Obras do mesmo autor, editadas pelas E.P. O homem à procura de Deus O homem não está só Deus à procura do homem
FICHA CATALOGRÁFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte, Câmara Brasileira do Livro, SP)
H499ho
Heschel, Abraham Joshua, 1907-1972. O homem não está só |tr aduziu e anotou Edwino Aloysius Royer| São Paulo, Ed. Paulinas, 1974. p. 308 Bibliografia. 1. Deu s (Judaísm o) 2. Hom em (Teologia daica) 3. Misticismo-Judaísmo 4. Religião-Filosoíia I. Título. CDD-200.1 -296.311 -296.32 -296.71
74-0759 índices para catálogo sistemático:
ju
1. 2. 3. 4. 5.
D eus: Teo logia dogm áti ca: Jud aísm o 29 6.311 Deus: Teologia mística: Judaísmo 296.71 Homem: Teologia dogmática: Judaísmo 296.32 Misticismo: Judaísmo 296.71 Religião: Filosofia 200.1
ABRAHAM J. HESCHEL
O homem não está só
EDIÇÕES PAULINAS
Titulo srcinal M A N IS NOT ALON E — A Philos ophy of Religion © 1951 by Abraham Joshua Heschel Farrar, Straus & Giroux, New York, Edit.
Traduziu e anotou Edwino Aloysius Royer
COM APROVAÇÃO ECLESIÁSTICA ©
B y E dições
P a uli na s ,
1974
Apresentação
Na audiência geral de íí de janeiro de 197?, o papa PauIo VI, desenvolvendo o belíssimo tema da 'Procura de Deus", citava judeu. em sua Quem alocuçãose um texfO de um rabino e teólogo SUrpreendesse com essa citação, logo compreenderia o seu significado ao ter o título do livro de Abraham Joshua Heschel- *Dieu en quite de Vkontntem — Deus em busca do homem. O que desejava acentuar o papa era justamente o conteúdo de lodo o livro de Hesehel: * teremos a surpresa de des cob rir que Deus veia aà nossa procura muito que nósinfinitamen começásse mos procurâlo, e. que ele antes nos procura te mais do que so mos ca pazes de fa zél o" { cf. "La Documentation Catholtque ' — n? 16261 p 15}). Este amor de Deus, que procura incessantemen te o coração do homem e que suscita a sua resposta parú um encontro verdadeiro, ê o cerne de toda a doutrina e de toda a obra de Abraham Hescbel. em tradução Seus livros mais portuguesa, conhecidos, trazem e quesugestivamente agora aparecem os seguintes titules1, 'Deus à procura do homem”, *0 homem â procura de Deus ", ‘O homem não está só”. Falecido em 1972, aos 65 anos, Abrabam Hescbet já era consideradoj não só peias seus, mas por muitos cristãos, um profundo teólogo, verdadeiro místico, hem como ttm homem capaz de testemunhar pela sua vida e suas ações, no meio das situações
problemáticas de hoje, as vontades do seu Deus — um profeta dos nossos tempos! 5
Homem de profunda cultura clássica e religiosa, podia escrever em quatro línguas sobre ós temas mais difíceis da teologia e da mística, mas, ao mesmo tempo , caminhava ao lado de Martin Luther King nas marchas de protesto cm defesa dos direitos hu manas e comparecia a outras manifestações não vio lentas em favor da justiça e da paz (cf. " Time ", Jânuary 8, 1975). Enfrentando a desaprovação dos sem correli gionários mais conservadores, Heschel encontrou-se pessoalmente com PauIo VI, e supõe-se que a de claração de 196?, eximindo o povo judaico da culpa da crucifixão do Cristo, seja, em parte, devido à sua influência (cf. Concilio Vaticano II: Declaração “Nostra Aetaie” A). Esforçou-sc sem pre para um trabalho comum intereônfessional e costumava dixer que, sem ele, a alternativa seria o "intemihitismo Sua brilhante inteligência, sua marcante personali dade, desde cedo haviam chamado a atcnçio de mes tres realmente famosos. no Foi Centro discípulo de Martin Buhber e seu substituto de Cultura Ju daica em Frankfurt, na Alemanha. Forçado a emi grar para os Estados Unidos, t/a época das cam ponhas an ti judaicas dos nazistas, aí viveu e trabalhou até a stta mortet Durante muitos anos foi professor de Ética Judaica e Mística no Seminário Teológico judaico da Amitiea. H eschelmais denominam a sua obra filosofia da Religião; particularmente, umauma filosofia do Judaísmo. Não entendia porem a filosofia num sen tido limitado , de um estudo do fenômeno religioso exclusivamente do ponto de vista racional. Seria mais justo dizer que se trata de uma teologia do judaísmo, se Heschef não insistisse em sublinhar o caráter essencialmente dogmático da teologia, em
oposição ao caráter aberto antes e questionador da prohlefiloso fia. *A filosofia conhece, de tudo, os
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mas; ü teologia conhece de antemão as soluções" (c f . Dien, p. 10) Na procura da compreensão dos problemas fíligiosos, H esc conhecise se coloca mento que elehelchama dç *numa situacitinha onal ",de porque ocupa com as situações, supõe uma experiência interiúr e procura, antes de (udo, compreender os pro blemas que envolvem a nossa existência real Nesse sentido, o conhecimento * situacional* se distingue daquele que é predominantemente conceituai — que se desenvolve pelo raciocínio* procura um aumento de exterior e e abstração exige sempre umaconhecimento objetividade doquemundo é desapego das condições do próprio sujeito, *0 inicio do conheci mento situacional não é a dúvida ou o desapego, mas sim a admiração, o medo, o engajamento - 0 fi lósofo torna-se pois testemunha e não simplesmente 0 narrador das ações dos outros, Se não nos com prometemos pessoalmente a problema não terá pre sença plo, não0 éproblema *como odahomem filo solia pode da religião, chegar apor uma exem com preensão de Dera, mas anfes, 'df. que modo pode remos nós mesmos chegar a ama compreensão de Deus”. Em outras palavras, o filósofo jantais pode ser um simples esp ectadorH (cf Vieu, p- 12). Já se vi, pois, sob que ângulo vai ser desen volvido o estudo dos temas bíblicos. Hescbel "não quer apresentar um conjunto das verdades reveladas por Deus e que se tornaram o conteúdo da fé de ísrael Ele quer aprofundar, não os conceitos, mas as situações que lhes são anteriores * -— "ele visa não tanto desenvolver a filosofia de uma doutrina ou as interpretações de um dogma, mas a filosofia de acontecimentos concretos, de atos e de intuições, a filosofia de tudo que pertence ao homem que crê“ (ib. p , 14). Nesse sentido, diz de. o objeto do seu
estudo nãodeé crer, o conteúdo da féê, a—fê objeto da teologia, mas c aio — isto "em sua profxtn-
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didade, o substratum de onde ela emerge, 0 que quer fazer é uma "teologia em profundidade“ Comprêenée se melhor agora 4 riqneja dos lrõ*
halhos dê Heschel dentro visão0 que the cbtblko, tão característica. Traia-se de dessa estudar homem em sua situação concreta, qttt não desenvolve ío%o uma ciência de Veus, mas vive o encontro com Deus. Os caminhos para esse encontro não são os prolegômettõf racionais do ato de fé, Cí motivos de credi bilidade, nem mesmo as provai da existência de Deus, — mas são as atitudes simples, concretas que 0 homem tornam como quedadesarmado dian 1, te do misté rio, sbertot "a percepção grandiosidade’ “o sentido do inefável", “o deslumb ramen to \ "0 sentido do mistério ", *0 temor reverenciai ", "a re verência e a adoração*, *a intuição, a /, 0 acon tecimento", Seu tiüro sobre a oração ê muito me nos um tratado de Teologia Espiritual do que rtm ensinamento direto e pessoal de um mestre a um disciptdo numa liuguagcm um pies, mas profunda mente viva pela força que brota da realidade de unta experiência. Suas citações dos ditos de mestres rabinos do passado e das suas interessantes narrati vas, lembram muito o es tifo vivo e pessoal dos pri meiros mestres espirituais cristãos — os monges do deserto — com 01 seus "apofteimas” tão caros à tradição monástica quer d d ocidente quer do oriente. Toda a teologia de Abraham Hescbel está mar cada por está insistência no valor da experiência, do moiHcnto vivid o, do “insight" e da intuiç ão Poder-se-ia folgar que se trata de uma posição marcadamente anti intclecttialista, de influência possivel mente bergsoniatia- Mas, desculpando-se um ou outro texto, em qtte sc excede um pouco mais cm sua crítica a ama teologia abstraia e desencarnada, po de-se ver que é sempre possível uma interpretação
equilibrada e justa pensamento de Hesc hel. O que ele desejadoiitcutcar é a validade e mesmo 8
a absoluta necessidade de uma abordagem "experimental" do minério dê Deus, do valor de uma expt>riftíria intuitiva e não meramente discursiva. Po der-se-ia aproximar estaceitual” * intuição" daquela qu e de fá se den ominou "paracon ou con hecim ento sttriples presença, e que estaria hem dentro de ama concepção tomista do conhecimento. Intuição que pode referir-se ttão apenas ao próprio sujai o, mas tamhém a outros objetos, através de um conheci mento "por ^naturalidade", que, embora supondo uma apreensão conceituai, se redita por outros meios que o conceito propriamente (cf. Tauzitr, Pr. Se bastião, op- — 'Bergson edito santo„ Tomás — Dcscíée tie Br J943> — Rro de Janeiro —“ tap. VI e VIï). Ninguém nega, boje em dia, ú profundidade da influência afetiva no conhecimento humano, e já são hem conhecidos os trabalhos de ditufrsos auto res tomistas sobre a existência de dois tipos bem distintos de conhecimentos de Deus sob a luz da fé: atain ciência c a sabedoria Mari- de — teológica “Les denrées du savoir(cf." Jacques — Desciée Br Paris, 10)2, cap. V il ). Através desse especial ponto de vista. Hescbel consegue aprofundar e esclarecer diversos temas bí blicos que escapam a uma análise propriamente con ceituai de uma filosofia. Mostra que, na Bíblia, hâ realidades que não podem ser atingidas pela filosofia e que constituem como que um desafio para ela. Enquanto a filosofia procura descobrir a essência das coisas, os princípios do ser , analisar c explicar par tindo de premissas universais, a Bíblia quer revelar o criador de todas as coisas, sua vontade , baseando-se numa tradição, numa intuição pessoal e partindo sem pre de fatos e acontecimentos que se passam no tempo. Sendo um livro de um rabino sobre a religião
de Israel, é evidente que certos temas abordados et especialmente, a maneira de abordá-los , è reveladora 9
de uma conce pção própria do judaísmo Assim, por exemplo, considerando a resposta do homem à Palavra de Deus — não se pode deixar de notar a religião prescrições (m característica insistência itsvot) como na observância próprias da lei e suas de Israel, A étiça, como ciência e norma do agir não ê a norma fundamentei enquanto revela ú valor e a finalidade de cada ação. Para c judeu, a prática dos mandamentos>como simples obediência e fidelidade, eomtttui um caminho especial para o encontro com Deus "As portas da fé nào estão abertas , ma jr os umitsvot " servem conto chaves. É a vida judaica
A obra de Ahraham foshua Heschel, publicada agora pelas "Edições Paulinas", vem oferecer uma excelente oportunidade para um estudo mais apro fundado do judaísmOj mas, de modo especial, uma reflexão profundamente religiosa sobre a Palavra de Deus. Sendo umâ obra fundamentalmente bíblica, ela permitira certamente a iodos que a souberem ler, um conhecimento mais verdadeiro e extremamente belo que êmais nossoforte patrimônio e, aindadesse hoje,Livro o liame de nossacomum fé e de nossa união no conhecimento e na busca do mesmo Deus. Que a tradução das o bras de H esc bei permita a muitos descobrir qne “a Bíblia não é um livro. Assim como existem acontecimentos situados em momentos determinados do tempo, existe uma pa lavra que interpela todos os homens, em todo
tempo. Bíblia ê de a expressão de umd eper manen teA interesse Deus Eláeterna é o grito Deus 10
íjo homem e não uma mensagem enviada sem co nhecimento ? preocupação pêlo destinatário. Elá não é um Ihrç para ser lido — mas um drama que deve 5cr vivido; xao é a narração de ttma série de acon — mai, em ri mesmat um acontecimento tecimentos — e será a continuação desíe acontecimento enquan to o rtõsso compromisso pascal for a continuação da rçíposta. O acontecimento permanecerá enquanto continuar a resposta" (Dica, p. 269j. D Jojiquitn cíe Arru da
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O PRO BLEM A DE DEUS
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O sentido do inefável
A consciência da Igreja Há três aspectos da natureza que se impõem à atenção do homem: a força, a beleza e a grandeza. A força, ele a explora. A beleza é para o seu gozo. E a grandeza enche-o de reverente admiração. Ad mitimos, sem discussão, que a mente do homem deve igualmente ser sensívelcerto à beleza da natureza. Considera mos que uma pessoa que não se emociona olhando para o céu e a terra, que não tem olhos para ver a grandeza da natureza e sentir o sublime, por mais vagamente que seja, não é humana. Por quê? Que utilidade nos traz? A percepção da grandeza não serve a nenhuma finalidade social ou biológica. Raríssimas vezes o homem é capaz de descrever a sua apreciação do sublime a outros ou de somá-la aos seus conhecimentos científicos. Tampouco a sua percepção agrada aos sentidos ou satisfaz à nossa vaidade. Por que, então, expor-nos à inquietante provocação de algo que desafia nosso impulso de conhecer, à algo que pode até encher-nos de pavor, melancolia ou resignação? Apesar disso
insistimos que é indigno do homem não tomar co nhecimento do sublime. Talvez mais significativo que o fato de nossa percepção da realidade cósmica seja nossa consciên15
cia de termos que
ser conscientes disso, como se
houvesse uma necessidade pres imperativo, tar atençãoumàquilo que está além do nosso de alcance. O sentido do inefável O poder de expressão não é monopólio de homem. Expressão e comunicação até certo ponto, os animais são são atividades capazes. de O que, que caracteriza o homem não é só a sua capacidade de desenvolver palavras e símbolos, mas também o fato de ser obrigado a distinguir entre o que é exprimível e o que é inexprimível, a admirar o que existe e não pode ser traduzido em palavras. É este sentido do sublime que devemos consi derar como a raiz das atividades criativas do homem nas artes, no pensamento e na nobreza de vida. Assim como nenhuma flora jamais desenvolveu em toda a sua plenitude, toda a vitalidade oculta da terra, assim também nenhuma obra de arte jamais exprimiu toda a profundeza do inexprimível, em cujo contato vivem as almas dos santos, dos poetas e dos filósofos. A tentativa de comunicar o que vemos e não conseguimos dizer é o eterno tema da sinfonia inacabada da humanidade, uma aventura cuja realização jamais será consumada. Somente aqueles que vivem de palavras emprestadas acredi tam na sua capacidade de expressão. Uma pessoa sensível sabe que o intrínseco, o mais essencial, nunca é expresso. A maior parte — e muitas vezes a melhor
— daquilo que se passa dentro de nós permanece nosso segredo íntimo; algo com o que só nós mes mos somos obrigados a nos debater. A emoção, que nasce em nossos corações ao observarmos o
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céu salpicado de estrelas, é algo que nenhuma lin guagem pode transmitir. O que nos enche de ma ravilhado assombro não é o que compreendemos e somos capazes de comunicar, mas o que se situa dentro do nosso alcance e ao mesmo tempo está além da nossa compreensão; não o aspecto quan titativo da natureza, mas algo de qualitativo, não o que está além do nosso alcance no tempo e no espaço, mas o verdadeiro sentido, a srcem e o fim do ser, em outras palavras, o inefável. O encontro inefável O inefável habita tanto naquilo que é maravi lhoso como no que é comum, tanto nos fatos gran diosos, como nos insignificantes. ^Algumas pessoas experimentam esta qualidade à distância de longos intervalos em acontecimentos extraordinários. Ou tras sentem-na nos acontecimentos ordinários, em toda parte, em cada ângulo, dia após dia, hora após hora. Para elas as coisas estão despojadas de futi lidade, os seres não equivalem ao absurdo. Ouvem o silêncio que povoa o mundo apesar do nosso ba rulho, apesar da nossa ganância. Por mais insigni ficantes simplesumquepedaço sejam deas pão, coisasuma — um pe daço de e papel, palavra, um suspiro — ocultam e guardam um perene se gredo: um lampejo de Deus? Afinidade com o es pírito do ser? Brilho eterno de uma vontade? Deixe de lado idéias preconcebidas; abandone sua tendência de repetir e de conhecer antes de ver; tente ver o mundo pela primeira vez com
olhos não ofuscados memória volição e descobrirá que vocêpela e as coisas ou quepela o rodeiam — as árvores, os pássaros, as cadeiras — são como linhas paralelas que correm juntas, mas nunca se 2 - O homem não está só
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encontram. Logo você abandonará sua pretensão de estar familiarizado com o mundo. Como é que procuramos apreender o mundo? A inteligência investiga a natureza da realidade, mas como não pode trabalhar sem seus instrumentos, toma os fenômenos que parecem enquadrar-se em suas categorias como respostas para a sua investi gação. Entretanto, quando tentamos encontrar-nos com a realidade face a face, sem a ajuda de pala vras nem de conceitos, inteligível à nossa mentepercebemos é somenteque umao que tênueé superfície de uma realidade profundamente oculta, um murmúrio de inveterado silêncio, que continua imune à curiosidade e à indagação como uma fo lhagem na escuridão.
Existe alguma via de acesso à essência? Tente analisar, pesar e medir uma árvore como quiser; observe e descreva sua forma e suas fun ções, sua gênese e as leis a que está sujeita. Com tudo isso você ainda não terá penetrado na sua essência. Olhar as coisas através do intermediário dos nossos pensamentos é um ato de cristalomancia; aso imagens que éinduzimos são parte da verdade, mas que vemos uma imagem mental, não as coisas em si. Correndo rapidamente pelo estreito caminho do tempo, o homem e o mundo não têm parada, não têm presente em que possam conhe cer-se. O pensamento nunca é co-temporal com o seu objeto, porque segue ao processo da percep ção que ocorreu antes. Em nossos pensamentos
ocupamo-nos sempre depois de objetos póstumos. oEntran do em ação sempre da percepção, pensa mento dispõe apenas de lembranças. Seu objeto é algo que já passou, como um instante antes do
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último: tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe. O conhecimento é, portanto, uma série de reminis cências . E como nossa percepção é sempre incom pleta e cheia de omissões, nosso conhecimento é uma combinação subseqüente de recordações casuais. Raramente descobrimos. Antes de pensar recorda mos. Vemos o presente à luz do que já conhece mos. Constantemente comparamos ao invés de pe netrarmos e nunca estamos inteiramente livres de preco nceito s. A memória é, muitas vezes, um obstá culo à experiência criativa. O pensamento está preso a palavras, a nomes e os nomes só descrevem aquilo que as coisas têm em comum. O ser individual e único realmente não é captado pelos nomes. E nossa mente está necessariamente comprometida com palavras, com nomes. Esta é outra razão pefii qual raramente encontramos à essência. Nãonos conseguimos sequer dizer acesso adequadamente o que escapa. Será necessário vencer uma pilha de idéias para aprender que nossas soluções são enigmas, que nos sas palavras são indiscrições? Um mundo de coisas está aberto a nossas mentes, mas, muitas vezes, pa rece que a nossa mente é uma peneira em que procuramos segurar o fluxo da realidade, e há mo mentos em que uma a mente é arrastada do inexplorável, corrente contra apela qualcorrente geral mente se luta, mas que nunca retrocede. A disparidade entre alma e razão A consciência do desconhecido é anterior à
consciência do conhecido. do Não conheci mento desenvolve-se no soloA doárvore mistério. são os conceitos, as palavras, os nomes que estão mais próximos da nossa mente, mas o inominável, o 19
inexprimível, o ser. Se é verdade que o dado, o aparente o que próximexperiência o da nossaé experiência, há da nossa o outro, o remoto, dentro está por cima do qual passamos. Os conceitos são deli ciosos petiscos com que procuramos saciar nossa admiração indagadora. Tentemos pensar a própria realidade, esqueçamos o que conhecemos e senti remos logo dolorosa fome. Não devemos esperar que os pensamentos nos dêem mais do que con têm. Alma e razão são a mesma coisa.a Os con não assemelhamo-nos ceitos e nós mesmos estranhos que em algum ponto do tempo interminável se en contraram e se tornaram amigos. Muitas vezes se unem e muitas vezes se afastam um do outro, para benefício de ambos. Quanto mais incisiva a cons ciência do desconhecido e mais vigorosa nossa per cepção imediata da realidade, tanto mais aguda e inexorável se torna a nossa verificação dessa dis paridade. Como o simplório identifica a aparência com a realidade, assim o superculto identifica o exprimível com o inefável, o lógico com o metalógico, os conceitos com as coisas. E assim como o pensa mento crítico está cônscio da sua não identidade com as coisas, assim nossa alma em sua auto-reflexãodistinta leva nodocoração umalógico consciência de sipensa mes ma, conteúdo dos seus mentos . A consciência do inefável é o ponto em que deve começar a nossa indagação. A filosofia, se duzida pela promessa do conhecido, abandonou mui tas vezes os tesouros do incompreendido mais pro fundo aos poetas e aos místicos, embora sem o sen
tido do inefável não possa haver problemas meta físicos, nem consciência do ser como ser, do valor como valor. A pesquisa da razão termina no horizonte do 20
conhecido. Na imensa amplidão que se estende para além dele só o sentido do inefável consegue planar. Só ele sabe o caminho que leva para o que está fora da experiência e do entendimento.. Nenhum dos dois é anfíbio: a razão não pode ir além da praia do seu horizonte e o sentido do inefável está fora do seu ambiente no terreno em que se medem e se pesam as coisas. Não deixamos as praias do conhecido em bus ca de aventuras ou suspense por causa da incapa cidade da razão em responder a'nossas perguntas. Partimos porque nossa mente é como que uma fantástica concha marinha: quando lhe colamos os ouvidos escutamos o perpétuo murmúrio das ondas do além. Cidadãos de dois reinos, temos que sujeitar-nos a dupla lealdade: sentimos^ o sentido do ine fável num reino, nomeamos e exploramos a reali dade noutro. Estabelecemos um sistema de refe rências entre os dois, mas não conseguimos preen cher o vazio. Acham-se tão longe e ao mesmo tempo tão pertos um do outro como o tempo e o calen dário, o violino e a melodia, a vida e o que vem depois do último suspiro. Perscrutamos os fenômenos tangíveis com a ra zão, e com o sentido do inefável auscultamos o sagrado e indemonstrável. A força que inspira a disposição para o sacrifício de si próprio, as idéias que nutrem a humildade dentro da mente, e, além dela, não são idênticas às artes do lógico. A pu reza sobre a qual nunca deixamos de sonhar, as coisas tácitas que amamos insaciavelmente, a visão do bem pelo qual morremos ou nos entregamos vivos — são realidades que nenhuma razão con
segue dominar. É o inefável, do qual haurimos o gosto do sagrado, a felicidade do imperecível.
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A admiração, base do conhecimento
Razão e admiração O maior empecilho ao conhecimento é nosso ajustamento a noções convencionais, a clichês men tais . A admiração ou o maravilhamento radical, isto é,é oo estado de desajustamento a palavras autên e no ções, pré-requisito para uma consciência tica daquilo que é. Colocando-nos frente a frente ao ser como ser, percebemos que podemos olhar o mundo com duas faculdades — com a razão e com a admiração. Me diante a primeira, procuramos explicar ou adaptar o mundo aos nossos conceitos, com a segunda, tentamos nossa menteestáao antes mundo. A raizadaptar do conhecimento na admira ção que na dúvida. A dúvida segue o conhecimento como um estado de vacilação entre duas visões contrárias ou contraditórias, como um estado em que a fé que tínhamos abraçado começa a tornarse hesitante. Coloca em dúvida os cálculos da mente sobre a realidade e exige um exame e ve
rificação do quea está depositado Em outras palavras, função da dúvidanaé mente. a de auditor das contas da mente com relação à realidade. Não se preocupa propriamente com a realidade em si.
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Dirige-se ao conteúdo da percepção e não à per cepção em si. A dúvida não se aplica àquilo de que temos consciência imediata. Não duvidamos que existi mos ou que estamos vendo alguma coisa. Apenas perguntamos se conhecemos o que vemos ou se o que vemos é um reflexo verdadeiro do que existe na realidade. Portanto a dúvida surge depois que a percepção se cristalizou numa concepção. A dúvida é, pois, uma atividade interdeparta mental da mente. Primeiro vemos, a seguir julga mos e formamos uma opinião e depois duvidamos. Em outros termos, duvidar é pôr em questão aquilo que um instante atrás aceitamos como posIvelmente verdadeiro. A dúvida é um ato de ape lação, um processo pelo qual um julgamento lógico é transportado da memória para a faculdade crí tica da mente para um reexame. Conseqüente mente, devemos primeiro julgar e aderir a uma fé em nosso juízo para depois podermos duvidar. Mas se devemos conhecer para podermos questionar, se devemos alimentar uma fé para depois pô-la em dúvida, quer dizer que a dúvida não pode ser o início do conhecimento. A admiração vai além do conhecimento. Não duvidamos que duvidamos, mas admirados estamos admirados de nossa capacidade de duvidar, de nossa capacidade de admirar. O indolente reprovará a dú vida; o cego será contra a admiração. A dúvida pode chegar a um fim, a admiração permanecerá sempre. A admiração é um estado da mente em que não olhamos a realidade através da treliça de nosso conhecimento memorizado; um estado em que
nada se supõeapenas conhecido. Não conhecimentos podemos viverem es piritualmente repetindo prestados ou herdados. Indaguemos de nossa alma o que ela conhece, o que supõe como certo. Dir23
-nos-á simplesmente que nada é suposto como certo, que cada coisa constitui uma surpresa, que o ser ê inacreditável. Estamos maravilhados pelo simples fato de vermos as coisas, maravilhados não só diante de valores e coisas particulares, mas diante do ines perado do ser como tal, diante do fato de ser sim plesmente .
