ALBERT CAMUS: FENOMENOLOGIA E ABSURDO Ac. Camila Jourdan - Filosofia Filosofia – UERJ UERJ Orientadora: Prof. Cléa Góis - UERJ
Resumo: Este artigo se propõe caracterizar de maneira introdutória a presença da fenomenologia de Edmund Husserl na obra filosófico-literária de Albert Camus, mostrando em que sentido ela se aproxima e em que sentido ela se afasta do enfoque existencialista dos autores de sua época e, em especial, da proposta sartriana. Primeiramente, explicitaremos sinteticamente o método fenomenológico e a sua utilização contemporânea pelo existencialismo. A seguir, relacionaremos os mesmos com os conceitos básicos da obra camusiana, a saber: o absurdo, a revolta e a felicidade sensível. Para tanto, partiremos da seguinte hipótese: Albert Camus pretende responder à mesma questão que deu origem ao pensamento moderno existencialista fenomenológico, ou seja, saber se diante da consciência do absurdo a vida vale a pena. Porém, Camus não considera fundamental noções como: liberdade, escolha e historicidade. Assim, ele pretende se manter fiel a falta de sentido tanto do mundo quanto do homem, superando o absurdo somente na afirmação trágica do mesmo.
Abstract : This article intends to characterize
Palavras-chave: Albert Camus. Camus. Edmund Edmund
Key-Word: Albert Camus. Edmund Husserl.
Husserl. Absurdo.
Absurd.
in an introductory way the presence of Edmund Husserl's phenomenological in Albert Camus's philosophical-literary work, showing in that felt she approaches and in that felt she stands back of the authors' of your time existentialist focus and, especially, of the proposal sartriana. Firstly, we will show sinteticamente the phenomenological method and your contemporary use for the existentialism. To proceed, we will relate the same ones with the basic concepts of the work “camusiana”, to know: the absurdity, the revolt and the sensitive happiness. For so much, we will leave of the following hypothesis: Albert Camus intends to answer to the same subject that created the thought existentialist modern phenomenological, in other words, to know before the conscience of the absurdity the life is worthwhile. However, Camus doesn't consider fundamental notions as: freedom, choice and history. Like this, he intends to stay faithful the sense lack so much of the world as of the man, only overcoming the absurdity in the tragic statement of the same.
Introdução
tese normalmente aceita pelos mais variados autores que as questões fundamentais do pensamento moderno são, senão introduzidas, pelo menos representadas na História Históri a da Filosofia, Filosofi a, por Im-
É
manuel Kant. Não cabe aqui analisar a crítica kantiana, apenas ressaltar que as questões levantadas na obra de Kant subjazem o método fenomenológico
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de Edmund Husserl e, portanto, aos conceitos camusianos. Kant estabelece, como é sabido, os limites do conhecimento racional. Com isso, ele introduz na modernidade a questão fundamental da separação entre o homem e a natureza. Desde os mitos, passando pelas religiões e por toda a história do pensamento, essa cisão foi pensada a partir da capacidade humana de cognição, ou seja, o homem se separa da natureza pois é capaz de estabelecer conhecimento sobre ela, criando assim uma segunda realidade conceitual. Ao longo da história, boa parte dos pensadores se dedicaram, implícita ou explicitamente, a resolver essa separação. 1 Kant inaugura a modernidade afirmando justamente essa cisão através da sua teoria do conhecimento2. Ele une empirismo e racionalismo a partir da separação entre a realidade (como as coisas são nelas mesmas) e a forma como a conhecemos (como as coisas aparecem para nós). Para Kant, nosso conhecimento se dá a partir da ordenação de nossas intuições nas categorias do entendimento. As intuições só seriam possíveis nos conceitos puros de nossa sensibilidade, a saber: o espaço e o tempo. Eles dariam a forma em que algo é experimentado. Já as categorias, seriam os conceitos puros, ou melhor, aquilo que permitiria conceitos em ge-
ral. Elas dariam a forma de como algo é pensado e seriam, portanto, 1
Posteriormente a Kant, podemos ressaltar o Romantismo Alemão como um bom exemplo dessa tentativa de síntese através da experiência estética. 2 Pode-se a apontar a própria obra de Kant resoluções para essa cisão. Afinal, ela seria, em certo sentido, cognitiva mas não ontológica. No entanto, não cabe aqui nos aprofundarmos nessa questão.
