais profundidade sobre as interações entre as religiões, como também sobre as negociações entre as nações. Para verdadeiramente nos conhecermos bem, é indispensável saber como ouvir o outro e, acima de tudo, querer tudo, querer ouvir ouvir o outro. Parece-me que uma das realizações mais importantes deste livro inovador, entre várias outras, é que ele cumpre esta missão, de maneira clara e poderosa. Ele atravessa o véu de incontáveis hipóteses e mistérios que, juntamente com a admiração incontestável, sempre acompanharam qualquer visita à Capela Sistina. Ao completar os espaços em branco resultantes da ignorância em relação aos ensinamentos alheios ao cristianismo - mas conhecidos por Michelangelo -, a Capela Sistina pode agora falar a nós de uma maneira como nunca antes foi compreendida. Sempre soubemos que o papa Sisto IV queria que a Capela Sistina tivesse as mesmas dimensões do Templo de Salomão, tal como foi registrado pelo profeta Samuel na Bíblia (1 Reis 6:2). No passado, os especialistas em arte e religião explicaram que isto foi feito com o propósito de demonstrar que não há contradição entre o Antigo e o Novo Testamento, entre a Bíblia e os Evangelhos, e entre a religião judaica e a cristã. Somente agora, ao ler este livro notável, foi que eu aprendi - maravilhado, na condição de historiador da arte, mas um pouco envergonhado e triste como católico — que esta construção foi considerada uma ofensa religiosa pelos judeus. O Talmude, a coleção e explicação das tradições rabínicas, estabeleceu claramente que ninguém podia construir uma cópia "funcional" do Templo Sagrado de Salomão em nenhum outro local que não fosse o monte sagrado do templo em Jerusalém. É bom lembrar que isto aconteceu há seis séculos. Em tempos mais recentes, muitas destas posturas insensíveis ultrapassadas felizmente deram lugar ao respeito e ao entendimento mútuos. Sob esta luz, o papa João Paulo II visitou a Grande Sinagoga de Roma em 13 de abril de 1986, e durante este encontro histórico, o pontífice se voltou para o povo judeu, e pela primeira vez os chamou, com respeito e amor, de "nossos irmãos e irmãs mais velhos".
Em janeiro de 2005, este mesmo grande pontífice, sentindo-se próximo do fim de sua existência terrena, fez um gesto tão histórico quanto único. Ele convidou 160 rabinos e cantores solistas de sinagogas de todas as partes do mundo ao Vaticano. A entidade organizadora do evento foi a Fundação Pave the Way, uma associação internacional inter-religiosa nascida da idéia de construir e reforçar pontes entre o mundo judeu e o cristão. O encontro foi realizado para que o papa recebesse a bênção final dos representantes de nossos "irmãos e irmãs mais velhos", mas teve também o objetivo de promover e revigorar laços humanitários entre as duas crenças. Este encontro histórico acabou se tornando a última audiência do papa Wojtila com um grupo. Três líderes religiosos judeus tiveram o privilégio de ser os primeiros e únicos rabinos do mundo a dar a bênção ao papa em nome do povo judeu. Um deles foi Benjamin Blech, co-autor deste volume, professor de Talmude na Universidade Yeshiva, renomado internacionalmente como professor, conferencista, líder espiritual e autor de inúmeros livros sobre espiritualidade, lidos por pessoas de todas as crenças. Tive o prazer de me encontrar pessoalmente com o outro autor deste livro, Roy Doliner, no dia da estréia mundial do filme Jesus: filme Jesus: A História do Nascimento. Foi Nascimento. Foi a primeira vez que o Vaticano permitiu oficialmente o uso de seu majestoso Salão de Audiências para um evento artístico-cultural. Por causa de seu profundo conhecimento da história e doutrina judaicas, e por promover notavelmente o estudo talmúdico, Roy foi escolhido pelos produtores do filme e por sua diretora, Catherine Hardwick, como consultor oficial de religião e história judaicas. Como consultor de história relacionada a Roma e à vida de Herodes, o Grande, eles escolherem a mim. Por meio da produção do Nascimento, Roy e eu nos tornamos amigos. filme Jesus: filme Jesus: A História do Nascimento, Roy Foi por isso que em diversas ocasiões Roy e eu pudemos visitar a Capela Sistina de uma maneira especial: após o horário de fechamento. Cada visita nos deu a oportunidade de ver a obra-prima de Michelangelo de uma maneira nova e diferente. Por estas razões, quando me pediram para apresentar este livro, aceitei com prazer. Agora, após terminar a leitura deste trabalho, fico admirado não apenas
pela grande erudição de seus autores, mas também porque o livro contém uma quantidade enorme e extremamente interessante de novas idéias históricas, artísticas e religiosas. Cada vez que eu entrava na Capela Sistina, sempre me perguntava o porquê de não haver nem ao menos uma figura do Novo Testamento em seu teto esplêndido. Finalmente eu encontrei as respostas mais convincentes neste livro. Os autores nos levam a uma verdadeira jornada de descoberta dos "outros" significados, das diversas maneiras de se ver e entender o que sempre esteve bem diante de nossos olhos e que hoje parece completamente diferente. Com a sua orientação, percebemos que Michelangelo levou a cabo um ato engenhoso e imenso de ocultação na Capela Sistina, para transmitir inúmeras mensagens veladas, mas poderosas, que pregam a reconciliação entre a razão e a fé, entre a Bíblia judaica e o Novo Testamento, e entre os cristãos e os judeus. Descobrimos de maneira incrível como o artista sentiu a necessidade de comunicar estes conceitos perigosos sob condições de perigo e grande risco pessoal. Como foi que Michelangelo conseguiu realizar este ato corajoso? Os autores revelam que, às vezes, ele usava códigos ou alusões simbólicas que eram parcialmente escondidas; por vezes, sinais que poderiam ser percebidos e entendidos somente por certos grupos religiosos, políticos e esotéricos. Também em outras ocasiões, tudo de que se precisa é uma mente livre de preconceitos e aberta a novas sugestões ou idéias para entender suas mensagens. É mais interessante ainda notar que estes símbolos e alusões foram inscritos na capela sem que seu mecenas, o papa, percebesse. Estas idéias foram concebidas audaciosamente para aliviar a frustração do artista que, incapaz de se expressar abertamente, desejou "anunciar" a sua mensagem de alguma maneira. O livro nos leva, quase nos tomando pela mão, em um estilo documental, mas cativante, a decodificar os símbolos ocultos. Para mim foi um grande prazer me unir aos autores, embora tenha ficado um pouco perplexo no início. Certamente não é fácil reavaliar as certezas reconfortantes que sempre nos acompanharam por toda a vida. Porém, não podemos fechar nossos olhos, nossas mentes e nossos corações aos que viram sob outra perspectiva o que nós sempre tomamos
como certo e definitivo. Mesmo que nós não concordemos com todas as novas idéias interessantes, intrigantes e surpreendentes, estou certo de que este livro é verdadeiramente uma nova maneira de se ver a Capela Sistina. Será apreciado e valorizado por todos os que se interessam seriamente pelas grandes idéias da religião, da arte e da história da civilização, e provocará debates acalorados que se estenderão pelos anos a seguir. Os autores nos alertam sobre o fato de que, para apreciar de maneira completa o milagre que é a Capela Sistina, o visitante precisa compreender as motivações de Michelangelo, suas origens, seus anos de juventude cheios de fermento intelectual no palácio da família de Medici em Florença, os altos e baixos ainda pouco conhecidos de toda a sua carreira, além de seu fascínio pelo neoplatonismo e seu interesse pelo judaísmo e seus ensinamentos místicos. Algo do que quase nunca se destacou anteriormente é uma idéia que Blech e Doliner demonstram com discernimento brilhante. Embora o Renascimento tenha sido certamente influenciado pelos mitos greco-romanos antigos, precisamos reconhecer finalmente a influência notável das tradições esotéricas e herméticas da Cabala judaica, especialmente sobre Michelangelo. O acontecimento que mudou completamente a vida de Michelangelo aos 13 anos - já um gênio, mas totalmente sem instrução - se passou por volta de 1488, quando Lorenzo de' Mediei, ao admirar o talento deste prodígio artístico, o recebeu em seu palácio como a um filho e concedeu a ele educação juntamente com seus próprios herdeiros, na qualidade de membro da família. No palácio real da família Medici, o jovem Michelangelo entrou em contato com as mentes mais brilhantes de seu tempo, como Poliziano, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola. Suas idéias influenciaram e moldaram a mente ainda imatura do jovem artista. O neoplatonismo se tornou o seu novo ideal. De Marsilio Ficino, que sabia hebraico e era estudioso das tradições judaicas, e de Pico della Mirandola, humanista e filósofo, e também um grande especialista em cultura e língua hebraicas, Michelangelo aprendeu seus primeiros conceitos de esoterismo, adquiriu um conhecimento profundo da Bíblia e também tomou conhecimento dos ensinamentos da Torá, da Cabala, do Talmude e do Midrash, os métodos de exegese bíblica.
Tudo isto que é mostrado a nós pelos autores de maneira convincente encontra ecos poderosos na Sistina. Somente com este contexto podemos entender completamente os significados e as mensagens de Michelangelo. Tudo isto se torna ainda mais evidente após a limpeza perfeita dos afrescos fabulosos de Michelangelo, obscurecidos por séculos de fumaça, poeira e tentativas mal orientadas de restauração. Apenas em nossos dias podemos saborear totalmente a beleza e o significado verdadeiro da Capela Sistina. A "limpeza" - e não a "restauração", como tem sido erroneamente descrita - não só trouxe de volta à capela o seu esplendor original, como também colocou um fim nas várias controvérsias mal fundamentadas que começaram com o início do trabalho. Fui convidado em diversas ocasiões a subir no andaime para observar os trabalhos de limpeza e pude pessoalmente partilhar da alegria de ver os afrescos a uma distância de apenas 20 centímetros. Acima de tudo, pude testemunhar em meus livros a precisão do trabalho destes técnicos especializados, executado com talento e amor. Imagine apenas que uma equipe de 12 especialistas trabalhou arduamente por 12 anos até terminar o trabalho. Após a limpeza, pudemos constatar que a sujeira não só encobrira as cores, mas também escondera as numerosas mensagens — por sua vez propositadamente "ocultas" - nas pinturas do grande florentino. Hoje podemos afirmar com certeza que o plano original da Capela Sistina elaborado por seu mecenas, o papa Júlio II, foi deliberadamente frustrado. Júlio queria que a Capela Sistina fosse uma lembrança eterna do sucesso exponencial da família papal e que nela fossem representados Jesus, a Virgem Maria, os 12 apóstolos e quase certamente João Batista. Pela primeira vez na história da Sistina, Blech e Doliner nos fazem compreender como Michelangelo conseguiu subverter todo o projeto para promover secretamente os seus próprios ideais, especialmente os ligados ao humanismo, ao neoplatonismo e à tolerância universal. De maneira clara, eles explicam como o gênio florentino conseguiu pintar o maior afresco do mundo católico sem ao menos uma única figura cristã; e como, além das sibilas, representou apenas personagens da Bíblia Hebraica. Nos
contam um fato ainda mais surpreendente: como Michelangelo, com suas intenções ocultas, escapou da censura papal sobre seu trabalho obstinado. É também significativo o fato de os afrescos da Sistina não serem fiéis apenas à Bíblia Hebraica, pois demonstram fidelidade ainda maior à Cabala, a doutrina judaica de caráter místico e esotérico. Neste livro, encontramos respostas abrangentes para a maioria das questões que durante séculos atormentaram os especialistas em teologia e história da arte, assim como os pesquisadores e aficionados. Alguns exemplos de questões sobre o afresco O Pecado Original são: •
Por que a serpente tem braços?
Por que a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, proibida para Adão e Eva, é uma figueira e não uma macieira? •
No painel anterior, por que Eva parece sair do "lado" de Adão, e não de sua costela? •
As respostas são todas fornecidas pela Cabala e descritas brilhantemente neste livro. Uma outra idéia valiosa demonstrada pelos autores é a proximidade, talvez a admiração, que Michelangelo sentia em relação aos judeus. Achei particularmente fascinante a explicação dos autores de um detalhe que era completamente ignorado até os nossos dias, após a limpeza recente dos afrescos e a conseqüente reaparição das cores originais, antes escurecidas e cobertas pela fuligem e pela sujeira. Para não adiantar muito, digo apenas que está relacionado ao círculo amarelo no manto (para ser mais exato, no braço esquerdo) de Aminadab, um dos ancestrais de Cristo, semelhante ao distintivo amarelo da vergonha que o Quarto Concilio de Latrão em 1215 ordenou que os judeus costurassem em suas roupas. A fotografia incrível e sem precedentes pode ser vista no capítulo 9. Para tornar isto ainda mais relevante, este retrato de Aminadab se encontra exatamente acima do local do trono papal de Júlio II.
É quase certo que alguns dos mestres da escola de Lorenzo de Medici eram rabinos, e ensinaram a Michelangelo o alfabeto hebraico e o significado esotérico de cada letra. Isto é amplamente demonstrado pelas letras hebraicas escondidas nos gestos e nas poses de muitas figuras dos afrescos. Mesmo no Juízo Final, a influência da cultura judaica é bem evidente: vê-se claramente que o afresco enorme tem a forma das Tábuas da Lei de Moisés. Isto não se dá apenas por causa do formato da capela, mas também porque Michelangelo, antes de pintar o Juízo, cobrira as duas janelas que tomavam uma grande parte da parede sobre o altar, e fez com que se construísse uma nova parede sobre a original. Um toque final e primoroso: poucas pessoas, se é que há alguma, perceberam que Michelangelo colocou dois judeus no Paraíso, bem próximos da figura poderosa de Jesus. Se observarmos com atenção, vemos dois judeus claramente retratados sobre o ombro do Cristo jovem e loiro e acima de São Pedro. São mostrados na fotografia no começo do capítulo 15. São facilmente reconhecidos não só por seus traços faciais característicos, como também porque o primeiro homem está usando o chapéu de duas pontas típico que os homens judeus eram obrigados a usar, para reforçar o preconceito medieval segundo o qual eles, filhos do demônio, possuíam chifres. O segundo homem tem na cabeça o chapéu amarelo que os judeus eram forçados a usar em público. No final desta experiência fascinante de leitura, os leitores perceberão que o rabino Benjamin Blech e Roy Doliner nos conduziram a uma visita sob uma luz inteiramente nova não apenas à Capela Sistina, mas à maioria dos trabalhos de Michelangelo, incluindo o monumento a Júlio II, o famoso Moisés, e as várias estátuas da Pietà, espalhadas pela Itália. Chegaremos a apreciar, como os autores apontam, que a mensagem real de sua obra-prima é que Michelangelo criou uma verdadeira ponte entre o judaísmo e o cristianismo, entre a humanidade e Deus e, talvez a mais difícil de todas, entre cada pessoa e seu ser espiritual. Da mesma forma que a obra que Michelangelo executou na Capela Sistina mudou para sempre o mundo da arte, este livro também mudará para sempre a maneira de se ver e, acima de tudo, de se entender a obra de Michelangelo!
Enrico Bruschini. O professor Bruschini é um dos especialistas em arte mais prestigiados em toda Roma e nos Museus Vaticanos. É um conferencista internacional, consultor e autor de inúmeros livros sobre história da arte italiana, incluindo In the Footsteps of the Popes (Nas pegadas dos papas), Vatican Masterpieces (Obras-primas do Vaticano) e Rome and the Vatican (Roma e o Vaticano), sendo estes dois últimos publicações do próprio Vaticano. Em 1984, foi designado Historiador de Arte Oficial da Embaixada dos Estados Unidos em Roma, título vitalício, e posteriormente nomeado Curador de Belas Artes. Em 1989, recebeu o título de Guia Oficial de Roma e guiou os presidentes norte-americanos Gerald Ford, Bill Clinton e George W. Bush em suas visitas oficiais à Cidade do Vaticano. Para saber mais sobre ele, visite a sua página: www.profenrico.com , ou escreva para seu endereço eletrônico:
[email protected] .
INTRODUÇÃO Todos os anos, mais de quatro milhões de turistas de todas as partes do planeta chegam aos montes aos Museus Vaticanos, o complexo de museus mais visitado do mundo. Eles vêm por uma razão em especial: ver a Capela Sistina, a mais sagrada de todo o mundo cristão. Os turistas, sejam eles cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, amantes da arte ou meros curiosos, não apenas se maravilham perante a sua beleza estética, mas também se emocionam com sua história e seus ensinamentos espirituais. O que mais os atrai, sem sombra de dúvida, é a incomparável visão dos afrescos em seu teto e na parede de seu altar, obra de Michelangelo Buonarroti, reconhecido universalmente como um dos gênios da humanidade. Porém, poucos dentre os milhões de espectadores maravilhados que entram na Sistina sabem que a capela particular do papa, construída no coração do Vaticano, é uma cópia em tamanho real do Santo dos Santos do antigo Templo de Salomão em Jerusalém. Com certeza, eles também ficariam admirados se descobrissem que o próprio Michelangelo inseriu mensagens secretas dentro da capela. Talvez mais
impressionante ainda seja o fato de que estas mensagens defendiam idéias que atacavam em cheio o papado. A maioria dos espectadores desconhece a verdade dramática de que estes afrescos contêm uma perdida mensagem mística de amor universal, perigosamente contrária à doutrina da igreja dos dias de Michelangelo, mas verdadeira segundo os ensinamentos bíblicos originais, assim como em relação a muitos pensamentos cristãos libertários dos dias de hoje. Impelido pelas verdades que chegou a conhecer durante seus anos de estudo na escola privada não-tradicional em Florença, enraizadas em seu envolvimento com os textos judaicos e com os estudos cabalísticos antagônicos à doutrina cristã estabelecida, Michelangelo sentiu a necessidade de encontrar uma maneira de fazer com que os espectadores entendessem aquilo em que ele acreditava de fato. Não podia deixar que a Igreja silenciasse sua alma para sempre. E para o que não lhe era permitido comunicar abertamente, Michelangelo engenhosamente encontrou uma maneira de transmitir sua mensagem aos que fossem persistentes o bastante para decifrar a sua linguagem secreta. Infelizmente, estas mensagens se perderam e passaram cinco séculos esquecidas. O homem famoso por definir gênio como "a paciência eterna" deve ter encontrado conforto para sua impossibilidade de expressar sua divergência para com o Vaticano na esperança de que um dia alguém "quebraria o código" e entenderia o que ele estava realmente dizendo. Foi somente nos nossos dias, graças aos estudos diligentes e à visão clara proporcionada pela limpeza ampla da capela, que elas foram redescobertas e decifradas. Michelangelo confrontou o poder com a verdade; e suas idéias, engenhosamente ocultadas em seu trabalho, podem finalmente se tornar conhecidas. Isto tudo não se trata de ficção especulativa, mas de verdade total e surpreendente, conforme provaremos de maneira convincente. Esta é a tese provocante e impressionante que o livro Os Segredos da Capela Sistina revelará pela primeira vez e demonstrará com vigor. Nele mostraremos como Michelangelo incorporou uma quantidade notável de mensagens ocultas em sua obra-prima religiosa para a Igreja de sua época. São mensagens que ecoam nos dias de hoje com seu apelo corajoso para a reconciliação entre a razão
e a fé, a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento, e entre todos que se irmanam na busca sincera pela fé verdadeira e no serviço de Deus. Prepare-se para desaprender tudo o que você acreditava que sabia sobre a Capela Sistina e as obras-primas de Michelangelo. Assim como a limpeza recente dos afrescos removeu camada após camada de séculos de manchas e escuridão, este livro tentará remover séculos de preconceito, censura e ignorância de um dos tesouros de arte mais famosos e mais amados do mundo. Convidamos você a se unir a nós em uma jornada incrível de descoberta. Os autores
LIVRO UM No Começo Capítulo Um O QUE É A CAPELA SISTINA? Faze-me um santuário, para que eu possa habitar no meio deles. — ÊXODO 25:8 No D I A 18 D E F E V E R E I R O de 1564, o Renascimento morreu em Roma. Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni, conhecido por todos simplesmente como "Michelangelo", faleceu aos 89 anos em sua casa modesta, onde é hoje a Piazza Venezia. Seu corpo foi preparado para o sepultamento na vizinha Basílica dos Santos Apóstolos. Atualmente, esta igreja, cujo nome italiano é Santissimi Apostoli, é uma amálgama de várias épocas e estilos: seu andar superior data do século XIX, o do meio é do Barroco seiscentista e o andar térreo é em estilo puramente renascentista da segunda metade do século XV. Porém, o mais interessante a respeito do local proposto para o sepultamento de Michelangelo é que a parte original da igreja — a única que existia em 1564 - foi desenhada por ninguém menos que Baccio Pontelli, o mesmo homem que planejou a estrutura da Capela Sistina. O local onde Michelangelo deveria ser enterrado é importante também por outras razões.
Vista da Capela Sistina do teto da Catedral de São Pedro. Veja a figura 1 do encarte. Abaixo do andar térreo da igreja há uma cripta que abriga os túmulos de São Tiago e São Filipe, dois dos apóstolos, ou seja, da época de Jesus. Se pudéssemos escavar mais profundamente, encontraríamos logo abaixo da cripta vestígios da antiga Roma imperial, e abaixo desta, da Roma republicana, e talvez finalmente algum resquício da Roma da Idade do Bronze. Isto faz com que a igreja seja uma metáfora de toda a Cidade Eterna: um lugar com camadas e camadas de história, de inúmeras culturas acumuladas, de confrontos entre o sagrado e o profano, entre o santo e o pagão, e de uma multiplicidade de segredos ocultos. Entender Roma é perceber que é uma cidade repleta de segredos, com mais de três milênios de mistérios. E não há nenhuma parte de Roma que encerra mais segredos do que o Vaticano.
O VATICANO O próprio nome "Vaticano" tem uma origem surpreendente. Não vem do latim ou do grego, nem tem origem bíblica. Na verdade, a palavra que associamos à Igreja tem origem pagã. Há mais de 28 séculos, antes mesmo da lendária fundação de Roma por Rômulo e Remo, havia um povo chamado de etrusco. Muito do que pensamos ser da cultura e civilização romanas na verdade vem dos
etruscos, e apesar de ainda estarmos tentando compreender sua língua complexa, já descobrimos muito a respeito deles. Sabemos que, assim como os hebreus e os romanos, os etruscos não enterravam seus mortos dentro dos muros de suas cidades. Por este motivo, eles construíram um cemitério enorme em uma encosta de uma colina fora dos limites de sua antiga cidade, no local que posteriormente se tornaria a cidade de Roma. O nome da deusa etrusca pagã que protegia sua necrópole, ou cidade dos mortos, era Vatika. Vatika tem vários outros significados correlatos em etrusco antigo. Era o nome de uma uva de gosto amargo que crescia naturalmente na encosta, usada pelos camponeses na fabricação do vinho que adquiriu a má fama de ser um dos piores e mais ordinários do mundo antigo. O nome deste vinho, que também se referia à colina onde era produzido, era Vatika. Era ainda o nome de uma erva estranha que crescia naturalmente na encosta do cemitério. Quando ingerida, provocava aluci- nações e delírios semelhantes aos efeitos do cogumelo peiote. Por isso, vatika representava o que hoje chamaríamos de "um barato louco", e deste modo, a palavra se incorporou ao latim como sinônimo de "visão profética". Bem mais tarde, no local foi construído o circus (o circo particular ou estádio) de Nero, o imperador louco. Foi neste circo, segundo a tradição da igreja, que São Pedro foi executado, crucificado de cabeça para baixo e enterrado em uma área próxima. Este local se tornou o lugar de visitação de um número tão grande de peregrinos, que o imperador Constantino, ao converter-se parcialmente ao cristianismo, fundou ali um santuário, que os romanos continuaram a chamar de colina Vaticana. Um século depois de Constantino, os papas começaram a erguer neste lugar o palácio papal. O que significa "Vaticano" nos dias de hoje? Por causa de sua história, este nome tem conotações variadas. Pode se referir à Basílica de São Pedro; ao Palácio Apostólico dos papas, com mais de 14 mil aposentos; ao complexo dos Museus Vaticanos com mais de 2 mil salas; à hierarquia sociopolítico-religiosa, considerada a liderança espiritual de cerca de um quinto da raça humana; ou ao menor país do mundo, a Città del Vaticano (Cidade do Vaticano). É de fato estranho se pensarmos que o menor país do planeta, com uma área aproximada de um oitavo do Central Park de Nova York, abriga a maior e mais valiosa igreja
do mundo, o maior e mais suntuoso palácio do planeta e um dos maiores museus da Terra.
SUBSTITUINDO O TEMPLO O local mais fascinante de todos, porém, é provavelmente um situado dentro dos muros da antiga fortaleza da Cidade do Vaticano, cujo significado simbólico quase todos os visitantes ignoram. Sua importância teológica pode ser mais bem compreendida se percebermos que esta realização católica era algo expressamente proibido aos judeus. No Talmude, a coletânea antiga de comentários sagrados dos grandes sábios judeus que se estendem por mais de cinco séculos, a lei claramente proíbe qualquer pessoa de construir uma réplica em tamanho real do Templo Sagrado de Jerusalém em outro local que não seja o próprio monte do Templo (Tratado Megilá, 10a). Esta lei foi decretada para impedir sangrentos cismas religiosos, como os que aconteceram mais tarde no Cristianismo (entre o catolicismo romano, a ortodoxia oriental e grega e o protestantismo, e seus séculos de guerras mutuamente destrutivas) e no Islã (entre sunitas e xiitas, que tristemente continuam se matando uns aos outros em vários pontos do planeta). Há seis séculos, porém, um arquiteto católico que não estava sob o jugo das leis talmúdicas fez exatamente o que era proibido. Ele desenhou e construiu uma incrível cópia em tamanho real do compartimento mais recôndito do templo, o Santo dos Santos, do Templo Sagrado do rei Salomão em Jerusalém exatamente no meio da Roma renascentista. Para chegar às medidas e proporções exatas, o arquiteto estudou os escritos do profeta Samuel da Bíblia Hebraica, nos quais ele descreve o primeiro Templo Sagrado, cúbito por cúbito (1 Reis 6:2). Esta reprodução maciça do heichal , a parte posterior do primeiro Templo, ainda existe hoje. É chamada de la Cappella Sistina - a Capela Sistina. É este o destino de mais de quatro milhões de visitantes por ano, que vêm para ver os incríveis afrescos de Michelangelo e reverenciar um local sagrado do cristianismo. Antes da criação desta réplica do templo judeu, existiu durante a Idade Média uma outra capela exatamente no mesmo local. Era chamada de la Cappella
Palatina (Capela Palatina), ou Capela Palaciana. Como todos os governantes europeus tinham suas próprias capelas reais para rezar em particular com seu séquito real, julgou-se necessário que o papa também tivesse uma em seu próprio palácio. O objetivo era mostrar o poder da Igreja, que tinha de ser visto como maior que o de qualquer soberano secular. Não é nenhuma coincidência o fato de que a palavra palatina derive da colina Palatina, lar dos seres humanos mais poderosos da história ocidental naquela época - os imperadores pagaos da antiga Roma. Segundo a tradição romana, foi na colina Palatina que Rômulo fundou a cidade em 21 de abril de 753 a.C. Desde então, todos os governantes de Roma moraram na colina Palatina, construindo palácios espetaculares, um após o outro. A Igreja estava determinada a provar que era o novo poder reinante na Europa e esperava espalhar a cristandade, ou seja, o império do cristianismo, por todo o globo. Esta capela foi projetada para ser um indício da glória e do triunfo futuros, e por isso o papa desejava que sua opulência ofuscasse todas as outras capelas reais da Terra. Além da magnífica Palatina, existia também a Niccolina, uma pequena capela particular estabelecida pelo papa Nicolau V em 1450 e decorada pelo grande pintor renascentista Fra Angélico. Esta é uma pequena sala em uma das partes mais antigas do Palácio Papal, com a capacidade de abrigar o papa e alguns de seus assessores pessoais. Por esta razão, a Palatina também era chamada de Cappella Maggiore, ou Capela Maior, porque podia abrigar toda a corte papal e seus convidados mais importantes. A história da Capela Sistina, entretanto, teve início com um pontífice que desejou que a capela fosse ainda maior e mais suntuosa que a Cappella Palatina.
O GRANDE PLANO DO PAPA SISTO IV O nome de batismo de Sisto era Francesco della Rovere. Nasceu em uma família humilde do noroeste da Itália, em uma cidade próxima a Gênova. O sacerdócio foi o seu caminho natural, pois quando jovem tinha inclinação intelectual, mas nenhum dinheiro. Ele se tornou um monge franciscano e aos poucos galgou os degraus da escada administrativa e educacional da Igreja, e por fim chegou a ser
cardeal, em Roma no ano de 1467. Foi eleito sem muito alarde por um conclave de apenas 18 cardeais e adotou o nome de Sisto IV, o primeiro papa com este nome em mais de mil anos. Seus primeiros atos nada tiveram a ver com as várias crises que o Vaticano enfrentava: ele se ocupou inicialmente em suprir sua família com títulos, propriedades e privilégios. Ele dotou vários de seus sobrinhos de uma riqueza obscena, ordenando-os como cardeais (um deles tinha apenas 16 anos) ou casando-os com representantes de famílias nobres e ricas. Porém, isto estava longe de ser incomum. Durante a Idade Média, o Renascimento e até o final do século XVIII, os papas corruptos costumavam escolher seus sobrinhos mais decadentes para fazer todo o trabalho sujo necessário para elevar o status material de todas as suas famílias de "abastado" para "astronomicamente rico". Em italiano medieval, a palavra para "sobrinho" é nepote, e o sistema de poder e corrupção absolutos tornou-se conhecido como nepotismo. O sobrinho mais famoso de Sisto foi Giuliano, que mais tarde se tornou o papa Júlio II, o homem que forçou Michelangelo a pintar o teto da Capela Sistina. Quando o papa Sisto IV iniciou seu reinado em 1471, a Capela Palatina corria o risco de desmoronar. Era uma construção pesada, assentada em um local perigoso, o solo mole do antigo cemitério etrusco da encosta da colina Vaticana. Esta situação simbolizava perfeitamente a crise da própria igreja quando Sisto assumiu o poder: estava repleta de complôs, escândalos e cismas. Governantes estrangeiros, como Luís XI da França, guerreavam contra o Vaticano pelo direito de escolher e nomear cardeais e bispos. Territórios inteiros da Itália rejeitavam a jurisdição papal. O pior de tudo, porém, era a ameaça dos turcos otomanos, que estavam a caminho.
A Fundação da Biblioteca Vaticana, afresco de Melozzo da Forli, 1477 (Pinacoteca, Museus Vaticanos). Este retrato famoso mostra Sisto IV em seu trono, rodeado por alguns de seus sobrinhos favoritos, com Platina, o novo chefe da Biblioteca, ajoelhado diante dele. O sobrinho alto e de expressão séria que olha para o papa é Giuliano, o futuro papa Júlio II. Veja a figura 2 do encarte. Apenas 18 anos antes, Constantinopla caíra nas mãos dos muçulmanos, marcando a morte do Império Cristão Bizantino. As ondas de choque reverberaram por toda a Europa cristã. Em 1480, os otomanos invadiram a península Itálica e capturaram a cidade de Otranto na costa sudeste. Mataram o arcebispo e muitos padres na catedral, forçaram a conversão dos habitantes da cidade, decapitaram 800 que se recusaram a se converter e serraram o bispo ao meio. Depois disso, atacaram várias outras cidades da costa. Muitos temiam que Roma pudesse sofrer o mesmo destino de Constantinopla.
Gravura que mostra como era a Capela Sistina quando foi consagrada em 1481
Apesar de todas estas ameaças à existência do cristianismo, Sisto gastou grandes quantidades do ouro do Vaticano na revitalização dos esplendores de Roma, reconstruindo igrejas, pontes, ruas, fundando a Biblioteca Vaticana e começando uma coleção de arte que se tornaria o Museu Capitolino, hoje o mais antigo do mundo em funcionamento. Seu projeto mais famoso, porém, foi a reconstrução da Capela Palatina. Há muito sobre a história da Capela Sistina que parece obra do destino. Segundo as fontes mais confiáveis, o trabalho de renovação da capela teve início em 1475. Neste mesmo ano, na cidade toscana de Caprese, nasceu Michelangelo Buonarroti. Seus destinos se uniriam ainda mais fortemente nos anos a seguir.
A NOVA CAPELA O papa Sisto decidiu não apenas reconstruir a capela papal decadente, mas aumentá-la e torná-la mais suntuosa. Ele contratou um jovem arquiteto florentino de nome Bartolomeo ("Baccio") Pontelli. A especialidade de Pontelli era a
construção e o reforço de fortalezas, como as das cidades de Ostia e Senigallia, ainda em boas condições. Isto era especialmente importante para Sisto, pois o pontífice tinha medo tanto dos muçulmanos turcos quanto das turbas católicas de Roma. Foi desenhado o projeto de uma capela enorme, maior que a maioria das igrejas, com um bastião de fortaleza no topo para a defesa do Vaticano. Talvez nunca saibamos ao certo de quem foi a idéia de construir a Capela Sistina como uma cópia do Templo Sagrado dos judeus. Sisto, instruído nas Escrituras, conhecia as dimensões exatas, encontradas nos escritos sobre o profeta Samuel no segundo Livro dos Reis. Com isto em mente, ele talvez tenha se sentido ansioso para dar expressão concreta ao conceito teológico de "sucessionismo", uma idéia que já ocupava um lugar de destaque no pensamento cristão. Sucessionismo significa que uma fé pode substituir outra anterior que deixou de ter efeito. Em termos religiosos, é comparável ao que Darwin mais tarde postularia na teoria da evolução: os dinossauros deram lugar aos homens de Neandertal, por sua vez substituídos pelo homo sapiens totalmente desenvolvido. A crença, segundo o sucessionismo, era de que as filosofias pagas greco-romanas foram substituídas pelo judaísmo, por sua vez superado pela Igreja triunfante, a fé verdadeira que invalida todas as outras. O Vaticano pregava que os judeus, por terem matado Jesus e rejeitado seus ensinamentos, foram punidos com a perda de seu Templo Sagrado, da cidade de Jerusalém e também de sua terra natal. Além disso, foram condenados a vagar pela Terra para sempre, como um alerta divino a todos que se recusassem a obedecer a Igreja. É importante observar que este ensinamento foi rejeitado e proibido categoricamente no Segundo Concilio do Vaticano de 1962. Baccio Pontelli não era um grande erudito religioso; entretanto, era um florentino; e naquela época, Florença se mostrava uma das cidades mais liberais e tolerantes, não só da Itália, como também da Europa. A comunidade judaica local, embora contasse com apenas algumas centenas de pessoas, era bem aceita e muito influente na pulsante vida cultural e intelectual da cidade. Pontelli deve ter conhecido muitos artistas e arquitetos habituados a incorporar temas judaicos em seus trabalhos.
Independente de quem teve a idéia, a nova Capela Palatina foi elaborada para substituir o antigo templo judeu, na qualidade de Novo Templo Sagrado da Nova Ordem Mundial da Nova Jerusalém, que a partir de então seria a cidade de Roma, a capital do cristianismo. Suas medidas são 40,93 metros de comprimento por 13,41 de largura e 20,70 de altura, exatamente como as do heichal, a seção posterior retangular e longa do primeiro Templo Sagrado completado pelo rei Salomão e seu arquiteto, o rei Hiram de Tiro (Líbano) no ano 930 a.C. Um fato ainda mais notável, que a maioria dos visitantes não percebe, é que em conformidade com a intenção de reproduzir o local sagrado que existia na antiga Jerusalém, o santuário foi construído em dois níveis. A metade ocidental, que abriga o altar e a área particular destinada ao papa e seu séquito, tem cerca de 15 centímetros a mais de altura do que a metade oriental, originalmente reservada aos espectadores comuns. Esta seção mais alta corresponde ao recesso mais recôndito do Templo Sagrado original, o Kodesh Kodoshim, o Santo dos Santos, onde apenas o sumo sacerdote podia entrar, e somente uma vez ao ano, no Yom Kippur, o Dia da Expiação ou Dia do Perdão. O sumo sacerdote passava simbolicamente pela parochet, a cortina espessa e decorada de linho torcido, chamada pelos evangelhos de véu, para fazer as orações de grande importância pelo perdão e pela redenção do povo. Para mostrar exatamente onde este véu era localizado no Templo de Jerusalém, foi construída uma enorme parede divisória de mármore branco em forma de grade, com sete "chamas" de mármore no topo, para corresponder à menorá sagrada, o candelabro de sete braços que iluminava o santuário judeu nos templos bíblicos.
DO TETO AO CHÃO O teto original era ilustrado com um tema simples, comum em muitas sinagogas: um céu noturno pontilhado de estrelas douradas. A cena é uma alusão ao sonho que Jacó teve enquanto dormia sob as estrelas (Gênesis 28: 11-19), logo após fugir da casa de seu pai. Esta passagem narra que Jacó teve uma visão de "uma escada pela qual anjos subiam e desciam". Ele deu ao lugar onde dormiu o nome de Beit-el, a Casa de Deus. Segundo a tradição judaica, este teria sido o local
exato onde o templo foi erigido. Ao fazer esta referência simbólica à história do sonho de Jacó, o teto expressava uma outra ligação com o Templo Sagrado de Jerusalém. Para tornar a capela ainda mais singular, foi dada grande atenção também ao seu piso. Trata-se de uma obra-prima impressionante que geralmente passa despercebida aos olhos do visitante comum, pois sua visão é encoberta pelos pés de milhares de turistas e ignorada por causa dos afrescos do teto, mundialmente conhecidos. O piso é uma retomada no século XV do estilo medieval de mosaico cosmatesco. A família Cosmati desenvolveu sua técnica inconfundível em Roma nos séculos XII e XIII. Este estilo decorativo era uma criação imaginativa de formas geométricas e espirais em peças cortadas de mármore e vidro colorido (muitas delas "recicladas" de templos e palácios romanos pagãos). Há exemplos maravilhosos destas decorações e assoalhos cosmatescos autênticos em alguns dos conventos e das igrejas e basílicas mais antigas e belas em Roma e no sul da Itália. Um dos últimos artesãos da família Cosmati foi levado a Londres no século XIII para fazer os mosaicos místicos do assoalho da abadia de Westminster. É de consenso geral que estes assoalhos muito especiais eram apreciados não apenas por sua beleza e riqueza de cores e materiais, que incluíam o pórfiro roxo, de valor inestimável, mas também por sua espiritualidade esotérica. Muito já se escreveu sobre estes mosaicos, e disso já se ocuparam teólogos, arquitetos e até mesmo matemáticos. Em parte, os mosaicos conferem a qualquer santuário uma sensação de espaço, ritmo e fluidez de movimento. Indubitavelmente, eles também servem como instrumento de meditação, de maneira semelhante aos labirintos comuns nas igrejas da Idade Média. Na Capela Sistina, o piso é uma variação destes assoalhos cosmatescos, pois foram elaborados dois séculos após a renomada família Cosmati finalizar o seu último projeto. Seu desenho teve como base algumas partes que restaram de uma capela anterior, mas adquiriram um estilo e um significado próprios. O desenho do piso da Sistina foi elaborado para servir a quatro funções principais. Primeiro, embeleza a capela com uma graça toda especial. Segundo,
ajuda arquitetonicamente a definir o espaço, ao mesmo tempo em que o alonga e dá a sensação de fluidez de movimento. Ela também "dirige" os movimentos e a ordem dos ritos durante uma missa da corte papal, mostrando onde o papa deve se ajoelhar, onde a procissão deve parar durante o canto de certos salmos e hinos, onde os celebrantes do serviço religioso devem ficar, onde o incenso deve ser colocado, entre outras coisas. Por fim, a função menos conhecida de todas é de instrumento de meditação cabalística, que mais uma vez conecta a capela às fontes judaicas antigas. Dentro dela, há uma gama variada de símbolos místicos: as esferas da Árvore da Vida, os caminhos da alma, as quatro camadas do universo e os triângulos de Filo de Alexandria. Cabala significa literalmente em hebraico "aquilo que se recebe", e se refere às tradições místicas que compreendem os segredos da Torá, as verdades esotéricas que revelam o conhecimento mais profundo do mundo, da humanidade e do Todo-Poderoso. Filo era um místico judeu de Alexandria, no Egito, que escreveu dissertações sobre a Cabala no século I da era cristã. Ele é comumente considerado o elo central entre a filosofia grega, o judaísmo e o misticismo cristão. Seus triângulos apontam para cima ou para baixo para mostrar o fluxo de energia entre a ação e a recepção, o masculino e o feminino, Deus e a humanidade, e entre o mundo inferior e o superior. Na verdade, o nome latino para este tipo de decoração com mosaicos é opus alexandrinum (obra alexandrina) por ser repleto de simbolismo cabalístico concebido originalmente por Filo de Alexandria. Por causa deste nome latino, muitos historiadores da arte e arquitetos crêem erroneamente que o piso em estilo cosmatesco teria se originado em Alexandria, no Egito, ou que foi popularizado pelo papa Alexandre VI Borgia, no final do século XV. Entretanto, não há nenhuma prova de que este tipo de desenho tenha existido na antiga Alexandria; e quanto à alegada relação com o papa Alexandre VI, este entrou em cena mais de duzentos anos após o auge do piso cosmatesco. Acreditamos que a conclusão mais lógica é a de que foi a ligação com a Cabala alexandrina que deu o seu nome ao desenho cosmatesco. Uma outra ligação com o templo judeu é o fato notável de que o Selo de Salomão é um símbolo recorrente nos pisos cosmatescos, e encontrado nos
desenhos do piso da Capela Sistina. Este símbolo era considerado a chave para a sabedoria esotérica antiga dos judeus. O selo, composto de uma combinação dos dois triângulos de Filo sobrepostos, apontando para cima e para baixo, é chamado hoje de Magen David, ou Estrela de Davi. A estrela é praticamente um emblema universal do judaísmo, e foi escolhida para ser a figura central da bandeira do estado moderno de Israel. Porém, no final do século XV, ainda não era um símbolo representativo do povo judeu, mas de seu conhecimento místico arcano. Até mesmo Rafael escondeu um Selo de Salomão em seu afresco místico gigante A Escola de Atenas.
O entendimento do significado mais profundo do selo enquanto parte da Capela Sistina requer uma contextualização. A evidência arqueológica mais antiga do uso judeu deste símbolo é a de uma inscrição atribuída a Josué ben Asayahu no final do século VII a.C. A lenda por trás desta associação com o rei Salomão - e daí o seu outro nome, Selo de Salomão - é bastante fantasiosa e muito provavelmente falsa. Nas lendas medievais judaicas, muçulmanas e cristãs, assim como em um dos contos das Mil e Uma Noites, o Selo de Salomão, com seu formato hexagonal, era um anel-sinete mágico que supostamente pertencera ao rei e que lhe concedia o poder sobre os demônios (ou jinni), ou de falar com os animais. Segundo alguns pesquisadores, a razão pela qual este símbolo é mais comumente atribuído ao rei Davi é porque o hexagrama representa a carga astrológica da hora do nascimento de Davi ou de sua unção como rei. Porém, o significado mais profundo e certamente o mais correto é a interpretação mística que o associa ao sete, o número sagrado, com suas seis pontas ao redor de seu centro. O número sete tem uma importância religiosa especial no judaísmo. Na Criação, temos os seis dias seguidos do sétimo, o Sabá, o dia de descanso declarado santo por Deus e dotado de uma bênção singular. Todo sétimo ano é um ano sabático, no qual a terra não pode ser cultivada, e após sete ciclos de sete anos, o ano Jubileu traz liberdade aos que tinham sido vendidos como escravos e aos que se tornaram escravos por causa de dívidas, e o retorno das propriedades aos seus donos originais. Porém, o fato mais importante de todos para a compreensão do significado do uso do número sete nos mosaicos do chão da Capela Sistina é a sua ligação com a menorá do antigo Templo, cujas sete lâmpadas de óleo se apoiam em três braços que saem de cada lado de uma haste central. Já foi sugerido enfaticamente que a Estrela de Davi se tornou um símbolo padrão nas sinagogas justamente por ser elaborada segundo o esquema 3+3+1: um triângulo para cima, um para baixo e o centro; e isto corresponde precisamente à estrutura da menorá. Esta menorá é exatamente o item representado tão vividamente no Arco de Tito, construído para celebrar a vitória do Império Romano sobre o que considerava um povo derrotado do qual nunca mais se ouviria falar.
Entretanto, graças a artistas, como os da família Cosmati e Michelangelo, o simbolismo judeu continuaria a ser conhecido cada vez mais, por meio de todas as suas obras mais famosas. O segredo mais estranho da capela mais católica do mundo é que o mosaico gigante de seu chão está repleto de Estrelas de Davi.
OS AFRESCOS ORIGINAIS DO SÉCULO XV — AS APARÊNCIAS ENGANAM A atração principal da nova capela, porém, não era nem o seu chão nem o seu teto, mas as suas paredes. Partindo da parede frontal do altar, começam duas séries de painéis — uma sobre a vida de Moisés e outra sobre a de Jesus, duas histórias bíblicas contadas de maneira semelhante ao formato de histórias em quadrinhos. Para pintar tantos afrescos de execução tão trabalhosa, foi trazida uma equipe formada pelos principais pintores de afrescos do século XV. Se quisermos ser mais precisos, diríamos que a equipe foi enviada. É importante saber disso por conta de quem os enviou: ninguém menos que Lorenzo de Medici, o homem mais rico de Florença e seu governante não-oficial. Ele foi o mesmo homem que mais tarde descobriria Michelangelo e o criaria como um de seus filhos. O papa Sisto IV odiava Lorenzo e sua família, e lutara contra eles por muitos anos. Sisto desejava tomar o controle de Florença, capital do livre-pensamento, e de sua grande riqueza, para que pudesse então assumir o controle de toda a Itália central. Em 1478, o papa tentou eliminar Lorenzo e todo o clã de Medici de uma vez por todas. Sisto deu início a uma primeira versão de assassinato mafioso. A única diferença é que esta conspiração em particular era algo que nem mesmo o Poderoso Chefão ousaria empreender. Sisto planejou assassinar Lorenzo e seu irmão Giuliano na Catedral de Florença, em frente ao altar principal, durante a missa de Páscoa. Um elemento ainda mais blasfemo do plano era o sinal escolhido para marcar o momento da matança: a elevação da hóstia. Até mesmo assassinos profissionais de sangue frio recusaram este trabalho, e o papa teve de contar com a ajuda de um padre e do arcebispo de Pisa. Estes dois tramaram os detalhes juntamente com Girolamo Riario, o sobrinho mais corrupto de Sisto. O
papa se recusou a ouvir os pormenores, dizendo de maneira evasiva: "Façam o que for necessário, contanto que ninguém seja morto". Entretanto, ele ordenou a seu líder militar Federico da Montefeltro, o duque de Urbino, que reunisse 600 soldados nas colinas ao redor de Florença e esperasse pelo sinal da morte de Lorenzo. O ataque vergonhoso seguiu conforme o planejado... até certo ponto. Giuliano de Medici morreu no local, ferido com 19 punhaladas. Lorenzo, embora ferido gravemente, conseguiu escapar por um túnel secreto e sobreviveu. O sinal para a invasão de Florença nunca foi dado. Os florentinos enfurecidos, ao invés de se levantar contra o clã de Medici, como Sisto esperava, assassinaram os conspiradores. Foi necessário que o próprio Lorenzo intercedesse pessoalmente para que os cidadãos não matassem o cardeal Raffaele Riario, outro sobrinho do papa que não tivera nenhum envolvimento no golpe. Dois anos mais tarde, o papa cedeu e o Vaticano e Florença declararam uma trégua. Foi exatamente nesta ocasião que a nova capela estava pronta para ser redecorada. Por que então Lorenzo enviou seus pintores mais talentosos para decorar a capela, glorificando o homem que matara seu amado irmão e tentara também assassiná-lo? Segundo as fontes oficiais, este gesto foi uma "oferta de paz", um ato de perdão e reconciliação. Porém, a explicação oficial é equivocada. O motivo real é essencial para se entenderem as mensagens dos afrescos, de conteúdo nem um pouco conciliatório. Lorenzo de fato enviou a elite artística: Sandro Botticelli, Cosimo Rosselli, Domenico Ghirlandaio, que mais tarde seria professor de Michelangelo por um breve período, e Perugino, pintor da Umbria, que posteriormente seria mestre de Rafael. Além de ter de revestir todas as quatro paredes da capela com as séries de painéis sobre a vida de Moisés e a de Jesus, eles foram encarregados de acrescentar uma faixa superior de pinturas retratando os primeiros trinta papas e também um grande afresco da Assunção da Virgem Maria ao Céu na parede frontal do altar, entre as duas janelas. Com tantos afrescos a executar, a equipe de artistas posteriormente trouxe Pinturicchio, Luca Signorelli, Biagio d'Antonio e alguns assistentes. Este grupo compõe a lista do "Quem é quem" dos principais pintores de afrescos da pintura italiana do século XV. Todos eles eram fiorentinos orgulhosos, com exceção de Perugino e seu pupilo Pinturicchio.
O papa planejara o seu próprio desenho com várias camadas de simbolismo para a capela. Este tinha o objetivo de ilustrar o sucessionismo para o mundo, provando que a Igreja era a herdeira legítima do monoteísmo, por substituir o judaísmo. Para atingir este intento, cada painel da história de Moisés foi emparelhado com um da história de Jesus. A série de painéis de afrescos da parte norte narra a vida de Jesus, de esquerda para direita, na ordem cristã. A série da parte sul conta a história de Moisés, mas da direita para a esquerda, na ordem hebraica. Esta disposição resultou em oito "pares": A descoberta de Moisés bebê no Nilo A circuncisão do filho de Moisés A ira de Moisés e sua fuga do Egito A separação das águas do mar Vermelho
O nascimento de Jesus na manjedoura O batismo de Jesus As tentações de Jesus O milagre de Jesus caminhando sobre as águas
Moisés no monte Sinai
O sermão da montanha de Jesus
A revolta de Coré
Jesus entregando as chaves de Pedro
O último discurso e morte de Moisés Anjos defendendo o túmulo de Moisés
A última ceia de Jesus Jesus ressurgido do túmulo
Algumas das "conexões" requerem um esforço de imaginação, mas a idéia era demonstrar que a vida de Moisés serviu apenas para prenunciar a vida de Jesus. Um outro objetivo do papa era promover o culto da Virgem Maria. Sisto IV queria dedicar a capela à Assunção de Maria ao Céu, celebrada todos os anos no
calendário católico no dia 15 de agosto. Por este motivo, Perugino pintou o afresco gigante da subida de Maria ao Céu na parede do altar, retratando o próprio papa Sisto IV ajoelhado diante dela. O último desejo do papa - e provavelmente o mais caro de seu coração - era glorificar e solidificar a sua própria autoridade suprema e a de sua família, os delia Rovere. O papado ainda se refazia de séculos de cismas, escândalos, antipapas, intrigas e assassinatos. Havia apenas cinqüenta anos que a corte pontifícia retornara a Roma, após o assim chamado "exílio babilônico" dos papas em Avignon, na França. O papa Sisto estava ansioso para demonstrar não só a supremacia do cristianismo sobre o judaísmo e da autoridade divina dos papas sobre o mundo cristão, como também a sua superioridade pessoal sobre todos os papas que o precederam. Foi por esta razão que, por sua ordem, Aarão, o primeiro sumo sacerdote dos judeus, e Pedro, o primeiro papa, foram vestidos de roupas azuis e douradas, as cores heráldicas da família delia Rovere. É por isso também que a capela está repleta de desenhos de carvalhos e bolotas em todos os cantos: "rovere" significa "carvalho", e esta árvore é o símbolo do brasão da família. Pelo mesmo motivo, Sisto também colocou o seu próprio retrato acima da série de pinturas dos primeiros trinta papas, bem no centro da parede frontal, junto à Virgem Maria no Céu. Com isto em mente, voltemos à nossa questão: por que Lorenzo enviou seus melhores artistas a Roma para executar este trabalho de auto-engrandecimento para o homem que tramara contra ele e sua família? Conforme demonstraremos, a resposta é muito simples: para sabotar a amada capela de Sisto. Muito provavelmente, foi Botticelli o agitador e coordenador do grupo do projeto de pintura dos afrescos. Os textos oficiais sobre a Capela Sistina apontam Perugino como o líder, mas uma análise rápida demonstra que ele - o único que não era de Florença - não fazia parte da trama. Seu estilo e esquema de cores são completamente diferentes de todos os outros painéis, e seu simbolismo não contém nenhuma mensagem antipapal; ao passo que, por toda a capela, os outros artistas parecem livres para dar vazão às suas críticas. Cosimo Rosselli tinha um cachorrinho branco que se tornou o mascote dos artistas da Toscana. Não sabemos se permitiam que o cachorro brincasse dentro
da capela enquanto os pintores trabalhavam, mas podemos vê-lo fazendo travessuras em todos os painéis de afrescos, exceto os de Perugino, da Umbria. Na Última Ceia, ele aparece saltando junto aos pés de seu dono. No afresco Adoração do Bezerro de Ouro, ele parece na verdade estar saindo do painel e entrando na capela. Temos que admitir que a presença de um cachorro no santuário não é um grande insulto, e não é mais que uma possível impureza ritual. Porém, os florentinos inseriram imagens bem mais fortes em seus trabalhos para seu ajuste de velhas contas com o papa. Botticelli era quem tinha o maior ressentimento. Após a execução dos conspiradores que atacaram os irmãos de Medici, Botticelli fizera um afresco mostrando seus cadáveres pendurados na catedral para exibição pública. Esta pintura continha legendas sarcásticas atribuídas ao próprio Lorenzo de Medici. Como parte do tratado de paz oficial entre o Vaticano e Florença em 1480, Sisto insistiu para que este afresco fosse totalmente destruído. Botticelli certamente não estava inclinado a esquecer ou perdoar isso. Por esta razão, em seu painel da Fuga de Moisés do Egito, ele inseriu um carvalho - o símbolo da família delia Rovere — acima das cabeças dos arruaceiros pagãos que Moisés afugenta. Perto dos carneiros inocentes e da visão sagrada da Sarça Ardente, entretanto, ele colocou uma laranjeira com um cesto de laranjas, o símbolo da família florentina de Medici. Na Revolta de Core, Botticelli vestiu o rebelde Core de azul e dourado, as cores do clã delia Rovere, e bem ao fundo retratou dois barcos: um naufragado, representando Roma, e um outro navegando tranqüilamente, com a bandeira de Florença orgulhosamente tremulando em seu topo. No quadro das Tentações de Cristo, ele inseriu o amado carvalho de Sisto em dois lugares: um junto a Satanás quando este é desmascarado, e outro cortado e pronto para ser queimado no Templo. Biagio d'Antonio, outro filho orgulhoso de Florença, não queria ser deixado para trás. Em seu painel, a Separação das Águas do Mar Vermelho, ele mostra o mau faraó usando as cores da família delia Rovere e uma construção de aparência suspeita, semelhante à própria capela, sendo tragada pelas águas vermelhas revoltas.
A nova capela, ainda chamada de Palatina, foi consagrada na festa da Assunção de Maria em 15 de agosto de 1483. O papa, orgulhoso, oficiou a cerimônia. Ele estava contente e totalmente alheio à grande quantidade de insultos secretos contra ele. Sisto IV podia ser tudo, menos um grande estrategista ou diplomata. Ele fez várias alianças precipitadas e conflituosas, e estava claramente mais preocupado em aumentar a riqueza e o poder de sua família do que em fortalecer a Igreja. Felizmente, a invasão muçulmana da Itália chegou a um fim inesperado. Maomé II, o sultão do Império Otomano, morreu na primavera de 1481, mas Sisto tomou os créditos do fim da invasão para si. Ele faleceu um ano mais tarde, feliz e sem saber que Lorenzo conseguira ridicularizar sua intenção de fazer da capela um serviço à sua egolatria. Visto em retrospecto, é surpreendente notar o quanto os primeiros artistas puderam agir livremente dentro da Capela Sistina. Entretanto, o verdadeiro mestre das mensagens ocultas surgiria uma geração mais tarde... e com muito mais a dizer.
Capítulo Dois A LINGUAGEM PERDIDA DA ARTE ... e o entendimento dos seus entendidos se desfará. — ISAÍAS 29:14 O QU E os A R T I S T A S D E Lorenzo foram capazes de realizar na Capela Sistina é um exemplo poderoso de uma prática de muitos paralelos, mesmo nos tempos modernos. Durante a Segunda Guerra Mundial, as Forças Aliadas se viram frente a uma grave ameaça no Teatro de Operações do Pacífico. Os criptógrafos japoneses tinham uma habilidade incomparável de quebrar todos os códigos que a Força Aérea, a Marinha e a Infantaria da Marinha conseguiam elaborar. A situação parecia perdida, até que os aliados descobriram duas soluções engenhosas.
A primeira foi trazer um grupo de índios norte-americanos da tribo Navajo - que usam a "linguagem do vento" - para traduzir todas as mensagens de rádio para sua própria língua, completamente desconhecida para os japoneses. A segunda consistia em se aproveitar da ignorância japonesa em relação à cultura popular norte-americana. Para transmitir códigos numéricos, as instruções começavam com: "Tome a idade de Jack Bennys e então..." Somente alguém nascido e criado nos Estados Unidos, e que ouvisse o programa de rádio popular do famoso comediante entenderia a referência. O personagem de Jack Benny era conhecido por todos por ser um sovina, péssimo tocador de violino e pela sua grande vaidade — especialmente no tocante à idade. Embora o ex-ator de vaudeville já estivesse com cerca de 50 anos àquela época, ele sempre dizia que tinha "apenas 39". Os agentes do serviço secreto japonês se exasperaram tentando descobrir quem era o tal de Jack Benny, e depois tentando estabelecer a sua idade cronológica real, ao passo que qualquer soldado americano sabia imediatamente que não importava que ano fosse, a resposta seria sempre "39". Felizmente, nenhum destes dois códigos foi quebrado. Uma língua quase desconhecida e um pouco de "informações de insider " tipicamente norteamericanas ajudaram a vencer a guerra ocultando informações essenciais de maneira que apenas os destinatários da mensagem seriam capazes de compreender.
USANDO CÓDIGOS EM ARTE Os códigos demonstram seu valor em diversas ocasiões em tempos de guerra. Algo menos óbvio, entretanto, foi o caminho que as mensagens secretas seguiram em um outro cenário de importância universal. Nele, a intenção não era enganar um inimigo, mas intensificar o sentido de mistério. Não era conquistar uma vitória militar, mas propiciar uma apreciação mais rica. É na arte e em algumas de suas mais famosas expressões que reconhecemos prontamente uma verdade importante: os gênios artísticos sempre produzem seus maiores trabalhos quando incorporam sentidos ocultos em suas obras-primas.
A arte - ao menos a grande arte - tem por natureza níveis variados, ou camadas, de significado. De fato, uma obra-prima passa a ser considerada como tal porque sabemos instintivamente, mesmo de maneira subconsciente, que a obra tem muito mais do que os olhos conseguem perceber. Não amamos a Mona Lisa porque ela é linda. Na verdade, de acordo com os padrões estéticos atuais, muitos a considerariam sem atrativos. Nós a amamos porque ela é misteriosa, e este é o motivo da fascinação que ela exerce sobre o mundo nos últimos cinco séculos. Sabemos que há algo mais abaixo da superfície, por detrás do sorriso, e não conseguimos descobrir o que é. É difícil para nós, no século XXI, compreender o quanto era considerado natural nos períodos barroco e renascentista o fato de os artistas sempre incorporarem camadas múltiplas de significado em suas obras. Temos de entender a função da arte em uma época na qual as pessoas não tinham os incontáveis estímulos sensoriais que nos rodeiam todos os dias, a todo instante. Em um mundo sem televisão a cabo e via satélite, vídeos e DVDs, filmes e internet, uma criação artística era o objeto onipresente que tinha de servir como fonte constante de prazer e inspiração, ano após ano, sem se tornar antiga. Se um mecenas encomendava uma nova obra de arte particular a um artista da estatura de Leonardo da Vinci ou Michelangelo, e pagasse uma comissão generosa, a peça tinha de lhe proporcionar estímulo e deleite constantes pelo resto de sua vida — e depois de sua morte geralmente passava a integrar o patrimônio da família. Se a obra de arte era encomendada pelo governo, esta tinha de servir como uma expressão permanente dos valores e do caráter distintivo da sociedade. Além disso, como vimos no capítulo anterior, uma grande motivação para alguém como o papa Sisto IV encomendar a decoração original dispendiosa da Capela Sistina era que naquela época servir como mecenas da criação de arte significava a maior demonstração de poder e riqueza. A Igreja Católica certamente serviu como o maior mecenas das artes durante todo este período. Porém, para o clero, a arte desempenhava uma outra função. A arte eclesiástica propunha-se a glorificar o lugar de adoração e a inspirar os fiéis, e era criada também para instruir as massas, compostas quase totalmente por pessoas analfabetas. Por isso, eram necessárias ilustrações atraentes de histórias
importantes dos evangelhos e das vidas dos santos para "iluminar os incultos", para instruir a geração seguinte nos caminhos e na história da cristandade. Isto explica o porquê de muitas igrejas medievais e renascentistas possuírem ciclos de afrescos incrivelmente intrincados e coloridos, que às vezes narram um livro inteiro da Bíblia. (Por mais irônico que possa parecer, esta tradição é considerada por muitos como a origem das revistas em quadrinhos e das grafhic novels de hoje.) Para as pessoas daquela época, assim como para muitas nos dias de hoje em muitos cantos do mundo, ir à missa era o único veículo de convívio social e entretenimento, além do cumprimento das obrigações religiosas. Mesmo na Florença livre-pensadora da juventude de Michelangelo, as pessoas se reuniam nas igrejas para confraternizar, ouvir o sermão de um orador popular talentoso e apreciar a obra de arte mais recente. As cerimônias religiosas daquele tempo não eram nem um pouco breves. Uma missa, especialmente uma missa papal, poderia durar horas. Como fazer então para manter o tom adequado e não provocar o sono da congregação? A arte era a resposta. Porém, era preciso mais que figuras bonitas que exigiam apenas um rápido olhar. Tinha de ser arte que servisse como um elemento de eterna fonte de revelação e fascínio da atmosfera religiosa. Esta é outra razão pela qual a arte dos dias de Michelangelo era tão complexa: ela precisava resistir a centenas de contemplações prolongadas. O público tinha de acreditar que era sempre possível descobrir nela novos significados e novas idéias. Por este motivo, geração após geração, a arte — tanto â privada quanto a pública - se tornou cada vez mais complexa e multifacetada. Assim como Shakespeare povoava suas obras de enredos simples, sexo, violência e piadas vulgares para os groundlings (a plebe composta por camponeses incultos que assistiam às peças em pé ou sentados no chão), ao mesmo tempo em que criava poemas magníficos com níveis profundos de significado para seus mecenas abastados e cultos dos assentos superiores do teatro, os artistas da época de Michelangelo criaram obras surpreendentes que falavam a todos os níveis de inteligência. O cidadão comum via estátuas e gravuras bonitas e ouvia do clérigo a narração de seus significados.
Entretanto, para aqueles com educação considerável, havia muitos outros tesouros por descobrir ao se explorar cada obra. Cada elemento da arte renascentista contém um significado interno: a escolha do tema e dos protagonistas, os rostos selecionados para os diferentes personagens da obra, as cores usadas, as espécies de flores e árvores, os animais retratados, as posições dos elementos, a postura dos personagens, os gestos e as justaposições de personagens nas cenas, e até mesmo o próprio cenário ou paisagem: todos estes elementos tinham significados ocultos. Para gênios de criatividade infinita como Leonardo da Vinci e Michelangelo, isto tornava cada nova obra uma jornada profunda e extremamente revigorante — e exaustiva - ao íntimo da obra e também de suas almas. Contudo, o maior desafio se apresentava quando o artista sentia a necessidade de esconder a sua mensagem verdadeira por medo, sabedor de que suas idéias não eram aceitas pela ordem dominante ou talvez até mesmo proibidas. Em tempos de intolerância e perseguição religiosa, a arte quase nunca ousava expressar abertamente o que o artista estava ansioso por comunicar. Os códigos, as alusões ocultas, os símbolos e as referências veladas, compreensíveis apenas a um círculo bem restrito de seus contemporâneos, eram o único recurso disponível para os que rompiam com os dogmas tradicionais de seu tempo, especialmente quando o artista sabia que suas idéias seriam condenadas por seu mecenas ou pelas autoridades. Conforme veremos, é isto que torna Michelangelo e suas obras da Capela Sistina tão fascinantes. Talvez seja ele o paradigma do grande artista cuja obra reflete a paixão pela perfeição estética e pela persuasão intelectual. Acima de tudo, ele queria criar obras de arte duradouras não apenas por sua beleza, mas também por suas idéias ousadas — e subversivas para a época - para as pessoas de dentro e de fora da Igreja. Embora Michelangelo soubesse que a maioria de seus contemporâneos não enxergaria além da superfície, ele tinha fé de que de algum modo as suas alusões "codificadas" seriam certamente expostas por estudiosos diligentes. Michelangelo tinha certeza de que a história se encarregaria de decifrar o significado verdadeiro, porque ocultar idéias perigosas em obras de
arte era uma prática comum de muitos de seus colegas; uma prática de longa tradição.
DA BÍBLIA AO RENASCIMENTO O primeiro exemplo de que se tem notícia de uma mensagem oculta em uma obra de arte data de quase 4 mil anos e é uma história registrada no livro de Gênesis. José, herdeiro e filho favorito de Jacó, o último patriarca, é vendido por seus irmãos enciumados para ser escravo no Egito. Os irmãos, unidos na trama, tomam então a túnica adornada e multicolorida de José, a rasgam e a mergulham em sangue e dizem a seu pai, Jacó, que José fora devorado por um animal selvagem. Graças à engenhosidade a aos talentos dados por Deus a José, ele se torna o vizir do faraó, o segundo homem mais importante na Terra naquele tempo. No final da história, José se reúne com seus irmãos e envia a Canaã as carruagens e os carros reais do faraó, altamente decorados, para levar presentes preciosos ao seu amado pai e transportar o patriarca e o restante de sua grande família ao Egito com grande luxo. Jacó, inconsolável por longos anos desde a "morte" de José, não acredita que ele ainda está vivo e muito menos que também subiu aos escalões mais altos de poder do poderoso Egito. Neste ponto, o texto diz: "Eles [os irmãos] lhe [a Jacó] anunciaram: 'José ainda vive, é ele quem governa toda a terra do Egito!' Mas seu coração não palpitava, pois ele não acreditava. Entretanto, quando repetiram todas as palavras que José lhes dissera, quando viu os carros que José enviara para levá-lo, então reanimou-se o espírito de seu pai Jacó. E Israel disse: 'Basta! José, meu filho, ainda está vivo! Que eu vá vê-lo antes de morrer'." (Gênesis 45: 26-28) Os antigos comentaristas judeus ressaltam que é apenas quando o patriarca incrédulo vê os carros que ele finalmente acredita que seu filho José está vivo e é governador do Egito. Qual será a razão? E porque Jacó entendeu a mensagem codificada que José enviou nos enfeites artísticos dos carros. Naquela época, as carruagens do faraó eram então comumente adornadas com arte pagã egípcia, com entalhes coloridos e pinturas retratando os vários deuses e deusas do culto idolatra de louvor à morte que imperava no Egito. Segundo o Midrash, a
compilação de sabedoria oral dos judeus associada ao texto bíblico, José pintou por cima destas figuras e alterou as imagens pagãs das carruagens reais. Este gesto transmitia duas mensagens ao seu pai: a primeira era que somente alguém dos escalões mais altos de poder ousaria modificar as carruagens do rei; e a segunda era que este insulto dissimulado aos símbolos pagãos, modelos das obras de arte do antigo Egito, só podia ter sido feito por um membro de sua própria família, alguém que acreditava em um só Deus. Do carro de José bíblico ao Jack Benny do século XX, temos incontáveis exemplos de códigos baseados em referências culturais conhecidas apenas pelos iniciados, os que conhecem um código comum, para transmitir uma mensagem importante destinada apenas a uns poucos eleitos. Os estudiosos sérios cada vez mais se dão conta de que muitas das obras de arte mais famosas do Renascimento e do Barroco (especialmente do final do século XV até os meados do século XVII) estão também repletas de idéias ocultas e códigos secretos. Algumas demandam pouquíssimo trabalho para serem decifradas. Não é necessário muito esforço, por exemplo, para descobrir as referências dos grandes artistas à mitologia greco-romana e às lendas medievais, o uso das cores heráldicas e dos brasões das famílias poderosas que controlavam a Itália e o Vaticano, ou para identificar em seus afrescos muitos rostos de pessoas famosas da época. Entretanto, os símbolos secretos ordenados pelo mecenas que encomendava o trabalho eram um pouco mais esquivos. Este tipo de mensagem secreta era abundante na arte do Renascimento e do Barroco: pinturas da Natividade ou da Crucificação onde apareciam o mecenas, sua família ou pessoas de seu círculo íntimo, brasões familiares que aparecem como decorações em detalhes da arquitetura da antiga Roma e até mesmo jogos de palavras com o nome do mecenas. Em 1475, por exemplo, ano do nascimento de Michelangelo, Botticelli pintou Lorenzo de Medici e seu séquito renascentista presenciando a Adoração dos Magos. Bem mais tarde, de maneira semelhante Michelangelo decorou todo o afresco do teto da Capela Sistina com grinaldas de carvalhos e bolotas, para que o público se lembrasse do papa Sisto IV, que encomendara a construção da capela, e do papa Júlio II, o mecenas contencioso de Michelangelo. Ambos os
papas, tio e sobrinho, pertenciam ao clã dos della Rovere, cujo nome significa "carvalho".