A filosofia começa com a admiração Uma filosofia que começa com a dúvida radical termina em desespero radical. Foi o princípio do dubito ut intelligam que preparou o terreno para os modernos evangelhos do desespero. “A filosofia começa na admiração” (Platão, Theatetus, 155 D), num estado da mente que desejaríamos chamar taumutismo (de thaumatzein — ■ duvidar), enquanto distinto do ceticismo. Antes de conceituarmos o que percebemos, já estamos maravilhados para além das palavras, para além das dúvidas. Podemos duvidar de tudo, menos de que estamos dominados pelo maravilhoso. Quan do estamos em dúvida fazemos perguntas, quando tomados pela nem sequer sabemos como perguntar. As admiração dúvidas podem ser resolvidas, a ad miração radical nunca poderá ser extinta. Não há no mundo nenhuma resposta à admiração radical do homem. Sob o mar de nossas teorias e explica ções científicas encontra-se o abismo primordial da admiração radical. A admiração radical tem um alcance mais am
plo que ato qualquer outro atoou humano. Enquanto qualquer de percepção conhecimento tem como objeto um segmento selecionado da realidade, a admiração radical se refere só aquilo que vemos,
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mas também ao próprio ato de ver e a nós pró prios que vemos e estamos admirados diante de nossa capacidade de ver. O mistério dentro da razão O inefável não é constituído por um enigma particular para a mente, como, por exemplo, a causa das erupções vulcânicas. Não precisamos ir até o fim do raciocínio para encontrá-lo*. O inefável, co mo dissemos acima, é algo com que nos defronta mos em toda parte e sempre. Até o próprio fato do pensamento confunde o nosso pensamento. Co mo todo fato inteligível, em virtude de ser um fato, está impregnado de desconcertante indiferença. Não é verdade que o mistério reina dentro do ra ciocínio, dentro da percepção, dentro da explicação? Onde está a autocompreensão capaz de revelar a maravilha do nosso próprio pensamento, capaz de explicar o prodígio de esvaziarmos o concreto com a magia da abstração? Que fórmula poderia explicar e resolver o enigma do próprio fato do pensamento? Não dominamos nem o pensamento, nem a coisa; podemos apenas combinar a mágica sutil dos dois. O que nos enche de radical admiração não são as relações em que todas as coisas se inserem, mas o fato de que até o mínimo de percepção é um máximo de enigma. O fato mais incompreensível é o próprio fato de compreendermos. É impossível sentir-nos à vontade e repousar sobre idéias que se tornaram hábitos, sobre teorias “enlatadas” em que são conservadas as nossas per
cepções ou as interesses de outras na pessoas. Nunca deixar nossos caixa-forte daspoderemos opiniões, nem delegar seu valor a outros e assim atingir in trospecções por meio de outros. Devemos manter 25
vivai a nossa própria admiração, nossa própria viva cidade. E se falhamos em nossa busca de introspec ção, isso não ocorre porque não possa ser atingida, mas porque não sabemos como viver ou não sabe mos defender-nos da tendência narcisística da mente de enamorar-se de sua própria reflexão, tendência que corta o pensamento das suas raízes. A árvore da ciência e a árvore da vida estão enraizadas no mesmo solo. Mas, enquanto brinca com os ventos e os raios de sol, a árvore da ciência, muitas vezes, só apresenta folhas brilhantes sem seiva, ao invés de produzir frutos. Podemos dei xar que murchem as folhas, mas a seiva nunca de veria secar. O que vale a sutil especulação sem a introspec ção anterior da realidade sagrada da vida, intros pecção que procuramos traduzir para os termos ra cionais da para e asvisões maneiras de vida da religião, parafilosofia, as formas da arte? Manter o impulso e o fluxo dessa introspecção em todos os pensamentos, de modo que nem mesmo em nos sas dúvidas cesse de fluir sua seiva, significa haurir do solo de tudo o que é criativo na civilização e na religião, um solo de que somente as flores arti ficiais podem prescindir. O sentido do não silencia a pesquisa do pensamento, mas,inefável ao contrário, perturba o aco modado e desperta nossa impressionabilidade estan cada. A penetração no inefável leva às profundezas do pensamento e não ao olhar ignorante do animal. Para as mentes daqueles que não cometem o erro universal de tomar como conhecido um mundo que é desconhecido, de colocar a solução na frente do
enigma, a o abundância exprimível jamais poderá substituir mundo do doinefável. As almas enfocadas, que não vacilam à pri meira vista, recorrendo a palavras e noções prontas 26
de que a memória está repleta, conseguem ver as montanhas como se estas fossem gestos de exaltação. Para elas toda visão é inesperada, enquanto os olhos embotados que nas trevas das coisas não distinguem a luz, só percebem séries de clichês. Experiência sem expressão Andamos constantemente à procura das palavras e constantemente elas nos fogem. Mas as maiores experiências são aquelas para as quais não temos expressão . Viver só naquilo que podemos exprimir é rolar na areia, ao invés de escavar a terra. Como podemos ignorar o mistério em que estamos envol vidos, ao qual estamos presos pela nossa própria existência? Por que permaneceríafaos surdos à pul sação almas? cósmica Oque sutilmente nossasmiste pró prias queecoa é mais íntimo em é mais rioso. Só a admiração é a bússola que pode dirigir-nos ao pólo do sentido das coisas. Quando co meço o próximo segundo da minha vida, enquanto escrevo estas linhas, estou consciente de que ser movido pelo enigma e parar — e não fugir e es quecer —■é que é viver no centro da realidade. Tornar-se Aconsciente inefávelà écurva separar-se das palavras. essência, adotangente da ex periência humana, está além dos limites da língua. O mundo das coisas que percebemos é apenas um véu. Sua palpitação é música, seu ornamento ciê n cia, mas o que oculta é inescrutável. Seu silêncio permanece intato; não há palavras que possam mo vê-lo .
vezessobre desejaríamos o mundo gritasse e nosÀsfalasse aquilo queque o enche de grandeza. Às vezes gostaríamos que o nosso próprio coração falasse sobre aquilo que o enche de admiração. 27
A raiz da razão Devemos tudo o que conhecemos ao pensa mento discursivo? Será o nosso poder de silogismo responsável por tudo? O raciocínio não é o único motor da vida mental. Quem não sabe que em nossas convicções está contido mais do que foi cristalizado em conceitos definíveis? É um equívoco supor que em nossa consciência não há nada que antes não tenha estado na percepção ou na razão analítica. Boa parte da sabedoria inerente à nossa consciência é a raiz e não o fruto da razão. Em nossa alma há mais canções do que a lín gua pode exprimir. Quando separada das suas in trospecções srcinais, a mente discursiva cai na mi séria e quando descobrimos que os conceitos não trazem nenhum alívio à nossa ardente consciência e sede de totalidade, voltamos à srcem do pensa mento, ao mar imenso que está além do mundo lógico. Assim como a mente é capaz de formar conceitos com base na percepção sensível, pode também derivar introspecções a partir da dimensão do inefável. As introspecções são as raízes da arte, da filosofia e da religião e devem ser reconhecidas como fatos fundamentais da vida mental. Os cami nhos do pensamento nem sempre coincidem com os aprovados pelos lógicos tradicionais. Dificilmen te o lógico tem acesso ao reino em que habita o gênio, em que age a introspecção.
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O mundo é uma alusão
Uma introipecção cognitiva Não é por meio de vias indiretas, por analogia ou inferência, que tomamos consciência do inefá vel. Não podemos pensá-lo in absentia. É uma rea lidade sentida como algo imediatamente dado me diante uma introspecção infinita \ inderivável, ló gica psicologicamente anterior ao juízo, àuma assimi lação e dos objetos, às categorias mentais; in trospecção universal de um aspecto objetivo da rea lidade, de que todos os homens são sempre capa zes. Não são as palavras vazias da ignorância, mas o clímax do pensamento, conatural ao clima que predomina no ápice do esforço intelectual, em que surgiram obras como os últimos quartetos de Beethoven. que É uma introspecção cognitiva, definitivo po is a cons ciência evoca é um acréscimo à mente. Uma percepção universal O sentido do inefável não é uma faculdade
esotérica, uma capacidade de que tão estão dota dos todos mas os homens; é potencialmente comum como a vista ou a capacidade de formar silogismos. Pois assim como o homem está dotado da faculdade 29
de ^onhecer certos aspectos da realidade, possui também a capacidade de conhecer que há mais do que aquilo que ele conhece. Sua mente está rela cionada com o inefável tanto quanto com o exprimível e a consciência de sua admiração radicai é tão universalmente válida como o princípio de con tradição ou o princípio de razão suficiente. Da mesma forma como as coisas materiais ofe recem resistência aos nossos impulsos espontâneos, sendo esta sensação de resistência que nos faz crer que as coisas são reais e não ilusórias, também o inefável oferece resistência às nossas categorias. O que o sentido do inefável percebe é algo objetivo que não pode ser concebido pela mente ou captado pela imaginação ou pelo sentimento, algo real que pela sua própria essência se situa além do alcance do pensamento. Estamos primaria mente mesmos, de nosso aspecto conscientes interno, masnãode de umanóssituação transubjetiva em relação à qual falha a nossa capacidade. Subje tiva é a maneira e não o objeto da nossa percepção. O que percebemos é objetivo no sentido de ser independente da nossa percepção e corresponder a ela. Nossa admiração radical corresponde ao mis tério, mas não o produz. Nem você nem eu inven tamoso amistério grandezadodonascimento céu, nem edotamos o homem com da morte. Não criamos o inefável, encontramo-lo. Nossa consciência dele está potencialmente pre sente em cada percepção, em cada ato de pensar, em cada ato de gozar ou apreciar a realidade. Tratando-se de um fato incontestável, nenhuma teo ria humana seria completa se ele fosse omitido.
E atestado por exploradores intrépidos e triunfan tes que, depois de terem alcançado o cume da mon tanha, são mais humildes que antes. Subjetiva é a ausência e não a presença da ad30
miração radical. Esta falta ou ausência é o sinal de uma mente indiferente e desatenta, de um sen tido não desenvolvido para as profundezas das coisas. O inefável pode, portanto, ser verificado por todo homem não sofisticado, que chegar até ele através de sua autêntica experiência própria. É por isso que todas as palavras que aludem ao ine fável podem ser compreendidas por todos. Sem o conceito do inefável seria impossível explicar a diversidade das tentativas do homem pa ra expressar ou pintar a realidade, a diversidade das filosofias, das visões poéticas ou das represen tações artísticas, a consciência de que ainda nos en contramos no começo das nossas tentativas de di zer o que vemos em torno de nós. Caracterizamos a percepção :4o inefável como uma percepção universal. Mas se seu conteúdo não é comunicável, como sabemos que ele é o mesmo em todos os homens? Com relação a isso, podemos dizer que se so mos incapazes de definir ou descrever o inefável somos capazes de indicá-lo. Mais por meio de ter mos indicativos que por meio de termos descritivos, podemos transmitir aos outros aqueles aspectos da nossa percepção que são conhecidos a todos os ho mens . Também a percepção da beleza não é expressa por meio de definições e porque o que sentimos não é idêntico sob todos os aspectos, as descrições apresentadas divergem tanto. Contudo, supomos que todas querem dizer essencialmente a mesma coisa. E por isso que o leitor reconhece nas des crições a essência de uma percepção de que ele
participa, ainda que as descrições discordem bas tante .
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O caráter alusivo do ser O inefável não é sinônimo de desconhecido ou de não descrito. Sua essência não consiste em ser um enigma, em estar oculto atrás da cortina. O que encontramos em nossa percepção do su blime, em nossa admiração radical, é uma sugestão espiritual da realidade, uma alusão ao sentido trans cendente. O mundo na sua grandeza está cheio de uma irradiação espiritual, para a qual não temos nome nem conceito. Somos tomados de admiração pela consciência da imensa preciosidade do ser; uma preciosidade que não é objeto de uma análise, mas causa de admiração. É inexplicável, sem nome, não podendo ser especificada ou colocada em nenhuma das nossas categorias. Apesar disso, temos uma certeza sem : é areal sem cada ser exprimível. pode conhecimento ser comunicada outros; um deve Não encontrá-la por si mesmo. Nos momentos em que sentimos o inefável estamos tão certos do valor do mundo como o estamos da sua existência. Deve haver um valor pelo qual valeu a pena o mundo ter vindo a existir. Podemos ser céticos quanto à questão se o mundo é perfeito. Entretanto, mesmo admi tindo está a suafora imperfeição, de sua gran deza de toda aa preciosidade dúvida. Assim, se inefável é um termo de negação que indica uma limitação de expressão, seu conteúdo é intensamente afirmativo e denota uma alusão a algo que tem sentido, mas para o que não temos meios de expressão. Geralmente consideramos que algo tem sentido quando podemos exprimi-lo, e
dizemos que alguma coisa é sem sentido quando não podemos exprimi-la. Entretanto, a equiparação daquilo que tem sentido com o que é exprimível ignora um vasto campo da experiência humana e 32
é refutada por nosso sentido do inefável, que é a consciência de uma alusão a uma realidade signi ficativa sem capacidade de expressá-la. Que o sentido do inefável seja uma consciên cia de algo significativo é indicado pelo fato de que a resposta interna que evoca é o temor ou a reverência.
3 - O homem não está só
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4 I' Ser é significar
A universalidade da reverência A reverência é uma atitude tão conatural à consciência humana como o medo diante do perigo ou a dor diante do ferimento. A faixa dos objetos reverenciados pode variar, mas a reverência em si mesma é característica do homem em todas as civi lizações. Analisemos exemplocuja bastante comum e talvez universal de um tal atitude estrutura in terna se revela como sendo a mesma em todos os exemplos — qualquer que seja o objeto reveren ciado. Obviamente, jamais poderemos escarnecer das estrelas, zombar da aurora ou mofar da totali dade do ser. A grandeza sublime evoca um res peito sem hesitação, sem titubeio. Longe do imen so, enclaustrados nossos próprios po demos desdenhar em e ultrajar qualquerconceitos, coisa. Mas quando nos encontramos entre o céu e a terra, so mos silenciados pela visão. . . Por que é impossível ser arrogante diante do universo? Será por causa do medo? As estrelas não poderiam fazer-nos nenhum mal se nós as ridicula rizássemos . Será por causa de um temor herdado
de nossos antepassados, superstição atávica queprimitivos deveria ser esquecida?uma Ninguém sem preconceito é capaz de declarar em presença da grandeza que tal reverência é fátua ou absurda.
Será uma forma mais elevada de egoísmo? Nenhu ma pessoa sã poderia pensar em venerar-se a si mesma. A reverência é sempre para outra coisa; não há auto-reverência. Não é a ignorância a causa da reverência. O desconhecido como tal não nos enche de respeito. Nem temos por outro lado, sentimentos de respeito pela lua ou por aquilo que acontecerá amanhã. Tampouco é o poder ou a massa que desperta tal atitude. Não é o pugilista ou o milionário, mas o ancião frágil ou nossa mãe que achamos veneráveis. Não reverenciamos um objeto por sua beleza, uma afirmação por causa da sua consistência lógica ou uma instituição por sua importância. Menos ainda reverenciamos o conhecido, por que o que é conhecido está ao nosso alcance e só reverenciamos aquilo que nos supera. Não reve renciamos a regularidade das estações do ano, mas aquilo que as torna possíveis; não a máquina de calcular, mas a mente que a inventou; não' o sol, mas o poder que o criou. Reverenciamos aquilo que é extremamente precioso, moral, intelectual ou espiritualmente. A reverência é uma das respostas do homem à presença do mistério. É por isso que em contradistinção às outras emoções, ela não tem pressa em ser expressa. Quando estamos dominados pelo res peito da admiração, nossos lábios não procuram fa lar, cientes de que se falássemos nos degradaríamos. Em tais momentos a fala é uma abominação. Só queremos parar, ficar tranqüilos para que o mo mento permaneça. É como escutar uma música su blime que nos brota do fértil sok» da tranqüilidade;
somos dominados pordas elacoisas sem que sermos capazes de apreciá-la. O sentido reverenciamos é irresistível e está além do alcance do nosso enten dimento. Não possuímos categorias para ele e dis-
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torcáto-íamos se tentássemos avaliá-lo segundo nossa escala de valores. Supera nossos critérios de ma neira essencial. A reverência — um imperativo categórico Pode-se levantar a objeção de que uma reação psicológica não constitui evidência de um fato on tológico e que nunca podemos inferir um objeto em si de um sentimento que uma pessoa tem a respeito dele. O sentimento de respeito e admi ração pode, muitas vezes, ser o resultado de um fato comum mal entendido. Podemos ser invadi dos de espanto diante de um espetáculo artificial ou fenômeno de poder maligno. A objeção é, evi dentemente, válida. Mas acontece que não inferi mos o sentimento real de respeito e admiração, e sim a certeza intelectual de que diante da grandeza e do mistério da natureza devemos responder com o respeito da admiração. O que inferimos não é um estado psicológico, mas uma norma fundamental da consciência humana, um imperativo categóricoEfetivamente, a validade e a necessidade do respeito de admiração gozam de um grau de certeza que não é superado nem pela certeza axiomática da geometria. Não sentimos o mistério por sentir, mas alguma necessidade de senti-lo, assim como não notamos o oceano ou o céu por termos desejo de vê-los. O sentido do mistério não é um produto da nossa vontade. Pode ser suprimido pela vontade, mas não é gerado por ela. O mistério não é o produto
de uma necessidade, é um fato. O impulso do mistério não é um pensamento em nossa mente, mas uma poderosíssima presença acima da mente. Ao afirmarmos que o inefável é 36
espiritualmente real, independente da nossa percep ção, não estamos dotando de existência uma mera idéia, tal como não o fazemos ao afirmarmos: “Isto é um oceano”, quando somos arrastados por suas ondas. O inefável exi ste antes de formarmos uma idéia dele. O seu próprio espírito é testemunha certa para o homem de que o mistério não é um absurdo, que, ao contrário, as coisas conhecidas e perceptíveis estão carregadas de significação extasiante, galvanizante. A significação fora da mente Nossa afirmação de que há nas coisas um sen tido que tem o poder de inspirar um respeito de admiração na mente humana imjllica num princípio que parecer surpreendente para muitos res: épode a afirmação de que a significação é algoleito que ocorre fora da mente nas coisas objetivas — inde pendentemente da consciência subjetiva que dela se tenha. Na verdade, sustentamos que as signifi cações, tal como os fatos, são independentes da estrutura da mente humana e existem com ou den tro das coisas e acontecimentos. Na análise abstrata distinguimos e dividimos fato juntos. e a significação, mas na percepção real eles o estão Não exis tem fatos nus, neutros. O ser como tal é incon cebível; está sempre dotado de significação. A significação não é um presente que o ho mem dá à realidade. Supor que a realidade é caó tica, desprovida de significação, enquanto o homem não se aproxima dela com o toque mágico da sua
mente, a negar quePensamento a natureza ése desco com porta deequivaleria acordo com as leis. berta e não invenção. Na percepção do homem comum os fatos apare37
cem com um mínimo de significação, enquanto para ocomunicam-lhe artista superabundam mais significação em significação. do que eleAsé coisas capaz de absorver. A vida criativa da arte, da ciência e da religião é uma negação da idéia de que o ho mem é a fonte da significação. Este apenas em presta as suas categorias e meios de expressão para a significação que existe. Só aqueles que perderam o sentido da significação podem pretender que a auto-expressão e não a expressão do mundo é a finalidade da vida. Suposição e certeza de significação A suposição de uma significação, a certeza de que tudo o que existe deve valer a pena, de que tudo o que está é real ser todos compatível com pen um pensamento, na deve raiz de os nossos samentos, sentimentos e volições. É o oráculo ou o axioma da razão, em cuja justificação apostamos tudo que possuímos. Não se pode fugir dela senão pela autodestruição e pela vontade da loucura. Sem pre à procura de alguma qualidade intrínseca na realidade que manifeste a sua significação, temos certeza que oouoculto desconhecido se revelará de absurdo sem esentido. Há umanunca precio sidade transcendente que supera nosso poder de apreciação e da qual nossos valores mais elevados são apenas uma indicação. O mundo resplandece com esta preciosidade; sentimo-la onde quer que estejamos, com nossos corações fracos ou incapazes de sondá-la.
Devemos condenar essa decerteza como uma pre sunção irrefletida pelo fato não ser reivindicada constantemente? Não será nossa mente que deve ser acusada de entender mal sua própria suposição,
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por causa dos seus compromissos com algumas das suas divagações e noções excêntricas distorcendo assim o que srcinalmente era uma autêntica in trospecção? A idéia de que a significação suprema deve anunciar-se a si mesma como um relógio, a tendência de lançar ao mundo as concepções antropocêntricas preferidas, criaram uma caricatura do mistério. O escândalo de tentar adaptar a signifi cação às nossas mentes, de procurar constantemen te o valor que tem o universo para nós, pode efe tivamente destruir a nossa capacidade de compreen são da significação. A ciência — uma entrada no infinito A ciência não procura mudado mistério. Ape nas descreve e explica a maneira como se compor tam as coisas em termos de necessidade causal. Não nos dá uma explicação em termos de necessi dade lógica — por que as coisas devem existir, e por que as leis da natureza devem ser como são. Não sabemos, por exemplo, por que certas combi nações de determinada espécie formam uma conste lação que se refere aos fenômenos da eletricidade, conhecimento enquanto outras de aos comofenômenos funciona do o mundo magnetismo. não nos O dá familiaridade com sua essência nem compreensão da sua significação, assim como o conhecimento da fisiologia e psicologia geral não nos confere nenhu ma familiaridade com o Dalai Lama que nunca vimos. Querer penetrar o mistério com nossas cate
gorias é o aomesmo querer morder parede. A ciência invés que de reduzir, alarga uma o campo do inefável. Nossa admiração radical é intensificada e não reduzida pelo avanço do conhecimento . A 39
teoria da evolução e adaptação das espécies não tira a maravilha do organismo . Homens como Kepler e Newton que estiveram face a face diante da realidade do infinito teriam sido incapazes de cunhar uma frase dizendo que os céus cantam a glória não de Deus, mas de Kepler e de Newton, ou o verso: “Glória ao homem nas alturas! por que o homem é o senhor das coisas” . A pesquisa científica é uma entrada no infi nito, não problema, um caminho saída. Quando resolve mos um outrosem maior se apresenta diante de nós. Uma resposta gera uma multidão de novas perguntas. As explicações são apenas indicações de enigmas maiores. Cada coisa sugere algo que a transcende. O pormenor indica o todo, o todo a sua idéia, a idéia a sua raiz misteriosa. O que parece ser um centro é só um ponto na periferia de outro cen tro. A totalidade de uma coisa é efe tivamente a infinitude. Todo o conhecimento é apenas uma partícula Não há nenhum pensador verdadeiro que não esteja de consciente de quesemseufim, pensamento uma parte um contexto que suas é idéias não são tiradas do ar. Toda a filosofia não é senão uma palavra numa sentença, assim como para um compositor a sinfonia mais completa é apenas uma nota numa melodia inesgotável. Só quem estiver intoxicado com suas próprias idéias, é que pode considerar o mundo do espírito como um solilóquio,
os ideais, Os os ricos pensamentos, melodias suas sombras. de espíritoas não sabem como ser orgu lhosos a respeito daquilo que apreendem, porque entendem que as coisas que compreendem são ir-
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mpções de inconcebível significação; que não há idéias solitárias vagando pelo vazio para serem to madas e apropriadas. Ser implica significar, porque todo ser é representante de algo que é mais que ele próprio. Porque aquilo que é visto, que é co nhecido, está pelo não visto, pelo não conhecido. Até a fórmula matemática mais abstrata a que pos samos reduzir a ordem do universo levanta o pro blema: o que significa? A resposta necessariamente será: representa a majestade do (jue é mais que a própria fórmula. A qualquer espécie do pensa mento que possamos chegar, enfrentamos sempre a significação transcendente. O mistério do mundo ou é um caos sem ne nhum valor ou está cheio de uma significação abso luta além do alcance de mentes fin itas. Em outras palavras, ou é absolutamente serifc sentido ou abso lutamente pleno de sentido, ou demasiadamente in ferior ou demasiadamente superior para ser objeto da compreensão humana. Mas como saberíamos do mistério do ser se não mediante nosso sentido do inefável? É este sentido que nos comunica a supremacia e a gran deza do inefável juntamente com o conhecimento da sua realidade. Assim não podemos negar a su perioridade do inefável sobre nossas mentes, em bora pela mesma razão, não possamos prová-lo. Por outro lado, o fato de sermos capazes de senti-lo e de sermos conscientes da sua existência é uma indicação certa de que o inefável está em certa relação com a mente humana. Por isso, não deveríamos chamá-lo de irracional, algo desprezível como um resíduo de conhecimento, como obscuro
ção. O inefável remanescente de especulação é concebívelindigna apesar de de nossa ser incogaten noscível. 41
Será o inefável uma ilusão? Contra nossa afirmação sobre o inefável pode-se argumentar da seguinte maneira. Embora admi tamos que existem certas qualidades significativas na realidade, certamente há outras qualidades sig nificativas que, sendo consideradas reais por nós, sáo meras ilusões. Assim, por exemplo, não sus tentamos que exista na realidade algo que corres ponda às imagens grotescas dos demônios adorados nos cultos religiosos primitivos. Não será também o inefável uma mera palavra, um puro simulacro? O fato da significação para nós prova que existe algo significado por ela? Qual a garantia de que a consciência do inefável é mais do que uma im pressão subjetiva? Admitamos a teoria de que se trata de um sonho que se desenvolve nas frontei ras da mente, o fruto mágico de um pensamento intenso, mas ilusório! Mas o caminho fácil e ele gante oferecido por tal teoria é falaz e escorrega dio. Por que haveria o homem de desejar ou pos tular uma maravilha que não consegue dominar nem compreender, que o enche de terror e humildade? As teorias são sempre grandiosas, mas o seu teste é feito quando aplicadas. Pode-se imaginar que uma dia: academia internacional proclame al gum não há nada dignodedesábios reverência; o mis tério da vida, do céu e da terra não passa de uma ficção da mente? Afirmar que as mentes mais sensíveis de todos os tempos foram vítimas de uma ilusão; que a religião, a poesia, a arte e a filosofia nasceram de uma auto-ilusão é sofisticado demais para ser ra
zoável. Lançando descrédito evidentemente sobre o gêniodes do homem, semelhanteo afirmação qualificaria nossas próprias mentes para fazer qual quer assertiva. É verdade que a história da religião 42
está repleta de exemplos de ídolos e símbolos que tinham significado para certos povos e não tinham sentido para outros. Mas será que realmente não significam, não estão indicando nada? Podemos apontar certos complexos psíquicos que presumivel mente influenciaram o desejo de produzir esses ído los primitivos bem como o seu ridículo e a sua per versidade. Mas a sua rejeição como produtos vo luntários da mente, não invalida o sentido de mis tério implícito na necessidade de produzi-los e ado rá-los. O erro do adorador de ídolos começa no processo da expressão do seu sentido de mistério, quando começa a relacionar o transcendente com suas necessidades e idéias convencionais e tenta es pecificar aquilo que está além da sua percepção. Nesse processo entram em jogo motivos que nada têm a ver com sua percepção original. Começa a olhar o instrumento como fim, o temporal como o último, distorcendo assim tanto os fatos que adora como a qualidade do divino que lhes atribui. Ainda precisa ouvir as palavras: “Não farás imagem escul pida nem qualquer outra semelhante”. Nada pode servir como símbolo ou semelhança de Deus nem mesmo o universo. Numa agradável tarde de verão um famoso professor admirava o céu. Sua filhinha voltou-se para ele e perguntou-lhe: “O que é que há acima do céu?” O pai deu-lhe uma resposta “científica”: “Éter, minha filha” . Ao que a menina exclamou: “Éter!” E levou a mão ao nariz...