condições de toda experiência, pois permitiriam a síntese do múltiplo. Isso incluiria o próprio sujeito que experimenta, pois seriam regras pelas quais identificaríamos o diverso na unidade. Assim, Kant faz o conhecimento ob jetivo depender igualmente dos dados sensíveis e da razão, refutando tanto o ceticismo (já que o conhecimento objetivo é possível), quanto o dogmatismo (já que ele não dá conta de uma ontologia da realidade). O preço desse milagre talvez seja o primeiro desespero moderno (nos termos de Camus, o absurdo): aquilo que o homem conhece (fenômeno) não é o mundo em si mesmo ( noumenon). Para alguns, o fim da metafísica; para outros, uma nova faceta da mesma. É da separação entre conhecimento e mundo, que também é uma separação entre o abstrato e o sensível, a mente e o corpo, 3 que o pensamento precisará dar conta a partir de então. Foi a isso que Nietzsche chamou A Morte de Deus, ou, nas palavras do romântico Friedrich Hölderlin, O Afastamento Categórico: virada de costas mútua entre homens e deuses. É nessa impossibilidade de me-
tafísica que o afastamento entre homem e mundo provoca, é nesse vazio deixado por uma epistemologia que torna ausente a possibilidade de critérios absolutos para nosso saber, que surge o Método Fenomenológico 3
Kant não propõe essa separação, pois a própria intuição sensível é abstracta. No entanto, essa seria mais uma afirmação da referida cisão, afinal, no homem, mesmo o sensível seria abstracto.
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e, posteriormente, o Existencialismo. Nesse último, como veremos, é fundamentalmente na existência do indivíduo que esse vazio será retratado. O Método
Edmund Husserl é considerado o precursor do Método Fenomenológico, uma proposta epistêmica que precisa dar conta da demanda kantiana, pretendendo rigor científico e abrangência ontológica. Ou seja, Husserl quer um saber objetivo que forneça a realidade do conhecido, em certo sentido, um fenômeno que seja noumenon . Dito de outro modo: Husserl precisa que a aparência Seja. Esse é o princípio fundamental da Fenomenologia: a quebra da separação entre aparência e coisa em si, que propõe unir novamente o mundo e o homem. Para Husserl, o Ser essencial do mundo só pode ser descoberto a partir da sua relação com o Eu. Isso porque, partindo das idéias de Brentano4, Husserl considera a intencionalidade como característica fundamental da consciência. Ou seja, a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Através desta noção, Husserl pretende superar a cisão entre abstrato (homem) e sensível (mundo). Para tanto, seria necessário, em um primeiro momento, a chamada “redução fenomenológica”: suspensão da crença em uma realidade ob jetiva independente do sujeito cog4
Filósofo e psicólogo alemão do final do século XVIII. Brentano reintroduziu na filosofia a noção medieval de que a intencionalidade é o aspecto fundamental da consciência. Foi considerado por isso o precursor da Fenomenologia.
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noscente (epochê)5. Para a Fenomenologia, não existe nenhuma realidade se escondendo atrás dos fenômenos. Isso não significa que a aparência seja a realidade. Nem tão pouco um idealismo subjetivista. Afinal, para Husserl, é necessário se chegar às essências dos fenômenos ( eidos) e essas essências são objetivas, são para todos. Isso significa que os fenômenos revelam a realidade e que as essências são, elas mesmas, fenômenos. Segundo Husserl, a relação cognitiva possui um pólo intencional e um pólo objetivo. O primeiro, o pólo da consciência, só existe em relação com o segundo, o objeto. Por outro lado, a própria consciência é possibilidade de aparição desse objeto. Pode-se-ia dizer, então, que a consciência e o fenômeno estão em relação de bicondicionalidade, ou seja, implicamse mútua e necessariamente, sendo, portanto, equivalentes. O objeto seria, em sua essência, uma aparição. E é essa essência-aparição, esse fenômeno- noumenon, que a Fenomenologia pretende enfocar. A consciência seria o fundamento da possibilidade do objeto, ou seja, da aparição. No entanto, como vimos, por ser intencional, a consciência também requer como possibilidade um objeto independente dela. O pólo intencional é condição de sua própria condição, a saber, o pólo objetivo. Nesse sentido, ela implica uma realidade objetiva, enquanto aparição que se revela imediatamente a ela, na intuição das essências. O pólo objetivo nada mais 5
Vocábulo grego que significa ‘abstenção’.