INSULTOS E PROTESTOS CODIFICADOS Entretanto, bem mais intrigantes são os símbolos secretos inseridos na obra de arte pelo artista sem o conhecimento ou a permissão do mecenas que encomendava o trabalho. Isto ocorria com menos freqüência do que o simbolismo autorizado na arte barroca e renascentista, pois era claramente uma prática perigosa devido ao poder de quem pagava pela obra e da fúria que poderia demonstrar. Apesar do perigo, estava longe de ser incomum. Isto nos leva a perguntar: por que artistas ilustres corriam o risco de provocar a ira de seus mecenas? Há muitas respostas. Primeiro, havia a fúria ou ao menos a indignação justa dos gênios criativos forçados a se humilhar diante de quem os sustentava financeiramente. Naquele tempo, os artistas eram considerados simples empregados. Federico Zeri, historiador da arte respeitado internacionalmente, vice-presidente do Consiglio Nazionale dei Beni Culturali da Itália (o conselho nacional de bens culturais da Itália) e membro da ilustre Academie de Beaux Arts de Paris (a academia de belas artes de Paris), escreve em seu livro sobre a obra-prima de Ticiano, Sacred and Profane Love (O amor sagrado e o amor profano): "Não devemos nos esquecer que no século XVI, nos meados do Renascimento italiano, os pintores, mesmo os grandes, não eram considerados mais que artesãos de plantão: bem pagos, mas privados da liberdade que os permitiria recusar trabalhos que hoje pareceriam muito degradantes". O primeiro artista a romper com tudo isso e se tornar seu próprio mestre - e de fato, a recusar encomendas do próprio papa - foi ninguém menos que Michelangelo Buonarroti. Além do mais, assim como muitos outros artistas injustiçados, Michelangelo geralmente introduzia alusões sexuais e insultos rudes aos seus mecenas - obviamente sem que isso fosse de conhecimento deles - sempre que necessitava aliviar as suas frustrações contidas. Algumas delas fazem parte dos segredos da Capela Sistina que discutiremos de maneira mais detalhada adiante.
Muitas proibições dificultavam e limitavam os artistas da época. Talvez a principal delas fosse o fato de serem proibidos de assinar seus trabalhos. Porém, o mecenas que pagava pela peça tinha o seu nome ou imagem ou o símbolo de sua família exibido de maneira destacada. Este é o motivo pelo qual tantos artistas conseguiam de alguma maneira inserir seus próprios rostos em algum ponto de suas obras. Às vezes, como no caso de Botticelli e Rafael, isto era óbvio, pois eles tinham o consentimento de seus mecenas, mas em outros casos, não era tão aparente. Michelangelo inseriu seu rosto em suas obras em diversas ocasiões, às vezes bem abertamente, mas com mais freqüência ele o inseria como um sinal secreto de protesto. Isto se repetirá algumas vezes quando explicarmos os segredos do teto da Capela Sistina e outros de seus trabalhos posteriores.
A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio, 1510-12 (Museus Vaticanos). Veja a figura 3 do encarte. Rafael, embora tivesse a permissão de introduzir a sua face visivelmente em muitas de suas obras mais famosas, não era autorizado a assiná-las. E por isso que, ao completar sua mais famosa obra-prima, o afresco gigante A Escola de Atenas (uma obra que contém tantos segredos que já foram escritos livros
inteiros totalmente dedicados a ela), ele acrescentou um pequeno detalhe final. No canto inferior à direita, o grande sábio Euclides está inclinado sobre uma lousa, explicando a seus alunos um de seus teoremas geométricos. Se examinarmos minuciosamente a parte de trás de sua gola bordada em ouro, veremos quatro pequenas iniciais: R.U.S.M., que querem dizer Raphael Urbinas Sua Manu. Em latim isto significa "Rafael de Urbino, por sua própria mão". A propósito, quem aparece vestido de Euclides não é ninguém mais que o "padrinho" cúmplice de Rafael no Vaticano, o arquiteto Bramante. Trataremos sobre isso também mais adiante.
OCULTANDO O CONHECIMENTO PROIBIDO Outra grande limitação imposta aos artistas renascentistas era a proibição de dissecar cadáveres. Os cientistas queriam dissecar os cadáveres de criminosos executados para aumentar seu conhecimento sobre anatomia e para resgatar o conhecimento médico perdido dos antigos. Os artistas queriam aprender o máximo possível sobre a estrutura interna do corpo humano para chegar ao nível de excelência dos artistas greco-romanos antigos na representação da forma humana. A Igreja proibira estas dissecações por considerar o corpo humano um mistério divino. Além disso, ainda receava que representações perfeitas das figuras humanas e mitológicas poderiam levar a uma espécie de retrocesso espiritual, a um retorno à idolatria pagã. Por esta razão, as representações medievais da figura humana parecem tão planas e anti-naturais se comparadas às encontradas na arte do período Clássico e do Renascimento. O único lugar na Itália medieval e renascentista onde se permitiam dissecações científicas esporádicas era na Universidade de Bolonha. Entretanto, para os artistas ambiciosos que não podiam ir a Bolonha ou aqueles para quem estas raras ocasiões não bastavam, a frustração os levava quase sempre a atividades ilegais. Eles contratavam profissionais profanadores de túmulos, criminosos comuns que roubavam cadáveres de prisioneiros recém-executados, tirando-os de suas covas e transportando-os clandestinamente sob a proteção da noite para laboratórios secretos, onde os artistas os dissecavam e exploravam, faziam esboços rápidos à
luz de velas de cada detalhe possível, e se livravam das evidências antes do amanhecer. O grande gênio renascentista por excelência, Leonardo da Vinci, foi levado ao Vaticano em 1513 pelo novo papa, Leão X, que lhe incumbiu de uma série de tarefas para aumentar sua glória e a de sua família. Após três anos morando no palácio papal e explorando Roma, o grande Leonardo não havia produzido quase nada. O papa Leão, furioso, decidiu ter um confronto decisivo de surpresa com o artista caprichoso e intimidá-lo a completar algumas de suas tarefas. No meio da noite, rodeado por vários Guardas Suíços imponentes, o papa invadiu com estrondo os aposentos palacianos privados de Leonardo, acreditando que o acordaria de um sono profundo. Ao invés disso, ficou horrorizado ao encontrar Leonardo bem acordado, com dois ladrões de túmulos, em pleno trabalho de dissecação de um cadáver recém-roubado - sob o mesmo teto do papa. O papa Leão soltou um grito nem um pouco nobre e ordenou aos soldados suíços que empacotassem os pertences do artista e os atirassem, juntamente com o grande Leonardo, para fora dos muros da fortaleza do Vaticano, lugar onde nunca mais poderia pisar. Logo após isto, Leonardo chegou à conclusão de que era provavelmente mais seguro sair da Itália e se mudar para a França, onde passou o resto de seus dias. A propósito, é por este motivo que as pinturas a óleo mais famosas do grande gênio italiano, incluindo a Mona Lisa, estão todas em Paris, no museu do Louvre. Apesar de Sandro Botticelli ser o artista favorito da família liberal de Medici de Florença, uma geração antes de Michelangelo, ele também não tinha a permissão declarada para explorar o corpo humano. Ele escondeu vários segredos em uma de suas pinturas mais famosas - e também uma das mais misteriosas. A pintura é a obra alegórica Primavera. Tal como no caso de A Escola de Atenas de Rafael, foram escritos livros inteiramente dedicados a esta pintura, e cada um deles defende uma interpretação diferente da obra-prima.
rimavera, de Sandro Botticelli, 1481 (galerias Uffizi, Florença) Seu cenário é uma clareira de uma floresta mística, e a ação se desenvolve da direita para a esquerda, começando com o mitológico Zéfiro, o vento da primavera, que transforma Clóris, a ninfa da floresta, em Flora, o símbolo da primavera e da fertilidade. Na seqüência, no centro do quadro, à frente das duas aberturas estranhas entre os galhos do dossel, se encontra Vênus, a deusa do Amor. Pairando sobre a cabeça dela está o Cupido de olhos vendados, prestes a atirar seu arco fálico na figura central das três Graças, a Castidade. Na extremidade esquerda do quadro se encontra o último personagem, Mercúrio, o deus da mudança e da sabedoria oculta, separado dos demais e dissipando as nuvens. Anteriormente ninguém jamais discutiu as estranhas aberturas entre os galhos no centro da pintura, mas é exatamente neste ponto que Botticelli inseriu seu maior segredo, a chave para o entendimento de toda a obra. Se prestarmos atenção na forma, ângulo e justaposição das duas aberturas, aparece uma imagem anatômica muito clara: dois pulmões humanos, exatamente como seriam vistos durante uma dissecação ilegal em um laboratório renascentista clandestino. A pintura, um presente de casamento, celebra o ciclo de vida criado originalmente segundo a tradição judaica e cabalística pelo Ruach HaShem, o Sopro ou Alento Divino, o mesmo alento de vida que criou Adão, o primeiro
humano. Se pudéssemos retirar o quadro de sua moldura e unir as duas extremidades formando um cilindro, veríamos que as nuvens que Mercúrio/Hermes dissipa, no canto esquerdo, se transformam em Zéfiro, no canto direito, mostrando que o Sopro Divino, o Alento da Vida, não tem começo nem fim. Exatamente no meio, emoldurando Vênus e seu pingente de tonalidade vermelho-coração, estão os dois pulmões, reafirmando a conexão entre o amor e a vida. Por isso, esta famosa obra-prima é um dos primeiros exemplos de imagem neoplatônica, que naquela época começava a tomar corpo na Florença livre-pensadora sob o governo do clã de Medici, os mecenas que encomendaram esta pintura.
DECIFRANDO O ESOTÉRICO Nossa próxima categoria de simbolismo secreto das obras renascentistas, de importância primordial para decifrar as mensagens secretas de Michelangelo na Capela Sistina, é o uso do "conhecimento esotérico" - imagens, símbolos e códigos conhecidos apenas por alguns poucos iniciados — para passar uma mensagem secreta que não era direcionada às massas. Algumas destas mensagens secretas já foram reveladas, como o uso do simbolismo maçônico que Mozart fez em sua ópera A Flauta Mágica, e os símbolos maçônicos e cabalísticos que o arquiteto barroco Borromini usou no século XVII em sua Igreja de Santo Ivo em Roma. Outros ainda não foram decifrados, como a "Dama negra" dos sonetos de Shakespeare e a sinfonia "Variações Enigma", de Edward Elgar. Um exemplo bem recente de decodificação de símbolos ocultos em obras de arte bem conhecidas é o dos desenhos do que nós no Ocidente chamamos de tapetes orientais, os belos tapetes com padrões intrincados, encontrados em toda a Rota da Seda, começando pela Turquia e passando pela índia, até chegar à China. Segundo as conclusões da Galeria Textilia, apresentadas em sua exposição e catálogo em Roma e em Nova York em 2005, Il giardino dei melograni (O jardim das romãs), os judeus que fugiam das perseguições mortais da Sagrada Inquisição espanhola em 1492 procuraram uma maneira de preservar os
conhecimentos arcanos da Cabala e sua prática de meditações místicas. Ao encontrar refúgio no Oriente, descobriram a arte de tecer tapetes. Logo depois disso, estes tapetes, desenhados ou encomendados por judeus ou tecidos por artesãos judeus, passaram a ter uma nova aparência. Este estilo inovador incorporou romãs, Escadas de Jacó, Jardins do Éden e Árvores da Vida aos tapetes para torná-los veículos de transmissão da sabedoria proibida da Cabala, assim como instrumentos de meditação cabalística. Estes tapetes, cujo significado real as massas não apreendiam, eram muito apreciados e encontrados em locais bem inusitados. Assim, sem que se dessem conta, os governantes muçulmanos da linhagem Mogul do norte da índia possuíam tapetes judeus cabalísticos em seus palácios reais, e os imperadores confucionistas da China tinham o mesmo simbolismo secreto em enormes tapetes que decoravam o Pavilhão Real, no coração da Cidade Proibida. Um outro exemplo fascinante de conhecimento esotérico adotado pelas pessoas cultas para comunicar secretamente era o uso da linguagem de sinais dos surdos. Um fato desconhecido por muitas pessoas hoje é que os artistas renascentistas italianos não tinham nenhuma dificuldade em trabalhar com seus amigos e colegas com deficiências auditivas. Mesmo hoje, especialmente no sul da Itália, há uma tradição profundamente enraizada de expressão por meio da comunicação não-verbal, pelo uso das mãos, expressões faciais e da linguagem corporal em geral. Em sua época, Leonardo da Vinci encorajou outros artistas com audição perfeita a aprender com a expressividade dos surdos. Conhecemos dois artistas surdos de sucesso da Itália renascentista. Um deles é Pinturicchio, cujos afrescos do século XV aparecem em alguns dos cenários mais prestigiados de Roma, incluindo a Capela Sistina. O outro é Cristoforo de Pretis, que colaborou com seu meio-irmão Ambrogio de Pretis, de audição perfeita. Os irmãos, que trabalharam juntos usando a linguagem de sinais, estavam entre os primeiros a dar as boas-vindas a Leonardo da Vinci quando ele se mudou para Milão em 1483. Eles influenciaram Leonardo grandemente; e, quando ele criou sua primeira obra na nova cidade, no mesmo ano, quis agradecer aos irmãos na língua que eles usavam e que ele passara a admirar. Há até mesmo historiadores de arte que afirmam que Ambrogio de Pretis chegou de fato a trabalhar com
Leonardo na criação desta peça. Este quadro, A Madona das Rochas, se encontra exposto hoje no Museu do Louvre em Paris. Ele retrata a Virgem Maria dentro de uma caverna escura, com duas crianças a seus pés, comumente identificadas como o infante João Batista e o menino Jesus. Ela abraça a criança à sua direita ao mesmo tempo em que abençoa a outra com sua mão esquerda. Junto à sua mão esquerda há um anjo misterioso que protege a criança enquanto aponta para o outro lado da pintura, para a criança do outro lado de Maria. O bebê sob as mãos de Maria e do anjo levanta sua mão e com dois dedos faz um gesto de bênção para a outra criança. Leonardo, certamente empolgado pela sua recente descoberta da linguagem de sinais, incorporou vários gestos feitos com as mãos nesta obra. Algo que muitos observadores e até mesmo especialistas em arte não sabem é que Leonardo assinou esta obra "escrevendo" seu nome. O alinhamento vertical das três mãos no lado direito da pintura forma uma linha reta descendente: Maria anjo menino Jesus. A mão de Maria, fazendo uso da linguagem antiga de sinais, escreve a letra L. A mão do anjo forma a letra D, e a mão do menino Jesus, a letra V. Assim, temos as iniciais LDV: Leonardo da Vinci. Os leitores céticos que duvidam que a mão de Maria forme a letra L não precisam de outra prova além da escultura gigante de Abraham Lincoln no Lincoln Memorial em Washington, DC. A estátua foi criada por Daniel French, o mesmo artista que fez a escultura de Thomas Gallaudet, o fundador da universidade epônima para surdos em Washington, que ensinou uma garotinha a soletrar com as mãos, mostrando o sinal para a letra A. Na escultura monumental de Lincoln feita por French, as mãos do Grande Emancipador (a esquerda e a direita, respectivamente) assinam as suas iniciais, A e L, usando o mesmo sinal antigo para a letra L que Leonardo pintara séculos antes.
Esquerda: A Madona das Rochas, de Leonardo da Vinci, 1483 (Museu do Louvre, Paris). Direita: Lincoln, de Daniel French, 1920 (Lincoln Memorial, Washington, DC).
A MÁGICA DOS EFEITOS ESPECIAIS Havia uma outra estratégia de codificação nas obras renascentistas que envolvia cenários com "efeitos especiais" ambientais. As mensagens eram engenhosamente inseridas para que pudessem ser vistas apenas quando alguém estivesse in situ, ou seja, no exato local onde o artista queria que o espectador estivesse para entender a intenção verdadeira. Geralmente o efeito era obtido com a luz que entrava pela janela do local e a maneira como ela incidia na pintura, iluminando a obra tanto literal quando figurativamente. Leonardo usou a luz desta maneira em seu afresco A Última Ceia, e no século XVII Caravaggio se tornou mundialmente famoso pelo uso deste efeito especial. Mais adiante, veremos como Michelangelo fundamentou todo o conceito, o desenho e as alterações da sua escultura de Moisés na interação desta obra com a fonte de luz de um local pré-determinado.
Outro efeito semelhante é a anamorfose. Trata-se de uma técnica admirável que faz com que a imagem "se transforme" em outra forma ou imagem quando o espectador a observa de um ângulo diferente. Somente artistas altamente talentosos e com conhecimento de óptica eram capazes de criar este efeito. Certamente Leonardo era um deles. Um de seus primeiros trabalhos, A Anunciação, que hoje se encontra nas Galerias Uffizi em Florença, era considerado até recentemente uma obra cheia de falhas porque o braço direito da Virgem é desproporcionalmente longo, suas pernas parecem se confundir com o banco onde está sentada em uma posição estranha e o anjo está tão distante de Maria que eles parecem estar em dois quadros diferentes. Na verdade, quando observada sem atenção ou em um livro, tem-se a impressão de que a obra é desproporcionalmente alongada. Somente poucas pessoas que perceberam que Leonardo ocultara uma anamorfose gigante nesta pintura roram capazes de provar que se trata na verdade de uma obra-prima única. Em seu recente guia das Galerias Uffizi, Francesca Marini revela: "Somente se percebermos que a pintura em seu cenário original tinha de ser observada de baixo e do lado direito, é que as anomalias desconcertantes desaparecem e vem à tona uma harmonia, nada comum naquela época, das mensagens em perspectiva da obra de arte em relação ao local ao qual estava destinada." A única maneira de vivenciar o que Leonardo diz em A Anunciação é interagindo com a pintura real. Quando o espectador fica de pé do lado direito do quadro, o mais próximo possível da parede, e olha para a pintura com o canto do olho, toda a obra ganha uma vida surpreendente. O braço de Maria tem o comprimento apropriado, o anjo se encontra bem mais próximo dela, e as pernas de Maria se unem, enquanto sua barriga parece menor e mais plana; ou seja, ela é de fato uma virgem. À medida que se caminha da direita para a esquerda, em frente do quadro, as pernas de Maria parecem se abrir e sua barriga aumenta de tamanho. Quando se chega na extremidade esquerda da pintura, o anjo se afasta de Maria, e então, a saia da mulher, agora em gravidez adiantada, se parece com a manjedoura, ou o berço rústico do presépio. Veremos mais adiante como Michelangelo fez uso da anamorfose para ocultar uma de suas mensagens secretas na Sistina.
A Anunciação, de Leonardo da Vinci, 1472 (Galerias Uffizi, Florença). Veja a figura 4 do encarte. O último efeito especial que precisamos explorar aqui é o trompe l'oeil, expressão francesa que significa "enganar o olho". Em termos simples, é a técnica altamente difícil de fazer com que uma imagem bidimensional, tal como uma pintura de um afresco, pareça ser tridimensional. Um trompe l'oeil pode ser uma perspectiva falsa, capaz de atrair a visão do espectador através da superfície da pintura para dentro do espaço representado, às vezes dando a impressão de chegar até o infinito. Todos os nichos dos papas pintados na decoração original do século XV da Capela Sistina possuem este tipo de ilusão ótica. De fato, muitos visitantes ficam surpresos ao descobrir que não são nichos arquitetônicos reais. O trompe l'oeil pode ser também uma ilusão de projeção, fazendo com que a imagem pareça se elevar acima da superfície da parede ou da tela. Este efeito é bem mais difícil de ser obtido, e por isso seus exemplos são raros. Um dos triunfos desta técnica é o Jonas de Michelangelo, que ocupa lugar de honra na parede frontal da Sistina. Não é possível perceber ou apreciar este efeito que o artista conseguiu em reproduções, pois ele só se torna evidente quando o original é visto dentro da própria capela. O significado e a razão pela qual Michelangelo usou tal efeito serão explicados quando discutirmos os segredos judaicos da Capela Sistina.
Como todos estes efeitos especiais requerem muito tempo e energia a mais, o artista geralmente os incorporava em uma obra de arte quando tinha em mente mais que uma mera demonstração de virtuosismo. Um estudo cuidadoso sempre nos leva a descobrir uma mensagem inesperada contida na imagem — como sempre, para os que tenham o conhecimento necessário para entendê-la. As vezes isto significava inserir na obra a assinatura do artista, ou a pessoa amada, uma alusão sexual ou uma piada, um insulto grosseiro ao mecenas ou aos que detinham o poder; e por vezes significava fazer uma declaração bem mais profunda - geralmente proibida - e por isso bem mais perigosa. Fizemos esta viagem ao mundo secreto dos códigos em arte com um intuito essencial: demonstrar que Michelangelo seguia os passos de Botticelli, Leonardo e muitos outros contemporâneos ao povoar suas obras de símbolos secretos. Ele tinha muitos motivos para ocultar idéias perigosas e camuflar mensagens ousadas, motivos que explicaremos extensamente. Porém, o que torna tudo isso mais fascinante e relevante para nosso tema é que o lugar onde ele inseriu o maior número destas mensagens secretas foi também o local mais inesperado e perigoso do mundo para tais atos subversivos: a capela particular da corte papal no Palácio Vaticano, a Capela Sistina. Foi neste local que Michelangelo apresentou a melhor prova de sua genialidade. Para as massas, estes afrescos proporcionavam - como ainda hoje proporcionam — encantamento e beleza incomparáveis. Entretanto, para os que são suficientemente perspicazes para entender as mensagens mais profundas inseridas nesta obra-prima multifacetada, há recompensas bem mais grandiosas.
Capítulo Três NASCE UM REBELDE Eu vivo e amo na luz singular de Deus. — MICHELANGELO O Q U E M O L D A U M A C R I A N Ç A da Itália no século XV e a faz se tornar o artista mais revolucionário e o revolucionário mais artístico de seu tempo? A
resposta é determinada pela família, pelo seu nome ou está predestinada pelo horóscopo? Os que dão ênfase à hereditariedade devem admitir que, às vezes, o fruto cai na verdade bem longe da árvore. A árvore da família Buonarroti estava cheia de tudo, menos de artistas. Um dos primeiros ancestrais foi um conselheiro em Florença, outro um monge dominicano e um terceiro foi um agiota. Um de seus bisavôs, Simone di Buonarrota, foi um mercador de lã e trabalhava com câmbio. Este Simone foi talvez o galho mais alto da árvore: ele se tornou rico e tinha sucesso na sociedade, ganhando muitas honras para a família por emprestar dinheiro ao governo de Florença. Entretanto, seu filho Lionardo era a ruína da família. Ele não era um grande homem de negócios, e gerou tantas filhas que seus dotes de casamento quase levaram a família à falência. Eles perderam a casa prestigiosa que possuíam em Florença, e Lionardo, para pagar suas dívidas, teve de aceitar cargos degradantes de magistrado em vilas rurais bem longe das ruas elegantes de Florença. Seu filho, Ludovico, herdou a sua má sorte e o pouco tino para os negócios. Ele foi relegado ao posto de magistrado local da remota Caprese, nas montanhas toscanas, perto de Arezzo. Caprese significa "cheio de cabras", pois esta área rústica provavelmente tinha mais cabras monteses do que habitantes humanos. Isto representou uma queda abrupta no status da linhagem Buonarroti, anteriormente abastada. Foi neste local, entre as montanhas rochosas acidentadas e os talhadores de pedra rudes que trabalhavam nelas, que a esposa de Ludovico, Francesca di Neri, deu à luz seu primeiro filho um pouco antes do amanhecer de um dia de inverno. Ludovico, um funcionário que sempre prezava pelas minúcias, registrou com precisão: "Registro que hoje, dia 6 de março de 1474, nasceu meu filho, a quem dei o nome de Michelagnolo. [...] Faço a observação de que a data de 6 de março de 1474 é segundo o calendário florentino, que conta a partir da Encarnação; e que o ano é 1475 de acordo com o calendário romano, que conta a partir da Natividade." Mesmo em um momento que normalmente seria de alegria para alguém que se tornou pai pela primeira vez, Ludovico estava claramente ainda muito preocupado em demonstrar as suas raízes florentinas "nobres".
Florença e Roma sempre tiveram mentalidades bem divergentes, mas isso se deu de maneira especial na Idade Média e durante o Renascimento. Na época, os florentinos baseavam o ano 1 de seu calendário no evento da Encarnação, quando, segundo a tradição da Igreja, Maria engravidou por obra do Espírito Santo, unindo desta forma o Jesus divino ao Jesus humano em seu ventre. Entretanto, o calendário romano era baseado na Natividade, ou seja, no ano do nascimento de Jesus, assim como é em nossos dias. Esta divergência é uma metáfora apropriada para os dois modos de pensar da época de Michelangelo: a Florença renascentista era o lugar da filosofia humanística e inclusiva (por exemplo, a união do sagrado e do carnal no ventre), ao passo que Roma era o centro dos ensinamentos supremacistas e excludentes (como o parto, ou seja, o bebê separado do ventre). Já na ocasião de seu nascimento Michelangelo se viu dividido entre estas duas cidades e suas mentalidades. Ludovico não chega nem mesmo a mencionar sua esposa, a mãe do menino. Com certeza foi um nascimento difícil, como quase todos os partos da época. A escolha do nome do recém-nascido nos dá uma pista. O arcanjo Miguel era considerado pela tradição católica o anjo da cura e o portador das chaves da vida e da morte. Dar ao bebê o nome de Michelagnolo (forma de "Michelangelo" no dialeto florentino) significou que a saúde da mãe - e muito provavelmente a sua própria vida — estava em risco. O que Ludovico provavelmente não sabia é que a tradição judaica ensina que Mikha-el ha-Malakh, o anjo Miguel, é o defensor do povo judeu contra seus inimigos mortais. Michelangelo certamente aprendeu isto posteriormente em Florença; e, conforme veremos, isto teve um efeito que repercutiu profundamente pelo resto de sua vida. Logo depois, Ludovico entregou o bebê a uma ama-de-leite, uma jovem da aldeia de uma família local de cortadores de pedra. Décadas mais tarde, Michelangelo se divertiria com seu amigo e biógrafo, o artista Giorgio Vasari, dizendo: "Giorgio, se por acaso eu tenho alguma inteligência, é porque eu nasci no ar puro da Arezzo onde você também nasceu, e foi também por causa do leite que tomei da minha ama-de-leite que aprendi a usar o martelo e os cinzéis para esculpir minhas figuras."
Michelangelo recebeu pouco afeto de sua família. Seu pai era distante e a sua mãe adoentada faleceu quando ele tinha apenas 6 anos. Michelangelo permaneceu sempre obcecado pela idéia da família, sem jamais se aproximar emocionalmente de seu pai, sua madrasta ou de seus irmãos. A única ligação que sentia com eles vinha das histórias que ouvira sobre a suposta glória ancestral da sua linhagem. Pelo resto de sua vida, ele passaria gastando seus ganhos consideráveis tentando restaurar a fortuna perdida dos Buonarroti, suas propriedades e sua posição social. Isto o colocava em concorrência direta com seu próprio pai pela posição de líder de fato da família, e foi a causa de atritos constantes entre eles. Segundo Vasari, até mesmo as estrelas e os planetas reservaram um destino único para Michelangelo. A introdução da biografia de Michelangelo escrita por Vasari se parece com a descrição do evangelho de João do nascimento de Jesus. Vasari descreve Deus olhando dos céus para todos os artistas, poetas e arquitetos do mundo trabalhando de maneira equivocada, e decidindo por sua misericórdia enviar um espírito de verdade, talento e sabedoria para mostrar o caminho a eles. Não é de se admirar que no século XVI as pessoas falassem e escrevessem sobre o "Divino Michelangelo". O biógrafo ressalta que Michelangelo nasceu sob o signo de Júpiter (ou seja, Peixes), e com Mercúrio e Vênus como ascendentes. Há também uma tradição oral judaica sobre a influência das estrelas e dos planetas. Segundo a Agadá, as lendas dos sábios, os nascidos no segundo dia da semana (segunda-feira, quando Michelangelo nasceu) teriam um mau temperamento, porque foi no segundo dia da Criação que as águas foram divididas, e a divisão é um sinal de disputa e animosidade. A seguir, diz que quem nasce sob Júpiter (chamado Tzedek, ou "retidão" em hebraico) seria um tzadkan, um justo defensor da verdade, enquanto a influência de Vênus concede riqueza e sensualidade, e Mercúrio traz intuição e sabedoria. Esta foi uma previsão acertada da vida e da carreira de Michelangelo: ele tinha um temperamento forte, sempre se levantou a favor dos desvalidos, tornou-se rico e famoso por seus retratos sensuais do corpo nu (geralmente o masculino) e demonstrou um conhecimento profundo das verdades espirituais esotéricas.
Dois outros traços vitais nos ajudam a compreender o íntimo de Michelangelo. Ele tinha uma memória visual extraordinária (que chamaríamos hoje de memória fotográfica) e também uma tenacidade emocional muito sólida. Esta última característica fazia dele um amigo leal, um artista apaixonado e um romântico sofredor. No pensamento talmúdico e cabalístico, quase todas as coisas têm um aspecto positivo e um negativo. Os sábios antigos usavam com freqüência as expressões "por um lado" e "por outro lado". No caso de Michelangelo, por um lado seus elos inquebrantáveis com as idéias, pessoas e imagens que estimava o tornaram um artista incomparável e um defensor da verdade por toda a vida. Por outro lado, os mesmos laços inquebrantáveis o tornaram um neurótico solitário, melancólico e obsessivo. Com apenas 13 anos, Michelangelo já travava com seu pai uma guerra de interesses. Ludovico queria que ele estudasse gramática e contabilidade para se tornar um membro e funcionário das guildas florentinas de seda e lã. Isto não era uma grande ambição, mas uma ocupação relativamente respeitável da qual a família podia depender. O amor de Michelangelo pelo visual já o deixara com uma fixação pelo ofício de cortador de mármore, e ele passava a maior parte do tempo em sala de aula desenhando em vez de fazer seus exercícios de gramática e matemática. Ludovico o castigava e batia no garoto com freqüência, mas de nada adiantava: o pequeno Michelangelo não conseguia pensar em mais nada a não ser em se tornar um artista. Seu pai, desgostoso, se deu por vencido e o levou a Florença para inscrevê-lo como aprendiz principiante na bottega, ou oficina de artistas, de Domenico Ghirlandaio, um dos artistas integrantes da equipe que pintou os afrescos da nova Capela Sistina do papa Sisto IV. O único consolo de Ludovico era que seu filho ganharia 24 moedas de ouro (florins) em seus três anos de aprendizado, e que ele próprio receberia um pequeno pagamento no dia que entregasse o menino à bottega. Era uma espécie de servidão paga, mas ao menos este menino que se recusava a aprender uma "profissão útil" traria um pouco de renda para a família. Aos 13 anos, idade em que os meninos judeus assumem as responsabilidades de um adulto, a infância do jovem católico Michelangelo Buonarroti chegou ao fim. Nos anos seguintes, ele foi contratado para polir cores, misturar gesso e tintas,
carregar escadas e tudo o mais que seus mestres pediam que fizesse. Sua família se livrara dele por umas poucas moedas. Porém, para sua grande sorte, ele se encontrava então em Florença. Na Europa do século XV, chegara ao centro exato do mundo da cultura, da arte e das idéias: ele estava entrando no coração do Renascimento. Por um lado, a sua jornada estava apenas começando. Por outro, ele se sentia em casa.
Capítulo Quatro UMA EDUCAÇÃO MUITO ESPECIAL Eu ainda estou aprendendo. — MICHELANGELO H Á 2 M I L A N O S , os antigos romanos chegaram a um terreno baixo ao norte de Roma entre dois rios. Estes dois cursos de água abençoaram a terra à sua volta, dotando-a de uma vegetação tão exuberante que eles a chamaram de Florentia, ou "floração". Muito antes da chegada de Michelangelo a este local, o nome passara a ser Firenze - que nós chamamos hoje de Florença. O fluxo conjunto dos dois rios é descrito por uma palavra: confluência. Este termo tem dois sentidos principais: 1. qualidade do que é confluente; do que flui em direção a (outro), ao qual tende a se juntar 2. fato de se convergirem (dois ou mais fluxos de água, geleiras ou correntes marinhas), convergência Estas duas explicações descrevem com precisão a singularidade da Florença medieval. Para ser mais exato, é verdade que os dois rios, o Mugnone e o Arno, este último bem mais famoso, não se juntam exatamente em Florença. Entretanto, em um período, tantas grandes mentes e talentos confluíram nesta cidade que a união das correntes de inspiração ocasionou o renascer da civilização ocidental: o Renascimento.
O centro histórico de Florença é tão pequeno que é possível caminhar por toda a sua extensão — da Santa Maria Novella até Santa Croce - em cerca de 20 minutos. Porém, a convergência fortuita de tantas personalidades e eventos extraordinários nesta área diminuta produziu o florescimento das artes, das ciências e da filosofia que ainda influencia o mundo em nossos dias. Esta confluência totalmente imprevista de eventos preparou o palco deste momento histórico notável e fascinante. Por mais estranho que pareça, uma parte significativa dela tem raízes em Roma.
O EXÍLIO DO PAPADO E O RETORNO A ROMA Em 1304, o papa Bento XI, segundo relatos confiáveis da época, foi envenenado por figos servidos a ele em uma travessa por um belo jovem vestido com roupas femininas. Se o relato for verdadeiro, os figos foram provavelmente enviados por Carlos II, rei da França, que tentava já havia algum tempo assumir o controle da Igreja Católica e conquistar o poder absoluto sobre o mundo cristão. O que sabemos com certeza é que o papa seguinte, Clemente V, imediatamente transferiu a corte papal para a França. Ele estabeleceu um novo palácio em Avignon, onde o papado manteve a sua sede pelos 73 anos seguintes. Este período é designado pelos italianos como o "exílio babilônico" do Vaticano. O poeta Dante Alighieri ficou furioso por causa desta traição à Itália, e em seu poema épico Inferno colocou Clemente e outros papas pró-França nos círculos infernais. Nele, descreve Clemente como un pastor sanza legge - um pastor ilegítimo - e seus apoiadores como sempre prestes a puttaneggiar coi regi - se prostituir com os reis terrenos. De fato, Dante compara o papa Clemente a Jasão, o governante ilegítimo de Israel, coroado pelos inimigos selêucidas dos judeus, conforme descreve o livro de Macabeus. O período dos papas de Avignon, um dos piores momentos da história da Igreja, foi manchado por escândalos horrendos, violência, intrigas e assassinatos. Finalmente, em 1377, o papa Gregório XI trouxe o papado de volta a Roma. A realeza da França continuou suas tentativas de forçar a Igreja a voltar para Avignon, por meio de suas intrigas, envenenamentos e eleições de papas
franceses (chamados de anti-papas por Roma) até os meados do século seguinte. Além destes problemas, pragas e escândalos, o crescimento do império muçulmano turco ameaçou seriamente o futuro do Vaticano. A esperança renovada veio com o papado de Sisto IV della Rovere (1414-1484), o tio do futuro papa Júlio II, que deu início à reconstrução de Roma. Apesar de Sisto pretender a sua glorificação e a de sua família - e juntamente com isso tornar todo o seu clã dono de uma riqueza obscena ele foi o primeiro a dar início a uma séria renovação urbana de Roma desde a queda do império, ocorrida cerca de mil anos antes. A partir de Sisto, Roma seria considerada a capital inconteste do mundo católico. Foi durante este período frenético de construção que muitos tesouros da Roma antiga pagã foram acidentalmente descobertos. Apenas com as escavações para os novos alicerces de uma área de Roma, foram encontradas duas estátuas de valor inestimável: o Torso de Belvedere e o Apolo de Belvedere, as quais estavam destinadas a produzir um grande impacto no jovem Michelangelo. Ao trazer estas obras antigas de volta à luz, a reconstrução de Roma também trouxe de volta as artes clássicas para o mundo ocidental. Brevemente, entre os ricos e os poderosos desenvolveu-se uma obsessão por qualquer coisa que tivesse origem na antigüidade greco-romana. O próximo desdobramento lógico foi encontrar talentos capazes de reproduzir a beleza das obras de arte originais, mas dentro dos limites rigorosos do pensamento cristão oficial.
A QUEDA DE BIZÂNCIO O último vestígio do vasto império romano na Idade Média foi Constantinopla (hoje Istambul, na Turquia), fundada pelo imperador Constantino. Ele proclamou o cristianismo a religião oficial no ano 313, quando reintegrou o império e se tornou o imperador absoluto. Contrário ao que dizem as lendas da igreja, segundo alguns historiadores cristãos, Constantino jamais se tornou completamente cristão e permaneceu parcialmente pagão até ser batizado contra sua vontade em seu leito de morte em 337 d.C. Ironicamente, ele fez o império refletir a sua vida religiosa um tanto esquizofrênica. Ele dividiu
permanentemente o império entre o Ocidente cristão, governado por Roma e pelo papa, e o Oriente pagão, governado política e militarmente por sua nova capital cristã Constantinopla, batizada com seu nome. Menos de um século mais tarde, hordas de bárbaros invadiram Roma no horrível saque do ano 410. Roma jamais se recuperou deste trauma e cambaleou até chegar a seu fim absoluto em setembro de 476, quando um jovem imperador foi forçado por um rei bárbaro a abdicar do trono. Por um golpe irônico do destino, este último imperador era chamado Rômulo, o mesmo nome do fundador de Roma. Assim, a história de Roma chega a seu fim após 13 séculos. Felizmente, no Oriente, Constantinopla sobreviveu e manteve acesa a chama da civilização ocidental, apesar de muitas lutas internas e das intrigas políticas. O império oriental adotou o nome de Bizâncio. Em um reflexo de sua história tortuosa, em inglês o adjetivo bizantine é usado hoje para fazer referência à corrupção arraigada e misturada com estratagemas políticos de traição. Não é de se surpreender que esta palavra também seja usada para descrever a corte do Vaticano dos tempos de Michelangelo. Por mais estranho que possa parecer, foi a própria Igreja que aplicou os piores golpes na Constantinopla cristã. Os cavaleiros ocidentais da Quarta Cruzada, sob a direção do papa autocrático Inocêncio III, saquearam a cidade e a destroçaram no início do século XIII, como parte do plano do papa para que o Vaticano conquistasse o domínio mundial absoluto. Enfraquecida por Roma e internamente corroída pela corrupção, a Constantinopla bizantina claudicou até a conquista dos turcos muçulmanos em 1453. Mais uma vez a história pregou uma peça com os nomes dos protagonistas. O conquistador de Bizâncio foi Maomé II, e seu último imperador cristão foi um outro Constantino. O saque turco da cidade condenada durou muitos dias. Os estupros e os assassinatos de cristãos horrorizaram de tal maneira o Ocidente que ainda hoje é uma memória dolorosa; chegou até mesmo a servir como um grito de guerra em algumas partes do Leste Europeu nos séculos XX e XXI. Todos os intelectuais, cientistas e artistas que tinham condições de fugir para o Ocidente aproveitaram a oportunidade e trouxeram consigo muitos artefatos e relíquias preciosas, mas o
mais importante foram os textos de valor inestimável e documentos antigos essenciais que representavam o melhor do pensamento clássico. Dois destes textos só puderam sair do novo Império Islâmico Otomano graças a muitos riscos e um número bem maior de subornos. Eles tiveram um efeito enorme na Renascença e em sua arte, inclusive no que vemos hoje na Capela Sistina. Um destes textos salvos foi o Corpus Hermeticus, os escritos do místico egípcio Hermes Trimegisto. O outro era uma coleção de escritos do grande filósofo grego Platão. O homem que pagou uma fortuna por estes textos e por seu transporte clandestino para a Itália foi Cosimo de Medici, um dos mais ricos da Europa. Sua ascensão e as realizações de sua família são a próxima peça deste mosaico histórico da Florença da época de Michelangelo.
ENTRAM EM CENA OS DE MEDICI Por um lado, parecia que a família de Medici tinha muito em comum com a de Michelangelo, os Buonarroti. Ambas pertenciam a clãs florentinos muito antigos, e embora estas duas famílias não tivessem raízes nobres, gostavam de acreditar que faziam parte da nobreza, ansiando por uma grande aceitação social. Por outro, é neste ponto que as semelhanças terminam. Enquanto os integrantes da família Buonarroti eram em sua maioria desprovidos de aptidão para os negócios e para as finanças, os do clã de' Mediei rapidamente ascenderam: de mercadores de lã passaram a prestamistas e depois aos maiores banqueiros da época segundo muitos, eles eram de fato a família mais rica de toda a Europa. O fundador da fortuna da família foi Cosimo, o Velho. Foi ele também quem colocou a família no caminho da governança não-oficial da cidade de Florença e da encomenda de grandes obras de arte. A família de Michelangelo nunca aprendeu a navegar na alta sociedade e, com exceção do próprio artista, todos consideravam as artes uma frivolidade e um desperdício de tempo e dinheiro. Foi Cosimo, o Velho, quem descobriu os grandes artistas Donatello e Botticelli. Ele patrocinou Brunelleschi, arquiteto brilhante e excêntrico, e sua fabulosa cúpula da catedral (ainda hoje uma maravilha da engenharia, após seis séculos) e
também pagou para levar a Florença os dois textos antigos, o de Hermes Trimegisto e a coleção de escritos de Platão.
Detalhe do quadro A Viagem dos Magos, de Benozzo Gozzoli, 1459 (Palazzo Medici-Riccardi, Florença). Cosimo está vestido depúrpura real e, assim como Cristo, cavalga humildemente em um burro, mas tem a seu lado seu servo 'exótico" e seu arco do poder. Enquanto ele segura firmemente as rédeas do controle, é acompanhado por seu séquito, que inclui seus dois filhos, Lorenzo e Giuliano, seus professores e várias figuras judias majestosas. Veja a figura 6 do encarte. Cosimo tomou o jovem erudito Marsilio Ficino sob sua proteção, confiando a ele a tradução de Hermes Trimegisto e de Platão para o latim. Sob o mecenato de Cosimo, Ficino não só fez as traduções, como se tornou um filósofo por seus
próprios méritos, fundando em Florença um equivalente da antiga Academia de Platão, também conhecida como a Escola de Atenas, graças ao patronato de Cosimo de Medici. Cosimo realizou um outro feito importante, quase totalmente desconhecido nos dias de hoje, mas extremamente controverso em seu próprio tempo. Seu ato foi de grande importância para Florença, para o vigor de seu clima e conteúdo intelectual, e posteriormente para a educação de Michelangelo: ele levou os judeus a Florença.
UMA CONFLUÊNCIA DE CULTURAS Antes de Cosimo de Medici, a República de Florença impedia os judeus de morar ou trabalhar na cidade, e as poucas exceções eram alguns médicos e tradutores. Famílias católicas ricas de prestamistas, como os Strozzi e os Pazzi, mantinham os judeus que trabalhavam com o câmbio e empréstimo de dinheiro fora da cidade, não apenas por preconceito religioso, mas também por medo da concorrência. Como a Igreja reprovava a usura entre os católicos romanos, as famílias cristãs de banqueiros da Toscana se especializaram no empréstimo apenas para a realeza estrangeira e para o comércio internacional. Isto deixou o caminho totalmente livre para que os judeus emprestassem para os cidadãos comuns e para os pobres. A camada mais alta de Florença não tinha nenhum interesse em trabalhar com o "povão", mas também não queria que ninguém mais fizesse negócios com eles. Em 1437, Cosimo assumiu o controle da cidade - não pela força, mas por meios econômicos e pelo poder de sua personalidade. Ele dizia que Florença ainda era uma república administrada por famílias nobres e ricas e pelas grandes guildas (como a dos mercadores de lã), mas na realidade ele governava a cidade como uma espécie de rei-filósofo benigno, muito próximo da visão de Platão em seu livro utópico, ironicamente intitulado A República. Ao trazer os judeus para a cidade, Cosimo conquistou o coração dos cidadãos florentinos comuns. Eles puderam então obter empréstimos assim como os "peixes grandes" e tinham então a tão sonhada oportunidade de saldar dívidas
altíssimas, comprar casas, começar ou expandir seus negócios ou investir em negócios de outros. Quanto aos judeus, a partir deste momento seu destino estaria ligado para sempre ao da família de Medici. Em duas épocas diferentes, quando esta família foi expulsa da cidade por seus inimigos (apoiados pelo Vaticano), os judeus partiram com eles. Quando os de Medici tomaram novamente o poder da cidade, os judeus se mudaram de volta com eles. Além de empréstimos fáceis para as pessoas comuns, os judeus trouxeram uma dádiva bem mais duradoura: sua cultura e seu conhecimento esotérico. Por mais entusiasmados que Cosimo, Ficino e o seu círculo intelectual estivessem para estudar Platão, eles estavam absolutamente extasiados por ter o acesso à sabedoria profunda anterior a ele. Além disso, o conhecimento esotérico e espiritual judeu podia ser aprendido também com representantes vivos desta cultura. Isto era muito mais estimulante e inspirador do que traduzir textos de uma sociedade há muito extinta. Em pouco tempo os judeus podiam ser vistos estudando Platão e harmonizando suas idéias com as do judaísmo, assim como Maimônides fizera com os conceitos de Aristóteles três séculos antes. Os florentinos católicos passaram a estudar o hebraico, a Torá, o Talmude, o Midrash e a Cabala mística, sua favorita. O professor Roberto G. Salvadori descreve assim em seu livro sobre a história dos judeus em Florença: "Estudos recentes revelaram o que era oculto e desconhecido até pouco tempo atrás: a vitalidade e a variedade das manifestações culturais judaicas em muitas cidades italianas dos séculos XV e XVI, as quais atingiram o seu apogeu em Florença. [...] Os humanistas florentinos - e particularmente os que se reuniam em torno da Academia Platônica - eram fortemente atraídos pelo judaísmo [e] pela língua hebraica como um veículo de valores que consideravam extremamente importantes." Os judeus eram procurados para dar aulas particulares e para debates públicos, saraus, festas, palestras e retiros intelectuais. Os dominicanos de Florença e o Vaticano ficaram escandalizados, e tinham então um motivo a mais para desejar a morte de todo o clã de Medici. A sabedoria judaica era procurada até mesmo pelos grandes pintores e escultores cristãos, apesar de os próprios judeus, seguidores da lei da Torá, não criarem
nenhum tipo de arte. Em uma coleção de livros recente e prestigiada sobre história da arte, Losapevi dell'arte: Simboli e Allegorie — prima parte (Você sabia sobre a arte: símbolos e alegorias — primeira parte), a introdução contém a seguinte afirmação: "As imagens simbólicas dos séculos XV e XVI foram profundamente influenciadas não apenas pelos mitos greco-romanos antigos, como também pela filosofia de Platão e pelas tradições esotéricas e herméticas derivadas da Cabala dos judeus." Esta fermentação espetacular de culturas e idéias se tornou uma confluência de arte, ciência e filosofia espiritual - e liberou impulsos criativos que mudaram o mundo. Quatro séculos mais tarde, em 1860, o grande historiador Jacob Burckhardt daria a este período fantástico o nome de "Renascimento".
LORENZO, O MAGNÍFICO Após a morte de Cosimo de Medici, seu filho Piero, chamado de "O Gotoso", pouco fez além de promover grandes banquetes com pratos sofisticados. Felizmente para o futuro da família, Piero morreu apenas cinco anos após a morte de Cosimo - de gota, naturalmente. Ele deixou a rede de bancos internacionais da família e outros negócios em total desordem. A família tinha também uma horda de inimigos, como os antigos clãs florentinos de nobres ricos, os Strozzi e os Pazzi, que já haviam fracassado na tentativa de assassinar Cosimo anos antes. O peso de todos estes problemas e responsabilidades caiu sobre os ombros de Lorenzo, o mais velho dos dois filhos de Piero. Lorenzo tinha apenas 20 anos na ocasião e teria preferido muito mais ir a festas ou escrever poesia, mas imediatamente assumiu o papel duplo de patriarca da família e padrinho não-oficial de Florença. Ele fazia questão de que suas portas estivessem sempre abertas para as pessoas comuns e concedia favores a todos que vinham como amigos. Este foi um investimento em segurança e em política que renderia benefícios no futuro. Ele deu continuidade à tradição de seu avô Cosimo de se cercar da grande arte e grandes artistas. Lorenzo havia então se casado recentemente com Clarice Orsini, de uma linhagem antiga da nobreza romana, e desta maneira fez com que a Casa de Medici melhorasse sua posição
social e ganhasse apoio político, comercial e até mesmo militar da classe alta. O casamento, um evento social suntuoso, digno de um imperador romano, sedimentou a idéia que o público tinha dos de Medici como a "família real" de Florença. O jovem casal era atraente, educado, elegante e extremamente carismático. Os dois estavam rodeados por suas famílias modernas, sofisticadas e efervescentes e por sua "corte imperial" formada pelos melhores e mais brilhantes artistas, pensadores e escritores da Europa. Eles deram a Florença a sensação de uma nova era dourada, comparável em vários aspectos ao espírito popular nos Estados Unidos cinco séculos mais tarde, quando a família Kennedy fez de Washington uma espécie de "corte de Camelot". Entretanto, dois grupos em Florença não estavam contentes com a ascensão da Casa de Medici. Um deles era um rival antigo, o clã Pazzi. O outro grupo era formado pelos fanáticos monges dominicanos que administravam a Igreja de San Marco, situada a poucos metros do palácio secular dos de Medici, liberais e apreciadores de diversão, bem no centro da cidade. Os dois grupos estavam destinados a lançar uma sombra escura sobre Lorenzo e seu círculo familiar e de amigos. Em 1471, Lorenzo representou sua família e Florença ao homenagear o papa recém-eleito, ninguém menos que Sisto IV, o fundador da Capela Sistina. No Palácio Apostólico, Lorenzo sentiu-se inspirado não apenas pelos rituais religiosos, mas pela coleção impressionante de esculturas romanas pagãs antigas do papa. O pontífice, querendo impressionar ainda mais o jovem e rico "lorde de Florença", deu a ele duas estátuas romanas, ambas quebradas, mas ainda incomparavelmente belas. Após retornar à sua casa, seguindo a sugestão de Ficino, Lorenzo fundou uma bottega (oficina e ateliê) para artistas no Jardim de San Marco, bem abaixo dos narizes dos dominicanos indignados da igreja e do mosteiro ao lado. Na direção, ele colocou um velho pintor-escultor chamado Bertoldo di Giovanni, um dos últimos alunos do grande Donatello, da época do avô de Lorenzo. Em seu jardim, juntamente com sua crescente coleção de peças antigas, Lorenzo colocou as duas estátuas romanas que ganhara do papa Sisto. Poucos anos mais tarde,
estas estátuas serviriam de inspiração para um aprendiz adolescente chamado Michelagnolo Buonarroti.
Lorenzo e os Artistas de sua Corte, de Ottavio Vannini, 1685 (Palácio Pitti, Florença). Apesar de estar rodeado pelos melhores e mais brilhantes professores, filósofos, pintores, engenheiros e cientistas, Lorenzo olha apenas para um deles e indica o seu favorito, o jovem Michelangelo, que o presenteia com o busto de um fauno. Esta bottega de esculturas, também conhecida como o Jardim de San Marco, logo se tornou parte da imagem popular de Lorenzo, a quem os florentinos chamavam de Il Magnífico (O Magnífico). Este título honorífico nada tinha a ver com a idéia de divindade ou poder político, mas com uma variante toscana de "munificente", significando alguém que sabe como gastar bem seu dinheiro, um grande filantropo e um grande patrono das artes. Logo a bottega se tornou um destino obrigatório de artistas, filósofos, poetas e cientistas - ou seja, um manancial de atividades intelectuais e liberais. As maiores mentes freqüentavam o local e sempre davam palestras - e quase nenhuma delas tinha a ver com a escultura. Hoje há um debate acalorado entre muitos historiadores do
Renascimento a respeito da natureza do jardim de esculturas de San Marco. Terá sido apenas uma oficina onde se ensinava a escultura em pedra ou era uma escola secreta para o estudo de obras que eram desvalorizadas e reprimidas por Roma, como as de Platão (ao contrário das de Aristóteles, aprovadas pela Igreja) e do misticismo e da sabedoria judaica? Em um livro recente, Ross King se refere à bottega do jardim de Lorenzo de Medici como um local onde ele ensinava aos artistas selecionados a dedo "tanto a escultura quanto as artes liberais". O fato de que eles aprendiam algo liberal sob o nariz da Inquisição é prova suficiente de que a natureza real da escola tinha de permanecer um segredo. Conforme escreveu Jack Lang, ministro francês da Cultura, a influência dos de' Mediei em Florença foi realmente uma "revolução cultural". Os reinos de Camelot, porém, nunca duram muito, e o sonho dourado de Lorenzo de uma "Atenas sobre o Arno" desandou em 1476 quando o papa Sisto, em uma tentativa de destruir a família de Medici, cancelou o contrato que tinham para fornecer alume ao Vaticano. Esta era uma receita enorme, uma vez que naquela época alume era um ingrediente essencial para a fabricação de papel, curtimento de couros e tingimento de tecidos. O papa então transferiu o contrato lucrativo para os rivais mortais dos de Medici, a família Pazzi. Em 1478, o plano de assassinato já mencionado de Sisto (comum e equivocadamente chamado de Conspiração Pazzi) resultou na morte do amado irmão mais jovem de Lorenzo, Giuliano, assassinado diante de seus próprios olhos. Dez anos após este fato, morreu Clarice, a esposa de Lorenzo, deixando-o responsável por cuidar de seus filhos adolescentes. Lorenzo empenhou-se com vigor na tentativa de restaurar as finanças, a rede internacional e o moral da família. Ele investiu na grande arte mais do nunca, colecionando obras-primas antigas e proporcionando os meios para a criação de obras novas. Em 1489, ele descobriu um jovem aprendiz que trabalhava sob a direção de Ghirlandaio. Parecia que este menino simples das montanhas sabia esculpir uma pedra melhor do que qualquer adulto. Percebendo que havia um prodígio em potencial para ser moldado e instruído, Lorenzo tirou o rapaz rebelde das mãos de Ghirlandaio. Há uma história segundo a qual a primeira peça esculpida por Michelangelo para Lorenzo foi a cabeça de um fauno velho e sorridente, um
espírito mitológico da floresta. Lorenzo ficou impressionado pela mestria e maturidade da obra, mas chegou a mencionar incidentalmente que, por ser tão velho, o fauno provavelmente não teria tantos dentes. Logo que Lorenzo saiu, Michelangelo imediatamente arrancou um dente da estátua com o cinzel e chegou mesmo a fazer um buraco na gengiva de mármore do fauno, tornando a aparência do busto ainda mais perfeitamente real. Quando Lorenzo viu o que ele tinha feito, Il Magnífico riu e mostrou orgulhosamente o fauno sorridente a sua família e a seus amigos. Ele passou a nutrir uma grande admiração pessoal pelo menino e, ao invés de acomodá-lo nos quartos apertados destinados aos alunos, adotou informalmente o rapaz inculto, levando-o para morar em seu grandioso palácio. Assim, Michelangelo, aos 13 ou 14 anos, subitamente se viu sendo criado com os filhos mais ricos da Europa, fazendo suas refeições com eles e estudando com os melhores professores particulares da Itália. Este foi o período mais feliz de toda a sua longa vida — e mudou para sempre os seus conceitos de Deus, religião e arte. Também teve um impacto profundo nas mensagens que Michelangelo transmitiria posteriormente em sua obra-prima no teto da Capela Sistina.
A FORMAÇÃO DE MICHELANGELO Em italiano, a palavra para educação é formazione, no sentido de "estruturar, conceber, moldar" uma mente jovem. E a palavra perfeita para descrever a educação do jovem gênio aos cuidados de Lorenzo. As experiências de Michelangelo em Florença no início de sua adolescência de fato moldaram o seu talento e deram forma às suas idéias pelo resto de sua longa vida e sua carreira. Por meio de seus aprendizados artísticos, sua educação particular privilegiada no palácio, seus encontros com os grandes gênios de seu tempo e sua vida cotidiana extraordinária como parte da corte de Lorenzo, o Magnífico, ele teve acesso a uma formação incrivelmente ampla e única para o século XV — que também o seria em nossa época. Quando pintou a Capela Sistina, ele fez uso destas amplas fontes e referências culturais. A extensão destas fontes, incrivelmente abrangentes, pode ser uma das razões pelas quais foram necessários cinco
séculos para que nós descobríssemos o que ele está de fato dizendo em seus afrescos magníficos. Ghirlandaio foi o primeiro maestro de Michelangelo, ou professor mestre. Embora Michelangelo tenha dito anos mais tarde que o grande pintor não lhe ensinara nada, podemos supor que ao menos ele deve ter ensinado ao menino os princípios da fabricação e mistura de tintas, da cor e da composição e da grande evolução da arte florentina do século XV: a perspectiva. É interessante observar, entretanto, que não encontramos nenhuma contribuição de Michelangelo nos afrescos que Ghirlandaio pintou naquele período. Quando foi transferido para o Jardim de San Marco, Bertoldo de fato o ensinou alguns princípios da arte da escultura, mas o prodígio logo ultrapassou seu mestre. O jovem Buonarroti aprendia na verdade com os grandes mestres do passado, cujas obras podiam ser vistas e estudadas por toda Florença: os afrescos de Fra Angélico e Masaccio, as esculturas de Donatello e a arquitetura de Brunelleschi e Alberti. Acima de tudo, ele se apaixonou pelo desenho e pela arte greco-romana pagã. Ele a amava por sua simplicidade, pela sua qualidade cinética e pela sua celebração do nu masculino musculoso. Entre as esculturas do jardim e do Palácio de' Mediei, e entre as obras-primas por toda a cidade, a curiosidade voraz e a memória fotográfica de Michelangelo foram exercitadas ao extremo sendo de grande utilidade para ele até o fim de seus dias. Juntamente com sua evolução artística, a educação nas artes liberais de Michelangelo avançava em um ritmo prodigioso. Na República Florentina do século XV, uma educação abrangente era considerada essencial para todos os jovens. Uma geração antes de Michelangelo, o exemplo máximo de "homem renascentista" florentino fora Leon Battista Alberti (1404-1472), advogado, músico, atleta, escritor, pintor e arquiteto. Alberti escreveu: "O artista em seu contexto social não pode ser um simples artesão, mas um intelectual versado em todas as disciplinas e campos." Lorenzo acreditava piamente nisto e queria que o jovem prodígio da escultura tivesse a melhor formação possível. Os filhos de Lorenzo haviam sido ensinados desde pequenos pelo grande poeta humanista e classicista Ângelo Ambrogini de Montepulciano, mais conhecido como Poliziano. Poliziano ficou órfão quando era muito pequeno e foi levado a
Florença, onde foi adotado sob os cuidados da família de Medici. Ele permaneceu profundamente ligado a toda a família e viveu com eles a maior parte de sua vida. Porém, sua devoção mais apaixonada era para com Lorenzo, conforme pode ser comprovado pela pintura Adoração dos Magos, de Botticelli, na qual toda a corte de Lorenzo presencia a cena da manjedoura. Poliziano está praticamente pendurado em Lorenzo, o que a maioria dos livros de arte descreve como um sinal de "grande amizade". Poliziano era famoso em seu tempo por ser um poeta que escrevia com muito estilo em latim, mas também por ser um especialista extraordinário em grego antigo. Ele alegava ser tão fluente em grego quanto Aristóteles e Sócrates, e relatos de sua época parecem provar que isto não se tratava de fanfarrice. Estes talentos faziam do jovem erudito a escolha perfeita para ensinar os clássicos aos filhos da família de Medici, uma parte indispensável da educação de todo o cavalheiro e toda dama do período. Alguns historiadores da arte crêem que Poliziano deve ter sido também o principal professor de Michelangelo. Porém, quando o adolescente Buonarroti se mudou para o palácio, os filhos de Lorenzo também eram adolescentes, tendo assistido a aulas particulares com Poliziano desde 1475. Quando Michelangelo chegou em 1489, eles já estavam prontos para estudar outras disciplinas com outros professores. Embora Poliziano tenha sugerido algumas leituras e fontes artísticas a Michelangelo, ele demonstrou pouco ou nenhum interesse em estudos latinos e gregos. Porém, tinha uma grande atração pelos assuntos espirituais e filosóficos ensinados por outros professores. Isto explica por que o latim de Michelangelo nunca foi satisfatório, e o fato de escrever seus poemas no dialeto italiano da Toscana. Na verdade, ele estudou Dante apenas quando esteve escondido, muitos anos mais tarde.
Adoração dos Magos, de Sandro Botticelli, 1476-1477 (Galerias Uffizi, Florença). No canto esquerdo inferior, vemos Lorenzo, em uma postura orgulhosa, sendo abraçado por Poliziano, enquanto Pico della Mirandola conversa com os dois. No canto oposto, vemos o próprio Botticelli olhando para o espectador do quadro.
OS DOIS GRANDES MESTRES DE MICHELANGELO Bem mais influentes que Poliziano na formação de Michelangelo foram dois eruditos notáveis, reconhecidos comumente como os grandes mestres de filosofia em Florença: Marsilio Ficino e o prodígio infantil, o conde Giovanni Pico della Mirandola. A influência destes dois professores é claramente visível em grande parte do trabalho de Michelangelo. As traduções de Ficino, seus ensinamentos de Platão e do neoplatonismo e a sua Academia Platônica já eram muito conhecidos e admirados por toda a Europa quando Michelangelo se tornou seu aluno. De Ficino, Michelangelo absorveu as idéias ousadas desta escola filosófica de pensamento. Porém, conforme veremos, foi o jovem Pico delia Mirandola quem desempenhou o papel mais importante
no desenvolvimento de Michelangelo. Pico era o arquiteto carismático de uma ponte teológica e intelectual entre o misticismo antigo, a filosofia grega, o judaísmo e o cristianismo. Ele serviu como fonte de inspiração para os livre pensadores de todas as partes, enfureceu o Vaticano e influenciou profundamente o apaixonado e impressionável Michelangelo. De fato, duas décadas mais tarde Michelangelo transformaria secretamente o teto da Capela Sistina em um testemunho permanente dos singulares - e hereges - ensinamentos de Pico. O primeiro destes mestres, Marsilio Ficino, era filho do médico de Cosimo de Medici. Depois que Cosimo conseguiu a posse dos escritos antigos de Platão e Hermes Trimegisto, ele descobriu que Marsilio, então com 20 anos, poderia se tornar um brilhante tradutor. Como o pai do erudito já era seu contratado como médico particular, não seria difícil colocar também o filho na folha de pagamento da família. Os estudos de grego e latim de Marsilio eram financiados por Cosimo, que também pagou pela fundação da Academia Platônica, sob a direção de Ficino. Cosimo, sempre suscetível em relação às suas raízes humildes, desejava ser visto como um novo Sólon, encaminhando Florença a uma era dourada de renome internacional. Ficino estabeleceu a sua "Escola de Atenas" no palácio de Medici, na casa de campo da família, e também no Jardim de San Marco. Graças à sua reputação crescente como o maior especialista em Platão - e mais o peso do nome e do mecenato dos de Medici -, ele rapidamente conseguiu atrair um círculo de intelectuais, artistas, filósofos, professores e livres-pensadores. Logo estaria envolvido em uma caudalosa correspondência intelectual com as grandes mentes de toda a Europa. Cosimo estava feliz, pois isto lhe trouxe mais fama mundial do que ele poderia conseguir com qualquer transação comercial. Após a ascensão de Sisto IV ao trono papal, Ficino se tornou padre. Segundo relatos, ele tomou os votos porque se recuperou de uma enfermidade grave. Porém, é mais provável que tenha sido uma sugestão da família de Medici, pois na condição de padre ele seria um elo útil a todas as manobras em curso na corte papal. Nesta mesma época, Marsilio estava desenvolvendo o seu próprio sistema filosófico, baseado no platonismo, no neoplatonismo e no humanismo.
É certamente impossível nestas páginas fazer justiça a esta escola de pensamento, mas podemos ao menos destacar alguns de seus pontos mais importantes, especialmente porque eles ajudarão a entender os afrescos da Capela Sistina de Michelangelo. Em sua essência, a filosofia de Ficino defendia as artes liberais, a investigação científica pura e a centralidade do indivíduo e a redenção de sua alma imortal por meio do amor e da beleza. Ensinava que há conceitos absolutos além das distorções e variações humanas, e entre eles os do Bem Absoluto, Amor Absoluto e a Beleza Absoluta. É quase certo que era isto o que Michelangelo tinha em mente quando, mais tarde em sua vida, explicou: "Em cada bloco de mármore vejo uma estátua; e a vejo de maneira tão clara como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e na ação. Tudo o que tenho a fazer é desbastar as paredes ásperas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus a vêem." Para Michelangelo, imbuído desta mentalidade platônica, a arte não era criar, mas revelar uma beleza pré-existente absoluta e escondida. "Eu vi um anjo no mármore", disse ele, "e eu esculpi até libertá-lo". Os neoplatônicos acreditavam também que a enorme variedade do pensamento humano, se rastreada até a Única Fonte - que Leonardo da Vinci chamava de a "Causa Primeira" levaria à iluminação espiritual e finalmente a Deus. Esta idéia e os textos místicos que Ficino traduzia o levaram a empreender uma fusão de todas as crenças místicas, desde o gnosticismo grego, passando pela hermenêutica egípcia e pela cosmologia cristã, até a Cabala judaica. Uma das influências de Ficino era uma bem conhecida obra, chamada Fons Vitae (Fonte de Vida), um dos primeiros textos neoplatônicos europeus, escrita por um filósofo espanhol do século XI chamado Avicebron. Mal sabia Ficino que se tratava de uma tradução da tradução árabe de um texto original em hebraico escrito pelo grande filósofo-poeta judeu Salomão Ibn Gabirol, cuja data provável de morte é 1058. A idéia de harmonizar o monoteísmo com o pensamento platônico tomou conta de Ficino e o levou a tentar construir uma fé universal, por meio da qual toda a humanidade poderia atingir a redenção individual. Como então os judeus tinham acabado de conseguir a permissão para se estabelecer em Florença, ele
naturalmente desejou incorporar o pensamento judeu em seu plano mestre do universo. Ficino chegou a estudar hebraico com judeus como Elias del Medigo e Yohanan ben Yitzchak Alemanno, mas ao que parece, seu talento para o grego e o latim não o ajudou muito neste caso. Em seus escritos, ele está limitado a algumas citações (às vezes imperfeitas) das escrituras hebraicas e dos grandes comentaristas como Rashi, Maimônides, Gersonides e Sa'adia Ha-Gaon. Entretanto, Ficino fez uso da idéia hebraica da sacralidade do amor humano e sua capacidade para levar a uma maior proximidade com o Divino. A Bíblia Hebraica, ao falar do primeiro ato sexual entre Adão e Eva, diz que Adão conheceu sua companheira. Extraordinariamente, a palavra hebraica l-dá'at, "conhecer", significa também amar ou fazer amor. No nível mais profundo, o sexo transcende o aspecto físico e conota a união espiritual. Um ato aparentemente carnal é investido de dignidade e santidade. O ideal do amor é a intimidade verdadeira - não simplesmente a junção de dois corpos, mas a união de duas almas em entendimento mútuo. Alcançar este nível de intimidade significa "conhecer" a essência da outra pessoa - a sua imagem divina -, o que é também uma outra maneira de se aproximar de Deus. Visto sob esta luz, o ato de fazer amor não tem o objetivo único da procriação, como a Igreja ensinava então, mas também o de promover esta percepção absoluta do conhecimento. Como a Cabala afirma ousadamente, quando um casal "se conhece" em um ato sexual, romântico e espiritual completo, eles na verdade se unem também ao Céu. Ficino pregava este conceito ao seu círculo como "amor platônico", um amor que não é apenas o contato de dois corpos, mas também a união de duas almas. Foi apenas bem mais tarde na história que o "amor platônico" passou a significar uma relação profunda privada do elemento sexual. Como o neoplatonismo de Ficino enfatizava a centralidade do Homem e a apreciação de sua beleza, era perfeitamente natural que sua academia fosse muito popular entre homens que amavam outros homens. Naquela época, não havia o conceito de homossexualismo, apenas a ênfase da Igreja na procriação e a sua condenação do que chamava de "sodomia", a prática do sexo anal, especialmente (mas não restrita) entre dois homens. As categorias de heterossexual e homossexual foram
estabelecidas apenas na Alemanha do final do século XIX, quando estas palavras foram cunhadas. Apesar disso, Roma estava horrorizada por todas estas idéias. O Vaticano tinha "cristianizado" os seus ensinamentos de Aristóteles, mas não os de Platão. Pregava que a redenção só podia ser obtida por meio da Igreja. Estas idéias florentinas a respeito do indivíduo, da arte e das ciências, acerca da universalidade, e sobre o amor grego e judeu eram anátema e blasfêmia... mas todas elas ecoaram profundamente na mente de Michelangelo. Finalmente ele encontrara uma filosofia que validaria seus sentimentos sobre beleza, arte — e sobre a sacralidade do sexo e da perfeição do corpo humano, especialmente dos homens cujas formas físicas tanto o atraíam. Entretanto, a Igreja logo iria se preocupar muito mais com as idéias do outro professor de Michelangelo. O conde Giovanni Pico della Mirandola foi um prodígio infantil, assim como Michelangelo. Além de ser abençoado com um grande gênio, um talento para as línguas e uma curiosidade insaciável, Pico era o herdeiro de uma família rica de príncipes. Em outras palavras, ele era o que hoje chamaríamos de um jovem "nascido em berço de ouro". Com 13 ou 14 anos, já estudava direito canônico em Bolonha, e depois foi para os grandes centros de estudo em Ferrara, Pádua e Pavia. Em 1484, com apenas 21 anos, chegou finalmente a Florença para se unir ao círculo já liderado por Poliziano, Ficino e o próprio Lorenzo de Medici. Naquela época, Ficino promovia o estudo de seu amado Platão e tentava desprezar as filosofias de Aristóteles e Averróis. Pico, ao contrário, usando como fundamento o próprio conceito de fé universalizante de Ficino, tentou harmonizá-los. Pico também desejava incluir e enfatizar em sua mescla as suas correntes de pensamento preferidas: a sabedoria e o misticismo judaicos. Com o dinheiro de sua família, ele passou a sua curta vida pagando as melhores mentes judaicas da Itália para lhe ensinarem o hebraico e o aramaico, e para ajudá-lo a navegar o mar da sabedoria judaica da Torá, do Talmude, do Midrash e da Cabala. Seus professores judeus e amigos íntimos incluíam grandes pensadores e escritores como Elias del Medigo, Yohanan Alemanno e o misterioso rabino Abraão, entre outros. Diferentemente de Poliziano e Ficino, Pico se tornou muito
fluente nestas línguas e adquiriu um conhecimento profundo do judaísmo. Seus escritos e ensinamentos estão permeados pelo pensamento judeu. Um exemplo é o seu Heptalus, no qual narra a história bíblica da Criação segundo uma interpretação totalmente cabalística. O jovem Michelangelo, com sua mente sedenta por novos conhecimentos e com olhos ávidos para captar toda a beleza que havia ao seu redor, estava completamente imerso neste mundo fascinante e inebriante de pensamento liberal e de discussões elevadas. Este mundo era muito mais empolgante por outras razões. Ele viera de uma família fria e sem carinho, que desdenhava suas aspirações artísticas e intelectuais, e em Florença ele era abraçado pela corte mais sofisticada da Europa. Também começava então a tomar consciência de sua atração romântica e física por outros homens. Jamais saberemos se isto foi uma conseqüência de ter tido um pai ausente e uma mãe que morreu muito jovem, ou se era simplesmente sua própria natureza. O que sabemos é que ele estava na cidade e nos círculos sociais onde o amor de um homem por outro era comum e aceito por quase todos - exceto pela Igreja. De fato, o amor e o sexo entre dois homens eram tão comuns que, no resto da Itália, isto era chamado de "tendência florentina". Sabemos também que muitos dos homens associados à Academia Platônica e ao Jardim de San Marco de Lorenzo amavam homens. Poliziano, Ficino e Pico faziam parte deste grupo. Em 1494, Poliziano e Pico morreram de uma doença misteriosa em poucas semanas. A julgar pelos sintomas, é bem provável que eles tenham sido duas das primeiras vítimas do primeiro surto de sífilis que atingiu Florença naquele ano. Sabemos com certeza que Pico delia Mirandola foi enterrado em um túmulo duplo, como era feito com casais casados, juntamente com seu companheiro de longa data, o poeta Girolamo Benivieni. O túmulo deles está localizado dentro da Igreja de San Marco, onde sem sombra de dúvida os monges dominicanos fanáticos da época se reviraram em seus túmulos. Uma outra razão pela qual esta confluência intelectual deve ter sido tão fascinante para o adolescente Michelangelo era o seu aspecto "pecaminoso". A Santa Inquisição tentava a todo custo erradicar o conhecimento judeu como o Talmude e o livro cabalístico do Zohar, exatamente os livros que seus
professores lhe ensinavam. Além disso, enquanto Florença tentava unir cristãos e judeus, Roma fazia um grande esforço para separá-los. Em 1487, apenas cerca de um ano antes de Michelangelo chegar à corte de Lorenzo, Pico delia Mirandolla reuniu mais de 900 teses que compusera para provar que tanto o misticismo egípcio, quanto a filosofia platônica e o judaísmo conduziam à mesma divindade venerada pela Igreja Católica. Ele se ofereceu para patrocinar com seu próprio dinheiro uma conferência internacional a ser realizada no Vaticano para discutir e celebrar esta nova universalidade e harmonia entre as diferentes crenças. O Vaticano, ao ler os seus escritos, imediatamente os classificou como blasfemos e ordenou que ele fosse preso por heresia. Pico foi obrigado a retratar-se por causa de suas idéias, mas logo depois negou a sua retratação e teve de fugir para a França. O longo alcance do Vaticano fez com que ele fosse preso lá, e foi apenas por meio dos bolsos polpudos de Lorenzo e suas conexões internacionais que Pico foi libertado e levado em segredo de volta à Florença, onde permaneceu agradecido, protegido dentro do palácio de Medici pelo resto de sua curta vida. Este turbilhão impetuoso de arte, amor e frutos proibidos teve um impacto indelével no jovem Michelangelo, que permaneceria ardentemente influenciado por estes ensinamentos pelo resto de sua vida e carreira. Veremos como esta influência está presente em todas as suas obras de arte e atinge o seu clímax nos afrescos da Capela Sistina.