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Conhecimento por apreciação
Uma percepção no fim da percepção Raramente temos consciência da tangente do além no meio da roda-viva da experiência. Em nos sa paixão pelo conhecimento, nossas mentes apossam-se das riquezas de um mundo irresistível e, carregando te deixamos nossos a terra limitados para nos espólios, perdermosapressadamen no redemoi nho dos nossos próprios conhecimentos. O horizonte do conhecimento perde-se na ne blina produzida pelos caprichos da moda e das fra ses feitas. Recusamo-nos a tomar conhecimento da quilo que se encontra fora do nosso campo de vi são, contentando-nos em converter as realidades em opiniões, os e as idéias numa multidão de mistérios palavras. em O dogmas que é extraordinário parece-nos um hábito, a aurora. Uma rotina diária da natureza. Mas às vezes despertamos. Cami nhando na sucessão interminável de dias e noites, sentimo-nos inesperadamente invadidos de solene ter ror, de um sentimento de que a nossa sabedoria está abaixo do pó. Não conseguimos suportar o
doloroso do palavras, pôr do sol. De que No valem, então, as esplendor opiniões, as os dogmas? con finamento dos nossos gabinetes de estudo, nosso conhecimento parece-nos um foco de luz. Mas quan44
do vamos à porta que abre para o infinito, perce bemos que todos os nossos conceitos não passam de partículas de pó luminoso que povoam um raio de sol. Para alguns de nós as explicações e as opi niões são sinais da partida do maravilhoso, como um toque de recolher indicando o fim da percep ção e da pesquisa. Mas aqueles para os quais a realidade é mais cara que a informação, a vida mais forte que os conceitos e o mundo mais que as pa lavras, nunca serão levados à ilusão de pensar que o que sabem e percebem é o núcfeo da realidade. Somos capazes de explorar e de rotular as coisas com belas palavras, mas quando deixamos de su jeitá-las às nossas finalidades e de impor-lhes as formas da nossa inteligência, ficamos desorientados e incapazes de dizer o que as coisas são em si mesmas. É a sensação de sermo^ incapazes de ex perimentar algo com que nos defrontamos: grande demais para poder ser compreendido. A música, a poesia, a religião, todas iniciam a alma no encon tro com um aspecto da realidade para o qual a razão não tem conceitos e a língua não tem pa lavras . O modo da utilidade A maior parte da nossa atenção vai para a uti lidade, para aquilo que nos traz vantagens e que nos possibilita explorar os recursos do nosso pla neta. Se nossa filosofia fosse uma projeção do com portamento real do homem, deveríamos definir o valor da terra como uma fonte de abastecimento
para nossasEntretanto, indústrias, como e o oceano de peixes. vimos, como existe um maisviveiro que um aspecto da natureza que chama nossa atenção. Vamos ao encontro do mundo não só segundo o 45
modo da utilidade, mas também segundo o modo da admiração. No primeiro caso encontramos in formações para dominar; no segundo aprofundamos nossa apreciação para responder. O poder é a lin guagem da utilidade; a poesia, a linguagem da ad miração . Quando procuramos ampliar nossos conheci mentos para satisfazer nossa paixão de poder, o mundo torna-se alheio e estranho. Os conhecimen tos que adquirimos em nosso anseio de invocar a apreciação são um meio de descobrir nossa união com as coisas. Com a informação estamos sós; na apreciação estamos em companhia de todas as coisas. O desejo do maravilhoso À medida que a civilização avança, decresce quase necessariamente o sentido do maravilhoso. Este declínio é um sintoma alarmante do nosso es tado mental. A humanidade não perecerá por falta de informação, mas por falta de apreciação. O co meço da nossa felicidade consiste em compreender mos que a vida sem o maravilhoso não é digna de crer, ser vivida. mas a Ovontade que nos de falta admirar. não é a vontade de Interceptar as alusões submersas nas perceptibilidades, os valores intersticiais que nunca afloram à superfície, a dimensão indefinível de toda exis tência, eis a tarefa da verdadeira poesia. É por isso que a poesia é para a religião o que é a análise para a ciência. Certamente não foi por acaso que a Bíblia não foi escrita more geometrico, mas na
língua dos poetas. Entretanto, o inefável experi mentado pelo artista é anônimo, é como um enjei tado sem nome. Para o homem religioso não há 46
nada abandonado ou sem destinatário. É como se Deus estivesse entre ele e o mundo. O que é fa miliar desaparece da sua visão e ele distingue o srcinal sob o palimpsesto das coisas. O mundo como objeto Nossa mente, segura de si mesma, é especiali zada cutelaria. na produção Em todos de os facas, seuscomo pensamentos ^se fôssemos avança uma com uma lâmina cortando o mundo em dois: uma coisa e um eu próprio, um objeto e um sujeito que concebe o objeto como distinto de si próprio. Mercenária da nossa vontade de poder, a mente é levada a atacar para saquear em vez de procurar comungar para amar. Além disso,^endo nossa aten ção necessariamente seletiva, notando apenas uma coisa, passamos por cima de todas as outras que, encontrando-se fora de controle, desprezam nossa autoridade. Quando deixa de converter o mundo em obje tos de sua abstração, o homem começa a perceber que é tratado como satélite pela sua própria men te, que o impede de entrar em contato com a realidade em si e jamais revela o seu próprio se gredo, mantendo-o afastado da essência ao invés de introduzi-lo nela. Quando o homem vai ao encontro do mundo, não com os instrumentos que fabricou, mas com a alma com a qual nasceu, não como um caçador que persegue a sua presa, mas como um amante para dar e receber amor, quando o homem e a matéria se encontram como iguais diante do mis
tério, ambos feitos, mantidos e destinados a passar, já não há um objeto, uma coisa dada a seus senti dos, mas um estado de amizade que abrange a ele 47
e a todas as coisas. Não um fato particular, mas a situação surpreendente do próprio fato de exis tirem os fatos. O ser. A presença do universo. O desenvolver-se do tempo. O sentido do inefável não se encontra de entremeio entre o homem e o mistério. Ao invés de excluí-lo, une-o ao mistério. Para o nosso conhecimento o mundo e o “eu” são dois, um objeto e um sujeito; mas dentro da nossa admiração o mundo e o “eu” são eternamente um ser. Despertamos para a nossa convivência com a grande amizade de todos os seres e deixamos de olhar as coisas como oportunidades para explorar mos. A conformidade com o ego já não é mais o interesse exclusivo e nosso direito de subordinar mos a realidade a serviço dos assim chamados fins práticos torna-se um problema. As coisas que nos cercam emergem da triviali dade que lhes e o seu abre como que atribuímos um vazio entre elas caráter e nossaestranho mente, um vazio que palavra alguma pode encher. Como é possível que eu esteja usando esta caneta e es teja escrevendo estas linhas? Quem somos nós para esquadrinharmos as esotéricas estrelas, para teste munharmos o pôr do sol, para termos o serviço da fonte para a nossa sobrevivência? Como pode remos retribuir respiração e peloe pensamento, pela vista e pelopela ouvido, pelo amor pelas ações? Uma evidência prolongada, penetrante, desacostu ma-nos de confundirmos a bondade do mundo com ausência de dono, sua vida simbólica com ordem insípida. Um dos maiores choques que experimentamos em nossa infância ocorre com a descoberta de que
nossas pelos necessidades atos nem sempre sãoque apro vados homens,e nossos companheiros, o mundo não é só alimento para o nosso prazer. A resistência que encontramos, as recusas em que in'Ifi
corremos abrem nossos olhos para a existência de um mundo fora de nós mesmos. Mas quando nos tornamos mais velhos e mais fortes, recuperamo-nos gradativamente do choque e procuramos esquecer essa dolorosa lição e aplicamos a maior parte das nossas capacidades para levarmos nossa vontade a ocupar-se da natureza e dos homens. Nenhuma lem brança da nossa passada experiência consegue der rubar completamente a arrogância que repetidamen te congestiona o tráfego da nossa^ mente. Deslum brados pelas brilhantes realizações' do intelecto na ciência e na técnica, deixamo-nos iludir acreditando que somos os senhores da terra e a nossa vontade o critério supremo do que está certo ou errado. Estará o mundo à tnercê do homem? Estamos hoje começando a despertar de um estado de intoxicação, da alegria juvenil dos triunfos do nosso saber. Começamos a perceber em que tris te situação estariam tanto o homem como a natu reza se estivessem totalmente à mercê do homem e dos seus caprichos. Não devemos ficar decep cionados com o limitado esplendor das teorias que não a nenhum odos nossos problemas mais ditaisrespondem e só ridicularizam anseio inato da pergunta mais gritante, mais urgente: Qual é o segredo da exjstência? Para que e por que vivemos? Somente aqueles que não experimentaram o terror da vida, só aqueles que afirmam que é um prazer viver e que mais prazer e só prazer está reservado para as gerações do futuro, podem negar a necessidade es
sencial de perguntar: Para quê? Por quê?
4 - O homem não está só
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Contamos por todas as coisas A mente prática presta mais atenção às vírgu las e dois pontos no grande texto da realidade que ao seu conteúdo e à sua significação, enquanto para quem tem o sentido do inefável as coisas se apre sentam como pontos de exclamação, como testemu nhas silenciosas. E a alma do homem é um anseio de cantar todos os seres por aquilo que todos eles cedente de significação representam. Todas as coisas além trazem do ser em — sisignificam um ex mais do que aquilo que são em si mesmas. Mesmo fatos finitos estão indicando uma significação infi nita. É como se todas as coisas estivessem palpi tantes de significação espiritual. Tudo o que pro curamos fazer na arte criativa e nas boas ações é entoar um cântico secreto, um aspecto desta signi ficação . Enquanto vemos apenas objetos estamos sós. Quando começamos a cantar, cantamos por todas as coisas. Por sua essência, a música não descreve aquilo que é, mas procura antes transmitir aquilo que a realidade representa. O universo é uma par titura de música eterna e nós somos a voz. A razão explora as leis da natureza, tentando decifrar escalas do seminefável compreender a harmonia, en quanto oassentido está à procura da can ção. Quando pensamos, empregamos palavras ou símbolos daquilo que pensamos sobre as coisas. Quando cantamos, somos levados pela nossa admi ração. E os atos de admiração são sinais ou sím bolos daquilo que todas as coisas representam.
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Uma interrogação que transcende as palavras
Não sabemos como perguntar O universo é uma imensa alusão e nossa vida interior uma citação anô nima. Só o grifo é nosso. Está em nosso poder verificar a citação, identificar a fonte, saber o que todas as coisas representam? Perguntar é o começo de todo pensamento. Em saber como fazer a pergunta certa reside a úni ca esperança de chegarmos a uma resposta. Ao formularmos uma pergunta, devemos vagamente an tecipar algo da natureza daquilo que estamos inda gando. Assim sendo, a pergunta sobre a fonte su prema de toda a realidade é uma pergunta que não sabemos fazer. Pois se trata de algo que não pode ser forçado dentro das nossas categorias finitas, de algo impossível de prender nas cadeias de uma sentença e de ser convertido em matéria definida para indagação. Fórmulas — como: qual é a ori gem suprema do universo? O que está atrás de todos os acontecimento s? — são caricaturas daquilo que irresistivelmente se apresenta ao nosso sentido srcinal do maravilhoso. Estamos perguntando pela srcem ou pela presença, finalidade e missão do
universo? Sabemos onde traçar a linha divisória entre a srcem desconhecida e o produto conhecido, ou 51
onde termina a fonte e começa a derivação? Até mesmo a estrutura da sentença de tais fórmulas está carregada de pressupostos lógicos que a uma análise minuciosa revelam imensas dificuldades. Uma profunda consciência da incongruência de todas as categorias com a onipresença sem nome e impenetrável do mistério é um pré-requisito para nossos esforços em busca de uma resposta. Quanto mais cuidados tomarmos para não deixar nossa per gunta incomparável ser adulterada ou até mesmo sufocada por formulações inadequadas, maior será a nossa oportunidade de chegarmos a respostas fi nais razoáveis. Para quê? Por quê nossa ansiedade esquecemos todo o cuida do e Em prudência. Nem o sábio nem o selvagem con segue eludir o problema: Quem é o grande autor? Por que existe um mundo? Qual o sentido da nossa vida? Apesar das nossas conquistas e poder, asseme lhamo-nos a mendigos cegos num labirinto, que não sabem em que porta bater a fim de obter alívio para ansiedades. a natu como de age reza, suas mas não e por causa Sa por que Sabemos quem? bemos que vivemos mas não por que nem para quê. Sabemos que temos que indagar, mas não sa bemos quem plantou dentro de nós o anseio da indagação. Intimidado pela força do agnosticismo, que proclama a ignorância a respeito da realidade última
como a única atitude honesta, o homemseumoderno foge da metafísica e tende a suprimir sentido inato, a sufocar as perguntas que transcendem a sua mente, procurando refugiar-se nos limites do 52
seu eu finito. Mas tal atitude é uma armadilha in consistente e auto-ilusória. Insistindo em que so mos incapazes de conhecer, mostramos A umalegação conhe cimento que afirmamos ser inatingível. de que não existe uma significação última ressoa estridentemente no profundo silêncio do inefável. É possível evadir-nos da questão suprema retirando-nos para dentro dos limites do próprio eu? A consciência do maravilhoso é, muitas vezes, do minada pela tendência da mente de dicotomizar, que nos faz olhar o inefável como se fosse uma coi sa ou um aspecto das coisas longe de nós mesmos, como se somente as estrelas estivessem circundadas com o halo do enigma e não a nossa própria exis tência. A verdade é que o eu, nosso “ senhor”, é algo desconhecido, inconcebível em si mesmo. Pe netrando-o, descobrimos o paradoxp de não conhe cermos o que supomos conhecer tão bem. Quem é “eu”? O homem vê as coisas que o rodeiam muito antes de tomar consciência de si próprio. Muitos de nós estão conscientes do aspecto oculto das coi sas, mas poucos sentem o mistério da própria pre sença. O eu não pode ser descrito com termos da mente, pois todos os nossos símbolos são demasia damente pobres para exprimi-lo. O eu é mais do que aquilo que pensamos dele. É como se estivesse de costas para a mente. De fato, para a mente a própria mente é mais enigmática que uma estrela. Escapa à compreensão a maneira como opera a men
te humana. As idéias, são os tijolos comcuja quesignificação são cons truídas as convicções, símbolos o homem nunca consegue penetrar plenamente, e aquilo que ele deseja expressar está submerso na 53
profundeza insondável do inconsciente. Além do meu alcance está o fundo da minha própria vida interior. Não estou certo nem sequer de que a voz que sai de mim é a voz de uma unidade pes soal definida. O que na minha voz se srcinou em mim e o que é a ressonância da realidade transubjetiva? Ao dizer “eu”, minha intenção é diferenciar a mim mesmo de outras pessoas e outras coisas. Mas qual é o conteúdo direto, positivo do “eu”: o florescimento do consciente sobre o solo impene trável do subconsciente? O “eu” não inclui menos realidade desconhecida, subconsciente, que realidade conhecida e consciente. Isso significa que o “eu” só pode ser separado distintamente das suas rami ficações, isto é, de outros indivíduos e de outras coisas, mas não das suas raízes. Tudo o que sabemos do eu é a sua expressão. Mas o eu é plenamente expresso. Não sa bemos dizernunca o que somos; não compreendemos aquilo em que nos tornamos. Tudo é uma abrevia tura criptográfica de sugestões que a mente tenta em vão decifrar . Como a sarça ardente, o “ eu” arde em chamas sem nunca se consumir. Levando dentro de si mesmo muito mais que a razão, está em luta com o inefável. O sorriso de um homem significa alguma coisa. Mas implica o quê? em possuir tem Como veremos 1 existir po. Mas será que o homem possui o tempo? O fato é que não posso possuir o tempo, os momen tos através dos quais vivo, e o intemporal, na mi nha temporalidade, certamente, não é minha pro priedade particular. Mas se a vida não pertence ex clusivamente a mim, qual é o meu direito legal
a ela? Tem a minha essência o direito de dizer “eu”? 1 Cf. T Ê N C IA —
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adiante ca p. 19 — O SE N TID O D A E X IS tempora lidad e da exi stênci a.
Quem é este “eu”, a quem se supõe que a minha vida pertence? Ninguém conhece nem seu conteú do nem seus limites. Trata-se de algo que se acaba ou de algo que o tempo não consegue destruir? Como indivíduo, como um “eu”, estou separa do da realidade externa dos outros homens e das outras coisas. Mas na única relação em que o “eu” se torna consciente de si mesmo, na relação para a existência, descubro que o que chamo de “eu” é uma autodecepção, que a existência não é pro priedade minha e, sim, algo que me foi confiado; que o eu não é uma entidade isolada, confinada em si mesma, um reino governado pela nossa von tade. Penetrando no “eu”, defrontamo-nos com o pa radoxo de não conhecermos o que julgamos conhe cer tão bem . Quando descobrimps que o eu em si mesmo é uma monstruosa decepção, que o “eu” é uma realidade transcendente dissimulada, começa mos a sentir o peso de estarmos reduzidos a um mero eu. Começamos a perceber que nossa cons ciência normal se encontra num estado de transe, que aquilo que em nós é mais elevado está geral mente suspenso. Começamos a sentir-nos estranhos dentro da nossa consciência normal, como se nossa própria vontade fosse algo que nos é imposto. As almas clarividentes, presas na tensão entre o prodigamente óbvio e tranqüilidade clandestina, não se deixam deslumbrar nem surpreender. Ob servando a interminável pantomima, que se passa num mundo ostensivo e turbulento, sabem que não é ali fora de nós que se encontra o mistério. A verdade é que estamos todos imergidos nele, im
buídos nele. Somos, parcialmente, esse mistério .
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Sou o! que não sou “E Deus disse a Moisés: Sou o que sou e disse: Assim dirás aos filhos de Israel, Eu sou enviou-me a vós” (Êx 3,14). Sou dotado de uma vontade, mas a vontade não é minha; sou dotado de liberdade, mas é uma liberdade A vida transcenden é algo que visita meuimposta corpo. àÉ vontade. um empréstimo tal. Não iniciei nem concebi seu valor e sua signi ficação . A essência do que sou não me pertence. Sou o que nao é meu. Sou o que não sou. Ao nível da consciência normal sinto-me en volvido em autoconsciência e afirmo que meus atos e estados se srcinam em mim e pertencem a mim. Mas ao tentar penetrar e desvendar o eu, percebo que ele não se srcinou em si mesmo, que a es sência do eu está em ser um não-eu, que em última análise o homem não é um sujeito, mas r*n ob jeto 2.
Não há sujeito para interrogar É fácil levantar verbalmente a questão: Quem é o sujeito do qual o meu eu é o objeto? Mas sentir agudamente a sua significação é algo que ultrapassa nosso poder de compreensã o. De fato, é impossível compreender logicamente as suas implicações. Por que ao colocar a questão, estou sempre consciente do fato de que sou eu quem faz a interrogação.
Mas tão logo conheço a mim mesmo como um 2 Cf. ad iante ca p. 14 — D EU S É O SU JE IT O — O pensamento de Deus não tem fachada.
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“eu”, como um sujeito, já não sou mais capaz de apreender o conteúdo da interrogação em que estou posto como objeto. Assim, ao nível da autocons ciência não há meio de enfrentar o problema, de fazer a interrogação abso luta. Por outro lado, quan do somos dominados pelo espírito do inefável, não resta mais nenhum eu lógico para perguntar e ne nhum poder mental para julgar a Deus como um objeto, a respeito de cuja existência devo decidir. Sou incapaz de levantar minha voz ou de julgar. Não há nenhum eu para dizer: eu \cho que. . . Com efeito, não existe nível especulativo em que possa ser levantada a interrogação. Ou não percebemos a significação do problema, ou, quando entendemos a respeito do que deveríamos pergun tar, não há sujeito lógico que possa perguntar, exa minar, inquirir. %
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O Deus dos filósofos
Deus como problema especulativo Tradicionalmente a questão suprema é colocada em termos de especulação. Tomando como ponto de partida o mundo ou a ordem da natureza, per guntamos: Sugerem os fatos deste mundo a pre sença ou existência de uma inteligência suprema? A ciência baseia-se no pressuposto na natureza há leis inteligíveis que podemdeserque obser vadas, concebidas e descritas pela mente humana. Não foi o cientista quem inventou essas intrincadas leis. Elas já existiam muito antes que ele se pu sesse a explorá-las. De qualquer maneira que ten temos conceber a realidade da natureza, seja como um mecanismo, seja como uma ordem orgânica, ela nos é são dadagovernados como um por todo princípios significativo, cujos processos estritos. Se nossas mentes são capazes de compreendê-los, esses princípios não são só inerentes às relações reais entre os componentes da realidade, mas são também intrinsecamente racionais. Mas se a racionalidade funciona na natureza, não há maneira de explicá-la sem referência à ati
vidade de umaa inteligência Portanto, probabilidadesuprema. de que o universo tenha vindo a existir sem intenção é infinitamente pequena, enquanto a probabilidade de uma inteli-
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gência estar na raiz do ser é tão forte que nem mesmo a fundamentação da ciência goza de maior probabilidade. O aparecimento da ordem universal por um puro acaso — que é uma categoria irracional — parece bem menos plausível às nossas mentes que o seu aparecimento pelas mãos de um planeja dor super-racional. Não é muito difícil descobrir algumas falácias sutis nas provas especulativas. Pode-se dizer, por exemplo, que a presença da mente ordenadivina no mundo não prova a existência de uma que está acima e é distinta dessa ordem. Da ordem podemos inferir somente a existência de uma causa mais alta, mas não a existência de um ser que transcende toda causalidade. Ou, em termos lógicos, o univer so conforme concebido por nós,„é um sistema fe chado de relações lógicas e tudo o que dele podemos inferir é de umauma suprema estrutura Suporalém a existência mente ou de um lógica. ser supremo do universo, é passar do domínio da lógica para o da ontologia. Logicamente, pode-se afirmar, não há justificação para se supor a existência de um ser supremo. O que podemos observar na natureza é uma ordem mecânica, não uma consciência viva. Conseqüentemente tudo o que a mente humana pode supor é a existência de uma força mecânica suprema, uma força cega do destino. Por isso, co mo filósofos, abstemo-nos de crer na existência de um ser supremo dotado de vontade e inteligência. Essa abstenção está inteiramente de acordo com nossos hábitos. Comportamo-nos como se a natureza fosse uma árvore que rebenta de dentro de uma sepultura primordial sem nome e nós homens vi
vêssemos por engano, por acaso, por descuido. O mundo é tratado por nós como se fosse um gigantesco carvalho do qual as crianças arrancam 59
galhos' e ramos, enquanto os turistas gravam nomes na sua casca. Os argumentos especulativos são cosmocêntricos ou antropocêntricos. Para o argumento cosmológico da existência de Deus, o ponto de partida é o plano e a realidade do universo. Sua pergunta é: qual é a causa última de tudo o que existe? O princípio de causalidade serve de escada pela qual a mente sobe até o ser supremo. Ele é visto como uma explicação para os acontecimentos naturais, como uma solução científica para um problema. De maneira semelhante, o argumento moral de Kant para a existência de Deus parte de premissas mo rais. Se a moralidade deve ser mais que um sonho vazio, é necessário que se realize a união da virtude e da felicidade. Entretanto, a experiência mostra à saciedade que no sistema da natureza, empirica mente conhecido, a felicidade não depende da vir tude. Portanto, a união deve ser feita por um po der supremo, não por nós. Assim, é um postulado da moralidade que exista um ser supremo absoluta mente sábio e santo. A fraqueza essencial desses argumentos está no fato de que seu ponto de partida não é um problema religioso, mas um problema cosmológico ou antropológico. Entretanto, também há uma si tuação religiosa única, em que a mente se ocupa primariamente não dos problemas da natureza e do homem — por mais urgentes e importantes que sejam — mas de Deus; não da relação do mundo com nossas categorias, mas da relação do mundo com Deus.
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Será a ordem a coisa mais importante? Outra deficiência das provas especulativas da existência de Deus reside no fato de que, mesmo se sua validade estivesse fora de discussão, elas provam muito pouco. Qual é o ponto essencial des sas provas? É a afirmação de que dados certos fatos da experiência, tais como a ordem racional do uni verso, Deus é a hipótese necessária para explicá-los. Como aqueconclusão não pode coçter maisumdo Deus que aquilo está contido nas premissas, derivado da especulação equivale no máximo a tanto quanto exige o nosso conhecimento finito dos fatos do universo, isto é, uma hipótese. Partindo de uma justificação racional do nosso credo, podemos chegar à idéia de que a existência de Deus é tão provável quanto a do éter na físfea ou a do flogisto refutada na química, ou tornada uma hipótese supérflua queporfacilmente uma mudança pode ser das premissas. Mesmo que se admita que tenha sido demonstrada a existência de um ser dotado de sumo gênio e sabedoria, permanece o problema: por que nós, pobres criaturas, haveríamos de preocupar-nos com ele, o perfeitíssimo? Podemos, efetivamente, aceitar a idéia de que existe um supremo planejador e ainda assim dizer: “E daí?” Enquanto o conceito de Deus não nos subjugar, enquanto pudermos di zer — “E daí?” — , não é de Deus que estamos falando, mas de outra coisa. A idéia de um supremo planejador pode servir de fonte de segurança intelectual em nossa busca do plano, da lei e da ordem do universo, que nos dá uma garantia para a validade da teoria científica. Entretanto, o universo pode ser aceito como a obra
de um gênio, as estrelas como resplandecentes de significação, e contudo nossas almas não deixariam de se sentirem perseguidas por um receio de futilida 61
de, tfm receio que não poderia ser vencido por uma fé de que nalgum lugar nos infinitos recessos da Di vindade há uma Éfonte de sabedoria. a ordem a questão suprema? a ordem o máximoÉque a sabedo ria divina poderia produzir? Estamos mais ansiosos por saber se existe um Deus da justiça do que sermos informados de que há um Deus da ordem. Há um Deus que recolhe as lágrimas, que corresponde à esperança e recompensa as provações da inocência? Ou devemos supor que os impérios do pensamento, as intenções,e as os são atosmais de sacri fíciosantas dos honestos dosharmonias humildes enão que imagens esculpidas na superfície do oceano? Filosofia da religião A questão que cabe à filosofia da religião dis cutir em primeiro lugar não é a fé, nem os ritos, nem a experiência religiosa, mas a srcem de todos esses fenômenos: a situação total do homem. Não o que ele experimenta no sobrenatural ou como o experimenta, mas por que o experimenta e sente. O problema é: o que impõe a religião à minha e à sua vida? A filosofia da religião não é a filosofia de uma filosofia, a filosofia doutrina, a interpretação de um dogma, masde auma filosofia de fatos, atos, per cepções concretas, daquilo que acontece diretamente com o homem piedoso. Os dogmas são simples mente um catálogo, um índice indispensável. A re ligião é mais que um credo ou uma ideologia e não pode ser compreendida quando separada da vida real. Manifesta-se em momentos em que nossa
alma do é invadida portodos umaosangústia a res peito sentido de sentidos,insaciável sobre o nosso compromisso supremo, que é parte da nossa própria 62
existência, em momentos em que todas as conclu sões anteriores, todas as trivialidades que sufocam a vida ficam suspensas; em que a alma faminta por uma idéia da realidade eterna; emestá momentos em que se descobre o indestrutível inesperado den tro do constante perecível. Podemos conseguir muitas coisas em nossa bus ca de Deus, aplicando métodos racionais, desde que nos lembremos que nas questões que se relacionam com a totalidade da vida, devem entrar em jogo todas as capacidades maisnosso elevada^ da do nossa perso nalidade, particularmente sentido inefável.