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é do que o termo objetivo da consciência intencional. A consciência, em seus diferentes modos, dá diferentes sentidos às coisas. No entanto, o sentido tem de existir independente de ser constatado pela intuição das essências. Para a Fenomenologia, consciência e fenômeno (nos termos de Sartre: o Para-Si e o Em-Si ) são equivalentes. Mas, embora dependam um do outro, não podem colapsar totalmente. Ao longo de sua teoria, Husserl acaba retomando o conflito pré-crítico entre idealismo e realismo. Afirmando tê-lo superado, Husserl o mantém no privilégio ora do aspecto subjetivo, ora do aspecto objetivo dessa condicionalidade mútua. O Existencialismo de Jean-Paul Sartre
É justamente do método fenomenológico, dessa redução de algo à sua série de aparições, que parte o filósofo e romancista contemporâneo francês Jean Paul Sartre. Sartre é considerado um dos principais filósofos do Existencialismo. Com ele, a questão dos limites do conhecimento humano se torna explicitamente a questão da separação entre homem e mundo. É de um certo vazio provocado por essa cisão que o Existencialismo tratará. Os temas fundamentais do Existencialismo são: a indiferença absurda e incompreensível do mundo, a escolha e a liberdade humana diante dessa incompreensão.
Na introdução de O Ser e o Nada6 , Sartre comenta a identificação de um objeto a partir de uma essência ( eidos) que é, ela mesma, fenômeno (embora, um outro tipo de fenômeno). Sartre chama a atenção para o fato de que permanecendo sempre no nível da aparência, poderíamos procurar infinitamente a essência da essência da essência. para identificálas como essências. Justamente por isso, a essência precisaria se revelar de maneira imediata, através de uma intuição O sujeito intencional precisaria transcender a série de aparições individuais (série infinita que jamais aparece completamente) rumo a essência intuída (finita e que aparece). Segundo Sartre, haveria um fenômeno do Ser e um Ser do fenômeno. O primeiro, enquanto fenômeno, teria ele mesmo um Ser com base no qual apareceria: o Ser do fenômeno do Ser (não haveria nisso uma progressão ao infinito porque o Ser seria imediato e somente um). Por outro lado, o Ser do fenômeno jamais poderia se reduzir ao fenômeno do Ser, pois necessita da transfenomenalidade para fundamentar a condição fenomênica. O percebido se remeteria àquele que percebe. Haveria portanto um Ser do perceber, que não estaria no percebido e que seria a consciência intencional, o qual Sartre chamou Ser-Para-Si. E haveria um Ser do percebido, que não estaria no perceber e que seria maciço, fechado e pleno, o qual Sartre chamou Ser-EmSi. Temos então o seguinte esquema: 6
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
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JOURDAN. Camila. Albert Camus: Fenomenologia e Absurdo SER→SER-PARA-SI (consciência)→Ser do fenô-
meno do Ser-Para-Si ↓ ↓
↓
fenômeno do Ser-Para-Si
↓
SER-EM-SI (maciço)→ Ser do fenômeno do SerEm-Si ↓
fenômeno do Ser-Em-Si
O Ser-Para-Si da consciência, segundo Sartre, seria completamente voltado para fora, para o outro. Ele seria o que não é e não seria o que é, já que seria auto-constitutivo de seu sentido a partir do objeto que intencional. Já o Ser-Em-Si, seria o outro necessário à intencionalidade. Como ele jamais se revela à consciência, é destituído de sentido. Seria essa separação entre Em-si e Para-Si a absurdidade da existência, a tão mencionada separação entre homem e mundo. A partir dessa separação surgiria o Nada. O Nada surge à consciência como seu fundamento na medida em que ela se identifica como não sendo o outro que intenciona. Ora, se ela, como vimos não é o que é, pois se volta para fora, mas também não pode ser o que intenciona, justamente por intencioná-lo, a consciência encontra-se nadificada. A nadificação seria a impossibilidade da consciência ser objeto de si mesma, nessa nadificação surgiria a liberdade e a angústia de um fazer-se separado de si. Por outro lado, essa nadificação permitiria a relação entre homem e mundo, já que qualquer relação pressupõe não se ser aquilo com o que nos relacionamos, ou seja, a