O QUE MICHELANGELO DE FATO APRENDEU? Normalmente, a formação de um jovem florentino começava com o estudo da gramática italiana, do latim e às vezes do grego, e da poesia de Virgílio e Dante. Havia também o ensino da mitologia grega, parte dela baseada nas Metamorfoses de Ovídio, em parte transmitida oralmente. Como parte da tradição oral, havia também as histórias dos santos cristãos e os ensinamentos da Igreja. As histórias dos judeus extraídas do que a Igreja chamava de Antigo Testamento eram narradas, mas apenas para atestar a validade do Novo Testamento. Para os jovens das classes altas, especialmente a nobreza, havia treinamento em esgrima, habilidades eqüestres, música, oratória e dança. Em poucas palavras, eles
recebiam toda a preparação para a guerra, a vida na alta sociedade e para a liderança futura. Nesta preparação, a instrução ética do texto grego antigo de Pseudo-Focílides era também extremamente popular. Esta cartilha sobre moralidade é um poema épico com cerca de 250 versos e aforismos, o qual muitos estudiosos hoje definem como os ensinamentos de proselitismo de um judeu do período helenístico. O poeta judeu anônimo, tentando se passar por um filósofo grego de grande respeito, faz uso pouco disfarçado de citações dos profetas judeus e da Torá para persuadir os gentios pagãos a abandonar o modo de vida deles e a observar os Sete Mandamentos Básicos da Noé - o pacto universal de lei que precedia a entrega da Torá aos judeus no monte Sinai. Para evitar a revelação de sua identidade como judeu, ele não condena abertamente a adoração aos ídolos per se, mas apenas o comportamento e a sociedade em torno dela. Na época de Pico e Michelangelo, esta falsificação esperta já havia sido aceita e transmitida como uma autêntica obra grega antiga e foi mesclada a outra falsificação semelhante, os chamados Sibilinos, supostamente um conjunto de 12 livros das misteriosas videntes do mundo clássico. Desta maneira, o impressionável jovem aprendiz recebeu a informação de que a conduta ética vinha de outra confluência, de uma mescla dos ensinamentos dos profetas judeus e das sibilas pagãs. Isto apareceria anos mais tarde no teto da Capela Sistina. O que tornava a educação de Michelangelo única eram as lições que ele recebia de Ficino e Pico. Ousados, inovadores, filo-semitas e geralmente classificados como hereges, estes ensinamentos podem explicar por que quando Michelangelo tinha a liberdade de criar uma obra de arte, ele sempre escolhia um tema judeu e não as imagens mitológicas ou cristãs usuais da época. Isto explica também por que quando o papa o encarregou de criar obras de arte para venerar Jesus e a Igreja, incluindo a Capela Sistina, Michelangelo brilhantemente ocultou nestas obras mensagens anti-papais que refletiam seus verdadeiros sentimentos universalistas.
AS INFLUÊNCIAS JUDAICAS: O MIDRASH, O TALMUDE E A CABALA Como Ficino e, em particular, Pico eram profundamente influenciados pelo pensamento judeu e o transmitiram ao seu aluno talentoso, precisamos esclarecer as áreas daquele pensamento que mais afetaram Michelangelo e a maior parte de suas obras de arte posteriores. Primeiro, precisamos mencionar o Midrash. Não se trata do nome de um livro, mas se refere a muitas coletâneas de histórias, lendas e comentários bíblicos de vários eruditos do começo da era cristã (ou seja, após o ano 1 do calendário cristão). De acordo com a tradição hebraica, estas coletâneas fazem parte de uma tradição oral de conhecimento transmitido desde um passado remoto, sendo algumas delas do tempo de Moisés. Diferentemente do Talmude, o Midrash se concentra mais na teologia do que na lei, em conceitos mais que em mandamentos. Já se disse que o Talmude fala para a mente da humanidade, mas que o Midrash é direcionado à sua alma. Sabemos que Michelangelo estudou o Midrash com seus mestres por causa do grande número de suas idéias que aparecem nos retratos das cenas bíblicas. Um exemplo excelente é o painel do teto da Capela Sistina conhecido como O Jardim do Éden. Nele vemos Adão e Eva diante da Arvore do Conhecimento. Durante a Idade Média, com exceção de apenas uma tradição cultural, sempre se achou que o fruto desta árvore fosse uma maçã. De fato, a palavra latina para maçã refletia o seu passado de má fama: male, que significa "mal". No italiano moderno, as vogais foram invertidas, e o fruto tem o nome de mela. No século IV a.C., a palavra malum aparece na tradução da Vulgata latina na locução "a árvore do conhecimento do bem e do mal", codificando oficialmente a associação entre a maçã e o fruto proibido. Havia apenas uma exceção a esta crença generalizada: a tradição hebraica. Segundo um princípio místico, Deus nunca nos apresenta um problema sem que tenha antes criado a solução dentro do próprio problema. Quando Adão e Eva pecam ao comer o fruto proibido, eles são atingidos pelo sentimento de vergonha, pois tomam consciência de que estão nus. A Bíblia nos conta que a solução imediata que encontraram foi se cobrir
com folhas de figueira. Segundo o Midrash, a Arvore do Conhecimento era uma figueira, porque um Deus compassivo havia providenciado a cura para a conseqüência do pecado de Adão e Eva dentro do próprio objeto que o causou. É difícil imaginar algum cristão consciente disto, seja no tempo de Michelangelo, seja nos dias de hoje. Somente alguém que tivesse estudado o Midrash teria esse conhecimento. Assim, como era de se esperar, no painel do Pecado Original, a Árvore do Conhecimento de Michelangelo é uma figueira. Quando passarmos pela Capela Sistina nos capítulos a seguir, somente uma grande familiaridade como este corpo de conhecimento judeu permitirá que percebamos as inúmeras alusões ao Midrash que Michelangelo inseriu em seus afrescos. Infelizmente, isto é algo quase completamente desconhecido e ignorado pelos estudiosos contemporâneos. Pico, conforme indicava a sua biblioteca, também admirava profundamente o Talmude, um compêndio extenso da lei judaica e comentários compostos ao longo de um período de cinco séculos, que começou aproximadamente no tempo de Jesus. O que torna esta obra singular em relação a quase todas as outras de seu período é o seu sistema único de pensamento, que é chamado mesmo ainda hoje de "lógica talmúdica". A obra nos condiciona a ver o universo e a pensar de uma maneira multifacetada, contrária à visão linear, acrítica e irracional da Igreja. O seu tema predominante é o questionamento, e une a fé e a razão. Valoriza a lógica como um bem essencial e aceita a legitimidade de opiniões conflitantes. Também dá grande valor à habilidade de harmonizar opostos aparentes. Este estava longe de ser o ideal da Igreja, que então procurava reprimi-lo. Michelangelo, porém, apesar de não poder estudar o Talmude em profundidade, aprendeu com seus professores como incorporar ao menos alguns de seus valores em sua visão de mundo e em seus níveis múltiplos de significados em suas obras artísticas. O estudo judaico que teve o maior impacto em Michelangelo foi um pelo qual Pico seja talvez mais bem lembrado. Pico tinha uma biblioteca hebraica maior do que qualquer gentio da Europa, e ainda mais impressionante era o fato de ele deter o recorde da maior biblioteca particular de materiais cabalísticos reunidos em um só lugar. A Cabala era sua paixão. De fato, a sua dedicação a este ramo
do conhecimento judeu pode muito bem explicar a impressão muito positiva que tinha em relação aos judeus e ao judaísmo. A Cabala, que compreende a tradição mística e esotérica do judaísmo, tem sua suposta origem nos segredos que os anjos ousaram transmitir a Adão. Cabala é uma palavra hebraica que significa literalmente "recebido". Como seus ensinamentos são extremamente complexos e versam sobre assuntos que nem todos são capazes de entender, a Cabala é idealmente ensinada apenas aos que estão maduros o suficiente para "receber" seu conhecimento oculto, no estilo de um mestre que ensina um discípulo escolhido a dedo. Porém, Pico tirou o máximo de proveito do livro de Zohar, que apareceu pela primeira vez na Espanha no século XIII, publicado por um escritor judeu de nome Moisés de Leon - supostamente um manuscrito da era talmúdica que ele encontrara - e de outras obras cabalísticas disponíveis para estudo. O que fascinava tanto a Pico? E o que a Cabala continha que cativou Michelangelo de tal maneira que em quase todas as partes do teto da Capela Sistina há traços de seus ensinamentos? Podemos apenas sugerir algumas respostas. Certamente parte da resposta jaz na maior premissa da Cabala, segundo a qual abaixo da superfície de cada objeto estão escondidas "emanações" de Deus. As coisas são muito mais do que aparentam ser a olho nu. Este era um conceito muito provocativo para um artista - especialmente para um cujo credo era: "Todo bloco de mármore contém uma estátua e é tarefa do escultor descobri-la." Estas emanações do Divino, conhecidas como as Dez Sefirot (dez comunicações), representam as "séries de estágios intermediários" que tornam possível a criação do mundo finito - e são quase os mesmos estágios necessários para um artista trazer suas idéias à vida. Além disso, estas Dez Sefirot, que representam todos os atributos de Deus, têm uma correspondência direta com o corpo físico de uma pessoa. Deus é iminente no corpóreo, e o corpo tem centelhas do Divino. Isto certamente torna sagrados até mesmo os nus que dominaram a obra de Michelangelo.
Conforme já observamos, a Cabala permitia a quem a estudasse ter uma idéia positiva do sexo, e também fornecia uma visão totalmente diferente das distinções entre o feminino e o masculino. Ambos são partes iguais da divindade porque o próprio Deus se fez uma mescla perfeita das duas características — Deus é homem e mulher. A harmonização destes dois aspectos aparentemente díspares é um conceito cabalístico que encontra expressão não apenas na sexualidade de Deus, mas em todos os outros aspectos da vida. O que hoje chamamos de forças negativas e positivas dos átomos era um segredo antigo conhecido pelos cabalistas, embora eles usassem uma linguagem diferente. Harmonizar os opostos, encontrar
equilíbrio entre extremos e compreender o poder do que está oculto na essência dos objetos certamente teria um apelo forte não apenas para a mentalidade religiosa de antigamente, mas também para as mentes artísticas - e até as científicas - de todos os tempos. Algo que não pode ser ignorado nesta lista é a fascinação da Cabala pelos números e pelo alfabeto hebraico. As letras hebraicas têm um valor numérico e um espiritual. Segundo a Cabala, Deus criou o universo com as 22 letras do alfabeto hebraico. Os números também estão ligados a idéias específicas. Assim como vemos que o número sete transmite um grande número de conceitos interligados, todos os outros números têm uma mensagem e uma conexão com uma categoria mental. Compreender isto nos permitirá entender por que Michelangelo usou exatamente o número de profetas que escolheu para o teto, assim como outros objetos importantes - e por que ele também ocultou letras hebraicas nesta obra. Talvez o mais importante de tudo foi que a imersão de Michelangelo no estudo cabalístico deu a ele condições para aceitar a ordem do papa para embelezar a Capela Sistina, apesar de discordar radicalmente da maior parte do pensamento da Igreja da época. Michelangelo percebeu que as verdades podiam ser transmitidas usando a Cabala de uma maneira secreta, tornando a mensagem profunda mais importante que as imagens da superfície. Porém, o jovem artista ainda precisava de mais formazione para moldá-lo na sua jornada de vida antes que a Causa Primeira o conduzisse ao seu destino dentro da Sistina...
Capítulo Cinco EXPULSO DO JARDIM E ATIRADO NO M UN D O Está tudo bem comigo quando estou com um cinzel na mão. — MICHELANGELO A L É M D A E D U C A Ç Ã O F O R M A L , M I C H E L A N G E L O não conseguiu escapar de uma outra formação: as experiências e os encontros difíceis com o mundo
real, comumente chamado de "a dura escola da vida". De fato, uma das primeiras lições duras que ele aprendeu ficou com ele para o resto de sua vida. Quando chegou ao Jardim de San Marco para estudar sob a direção de Bertoldo, Michelangelo encontrou um outro aluno também escolhido para seguir a carreira de escultor. O outro jovem era Pietro Torrigiano. Pietro tinha tudo que Michelangelo não possuía. Vinha de uma família verdadeiramente nobre, financeiramente abastada e era extremamente belo. Michelangelo, porém, tinha um talento superior. Ambos tinham egos e temperamentos artísticos inflados; em outras palavras, uma disputa estava prestes a acontecer. A luta fatídica aconteceu pouco tempo depois da chegada de Michelangelo. Os dois alunos estavam na Capela de Santa Maria del Carmine, fazendo esboços das obras de arte do local, quando aparentemente Michelangelo zombou dos desenhos de Pietro. Torrigiano, enfurecido, se atirou contra Michelangelo e desferiu um soco tão forte que esmagou o osso e a cartilagem de seu nariz. Pelo resto de sua vida, apesar de criar tanta beleza, Michelangelo ficaria com a aparência de um lutador de boxe aposentado com um nariz amassado. Lorenzo de Medici ficou tão exasperado pela deformação do rosto de seu favorito que imediatamente expulsou Torrigiano de Florença. Buonarroti, que mesmo antes deste incidente não fora particularmente bonito, sentiu-se terrivelmente feio a partir deste momento. Ele compensou este fato se ocupando com seu trabalho e carreira, freqüentemente fugindo das possibilidades de romance para evitar a desilusão. Ele se tornou cada vez mais perfeccionista e egocêntrico. Os psicólogos têm um termo para este comportamento: grandiosidade, a compensação de um sentimento profundo de inadequação através de um comportamento prepotente e arrogante. Infelizmente, até o final de sua vida poucos amigos queridos e companheiros foram capazes de enxergar além desta fachada de grandiosidade para se aproximar do sonhador solitário, sensível e carente de amor que vivia abaixo da superfície.
Estátua de Michelangelo em frente às Galerias Uffizi. Observe o nariz achatado e a expressão de constrangimento
OS PRIMEIROS SINAIS DE GENIALIDADE Como já vimos, muito se sabe sobre o crescimento intelectual de Michelangelo no período em que esteve sob a tutela de Ficino e Pico della Mirandola. E estranho, porém, que tenhamos pouquíssimas informações a respeito das técnicas artísticas que ele aprendia com Bertoldo. Até mesmo o professor Howard Hibbard, um dos biógrafos célebres de Michelangelo, reconhece: "Ainda não sabemos como ele aprendeu a esculpir o mármore." Os primeiros exemplos que temos são uma Madona amamentando um menino Jesus muito musculoso e uma batalha de centauros, ambos da época em que Michelangelo tinha entre 15 e 17 anos. Estes exemplos demonstram claramente como o jovem escultor se encontrava preso entre o mercado da arte cristã e o seu amor pessoal pelo classicismo e o corpo masculino. A Madona, chamada de Madonna delia Scala (Madona da Escada) é de inspiração vaga, mas clara, de uma obra anterior de Donatello que Michelangelo estudara em Florença. Apesar de ser seu primeiro trabalho, feito em 1490, já apresenta elementos misteriosos e tem sido interpretado de maneiras variadas no
decorrer dos séculos. Maria está amamentando o menino Jesus ao lado de um lance de cinco degraus, onde estão brincando três meninos, que provavelmente são anjos. Maria, apesar de aparecer de perfil no primeiro plano, parece estar olhando praticamente no olho de um anjo inclinado sobre o corrimão no centro da obra. No topo da escada, as duas outras figuras infantis aparecem indistintas ao fundo e parecem ou estar se abraçando ou lutando. Uma quarta figura se encontra quase escondida atrás de Maria, puxando um pedaço de tecido. De maneira impressionante, aos 15 anos, Michelangelo estava fazendo o mármore sólido ter a aparência de uma fotografia moderna, com focos de campos de profundidade extremamente diferenciados: a figura da frente é clara, e as do fundo são indistintas.
Madona da Escada, de Michelangelo, década de 1490 (Casa Buonarroti, Florença) Para explicar a representação de Michelangelo de exatos cinco degraus, alguns historiadores da arte interpretam como uma relação com o número de letras do nome Maria, uma vez que certos teólogos renascentistas e medievais arcanos chamam a Virgem de "A Escada", por ela representar a ligação entre o Céu e a Terra. Contudo, esta interpretação parece ser um pouco forçada, se
considerarmos que Michelangelo, com sua educação singular, deve ter tido algo mais em mente. Sob a influência de seu professor, Michelangelo estava ciente de um significado bem mais profundo do número cinco. Marsilio Ficino certa vez ensinou sobre os cinco níveis da alma humana como uma parte central de sua filosofia neoplatônica. Estes são fundamentados no conceito cabalístico dos cinco níveis da alma: nefesh, ruach, neshamá, chayá e yechidá. Estes são, respectivamente, a força da vida material básica, a alma emotiva, a alma humana, o espiritual ou alma que busca a Deus e a alma unificadora transcendente que está integrada com Deus e com a totalidade do universo. Para um neoplatônico e cabalista como Michelangelo, este conjunto de cinco elementos formavam o principal fundamento da busca da alma pela união com o Divino - uma espécie de escada para se chegar a Deus. Não seria mais lógico achar que era isto o que Michelangelo estava tentando transmitir? O Talmude ensina que o caráter e a personalidade do rei Davi foram infundidos nele pelo leite de sua mãe. O próprio escultor disse que o seu talento sobrenatural para trabalhar com o mármore lhe foi transmitido ao ser amamentado por sua ama-deleite. Será que Michelangelo está sugerindo também que a Madona, ao amamentar seu bebê, prevê que o destino de seu filho é transcender todos os cinco estágios da alma humana? Nesta peça, uma de suas primeiras, será que Michelangelo já atinge a harmonia neoplatônica — unindo o desenho grecoromano com o misticismo judeu em uma obra de arte cristã? A única coisa que sabemos com certeza é que este talentoso artista adolescente já fazia experimentos com técnicas de escultura bastante inovadoras e temas artísticos muito sofisticados, ambíguos e multifacetados. Cerca de um ano depois, ao invés de buscar inspiração na escultura cristã renascentista, ele usou como base para seu trabalho um antigo sarcófago pagão. Desta vez, seu tema era claramente mitológico: a batalha dos centauros, as criaturas lendárias com parte superior humana e a inferior de um cavalo. Apesar da limitação da pequena dimensão de uma peça fina de mármore, Michelangelo conseguiu criar uma massa intrincada e impressionante de corpos em luta que parecem desaparecer gradativamente até o infinito.
Nesta obra, podemos encontrar mais pistas do que ele posteriormente faria na Sistina. Primeiro - e o mais importante de tudo - há o amor pelo corpo masculino, muito musculoso e sempre nu, e em uma variedade de posições. De fato, ele é tão apaixonado por seus estudos do nu masculino que retrata apenas uma parte simbólica de um cavalo na parte de baixo para dar a sugestão da idéia de centauros, e então esculpe o resto da obra inteiramente com homens nus. Há apenas uma figura feminina neste grande emaranhado de corpos. Trata-se de Hipodâmia, a princesa pagã raptada pelos centauros bêbados e bestiais e, na lenda, a causa de todo este derramamento de sangue. Como Michelangelo não tinha modelos femininos, e também por não demonstrar grande interesse pelo corpo das mulheres, ele retrata a princesa apenas pelas costas.
Batalha dos Centauros, de Michelangelo, década de 1490 (Casa Buonarroti, Florença)
A não ser que se procure pela figura da princesa na escultura, tem-se a impressão de que esta peça foi composta exclusivamente de nus masculinos. É estranho, mas verdadeiro: este artista completo nunca dominou a representação do corpo feminino, conforme veremos mais adiante nos afrescos da Capela Sistina. O mais importante na Batalha dos Centauros é o seu tema subliminar, o qual ressoará mais poderosamente nas obras posteriores de Michelangelo - e especialmente na Sistina. Esta obra captura a essência de um conceito judeu místico: a luta da alma imoral e animalesca contra a alma espiritual e humana. Na Cabala, isto se destaca como o teste final da humanidade na "batalha entre as Duas Inclinações": a yetzer ha-tov (a Boa Inclinação) contra a yetzer ha-ra (a Má Inclinação). Michelangelo escreveu muitas vezes sobre sua batalha interna (sem fazer uso da terminologia hebraica formal) em suas cartas e especialmente em sua poesia. Quando já contava mais de 60 anos, ele trabalhou esta idéia em um madrigal que aparentemente escreveu para um amigo que sofria de uma paixão não correspondida por uma linda mulher. Como Buonarroti não sentia esta mesma paixão pelas mulheres, ele se entrega a termos mais espirituais quando escreve o poema em nome de seu amigo. Ele descreve um conflito: de um lado, "minha metade que vem do Céu,/e que para lá se volta com grande anseio" e do outro, o desejo por uma "única beleza de mulher [...] que em duas partes contrárias me mantém,/uma metade toma da outra o bem/que, se dividido não estivesse, eu poderia possuir." Este desafio das Duas Inclinações aparecerá mais tarde no painel do Pecado Original nos afrescos do teto da Sistina.
O FLAGELO DE FERRARA Em 1491, a escuridão começou a se insinuar sobre a Florença de Michelangelo. O seu professor Pico delia Mirandola, resgatado por Lorenzo do exílio e de uma ameaça de morte por seus escritos considerados hereges pelo Vaticano, teve uma idéia inexplicável e estranha. Ele insistiu para que Lorenzo levasse o fanático pregador dominicano Girolamo Savonarola de volta a Florença.
Quem era este Savonarola? Ele era de Ferrara, na região de Emilia-Romagna, de uma família comum. Quando jovem, demonstrou grande aptidão para a filosofia e estudou os pensadores gregos antigos, com uma clara preferência pelo que existia na época dos escritos de Platão. De fato, ele escreveu um comentário sobre Platão, antes de sentir um chamado repentino de Cristo para ser seu mensageiro especial na Terra. Ele destruiu a sua tese sobre Platão e dedicou suas energias para Aristóteles, aprovado pela Igreja. Tornou-se um monge dominicano e passou a pregar pela Itália central, obtendo pouquíssimo sucesso. Savonarola então foi a Florença para pregar contra sua sociedade hedonista e liberal. Quando ele, no seu púlpito, começou a condenar a família de Medici, Lorenzo o expulsou da cidade. Porque então um grande humanista como Pico aconselhou Lorenzo a levá-lo de volta a Florença e instalá-lo como o pregador da igreja da família de San Lorenzo? Ainda hoje os historiadores ficam perplexos diante deste fato. Considerando todas as possibilidades, pode ser que tenha sido para diversão - afinal de contas, os florentinos anteriormente zombaram do forte sotaque da região de Emilia-Romagna do monge de Ferrara. Savonarola era também particularmente feio, uma figura esquelética de nariz enorme e beiços babosos. É possível que Pico tenha achado que sua presença iria na verdade minar a influência da Igreja em Florença se as massas vissem no púlpito sua imagem tão desagradável. Talvez também Pico se sentisse esgotado após tantos anos de fugas e de luta contra o poder do Vaticano e agora queria fazer as pazes com a Igreja. Sabemos que no ano em que morreu, Pico convenceu Savonarola a ordená-lo dominicano. Foi isto um caso de mais intriga ou arrependimento verdadeiro? Provavelmente jamais saberemos. Qualquer que tenha sido o motivo, a diversão de Lorenzo e sua corte logo chegou ao fim. Savonarola e seus desvarios fanáticos passaram a conquistar um público fiel, assim como os de muitos evangelistas televisivos de nossos dias. Em reação, Lorenzo patrocinou um pregador mais moderado e convencional para servir de contrapeso a Savonarola, mas o dano já estava feito: as multidões estavam firmemente do lado do dominicano feio e de suas visões apocalípticas de fogo e enxofre. Savonarola, antes um clérigo inseguro, tedioso e provinciano, se tornou um orador público inflamado e incisivo, capaz de levar multidões ao
delírio com suas visões alucinantes de Florença como a Meretriz da Babilônia, condenada à danação eterna por sua cobiça por beleza e sensações. O alvo principal de seu ódio era a Casa de Medici, sua corte e tudo que eles representavam. Michelangelo assistiu a alguns dos sermões histéricos de Savonarola contra o seu oásis feliz de arte, beleza, liberdade de pensamento e amor entre homens. Mesmo quando estava em idade avançada, o artista confidenciaria que jamais conseguiu esquecer a voz de Savonarola. De fato, mais de quarenta anos depois, Michelangelo o retrataria no afresco do Juízo Final da Capela Sistina. O pregador fanático é retratado em toda a sua feiúra, bem na extremidade inferior da pintura, e tanto pode estar saindo do chão em direção à recompensa celestial, ou afundando para o inferno. Nota-se claramente que não há outras almas ou anjos para ajudá-lo, como acontece com quase todos os outros mortos dignos no afresco gigante. Um ano depois, teve-se a impressão de que as profecias agourentas do pregador de olhar fanático estavam se tornando realidade. Uma rara tempestade de raios atingiu a cidade em abril de 1492 e destroçou a torre de lanterna da famosa cúpula da catedral. Os pedaços carbonizados caíram pelo lado em frente ao Palácio de Medici. Três dias mais tarde, Lorenzo foi atacado por uma doença misteriosa. Ao invés de se tratar com os médicos judeus, Lorenzo chamou alguns charlataes supersticiosos que tentaram salvá-lo com uma poção de pérolas trituradas e pedras preciosas. Isto apenas aumentou o sofrimento, e prestes a morrer, Lorenzo até mandou chamar seu oponente Savonarola para receber dele a extrema unção e a bênção para sua alma. Não há nenhum registro escrito das palavras que foram ditas ao leito, mas parece que Savonarola, sempre intransigente, amaldiçoou Lorenzo, condenando-o ao castigo eterno e se retirou com passos arrogantes. O Magnífico morreu com muita dor pouco depois.
Detalhe do Juízo Final, na Capela Sistina, mostrando Savonarola submerso na sujeira Este acontecimento levou os apavorados florentinos a tomar atitudes extremadas. Multidões afluíam aos sermões de Savonarola e imploravam por perdão. Dentro de pouco tempo ele estabeleceu grupos de jovens fanáticos e vândalos para hostilizar e espancar qualquer pessoa nas ruas de Florença que usasse jóias, maquiagem, roupas luxuosas ou simplesmente por estarem se divertindo muito algo bem parecido com o que aconteceu no Irã após a revolução do aiatolá Khomeini em 1979. A Casa de Medici se viu então frente a um grande problema. O filho mais velho de Lorenzo, Piero, um jovem de 20 anos, assumiu o poder. Entretanto, apesar de Lorenzo na mesma idade já estar moldado e amadurecido para ser o líder enérgico do clã, Piero era fraco, dócil e mimado. Ele se interessava apenas por festas e ignorava o fato de que o reino de "Camelot sobre o Arno" ruía à sua volta. Piero sequer sabia aproveitar os talentos de seus artistas de maneira adequada. Sob sua governança, Michelangelo não foi estimulado a produzir nem uma só obra de arte duradoura para a família de seu mecenas. A única coisa que
chegou até nós sobre estes dois anos vazios é a história de uma nevasca sem precedentes em Florença no inverno após a morte de Lorenzo. Piero ordenou que Michelangelo fizesse uma estátua gigante de Hercules de neve. Os florentinos se reuniram para ver esta maravilha por uns poucos dias antes que ela derretesse - e ela foi um símbolo involuntário, mas muito revelador, do estado efêmero ao qual a família de Medici havia chegado.
LEVANTANDO A CRUZ — UMA MENSAGEM JUDAICA OCULTA As mãos ansiosas de Michelangelo não conseguiam ficar paradas. Ele começou uma amizade com o pároco da Igreja do Santo Spirito. Por que um padre, e por que especialmente um de uma igreja menor? O motivo era que este clérigo tinha acesso, através do hospital adjacente à igreja, aos cadáveres dos pobres, criminosos e dos mortos anônimos. No mundo antigo, não só os médicos, mas os artistas também dissecavam os corpos dos criminosos executados para obter um conhecimento mais profundo do interior do corpo humano. Foi assim que os mestres da Era Clássica aprenderam a retratá-lo mais perfeitamente nas esculturas greco-romanas. A descoberta cada vez maior destas antigas obras primas desenterradas nos séculos XIV, XV e XVI inspirou o renascimento da arte. Os grandes mestres como Pollaiuolo, Leonardo e muitos outros sonhavam alcançar o nível destas obras antigas. Entretanto, havia um grande obstáculo. Conforme já vimos, o Vaticano proibia a todos a dissecação do corpo humano por qualquer motivo. O único lugar livre desta proibição era a Universidade de Bolonha, onde a escola de medicina tinha permissão especial para dissecar os cadáveres de criminosos executados, unicamente com fins didáticos. O pároco subversivo da Igreja do Santo Spirito, seja por amizade, seja por amor, ajudou Michelangelo a violar a lei. Ele lhe deu o acesso aos cadáveres do hospital à espera de enterro. O trabalho repugnante das dissecações noturnas causava náuseas no jovem escultor, mas a paixão pelo aperfeiçoamento de sua arte superou seu estômago fraco. Desta maneira, Michelangelo descobriu os segredos internos do corpo humano melhor do que quase todos os outros artistas
ou até mesmo os médicos de seu tempo. Este nível surpreendente de conhecimento e o modo proibido pelo qual ele foi obtido figuram de maneira bem clara nos afrescos da Sistina, incluindo as extraordinárias mensagens ocultas descobertas apenas em nossa época. Para agradecer este benfeitor secreto, Michelangelo fez a única obra de arte que chegou até nós deste período de sua vida - um crucifixo de madeira pintado. Por muito tempo pensou-se que estava perdido para sempre até ser recentemente descoberto em um corredor da igreja, e foi atribuído a Buonarroti há pouco tempo. Reza a lenda que o artista exaltado chegou a crucificar um cadáver para ver exatamente como os músculos das mãos e do resto do corpo reagiriam. O que sabemos hoje com certeza é que anatomicamente é um crucifixo incrivelmente preciso para o final do século XV.
Crucifixo, de Michelangelo, 1493 (Igreja do Santo Spirito, Florença). Há três fatos sobre esta peça que passam despercebidos para quase todos os espectadores, talvez por serem visíveis apenas se observados bem de perto. Um é que Michelangelo, por ser tão apaixonado pelo corpo masculino, chegou de fato a pintar pêlos finos no peito e até mesmo nas axilas deste Jesus. O efeito disto
foi que tornou o Cristo muito mais humano do que as representações comuns completamente sem pêlo às quais estamos acostumados. O segundo é que Michelangelo esculpiu a parte de trás do corpo com perfeição, apesar de a peça ser feita para ser pendurada em uma parede da igreja. A terceira verdade, entretanto, é de longe a mais chocante. No titulus, que pelos Evangelhos é o letreiro irônico que os soldados romanos pagãos pregaram na cruz acima da cabeça de Jesus, Michelangelo não escreveu as quatro letras usuais I.N.R.I (Jesus Nazarenus Rex Iudeorum — Jesus Nazareno Rei dos Judeus). Em vez disso, ele escreveu a expressão completa três vezes, em hebraico, grego e latim. O mais impressionante, porém, é que Michelangelo escreveu em hebraico no alto, na ordem perfeita da direita para a esquerda da língua hebraica, com uma caligrafia excelente, e logo abaixo a expressão em grego e em latim na ordem inversa, como em um espelho, para seguir o hebraico. A explicação quase certa se baseia no fato de que, no mesmo ano, foi descoberta uma relíquia escondida em uma parede da Igreja da Santa Croce in Gerusalemme, em Roma. Tratava-se de uma peça de uma inscrição de madeira antiga que aparentemente era o titulus original da Crucificação (mas exames de datação com radiocarbono feitos em 2002 provaram que a madeira é do século XI, e não do primeiro). O fragmento quebrado e gasto contém apenas as palavras "Jesus Nazareno", pois está quebrado onde começa a referência adicional "Rei dos Judeus". Está escrito nas três línguas, com o grego e o latim de trás para frente e sob o hebraico. A informação sobre esta descoberta deve ter chegado a Michelangelo, que tentava fazer seu crucifixo o mais autêntico possível. Além disso, a inscrição trilíngue atrairia especialmente quem fazia parte do círculo íntimo dos neoplatonistas. De fato, Ficino e Pico tornaram este conceito um princípio central de seus ensinamentos, segundo o qual era possível harmonizar os três mundos do pensamento: o misticismo judaico, a filosofia grega e a Igreja Romana. Buonarroti, sempre procurando construir pontes entre o judaísmo, o cristianismo e o mundo clássico, estava claramente encantado por poder refletir esta descoberta em seu novo trabalho. Michelangelo não conseguiu resistir à tentação de deixar mais uma mensagem oculta neste crucifixo. Embora a sua inscrição latina e a grega contenham falhas,
o seu hebraico é muito bom - com uma única exceção que parece proposital. A expressão "Rei dos Judeus", descrita nos evangelhos e presente em tantas cenas da Crucificação, como já foi dito, não está na relíquia descoberta em Roma, pois o fragmento encontrado está quebrado. Em hebraico, seria normalmente Melech normalmente Melech ha-Yehudim. Porém, Michelangelo escreveu escreveu Melech me-Yehudim. me-Yehudim. Ao mudar apenas uma letra da expressão comumente usada, ele dizia "um rei de origem judia". E isto faz uma grande diferença. Com a morte de Lorenzo, o futuro dos judeus em Florença parecia sombrio. Savonarola e seus seguidores desaprovavam a maneira como os cristãos florentinos confraternizavam e estudavam com os judeus, e as famílias que inicialmente haviam se oposto à entrada deles em Florença estavam então novamente tomando o controle da cidade. Michelangelo queria lembrar as pessoas inteligentes, cultas e conhecedoras que que o o Jesus adorado pela Igreja era um judeu, vindo do povo judeu e da religião judia - do mesmo povo e da mesma fé que a Igreja estava então perseguindo. Naquele ano, a Inquisição expulsou todos os judeus da Espanha. A marcha da morte em toda a Espanha, na qual morreram milhares de judeus a caminho dos navios de deportação, horrorizou todas as pessoas de boa consciência na Europa da época. Michelangelo era uma delas. Ele não era um orador público, um escritor ou um político - ele era um artista. A sua reação foi deixar um protesto permanente inserido em sua obra. Com apenas 17 ou 18 anos de idade, Michelangelo começou a trilhar o caminho da arte oculta e subversiva com uma mensagem - um caminho no qual ele continuaria até a Capela Sistina.
BOLONHA Com o inepto Piero a cargo do futuro da família de Medici, a hostilidade crescente dos outros clãs poderosos da cidade após décadas vivendo sob o controle dos de Medici (a quem eles jamais perdoaram por ter trazido os judeus a Florença) e o crescente fanatismo religioso, Michelangelo entendeu o que estava por vir. Dois de seus mestres mais queridos, Poliziano e Pico delia Mirandola, morreram com poucas semanas de diferença. A França e Milão formaram uma
aliança militar, lançando uma invasão vitoriosa no coração da Itália, o que fez ruir a geração de paz na qual Michelangelo cresceu. Com a premonição de uma série de pesadelos horríveis, ele repentinamente arrumou suas malas e fugiu. Assim como Adão no teto da Sistina, ele foi forçado a sair do Paraíso. Seus instintos e pesadelos foram, porém, de grande utilidade: dentro de um ano, os clãs rivais, apoiados pela turba de Savonarola, literalmente caçaram Piero e toda a corte de' Mediei até que saíssem de Florença. Com eles saíram também os judeus. Primeiro, o jovem de 19 anos se abrigou no refúgio popular para muitos fugitivos na história da Itália: o arquipélago de Veneza. Após uma estadia curta e improdutiva, ele voltou em direção ao Sul, para Bolonha, onde logo teve problemas com as autoridades locais, por não ter dinheiro para pagar o pedágio. Apenas no último minuto Michelangelo escapou de ir para a prisão, quando apareceu Gianfrancesco Aldrovandi, parente da família reinante de Bolonha e aliado de longa data do clã de Medici. Aldrovandi o acolheu sob seu teto por um ano. Durante este tempo, ele percebeu que o jovem não possuía formação básica nos escritos de Dante, Plutarco e Ovídio. O nobre bolonhês fez Michelangelo ler estes clássicos todas as noites, e apreciava especialmente ouvir o jovem florentino recitar Dante com seu sotaque toscano característico. Foi nesta época que começou a paixão de Michelangelo por Dante, que duraria por toda a sua vida. A partir de então, ele passou a citar e imitar seu estilo de escrita. O seu conhecimento de Ovídio e Virgílio mais tarde o orientaria na decisão sobre quais sibilas incluir - e quais excluir - nos afrescos do teto da Sistina. Aldrovandi chegou até mesmo a conseguir para o jovem as suas primeiras encomendas pagas: algumas pequenas estátuas para finalizar fi nalizar a decoração do túmulo de Santo Domingo. Michelangelo criou também para seu novo mecenas uma linda estátua de um Apolo jovem com sua aljava de flechas, que podiam trazer tanto inteligência e inspiração quanto praga e morte. Apolo era conhecido também por sua beleza física e por seus amantes, tanto homens quanto mulheres. Esta estátua, supostamente perdida por muito tempo, foi reconhecida definitivamente em 1996, localizada na embaixada francesa em Nova York. É fascinante notar que
este Apolo pagão tem exatamente o mesmo corpo nu esbelto do Jesus na cruz da Igreja do Santo Spirito que o jovem artista fizera dois ou três anos antes. Michelangelo nunca chegou a gostar de Bolonha e, no inverno entre os anos de 1495 e 1496, voltou para Florença. O reino de Camelot de sua adolescência já não existia mais. Savonarola e seus lacaios fanáticos haviam tomado controle da cidade, e a mantinham sob um domínio do terror. As mulheres eram atacadas nas ruas por usarem maquiagem ou jóias. Os homens eram espancados ou mortos por cometerem sodomia. Savonarola instituíra um novo evento público chamado de "Fogueira das Vaidades", freqüentado por florentinos aterrorizados e arrependidos que atiravam nas chamas suas roupas de luxo, jóias, objetos de arte e livros não-cristãos. Ou por medo ou por causa da lavagem cerebral religiosa, o próprio Botticelli atirou pessoalmente algumas de suas próprias pinturas valiosas no fogo. Michelangelo precisava encontrar uma saída. Sua arte foi a solução. Para manter as mãos ocupadas e divertir os poucos amigos que restavam, ele esculpiu a cópia de uma estátua romana antiga de um Cupido adormecido que ele lembrava ter visto no Jardim de San Marco ou do Palácio de Medici. Seus amigos disseram que a cópia era tão convincente que poderia passar por um artefato genuíno da Roma Clássica. Por brincadeira, eles envelheceram a peça artificialmente e a enviaram para Roma com um mercador de antigüidades de ética duvidosa. Como era de se esperar, ele logo conseguiu vender o objeto para o cardeal Riario, um dos sobrinhos ricos do finado papa Sisto. Michelangelo deve ter adorado a idéia de enganar e ganhar dinheiro de um membro da mesma família corrupta que tentara assassinar Lorenzo. Ele ficou feliz até descobrir que recebera apenas 30 ducados dos 200 que o cardeal pagara para o intermediário. Indignado por alguém ter lucrado tanto com seu trabalho duro e seu talento, e provavelmente também como uma desculpa para sair de Florença e ver as maravilhas de Roma, Michelangelo arrumou suas malas e partiu para a Cidade Eterna. O jovem obstinado corria um grande risco. Ele era um simples artista, sem família ou protetor em Roma, um ex-integrante da exilada Casa de Medici, e vinha de Florença, uma cidade que Roma e o Vaticano detestavam. Ainda assim, sua ira o fez criar coragem, e Michelangelo encontrou-se com o cardeal para
confessar a brincadeira. O cardeal, vendo que poderia ter o artista e não apenas uma única obra de arte, o perdoou e o encarregou de fazer uma escultura de um Baco bêbado. Foi esta a apresentação de Michelangelo a Roma - um clérigo teoricamente santo, com votos de uma vida de pobreza e castidade, pagando uma quantia vultosa de dinheiro para que ele criasse uma estátua erótica de uma divindade pagã das orgias etílicas.
Baco, de Michelangelo, 1496-1497 (Museu Bargello, Florença)
Porém, o novo papa no trono nesta época não era ninguém mais que Rodrigo Borgia, o papa Alexandre VI, provavelmente o mais escandaloso, corrupto e vergonhoso dos papas de todo o Renascimento - e isso diz muita coisa. Enquanto Florença era açoitada por Savonarola por causa da arte, jóias e cosméticos, o Vaticano por sua vez se tornara um grande bacanal. O Baco bêbado era o símbolo perfeito desta hipocrisia. Michelangelo deu ao cardeal Riario exatamente o que ele queria. O Baco O Baco poderia poderia facilmente passar por uma autêntica obra-prima pagã antiga. O cabelo do jovem deus é feito por cachos de uvas suculentas e a sua pose sensual acentua tanto a sua nudez quanto seu estômago levemente inchado por causa do álcool. O espectador, ao se deparar frente a frente com este Baco, vê o deus embriagado oferecendo um brinde. Então, ao dar uma volta ao redor da estátua, vê um fauno jovem escondido atrás do deus, segurando e comendo um cacho de uvas de uma maneira sensual e sugestiva. É pertinente fazer dois comentários a respeito desta escultura. O fauno tem chifres de bode simbólicos que parecem muito autênticos e naturalistas. Esta foi a única vez em que Michelangelo colocou chifres em uma figura; e a idéia equivocada de que as protuberâncias na cabeça de seu Moisés seu Moisés são são chifres pode ser facilmente refutada pela simples comparação visual com esta estátua, conforme veremos mais adiante. O outro fato interessante é que 75 anos mais tarde este Baco foi comprado e levado a Florença por ninguém menos que a família de Medici.
A PIETÀ O destino estava então prestes a dar ao artista um grande empurrão na direção da Capela Sistina. O cardeal Riario, apesar de estar muito satisfeito com seu novo Baco, se Baco, se sentia bastante constrangido pela sexualidade explícita da estátua. Ele logo a passou para um amigo íntimo, Jacopo Galli, e a estátua se tornou a peça central do jardim de estátuas romanas antigas de Galli, onde sem sombra de dúvida era apresentada aos visitantes como um artefato pagão. Contudo, Galli deve ter contado a verdade ao seu amigo, o cardeal Billhères de Lagraulas,
embaixador do rei francês na Santa Sé. Imediatamente o cardeal encomendou uma obra a Michelangelo para seu desfrute particular — desta vez seria um tema completamente cristão, uma pietà. uma pietà. A pietà já pietà já era uma cena iconográfica comum na arte cristã. A palavra pietà palavra pietà curiosamente curiosamente corresponde perfeitamente à palavra hebraica hebraica rachmanut, rachmanut, que denota uma combinação de compaixão, amor, pena, consolo, pesar, dor e cuidado. É o momento preciso da Paixão de Jesus quando seu corpo morto é baixado da cruz e colocado no colo de Maria, sua mãe aflita. Era um grande desafio para qualquer artista, e uma cena de difícil representação: o corpo flácido de um homem adulto morto estirado sobre o colo de sua mãe de meia-idade. As representações anteriores da da pietà pietà tinham uma aparência desajeitada e sem equilíbrio. Galli, que agiu como o intermediário, prometeu ao cardeal francês que ele receberia a mais bela escultura em mármore de toda a cidade de Roma, algo que nenhum outro artista vivo poderia criar. Embora esta afirmação deva ter soado na ocasião não mais que uma hipérbole típica do sul da Itália, a promessa de Galli tornou-se profética. Michelangelo pediu que o cardeal rico comprasse um bloco de mármore de Carrara extremamente caro, da melhor qualidade. Ele sabia que esta encomenda seria o seu grande cartão de visita em Roma, uma obra que poderia tanto elevar quanto arruinar a sua carreira. Ele gastou um ano inteiro esculpindo a estátua e chegou até mesmo a passar vários meses apenas polindo a peça com a mão até o corpo de Jesus dar a impressão de que irradiava luz. Quando terminou a peça em 1499, tinha 24 anos de idade. Conforme já foi mencionado, nenhum artista tinha a permissão para assinar suas obras feitas para a hierarquia da Igreja. O propósito declarado era manter os artistas em seus lugares e "protegê-los" do pecado do orgulho — e isto apesar do fato de os papas e cardeais não terem nenhum problema em colocar seus nomes e brasões de suas famílias em todas as construções e obras de arte da época. Michelangelo, após um ano colocando seu coração, sua energia, talento e alma nesta pietá, nesta pietá, não não podia assiná-la. Mesmo antes de ser inaugurada, a estátua trocou de proprietário. O cardeal Billhères de Lagraulas morreu uma semana antes do término da obra, talvez por
causas naturais ou talvez com a ajuda do estoque infindável de venenos dos Borgia. A Pietà passou para as mãos do próprio papa Alexandre VI Borgia. Segundo uma teoria, o tema da estátua o comoveu profundamente porque seu filho, o duque de Gandia (um dos incontáveis filhos que gerou na condição de homem supostamente casto do clero, e um dos poucos que ele reconheceu), fora recentemente assassinado. Segundo a história, no dia em foi retirado o véu da estátua, Michelangelo se escondeu atrás de uma coluna na Basílica de São Pedro, esperando pelo aplauso da multidão e o elogio de seu nome pelos críticos. Ao invés disso, ele ouviu as pessoas dizerem que a nova obra maravilhosa só podia ser de autoria de um grande talento de Roma ou da Lombardia - de qualquer lugar que não fosse Florença. Furioso, Michelangelo arriscou sua vida naquela noite ao entrar na catedral, subir na sua obra-prima e rapidamente escrever na faixa que atravessa o peito de Maria: "Michelangelo Buonarroti, de Florença, fez esta obra." Ele escapou antes que os Guardas Suíços, que muito provavelmente teriam decapitado qualquer intruso no local, pudessem prendê-lo.
Detalhe da assinatura de Michelangelo na Pietà (cópia em gesso na Pinacoteca, Museus Vaticanos)
Exames recentes feitos com raio laser na superfície da Pietà confirmam a história. Aparentemente uma pessoa poliu toda a estátua com um movimento constante por meses, e então a inscrição na faixa foi feita muito rapidamente por alguém com uma mão nervosa e um pouco vacilante. A escrita também serve como testemunha. Está cheia de erros, algo bem compreensível devido à pressa e ao medo de Michelangelo na ocasião. Por exemplo, em vez de Michelangelus, ele escreveu primeiro Michelaglus, para depois voltar e inserir a letra e dentro da letra g. Inseriu outras letras que esquecera enquanto prosseguia na escrita. E não fez isso para economizar espaço, pois ao invés da palavra correta e mais curta fecit (a inscrição latina padrão para "fez"), ele usou a forma incorreta faciebat, "fazia". Obviamente o hebraico de Michelangelo era bem melhor que o seu latim - ao menos em suas obras de arte. Quando a inscrição foi descoberta, Michelangelo teve de ser perdoado pelo papa, e muito provavelmente teve de prometer jamais assinar outra obra. Sabemos que, em 89 anos de vida, esta é a única que leva a sua assinatura. Há um outro segredo desta obra famosa. Quando ela foi revelada ao público pela primeira vez em 1499, os críticos e especialistas em arte a louvaram como a escultura em mármore mais refinada desde a queda da Roma antiga mil anos antes. Entretanto, todos os críticos expressaram uma reclamação importante: havia um erro na representação do rosto de Maria, pois era jovem demais para ser a mãe de um filho de 33 anos. A maioria dos historiadores cristãos afirma que Maria estava com mais de 50 anos na época da crucificação de Jesus, e todas as obras de arte anteriores com cenas da Paixão a representavam com esta idade. Alguns escritores acharam que Michelangelo seguira um verso ignorado do Paraíso de Dante que chama Maria de "filha de seu próprio filho", ou que ele decidiu mostrar a Maria, mãe nova, embalando o menino Jesus, mas ao mesmo tempo tendo uma visão pavorosa do fim de sua vida enquanto ele ainda estava em seu colo. Muitos anos mais tarde, Michelangelo admitiu ao seu biógrafo Condivi que recebera muitas críticas a respeito da face estranhamente jovem de Maria na Pietà. Ele deu a Condivi a mesma desculpa que usara em 1499, dizendo que uma virgem não aparenta a idade que tem. O próprio Buonarroti devia ter consciência da fragilidade deste raciocínio, uma vez que ele mesmo via
freiras e senhoras de idade todos os dias que em sua época, com ou sem sexo, não eram bem conservadas. Por que então ele optou por este elemento estranho em uma obra tão importante? Michelangelo sabia que não estava esculpindo apenas a mãe santa da fé cristã, mas também uma mãe judia. Uma maneira de enfatizar isto seria retomar a história de Sara, a sagrada matriarca judia original. No livro de Gênesis, Sara é a esposa profundamente dedicada de Abraão, que finalmente dá à luz seu filho Isaac, o segundo patriarca judeu, aos 90 anos. Quando ela morreu, 37 anos mais tarde, chocada e triste por acreditar que Isaac fora sacrificado, ela tinha 127 anos. Entretanto, a Torá não dá a sua idade de forma direta. O hebraico original diz: "E a vida de Sara foi 100 anos e 20 anos e 7 anos, os anos da vida de Sara." Rashi, o grande comentador da Torá da França do século XI, explica esta fraseologia incomum com um Midrash muito conhecido, uma expansão da narrativa bíblica. Segundo Rashi, a Torá indica que com apenas 7 anos de idade Sara já era completamente desenvolvida espiritual e intelectualmente como uma mulher de 20 anos — e que aos 100 anos, ela se mantinha tão espiritualmente pura que aparentava ser tão jovem quanto uma mulher de 20. De fato, ela era conhecida como a mulher mais linda de sua época, e a narrativa bíblica conta que é raptada duas vezes por governantes pagãos para se tornar parte de seus haréns - uma vez quando estava com 60 anos e depois novamente com 80. Como Rashi foi diligentemente estudado por Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, e usado em suas lições, é bem provável que Michelangelo tenha aprendido este Midrash enquanto estava em Florença. E também muito provável que ele decidiu tomar esta história comovente da mãe da religião judaica e transpô-la para a face da mãe da religião cristã. Se isto for verdade, significa que a estátua cristã mais famosa do mundo contém um segredo judaico oculto. Um outro segredo foi revelado pelo próprio Vaticano em 1973. Um homem louco atacou a estátua em 1972, danificando o braço esquerdo de Maria, a sobrancelha e o nariz. Durante os trabalhos de reparação da estátua, os maiores restauradores de obras de arte do mundo descobriram que Michelangelo escondera uma letra M maiúscula na palma da mão esquerda de Maria,
dissimulada como as linhas da palma, uma tentativa lamentosa de assegurar que a posteridade não esqueceria o nome do criador da Pietà.
UM NOVO COLOSSO Logo após terminar a Pietà, apesar da fama crescente, Michelangelo quis sair de Roma. O clã Borgia decidiu conquistar a Itália central para seu próprio proveito, e estavam envenenando tanto rivais quanto parentes, ou seja, quem estivesse em seu caminho. Durante o tempo em que o artista estava envolvido em seu trabalho, esculpindo a Pietà, Florença sofrerá mais uma mudança. O fanático Savonarola, acreditando ser um profeta bíblico, voltou-se contra o papa e o Vaticano, criticando Roma por ser a nova Meretriz da Babilônia, a nova Sodoma e Gomorra. Tanto o papa quanto os florentinos já estavam fartos das condenações sombrias do monge, e em 1498 ele e o seu círculo íntimo foram enforcados e queimados em praça pública, exatamente no mesmo local onde ele orgulhosamente dirigia a Fogueira das Vaidades. Florença voltou então a ser uma república e queria celebrar o acontecimento. Michelangelo usou a desculpa de que tinha uma encomenda em Siena para sair rapidamente de Roma e voltou mais uma vez para trabalhar em Florença. Nesta ocasião, o conselho da cidade de Florença decidiu colocar duas novas esculturas gigantes feitas por dois artistas locais bem no topo dos contrafortes da catedral para vigiar a cidade, e para celebrar a libertação recente dos franceses e dos dominicanos fanáticos. Eles optaram decididamente pelo estilo neoplatônico florentino: um Hércules e um Davi - nada do repertório tradicional de imagens da Igreja. Hércules seria retratado derrotando o gigante Caco, e Davi seria obviamente mostrado em sua imagem tradicional de herói poderoso, com a cabeça decepada do gigante Golias embaixo do pé. Michelangelo, com seu amor pelas escrituras hebraicas, foi a escolha natural para ser o escultor do Davi. Certamente foi positivo o fato de que no novo cargo de gonfaloniere (uma espécie de prefeito vitalício) estivesse Piero Soderini, um velho amigo seu. Apesar de Bandinelli, o artista escolhido para fazer o Hércules, ter recebido um bloco de mármore novo, Michelangelo escolheu uma peça
usada. Era um bloco enorme, porém de pouca profundidade, e estava já muito marcado por escultores que anteriormente desistiram de esculpir esta pedra particularmente difícil. Os céticos duvidaram de que alguém seria capaz de produzir algo que valesse a pena deste pedaço de mármore maltratado e muito usado, mas Michelangelo viu algo dentro dele que ninguém mais conseguia enxergar. Ele construiu um andaime alto em volta do bloco, cobriu-o inteiramente com um pano pesado e começou a trabalhar. Enquanto fazia alguns esboços preparatórios para a peça, Michelangelo escreveu seu primeiro fragmento de poesia que chegou até os nossos dias. Ao lado do desenho do poderoso braço direito de Davi, ele escreveu: Davicte cholla fromba e io chollarcho — Michelagniolo Rocte lalta cholonna el ver... Mesmo nesta sua primeira incursão na escrita criativa, aos 27 anos, Michelangelo está usando uma espécie de código. Os versos escritos em um dialeto toscano, que se lêem exatamente como é provável que ele os teria pronunciado, dizem: Davi com seu estilingue E eu com meu arco Michelangelo Partiu-se a alta coluna e o ver(de) ... Um arco - que aparece no segundo verso em collarcho — pode tanto se referir à arma do arqueiro quanto ao arco do violinista, mas Buonarroti não era nem arqueiro nem músico. O último verso é a citação de um poema conhecido de Petrarca que começa assim: "Partiu-se a alta coluna, e o verde louro [laura, em italiano]." Esta era a ode que expressava a dor de Petrarca pela morte de sua amada Laura. Michelangelo estudou Petrarca durante a sua estadia em Bolonha,
mas qual terá sido a razão para citá-lo aqui? E o que tem a ver o pranto de Petrarca pela sua amada com o Davi? Howard Hibbard, biógrafo moderno de Michelangelo, soluciona o mistério ao citar a explicação de Charles Seymour sobre o arco. Um cortador de pedras ou um escultor do Renascimento usava uma broca de correr para desenhar os olhos e outras reentrâncias mais delicadas no mármore. Esta espécie de broca era um bastão fino e pontiagudo que, graças a um arco bem parecido com aquele usado por escoteiros para fazer fogo na floresta, gira a uma alta velocidade para dentro da pedra. Sem dúvida alguma, foi este tipo de broca que Michelangelo usou para criar os olhos inesquecíveis de Davi. Neste seu poema, ele se motiva, ao afirmar que, assim como Davi armado apenas com um estilingue derrotou o seu inimigo, ele (Michelangelo) derrotaria todos os seus adversários com o seu talento. A "alta coluna" é bloco alto de mármore maltratado que seus rivais não conseguiram conquistar, mas ele, o Buonarroti feio e de nariz quebrado, mostraria a eles ao "partir" (domar ou superar) a pedra alta e conquistar o verde louro da vitória. E ele de fato triunfou. O Davi que ele produziu não é nada menos que milagroso. A estátua rompeu também com as imagens tradicionais. Ao invés de mostrar a derrota de Golias, Michelangelo optou por retratar o jovem pastor no momento exato da tomada de decisão. O seu olhar é de inquietude, mas também de convicção. Ele está completamente nu e desarmado, a não ser pelo estilingue e algumas pedras. Golias não aparece na cena. Davi é retratado como em um instantâneo, no momento em que sua fé no Todo-poderoso está prestes a levá-lo à batalha que mudará a sua vida e a vida de seu povo. Ele é retratado no ato de se voltar para o gigante filisteu, o que permitiu também ao escultor demonstrar o seu conhecimento profundo da anatomia masculina. Algo particularmente chocante para os espectadores da época — e, de fato, para muitos visitantes da Academia de Florença de nossa época - foi o acréscimo que Michelangelo fez ao Davi, de abundantes pêlos pubianos. No mundo grecoromano, os heróis eram sempre retratados sem pêlos e com a genitália em dimensão reduzida, para demonstrar a sua dignidade e pureza de espírito. Michelangelo estava acentuando a virilha de Davi e chamando atenção para o
fato de que ele o dotava de um sexo de dimensão normal. Talvez isso tenha sido um ato de vingança contra o reino de terror puritano de Savonarola, ou talvez fosse para mostrar a reconquista recente do poder de uma Florença cosmopolita. A estátua definitivamente demonstra o amor de Michelangelo pelo nu masculino. De fato, toda a obra é um hino de louvor ao corpo masculino. Isto certamente suscita uma questão: se estava tão apaixonado pelos ensinamentos judeus, por que Michelangelo não deu ao seu Davi um autêntico órgão circuncidado? Há várias teorias. A explicação mais simples é de que ele muito provavelmente jamais vira um pênis circuncidado e não queria retratar algo que talvez fosse incorreto. Mais importante que isso, uma vez que a Inquisição ainda era forte, ele talvez não quisesse ser acusado do crime chamado de judaização, ou seja, a promoção da fé e das tradições judaicas. Além disso, a encomenda da obra requeria um Davi que representasse a cidade de Florença, e não apenas a comunidade judaica que retornara recentemente. O Davi de fato era um símbolo de Florença. Michelangelo o desenhou para ser colocado sobre o contraforte voltado para Roma, como uma sentinela silenciosa vigiando Florença e alertando a Igreja Romana a não se atrever a ameaçar sua recém-conquistada liberdade. Ele fez as mãos, os pés e a cabeça desproporcionais para demonstrar força, especialmente quando a estátua fosse observada de baixo, do nível do chão. Algo não muito conhecido é o segredo notável sobre os olhos de Davi. Michelangelo os fez um pouco profundos demais e levemente separados além do normal. Sim, o grande Davi é estrábico - mas foi feito assim de propósito, uma maneira brilhante de dar a impressão de que olha para o infinito. A profundidade excessiva de seus olhos também foi planejada para que captassem os raios do sol. Colocada sobre o contraforte, a estátua estaria no ângulo apropriado para receber os raios, e assim daria a impressão de estar viva, em um tipo de efeito especial semelhante aos de Hollywood.
Esquerda: Visão total do Davi, de Michelangelo, 1501-1504 (Galleria dell'Accademia, Florença). Acima: Detalhe do rosto de Davi, de Michelangelo, 1501-1504 (Galleria dell'Accademia, Florença) O talento eliminou os efeitos que Michelangelo projetou para sua estátua. As autoridades da cidade chegaram à conclusão de que ela era bela demais para servir apenas como uma parte da decoração dupla no alto da catedral. Por isso, formou-se uma comissão especial para selecionar um lugar de honra para o novo símbolo de Florença. Um dos especialistas convocados não foi ninguém menos que Leonardo da Vinci. O comitê concluiu que o Davi tinha de ser colocado em um pedestal em frente à entrada do prédio do governo, onde hoje se encontra uma cópia famosa. Esta foi uma grande honra para Buonarroti, mas anulou os efeitos especiais ocultos na estátua, elaborados para tirar proveito da localização original. Ainda hoje, quando vista dentro da Academia, as mãos, os pés e os olhos parecem todos estranhos e desproporcionais aos olhos dos espectadores
intrigados que desconhecem o intuito de Michelangelo, que só poderia ser apreciado se o Davi fosse colocado no local previsto. Ironicamente, mesmo antes de ser inaugurada em 1504, esta estátua já teve seus problemas. Segundo o seu biógrafo Giorgio Vasari, Michelangelo estava fazendo alguns retoques finais quando o gonfaloniere Piero Soderini entrou por baixo da cobertura do andaime para ver a estátua em primeira mão. Para o artista obstinado, não fazia diferença se uma pessoa era chefe de governo ou mesmo um papa - ele apenas queria que o deixassem a sós com a sua obra de arte. Soderini observou sua encomenda com a presunção de quem não sabe nada sobre o assunto que está criticando e afirmou que era preciso fazer algo a respeito do nariz, pois era grosso demais. (Talvez quisesse dizer que tinha um aspecto forte demais de nariz de judeu. O Davi de Michelangelo, assim como o seu Jesus da estátua da Pietà do Vaticano, tem feições claramente semitas.) Michelangelo calmamente pegou o martelo e o cinzel na mão esquerda e subiu a escada até a altura da face da estátua colossal. Enquanto subia, ele pegou algumas lascas e pó de mármore em sua mão direita, sem que Soderini visse. Quando chegou junto ao nariz do Davi, ele martelou ruidosamente o cinzel, mas sem tocar a superfície da estátua em nenhum momento, ao mesmo tempo em que deixava cair uma chuva de lascas e pó sobre a cabeça do governante. Então desceu até onde estava Soderini, que afirmou orgulhosamente: "Ah, agora sim, agora você deu vida à estátua." Michelangelo e seus amigos riram disso (em particular) por muito tempo. O outro problema foi bem mais sério. Enquanto o Davi estava sendo transportado lentamente em um veículo especial para o seu lugar de honra, a estátua foi apedrejada e atacada por agressores desconhecidos. Jamais saberemos se eles estavam indignados pela nudez ou pelo tema judaico. Sabemos que, em convulsões políticas posteriores, o Davi foi derrubado de seu pedestal e seu braço direito quebrou. Felizmente, um outro artista, admirador de Michelangelo, resgatou as peças, e a estátua foi restaurada quando a ordem social se restabeleceu. Por fim, em 1873 chegou-se à conclusão de que o Davi estaria mais seguro em um ambiente fechado, e em seu lugar foi colocada uma cópia.
UMA PINTURA? O período no qual Michelangelo esculpiu o Davi foi para ele uma época extremamente produtiva. Embora apenas a feitura desta estátua pudesse manter qualquer outro artista totalmente ocupado, Buonarroti ainda encontrou tempo para esculpir quatro santos a fim de cumprir o seu contrato com a Catedral de Siena, além de uma Madona para a Igreja de Notre-Dame em Bruges, na Bélgica. Estas cinco peças parecem ter sido parcialmente feitas por assistentes e são muito austeras, muito verticais e irregulares e sem a emoção característica das obras de Michelangelo. Os toques definitivos de Buonarroti são as roupas muito franzidas e o fato de que todas as figuras portam um livro. Veremos esta prova do amor de Michelangelo pelo conhecimento também na seção dos Profetas e das Sibilas da Sistina. Ele também fez algo que fugia de seu caráter na época: uma pintura. Michelangelo - que se tornaria um dos pintores mais famosos de todos os tempos, graças aos afrescos da Sistina - na verdade odiava esta forma de arte. Ele apreciava apenas as artes tridimensionais de fundição de metal, escultura e arquitetura, e considerava que cobrir uma superfície plana com cores era uma atividade tediosa e inferior. Costumava assinar as suas cartas com Michelangelo, ischultore (Michelangelo, escultor). Por que então aceitou uma encomenda para fazer uma pintura em meio a tantos outros trabalhos? A resposta é bem simples: era uma oferta que não podia recusar. A encomenda partira de duas das famílias mais poderosas de Florença a família Doni e a família Strozzi, rivais de longa data dos de Medici. Se por acaso alguém, especialmente um artista, desejasse permanecer em Florença e conquistar uma carreira de sucesso, ele não iria provocar a ira destes dois clãs. Para comemorar um casamento unindo as duas famílias, Michelangelo foi contratado para pintar a Sagrada Família. Havia um quadro da Sagrada Família do século XV no palácio de Medici onde ele fora criado, feito por Luca Signorelli, um dos pintores dos afrescos originais da Capela Sistina. Era redondo e tinha meninos nus ao fundo. A memória visual prodigiosa de Buonarroti lhe foi muito útil, e ele fez uma pintura redonda semelhante com nus no fundo.
Entretanto, era impossível para ele agir como um mero imitador. O que Michelangelo criou é uma obra controversa que ao mesmo tempo confunde, inspira e ofende até os dias de hoje.
Tondo Doni, de Michelangelo, 1503-1504 (Galerias Uffizi, Florença). Veja a figura 5 do encarte. Nesta pintura, já podemos ver o Michelangelo que conhecemos pelos afrescos do teto da Sistina: as roupas brilhantes, quase metálicas, a mulher masculina e musculosa - uma Virgem Maria com ar de uma sibila paga levantadora de pesos, homens que estão mais pelados do que nus e em poses afetuosas, alegres e quase eróticas; um feitio de equilíbrio neoplatônico entre jovens pagãos no fundo, um João Batista menino que se parece mais com um fauno mitológico do que um ícone cristão, um José judeu no meio do quadro entregando o bebê Jesus para Maria na frente - ou recebendo o menino dela, dependendo literalmente de seu ponto de vista. Michelangelo tem cartas na manga. Ele entrelaça os braços de Maria e José de uma maneira tão estilizada e antinatural que à primeira vista é
quase impossível distinguir a quem pertencem. Até na moldura, que muitos especialistas crêem ter sido elaborada por ele, há um círculo de profetas judeus, sibilas greco-romanas e Jesus. Acima de tudo, há uma sensação de que estamos vendo uma escultura pintada, e não simplesmente figuras planas. E quase como se o destino estivesse preparando o artista de maneira inconsciente para o seu trabalho na Capela Sistina. E como era de se esperar, no momento certo veio um chamado do Vaticano. Havia um novo papa no trono desde 1503, ninguém menos que o sobrinho circunspecto de Sisto IV - Giuliano delia Rovere, então coroado como papa Júlio II. Ele queria que o artista Buonarroti regressasse a Roma para um projeto dos mais importantes. Nem o governante nem o rebelde tinham consciência do destino que os aguardava.
Capítulo Seis ASSIM QUIS O DESTINO Um artista verdadeiro pinta com seu cérebro e não com suas mãos. - MICHELANGELO Durante o Renascimento, os papas eram muito semelhantes aos faraós do antigo Egito, em pelo menos três aspectos. Assim que um faraó subia ao trono, o calendário da nação voltava ao ano 1, o novo governante começava a planejar o seu próprio túmulo glorioso (como uma pirâmide, por exemplo) e tinham início os planos para a mumificação após a sua morte. O mesmo acontecia com um papa. Ainda hoje, o Vaticano começa a contar em anos papais quando um novo pontífice é eleito. Nos monumentos dos papas pela cidade de Roma, podemos ver duas datas: a A.D. (anno Domini — do calendário cristão) e a A.P. (annopapalis — do calendário papal). Os papas também eram mumificados. Seguindo uma antiga crença cabalística segundo a qual os corpos dos tzaddikim (as almas verdadeiramente justas) não se decompõem no túmulo, a Igreja afirmou ser isto também verdadeiro para os santos católicos. O Vaticano ansiava por preservar os corpos dos pontífices falecidos para o caso de uma futura
santificação, e como a arte do embalsamamento ainda não era muito desenvolvida (o que só aconteceu no início do século XX), todos os papas eram mumificados segundo o processo do antigo Egito. Finalmente, todos os papas que permaneceram no trono por muitos anos investiam uma enorme quantidade de tempo e dinheiro planejando a grandiosa morada final.