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A questão suprema
O que a admiração suprema dá ao homem As provas especulativas são o resultado daquilo que o homem realiza com a sua razão. Mas, como sabemos, a razão não é nossa única fonte de certeza. Por mais valiosa que seja a mão estendida, a orien tação vital e o sóbrio esforço da razão, ela não pode aliviar-nos do pesado fardo que o mundo impõe sobre nossos ombros, a necessidade de pensar em coisas que não são conversíveis em imagens mentais. Há, na verdade, outro tipo de evidência sobre o que é e o que significa Deus. Elá é o resultado daquilo que o homem alcança com sua admiração suprema, com seu sentido do inefável. Nunca a humanidade poderia ter feito brotar da rocha dos fatos finitos a torrente inexaurível de sua consciência de Deus, analisando o plano de suas camadas geológicas. Efetivamente, quando pas samos além da análise, procurando ver a rocha como rocha e a pensar no que significa ser, ela esconde a sua face de nossas perscrutações e o que fica é mais inverossímil, mais inacreditável que o fundo miste rioso do ser. Então se torna claro que o mundo do conhecido é um mundo desconhecido, exceto nos
seus postos avançados funcionais; que nutrir a idéia de que a vida é lúcida e familiar é o mesmo que viver na ilusão de um conto de fadas. Para uma 64
mente não deformada por hábitos intelectuais, dis torcida pelo já conhecido, para uma surpresa inata não viciada, admiração, não existem axiomas nem Há unicamente compreensão de dogmas. que o mun do é excessivamente inacreditável, demasiadamente cheio de significação para nós. A existência do mundo é o fato mais inverossímil, mais incrível. Até nossa capacidade de surpresa está além da ex pectativa. Em nossa admiração não viciada, somos como espíritos que nunca tiveram consciência da realidade externa, e aos quais o ^conhecimento da existência do universo chegou pela primeira vez. Quem poderia crê-lo? Quem poderia concebê-lo? Precisamos aprender a superar a certeza ilusória e a entender que a existência do universo é contrária a todas as expectativas racion ais. O mistério está onde nos colocamos sem pressuposições, sem argu mentações, sem doutrinas, sem dogmas. A religião começa com o sentido do inefável O pensamento acerca de Deus começa na crosta escarpada da mente, onde termina abruptamente o murmúrio, onde não temos mais anseios, onde não sabemos mais temer. Só aqueles que sabem viver espiritualmente inquietos serão capazes de ir além do litoral sem nostalgia das certezas estabelecidas spbre a rocha artificial da nossa especulação. Não é a especulação teórica, mas o sentido do inefável que precipita o problema de todos os pro blemas. Não o aparente, mas o oculto no aparente; não a sabedoria, mas o mistério do plano do uni verso, as interrogações que não sabemos como fazer
sempre derramaram óleo sobre as chamas da ansie dade do homem. A religião começa com o sentido do inefável, 5 - O homem não está só
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com a consciência de uma realidade que desacredita nossa sabedoria, que abala nossos conceitos. Portan to, devemos começar com o inefável, porque de ou tra forma não haveria problema. Devemos voltar à sua percepção, pois do contrário nenhuma solução teria importância. A questão suprema Há um erro pernicioso que, muitas vezes, inuti liza os esforços filosóficos no tratamento do nosso problema. Parece que esquecemos que uma interro gação autêntica representa mais do que aquilo que diz expressamente. Assim como a natureza tem aver são ao vácuo, assim o vazio de pensamento tem aversão aos problemas. Para poder colocar uma in terrogação, para procurar uma resposta, deve-se pos suir algum conhecimento, deve-se saber o que inda gar. Deve haver uma situação responsável pelo apa recimento do problema, uma razão de ser da pre sença da interrogação na mente. Nossa primeira ta refa é, portanto, percorrer de volta o caminho que leva à srcem do problema, para recuperar o conhe cimento que ela deixou para trás. Se nosso coração não estiververbal, aberto para o quepassará está atrás da com sua aparência a interrogação por nós a face oculta. O reino do inefável, e não o da especulação, é que constitui o ambiente em que se srcina a inter rogação suprema. É no seu recinto que o mistério está ao alcance de todos os pensamentos, que a in terrogação deve ser estudada. No seu estado nativo
a interrogação é diferente, na sua quando forma, da configuraçãosuprema lógica em que é moldada levada ao nível abstrato da especulação. Há um mundo em que a admiração está morta,
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em que a interrogação suprema está fora de alcance. O reino da especulação em que habitualmente de batemos o mérito do nosso problema está a uma grande distância do seu ambiente nativo, do reino do inefável. No momento em que o problema é colocado diante de nossos olhos críticos, já murchou como uma folha ao bafo quente de um forno. O sentido do inefável que, crescendo, alcança e se inclina para a luz de uma realidade última nunca transplantado paca do a superficiali dade dapoderá mera ser reflexão. Arrancado seu meio, geralmente se transforma como uma rosa compri mida entre as páginas de um livro. Quando redu zido a termos e definições é pouco mais que o resto ressequido de uma realidade anteriormente viva. Se, apesar disso, tentamos refletir sobre a in terrogação suprema na sua forma í&gica, deveríamos pelo menosremovida tratá-la como uma ventos, planta erradicada do seu solo, de seus de seus raios solares e de seu ambiente terrestre e que pode so breviver somente se conservada em condições de al guma forma semelhantes ao seu clima srcinal. Por isso, mesmo quando nosso pensamento sobre ela se desenvolve num nível discursivo, nossa me mória deve permanecer ancorada nas percepções do inefável nossarespeitoso, mente precisa es tado de etemor sem permanecer o que nuncanum atingi remos uma língua comum com o espírito do probleriaa, sem o que a natureza srcinal da interroga ção não se nos revelará. O problema em apreço só será apreendido por aqueles que forem capazes de encontrar categorias que se combinem com o metal puro e de fundir o
imponderável numa da expressão única.doNão basta De des crever o conteúdo consciência inefável. vemos assediar a alma com perguntas, forçando-a a entender e esclarecer o sentido daquilo que se 67
passà quando ela se encontra no horizonte supremo. Penetrando a consciência do inefável, podemos con ceber a realidade que está atrás dela. A situação que determina a interrogação Nosso ponto de partida não é a visão do enco berto e do inescrutável. Do intermináve l nevoeiro do desconhecido não poderíamos, efetivamente, de rivar uma compreensão do conhecido. E a tensão entre o conhecido e o desconhecido, entre o comum e o sagrado, entre o fugaz e o inefável que enche os momentos das nossas introspecções. Nossa interrogação última não nasce do fato de que nas brumas da nossa ignorância topamos por acaso com uma parede cheia de enigmas misteriosos. Não perguntamos por sermos Perguntamos pobres de espírito desprovidos de conhecimentos. porquee sentimos um espírito que supera nossa capacidade de compreendê-lo. Nossa indagação é devida não a algo que é menos, mas a algo que é mais que o conhecido. Perguntamos porque o mundo é de mais para nós, porque o conhecido está repleto de maravilhoso, porque o mundo está cheio do que é mais que o mundoacerca comodenósDeus o entendemos. A interrogação não é uma inda gação sobre todas as coisas, mas uma indagação a todas as coisas. Não uma indagação do desconhe cido, mas uma indagação daquilo que todas as coi sas representam e significam. Uma pergunta que dirigimos a todas as coisas. É expressa não em ca tegorias da razão, mas em atos em que nos movemos
além das mente não como canta-a, expri mi-la, maspalavras. a alma A exprime-a com sabe suspiros, apela para ela.
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Além das coisas Ao empreendermos a solução de um problema racional, devemos primeiro testar a capacidade da nossa mente e verificar o que as categorias mentais são capazes de transm itir. Igualmente em nosso caso, temos que aplicar tudo o que sabemos sobre o que é dado à incompreensão superior do bomem, à sua pura admiração e o que a intuição do inefável transmite à nossa consciência. Lembremos o fato fundamental de uma percepção não discursiva uni versal do inefável, que é o sentido de uma signifi cação transcendente, de uma consciência de que o universo comunica a significação de algo que ultra passa nosso poder de compreensão. O conhecimento racional sempre implica em elementos alógicos, tais como u m l confiança inicial na veracidade nossas e uma mais confiança contínua, uma das espécie de faculdades fé, na hipótese ra zoável. Na percepção do inefável, somos levados a uma fé numa significação não revelada e ficamos desprovidos do poder de desconhecer o inobservado. Surge a pergunta se não há também aqui uma hi pótese racional para a qual a mente se sente natu ralmente atraída ou atrás da qual anda em busca ansiosa. De fato, a mente busca e se sente atraída pelo racional como tal. Mas o prazer e a essência do que é racional ou tem sentido ou está na sua coe rência com nossas mentes. Quando dizemos que al go é racional, entendemos que é algo racional para nós e pode ser integrado em nosso sistema de con ceitos. Mas o inefável tem sentido sem ser racional.
Não secategorias. dobra à Éanálise se conforma nossas como nem se estivesse fora decom lugaras em nosso cérebro. Além disso, não é uma idéia conseguida através de abstrações, mas apreendida no
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concireto e diretamente. Não é uma idéia que se assemelha a uma lei geral aplicada a fenômenos particulares. É algo incorpóreo, uma relação que transcende os fatos e não algo que está dentro dos fatos. E contudo a realidade da significação inefável, como demonstramos, está fora de toda discussão. O imperativo do respeito e do temor é a prova da sua evidência, uma prova universal que todos nós testemunhamos com tremor e pasmo, não porque queremos, mas porque estamos tomados de assom bro e dele não conseguimos nos livrar. A realidade tem muito mais significações do que a minha alma é capaz de absorver. E quando começo a soletrar a infinita sentença da minha admiração e a dizer o que percebo, noto que toda a percepção é uma exteriorização, que a essência começa onde termina a percepção. A percepção fato de que a reali dade supera meu poder dedopercepção é demasiada mente consistente, demasiadamente estonteante e universal para ser ilusória. Portanto a interrogação suprema não é uma creatio ex nihilo da mente, mas uma repetição na mente de algo que acontece à alma. A indicação que transcende todas as coisas nos é dada com o mesmo imediatismo que qualquer as próprias Sua presença é um fato como outrocoisas. o é. Mui to mais que isso, é um fato dentro de todos os fatos. Se é verdade que os aspectos concebíveis da realidade estão próximos à nossa experiência, den tro da experiência deparamos com o mistério. En quanto nossas mentes ficam sobre as coisas, nossas almas são levadas para além delas.
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Uma presença espiritual A consciência do mistério é compartilhada por todos os homens. Mas, como vimos, geralmente jul gam erroneamente que o que sentem está separado de sua própria existência, como se o maravilhoso existisse só naquilo que vêem e não no próprio ato de ver, como se o mistério fosse apenas um objeto de observação. Um pensamento generoso, não li mitado, abre nossas mentesdepara fatoé uma de que mistério não está separado nós,ç não coisao longínqua como um arco-íris no céu. O mistério não está fechado, encontra-se em todas as coisas que se possam ver e não só naquilo em que há mais do que os sentidos podem captar. Aqueles para os quais a consciência do inefável é um estado cons tante da mente sabem que o mistáíio não é uma ex ceção, mas um ar envolveNão todasalgo as separado coisas, o fundo espiritual da que realidade. da realidade, mas uma dimensão de toda a exis tência . Aprendem a sentir que toda a existência está envolta por uma presença espiritual; que a vida não é uma propriedade do eu; que o mundo é uma casa aberta em que a presença do dono está tão bem que geralmente confundimos sua dis criçãoencoberta com inexistência. Há uma santidade que paira sobre todas as coisas, que as faz parecer-nos em alguns momentos objetos de meditação transcendente, como se ser significasse ser pensado por Deus3 como se toda a vida exterior estivesse envolta por uma vida inte rior, por um processo interno de uma mente, pen
sante e intencional. 3 Cf. adiante ca p. 1 4 — D EU S É O SU JE IT O — O pensamento de Deus não tem fachada.
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Números, relações abstratas, não expressam a sua essência, como o número dos membros de uma família não conta a história única do seu drama. (A vida interior, enquanto pensada, é, naturalmente, um símile, mas é só através de símiles que podemos comunicar-nos quando falamos da realidade última). Para o homem religioso é como se as coisas estivessem de costas para ele e com o rosto voltado para Deus, como se a qualidade inefável das coisas vino. consistisse Assim em como serem quando um objeto tocamos do pensamento numa árvore di sabemos que a árvore não é o fim do mundo, que ela se encontra no espaço, da mesma forma sabemos que o inefável •— o que é santo em justiça, com paixão e veracidade — não é o fim do espírito. Que os valores supremos sobrevivem aos nossos juízos errôneos, nossas vaidades e negações. Que a significação significativa por não causapor dasgraça nos sas mentes e éque a beleza não é bela do homem. A alma é introduzida numa realidade que não só é diferente dela, como ocorre no caso dos atos ordinários de percepção. Elá é introduzida numa realidade que é mais elevada que o universo. Nossa alma se compara com a glória dessa realidade como o hálito com realidade, todo o arcuja do mundo. Somos introdu zidos numa simples consciência nos é mais preciosa que nossa própria existência. O pensamento dessa realidade é tão poderoso que não pode ser ignorado e santo demais para ser por nós absorvido. E um pensamento de que somos parti cipantes. E como se a mente humana não estivesse sozinha ao pensá-la, mas como se o universo inteiro
estivesse pleno dele. Nãocom maistodas admiramos as coisas; admiramos juntamente as coisas. Não pensamos a respeito das coisas. Pensamos por todas as coisas. 72
9 Na presença de Deus
Da sua presença à sua essência O sentido do inefável introduz a alma no as pecto divino do universo, numa realidade mais alta que o universo. Ao dizermos que ser significa ser pensado por Deus, que o universo é um objeto do pensamento divino, afirmamos a existência de um ser que está além do inefável. Como sabemos que Deus é mais que a dimensão sagrada, mais que um aspecto ou um atributo do ser? Como passamos do caráter de alusão do mundo para um ser ao qual o mundo alude? Ao pensarmos no nível do inefável, não par timos com uma idéia preconcebida de um ser su premo em nossa posse, procurando verificar se ele é realmente tal como existe em nossas mentes. A consciência que abre nossas mentes para a existência de um ser supremo é a consciência de uma reali dade, a consciência de uma presença divina. Muito antes de atingirmos qualquer conhecimento sobre a sua essência, temos a intuição de uma presença di vina. É nisso que a ventilação mediante o inefável difere da ventilação mediante a especulação. Nesta procedemos de uma idéia da sua essência para uma
fé na sua existência, enquanto no primeiro caso passamos de uma intuição de sua presença para uma compreensão de sua essência. 73
A aurora da fé O sentido do inefável não nos dá uma consciên cia de Deus. Somente nos eleva a um plano em que ninguém pode ficar indiferente e calmo, impertur bável e impassível, em que sua presença pode ser desafiada, mas não negada, em que, em última ins tância, a única atitude possível é a fé nele. Desde o momento em que nossa alma nua es tiver exposta à onipresença do inefável, já não po deremos ordenar-lhe que cesse de abalar-nos com a sua admiração ansiosa. É como se houvesse só sinais e lembranças ocultas do único e verdadeiro sujeito, do qual o mundo é um objeto enigmático. Quem fez brilhar o maravilhoso diante dos nossos olhos e quem acendeu a admiração dos nos sos olhos? Quem fulgurou em nossas mentes o raio que nos queima com a imperiosa necessidade de nos sentirmos invadidos pelo temor do sagrado, tão inegável como o espetáculo das estrelas? O que fazer com a admiração? O começo -da fé não é um sentimento do mis tério da vida ou um sentido de temor, de admira ção ou de medo. A srcem da religião é a pergunta sobre o que fazer com o sentimento do mistério da vida, o que fazer com o temor, a admiração ou o medo. A religião, o fim do isolamento, começa com a consciência de que há uma pergunta que é dirigida a nós. A alma é dominada por esta interro gação tensa e eterna e neste clima se dá a resposta do homem.
A admiração não é um estado de gozo estético. Admiração infinita é tensão infinita, uma situação em que nos ofendemos com a inadequação do nosso 74
temor, com a fraqueza do nosso choque, o estado de estarmos sendo interrogados pela interrogação suprema. A admiração infinita produz um sentido inato de dívida. Em nosso temor não há lugar para ne nhuma auto-afirmação. Em nosso reverente respeito só sabemos que somos devedores de tudo o que possuímos. O mundo não consiste em coisas, mas em tarefas. A admiração é o estado que resulta da nossa situação de sermos interrogados. O inefável é uma interrogação que nos é dirigida. Tudo o que nos resta é uma escolha — res ponder ou recusar-nos a responder. Mas quanto mais profundamente escutarmos, mais despojados fi camos da arrogância e da indiferença, as únicas coi sas que nos tornariam capazes de recusar. Carrega mos uma carga de maravilhas, dçsejosos de trocá-la pela simplicidade de saber para o que viver, uma carga de que nunca poderemos aliviar-nos e por outro lado não podemos continuar a carregá-la sem saber para onde. No momento em que lavra um incêndio que ameaça destruir a própria casa, ninguém pára a fim de investigar se o perigo que enfrenta é real ou fruto da sua imaginação. Não é este o momento de investigar o princípio químico da combustão ou quem é o responsável pelo surgimento do incêndio . A interrogação suprema, quando irrompe em nossas almas, é excessivamente surpreendente, demasiada mente carregada de inexprimível admiração, para ser uma questão acadêmica, para ficarmos suspen sos entre o sim e o não. Não é o momento de lan çar dúvidas sobre a razão do seu surgimento.
75
Que
éo
enigma?
Quando pensamos com toda a nossa mente, com todo o nosso coração, com toda a nossa alma, quando tomamos consciência do fato de que o eu não pode subsistir por si mesmo, compreendemos que as explicações mais sutis não passam de esplên didos enigmas, que Deus é mais plausível que nós mesmos. Que não é Deus que é um enigma. Quan do toda a nossa mente está ardendo pela interroga ção eterna como um rosto diante de uma grande fo gueira, não perguntamos: Onde está Deus? Pois tal pergunta implicaria que nós, que perguntamos, es tamos presentes e que Deus está ausente. No reino do inefável, onde nossa própria presença é inacredi tável, não perguntamos: onde está Deus? Só pode mos exclamar: onde não está ele? Onde estamos nós? Como é possível a nossa presença? No momento em que pela primeira vez des pertamos para a interrogação última, confessamos sem reservas nossa incapacidade de enfrentar o mun do sem um ser que está além do mundo. Nossa pergunta é essencialmente uma conclusão antecipada, uma resposta disfarçada. Pois uma vez que acatamos a legitimidadedadanossa interrogação j á encontrar a afirmamos. A incapacidade mente em evidên cia da sua presença é simplesmente uma admissão implícita de que consideramos a natureza tão per feita que não se pode descobrir nenhum traço da sua dependência do sobrenatural. Como se Deus tivesse irradiado um esplendor que ocultasse a sua presença.
Masemháque umasentimos dimensão que Deus oculto, sua em presença atrásnão do está es plendor. Mas somos nós capazes de dizer o que sentimos? Somos capazes de manifestar a razão se76
creta da nossa certeza da existência de um ser que transcende todo o esplendor? O problema que se apresenta diante de nós não é se existe um Deus, mas se sabemos que existe um Deus. Não se ele existe, mas se somos suficiente mente inteligentes para apresentar razões adequadas para afirmá-lo. O problema é: como dizê-lo às nos sas mentes? Como vencer as antinomias que nos impedem de conhecer clara e distintamente o que ele significa?
^ Interrogação invencível
A consciência do divino, que inicialmente se in filtra como um sentido de admiração que transpa rece através da indiferença, com^ uma necessidade de estar consciente inefável, cresce e impercepti velmente, como um do cabelo, transforma-se em inquie tação e ansiedade até romper numa insuportável preocupação que nos priva da complacência e da paz de espírito, forçando-nos a pensar em realidades nas quais não desejaríamos pensar, em realidades que não têm nenhuma atração para o nosso inte resse pessoal. Com todo o nosso poder, orgulho e autoconfiança, procurarcom desafiar, suprimir e comba ter essa preocupação o desconhecido, com o que não está confinado nem pela nossa mente, nem pela nossa vontade, nem pela nossa vida. Preferi ríamos ser prisioneiros, desde que as quatro paredes da prisão fossem nossa mente, vontade, paixão e ambição. De fato não haveria maior conforto do que viver na segurança de conclusões antecipadas,
em preocupação angustiante queruínas. transfor ma vez todasdessa as conclusões num montão de Qual é a natureza dessa preocupação forçada a que resistimos com tamanha veemência? Elá não 77
vem! de nós mesmos. É uma pressão que pesa so bre nós e sobre todos os homens. Não comunica palavra alguma. Só pergunta, só chama. Impõe-nos uma interrogação, uma ordem que nosso coração faz ecoar como um sino, avassalador como se fosse o único som a reboar num silêncio infinito e nós os únicos a ter que responder-lhe. Nossa mente e nossa voz são grosseiras demais para pronunciar uma resposta. É uma interrogação que exige todo o nosso ser como resposta. Nossas palavras, nossas posses, nossas realizações não constituem resposta. As teorias e as explicações se dissipam como meros divertimentos. Diante da interrogação deixamos de perceber a resposta, diante da floresta não vemos mais as árvores. Não há mais nem céus, nem ocea nos, nem aves, nem árvores . Há somente uma in terrogação, e esta é inefável. Em busca da alma Perseguidos por um problema que não conse guimos penetrar, que não se enquadra dentro da nossa curiosidade intelectual, somos dominados pela sua luta à procura de uma entrada em nossos es píritos, pela sua busca de uma alma que se empenhe em compreendê-lo. Não conseguimos interrogar a suprema e inven cível interrogação que se estende diante de nós inin terruptamente como o tempo, e que nos interpela como uma voz que se fundiu com o silêncio. Não há conhecimento algum que possa cons tituir uma resposta à admiração infinita, que possa
conter invasão do pela seu silencioso estamosa dominados admiração desafio. infinita, ferência é um retrocesso ineficaz. Em tais tos, o silogismo não é auto-evidente. Só a 78
Quando toda in momen intuição
o é. Em momentos assim nossa afirmação lógica, nosso dizer “sim” é como uma bolha de pensamento na praia de um mar eterno. Percebemos então que o nosso problema não é: o que podemos co nhecer? Como manifestá-lo às nossas mentes? mas, sim: a quem pertencemos? Como abrir nossas vidas a ele? Onde não há mais auto-afirmação, quando se percebe que a admiração não é obra nossa, que não é só por nós mesmos que som^s invadidos pela admiração radical, também não podemos mais assu mir o papel de um examinador, de um sujeito em busca de um objeto, tal como procuramos uma cau sa quando ouvimos um trovão. Admiração suprema não é a mesma coisa que curiosidade. Curiosidade é o estado do espírito que está à procura de conhe cimento, enquanto a admiração sí^rema é o estado de conhecimento em busca de uma mente. É o pen samento de Deus à procura de uma alma. O importante não é o momento existencial do desespero, a aceitação da nossa própria falência, mas ao contrário, a percepção do nosso grande poder espiritual, o poder de sanar o que está destruído no mundo, a percepção da nossa capacidade de res ponder à interrogação de Deus. A fé não é um produto da nossa vontade. Elá se verifica sem a intenção, sem a vontade. As pa lavras morrem depois de pronunciadas, e a fé é como o silêncio que aproxima os amantes, como um hálito que participa do vento. Não é uma conclusão de premissas lógicas nem o produto de um sentimento que nos leva a crer na sua resistência. Não é uma idéia que se obteve
tando-se ao parar ae própria observarvozouinterior. ao penetrar Não cremos na almaporque escu chegamos a uma conclusão. . . ou porque fomos vencidos por alguma emoção. É uma transformação 79
dentro da mente causada por um poder que está acima da mente, um choque e uma colisão com o inacreditável pelo qual somos forçados a crer. A premissa da glorificação Não é a prova especulativa que constitui o prelúdio da fé. Os antecedentes da fé são consti tuídos pela premissa da admiração e pela premissa da glorificação. Glorificamos antes de provar. En quanto em relação a outras questões duvidamos an tes de decidir, em relação a Deus cantamos antes de falar. Se não soubermos glorificá-lo, não po deremos aprender a conhecê-lo. O louvor é a nossa primeira resposta à admiração. Na realidade, o que nos resta fazer diante do sublime senão glorificar, senão sentirmo-nos inflamados pela incapacidade de dizer o que vemos e sentirmo-nos envergonhados por não saber como agradecer pela capacidade de ver? Ser invadido pelo temor de Deus não é entre ter um sentimento, mas participar de um espírito que impregna todas as coisas. “Todos agradecem, todos glorificam, todos dizem: não há ninguém co mo Como pessoal ato de seria reconhecimento pessoal nossaDeus”. glorificação fátua. Elá só tem sentido enquanto ato que se une ao cântico infi nito. Cantamos com as pedras das estradas que são como que uma admiração petrificada, com todas as flores e árvores que parecem hipnotizadas em silen ciosa devoção. Quando a mente e a alma se harmonizam,
nasce fé. Mas antes dela os da nossos corações pre cisam asentir o estremecimento adoração.
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Deixemos a intuição acontecer Nossa consciência de Deus é uma sintaxe do silêncio em que nossas almas se misturam com o divino, em que o inefável dentro de nós comunga com o inefável acima de nós, E o crepúsculo vespertino dos anos em que alma e céu estão silenciosamente unidos, o fruto da certeza acumulada da presença abundante, nunca recessiva do divino. A única coisa que nos cabe fazer é deixar a intuição acontecer e escutar a oculta certeza da alma de ser um parênteses no imenso texto do eter no discurso de Deus. Não atingimos a grande intuição quando pen samos ou inferimos o além a partir daqui. No reino do inefável, Deus não é uma hipStese derivada de pressupostos intuição auto-evidente lógicos, como a mas luz. uma Ele não é algoimediata, que se deva procurar na escuridão à luz da razão. Diante do inefável, ele é a luz. Quando chega a consciên cia do supremo é como um brilho que se manifesta subitamente. Para os espíritos meditativos o ine fável é crítico, inarticulado: pontos, marcas de sig nificação secreta, indicações dispersas a serem reco lhidas, decifradasde eintuição, transformadas em oevidência. Nos momentos no entanto, inefável é uma metáfora numa língua materna esquecida. Portanto, a consciência de Deus não vem gra dativamente: da timidez à temeridade intelectual; da conjetura, da relutância à certeza. Não é uma decisão a que se chega na encruzilhada da dúvida. Vem quando vagueando em lugar solitário, depois
de termos perdido, vemosangústia, a imu távelnosestrela polar. Livre de da repente interminável livre da negação e do desespero, a alma explode em clamor sem palavras. 6 - 0 homem não está só
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Deus está solicitando o homem Bater timidamente nas portas distantes do si lêncio à procura de Deus em . algum lugar não é o caminho acertado. Todos nós temos a possibilidade de descobrir na pedra ou na árvore, no som ou no pensamento mais próximo o refúgio da sua bondade freqüentemente profanada . Sua espera para que o çoração do. homem se afilie à sua vontade. E di fícil perceber a manifestação do divino neste mundo de lutas e de invejas. Contudo, uma força acima da nossa consciência clama ao homem, lembrando-o e advertindo-o de que o mau falhará na sua rebelião contra o bom . Quem quiser ser um eco dessa voz impelente abre a sua vida à compreensão do invi sível no deserto da indiferença. É Deus que pro cura. a nossa devoção constantemente, persistente mente. E ele quem sai ao nosso encontro logo que queiramos conhecê-lo. O que dá srcem à religião não é a curiosidade intelectual, mas o fato e a experiência de sermos interrogados.. Enquanto ficarmos a formular e con siderar as nossas próprias interrogações, não sabe mos sequer como interrogar. Sabemos muito pouco para sermos capazes de indagar. A fé não é o pro duto da pesquisa e do esforço, mas a indefinida resposta a um desafio que ninguém pode ignorar mente. Não entra através de um problema, mas através de uma exclamaçã o. A filosofia tem seu início na interrogação do homem. A religião com eça com int erroga ção de Deus e a resposta do hom em . Quem escolheu uma vida de empenho total pelo objetivo supremo, o objetivo vital e incompa
rável vezesasasuas sensação de que espíritodedeDeus, Deus tem pairaàs sobre pálpebras juntoo âòs séus olhos, mas nunca é visto . Aquele que com preende que o sol e as estrelas e as almas não va
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gueiam no vazio, mantém o seu coração vigilante para em que mundo entrao em arrebata mento.a hora As coisas não o são mudas: silêncio está cheio de perguntas, à espera de uma alma para res pirar o mistério que todas as coisas exalam na sua ansiedade de comunhão. Do mundo eleva-se um pedido para instilar no ar um hino arrebatador acer ca de Deus, para encarnar nas pedras uma mensa gem de humilde beleza e para instilar uma prece para que haja bondade nos corações de todos os homens. A invasão da grande realidade . O mundo em que vivemos é uma vasta prisão num labirinto que tem a altura ^Ha nossa mente, amento largura nossa força de vontade e o compri da daextensão da nossa vida. Aqueles que nunca chegaram até as grades e nunca viram o que existe além da prisão não conhecem e não sonham com nenhuma liberdade e estão dispostos a lutar por civilizações que surgem, passam e mergulham no abismo do esquecimento, abismo que jamais con seguirão encher. Nesta época tecnológica o homem não é capaz de conceber seu mundo senão como material para a sua própria realização. Considera-se a si mesmo dono de seu destino, capaz de organizar a procriação das raças, de adaptar uma filosofia para as suas ne cessidades transitórias e de criar uma religião a seu critério. Postulou a existência de um Poder que servisse de garantia para a sua auto-realização, como
se Deus fosse um criado parao atender desejos do homem e ajudá-lo a tirar máximo aos proveito da sua vida. Entretanto, mesmo os que bateram a cabeça 83
conílta as grades da prisão descobriram que a vida está envolvida em conflitos que não conseguem re solver, que a ânsia de possuir que enche as ruas, as casas e os corações é constantemente silenciada pela ironia do tempo, que as nossas realizações são minadas pela autodestruição — mesmo esses prefe rem viver numa suntuosa, sofisticada dieta dentro da prisão, a procurar uma saída do labirinto, em busca de liberdade na escuridão desconhecida. outros não sustentar resistem ae desesperam. Não Mas têm há mais forçasquepara fé, não en trevêem mais nenhuma meta pela qual valha a pena empenhar-se, estão sem forças para procurar um ob jetivo. Chega, porém, como um raio, um momento em que o fulgor do oculto afasta para longe a nossa apatia. É um instante cheio de um brilho que sub juga, é como um ponto em que se concentram to dos ostodos momentos ou como já umanteriormente pensamento que su pera os pensamentos conce bidos . Há tanta luz em nossa prisão, em nosso mundo, que este parece suspenso entre as estrelas. Inesperadamente a apatia se transforma em esplen dor. Num estremecimento inefável i nfiltra-se na al ma. Penetra em nossa consciência como um raio de luz penetra num lago. A refração desse raio penetrante produz uma transformação mente. Somos penetrados pela sua visão.em Nãonossa so mos mais capazes de pensar que ele está lá e nós aqui: ele está tanto lá como aqui. Ele não é um ser, mas ser em todas as coisas e acima de todas elas. Um tremor invade nossos mem bros. Nossos nervos são atingidos e tremem como cordas. Todo
o nosso explodedoemnosso assombro. Eis que então uma voz, ser arrancada íntimo mais profundo, enche o mundo à nossa volta, como se uma mon tanha estivesse a ponto de postar-se diante de nós.