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separação sujeito/objeto. Se ela não nos permite sermos o mundo, nos permite conhecê-lo. No Nada, se daria o diálogo homem/mundo. Assim, o homem forneceria sentido ao mundo e a si mesmo. Mas o Em-si, jamais seria afetado, nem pelo Nada, nem pela intencionalidade. A nadificação seria sempre entre Para-Si e ParaSi.7 O Ser do Para-Si é justamente essa impossibilidade de coincidir-se com si mesmo (como já foi dito, sendo o que não é e não sendo o que é). A realidade humana, marcada pela carência, busca incessantemente coincidir-se consigo, sem jamais conseguir. O homem só é livre por essa separação nadificante entre Para-Si e Em-Si. Entretanto, essa mesma liberdade ontológica do homem termina os unindo novamente na doação de sentido. Aquilo que era afundamento, torna-se o próprio fundamento a partir da liberdade. Será a isso que, como veremos, Camus chamará suicídio filosófico. Albert Camus
Albert Camus é um literato, um artista da palavra. Mas é também um filósofo, um pensador. Camus formou-se em filosofia na Universidade de Argel, mas, ao invés de utilizar o discurso argumentativo e sistemático, usou a dramaturgia, os ensaios literários e as narrativas romanescas para expressar seu pensamento. Essa escolha pela forma artística não acon7
É possível se fazer a seguinte crítica à Sartre: se o Para-Si não afeta o Em-Si, como então o pólo objetivo da consciência poderia ser afetado ? Ou seja, como a consciência poderia realmente se criar ?
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tece por acaso: talvez seja o próprio conteúdo do pensamento camusiano que a determina. Uma idéia que parece perpassar todas as obras de Camus é a de que uma certa ‘experiência’ da beleza reúne no sensível, o abstrato. Toda a sua obra pode ser lida a partir dessa revelação do abstrato no próprio sensível. Melhor dizendo, o abstrato, normalmente associado ao conceitual, em Camus, a partir de uma concepção estética-mística de mundo, aparece na sensibilidade. No entanto, em Camus, a sensibilidade se diferencia da experimentação. Para ele, não é a experiência que pode levar ao abstrato, não é a experiência que pode tornar alguém sábio. Camus se refere a uma forma de sensibilidade que, em termos platônicos, se relaciona muito mais com a contemplação das idéias (só que em Camus essa contemplação é um certo modo de estar no próprio mundo), do que com a experimentação. 8 Esta seria uma sensibilidade fora do tempo, onde não há mais o sujeito que experimenta, nem o objeto experimentado. 9 Essa total lucidez diante da falta de sentido do mundo só seria possível na transcendência do sujeito, afinal o 8
Como ele afirma: “Ver, e ver sobre a terra - como esquecer essa lição? Aos mistérios de Elêusis bastava contemplá-los.” Idem, p.10. E ainda: “Em Tipasa, ver eqüivale a crer e não me obstino em negar aquilo que minha mão pode tocar e que meus lábios podem acariciar.” CAMUS, Albert. Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Círculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Núpcias e 1954 por O verão, p.12. 9 Ou seja: “Antes de entrarmos no reino das ruínas somos espectadores pela última vez.” Ou: “Não, não era eu que importava, nem o mundo, mas apenas a harmonia e o silêncio que, vindo dele até a mim, fazia nascer o amor.” Idem, p.8 e p.14.