"IL PAPA TERRIBILE" Para o novo papa, Júlio II, planejar a morada final converteu-se em uma grande obsessão, pois ele não era do tipo de governante que se conformava com um simples sarcófago ou com paredes decoradas em sua homenagem, nem que a obra fosse extremamente luxuosa. Ele era um homem com os olhos voltados para a eternidade e com um ego que desconhecia limites. Já se acostumara ao poder desde os tempos em que era membro da corte papal corrupta de seu tio Sisto IV. Quando se tornou o cardeal Giuliano delia Rovere, ele foi um dos ardilosos nepoti ("sobrinhos" em italiano antigo) que deram origem à palavra "nepotismo". Quando o clã Borgia assumiu o poder no Vaticano, o papa Alexandre VI o despojou de todo o seu poder e chegou até mesmo a tentar envenená-lo. Giuliano se viu forçado a fugir para Avignon e lá permanecer enquanto durasse o reino de terror da família Borgia. Quando Alexandre VI morreu em 1503, o seu filho Cesare Borgia não quis renunciar ao controle que a família exercia no Vaticano, e só deixou Roma por causa de enfermidade, frenética atuação diplomática, suborno e pressão de todos os cardeais em grupo. Durante o conclave, a eleição ultra-secreta do novo papa, Giuliano manipulou a votação - por motivos políticos de longo prazo - para coroar não a si, mas a Pio III, sobrinho de outro papa. Pio III estava gravemente enfermo, e seu pé - bastante afetado pela gota - estava praticamente na cova. Giuliano delia Rovere fez com que ele declarasse guerra ao clã Borgia para amedrontar e expulsar de Roma os parasitas desta família que ainda restavam. A estratégia aparentemente surtiu efeito, mas Pio permaneceu apenas 26 dias no trono. A causa de sua morte pode ter sido a gota, mas é mais provável que um dos últimos capangas do papa anterior o tenha envenenado, abreviando assim o sofrimento do novo pontífice. Quando o trabalho sujo foi
consumado, Giuliano distribuiu subornos, ameaças e promessas no Colégio Cardinalício para vencer o novo conclave sem oposição. Ele foi um dos poucos papas da história a ser eleito em menos de 24 horas na primeira rodada de votações. Foi coroado aos 60 anos no dia 31 de outubro de 1503. Sua egolatria extrema e seu temperamento violento logo lhe renderam a alcunha de Il Papa Terribile ("O Papa Terrível").
Retrato de Júlio II feito por Rafael, 1512 (National Gallery, londres). Observe as bolotas de carvalho nos pilares da cadeira, símbolos da família della Rovere ("rovere" significa "carvalho"). Apesar de estar com sífilis e próximo do fim de sua vida, o papa segura firmemente o trono com sua mão esquerda, enquanto que com a direita, adornada com jóias, segura um pano de linho, assim como um faraó. Na condição de novo Sumo Pontífice, Júlio II delia Rovere retomou rapidamente os assuntos do Vaticano a partir de onde seu tio Sisto IV tinha deixado em 1484. Ele nomeou Donato Bramante, pintor e arquiteto talentoso de Urbino, no litoral leste da Itália, como o arquiteto oficial do papa. Bramante recebeu uma lista extensa de projetos cujo propósito era transformar Roma na nova caput mundi
(cabeça do mundo) cristão. Entre muitas reformas, o Palácio Apostólico foi ampliado, acrescentaram-se corredores aparentemente intermináveis, foi construída uma elegante escada em espiral para uso privado do papa e aberta na cidade uma nova rua paralela ao rio, a Via Giulia, além de muitas outras reformas. Porém, dois projetos especiais executados dentro dos muros do Vaticano foram os de maior interesse histórico, e foram eles que influenciaram Michelangelo pelo resto de sua vida. Um deles foi a restauração da Capela Sistina. A construção pesada, erguida sobre um antigo cemitério, assentara e ameaçava ruir. Bramante teve que se apressar em reforçar a parede sul com um contraforte para salvar a capela. Porém, o teto maciço apresentava uma fenda enorme em toda a sua extensão. Foram inseridos tijolos e argamassa para funcionar como uma espécie de bandagem arquitetônica, mas os reparos deixaram uma feia cicatriz branca que arruinou a abóbada estrelada da capela real dos della Rovere. Júlio começou então a pensar em quem seria a pessoa certa para refazer o teto da capela de seu tio. O segundo projeto eclipsava todos os outros: o túmulo de Júlio II. O papa, megalomaníaco e detalhista, queria se certificar de que sua morada final ofuscasse todas as outras dos papas anteriores. De fato, ele chegou a conceber uma estrutura piramidal gigantesca cercada por mais de quarenta estátuas enormes em todos os quatro lados de sua base, com dois anjos que o carregariam em um féretro em cima de um monte de mármore. O desenho desmesurado era tão grande que não caberia na Basílica de São Pedro. Qualquer outra pessoa teria reduzido as dimensões de seus planos, mas não Júlio II. Ele ordenou que Bramante demolisse a basílica velha e construísse uma inteiramente nova, digna de seu novo império católico e grande o bastante para abrigar o túmulo colossal, em seu centro, bem abaixo da cúpula, local reservado para o altar principal. A destruição tão impiedosa que Bramante empreendeu no antigo santuário (incluindo os túmulos de muitos papas anteriores) lhe rendeu em Roma o apelido de Bramante er Ruinante (o demolidor). Antes de escolher o artista certo para o teto de sua nova Sistina, Júlio já tinha em mente o escultor perfeito para o seu túmulo: Michelangelo de Florença. Antes de fugir da Itália, Júlio fora bispo de Bolonha por um período, e lá conheceu
pessoalmente as belas obras que Michelangelo esculpira com tanta rapidez para a catedral da cidade. Certamente ele já vira o Baco e a Pietà em Roma. Apesar de seus vários defeitos pessoais e espirituais, Júlio possuía uma qualidade que lhe renderia um reconhecimento eterno: seu faro para o talento artístico. Seu ego, seu desejo de competir com Florença e sua necessidade de tornar Roma novamente a capital do império contribuíram para a sua única realização duradoura: ele transferiu o centro do Renascimento de Florença para Roma. A única coisa que faltava em sua "coleção" era o maior escultor do mundo, e tudo o que Júlio queria ele conseguia. Para Michelangelo, o convite do Vaticano não poderia ter chegado em melhor hora. Enquanto estava ocupado terminando o Davi, pintando a Sagrada Família para a família Doni e supervisionando todas as outras esculturas produzidas em sua oficina, o gonfaloniere Soderini e o governo da cidade tiveram uma outra idéia brilhante: realizar um confronto público entre os dois maiores artistas de Florença. Leonardo da Vinci e Michelangelo, que era muito mais jovem, haviam deixado claro que não se respeitavam como artistas. Leonardo desprezava a nova tendência de retratar nus masculinos excessivamente musculosos, referindo-se a estas figuras como "sacos cheios de nozes", e também fazia uma comparação desfavorável entre o ateliê desorganizado e barulhento de um escultor - onde tudo e todos ficavam cobertos de lascas e pó de mármore e suor - com o estúdio limpo e ordenado de um pintor, "onde se podia escutar boa música" durante o trabalho. Por sua parte, Michelangelo não tentava disfarçar sua aversão pela "falsidade" da pintura bidimensional. Em 1503, Soderini decidiu encarregar ambos simultaneamente da realização de dois murais contíguos no Grande Salão do Palazzo della Signoria, o palácio do governo. A fim de exaltar a nova forma de governo independente, decidiu-se retratar as vitórias de Florença em duas batalhas históricas: Leonardo pintaria a batalha de Anghiari e Michelangelo se encarregaria da batalha de Cascina. Tudo indicava que seria um duelo fascinante: Leonardo era um pintor renomado e Michelangelo, graças à Batalha dos Centauros e ao Davi, era conhecido por suas representações de guerreiros. Somente a preparação de conceitos e desenhos tomou deles mais de um ano, pois cada afresco teria uma dimensão superior a
130 metros quadrados. Em 1504, foram compradas e preparadas imensas folhas de papel (um artigo muito caro no século XVI). Com elas foram feitos os cartoni em tamanho natural, desenhos a carvão usados para transferir os contornos das figuras para o gesso úmido do afresco. Os dois artistas se deixaram levar pelos seus interesses pessoais: Leonardo se concentrou na anatomia dos cavalos, ao passo que Michelangelo - como era de se esperar - encheu a sua cena de musculosos homens dispostos em todas as posições imagináveis.
N O A L T O , F I G U R A 4: A A NUNCIAÇÃO, D E L E O N A R D O D A V I N C I . A C I M A , A SAGRADA FAMÍLIA (TONDO DONI), D E M I C H E L A N G E L O .
D I R E I T A , F I G U R A 12: A SIBILA CUMANA. A B A I X O , À E S Q U E R D A , F I G U R A 13: D E T A L H E D A P A R T E E S Q U E R D A D O P A I N E L D O DILÚVIO, MOSTRANDO AS CORES ROMANAS COM UM BURRO . AB A I X O, À D I R E I T A , F I G U R A 14: D E T A L H E D A P A R T E D I R E I T A D O P A I N E L D O DILÚVIO, M O S T R A N D O O S P E C A D O R E S C O N D E N A D O S c o m ; , ; A S MESMAS CORES ROMANAS.
Figura 15: A Criação de Adão.
Figura 16: Painel do Fruto Proibido e a Expulsão do Éden.
Bi
Figura 17: O painel do Dilúvio. Abaixo, Figura 18: Detalhe do Juízo Final (antes da restauração): Dois judeus e Pico della Mirandolla no Céu.
Figura 20: Jonas
Página anterior, figuras 21 e 21a: O Juízo Final (antes da restauração) comparado com a forma tradicional das tábuas dos Dez Mandamentos. Esquerda, figura 22: Detalhe do Juízo Final (antes da restauração): O grupo de homens eleitos. Abaixo, figura 23: Detalhe do Juízo Final (antes da restauração): Jesus e Maria com São Bartolomeu.
Figura 24: Detalhe do Juízo Final (antes da restauração): A simonia e a luxúria arrastadas para o Inferno. Figura 25: Detalhe do Juízo Final (antes da restauração): O rei Minos (com o rosto de Biagio da Cesena).
Cópia de Aristotile da Sangallo de um detalhe do cartão de Michelangelo da Batalha de Cascina, c. 1505 O público florentino não se importou com isso. Quando os cartões preparatórios em tamanho natural foram exibidos, toda a cidade ficou extasiada diante das duas obras. Este era um sinal de que os dias repressivos de Savonarola haviam terminado para sempre, e que a arte e a beleza haviam finalmente regressado à cidade. Chegou então o momento que Buonarroti temia: a fase em que teria de fato que pintar o afresco. Ele sabia que não se sentia à vontade pintando. Ele jamais havia pintado um afresco em toda a sua vida, e viu-se então competindo com o maior pintor do mundo. Foi justamente nesta ocasião que o novo papa o convocou para esculpir, e Michelangelo usou isto como uma desculpa para nunca dar início ao processo de pintura do afresco. Ele regressou apressadamente a Roma, deixando para trás o cartão da Batalha e várias outras encomendas que nunca executou.
Se lhe faltavam outras qualidades, o papa Júlio II era um homem extremamente decidido. Ele e Michelangelo eram dois lados de uma mesma moeda: egoístas, obstinados e determinados a fazer as coisas à sua maneira. Talvez por isso se entendessem melhor do que a maioria das outras pessoas. Assim, chegaram a um acordo sobre o projeto do túmulo e todos os detalhes em tempo recorde. Dentro de um mês, Michelangelo tinha um contrato em mãos e fundos para fazer o pedido do primeiro carregamento de mármore a ser extraído de Carrara e trazido a Roma. Ele foi pessoalmente a Carrara para inspecionar a seleção e o corte dos blocos, um processo que durou mais de oito meses. Quando regressou a Roma para esperar pela chegada do primeiro navio com os blocos preciosos, três surpresas o aguardavam. A primeira foi agradável. No início de 1506, um camponês fazia uns consertos em seu vinhedo próximo ao Coliseu quando acidentalmente abriu um buraco no chão. Nele encontrou uma grande estátua de seres humanos sendo devorados por serpentes gigantescas. A notícia chegou quase imediatamente ao Vaticano, que não tardou a enviar especialistas, entre eles Michelangelo. A obra, identificada como sendo Laocoonte - perdida por muito tempo - era a escultura mais amada da Roma pagã, e acreditava-se que fora destruída pelas hordas bárbaras no século V. Fora encomendada pelos gregos vitoriosos depois de destruírem Tróia. A estátua mostra o momento da morte de Laocoonte, o sumo sacerdote de Tróia, atacado pelas serpentes sobrenaturais enviadas pelos deuses gregos para evitar que ele e seus filhos alertassem aos troianos para não levar o famoso cavalo de Tróia para dentro da cidade. Laocoonte é célebre por sua advertência: "Cuidado com os gregos que trazem presentes." Porém, depois que ele e seus filhos foram mortos pelas serpentes, os troianos levaram o cavalo de madeira gigante para dentro da cidade. Quando os soldados gregos escondidos no interior do cavalo saíram de dentro de seu ventre oco, foi o fim de Tróia e dos troianos. Posteriormente, quando as legiões romanas vitoriosas aniquilaram o império grego, levaram consigo o Laocoonte, um de seus troféus de guerra favoritos. O papa pagou uma fortuna pela peça ao sortudo camponês, e ela foi então limpa e desfilada pela cidade antes de ser colocada em um lugar de honra no pátio octagonal do papa, onde se encontra até os dias de hoje. A popularidade
instantânea desta única estátua convenceu o papa a abrir a sua coleção particular ao público, dando início assim aos Museus Vaticanos, que atualmente constituem a coleção de arte mais importante do mundo. A jóia mais preciosa da coroa desta coleção é a Capela Sistina. Michelangelo ficou maravilhado por esta obra-prima antiga, elaborada conjuntamente por três dos maiores escultores gregos da ilha de Rodes. Por causa de sua admiração por esta peça, ele inseriu nas figuras nuas do teto da Sistina os corpos dos dois filhos agonizantes de Laocoonte e o torso do próprio como o do Todo-poderoso no primeiro painel da Criação. Além da musculatura impressionante da estátua, Michelangelo seguramente se sentiu fascinado pela história do cavalo de Tróia, uma "oferenda de paz" com uma surpresa vingativa oculta em seu interior.
Laocoontc, feito por Polidoros, Hagesandros e Atenodoros, século I a.C. (Museus Vaticanos)
Ele deve ter compreendido o que os seus colegas florentinos conseguiram fazer nas paredes da Capela Sistina sem sofrer punições. A suposta "oferenda de paz" de Lorenzo de Medici ao papa Sisto IV era na realidade repleta de insultos ao papa, à sua família e a Roma - uma lição que logo encontraria poderosos ecos em sua própria obra. A segunda surpresa que aguardava Michelangelo era Bramante, o principal arquiteto e confidente íntimo do papa. Para acomodar o monumento funerário gigantesco de Júlio, Bramante começara seu trabalho de demolição total da basílica original e dera início à construção da maior igreja do mundo. O gigantismo desta tarefa acabou por sobrepujar todos os outros projetos, incluindo o próprio túmulo do papa, justamente o motivo da construção da nova igreja. Bramante havia definitivamente distraído o papa do projeto de Michelangelo. A partir de então, os dois se comportariam como dois estudantes, rivalizando-se pela atenção de seu mestre na tentativa de reconquistar e manter a concessão de cuidados e favores do papa. A preparação para a nova catedral estava absorvendo todos os fundos do Vaticano, e isto trouxe a terceira e mais desagradável surpresa para Buonarroti. Um dia, ele estava a uma pequena distância do papa e presenciou a visita de um joalheiro a Sua Santidade para tentar lhe vender alguns anéis novos cheios de pedras preciosas. Júlio exclamou em voz alta para que Michelangelo ouvisse claramente: "Nem mais uma moeda para comprar pedras, nem pequenas nem grandes." Michelangelo compreendeu que isto significava que os fundos para o projeto do túmulo haviam sido cortados, de maneira súbita e definitiva. Indignado, ele saiu violentamente dos aposentos papais. Teve início então a montanha-russa de acontecimentos que posteriormente o artista chamaria de "a tragédia da tumba". Apesar de a prática da astrologia ser um tabu para a Igreja Católica, o astrólogo particular do papa Júlio II o alertou que a data ideal para o assentamento da pedra angular da nova catedral era 18 de abril de 1506. Michelangelo deixou Roma um dia antes, furioso por seu projeto ter sido preterido e provavelmente também para não ter que presenciar o dia de glória de Bramante. Voltou amuado para Florença e entreteu-se com a idéia de retomar a tarefa de esculpir os Doze
Apóstolos para a catedral florentina, e até mesmo de aceitar o convite do sultão da Turquia para construir a ponte mais longa do mundo, que ligaria o Oriente ao Ocidente. O papa enviou mensagens a ele, pedindo que retomasse a sua obra. Michelangelo respondeu por meio de amigos que estava bem em Florença e que se a Sua Santidade de fato desejava que ele esculpisse seu túmulo, ele o faria melhor e com mais eficiência, economia e amor em Florença. Em uma carta escrita a um amigo, disse de maneira quase paranóica que se ele, Michelangelo, regressasse a Roma, "o primeiro túmulo que teria de ser construído seria o meu, não o do papa". Pouco tempo depois, contudo, Il Papa Terribile empunhou sua espada e viajou à reconquista dos estados pontifícios perdidos, territórios sob o controle militar do Vaticano que pagavam tributos pesados em ouro e provisões. O papa necessitava desesperadamente de novas fontes de ouro para financiar seus projetos artísticos e arquitetônicos. Primeiro ele retomou a cidade rebelde de Perugia, situada no topo de uma montanha, sem disparar um tiro sequer; e a seguir marchou em direção à Bolonha, centro da secessão do domínio do Vaticano. A população atemorizada escancarou os portões da cidade e concedeu ao papa uma entrada triunfal digna de um imperador, e foi então que Júlio passou a acreditar em sua própria propaganda que o promovia como o novo salvador do cristianismo. O "Papa Guerreiro" vitorioso ordenou a Buonarroti que se apresentasse em Bolonha imediatamente. A mensagem não continha as palavras "caso contrário", pois não havia necessidade. Michelangelo, reconfortado por contatos mútuos que lhe asseguraram que o papa não lhe faria nenhum mal, dirigiu-se à sede do pontífice em Bolonha e, de joelhos, pediu perdão. Júlio reclamou: "Você deveria ter vindo a Nós, mas esperou até que Nós viéssemos até você." Um bispo que estava ao lado de Júlio disse: "Sua Santidade deveria esquecer os erros dele, pois errou por ignorância. Em questões alheias ao seu ofício, todos os artistas são assim." Furioso, o papa gritou para o bispo desafortunado: "E você o ignorante, não ele. Saia daqui e vá para o Inferno." Atônito, o bispo não se retirou com rapidez suficiente, e Júlio bateu nele e o expulsou da sala, descarregando toda a sua ira contida no clérigo e não no escultor.
Júlio perdoou a Michelangelo por ter fugido, mas com uma condição: primeiro, o artista tinha de fazer uma estátua colossal de bronze de Júlio II, retratando-o como o Papa Guerreiro com uma espada nas mãos. A estátua deveria ser erigida sobre a porta da Catedral de Bolonha para lembrar aos bolonheses rebeldes quem era o verdadeiro chefe. Michelangelo protestou dizendo que esta não era sua área; porém, uma vez mais, foi obrigado a trabalhar em um meio que não havia estudado nem praticado. Júlio, no auge de sua glória e poder, não aceitava uma resposta negativa. Por este motivo, Michelangelo, contrariado, teve de retornar a uma das cidades que mais detestava, Bolonha, para trabalhar em uma das formas artísticas que menos o atraíam. A fundição do bronze era extremamente difícil, arriscada e demorada, e ele se viu então na incumbência de criar a maior estátua de bronze desde a queda do Império Romano. Ele organizou um ateliê e trouxe colegas florentinos e amigos com experiência no trabalho com o bronze. Michelangelo estava tão obcecado em terminar este trabalho e sair da cidade que mal comia e dormia literalmente com a roupa do corpo, muitas vezes simplesmente se deixando levar pela exaustão. Uma vez mais o destino esculpia sua vida em preparação para outra tarefa hercúlea com a qual não estava familiarizado. Foi exatamente assim que ele mais tarde executaria os afrescos da Sistina. Completar a fundição em bronze desta estátua gigante envolvia muitas tentativas e erros dispendiosos. Enquanto lutava desesperadamente com a tarefa, a praga irrompeu em Bolonha. Em uma carta, Michelangelo se queixou das condições de vida apertadas, da chuva, do calor infernal e do preço exorbitante do vinho que "não poderia ser pior, como tudo o mais". Foi também nesta época que ele começou a se queixar de pés inchados e doloridos e de dores nas costas. A causa das dores não podia ser a gota - a doença da realeza, ou papal -, pois ele comia pouco e esporadicamente. Certa vez, Michelangelo disse: "Eu devoro pão e vinho como se fosse um banquete, porque eles são mesmo um banquete." Segundo um artigo publicado na Kidney International, a revista da Sociedade Internacional de Nefrologia, esta retenção de líquidos dolorosa e as dores na região lombar podem ter sido os primeiros sintomas de problemas renais. É importante ter em mente este problema físico de
Michelangelo, antes desconhecido, porque ele fará uma aparição surpreendente no teto da Sistina. Após mais de um ano de suor, frustração e erros caros, Michelangelo fundiu com êxito a estátua enorme, e a terminou em fevereiro de 1508. Ele regressou alegremente a Florença para tratar de assuntos familiares e retomar a sua amada escultura. Porém, sua alegria seria de pouca duração.
A ABÓBADA DO CÉU... E DO INFERNO Em 1506, o papa ambicioso já havia conversado com Michelangelo a respeito do teto da Sistina, provavelmente quando estavam juntos em Bolonha. Certamente Júlio, um amante da arte, havia ouvido falar do grande sucesso dos dois desenhos para os afrescos no palácio do governo de Florença. É muito provável que o fato de convocar Michelangelo foi também um artifício do pontífice romano enciumado para sabotar o projeto dos afrescos florentinos. Sabemos que Michelangelo jamais retomou esta obra. Júlio, provavelmente levado pelos comentários sobre o desenho de Buonarroti para o afresco da parede em Florença, que media mais de 130 metros quadrados, estava convencido de que o artista não teria nenhum problema em executar um afresco de teto que chegaria a cobrir mais de 1.100 metros quadrados. Bramante, o conselheiro artístico e arquitetônico do papa, fez uma crítica insincera, alegando que Michelangelo não estava à altura do encargo. Esta atitude, porém, levou os amigos de Michelangelo no Vaticano a redobrar os esforços para convencer o papa de que o florentino era o homem perfeito para a obra. É evidente que, se Michelangelo permanecesse preso ao trabalho no teto por anos (algo que antes de seu feito na Sistina era considerado qualquer coisa, menos um encargo prestigioso), ele não teria como eclipsar Bramante com as esculturas do túmulo nem dar palpites nos seus planos para a catedral. Se isto foi ou não um ardil, o certo é que Bramante logo deu a sua aprovação, e Júlio e seus conselheiros passaram a informar a Michelangelo sobre os temas que deveria pintar no teto.
Além de Bramante, o papa contava com dois conselheiros mais íntimos: o cardeal Francesco Alidosi e um pregador de nome Egidio da Viterbo. Egidio, apesar de ter estudado um pouco a Cabala, era tudo menos um humanista neoplatônico. Era um ferrenho anti-semita que acreditava apenas na supremacia da Única Igreja Verdadeira. Alidosi e Egidio eram os teólogos escolhidos pelo papa, e Egidio era famoso por pregar por horas a fio, recontando a história da criação e do universo em uma linha seqüencial que começava com a condenação dos judeus e culminava com a coroação do papa Júlio II. Havia ainda uma terceira pessoa que Michelangelo deveria enfrentar em tudo relacionado à Capela Sistina: tratava-se de Giovanni Rafanelli, um frei dominicano fanático e Inquisidor de Heresias oficial, que tinha o direito de até mesmo interromper os padres durante o sermão caso achasse as declarações fora de harmonia total com o Vaticano. Portanto, uma razão decisiva para que muitas das mensagens de Michelangelo nos afrescos fossem tão sutis é que elas tinham de passar pelo exame minucioso destes três censores eclesiásticos. Seguindo recomendações de Alidosi e Egidio, Júlio apresentou a Michelangelo um plano completo para o projeto do teto. Sobre a porta frontal deveria estar Jesus, para abençoar a entrada do papa e seu séquito, enquanto os apóstolos ficariam nos 12 triângulos localizados ao redor da borda do teto. Para manter um aspecto limpo e simples, e para não competir com as obras-primas do século XV das paredes inferiores, no centro haveria um padrão geométrico sem figuras humanas composto de losangos e retângulos, iguais aos que foram encontrados nos restos de muitos palácios da Roma Imperial. Egidio da Viterbo, o conselheiro bajulador do papa, queria que todo o teto proclamasse que Júlio II fora destinado por Deus para governar o mundo. Segundo alguns relatos, mesmo quando Michelangelo obteve a permissão do papa para incluir imagens da Bíblia Hebraica no desenho, Egidio intrometeu-se e propôs uma lista de cenas do Velho Testamento, sendo a maioria delas do Livro dos Reis e dos Apócrifos. Quase todas eram imagens violentas e tinham em comum o conceito de autoridade divina estabelecida ou pela graça ou pela vingança celestial. Esta intrusão no desenho de Michelangelo teria deturpado todo o conceito do projeto, desviando o artista de sua visão espiritual pessoal para dedicar-se a uma glorificação dos
papas da família della Rovere. Obviamente este plano não agradava a Michelangelo. O projeto parecia uma série de desafios insuperáveis. Seria o maior afresco do mundo, com mais de 1.100 metros quadrados. Ele jamais tinha trabalhado com a técnica do afresco. Todos os dias ele se veria frente a frente com a concorrência: os painéis das paredes de Moisés e Jesus, obras-primas de renome internacional criadas pelos maiores artistas do mundo da técnica de afresco, incluindo o seu primeiro mestre, Ghirlandaio. Se por acaso ele chegasse a concluir o teto, a sua obra de pintor de afrescos iniciante seria comparada à dos mestres. A capela era usada constantemente, mais de vinte vezes por mês. O andaime não podia ser do tipo tradicional, pois seria necessária uma grande quantidade de madeira que obstruiria a capela e a inutilizaria por vários anos. O conceito rígido e prosaico do papa para o teto contradizia todas as crenças de Michelangelo, tanto em suas buscas espirituais quanto como artista. Os conselheiros do papa estariam empenhados em flagrá-lo em qualquer alteração ou "heresia" que porventura ele inserisse no trabalho. O papa e Bramante disponibilizaram para ele uma grande quantidade de auxiliares romanos para ajudá-lo com o gesso e a tinta, mas Michelangelo sabia muito bem que sua outra tarefa era espioná-lo durante a execução do trabalho.
Primeiro, Michelangelo conversou em particular com o papa, alegando que era seu dever como artista dizer a Sua Santidade que seu desenho para o teto era "pobre". Segundo aversão de Michelangelo sobre o incidente, o papa se limitou a encolher os ombros e dizer que ele podia fazer o que bem entendesse. E mais provável que o artista tenha adulado o ego de Júlio, prometendo-lhe um belo retrato que dominasse toda a capela, da mesma forma que o seu túmulo esculpido teria sua imagem reinando sobre toda a catedral. Conforme podemos ver hoje nas Estâncias de Rafael, Júlio jamais se cansava de ver seu próprio retrato, pois ele está presente em quase todas as paredes pintadas durante o seu papado.
Pouco tempo depois, Michelangelo despediu sumariamente toda a sua equipe de auxiliares romanos e fez vir de Florença cinco amigos de longa data, todos eles artistas experientes com afrescos, para trabalhar com ele durante toda a duração do projeto. Alguns seriam substituídos mais tarde, mas Buonarroti recrutava apenas ajudantes florentinos que mantinham a boca bem fechada, de maneira que nenhum espião romano descobriu o que ele realmente estava pintando no teto Sistino. Bramante, o arquiteto do papa, se encarregou do andaime que possibilitaria o uso da capela enquanto o trabalho era realizado. Primeiro ele propôs um andaime suspenso por cordas que seriam fixadas em grandes buracos no teto. Michelangelo convenceu o papa de que estes buracos arruinariam tanto o teto quanto o desenho. Bramante então apresentou uma outra solução: um impressionante andaime com pouquíssimas hastes de sustentação tocando o chão. Este caiu antes mesmo de ser utilizado durante um dia. Tudo o que Bramante conseguiu foi constranger-se perante o papa. Michelangelo, que passara muito tempo estudando a arquitetura das ruínas romanas, propôs um andaime revolucionário em forma de "ponte de arco". Era baseado nos princípios do arco romano, cujo peso é transferido para as laterais para onde se estende. Esta estrutura engenhosa podia ser inserida em apenas alguns buracos pequenos nas paredes laterais, pois toda a pressão seria transferida para lá, e não em direção ao piso. Este andaime permitiria também que Michelangelo pintasse uma faixa inteira do teto de uma só vez, e depois passasse para a seguinte logo depois de terminar a anterior, desta maneira avançando rapidamente por toda a extensão da capela. Ele obteve a permissão para a construção do andaime, e foi um sucesso imediato, pois toda a corte papal podia realizar as suas procissões habituais sob a estrutura sem nenhum tipo de obstrução. Na parte inferior de sua ponte de arco, Michelangelo afixou um pedaço grosso de tecido, supostamente para impedir que caísse alguma tinta ou gesso nas procissões papais ou nas obras-primas do século XV das paredes inferiores. Porém, uma razão muito mais importante era impedir que olhos intrometidos vissem o que ele estava pintando no teto.
Enquanto isto acontecia, o artista rebelde ocupava-se dia e noite do desenvolvimento de seu desenho bastante pessoal para os afrescos. Normalmente a decoração de um teto era uma tarefa marginal para um artista, por isso incumbir alguém da estatura de Michelangelo deste encargo era algo ligeiramente ofensivo, e Bramante sem dúvida tinha consciência disso. Buonarroti queria que esta situação pesasse a seu favor e almejava criar não apenas mais uma decoração bonita para uma capela, mas um testemunho de seu próprio talento. Ele também queria registrar seu desprezo por toda a hipocrisia e abuso de poder que presenciava diariamente no Vaticano da era renascentista, mas queria expressá- lo de uma maneira que não causase sua prisão ou execução. Os estudos que Michelangelo fez da Cabala, do Talmude e do Midrash lhe forneceram um material considerável para incorporar aos seus planos. Mesmo assim, ainda nos perguntamos: Michelangelo chegou por seus próprios meios a todos estes símbolos hebraicos e referências místicas? Jamais saberemos com certeza, mas é provável que duas almas semelhantes que trabalhavam no Vaticano tenham desempenhado um papel importante e compartilharam alguns de seus conhecimentos com o artista. Um deles era Tommaso Inghirami, neoplatônico cristão que conhecia um pouco da Cabala. Ele fora o consultor do jovem Rafael durante o planejamento das várias camadas de significados do seu famoso afresco A Escola de Atenas para o escritório do papa Júlio II. O outro "suspeito" possível foi Schmuel Sarfati, médico judeu do papa. Um fato pouco conhecido é que mesmo durante os séculos de perseguição da Igreja, quando os judeus não tinham a permissão de tratar pacientes cristãos, quase todos os papas tinham a seu serviço um médico judeu. Sarfati, além de ser um médico e anatomista respeitado, era extremamente culto; poeta, estudioso da Torá e do Talmude e também muito versado na Cabala e em literatura hebraica. Seu conhecimento de latim era tão bom que foi escolhido para dirigir-se formalmente ao papa em latim em nome da comunidade judaica de Roma; apesar de Sarfati ser de Florença, assim como Michelangelo. Embora não tenhamos nenhum registro escrito dos encontros entre ele e Buonarroti, é muito estranho pensar que estes dois gênios renascentistas florentinos jamais tenham se encontrado, pois ambos trabalhavam no palácio papal e tinham muitas coisas em comum.
Segundo relatos locais, em 1511, quando Michelangelo estava profundamente envolvido na pintura do teto, o papa ficou gravemente enfermo, provavelmente em decorrência da sífilis que contraíra anos antes. Quando não conseguia mais comer ou mesmo falar, teve-se a impressão de que seria o fim do Papa Terribile. Se o papa morresse durante a pintura dos afrescos, era bem provável que seu sucessor cancelasse ou mesmo destruísse todo o trabalho já realizado. Conta-se que enquanto o resto dos assistentes e consultores médicos do papa estava ocupado em saquear o seu aposento particular — pois Júlio jazia inerte na cama o seu principal médico ferveu alguns pêssegos e os deu para ele chupar a polpa macia. Segundo este relato, o médico conseguiu aos poucos restaurar a saúde do papa, e logo Júlio voltou a aterrorizar o palácio e ser tão terribile quanto antes. É muito provável que este médico tenha sido o judeu Schmuel Sarfati e, se esta história for verdadeira, significa que o médico judeu de Júlio contribuiu para salvar o teto da Capela Sistina de Michelangelo. Porém, independentemente de o artista ter recebido conselhos ou não, foi Michelangelo quem se arriscou ao inserir todas as suas mensagens secretas nos afrescos, assegurando a sua sobrevivência por cinco séculos exclusivamente graças ao seu talento. Não é necessário que nos detenhamos aqui no processo longo, árduo e litigioso de pintura do teto, pois disso já se ocuparam várias vezes muitos livros e filmes. E certo que Michelangelo pintou sozinho a maior parte do teto, e seus auxiliares o ajudaram apenas na preparação do gesso e das tintas. E certo também que ele freqüentemente discutia com Júlio, que certa vez o golpeou em público com seu báculo pastoral. É verdade que estava tão obcecado em terminar o trabalho e retomar a sua amada escultura que muitas vezes passava dias sem se banhar ou trocar de roupa. Não é verdade que ele pintava deitado de costas o tempo inteiro. Temos uma caricatura que fez de si mesmo, esboçada em uma carta pessoal junto a um poema tristemente cômico sobre os sofrimentos que padecia no andaime. Este esboço e o soneto que o acompanha são testemunhos de que a situação do pobre Michelangelo foi ainda mais terrível, pois passou quatro anos e meio no andaime com o corpo contorcido.
No poema, endereçado a um humanista e amigo íntimo seu, Michelangelo descreve sardonicamente como seu corpo se desfigurava durante o processo torturante da pintura, a ponto de deixá-lo irreconhecível: inchado por causa da retenção de líquidos, a cabeça inclinada para trás de maneira pouco natural... ...E o pincel sobre o meu rosto goteja O transforma em piso suntuoso As costas entraram em minha pança Enquanto o traseiro é contraído como as ancas de um cavalo, de contrapeso... Ele termina o poema com um tom de desalento, que nos conta o quanto odiava esta tarefa: De minha pintura morta e minha honra, Giovanni, sê defensor Pois o lugar onde estou não é muito bom, e tampouco sou pintor. Michelangelo estava tão desesperado para escapar de seu "lugar não muito bom" que, ao se aproximar o fim de seu trabalho no teto, ele passou a usar cada vez menos desenhos e esboços preparatórios para orientar-se na pintura no gesso úmido, e começou a fazer algo que até então nenhum artista tinha ousado fazer: pintar afrescos à mão livre. De fato, enquanto muitos dos primeiros painéis eram produtos de meses e meses de trabalho intensivo, o painel da Criação, acima da parede do altar, foi pintado totalmente à mão livre em um só dia. Michelangelo não estava se apressando apenas para voltar a esculpir. Ele sabia que a sua saúde física estava em risco se permanecesse nesta tarefa por muito mais tempo. Com efeito, quando terminou, sofria de escoliose, reumatismo incipiente, problemas respiratórios, uma maior retenção de líquidos e prováveis cálculos renais, além de problemas de visão. Até que sua vista voltasse ao foco normal, um ano depois, ele só conseguia ler uma carta ou olhar para um desenho segurando o objeto acima de sua cabeça, como se ainda estivesse pintando o teto.
Detalhe da carta particular de Michelangelo, 1510 (Casa Buonarroti, Florença). Observe a caricatura raivosa e infantil do papa no teto. Quando terminou a obra no outono de 1512, a primeira coisa que Michelangelo fez foi destruir o seu incomparável andaime em forma de ponte de arco e queimar todas as anotações e desenhos particulares que fizera para o teto. Jamais saberemos o que continham estas folhas de papel caro, cobertas pelas suas verdadeiras intenções. Entretanto, justamente o fato de ter se sentido forçado a destruir as evidências é um indício de que os censores papais não teriam aprovado. Antes da grande inauguração, o papa Júlio foi ver a obra em particular. Ele deu a sua aprovação em tom áspero, e com uma queixa: disse a Michelangelo que o trabalho não estava terminado, que ele teria de reunir seus ajudantes e construir
de novo o andaime. Júlio queria que a pintura tivesse mais das cores da família delia Rovere, o dourado e o azul real. Estas cores eram as mais caras para qualquer pintor de afresco, pois o dourado requeria o uso de verdadeiras folhas de ouro, e o azul real era feito de lápis-lazúli puro, uma pedra semi-preciosa e importada. Como o papa tinha feito o artista pagar pelos materiais do seu próprio bolso, Michelangelo usou pouco destas duas cores no teto. Exausto, porém obstinado, Buonarroti respondeu que o projeto estava terminado, que era impossível recomeçar, e que o afresco estava com as cores que deveria ter. O pontífice arrogante revidou e usou sarcasticamente o que Michelangelo dissera sobre os seus próprios planos para o teto: "Bem, então será uma obra muito pobre'." Foi de Michelangelo a última palavra: "Os santos que estão lá em cima também eram pobres." A comemoração suntuosa aconteceu no aniversário da coroação do papa, 31 de outubro de 1512. Neste dia, a pintura ocidental mudou para sempre. Michelangelo, o escultor, tinha pintado mais de 300 figuras que pareciam ter sido esculpidas no teto bidimensional. Artistas e amantes da arte afluíram de todas as partes do mundo para observar, assombrados e cheios de admiração, esta façanha sobre-humana. Cinco séculos mais tarde, eles ainda continuam a ter a mesma reação. Michelangelo triunfara, apesar de todos os múltiplos desafios, obstáculos e dúvidas. O "Papa Guerreiro" morreu pacificamente em seu leito quase quatro meses depois, e o escultor Michelangelo pôde usar seus talentos novamente no projeto que o trouxera a Roma, esculpindo o túmulo colossal de Júlio II.
A HISTÓRIA OFICIAL Há muitos livros, teses e artigos dedicados a várias interpretações dos afrescos do teto da Sistina, mas o ponto de vista mais aceito através dos séculos tem sido naturalmente o do Vaticano. Como então a Igreja explica oficialmente o desenho não-tradicional e muitas vezes confuso de Michelangelo? Na publicação oficial dos Museus Vaticanos, A Capela Sistina, Fabrizio Mancinelli escreve que os painéis do Gênesis, localizados no centro, "têm por
objetivo ilustrar as origens do homem, sua queda, a sua primeira reconciliação com Deus e a promessa da redenção futura". O problema desta interpretação, repetida com freqüência, é que a série de pinturas termina com Noé se embriagando e se expondo, enquanto seu filho Ham zomba dele e seus dois outros filhos tentam cobri-lo. Esta é de fato uma promessa de redenção futura? Caso seja, é uma promessa muito desconexa. Sobre a mescla incomum de profetas e sibilas, o livro diz que "eles de maneira mais ou menos clara previram a vinda do Redentor da humanidade". O texto não faz referência à mescla de profetas e sibilas que a maioria dos jovens da época havia estudado no PseudoFocílides, conforme foi discutido no capítulo sobre a formazione de Michelangelo. O restante da explicação oficial sobre o teto está repleto de expressões como "não totalmente claro do ponto de vista temático", "sem uma conexão estrutural real" e outras igualmente vagas. Basicamente, a Igreja explica o enorme afresco como simplesmente "a promessa de redenção por meio de Cristo e sua Igreja". Em outras palavras, a criação do universo, o Pecado Original, o Dilúvio, o pecado da embriaguez de Noé, as sibilas pagãs, os profetas hebreu, os ancestrais judeus, ou seja, tudo isto converge para a vinda do Salvador e da Única Igreja Verdadeira sob a orientação divinamente inspirada de Sua Santidade, o papa Júlio II della Rovere. Até mesmo a Wikipedia, a enciclopédia popular on-line, diz: O tema do teto é a doutrina da necessidade que a humanidade tem de ser salva por Deus por meio de Jesus. Em outras palavras, o teto ilustra que Deus fez o Mundo como uma criação perfeita e colocou nele a humanidade, que a esta caiu em desgraça e foi punida com a morte e com a separação de Deus. Deus enviou os profetas e as sibilas para dizer à humanidade que o Salvador ou Cristo, Jesus, lhes traria a redenção. Deus preparou uma linhagem de pessoas, desde Adão, passando por vários personagens no Antigo Testamento, como o rei Davi, até a Virgem Maria, por meio de quem viria Jesus, o Salvador da humanidade. Os vários componentes do teto estão relacionados com esta doutrina.
Parece ser tudo claro e simples, porém se esta é uma obra profundamente religiosa, por que então Michelangelo escondeu ao menos três gestos ofensivos dirigidos ao papa? Se esta é uma obra profundamente católica, por que, dentre mais de 300 figuras, não há uma só que seja cristã? Conforme veremos, com a exceção de uma série de nomes escassamente reconhecíveis que aparecem em alguns pontos da obra, de Abraão até José, o pai judeu de Jesus, não há nenhum outro elemento cristão no teto, e muito menos um símbolo ou uma figura cristã. Em um espaço de mais de 1.100 metros quadrados para trabalhar, é de se duvidar que Michelangelo tenha tido problemas de falta de espaço. Onde estão Jesus e Maria? Eles não se encontram em nenhum lugar da obra. Cerca de 5% deste teto famoso é coberto por simbolismo pagão e o restante — aproximadamente 95% dele — contém temas e heróis e heroínas judeus. Muitos guias e comentadores afirmam, tal qual o artigo da Wikipedia citado anteriormente, que o conceito de Michelangelo para a obra culmina na redenção final trazida por Jesus, ou seja, no Juízo Final da parede do altar. O problema desta explicação comum é que Buonarroti deixou a capela em 1512, com esperanças de nunca mais ter que dar nem uma só pincelada a mais na capela. Ele foi forçado por um outro papa 22 anos mais tarde a criar o afresco da parede do altar. Dificilmente se tratou de um desenho pensado de maneira orgânica. O Vaticano já apresentou explicações extremamente forçadas, através dos tempos. Segundo várias delas, Michelangelo teria seguido os ensinamentos arcanos sobre a história da salvação de Jesus - fossem os de Egidio da Viterbo, em uma homilia interminável e verborrágica sobre a história do mundo que ele deu em Roma em 1502 (enquanto Buonarroti ainda morava em Florença), ou os de outros teólogos mais obscuros que o artista nunca teria lido ou conhecido, ou mesmo de uma série de sermões de ninguém menos que o fanático Savonarola. Buonarroti ficara tão traumatizado pelas arengas do monge que o artista afirmava ainda em sua idade avançada que era capaz de ouvir a voz do dominicano em sua cabeça. Alguns historiadores da arte crêem que este é um testamento do catolicismo fortemente arraigado de Michelangelo e de seu amor pela Igreja, e mesmo por Savonarola.
Deixemos que o próprio artista diga a última palavra a este respeito. Logo após terminar a tarefa debilitante de pintar os afrescos no teto, ele escreveu mais um poema em tom furioso para seu amigo, descrevendo o Vaticano em 1512: Aqui fazem elmos e espadas a partir cálices, E o sangue de Cristo vendem a rodo, Da cruz e espinhos fazem lanças e escudos E apesar disso chove a paciência de Cristo. Que ele não volte mais por estes lados Ou seu sangue subirá até as estrelas Pois em Roma já vendem até sua carne E os caminhos do Bem estão fechados. O homem de cuja pena saíram estes versos não trabalharia por quatro anos e meio sob condições terríveis para criar uma ode em louvor e glória à santidade da Igreja sob a autoridade do papa Júlio II. Nos capítulos seguintes, levaremos você a uma visita pessoal e sem precedentes - uma explicação passo a passo do que Michelangelo realmente expressou no teto.
LIVRO DOIS Uma Visita Particular à Capela Sistina Capítulo Sete CRUZANDO O UMBRAL Quem nunca viu a Capela Sistina não pode ter uma idéia adequada do que um homem é capaz de realizar. — GOETHE VO C Ê
N Ã O E N T R A M A I S P E L A entrada de antigamente.
Hoje em dia, sua primeira visão dos afrescos magníficos é bem diferente do que Michelangelo tinha em mente. O grande portal dos pontífices está fechado para o visitante comum. No lugar dele, você passa por uma estreita porta para os acólitos no final do salão. Se você por acaso tiver tempo de olhar para trás, notará que acabou de passar por baixo do brasão da família de Alexandre Borgia, o "papa envenenador", e sob as pernas do rei Minos, condenado a sofrer eternamente, os órgãos genitais mastigados por uma serpente venenosa no afresco do Juízo Final. Imediatamente, guardas irritados ordenam que você saia da área do altar. De forma descortês, você é empurrado ao piso principal, completamente coberto pelos pés de milhares de visitantes cansados que acabaram de passar pelo labirinto do complexo dos Museus Vaticanos. Você está imerso numa turba de turistas e peregrinos abismados; ouvem-se gritos ásperos dos funcionários: "Silêncio! Nada de fotos, nada de filmagens!" Alguns visitantes arrogantes insistem em tirar fotos e filmar. Ao se olhar para cima e esticar o pescoço para trás na tentativa de ver o que já se conhece por meio de fotografias e ilustrações, você fica simplesmente atordoado pelas centenas de figuras e formas espirais e cores brilhantes. Você consegue resistir de dez a 15 minutos sob o efeito desta sobrecarga sensorial maciça antes de sair - e verá a maior parte das figuras de cabeça para baixo e na direção contrária ao desenho de Michelangelo. E é esta a maneira como a maioria dos visitantes tem contato com a Capela Sistina. Não é de se estranhar, então, que a maioria dos significados profundos e das mensagens de Michelangelo passe despercebida ao turista comum. Por vários séculos, até mesmo eruditos já fizeram interpretações errôneas ou ignoraram muitos dos segredos do teto. Para apreciar em sua totalidade o milagre que é a Capela Sistina de Michelangelo, o espectador precisa compreender as motivações de Michelangelo, seus antecedentes, os primeiros anos de formação intelectual sob a instrução privada no Palácio de Medici em Florença e - talvez a influência menos reconhecida sobre toda a sua carreira — a sua fascinação pelo judaísmo e pelos ensinamentos místicos da Cabala. Será que ele descobriu por
seus próprios meios todo o conhecimento proibido que incorporou na Sistina? Já assinalamos alguns "suspeitos" em potencial, tais como o médico judeu do papa, Schmuel Sarfati, e o cabalista cristão Tommaso Inghirami, mas jamais saberemos ao certo. O que de fato sabemos é que o papa Júlio II, sofrendo de sífilis e ocupado com outros assuntos, ao final deixou o desenho do projeto do teto ao encargo do polêmico Michelangelo. Em uma carta particular escrita 11 anos após o término do projeto, Michelangelo contou que quando ele e o papa não conseguiram chegar a um acordo sobre o desenho ("Parecia que não terminaria bem"), Júlio finalmente capitulou - na primeira vez na História em que um papa se rendeu a um pintor. De forma surpreendente, Júlio concedeu a Buonarroti "um novo encargo no qual ele podia fazer o que bem entendesse". Qualquer que tenha sido a fonte de seus conhecimentos judaicos - seus próprios estudos ou orientações de outros nos bastidores — foi o escultor que se tornou pintor sob pressão quem finalmente arriscou sua arte e sua própria vida ao escolher e inserir estas mensagens em seu plano mestre. Qual foi este plano, afinal? O que o grande teto representa de fato? Para chegar a uma compreensão total, temos de conhecê-lo da maneira como Michelangelo o criou e queria que fosse interpretado, passo a passo, camada por camada. É importante se ter em conta que originalmente os visitantes da capela entravam pela porta frontal, para sentir o santuário como um todo orgânico, começando com a visão total do salão em toda a sua extensão, observando-o do portal e depois mergulhando aos poucos nas imagens, passo a passo. Michelangelo tinha um propósito duplo: por um lado, o impacto da visão completa em larga escala servia como uma fonte de inspiração poderosa, pois não havia como não se impressionar, tanto visual quanto emocionalmente. Porém, há uma outra função, uma técnica brilhante para ocultar as mensagens mais profundas e perigosas de sua obra. Michelangelo fez uso de tantos ingredientes diferentes na mescla que a visão do espectador comum é distraída, perturbada e, por fim, desorientada. Para se ter uma idéia do quanto Michelangelo incluiu no teto da capela, eis aqui uma lista breve de seus componentes principais: •
Arquitetura trompe l'oeil, com ilusões óticas
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As quatro redenções dos judeus A genealogia dos ancestrais judeus Os profetas As sibilas Os medalhões As grinaldas Os nus gigantes Os nus em bronze Os putti, pequenas figuras de anjos As primeiras duas seções da Torá do livro do Gênesis, evento por evento
Há tanta informação e decoração neste afresco, o maior do mundo, com mais de 1.100 metros quadrados, que ele parece exagerado e rebuscado. Queremos deixar claro que os afrescos são de fato assim, mas o são de propósito. Imagine um mágico muito habilidoso fazendo truques com as mãos. O prestidigitador fará tantos movimentos rápidos e gestos pomposos e poses que distraem a atenção com uma das mãos que o espectador não percebe que o ato verdadeiro se passa na outra mão. E assim a obra da Capela Sistina. É claro que é possível encontrar significados em todos os elementos dos afrescos, mas até mesmo a comparação mais casual com a simplicidade austera da escultura e da arquitetura de Michelangelo - por exemplo, o Davi, a Praça do Capitólio, a Pietà e a Capela de Medici - sugerem que a sobrecarga sensorial da Sistina é o resultado de uma decisão consciente por parte do artista. A genialidade de Michelangelo reside no fato de ele permitir que o espectador veja muito - para não revelar o que é melhor deixar em segredo, exceto para uns poucos conhecedores. Em outras palavras, ele pintou tantas árvores que não conseguimos ver a floresta. Para enxergar o teto da capela da maneira que o artista concebeu para seus mais próximos, imagine que você entra de olhos fechados, que alguém o guie pelas escadas do altar e por toda a extensão do recinto, passando pela parede divisória de mármore até o final da capela, onde você vira e abre os olhos. Esta é uma imagem bem apropriada, pois para compreender todas as mensagens secretas de
Michelangelo, você precisará fechar seus olhos a todas as interpretações comumente aceitas, prosseguir com valentia, mudar seu modo de pensar e abrir seus olhos para uma nova realidade. Para descobrir e compreender os segredos da Sistina, você precisará proceder com cuidado, de uma maneira cabalística e neoplatônica: começando pelos contornos e avançando para dentro, elemento por elemento, até o núcleo central de significado. Volte o seu olhar para o portone (grande porta) de madeira do papa e você verá Zacarias, o primeiro dos sete profetas judeus do teto. Sempre que o papa adentra a capela pela entrada principal, Zacarias está sentado logo acima de sua cabeça, no mesmo local onde o papa Júlio II queria que Michelangelo colocasse Jesus. Por que colocar um dos últimos e menos conhecidos profetas judeus acima da porta frontal da Sistina? Michelangelo deve ter escolhido Zacarias por uma série de razões — mais uma vez, temos aqui camadas múltiplas de significados, tão essenciais ao pensamento talmúdico e cabalístico, e tão caros a Michelangelo. Primeiramente, Zacarias advertiu os sacerdotes corruptos do Segundo Templo Sagrado: "Abre as tuas portas, ó Líbano, que o fogo devore os teus cedros" (Zacarias 11:1). Segundo esta profecia, se os sacerdotes não parassem com suas práticas corruptas e pecaminosas, as portas do santuário seriam derrubadas por seus inimigos e o Templo, construído parcialmente com cedro do Líbano, seria queimado. E eis então o autor desta advertência, bem acima da porta de entrada do santuário do papa Júlio. Zacarias é também o profeta da consolação e da redenção. Ele é um dos que insiste para que os judeus reconstruam Jerusalém e o Templo Sagrado: "Proclama ainda. Assim diz Iahweh dos Exércitos. Minhas cidades terão abundância de bens, Iahweh consolará Sião novamente, e ele elegerá novamente Jerusalém" (Zacarias 1:17). À sua própria maneira, Buonarroti insinua que sabe o que a Sistina é: uma cópia em tamanho real do heichal, a extensa parte traseira de formato retangular do Templo de Salomão. Entretanto, ao mesmo tempo ele nos faz saber que não é adepto da teologia do sucessionismo proclamada pela Igreja, e que não acredita que Jerusalém possa ser substituída por uma cópia do Templo em uma terra estrangeira.
À esquerda: Zacarias — exatamente acima da entrada papal. À direita: detalhe de Zacarias mostrando o rosto do papa Júlio. Veja a figura 7 do encarte. Uma outra visão de Zacarias envolve os "quatro chifres" que irão assolar Israel. Estes simbolizam os quatro exílios impostos por regimes estrangeiros e opressores: o egípcio, que já era extinto; o babilônico, que estava chegando ao fim na época de Zacarias; o persa, do país que acabara de conquistar a Babilônia; e finalmente o grego. Estes quatro chifres são representados nos quatro painéis curvos nos cantos do teto que rodeiam Zacarias, e que contém tantos segredos que merecem um capítulo à parte. Zacarias teve uma outra visão profética, sobre a Menorá Sagrada, o candelabro de ouro de sete hastes, no Templo. Apesar de possuir sete hastes, os candelabros eram feitos de uma única peça de ouro batido, e todas as suas luminárias se inclinam em direção ao centro. Esta é a razão pela qual a parede divisória de mármore em forma de grade da Sistina tem sete chamas de mármore esculpidas no topo, simbolizando a Menorá, colocadas exatamente diante da imagem de Zacarias. Segundo a profecia, estas sete luzes são "os olhos do Senhor" (4:10) que cuidam de toda a Criação.
Este símbolo das sete hastes diferentes que saem de uma única peça de ouro é o cerne do ensinamento de Zacarias, assim como da mensagem de Michelangelo, e significa que, apesar de existirem vários ramos de crenças, e muitos nomes para Deus, tudo se une finalmente a uma Luz comum. Nenhum Povo do Livro tem o direito de dominar, subjugar, aniquilar ou converter outro. "Não pelo poder, não pela força, mas sim por meu espírito — disse Iahweh dos Exércitos" (Zacarias 4:6). Justamente no começo da decoração do santuário supremacista e excludente da Única Igreja Verdadeira, Michelangelo pintou uma das figuras mais universalistas e includentes das Escrituras hebraicas com a esperança de que sua mensagem fosse ouvida e seguida, mesmo na Capela Sistina do Vaticano: "... naquele dia, Iahweh será o único, e seu Nome o único" (Zacarias 14:9).
Dois putti "mostrando o dedo" para a figura do papa Júlio. Contudo, o artista rebelde havia pintado um profeta judeu menor no local mais importante, onde o papa queria que Jesus fosse retratado. Como Michelangelo imaginou que poderia escapar da ira do papa ao desafiar seus desejos abertamente? Substituir Jesus por um profeta menor poderia ter causado a condenação de qualquer outro artista contratado, mas Michelangelo encontrou uma maneira brilhante de apaziguar o seu patrono. O painel do profeta Zacarias não é simplesmente um retrato idealizado de uma figura bíblica. Michelangelo sobrepôs uma imagem do papa Júlio II sobre o antigo profeta judeu. Além disso,
ele pintou Zacarias vestido com um manto azul real e dourado, as cores tradicionais do clã delia Rovere, a família do papa Sisto IV e de seu sobrinho, o papa Júlio II. Por que substituir a imagem de Cristo por um retrato do pontífice? Isto não era nenhum problema para o ególatra Júlio, pois seu rosto estaria permanentemente acima da entrada de seu novo e glorioso santuário, e seria visto por todos os papas futuros, comemorando o papel de sua família na construção desta obra. A justaposição de Júlio sobre a entrada real foi um magistral golpe psicológico de Michelangelo. Por executá-lo logo no início do grande projeto, deve ter ajudado a dissipar os temores do papa em relação ao comportamento rebelde do artista. Não é difícil imaginar que Michelangelo contava com essa bajulação ao ego desmesurado do papa, para conseguir o perdão pelo abandono posterior do desenho papal, prevendo um teto inteiramente cristão. Porém, Michelangelo não conseguia a submissão total de seus sentimentos verdadeiros em relação a seu mecenas. Ele estava atormentado com a possibilidade de passar vários anos solitários, em escadas e andaimes, fazendo o tipo de arte que mais desprezava, a pintura, sem poder se dedicar à grande paixão de sua vida: a escultura. Por isso, incorporou mais uma mensagem na suposta homenagem ao papa, que nos deixa com uma perspectiva totalmente diferente. Os putti, as pequenas figuras de anjos, que aparecem no painel do profeta Zacarias, servem como "personagens de apoio", criados por Michelangelo para "sussurrar" sutilmente os pensamentos reais do artista ao espectador bem informado. Neste caso, estas figuras estão olhando por sobre o ombro do profeta, lendo despreocupadamente o livro dele. Um anjo se apóia em seu companheiro, e eles parecem, mais do que qualquer outra coisa, dois modernos fãs italianos de futebol, lendo os resultados dos últimos jogos no jornal de um vizinho no metrô. Algo difícil de se notar é que o anjinho inocente de cabelos dourados, apoiado no outro, está fazendo um gesto extremamente obsceno por trás da cabeça do papa Júlio. Ele está de punho cerrado, com seu polegar entre os dedos médio e indicador. Esta "figa" era a versão medieval e renascentista correspondente ao gesto vulgar de mostrar o dedo médio nos dias de hoje. No afresco, aparece um pouco indistinto e confuso propositadamente, pois se o velho papa tivesse
enxergado o desenho claramente, a carreira de Michelangelo, e muito provavelmente a sua vida, teriam se acabado naquele instante. É certo que quase ninguém se dá conta disso, mas até hoje, quando o cortejo papal adentra pelo portal gigante para assistir a uma das raras missas na capela, o pontífice passa por baixo de um retrato de seu predecessor, para quem Michelangelo mostra o dedo.
Capítulo Oito A ABÓBADA DO CÉU Acima é como o que está abaixo, e abaixo, como o que está acima. — PROVÉRBIO DA CABALA UM D O S M U I T O S M O T I V O S D E Michelangelo para não querer pintar o teto da Sistina era sua falta de detalhes arquitetônicos clássicos. Apesar de a capela ter as medidas e proporções exatas do Templo Sagrado original, seu aspecto é simples e medieval. O teto é uma abóbada de canudo simples e sem atrativos, e a sua austeridade é abrandada apenas pelos 12 triângulos em volta de suas bordas. Isto era diametralmente oposto ao gosto de Michelangelo, amante do desenho romano pagão: o Panteão, as estátuas greco-romanas de homens musculosos que estavam sendo descobertas em Roma, os detalhes das cornijas avariadas encontradas no Foro Romano e os tetos artesoados da Basílica de Magêncio, para citar apenas alguns exemplos. Um desenho de abóbada de canudo simples da Idade Média não satisfazia seu gosto de forma alguma. Há uma história sobre ele do tempo em que já estava muito velho, famoso e rico. Em um dia de inverno, com neve, um cardeal passava em sua carruagem luxuosa e viu o artista caminhando com grande esforço pela neve derretida e pelo barro, em direção ao Coliseu e o Foro Romano. Naquela época, o Foro era chamado de campus bovinus, porque apenas poucos dos vestígios mais altos das glórias antigas de Roma se elevavam em meio ao barro. O cardeal ordenou que o cocheiro parasse junto a Michelangelo e lhe ofereceu uma carona. Orgulhoso, o fiorentino recusou dizendo: "Obrigado, mas estou indo para a escola." "Escola?",
perguntou o cardeal, com perplexidade. "Você é o grande Buonarroti. Que escola poderia ter algo para te ensinar?" Michelangelo apontou para o Coliseu e para as poucas ruínas avariadas do Foro. "Esta", respondeu, "esta é a minha escola". Quando Michelangelo planejou o grande projeto do teto, uma das primeiras partes do conceito era uma estrutura arquitetônica de trompe 1'oeil, não apenas para dar a impressão de estar sustentando a abóbada, mas também para emoldurar a imensa variedade de painéis e imagens, uma espécie de galeria de arte a 20 metros do chão. A estrutura falsa cumpre também outras funções. Apesar de ter a aparência de mármore pesado, confere uma leveza ao teto maciço de abóbada de canudo e parece elevá-lo até os céus. Quando o visitante se detém na entrada principal da capela, em frente ao portone dos papas, o teto não parece ser plano, e sim ter a forma de um avião no momento da decolagem. Para ressaltar este efeito, Michelangelo inseriu duas pequenas ranhuras de céu falso em cada extremo da abóbada, fazendo com que o visitante sinta de maneira subliminar que todo o afresco é uma estrutura aberta e suspensa no ar. Também indica ao espectador que o teto não é uma "salada mista" de fragmentos flutuantes de imagens desconexas, mas sim um sistema orgânico verdadeiro e unificado de pensamento, muito semelhante à filosofia neoplatônica unificadora que Michelangelo tanto assimilara em sua juventude. A escola neoplatônica nos oferece uma explicação clara da arquitetura romana falsa que forma o esqueleto da obra de Michelangelo. Pico delia Mirandola e os outros professores do círculo Medici estavam fascinados por Filo de Alexandria, um dos primeiros filósofos judeus que desenvolveu um sistema de pensamento cabalístico profundamente influente no século I d.C. Com efeito, muitos teólogos e historiadores da religião atribuem aos escritos de Filo um grande efeito formador sobre os primórdios do cristianismo. Em uma de suas obras mais conhecidas, De Opificio Mundi (Sobre a Criação do Mundo), Filo descreve Deus como o "Grande Arquiteto" do universo: Quando uma cidade é fundada por causa da ambição excepcional de um rei ou líder que assume a autoridade absoluta, e que ao mesmo tempo é um homem de imaginação brilhante, ansioso por exibir a sua boa fortuna, então acontece às
vezes que surge um homem que, por sua educação, é habilidoso em arquitetura, e ele, vendo o caráter propício e a beleza da situação, primeiro esboça em sua própria mente quase todas as partes da cidade que será construída [...] e depois de receber em sua mente a forma de cada edifício como se estivessem impressas em um tablete de cera, ele carrega em seu coração a imagem da cidade [...] como bom artífice, mantendo os olhos fixos em seu modelo, ele começa a erigir a cidade com pedras e madeira, fazendo com que os objetos corpóreos se pareçam com as idéias incorpóreas. Agora, precisamos formar uma opinião similar de Deus, Quem, ao resolver fundar um grande estado (o Universo), primeiro de tudo concebeu sua forma em sua mente, e de acordo com ela fez um mundo perceptível apenas ao intelecto, e então concluiu um mundo visível aos sentidos externos, usando o primeiro como modelo. Este fragmento descreve de maneira bela não apenas o processo de realização de um arquiteto, como também o de um artista do Renascimento, particularmente um que estivesse fazendo os preparativos para a criação de um afresco. Primeiro, o pintor tinha de conceber o projeto inteiro, mapeando-o em sua mente, para depois fazer esboços e desenhos preparatórios em tamanho real no papel, que eram então finalmente transferidos para a superfície permanente do gesso. O projeto de Michelangelo certamente evocava a filosofia universal de Filo. Assim como o Arquiteto Divino mapeou todo o plano mestre da criação, o artista deve primeiro traçar toda a unidade planejada do projeto. No estudo que Michelangelo fez do Midrash, a coletânea da tradição oral ligada às Escrituras judaicas, ele certamente deve ter lido a famosa frase que diz: "O Criador usou a Torá como a planta do universo." Na ordem da criação, a Torá veio primeiro. "Eu estava na mente do Sagrado", diz a citação da Torá, "tal qual o desenho geral na mente de um artesão". O Midrash acrescenta: Segundo a prática do mundo, quando um rei de carne e osso constrói um palácio, ele o faz não de acordo com seus próprios caprichos, mas segundo a idéia de um arquiteto. Além disso, o arquiteto não constrói segundo o seu próprio conhecimento. Ele tem [um desenho] — planos e diagramas para saber
como dispor os aposentos e onde colocar os postigos nas portas. Do mesmo modo, o Divino consultou a Torá ao criar o mundo (Bereshit Rabá, 1:2). O desenho arquitetônico enquanto metáfora é tão importante no pensamento judaico clássico - posteriormente adotado pela escola neoplatônica - que está relacionado ao começo do monoteísmo e ao descobrimento de Deus por parte de Abraão. Como Abraão chegou à conclusão fabulosa de que deveria haver somente um único Criador? O Midrash explica que inicialmente, por habitar em um mundo pagão, Abraão não conseguia conceber a idéia de um poder superior. Entretanto, um dia "Abraão passou por um palácio com aposentos lindamente construídos, jardins magnificamente bem cuidados e um entorno planejado meticulosamente, e subitamente disse a si mesmo: 'Será possível que tudo isto passou a existir por si só, sem construtor ou arquiteto? Certamente esta idéia é um absurdo. Por isso, deve se passar o mesmo em relação ao mundo. O seu desenho engenhoso revela um Criador'" (Bereshit Rabá, 39:1). Foi o conceito de Arquiteto Divino que deu à humanidade a idéia de Um Deus. A falsa estrutura arquitetônica do teto da Capela Sistina permitiu que Michelangelo expressasse não só a correspondência entre o arquiteto divino e o humano, como também um princípio importante cabalístico da unidade harmonizadora, outro segredo que quase nenhum visitante da Sistina conhece. Para demonstrar a filosofia de Filo, segundo a qual todas as crenças e culturas derivam de uma Única Fonte e também conduzem a ela, Michelangelo realizou a façanha mais incrível de perspectiva do Renascimento. Os painéis enormes do vão central do teto são emoldurados por jovens, nus colossais, os ignudi. os ignudi. Estes Estes ignudi ignudi repousam sobre pedestais quadrados em em trompe l'oeil com pares de pequenos pequenos putti nus talhados na pedra. Se fixarmos nosso olhar nas bases quadradas de toda a abóbada, os ângulos parecem estar tortos, e de qualquer ponto da capela, os pedestais parecem sobressair de maneira desordenada, de todo tipo de ângulo. Porém, há um ponto sobre o menor dos discos de pórfiro no centro do piso de mosaico, que cria uma perspectiva diferente. Se você se colocar exatamente
neste local, todas as bases quadradas subitamente se alinham perfeitamente e apontam diretamente apontam diretamente para sua cabeça. O que realmente assombra é que Michelangelo executou este desenho de maneira tão perfeita de uma distância de 20 metros acima do piso da capela, seguindo as linhas de visão apesar de obstáculos como andaimes e panos de proteção, durante um período de quatro longos anos, sem a ajuda de computadores ou dispositivos de alinhamento a laser. Por que ele escolheu justamente tal disco de pórfiro no piso para criar este efeito fantástico? Este era o disco no qual o papa se ajoelhava durante muitos ritos na capela. Naquela época, a grade de mármore branco era localizada no centro da capela, logo após logo após este este disco que se vê ao entrar pelo grande portal. Esta era uma outra lembrança dos projetistas originais da capela, que demarcaram o ponto exato do Templo de Salomão em Jerusalém onde o Sumo Sacerdote passava pelo véu ao entrar no Santo dos Santos. Exatamente antes de atravessar a divisão de mármore da Sistina para entrar na parte mais recôndita do santuário, o soberano da Igreja Católica tinha de se ajoelhar sobre o último dos discos cerimoniais, o pequeno núcleo central do conjunto de dez círculos c írculos concêntricos, semelhantes às dez dez sefirot (as esferas do universo) da Árvore da Vida da Cabala. Em seu afresco, Michelangelo acrescentou um detalhe culminante. Se o papa alçasse seus olhos, sentiria o peso de toda a unidade da arquitetura alexandrina sobre sua cabeça, uma experiência que cria uma sensação de modéstia aos que tiveram a oportunidade de estar neste local. (Entretanto, a julgar pelas proporções do ego de Júlio II, é provável que ele tenha achado que o efeito era um prova de que o universo inteiro girava ao seu redor.)
Outra rara fotografia, tirada sob as mesmas condições da que aparece na página 34. Mesmo assim, é fácil observar o disco papal com as dez "esferas" concêntricas no piso da Sistina. Qualquer que tenha sido o propósito do efeito visual, de criar uma sensação de modéstia ou exaltação espiritual, Michelangelo uniu o pavimento do santuário antigo com o seu teto do século XVI de uma forma quase mágica. De fato, este é praticamente o único ponto de onde podemos sentir a capela como um todo harmônico e não como um estrondoso bombardeio visual. Desta maneira, Michelangelo conseguiu unir o piso pré-existente da capela com o seu novo desenho do teto em uma única declaração. O resultado foi uma ilustração do antigo preceito cabalístico: "Acima é como o que está abaixo, e abaixo, como o que está acima." Em outras palavras, o desenho espiritual do piso refletia o desenho espiritual do teto, e vice-versa. Michelangelo tinha absorvido por completo os ensinamentos místicos das fontes judaicas antigas, segundo as quais os nossos atos na Terra, bons ou maus, podem realmente influir no universo. Este era um conceito que atraiu Michelangelo também como discípulo da escola neoplatônica. Em sua biografia de Plotino, Porfírio registra as últimas palavras de seu mestre aos seus alunos: "Esforcem-se para unir o deus que há em vocês com o Deus que há no Todo." Este legado final do mestre da filosofia neoplatônica deixou sua
marca na unificação incrível da esfera mais baixa com a mais alta da Capela Sistina, feita por Michelangelo. Anos após ter criado este efeito na Sistina, o mesmo princípio segundo o qual o que está em cima e embaixo se refletem mutuamente teve ecos em outras grandes estruturas de Roma. Os dois principais exemplos são o Palazzo Farnese (no qual houve a intervenção de Michelangelo) e a Igreja de San Ivo, obra do arquiteto barroco Borromini, seguidor das pegadas de Michelangelo no século XVII ao inserir várias imagens ocultas da Cabala e até mesmo da Maçonaria em suas obras executadas para a Igreja. Neste segundo exemplo, as formas presentes no piso e na cúpula da Igreja de San Ivo contêm o mesmo desenho camuflado: o cabalístico selo de Salomão, mais conhecido em nossos dias como a Estrela de Davi. Assim como aconteceu no Renascimento, também se passou no Barroco. Até agora, nos detivemos apenas no subjacente "fundamento" arquitetônico falso do teto e no primeiro dos painéis, acima da porta frontal. Aqui Michelangelo já usou o desenho cabalístico antigo para unificar a capela, adulou o perigoso Júlio II, mas também o amaldiçoou pelas costas... e nisso que já vimos, o artista astuto está apenas esquentando os motores. Nesta altura, os seus olhos já estão sendo atraídos cada vez mais fortemente para os painéis famosos do centro do teto, mas como disse o próprio Buonarroti, "O gênio está na paciência eterna". Precisamos proceder como na expressão italiana a cipolla (ao cipolla (ao estilo cebola), ou seja, camada por camada. Os próximos elementos que analisaremos estão entre as partes mais ignoradas do afresco gigantesco, mas contêm as chaves para desvendar os maiores segredos de toda a Sistina.