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É uma palavra: Deus. Não é uma emoção, um im pulso acima dentro de nós,deque nós,separa mas um o mundo poder, de umanós. maravilha A pa lavra que significa mais que o universo, mais que a eternidade, santo, santo, sa nto. Somos incapazes de compreendê-la. Só sabemos que significa infi ni tamente mais do que somos capazes de absorver e repercutir. Confusos e perturbados balbuciamos: Aquele que é mais que tudo o que existe, que fala através do responder. inefável, cuja interrogação é maissódonossa que podemos Aquele para quem vida inteira pode ser a soletração de uma resposta. Uma inspiração passa, mas o fato de ter sido inspirado não passa jamais. Permanece como uma ilha através da agitação do tempo, para a qual nos voltamos sobre a onda da eterna admiração. Per manece uma ansiedade, uma angústia e um senti mento vergonha por. . sofrermos sempre a corrup ção do deesquecimento. Podemos dizer não, se decidirmos alimentar nossa mente com pressupostos e conceitos, agarrar mos à duplicidade e recusar a significar o que per cebemos, a pensar o que sentim os. Mas não existe homem algum que pelo menos por um instante não seja abalado pelo eterno. E se dissermos que não temos sentir,ounem alma para deouvir, rezemoscoração pedindopara lágrimas um sentimento ver gonha .
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Dúvidas
Depois, quando o sentido do inefável no ho mem entrar em sua fase recessiva e a força invasora das visões desaparecer, a interrogação eterna apresentar-se-á fora de sintonia em meio aos pensamen tos de cobiça e de lugares-comuns. Na sua honestidade a mente vem cobrar as suas que dúvidas. Será que o encontrodacom o inefável em tomamos conhecimento existência de um ser acima do inefável pode ser considerado uma fonte segura de introspecção? Tal encontro poderia não ser nada mais que um solilóquio, a introspec ção obtida, apenas uma ficção da mente, um produto da vontade. Efetivamente, não temos em nosso poder ne nhuma a qual trar aos credencial outros quecom a real idade.pudéssemos infinita em demons que-fo mos iniciados não é o simples extravasamento de nosso coração. Se nem a resposta ao inefável pode ser demonstrada, muito menos ainda podemos acen der a realidade a que respondemos, fazendo com que a sarça arda com o fogo de Deus para todos os homens verem.
Ninguémperjúrio pode atestar de Deus sem cometer contra aa inexistência sua alma. Pois aque les que se escondem, que estão sempre ausentes quando Deus está presente, só têm o direito de
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apresentar o seu alibi como justificativa de sua in capacidade de dar testemunho, . . A interrogação suprema na sua forma lógica é um desafio permanente, que encontramos onde quer que estejamos e não há maneira de ignorá-la. O homem não pode deixar de estar comprometido com uma realidade da qual depende , a significação e o modo da sua existência. E impelido a alguma espécie de afirmação. Em qualquer decisão que-to ma aceita implicitamente ou a. presença de Deus ou o absurdo de negá-la. O contra-senso da negação é demasiadamente monstruoso para ser concebível, pois implica que todo o universo está só, com ex ceção da companhia do homem, que a mente, do homem supera tudo dentro e além do universo.- A menos que esqueçamos tudo o que acontece conosco no incomparável estado da experiência do inefável, em nosso encantamento sem palavras, quando a maioria dos nossos conceitos são . eliminados -como ficções da nossa cabeça e os preconceitos desapa recem, não podemos afirmar que o homem tem o monopólio da mente e da alma, que ele é o único ser vivo, consciente dentro e além do. universo, que não há nenhum outro espírito afora o espírito do homem. Quem está aberto para o inefável guardar-se-á da esquizofrenia espiritual, isto é, da perda de contato com o mistério da vida que nos circunda em toda parte e sempre. Por outro lado, quem afirma a existência de Deus, embora possa ser in capaz de defender a consistência epistemológica- do seu julgamento, permanece coerente com a sua cons ciência viva do inefável. O sentido do inefável é anterior e mais forte que as dúvidas. As provas lógicas da existência de
Deus são como um anticlímax para aqueles que foram despertados por aquilo que os conceitos pro curam verificar. 87
Tentando provar ou negar a existência de Deus, assemelhamo-nos a fantoches que, incapazes de saber para que e como são capazes de dançar, atrevem-se a opinar sobre se há ou não alguém puxando as cordas. Aqueles que acham impossível subsistir com a dieta racional da alma racional não serão capazes de representar a solene cerimônia de conceder a Deus um reconhecimento de Jure, depois que sua existência foi conclusivamente demonstrada e devi damente confirmada. Se a alma não estiver inflamada, nenhuma luz da especulação poderá iluminar as trevas da indife rença. Nenhuma demonstração lógica magistral da existência de Deus e nenhuma análise dos intricados conceitos tradicionais de Deus terá bom êxito em afugentar as trevas. Os homens praticamente desa prenderam a arte de ser persuadidos por meio de abstrações a respeito da realidade última. Rara mente a austera dignidade da evidência lógica abs trata prevalece sobre as desconfianças da inércia intelectual. É ingenuidade pensar que foi por causa da refutação das clássicas provas de Deus por Kant que o homem perdeu a sua fé. Sua fé estava per dida muito antes de começar o seu ceticismo. As provas podem ajudar a proteger, mas não a iniciar a certeza. Elas são essencialmente exp li cações de algo que já nos é intuitivamente claro. Quem procura a Deus para resolver suas dú vidas, para tranqüilizar seu ceticismo ou para satis fazer sua curiosidade não encontrará o caminho da saída. A procura de Deus começa com a compreen são de que o homem é que é o problema, de que mais do que Deus é um problema para o homem,
o homem é um problema para noção Deus. complexa, po Se a divindade fosse uma deríamos suspeitar que se tratasse de um produto da fantasia, uma combinação de características en-
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contradas separadamente no mundo e que são ima ginadas como existindo juntamente num sér. Mas o divino como visão primeira é uma realidade que transcende tanto o poder da mente como a ordem do mundo e não uma composição de características encontradas no mundo. O divino é demasiadamente inefável para ser um produto da mente humana, demasiadamente gra ve, exigente e sobrepujante para ser postulado por um pensamento que deseja que sèja verdade aquilo em que acredita. Donde se srcinaria essa consciên cia do ser absolutamente insuperável se não de uma visão inderivável na sua total insuperabilidade? Mas pode-se perguntar: não acalentamos, muitas vezes, crenças que depois verificamos serem ilusões? Sim. Podemos pensar que estamos vendo uma casa quan do andamos de carro através do deserto e ao tentar aproximar-nos dela verificamos que se trata de uma miragem. Mas não poderíamos pensar que um qua dro representa uma casa se não existisse uma reali dade que é uma casa 11. A objeção mais fundamental à crença na exis tência de Deus é o argumento de que tal crença passa dos dados da mente para algo que supera o uma alcanceidéia da que mente. nós Ojulgamos que nosobrigados dá garantia a pensar de queé verdadeira com relação a uma realidade que se en contra além do alcance da mente? Tal objeção é vá lida quando feita sob o aspecto especulativo. Mas, como vimos, a certeza da existência de Deus não surge como um corolário de premissas lógicas, como um salto do reino da lógica para o reino da onto logia, de uma hipótese para um fato. É, pelo con
trário, a transição de uma apreensão direta para um 4 Cf. Collected Papers de Ch. S.
P
ei r c e
,
6.493.
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pensamento, do fato de uma subjugação pela pre sença de Deus para uma consciência da sua essência. Percebendo a dimensão espiritual de todos os seres, tomamos consciência da realidade absoluta do divino. Ao formular um credo, ao afirmar que Deus existe, apenas reduzimos a realidade suprema ao nível do pensamento. Nossa fé é só uma reflexão posterior. Em outras palavras, nossa fé na realidade de Deus nãopostular consiste oem primeiro ontológico. uma idéia e , depois seupossuir correspondente Ou, para usar uma frase kantiana, em ter a idéia de cem cruzeiros e depois afirmar que se tem os mesmos com base na idéia. O que ocorre aqui é primeiro a posse real dos cruzeiros e depois a ten tativa de contá-los. Há possibilidade de erros na contagem das notas, mas as notas existem. faseconsciência decisiva, de a transição esquecimento para Aüma Deus, nãodoé um salto por sobre um elo faltante num silogismo, mas uma re tirada em que se deixa de lado as premissas ao invés de acrescentar mais uma, em que se avança para além da autoconsciência e se interroga o eu e todas as suas pretensões cognocitivas. Não temos forças para chegar ao clímax do pensamento, não temos asas paraMas, nos às alçarmos todos os perigos de distorção. vezes, sobre esta mos inflamados contra e acima das nossas próprias forças e a menos que a existência humana deva ser considerada um asilo de loucos, a análise espectral desse raio é evidência para aqueles que o procuram.
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11 A fé
A fé em um atalho Já muitas vezes, os homens apresentaram mo tivos discriminados por que devem crer que Deus existe. Esses motivos são como trigo maduro que colhemos na superfície da terra. Mas é além de todas as razões, abaixo do solo, r%ue a semente se transforma em árvore, ato deelevar fé se seus srcina.se Raramente a almaque sabeo como gredos mais profundos aos níveis discursivos da mente. Por isso não devemos equiparar o ato de fé com a sua expressão. A expressão da fé é uma afirmação de verdade, um juízo definitivo, uma con vicção, enquanto a fé em si é um ato, algo que acontece e não algo que se guarda. É um momento em Deus. que a alma do homem comunga com a glória de Qual é a natureza deste ato? Como surge? A pergunta do salmista — “Há algum homem de razão que procure a Deu s? ” (14,2 ) — foi assim interpretada pelo Rabi Mendel de Kotzk: Um ho mem que não tem nada mais que- a sua própria razão é capaz de procurar a Deus? Muitos de nós estão dispostos a embarcar em
qualquer aventura, exceto entrar em silêncio e es perar. Colocar toda a sabedoria no segredo do solo, semear nossa própria alma como semente nesse 91
pedaço de terra dada a cada vida que chamamos tempo — é deixar a alma crescer além de si pró pria. A fé é o fruto de uma semente plantada nas profundezas da duração de uma vida. Muitos de nós parecem pensar que a fé é um bom atalho para se chegar ao mistério de Deus, encurtando a interminável e vacilante estrada da especulação crítica. A verdade é que a fé não é um caminho, mas a abertura de um caminho, da cavado através passagem da alma das que montanhas deve ser da constantemente indiferença. es A fé tampouco é um presente que recebemos imere cidamente . Não encontramos as coisas feitas. A fé é o frulo de uma preocupação e uma vigilância penosa e constante, da persistência em permanecer fiel a uma visão. Não é um ato de inércia, mas um anseio de manter viva nossa resposta a ele. Assim como os homens são incapazes de notar os fenômenos mais óbvios da natureza se não esti verem interessados em conhecê-los, assim como não terão nenhuma introspecção científica aqueles que não estiverem preparados, da mesma forma são in capazes de perceber o divino se não se tornam sen síveis ao seu valor supremo. Sem a pureza da von tade a mente não oferece passagem para a impor tância de Deus. Caminhos da fé A fé nasce naquele que suspira apaixonadamen te pelo sentido supremo das coisas, que está atento à sublime dignidade do ser, que é sensível à mara
vilha da matéria, ao insuspeitado núcleo que existe dentro do conhecido, do evidente, do concreto. Para perceber o que é tão esmagadoramente 92
óbvio para o homem piedoso devemos suspender as trivialidades do pensamento, deixar de ridicularizar as percepções únicas e de sufocar nossas mentes com noções estandardizadas. O maior obstáculo à fé é a tendência de contentar-nos com meias ver dades e meias realidades. A fé é dada só àquele que vive com toda a sua mente e com toda a sua alma, que procura compreender com todos os seres e não busca apenas um conhecimento a respeito de les, àquele cuja preocupação permanente é cultivar nosso senso incomum, a educação do sentido do inefável5. A fé é encontrada na solicitude pela fé, na atenção apaixonada ao maravilhoso que existe em toda parte. Como a primeira na lista das virtudes, essa ardente preocupação estende-se não só à esfera mo ral, mas a todos os domínios da vida: a nós mesmos e aos outros, às palavras e aos pensamentos, aos acontecimentos às ações.daSem se acovardar com a predominante e estreiteza mente, persiste como uma atitude que se relaciona com toda a realidade: dá valor às pequenas coisas, leva a sério os assun tos simples, relaciona as questões cotidianas com o eterno. Não é uma atitude de afastamento da rea lidade, de absorção passiva ou de auto-aniquilamento. É, sim, a capacidade de testemunhar o que é sagrado aos negócios deste emundo e de alimentarem ummeio sentimento de vergonha desconten tamento de viver sem fé, sem corresponder ao sa grado . 5 “ É da natureza daquilo que é evidente por si mes mo não ser evidente a toda mente, mesmo a menos desen volvida, mas ser apreendido diretamente só por mentes que alcançaram certo grau de maturidade. E para que as men
tes atinjam maturidade, vimento que osenecessário verifica degrau umadegeração a outrao édesenvol tão im prescindível como o que se realiza da infância para a vida adulta ” . W. D . Ross — The Rigbt and the Good, p. 12.
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Estranhas e diversas são as fontes das quais nasce nossa insatisfação. Alguns de nós sofrem a tristeza de viver constantemente por ninharias, sen tem medo de uma pela mortemaneira desprevenida. vi vem angustiados como aOutros inocência nos . nossos próprios membros e palavras se encontra exposta à crueldade e temeridade das nossas pró prias forças. Outros há que sentem o encanto da santidade de viver para as suas leis. Ao invés de entregar-se à inveja e à ambição, ao invés de com prazer-se em si mesmos, resolvem manter seus cora ções vigilantes paraparte. o aspecto de alusão que nos circunda em toda Preferindo a bondade à beleza, o amor à força, á gratidão à tristeza, suplicando o Senhor para que nos ajude a compreender nossas esperanças, força para resistir aos nossos temores, podemos receber um suave sentido da santidade que impregna o ar como algo estranho que não se pode eliminar. Sus pirando e implorando a pureza da estaremos devoção emprepa^ meio aos escolhos da auto-indulgência, rando a aurora da fé. Alguns homens entram em greve de fome na prisão da mente, famintos que estão de Deus. Há uma felicidade, antiga e nova, nesta fome. A re compensa do ardente sonho que rompe as barras da prisão do pensamento é a percepção do intan gível . Alguns de nós se enrubescem Deus não deseja ficar só e o homem não pode ficar sempre fechado ao que ele deseja mostrar. Aqueles de nós que não conseguem resistir encon-
tram-se vezescom diante do Alguns invisíveldee nós co meçam aàs arder os da seusvisão raios. 94
enrubescem, outros se cobrem com sua máscara.. A fé é um enrubescer-se na presença de Deus. Alguns ruborizam, outros se cobrem com uma máscara que impede a sensibilidade espontânea para a dimensão santa e inefável da realidade. Todos nós nos cobrimos com tanta maquilagem que o nosso rosto quase desaparece. Mas a fé só vem quando nos encontramos face a face — o inefável dentro de nós com o inefável além de nós — quan do permitimos ser vistos, quando .nos dispomos, a comungar, a receber um raio e reflèti-lo. Para isso. a alma deve estar viva dentro da mente. A resposta a Deus não pode ser copiada. Deve ser srcinal de cada alma. Nem o sentido do divina é percebido quando imposto por uma doutrina, quan do aceito por ouvir dizer. Só entra no campo de nossa visão ao saltar como uma faísca da bigorna da mente, malhada e batida pelo temor, da reve* rência. Aqueles que o procuram por meio da abstração não o encontrarão. Ele não é uma pérola perdida no fundo da mente, que se encontra mergulhando, nas ondas dos argumentos. O maior não é. jamais, aquilo que se espera. É justamente na nossa incapacidade de com preendê-lo que dele mais nos aproximamos. A exis tência de Deus não é real por ser concebível. Elá é concebível porque é real. E ela é real para quem aprende a .viver em tremor e temor sem nenhuma, intenção, sem nenhum propósito de recompensa, para quem vive em tremor e temor porque não pode comportar-se de outra maneira, para quem vive na consciência do inefável, mesmo que este pareça louco, fútil e inconveniente.
numaPensar ocupação a respeito de tempo de Deus parcial, como torna um impossível “hobby”, até a colocação do problema. Com efeito, qual é 95
a questão que nos ocupa? Uma curiosidade seme lhante à da indagação a respeito da natureza da eletrônica? A eletrônica não nos pergunta nada, enquanto o começo da significação de Deus é a consciência da nossa dependência dele. Deus não é uma explicação dos enigmas do mundo ou uma garantia da nossa salvação. É um eterno desafio, uma interrogação que nos urge. Não é um problema a ser resolvido, mas uma interrogação dirigida a nós como indivíduos, como nações, como humanidade. Deus não terá nenhuma importância se não for da máxima importância, o que significa uma profunda certeza de que é melhor ser derrotado com ele que ser vitorioso sem ele. A prova da fé O homem que vive segundo a sua fé é aquele que — mesmo que os sábios de todo o mundo proclamassem, que a humanidade por uma esmaga dora maioria de votos endossasse e as experiências, que às vezes se adaptam às teorias favoritas dos homens, confirmassem que Deus não existe — pre pria feririarazão sofrercomo nas mãos íJolo. da Aquele razãoque, a aceitar emboraa sua sofren pró do, não vacila nem trai a dignidade do seu sentido de inadequação na presença do inefável. Pois a fé é um penhor qu? conservamos até a hora de passarmos para o além, que não será resgatada por nenhuma doutrina nem cedida em troca de compreensões. O que significa Deus, está expresso nas pa
lavras: a tua bondade melhor que prezo a vida” (Salmos“Porque 63,4). Deus é aquele é cujo olhar mais que a própria vida. Não se capta a fé observando os acontecimen 96
tos do mundo físico que se desviam das leis conhe cidas da natureza. De que servem milagres se nos sos sentidos não oferecem segurança, se nossos co nhecimento é incompleto? A fé precede toda ex periência palpável ao invés de derivar-se dela. Sem a posse da fé nenhuma experiência nos comunicará uma significação religiosa. No Cântico dos Cânticos está escrito: “Como uma macieira em meio às árvores do bosque” (2,3). O Rabi Aha Ben Zeira fez essa çomparação: “As flores da macieira brotam antes das folhas; assim Israel no Egito produziu a fé antes mesmo de ha ver percebido a mensagem da redenção, conforme está dito: “E o povo acreditou e ouviu que o Se nhor tinha se lembrado del e” . (Êx 4,3 1) (Midrash Hazita 2,10) 6. % 6 Midrash (singular) ou Midrashim (plural), do verbo hebraico darash que significa investigar, interpretar, são in terpretações ou comentários sobre os livros da Bíblia feitos geralmente pelos rabinos e hoje reunidos em várias coleções. A época em que se desenvolveram e foram compilados cobre um período que se estende desde a conclusão do An tigo Testamento até cerca do ano mil da nossa era. Entre tanto, já encontramos formas de midrash nos últimos livros do Antigo Testamento, por exemplo, em Ezequiel. Em o No vo Testamento temos o chamado midrash cristão, com parti no Evangelho de nos são Mateus, Epístolas ecular na freqüência pregação cristã cristalizada Atos dosnasApóstolos. O s midrashi m judaicos div idem-s e em dua s categorias: 1) os halákhicos (do radical hebraico halakh = caminhar e deste o substantivo halakha — caminho, norma), que são interpretações e explicações de caráter legal e jurídico; 2) os haggãdicos (do verbo hebraico nagadh = narr ar, expli car, donde o substantivo haggada = nar ração, exposição), que são interpretações e explicações da Bíblia com o obje tivo de edificação moral e espiritual, que contêm, muitas
vezes, elementos alegóricos e Mekhilta até partes(regra) legendárias. os primeiros enumeram-se: sobre oEntre Êxodo, Sifra (o livro) sobre o Levítico e Sifre (os livros) sobre Números e Deuteronômio. Da segunda categoria os mais importantes são: o Midrash Rabba (o grande) sobre todo
7 - O homem não está só
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Uma frase de Rabi Isa ac Meir de G e r7 ilus tra “E oIsrael que viu queremos a grande dizer.obra Comentando que o Senhor o versículo: tinha realizado contra os egípcios e o povo temeu o Se nhor e teve fé no Senhor e no seu servo Moisés” (Êx 14,31), observou: “Embora tivessem visto os milagres com seus próprios olhos, ainda precisavam de fé, porque a fé é superior à visão. Com a fé vê-se mais que com os olhos”. Um ato do espírito Na luz da fé não procuramos descobrir ou ex plicar, mas perceber e absorver as raridades do mis tério que transparecem de todas as coisas, não pro curamos conhecer mais, mas estar unidos àquilo que é mais que tudo o que possamos compreender. Só aqueles que julgam que todas as coisas na vida e na morte estão ao alcance da sua vontade, tentam enquadrar o mundo dentro do seu conhecimento. Mas quem pode permanecer indefinidamente insen sível à fragrância do sagrado derramado na vida? Com seu delicado sentido do divino em toda existência, do valor sagrado de todo ser, o homem piedoso pode renunciar ao prazer de conhecer, à emoção da percepção. Aquele que ama a grandeza do que a fé revela fica à distância da sua meta, evita procurar familiaridade com o que é necessariamente o Pentateuco e os cinco rolos, isto é, Cântico, Rute, La mentações, Eclesiastes e Ester, os Tanhuma Midrashim, que incluem muitas homilias do rabi Tanhuma do IV sé
culo, éosumVesikta citado no Midrashim. O Midrash Hazita sendo texto comentário sobre o Cântico dos Cânticos, também conhecido sob o título Shir-ha-Shirim Rabba. (N. do T.). 7 Rabino has sídico da Polônia. (N . do T . ) .
oculto e não busca provas nem milagres. A exis tência de humano. Deus nunca poderá ser provada pelo pen samento Todas as provas são meras de monstrações da nossa sede dele. Acaso um homem sedento tem necessidade de uma prova da sua sede? O reino para o qual está orientada a nossa fé pode ser avizinhado, mas não penetrado. Dele nos podemos aproximar, mas não podemos entrar nele. Podemos desejá-lo, mas não captá-lo. Podemos sen ti-lo, mas do nãolado examiná-lo. tei^fé é ficar dentro racio nalmente de fora Pois e espiritualmente do mistério. A fé é um ato do espírito. O espírito tem poder de reconhecer a superioridade do divino. Tem força para perceber a grandeza do transcen dente, para amar a sua superioridade. O homem de fé não se deixa seduzir pelo que é ostensivo. Abstém-se intelectual e despreza triunfo do da que arrogância é meramente ób vio. Sabe que poso suir a verdade é ter devoção a ela. Alegrando-se mais em dar que em adquirir, mais em crer que em perceber, pode deixar de lado as deficiências da razão. Este é o segredo do espírito, que não é revelado à razão: a adaptação da mente ao que é sagrado, a humildade intelectual em presença do supremo. A mente rende-se mistério do espírito não por resignação, mas por aoamor. Entregando seu destino à realidade última, entra em íntima relação com Deus. Confiar é render-se? Crer é um sacrifício? É bem verdade que as crenças não estão garantidas por uma demonstração nem são inexpugnáveis por objeções. Mas acaso bondade significa servir só en
quanto houver recompensa? É mais fácil abalar tor res que sepulturas. A dúvida, a contestação e a frustração insistente pode transformar templos em ruínas. Os homens de fé que plantam pensamentos
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sagrados nos planaltos do tempo — os jardineiros secretos do Senhor em meio à humanidade desolada de esperanças — podem ser sacudidos e hesitar, mas raramente trairão sua vocação. É extremamente fácil ser cínico. É tão fácil negar sua existência como o é cometer suicídio. Mas ninguém está privado de alguma medida de sugestionabilidade em relação ao Santo. Até as almas mais pobres têm asas que as elevam acima de onde o desespero vê o teto de uma prisão.
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12 O que entendemos por divino
O perigo das palavras O grande segredo parece não ter nenhuma afi nidade com doutrinas de qualquer espécie que se jam. Dificilmente haverá um símbolo que, quando usado, não diminua ou mesmo destrua a compreen são ou recordação do incomparável. opiniões confundem e dificultam as intuições. As análises e definições tomam o nome de Deus em vão. Não temos nem imagem nem definição de Deus. Pos suímos somente o seu nome. E o nome é ine fável . Por isso o homem piedoso não se distingue pela paixão de exprimir em palavras aquilo que co nhece, consciente que está do perigoExpressando-nos de desperdiçar irrecuperavelmente a parte melhor. deixamos sair algo de que estamos repletos, e o homem piedoso deseja viver essa realidade ao invés de livrar-se dela. A eloqüência é uma qualidade rara nos santos. Também é natural que a expressão da realidade mais profunda seja tridimensional, sen do que a sua significação literal simplesmente reflete
a superfície daquilo que a expressão tenta trans mitir . Se um poeta e um homem piedoso se referis sem um ao outro, o poeta poderia dizer: “Expresso 101
tudb o que ele vive”, e o homem piedoso: “Tudo o que ele expressa eu vivo”. O teórico, em vez de colocar-se face a face diante dos mistérios, coloca seus espelhos mentais diante dele, transformando os mistérios em mitos, reduzindo os enigmas a dogmas e colocando a ima gem nos espelhos. Parece não perceber que a idea lização das idéias leva a uma atrofia da intuição do inefável; que podemos perder a Deus em nosso credo, em nossas palavras, em nossos dogmas. Vale a pena gastar uma vida inteira para dizer como nossos pensamentos descobrem a pátina do sagrado na superfície do que é comum. Mas os pensamentos em que possa ser identificada tal des coberta são raros e as palavras mais vitais morrem quando pronunciadas. E por isso que Deus começa onde terminam as palavras. Mas ninguém pode viver só do mistério. A consciência do inefável assemelha-se ao escutar de uma interrogação de um pedido. Solicita-se algo de nós. O quê? Somos impelidos a conhecer a Deus para conformar-nos aos seus caminhos. Mas para conhecê-lo teríamos que chegar quase ao impossível: traduzir o inefável em termos positivos. Surge, assim, o problema: se para ser conhecido o ine fável o conhecemos tem que ser como expresso, ele nãonãoé?se segue daqui que As compreensões da religião precisam percor rer uma longa distância até chegar à expressão e facilmente podem definhar ou até morrer no ca minho que medeia entre o coração e os lábios. Nossa consciência é imediata, mas nossas interpre tações são discursivas. Muitas vezes ocorrem aci
dentes noquando tráfegosobcongestionado da alma,mais particu larmente o esforço de perceber que o coração é capaz de ouvir, fazemos compromissos com palavras que nos desviam do caminho.