sujeito sempre tem história, convicções e perspectivas que ele não pode ver, já que interpreta a existência através deles. Podemos resumir a tese fundamental do pensamento camusiano da seguinte forma: a sensibilidade absurda da separação entre homem e mundo é indizível, trágica e silenciosa porque é uma sensibilidade abstrata, que une na própria separação o homem e o mundo. 10 Esse vazio não nega a certeza da morte e está diretamente associado à felicidade. 11 É por isso que se pode falar de núpcias entre o homem e o mundo através do próprio silêncio absurdo entre os dois. Se o homem e o mundo não podem se comunicar, a vida não faz sentido e o suicídio é legítimo. Mas a sensibilidade do absurdo cria a beleza, possibilita a revolta e a sabedoria. Nessa sensibilidade, homem e mundo se complementam. Então, o absurdo não é absurdo, ele se supera e a vida vale a pena. Mas é preciso que essa vida seja afirmada, é preciso que eu faça uma escolha no absurdo, ou seja, é preciso que eu me revolte. E, para haver revolta, é preciso que não haja esperanças. Para Camus, a esperança é realmente o pior dos males a sair da caixa de Pandora, pois ela impede a revolta ao negar o 10
“E, diante do vôo pesado dos grandes pássaros no céu de Djemila, é justamente um peso de vida que reclamo e obtenho. Entregar-me por completo a essa paixão passiva: o resto já não mais me pertence. Possuo juventude demais dentro de mim para poder falar da morte. Mas parece-me que, se tivesse que fazê-lo, é aqui que encontraria a palavra exata para exprimir, entre o horror e o silêncio, a certeza consciente de uma morte sem esperança. ” Idem, p.18. 11 Conf .: Idem, pp.13-14.
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absurdo. E é essa revolta diante do mundo, as próprias núpcias com o mundo, a felicidade. O absurdo é um ponto de partida e não de chegada, é a partir dele que eu supero o próprio absurdo. Talvez por isso Camus utilize uma forma artística para expressar conceitos. É ela que nos possibilita falar de uma felicidade (abstrata) que é sensível. Essa idéia está diretamente ligada com a estética, no sentido grego de “sensibilidade diante do belo” (e não de obra de arte). 12 Camus se volta para a Grécia Clássica e afirma uma experiência mística-trágica do mundo, experiência que une princípios opostos na própria separação. 13 É 12
Essa é uma idéia também presente no Idealismo romântico alemão. Esse movimento filosófico propôs, a partir da dialética, superar a separação kantiano entre noumenon e fenômeno. Essa superação se daria na experiência estética trágica. Foi também na Antigüidade Clássica grega que os autores dessa escola, incluindo o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, buscaram inspiração para tal experiência fundamental, capaz de unir dialeticamente (em certo sentido, na própria separação) homem e natureza (em Nietzsche, Apolo e Dioniso). Não podemos aqui analisar profundamente em que sentido se aproximariam e em que sentido se distanciariam de Camus essas correntes filosóficas sob pena de nos afastarmos do tema desse trabalho que, afinal, é a Fenomenologia. Podemos aqui apenas apontar que os dois partem da mesma questão: a separação entre homem e mundo. Não pretendemos com isso aproximar Camus dessas escolas, afinal praticamente toda a história da filosofia pode ser lida a partir dessa questão moderna (embora essa separação seja vista como um aspecto da condição humana independente da época, ela é assim formulada na Modernidade). Pretendemos apenas ilustrar melhor o tema que estamos tratando em Camus. 13 “Reencontrava, assim, uma vida em estado puro, redescobria um paraíso que é dado apenas aos animais dotados de maior ou menor inteligência. Naquele ponto em que o espírito nega o espírito, ele alcança sua verdade e com ela sua glória e seu amor extremo.” CAMUS, Albert. A morte feliz .