Capítulo Nove A CASA D E DAVI Um sinal entre mim e vós e vossas gerações... — ÊXOD ÊX ODO O 31 31:1 :133 VO C Ê S E L E M B R A R Á Q U E A encomenda original para o teto foi um plano concebido pelo papa e seus conselheiros mais próximos. A figura de Jesus
deveria ser o foco principal do projeto, rodeado por seus apóstolos e provavelmente também por Maria e João Batista. Esta encomenda era especialmente cara ao coração do papa, pois a capela fora construída originalmente por seu tio Sisto IV e seria um monumento eterno à glória de sua família. Porém, Michelangelo estava a ponto de subverter todo o projeto para promover secretamente as suas próprias crenças, especialmente as ligadas ao humanismo, neoplatonismo e tolerância universal. Ele já conseguira aplacar um pouco o papa com a sua tática de pintá-lo no lugar de Jesus - mas como ele iria convencer o papa a pagar pelo maior afresco católico do mundo sem uma única figura cristã? E como fugir aos olhos dos censores papais? O Vaticano explica o conceito subjacente do teto - e por extensão, de toda a capela — como um compêndio de toda a história religiosa anterior, composta pelo paganismo e judaísmo, culminando na vinda de Jesus, o Messias. Porém, são os heróis e heroínas da Bíblia Hebraica Bíblia Hebraica que que têm a maior importância no teto. Para resolver este dilema, Michelangelo criou os painéis conhecidos como Os Ancestrais, Ancestrais, dispostos nas paredes abaixo dos afrescos da parte central do teto. Neste local Michelangelo cumpriu ao menos uma parte mínima de seu contrato ao traçar a linhagem de Cristo segundo o evangelho de Mateus, os primeiros versículos da Bíblia cristã. Esta genealogia faz uso da Vulgata, a versão em latim dos nomes originais do texto, e pode-se dizer que é o único elemento cristão em toda a obra, apesar de ser apenas uma série de nomes escassamente visíveis sem qualquer imagem cristã. Contudo, mesmo com esta escolha de de texto texto cristão, o artista inconformado estava marcando o seu próprio caminho. Até Michelangelo, a fonte preferida da linhagem de Jesus era o evangelho de Lucas, que começa com Adão, e não com Abraão. Com efeito, muitas imagens medievais e renascentistas da Crucificação mostram o crânio de Adão aos pés da cruz, simbolizando que o sacrifício de Cristo presenteou a humanidade com uma maneira de expiar o Pecado Original cometido pelo primeiro homem e a primeira mulher. Entretanto, as pessoas incluídas na árvore genealógica de Jesus na Sistina são todas judias. Estas pequenas placas branco-acinzentadas, aparentemente um elemento menor despercebido por todos, menos os espectadores mais informados, na verdade
salvaram todo o projeto do teto - e provavelmente também a vida do artista. Lembre-se que a encomenda do papa a Michelangelo era uma série de retratos de Jesus e seus apóstolos - um contrato que o artista rebelde rompeu logo no primeiro dia da pintura. Os "ancestrais", com as placas contendo seus nomes, não estão dispostos em ordem. Originalmente os nomes dos patriarcas judeus Abraão, Isaac e Jacó estavam na parede frontal acima do altar principal, para onde naturalmente se dirigia a atenção de todos durante a missa. Os nomes finais e de grande importância na linha de descendência são os de Jacó e José, respectivamente o avô e o pai de Jesus. Segundo a explicação da Igreja, Michelangelo pintava em ordem cronológica, tal como fez com as cenas do Gênesis no vão central. Entretanto, estes nomes finais se encontram praticamente perdidos, ocultos na parte posterior da parede da direita, local geralmente escurecido pela sombra e naturalmente ignorado pelo visitante comum. Se o objetivo do projeto do teto era de fato mostrar toda a história antiga como preparação para a vinda de Cristo, então este painel final deveria ter um lugar de honra bem mais central e visível. O propósito de Mateus em seu evangelho era demonstrar a descendência direta de Abraão até José, pai de Jesus. Porém, o método de Michelangelo foge aos padrões, pois neste caso ele deveria ter simplesmente pintado os nomes em uma ordem estritamente cronológica. Não foi isso o que ele fez, seguindo uma estranha ordem em ziguezague dos nichos em trompe l'oeil dos primeiros papas, pintados no século anterior por Botticelli e sua equipe composta predominantemente por artistas florentinos. Além disso, mais de duas décadas depois Michelangelo não hesitou em eliminar as duas placas importantes de Abraão-Isaac-Jacó-Judá e de Farés-Esrom-Aram da parede frontal acima do altar, assim criando espaço para o afresco do Juízo Final... e rompendo para sempre a seqüência da linhagem de Jesus nas decorações da capela. Então, esta ordem (ou melhor, esta desordem) de Michelangelo na linhagem registrada nas placas é muito difícil de seguir. Porém, felizmente para seu próprio futuro e para o futuro da arte ocidental, ele foi capaz mesmo assim de convencer Júlio e seus conselheiros de que esta, a "evolução" do mundo précristão até Jesus, era a sua única e exclusiva mensagem em todo o desenho do
teto. Se eles tivessem entendido todas as verdadeiras mensagens que o artista de fato ocultou nas imagens, talvez o teto não tivesse chegado aos nossos dias. Se analisarmos Os Ancestrais, logo notamos que acima de cada uma dessas placas da árvore genealógica há oito triângulos mostrando agrupamentos familiares difusos e com vestimentas bíblicas. Até mesmo os intérpretes mais tradicionais do Vaticano que estudaram a Capela Sistina indicaram que as identidades destas figuras são conjecturas na melhor das hipóteses, e impossíveis de se estabelecer com plena certeza. A maioria dos comentaristas da Igreja afirma simplesmente que são famílias cansadas e melancólicas, simbolizando os judeus através da História, consumindo-se em seu estado de exílio eterno, esperando tristemente o retorno de Jesus para a redenção. Entretanto, há um problema óbvio com esta interpretação. A maioria dos judeus nos triângulos não parece estar particularmente melancólica. Eles estão de fato confinados em seus pequenos espaços triangulares, mas dos oito grupos, apenas um parece estar triste: a família acima dos nomes de Jessé, Davi e Salomão, ancestrais judeus do Messias. Mesmo neste caso, se observarmos atentamente, a figura central da mãe não está nem um pouco abatida, mas apenas dormindo tranqüilamente. A atmosfera dominante em todos os triângulos dos ancestrais judeus é de paciente vigília, espera e perseverança. Em todos eles, a pequena cena familiar é totalmente dominada pela figura materna. A família, assim como toda a família dos filhos de Israel, depende da mãe para sua continuação e sobrevivência. No triângulo acima dos nomes Ozias, Joatã e Acaz, a mãe está calmamente amamentando seu bebê ao mesmo tempo em que segura um pão, o sustento da vida. Como vimos na Virgem da Escada, amamentar um bebê tinha um significado espiritual muito inspirador para Michelangelo. No painel acima de Zorobabel, a mãe judia vigia como uma sentinela enquanto seu marido e seu filho dormem tranqüilamente. Em um dos últimos triângulos, acima dos nomes de Salmon, Booz e Jobed, e sobre a área do trono do papa, a mãe na verdade está sorrindo e usando uma tesoura para abrir a bainha de seu manto. Isto era algo que os judeus geralmente faziam quando estavam viajando por um território hostil, para esconder seus objetos de valor dentro de suas roupas, ou para tirá-los posteriormente para subornar alguém, ou celebrar o bom
término de sua viagem. Neste caso, o sorriso sereno da mãe nos diz que eles chegaram com segurança ao destino, um símbolo claro de redenção.
Uma observação atenta aos triângulos dos ancestrais logo contradiz a "história oficial" dos judeus tristes à espera de Jesus, o descendente dos homens da linhagem real de Judá. Por povoar os triângulos acima das placas com nomes, estes judeus anônimos comuns parecem estar levando serenamente a fé em unidades familiares tradicionais sólidas, todas elas protegidas pela figura materna e reunidas ao seu redor. Michelangelo está fazendo uma declaração visual clara de que é a mãe quem mantém viva a fé e a descendência da família. Ele está também ocultando nesta série uma lembrança do conceito cabalístico da necessidade de harmonia entre os aspectos masculino e feminino de Deus, do universo e de nós mesmos. As dez sefirot, as esferas da criação da Árvore da Vida cabalística, se dividem igualmente em características masculinas e femininas. Estes dois lados da árvore são chamados Chessed, a Misericórdia, os traços de cuidado e proteção femininos, e Guevurá, a Força, as características masculinas marcantes de força, severidade e capacidade de julgar. Estes dois lados da árvore devem estar equilibrados para assegurar a harmonia do universo e do crescimento espiritual
dos indivíduos. Nos painéis dos Ancestrais, Michelangelo equilibra o crescimento espiritual da família humana entre suas mães e seus pais, criando uma figura de equilíbrio perfeito por meio do triângulo, a forma geométrica mais reverenciada pelos cabalistas e neoplatônicos. Abaixo dos triângulos das mães estão as lunetas, os arcos dos ancestrais. Estes painéis têm a forma de um U invertido e as placas com os nomes mencionados acima, acompanhados por seus retratos imaginários em ambos os lados. Mesmo aqui, os especialistas em arte e os historiadores da Igreja tiveram de concordar que é difícil estabelecer as correspondências entre as figuras e os nomes. Porém, seu olho dirá imediatamente que estes arcos estão ligados aos pequenos triângulos "maternos" acima deles. A parte superior de cada um destes triângulos menores forma um perfeito triângulo isósceles (com lados iguais) ao ligar-se com os pontos exteriores da base de cada luneta. O artista está transmitindo uma mensagem diretamente ao seu "olho interno" subconsciente de que as figuras maternas anônimas acima e as figuras menores dos importantes ancestrais conhecidos (vários deles reis e líderes) abaixo são todos da mesma família. Esta é uma parte da mensagem ainda mais grandiosa de Michelangelo na Sistina: judeus, gentios, homens, mulheres, reis, plebeus, todos pertencemos à mesma família. Isto pode parecer um lugar comum, mas naquela época era perigoso proclamar estes princípios em público. Até a época moderna, a realeza e suas dinastias — chamados de "sangue azul" - existiam supostamente por direito divino, seres especiais superiores aos meros mortais e designados por Deus. Os brancos eram considerados geneticamente superiores às pessoas de cor; os homens, superiores às mulheres; os arianos, superiores aos judeus e assim por diante. Ainda hoje, existem fanáticos separatistas que pretendem proibir o livro O Diário de Anne Frank nas bibliotecas das escolas públicas norte-americanas. E qual é o porquê desta atitude? No final de seu diário inspirador, pouco antes de os nazistas a levarem, a jovem Anne escreve: "Mantenho meus ideais, porque apesar de tudo eu ainda acredito que no fundo as pessoas são boas." Todas as pessoas, e não apenas um grupo supremacista: uma mensagem que ainda é ameaçadora para as mentes estreitas. Imagine então o quão mais ousada deve ter
sido esta mensagem universalista no início do século XVI na corte papal de Júlio II. Há também algo de transgressão mística dos gêneros por parte do artista. Segundo Filo de Alexandria e outras tradições cabalísticas, o triângulo apontando para cima é o símbolo do masculino, e o que aponta para baixo é o símbolo do feminino. Aqui, Buonarroti coloca as poderosas figuras maternas na versão "masculina" do triângulo, que aponta para cima. Michelangelo, um cabalista neoplatônico, está sempre equilibrando o pai e a mãe, o masculino e o feminino, o elemento ativo e o receptivo. Novamente, a explicação oficial destes retratos é a triste espera dos ancestrais pré-cristãos em uma espécie de limbo até o retorno de Cristo. Esta idéia, porém, não está de acordo com os ensinamentos convencionais da Igreja. Segundo a tradição católica, Jesus desceu ao Inferno após sua morte para libertar do limbo os patriarcas judeus e outros profetas não-cristãos e os mestres sagrados. Em 2006, o papa Bento XVI declarou inválido o conceito do limbo. Então, se os judeus retratados nas lunetas e triângulos não estão em uma espécie de limbo, o que eles estão fazendo ali? Michelangelo inseriu várias pistas nestas figuras para nos revelar suas verdadeiras intenções. A primeira coisa que devemos reconhecer são os rostos. Na maioria das imagens medievais e renascentistas, os judeus condenados e sofredores eram retratados como caricaturas antipáticas. Esta era uma parte importante do ensinamento da Igreja por séculos, segundo a qual os judeus foram rejeitados sumariamente por Deus por terem renegado a salvação oferecida por Jesus. A prova disto era a destruição do Templo Sagrado, Jerusalém e de todo o reino judeu. Esta é a raiz da lenda dos judeus errantes, cuja única razão de existência era servir como exemplo negativo e um alerta para os cristãos, ilustrando o destino maldito reservado aos que rejeitam o verdadeiro Messias. Porém, os judeus de Michelangelo são qualquer coisa, menos caricaturas de um povo amaldiçoado. Os historiadores sabem quase com certeza que Buonarroti passou muito tempo nas áreas judaicas de Roma e utilizou traços autênticos de judeus reais em suas imagens. Podemos ver aqui a prova disso. Com exceção dos traços exagerados da figura de Salmon-Booz-Jobed, que luta com sua própria imagem esculpida na
ponta de seu cajado, todos os rostos dos ancestrais judeus denotam uma grande inteligência e até mesmo uma nobreza espiritual. (É interessante notar que este único retrato pejorativo de um homem barbudo e contencioso se encontra na parede bem acima da plataforma para o trono do também barbudo e contencioso papa Júlio.) O retrato de Asa tem traços claramente semitas, o estereótipo que agradaria a um Goebbels; entretanto, Michelangelo o mostra como uma pessoa real e infunde nele uma graça e cultura que eleva o homem, em lugar de degradálo. O perfil de Aquim é indiscutivelmente judeu, mas com uma majestade comparável aos retratos que Michelangelo fez de Moisés e do próprio Deus. Zorobabel, o rei judeu que foi cegado pelo conquistador babilônico Nabucodonosor, é mostrado como um homem belo e cheio de vida, porém seus olhos estão ensombrecidos. As mulheres são também representadas com uma graça, inteligência, força e beleza consideráveis. Mesalemete, a mãe de Amon, é retratada jovem e bela, cantando uma canção de ninar para seus bebês com alegria e amor. Há também uma grande variedade de características faciais judias. Uma vez que os horrores da Inquisição haviam forçado um número incontável de judeus de todas as partes do mundo a procurar refúgio em Roma, Michelangelo teve a oportunidade de conhecer exilados de origens e culturas diferentes. Alguns dos judeus que ele retrata são claramente asquenazes das terras do Leste Europeu. Outros são sefarditas da França, Grécia e da península Ibérica. Havia ainda outros do Oriente Médio, juntamente com um punhado de judeus naturais de Roma.
Acima: Asa (antes da restauração) Abaixo: Aquim, imagem completa da luneta (antes da restauração). Michelangelo demonstrou compaixão artística e solidariedade para todos estes judeus. Era preciso ter uma mente e um coração verdadeiramente abertos para retratar os judeus no início do século XVI com tanta autenticidade e compreensão. Para apreciar a enorme significância deste fato, basta lembrar como os judeus eram representados na Europa nos anos 1940, e como eles ainda são retratados hoje em muitos países muçulmanos árabes. Outro aspecto que demonstra tanto a familiaridade quanto a amizade de Michelangelo para com os judeus é a diversidade de estilos de roupa com que os retrata, refletindo os lugares de origem de todos estes diferentes judeus que foram para Roma.
Mesalemete com seu bebê (antes da restauração)
Em Florença, a família de Michelangelo trabalhou no mercado têxtil que enriquecera sua cidade. Ele conhecia muito bem os materiais e estilos diferentes que os cristãos e os judeus de todo o mundo usavam. Muitos especialistas em arte já escreveram extensamente sobre seu jogo imaginativo com cores que mudam nas roupas dos ancestrais e afirmam com freqüência que ele usava faixas de cor para dar forma à estrutura dos corpos por debaixo das roupas. Esta é uma verdade parcial. Edward Maeder, curador das vestes e dos tecidos do Museu de Arte do Condado de Los Angeles, descobriu outro segredo depois da limpeza e restauração do grande afresco. Os judeus de Michelangelo estão usando um tipo especial de tecido chamado de cangiante (seda de cores variadas) ou sarcenet (já que os cruzados a levaram para a Europa do Oriente Médio, as terras dos sarracenos). Hoje nós chamamos este tecido de "iridescente" ou "furta-cor", pois muda de cor e tom a cada movimento e cada dobra.
Em seu ensaio pioneiro, Maeder prova além de qualquer dúvida que Buonarroti não só retratou os ancestrais judeus em uma diversidade autêntica de vestimentas, como também os veste com um tecido muito prestigiado, comumente usado em casamentos, dotes e celebrações especiais, principalmente por pessoas de sangue real. É evidente que os judeus de Michelangelo não são nem um pouco condenados ou sofredores. Apesar de todos os sentimentos positivos de Michelangelo em relação aos judeus, é preciso que lembremos que em sua época o Talmude e os outros textos sagrados dos judeus eram queimados em toda a Europa. Apesar de os judeus ainda não serem forçados a ir para os guetos (o primeiro deles foi fundado em Veneza em 1515), na melhor das hipóteses eles eram cidadãos de segunda classe e tinham poucos direitos civis na maioria dos países. Já em 1215, o Quarto Concilio de Latrão decretara que os judeus deveriam usar um distintivo especial de vergonha para mantê-los separados dos bons cristãos. Além disso, independentemente do país e do estilo de vestimenta, o emblema tinha de ser amarelo. Este decreto tinha um precedente antigo. No século IX, um governante muçulmano da Sicília foi o primeiro a obrigar os judeus residentes no local a usarem círculos e mantas amarelas em público. E por que esta cor? Na tradição muçulmana, esta é a cor da urina e das prostitutas. Essa idéia foi retomada pela Igreja na Idade Média e reapareceu finalmente na época moderna na Estrela de Davi amarela usada pelos judeus durante o Holocausto nazista. Com isto em mente, podemos apreciar um detalhe incrível que apenas recentemente veio à luz, com a limpeza do teto da Sistina. Perto do fim de seus quatro anos e meio torturantes e laboriosos no teto, Michelangelo estava pintando bem acima da seção elevada onde o papa se assentaria em seu trono dourado. Neste local, ele pintou o retrato de Aminadab, conhecido no Talmude como um homem de devoção sincera e pai de filhos honrados. O mais conhecido de seus filhos era Naasson, líder famoso por suas grandes demonstrações de fé. Quando os filhos de Israel se viram sem saída entre o mar Vermelho e o exército do faraó, as águas não se dividiram apenas quando Moisés levantou o seu cajado.
Segundo o Midrash, Deus esperou até o momento em que Naasson, filho de Aminadab, atirou-se ao mar e gritou: "Quem é semelhante a ti, ó Deus?" Foi somente neste instante que o Todo-poderoso dividiu as águas. Naasson, com seu literal salto de fé, ensinou a humanidade a confiar que Deus cumpre - e cumprirá - suas promessas de libertação. Naasson foi o primeiro a entrar no mar Vermelho sem nenhum assomo de medo e também o primeiro príncipe tribal a oferecer sacrifícios na cerimônia de consagração do Altar Sagrado. Os sábios do Talmude creditam a grande espiritualidade e espírito de liderança de Naasson à educação recebida de seu pai, Aminadab. Este é retratado por Michelangelo como um jovem vigoroso com uma vestimenta oriental e cabelos ruivos crespos e rebeldes. Ele tem uma expressão carregada de raiva e olhos escurecidos pelo choro. E também uma das figuras pintadas extremamente raras em toda a carreira do artista a ser retratada sentada em posição perfeitamente ereta, um sinal definitivo de que o artista com isso dizia a seus pares: "Prestem atenção nisso." O grande poeta e comentarista bíblico Ibn Ezra escreveu que o exílio fez com que os olhos dos judeus se tornassem escuros de ira e dor. Podemos notar com clareza que é este o caso de Aminadab, e também de Buonarroti. A sua maratona de pintura sobre sua cabeça, com a tinta e o pó de gesso caindo sempre em seus olhos, estava causando estragos em sua visão. Na verdade, após os quatro anos e meio de labuta no teto, sua visão jamais seria a mesma. O artista devia estar furioso na época em que pintou este retrato, pois podemos ver que, quase oculto pela sombra, o jovem judeu irado está sutilmente fazendo "chifres do diabo" com seus dedos, apontando para o local onde ficava o dossel cerimonial, sobre a cabeça do trono papal de Júlio.
Aminadab, antes da restauração. A seta indica o circulo amarelo (muito mais visível hoje em dia) em seu manto. Veja a figura 8 do encarte. Na parte superior do braço esquerdo de Aminadab (à direita do espectador), a limpeza revelou um círculo amarelo brilhante, um anel de tecido costurado sobre sua roupa. Esta é a mesma marca da infâmia que o Quarto Concílio de Latrão e a Inquisição forçaram os judeus da Europa a usar. O nome Aminadab em hebraico significa "do meu povo, um príncipe", uma referência ao seu filho Naasson. Entretanto, para a Igreja um "príncipe dos judeus" significava apenas uma única pessoa: Jesus. Aqui, exatamente acima da cabeça do papa, o Vigário de Cristo, Michelangelo está demonstrando exatamente como a Igreja Católica tratava a família de Cristo em sua época: com ódio e perseguição. Imagine um artista contratado para pintar os ancestrais sagrados de Jesus em uma catedral da Alemanha nazista nos anos 1940 e que, ao invés de retratar o
santo ariano com sua auréola tradicional, optasse por pintar um judeu belo, forte, irado e pouco estereotipado, com uma estrela amarela, exatamente sobre a cabeça dos principais dignitários do Terceiro Reich. Isso dá uma idéia da ousadia de Michelangelo, que está dizendo à corte papal do século XVI: "É assim que vocês tratam a família do Nosso Senhor?" O que protegeu tanto o artista quanto o seu segredo foi o fato de que este pequeno anel amarelo está situado a cerca de 20 metros acima do chão, e por isso é difícil de notar, mesmo que você não estivesse distraído pelo papa, seu séquito, a liturgia, a multidão e o grande turbilhão de imagens em todo o teto e nas paredes. Era impossível que o papa e seu círculo íntimo enxergassem o círculo amarelo, pois estavam abaixo, no piso, e tinham o dossel acima de suas cabeças. Antes da limpeza e da restauração recentes, por várias gerações foi realmente impossível que alguém o visse por causa da sujeira e da fuligem de velas. Apesar de esta mensagem sutil ter permanecido oculta por séculos, a causa de Michelangelo não foi esquecida. Em 1962, o papa João XXIII convocou o extraordinário Segundo Concílio Vaticano, chamado comumente de "Vaticano II". Entre os vários decretos históricos produzidos nesta convocação divisora de águas, um deles foi determinar para sempre o fim dos ensinamentos anti judaicos. As missas não poderiam mais incluir orações para a conversão dos judeus amaldiçoados, e a Igreja deixaria de repetir a acusação - refutada já havia muito tempo - de que os judeus eram os assassinos de Jesus. A partir de então, os judeus seriam chamados pela Igreja Católica como "nossos irmãos e irmãs mais velhos"; em outras palavras, a família de Jesus, exatamente o que dizia Michelangelo em suas mensagens ocultas há cinco séculos. Quatro décadas após sua morte, o próprio papa João XXIII ganhou um outro nome. Agora ele é oficialmente chamado de João XXIII, mas possui um outro título não-oficial que nasce diretamente dos corações das pessoas comuns. Os italianos o chamam simplesmente de Il Papa Buono, "O Papa Bom". O pobre Michelangelo, contudo, teve que digladiar contra Il Papa Terribile, Júlio II, e os censores papais, motivo pelo qual se viu obrigado a ocultar as suas idéias pró-judaísmo em todos os cantos dos afrescos da Sistina. E é isto o que
exploraremos agora: algumas das imagens mais mal interpretadas da Sistina: os quatro cantos do teto.
Capítulo Dez OS QUATRO CANTOS DO UNIVERSO ... aos teus muros chamarás 'salvação'... — ISAÍAS 60:18 UM A D A S R E A L I Z A Ç Õ E S T É C N I C A S M A I S surpreendentes de Michelangelo no teto da Sistina é também uma de suas séries mais profundas de declarações, e um dos elementos mais ignorados de todo o afresco: os quatro cantos. Os quatro penachos (em italiano, pennacchi) são os painéis curvos em forma de leque onde as paredes da capela se encontram com o teto. No jargão arquitetônico, têm também o nome de "pendentes", pois semelham triângulos suspensos. Devido à sua forma e localização, assim como sua superfície côncava e imperfeita, foram as seções mais difíceis de pintar. Michelangelo não tinha nenhuma experiência em pintar algo igual a este afresco, mas a sua memória fotográfica veio em seu auxílio. Quando tinha 13 anos e era aprendiz em Florença, por um breve período ele ajudou seu mestre Ghirlandaio (por coincidência, um dos artistas dos afrescos originais da Sistina) a pintar alguns painéis de formato semelhante. Eram os painéis chamados de "tímpanos", espaços triangulares planos, na Capela Tornabuoni da Igreja de Santa Maria Novella. Para equilibrar o formato irregular, Ghirlandaio inseriu grandes efeitos verticais no centro e colocou imagens menores em cada lado. Apesar de sua falta de experiência com afrescos e do desafio duplo de pintar a forma triangular com uma curva interna profunda, Michelangelo usou a mesma técnica de maneira brilhante em todos os quatro cantos da Sistina cerca de duas décadas mais tarde. A ênfase vertical no centro dá a cada pendente a impressão de ser plano, e não profundamente recuado, e isto foi mais um truque visual que
o grande artista executou na Sistina. Entretanto, não se trata de uma mera solução técnica: foi aí que ele escondeu camada sobre camada de suas mensagens verdadeiras. No extremo da capela, onde começamos nossa visita com a imagem de Zacarias, vemos o profeta ladeado pelos primeiros dois pendentes. Estes têm um desenho bem mais simples do que os que ele pintaria quatro anos mais tarde, pois Michelangelo estava aprendendo durante o processo. A esquerda, vemos a história de Judite, que decapitou o general pagão inimigo Holofernes. À direita, vemos o clímax da batalha entre Davi e Golias. Estes painéis compartilham um tema importante. Ambos são exemplos de inimigos dos judeus, supostamente invencíveis, sendo decapitados por hebreus aparentemente fracos e indefesos. É muito significativo que um acontecimento ressalte o feito heróico de uma mulher, Judite, e que o outro destaque um pequeno pastor, Davi. Em sua adolescência, quando era aprendiz, Michelangelo vira as estátuas de Judite e Davi feitas por Donatello no pátio do palácio da família de Medici. Porém, na Sistina ele mudaria completamente as imagens para ocultar suas mensagens secretas. Na extremidade ocidental da capela, acima da parede do altar, estão os outros dois pendentes. O da esquerda narra a história de Ester e Amã, e o da direita mostra a serpente de bronze de Moisés. Mais uma vez temos um herói e uma heroína salvando o povo judeu de um acontecimento funesto. Por que então Michelangelo escolheu estas quatro histórias em particular e por que as pintou especificamente nestes locais? Primeiro, vamos relembrar rapidamente as histórias.
Acima: Penacho de Judite e Holofernes no canto nordeste da capela. Veja a figura 9 do encarte. Abaixo. Penacho de Davi e Golias no canto sudeste da capela. Veja a figura 10 do encarte. O livro de Judite faz parte dos Livros Apócrifos, a coleção de histórias religiosas canonizadas na Bíblia católica, mas não na judaica. No entanto, é um relato importante para ambos os credos. Os Livros Apócrifos servem então de ponte entre as duas religiões, algo que obviamente seria de grande valor para Michelangelo. Pela tradição judaica, o livro de Judite está associado ao livro dos Macabeus, o qual narra a guerra de libertação religiosa empreendida por Judas Macabeu contra os helenistas greco-assírios. Esta vitória é celebrada nos dias de hoje com o nome de Chanuca. Judite é uma bela viúva judia que se encontra indefesa na cidade de Betúlia, em Israel, enquanto Holofernes se prepara para aniquilar justamente sua cidade como o primeiro passo para destruir Jerusalém. A população atemorizada declara um jejum público e ora pela salvação do Todo poderoso. Judite arquiteta uma estratégia ousada: ela se enfeita de maneira muito elegante e sedutora e deixa a cidade, acompanhada apenas por sua serva de confiança, totalmente desarmada a não ser por sua fé, beleza e sabedoria.
No alto: Penacho de Ester e Ama, canto sudoeste da capela. Acima: Penacho de Moisés e a Praga das Serpentes, canto noroeste da capela. Logo elas são detidas pelos soldados de Holofernes, que certamente as teriam violentado e assassinado se Judite não tivesse se oferecido para se submeter sexualmente a Holofernes e a fornecer-lhe informações secretas que ajudariam o exército helênico a tomar a cidade sem perder um único homem. Suas palavras convencem os homens armados a levá-las diretamente à tenda de seu líder, que imediatamente é seduzido pela grande beleza e encanto de Judite. Holofernes organiza uma celebração antecipada pela vitória de seus homens e uma ceia erótica para ele e Judite em sua tenda. Judite faz com que ele e seus homens brindem tanto à destruição dos judeus, que eles perdem os sentidos. Ela então ora pedindo força e, usando a própria espada de Holofernes, o decapita enquanto ele
jaz inconsciente em sua cama. Então ela e sua serva escondem a cabeça em um cesto e a levam para sua cidade. Judite exibe a cabeça de Holofernes ao seu povo, que se alegra e recobra o entusiasmo. Eles penduram a cabeça no muro frontal da cidade, e quando as tropas greco-assírias vêem a cabeça de seu líder empalada, rendem-se ao desânimo e fogem. Os judeus os perseguem e os derrotam de maneira tão contundente que são necessários vários dias para colher todos os despojos do outrora poderoso exército helênico.
Detalhe do pendente de Judite e Holofernes. Veja a figura 9 do encarte. A história de Davi, no capítulo 17 do livro bíblico de Samuel 1, começa quando os judeus estão sendo abatidos no campo de batalha pelos filisteus, seus vizinhos pagãos. A arma mais letal dos filisteus é seu guerreiro gigante, Golias, jamais derrotado em batalha. Ele zomba dos judeus, que se acovardam diante dele, e se atreve até mesmo a blasfemar contra seu Deus. Davi, um pequeno pastor que vem trazer comida para seu pai e irmãos mais velhos no exército hebreu, não consegue suportar as blasfêmias proferidas pelo gigante inimigo contra seu Deus
e implora para que o deixem enfrentar o gigante terrível face a face. Valendo-se de sua fé e destreza, ele se recusa a usar a armadura ou uma arma convencional. Em seu serviço como pastor, tinha de proteger seu rebanho de lobos ferozes, e isso o fez experiente no manejo do estilingue. Davi confronta Golias apenas com a sua arma frágil, cinco pedregulhos lisos e sua fé em Deus. De forma milagrosa, ele derruba o gigante Golias com apenas um golpe certeiro em sua testa e depois o decapita com a sua própria espada. Na versão de Michelangelo, Golias olha desespe- radamente para seus companheiros, os guerreiros pagãos, em busca de auxílio no último momento, mas estes permanecem imóveis e preferem se refugiar nas sombras a enfrentar o jovem pastor. Os filisteus aterrorizados, assim como os greco-assírios da história de Judite, não são nada sem a "cabeça", e são completamente derrotados pelo revitalizado exército judeu. Sobre a parede em frente ao altar, vemos o pendente de Ester e Amã. Esta história faz parte tanto da Bíblia judaica quanto da cristã; é narrada no livro de Ester e lida integralmente pelos judeus todos os anos no Purim, o feriado que comemora a sua salvação do antigo Império Persa, onde vivia a maior comunidade judaica na Diáspora da época. O imperador Assuero, que muitos historiadores crêem ser Xerxes II, governa um vasto império de sua capital Susa (que hoje pertence ao Irã), mas não é capaz de governar a sua própria vida pessoal muito bem. Ele promove uma maratona de grandes banquetes e orgias com Vasti, sua depravada esposa paga. Segundo a versão completa do Talmude, Assuero ordena a execução de Vasti após sua recusa em dançar nua diante de seus convidados. O vizir do imperador persa, ou seu braço direito, que praticamente governa todo o império em seu lugar, é Ama, um homem sedento de poder e ególatra que anseia se tornar tão poderoso quanto o próprio imperador. Ele aconselha o governante recém-enviuvado a promover uma espécie de "concurso de beleza" para encontrar a mulher mais desejável da Pérsia e torná-la sua próxima esposa. Ester, uma bela jovem judia, vence o concurso e é coroada rainha da Pérsia. Contudo, ela não revela a ninguém no palácio que é judia, especialmente ao imperador e a Amã. Na seqüência da história, Amã decide massacrar todos os judeus do império e, por meio de enganos, convence Assuero a promulgar um
decreto de extermínio dos judeus. No último minuto, Ester reúne a fé e a coragem suficientes para contar ao rei que é judia, e que está condenada a morrer por causa das maquinações ardilosas de Amã. O imperador ordena que Amã seja enforcado na mesma árvore onde ele queria enforcar os líderes dos judeus. Ironicamente, o perverso vizir tem seu desejo realizado ao ser elevado bem acima das pessoas comuns. Na Capela Sistina, Amã é retratado sem sua roupa dourada e crucificado com pregos na árvore retorcida, em vez de pendurado por uma corda. Um corpo enforcado não teria dado condições ao artista para exercitar todo o seu talento em retratar em um afresco plano a musculatura humana com aparência de escultura. Michelangelo, explorando a técnica do trompe l'oeil, faz com que o braço esquerdo estendido do maligno vizir persa pareça estar saindo da pintura e entrando na sala. Segundo a explicação convencional que o Vaticano oferece sobre este retrato da morte de Amã, trata-se de uma prefiguração da crucificação de Jesus, cujo sacrifício pessoal propiciará a expiação dos pecados do mundo. Entretanto, isto significaria que Michelangelo, um cristão profundamente espiritual, escolheu um pagão - um dos piores maníacos genocidas da Bíblia — para simbolizar Jesus. Isto parece no mínimo improvável. Além disso, a árvore onde Amã foi enforcado está morta, e seus galhos estão cortados ou quebrados, simbolizando que a sua descendência malvada e suas aspirações chegaram ao fim. Esta imagem também parece pouco plausível para representar o futuro Salvador na capela mais sagrada da cristandade. A cena retratada no último penacho é narrada no quarto livro da Bíblia, em Números, 21: 4-10. A Bíblia relata como o acampamento dos israelitas errantes é afligido por uma praga de serpentes venenosas que ameaça exterminá-los antes que alcancem a Terra Prometida. Moisés acaba de colocar uma serpente de cobre em uma haste de madeira. Os israelitas olham para a serpente de cobre e, ao fazê-lo, elevam seus pensamentos a Deus, e são salvos. Entretanto, um fato estranho é que Moisés, o herói desta história, não é visto em lugar nenhum. Qual será a razão?
Algo semelhantemente estranho é o fato de o nome de Moisés estar ausente na Agadá, o relato anual da Páscoa judaica do Êxodo. Os sábios antigos dizem que este é um reconhecimento de sua grande humildade, e que isto serve também para enfatizar que a redenção humana vem apenas do Todo-poderoso, e não de uma pessoa, não importando o quão carismática ela possa ser. Na versão de Michelangelo, Moisés também se encontra ausente. O espectador é colocado no lugar dos israelitas, em meio a duas escolhas. Como diz Deus posteriormente na Torá: "Eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida." (Deuteronômio 30:19). À esquerda, indo em direção à luz, estão os israelitas que escolheram a vida ao elevar seu olhar para Deus. A direita, avançando para a escuridão, vemos as outras pessoas, que fizeram a outra escolha, sendo mortas pelas serpentes. Qual é então o tema, se é que existe algum, que unifica estes quatro painéis e que explicaria por que Michelangelo os escolheu para decorar os cantos do teto? A resposta óbvia é que estas quatro cenas representam quatro grandes episódios de salvação do povo judeu em momentos em que parecia estar condenado. Seria então uma mera coincidência o fato de que cada par de pendentes representa cenas de heroísmo de um homem e de uma mulher que se complementam? Judite tem Davi a seu lado, e Moisés aparece junto da história da corajosa rainha Ester. O pensamento cabalista enfatiza fortemente a dualidade da identidade sexual de Deus. Sem identificação com uma forma física, Deus é ao mesmo tempo homem e mulher. Os aspectos espirituais dos dois gêneros expressam as características do Deus da Justiça, que é também o Deus da Misericórdia. A força masculina combinada com a compaixão feminina constituem o equilíbrio perfeito sem o qual o reino divino não pode funcionar. Os místicos reiteram constantemente a necessidade deste equilíbrio perfeito entre estas duas forças polarizadas. Michelangelo retrata a personificação humana da harmonia sexual divina, um equilíbrio místico que é a chave da perfeição celestial, segundo a Cabala. A disposição das histórias é também bem calculada. Na parede oriental, na direção da Terra Sagrada, há dois episódios de salvação que se passam em Israel. Na parede ocidental, longe de Israel, figuram as duas histórias que acontecem na Pérsia e no deserto, ambas fora da Terra Prometida.
Ainda assim, estes quatro momentos de salvação divina estão unidos por um vínculo bem mais poderoso, uma conexão já percebida bem antes que Michelangelo os escolhesse para seus "papéis de protagonista" nos quatro cantos da Capela Sistina. Para os que conhecem o Midrash, certamente parece mais que uma simples coincidência o fato de que tanto o artista quanto os rabinos do passado tenham unido justamente estas quatro histórias em particular. Em Deuteronômio 26:8, Moisés recorda aos judeus que Deus os redime "com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios". Os comentaristas judeus explicam de maneira admirável a aparente redundância destas expressões: apenas a última delas está relacionada a um acontecimento que os filhos de Israel tinham testemunhado. As outras se referem profeticamente a momentos ainda futuros, e todas devem ser interpretadas como exemplos supremos da intervenção divina. Por esta mesma razão, os judeus recitam este versículo bíblico por ocasião do Sêder, o jantar festivo da Páscoa que celebra a libertação do Egito, e bebem quatro taças de vinho, uma para cada uma das vezes que Deus assegurou a sua salvação. Com os quatro pendentes, Michelangelo parece estar relembrando os mesmos exemplos de redenção aos quais alude o versículo de Deuteronômio. Qual é o significado da promessa de redenção na expressão "com mão forte"? O Midrash observa que, no livro de Judite, a heroína ora ardentemente: "Dá à minha mão de viúva a valentia almejada" (Judite 9:9, grifo dos autores). A expressão é um paralelo exato do versículo da Torá. De fato, foi a resposta divina à sua súplica ardente, a mão forte que permitiu a Judite cortar a cabeça de seu inimigo, que tornou possível o milagre da história de Chanuca e a libertação dos judeus da aniquilação planejada pelos gregos. Os sábios relacionam a expressão seguinte, "braço estendido", à espada de Davi. Estas palavras foram captadas na imagem central do penacho de Davi, que mostra o braço estendido do jovem empunhando a espada de Golias. Aqui, Michelangelo escolhe uma maneira poderosamente simbólica para ressaltar o papel do auxílio divino ao braço do pequeno jovem pastor. Na Cabala, a força está na esfera de Guevurá e é simbolizada com a letra hebraica guimel : Se observarmos o contorno da imagem vertical da espada, Davi e o V invertido
formado pela cabeça e pelos braços de Golias, podemos notar a forma desta letra hebraica, que proporciona a força ao braço estendido do jovem. O significado mais profundo das próximas palavras do versículo profético, "grande terror", prefigura a história de Ester. Três argumentos justificam esta associação. Primeiro, o Talmude afirma que o terror causado pelo plano genocida de Amã fez com que mais judeus voltassem a trilhar o caminho correto da fé do que juntos fizeram todos os profetas.
Painel de Davi, com a letra hebraica guimel oculta, formada pelas figuras de Davi e Golias. Veja a figura 10 do encarte. Esta é uma variação talmúdica do velho provérbio que diz: "Não há ateus em trincheiras." Segundo, de acordo com o texto bíblico, quando Ester revela finalmente ao rei persa que alguém deseja assassiná-la e a todo o seu povo, Assuero quis saber: "Quem é? Onde está o homem que pensa agir assim?" Amã, o alpinista social ardiloso, tinha então até mesmo se convidado a sentar à mesa do banquete real exatamente ao lado do rei. Neste ponto, o Talmude acrescenta que um anjo do Senhor veio para guiar a mão de Ester, indicando o infame vizir. Este é o momento exato que Michelangelo ilustrou na parte esquerda do pendente. O anjo, assim como Moisés no painel da Praga das Serpentes, pode ser sentido, mas não visto. As Escrituras simplesmente afirmam: "A vista do rei e da rainha, Amã ficou aterrorizado." Finalmente, nos capítulos 8 e 9, quando os
judeus são autorizados pelo rei a se defender e lutar, o livro de Ester diz três vezes que o temor dos judeus caíra sobre os persas pagãos. Finalmente, os sábios explicam que a expressão "com sinais e prodígios" se refere à vara de Moisés, como Deus disse a ele em Êxodo 4:17: "Toma, pois, esta vara na mão: é com ela que irás fazer sinais." No pendente de Michelangelo da Praga das Serpentes, a imagem central é de fato a vara onde Moisés coloca o sinal de redenção da serpente de bronze. Apenas se entendermos como Michelangelo usou o Talmude e o Midrash seremos capazes de compreender a conexão, de outra maneira inexplicável, entre estas imagens incomuns. Os quatro cantos da capela mais sagrada da cristandade e as quatro taças da Sêder da Páscoa proclamam em uníssono o papel permanente de Deus nos grandes momentos da História. Há ainda mais uma camada de significado. As cenas do canto próximo da entrada papal representam duas ameaças à existência, Holofernes e Golias, cujo destino comum foi a decapitação. Ao lado do altar, outros dois inimigos mortais, Amã e as serpentes, são elevados no final. Aqui também há um exemplo magnífico de contraponto. As pessoas más podem ser destruídas em qualquer direção, e algumas estão destinadas a serem derrubadas. Outras são elevadas, mas a sua elevação serve apenas para trazer a sua queda. Subjacente a todas estas imagens, como pedra angular da existência humana, há uma mensagem universal de esperança para todas as pessoas, de não se render mesmo quando o futuro parece irremediavelmente sombrio. E por esta razão que os quatro cantos da fé parecem sustentar todo o teto, outra poderosa mensagem clássica e subliminar de Michelangelo. A medida que prosseguimos na análise dos afrescos, Michelangelo parece adentrar cada vez mais profundamente em suas crenças pessoais: humanismo, neoplatonismo, judaísmo, Talmude e Cabala. Com isto em mente, passemos à próxima camada de significado, a que por séculos tem desafiado os especialistas em arte: a variedade desconcertante de sibilas e profetas.
Capítulo Onze UMA COMPANHIA DE PROFETAS A Sabedoria construiu a sua casa, talhando as suas sete colunas. — PROVÉRBIOS 9:1 ES T A S F I G U R A S G I G A N T E S D O M U N D O antigo pairam sobre nós a cerca de 20 metros de altura. Porém, elas não olham para nós. Elas têm algo muito mais importante em suas mentes: o futuro. Constituem um estranho agrupamento: pitonisas pagãs e profetas judeus e, em certo sentido, são pólos opostos. Os impérios representados pelas sibilas - o egípcio, o babilônico, o persa, o grego e o romano —, um após o outro, tentaram eliminar os judeus e o judaísmo. Por sua vez, os sete profetas judeus escolhidos pregaram veementemente a favor da erradicação dos cultos pagãos dentro das fronteiras da Terra Santa de Israel, a fim de assegurar a preservação do povo judeu. O que estas figuras poderiam ter em comum? Apesar de não ser algo inédito, a combinação de imagens de videntes pagãs e profetas judeus não era uma prática comum na arte cristã. Não era comum, melhor dizendo, até Michelangelo. Aqui, em sua obra no teto da Sistina, ele nos mostra suas raízes no neoplatonismo e no Talmude ao criar um novo gênero de arte que é ao mesmo tempo includente e multifacetada em termos de significados. Após a pintura do teto, esta combinação passou a ser uma tendência na pintura renascentista e foi copiada por muitos artistas da época, inclusive Rafael. Entretanto, ninguém - incluindo Tommaso dei Cavalieri, o amado de Buonarroti, e Daniele da Volterra, seu assistente mais íntimo ainda vivo à morte do artista — escolheu pintar as mesmas cinco sibilas que encontramos no teto da Sistina. Obviamente, Michelangelo tinha uma razão secreta para estas escolhas. Qual era ela? A nossa primeira pista, incluída em cada uma das figuras das sibilas e dos profetas da Sistina, com exceção de uma, é um pergaminho ou um livro, simbolizando a leitura e a instrução. Por meio do uso dos livros e da escrita, Michelangelo nos mostra que ele acredita que estes videntes são os intelectuais de suas respectivas épocas e lugares. De fato, a raiz latina das palavras "leitura" e
"intelecto" é a mesma: legere, que significa "ler". A origem da palavra "intelectual" também nos dá seu significado verdadeiro: inter-legere, ou seja, "ler entre". Um intelectual se define por sua capacidade de ler entre as linhas, de analisar e pensar criticamente, de entender as coisas em vários níveis ao mesmo tempo. Isto é exatamente o que precisamos fazer para sermos capazes de apreciar de maneira plena as obras de Michelangelo e de seus contemporâneos artistas do Renascimento. Vamos então ler entre as linhas aqui, uma vez que é provável que haja outra razão pela qual Michelangelo coloque livros e pergaminhos nas mãos dos videntes. Havia apenas poucos meses que ele completara uma tarefa odiada, a moldagem em bronze de uma estátua enorme de Júlio II para a Catedral de Bolonha, selo simbólico da supremacia do Papa Guerreiro sobre os cidadãos rebeldes. Buonarroti odiava tudo o que o trabalho envolvia: trabalhar com bronze, fazer um retrato banal, ter de aturar o clima chuvoso de Bolonha e também seu vinho, que não caía bem em seu estômago florentino. E como se isso não bastasse, ele precisou obter a autorização do papa para dar início ao projeto. Michelangelo mostrou um modelo em argila do desenho que elaborara para a estátua e perguntou ao papa se este queria ser retratado segurando um livro. "O quê, um livro?", zombou o Papa Terribile. "Uma espada. Eu não sou um erudito." Por uma vez em sua vida, até onde sabemos, Michelangelo cumpriu ao pé da letra o que foi ordenado. (Quatro anos mais tarde, quando Buonarroti estava concluindo os afrescos do teto, os bolonheses, de mentalidade independente, se levantaram contra o papa e fundiram a sua imagem de bronze. Eles reutilizaram o metal na construção de um canhão enorme para ser usado em sua batalha contínua pela liberdade e sarcasticamente batizaram o armamento com o nome de "Júlia".) O encargo seguinte de Michelangelo, após a estátua de bronze, foi o projeto do teto da Sistina. A atitude desdenhosa do papa em relação à literatura e ao estudo estava ainda fresca na memória de Buonarroti quando ele concebeu o que o professor Howard Hibbard, historiador de arte, chama de "níveis de significados interpenetrantes". Para distinguir os antigos sábios videntes do passado do papa
anti-intelectual, o artista mostrou todas as sibilas e profetas (exceto Jonas) com livros e escrituras, um menosprezo sutil e pouco velado do papa, que deve ter proporcionado prazer a Michelangelo durante a longa jornada no teto. Podemos agora analisar a escolha de temas de Michelangelo e seguiremos o imperativo "primeiro as damas", começando pelas cinco sibilas. Há quem diga que " sibila vem da antiga palavra grega sibylla, que significa "profetisa", mas é bem mais provável que tenha suas origens no antigo aramaico babilônico sabba-il, "antiga de Deus". Tecnicamente, as sibilas não são o mesmo que profetisas. Uma sibila ou um oráculo só respondia a uma questão feita a eles, enquanto os profetas eram mensageiros ou porta-vozes do Céu; e falavam, abençoavam, amaldiçoavam e previam o futuro sem que alguém os induzisse. Havia dez sibilas no mundo clássico, e outras duas foram acrescentadas posteriormente na tradição cristã medieval. Seus nomes e lugares variavam de país para país e de escritor para escritor. Entretanto, as mais conhecidas, das quais Michelangelo provavelmente tinha conhecimento, foram a líbia, a persa, a helespôntica, a tiburtina, a cumana, a délfica, a eritréia, a ciméria, a frígia, a sâmia e a marpessana. As três sibilas pagãs comumente aceitas como profetisas pela Igreja eram a tiburtina, a helespôntica e a sâmia, razão pela qual eram as primeiras escolhas para representação das sibilas nas raras ocasiões em que foram pintadas na arte medieval. A sibila tiburtina, de Tivoli, cidade próxima a Roma, previu a César Augusto o Advento de Jesus e também revelou que o futuro imperador Constantino se converteria ao cristianismo e que o Anticristo seria um judeu da tribo de Da (uma lenda muito explorada pelos anti-semitas de hoje). A sibila helespôntica previu a Crucificação e por isso é sempre retratada com a cruz. A sibila sâmia ocupava um lugar especial de honra por causa de sua previsão muito específica de que Jesus nasceria em um estábulo. E então revelador e bem notável o fato de que, apesar do renome destas três sibilas, Michelangelo tenha se recusado a retratá-las em sua obra na Sistina. Então, quem são as cinco sibilas que Michelangelo escolheu - no lugar das três comumente aceitas pela Igreja - para compor as cenas do teto? E qual foi o motivo das suas escolhas no lugar das outras opções que pareciam bem mais lógicas? Seguiremos a ordem na qual ele as pintou, a começar pela parede de
entrada da capela. A seqüência que veremos é: a sibila délfica, a eritréia, a cumana, a persa e a líbia.
A SIBILA DÉLFICA A sibila délfica é ao mesmo tempo dona de uma beleza impressionante e de uma ambigüidade sexual. Se não fosse pelos seios pouco convincentes e pelas poucas mechas de cabelo que saem de seu véu, ela poderia ser confundida facilmente com um adolescente. De fato, Michelangelo usou jovens corpulentos como modelos para todas as sibilas. Quando se vê o afresco de perto, as roupas da sibila, pintadas com tintas caras, têm um brilho quase metálico, o que é uma proeza técnica para o trabalho com gesso e para a pintura, admirável se pensarmos que foi feita cinco séculos atrás. Ela é uma das sibilas mais antigas, de Delfos, na antiga Grécia. Porém, não deve ser confundida com Pítia, a sacerdotisa de Apoio, mais conhecida como o Oráculo de Delfos, uma personagem freqüente e de grande importância nos épicos e tragédias gregas. A sibila délfica de Michelangelo, assim como as outras quatro da Sistina, não tem um nome específico; e sua identidade se restringe à localização geográfica. A vestimenta grega clássica e simples evidencia suas origens. Suas mechas de cabelo dourado indicam que deve ser uma filha de Apoio, o deus sol. Na literatura clássica, tal como simboliza o pergaminho que segura em suas mãos, ela aparece na Eneida, o poema épico de Virgílio.
A sibila délfica. Veja a figura 11 do encarte.
A SIBILA ERITRÉIA A sibila eritréia (ou, como Michelangelo grafou, Erythraea) é na verdade babilônica, nascida na Caldéia, a mesma terra onde nasceu Abraão, o fundador do judaísmo. Atualmente, esta área faz parte do Iraque. Assim como a sibila délfica, a eritréia é muito masculina, e seus braços causariam inveja a qualquer fisiculturista. O seu braço direito lembra muito o de Davi de Florença (veja as duas figuras comparadas a seguir). Parece que Michelangelo, saudoso da época em que se dedicava à amada arte da escultura, passava o tempo sonhando com suas obras favoritas em mármore enquanto pintava o teto.
Alguns historiadores creditam à sibila eritréia a invenção do acróstico, uma vez que ela escrevia suas profecias em folhas. Quando eram colocadas na ordem correta, as primeiras letras das folhas formavam uma palavra-chave para o entendimento da previsão. Na versão de Michelangelo, a folha do livro que ela segura começa com uma grande letra Q iluminada.
A SIBILA PERSA Pouco se sabe sobre a sibila persa, com exceção do fato de ter supostamente previsto os feitos de Alexandre, o Grande. Na interpretação de Michelangelo, ela é mostrada como uma mulher de idade avançada, que tem que segurar seu livro perto dos olhos e forçar a visão para conseguir lê-lo. Os putti que estão abaixo dela e do livro estão mudos na escuridão. Apesar de ser muito velha, tem um braço masculino incrivelmente musculoso que parece mais apropriado a uma estátua masculina do que a uma pintura de uma mulher de idade - um toque paradoxal típico de Michelangelo.
A sibila persa
A SIBILA LÍBIA Apesar de seu nome, a sibila líbia era do Egito, mais especificamente de um oásis na área conhecida como o deserto Líbio. Ela é mencionada em muitos relatos antigos, mas certamente a versão que Michelangelo conhecia era a de Plutarco. Neste relato, Alexandre, o Grande, foi consultá-la e ela previu que ele seria um grande conquistador e que se tornaria o governante do Egito. Em seu painel, o artista a retrata em uma pose dúbia: ou ela está pegando um livro grande ou colocando-o de volta em seu lugar. Porém, um dos putti ao seu lado também segura um rolo de pergaminho. A sibila líbia é famosa especialmente por seu dito sobre "a chegada do dia em que tudo que é oculto será revelado". Ao pintá-la, Michelangelo pode ter pensado no dia em que suas mensagens ocultas na Sistina seriam finalmente trazidas à luz. Ele sem dúvida sentia uma grande proximidade em relação a Alexandre, o Grande, em muitos aspectos. Assim como Michelangelo, Alexandre tratava os judeus com benevolência e era fascinado por sua religião e sua cultura. Graças à
sua paixão pelo conhecimento e pelas conquistas, Alexandre foi capaz de criar uma ponte entre as culturas grega, egípcia e judaica. E tanto o artista quanto o antigo conquistador amavam homens. Como um aparte interessante, temos um dos raros esboços de Michelangelo que sobreviveram (veja abaixo, à direita), feito enquanto preparava o painel da sibila líbia, uma prova de que ele usava apenas jovens de boa compleição como modelos para pintar estas mulheres.
A SIBILA CUMANA Deixamos a sibila cumana para o final por ela ser a mais velha e mais famosa de todas. Embora Cumas fosse situada perto da localização atual de Nápoles, ela é considerada a sibila de Roma. Foi a sibila cumana quem escreveu os Livros Sibilinos e os vendeu a Lúcio Tarquínio, o Soberbo, um dos legendários reis de Roma. Segundo narra a história, toda vez que ela lhe oferecia os livros das profecias sobre o futuro de Roma, ele reclamava que o preço era muito alto. A sibila era uma negociante mais inflexível do que o rei. Toda vez que ele se recusava a comprar, ela queimava alguns dos rolos insubstituíveis e elevava seu
preço. Quando Tarquínio, o Soberbo, finalmente cedeu, ela vendeu o terço dos livros que restaram por quatro vezes o preço original. Contudo, a sibila cumana teve a sua justa punição. O deus mitológico Apolo a desejava por causa de sua beleza e sabedoria. Ela primeiro lhe pediu um favor: apanhou um punhado de areia e disse a Apoio que desejava viver tantos anos quanto o número de grãos de areia em sua mão. Apolo concedeu-lhe este desejo, mas ela então recusou seus avanços. Apolo respondeu: "Muito bem, mas você se esqueceu de me pedir uma longa juventude juntamente com sua longa vida." Com a passagem dos séculos, a sibila cumana continuou a viver, mas envelhecia cada vez mais e encolheu tanto com a idade que chegou a caber em uma jarra de óleo. Michelangelo a retrata - apesar de ter um musculoso corpo masculino — como uma feia e enrugada velha cuja cabeça já encolheu tanto que é pequena demais para seu corpo. Os verdadeiros Livros Sibilinos, se é que de fato existiram, foram destruídos em um incêndio em 83 a.C. Isto significa que os assim chamados Livros Sibilinos, mesclados com os ensinamentos éticos antigos de Pseudo-Focílides objetos de estudo na época de Michelangelo, eram invenções medievais. Isto não impediu a Igreja, porém, de espalhar a idéia de que a sibila cumana profetizara sobre a vinda de Jesus e da escolha divina de Júlio II para pontífice. Foi por este motivo que Buonarroti, querendo manter Il Papa Terribile apaziguado durante este projeto delicado, pintou as roupas da sibila romana com as cores azul real e dourado da família della Rovere, e a colocou exatamente no meio da parede em frente à área do trono papal. A sibila cumana simboliza Júlio, o Vaticano e Roma. Contudo, incapaz de conter totalmente seus sentimentos verdadeiros em relação ao papa, Michelangelo inseriu um putto (a forma singular de putti) não muito angelical, que mostra o gesto da "figa" para a velha senhora, exatamente como fez no painel de Zacarias sobre a porta frontal. Este ousado insulto pessoal foi retratado de maneira tão sutil que foi descoberto apenas recentemente, durante a limpeza e restauração da Sistina. Hoje, cinco séculos mais tarde, podemos perceber que o irado artista conseguiu de maneira surpreendente insultar o papa com o gesto da figa não apenas uma, mas duas vezes, no afresco do teto que ele próprio havia encomendado.
Esquerda: A sibila cumana. Veja afigura 12 do encarte. Direita: Detalhe do gesto "angélico " obsceno. A localização de cada uma das sibilas tem um significado e ajuda a explicar a sua mensagem. Vejamos onde as outras quatro se encontram. Como você deve se lembrar, os quatro painéis em forma de leque nos cantos da capela representam os quatro exílios que os judeus estão destinados a sofrer, de acordo com as previsões do livro de Daniel: o egípcio, o babilônico, o persa e o grego. É por causa destes quatro exílios e as redenções subsequentes que, segundo muitas interpretações, os judeus bebem as quatro taças cerimoniais durante o Sêder da Páscoa. No teto, Michelangelo retratou as sibilas ao lado dos exílios que cada uma delas representa. A sibila délfica, símbolo do domínio grego, está ao lado do canto onde se encontram Judite e Holofernes, relacionado com a história de Chanuca do livro de Macabeus, relembrando a libertação do povo judeu do domínio grego (helenístico). A Líbia, que Buonarroti, graças aos seus estudos de Plutarco, sabia ser de fato do Egito, encontra-se junto ao painel do canto onde a serpente de cobre de Moisés aparece salvando os judeus recémlibertos do Egito.
A sibila persa, naturalmente, é a mais próxima do canto da história de Ester, que salva os judeus persas do genocida Amã. Eritréia, que era na verdade da Babilônia, apresentava um problema para o plano de Michelangelo. O exílio babilônico teve fim com uma conquista militar persa, e não por obra de um herói ou heroína dos judeus. Isto teria gerado uma cena confusa e não muito religiosa e inspiradora, e posto abaixo a intenção de representar nos quatro cantos a redenção judaica pelas mãos de um herói ou heroína judeus. Por isso, o melhor símbolo espiritual que o artista poderia escolher era a libertação judaica do outro povo pagão e opressor do Oriente Médio que fazia fronteira com o antigo reino de Israel: os filisteus. Assim, próximo de Eritréia, a sibila do Oriente Médio, ele retrata o herói Davi derrotando Golias, o gigante filisteu. Isto nos leva à sibila cumana, símbolo de Roma. Na época de Michelangelo, considerava-se que os judeus do Ocidente ainda estavam no exílio romano, pois viviam sob o domínio da Igreja. Por isso, ele mostra um putto fazendo um gesto obsceno para a sibila cumana. Ela é o símbolo de tudo o que Michelangelo odiava a respeito dos abusos de poder, a intolerância e a hipocrisia do Vaticano. Como ele descreveu em seu poema, o Vaticano de seus dias deturpava e traía a Cristo e à cristandade, razão pela qual ele tinha de ser astuto e cuidadoso ao ocultar suas mensagens na Sistina. Michelangelo prometera ao papa e aos seus conselheiros que seu tema para o teto seria a redenção do mundo por intermédio da Igreja. Ao invés disso, ele magistralmente inseriu seus anseios pessoais por uma redenção futura do mundo da dominação da liderança corrupta da Igreja de seu tempo.
OS PROFETAS HEBREUS Agora, vamos examinar mais detalhadamente os sete profetas hebreus. A primeira coisa a se fazer é perguntar por que Michelangelo escolheu este número. Agora sabemos que deve haver muitas razões simbólicas para esta escolha, pois estamos tratando de uma obra de arte elaborada para expressar em segredo uma maneira multifacetada de se ver o universo, conforme menciona o Talmude e a Cabala. Com certeza imediatamente nos lembramos dos sete dias da
criação. Segundo a Cabala, não apenas o universo material, mas também a própria Realidade foi criada durante estes sete dias. Isto sem dúvida seria apropriado para Michelangelo ressaltar em seu desenho do teto, com o qual ele esperava criar uma nova realidade universal do espírito. Todos estes sete profetas judeus eram perfeitamente apropriados para esta mensagem, pois eles previram uma redenção espiritual futura, não apenas para os judeus, como também para toda a humanidade. Outro significado-chave para o número sete é sua relação com as sete "luzes" da Menorá Sagrada, o candelabro de ouro de sete hastes que se encontrava no Templo de Jerusalém. Apesar de já existirem sete chamas de mármore no topo da parede de mármore divisória em forma de grade no desenho original da Sistina do século XV, Michelangelo quis acrescentar a sua própria versão da Menorá a esta cópia em tamanho real do Templo Sagrado. Foi bom ele ter executado seu plano, se considerarmos que, uma geração após Michelangelo terminar o teto, outro papa acrescentou uma oitava chama de mármore à parede divisória, com o propósito de destruir a sua correspondência com a Menorá. O profeta Zacarias vislumbrou as sete luzes da Menorá Sagrada como os "olhos de Deus", olhando para todas as direções. Certamente foi esta a razão pela qual Buonarroti dispôs seus sete profetas por todo o teto, olhando para todas as direções, servindo como os olhos de Deus a testemunhar o que acontece na Sistina e em todo o mundo. De maneira semelhante, os profetas também evocam o Midrash, que identifica sete nuvens de glória que protegeram os filhos de Israel enquanto eles vagavam pelo deserto. A Cabala explica que somos ameaçados por sete lados: leste, oeste, norte e sul, abaixo, acima; e, finalmente, de dentro de nós mesmos. Outra explicação diz que os profetas representam as Sete Midot, as sete características das sete sefirot inferiores, ou esferas (no singular, sefird), na Árvore da Vida cabalística. Estas Sete Midot, em ordem ascendente até a Unidade Divina, são: 1. Malchut: "Império, reino". Esta é o mundo material e o desejo por sucesso e conforto material.
2. Yesod: "Fundamento". Esta é o começo ou a essência do desejo da alma por algo além do mundo material. E o fundamento da espiritualidade e religião, e o elo básico entre o céu e a terra. 3. Hod: "Glória, esplendor". E a habilidade de manter a fé em face da adversidade, tristeza e derrota. Esta sefirá é a perseverança, a capacidade de aceitar a vontade divina e manter a promessa que temos com Deus, sem medir as conseqüências. 4. Netzach: "Vitória, eternidade". E o outro aspecto da perseverança, a luta contínua pelo sucesso, quer seja material (por meios éticos, certamente) ou espiritual. E a capacidade de se ater a um objetivo. 5. Tiferet: "Beleza". Esta é a sefirá central das Sete Midot e da Árvore da Vida. Representa o equilíbrio, a unificação e a harmonização de opostos aparentes. 6. Guevurá: "Força, poder". Está na mesma "coluna lateral" da Árvore da Vida que Hod. É o aspecto masculino e poderoso da árvore. Esta sefirá é às vezes chamada de Din, ou "julgamento", pois a força da Guevurá vem de estabelecer parâmetros e limites claros. As pessoas espiritualizadas recorrem à energia de Guevurá e Din quando estabelecem juízos e limitações baseados na fé, como entre o bem e o mal, o puro e o impuro, e o sagrado e o profano. 7. Chessed: "Misericórdia, compaixão e benevolência". Está na mesma coluna da Arvore onde se encontra Netzach, o aspecto feminino de proteção e cuidado. Chessed, apesar de ser aparentemente mais passiva e flexível que Guevurá, é na verdade mais forte, pois a misericórdia e a compaixão podem no final vencer o simples poder ao ir acima e além de seus limites rígidos. Como os sete profetas da Sistina estão relacionados com as Sete Midot? Elas são também consideradas os sete "passos" espirituais para nos aproximarmos de Deus. Indo de leste a oeste, temos: 1. Zacarias, cujo nome significa "Deus se lembrou". Sua mensagem dá ênfase a todos os impérios do mundo material que tentaram eliminar a fé judaica. Neste
caso, Deus se lembrou e redimiu o povo judeu, como está retratado nos quatro cantos dos afrescos. Por isso, Zacarias representa o atributo de Malchut. 2. Joel: "Deus é Deus". Seu nome nos diz que devemos associar tudo o que existe no mundo material com o espiritual e lembrar que, por trás de todas as coisas que percebemos com nossos sentidos, sempre está Deus. Ele é Yesod, o elo com o nosso sentido de espiritualidade. 3. Isaías: "Deus é minha salvação". Ele alertou sobre as derrotas e os sofrimentos terríveis que os judeus teriam de padecer, mas também os encorajou a manter a fé. Neste painel, Michelangelo pintou dois putti com expressão ansiosa, e um deles aponta em direção a Jerusalém e o Templo destruídos. Isaías parece estar ouvindo as más notícias, mas ele não fecha o livro totalmente: marca o seu lugar nele, para quando o futuro se abrir novamente. Ele ocupa o lugar de Hod. 4. Ezequiel: "Deus é a minha força". Ele é mostrado no momento em que é interrompido na leitura de seu pergaminho, com um putto assustado ao seu lado esquerdo (negativo), e parece estar pedindo conselhos ao anjo à sua direita. Este anjo calmamente mantém seu braço direito de poder levantado (e mostra incidentalmente um belo e forte bíceps esquerdo), ao mesmo tempo em que sua mão esquerda aponta para o alto, para a fonte de sua força para vencer: o Todo poderoso. Ezequiel disse aos judeus atribulados que no final eles reconquistariam Jerusalém e construiriam lá o terceiro Templo Sagrado. Ele representa a perseverança para se manter no caminho até a vitória final, e por isso está no lugar de Netzach.
Esquerda: Joel. Direita: Isaías
Esquerda: Ezequiel Direita: Daniel 5. Daniel: "Deus julgou". Daniel foi um dos jovens mais belos e inteligentes entre os cativos levados por Nabucodonosor quando este conquistou o antigo reino de Israel e levou grande parte da nação ao exílio na Babilônia. Conforme
descrito em Daniel 5: 1-28, durante um banquete orgiástico no palácio do rei, os pagãos beberam vinho nos recipientes sagrados pilhados do Templo de Salomão. Deus escreveu na parede acima de suas cabeças as palavras: "Menê, Menê, Teqel, Parsin". Daniel, o único capaz de interpretá-las, informa ao tirano Baltazar que a Babilônia havia sido contada e pesada na balança celestial e julgada deficiente. Logo após este acontecimento, o regime malvado caiu e o povo judeu se reuniu novamente com sua Terra Sagrada. Daniel é um símbolo importante de redenção futura para judeus e cristãos, e por isso é uma escolha bem apropriada para ocupar a posição central de Tiferet. 6. Jeremias: "Deus me exaltou" ou "Exaltei a Deus". Ele foi o orador mais duro de todos os profetas, com críticas duras à corrupção que via tanto nos sacerdotes quanto nos líderes nacionais. Ainda hoje, os discursos que criticam asperamente os grupos dominantes de uma sociedade são chamados de jeremiadas. Exatamente como alertara Jeremias, Deus se exaltou por meio do julgamento rigoroso e castigo severo de Israel, pois Babilônia destruiu Jerusalém, incendiou o Templo Sagrado e levou a população cativa para o exílio. Naturalmente, ele está na posição de Guevurá/Din. 7. Jonas: "Deus responderá". O seu próprio nome conota a misericórdia divina, o atributo de Chessed. Jonas recebe uma ordem que o deixa apavorado: ir a Nínive, imensa e corrupta cidade paga, para pregar o arrependimento. Ele fica atônito quando os habitantes da cidade lhe dão ouvidos e Deus mostra sua compaixão divina para com eles. As últimas palavras de seu livro são de Deus, explicando a Jonas porque era essencial ter misericórdia da grande cidade, sem se importar se os habitantes eram gentios ou judeus. Há muitas outras camadas de significados em Jeremias e Jonas. Por terem sido pintados perto do final da longa jornada de trabalho de Michelangelo no teto, ele os encheu da maior quantidade de mensagens, e por isso voltaremos a eles ao final de nossa visita particular à capela. O que não pode ser ignorado é o fato de que assim como Michelangelo omitiu as sibilas "cristianizadas" comumente usadas pela Igreja como precursoras da vinda de Cristo, ele também excluiu algumas das escolhas mais óbvias para os profetas
hebreus. É certo que a Igreja interpretou alguns destes profetas como grandes porta-vozes da legitimidade de Jesus como o Messias; entretanto, se esta tivesse sido a intenção real do artista nestes afrescos, ele certamente teria escolhido Miquéias, Esdras, Oséias, Amós ou Malaquias — citados com maior freqüência pela Igreja - no lugar das escolhas comparativamente irrelevantes como Jeremias e Joel. Michelangelo devia ter a consciência da tendência do Vaticano em reinterpretar as imagens. Ele já tinha visto estátuas pagas com leves alterações renomeadas como santos católicos. De fato, até mesmo um século após Buonarroti, o artista barroco Bernini ordenou que fizessem o mesmo com dezenas de estátuas antigas para completar a série de 140 santos alinhados no topo de suas belas colunatas ao redor da Praça de São Pedro no Vaticano. Por isso, para assegurar que no futuro a Igreja não tentaria mudar as identidades de suas sibilas pagãs e profetas judeus do teto, Michelangelo teve o cuidado de acrescentar uma legenda para todos eles com seus nomes próprios. O que fez foi acertado, pois foi graças aos seus nomes e identidades dos profetas e sibilas que suas mensagens ocultas chegaram até nossos dias. O artista perspicaz queria garantir que sua mensagem cabalística fosse redescoberta e que dessem crédito a ela, e por isso deixou uma última pista para os céticos. Agora que você conhece as Sete Midot e seus significados, será capaz de entender outra pista muito reveladora em um painel que já analisamos anteriormente. Como você deve se lembrar, no painel de Davi, situado em um dos quatro cantos, está escondida a letra hebraica oculta guimel, formada pelos contornos dos corpos de Davi e Golias. Guimel representa a Guevurá, o lado masculino e forte da Arvore da Vida, que está sempre localizado no lado esquerdo da árvore. Se olharmos de novo o painel do outro canto - Judite e Holofernes -, podemos ver com muita clareza que os dois corpos - de Judite e de sua serva -, unidos acima pelos seus braços e pelo cesto que leva a cabeça do general inimigo, formam nitidamente uma outra letra hebraica. E a letra het, representada assim: Π.