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A intuição de Deus é universal. Entretanto, dificilmente haverá uma forma universal ■— com poucas possíveis exceções — de expressá-la. Efe tivamente, as concepções sobre a divindade têm apre sentado, através da história, muitas divergências e contradições entre si, desenvolvendo-se às vezes co mo erva daninha, sendo causa de espinhos e discór dias. Se a uniformidade e a impecabilidade de ex pressão fossem a marca da autenticidade, essa di vergência e distorção refutaria nossa suposição da realidade do mistério. Mas o fato é que as opiniões dos homens sobre Deus através da história não apresentam maior variedade, que, por exemplo, suas opiniões acerca da natureza do mundo. Padrões de expressão Devemos tomar cuidado para não violar o sa grado, a fim de que nossos dogmas não sufoquem o mistério e nossos salmos não o afastem com suas palavras. O direito de interpretação só é dado a quem vela o seu rosto, “com medo de olhar para Deus”, àquele que quando a visão se lhe impõe, diz: “Estou perdido porque meus olhos viram o R . Só podemos beber das a torrente dos pensamen tosei”sorvendo-os da rocha suas palavras. Só pa lavras que não seriam triviais na presença de um homem agonizante, só idéias que não empalidece riam diante do sol nascente ou em meio a um vio lento terremoto: “Deus é um Um” ou “Santo, San to, Santo é o Senhor dos Exércitos” . . . podem ser usadas como metáforas quando se fala de Deus.
O inefável entra hora numaentra palavra da mesma maneira como a só próxima no caminho do tempo: quando não houver outras horas no cami nho. Falará quando de todas as palavras só uma
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for digna. Pois o mistério não é sempre evasivo. Em raros momentos entrega-se àqueles que foram escolhidos. Não podemos expressar Deus, mas Deus nos expressa a sua vontade. É através da sua palavra que sabemos que Deus não está além do bem e do mal. Não fosse a orientação recebida, nossa emoção nos deixaria num estado de confusão. O que entendemos por divino? Como identificamos o divino? Para o reconhe cermos deveríamos conhecê-lo. Mas se nosso conhe cimento dependesse de atos de uma comunicação divina, nunca seríamos capazes de identificar tal co municação como divina. disso, se torna válida ou dignaAlém de fé por uma causaidéia das não circunstâncias em que entra em nossa mente. Nunca podemos defender uma verdade em nome das dores de parto em que nasceu. Qualquer mensagem que se apresenta como divina deve apoiar-se em si mesma e estar impreg nada de uma significação única que a identifique como divina. Se aparecesse uma pessoa entre nós e anunciasse uma idéia que exames lhe foi críticos comunicada de maneira miraculosa e nossos até con firmassem a maneira divina da sua experiência, sen tir-nos-íamos por isso obrigados a aceitar a sua idéia como válida e verdadeira? E não seria melhor a sorte da nossa própria experiência interior. É necessário que tenhamos uma idéia a priori do divino, uma qualidade ou relação que nos represente a realidade última, pela qual
sejamos capazes de identificá-la quando nos for dada em tais atos. A necessidade forçada não é uma marca do 104
altíssimo. Tampouco nosso sentimento ou estado de absoluta dependência constitui um índice da sua presença. A força física ou as obsessões internas podem subjugar-nos numa coação irresistível. Co mo já foi dito muitas vezes, o sobrevivente de um naufrágio, que se agarra a uma tábua flutuante, en contra-se num estado de absoluta dependência da tábua. Não se pode empreender nenhuma pesquisa tir. O sem alguma cientista pressuposição ao formular ou perspçctiva um problema dondedeve par até certo ponto antecipar o conteúdo da solução que procura, pois de outra forma não saberia o que está indagando nem seria capaz de julgar se as soluções que encontrar são pertinentes ao seu problema. A filosofia foi definida como uma ciên cia com um mínimo de pressuposições, pois não há maneira de progredir em nossos pensamentos sem alguma perspectiva, sem alguma suposição inicial. Essa suposição inicial encontra-se no começo de toda especulação acerca de Deus. Para a mente especulativa Deus é o ser mais perfeito. O atri buto da perfeição e sua implicação de sabedoria serve de ponto de partida para as indagações a respeito da existência e da natureza de Deus. O atributo da perfeição A noção de Deus como um ser perfeito não é de srcem bíblica. Não é produto da religião profética, mas da filosofia grega. É um postulado da razão e não uma resposta direta, obrigatória, ini cial do homem à sua realidade. No decálogo Deus
não diz que ele é perfeito, mas que transformou escravos em homens livres. Significando um estado sem defeito e sem falha, perfeição é um termo de 105
louytor que podemos usar ao darmos vazão à nossa emoção. Mas empregar esta palavra como nome de sua essência significaria para o homem avaliá-lo e confirmá-lo. A linguagem bíblica está livre de tal insolência. Esta só ousou chamar de tamim, per feita, a “Sua obra” (Dt 32,4), “Seus caminhos” (2Sam 22,31) ou a “Lei” (Sl 19,7). Em lugar algum lemos: “Ouve, Israel, Deus é perfeito!” É um atributo notadamente ausente, tanto na litera tura bíblica, como na rabínica. Quem somos nós para glorificá-lo ou mesmo para nomeá-lo? Entre nós nunca se pronuncia o Nome Inefável e em lugar dele usamos uma pará frase — o Senhor — que, em nosso vocabulário é um título de distinção menor. Isso, segundo o Rabi Pinchas de Koretz, não porque sua majestade seja limitada, mas porque nosso mundo é de impor tância menor. Um grande imperador tem, entre ou tras denominações, o título de “soberano” de certa ilha. Esse título é de menor valor porque a ilha é pequena8. Mas há uma idéia que transporta nos sos pensamentos além do horizonte da nossa ilha. Uma idéia que se dirige a todas as mentes e é taci tamente aceita como um axioma pela ciência e como um dogma pela religião monoteísta. É a idéia do uno. Todo conhecimento e compreensão se ba seia na sua validade. Não obstante as profundas diferenças daquilo que descreve e significa nos vá rios campos do pensamento humano, há muita coisa comum e de recíproca importância.
8 Nofet Zujim, 22. (R abin o hassídi co do séc ulo pa s sado . (N . do T . ).
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A idéia do universo A perspectiva da qual dependemos na ciência e na filosofia, apesar de toda a especialização e me ticulosidade no estudo dos pormenores, é uma visão do todo, sem a qual nosso conhecimento seria como um livro composto exclusivamente de iotas. As sim, todas as ciências e filosofias têm um axioma em comum: o axioma da unidade de tudo o que é, foi e será. Todas supõem que as coisas não es tão inteiramente divorciadas e indiferentes, umas em relação às outras, mas sujeitas a leis universais e que, pela sua interação ou, como diz Lotze, pela sua “relação simpática” formam um universo. Mas a possibilidade de sua mútua interação está condi cionada à unidade que pervade a todas as coisas. O mundo não pode existir senãè» como um. Sem unidade não seria um cosmos, mas um caos, uma aglomeração de possibilidades indefinidas. Os expoentes do pluralismo, ao afirmar que “a realidade é constituída de um número de entes relativamente independentes, cada um dos quais existe até certo ponto por si mesmo”, parecem negar a unidade fundamental e o universo como um todo. Mas enquanto põem em dúvida que essa unidade seja absoluta e penetre tudo a ponto de excluir o acaso e as indeterminações, são obrigados a complementar a hipótese pluralística por um prin cípio de unidade para explicar a interação dos entes independentes e aquilo que faz da realidade um mundo 9. A teoria da relatividade não contradiz a dou trina da constância e da unidade da natureza. Mos
trando que a simultaneidade de dois processos é Cf. C. A. Richardson, Philosophy, pp. 82s. 9
Spiritual Realism and Recení
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relativa e que as grandezas são determinadas pelo sistema de referência em que são medidas, sua fi nalidade é encontrar novas invariáveis, descrevendo a realidade de uma maneira que seja independente da escolha do sistema de referência. Não exclui o princípio de unidade, mas, pelo contrário, procura “satisfazer a uma nova e mais estrita exigência de unidade” 10. Se é impossível seguir o caminho mediante o qual o grande segredo da unidade que não tudofoiabrange chegou até nossas mentes, é certo que obti do por mera percepção dos sentidos ou por meio de uma mente que pensou em prestações, através de uma série de graus distintos, cada qual logica mente dependente do anterior. Aquilo a que se re fere a idéia do universo transcende o alcance da per cepção ou a extensão de qualquer premissa possível, incluindo coisas conhecidas e odesconhecidas, srcens e fins, fatos e possibilidades, passado pré-histórico e o futuro distante, fenômenos já descritos por Newton e fenômenos que serão observados daqui a mil anos. A idéia do universo é uma introspecção metafísica.
Fraternidade cósmica A intuição desta unidade, que tudo penetra, muitas vezes produz no homem a sensação de viver em fraternidade cósmica com todos os seres. Da consciência da unidade da natureza nasce freqüen
temente a emoção de ser um com a natureza. 1° E rn s t C assi rer , Substance and Function and Eins tein's Theory of Relativity. Chicago, 1923, pp. 373s.
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“Sou o olho com o qual o Universo Se vê a si mesmo e se sabe divino” (Shelley, “Hino de Apoio” VI, ls). Há uma profunda significação filosófica nesta piedade cósmica. O conhecimento só é possível por causa da afinidade entre conhecedor e conhecido, porque a inteligência do homem parece correspon der à inteligibilidade do mundo. Mas acima e além disso há outra afinidade: a afinidade do ser. Todos nós — homens, estrelas, flores, pássaros — pertence mos ao mesmo elenco representando o mesmo dra ma inexplicável. Todos nós temos um mistério em comum — o mistério do ser. Mas seremos todos um quanto à finalidade? Todos temos em comum o ser e até o sofrimento e a luta pela existência. Mas têfiemos em comum também os objetivos e compromissos? A posição do homem na natureza é demasiadamente distinta para justificar a idéia de que a sua vocação deve conformar-se aos seus caminhos ou identificar-se com a sua essência. O reino do ser e o reino dos valores A idéia da unidade da qual a piedade cósmica deriva a sua inspiração é uma meia-verdade. As coisas da natureza podem constituir uma unidade, mas o reino dos valores parece oscilar entre o bem e o mal e em muitas outras dire ções. A história não é menos nosso ambiente que a natureza, e os conflitos que dentro dela se travam assemelham-se mais a um permanente estado de guerra entre dois
princípios hostis que a uma esfera de harmonia. É realmente uma tentação espiritual meditar sobre a fraternidade cósmica de todos os seres ou entre 109
gar-nos de uma vez por todas ao espírito do todo. É suspeitosamente mais fácil sentir-se um com a natureza que sentir-se um com cada homem: com o selvagem, com o leproso, com o escravo. Aqueles que sabem que ser um com o todo significa existir para cada parte do todo, procurarão amar não só a humanidade, mas também o homem individual como se fosse todos os homens. Quando nos deci dimos a servir aqui e agora, descobrimos que a visão da unidade abstrata desaparece da vista como um raio e o que permanece são as trevas de uma noite chuvosa, em que devemos lutar com suor e lágrimas contra a escravidão para produzir um raio de claridade, para acender uma tocha. Os politeístas são cegos para a unidade que transcende um mundo de multiplicidade, enquanto os monistas esquecem multiplicidade de um mundo cuja abundância e desarmonia encontramos para on de quer que nos voltemos. O monismo é um tear de ilusões. A vida é intrincada, encarniçada e ins tável. Não podemos ficar coerentes com todos os objetivos. Constantem ente somos obrigados a fazer uma opção e a opção por uma coisa significa uma renúncia a outra. Ainda que se admita a sua validade, a idéia concórdia de uma harmonia geral nas universal relações da da parte natureza, para de comuma o todo, é destituída de valor para os problemas ime diatos da vida. Por mais intrincada, sábia e pró diga de beleza que seja a natureza, nós, em nossa confusão humana, somos incapazes de traduzir suas leis gerais para a linguagem das decisões individuais, pois decidir significa transcender e não seguir o pa
drão das leisumnaturais. da vida constituem desafio As paranormas a natureza e espiritual não uma parte da natureza. Há uma discrepância entre o ser e o espírito, entre os fatos e as normas, entre o 110
que é e o que deve ser. A natureza tem pouca con sideração para com as normas espirituais e muitas vezes é insensível, se não hostil, aos nossos empenhos morais. O homem é mais que razão. O homem é vida. Defrontar-se com a interrogação que tudo abrange, é defrontar-se com algo que é mais que um prin cípio, mais que um problema teó rico. Um prin cípio é algo que o homem pode conceber ou con verter num objeto da sua mente, Mas diante da interrogação suprema o homem sé sente chamado e desafiado para além das palavras nas profundezas da sua existência. Não se trata de um problema que ele compreende, mas do fato de estar exposto a um conhecimento que o compreende a ele. De que vale, então, o conhecimento de princípios, dos princípios matemáticos? O uno não é Deus Deus é uno, mas o uno não é Deus. Há entre alguns de nós a tendência de divinizar a única força ou lei suprema que regula todos os fenômenos da natureza, da mesma maneira como os povos primi tivos divinizaram as estrelas. Mas referir-se à lei suprema da natureza como sendo Deus, ou dizer que o mundo surgiu em virtude da sua própria energia é dar o problema como provado. O problema fundamental não é qual a lei que explica a interação dos fenômenos do universo, mas por que há uma lei, por que há um universo. O conteúdo e a operação da lei universal pode ser concebido e descrito, mas o fato da existência de
tal lei não faz perder o seu caráter inefável pelo conhecimento que possamos alcançar acerca da sua operação. 111
Instilar explicações científicas da natureza nu ma alma que vive o sagrado temor do inefável é como plantar flores artificiais no meio das flores de um jardim. A não ser que neguemos o que sen timos, que sucumbamos ao narcisismo intelectual, como podemos considerar o que conhecemos como sendo a realidade suprema? Conforme já dissemos acima, não é a ordem e a sabedoria da natureza que são manifestos no tempo e no espaço, mas dentro de toda ordem e sabedoria a indicação daquilo que as transcende, do que está além do tempo e do espaço, que nos co munica a consciência dos problemas supremos. O mundo está repleto dessa indicação. Para onde quer que nos voltemos encontramos o inefável, mas os nossos sentidos são muito fracos e insuficientes para captá-lo. Se o universo é uma imensa alusão e nossa vida interior uma citação anônima, a desco berta de uma lei universal que dominasse a reali dade empírica não responderia à nossa interrogação essencial. O problema último não é um problema de sintaxe, de entender como as várias partes da natureza são colocadas e dispostas nas suas relações mútuas. O problema é: o que é que representa a realidade, a unidade? Descrevemos as leis univer sais por meio das relações dentro do dado, do co nhecido. Mas diar.te da questão última somos leva dos para além do conhecido, à presença do divino. Da pluralidade empírica dos fatos e valores, não podemos deduzir um plano que domina tanto o reino dos fatos como o domínio das normas, tanto a natureza como a história. Só no espelho da uni dade divina podemos contemplar a unidade de tudo: da necessidade e da liberdade, da lei e do amor.
Só ela nos dá uma introspecção na unidade que transcende todos os conflitos, a fraternidade da es perança e da tristeza, da alegria e do medo, da torre 112
e da sepultura, do bem e do mal. A unidade como um conceito científico é só um reflexo de uma idéia transcendente, que abrange só o otempo e o espaço, mas também o ser enão o valor, conhecido e o mistério, o aquém e o além. Deus não pode ser reduzido a uma idéia bem definida. Todos os conceitos se desfazem quando aplicados à sua essência. Para o homem piedoso o conhecimento de Deus não é um pensamento ao seu alcance, mas uma forma de pensar em que pro cura compreender toda a realidade. É o segredo não revelado do solo em que todo o conhecimento se transforma numa semente de sentido, um segre do pelo qual vivemos e que jamais chegamos a en tender realmente. Um solo do qual as raízes de todos os valores exaurem perene vitalidade. Acima e contra a divisão entre homem «se natureza, entre o eu e o pensamento, entre o tempo e a tempora lidade, o homem piedoso é capaz de perceber o entrelaçamento de tudo, a união do que está sepa rado, o amor que paira sobre os atos de bondade, as montanhas, as flores, que brilha no seu esplendor como se fosse contemplado por Deus. Como podemos identificar o divino? O divino é uma mensagem que revela unidade onde vemos diversidade, que revela paz onde nos envolve a discórdia, Deus é aquele que mantém uni das nossas vidas vacilantes, que nos revela que o que é empiricamente diverso em cor, em interesse, em credos, em raças, classes e nações é um aos seus olhos e um na essência. Deus significa: ninguém está só; a essência do temporal é o eterno; o momento é uma imagem de eternidade num mosaico infinito. Deus significa:
União de todos os seres em santa alteridade. Deus significa: o que está atrás da nossa alma está acima do nosso espírito; o que está na raiz 3 - O homem não está só
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de nós mesmos está no fim de nossos caminhos. Ele é o coração de tudo, desejoso de receber e de sejoso de dar. Quando Deus se torna a nossa forma de pen sar, começamos a sentir todos os homens num ho mem, o mundo inteiro num grão de areia, a eter nidade num momento. Para a ética profana um ser humano é menos que dois seres humanos. Para o espírito religioso causar a morte de uma única alma é como causar a morte de todo um mundo e salvar a alma é como salvar o mundo inteiro. Se à luz de uma introspecção religiosa eu con seguir vislumbrar um caminho para concentrar mi nha vida dispersa, para unir o que está dividido em discórdia, um caminho que é bom para todos os homens como o é para mim, saberei que este é o seu caminho.
Mishn a Siné drio, 4,5 . Mishna, da raiz hebraica shanah ~ repetir, é o nome da primeira coleção oficial da doutrina judaica pós-bíblica, compilada pelo rabi Judas, o Santo, e m fins do sécul o I Í da nossa era. D e car áter pre dominantemente jurídico, está dividida em seis ordens (sedarim) que por sua vez se dividem em 73 tratados (massekhtoth), entre os quais se encontra o tratado Sinédrio (tri bunais) citado no texto. Posteriormente a Mishna foi in cluída no Talmud. O Talmud, do radical hebraico lamad = estudar, é o grande corpu s ou col eção das dou trinas r a11
dos bín icas rabinos . Inclui posteriores a Mishna à Mishna. e os comentári Existem osdoise interpr Talmud:etações o Talmud Palestinense ou Hierosolimitano e o Talmud Ba bilónico . Su a redaçã o final ocorreu ent re o sécul o IV e V II d.C. (N . do T. ).
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13 Um Deus
A atração do pluralismo É estranho que os estudiosos modernos da re ligião não percebam a constante necessidade de pro testar contra o pol iteísmo. A idéia da unidade não é só uma idéia da qual depende a justificação final do universalismo filosófico, éticd&í e religioso. É parte tambémdosuma homens. idéia queAtéestáhoje foraodomonoteísmo alcance da maior está em luta com o pensamento popular. É algo contra o que o instinto popular continua a rebelar-se. O politeísmo parece ser mais compatível com as ten dências e a imaginação emocionais que o monoteís mo sem compromissos. Grandes poetas sentiram-se atraídos para os deuses pagãos. Em todo o mundo o politeísmo fortes exercee uma sedução hipnótica despertando latentes desejosquase de formas pa gãs. Obviamente é mais fácil para uma mentali dade mediana um culto de idéias politeístas que um culto de concepção monoteísta. Mas, enquanto a imaginação popular e mesmo a poética é fascinada pela visão de um pluralismo supremo, o pensamento metafísico e a reflexão cien
tífica sentem-se atraídos para o conceito de unidade.
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A unidade como objetivo É impossível ignorar o fato evidente de que o avanço ininterrupto do conhecimento e da expe riência nos leva à unidade, quer a procuremos cons cientemente, quer não. Em nossa época somos obri gados a reconhecer que, em termos de relações hu manas, ou haverá um só mundo ou nenhum. Mas a unidade política e moral como meta pressupõe a unidade como fonte. A fraternidade dos homens seria um sonho vão sem a paternidade de Deus. Eternidade é outra palavra para a unidade. Nela o passado e o futuro não estão separados. To dos os lugares estão aqui reunidos e continuam para sempre. O oposto da eternidade é a difusão, não o tempo. A eternidade não começa quando o tempo chega ao fim. Tempo é eternidade partida em es paço,Acomo visãoumdoraio raiodenão luz quebrado refrangidoacima na água. da água, o anseio por unidade e coerência, é o aspecto pre dominante de um espírito maduro. Toda a ciência, toda a filosofia e toda a arte são uma busca da uni dade. Mas a unidade é uma tarefa, não uma con dição. O mundo encontra-se em luta, em discórdia, em divergência. A unidade está além, não dentro da realidade12. Todos ela. Estamos todos animados de umaansiamos vontade por apaixonada de per manecer, e permanecer significa ser um. 12 “ És tu quem os ligas e un es e sem ti não há un i dade nem em cima nem em baixo” — Segunda Introdução ao Tikkne Zohar. Zohar, que significa esplendor, é o grande livro da Cabala e do misticismo judeu. Foi escrito em torno do ano 1300 na Espanha, sob forma de comen tário à Bíblia. Na verdade o seu conteúdo é uma filosofia
místico-religiosa e seus são a ao natureza de Deus, a maneira como temas ele se principais tornou conhecido mun do, a alma humana, o bem e o mal, a importância da Torá, o M ess ias , a reden ção. (N . do T . ) .
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O mundo não é um com Deus, e é por isso que o seu poder não corre livremente através de todos os degraus do ser. A criatura está separada do Criador e o universo se encontra num estado de desordem espiritual. Mas Deus não se retirou com pletamente deste mundo. O espírito desta unidade paira sobre a face de toda a pluralidade, e a tendên cia mais forte de todos os nossos pensamentos e esforços é a sua poderosa intimação. A meta de todos os esforços é alcançar a restituição da uni dade de Deus e do mundo. A restauração desta unidade é um processo constante e a sua realização será a essência da redenção messiânica. Não se nega a pluralidade % do é Xenófanes uno” . Parmênides, contemplando levando o universo a sério dizia: o uno“Tu foi levado a negar a realidade de qualquer outra coisa. Moisés, porém, não disse: “Tudo é uno”, mas “Deus é Uno” . No mundo há o fato refratário da plurali dade, da divergência, do conflito: “Eis que coloquei diante de ti neste dia a vida e o bem, a morte e o mal” (Dt 30,15). Mas Deus é a srcem de tudo: “Eu sou o Senhor e não há nenhum outro além de mim; Além de mim não há Deus. . . Eu sou o Senhor e não há nenhum outro além de mim; Eu formo a luz e crio as trevas;
faço oa Senhor paz e que crio faz o mal; Eu sou todas estas coisas” (Is 45,5-7). 117
Para onde irei? A visão do Uno, pelo qual empenhamos nossos esforços e nossa suprema esperança, não será alcan çada em contemplações da natureza e da história. É a visão daquele que transcende os cenários de ambas, oculto, mas presente em toda parte, dando-nos forças para ajudar a realizar a unificação su prema . “Onde me esconderei do teu espírito Ou para onde fugirei de tua presença? Se subir até os céus, lá estás; Se me esconder no mundo dos mortos, lá estás. . . E se eu disser: certamente as trevas me cobrirão; E a luz ao meu redor se fizer noite; Mesmo as trevas não são escuras para ti” (Sl 139,8-12). O pensamento mítico-poético deixa-se seduzir pela beleza das ondas espumantes, pelo seu movi mento incansável e pelo seu ritmo interminável. Atendo-se ao fragmento, toma o instrumento como fim, possui uma imagem, uma expressão que corres ponde à sua própria experiência. Pelo contrário, aquele que toma a sério o inefável não se apaixona pelo fragm ento. Para a sua mente não há nenhum poder no mundo que possa apresentar o ar da di vindade . Nada do que podemos contar, dividir, ultra
passarcomo a fração ou a pluralidade podedeser conside rado a realidade última. Acima dois existe um. A pluralidade é incompatível com o sentido do inefável. Com relação ao divino não se pode
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perguntar: qual deles? Só há um sinônimo para Deus: Um. Para a mente especulativa, a unicidade de Deus é uma idéia deduzida da perfeição suprema de Deus. Para o sentido do inefável a unicidade de Deus é auto-evidente.
Escuta, ó Israel 'v
Nada é mais sagrado na vida dos judeus que a recitação do Shema: “Escuta, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um” . Em todo o mundo “o povo aclama a sua Unicidade ao entardecer e ao amanhecer, duas vezes por dia,..e com terna afei ção recita o Shema” (Kedusha de Musaf aos Sá bados) 13. A voz que chama: ele devoção é Um”, é evocada e revivida. Elá é o“Escuta, clímax da no encerramento do Dia da Expiação. É a última palavra que sai da boca de um judeu ao morrer e da boca daqueles que estão presentes a tal mo mento . Se perguntarmos a um judeu comum o que significa o adjetivo “um”, ele indicará a sua signi ficação negativa — nega a existência de muitos deuses. Mas valerá tal negação o preço do mar tírio que Israel tantas vezes esteve disposto a pagar por ela? Não há nela um conteúdo positivo que justifique a insuperável dignidade que a idéia de 13 Kedusha de Musaf é uma das classes de orações do Sidur —■ Livro de rezas culto judaico. Cf., por exemplo, o
ed. ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA para todo oDOano ISRAELITA RIOisraelita, DE JANEIRO e CONGREGAÇÃO
ISRAELITA PAULISTA EM SÃO PAULO, trad. por H. Lemle e F. Pinkuss. São Paul o, 1953. 508 pp . (N . do T .).
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um Deus alcançou na história do judaísmo? Além disso, levantadas o termo se temforam sentido quando dúvidas aplicado sobre a Deus. Pois “um”, como podemos designá-lo por um número? Um número é um dentre uma série de símbolos usados na dis posição de quantidades, para colocá-los em relação entre si. Visto que Deus não está no tempo e no espaço nem é uma parte de uma série, “o termo um é tão inaplicável a Deus como o termo muitos, pois tanto a unidadesendo comopor a pluralidade são cate gorias quantitativas, isso tão inaplicáveis a Deus como curvo e reto em relação a doçura, ou salgado e insípido em relação à voz” (Maimônides — Guia dos Perplexos I, 57). A coragem de atacar todas as divindades, as santidades de todas as nações, baseava-se em algo mais que a abstração: “Um, não muitos” . Atrás da revolucionária os deuses das nações são nada” afirmação: estava uma “Todos nova compreensão da relação do divino para com a natureza: “Mas ele fez os céus” (Sl 96,5). No paganismo a divindade era uma parte da natureza e o culto era um ele mento nas relações do homem com a natureza. Tanto o homem como as divindades estavam sujei tos à natureza. O monoteísmo ao ensinar que Deus é o Criador, que a redimiu natureza oe homem o homemdasão ambos criaturas de Deus, sujeição exclusiva à natureza. A terra é nossa irmã, não nossa mãe. “Os filhotes dos leões rugem por suas presas, E procuram receber seu alimento de Deus. . . As criaturas vivas, grandes e pequenas. . .
Todas esperam por ti. . . Que lhes dês o alimento no tempo certo” (Sl 104, 21, 25, 27).
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Os céus não são Deus, são suas testemunhas: proclamam a sua glória. Um significa único Um no sentido de “Um, não muitos” é apenas o início de uma série de significações. Não obstante a sua incongruência metafísica com a idéia espiritual de Deus, é uma barreira constante que detém a torrente do absurdo politeísta que permanentemente ameaça contagiar as mentes dos homens. Mas o verdadeiro sentido da unidade divina não está em ser ele um numa série, um entre outros. Não se chegou ao monoteísmo por meio de redução numé rica, diminuindo a multidão das ^ivindades ao me nor número possível. Um significa único. O mínimo de conhecimento é o conhecimento da unidade de Deus 14. Seu ser único é um aspecto do seu ser inefável. Lfeer que ele é mais que o universo seria o mesmo que dizer que a eternidade é mais que um dia. De uma coisa temos certeza: sua essência é diferente de tudo o que somos capazes de conhecer ou dizer. Ele não é só superior, ele é incomparável. Não há equivalente do divino. Ele não é “um as pecto da natureza”, não é uma realidade adicional 14 Em hebraico a palav ra ehad significa tanto um como único. É no último sentido que deve ser entendido ehad na passagem de 2Sam 7,23, incorporada ao serviço religioso
da tarde de Sábado: “Tu és Um e Teu nome é Um: e quem é semelhante ao Teu povo Israel único (ehad) sobre a terra?” Esta foi também a interpretação dos rabinos, cf. Bekhorot 6b. O Targmn traduz ehad por “Ünico” no Gê-
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que existe juntamente com este mundo, mas uma realidade que está acima e além do universo. “Ele é Um, e não há outro Para comparar com ele, para pôr a seu lado” (Yigdal) 15. “Com quem me compararás Para assemelhar-me a ele? Disse o Santo Uno” (Is 40,25). O Criador não pode ser comparado com o que ele criou: “Eleva teus olhos para o alto E vê: quem criou isso?” (Is 40,26).