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na afirmação e na negação, ou seja, na revolta, que o absurdo do mundo (separação entre o homem e a natureza) é superado.14 Camus é um utópico, para ele, a natureza supera o tempo, a história, aquilo que passa. Mas Camus não seria propriamente um romântico, pois a sua natureza não é idealizada, ela é absurda, trágica. Nem, tão pouco, um dialético, no sentido que conhecemos. A contradição do homem absurdo não é resolvida através de uma síntese dialética, ela é mantida. A sua revolta é antes de tudo afirmativa, ela nega para afirmar algo além do que está negando. É menos uma síntese do que uma superação. 15 A separação Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro: Record, 1997, p.116. 14 “Em seguida é preciso quebrar os jogos fixos do espelho e entrar no movimento pelo qual o absurdo supera a si próprio. (...) O absurdo, assim como a dúvida metódica, fez tabula rasa. Ele nos deixa sem saída. Mas, como a dúvida, ao desdizer-se, ele pode orientar uma nova busca. Com o raciocínio acontece o mesmo. Proclamo que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar de minha própria proclamação e tenho de, no mínimo, acreditar em meu protesto. A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta.” CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4 ° ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.20. 15 “Que é um homem revoltado ? Um homem que dlz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é tam bém um homem que diz sim desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual o significado desse não? Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim ; a partir daí, não’; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar’. Em suma, este não afirma a existência de uma fronteira.” Idem, p.25. O mesmo que Camus já havia dito no Núpcias: “Pouca gente compreende que existe um recusa que nada tem haver com renúncia. Que significam aqui as palavras que falam de futuro, de maior bem estar, de situação? Que significa o progresso do coração? Se rejeito obstinadamente todos os ‘mais
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entre o homem e o mundo (o absurdo, a morte) não é negada. Para Camus, o absurdo não é absurdo, por isso ele pode ser superado em uma ‘experiência’ estética. E essa ‘experiência’ estética, situada entre a esperança e o desespero, é, de certa forma, a experiência da revolta, experiência que nega e afirma, experiência da felicidade. A felicidade é, portanto, o único dever do homem, revelado na transvaloração do absurdo. Sendo feliz, o homem dá sentido a vida e supera o absurdo, afirmando a sua condição. O que Camus parece nos dizer é que há sofrimento na vida e que afirmar a vida inclui afirmar esse sofrimento, inclusive a morte. O Existencialismo Absurdo
A partir dessas considerações podemos notar o quanto Camus se distancia do enfoque existencialista mencionado. Camus rompe com o existencialismo em 1951, com a publicação de O homem revoltado. No entanto, como vimos, em A morte feliz e Núpcias (escritos no final da década de trinta, quando ele sequer tinha tido ainda contato direto com o existencialismo), já é possível notar claramente grandes divergências com essa corrente. Camus não defende um filosofia do sujeito. A liberdade camusiana, não é a do sujeito que escolhe, é a liberdade que nasce da contemplação do absurdo, ou seja, tardes’ do mundo, é porque se trata, da mesma forma, de não renunciar à minha riqueza presente. Não me agrada acreditar que a morte se abre para uma outra vida.” CAMUS, Albert. Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Círculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Núpcias e 1954 por O verão, p.18.
da infinita distância entre o mundo e o homem.16 É somente na constatação dessa separação que o homem revoltado pode superá-la. A felicidade em Camus realmente advém de uma escolha consciente: a revolta diante da injustiça do absurdo. 17 Mas, dentro dessa escolha existe a vontade de felicidade, que é fundamental e que nega essa consciência através do esquecimento que permite a inocência.18 Ou seja, a felicidade é não ser responsável, justamente o oposto da proposta existencialista. Para Camus, escolher seria o problema, escolher seria não ser livre. 19 O sujeito não é responsável ou culpado pelos seus atos porque ele esquece de si. É preciso que se faça uma escolha, mas é preciso que se esqueça essa escolha. No livro O Mito de Sísifo 20, Camus analisa os principais autores fenomenólogos e existencialistas. Como vimos, ele parte das mesmas questões que esses autores. Segundo Camus, a questão fundamental da filosofia, a 16
“Por sentir-se tão longe de tudo e até mesmo de sua febre, por experimentar tão claramente o que há de absurdo e de miserável na âmago das vidas mais ordenadas, nesse quarto erguia-se diante dele a imagem vergonhosa e secreta de uma espécie de liberdade que nasce da dúvida e da fraude.” CAMUS, Albert. A morte feliz . Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro: Record, 1997, p.67. 17 Conf.: Idem, p.113. 18 Conf.: Idem, p.109. 19 “O erro, minha pequena Catherine, é acreditar que é preciso escolher, que é preciso fazer aquilo que se quer e que existem condições para a felicidade. A única coisa que conta é a vontade de felicidade, uma espécie de enorme consciência sempre presente.” Idem, p.121. 20 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo - Ensaio Sobre o Absurdo com um Estudo Sobre Franz Kafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa:
Livros do Brasil, s/data.