Observe que Buonarroti teve o cuidado de escurecer os contornos do vestido amarelo da serva para destacá-lo da imagem, e com isso tornar clara a forma da letra het. Por que ele quis que esta letra aparecesse no canto do painel de Judite? Het é letra que simboliza Chessed, o aspecto feminino de cuidado e proteção da Árvore da Vida, e está sempre no lado direito da árvore. Se você se colocar junto da porta papal, em um extremo da Sistina, por onde entrava o público nos dias de Michelangelo, verá o Davi com a letra guimel no lado esquerdo, representando a Guevurá. No lado direito, simbolizando a Chessed, verá a letra het inserida no painel de Judite. As pessoas que, como Michelangelo, estão familiarizadas com as letras hebraicas e os conceitos cabalísticos percebem facilmente como o artista tomou os ensinamentos judaicos que aprendera com seus mestres particulares no palácio da família de Medici e os incorporou de maneira brilhante no coração da capela mais sagrada do cristianismo. Não é nenhuma coincidência o fato de estas mensagens terem sido colocadas bem no alto, no teto. Na verdade, Michelangelo elaborou o seu projeto multifacetado tão bem que quanto mais subimos, pois as mensagens ocultas ficam mais difíceis de se ver de relance, mais freqüentes e ousadas elas são. De
fato, na parte mais alta do teto - o vão central ao longo de toda a extensão da Capela Sistina - foi onde ele reservou o melhor para o fim...
Capítulo Doze O CAMINHO DO MEIO Toda a beleza que é vista aqui pelas pessoas de percepção se assemelha mais do que a qualquer outra coisa à Fonte celestial da qual todos nós viemos. — MICHELANGELO FI N A L M E N T E C H E G A M O S A O N Ú C L E O D A pintura, a faixa central. E sem dúvida a parte mais famosa de todos os afrescos da capela, a seção que a maioria das pessoas tem em mente quando pensa no teto da Sistina. De acordo com o projeto original, encomendado pelo papa e seus conselheiros a Michelangelo, ele deveria simplesmente ter pintado uma imitação do padrão geométrico encontrado nos tetos das ruínas de muitos palácios romanos pagãos. Se o artista tivesse seguido a prática comum, teria "coroado" o centro do teto com os símbolos da soberania papal: as chaves cruzadas e a tiara tríplice, juntamente com o brasão da família e talvez também a inscrição de seu nome. Por ordem do papa Sisto IV, tio de Júlio, o brasão com o carvalho da família delia Rovere aparece em toda a decoração original da capela. Não há apenas um brasão grande e tridimensional bem acima da entrada papal, mas também centenas deles retratados no "tecido" das cortinas em trompe 1'oeil pintadas nas paredes inferiores. Esta era a norma estabelecida para quase todos os tetos dos papas através dos séculos, não apenas no Palácio Apostólico, mas também no Castelo de Sant'Angelo, o mais conhecido dos castelos papais, e ainda em outros palácios, residências e igrejas de toda a Itália.
Os painéis centrais do teto da Sistina
Michelangelo não era nem um imitador nem um adulador. Este tipo de projeto que consistia em seguir um protótipo padrão banal era algo que sua natureza simplesmente o impedia de executar. Se ele era obrigado a trabalhar como escravo em uma obra por vários anos de sua vida, mesmo se tratando de um indesejado projeto de pintura, seu orgulho não permitiria que fizesse algo medíocre. Tinha de ser um projeto tão extraordinário que somente ele poderia conceber e realizar. Por este motivo, preferiu trabalhar só sempre que possível, e sempre se forçava a ir mais acima e mais além de todos os limites, mesmo os que ele próprio havia fixado. Por isso, também no caso dos afrescos da Sistina, embora a princípio a pintura do teto fosse uma idéia que lhe desagradava, ele não conseguiria fazer nada menos que o seu melhor. Ao invés de se limitar a pintar um agrupamento de formas e padrões belos e uma apologia convencional ao poder de seu mecenas, ele decidiu preencher a parte central do teto com o que ele, o artista, considerava ser a mensagem fundamental da conexão de Deus com a humanidade. Esta foi a primeira e uma das poucas vezes em que um pintor boicotou a idéia concebida por um papa para uma obra de arte no Vaticano. Conforme já indicamos anteriormente, Michelangelo dispôs os sete profetas hebreus de modo a corresponder às Sete Midot, a seção inferior da Árvore da Vida cabalística. Eles equilibram a Capela Sistina entre a coluna da Guevurá (força e justiça) do lado esquerdo e a coluna da Chessed (misericórdia e benevolência) no direito. O que há então na coluna do meio, o tronco da árvore? Segundo nos informa o professor Gershom Scholem em sua obra clássica A Cabala e Seu Simbolismo, é o Caminho do Meio, o caminho dos tzaddikim, os verdadeiramente justos e santos. Estas almas pouco numerosas são tão justas e puras que não necessitam passar por todas as tribulações e altos e baixos que uma pessoa comum precisa suportar em vida na sua jornada espiritual. Por que então Michelangelo optou por ilustrar este caminho mais certo e mais direto a Deus? Qual é, segundo ele, o verdadeiro centro de poder do mundo? Para Michelangelo, era a Torá original, também conhecida como o Pentateuco ou os Cinco Livros de Moisés. A Torá é composta por cinco livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. É o centro, tanto da Bíblia Hebraica quanto da versão da Igreja, das Escrituras hebraicas, chamada de Antigo Testamento.
Notavelmente, os cinco livros estão divididos em segmentos de leitura de acordo com dois sistemas diferentes. O mais conhecido pela maioria das pessoas, aceito e usado por todos quando citam e/ou fazem referências à Torá (que seguimos neste livro) é o sistema de capítulos e versículos. Este é um sistema que foi desenvolvido séculos atrás pelo clero católico. O outro método de segmentação da Torá é a divisão judaica em parshiot, as porções semanais lidas nas sinagogas em todo o mundo no Shabat, para fazer o estudo completo da Torá no período de um ano. Este sistema já tem mais de 2 mil anos de existência e está canonizado pelos sábios do Talmude. Atualmente, as parshiot da Torá são conhecidas e usadas quase que exclusivamente pelos judeus, e certamente também era esse o caso na Itália católica de cinco séculos atrás. Entretanto, foi exatamente isto que Michelangelo escolheu para pintar em seu Caminho do Meio no teto: as duas primeiras porções da Torá, ou parshiot, chamadas de Bereshit ("no princípio") e Noach (Noé). O plano de Buonarroti é mais impressionante ainda quando percebemos que ele teve de executar toda a obra de trás para frente, começando pela parede oriental da capela e avançando aos poucos em direção à parede do altar a oeste, até chegar ao início da narrativa da Torá somente após mais de quatro anos de trabalho árduo e mortificante. O erro da maioria das explicações "oficiais" sobre a faixa de afrescos referente à Torá é na explicação de por que Michelangelo terminou a série com o painel Embriaguez de Noé. Os livros oficiais do Vaticano afirmam que isto não é só para mostrar a predisposição humana ao pecado como também para pressagiar a redenção futura por meio de Cristo. Entretanto, parece uma escolha estranha para encerrar uma narrativa central, por ser anticlimática e pessimista. Considerando que a maioria dos outros painéis é muito inspiradora, isto não parece ter muito sentido. As explicações comuns ignoram um fator muito simples. O projeto de pintura de todo o teto foi feito em duas fases. Na primeira delas, é evidente que Michelangelo planejara fazer os painéis da Torá como trípticos, ou seja, uma narrativa em três painéis para cada grande história desta faixa central. Ainda podemos ver hoje que há três painéis para a história da Criação anterior à humanidade, três para a história de Adão e Eva e finalmente outros três para Noé. Em um tríptico clássico, a parte culminante da narrativa é
sempre o painel maior do centro, com as partes de sustento da história retratadas nos painéis laterais, de dimensão menor. Uma olhada rápida no painel de canto Ester ilustrará como isto funcionava: o grande clímax da execução de Amã está na maior seção central, e os acontecimentos que levaram a ela (a acusação de Ester e a lembrança do rei de que Mardoqueu lhe salvara a vida) se encontram nos dois lados do cadáver de Ama. Michelangelo deu início a este estilo de tríptico com Noé: o clímax da história é o Dilúvio, o painel maior central, ladeado (acima e abaixo) por dois acontecimentos menores após o Dilúvio: a construção do primeiro altar em agradecimento pela sobrevivência à inundação e o vinhedo cultivado por Noé e sua conseqüente embriaguez. Sabemos por meio de cartas e de seus contemporâneos que Michelangelo teve muitos problemas durante a execução dos painéis de Noé. Ele deve tê-los pintado no verão, época em que Roma, principalmente nas áreas próximas ao rio Tibre (como o Vaticano, por exemplo), pode ficar extremamente úmida e abafada. Os primeiros afrescos da série de Noé tiveram de ser arrancados quase por completo, pois estavam se esfarelando e ficando cobertos de mofo por causa da umidade. Um amigo e assistente florentino chamado Jacopo l'Indaco elaborou uma nova fórmula para o gesso do afresco (chamada intonaco) resistente ao mofo e ao bolor, o que foi a salvação. Por causa deste e de outros problemas anteriores (lembre-se que Michelangelo jamais pintara um afresco e que estava literalmente aprendendo durante o processo), a pintura do teto até o terceiro painel de Noé levou um ano e meio. Quando o tríptico de Noé foi concluído, o papa Júlio estava extremamente ansioso para exibir a obra e também se vangloriar dela. Buonarroti se opôs a isto com tanta fúria quanto foi possível, pois nenhum artista deseja que o público veja uma obra sua inacabada. Júlio, que não tinha certeza se viveria o suficiente para ver todo o teto pintado, não se deixou dissuadir. Em 1510, o papa mandou que o andaime fosse desmontado, e a primeira parte do afresco foi exibida a um público ansioso. As reações de entusiasmo de artistas e leigos ajudaram a superar qualquer reclamação que os clérigos e os censores pudessem ter. Michelangelo conquistou o direito de dar seqüência ao resto do projeto sem mais interferências (apesar de ser mais acertado dizer "com menos" interferências). Esta foi também sua oportunidade de apreciar como se via do
chão a obra a 20 metros de altura. Ele percebeu então que estava sendo muito tímido com as figuras; que eram numerosas demais e pequenas demais. Podemos notar a diferença imediatamente nos painéis centrais depois da seção de Noé: eles são simplificados e suas figuras muito maiores e mais "esculpidas". A partir deste ponto, até mesmo os profetas e as sibilas aumentam de tamanho. Ele tinha permitido que seus assistentes o ajudassem a pintar algumas das cenas do Dilúvio e estava insatisfeito com suas contribuições. A partir de então, decidiu pintar pessoalmente - e sem nenhuma ajuda - todos os painéis e imagens importantes. Isto tornaria seu trabalho muito mais lento, mas era a única garantia de manter a sua visão e a qualidade de toda a obra. Michelangelo percebeu também que o seu conceito original de histórias narradas em trípticos não funcionava. Embora ele tivesse a intenção de que o maior painel do tríptico de Noé, o do Dilúvio, fosse o momento final de maior destaque e dramaticidade do teto, percebeu que a visão do espectador seguiria naturalmente a ordem simples e linear dos painéis, terminando na cena da Embriaguez, relativamente anticlimática e pessimista. O formato do tríptico teria sido ainda mais confuso para a representação dos primeiros dias da Criação. Por isso, a verdade é que o artista mudou de idéia e pintou a narrativa em uma ordem linear no restante do vão central com histórias da Torá. Com isto em mente, iremos diretamente ao Início, onde Michelangelo na verdade terminou a obra. PARASHÁ BERESHIT- A PORÇÃO DA CRIAÇÃO
Michelangelo certamente aprendeu a história da Criação a partir da perspectiva mística judaica, pois seu mestre Pico delia Mirandola pesquisara e escrevera a respeito dela em um livro intitulado Heptaplus, ou "A Explicação Septiforme dos Seis Dias da Criação". No primeiro painel, vemos representado o primeiro versículo da Torá: "No princípio, criou Deus o céu e a terra." Neste painel, o corpo do Todo-poderoso está contorcido de uma maneira que lembra uma serpente, bem parecida com as posições nas quais o próprio artista tinha de ficar para pintar o afresco. Vemos Deus separando os céus com suas mãos. Neste gesto, Michelangelo mostra que entende um conceito-chave do texto hebraico:
na Bíblia judaica, Deus cria o universo separando e diferenciando. Ele separa a luz das trevas, o dia da noite, as águas da terra seca, e assim por diante. Para imitar a fórmula divina, posteriormente a Torá mandará que o povo judeu separe e diferencie, por exemplo, entre o Shabat e os dias de trabalho, entre a comida kosher e a que não é, entre os sacrifícios puros e os impuros, entres os atos bons e os imorais e assim por diante. Há uma outra razão para o corpo de Deus estar contorcido exatamente desta maneira. Se olharmos atentamente para a grande estátua de Laocoonte, descoberta apenas dois anos antes de Michelangelo começar a pintar o teto, percebemos que o escultor não conseguiu resistir à tentação de dar a Deus o mesmo torso magnífico da obra-prima grega. Todos os mestres que Michelangelo teve no Palácio de Medici eram fascinados pelos comentários bíblicos hebreus do grande sábio Rashi, que viveu no século XI em Troyes, na França. Pico della Mirandola, em particular, aprofundou-se nos estudos de Rashi sobre a Criação. Ao se observar este primeiro painel no teto, é possível inferir com quase toda certeza que Michelangelo aprendeu alguns comentários de Rashi. No primeiro capítulo de Gênesis, no final de cada dia da criação, o texto diz: "Houve uma noite e uma manhã: segundo dia", e esta frase é repetida no "terceiro dia" e assim sucessivamente até o sexto e final. Entretanto, estranhamente, no fim do primeiro dia, o texto hebraico diz: "Houve uma noite e uma manhã: um dia." Como explicar esta redação, que parece linguisticamente incorreta quando comparada à maneira que os demais dias são contados? Seria bem mais apropriado que o texto dissesse "primeiro dia". Rashi nos oferece uma explicação intrigante: o Todo-poderoso queria assegurar que a humanidade entendesse adequadamente o conceito da Unidade de Deus, e por isso deixou claro que o primeiro dia era realmente o dia do "Único", quando ainda não existiam anjos ou outras criaturas celestiais. O certo é que no "dia um", Michelangelo retrata Deus no teto da Sistina como o Único, e este é o único painel das três primeiras seções que não tem nenhuma figura de anjos. Um último fato surpreendente a respeito deste painel é que ele foi pintado quando os sofrimentos de Buonarroti no teto estavam chegando ao fim. Ele estava com uma pressa desesperada para terminar, tanto pela sua saúde pessoal
como pela preocupação de que o papa, seriamente enfermo, talvez não vivesse o bastante para ver o projeto concluído. Se Júlio tivesse morrido antes de a pintura ser terminada, o seguinte pontífice poderia ter cancelado o contrato do artista ou talvez alterado ou abandonado o projeto. Ao criar este painel, Michelangelo coincidentemente trabalhou sem seus "anjos", os assistentes, que preparavam os desenhos em tamanho real para transferir os esboços das figuras do papel para o gesso úmido do intonaco. Na verdade, este escultor (que disse a respeito de si mesmo: "Não sou pintor") executou todo este painel em apenas um dia e totalmente sem esboços, algo que poucos pintores de afrescos experientes ousariam fazer.
Esquerda: Primeiro painel da Criação. Direita: Detalhe do torso de Laocoonte. O segundo painel é o da Criação do Sol e da Lua. Nele Deus cria "o Sol para o dia e a Lua para a noite". Há dois segredos neste painel que valem a pena ser mencionados. Um deles é que a Lua no lado esquerdo da cena foi pintada sem tinta: sua cor na verdade é a cor do próprio intonaco, que Michelangelo propositadamente deixou sem pintura para obter um extraordinário efeito
especial. O segundo é um outro sfogo ou uma "descarga de ira" do artista furioso. Neste ponto, ele já estava trabalhando no andaime por quatro anos terríveis, tempo que poderia ter dedicado à sua amada arte de esculpir. Ele teria tido muito prazer em insultar o papa Júlio em público, mas é claro que isto provavelmente teria custado sua liberdade ou sua vida.
Detalhe das nádegas do Criador no painel da Criação do Sol e da Lua. Por este motivo, Michelangelo encontrou outra maneira de inserir uma afronta cósmica, vinda do próprio Todo-poderoso. Se o leitor observar atentamente esta cena, perceberá que Michelangelo retrata Deus de costas para o espectador enquanto cria o Sol, e seu manto arroxeado parece desvanecer em um ponto. Bem, para descrever de uma maneira delicada este outro gesto vulgar do florentino furioso, diremos que aparentemente, do alto do teto de sua própria capela, o Senhor está "mostrando o traseiro" para o papa Júlio II, projetando as "nádegas divinas" sobre a área cerimonial papal.
O tema do terceiro painel tem sido objeto de um longo debate. Será que ele representa a Separação das Águas da Terra Seca ou, como escreveu Pico, a Separação das Águas (as águas superiores das inferiores) ou a Separação do Firmamento Superior do Inferior ? Qualquer que seja a interpretação correta, esta mensagem claramente gira em torno do poder de Deus sobre os elementos, como mostra o seu domínio sobre as águas. Aqui podemos encontrar mais uma idéia que Michelangelo engenhosamente codificou. Como vimos no capítulo 6, o doutor Garabed Eknoyan, em seu artigo "Michelangelo: Art, Anatomy and the Kidney" [Michelangelo: Arte, Anatomia e os Rins], publicado no periódico Kidney International e fruto de pesquisa cuidadosa, propôs que o artista talvez sofresse nesta época de um problema renal, a cólica decorrente da alteração dos níveis de ácido úrico, uma disfunção dos rins que pode ter ocasionado posteriormente a formação de cálculos e a insuficiência renal que provocou sua morte anos mais tarde. Não podemos dizer se esta era uma doença genética que estava no sangue da família Buonarroti ou se foi resultante de seu estilo de vida penoso, tanto mental quanto fisicamente. Sabemos que os problemas renais podem originar da falta de vitamina D, ser conseqüência da pouca exposição à luz solar, de poucas horas de sono e da ingestão excessiva de cálcio. Este quadro se assemelha muito à vida de Michelangelo enquanto trabalhava intensamente no teto da Sistina, época em que passou quase todo o seu tempo em um espaço fechado, dormindo e comendo mal e de forma irregular, e bebendo a água romana, rica em cálcio. Apesar de não podermos afirmar com certeza se ele de fato sofria de problemas renais quando tinha 30 e poucos anos, sabemos que desde jovem era fascinado pela anatomia humana a ponto de fazer dissecações ilegais e secretas desde os 18 anos. O doutor Eknoyan ressalta que Michelangelo seguramente conhecia a função dos rins proposta por Galeno: a separação dos resíduos sólidos dos líquidos (urina). Neste painel da separação da terra sólida das águas do mar, Buonarroti queria prestar uma homenagem a Galeno e agradecer os que o haviam ajudado a adquirir a sua mestria proibida nos segredos internos do corpo humano. Se observarmos com atenção o manto real arroxeado que envolve Deus nesta cena, veremos surgir claramente o formato e vários detalhes importantes do rim humano.
A CRIAÇÃO DOS PRIMEIROS HUMANOS O painel seguinte, a Criação de Adão, é sem sombra de dúvida o mais famoso de todo o teto da Sistina. De fato, juntamente com a Mona Lisa e a Última Ceia, é uma das imagens mais conhecidas de todo o mundo. Neste painel vemos Adão, o primeiro ser humano, recém-formado do pó da terra, com aparência lânguida e flácida porque ainda não tinha o ruach HaShem vital, o espírito vital divino. Ele não é apenas Adão, mas de acordo com o pensamento neoplatônico e o cabalístico, é Adam Kadmon, o ser humano primordial, o protótipo de toda a vida humana e modelo microcósmico do universo. Também vemos Deus, não apenas como o Todo-poderoso, mas em seu papel de Criador, aquele que ao formar Adão cria também a todos nós. A ilustração que Michelangelo faz de Deus nesta cena tem sido motivo de muitos debates e questionamentos ao longo dos séculos. Quem é a jovem sob o braço esquerdo de Deus? Quem é o bebê sob a mão esquerda? Por que Deus precisa de tantos anjos à sua volta, até, aparentemente, para sustentá-lo no ar? Por que o artista povoou esta imagem com tantas figuras em volta de Deus e depois acrescentou uma enorme capa roxa e um retalho de tecido verde-azulado que pendura como um rabo de pipa? Há duas opiniões que prevalecem sobre a identidade da mulher misteriosa. Uma alega que deve ser Eva, ou a alma de Eva, à espera de Adão, a sua alma gêmea. A outra interpretação é de que ela seja o conceito neoplatônico de Sofia, deusa grega e símbolo da Sabedoria. É esta segunda visão que encontra certo apoio na Cabala. Nas preces diárias dos judeus tradicionais, há uma bênção que dá graças pela vida e pela genialidade de nossas funções corporais. A oração expressa a gratidão a Deus Asher yatzar et Ha-Adam b'Chochmá, "que formou a humanidade com sabedoria". Porém, ao invés de usar a palavra hebraica mais comum anashim (homens, humanidade, povo), a prece diz et Ha-Adam, literalmente "o Adão", o homem primordial. Esta expressão ecoa de forma poderosa a idéia cabalística de que o homem foi criado pela sefirá de Chochmá, a sabedoria, conhecida em grego como Sofia, a mesma idéia que Michelangelo pode estar expressando neste painel.
Painel da Criação de Adão. Veja a figura 5 do encarte. É bem provável que o menino sob o braço esquerdo de Deus seja a alma de Adão, prestes a ser transmitida a ele. Observe que a posição do corpo do menino imita a de Adão. Ele está prestes a ser infundido em Adão através de sua mão
esquerda. Segundo a tradição, a mão esquerda é a que recebe as bênçãos, pois seus vasos sangüíneos conduzem direto ao coração. Ainda nos dias de hoje, muitas pessoas em todo o mundo usam um laço vermelho da bênção da matriarca Raquel no pulso esquerdo. Michelangelo sabia que seus talentos eram também uma bênção de Deus. E uma simples coincidência o fato de que o artista, que pintou Adão recebendo sua alma do Criador com sua mão esquerda, era também canhoto? As respostas para as outras questões - sobre a complexidade da imagem de Deus neste painel, por estar acompanhado de tantas figuras aparentemente supérfluas, e a razão de haver um manto e um pedaço de tecido esvoaçante — foram encontradas acidentalmente em 1975. O doutor Frank Mershberger, cirurgião judeu de Indiana, entrou na Sistina, olhou para o grande afresco e foi tomado subitamente por uma sensação de espanto e também de... estranha familiaridade. O que mais chamou a atenção do cirurgião norte-americano no painel da Criação foi a forma peculiar do manto e do pedaço de tecido solto. Ele imaginou mentalmente a imagem sem as cores e a massa de figuras adjacentes, e viu nesta representação os diagramas que estudara em seus livros de anatomia na faculdade de medicina: o cérebro, o cerebelo, o lóbulo occipital, o córtex, o tronco cerebral, tudo estava lá, claramente. O que Michelangelo escondera na pintura era um corte transversal perfeito do cérebro humano. Mas qual teria sido a razão? Mais uma vez ele estava mostrando aos outros "inteirados do assunto" o que ele aprendera clandestinamente por meio de dissecações ilegais. As únicas pessoas capazes de identificar os órgãos internos ocultos no teto teriam sido os outros em busca de conhecimento, envolvidos nas mesmas atividades proibidas. Os que sabiam o segredo mantinham silêncio, e o fizeram por tantas gerações que ele se perdeu ou foi esquecido. A pintura é um testemunho do profundo conhecimento de anatomia de Michelangelo e de sua maneira sutil de disfarçar suas mensagens. Foi necessário um cirurgião profissional para redescobri-las no século XX. Michelangelo ocultou os indícios de que estudara anatomia, por ser algo proibido e para transmitir o conceito de criação enraizado na sabedoria: o "cérebro" de Deus, por assim dizer, é a fonte do surgimento da humanidade na Terra. Esta é
também uma ilustração de uma idéia ressaltada na Cabala: o cérebro é o órgão ligado misticamente à sefirá de Chochmá/Sabedoria. Por incrível que pareça, Michelangelo tinha consciência de uma verdade ainda mais profunda, conhecida havia muito tempo pelo pensamento cabalístico: o cérebro não está totalmente ligado à Chochmá/Sabedoria, mas apenas seu hemisfério direito, exatamente a parte que Michelangelo pintou neste painel. O artista encontrou uma maneira de mostrar visualmente a antiga oração judaica que proclama que Deus criou Adão com Chochmá, o lado direito do cérebro divino. Alguns especialistas crêem que as outras figuras entrelaçadas em volta de Deus são os principais centros e gânglios cerebrais (intersecções da "rodovia" do sistema nervoso). Contudo, existe uma explicação mística muito mais fascinante. Segundo o Talmude, o Midrash e a Cabala, a gota de sêmen que fecunda o útero da mulher não se origina no sistema reprodutivo masculino, mas vem do interior do cérebro do homem. De acordo com esta interpretação, todas as figuras em volta do Criador representam a nós, os futuros descendentes de Adão e Eva, à espera da concepção. Isto faz de todos nós descendentes diretos de Deus, esperando nascer de seu cérebro — um poderoso conceito universalista. Há outros segredos. Como sabemos que Michelangelo estudou a Cabala, certamente ele estava a par do conceito de Mochá Stimda, o cérebro oculto. Trata-se de uma faceta misteriosa de Deus, escondida por detrás e entre as sefirot da Árvore da Vida. Representa o propósito e a lógica do Todo-poderoso que há por trás de ordens e acontecimentos aparentemente sem sentido. Quando os fiéis dizem que "os caminhos de Deus são misteriosos", eles simplificam uma crença nesta Mochá Stimaa, a razão camuflada de Deus, ou o "plano divino", subjacente a tudo que transcende a compreensão de nossas mentes mortais e finitas. A palavra "misterioso" tem raiz na palavra hebraica nistar, que significa "o que está oculto". O Mochá Stimaa é também o propósito oculto por detrás da vontade de criar. Este "cérebro oculto", também conhecido por "sabedoria oculta", inspira nos seres humanos o desejo de criar, de construir, de desenhar, e também de esculpir e pintar. É a fonte que nos impulsiona a imitar o Criador e infundir propósito e significado no mundo. Segundo a Cabala, a sabedoria oculta foi instilada em nós por ambos os grupos de emoções que emanam da Árvore da
Vida. As emoções superiores - espirituais, transcendentes e autocontroladas - são chamadas de YisraelSaba, ou "Israel, o Ancião". As emoções inferiores materiais, egocêntricas e impulsivas - são chamadas de Yisrael Zuta, ou "Israel, o Pequeno". Em um gênio criativo tão ardente como Michelangelo, movido pela vontade incessante de criar, estes dois grupos de emoções — superiores e inferiores — entram em cena. E de se admirar então que ele tenha pintado a Chochmá/Sabedoria na figura feminina de Sofia, entre a figura - atualmente clássica - de Deus de barba branca representando Yisrael Saba e a do menino que representa Yisrael Zuta, todos eles envoltos no hemisfério direito do cérebro humano, abençoando a mão esquerda do homem com o talento e a vontade de criar. Sob esta luz, tal cena conhecida mundialmente revela dentro de si nada menos que uma lição oculta e proibida de anatomia, uma viagem às profundezas da Cabala e um auto-retrato secreto de Michelangelo como Adão, não no tocante à sua aparência física, mas à sua alma.
A CRIAÇÃO DE EVA Até no painel menor e mais simples da criação da mulher podemos encontrar uma mensagem judaica profunda e oculta. Segundo a tradição e a tradução cristãs, o Todo-poderoso criou Eva, a mãe de todos nós, da costela de Adão. Porém, não é isso que diz o hebraico bíblico: a palavra usada é ha-tzelá, ou seja, o lado de Adão. Os sábios rabínicos explicaram que ela não foi criada da cabeça de Adão para não se tornar arrogante e se achar superior ao seu companheiro, nem de seus pés, para que não se sentisse oprimida e desejasse fugir. Eva foi criada do lado de Adão para que os dois fossem companheiros iguais na vida. Por esta razão, após Deus criar Eva, lemos no versículo seguinte: "Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne." (Gênesis 2:24). Em quase todas as representações não-judaicas de Eva, ela é mostrada saindo de uma costela de Adão. No teto da Sistina, entretanto, ela é vista segundo a tradição judaica, surgindo da totalidade do lado de Adão.
Painel da Criação de Eva.
O FRUTO PROIBIDO A seção do teto em que está retratada a cena do Fruto Proibido também encerra segredos. E um díptico, uma pintura composta por duas partes iguais. A esquerda, vemos Adão e Eva ainda inocentes, prestes a comer o fruto proibido. A serpente astuta está no meio da pintura, enroscada na árvore, tentando-os a pecar. A direita, vemos os dois sendo expulsos do Jardim do Éden, envergonhados e com sinais visíveis do processo natural do envelhecimento, pois parte de seu castigo foi perder sua imortalidade e juventude eterna. A primeira vista, parece uma ilustração típica da história chamada pela Igreja de o "Pecado Original" ou a "Expulsão do Paraíso". Entretanto, se examinarmos mais profundamente, encontramos muitos elementos surpreendentes e subversivos, até mesmo no formato escolhido para este painel. Primeiramente, vamos deter nosso olhar no próprio fruto proibido. Conforme mencionamos anteriormente, segundo muitas tradições, se tratava de uma maçã. De fato, no latim medieval, a palavra para maçã é malum, que em outros casos se converte em male ou mala, um sinônimo de "mal", como em "malicioso" e "maléfico". No italiano moderno, as vogais se encontram invertidas e a palavra para maçã é mela. Se prestarmos atenção em praticamente qualquer outra pintura
ou afresco da arte ocidental que retrata o fruto proibido, encontraremos a imagem tradicional da maçã.
Painel do Fruto Proibido. Veja a figura 16 do encarte. A única exceção a esta crença comum era a tradição judaica. O Talmude (no Tratado Berachot 40a) discute as opiniões dos rabinos e oferece uma crença surpreendentemente diferente. Os sábios fundamentam sua conclusão em um princípio místico segundo o qual Deus nunca nos apresenta uma dificuldade sem ter antes criado uma solução para ela dentro da própria origem do problema. Portanto, eles propõem que a Árvore do Conhecimento era uma figueira. De fato, o resultado imediato da transgressão de Adão e Eva foi a vergonha ocasionada pela consciência de sua nudez, e a Bíblia nos diz que seu recurso foi se cobrir com folhas de figueira. Um Deus compassivo proporcionou a cura para a conseqüência do pecado extraída do mesmo objeto que o causou. E difícil imaginar muitos cristãos conscientes disso na época de Michelangelo, ou mesmo nos dias de hoje. Somente quem tivesse estudado o Talmude teria condições de saber. Porém, aqui no painel do Pecado Original de Michelangelo a Árvore do Conhecimento é uma figueira. Se você observar atentamente, verá
que os frutos que pendem da mão da serpente e que Adão e Eva estão prestes a pegar são verdes e suculentos figos. É notável que Michelangelo tenha escolhido uma interpretação rabínica da história bíblica e não uma aceita por seus contemporâneos cristãos. Michelangelo escolheu também uma maneira única de mostrar a inocência do primeiro casal antes de comer o fruto. Se você observar a postura de Adão enquanto se inclina em direção à árvore para pegar o fruto, é difícil não notar que seu órgão sexual está posicionado quase no rosto de Eva. Se ela movesse seu rosto - apenas um pouco - na direção dele, teríamos um teto impróprio para menores. A Igreja não estava alheia a isto, e por este motivo proibiu reproduções deste painel até o final do século XIX. Há ainda um ensinamento judaico a ser explorado neste painel. Outra mudança impressionante em relação à imagética convencional é que o próprio Adão está apanhando o fruto proibido da árvore, substituindo assim o estereótipo da "mulher má e tentadora" que entrega a ele a maçã fatal e o seduz para que a coma. Isto serve para mostrar que Adão teve tanta responsabilidade no pecado quanto Eva. Por quê? O Todo-poderoso lhes diz que têm permissão para comer livremente de todas as árvores do Jardim do Éden, exceto a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal (Gênesis 2:16-17). Entretanto, poucos versículos depois, no começo de Gênesis 3, quando a serpente está tentando Eva, lemos uma versão diferente: A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh tinha feito. Ela disse à mulher: "Então Deus disse: 'Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?" A mulher respondeu à serpente: "Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte."' (Gênesis 3:1-3) Isto não é o que Deus ordenara a Adão. O Todo-poderoso especificou que era a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e não a "árvore no meio do jardim". Esta é uma outra árvore, a Árvore da Vida. Além disso, nada fora dito sobre não
tocar a árvore. O que os antigos rabinos inferiram disto? Que Adão não havia transmitido fielmente as verdadeiras palavras de Deus, pois ele não especificou a árvore correta e adicionou à proibição de Deus uma de sua própria conta, a de não tocar na árvore. A transgressão por parte de Adão fez de Eva uma presa fácil para as mentiras da serpente. Quando o Todo-poderoso confrontou o atemorizado Adão depois do pecado, ele tentou lançar toda a culpa na mulher. Quando Deus confrontou Eva, ela foi bem mais sincera e disse simplesmente: "A serpente me enganou e eu comi." Observe que ela não diz "me tentou", mas "me enganou". Como ela foi enganada? Há mais de 2 mil anos, os sábios redigiram este Midrash que explica tudo: quando a serpente atraiu Eva para se aproximar da árvore, ela lhe deu um empurrão que a fez tocar a árvore. Ao perceber que não houve nenhuma conseqüência negativa, ela foi facilmente convencida de que Deus lhes havia mentido. De fato, não era a árvore situada exatamente no meio do jardim - esta era a outra árvore mística, a Árvore da Vida mas Eva não sabia da verdadeira proibição porque Adão não transmitira corretamente as palavras de Deus. Por este motivo, Eva foi enganada, e não simplesmente tentada. Michelangelo então decidiu mostrar Adão compartilhando a culpa, algo não visto em nenhuma outra representação ocidental do Pecado Original. Há mais um exemplo em que Michelangelo escolheu seguir a tradição judaica. Somente o Midrash descreve a serpente original como um ser de braços e pernas. Na representação tradicional do Jardim, a serpente é comumente retratada como uma grande cobra tal como as que, conhecemos hoje. Algumas vezes a serpente é retratada com uma cabeça humana, mas não mais que isso. No teto da Sistina, Michelangelo novamente segue os ensinamentos judaicos e dota a sua representação única da serpente com braços e pernas. Ao lado da serpente, no lado direito deste painel de duas partes, vemos o anjo com a espada banindo Adão e Eva do paraíso. Aqui descobrimos a última grande mensagem desta cena. O anjo justo é o gêmeo idêntico da serpente má. Um é a imagem-espelho do outro até mesmo nos gestos e na postura, e seus corpos juntos formam uma espécie de coração humano. Aqui Michelangelo retoma o tema de um de seus primeiros poemas e da Batalha dos Centauros: a luta entre as duas inclinações. Segundo a filosofia judaica, como você deve se lembrar, nós
temos um conflito interno durante toda a vida, um "cabo de guerra" entre a Yetzer ha-Tov (a inclinação para o bem) e a Yetzer ha-Ra (a inclinação para o mal). Observe que estas duas inclinações gêmeas, simbolizadas pela serpente e pelo anjo, estão uma em cada lado da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal no Jardim do Éden, pois é exatamente neste local que a humanidade aprende esta diferença pela primeira vez. O que o artista está retratando aqui difere do tradicional conceito eclesiástico sobre o Pecado Original, uma idéia alheia ao judaísmo. Ao contrário, o artista ressalta o potencial humano para a livre escolha e o livre-arbítrio. É neste ponto que termina a primeira parashá do teto, o pedaço de leitura semanal cíclica da Torá. K parashá seguinte retoma a história desta época dez gerações após o pecado de Adão e Eva. Neste ponto da história, a humanidade havia começado a povoar o globo, mas infelizmente fazia mau uso do livrearbítrio e seguia quase que exclusivamente a Yetzer ha-Ra, a inclinação para o mal. Este é o tema do último tríptico do teto, que Michelangelo começou a pintar em 1508. Veremos como ele decidiu retratar a história de Noé.
O SACRIFÍCIO DE NOÉ Conforme explicamos anteriormente, os três painéis da história de Noé não seguem uma ordem estritamente cronológica. Esta cena na verdade acontece depois que as águas do dilúvio baixaram e Noé, sua família e os animais haviam desembarcado em terra seca. Em gratidão ao Todo-poderoso por sua salvação, Noé construiu o primeiro altar da história. Segundo o Midrash, pelo fato de Noé ser um profeta, ele sabia exatamente que animais seriam mais tarde autorizados para o sacrifício no Templo Sagrado. Em várias pinturas e afrescos desta cena, outros artistas cristãos representaram Noé sacrificando todos os tipos de animais improváveis, por não serem kosher. leões, camelos, burros e outros. Michelangelo segue fielmente o Midrash e retrata apenas os animais permitidos pela Bíblia que Noé teria usado.
Painel do Sacrifício de Noé, antes de sua restauração. O próprio Noé aponta um dedo para o céu, mostrando que este primeiro altar para sacrifícios é dedicado não aos deuses pagãos, mas ao Deus único. Você perceberá também que há duas figuras à esquerda, parecendo estar à sombra: um dos três filhos de Noé e uma misteriosa figura feminina usando uma coroa de louros greco-romana pagã, o símbolo de Nike, deusa da vitória. Estas duas figuras, apesar de serem mais escuras, não estão na sombra. O que aconteceu foi que os problemas constantes com fungos e mofo provocaram danos nestes primeiros painéis. Cerca de uma geração após o término da pintura do teto, o gesso desta parte se soltou e se desfez em pedaços no chão. Em 1568, um pintor de afrescos chamado Domenico Carnevali teve de usar um pequeno andaime para subir e substituir a parte que caíra. Obviamente as substâncias químicas que ele usou em sua tinta e seu gesso não eram da mesma qualidade que a fórmula utilizada por Michelangelo e seus assistentes, e com o passar do tempo, a parte do afresco que ele refez escureceu de forma irremediável. Provavelmente foi bom que isto tenha acontecido, pois podemos distinguir facilmente entre a obra original e o que foi adicionado posteriormente. Não temos nenhuma idéia do que Carnevali tinha em mente ao pintar a figura feminina, mas é improvável que Nike estivesse presente na versão original de Michelangelo.
O DILÚVIO Na cena principal dos três painéis da história de Noé, falta uma peça do afresco, bem acima das pessoas sob uma tenda improvisada à direita do painel. Este dano ocorreu em 1795, quando a munição armazenada no arsenal do papa do Castelo de Sant'Angelo explodiu acidentalmente. A grande explosão abalou toda a vizinhança, e temos sorte de apenas um pedaço do painel ter caído, e não todo o teto. Quase 300 anos após Michelangelo, ninguém se atreveu a subir ao teto e pintar onde o mestre havia trabalhado; e por uma questão de respeito, permaneceu em branco a parte que caiu.
Painel do Dilúvio. Veja a figura 17 do encarte. Mais uma vez um pouco de conhecimento sobre o Talmude nos ajudará a entender melhor um aspecto deste painel. Há uma palavra hebraica específica para "arca" no texto original da Torá: teivá. Porém, a palavra teivá não significa um navio ou um barco, pois na verdade quer dizer "caixa". Em quase todas as representações da Arca de Noé, os artistas a retratam como um barco gigante com um casco curvado, apto para navegação no mar. Segundo o Talmude e o Midrash, entretanto, a arca era uma estrutura gigante em forma de caixa que não teria condições de flutuar sobre a superfície das águas se não fosse pelo Alento Divino ou Sopro Celestial que a susteve sobre as ondas. No teto da Sistina,
Michelangelo pintou a arca em formato de uma caixa enorme, seguindo mais uma vez a tradição judaica ao pé da letra. E claro que Michelangelo e seu alegre grupo de florentinos não conseguiram resistir à tentação de desferir um outro golpe em Roma. Na extremidade esquerda do painel, vemos a cabeça de um burro, e exatamente na mesma altura na extremidade direita da cena, há duas figuras pequenas que acabaram de sair das águas para se refugiar na rocha atrás da tenda improvisada. Eles não suspeitam que logo morrerão afogados por causa de seus pecados, pois os únicos humanos destinados a sobreviver ao Dilúvio são os que estão na arca, construída por ordem divina. Estes dois pecadores no fundo da cena se assemelham a dois ratos d'água. Eles estão apoiados em suas mãos e joelhos e suas roupas são vermelhas e douradas, as cores inconfundíveis da cidade de Roma. Se por acaso alguém duvidar da existência de uma mensagem ofensiva, o vestido da mulher, que forma um pano de fundo para a cabeça do burro, tem as mesmas cores emblemáticas de Roma.
Esquerda: Detalhe da extremidade esquerda do painel do Dilúvio. Veja afigura 13 do encarte. Direita: Detalhe da extremidade direita do painel do Dilúvio. Veja a figura 14 do encarte.
A EMBRIAGUEZ DE NOÉ Na narrativa bíblica, após Noé salvar a vida da Terra e construir o primeiro altar, ele planta um vinhedo (mostrado ao fundo à esquerda) e inventa o vinho. Pouco tempo depois ele se torna seu próprio consumidor mais fiel, conforme podemos perceber por seu corpo inchado e suas feições avermelhadas na segunda cena em primeiro plano. Ele adormece nu, e seu filho Cam o vê nesta condição. Em vez de cobrir a nudez de seu pai, corre para contar a seus irmãos Sem e Jafé. Eles entram respeitosamente no local onde seu pai está dormindo, carregando um manto e andando de costas para não vê-lo neste momento vergonhoso. Em Gênesis 9:24, a Torá narra: "Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais jovem." Os sábios do Talmude se perguntaram como Noé poderia ter sabido ao acordar o que Cam "fizera", se tivesse sido apenas uma zombaria obscena e desrespeitosa, enquanto ele estava inconsciente. O rabino Samuel (no tratado talmúdico de Sanhedrin, 70a) encontrou uma conexão textual com um episódio posterior de Gênesis, no qual Siquém, um príncipe pagão, vê acidentalmente o corpo de Dina, a única filha do patriarca Jacó. Após vê-la nua, Siquém não consegue se controlar e a viola (Gênesis 34:2).
Painel da Embriaguez de Noé
O rabino Samuel concluiu que Cam seguiu seus impulsos animais e de maneira semelhante abusou sexualmente de seu próprio pai. Isto de fato explica melhor as palavras de Noé após despertar e torna muito mais compreensível a dureza de sua resposta quando amaldiçoa Cam por suas ações. Nesta versão de Michelangelo, ele pintou os outros dois filhos, Sem e Jafé, chegando ao aposento em que estava Noé para cobri-lo, com suas cabeças voltadas para trás para não ver a nudez de seu pai. Cam voltou logo depois deles e aponta para Noé sem desviar a sua cabeça. Cam está inclusive segurando seu irmão (provavelmente Jafé) por trás como se quisesse dissuadi-lo de cobrir seu pai. O artista faz uma representação definitivamente homoerótica no abraço de Cam em seu irmão, fazendo parecer que agora ele quer também abusar sexualmente de Jafé. As explicações oficiais sobre este painel vão desde uma prefigura- ção da Encarnação de Jesus (a plantação de um novo vinhedo) a uma alusão à Paixão (por causa da cor vermelho-sangue do vinho) ou a oportunidade de redenção por meio de Cristo (o encobrimento dos pecados passados). Entretanto, um olhar novo sobre esta cena mostra que é mais provável que Michelangelo tenha voltado a seguir os ensinamentos talmúdicos e as suas próprias tendências sexuais. Há outra razão pela qual a faixa central aparentemente termina num tom relativamente menor e pessimista. Conforme vimos no díptico (painel de duas partes) do Jardim do Éden, Michelangelo conhecia muito bem o conceito dos dois lados da alma humana - a Yetzer ha-Tov e a Yetzer ha-Ra — a tendência espiritual transcendental versus a tendência animal materialista. Neste painel, ele emparelhou a serpente e o anjo, sendo um o espelho do outro, para representar a luta contínua entre o bem e o mal na alma humana. Aqui, no tríptico de Noé, ele retratou o dilúvio no meio, emoldurado pelo lado espiritual transcendente de Noé (a cena do sacrifício) antes e o lado hedonista e pecador de Noé (a cena da embriaguez) depois. O artista não nos deixa uma impressão negativa. Quando observamos o tríptico de Noé como um todo, do modo como ele o concebeu para ser percebido, vemos que ele nos apresenta uma profunda questão espiritual ao sairmos da Sistina.
Michelangelo pergunta-nos qual tendência estamos seguindo: nossa Yetzer haTov ou nossa Yetzer ha-Ra? Sua obra nos inspirou a dar mais um passo na direção de Deus ou afastar dele? O vão central da Torá termina aqui; porém, antes de encerrarmos a visita à Capela Sistina, teremos que nos deter em alguns poderosos segredos finais que Michelangelo ocultou nos afrescos do teto antes de guardar seu pincel. Ao que parece, ele havia reservado as mensagens mais fortes para o final.
Capítulo Treze CRÍTICAS NA DESPEDIDA D EUS ESTÁ NOS DETALHES . — LUDWIG MIES VAN DER ROHE Quando os quatro anos e meio infernais de trabalho servil que Michelangelo passou no teto da Sistina chegavam ao fim, o artista rebelde decidiu aproveitar ao máximo os afrescos remanescentes, para inserir as mensagens secretas que ele queria a todo custo deixar como seu legado. Por este motivo, ele escondeu um grupo de segredos na seção que retrata o profeta judeu Jeremias.
ALGUÉM ACIMA DO PAPA Precisamos prestar uma atenção especial no retrato do vidente melancólico, do qual vemos seu lado esquerdo, a área conhecida como a "face sinistra", que representa o lado mais obscuro de uma pessoa. Na Cabala, este é também o lado da Guevurá e do Din, o poder e o julgamento, o aspecto rigoroso da Árvore da Vida relativo ao julgamento dos pecados e à aplicação do castigo.
J E R E M I A S . Veja a figura 19 do encarte. Vemos o profeta olhando com tristeza e fúria para baixo, onde o papa se assentaria em seu trono suntuoso, sob o dossel real. Como você deve se lembrar, Jeremias era o mensageiro de Deus que alertou os sacerdotes corruptos do Templo Sagrado que seu bronze e ouro seriam confiscados e seu templo destruído se eles não limpassem a corrupção que lá havia. Ele está cobrindo sua boca em um gesto chamado signum harpocraticum, que significa que sua mente está ocupada por um profundo conhecimento esotérico. Michelangelo emprega este mesmo gesto em outras obras, incluindo o monumento funerário de Lorenzo de' Mediei, um duque cujo nome homenageava Lorenzo, o Magnífico. Todo o painel está repleto de maus presságios. As duas pequenas figuras atrás de Jeremias não são dois putti angélicos e bonitinhos, como aqueles vistos em outros painéis. Temos um jovem com expressão de pesar e uma triste mulher de idade indeterminada, ambos retratados como se estivessem começando a sair da
capela. O cabelo dourado do jovem e o capuz vermelho da mulher sussurram uma mensagem codificada para nós: "Olhe para as cores que o profeta está usando." De fato, Jeremias está vestido com as mesmas cores, o vermelho e o dourado. Por quê? As cores são o giallorosso, as cores tradicionais que simbolizam Roma, o lar do Vaticano. Já vimos isto antes, oculto nas figuras pequenas do painel do Dilúvio, quando o florentino queria zombar de Roma. Ainda nos dias de hoje, o vermelho e o dourado são as cores da cidade, vistas em táxis, documentos oficiais e até mesmo nos uniformes do time de futebol de Roma. Foi assim que Michelangelo quis deixar claro que estava se dirigindo a Roma, e não à antiga Jerusalém.
DETALHE DO TÚMULO DE MEDICI (S A G R E S T I A N U O V A , F L O R E N Ç A ) A mulher está usando um manto de viagem com capuz e carregando um fardo, e parece estar saindo de casa. O jovem olha com tristeza para seus próprios pés, e se fixarmos nosso olhar lá em cima, descobrimos algo muito intrigante. O pé do
jovem está prendendo um pouco apagado o rolo de pergaminho em trompe l'oeil que se desenrola bem acima da plataforma real do papa. A maioria dos guias do Vaticano nunca fala sobre este rolo que mal se vê. Há muitos que nem sabem de sua existência, e quase todos os que sabem dizem que Michelangelo escreveu nele as letras gregas alfa e ômega, que significam o princípio e o fim, tanto em referência a Jesus quanto ao término de execução do afresco gigante. Porém, nada disso é verdadeiro. Ele ainda não tinha terminado a obra, pois havia ainda outra faixa do teto a ser pintada. Além disso, o rolo não contém nenhuma letra grega. Incontestavelmente e escrita pela própria mão de Michelangelo, vemos no rolo a palavra ALEF, nome da primeira letra do alfabeto hebraico escrita no alfabeto romano. Esta seria uma referência muito clara para quem tivesse estudado as Escrituras sob uma perspectiva judaica. Jeremias não é apenas o autor do livro de profecias que leva seu nome; segundo a tradição judaica, ele é também o autor do livro das Lamentações. Este texto melancólico, que descreve em detalhes terríveis a destruição de Jerusalém pelos babilônios, é lido todos os anos na celebração sombria do nono mês de Av (Tisha b'Av), quando os judeus do mundo todo jejuam e pranteiam pela destruição do Templo Sagrado. Na época de Michelangelo, os cristãos leigos que liam este livro o faziam em latim. Somente os judeus e os cristãos que tivessem estudado hebraico e o judaísmo (como os instrutores particulares de Michelangelo, Marsilio Ficino e especialmente Pico delia Mirandola) saberiam que o livro das Lamentações é um acróstico, escrito versículo por versículo na ordem do alfabeto hebraico, começando pela letra alef. A razão para tal está fundamentada em um conceito cabalístico profundo: assim como o Todo-poderoso criou todo o universo com as 22 letras do alfabeto hebraico sagrado, Deus pode destruí-lo da mesma forma, começando com a letra alef.
DETALHE
D O P A I N E L D E Jeremias.
Bem ao lado da palavra ALEF, Michelangelo pintou ʋ - o caractere hebraico para uma outra letra, áin. Qual terá sido a razão, uma vez que estas duas letras geralmente não são escritas juntas? Somente um bom conhecedor da tradição judaica sabe dizer a resposta. O Talmude ensina que se um sumo sacerdote não for de diferenciar estas duas letras, alef e áin, de pronúncia quase idêntica, não está capacitado a servir no Templo Sagrado. Qual a razão disto? Acima de tudo, o sumo sacerdote deve ser um mensageiro confiável da Palavra de Deus para o mundo. A mudança da letra alef para áin em uma palavra, ou vice-versa, pode provocar uma mudança significativa de sentido. A dicção incorreta do sumo sacerdote pode causar um grande dano ao ensinamento tradicional. O outro motivo, mais profundo, está ligado aos conceitos fundamentais que estas duas letras representam espiritualmente. A letra alef (de onde vem a palavra "alfabeto", das duas primeiras letras hebraicas, alef a bet) não é apenas a primeira letra do alfabeto. E também a primeira letra dos Dez Mandamentos, cuja mensagem é o monoteísmo. Segundo o sistema místico da gematria, a numerologia hebraica, o valor de alef é 1. Por isso, é sempre usada para representar Deus, cuja característica principal é o fato de ser único. O valor da outra letra escrita no rolo, áin, é 70. No hebraico bíblico, este número é usado
para representar uma grande quantidade ou diversidade, como as "70 línguas do mundo" e as "70 nações". Tanto o Talmude (Tratado Sucá, 55b) quanto o Midrash (Bereshit Rabá, 66:4) discutem os 71 descendentes dos três filhos de Noé. Destes, 70 fundam as 70 nações pagas da Terra e apenas um funda o povo judeu — naquele tempo, o único não-pagão e monoteísta do mundo. Portanto, é fundamental que o sumo sacerdote seja capaz de diferenciar claramente o alef e o áin, entre o "Único" e os "setenta", entre os que se comprometeram com a pureza da fé monoteísta e os que sucumbiram à imoralidade da prática paga. Esta mensagem do conflito entre os números 1 e 70 serve como um forte alerta não apenas para os sumos sacerdotes judeus, como também para os guardiães de qualquer fé monoteísta, incluindo os papas, para que mantenham a pureza da fé e do povo em face dos desafios das culturas materialistas e pagãs. Na tradição judaica, encontramos o seguinte aviso em forma de máxima: "Estejais no mundo, mas não sedes do mundo." Nos evangelhos, Jesus diz: "Dai, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus" (Mateus 22:21). Michelangelo sentiase perturbado por causa de uma Igreja que tentava imitar a grandeza dos césares enquanto ignorava a humildade e a pobreza de Cristo. Ele percebeu que o Vaticano se tornara um lugar de corrupção desenfreada, de ambição, nepotismo e aventuras militares irresponsáveis, e que a liderança espiritual não se preocupava mais em delinear as diferenças entre o "Único" e os "setenta". Por isso, ele ousou expressar sua ira por meio do profeta Jeremias furioso, que profetizou a ruína exatamente para os que deixaram de dar ouvidos a esta mesma mensagem. Obviamente esta era uma afirmação extremamente perigosa e sediciosa. Era mais perigoso ainda escrever esta mensagem justamente acima do trono dourado do papa em sua capela real. Não é de se admirar que Michelangelo tenha deixado a escrita com aparência apagada e que o próprio rolo seja quase invisível. Porém, ele deixou evidências suflcientes para captarmos seu significado. O restante do rolo de pergaminho é ainda difícil de decifrar. A sua crítica mordaz à Igreja, contudo, é confirmada pelo fato de que ainda hoje, no século XXI, o Vaticano tem assegurado que este painel não apareça representado claramente em nenhuma reprodução autorizada, nem é mencionado ou discutido em nenhum guia oficial.
Ironicamente, o papa Júlio II se assentava abaixo de Jeremias e sua condenação entre todos os seus símbolos de poder e riqueza, do solo ao teto: uma plataforma de mármore, sua corte real, seu trono dourado, seus anéis valiosos, seus mantos de veludo, seu báculo pastoral dourado, sua coroa tríplice cravejada de jóias e, acima de sua cabeça, o baldaquino, o dossel real do papa. Foi por esta razão que Michelangelo decidiu introduzir uma série de seus próprios símbolos bem acima do dossel, para assegurar que esta mensagem permaneceria sempre acima do próprio papa. Conforme veremos, além do rosto de Jeremias, das duas figuras que estão atrás dele, seu gesto, e do pergaminho como o alef e o áin, há ainda mais a ser descoberto. Como descrevemos no capítulo 9, quase todos os ancestrais judeus são retratados como membros de famílias tranqüilas e felizes, e estas são imagens positivas dos judeus bíblicos. Há apenas duas exceções, duas figuras muito estranhas. Já discutimos uma delas: o jovem e irado Aminadab, com o símbolo amarelo da desonra que os judeus eram forçados a usar e com o gesto dos chifres do diabo com os dedos apontando para baixo, para a área do trono papal. O segundo é a luneta de Salmon, Booz e Jobed, que mostra um enfurecido ancião bradejando com uma cabeça esculpida na ponta do cajado de madeira que ele segura com a mão. A cabeça de madeira parece ser o retrato dele próprio, com a mesma barba pontuda e tudo, e reflete sua expressão como se gritasse de volta ao ancião. No outro lado da luneta há uma jovem mãe linda, cobrindo delicadamente o ouvido de seu bebê adormecido com sua mão para ele não ouvir os gritos furiosos do velho. De todos os retratos dos ancestrais judeus, o velho furioso é o único que não é pintado com traços realistas. Ele se parece mais com uma caricatura, e isto foi proposital. Ele é uma sátira a outro velho barbado, que se assentava logo abaixo, também conhecido por seu mau temperamento: Il Papa Terribile, Júlio II. Uma comparação rápida das salientes maçãs do rosto desta figura com o retrato bem mais lisonjeiro de Júlio feito por Rafael demonstra que se trata da mesma pessoa. Se Michelangelo tivesse insultado o papa de maneira óbvia demais, sua cabeça é que teria sido exibida — no bloco, sob o machado do carrasco.
Luneta de S A LM O N -B O O Z -J O B E D , antes da restauração. Exatamente entre o golpe duplo que Booz e Aminadab desferem em Júlio, está a placa com o nome de Jeremias (Hieremias, em latim). Os outros nomes, das sibilas e dos profetas, são sustentados por garotinhos e putti graciosos. Porém, neste caso, o nome Hieremias é carregado por uma pessoa fazendo uma pose de homem forte de circo, mas se trata de uma mulher jovem e musculosa. Ela não é muito atraente, e seus seios, mostrados de maneira deselegante, são bem visíveis - bem acima do trono papal. Júlio, apesar de seu voto sacerdotal de castidade, era conhecido por ser mulherengo. De fato, quando ainda era cardeal, contraiu sífilis em um de seus encontros amorosos e sofreu com os sintomas da doença durante seu pontificado. Assim como esta jovem, Michelangelo está expondo tudo aqui no afresco. A área onde se encontra o trono papal é a plataforma próxima da frente da Sistina, à esquerda do altar. Está abaixo de uma obra-prima do século XV, o afresco Cenas da Vida de Moisés, obra de outro florentino homossexual ligado à família de Medici: Sandro Botticelli. Uma cena desta pintura retrata o momento em que Moisés, o pastor, se dá conta de que está diante da Presença Divina. O Todo-poderoso pede que ele tire as sandálias de seus pés por estar em solo sagrado (Êxodo 3:5). Moisés é mostrado tirando suas sandálias antes de se
aproximar da Presença e da sarça ardente. Todos os outros profetas hebreus pintados por Michelangelo no teto têm os pés descalços, para mostrar que estão em um lugar santo, a réplica do Templo de Salomão, com uma exceção. Jeremias parece estar usando botas velhas e sujas. A figura de calçados sujos sobre a cabeça do papa era um insulto, mas também dizia que sua conduta e seu pontificado, caso não mudassem para melhor, acabariam por banir a santidade do santuário. O artista advertia que a Presença Divina e sua proteção estavam se preparando para abandonar o Vaticano.
Detalhe abaixo do painel de Jeremias com seu nome em latim: "Hieremias". Exatamente 15 anos após Michelangelo ter pintado este profético alerta, os francos protestantes efetuaram o saque horrendo e infame de Roma em 1527, violentando e assassinando aos milhares. Eles tomaram e pilharam o Vaticano, levando consigo todo o ouro e bronze que conseguiam carregar, tal qual Jeremias e Michelangelo previram.
TOQUES FINAIS A reação é quase sempre a mesma. Os que visitam o Vaticano pela primeira vez olham para o teto da Capela Sistina e seus olhos são atraídos pela figura maior e mais imponente de todos os afrescos. Eles olham maravilhados e não raro perdem literalmente o fôlego. O que Michelangelo realizou no retrato de Jonas, que ele planejara como sua declaração final, a obra que ele adiou até o final de seu longo e penoso projeto, é uma obra-prima em termos puramente artísticos. Entretanto, para os que conhecem a sua genialidade em transmitir mensagens profundas com pinceladas aparentemente simples, a pintura de Jonas é uma verdadeira mina de ouro. Mais do que uma grande pintura, é um resumo vigoroso das idéias de Michelangelo, ao terminar o projeto que jamais quis executar, para um papa que o fez passar por um inferno pessoal, físico e artístico por quase uma década. Tendo conhecimento disto, temos que perguntar: de todos os profetas e heróis famosos da Bíblia, qual a razão da escolha de Jonas? Michelangelo reservou para ele o local mais prestigiado, bem acima do altar. Ele concedeu a Jonas o maior espaço, maior do que o de qualquer das outras figuras, e literalmente fez com que "sobressaísse" de uma maneira que os espectadores ainda hoje têm dificuldade em acreditar que se trata de uma figura bidimensional. Conta-se que quando Michelangelo se aproximava do fim de seu trabalho no teto, seu velho rival Bramante (o arquiteto que o colocou nesta enrascada) foi à capela para dar uma olhada no afresco, então quase completo. "Tudo bem, pode pintar", afirmou ele com má vontade a Michelangelo, "mas um verdadeiro pintor impressionaria o espectador com figuras em trompe l'oeil." Michelangelo já usara este recurso em todo o teto, nos elementos falsos de desenho arquitetônico, tais como os frisos curvos e os pedestais quadrados brancos que parecem assentos tridimensionais para os ignudi. Porém, ele ainda não havia aplicado esta técnica com suas figuras humanas. Então, após quatro anos de prática constante, ele estava mais que preparado para o desafio. Como uma demonstração final de seu poder artístico — esse talento que seus detratores afirmavam ser impossível transferir de sua profissão verdadeira, a de escultor Michelangelo reservou para
o final o seu exemplo mais magnífico de pintura tridimensional. As pernas de Jonas parecem estar realmente saindo da parede, penduradas acima do altar, enquanto seus ombros e sua cabeça parecem se inclinar para trás, penetrando o teto da Sistina, e se projetando ao céu aberto. É uma técnica incomparável que refutou de maneira contundente as críticas a Michelangelo. Porém, mais uma vez perguntamos o porquê de Michelangelo ter escolhido Jonas como sua figura paradigmática "destacada". Certamente o papa, que o havia encarregado da obra, ficou impressionado e perturbado com o fato de que, de todos os profetas escolhidos por Michelangelo, nenhum dos sete — Zacarias, Joel, Isaías, Ezequiel, Daniel, Jeremias e Jonas era um herói do Novo Testamento. Porém, mesmo entre as personalidades das Escrituras hebraicas Jonas é visto como pouco digno de companhias tão ilustres. O seu livro é curto, e seus quatro capítulos têm um total de 48 sentenças. Na Bíblia cristã, o livro de Jonas se encontra em uma seção denominada "Profetas Menores". Na versão judaica, ele nem ao menos tem a honra de ter seu próprio livro, pois é simplesmente agrupado com outros 11 em uma obra conhecida como Trey Assar ("Os Doze"). Porém, para Michelangelo, Jonas é o porta-voz final e mais eloqüente da Capela Sistina porque viu nele o seu alter ego: um profeta relutante forçado pela vontade divina a cumprir uma missão que desejava evitar a todo custo.
Jonas é a própria imagem do profeta hesitante obrigado a aceitar uma tarefa contra sua própria vontade. Assim como Michelangelo estava plenamente satisfeito esculpindo suas estátuas sob a proteção da família de Medici, Jonas estava contente em viver em Israel sob a corte corrupta de Jeroboão que, segundo o Talmude, era o mais malvado e mais idolatra dos reis de Israel. Ainda hoje nas lojas de vinhos, uma das maiores garrafas - portanto, a mais decadente — é a jeroboão, de três litros. Deus ordena a Jonas que vá à cidade perversa de Nínive, situada onde é o Iraque moderno, para profetizar a seu corrupto governante pagão e seus habitantes. Michelangelo foi ordenado a deixar a escultura e Florença, sua
cidade amada, para permanecer no Vaticano por vários anos, fazendo o que ele desdenhava: pintar.
Jonas tenta escapar de seu chamado embarcando em um navio e indo em outra direção, mas Deus vai em seu encalço e ele acaba sendo engolido por um peixe gigante, dentro do qual permanece por três dias. Michelangelo tentou fugir do encargo penoso do papa várias vezes, mas acabou sendo forçado a pintar o teto da Sistina por mais de quatro anos de tortura física e emocional. Tanto Jonas quanto Michelangelo choraram e rezaram aos céus para uma libertação "das profundezas". Jonas, após ser salvo das entranhas do animal, cumpre a sua obrigação indo a Nínive e pregando aos seus cidadãos para que se arrependam. Surpreendentemente, apenas um dia depois todos na cidade, do rei até o mais pobre, vestem-se de pano de saco e cinzas, jejuam e buscam o perdão. Todos em Nínive abandonam o culto aos ídolos. Jonas, desgostoso porque o arrependimento de Nínive poderia pôr em descrédito a verdade de seu alerta, sai amuado da cidade. Michelangelo, desesperado por não ter obtido o mesmo sucesso em seus esforços para purificar a Igreja de seus excessos hedonistas, amofinou-se na Sistina, com a intenção de terminar o projeto do teto e escapar da capela o mais rápido possível.
Porém, isto não é tudo. Michelangelo tinha um precedente para colocar tanta ênfase em Jonas e reservar a mensagem deste profeta para o final de sua obra. Era um precedente que ele muito provavelmente aprendeu quando estudava os ensinamentos dos rabinos talmúdicos na escola secreta de Lorenzo de Medici, pois a ênfase que dá a Jonas é o que os judeus têm feito por séculos, até os dias de hoje, em seu dia mais sagrado do ano, o Yom Kippur. O Yom Kippur, o Dia da Expiação, é o evento final de um período de dez dias de penitência que tem início com o Rosh Hashaná, cuja tradução literal é "Cabeça do Ano" e que marca o início do ano-novo judaico. O Talmude explica que no primeiro destes dez dias Deus "escreve" seu decreto para o ano seguinte para
cada indivíduo: quem viverá, quem morrerá, quem será abençoado ou amaldiçoado, quem estará bem e quem sofrerá. Porém, este decreto não é selado até a conclusão do Yom Kippur. O arrependimento pode chegar a alterar um veredicto severo, e por isso estes dez dias são também chamados de Dias de Temor e Reverência, e cada um deles conduz mais próximo o momento em que não há mais possibilidade de escapar do veredicto divino. Quando o sol começa a se pôr no Dia da Expiação, o livro de orações judeu oferece a imagem do fechamento dos portões celestiais. As orações mudam, e o pedido de "escreva para nós um bom ano" passam a "sela-nos para ter um bom ano". E justamente antes do fechamento dos portões que a tradição judaica ordena que se recite uma escritura específica. São os quatro capítulos de Jonas, lidos em todas as sinagogas do mundo inteiro como a mensagem de encerramento do dia. O profeta que os judeus escolheram para encerrar as orações de seu dia mais sagrado é exatamente o mesmo escolhido por Michelangelo como o porta-voz de seu adeus à Sistina. Entender o porquê da escolha de Jonas pela tradição judaica significa compreender o que deve ter motivado também a escolha de Michelangelo. Os rabinos talmúdicos achavam que a história de Jonas era a quintessência da mensagem para o dia que os judeus estão mais empenhados em estabelecer a paz com Deus. E uma história que nos faz recordar que Deus julga o mundo inteiro, não apenas os judeus, mas também o povo de Nínive e todas as outras nações. Enfatiza a verdade de que os que seguem a Deus têm a obrigação de ajudar as pessoas más a desviar do mal. Ninguém consegue escapar desta obrigação sem sofrer as conseqüências da ira divina, nem se esconder de Deus, não importando onde quer que vá, mesmo escondido no estômago de uma baleia no fundo do mar. Não podemos perder a esperança de que os maus, por mais distantes que estejam de Deus, possam ser levados a mudar de comportamento. O arrependimento é sempre possível, e o mais importante de tudo é que ele é sempre aceito por Deus, mesmo que alguém se arrependa no último instante, antes da destruição iminente. Deus não deseja a destruição dos malfeitores; seu desejo é que eles mudem para então oferecê-los seu perdão.
Imagine o significado destas idéias para Michelangelo. Jonas era o único profeta bíblico enviado para pregar aos gentios, e Michelangelo entendeu ser esta também a sua missão. Ele também tentou o máximo que pôde, assim como Jonas, mas não conseguiu escapar da missão reservada para ele. Estava profundamente perturbado por causa da corrupção da Igreja e de seus líderes, e não conseguiu suportar a busca de luxo e riqueza dominante na política papal; acreditava que a Igreja tinha necessidade de arrependimento e mudança profundos. Para muitos da época de Michelangelo, isto era um sonho impossível. Martinho Lutero e outros pensadores com idéias semelhantes ao final desistiram totalmente de reformar a Igreja e estabeleceram suas próprias formas de cristianismo. Afinal, pensaram eles, como alguém que fosse realista poderia esperar que um sistema tão profundamente imerso em pecado poderia alterar seu curso? Contudo, a Bíblia nos diz que isto já aconteceu uma vez. Nínive, a grande cidade pervertida, arrependeu-se exatamente antes de sua destruição. Jonas aprendeu a lição mais importante: Não podemos desistir dos pecadores, pois nunca é tarde demais para salvá-los. Desta maneira Michelangelo encerrou seu sermão no teto da Sistina: com o profeta que descobriu que, apesar de suas dúvidas e pressentimentos, sua mensagem falou ao coração dos que a ouviram, e assim ele salvou toda a população da cidade. Michelangelo rezava para a possibilidade de que a Igreja, assim como o povo de Nínive, ouvisse também sua mensagem.
COMPREENDENDO AS MENSAGENS OCULTAS Sabemos agora por que Michelangelo escolheu Jonas como seu mensageiro final, mas afinal qual é a sua mensagem, exatamente? Olhe com atenção para a reprodução de Jonas que acompanha esta seção do capítulo e depois analise as pistas tão brilhantemente escondidas nesta pintura. Observe que ao lado do ombro esquerdo de Jonas há dois anjinhos, ou putti, um acima do outro. Eles não estão presentes em nenhum momento no livro do profeta. Então, o que estão fazendo nesta pintura? O anjo de cima mantém os dedos de uma mão abertos, mostrando o número cinco. O anjo de baixo está
olhando diretamente para as pernas descobertas de Jonas, como se dissesse: "Procurem o número cinco abaixo." É importante observar que este é o único profeta hebreu do teto com as pernas à mostra, e a única entre todas as figuras do teto com os membros inferiores expostos e abertos e com a virilha coberta com um pano. Conforme já vimos, Michelangelo não tinha nenhum problema com a nudez masculina; na verdade, ele se deleitou com ela em toda a Sistina, para a grande consternação da Igreja. Por esta razão, não foi por recato que ele cobriu a virilha de Jonas. Entretanto, se olharmos para a figura formada pelas pernas que parecem sair da superfície plana da pintura, notaremos que elas formam uma letra hebraica, a que representa o número cinco: a letra hê. Esta letra tem a seguinte forma: Π. Michelangelo necessitava acrescentar o pano, incomum em outros afrescos, a esta pintura para poder completar o espaço do meio do caractere hebraico. Os anjos guiam o nosso caminho, nos dizendo para olhar para a letra hê e que seu significado é "cinco". E o que há de tão especial a respeito do número cinco? Ele é extremamente importante na Bíblia. Os cinco livros de Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) são chamados de Pentateuco, palavra de origem grega, pentateukhos. Penta significa "cinco" e teukhos quer dizer "estojo", onde eram guardados os rolos de papiro. Por extensão deste sentido, passou a significar "cinco volumes" ou "cinco livros". Em hebraico, estes cinco livros são chamados de Chumash, raiz da palavra hebraica para "cinco". A Igreja da época de Michelangelo tentava negar a importância dos cinco livros de Moisés; eles não eram nada mais do que o "Antigo Testamento", uma relíquia cujas leis antigas haviam sido invalidadas e substituídas pelo "Novo Testamento". Michelangelo está enviando uma mensagem ao Vaticano, dizendo que uma Igreja que ignora que suas raízes estão na Torá e a primazia das Escrituras hebraicas se perderá.