Um significa somente Deus é um. Isto significa que só êle é verdadei ramente real. Um significa exclusivamente, nenhum outro a mais, nenhum outro além de, só, somente. nese 26,10. Ehad é tomado no sentido de Meyuhad, isto é, “único” diferente dos outros seres em Megillah 28a. Na literatura rabínica Deus é, às vezes, chamado Yehido shel o Ünico do universo, ou éYahid cf. co Tanhuma I, 49a: “porque Deus único be-olamo, no universo, olam,Buber nhece o caráter de cada criatura individual e suas mentes!” Ver também. Hullin 28a, 83b; Bek horot 17a. (A s palavras Bekhoroth (primogênitos), Megillah (volume de Ester) e Hullin (batimento de animais profanos) citadas no texto da nota são títulos de tratados da Mishna. O Targum é uma tradução parafrástica ou explicativa da Bíblia para a língua ar amai ca, feita nas primeiras épo cas rabínicas. (N . do T.).
15 formapalavra verbal e hebraica queumsignifica engrandeça”, éYigdl, a primeira o título de hino li-“que se túrgico judaico que contém em forma de verso os treze artigos da fé de Maimôni des . (N . do T . ) .
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Em lRs 4,29, bem como em outras passagens bí blicas, ehad significa “somente”. “O que somos nós? O que é nossa vida? O que é nossa justiça? O que é nosso auxílio? Nossa força? Nosso poder? O que podemos dizer na tua presença, Senbor nosso Deus e Deus dos nossos pais? Na realidade, todos os heróis não são nada diante de ti, os homens famosos como se nunca tivessem existido, os sábios como se não tivessem conhecimentos, os inteligentes conjo se fossem pri vados de entendimento, pois a maior parte das suas ações não têm valor e os dias da sua vida são vãos aos teus olhos” (Oração matutina judaica). Deus é Um. Só ele é real. “Todas as nações são como nada diante dele, são consideradas por ele como coisas insignificantes e vaidade” (Is 40, 17)' Somos e como água derramada no chão “que não mortais pode mais ser recolhida” (2Sam 14, 14). .
Um significa o mesmo
A mente especulativa só consegue formular in terrogações isoladas perguntando algumas vezes: qual é a srcem de todos os seres? e outras vezes: qual é o sentido da existência? Para o sentido do inefável só há uma interrogação que se estende além de todas as categorias de expressão, da qual se refletem alguns aspectos em perguntas como: quem criou o mundo? Quem dirige a história do homem? E a resposta de Israel é: Um Deus. Um designa unidade interna: sua lei é misericórdia; sua
misericórdia é le i16. 16 Ver notas 29 e 30.
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“Um”, neste sentido, significa “o mesmo”. Este é o verdadeiro sentido de “Deus é um”. Ele é um ser que está ao mesmo tempo além e aqui, na natureza e na história, que é simultaneamente amor e força, que está perto e longe, conhecido e desconhecido, o Pai e o Eterno. O verdadeiro con ceito de unidade só se atinge no conhecimento de que há um ser que é ao mesmo tempo Criador e Redentor. “Sou o Senhor, teu Deus, que te tirou da terra do Egito” (Êx 20,2). É com esta declaração da mesmidade, da iden tidade do Criador e do Redentor que começa o Decálogo 17. “Eles te pintaram em visões incontáveis; Apesar de todas as comparações Tu és Um” (Hino da Glória) 18. Ele é de uma só maneira: Seu poder é seu amor. Sua justiça é sua misericórdia. É uma idéia à qual podemos aplicar as palavras de Ibn Gabirol. Tu és Um E ninguém consegue penetrar. . . O mistério da tua unidade. . . 19. (Ibninsondável Gabirol, Keter Malhut) 17 O Decá logo não repre senta, como alguns autores afirmam, um henoteísmo tribal, no sentido de que a tribo de Israel reconhece só a ele, sem negar a realidade de ou tras divindades, que outras tribos continuavam a adorar. Um Deus do qual não devia ser feita nenhuma imagem, que criou “o céu e a terra, o mar e tudo o que eles con
têm” (Êx 20,11), não pode admitir a realidade de outras divindades. 18 O Hino da Glória faz parte da liturgia judaica, sendo reci tado diariament e no fim do cult o matinal . (N . do T . ) .
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O bem e o mal Os sentimentos morais não se srcinam na ra zão como tal. Uma pessoa muito estudada pode ser perversa e um homem totalmente iletrado pode ser bom. Os sentimentos morais do homem originam-se do sentido de unidade do homem, da sua apre ciação do que é comum aos homens. Talvez a afir mação mais fundamental da ética está contida nas palavras do último profeta de Israel: “Não temos todos um Pai? Não foi um Dehs que nos fez? Então por que somos infiéis uns aos outros, deson rando nossa outrora honrada verdad e?” (M l 2 ,1 0 ). O princípio último da ética não é um imperativo, mas um fato ontológico. Se é verdade que o que distingue uma atitude moral é a consciência da obri gação de agir assim, contudo, pqf outro lado, um ato não é bom porque nos sentimos obrigados a pra ticá-lo, mas sentimo-nos obrigados a praticá-lo por que ele é bom. A essência de um valor moral não está nem no fato de sua validade independentemente de nos sa vontade nem na sua exigência de dever ser rea lizado por si mesmo. Estas características referem-se somente à nossa atitude em relação a tais valo res, e não à sua essência. Além disso, exprimem um aspecto que se aplica tanto a valores lógicos como estéticos. Visto da parte de Deus, o bem se identifica com a vida e é orgânico com o mundo. A perver sidade é uma doença e o mal se identifica com a morte. Porque o mal é divergência, é confusão, é aquilo que aliena o homem do homem, enquanto
Keter Malchut, que significa “coroa real”, é um
famoso poema de Ibn Gabirol, filósofo judeu do século XI.
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o bêm é convergência, reunião, união. O bem e o mal não são qualidades da mente, mas relações dentro da realidade. O mal é divisão, contestação, falta de unidade e como a unidade de todo ser é anterior à pluralidade das coisas, assim o bem é anterior ao mal. O bem e o mal permanecem independentes do fato de lhes darmos ou não atenção. Não nascemos no vazio. Quer queiramos, quer não, encontramo-nos relacionados com todos os homens e com o Deus uno. Como não criamos as dimensões do es paço para construir as figuras geométricas, assim também não criamos as relações morais e espirituais. Estas são dadas com a existência. O que fazemos é unicamente ajustar-nos dentro delas. O bem não começa na consciência do homem. É o ser reali zado na cooperação natural de todos os seres, en quanto paranem os outros. Nãounssãoexistem as estrelas as pedras, nem os áto mos nem as ondas, mas o seu pertencer uno aos outros, sua interação, a relação de todas as coisas entre si, que constitui o universo. Nenhuma célula pode existir sozinha, todos os corpos são interde pendentes, influenciam-se e servem-se reciprocamen te. Falando figuradamente, até as pedras produ zem seus frutos, de uma bondade nãodeapre ciada quando suaestão força plenas mantém parede pé. Ele é tudo em toda parte
O Rabi Moisés de Kobrin disse certa vez aos seus discípulos: “Quereis saber onde está Deus?” Depois tomou da mesa um pedaço de pão, mos
trou-o a todos e disse: “Aqui está Deus” 20. 20 Or Yesharim, 87.
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Ao dizer que Deus está em toda parte, não queremos dizer que ele é como o ar, cujas partes se encontram em lugares incontáveis. Um em sen tido metafísico significa totalidade, indivisibilidade. Deus não se encontra parcialmente aqui e parcial mente ali. Está totalmente aqui e totalmente ali. “Senhor, onde poderei encontrar-te? Alto e oculto é teu lugar; E onde não poderei encontrar-te? O mundo está cheio da Haíevi) tua glória” (Judas 21. “Pode alguém esconder-se em lugares tão se cretos que eu não possa vê-lo? disse o Senhor. Por acaso não encho os céus e a terra? disse o Senhor” (Jer 23,24). Deus está dentro de todas as coisas, não só na vida do homem. “Por que Deus falou a Moisés de dentro da sarça?”, foi a pergunta que um pagão dirigiu a um rabino. Para uma mentalidade pagã, ele deveria ter aparecido sobre o alto de uma mon tanha ou na majestade de uma tempestade. E o rabino respondeu: “Para ensinar que não há lugar na terra em que não esteja a Shekhinah22, nem mesmo um humilde espinheiro” (Êxodo Rabba, 2, 9 cf. Cântico dos Cânticos Rabba 3,1 6) 23. Como a alma enche o corpo, Deus enche o mundo. Como a alma suporta o corpo, Deus suporta o mundo24. 21 Judas Halevi de Toledo poeta e filósofo que viveu entre os séculos X I e X I I . shakan, que significa 22 Shekinah, do verbo hebraico habitar, é uma palavra rabínica para designar a Presença Divina.
ÊxoÊxodo do, Gên ese see tc.etc. Ra Rabba23 do , Gêne ; cbbf. a noquer ta 6 dize ( N .r doo TM.idrash ). 24 Levítico Rabba 4,8; Deuteronômio Rabba 2,26; cf. Berakhot 10b.
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.0 natural e o sobrenatural não são duas es feras diferentes, separadas uma da outra como o céu da terra. Deus não aos estápensamentos, além daqui, mas mas tam aqui mesmo. Não só junto bém junto ao meu corpo, É por isso que se ensina que o homem deve estar consciente da sua presença não só pela oração, pelo estudo e pela meditação, mas também na sua vida física, em como e o que comer e beber, conservando o corpo livre de toda impureza e profanação. “Um ídolo está próximo e longínquo; Deus está longínquo e próximo” (Deuteronômio Rabba
2,6 “Deus está longínquo e, contudo, nada está
mais perto do que ele” {Je rushalmi Berakho t 13a) 25. E a sua alteridade, inefável e imediata como o ar que respiramos e não vemos, que nos torna capazes de sentir sua distante proximidade. “Pois assim falou o que é alto e elevado, que habita a eternidade, cujo nome é Santo: Eu habito o lugar elevado e santo, e também com aquele que é de espírito contrito e humilde, para revivescer o es pírito do humilde, e para revivescer o coração dos contritos” (Is 57,15).
A unidade de Deus e a unidade do mundo A unidade de Deus é a força para a unidade de Deus com todas as coisas. Ele é um em si mes mo e procura ser um com o mundo. O Rabi Sa muel ben Ammi observou que a narrativa bíblica
25 Jerushalmi Berakhot quer dizer o tratado (bênçãos) do Talmud Palestinense ou Hierosolimitano. (N. do T .).
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Berakhot
da criação proclama: “Um dia. . . um segundo dia... um terceiro dia”, e assim por diante. Tratando-se de contar o tempo, esperaríamos que a Bíblia dis sesse: “Um dia. . . dois dias. . . três dias”; ou: “O primeiro dia. . . o segundo dia. . . o terceiro dia”, mas certamente não um, segundo, terceiro! Yom ehad, um dia, significa na verdade o dia em que Deus desejou ser um com o homem . “Des de o começo da criação o Santo, bendito seja ele, desejou entrar em sociedade com o mundo terres tre” 26. A unidade de Deus é a referência para a unidade do mundo.
26 Gên ese Ra bb a cap . 3,9; ver neste livro cap . 23 — DEFINIÇÃO DA RELIGIÃO JUDAICA — Deus pre cisa do homem. 129
9 - O homem não está só
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Deus é o sujeito
O “eu” é “algo” Para o eu humano o mundo é um mundo pen sado por seu eu. Mas será que o eu humano, que entrou no mundo na última hora do tempo eterno, é um pioneiro sem predecessores em abrir um ca minho no vazio espiritual, na tentativa de criar idéias do nada, de tirar música do caos? Será a mente humana um vaga-lume na escuridão, que so zinha tenta iluminar a imensa amplidão da eterni dade? Só quem for prisioneiro da sua presunção pode afirmar que única e exclusivamente o homem é quem conhece. Qualquer pessoa cuja mente não esteja separada do seu sentido do inefável julgará impossível conceber que só o homem tem o privi légio de pensar, com exclusão de qualquer outro espírito, como se o mundo não fosse premeditado, como se suas qualidades significativas fossem precá rias, dependendo exclusivamente do espírito do ho mem. Ainda que seja concebível, é absurdo pensar que o homem é o único ser dotado de capacidades mentais e espirituais. O homem jamais é o pri
meiro a pensar a respeito de qualquer coisa, a rea lizar a estranha operação de converter uma coisa num objeto de pensamento. Pelo menos não con sidera ser ele o primeiro. O explorador que alcança
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a primeira vista de uma ilha desconhecida, não con segue de acreditar que nunca toda atenha belezasido e grandeza que acaba descobrir vista, nunca tenha sido pensada, nunca tenha sido apreciada an tes da sua chegada. Na rotina diária de pensar, pa rece-nos que o eu é o único fator ativo, o único poder que conta; que o mundo é apenas matéria para ser usada. E assim as idéias são também ape nas bens úteis para serem gastos e consumidos con forme das o desejo. Bem diverso eé-„o que ocorre na vida almas independentes criativas, que não tratam o mundo como donos auto-inflados, como sujeitos que se celebram a si mesmos. Abandonam tudo o que conhecem para se tornarem receptivos, para se transformarem num foco em que se possa captar a luminosidade do mundo. A percepção cria tiva não se realiza através de cálculos. Surge como uma resposta das dentro de impõe uma experiência emsujeito que a significação coisas sua força ao da experiência. Para o sentido do inefável o mundo não é solo virgem. O mundo ê e ê pensado. A eterni dade é a memória de Deus. O mundo está diante de nós, enquanto Deus está atrás de nós. Quanto mais profundamente estivermos aten tos interioridade em todascom as todas coisas e aoà mistério do ser que que reside compartilhamos as coisas, tanto mais profundamente compreendere mos a natureza do objeto do eu. Começamos a en tender que o que é um “eu” para nossas mentes é “algo” para Deus. Por isso a consciência de ob jeto, e não a consciência de eu, constitui o ponto de partida para nossos pensamentos a respeito dele.
É em nossa consciência objeto começamos a compreender que Deus édemais queque o divino.
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Õ pensamento de Deus não tem fachada Acostumados a pensar em categorias de espaço concebemos a Deus como estando diante de nós, como se nós estivéssemos aqui e ele ali. Pensamos acerca dele como pensamos sobre as coisas, como se ele fosse uma coisa entre outras coisas, um ser entre os seres. Entrando a meditar sobre a realidade última, temos que desfazer-nos do hábito intelectual de converter a realidade num objeto de nossas mentes. Pensar acerca de Deus é totalmente diferente de pensar sobre todas as outras coisas. Querer aplicar os usuais instrumentos lógicos seria como querer rechaçar uma tempestade com a força do nosso há lito. Muitas vezes não conseguimos compreendê-lo, não porque não saibamos como levar nossos con ceitos suficientemente longe, suficientemente senão porque não sa bemos começar de maneira íntima. Pensar em Deus não é encontrá-lo como objeto em nossa mente, mas encontrar-nos a nós dentro dele. A religião começa onde termina a experiência e o fim da experiência é a percepção de que somos per cebidos . Ter conhecimento de uma coisa é ter o seu conceito à disposição Comoa con ceito e coisa, definiçãodae nossa essênciamente. pertencem rei nos diferentes, podemos dominar e possuir uma coisa teoricamente, enquanto a coisa em si mesma pode estar longe de nós, como, por exemplo, no caso do nosso conhecimento das nebulosas estelares. Deus não é uma coisa nem uma idéia. Ele está dentro e além de todas as coisas e de todas
as idéias. pensamento de Deusdele nãonão estáestaria além, mas dentroO dele. O pensamento diante de nós, se Deus não estivesse atrás dele. O pensamento de Deus não tem fachada. Es-
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tamos todos nele quando ele é tudo em nós. Con cebê-lo é ser absorvido por ele, como o presente no passado, num passado que nunca morre. Nosso conhecimento dele e da sua realidade não estão separado s. Pensar nele é abrir nossas mentes à sua presença que tudo impregna, ao fato de estarmos plenos da sua presença. Pensar em coisas significa ter um conceito dentro da mente, enquanto pensar nele se assemelha a andar sob um dossel de pensamento, a ser circundado pelo pen samento. Ele permanece fora de nosso alcance en quanto não compreendermos que nosso alcance está dentro dele, que ele é o Conhecedor e nós os co nhecidos, que ser significa ser pensado por ele. Pensar em Deus é possível pelo fato de ele ser o sujeito e nós o seu objeto . Pensar em Deus é expor-nos a ele, é conceber-noá^como um reflexo da sua realidade. Ele não pode ser limitado a um pensamento. Pensar significa pôr de lado ou se parar um objeto do sujeito pensante. Mas separando-o, ganhamos uma idéia e perdemos a Deus. Como ele não está afastado de nós e nós não es tamos além dele, ele nunca poderá tornar-se um mero objeto do nosso pensamento. Como, ao pen sarmos sobre nós mesmos, o objeto não pode ser separado do sujeito, assim ao pensarmos em Deus o sujeito não pode ser separado do objeto. Pen sando nele percebemos que é através dele que pen samos nele. Assim, devemos pensar nele como su jeito de tudo, como a vida da nossa vida, como a mente da nossa mente. Se uma idéia tivesse capacidade de pensar-se, de transcender-se a si mesma, teria neste momento consciência de ser um pensamento de minha mente.
O homem religioso tem tal consciência de ser co nhecido por Deus como se fosse um objeto, um pensamento na sua mente. 133
!Para o filósofo Deus é um objeto, para os ho mens em oração ele é o sujeito. Seu objetivo não é o de possuí-lo como um conceito do conhecimen to, de informar-se a respeito dele, como se fosse um fato entre outros fatos. O que desejam é es tarem totalmente possuídos por ele, ser um objeto do seu conhecimento e de senti-lo. O que importa não é conhecer o desconhecido, mas ser penetrado por ele. Não conhecer, mas ser conhecido dele, ex por-nos a ele ao invés de ele expor-se a nós. Não julgar e afirmar, mas escutar e ser julgado por ele. Seu conhecimento do homem precede o conhe cimento que o homem tem dele, e o conhecimento dele pelo homem inclui só o que Deus interroga ao homem. Este é o conteúdo essencial da revelação profética 27. A visão de Deus sobre o homem A Bíblia é primariamente não a visão que o homem tem de Deus, mas a visão que Deus tem do homem. A Bíblia não é a teologia do homem, mas a antropologia de Deus, que trata do homem e daquilo que ele pede do homem, e não da natu reza Deus. mas Deuso não aos profetas térios deeternos, seu revelou conhecimento e amormis do homem. A aspiração de Israel não era conhecer o Absoluto, mas saber o que ele quer do homem. Comungar com sua vontade e não com a sua es sência . Na profundeza do nosso temor só conseguimos expressar a consciência de sermos conhecidos por
Deus. O homem não pode ver a Deus, mas pode 182.
134
27 Cf. A.
H eschel
,
Die Prophetie, Cracow 1936, p.
ser visto por Deus. Ele não é o objeto de uma descoberta, mas o sujeito da revelação. Não há conceitos que pudéssemos indicar para designar a grandeza de Deus ou para representá-lo às nossas mentes. Ele não é um ser cuja existência possa ser confirmada ou descrita por nossos pen samentos. Ele é uma realidade diante da qual, quan do conscientes da sua significação, somos invadi dos por um sentimento de infinita indignidade. Deus é incognoscível Tendo um sentido muito fraco para o mistério, o homem moderno dispõe-se a aceitar o princípio do agnosticismo como uma panacéia para todos os problemas teológicos e metafísicos. Está inclinado a acreditar que, se existe um sei%supremo, a dife rença entre ele e o homem é muito maior que a diferença entre a matéria inconsciente e o homem consciente; que, conseqüentem ente, o homem pode conhecer tanto a respeito dele quanto uma bolha de sabão a respeito da teoria da relatividade; que Deus não tem nada a ver com este miserável pla neta; que ele está no alto e tão acima das formas de existência que nos são conhecidas, que só o nada pode ser o lugar da sua habitação. Hoje é tão plausível afastá-lo para além de todo o além, como outrora o era sentir um espírito dentro de uma árvore ou de uma pedra. Entretanto, quem insiste que Deus é incognoscível por todos os modos afirma conhecer aquilo que diz não poder ser co nhecido. Afirma saber que Deus vive numa prisão de inescrutável irrelacionamento, atrás das barras da infinitude e do totalmente outro.
O termo “conhecimento”, no sentido em que é empregado para coisas finitas, é, de fato, inaplicá vel à essência de Deus. Contudo, nossa consciência 135
contíém mais do que a certeza de que ele existe. Se estar imerso no pensamento significa revestir-se de opiniões, como se enfeita a cabeça com plumas, somos néscios; mas se os pensamentos são como o sangue que circula dentro de nós, então podem ser encontrados nas pontas dos dedos de uma alma sensível. Muitas vezes, conhecemo-lo desconhecidamente e não conseguimos percebê-lo quando insisti mos em conhecê-lo. O homem tem afinidade com o divino pelo que é e não só pelo que compreende. A essência do seu espírito, que luta com aquele que está além do inefável e, muitas vezes, prevalece sobre ele, efeti vamente deve estar relacionado com Deus. E quan do o seu espírito se eleva à procura dele, é o divino no homem que é responsável por esta exaltação. “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor, ela penetra o íntimo do seu ser” (Prov 20,27). Deus estaria fora do nosso alcance se tivésse mos que procurá-lo na prisão à luz dos fogos de artifício das nossas mentes. Mas somos “pó e cin zas” . Pó da terra e cinzas do seu fogo, e a mente, despertando a alma, pode soprar as brasas do seu fogo que ainda estão acesas. Assim, perguntar por que cremos é perguntar por que percebemos. Nossa fé em Deus é Deus (Deuteronômio Rabba 1,10). Não precisamos de palavras para comunicar-nos com o mistério. O inefável em nós comunga com o inefável além de nós. Não precisamos ex pressar a Deus, se deixarmos o nosso eu continuar a ser seu, a ser o eco da sua expressão. Recorrendo ao divino depositado em nós, não precisamos lamentar o fato de o seu horizonte ficar tão longe. Se cumprirmos sinceramente os seus
mandamentos, a distância desaparece. Não está em nosso poder forçar o além a transferir-se para cá, mas podemos transportar o aqui para o além. 136
Nosso conhecimento é uma alusão A vida, como a vemos, não é um amontoado de loucuras. Há nela tanto fertilidade como esteri lidade, sentido e absurdo. Pode-se conceber que a sabedoria, a música, o amor, a ordem, a beleza, a santidade surgiram do caos de algo sem vida, in ferior a nós? Será essa riqueza assombrosa e inson dável do espírito simplesmente o produto de um acaso? Seria absurdo pensar que o poder dentro de nós que criou leis, ideais, sinfonias e santidade está contido só em nós e não existe em nenhuma outra parte. Ninguém negará que há homens que despre zam o dinheiro da opressão, que mantêm suas mãos impolutas de suborno. Qualquer que sejam os mo tivos para tal, todos respeitamos Süa atitude. Ainda que sejamos incapazes de atingir a justiça perfeita, pelo menos alimentamo-la como ideal, como a mais bela norma e somos até capazes de realizá-la até certo ponto. Afirmar que semelhante ideal e sua realização é monopólio do homem, desconhecido do Ser Supremo, que o homem é o único ser dotado de qualidades intelectuais e morais, que ele é supe rior ao Ser Supremo, é algo não só absurdo, mas revoltante, uma oinsensatez só pode sustene tada enquanto homem vêqueapenas a sisermesmo a sua glória ilusória, mas se dissipa à primeira vista da sua real situação. Quem alguma vez sentiu a infinita superioridade do inefável é suficientemente sábio para saber que Deus não pode ser inferior a nenhum outro ser; que não poderíamos ter a capa cidade de sermos bons se ela faltasse em Deus. Se
há moralidade deve existir mente em Deus.emSenós, nós ela possuímos a visãoeminente da jus tiça, esta deve existir em grau eminente em Deus. Até o grito de desespero: Não há justiça no céu! 137
É um brado em nome da justiça, duma justiça que não pode ter nascido de nós e não existir na nossa fonte. Quem está atento ao inefável recusará acei tar uma fonte de energia chamada a causa primeira como expressando o altíssimo. Sabe que afirmar que o altíssimo está dotado de espírito é uma indicação grosseira. Prefere mantê-la em silêncio a formu lá-la . Conhecimento ou entendimento? É mais apropriado descrever as idéias que al cançamos em nossa luta com o inefável como enten dimento de Deus. Pois se ele não é um princípio abstrato nem uma coisa, mas um ser vivo único, nossa discussão sobre ele não pode realizar-se me diante os meios de conhecimento, mas mediante um processo de entendimento. Conhecemos por meio da indução ou inferência e entendemos mediante a in tuição. Conhecemos uma coisa e entendemos uma pessoa. Conhecemos um fato e entendemos uma alusão. O conhecimento implica em familiaridade com algo ou até no seu domínio. O entendimento é um ato de interpretar algo que só conhecemos por sua com expressão e através de uma concordância interna ela. Não há conhecimento por sim patia, mas há entendimento por simpatia. Signifi cativamente entendimento é um sinônimo de acor do. E pelo acordo que chegamos ao entendimento. Podemos conhecer e reconhecer o inefá vel. En tretanto, só muito raramente os homens aprendem a viver na harmonia suprema e é por isso que tan
tas vezesaténãoele.encontram o caminho que leva inefável Nos profetas o inefável se fezdo voz, revelando que Deus não é um ser separado e longe de nós, como acreditavam os antigos, que ele
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não é um enigma, mas justiça e misericórdia; não só uma força perante a qual somos responsáveis, mas também um exemplo para a nossa vida. Ele não é o Desconhecido, ele é o Pai, o Deus de Abraão. Do silêncio dos tempos anteriores surgiu finalmente a compaixão e a orientação.