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única questão verdadeiramente séria, é saber se vale a pena viver diante da constatação dessa absurda separação entre homem e mundo e da injustiça que se torna vida nessas condições. É preciso saber se existe algo que justifique a vida, pois, se não houver, eu posso me matar e eu posso matar o outro. 21 O homem que faz isso é o homem absurdo, ou seja, é aquele que mata a arte e a revolta22, matando as possibilidades de superação do absurdo. No entanto, o homem revoltado afirma o absurdo na beleza da vida. Ele é aquele que, a partir do absurdo, nega e afirma através da revolta. Sendo assim, este homem não pode negar, com o suicídio ou com o assassinato, o próprio absurdo que a permite. 23 Ele o recusa, porém não renuncia. Como já foi dito, é preciso haver absurdo para se superar o absurdo. Eu não me mato, não me acovardo diante do absurdo e, portanto, também não mato o outro, afinal, o absurdo da vida é universal, para todos. Pode-se afirmar que o próprio Camus utiliza o método fenomenológico em sua obra e em suas análises. Ou seja, ele suspende a crença na existência de uma realidade objetiva e pressupõe a separação entre Em-Si e Para-Si. Camus elogia a Fenomeno21
Conf.: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.16. 22 CAMUS, Albert. Núpcias, O verão. Trad.: Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Círculo do Livro, Copyright by Gallimard 1950 por Núpcias e 1954 por O verão, p.139. 23 Conf.: CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad.: Valerie Rumjanek. - 4° ed. - Rio de Janeiro: Record, 1999, p.34.
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logia Existencialista por ser uma filosofia, pelo menos em princípio, sem esperanças, que parte da negação de uma essência por trás das aparências. Mas, para ele, a Fenomenologia deve ir além de si mesma. A noção de absurdo existencialista nasce de um sentimento do absurdo, e é esse sentimento que deve permanecer fundamental. Por isso, Camus, ao contrário dos autores fenomenólogos, se recusa a considerar a aparência como essência. O Método Fenomenológico, para ele, acabaria fundando uma metafísica, embora uma metafísica da aparência. Aliás, como qualquer método, ele pressuporia uma metafísica como fundamento. 24 Para Camus, nenhum conhecimento é verdadeiro. Sua redução do mundo às aparências não as tornam essências. O único ‘conhecimento verdadeiro’ seria justamente o dessa impossibilidade, ou seja, a já mencionada sensibilidade do absurdo. Como vimos, essa sensibilidade não se dá racionalmente, mas esteticamente. Ela, segundo Camus, “ilumina o mundo a uma luz que lhe é própria”, possibilitando a superação do absurdo. Diante do absurdo, podemos ter atitudes afirmativas ou negativas, podermos revoltar-nos ou suicidar-nos. Camus opõe duas atitudes diante desse mesmo ponto de partida. Para ele, tanto a Antigüidade, quanto a 24
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo - Ensaio Sobre o Absurdo com um Estudo Sobre Franz Kafka. Trad.: Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa: Livros do Brasil, s/data, p.23.