Conforme já descobrimos, Michelangelo era um discípulo entusiasta da filosofia neoplatônica, a qual buscava a harmonização das crenças. Para ele o cristianismo não significava uma forma de religião mais elevada e evoluída que suplantava as demais. Estava destinada a coexistir com sua religião-mãe, a ter consciência de sua fonte. Os cinco livros continuariam a ser a chave original para se compreender o nosso elo com o Criador. O Antigo Testamento precisa ser respeitado para que o Novo Testamento possa ter alguma validade.
Veja agora como Michelangelo reforça esta idéia pela posição incomum dos dedos de Jonas. Qualquer pessoa familiarizada com o alfabeto hebraico, como era Michelangelo, não pode deixar de perceber que o espaço formado pela estranha posição e junção das mãos desenha claramente o contorno desta letra: 2 — a letra hebraica bet. Como sabe todo leitor da Bíblia original, bet é a primeira letra da Torá, a primeira letra dos cinco livros de Moisés e que, a fim de transmitir seu significado, é escrita em tamanho maior (como, por exemplo, o dobro do tamanho das outras que a seguem) em cada papiro manuscrito da Bíblia que é lido em todas as sinagogas. Vamos a um resumo: Michelangelo pintou um anjo mostrando cinco dedos abertos e um outro dirigindo nosso olhar para baixo, para as pernas de Jonas, abertas de uma maneira que formam a letra hebraica que representa o número cinco. Este número simboliza a Torá, que o artista considerava como a raiz comum do judaísmo e do cristianismo. Os dedos de Jonas se contorcem e formam a primeira letra dos cinco livros de Moisés. Os cabalistas explicam por que a letra bet merece a honra de ser a primeira no livro escrito por Deus. Segundo a tradição, bet não é apenas uma letra. Sozinha, é também uma palavra e significa "casa". Em seu significado mais sagrado e mais profundo, se refere à casa de Deus, a B E T H A -M I K D A S H , o templo que futuramente seria construído em Jerusalém. A Torá começa sua prescrição para a conexão humana com o Criador indicando que a nossa obrigação principal é permitir que Deus encontre morada em nosso meio. Este conceito é muito importante no contexto em que Michelangelo o colocou. Não podemos esquecer que a Capela Sistina foi construída com um propósito em mente: ser uma réplica do Templo, erigida segundo as especificações bíblicas. Michelangelo está concluindo o embelezamento da B E T , a casa de Deus à qual é feita uma referência mística na primeira letra da Bíblia original. Não se esqueçam D E S T E livro, diz Michelangelo em seu último afresco, mesmo se construírem um templo em Roma para substituir o que existiu em Jerusalém. Michelangelo amava o Midrash, os comentários judaicos antigos dos textos bíblicos. Por este motivo, ele ignorou o comentário cristão mais conhecido segundo o qual Jonas fora engolido por uma baleia. Afinal de contas, o texto
hebraico diz simplesmente D A G G A D O L , "um grande peixe". Os rabinos dizem que provavelmente era Leviatã, o gigantesco animal marinho que as almas justas comerão para celebrar sua redenção quando vier o Messias. E é isso - um grande peixe - que vemos à direita de Jonas. Flutuando por cima do ombro esquerdo do profeta há um galho frondoso, evidentemente fazendo referência à árvore de K I K A Y O N , que cresceu durante a noite sobre a cabeça de Jonas para fazer sombra e protegê-lo do sol babilônico, já quase no fim de seu livro (Jonas 4). Temos aqui mais um exemplo em que Michelangelo mostra sua formação em Talmude e o usa para transmitir uma mensagem corajosa, porém oculta. Segundo as demais interpretações da história de Jonas, a K I K A Y O N É um cabaceiro, mas não há nenhuma cabaça na árvore que ele pintou sobre o altar do papa. Segundo os sábios talmúdicos, é uma árvore aparentada do rícino, vulgarmente conhecida como mamoneira ou figueira-doinferno, da qual se extrai um óleo considerado inadequado para o ritual de acender a Menorá no Templo Sagrado. Mais uma vez o florentino faz uma afirmação particular à Igreja Católica Romana corrupta de seu tempo: N E M TUDO QUE PARECE SAGRADO É APROPRIADO PARA O SERVIÇO DIVINO.
Sobre a cabeça do profeta - e sobre as cabeças da corte papal — repousa a lembrança de que o profano não tem lugar na casa de Deus. Por fim, a genialidade de Michelangelo encontrou uma maneira de expressar mais uma idéia bíblica com o uso de um recurso brilhante. Deus resumiu o pecado do povo de Nínive que quase levou a cidade à ruína da seguinte maneira: "E eu não terei pena de Nínive, a grande cidade, onde há mais de 120 mil seres humanos, que não distinguem entre direita e esquerda, assim como muitos animais!" (Jonas 4:11). Imagine estar tão confuso que não se consegue distinguir a esquerda da direita; ou até entre o bem e o mal, o certo e o errado. Foi assim que o Todo-poderoso descreveu a confusão moral. Olhe mais uma vez para as mãos de Jonas, e note como estão con- torcidas e em uma posição estranha: estão cruzadas uma sobre a outra. O que Michelangelo estava tentando expressar? Evidentemente, o propósito exato da história. Uma nação que se desvia não é capaz de distinguir nem a direita da esquerda; e foi
isto, acreditava Michelangelo, o que acontecera com sua própria Igreja. Ele não suportava ver Júlio II, autocrático e sifilítico, encabeçar uma religião que perdera o rumo e deixara de ser fiel à missão de seus fundadores. A Igreja se parecia mais com Nínive e menos com Nazaré. Contudo, denunciar isto publicamente significaria se arriscar a ter o mesmo destino de Savonarola, queimado na fogueira em Florença. Então, Michelangelo pregou por meio de sua arte. Quando teve a oportunidade de se expressar no próprio "templo" do Vaticano, ele aproveitou o máximo na esperança de que seus espectadores entenderiam. Ao final Michelangelo teve a sua vingança contra Júlio. A capela deveria ter a função de direcionar toda a atenção e majestade para o pontífice, mas Jonas se ergue sobre ele, roubando a cena... e olhando acima para um Poder Superior, na direção oposta do papa, sentado abaixo. O olhar de Jonas é a chave para o último segredo, e desta vez se trata de um segredo cristão. Michelangelo certamente conhecia o outro significado do profeta em hebraico. Jonas (cuja pronúncia em hebraico soa como io-ná) pode significar "Deus responderá", como vimos no capítulo 11. Entretanto, tem também outro significado: "pomba." Na tradição cristã, uma pomba descendo do céu é o símbolo do Espírito Santo. A pomba pode ser vista na maioria das representações do batismo de Cristo, ocasião em que, segundo Mateus 3:16, Jesus viu o Espírito Santo descer e pousar sobre ele. Um exemplo clássico é encontrado na Sistina no afresco do século XV de Pinturicchio e Perugino, à direita do altar. De fato, esta é uma outra localização usual da pomba simbólica: na parede acima dos altares cristãos, incluindo o altar do papa na Basílica de São Pedro. A idéia é a de que o Espírito Santo desceu sobre o altar para iluminar e abençoar o santuário. Então, por que Jonas olha para cima? Michelangelo queria dizer que acreditava que o Espírito Santo não se encontrava na Sistina na época do pontificado de Júlio II. O artista ainda aguardava que a Presença Divina descesse sobre a Igreja e - parafraseando São Francisco de Assis - trouxesse luz onde havia apenas sombras, humildade onde havia apenas arrogância, e amor onde só havia intolerância. Jonas se inclinou para trás e projetou sua cabeça por entre o teto para deixar um pouco da luz pura do céu entrar na que era então uma época de muitas trevas na Igreja.
Temos aqui o epítome da mensagem do artista: um profeta judeu de nome "pomba" sentado sobre o altar do papa, substituindo a pomba cristã vista geralmente nesta posição, olhando para a Única Fonte de Luz e ligando cabalisticamente desta maneira, por meio de sua posição, o mundo material com o mundo divino, assim como a a sefirá sefirá da Misericórdia (Chessed). Em uma imagem, Buonarroti entrelaçou arte e religião, as tradições judaica e cristã, a ira e a misericórdia, e o Céu e a Terra. No final de outubro de 1512, após quatro anos e meio torturantes, Michelangelo foi finalmente libertado da Capela Sistina, muito feliz por não ter nunca mais que voltar a pintar neste local. Se ele soubesse o destino que o aguardava 23 anos mais tarde...
LIVRO TRÊS Além do Teto Capítulo Quatorze D E VOLTA À CENA O A M O R , C O M
SUAS PRÓPRIAS MÃOS, ESTÁ ENXUGANDO MINHAS LÁGRIMAS.
— MICHELANGELO Ao F I N A L D E U M L O N G O período, feliz após a sua "libertação" da Sistina, Michelangelo abandonou o pincel e mais uma vez se dedicou aos amados martelo e cinzel. Ele deve ter se sentido extremamente emocionado por retomar sua verdadeira paixão, pois começou a trabalhar ao mesmo tempo em várias peças de mármore de grandes dimensões para o túmulo do papa. Ele gastara anos preciosos de sua vida no teto da Sistina, afastado forçosamente de seu amor pela escultura, e estava então desesperado para compensar o que ele provavelmente considerava ter sido tempo perdido. Finalmente começaram a ser usados os blocos enormes de mármore, deixados no chão próximo do canteiro de obras gigantesco onde seria construída a Basílica de São Pedro. Ele começou a esculpir
seis grandes nus masculinos, além de um profeta judeu de tamanho colossal. A explosão de energia criativa marcou um novo período em sua técnica. Em vez de seguir o modelo clássico de criação de estátuas esmeradamente acabadas e Davi, Michelangelo polidas, como ele fizera quando esculpiu a Pietà e o Davi, aperfeiçoou seu já famoso estilo do do non finito, finito, ou seja, a aparência inacabada. Séculos antes dos movimentos impressionista e cubista na arte, Buonarroti foi um pioneiro nestes mesmos conceitos. Ele reduziu suas esculturas ao mínimo possível de formas definidas — à sua essência - para expressar suas idéias e sentimentos, e não simplesmente para criar belos objetos decorativos de pedra. Se ele tivesse trabalhado desta maneira futurista com um número suficiente de assistentes e sem interrupções, provavelmente teria conseguido esculpir todas as mais de quarenta figuras exigidas no contrato de construção do túmulo do papa Júlio II. Explorando esta técnica, Michelangelo foi capaz também de ocultar um número ainda maior de mensagens ambíguas em suas últimas obras. É estranho que ele finito em suas pinturas. Aparentemente o artista jamais tenha usado o estilo non estilo non finito em nunca conseguiu ou se dispôs a fazer uso, em suas obras bidimensionais, de certos aspectos de seu gênio como escultor. Foi nesta altura de sua vida que Michelangelo decidiu se dedicar de coração e alma ao que foi certamente a sua escultura favorita: a figura de Moisés, o maior de todos os profetas judeus. Desde o começo do projeto do túmulo, Michelangelo planejou uma estátua gigante de Moisés para o lugar de honra, no centro do nível intermediário da estrutura piramidal. Segundo os planos originais, o profeta hebreu seria colocado em um lugar elevado no coração da nova Basílica de São Pedro, exatamente sob a cúpula gigante, onde hoje se encontra o altar maior. Se tivesse sido colocado nesta posição, certamente teria se concretizado o sonho do artista de unir permanentemente as duas crenças de uma maneira inesquecível e altamente visual. Como preparativo para sua missão, o florentino regressou às montanhas de sua infância em Carrara. Foi uma viagem bem semelhante a uma peregrinação, pois talvez tenha sido para purificar seu corpo e sua alma após os horrores e as
tensões sofridas durante a pintura da Sistina. Ele passou vários meses nas pedreiras de mármore, procurando pela peça perfeita na qual esculpiria o Moisés. o Moisés. Esta obra seria a sua realização suprema no trabalho com a pedra, o seu grande retorno ao mundo da escultura. Enquanto todos os demais elementos do túmulo eram deixados em seu estilo inacabado, Moisés inacabado, Moisés era era exatamente o oposto: escul pido e polido à mão com carinho por meses até ficar perfeitamente acabado e reluzente, mais brilhante que a Pietà. a Pietà. O que quase ninguém sabe é que o Moisés o Moisés que que vemos hoje não é o mesmo que Michelangelo esculpiu entre 1513 e l515.0 artista subversivo fez uso de seus velhos truques de ocultar sabedoria judaica mística em trabalhos artísticos encomendados pelo papa. Na Torá, em Êxodo 34:29, lemos: "E foi ao descer Moisés do Monte Sinai, estando as duas tábuas do testemunho na mão de Moisés em sua descida do monte, e não sabia Moisés que resplandecia a pele de seu rosto por ter falado com Ele (Deus)." De fato, a luz divina era tão intensa que Moisés teve então que pôr uma máscara para não cegar seus companheiros israelitas quando se encontrou com eles. Qual era a fonte desta luz sobrenatural? O Midrash e a Cabala têm uma explicação. Quando Moisés estava no alto do monte, implorando ao Todo-poderoso que perdoasse seu povo pelo pecado de ter adorado o bezerro de ouro (Êxodo 32), ninguém conseguiu acompanhar o profeta até o topo. A luz divina era tão intensa que nenhum mortal, exceto Moisés, conseguiria sobreviver a ela. Ele permaneceu no monte Sinai por quarenta dias e quarenta noites, sem comer, beber ou dormir, para alcançar a iluminação espiritual, não apenas para si, como também para todo o seu povo. Foi preciso um esforço supremo e sobre-humano para conseguir a expiação pelo pecado terrível da idolatria dos filhos de Israel, com o agravante de ter sido cometido logo após a libertação milagrosa do Egito. Tal expiação engloba uma meta espiritual de se sentir um só com Deus e com o universo. Foi este estágio que Moisés alcançou no topo da montanha. Segundo a Cabala, ele chegou ao nível de Biná, Biná, a esfera mais elevada da Árvore da Vida, jamais atingida por outro ser humano, e o grau mais profundo e sublime de compreensão e entendimento. Depois de destruir as primeiras tábuas ao ver os israelitas adorando o bezerro de ouro, Moisés recebeu a ordem de esculpir novas tábuas em substituição às que
Deus havia feito. Segundo a tradição, Deus então ensinou a Moisés toda a Torá, o Talmude e todos os segredos místicos da Cabala. Foi por este motivo que seu rosto estava cheio de luz: ele fora iluminado diretamente por Deus e partilhava então o brilho da divindade. O Midrash acrescenta que Deus queria também revelar a Moisés a história futura do povo judeu e do mundo até a chegada do Messias. Para dotá-lo desta visão especial, Deus lhe concedeu uma gota da luz divina. Não se tratava de uma luz comum, pois era a luz primordial com a qual Deus criara todo o universo e as sefirot as sefirot da da Árvore da Vida. Michelangelo sentia uma profunda afinidade com Moisés. Afinal de contas, eles eram almas gêmeas, homens das montanhas que esculpiram suas mensagens em pedra. Conhecedor deste Midrash, Michelangelo queria representar Moisés com este dom de profecia, olhando para o futuro distante da humanidade. Por este motivo, voltou à técnica que usara tão bem ao esculpir o Davi. o Davi. Ele Ele esculpiu os olhos um pouco separados e mais profundos, e não fixos no espectador. Se você olhar para a estátua de Moisés de Moisés hoje, hoje, de qualquer ponto, notará que ele não olha para você, porque seus olhos estão dirigidos firmemente para o futuro. De acordo com o plano original do colossal túmulo de Júlio, o Moisés o Moisés ficaria bem acima do piso, no centro da estrutura piramidal. Michelangelo planejou tirar proveito da luz que entrava pelas janelas da cúpula e atingiria o monumento funerário. Ele poliu o rosto de Moisés para fazê-lo brilhar com os reflexos dos raios do Sol que o iluminariam perfeitamente. Chegou até mesmo a esculpir duas saliências pontudas no alto da cabeça da estátua que também refletiriam os raios do Sol, passando a impressão de que a luz divina realmente irradiava da cabeça de Moisés. Este é mais outro segredo da estátua: ela nunca teve chifres. O artista planejou o Moisés Moisés para que fosse uma obra-prima não só da escultura, mas também dos efeitos visuais especiais, dignos de um filme de Hollywood. Por este motivo, a estátua tinha de estar elevada e olhando para a porta frontal da basílica. As duas protuberâncias na cabeça ficariam invisíveis para os espectadores que olhassem de baixo, do piso, pois a única coisa que veriam seria a luz refletida nelas. Este é mais um exemplo do quanto Buonarroti estava à frente de seu tempo: o Moisés o Moisés que que ele criou é um exemplo magnífico de um conceito artístico muito em voga no final do século XX: a obra de arte denominada site-specific, denominada site-specific,
ou seja, projetada para um local específico. E foi assim mesmo que Michelangelo esculpiu e finalizou a estátua após terminar de pintar o teto da Sistina: sentado em posição ereta, com as pernas lado a lado e a face olhando diretamente para frente... e assim permaneceu por mais de duas décadas em uma espécie de limbo, enquanto o futuro do gigantesco túmulo era discutido e alterado conforme as vicissitudes transitórias do poder no Vaticano. Buonarroti dedicou-se de corpo e alma à criação da estátua de Moisés, de tal maneira que se diz que, quando terminou a obra colossal, ele a segurou pelos ombros e gritou: "Fale, fale! Por que você não fala?" Não havia então nada mais que o prendia em Roma. Júlio estava morto, o teto fora terminado e os planos para seu monumento foram cancelados pelo novo papa, Leão X. Leão não era ninguém mais que Giovanni de Medici, filho ilegítimo de Giuliano, o irmão de Lorenzo, o Magnífico. Quando Giuliano foi assassinado, Lorenzo acolheu Giovanni e o criou como um de seus filhos. Giovanni e Michelangelo cresceram juntos no Palácio de Medici, e provavelmente dormiram na mesma cama ca ma quando eram meninos. Então, após a morte de seu arqui-inimigo Júlio II della Rovere, o clã de Medici encontrou a solução perfeita para se defender contra os ataques insistentes do Vaticano: eles subornaram um número suficiente de cardeais para eleger um dos seus como o novo pontífice. Eles derrotaram o Vaticano simplesmente se apoderando dele. Conta-se que enquanto Leão/Giovanni se dirigia para tomar posse dos aposentos papais, ele disse a seu irmão Giuliano em tom sarcástico: "Deus nos concedeu o pontificado, vamos agora desfrutar agora desfrutar dele." dele." Se Michelangelo por acaso acalentou sonhos de que o papa da família de Medici reformaria a Igreja e transformaria Roma em uma Atenas de arte e filosofia, ele deve ter se sentido profundamente desiludido com o governo de Leão. Leão X não era Lorenzo, o Magnífico. A Roma sob seu mandato se tornou uma série interminável de banquetes e orgias, enquanto a família de Medici esvaziava os cofres do Vaticano para financiar seus próprios negócios familiares e aventuras militares. Michelangelo esculpiu as peças para o monumento funerário, apesar de provavelmente já ter percebido então que o túmulo de Júlio jamais seria erigido dentro da nova Basílica de São Pedro. Ele o fez apenas para afinar novamente o seu olho e sua mão de escultor após os anos passados na pintura do teto da
Sistina. A outra razão era que os parentes sobreviventes de Júlio ainda lhe pagavam 200 escudos por mês, renda digna de um rei. Quando Leão libertou o artista de seu contrato do túmulo de Júlio della Rovere, ele o encarregou de criar uma fachada para a igreja de San Lorenzo em Florença, ainda inacabada. Michelangelo ficou exultante por deixar Roma e retornar à sua amada Toscana. Nosso desejo é evitar a tentação de nos desviarmos para uma longa biografia e história artística de Michelangelo nestes anos, e nos concentrar o máximo possível nos segredos que ele ocultou no Vaticano em Roma; entretanto, foi entre os anos de l513 e l534 que não só Michelangelo mas também todo o mundo, passaram por períodos de grande agitação. Como os acontecimentos deixaram sua marca no artista, precisamos compreender esta parte de sua vida, se quisermos apreciar os últimos segredos que ele ocultaria ao ser trazido novamente à Sistina em 1534 para pintar afrescos. Basta dizer que neste intervalo de 21 anos ele criou dois legados artísticos permanentes para a cidade Laurenziana, em memória de Lorenzo, o Magnífico e a de Florença: a Biblioteca a Biblioteca Laurenziana, em Sagrestia Nuova, Nuova, a nova sacristia da Igreja de San Lorenzo. Michelangelo desenhou a sala, os candelabros e os túmulos, e esculpiu sozinho quase todas as estátuas, um feito surpreendente se considerarmos que na época em que terminou a sacristia — também chamada de Capela Medici - ele já tinha quase 60 anos. Contudo, as paixões de Buonarroti não tinham abrandado, pois ele ainda ocultava símbolos secretos nestas maravilhas arquitetônicas. Um exemplo é a escada magnífica que leva à biblioteca. Ela tem exatamente 15 degraus, uma lembrança da escada curva dos levitas no Templo Sagrado de Jerusalém. Cada degrau simbolizava um passo acima, subindo em direção ao arrependimento e à iluminação espiritual. De fato, no livro dos Salmos, há 15 "salmos da subida" (os de número 120 a 134), um para cada degrau. Há duas escadas laterais, cada uma com nove degraus. Na tradição mística judaica, o número 9 é o símbolo da verdade. A soma dos degraus das duas escadas laterais dá o número 18, símbolo judeu da vida. Aqui Michelangelo está prestando uma homenagem perene ao amor de seu grande mecenas Lorenzo pela vida, à sua busca da verdade e sua procura pela harmonia espiritual em um mundo turbulento.
Escada de acesso à Biblioteca Laurenziana, Florença. E o mundo estava mesmo turbulento. Enquanto Michelangelo trabalhava nestes projetos florentinos, uma de suas profecias a respeito de Roma se concretizou de maneira horrível. Conforme relatamos anteriormente, o seu afresco do profeta Jeremias era um alerta para que o Vaticano se purificasse espiritual e eticamente para não sofrer o destino do Templo Sagrado original de Jerusalém. Lá Deus castigara os sacerdotes corruptos com o ataque de um inimigo impiedoso que despojou o templo de todo o bronze e ouro. Cinco anos após Buonarroti terminar o teto da Sistina, um clérigo alemão exasperado, Martinho Lutero, afixou seus protestos contra o papado na porta de uma igreja. Em apenas dez anos, seu movimento religioso se tornou uma grande onda que varreu toda a Europa e deu origem a muitos grupos e cismas; porém, todos eles partilhavam do mesmo ódio ao Vaticano. Um exército de soldados luteranos sob o comando de uma coalizão de barões alemães e seus lansquenetes, soldados mercenários, tomou a cidade de Roma e a saqueou sem piedade em 1527. Mais de 20 mil civis desarmados foram assassinados. O Vaticano caiu em suas mãos e foi profanado, e todo o seu bronze e ouro foi tomado como despojo, tal como Michelangelo havia previsto. Este acontecimento traumatizou todo o mundo católico, mas alimentou as esperanças de todos os reformistas de que o Vaticano finalmente se arrependeria e mudaria o seu comportamento corrupto. Michelangelo e todos os que partilhavam desta
esperança tiveram uma decepção profunda. Dentro do Colégio Apostólico tudo corria como antes. Dez dias após o saque de Roma, jovens livres-pensadores que desejavam restaurar Florença aos seus dias de glória se levantaram e expulsaram os descendentes corruptos de Lorenzo de Medici. Michelangelo, desgostoso com a decadência da nova geração da família de Medici, participou com entusiasmo da revolta popular. Talvez algo que também tenha contribuído para o seu compromisso com a causa fosse o fato de que os agitadores do levante eram em sua maioria jovens belos, cuja companhia Michelangelo buscava constantemente. Ele se atirou com paixão ao seu papel de revolucionário, trabalhando incansavelmente e ombro a ombro com estes jovens, projetando novas fortificações e defesas, fazendo discursos para os soldados, planejando estratégias e cuidando dos companheiros abatidos pela praga. Três anos mais tarde, em 1530, por meio de uma série de alianças imorais, o clã de Medici e o Vaticano conseguiram retomar Florença e punir os rebeldes sem piedade. Michelangelo foi declarado inimigo público do regime restaurado e da Igreja, e sua cabeça foi posta a prêmio. Ele desapareceu sem deixar pistas e reapareceu um mês e meio depois, quando velhos amigos em comum conseguiram convencer o papa Clemente VII do clã de Medici a perdoá-lo para que pudesse terminar a Capela Medici na Igreja de San Lorenzo. Por este motivo, o crédito por salvar sua vida foi dado ao seu talento. Porém, recentemente descobrimos que isto foi duplamente verdade. Em 1975, o historiador de arte italiano Paolo Dal Poggetto descobriu como Michelangelo desapareceu em 1530 enquanto os assassinos do papa e do império reviravam Florença do avesso à sua procura. O artista conseguira voltar a tempo para a Capela Medici, seu próprio projeto em construção. Sob a nova sacristia havia um refúgio subterrâneo. Não sabemos se foi o próprio Buonarroti quem o construiu ou se apenas sabia de sua existência, mas ele convenceu o pároco da igreja a deixá-lo se esconder e a levar comida e carvão para desenho clandestinamente para ele enquanto precisasse ficar escondido. Cinco séculos mais tarde, os esboços feitos no tempo em que era fugitivo ainda cobrem as paredes de seu esconderijo. O projeto da capela realmente salvou sua vida em
mais de uma maneira; porém, após este episódio, Michelangelo não quis mais saber do clã de Medici e de Florença. Ele terminou a capela em 1534 e não permaneceu na cidade para supervisionar a instalação das estátuas nem para comparecer à inauguração. Regressou a Roma no ano da morte do papa Clemente e nunca mais pôs os pés em Florença. O desenho incrivelmente ambicioso da fachada de San Lorenzo - a razão original pela qual o papa Leão X de Medici autorizou o seu retorno a Florença - foi um fiasco total, e ela jamais foi terminada. Ainda hoje a igreja particular do clã não tem fachada, apenas pedra bruta. Seria isto uma vingança da História ou de Michelangelo? Temos que mencionar outro grande acontecimento na vida do artista durante este período: ele se apaixonou. Sim, é fato que ele se apaixonara várias vezes antes, por jovens belos, modelos, cantores e aprendizes. Ele se sentia muito atraído por homens bem mais jovens, tanto pela beleza de seus músculos quanto por sua paixão e entusiasmo pela vida. Aparentemente em alguns casos este amor era físico e recíproco, mas em outros casos não. Com certeza suas preferências eram então bem conhecidas em alguns círculos, mas Michelangelo era muito cauteloso, especialmente após ver como homens que amavam homens eram punidos sob o governo fanático de Savonarola e da Inquisição. Até mesmo o grande Leonardo da Vinci fora obrigado a fugir de Florença na segunda vez em que foi acusado de ser um "sodomita". Mesmo assim, Buonarroti escreveu poemas de amor para seus jovens favoritos; e, segundo atestaram seus contemporâneos, ele produzia grande arte e belos esboços e poemas quando seu amor era correspondido; e passava por períodos de raiva e depressão quando era rejeitado, o que prejudicava sua produção. Na primavera de 1532, o grande artista passava por um dos piores períodos de depressão de sua vida. O projeto para a fachada da Igreja de San Lorenzo se desfez em pedaços (literalmente, pois as enormes colunas centrais de mármore se partiram durante o transporte), ele fora traído por sua família adotiva, sendo então um pária em sua própria cidade, seus sonhos de uma nova era dourada para Florença fracassaram, e o plano para o túmulo gigantesco de Júlio della Rovere dentro da Basílica de São Pedro - um projeto que Michelangelo chegara a considerar como mais um monumento para si do que para Júlio II - havia sido
cancelado. Ele estava sendo processado por parentes sobreviventes de Júlio para terminar o túmulo do papa falecido, apesar de o monumento não poder mais ser erigido dentro do Vaticano. A família biológica continuamente sugava seu dinheiro para abrir negócios para os irmãos incompetentes e depois pagar os custos quando falhavam, resolver seus assuntos legais, recuperar propriedades familiares perdidas e pagar suas festas de casamento, dentre outras coisas. Sua família jamais demonstrou gratidão e se ressentia por seu sucesso ao mesmo tempo em que exigia dinheiro cada vez mais. Em 1528, seu irmão Buonarroto morreu, e três anos depois foi a vez do pai de Michelangelo, Ludovico (aos 87 anos, algo notável para aquela época), deixando o artista com muitas questões emocionais não resolvidas e uma sensação ainda maior de isolamento. A sua saúde física nunca estivera tão ruim. Ele estava trabalhando na Capela Medici, um projeto para glorificar a mesma família que o traíra e tentara matá-lo. Para terminar a sacristia e poder trabalhar com outros mecenas e outros encargos mais agradáveis, ele estava uma vez mais se esforçando além dos limites humanos. Seu hábito de trabalhar noite e dia e sozinho, sem comer ou dormir o suficiente, pode ter dado certo quando ele estava com 20 ou 30 anos, mas ele tinha então mais de 50 e já sentia o peso da idade. Chegaram até o Vaticano rumores sobre sua saúde: que ele era pele e ossos, que tinha problemas de visão, tonturas e enxaquecas. O papa estava tão preocupado com a vida de Michelangelo que o mandou parar de trabalhar na sacristia e ir a Roma imediatamente para resolver de uma vez por todas a questão incômoda do túmulo do papa Júlio II. O gênio obstinado fez uma pausa em seu trabalho com má vontade, foi a Roma e lá se preparou para comparecer à corte papal. Isto aconteceu na primavera de 1532, que seria também a primavera da vida de Michelangelo. Na vida social agitada do Palácio Apostólico sob o governo de Clemente VII de Medici, uma figura se destacou diante dos olhos do artista, atentos à beleza masculina. Era um jovem de uma antiga família romana de patrícios, cujo nome estava na boca de todos naquela estação: Tommaso dei Cavalieri. Notavelmente belo e com um físico de atleta, Tommaso era o epítome do cavalheiro culto. Ele era também apaixonado por arte e arquitetura, e dedicava-se um pouco a estas
duas áreas quando podia. Gostava de usar vestes nostálgicas, incluindo casacos de seda furta-cor e um cinto dourado decorado com moedas antigas. Para Michelangelo, este cortesão de 23 anos parecia ter surgido de seus sonhos mais românticos. Para o solitário artista de 57 anos, não foi simplesmente amor à primeira vista, mas como se tivesse sido atingido por um raio. Foi uma revelação encontrar um jovem que era seu ideal masculino e que partilhava de suas paixões criativas. Para o jovem Tommaso, receber tanta atenção do artista e arquiteto mais famoso do mundo também era como se fosse um sonho feito realidade. Dentro de pouco tempo o grande mestre se comportava como um colegial perdidamente apaixonado: escrevia mensagens de amor e sonetos românticos, fazia esboços e desenhos que presenteava a seu amado. Historiadores e outros estudiosos já produziram centenas de hipóteses, especulando se alguma vez Michelangelo e Tommaso chegaram a consumar fisicamente seus sentimentos mútuos. A maioria acredita que não, mas francamente, isto não tem importância nem é de nossa alçada. O que importa é que, quando estava nas profundezas do desespero, Michelangelo encontrou amor, paixão e uma inspiração renovada. De fato, ele finalmente chegou a entender a teoria do amor de seu velho tutor Marsilio Ficino, segundo a qual o amor total e magnânimo por outra alma - neste caso, por outro homem - o levaria mais próximo de Deus. Em uma de suas torrentes de poemas de amor dedicados a Cavalieri, Buonarroti escreveu: Com teus olhos vejo um doce lume; Com os meus, cegos, nada enxergo. Com teus pés um fardo carrego; Os meus, coxos, não têm mais costume. Quase todos os seus poemas dedicados a Tommaso refletem estes sentimentos profundos de despertar sexual e espiritual. Buonarroti regressou logo a Florença e não só terminou o grande projeto da Capela de Medici, como também esculpiu uma outra obra-prima, a sua Vitória. Esta não parece ter nada a ver com qualquer
uma de suas encomendas; portanto, o artista deve tê-la esculpido para seu próprio deleite.
VITÓRIA, D E M I C H E L A N G E L O (1532-1534) — PALAZZO VECCHIO, FLORENÇA. Muitos especialistas afirmam que nesta escultura enigmática, a Vitória, Michelangelo ocultou um retrato duplo e romântico. Para eles, o belo jovem seria Tommaso, que, armado apenas com sua beleza, fez prisioneiro o homem mais velho, ninguém mais que o próprio grande mestre, finalmente dominado não por um poder ou pela arte, mas pelo amor. O próprio Buonarroti apóia esta interpretação com um duplo sentido oculto em um poema de amor escrito naquela época: Se cair preso é ser bem-aventurado, Maravilha seria se eu, desnudo e só, Cativo fosse de um Cavaleiro armado.
O cavaliere (cavaleiro nobre) que capturou Michelangelo é sem dúvida o jovem Cavalieri. No original italiano, encontramos ora no início ora no final destes versos os seguintes pares de letras: t-o, m-a, s-o, formando o nome de Tommaso.
Esquerda: Detalhe da Vitória. Direita: Detalhe do túmulo de Giuliano de Medici, 1532-1534. O interessante de se observar é que na mesma época, na nova sacristia, Michelangelo estava terminando a estátua em memória de Giuliano de Medici. Os historiadores concordam que o rosto da estátua não se assemelha nem um pouco ao de Giuliano. O que eles não mencionam é que o rosto desta estátua é quase idêntico ao da Vitória. Certamente o artista apaixonado não conseguia parar de pensar em Tommaso. Em 1534, logo após cumprir suas obrigações em Florença, Michelangelo fez suas malas e se mudou para uma cidade que odiava - Roma - para ficar perto do homem que amava. Nesta época, ele escreveu em cartas e poemas que se sentia como a fênix. Segundo a lenda, esta ave mitológica, ao envelhecer, queima-se em uma pira e renasce jovem e renovada das cinzas. Graças às chamas da paixão por Tommaso, ele sentia-se novamente jovem e poderoso, pronto a enfrentar Roma e o Vaticano, e até mesmo a cuspir - simbolicamente - na face destas duas
cidades se acaso fosse necessário. Foi exatamente nesta ocasião que ele escreveu assim ao seu amado: Assim como o mármore trabalhado Vale mais que o bloco intocado, Sou mais precioso com o amor, Contigo no coração tenho mais valor. [...] Resisto à água, ao fogo, a tudo, sereno Com o teu signo a brilhar A qualquer cego faço enxergar E minha saliva cura todo veneno. Logo Michelangelo iria precisar de toda esta energia renovada. O caminho de sua vida o levava não só a Roma: pouco depois o conduziria uma vez mais à Capela Sistina.
Capítulo Quinze OS SEGREDOS DO JUÍZO FINAL Q UE ESPÍRITO PODE SER TÃO VAZIO E CEGO A PONTO DE NÃO ENTENDER QUE O PÉ É MAIS NOBRE QUE O SAPATO , E A PELE MAIS BELA QUE A VESTE QUE A COBRE ?
— MICHELANGELO D E V O L T A A R O M A , M I C H E L A N G E L O recebeu mais um trabalho hercúleo. Giulio de Mediei, o papa Clemente VII, seu "irmão" na infância, o convocou ao Palácio Apostólico e o encarregou de uma tarefa desalentadora. Clemente queria assegurar que Michelangelo fizesse monumentos para sua família em Roma, assim como fizera em Florença. Ele desejava ardentemente ter algo em Roma que rivalizasse com a grande obra de arte que preservava a memória do odiado
papa Júlio. Por esta razão, ele ordenou ao artista, atordoado, que refizesse toda a parede frontal da Capela Sistina. Esta parede acima do altar já estava coberta por afrescos, preciosas obras-primas, incluindo painéis do projeto do teto do próprio Michelangelo de 22 anos antes. No meio dela, entre as duas grandes janelas, havia um afresco insubstituível da Virgem Maria subindo ao Céu, com o papa Sisto IV, fundador da Sistina, ajoelhado ao seu lado. Esta cena, pintada por Pinturicchio, representava a chave de todo o conceito original da capela no século XV, pois era dedicada a Maria e usada pela corte papal no Dia da Ascensão (dia 15 de agosto, hoje mais um feriado cultural nacional italiano em que todos aproveitam para sair da cidade). Acima da Virgem e de Sisto havia alguns dos papas originais pintados pela equipe florentina de Botticelli no século XV, juntamente com seus primeiros painéis dos ciclos da vida de Moisés e de Jesus, também obras de arte únicas por mérito próprio. Clemente não queria que o artista subversivo e astuto fizesse outra pintura com temas judaicos na capela mais importante da Igreja. Afinal de contas, este papa era um de Medici; conhecia a educação que Michelangelo recebera em Florença e estava a par de suas artimanhas neoplatônicas - ou assim pensava. Clemente decretou que a parede frontal seria uma versão monumental do Giudizio Universale, o Juízo Final. Na tradição cristã, esta é a ocasião em que Jesus retorna à Terra para discernir entre o certo e o errado, o bem e o mal, e para julgar todas as almas segundo seus atos. As almas justas ascenderiam ao Céu e as más seriam condenadas ao castigo eterno no Inferno. Desta vez Michelangelo concordou com um tema sem fazer a menor objeção. Ele estava cansado de lutar pela alma da Igreja e aborrecido com os herdeiros hedonistas do intelectual e culto Lorenzo, o Magnífico. Estava mais do que feliz com a idéia de retratar Cristo voltando para julgar o Vaticano e os de Medici. Michelangelo concordou em executar a tarefa, mas sob uma condição. Ele disse a Clemente que, para fazer justiça ao importante tema cósmico da pintura, ele precisaria primeiramente remodelar toda a parede frontal e cobrir suas duas janelas. Entusiasmado, Clemente aceitou. Feita desta maneira, a sua obra de arte encomendada seria ainda mais impressionante, pois cobriria de ponta a ponta
uma enorme parede. Pouco tempo depois da assinatura do contrato, Clemente partiu para seu próprio juízo final, falecendo aos 56 anos. Ele foi sucedido pelo cardeal Alessandro Farnese, que adotou o nome papal de Paulo III. A família Farnese era um outro clã de nobres ricos cujo comportamento nada tinha de nobre. Paulo III fora ordenado cardeal apenas porque sua bela irmã Giulia havia sido a concubina favorita do papa Alexandre VI, o "papa envenenador" da família Borgia decadente. Quando Paulo se tornou papa, foi então a vez da família Farnese desfrutar do pontificado e dos cofres de ouro do Vaticano. O seu palácio enorme, em construção durante o tempo em que era cardeal, seria então terminado com novos desenhos para a fachada, um pátio superior e um jardim, todos elaborados por Michelangelo. O papa Paulo ordenou a Michelangelo que prosseguisse com o afresco do Juízo Final na parede do altar da Sistina. Ele achava que, em vez de um tributo perene ao clã de Medici, a família Farnese é que seria então glorificada para sempre. Contudo, sem nenhum florentino desconfiado, como Clemente, para vigiá-lo, mais uma vez Michelangelo conseguiu inserir em seu afresco vários níveis de mensagens ocultas. Hoje, a maioria dos visitantes não têm nenhuma idéia de quem foram Clemente VII e Paulo III, mas vêm de todas as partes do mundo por causa de Michelangelo Buonarroti. O Juízo Final se tornou um testemunho eterno do talento e da filosofia do artista. O primeiro passo foi de fato remodelar a parede: as janelas foram lacradas, os afrescos originais destruídos e o brasão dos della Rovere, localizado abaixo do Jonas, removido. Assim, a parede mudou sutilmente de forma. Somente depois destas mudanças é que foram acrescentadas várias camadas de nova superfície em toda a parede. Michelangelo fez tudo isso para evitar rachaduras e mofo, como os que haviam afetado o teto. Porém, ele tinha outra razão mais sutil. Ele na verdade fez com que a parede se inclinasse para dentro em cerca de 30 centímetros. Somente se você estiver na Sistina e olhar para os cantos superiores da parede é que poderá notar que o afresco se inclina tanto em cima de sua cabeça. A explicação comum para isto é que o artista detalhista queria evitar o acúmulo de pó na superfície do afresco, e por isso fez a parede inclinada para dentro.
Porém, esta teoria não faz sentido. O fato é que tal inclinação torna o afresco ainda mais suscetível à fuligem das inúmeras velas usadas nas procissões da igreja, além da sujeira e do pó que sobem juntamente com a umidade e o suor humano. Antes da limpeza maciça no final do século passado, a parede frontal estava tão suja quanto o teto. O motivo real é que Michelangelo queria sutilmente - na verdade, subliminarmente - fazer o espectador perceber o que ele acreditava ser o verdadeiro árbitro entre o certo e o errado. Se você se colocar de frente para o altar e olhar para o Juízo Final, é a forma da parede - inclinando e pairando sobre você - que mostra o que o artista cria que deveria julgar o comportamento humano. Sem dúvida alguma, a silhueta corresponde ao que se chama em hebraico de luchot, as Tábuas da Lei, mais conhecidas entre nós como os Dez Mandamentos. Quando a parede foi remodelada e preparada, Michelangelo instalou um andaime tradicional e encontrou dois assistentes confiáveis para preparar os esboços, o gesso e as tintas. Desta vez, até mesmo o esquema de cores seria diferente do usado no trabalho anterior. No teto, conforme tratamos antes, ele usara pouquíssima tinta azul. O azul preferido para a pintura de afrescos era extremamente caro, por ser feito de lápis-lazúli, a pedra semi-preciosa importada da Pérsia (atual Irã), moída à mão. Júlio II fez o artista pagar por todo o material com seus próprios recursos, e por esta razão o uso do azul e do dourado, tintas caras, ficou fora de cogitação quando Michelangelo pintou o teto. Nesta ocasião, porém, a rica família Farnese e a Igreja estavam cobrindo todos os custos, e então o dinheiro não era um empecilho. O fundo azul celestial sobre o qual estão as centenas de figuras da obra gigante faz deste Juízo Final uma das pinturas mais caras da história. Michelangelo começou pela parte superior da parede e aos poucos avançou para baixo por mais de sete anos, pintando sempre sozinho, com a ajuda de um ou dois assistentes. Com mais de 60 anos, idade em que a maioria das pessoas do século XVI estava aposentada ou enterrada, Michelangelo se arrastava, subindo e descendo as escadas. Ao terminar, seria a maior representação do Juízo Final em todo o mundo - na verdade, o maior afresco feito por um pintor — e ao mesmo tempo o mais simbólico, misterioso e inovador. Buonarroti, já então famoso
mundialmente, rico, apaixonado, porém ainda um rebelde furioso, rompeu com todas as tradições nesta obra.
Na parte superior, nas duas curvas da pintura em forma de tábuas, ele começou com os anjos carregando os instrumentos do martírio de Cristo: a cruz, a coroa de espinhos, a coluna em que ele foi flagelado e a vara com a esponja embebida em vinagre na ponta. Estranhamente, não aparecem nem os cravos nem o açoite tradicionais. Os anjos, na representação típica de Michelangelo, mas muito incomum para qualquer outro pintor, não têm asas, auréolas e nem rostos de
bebê. Todos eles são jovens belos e musculosos, de feições delicadas. Originalmente, quase todos estavam completamente nus, com seus órgãos genitais de aparência humana expostas. Não é claro se eles estão levando os signos da Paixão para o Céu ou se os trazem para que nós os vejamos. A variedade de movimentos, gestos e expressões é impressionante, pois cada um deles é diferente. Logo abaixo do nível destes anjos encontram-se as Almas Justas, formando um semi-círculo sobre a cabeça de Jesus. Estes não são os santos famosos, ou papas ou mecenas da realeza que geralmente encontramos em uma pintura deste tipo. Pelo contrário, são as almas santas verdadeiras, em sua maioria desconhecidas em vida e recompensadas após a morte, unindo-se aos anjos em volta de Cristo. Um detalhe fascinante desafia abertamente os ensinamentos tradicionais da Igreja: diretamente acima da cabeça de Jesus há um belo anjo de cabelos dourados e vestido de vermelho apontando para dois homens neste círculo íntimo de justos. Estes dois são evidentemente judeus. Um deles usa o chapéu de duas pontas que a Igreja obrigava os homens judeus a usar para reforçar o preconceito medieval segundo o qual os judeus, gerados pelo Diabo, tinham chifres. Enquanto conversa com o outro judeu mais velho, ele faz o mesmo gesto de Noé no teto da Sistina: aponta um dedo para cima, indicando que Deus é único. O outro judeu usa um chapéu amarelo, símbolo da vergonha, que a Igreja ordenou que os homens judeus usassem em público em 1215. À frente deles, há uma mulher com o cabelo coberto de maneira decorosa, sussurrando no ouvido de um jovem nu à sua frente. O jovem se parece com o jovem professor de Michelangelo, Pico delia Mirandola, que na juventude do artista lhe ensinou tantos segredos do misticismo judeu. Segundo o ensinamento tradicional da Igreja, conforme expresso claramente nos primeiros capítulos do Inferno de Dante, esta representação dos que recebem o favor divino beira a blasfêmia. Os judeus nunca podiam esperar receber uma recompensa celestial. Mesmo seus grandes heróis, como Moisés, Miriam, Abraão e Sara, na melhor das hipóteses podiam aspirar pelo limbo. Apesar disso, os judeus estão no centro do Juízo Final de Michelangelo, pairando acima da cabeça de Jesus. Ainda hoje, no século XXI, a questão sobre se há ou não um lugar no céu para os judeus é
tema polêmico para muitos cristãos. Imagine então o quanto Michelangelo foi ousado ao adotar uma postura em relação a este tema no século XVI de uma maneira que contestava a doutrina oficial da Igreja de seus dias. Considerando isto, não é de se admirar que ele tenha escolhido retratar os habitantes celestiais judeus tão pequenos e difíceis de notar.
Detalhe do Juízo Final antes da restauração, mostrando as Almas Bem-Aventuradas nas partes mais elevadas do Céu, acima de Jesus. O anjo indicado pela mão direita de Jesus está apontando para os judeus e Pico della Mirandola. Veja a figura 18 do encarte. Se voltarmos nossa atenção para o lado esquerdo, sob a cruz, vemos as Mulheres Justas, ou as Eleitas. Se não fosse pelos rostos com certa aparência feminina e seios pouco convincentes, esta cena se pareceria mais com um congresso de fisiculturistas. Michelangelo fez neste afresco o mesmo que fizera ao pintar as sibilas, usando modelos masculinos musculosos e depois colocando neles seios, rostos e cabelos femininos. Em uma igreja do século XVI, em uma época em que muitos teólogos ainda debatiam se as mulheres possuíam almas, Michelangelo
nos mostra uma grande variedade de mulheres notáveis e dignas da imortalidade celestial, cada uma com sua aparência e personalidade própria, além de uma grande quantidade de nus femininos. No lado direito, abaixo da coluna, encontram-se os Homens Justos, ou os Eleitos. Em pinturas anteriores representando a recompensa dos eleitos no Céu, outros artistas mostraram as almas bem-aventuradas em um comportamento muito reservado: eles geralmente se cumprimentavam no Paraíso com um casto aperto de mãos ou no máximo apertando os pulsos uns dos outros ao estilo romano. Neste afresco, os homens felizes que foram aceitos no Céu são muito mais expressivos, por assim dizer. No meio do grupo, na parte superior, estão dois belos jovens nus se abraçando e beijando apaixonadamente. Bem atrás deles se encontra uma figura um pouco indistinta que se parece com Dante, com seu típico ar carrancudo e de desaprovação. Junto a eles há um forte jovem nu puxando outro homem nu para sua nuvem para lhe fazer companhia. Junto dele, vemos claramente outro par de garotos nus e loiros se beijando, e à direita deles, um jovem olha fixamente nos olhos de um homem mais velho enquanto beija sua barba em sinal de reverência. Hoje em dia, a maioria dos visitantes nem se dá conta de que existe esta seção que mostra o amor entre homens; porém, quando alguém a mostra para eles, muitos ficam incomodados. Podemos então apenas supor como esta obra deve ter sido chocante e ofensiva no século XVI. Vemos também nesta seção da pintura, logo abaixo dos casais que se beijam, muitas mulheres espalhadas, junto dos homens ou atrás deles, quase escondidas nesta área predominantemente masculina. Elas são as esposas e as mães, como se mostrassem que estes homens não alcançaram sozinhos o estado de bemaventurança, mas somente com a ajuda de mulheres fortes e piedosas. No meio encontramos Cristo, regressando para concluir a história humana. São Pedro está à sua esquerda (nossa direita), devolvendo as chaves papais da autoridade sobre o Céu e a Terra, com o outro padroeiro de Roma, São Paulo, ao seu lado. A direita de Jesus (nossa esquerda), está sua mãe, Maria. A representação deste Jesus rompe completamente com todas as tradições: ele não tem barba, é extremamente musculoso, sensual e severo ao mesmo tempo. Ele
não parece muito cristão, pois se assemelha mais a uma estátua grega pagã. Há uma boa razão para tal. Na verdade, ele é uma mescla de duas estátuas gregas, ambas famosas e expostas na coleção dos Museus Vaticanos. A cabeça de Jesus não é nada menos que a de Apoio, o deus do sol de cabelos dourados. Originalmente, o cabelo desta estátua do Vaticano — chamada de Apolo de Belvedere - era todo folheado em ouro, removido após a queda do Império Romano. O torso extremamente musculoso de Cristo é o mesmo do Torso de Belvedere, chamado na época de Michelangelo de Hércules de Belvedere. O artista amava tanto este torso que mesmo em seus últimos dias, já quase completamente cego, era levado pelo braço por entre o labirinto de corredores do Palácio Apostólico para visitar esta estátua antiga, estudá-la e admirá-la mais uma vez, não mais com seus olhos e sim com seus dedos. Por causa de sua paixão por esta estátua musculosa, ela passou a ser chamada de "Torso de Michelangelo". Mais uma vez, o artista satisfaz o seu amor pela escultura ao incluir suas peças favoritas na pintura. Segundo São Mateus, Cristo deveria estar assentado em seu trono de glória na Ressurreição. Segundo Michelangelo, Cristo não está ressuscitado, ele está ressuscitando. Ele é retratado no ato de se levantar e está prestes a executar o julgamento final severo e temível sobre a humanidade. Sua mãe, Maria, desvia o olhar, como se não quisesse testemunhar os castigos do outro lado do afresco. Sua face encerra um outro segredo, desconhecido até a restauração e limpeza recentes. Todas as outras figuras foram pintadas com pinceladas que imitam os golpes do cinzel de Michelangelo ao esculpir, mas a face de Maria é uma massa de pontos diminutos e coloridos, quase como os pixels de uma imagem digital. Aqui, o artista inova e apresenta uma nova técnica artística, chamada pontilhismo, cuja invenção é creditada por muitos a Georges Seurat em Paris no final dos anos 1880. Com Maria, Buonarroti deu um salto em direção ao futuro. De fato, é aqui com Maria que o caminho espiritual de Michelangelo - e o do afresco - tomou um rumo secreto e surpreendente no final dos anos 1530.
Abraços e beijos muito calorosos na seção dos Eleitos no Juízo Final, antes da restauração. Veja a figura 22 do encarte.
VITTORIA COLONNA E A QUINTA COLUNA Como já vimos, Michelangelo não era o único decepcionado com o Vaticano. Desde o primeiro protesto de Martinho Lutero contra a Igreja em 1517, uma grande parte da Europa se tornara protestante. Em Nápoles nos anos 1530, formou-se um grupo pequeno, porém altamente influente, sob a liderança e inspiração espiritual de Juan de Valdés.
D E T A L H E D O JUÍZO FINAL —J E S U S E M A R I A O L H A N D O P A R A B A I X O . V E J A A F I G U R A 23 D O E N C A R T E . A B A I X O À E S Q U E R D A : C A B E Ç A D O APOIO DE BELVEDERE, C Ó P I A R O M A N A D A E S T Á T U A D E B R O N Z E G R E G A O R I G I N A L F E I T A P O R L E O C A R E S E N T R E O S A N O S 330 E 320 A . C. (M U S E U S V A T I C A N O S ). A B A I X O À D I R E I T A : TORSO DE BELVEDERE, D E A P O L Ô N I O D E A T E N A S , S É C U L O II A .C. (M U S E U S V A T I C A N O S ).
Ele era de uma família de judeus conversos de Castela, forçados a se converter ao cristianismo pela Inquisição espanhola. Seus pais e pelo menos um de seus tios foram posteriormente presos e torturados pela Inquisição por manter sua fé em segredo ou por voltar ao judaísmo. Juan estudou em universidades católicas, onde se distinguiu em hebraico, latim, grego, literatura e teologia. Ele é considerado um dos maiores escritores espanhóis do século XVI e foi um dos gênios do Renascimento, procurado por imperadores, papas e intelectuais do seu tempo. Para escapar dos perigos da Inquisição na Espanha, Valdés foi para a Itália e acabou se fixando em 1536 em Nápoles, governada então pela Espanha. Ele era um orador bonito e extremamente carismático, que atraía multidões ávidas por ouvi-lo. Sua casa se tornou um protótipo dos futuros saraus artísticos e intelectuais, como os promovidos por Gertrude Stein e Alice B. Toklas em Paris no século XX. Era um ímã que atraía os maiores artistas, escritores e pensadores da época, assim como fora a casa de Lorenzo, o Magnífico, na Florença de décadas anteriores. Alguns dos freqüentadores assíduos destas reuniões eram o cardeal Reginald Pole, o último arcebispo católico de Canterbury, obrigado a fugir da Inglaterra por se opor ao divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão; Pietro Aretino, poeta e intelectual obsceno, crítico e pornógrafo; Pietro Carnesecchi, um dos maiores diplomatas, conselheiros
políticos e polemistas de seu tempo; Bernardino Ochino, monge capuchinho e pregador muito popular; Giulia Gonzaga, a deslumbrante viúva de Vespasiano Colonna, nobre romano rico, e sua cunhada Vittoria Colonna. Vittoria era mais um gênio renascentista italiano, uma das poucas poetas que foram publicadas, e tinha tantos seguidores fiéis quanto qualquer poeta homem da época. Após a morte de seu marido em uma batalha, ela se dedicou à sua poesia e à efervescência cultural de seu tempo. No círculo privado da intelligentsia napolitana, sob o pretexto de promover jantares artísticos aparentemente inofensivos, foram plantadas as sementes de um novo movimento clandestino com um objetivo: a reforma do Vaticano e da Igreja Católica. Apesar das origens muito diferentes destes conspiradores, muitos deles tinham algo em comum: eram ou conhecidos ou amigos de Michelangelo Buonarroti, o artista e arquiteto eleito pelo papa. Valdés falava de maneira convincente contra os abusos de poder e a hipocrisia do Vaticano. Ele queria que as Escrituras fossem abertas, ao alcance do cristão comum, e não usadas como um instrumento de manipulação pela Igreja. Propôs uma abordagem analítica, questionadora e intelectual do Novo Testamento, da mesma maneira que os judeus interagiam com suas Escrituras, por meio do pensamento talmúdico e das idéias do Midrash. Ele acreditava que cada cristão, livre para se aprofundar na Bíblia de acordo com seu nível, seria iluminado espiritualmente pelo texto sagrado. De fato, chamou sua filosofia de alumbradismo, ou iluminismo. Valdés costumava ilustrar seus ensinamentos com o Midrash e as metáforas de Moisés Maimônides. Tanto para judeus quanto para muçulmanos e cristãos, Maimônides foi a maior mente de toda a Espanha do século XII. Também chamado de Rambam (acrônimo de seu nome completo, Rabino Moshê Ben Maimon), ele era rabino, professor, comentarista talmúdico e bíblico, filósofo, poeta e tradutor; além de sempre ter trabalhado em tempo integral como anatomista e médico, serviços muito procurados. Valdés gostava de citar a descrição de Maimônides da Divina Iluminação como um palácio real enorme. Alguns visitantes se detinham timidamente à entrada principal, outros caminhavam por entre os jardins, alguns adentravam o pórtico, outros se mantinham a distância, enquanto outros - abençoados pelo encontro profundo
com a iluminação - se sentiriam em casa no coração do palácio. Entretanto, ele pregava que todas as almas eram abençoadas com a graça divina, cada uma segundo seu próprio nível. Por este motivo, era impossível condenar as almas que ainda não haviam alcançado o nível de entrada até o centro do palácio sagrado. Ele escreveu: "Os que estão apenas olhando para o palácio do lado de fora não são forasteiros." Assim, ele negava a heresia e a existência do Purgatório, utilizado pelo Vaticano principalmente como um truque para ganhar dinheiro, por meio da venda das infames indulgências. Ele ensinava que a salvação não vinha pelo batismo ao nascer e a obediência incondicional à Igreja, como o Vaticano ensinava; mas por meio da graça concedida a todas as pessoas por um Deus amoroso, com o batismo na idade adulta, quando a pessoa tinha condições de entender e apreciar o ato, estudando e se aprofundando nas Escrituras, cada um de acordo com sua própria capacidade, ou imitando Cristo humildemente na vida diária. Somente se entendermos a influência do iluminismo de Valdés em Michelangelo é que poderemos compreender porque, no afresco do Juízo Final, as almas salvas ascendem a tantos níveis diferentes e de maneiras tão variadas. Depois que Valdés morreu em 1541, seu pequeno círculo de alum- brados (iluminados) se dispersou. O núcleo central do grupo migrou-se para o norte, para a residência do cardeal Pole em Viterbo, hoje distante de Roma uma hora de viagem. Pole não foi escolhido como novo líder do grupo, pois isto teria sido muito óbvio. Já havia algum tempo que o grupo era espionado, especialmente por um certo cardeal Gian Pietro Carafa, promotor fanático da Inquisição e seu reino de terror. Quem de fato liderava o grupo era uma mulher e freira - Vittoria Colonna - que administrava tudo de seu convento em Viterbo. Com a influência e as conexões poderosas de sua família, ela estabeleceu uma rede clandestina que logo se estendeu por toda a Itália e a maior parte da Europa. Padres livres pensadores, políticos, diplomatas e intelectuais estavam envolvidos secretamente em uma missão: se tornar a "quinta coluna" oculta no Vaticano, para reformá-lo a começar por dentro, e por fim harmonizar a fé católica e a protestante. Esta conspiração de sonhadores recebeu um novo nome: Gli Spirituali (Os Espirituais). Seu objetivo máximo era reunificar as duas crenças cristãs, antes
que o cisma se tornasse muito grande, e construir uma Igreja purificada e renascida. Anos antes, enquanto ainda vivia em Roma, Vittoria se tornara amiga de Michelangelo, e seus laços ficariam cada vez mais fortes até sua morte prematura. Eles trocavam correspondências longas, escreviam poemas um em homenagem ao outro, e em muitas ocasiões trocaram presentes e favores. Muitos historiadores que quiseram negar o amor de Buonarroti por homens tentaram usar seus poemas para Vittoria como prova de sua heterossexualidade. O amor deles, entretanto, era o epítome do que hoje classificaríamos como "platônico". Eles amavam suas mentes. Michelangelo estava empolgado por ter encontrado em Vittoria um par intelectual e uma companheira de caminho espiritual. Assim como já havia se atirado com paixão em idéias e movimentos no passado, ele então se tornou um dos Spirituali de coração e alma. No Juízo Final, há um significado mais profundo no ato de Maria desviar seu olhar do julgamento severo de Jesus: Michelangelo está simbolicamente se desviando também da Igreja. Isto certamente tinha de ser mantido em segredo, pois somente os artistas católicos tinham a permissão de trabalhar dentro do Vaticano, e especialmente na capela do papa. Se tivessem descoberto que Michelangelo negara a Igreja e se convertera ao protestantismo valdesiano, ele teria perdido não apenas sua carreira, mas também sua liberdade - e talvez sua vida. Havia poucos anos apenas que o Vaticano pusera sua cabeça a prêmio por seu apoio ao movimento de independência de Florença. Mesmo assim, o rebelde que habitava dentro dele não poderia ser silenciado, e ele continuava a preencher o afresco gigante com mais mensagens ocultas. Se observarmos Maria com atenção, vemos que ela olha para baixo, em direção a apenas uma figura: uma mulher que olha por sobre o ombro de São Lourenço e sua grelha. De fato, o pé de Maria repousa sobre a parte superior da grelha. O rosto da mulher está quase todo oculto pela grelha, e há uma boa razão para isto. Ela é a líder secreta do movimento clandestino: trata-se da própria Vittoria Colonna. Jesus também olha para uma figura que se encontra abaixo: um homem não identificado que olha por sobre o ombro de São Bartolomeu. Este, assim como
São Lourenço, está assentado em um lugar de honra, aos pés de Jesus. No belo perfil e nos olhos grandes, os mesmos que vimos nas estátuas esculpidas por Buonarroti em Florença após 1532, podemos reconhecer o grande amor da vida de Michelangelo desta época: Tommaso dei Cavalieri. Neste afresco, ele aparenta ser muito velho, com cabelo grisalho e entradas de calvície pronunciadas, apesar de seu rosto ser jovem e quase sem rugas. Provavelmente isto foi feito de propósito, ou por Michelangelo ou por seu amigo Daniele da Volterra, que fez alguns retoques ao receber a ordem para ser o censor da pintura em 1564. Em Nápoles, há uma cópia do J U Í Z O F I N A L original, tal como era antes da censura. Esta cópia, uma pintura a óleo, foi feita em 1549 por Marcello Venusti, amigo de confiança de Michelangelo e sob sua própria direção. Na cópia do afresco de Venusti, encontramos o mesmo jovem, mas com uma cabeça coberta inteiramente por um cabelo escuro, muito semelhante ao atraente Tommaso, com 38 anos na época em que Michelangelo ajudou Venusti a criar esta pintura. Por que será que Michelangelo escolheu estes dois santos para proteger seus dois grandes amores? O nome de São Lourenço em italiano é Lorenzo, assim como o do primeiro protetor e mecenas do artista, Lorenzo, o Magnífico. Além disso, São Lourenço, tesoureiro da Igreja cristã primitiva em Roma, disse que a verdadeira riqueza dos cristãos não era o seu ouro, mas a sua comunidade de fiéis. Isto era parte da mensagem de Michelangelo à corte papal de sua época, desde que trabalhava no teto da Sistina. São Bartolomeu, além de ser o padroeiro dos taxidermistas e curtidores de couro, é também o protetor dos gesseiros. Após os problemas traumáticos que Michelangelo teve com o gesso do teto, ele desejava toda a ajuda possível para este afresco enorme e tinha boas razões para incluir este santo protetor. São Bartolomeu não sofreu o martírio em Roma, pois foi esfolado vivo na Armênia. Segundo a tradição, sua pele se encontra dentro do altar de sua igreja na ilha Tiberina, entre as regiões que eram os principais bairros judeus na Roma renascentista. Quem representa São Bartolomeu é um amigo de Buonarroti, um homem que teve problemas por expor uma quantidade excessiva de pele nas gravuras que acompanhavam seus poemas libidinosos: Pietro Aretino,
pornógrafo e companheiro de conspiração do grupo G L I S P I R I T U A L I . Com isso, Buonarroti não está zombando de São Bartolomeu: ele está demonstrando que acredita que um homem como Aretino, que enfrentava problemas com a Igreja hipócrita, estava mais próximo de Deus que muitos considerados autoridades religiosas de seus dias.
MARIA
SÃO LOURENÇO E SUA GRELHA DE FERRO , E JESUS ACIMA DE SÃO BARTOLOMEU SEGURANDO SUA PRÓPRIA PELE (ANTES DA RESTAURAÇÃO ). A MULHER QUE OLHA POR SOBRE O OMBRO DE SÃO LOURENÇO É VITTORIA COLONNA, E O HOMEM ACIMA DO OMBRO DE SÃO BARTOLOMEU É TOMMASO DEI CAVALIERI . VEJA A FIGURA 18 DO ENCARTE . ACIMA DE
Quase todos os santos são representados como os símbolos de seus martírios sofridos por causa da fé. A grande exceção é São Pedro, retratado com as chaves recebidas de Jesus, e não crucificado de cabeça para baixo. Bartolomeu é sempre mostrado carregando toda a sua pele intacta e a faca usada para esfolá-lo. A pele que ele segura encerra mais um mistério intrigante: apesar de a figura de
Bartolomeu/Aretino ser completamente calva e ter uma barba grisalha longa, o rosto da pele está totalmente barbeado e todo coberto por cabelo escuro e desgrenhado. Os dois rostos não coincidem, porque o da pele não é de ninguém mais que do próprio Michelangelo. Conforme já mencionamos na história da Pietà, Pietà, os artistas eram proibidos de assinar as obras encomendadas pelo Vaticano. Nesta, em vez de seu nome, Buonarroti assinou o afresco secretamente com seu próprio rosto, em rosto, em mais um protesto do escultor que odiava pintar. Ele parece dizer que ser obrigado a voltar à Sistina novamente para pintar era um destino tão terrível quanto ser esfolado vivo. Porém, a pele simbólica tem mais a dizer. A figura de Tommaso - a única pessoa entre todas as outras da pintura gigantesca que fita Jesus diretamente no olho pressiona os dedos uns contra os outros em sinal de súplica. Apenas após a limpeza recente é que foi possível se ver para onde os olhos de Jesus e Tommaso estavam voltados. Michelangelo, achando-se um pecador indigno do Céu, acreditava que a sua única esperança de salvação era seu amor verdadeiro e altruísta por Tommaso. Aqui ele retrata Tommaso como seu intercessor, defendendo sua causa perante Cristo, o Juiz. Para assegurar que nós entenderíamos que ele acreditava que o amor de um homem - mesmo que fosse por outro homem - poderia levar à redenção, ele colocou junto ao seu corpo esfolado mais um casal de homens se beijando apaixonadamente no Paraíso. A identidade de Tommaso não se trata aqui de uma mera conjectura. Mais uma vez temos uma pista escrita pela própria mão de Buonarroti, que sobreviveu até nossos dias. Em 1535, quando ele estava fazendo os esboços dos desenhos para o afresco, escreveu mais um poema de amor para Tommaso. Neste soneto, Michelangelo se compara a um humilde bicho-da-seda, cujo casulo protetor se transforma em roupa para outro ser: Quisera eu, meu senhor, ter esta mesma sorte: Cobrir com minha pele já morta a tua vivente. Assim como na rocha da sua se despoja a serpente, Para mudar meu estado, passaria pela morte.
OS SALVOS E OS CONDENADOS No canto inferior esquerdo do afresco, abaixo de Maria e das Mulheres BemAventuradas, vemos a Ressurreição das Almas Bondosas. Elas estão emergindo do chão enquanto sua carne lentamente volta a cobrir seus corpos. Os demônios do submundo tentam desesperadamente arrastar algumas delas de volta, mas os anjos aparentemente prevalecem sobre eles. No canto vemos um padre abençoando estas almas adultas - possivelmente uma referência à nova fé iluminista de Michelangelo, segundo a qual o batismo era para os adultos.
Acima: Juízo Final, cópia do afresco feita por Marcello Venusti (Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles). Detalhe mostrando o rosto de Tommaso dei Cavalieri com cabelo escuro. Direita: Detalhe do Juízo Final: a pele com o rosto de Michelangelo. Outro símbolo desta forma primitiva de protestantismo italiano se encontra nos rosários no canto deste afresco, usados para salvar e levar algumas das almas à
salvação. Valdés e seus seguidores acreditavam que a chave para a salvação era a graça divina, e não a obediência cega à Igreja. De fato, a expressão "graça salvadora" deriva deste conceito. O rosário é um ato de fé diário e humilde no qual a prece da Ave Maria é recitada. Esta oração começa assim: "Ave Maria, cheia de graça de graça [...]". [...]". Esta é mais uma ruptura com as representações tradicionais do Juízo Final, nas quais as almas salvas mostravam os os atos atos que lhes haviam rendido sua redenção, como o patrocínio da construção de uma igreja, o proselitismo para atrair mais seguidores à Igreja ou a conquista de uma cidade para o papa. Na parte do meio inferior, abaixo dos anjos com as trombetas, e no lado direito, abaixo dos Homens Bem-Aventurados e dos Santos Mártires, temos as visões do Inferno: fogo e enxofre, cavernas escuras, Caronte conduzindo os condenados através do rio Estige e os demônios arrastando as almas más para sua condenação eterna. Uma das imagens mais famosas de todas é a de uma alma ao finalmente se dar conta da grande quantidade de seus pecados enquanto é mordida por uma criatura demoníaca. Nesta figura, Michelangelo faz um jogo de palavras: em e m italiano, mordida se diz morso. diz morso. A A pobre alma condenada é a figura do remorso: em italiano, rimorso. italiano, rimorso. À direita desta imagem, acontece uma batalha. Anjos furiosos estão literalmente empurrando para baixo e batendo em algumas das piores almas, algumas das quais simbolizam os pecados e os vícios. Uma destas é geralmente identificada como a imagem da Avareza. Pois há um saco pesado de dinheiro pendente ao seu lado. Um outro pecado desenfreado da época, extinto há tempos na Igreja, era o pecado da da simonia, simonia, descrito e punido severamente no no Inferno Inferno de Dante. A simonia era a prática de vendas de cargos sacerdotais na hierarquia da Igreja. No Renascimento, este era o o modus operandi dos papas para arrecadar dinheiro: vendendo os títulos de cardeal, arcebispo e outros a quem fizesse a maior oferta. Isto apenas tornava maior a desordem, a corrupção e a confusão na Igreja na época de Michelangelo. Como no poema escrito por Michelangelo em 1512, em que descreve o Vaticano vendendo o sangue de Cristo por dinheiro, a Simonia era algo que enfurecia o artista de uma maneira especial. Podemos ver a prova
disso aqui: a figura amaldiçoada está de cabeça para baixo, em uma paródia triste do martírio de São Pedro, e a bolsa com dinheiro é dourada e amarrada com uma corda vermelha - exatamente a cor giallorosso giallorosso que Michelangelo usara antes para insultar Roma e o Vaticano. As duas chaves de chumbo pendentes ao lado da figura amaldiçoada são também uma paródia sardônica das chaves gêmeas do Vaticano e do pontificado. Buonarroti pintou o anjo mais forte e mais furioso de todos para empurrar esta alma corrupta para o Inferno, batendo em suas nádegas. Na extremidade direita se encontra outra figura nua, mas com um rosto que parece mais uma caricatura do que uma pessoa pess oa real. Ele é o símbolo da Luxúria, o sexo sem amor. Neste caso, o artista fez com que a punição se adequasse ao pecado: se olharmos com atenção, veremos que o homen que representa a Luxúria está sendo arrastado para baixo à perdição, pelos testículos. Não é de se admirar que a figura esteja mordendo os nós dos dedos para não gritar de agonia.