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Modernidade partem da mesma constatação do absurdo. Na Antigüidade, a atitude trágica grega seria uma possibilidade de posicionamento afirmativo diante dessa constatação. Já a esperança do cristianismo nascente seria uma atitude negativa diante da mesma. Na Modernidade, o pensamento que parte do absurdo é o Existencialismo. No entanto, Camus constata nos autores dessa escola a mesma esperança cristã que acaba negando o absurdo. Talvez por isso ele proponha um resgate moderno do pensamento grego como posição afirmativa diante desse sentimento. Para Camus, a análise que Sartre faz da consciência, como separada de si, bem como seu reconhecimento do mundo enquanto inumano, seriam constatações da absurdidade da existência: essa estranheza diante de nós e da natureza, essa certeza da morte. O absurdo nasce desse conflito entre carência de sentido (ParaSi) e ausência de sentido (Em-Si). Ele pressupõe então tanto um, quanto outro. Porém, para Camus, diante disso, não é necessário se suicidar ou ter esperanças, não é necessário ser existencialista ou cristão. Antes, é preciso manter-se no absurdo e torná-lo seu próprio sentido na Revolta Estética. Se o absurdo está tanto no homem, quanto no mundo, ele os une. No entanto, isso não o nega, isso o mantém. A revolta, como vimos, recusa mas não renuncia. O Existencialismo fenomenológico, ao contrário, não recusa, mas renuncia a seus pressupostos (o sentimento do absurdo), justamente nes-
sa ausência de recusa, nessa quebra de tensão (Para-Si/Em-Si). Os existencialistas divinizam o absurdo, afirmando um Ser da experiência e um sentido para a vida. Sem a recusa do absurdo, na aceitação do mesmo como fenômeno, os existencialistas acabam o negando. Pois, com isso, acaba-se a característica essencial do absurdo que é a contradição. Os existencialistas fenomenólogos privilegiam sempre um lado da tensão. A colocação da essência na aparência nega a carência de sentido necessária ao absurdo. Já Camus, com a revolta, pretende tirar do absurdo um princípio que o ultrapasse sem negálo. Esse princípio é justamente a ausência de princípios metafísicos ou racionais. É preciso manter a tensão entre uma razão limitada e um irracional recorrente. Nenhum dos dois pode ser negado, nenhum dos dois pode ser privilegiado. É interessante notar como se dá a presença dos pressupostos kantianos em Camus, no que podemos chamar de uma ‘dialética sem síntese’. Primeiramente, a natureza se recusa através da razão, mas a razão não renuncia a ela, ou seja, continua sendo natural. Após, razão se recusa através do absurdo, nascido do conflito desta com a natureza, mas o absurdo continua sendo racional. Finalmente, o absurdo se recusa através da revolta, nascida do conflito deste com a razão, mas a revolta continua sendo absurda. Portanto, para Camus, a existência humana é: 1) natural; 2) racional; 3) absurda; 4) revoltada. No silêncio da natureza diante da racionalidade, surge o ab-
An. Filos. São João del-Rei, n. 10. p. 305-315, jul. 2003
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surdo. Nessa síntese que mantém a tensão, temos então uma nova antítese, a revolta. Essa antítese continua mantendo a tensão na afirmação e negação da tese. E essa tensão seria a própria vida. O ‘salto’ existencialista, segundo Camus, está justamente em fazer fundamento o que é a-fundamento. Por isso o religare camusiano é sem esperanças, ele mantém tanto a razão do homem, quanto a irracionalidade do mundo e a tensão absurda entre os dois. Ou seja, é um religare no sentido literal do termo, ou seja, não pretende deixar nada separado. Camus quer um religare que mante-
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nha inclusive a tensão. Esse religare paradoxal deve ser, portanto, artístico. Como vimos, em Sartre, o ‘salto’ existencialista se dá no diálogo entre homem e mundo, que o Nada gerado pela própria separação acaba permitindo através da liberdade. No entanto, para Camus, a liberdade é igualmente absurda, não há sentido nem na consciência, nem no Em-Si. Há apenas a tensão entre os dois, que afirma o absurdo como condição de si mesma. Assim, o diálogo entre homem e mundo se dá trágica e esteticamente na separação absoluta.
Referências Bibliográficas
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An. Filos. São João del-Rei, n. 10. p. 305-315, jul. 2003