A CABALA DO JUÍZO É óbvio que Michelangelo não deixaria sua amada Cabala fora do Juízo do Juízo Final. Este afresco contém o mesmo equilíbrio do universo que ele ocultou no teto. Neste afresco em forma de duas tábuas, encontramos no lado de Maria os símbolos da da Chessed, Chessed, o lado feminino misericordioso da Árvore da Vida. No lado de Jesus, ao seu lado esquerdo ou ou sinistro, estão sinistro, estão os signos da Guevurá da Guevurá e Din, os Din, os aspectos masculinos de força e julgamento, encontrados no lado oposto da Árvore da Vida.
DETALHE
D O Juízo
Final, A N T E S
DA RESTAURAÇÃO :
R E M O R S O .
No lado da Chessed , vemos almas sendo salvas pela graça, a Virgem misericordiosa, as almas femininas bem-aventuradas e a cruz da salvação na parte superior. No lado da Guevurá e da Din vemos almas sendo condenadas e castigadas, Cristo, o Juiz, as Almas dos Homens Bem-Aventurados e a Coluna da Flagelação no alto. No lado do Juízo, até mesmo os Santos Mártires parecem furiosos e mostram claramente os instrumentos de sua tortura e morte para a hierarquia que se reuniria abaixo em sua posição cômoda, sob seu olhar, como se dissessem: "Isto foi o que nós fizemos pela fé. E vocês, o que fizeram?"
Detalhe do Juízo Final, antes da restauração. À esquerda, a Simonia, comumente identificada com a Avareza, de cabeça para baixo com a bolsa de dinheiro pendente, e à direita a Luxúria sendo arrastada para baixo pelos testículos. Veja a figura 24 do encarte. Desta vez, em vez de ocultar letras hebraicas na obra para assinalar o equilíbrio entre o feminino e o masculino, a misericórdia e o poder, Michelangelo ocultou outros símbolos místicos antigos da feminilidade e da masculinidade na parte superior do afresco... em plena vista. A cruz e a coroa circular de espinhos no alto da tábua feminina da Chessed corresponde a um símbolo? É a cruz da deusa do amor, Vênus, muito popular em seu tempo na astrologia e também na alquimia. A coluna no alto da tábua do lado masculino da Guevurá é inquestionavelmente masculina. Uma observação criteriosa nos faz ver que o artista premeditadamente exagerou a dimensão das costas do anjo musculoso que
segura a base da coluna, de maneira que as costas divididas ao meio e arredondadas se parecem com um sacro escrotal, completando assim o ângulo fálico da coluna. Visto em conjunto, esta imagem mostra claramente o símbolo masculino de Marte, o deus da guerra. Para alcançar o equilíbrio adequado do universo, é necessário que haja também um centro. Segundo a Cabala, há de fato um ponto central para o universo: a Escada de Jacó. Em Gênesis 28:12, Jacó sonha com uma escada divina, anjos desciam à Terra e subiam ao Céu. Este é o vínculo entre a Terra e o Céu, a humanidade e os anjos, o mundo material e o espiritual. A Cabala ensina que toda a Criação gira ao redor desta Escada. A maioria das pessoas que vê o afresco do Juízo Final acha que Jesus é o centro da pintura, mas se enganam. O verdadeiro centro está logo abaixo de Jesus, onde São Lourenço está assentado com sua grelha. Por vários séculos, os críticos se queixaram que a grelha do mártir não tem pernas e se parece mais com uma escada. Eles têm razão: é de fato uma escada, mais precisamente a Escada de Jacó. O degrau inferior da escada é o centro exato da enorme pintura, e se você olhar com atenção, verá que o movimento dinâmico da pintura gira perfeitamente em volta do ângulo da escada. Mais uma vez Michelangelo inseriu um ensinamento central do misticismo judeu em uma das obras de arte católicas mais famosas de todos os tempos.
Desta vez, Michelangelo conseguiu incorporar um número significativo de idéias ousadas em sua obra. Como já vimos, ele encontrou uma maneira de incluir seu amante, o respeito aos judeus, o desprezo pela corrupção e imoralidade do Vaticano, técnicas experimentais de pintura e a sua fé clandestina e subversiva do neoprotestantismo. Este último é provavelmente o maior de todos os segredos: enquanto Michelangelo criava uma obra-prima para a Igreja, ele a abandonara e se unira pessoalmente a outra fé. É surpreendente que milhões de visitantes que vêm todo ano à Capela Sistina não percebam nada disso. O florentino astuto mais uma vez teve êxito em envolver e submergir o visitante com tantas cores e imagens que apenas os que têm a sorte de passar um bom tempo dentro da capela conseguem perceber alguns detalhes. Houve um homem que de fato passou muito tempo inspecionando o afresco enquanto Michelangelo trabalhava arduamente: o cerimoniere do papa, seu mestre de cerimônias. O cerimoniere é basicamente o chefe de gabinete do pontífice, responsável por administrar as operações do dia-a-dia do Vaticano e do papa. Na época de Paulo III, o mestre de cerimônias era um clérigo pomposo e cheio de si chamado Biagio da Cesena. Ele insultou Michelangelo publicamente, mesmo antes da conclusão do afresco, por encher a capela sagrada do papa com uma "orgia de heresias e obscenidades pagas". O artista respondeu com a citação que aparece no início deste capítulo, e concluiu sua resposta na pintura. No canto inferior direito do afresco, logo acima da porta de saída (por onde o público entra atualmente), se encontra a alma condenada ao Inferno do rei Minos da mitologia grega. Minos amava o ouro e desprezava os seres humanos, e isto acarretou a sua danação eterna. Ele é retratado nesta pintura com orelhas de asno, e uma serpente enorme se enrosca nele e o sufoca, mastigando suas genitais eternamente. O rei amaldiçoado é a última figura que Michelangelo pintou ao cabo de seus sete anos de trabalho árduo no afresco da parede. Quando a obra foi finalmente inaugurada em 1541, toda a Roma veio para ver a maravilha mais recente do grande mestre. Instantaneamente as reações dividiram a cidade em dois: metade dos espectadores achou que era uma das obras mais inspiradoras, artísticas e profundamente religiosas que tinham visto, e a outra metade achou que era paga e obscena.
DETALHE
D O J UÍZO F INAL , A N T E S D A R E S T A U R A Ç Ã O : O R E I
COM O ROSTO DE
BIAGIO
DA
CESENA, MESTRE PAPA.
MINOS
DE CERIMÔNIAS DO
Enquanto prosseguiam as discussões acaloradas em frente da pintura, uma pessoa começou de repente a rir, e logo foi seguida de outra, e depois mais outra. Logo toda a Roma estava rindo histericamente, porque, sem sombra de dúvida, o corpo flácido e o perfil do rei Minos eram certamente um retrato de ninguém menos que Biagio da Cesena, o mestre de cerimônias, a segunda pessoa mais poderosa abaixo do papa Paulo III. Segundo relatos contemporâneos, Biagio teve de se prostrar diante do papa, em prantos, implorando ao pontífice para remover sua imagem do afresco. O papa, que respeitava Michelangelo (e que provavelmente também estava farto da arrogância de Biagio), respondeu: "Meu
filho, o Todo-poderoso me concedeu as chaves para governar a Terra e o Céu. Se você deseja sair do Inferno, vá falar com Michelangelo." Obviamente, eles nunca fizeram as pazes, e agora Biagio está preso para sempre no Inferno.
Capítulo Dezesseis OS ÚLTIMOS SEGREDOS M UITOS
ACREDITAM — ASSIM COMO EU TAMBÉM — QUE FUI
DESIGNADO PARA ESTE TRABALHO POR AVANÇADA , NÃO QUERO DESISTIR .
D EUS . A PESAR
T RABALHO
DA MINHA IDADE
POR AMOR A
D EUS E
DEPOSITO NELE TODA A MINHA ESPERANÇA .
— MICHELANGELO T A L V E Z M I C H E L A N G E L O T E N H A C A M U F L A D O S U A S mensagens iradas bem demais. Logo após terminar o Juízo Final, o orgulhoso papa Paulo III Farnese ordenou que ele pintasse afreseos em uma capela inteira, a recéminaugurada Capela Paulina, encomendada pelo próprio papa e batizada com seu nome. Buonarroti aceitou o encargo contrariado, mas sob a condição de que teria a permissão para esculpir também. Ele queria terminar o monumento funerário do papa Júlio II, tantas vezes adiado e abandonado. Michelangelo ansiava por tirar este compromisso inacabado de sua consciência e os familiares sobreviventes de Júlio de suas costas. O papa Paulo chegou de fato a se envolver em duras negociações em nome do artista e conseguiu reduzir ainda mais o contrato do túmulo, que passou a exigir então que apenas três estátuas fossem criadas pelas mãos de Michelangelo. Esta foi uma redução enorme, se considerarmos que quase quatro décadas antes Júlio encomendara mais de 40 estátuas e a pirâmide monumental. Mesmo assim, era uma carga de trabalho considerável para um escultor com quase 70 anos de idade. Buonarroti começou imediatamente a planejar o desenho final do túmulo, enquanto desenhava também seu ciclo de afrescos para cobrir cada centímetro da novíssima capela. Assim como quando ele se livrou do fardo da pintura do teto, Michelangelo teve então uma explosão de energia escultórica. Ele já tinha
figuras prontas em número suficiente para satisfazer os termos do contrato; poderia ter seguido o projeto original e colocado dois de seus "prisioneiros" ou "escravos" ao lado de Moisés. Estranhamente, porém, solicitou ao papa a permissão para fazer mais duas novas figuras que, segundo ele, se encaixariam melhor neste túmulo, que era mais modesto. Segundo relatos da época, ele esculpiu estas duas novas estátuas em tamanho real em apenas um ano. Da mesma maneira, como havia feito antes, ele voltou a trabalhar entusiasmadamente com imagens da Bíblia Hebraica. Nesta ocasião, escolheu duas matriarcas da Torá: Lia e Raquel. No livro do Gênesis, elas são as duas irmãs que se casam com Jacó, o terceiro patriarca hebreu. As duas, juntamente com suas servas, se tornam as mães das Doze Tribos de Israel. Neste quinto e último projeto do túmulo de Júlio, Michelangelo as coloca uma de cada lado do monumento. Em uma carta ao papa Paulo III, Buonarroti, em uma atitude que não era muito de seu feitio, explicou parcialmente o simbolismo do desenho. Pela primeira vez, o artista circunspeto teve que fornecer uma explicação, uma vez que estava solicitando ao pontífice que ordenasse à família della Rovere permissão para esta última alteração no projeto do túmulo. Nesta carta particular, Michelangelo citou uma passagem do Purgatório de Dante, na qual o poeta se encontra com Lia, cujo nome significa em hebraico "olhos fracos". Ela se queixa a Dante de que precisa olhar no espelho o tempo todo para ver como está sua aparência e fazer grinaldas de flores para ficar mais atraente, enquanto sua irmã mais jovem, Raquel, não precisa fazer nada, pois foi naturalmente agraciada com a beleza. Por este motivo, Lia simboliza a Fé Ativa, que exige a iniciativa humana para se tornar mais atraente diante de Deus. Ela se contrasta com Raquel, agraciada com a beleza sem qualquer esforço de sua parte. Raquel é o paradigma da Fé Contemplativa, que não requer nenhuma ação. Nestas peças altamente elaboradas, vemos claramente Lia segurando sua grinalda e olhando para o espelho pensativamen- te, enquanto Raquel simplesmente olha para o céu para receber sua bênção. Aqui também Michelangelo está mais uma vez ilustrando a poderosa idéia mística da dualidade do universo: a misericórdia versus a força, a
meditação ativa versus a meditação receptiva. No meio, no lugar do equilíbrio cósmico, ele colocou sua estátua de Moisés, esculpida quase 30 anos antes.
Esquerda: Raquel (Vida Contemplativa/Chessed). Direita: Lia (Vida Ativa!Guevurá). O lado direito de Moisés está junto de Raquel (Contemplativo), enquanto o outro lado, junto de Lia (Ativo), está em movimento, começando a se levantar. Entretanto, no final o monumento não foi colocado no Vaticano. Havia muito tempo que o clã dos delia Rovere perdera o poder e caíra em desgraça. Além disso, Júlio não fora perdoado por destruir tantos túmulos de papas anteriores quando ele ordenou a demolição da primeira Basílica de São Pedro. Por isso, seu corpo e seu monumento terminaram em um local muito mais modesto: em San Pietro in Vincoli (São Pedro Acorrentado), igreja de sua família, escondida em uma colina, com vista para a área onde fica o Coliseu. Esta nova localização certamente trouxe um novo problema para o artista. Segundo o projeto original, seu Moisés interagiria com o ambiente. Seria colocado em um ponto alto no centro da Basílica de São Pedro, exatamente
abaixo do domo para refletir a luz que entraria por suas janelas. Conforme já discutimos, Buonarroti esculpira dois nódulos no topo da cabeça da estátua e polira o rosto para dar-lhe um acabamento brilhante, para que se tivesse a impressão de que a luz divina emanava da cabeça e do rosto do grande profeta. Como o Moisés ficaria então no nível do chão, em um nicho do lado direito do altar, este efeito especial brilhante não funcionaria. Michelangelo mais uma vez rompeu as regras. Ele na verdade reesculpiu sua estátua favorita que terminara três décadas antes. Ele moveu o pé e a perna esquerda de Moisés um passo para trás e abaixou a coxa esquerda (à direita do espectador) para dar a impressão de que a estátua está prestes a se levantar e sair pela porta, para levar à humanidade as luchot, as mesmas duas Tábuas da Lei que ele acabara de terminar no afresco do Juízo Final. Desta maneira, uniu conceitualmente este lado de Moisés a Lia, símbolo da Vida Ativa/Guevurá. Porém, algo ainda mais incrível foi o que conseguiu fazer com a cabeça de Moisés. Michelangelo fez com que a cabeça da estátua girasse 90 graus para a esquerda, esculpindo uma nova cabeça a partir da existente. Por esta razão, a cabeça de Moisés parece um pouco disforme e os assim chamados "chifres" dão a impressão de estarem torcidos. Ele adaptou a estátua velha para interagir com seu novo ambiente, para que pudesse preservar o seu efeito especial que tanto valorizava. Após mudar a posição do corpo da estátua, Buonarroti fez um buraco retangular no teto da igreja a fim de direcionar a luz do sol para o novo rosto e os nódulos remodelados na cabeça, que ele movera com o propósito de refletir melhor os raios de luz. Após o monumento ser colocado no local, relatos da época narram que as famílias judias de Roma vinham nas tardes do Shabat para ver o Moisés e contar para seus filhos as histórias do grande profeta e das matriarcas virtuosas Lia e Raquel. Não sabemos se foi por causa da grande atenção que os judeus prestavam à estátua ou se foi por que os visitantes católicos não prestavam atenção às correntes de São Pedro no altar maior, e apenas admiravam as estátuas laterais com temas judeus, mas qualquer que tenha sido a razão, o certo é que as autoridades da Igreja decretaram que a abertura feita por Michelangelo fosse selada para sempre. Agora, assim como o seu Davi, a estátua de Moisés já
não tem mais o original efeito óptico especial. Por séculos, as pessoas acreditaram que Michelangelo era na verdade anti-semita, ou que tinha interpretado erroneamente uma tradução equivocada da Torá, dotando intencionalmente o pobre Moisés de um par de chifres. Eles não poderiam estar mais equivocados. Há mais um segredo do túmulo, descoberto apenas recentemente. A estátua reclinada de Júlio II acima de Moisés foi finalmente atribuída a Michelangelo, e não a um de seus assistentes. Após a limpeza e restauração da estátua, se tornou evidente que apenas o grande mestre poderia tê-la esculpido. Existe mais uma prova: o rosto da estátua não é o do papa falecido, mas um auto-retrato de Michelangelo, olhando com orgulho para suas mãos ásperas, sulcadas e curtidas pelo tempo e para a sua estátua favorita. No final, o artista conseguiu enganar o pontífice. No Vaticano, ele pintou dois grandes afrescos na nova Capela Paulina: a Conversão de Paulo de um lado e a Crucificação de São Pedro na parede em frente. Como o público não tem acesso a esta capela, não nos deteremos nas várias mensagens secretas que Michelangelo inseriu nestas duas obras. É suficiente dizer que elas deixaram o papa Paulo e sua corte tão desconcertados que eles cancelaram o resto do contrato de Buonarroti e nunca mais pediram que ele pintasse no Vaticano. Não há registros de que estes acontecimentos tenham causado o mínimo aborrecimento ao artista. Depois disso, Michelangelo foi incumbido de fazer apenas projetos arquitetônicos. A hierarquia da Igreja deve ter pensado que não havia nenhuma maneira de se esconder mensagens subversivas ou ofensivas em edificações. Obviamente estavam enganados.
MONUMENTO
A
J Ú L I O II (Igreja de San Pietro in Vincoli, Roma).
Posteriormente, Buonarroti recebeu o encargo de criar a enorme cúpula da nova Basílica de São Pedro. É bem conhecido o seu amor pela simplicidade e perfeição da arquitetura romana antiga. Sua construção preferida era o Panteão, o templo central dos ídolos gregos e romanos, construído por Adriano na primeira metade do século II. Michelangelo propôs ao papa que ele fizesse uma cópia em larga escala da cúpula do Panteão para o topo da nova Basílica de São Pedro. Horrorizado, o pontífice respondeu que a cúpula de Adriano era paga, e que a catedral do Vaticano teria que ter uma cúpula cristã, como a construída em Florença um século antes por Brunelleschi. Frustrado, o artista desenhou a famosa cúpula em forma de ovo, hoje conhecida por todas as pessoas. Mas há um pequeno detalhe que a maioria não conhece. Segundo uma tradição católica, a cúpula da catedral de qualquer cidade tem de ser a estrutura mais alta e mais larga, para mostrar sua autoridade. Quando Michelangelo morreu aos 89 anos, o colossal tam-burro, a base em forma de tambor da cúpula, já havia sido terminado. Claro que a construção foi suspensa por várias semanas. Como qualquer empreiteiro ou engenheiro pode atestar, sempre que ocorre uma pausa longa em um projeto de construção, é importante tomar de novo todas as medidas, porque a estrutura pode alterar-se, contrair-se ou expandir- se. Quando eles mediram novamente a base que Michelangelo tinha projetado para a cúpula, descobriram que ele havia tapeado o Vaticano mais uma vez. O diâmetro era aproximadamente 45 centímetros menor que o do Panteão pagão. Não havia nada a ser feito, a não ser terminar a cúpula e esperar que ninguém descobrisse. Ainda hoje, a cúpula do Vaticano é a que tem o segundo maior diâmetro de Roma.
E S Q U E R D A : D E T A L H E D O Moisés. D I R E I T A : J A N E L A F A L S A S O B R E Moisés E O B U R A C O MICHELANGELO TAPADO ( NO T O P O D A J A N E L A P I N T A D A ).
FEITO POR
Em seus últimos anos, Michelangelo trabalhou em novas esculturas da Pietà, não para nenhum papa, mas para sua própria distração e provavelmente para seu próprio túmulo. Sua visão jamais se recuperou do tormento de trabalhar no teto da Sistina, e nesta altura de sua vida estava quase cego. Ele esculpia mais com o tato do que com a visão, mas mesmo assim ele persistia, e chegou mesmo a experimentar novas técnicas de escultura até seis dias antes de sua morte. A sua Pietà mais famosa deste último período é a que se encontra no Museo dell'Opera del Duomo em Florença. Ele usou toda a energia que lhe restava na parte superior da escultura, e quando estava na metade, encontrou mais e mais defeitos, tanto no mármore quanto em sua própria escultura. Frustrado porque suas mãos e seus olhos já não podiam mais realizar o que sua mente havia projetado, ele estraçalhou as pernas de Jesus em um acesso de raiva e deu os pedaços a seu servo. Felizmente para nós, o servo guardou todas as peças e as vendeu a um mercador que reconstruiu a obra inteira.
Esquerda: A P I E T À D E B A N D I N I , de Michelangelo, 1550-1555 (Museo dell'Opera del Duomo, Florença). Acima: Detalhe do rosto de Nicodemos na P I E T À D E B A N D I N I . Podemos ver também o porquê de ele ter concentrado toda a sua energia na figura do alto do conjunto. Quem segura Jesus por trás é a figura encapuzada de Nicodemos. Segundo a tradição cristã, ele é o símbolo do ocultamento da fé verdadeira para sobreviver e servir a Deus. Juan de Valdés instruíra os seus seguidores secretos, os Spirituali, que praticassem o que chamava de nicodemismo, ou seja, disfarçar sua fé iluminista clandestina em uma tentativa de se infiltrar na Igreja e reformá-la, a começar por dentro, e ao mesmo tempo evitar ser capturado e executado pela Inquisição. Quando olhamos atentamente para o rosto de Nicodemos, vemos o último auto-retrato de um homem que escondeu tantas de suas crenças verdadeiras durante toda a sua longa vida: Michelangelo Buonarroti.
Capítulo Dezessete "UM MUNDO TRANSFIGURADO" Uma coisa bela nunca provoca tanta dor quanto a incapacidade de ouvi-la ou vê-la. - MICHELANGELO Dentro da queda encontramos a elevação. — PROVÉRBIO CABALÍSTICO Inverno romano, 1564. O grande mestre Michelangelo Buonarroti, o último sobrevivente da era dourada de Florença, agonizava aos 89 anos. Com ele foram extintas as últimas brasas do Renascimento italiano. Leonardo, Rafael, Bramante, Botticelli, Lorenzo de Medici - todas as grandes figuras haviam falecido muito tempo antes. A arte e a ciência estavam sendo então atrofiadas e censuradas, os livros queimados em público e o livre-pensamento forçado a se esconder na clandestinidade. Os judeus de Roma eram emparedados vivos na prisão conhecida como o Gueto, e todos os seus santuários veneráveis e centros de saber fora de seus muros foram destruídos sem deixar traço. As guerras cobriam a face da Europa, e parecia que o mundo caía de novo nas trevas. Como as coisas chegaram a este estado tão baixo? Nos anos 1540, o papa Paulo III havia iniciado as medidas repressoras da Contra-Reforma para tolher o crescimento dos reformistas, luteranos e livres pensadores do mundo católico. Um impulso para esta hostil reação puritana foi a ofensa expressa pelos fundamentalistas em resposta à inauguração do Juízo Final de Michelangelo, com suas centenas de figuras totalmente nuas bem no coração do Vaticano. O implacável cardeal Carafa e seus espiões começaram a perseguir os Spirituali em toda a Europa, e os que não eram presos e executados tinham de fugir e morreram no exílio. Alguns deles tiveram sorte, como Giulia Gonzaga e Vittoria Colonna, que morreram de causas naturais antes que pudessem ser capturadas e queimadas em público. A última esperança dos Spirituali havia sido
o cardeal Reginald Pole, seu representante dentro da hierarquia eclesiástica. Quando o Concilio de Trento foi convocado, ele liderou o grande contingente de delegados reformistas. Eles esperavam se encontrar com Martinho Lutero em pessoa e de alguma maneira chegar a um acordo que permitiria que as duas crenças, a católica e a protestante, voltassem a se unir em uma mesma Igreja. Os extremistas do Vaticano, porém, conseguiram protelar os procedimentos por tanto tempo que Lutero morreu pouco depois da sessão de abertura. Este foi o começo do fim. Quando Pole percebeu que seus opositores do Vaticano haviam tomado controle do concilio, fingiu estar doente e fugiu antes que pudessem prendê-lo. O Concilio de Trento se tornou a marcha fúnebre de qualquer reconciliação entre protestantes e católicos, e também destruiu todas as esperanças de tolerância para com os judeus da Europa. A Inquisição ganhou muito mais poder, e logo o temido cardeal Carafa conseguiu instituir o índice dos Livros Proibidos, o Index Librorum Proibitorum, assim como as câmaras de tortura no coração de Roma. As obras artísticas foram também condenadas, e o Concilio gastou muito tempo e energia discutindo as "obscenidades e heresias" de Michelangelo nos afrescos da Sistina. A Santa Inquisição foi revitalizada e expandida para aterrorizar a maior parte de Europa, queimando em público cópias do Talmude e também pinturas, livres-pensadores, judeus, artistas e homossexuais. Houve uma tentativa final de reconciliação em 1549. Quando o papa Paulo III Farnese faleceu, o conclave esteve prestes a eleger como novo pontífice ninguém menos que o cardeal Pole, o integrante secreto dos Spirituali. Ele tinha a maioria de 2/3 dos votos dos cardeais necessários para elegê-lo ao cargo, mas no último instante, cardeais franceses que chegaram atrasados provocaram um impasse. Em meio a uma avalanche de subornos, politicagem e ao menos um caso possível de envenenamento, chegou-se a uma solução de compromisso e foi eleito como papa Júlio III del Monte. Este novo Júlio não se interessava por reformas religiosas ou arte; na verdade, por nada que fosse intelectual. Quatro anos antes, ele se apaixonara por um garoto vagabundo de 13 anos e forçara seu irmão rico a adotar o rapaz. Após ser coroado papa, seu primeiro ato foi ordenar o rapaz, então com 17 anos, como cardeal sobrinho Inocenzo Ciocchi del Monte.
Enquanto a Inquisição perseguia e queimava homossexuais na Europa, o papa e seu amante adolescente semi-analfabeto realizavam festas particulares em seu palácio de recreio recém-construído de Villa Giulia, hoje o Museu Etrusco de Roma. Durante seu pontificado inócuo, o fanático cardeal Carafa se tornou cada vez mais influente, o que fez com que o cardeal Pole, temendo por sua vida, retornasse à Inglaterra em 1554, quando a rainha católica Maria I subiu ao trono. Sob o reinado de Maria I, Pole abandonou os ideais dos Spirituali e exerceu sua vingança contra os protestantes, a quem culpou pela tortura e assassinato de sua família. O homem que poderia ter sido o grande papa da reforma e da reconciliação morreu como assassino em massa em 1558. Pietro Aretino, outro sobrevivente, aliado de Michelangelo do grupo clandestino, virou-se contra o artista publicamente e o condenou virulentamente pelo mesmo Juízo Final que antes fora motivo de elogio a Buonarroti e no qual ele fora imortalizado como São Bartolomeu. No pontificado de Júlio III, pela a primeira vez em cinqüenta anos, os talentos de Michelangelo para a escultura e pintura foram ignorados pelo Vaticano. Ele obteve a permissão para prosseguir apenas com o trabalho arquitetônico da catedral iniciado sob o reinado de Paulo III. Fora isto, o velho artista foi desonrosamente deixado de lado. As últimas defesas da arte livre e do livre-pensamento caíram em 1555. Quando Júlio III morreu, o conclave seguinte elegeu o cardeal Marcello Cervini, a última grande esperança do Renascimento e dos reformistas. Ele era um toscano brilhante, modesto e de mente aberta, respeitado por todos e inclinado a limpar o Vaticano e a estabelecer a paz com os protestantes. Um conclave desesperado de cardeais o elegeu de maneira imediata e unânime na primeira votação. Para o horror de seus apoiadores, o humilde Marcello informou que, apesar de seu novo poder, ele não mudaria seu nome como pontífice. Durante séculos o costume era que o cardeal escolhesse um novo nome ao se tornar papa, pois se considerava que manter o nome original traria má sorte (todos os papas anteriores que mantiveram seus nomes de nascimento foram desastrosos como pontífices). Marcello rejeitou a superstição e foi coroado como Marcello II. Em vez de dar-se ao luxo de banquetes e festas de coroação, doou todos os fundos da celebração para os pobres. A esperança ressurgiu mais uma vez. Finalmente havia um papa
que parecia capaz e determinado a redimir o Vaticano, trazer de volta o renascimento das idéias e estabelecer a paz entres as crenças conflitantes. Ele proclamou que haveria uma nova Igreja, que retornaria às Escrituras e à espiritualidade. Vinte e dois dias depois, estava morto: segundo as fontes oficiais, morreu de "exaustão". E suficiente dizer que Marcello foi o último papa a se recusar a trocar de nome. O papa seguinte não foi ninguém menos que o cardeal Gian Petro Carafa. Conforme já observamos, ele fora um monstro para os católicos e judeus. Para Michelangelo, era como se o pior pesadelo se tornasse realidade. Carafa, o papa Paulo IV, estabeleceu o índice de Livros Proibidos, proibiu todas as mulheres de entrar no Vaticano, queimou volumes do Talmude e da Cabala, confinou os judeus de Roma no gueto, esvaziou os cofres da Igreja ao mesmo tempo em que sobrecarregava os fiéis de impostos para enriquecer seus sobrinhos e sua amante, torturou e queimou homossexuais em público, ordenou dois sobrinhos, de 14 e 16 anos, como cardeais, e proibiu o consumo da batata — recentemente trazida à Europa por Sir Francis Drake - por considerá-la o fruto da luxúria enviado por Satanás. Na Sistina, Paulo IV Carafa causou mais devastação. Ordenou que a grade divisória, símbolo do Véu do Santo dos Santos, fosse removida e colocada a cerca de dois metros a leste, e com isso quebrou a correspondência perfeita da capela com o Templo Sagrado judeu. Trouxe Michelangelo à força diante dele e ordenou que o velho mestre tornasse as figuras nuas do Juízo Final "adequadas" a uma capela papal. Michelangelo respondeu de maneira veemente: "Quando Sua Santidade tornar primeiro o mundo um local adequado, a pintura também será." Foi a última vez que Michelangelo teve algo a tratar com Carafa. O papa seguinte, Pio IV, não foi melhor. O único projeto que deixou a cargo de Michelangelo foi o novo portão para a cidade de Roma, a Porta Pia. Iniciada dois anos antes da morte do artista, a Porta leva o nome de Pio e um elemento incomum: entalhes circulares estranhos com uma espécie de fita em volta. Foi preciso que se passasse mais de um século para o Vaticano descobrir que com estes desenhos o artista-arquiteto estava insultando outro papa. Pio IV, apesar de suas pretensões, vinha de uma família modesta: seu pai era barbeiro e
sangrador. Descobriu-se que o motivo decorativo incomum da Porta Pia não era nada mais que uma bacia de barbeiro itinerante com uma toalha ao seu redor. Michelangelo desferiu mais um golpe no ego inflado do papa. Pio, apesar de desconhecer este lembrete público de suas raízes humildes, foi responsável por uma afronta horrível ao grande artista. Quando Michelangelo jazia em seu leito de morte, seu último assistente e aluno sobrevivente, Daniele da Volterra, recebeu um ultimato absurdo. Já que o Concilio de Trento gastara muito tempo e energia valiosos para condenar formalmente as "várias obscenidades e heresias" do afresco do Juízo Final da Sistina, eles deram duas opções a Volterra: testemunhar a destruição total da obra-prima ou ser ele mesmo o censor. Com grande pesar, Daniele deu início ao trabalho terrível de acrescentar panos e roupagens sobre as partes repreensíveis da obra-prima de seu mentor. Este foi o começo do en- cobrimento das mensagens secretas de Michelangelo para o mundo. O teto da Capela Sistina, já famoso mundialmente, também estava sob a ameaça da censura ou destruição, mas no final permaneceu intacto por uma razão apenas. Ninguém conseguiu descobrir como reconstruir o futurista andaime em forma de ponte de arco projetado por Michelangelo, a única maneira de trabalhar no teto sem impedir o uso da capela por vários anos. A obra-prima de pintura de Michelangelo foi salva por suas extraordinárias habilidades em engenharia. O passo seguinte de descida à obscuridade das mensagens ocultas foi dado pelo próprio artista moribundo. No fim, em sua residência simples, estavam ao seu lado apenas quatro ou cinco de seus amigos e assistentes mais íntimos, incluindo o amor de sua vida, Tommaso dei Cavalieri, então casado e com filhos. Um dos pedidos que fez em seu leito de morte foi que queimassem todas as suas anotações e desenhos. Livros de esboços, códices, escritos e imagens inestimáveis pereceram no fogo. Os poemas já haviam sido alterados e censurados por seu próprio sobrinho para poderem ser publicados. O insulto final à memória do florentino foi o próprio enterro. Seu corpo foi preparado para ser sepultado como um artista romano na igreja vizinha dos Santos Apóstolos, construída por Sisto IV e Baccio Pontelli, o mesmo papa e o mesmo arquiteto que construíram a Capela Sistina, fonte das maiores torturas de sua longa vida. Além de ser uma igreja construída pelos homens cuja capela o fez sofrer tanto,
este edifício era na época de Michelangelo uma estrutura escura, baixa e de localização afastada. Já era um insulto o simples fato de o artista não ser considerado digno de um túmulo dentro do Vaticano, ou mesmo dentro do Panteão, onde Rafael fora sepultado. Além disso, a decisão de manter seu corpo em Roma, lugar que todos sabiam que odiava, ao invés de enviá-lo com honras a Florença, foi um ato muito desrespeitoso. Porém, a desgraça em que havia caído na verdade continha as sementes do renascimento de Michelangelo após sua morte. Em face do enorme insulto que foi o enterro do artista em Roma, os cidadãos de Florença finalmente perceberam sua dívida cultural e espiritual para com Buonarroti. Eles prontamente arrecadaram doações para contratar os serviços dos melhores assaltantes de Florença. Os dois ladrões foram para Roma em um carro de bois; e, após o pôr do sol, arrombaram a entrada da igreja, roubaram o corpo do artista e enrolaram cordas nele para se parecer com um fardo de trapos. Colocaram o corpo na parte traseira do carro de bois e, rápidos como um corisco, voltaram para Florença, chegando ao amanhecer. Os florentinos alegremente sepultaram seu Michelangelo dentro da Basílica de Santa Croce, onde seu túmulo pode ser visto ainda hoje. Um acontecimento irônico se passou nos anos 1850, quase trezentos anos após o enterro de Michelangelo em Florença, quando finalmente foi construída a famosa fachada da igreja. Ela foi projetada por um arquiteto judeu, Nicolò Matas. Como Matas foi informado de que seu nome não apareceria na igreja, ele insistiu para que fosse colocada uma grande Estrela de Davi acima da porta frontal. Nos dias de hoje, a igreja que abriga o túmulo do defensor secreto mais famoso do Talmude e da Cabala ostenta uma gigante estrela judia. A derrota e o desaparecimento dos Spirituali e outros livres-pensadores acabou com qualquer esperança de passar adiante o significado dos símbolos secretos de Michelangelo, e logo eles foram esquecidos. Geração após geração, o pó, a sujeira, o suor e a fuligem das velas gradualmente cobriram e escureceram os brilhantes afrescos da Sistina e apagaram as iluminadas mensagens contidas neles. Com o advento da era industrial, a poluição do ar trouxe mais uma camada de sujeira escura para encobrir os afrescos da Sistina. Um golpe final para a
revelação de qualquer uma das intenções verdadeiras do artista foi dado no início do século XX, quando o Vaticano publicou os guias oficiais da Capela Sistina. Não foi apenas o fato de que o próprio Vaticano desconhecia o significado real dos afrescos da Sistina; o que aconteceu foi que uma publicação oficial podava de maneira efetiva qualquer outra análise independente ou interpretação nãocatólica a partir de então.
Esquerda: Porta Pia, Roma. Abaixo: Detalhe de uma das decorações estranhas da Porta Pia desenhadas por Michelangelo. A luz começou a entrar na Igreja com o pontificado de João XXIII, um homem jovial e amoroso a quem os italianos até hoje chamam de II Papa Buono, o Papa Bom. Quando era cardeal, no período do Holocausto, ele salvou dezenas de milhares de judeus falsificando e distribuindo certidões de batismo a quem quer que encontrasse. Quando se tornou papa, por uma margem escassa de votos em 1958, iniciou uma "limpeza doméstica" da Igreja. Convocou o Segundo Concilio do Vaticano - chamado comumente de Vaticano II no qual foram abolidos os ensinamentos institucionalizados da Igreja contra os judeus e o judaísmo. Graças ao papa João, os católicos não se referem mais aos judeus como "traidores" mas como "nossos irmãos e irmãs mais velhos". Ele deu início à reconciliação e
tolerância que Michelangelo pregara em suas obras de arte quatro séculos antes. Hoje Il Papa Buono tem um outro nome: Beato João XXIII. O grande passo seguinte na liberalização da Igreja foi a surpreendente eleição do primeiro papa polonês em 1978: João Paulo II. Ele se tornou o primeiro papa a entrar em uma sinagoga, e em 2000, ano do Jubileu Católico, o primeiro a viajar a Israel. Este foi um ato oportuno, pois a palavra "jubileu" vem diretamente da palavra hebraica yovel, o Jubileu Sagrado celebrado a cada cinqüenta anos em Israel na Antigüidade. Para preparar o palco para este importante ano, o papa João Paulo decretara a limpeza e restauração definitivas da Capela Sistina em 1980. Já haviam sido feitas algumas tentativas estranhas para se restaurar e limpar o teto, para devolver a sua beleza original. Durante séculos, alguns supostos especialistas subiram em escadas bambas para limpar o teto com pão, leite e até mesmo vinho grego. Foi tudo em vão. O projeto do século XX gastou duas décadas e terminou exatamente a tempo para a entrada do novo milênio. Após muitas tentativas de se construir um andaime moderno e de última geração que possibilitasse trabalhar no teto, os melhores engenheiros do mundo chegaram à conclusão de que a única solução era recriar uma versão em metal da "ponte de arco" original de Michelangelo. Eles chegaram até mesmo a descobrir e reutilizar os buracos que o mestre fizera nas paredes laterais no início do século XVI.
Fachada da Basílica de Santa Croce, Florença.
Quando a restauração estava quase completa, o papa João Paulo II anunciou a "reabilitação" pública de Michelangelo e de seus afrescos da Sistina em uma missa realizada na própria capela: Parece que Michelangelo, à sua própria maneira, se permitiu ser guiado pelas palavras evocativas do livro de Gênesis, o qual, no tocante à criação do ser humano, homem e mulher, revela: "Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam" (Gênesis 2:25). A Capela Sistina é precisamente — se é que é possível se dizer assim — o santuário da teologia do corpo humano. Ao professar a beleza do homem criado por Deus em sua forma masculina e na feminina, expressa também de uma certa maneira a esperança de um mundo transfigurado. [...] Se ficamos perplexos ao contemplar o Juízo Final por causa de seu esplendor e de seu terror, admirando em um lado os corpos glorificados e no outro os condenados à danação eterna, compreendemos também que a composição em seu conjunto está profundamente imbuída de uma luz única e por apenas uma lógica artística: a luz e a lógica da fé que a Igreja proclama, confessando: "Cremos em um Deus [...], Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis." Com base nesta lógica e no contexto da luz que emana de Deus, o corpo humano também conserva seu esplendor e sua dignidade. (8 de abril de 1994) Felizmente algumas das idéias visionárias de Michelangelo encontraram aceitação por parte da liderança contemporânea da Igreja. Hoje, o Vaticano está tentando recuperar o atraso em relação às sementes de pensamento que Buonarroti plantou em suas paredes há cinco séculos. Os papas corruptos e fanáticos há muito se foram, mas a visão do artista na Capela Sistina de uma fé muito mais universal e amorosa parece estar cada vez mais luminosa, clara e forte.
Conclusão AFINAL, O QUE É A CAPELA SISTINA? Senhor, permita que eu sempre almeje mais do que consigo realizar. — MICHELANGELO Olhe abaixo da superfície; não deixe que as qualidades múltiplas de uma coisa ou seu valor te escapem. — MARCO AURÉLIO, Meditações G E R A L M E N T E S E D I Z Q U E O sucesso significa coisas diferentes para pessoas diferentes. A julgar pelas multidões de visitantes que se sentem motivados a fazer peregrinações pessoais a Roma e ao Vaticano, a Capela Sistina é um sucesso sem par, um lugar que, segundo alguns sugeriram, deveria figurar na lista das maravilhas do mundo. Porém, há outra maneira de se determinar se um esforço humano atingiu seu objetivo. É importante observar o que os criadores tentaram realizar. Precisamos saber não apenas o que a Capela Sistina é hoje, mas também o que seus fundadores pretendiam que fosse. Será que eles achariam que sua capela é um sucesso hoje? Como já vimos, a capela foi alterada, ampliada, decorada e até mesmo desfigurada parcialmente ao longo dos anos. Ela passou não só por alterações estruturais, mas também por mudanças filosóficas e teológicas. Para alcançar o maior número de pessoas, São Paulo afirmou ter feito de tudo, convertendo-se em "tudo para todos". Não foi isso o que a Sistina se tornou, mas já falou com muitas vozes e pregou muitas mensagens diferentes. As suas mensagens mais contundentes foram sem dúvida as de Michelangelo, o maior responsável por sua fama perene. Entretanto, tais mensagens - as "coisas visíveis e invisíveis" - foram obscurecidas, interpretadas erroneamente, censuradas, ignoradas e esquecidas por séculos, trazidas de novo à luz em nossa época. Certa vez, Buonarroti fez esta prece: "Senhor, permita que eu sempre almeje mais do que consigo realizar." Temos então que perguntar: Será que ele acharia que
alcançou seu objetivo ao pintar os afrescos? Para Michelangelo, a Sistina poderia ser considerada um sucesso? Os marinheiros disseram a Jonas, o profeta que aparece acima do altar da Sistina: "Conta-nos qual é a sua missão, donde vens, qual a tua terra, a que povo pertences." Para avaliar o sucesso da Sistina, precisamos pensar em termos de sua história, seus primeiros arquitetos e a sua relevância no mundo contemporâneo. Para que ela foi feita originalmente? Quais foram suas funções no decorrer do tempo em termos práticos, espirituais e conceituais? Talvez a pergunta mais significativa que devemos fazer é: O que Michelangelo queria ensinar por meio da Capela Sistina? Que visão ele tinha dela, não apenas para seu tempo, mas também para a posteridade? Ele teve sucesso? Vamos começar com os predecessores de Michelangelo. O que eles queriam que a capela expressasse? Que relevância estas idéias têm hoje, se é que ainda conservam alguma?
A PALATINA: A CAPELA ANTERIOR A MICHELANGELO O desejo expresso do papa Sisto IV, o primeiro fundador da Capela Sistina no século XV, era proclamar o milagre da Assunção da Virgem Maria. Certamente estava em jogo a egolatria típica de muitos de seus predecessores e seguidores imediatos, pois ele estava muito empenhado em fazer com que a capela também afirmasse o triunfo de sua família ao conquistar o pontificado. Para transmitir estas duas mensagens, ele ordenou a pintura de um afresco bem na parte frontal da capela da subida da Virgem ao Céu, com ele ao seu lado. Conhecedores de sua vaidade e orgulho familiar, podemos imaginar que ele poderia ter nomeado a Sistina de "Capela da Sagrada Assunção, Derramando a Glória Perpétua sobre a Casa dos delia Rovere". Podemos dizer hoje que as mensagens de Sisto não tiveram um fim glorioso. A Sistina não se presta nem um pouco a ser o hino de louvor que ele encomendou para glorificar a si e a família della Rovere e suas pretensões messiânicas. O único traço que resta dele, além do nome da capela ("Sistina" deriva de Sisto IV), é o carvalho, símbolo familiar, e as bolotas espalhadas por toda a capela. No
lugar de um testemunho eterno de sua grandeza, ainda permanecem os vários insultos à família papal deixados pelos artistas florentinos. O trabalho de sabotagem dos planos de Sisto, executado de maneira tão brilhante pela primeira equipe de pintores de afresco enviada por Lorenzo de Medici, garantiu que a Sistina jamais tornasse realidade o sonho do papa de uma imagem pública positiva para o clã della Rovere. O outro tema original da capela, a Assunção da Virgem Maria ao Céu, também não existe mais. Desde os anos 1530, quando Michelangelo desfez todo o afresco original de Pinturicchio representando a subida de Maria na parede frontal do altar, não restou nem um traço sequer deste tema nas imagens do local. Assim, com o passar do tempo, as duas razões fundamentais da Sistina (ou "missões", como nas perguntas feitas a Jonas) se tornaram irrelevantes. Em seu lugar, foi destacado um outro conceito para conferir singularidade à capela. Os teólogos do Vaticano passaram a chamá-la de "O Novo Templo Sagrado da Nova Jerusalém". Explicaram que seu papel era substituir com uma réplica cristã o Templo original de Jerusalém demolido pelos romanos em 70 d.C., demonstrando que o que os judeus perderam havia sido transferido para a Igreja. É por este motivo que, como já indicamos anteriormente, a Sistina tem exatamente as mesmas medidas e proporções do Templo Sagrado de Salomão, conforme descreveu o profeta Samuel na Bíblia. Porém, é interessante o fato de que esta correspondência entre o Templo judeu e a Capela Sistina foi mais tarde propositadamente depreciada pela própria Igreja. O papa Paulo IV, fanático anti-semita, o mesmo cardeal Carafa que espionava e perseguia os Spirituali, convenceu-se de que a Sistina era judia demais, e por causa disso deu ordens para que a grade de mármore divisória fosse mudada de lugar, quase dois metros a leste. Originalmente esta divisória marcava exatamente onde ficava o Véu no Templo Sagrado. O Véu era a cortina que servia para separar o santuário comum e o Kodesh Kodoshim, o Santo dos Santos, local tão sagrado que apenas o sumo sacerdote tinha a permissão de entrar, e somente uma vez ao ano. Hoje em dia, quando os visitantes entram na Sistina, eles se deparam com uma pequena rampa no meio do salão entre a área do Santo dos Santos e a outra parte da sala, ligeiramente mais baixa. A rampa
está onde a partição de mármore ficou por quase um século, até o pontificado do odioso Paulo IV, abominado tanto por católicos quanto por judeus. Foi ele quem trouxe as torturas e a Inquisição a Roma, criou o índice de Livros Proibidos, impôs um imposto pesado aos cristãos para financiar estátuas colossais de si próprio, dignas de qualquer imperador pagão, criou uma prisão para devedores e emparedou os judeus de Roma em um gueto infernal. Felizmente ele não viveu para realizar as outras mudanças que desejava fazer na capela: a censura do teto e a destruição completa do Juízo Final de Michelangelo. O anjo da morte levou Paulo IV antes que pudesse realizar seus desejos. Com a destruição da demarcação original do Santo dos Santos e a permissão dada hoje em dia aos visitantes para circular livremente por toda a capela, o conceito da Sistina como um substituto do Templo de Salomão também se tornou quase totalmente obsoleto.
A SISTINA E O CONCLAVE Há ainda outro rito importante identificado com a Capela Sistina. Nela é realizado o conclave, a eleição de um novo papa. A palavra conclave vem do latim cum clave, que significa "com chave", ou "sob chaves", ou ainda "quarto fechado". Significa que o Colégio de Cardeais de fato permanece confinado dentro do Palácio Apostólico até a escolha de um novo papa. Antes da Sistina, a votação era realizada secretamente em locais variados, muitas vezes fora de Roma para evitar a boataria e as pressões políticas. Certa vez, no palácio ducal da cidade de Viterbo, os cardeais debateram por tantos meses que o Duque de Viterbo, exasperado, trancou-os no palácio, tratou-os apenas com pão e água, e mandou até remover o teto do palácio para forçá-los a escolher um novo papa. Desde que o conclave papal foi transferido para a Capela Sistina séculos atrás, nunca houve a ameaça de que alguém removeria o seu teto famoso. Será que a Sistina de hoje deveria ser associada sobretudo a esta função e talvez ser nomeada de acordo com este propósito papal, como alguns já sugeriram? Seria apropriado se referir a ela como a "Sala do Conclave"? Isto seria impróprio por duas razões. Primeiro, os afrescos de Michelangelo têm pouco ou nada a ver
tematicamente com o processo de sucessão papal. Além disso, tradicionalmente os papas permanecem no cargo pelo resto da vida, o que faz dos conclaves eventos muito raros, especialmente com a melhor medicina da era moderna e a maior expectativa de vida. De fato, quando alguém em Roma quer dizer que um evento ocorre muito esporadicamente, ao invés de dizer algo semelhante a "uma vez na vida outra na morte", diz "ogni volta che muore un papa", ou seja, "cada vez que morre um papa".
A CAPELA SISTINA DE MICHELANGELO Com a obra de Michelangelo, a Capela Sistina assumiu um significado inteiramente novo. Ela foi então completamente coberta por um verdadeiro tesouro de pinturas elaboradas para prender a atenção não só dos olhos, mas também da mente. O objetivo era ensinar e transformar espiritualmente os espectadores. Mas de que maneira? Já revelamos muitas das mensagens secretas do artista ocultas nos afrescos, mas havia uma declaração geral que ele queria fazer? Ele a transmitiu? Para concluir se Michelangelo teve sucesso ou não, primeiro temos de sondar seus pensamentos mais profundos e encontrar a chave de seu plano mestre, o seu "cérebro oculto" na obra de arte. Temos que responder nada mais nada menos que a seguinte questão: "O que Michelangelo de fato tentou realizar ao pintar os afrescos da Capela Sistina?"
O MONUMENTO FUNERÁRIO? Se pudéssemos entrar na mente de Michelangelo enquanto ele trabalhava, que idéias não proferidas encontraríamos em seus pensamentos? Uma pista é o projeto que Michelangelo foi forçado a abandonar quando Júlio II o obrigou a pintar o teto. Ele estava imerso em sua verdadeira paixão, a escultura. Mais especificamente, estava ocupado com a escultura de peças para o gigante túmulo piramidal que o papa queria erigir no meio da nova Basílica de São Pedro. Apesar de termos apenas uns poucos elementos dispersos acabados e outros semi-acabados do monumento, sabemos qual era o desenho original, graças aos
esboços raros e às memórias que Michelangelo ditou ao seu aluno Condivi. A ampla base retangular deveria ter sido um padrão arquitetônico greco-romano de nichos e arcos alternados, com figuras clássicas representando as artes e as ciências nos nichos e "prisioneiros" pagãos nus decorando os pilares. Este projeto serviria para mostrar que Il Papa Terribile era na realidade um grande mecenas das artes (correto) e um intelectual de grande estatura (falso), que ele libertara o mundo da ignorância e a Europa do que era considerado então a "ameaça turca" (falso), e que o mundo da cultura sofreria com a sua morte (algo possível, mas apenas para os artistas e arquitetos de sua folha de pagamento). Michelangelo de fato conseguiu começar as estátuas de seis prisioneiros e escravos que ficariam no nível inferior sendo que quatro delas se encontram na Accademia de Florença e duas no Museu do Louvre em Paris. Hoje se discute se ele chegou a terminar estas figuras, pois parece que elas estão ainda aprisionadas no mármore, um efeito impressionante quando observado pessoalmente. O nível seguinte da pirâmide, ou intermediário, teria quatro colossais figuras bíblicas: dois profetas hebreus e dois santos cristãos. Não sabemos quais foram os personagens escolhidos por Júlio para estas quatro esculturas gigantes, mas temos apenas uma que Michelangelo criou: seu Moisés, de fama mundial justificada, conforme descrevemos anteriormente. No topo da pirâmide, Júlio mandou que fossem colocadas as imagens de dois anjos, um sorridente e um chorando, sustentando juntos o esquife com seu corpo. Esta era uma referência óbvia à Arca Sagrada da Aliança do Templo de Salomão. Sobre a tampa da arca havia dois querubins, e a Presença Divina iria se manifestar no espaço entre eles. Este local era conhecido como o Trono da Glória. Júlio II, numa demonstração clássica de sua megalomania, queria que Michelangelo o esculpisse eternizado no Trono da Glória de Deus. Este desenho era também uma ilustração do sucessionismo, a teoria da Igreja sobre a evolução espiritual. Semelhantemente à teoria de Darwin, que descreveu a linha evolutiva desde os dinossauros até os seres humanos, passando pelos macacos, o sucessionismo sustentava que a humanidade evoluíra da filosofia pagã, passando pelo judaísmo até atingir o desenvolvimento espiritual pleno com o cristianismo. Desta maneira, o plano de Júlio para seu monumento gigantesco
pretendia fazer com que o olhar do espectador fosse atraído primeiro para as figuras clássicas greco-romanas, e depois pelos profetas judeus e primeiros heróis apostólicos, para finalmente atingir o ápice na pessoa de Giuliano delia Rovere, o papa Júlio II. O projeto pretensioso incluía mais de quarenta esculturas de grande dimensão, todas a serem feitas por Michelangelo. Para executar este plano insano, teria sido necessário contar com alguns outros artistas dispostos a dedicar-lhe o resto da vida. Quando o escultor foi forçado a paralisar o trabalho no túmulo para pintar os afrescos no teto da Sistina, ele sabia que a interrupção de vários anos gastos na pintura do teto acabaria de vez com qualquer possibilidade de terminar o projeto da pirâmide papal. Ironicamente, ao ordenar a Michelangelo que pintasse a Sistina, Júlio destruiu seus próprios planos para um gigantesco monumento funerário. Muito provavelmente o astuto florentino percebeu isto desde o começo, porque ele fez com que o teto da capela se tornasse uma versão bidimensional do projeto do teto. A melhor prova disso vem das mãos do próprio artista. Temos a sorte de ainda existir hoje um esboço para a parte inferior do desenho original, preservado nas Galerias Uffizi em Florença. Para qualquer pessoa que já viu os afrescos do teto da Sistina, pessoalmente por meio de reproduções, os elementos deste esboço parecerão familiares: os nus masculinos reclinados em várias posições, os nus masculinos clássicos maiores em poses que evidenciam suas musculaturas, os símbolos femininos da inteligência em vários tipos de vestimentas clássicas, os pedestais de mármore e os elementos arquitetônicos, os profetas imponentes assentados acima, assim como os putti brancos sustentando os pedestais superiores.
Prisioneiros de mármore (Accademia, Florença) Até mesmo o respeitado professor Howard Hibbard, em sua explicação bem tradicional do teto da Sistina, conclui: "Michelangelo inventou uma alternância de tronos arquitetônicos e figuras esculturais que traduz as formas do túmulo de Júlio para a pintura." Pode parecer estranho, mas esta é uma das várias camadas de significados da Capela Sistina: ela é um monumento funerário gigante ao ego igualmente gigantesco de Júlio II. Isto também ajuda a explicar como Michelangelo evitou sofrer conseqüências por ter feito mudanças drásticas no desenho de estimação do papa, que previa retratar Cristo e seus apóstolos no afresco do teto. Quando Júlio celebrava a primeira missa, por ocasião da inauguração do teto, ele pôde olhar com satisfação para seu próprio retrato vestido como o profeta Zacarias, assentado em um lugar de honra acima do glorioso portal real da capela, como se estivesse no Trono de Glória de seu próprio túmulo, impossível de ser terminado. Por isso, para o papa ególatra, o teto da Sistina deve mesmo ter servido como um monumento funerário. Para salvar sua vida e não sofrer nenhuma conseqüência, mesmo tendo abandonado por completo o plano de Júlio, Michelangelo conseguiu convencer seu mecenas papal de que ele estava simplesmente seguindo um caminho alternativo para a sua glorificação. Porém, sabemos muito bem que isto estava longe de ser a verdade. Considerando que conhecemos várias maneiras usadas por Michelangelo para inserir insultos vulgares a Júlio e
usar mensagens secretas para apontar sua corrupção e abuso de poder, a intenção real do artista certamente não foi louvar o líder da Igreja de sua época. Qual foi então a mensagem verdadeira de Michelangelo?
UM AUTO-RETRATO DO ARTISTA? Uma explicação mais profunda e mais legítima da Sistina é que talvez ela não seja mais que um enorme auto-retrato de Michelangelo. As imagens servem o propósito de refletir sua vida e suas crenças: os seus sentimentos divididos entre o amor pela sabedoria e tradição judaicas e a paixão pelo desenho e pela arte pagã; seu conflito íntimo entre o amor espiritual por Deus e o amor físico pelos homens; seu respeito pelo cristianismo (mesmo depois de abandonar o catolicismo) e a ira altiva que sentia pelo papa e a corrupção do Vaticano renascentista; seu amor pelas tradições clássicas e a sua defesa apaixonada do livre-pensamento e de idéias novas; seu misticismo de inspiração cabalística unido ao neoplatonismo e à sua realidade mundana carnal. É provável que tenha sido este turbilhão de impulsos conflituosos a razão do fracasso de tentativas anteriores para se chegar a uma "teoria unificada" do significado da capela. Qualquer retrato verdadeiro de um ser humano tem de ser multifacetado. Retratar paixões, amores e ódios turbulentos do grande Michelangelo exigiu todo o teto e a parede frontal da Sistina. O afamado arquiteto britânico Sir Christopher Wren resumiu sua própria vida e obras com as seguintes palavras: "Se você quiser ver o meu monumento, olhe à sua volta." De maneira semelhante, Michelangelo talvez tenha escolhido escrever sua autobiografia no teto da capela.
Esboço do T Ú M U L O M O N U M E N T A L D O P A P A J Ú L I O II feito por Michelangelo (Galerias Ujfizi, Florença) Porém, interpretar a Sistina como primordialmente um auto-retrato não é uma verdade fechada. Apesar de sua arrogância em relação ao talento artístico, Michelangelo era um homem despretensioso que levava uma vida extremamente humilde. Apesar de ser o artista mais bem pago de seus dias, ele se vestia mal e morava em uma residência simples, enviando quase todo o seu dinheiro para a família em Florença. Sim, introduziu seu rosto no afresco do Juízo Final, mas ao contrário de Júlio II, não precisava de uma basílica ou uma capela inteira para proclamar o ego. Além disso, ele se considerava primeiramente e antes de tudo um escultor, e não um pintor. E se ele tivesse feito uma peça para ser o resumo de sua vida, certamente teria sido uma estátua, não um afresco.
"A ESTE LUGAR DEU O NOME DE..." Acreditamos que chegaremos mais próximos de uma resposta correta se dirigirmos nossa atenção para a singularidade mais evidente dos afrescos do teto de Michelangelo. Algo que os milhões de espectadores da pintura quase nunca percebem, e é quase certamente a pista mais forte das intenções reais de
Michelangelo, uma pista que confirma a premissa principal deste livro, segundo a qual o artista usou sua obra para ocultar inúmeras mensagens que não ousava expressar abertamente. Vamos revelar esta pista por meio de uma pergunta simples, mas longe de ser trivial: Qual é o nome da pintura que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina? Se você achar que isto não tem importância, está enganado. O título de uma obra de arte é quase sempre a chave para a solução de seus significados ocultos. Por exemplo, por séculos ninguém foi capaz de descobrir a verdadeira identidade da Mona Lisa. Porém, no ano de 2006 especialistas finalmente conseguiram resolver o mistério graças ao título verdadeiro da pintura: La Gioconda. Os historiadores pensavam que a gioconda, a "mulher alegre", se referia ao seu sorriso enigmático. Os especialistas, porém, estabeleceram que ela era a noiva de um mercador rico de nome Giocondo. Leonardo fez um jogo de palavras com o nome de casada da mulher. Os artistas pesavam muito o título que dariam às suas obras, pois era uma oportunidade sucinta de transmitir ao espectador a mensagem e o propósito. Um título proclama: " Isto é o que eu tinha em mente quando pus todo o meu esforço nesta peça." Então, que nome Michelangelo deu ao seu afresco gigante? Não se chateie se não conseguir se lembrar, porque esta é uma pergunta capciosa. A verdade inacreditável e notável é que a obra não tem um título. Para apreciar a significância deste fato, você precisa saber que isto era extremamente incomum para grandes obras de arte da época. Tudo o que precisamos é olhar para os outros grandes afrescos, tanto os de Michelangelo quanto os de seus contemporâneos. No mesmo local e pintado pelo mesmo artista, há na parede frontal do altar o afresco intitulado Il Giudizio Universale, o Juízo Final. Também no Vaticano, a poucos passos da Sistina, se encontram nos renomados quatro Quartos de Rafael, nos quais cada afresco tem um título. O famoso afresco de Leonardo em Milão se chama Il Cenacolo ou A Última Ceia. O segundo maior afresco de Roma, localizado no Grande Salão do Palácio Barberini e pintado por Pietro da Cortona, tem o mesmo título desde o início de sua execução em 1632. De fato, o título é quase tão grande quanto o próprio afresco colossal: O Triunfo da Divina Providência e a Realização de seus
Propósitos sob o Pontificado do Papa Urbano VIII Barberini. Somente se conhecermos este nome superdimensionado é que compreenderemos a mescla confusa de imagens da pintura cheia de excessos. Sem título, seria impossível compreender o significado verdadeiro da peça. Certamente isto levanta uma questão: por que, após quatro anos e meio de trabalho escravo na execução da pintura do teto, Michelangelo não deu um nome para esta realização sobre-humana? É quase impensável que tenha sido um simples descuido. Não podemos explicar esta omissão alegando que ele não costumava dar nome às suas obras porque conhecemos os nomes exatos de outras de suas obras-primas, como O Juízo Final, as várias Pietàs, o Moisés, o Davi, a Conversão de São Paulo, a Crucificação de São Pedro e muitos outros. Para seus outros projetos, ele costumava deixar poemas e cartas pessoais que os explicavam. No final de sua vida, ele ditou suas memórias a seu amanuense Condivi, para deixar claras as intenções artísticas e também para acertar algumas velhas contas. Porém, em relação ao nome dos afrescos do teto da Sistina ele manteve um silêncio completo. Os afrescos não ganharam nenhum título para nos ajudar a entender o que Michelangelo tentou transmitir. Qual terá sido a razão para isso? Como podemos explicar esta falta de informação sobre o conteúdo do projeto gigantesco para o teto por parte de um artista geralmente comunicativo e ansioso por fazer com que compreendessem suas obras? As cartas particulares que escreveu para seus amigos e sua família nos mostram que ele estava obcecado com este projeto. Enquanto se ocupava de sua execução, escrevia sempre a respeito dele, e de fato reclamava duramente sobre alguns de seus aspectos. Entretanto, ele jamais revelou claramente o que estava tentando dizer com esta obra. Além disso, tão logo o teto foi terminado, ele queimou suas anotações e seus esboços preparatórios. À luz do que chegamos a descobrir sobre a verdadeira intenção de Michelangelo na Capela Sistina, parece óbvio que a omissão intencional de um título para a sua obra mais importante foi a maneira mais clara de expressar que o que ele realmente queria dizer era arriscado demais para ser revelado. Conforme Cícero já declarou, "o silêncio fala mais alto que as palavras". O fato evidente de que Michelangelo decidiu não dar um nome para uma tarefa trabalhosa que
consumiu quatro anos e meio de sua vida só poderia significar que ele acreditava que uma declaração de sua intenção real certamente traria a sua condenação. Foi melhor não dar nenhum nome do que trair suas crenças neoplatônicas e filo judaicas. Michelangelo não podia permitir que a corte papal ou o espectador casual entendesse que havia inúmeras imagens secretas ocultas no meio da mescla de imagens, nem mesmo fazer alusão a este aspecto essencial de sua obra. Por este motivo, deixou que seu silêncio falasse por ele. Secretamente ele sussurrou: "Aqui há muito mais do que se ousa nomear." Felizmente, nós finalmente tivemos o privilégio de "decodificar" muitas das mensagens de Michelangelo. Agora, quando olhamos para a incrível obra de arte sem nome, concordamos com a observação profunda da poeta Emily Dickinson de que "Dizer nada às vezes diz tudo".
O NOME QUE MICHELANGELO PODERIA TER DADO Podemos no máximo imaginar o título que Michelangelo poderia ter dado ao afresco gigante se tivesse tido liberdade suficiente para torná-lo público. Se não tivesse medo da retaliação da Igreja, como ele teria resumido em poucas palavras o significado verdadeiro do panorama bíblico que transmitia sua visão ousada, seu idealismo universalista e seu desprezo pela corrupção eclesiástica e pela imoralidade do Vaticano? Michelangelo sabia que o arquiteto fiorentino Baccio Pontelli, juntamente com os desenhistas anônimos dos pisos cosmatescos cabalísticos, havia criado um santuário que tinha relação com o templo judeu de Jerusalém. No Talmude, o templo foi descrito com uma metáfora notável: era chamado de "o pescoço do mundo" (Tratado Megilá, 16b). O pescoço liga a cabeça ao corpo, a parte superior com a inferior. Da mesma maneira, o templo servia como um elo entre o Céu e a Terra, entre o espiritual e o material, e entre Deus e a humanidade. A equipe original de pintores de afrescos, quase todos eles florentinos sob a direção de Lorenzo de Medici, era fascinada pelo conceito de conexão. Eles estabeleceram um elo entre a vida de Moisés e a vida de Jesus, o que abriu o caminho para que Michelangelo desenvolvesse muito mais profundamente este
reconhecimento das raízes judaicas da fé cristã. A relação entre estas duas crenças, a "religião mãe" e a sua descendência, e a visão mais global que surge desta perspectiva foram de suma importância para o grande aluno de Pico della Mirandola. A idéia do pescoço como símbolo deve ter chamado a atenção de Michelangelo, especialmente se Pico tiver ensinado a ele este significado mais profundo da Cabala: "O pescoço gira a cabeça." Isto significa que a cabeça, os pensamentos, a mente e o intelecto giram de acordo com a direção que o pescoço impõe. O templo é o "pescoço do mundo", e seus imperativos morais devem guiar as decisões intelectuais da humanidade. Se não fosse pela imagem estranha e pouco atraente que passa, poderíamos imaginar que "O Pescoço do Mundo" seria um título adequado para Michelangelo descrever sua mensagem. Entretanto, devido ao seu amor pela simplicidade romana e pela poesia italiana, isto é bem pouco provável. Felizmente, há uma palavra bem mais adequada que pode fazer justiça às aspirações do artista. Na verdade, é uma palavra que desempenhou um papel fundamental na criação de sua obra-prima na Sistina. Percebendo o alcance das aspirações de Michelangelo ao pintar seus afrescos, sugerimos humildemente que se tivesse ousado dar um nome a sua obra de arte gigante, ele a teria chamado de "A Ponte".
A PONTE Há uma terra dos vivos e uma terra dos mortos, e a ponte entre elas é o amor, o único que sobrevive, o único sentido. — THORNTON WILDER, A P ONTE DE S ÃO L UIZ R E I Quando Michelangelo surgiu uma geração após os mestres pintores dos afrescos originais, ele assumiu a tarefa quase impossível de unir toda a Capela Sistina, fazendo dela uma só obra. Para realizar isto, ele teve de projetar o impressionante andaime em forma de "ponte de arco" para criar suas obras. Ninguém mais foi capaz de imaginar como isto podia ser feito. Ninguém depois dele foi capaz de repetir este feito incrível. A ponte de Michelangelo é
considerada um milagre da engenharia até os dias de hoje. Nada mais apropriado então que o mesmo artista tenha realizado um milagre semelhante ao criar uma ponte entre crenças que é talvez a mensagem mais importante de sua obra-prima. Com seu gênio, Michelangelo construiu muitas pontes para o espírito. Ele infundiu em seus afrescos do teto as imagens cabalísticas que refletiam o desenho do piso cabalístico, e conectou a árvore ancestral judia com Jesus. Conectou a filosofia e o desenho pagãos com o judaísmo e o cristianismo, e uniu seu amor pela beleza masculina ao seu amor por Deus. Ele narrou toda a história do universo, começando pela criação, utilizando formas que nos fazem entender a ancestralidade comum da humanidade. Michelangelo sabia que, para a Igreja cumprir a vontade de Deus, teria que se tornar um paradigma da verdadeira irmandade. Deveria haver uma ponte entre os ricos e os pobres, entre os privilegiados e os oprimidos, e entre os que supostamente falavam por Deus e os que necessitavam desesperadamente da assistência divina. Por isso, ele povoou a capela de mensagens ocultas de seus amores apaixonados e suas iras santas, juntamente com os símbolos místicos da justiça e da misericórdia divinas. Para ele, a Sistina era de fato o santuário, o pescoço do mundo; mais que isso, era "A Ponte" destinada a unir as pessoas a Deus, aos seus semelhantes; e, talvez o mais difícil de tudo, unir as pessoas às suas dimensões espirituais. Todo o mundo é uma ponte muito estreita/O importante é isto: Não ter medo. Estes versos são de uma antiga canção hebraica e se tornam cada vez mais apropriados a cada geração. Há quase exatamente cinco séculos, uma alma atormentada de nome Michelangelo construiu uma ponte estreita suspensa no ar no meio de uma capela no coração de Roma. O que ele fez resultou em uma obra-prima que transformaria para sempre o mundo da arte. Entretanto, não era este o seu objetivo. O que este artista solitário desejava era construir uma ponte gigante para o espírito, abarcando todas as diferentes crenças, culturas, eras e
sexualidades. Com este livro, esperamos humildemente colocar a última peça no lugar, para tornar completos a ponte, a mensagem e o sonho de Michelangelo.
AGRADECIMENTOS Como Jacó seguisse o seu caminho, anjos de Deus o encontraram. GÊNESIS 32:2 Eis que vou enviar um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. ÊXODO 23:20 Quando um judeu ortodoxo está em viagem, recita esses versos como parte da prece para os viajantes. Enquanto trilhávamos o caminho desse livro, muitos "anjos" também nos ajudaram nesta jornada. Nós queremos agradecer ao nosso agente determinado, Don Gastwirth, por seu entusiasmo apaixonado por este projeto desde o início; a Michael Medved, por tê-lo recomendado; e a Hugh Van Dusen, por ter sido o nosso "bom pastor". Não há palavras para expressar totalmente a profundidade de nossa gratidão e admiração pela equipe maravilhosa da HarperOne, que ajudou a reunir todo o material e transformá-lo em um livro. Temos a impressão de que o próprio Michelangelo, lá do Céu, deve ter "mexido os pauzinhos" para que nos associássemos com pessoas como nosso incom- parável editor e amigo incondicional, o maestro da bottega HarperOne, Roger Freet, e seus assistentes Kris Ashley e Jan Weed, as fantásticas Claudia Boutote e Patricia Rose, que continuam a nos surpreender com sua habilidade de espalhar a notícia sobre a importância e o significado histórico deste livro; a Terri Leonard, Lisa Zuniga e Ralph Fowler pelo excelente trabalho de produção e diagramação; e a Jim Warner e Clau- dine Mansour pelo projeto da capa original como nunca visto antes e o qual temos certeza de que se tornará um item de colecionador. Nossos agradecimentos sinceros a Jack Pesso por nos reunir, e a Milly e Vito Arbib por terem sido os anfitriões de nosso primeiro encontro decisivo.