%
15 O interesse divino
O problema da existência Já é um final conhecido que os filósofos, de pois de oporem um pensamento a outro, de contra porem um argumento a outro chegam à solene con clusão: “Não conseguimos saber o que ele é, só sabemos que ele existe” o que significa: nada sa bemos a respeito dos seus atributos, a única coisa que podemos atribuir-lhe é a existência. Mas, sa bidamente, a existência é um conceito indefinível, não pode ser imaginado per si, sem qualificação, pura e simplesmente. O que conhecemos é sempre um existente específico, particular, ou um modo de existência, um ser revestido de atributos. As sim, tudo o que resulta dessa especulação acerca de Deus é uma categoria inefável. Além disso, a existência não é só o fim, mas também o ponto de partida de todo o pensamento a respeito de Deus, pois sem supor a possibilidade da sua existência, não começaríamos a contemplá-lo. No seu desejo de evitar a possibilidade de atri buir aspectos antropomórficos a Deus, os filósofos adotaram tradicionalmente o expediente predominan te na ontologia geral em que a noção de existência que serve de objeto de análise é derivada do reino
da existência inanimada e não da existência anima da e pessoal. Os esforços subseqüentes para encher essa casca ontológica com um conteúdo espiritual ou 140
moral esbarram em dificuldades insuperáveis, prin cipalmente por causa da disparidade entre a existên cia inanimada e a existência animada e pessoal. Uma caneta, uma pomba e um poeta têm em comum o ser, mas não só a sua essência senão tam bém a sua existência não são as mesmas. A dife rença entre a existência de um ser humano e a exis tência de uma caneta é tão radical e intrínseca quan to a diferença entre a existência de uma caneta e a não existência do Navio Fantasma. Isso se en tende quando se compara um homem vivo com um cadáver. Ambos contêm os mesmos elementos quí micos exatamente nas mesmas proporções, pelo me nos imediatamente após a morte. No entanto, um homem morto é inexistente como homem, como ser humano ou social, embora ainda exista como cadáver. % Vida é preocupação Como veremos28, a temporalidade e a ininterrupção exprimem a relação da existência para o tempo. Uma relação passiva. O que distingue a existência orgânica da inorgânica é o fato de que a planta ou o animal estão numa relação ativa e defensiva para a temporalidade. Toda existência finita, uma pedra ou um cachorro, encontra-se cons tantemente à beira da não existência: a qualquer momento pode deixar de existir. Mas contraria mente à pedra, o cachorro está dotado até certo ponto de capacidade de lutar contra, ou evitar, os males da vida. Sabemos pela biologia que a vida não é um
28 Cf. cap. 19 — O Sentido da Existência é a existência, e seções seguintes.
— O que
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estádo passivo de indiferença e inércia. A essência exemplo, da vida éa intensa vida dainquietação célula depende e preocupação. da sua capaci Por dade de fabricar e de reter certas substâncias ne cessárias para a sua sobrevivência. Essas substân cias são impedidas de saírem porque a superfície exterior da célula é impermeável a elas. Ao mesmo tempo esta superfície, devido à permeabilidade se letiva do protoplasma, permite a outras substâncias favoráveis penetrarem na célula a partir da parte exterior, enquanto impede a entrada de substâncias desfavoráveis. Cada célula se comporta como um acordeão contraindo-se quando posta em contato com algo destrutivo. Na base dessas observações, pode-se estabelecer o seguinte princípio biológico: todo organismo vivo tem aversão à sua própria destruição. Assim podemos dizer que tal como a quali dade peculiar da existência inorgânica é a necessi dade e a inércia, a propriedade peculiar da existên cia orgânica, da vida, é a preocupação. Vida ê preocupação. Tal preocupação é reflexiva: refere-se ao pró prio eu e nasce da ansiedade do eu a respeito do seu próprio futuro. Se o homem não desse nenhuma atenção ao futuro, se fosse indiferente ao que pode ou não acontecer, não conheceria nenhuma ansie dade. O passado já não existe, no presente está vivendo. Só o futuro lhe causa apreensões. Preocupação transitiva Um homem totalmente despreocupado consigo
mesmo é um homem morto, e um homem preocu pado exclusivamente consigo mesmo é um animal. A sua marca de distinção em relação ao animal e 142
ao mesmo tempo o índice de sua maturidade é a tridimensionalidade da preocupação do homem. A criança torna-se humana, não descobrindo o ambien te que inclui as coisas e os outros eus, mas tornan do-se sensível aos interesses dos outros eus . Hu mano é aquele que se preocupa com os outros eus. O homem é um ser que nunca poderá ser au to-suficiente, não só pelo que deve receber em si, mas também pelo que deve dar de si. A pedra é auto-suficiente, o homem é auto-superante. Sem pre necessitado de outros seres para entregar-se a eles, o homem não pode sequer estar de acordo con sigo mesmo se não servir a algo além de si mesmo. A paz de espírito,, alcançável na solidão não pro vém de se ignorar tudo o que não seja o eu ou da fuga disso, mas da reconciliação com o que não é o próprio eu. A faixa das necessidades cresce com a ascensão da forma de existência. Uma pedra é mais auto-suficiente que uma planta e um cavalo necessita de mais coisas para a sua sobrevivência que uma árvore. Uma exigência vital da vida hu mana é a preocupação transitiva, a atenção aos ou tros, além da preocupação reflexiva de um intenso interesse por si mesma. Primeiramente os outros eus são considerados como meios para alcançar a satisfação das próprias necessidades. A passagem da dimensão animal para a dimensão humana se verifica quando em decor rência de vários fatos, tal como a observação do so frimento de outras pessoas, o amor ou a educação moral, o homem começa a reconhecer os outros eus como fins, a responder às suas necessidades, mesmo sem consideração do próprio interesse. É um ato
de reconhecimento de jure ou até de facto dos outros seres humanos como iguais. Em conseqüência disso se torna interessado na preocupação deles. O que 143
é importante para eles torna-se vital para ele. Caim, quando interrogado sobre o paradeiro de seu irmão, responde: “Sou por acaso o guarda do meu irmão?” (Gên 4,9). Abraão, sem ser perguntado, sem ser solicitado, implorou por Sodoma, a cidade do mal. Mas por que Abraão estava interessado na salvação de Sodoma? Abraão podia argumentar com Deus a favor de Sodoma, porque existe uma justiça eterna e incondicional em cujo nome pôde dizer: “Longe de ti matar o justo juntamente com o mau. . . Não deverá o juiz de toda a terra fazer justiça?” (Gên 18,25). O que dá srcem à preocupação pelos outros não é uma extensão mecânica, lateral, da preocupa ção consigo mesmo. A preocupação com os outros muitas vezes exige o preço da renúncia a si mesmo. Como se poderia explicar a renúncia a si mesmo, ou até a auto-extinção como uma extensão de si mesmo? Conseqüentemente não podemos dizer que a preocupação pelos outros esteja no mesmo nível que a preocupação consigo mesmo, consistindo ape nas na substituição do próprio eu por outro. A motivação da nossa preocupação transitiva pode ser egoísta, mas o fato da nossa preocupação transitiva não o é. As três dimensões A preocupação pelos outros não é uma exten são horizontal, mas uma ascensão, uma elevação. O homem alcança nova dimensão vertical, a dimen são do sagrado, quando passa além dos seus inte resses próprios, quando aquilo que é de interesse
dos outros se torna vital para ele. É só nessa di mensão, na compreensão da sua perene validade, que o interesse pelos outros seres humanos e a de
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dicação aos ideais pode atingir o grau da renúncia a si mesmo. Objetivo s distantes, interesses religio sos, morais e artísticos podem tornar-se tão impor tantes para o homem como sua preocupação pela alimentação. O eu, o próximo e a dimensão do sa grado são as três dimensões de uma preocupação humana amadurecida. O amor verdadeiro do homem é amor clandes tino de Deus. Mas que relação tem a afeição ou a bondade de um homem por outr,p com o mistério de todos os mistérios? Não deveríamos rejeitar o provérbio: “Quem oprime o pobre ultraja seu Criador; mas honra-o quem se compadece do necessitado” (Prov 14,31). Como palavras vazias e ocas? Há algo de intrínseco na existência de Deus que justifique tal correlação? Além disso, é certo dizermos que o homem é capaz de elevar-se acima de si mesmo? Porventura qual quer auto-análise honesta não revela que as moti vações da nossa conduta estão envolvidas nas fun ções dos desejos instintivos, que os interesses do eu penetram nossas motivações morais e nossos atos de conhecimento? Contudo, embora concedendo tu do isso, seria errado considerar nossa preocupação pelos outros como preocupação própria disfarçada. A necessidade de esquecer-se a si mesmo Não é verdade que o homem esteja condenado à prisão perpétua num reino em que a causalidade,
a luta pela existência, a vontade de poder, a libido sexual e o desejo de prestígio são os únicos moventes da ação. O homem está envolvido em re10 - O homem não está só
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lações que transcendem esta esfera. Não há homem algumporque não grau lute, de pelodesinteresse, menos alguma ou outra vez, algum que não pro cure algo a que possa dedicar-se sem ter em vista alguma vantagem. Não é verdade que todos os ho mens estão sempre à mercê de seu ego, que a única coisa que conseguem fazer é promover a sua própria prosperidade. Não é verdade que nos conflitos en tre a honestidade e a conveniência a primeira sem pre sai uma derrotada. Em toda alma palpita incognita-a mente necessidade de amar, de esquecer-se si mesma, de ser independente de interesses próprios É contra seus interesses egoísticos que o homem cede à necessidade de refletir sobre a finalidade, o sentido ou o valor da vida, que insiste em julgar-se a si mesmo segundo padrões não egoísticos e se preocupa com objetivos que nem sequer compreen de muitas resiste às tentações da totalmente, riqueza, doque, poder ou vezes, da popularidade vulgar, que passa por cima da aprovação ou do favor dos que dominam o mundo financeiro, político ou aca dêmico para permanecer fiel a algum princípio moral ou religioso. Nosso primeiro impulso é a autopreservação. É a essência da vida orgânica e só quem despreza a vida como pode condená-la . Se aa vida é sa grada cremos quecomo atenção si mesmo é, avício é o que mantém o sagrado. O interesse pelo eu só se torna vício por associação: quando unido a um desinteresse total ou pessoal pelos outros eus. Assim o dever moral não consiste em desinteressar-se pelo próprio eu, mas em descobrir e atender ao outro eu.
O eu não é um mal. O preceito: “Amarás teu próximo como a ti mesmo” inclui o cuidado com o próprio eu como um dever. É tão errôneo consi derar o dever para consigo mesmo e a vontade de 146
Deus como duas coisas contrárias, como o é identificá-las. Servir não significa ceder, como mas participar. A frase: “Amarás teu próximo a ti mes mo” conclui com as palavras: “Eu sou o Senhor” . E esta conclusão que contém a razão última do so lene mandamento. Esse mandamento é verdadeiro e válido para sempre, mas se Deus não fosse Deus não haveria verdade, nem eternidade, nem manda mento semelhante. É um intelectuais, esforço inútil com ar gumentos poiscombaterão tal como ego a hidra, por cada cabeça cortada produz duas outras. A razão por si só é incapaz de forçar a alma sem lucro e sem recompensa. A grande batalha da integridade deve ser combatida objetivando-se o próprio coração do ego e intensificando-se o poder de liberdade da alma. Liberdade e êxtase espiritual A integridade é o fruto da liberdade. O es cravo sempre quererá saber: o que serve aos meus interesses? Só o homem livre é capaz de superar a relação de interesse e fato, de ato e desejo de recompensa homeminteresses? livre pergunta: por que me pessoal. interessarSóporo meus Quais são os valores que devo sentir-me obrigado a servir? Mas a liberdade interior é êxtase espiritual, o estado de quem está acima de todos os interesses e de todo egoísmo. A liberdade interior é um mi lagre da alma. Como se realiza esse milagre? É a dedicação do coração e da mente ao fato
de nossa presença à preocupação de Deus, a cons ciência de sermos parte de um movimento espiritual eterno que desperta as forças de uma consciência cansada, que, arrancando a base da presunção, re147
duiz' o egoísmo a migalhas. É o sentido do inefável que nos leva além entender do horizonte dos interesses pes soais, fazendo-nos o absurdo de considerar o eu como um fim. Não há outra maneira de sentir-nos unidos com cada homem, com o leproso ou com o escravo, se não sentir-nos unidos com ele numa unidade supe rior: no único interesse de Deus por todos os ho mens . O interesse divino O que significa a existência de Deus? Sendo eterno não se lhe aplica a temporalidade. Pode-se atribuir-lhe interesse reflexivo? Ele não precisa preocupar-se a respeito de si mesmo, pois não há ne cessidade de ele estar em guarda contra nenhum perigo a sua existência. A única preo cupaçãoque queameace lhe podemos atribuir é uma preocupa ção transitiva que está implícita no próprio conceito de criação. Pois se a criação é concebida como uma atividade voluntária do Ser Supremo, ela implica num interesse pelo que começa a ser. Como a exis tência de Deus é contínua, seu interesse ou preocu pação por suas criaturas deve ser permanente. En quanto o interesse pelos outrose está mui tas vezes misturadododehomem interesse próprio, se carac teriza como uma falta de auto-suficiência e uma exi gência para a perpetuação de sua própria existência, a preocupação de Deus por suas criaturas é um interesse puro. Segundo Cícero, “os deuses preocupam-se com as grandes coisas e negligenciam as pequenas” (D e
Natura Deorum, II, 66 , 167). Segundo os pro fetas de Israel, de Moisés até Malaquias, Deus preo cupa-se com as coisas pequenas. Os profetas pro curaram ensinar ao homem não a concepção de uma
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harmonia eterna, de um ritmo de sabedoria imu tável, mas a percepção do interesse de Deus por situações concretas. Revelando o plano da história, em que o humano está entrelaçado com o divino, introduziram uma seriedade divina no mundo do homem. Na mitologia as divindades são imaginadas co mo seres que procuram a si mesmos, que se interes sam por si próprios. Sendo imortais, superiores ao homem em força e sabedoria, muitas vezes lhe são inferiores em moralidade. “Homero e Hesíodo atr i buíram aos deuses todas as coisas que são vergonha e desgraça entre os mortais, roubos, adultérios e fraudes ” ( Xenófan es) . A Bíblia não nos fala nada sobre Deus em si mesmo. Todos os seus ensinamentos referem-se às suas relações com o homem. Su» própria vida e vimos falar essência não desãonenhum referidasinteresse nem reveladas. reflexivo, Não de ne ou nhuma paixão, exceto a paixão da justiça. Os úni cos fatos da vida de Deus de que a Bíblia tem co nhecimento são atos realizados por causa do ho mem: atos de criação, atos de redenção (de Ur, do Egito, da Babilônia), ou atos de revelação. Zeus está apaixonadamente interessado em be las divindades femininaso seu e inflama-se ira de contra aqueles que despertam ciúme. OdeDeus Is rael está apaixonadamente interessado pelas viúvas e órfãos. A preocupação de Deus significa o seu inte resse pelo destino do homem. Quer dizer que o estado moral e espiritual do homem merece a sua atenção. É verdade que para a maioria de nós o
seu interesse mas constitui um dos verdadeiro mistérios mais des concertantes, é igualmente que para aqueles cuja vida está aberta a Deus, sua preocu pação e amor são uma experiência constante.
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Expressão contínua
Atribuindo um interesse transitivo a Deus, não usamos um conceito antropomórfico nem antropopático, mas uma idéia que poderíamos caracterizar como antropopneumismo ( antropo + pneuma). O que lhe atribuímos não é uma característica psíqui ca, mas espiritual, não uma atitude emocional, mas moral. Aqueles que se recusam a atribuir a Deus um interesse transitivo, são inconscientemente obri gados a conceber a sua existência, se é que esta tem algum sentido, em analogia com o ser físico e a imaginá-lo em termos de “fisiomorfisismo ” . A criação na linguagem da Bíblia é um ato de expressão. Disse Deus: “Exista”, e existiu. E a criação não é um ato que ocorreu uma vez, mas um contínuo. A palavra Yehi,fosse“exista”, está processo para sempre no universo. Se não a pre sença desta palavra não haveria mundo, não haveria ser finito (cf. Midrash Tehillim, ed. Buber, p. 498). Quando dizemos que ele está presente em todas as coisas, não queremos dizer que ele está inerente às coisas como um componente ou ingrediente da sua estrutura física.pela Deus no O universo um espí rito de interesse vida. que é é uma coisa para nós, é uma preocupação para Deus. O que é uma parte do mundo físico do ser é também uma parte do mundo divino da significação. Ser é sig nificar, significar um interesse divino. Deus está presente na sua expressão contínua. Ele está imanente em todos os seres da mesma ma neira que uma pessoa está imanente na voz que
emite: ele significa o que diz. Está preocupado com o que diz. Todos os seres estão repletos da palavra divina que só se retira quando nossos vícios 150
profanam e oprimem sua presença silenciosa e pa ciente . É fácil expulsar a Deus, como fácil é derramar sangue. Mas mesmo quando ele se esconde, quando nossas almas perderam o seu vestígio, podemos ain da chamá-lo das profundezas: das profundezas de todas as coisas. Porque Deus está em toda parte, salvo na arrogância. Podemos não saber o que é ele, mas sabemos onde está. Nenhuma língua é ca paz de descrever sua essência, mas toda alma pode compartilhar de sua presença e sentir a angústia de sua temível ausência. Emuralhados em nosso pomposo egoísmo ge ralmente esquecemos onde ele está, esquecemos que nossa preocupação própria é apenas uma pequena dose haurida do espírito da preocupação divina. Mas há uma maneira de nos cofiíservarmos abertos àsentimos presençao desafio deste espírito. Há momentos em que de um poder que, não nascendo da nossa vontade nem sendo por ela estabelecido, tira nossa independência pelo seu julgamento da re tidão ou malícia das nossas ações, pelo remorso que produz em nosso coração, quando nos opomos às suas injunções. Não há dentro de nós nenhum re cinto privado, nenhuma possibilidade de retiro ou escape, lugar dentro de nós onde Há enterrar os restosnenhum dos nossos maus sentimentos. uma voz que chega a todas as partes, sem condescen dência, escavando as sepulturas do esquecimento. A civilização pendente de um fio
se move a vida humana, comoOa curso órbitaem dosque corpos celestes, é uma elipse tal e não um círculo. Estamos ligados a dois centros: o foco de nós próprios e o foco de Deus. Impe-
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lidofe por duas forças, temos tanto o impulso de adquirir, de gozar, de possuir como a necessidade de responder, de entregar-nos, de dar. Parece que chegamos a um período de eclipse divino na história humana. Navegamos os mares, contamos as estrelas, desintegramos o átomo, mas não nos lembramos de perguntar: será que não existe nada mais que um universo morto e nossa temerária curiosidade? mem Horrorizados para aniquilarpela a vida descoberta orgânica do nopoder planeta, do ho co meçamos hoje a compreender que o sentido do sa grado é tão vital para nós como a luz do sol; que o gozo da beleza, as posses e a segurança na sociedade civilizada dependem do sentido que o ho mem tem para a Sacralidade da vida, da sua reve rência por esta faísca de luz nas trevas do egoísmo; que se permitirmos que se apague este lampejo, a escuridão cairá sobre nós como um raio. Impressionamo-nos com os imensos edifícios de Nova Iorque. Entretanto, o seu fundamento último não é nem a rocha de Manhattan nem o aço de Pittsbur gh, mas a lei que veio1 do Sinai. O verda deiro fundamento sobre o qual assentam nossas ci dades é um punhado de idéias espirituais. Tudo em nossa vida está pendente de um fio — a fide lidade do homem ao interesse de Deus. Qual é a esperança do homem, sendo sua fi delidade tão fraca, tão vaga, tão instável e confusa? O mundo em que por muito tempo confiamos ex plodiu em nossas mãos e foi liberada uma torrente de males e de miséria que não deixa ilesa a inte gridade de ninguém. Mas o homem tornou-se ca lejado em relação às catástrofes. O que esperamos
conseguir com nossa indiferença que se levanta co mo uma muralha entre nossa consciência e Deus?
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Compaixão Tenebroso é para mim o mundo com todas as suas cidades e estrelas, não fora o hálito de com paixão que Deus soprou sobre mim quando me formou do pó e da terra, compaixão mais forte do que meus nervos podem suportar. Deus, estou só com minha compaixão dentro de mim. Obscuros são meus membros. Se não fos ses tu, como poderia suportar essa angústia, essa desgraça? “Ensina-me os teus caminhos”, rezava Moisés. Apenas algumas semanas haviam passado depois que os hebreus escravos tinham sido redimidos do Egito; apenas quarenta dias haviam passado depois que tinham ouvido a voz que proclamou: “Não terás outros deuses além de mim. Nãos^farás imagens es culpidas”, quando fizeram um bezerro de ouro. Moisés inflamou-se de cólera, lançou as tábuas ao chão, quebrando-as. Mas quando, depois deste do loroso acontecimento, encontrou-se novamente no alto da montanha, com as segundas tábuas na mão, ele desceu na nuvem e passou atrás de Moisés de clarando: “Deus é compassivo e bondoso, lento para irar-se, cheio de amor e verdade, perdoando a ini qüidade, a desobediência e o pecado, mas nunca desculpará o culpado, visitará a iniqüidade dos pais em seus filhos e nos filhos dos seus filhos, até a terceira e quarta geração” . Sua compaixão não é mera emoção. Elá arde com o poder de que só ele é capaz. Quando se pergunta à alma de um homem: o que é Deus para ele, só há uma resposta que sobrevive a todas as teorias que levamos à sepultura: ele é cheio de compaixão. Não sabemos
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prqijunciar o Tetragrama, o Grande Nome, mas aprendemos que significa compaixão 29. Os adjetivos morais e espirituais que a Bíblia lhe atribui, tais como zaddik, hasid, ne’eman, tam bém emprega para caracterizar homens que levam uma vida correta. Só um atributo é reservado a Deus: na Bíblia só ele é chamado de rahum, O Misericordioso30. Deus não é tudo em tudo. Ele está em todos os escuridão, seres, mas mas ele ele nãonão é todos os seres. Seu Ele está na é a escuridão. inte resse único impregna todos os seres. Ele está em toda parte, mas também a ausência do divino está em toda parte. Seus objetivos estão ocultos nos frios fatos da natureza; seu interesse está envolto na independência do universo que está tão bem disposto que muitas vezes somos levados a acreditar que não há necessidade de consertos ocasionais. Nossa preocupação se assemelha à escuta de uma língua estrangeira: percebemos os sons, mas não en tendemos o seu sentido. Ao homem, que não é senão uma exclamação no discurso da criação, pa rece que as coisas funcionam e se comportam como se Deus fosse um estranho cuja presença não é nem necessária nem desejada. Alguns de nós arro gantemente o perseguem e pisote iam. “O ímpio 29 É antiga doutrina rabínica que o T etagram a geral mente traduzido por Senhor, expressa o atributo divino do amor, enquanto o nome Elohim expressa o atributo da justiça, Sifre Deuteronômio § 27; Pesikta, ed. Buber, p . 162a e 164a. 30 A única exceção, Salmo 112,4, é um exemplo óbvio de imitatio Dei, cf. 111,4. Provavelmente o termo está re lacionado com a palavra rehem, ventre, e pode ter a
conot açã o de amor maternal. N o Talm ud Babiló nico, Rahmana, O Misericordioso, é freqüentemente usado para desig nar tanto Deus, como a Escritura, a Lei ou a palavra de Deus. A Lei é Misericórdia.
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vangloria-se da sua capacidade; o ambicioso nega-o e despreza-o. Na sua insolência pensa: Deus nunca punirá. Todo o seu pensamento é Deus não existe” (Sl 10;3-4). Outros desesperam em meio ao nevoei ro das rígidas leis da necessidade em que muitas vezes nossas esperanças se congelam mortalmente. Manifestação e ocultamento
Conhecer a Deus não é procurar no escuro à semelhança do mundo que vagueia errante em bru ma impenetrável. É verdade que onde quer que vivamos há sempre trevas. Mas embora profundas e espessas, não são nem sórdidas nem fatais. A bruma impenetrável de que está encoberto o mundo é o véu do ocultamento de Deus. Conhecer a Deus significa sentir a sua manifestação no seu oculta mento e ter consciência do seu ocultamento na sua mais magnificente manifestação. Deus está no mundo, presente e oculto na es sência das coisas. Não fosse a sua presença, não haveria essência, não fosse o seu ocultamento, não haveria manifestação. O hino cantado pela natureza não é dela pró pria. Elá arde com um fogo que não contém. Sua independência, sua unidade, sua beleza, são perfei ções emprestadas. Só aqueles que não percebem que seu conhecimento é um motivo para uma igno rância mais alta não sentem a maravilha da sua força em perdurar, a maravilha de ela não ser con sumida. Não vendo a sarça também não escutam a voz. Se pudéssemos explicar o universo como um robô, poderíamos pensar que Deus está separado
dele e sua relação para com o universo seria como a do relojoeiro para com o relógio. Mas o inefável eleva seu clamor do meio de todas as coisas. Só 155
a idéia de uma presença divina oculta na ordem racional da natureza é compatível com nossa visão científica da natureza e de acordo com o nosso sen tido do inefável. A alma mora dentro, mas o espírito paira sem pre acima da realidade. O infinito interesse de Deus está presente no mundo, mas sua essência é transcendente. Ele inclui o universo, mas citando a oração de Salomão na dedicação do Templo: “Eis que nem os céus nem os céus dos céus podem con ter-te ” (lR s 8 ,2 7 ). A consciência de Deus como moradia do universo deve ter sido muito aguda na época pós-bíblica, se M akom (“lugar”) chegou a ser um sinônimo de Deus. A alma está dentro: passiva, oculta; o espírito está acima: ativo, infinito.
156
16 O Deus que se oculta
Para nós, contemporâneos e sobreviventes dos maiores horrores da história, é impossível meditar sobre a compaixão de Deus sem perguntar: onde está Deus? Sobre as portas do mundo em que vivemos estão gravadas as armas dos demônios. A marca de Caim 31 na face do homem ecnpsou a sua seme lhança Deus. Nunca miséria,pecado tanta agonia com e tanto terror. Às houve vezes tanta até parece que o sol continue a iluminar o mundo. Em época alguma a terra bebeu tanto sangue. Os homens, nossos companheiros, revelaram-se espíritos maus, monstruosos e fatais. A história assemelha-se a um palco para a dança da força e do mal, sendo o juízo do homem incapaz de distinguir ambos, e Deus Adirigente do espetáculo ou isso indiferente tudo. maior insensatez de tudo é querera trans ferir a responsabilidade pela infeliz sorte do homem a Deus, acusar o Invisível, quando a culpa é nossa. Ao invés de admitirmos a nossa própria falta, pro curamos, à semelhança de Adão, transferir a culpa a outro. Durante muitas gerações investimos vio lência e agora nos admiramos de nosso fracasso.
Deus era concebido como o guarda encarregado de 31 G i nz b er g ,
Ver Gên ese Rabb a 22,12, ed . Theodor, pp . 219s L . Legends of the Jews, v.V, p . 141.
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impedir que usássemos nossas armas carregadas. Como não fez isso, ele é agora imaginado como o supremo Bode Expiatório. Vivemos numa época em que muitos de nós já não nos ofendemos mais com a crescente quebra das inibições morais. A corrupção da consciência enche o ar de um odor pungente. O bem e o mal, que antes eram tão distintos como o dia e a noite, tornaram-se uma névoa confusa. Mas essa confusão vem do homem. Deus não se cala. Ele foi silen ciado . Em vez de aprenderem a corresponder aos mandamentos diretos de Deus com uma consciência aberta à sua vontade, os homens se alimentam com as doçuras da mitologia, com promessas de salvação e imortalidade, como sobremesa do delicioso repas to da terra. A fé que os crentes nutrem é de se gunda mão: é uma fé nos milagres do passado, um apego a símbolos e cerimônias. Conhece-se Deus de ouvir dizer. É uma informação fornecida pelos dogmas. Até pensadores não dogmáticos apresentam conceitos gastos e solenes sem ousar proclamar a espantosa visão do sublime, em cujo horizonte as indecisões e as dúvidas são quase desprezíveis. Brincamos com o nome de Deus. Tornamos os ideais em vão. Rezamos a ele e o enganamos, louvamo-lo e o desafiamos. Agora colhemos os fru tos das nossas faltas. Durante séculos sua voz cla mou no deserto. Com quanta habilidade foi apri sionada nos templos! Completamente distorcida! E agora estamos presenciando como esta voz se re tira progressivamente, como abandona um povo após outro, deixando suas almas, desprezando sua sabe doria. O gosto do bem quase já desapareceu da
terra.
Somos testemunhas de como muitas vezes na história homens, grupos ou nações que perderam 158
Deus de vista, agem e têm sucesso, lutam e reali zam, mas estão abandonados por ele. Podem mar char de uma vitória para outra, mas estão abando nados, rejeitados e postos de lado. Ainda que pos suam toda glória e poder, sua vida será triste e sombria. Deus retirou-se da sua vida, enquanto eles acumulam uma perversidade sobre outra, um mal sobre outro. O abandono do homem, a proscrição da Providência marcam o início da calamidade final. São deixados sós, sem serem molçstados por cas tigos nem tranqüilizados por algum sinal de ajuda. O divino não interfere em suas ações nem inter vém em suas consciências. Tendo tudo em abun dância, menos a sua bênção, sentem-se na sua pros peridade como numa concha em que há só maldição sem piedade. O homem fo i o primeiro a :se esconder de Deus32, depois adese ter comido proibido, e ainda continua esconder 33. oA fruto vontade de Deus é de estar aqui, manifesta e próxima. Mas quando as portas deste mundo são batidas no seu rosto, sua verdade traída, sua vontade desafiada, ele se retira, abandonando o homem a si mesmo. Deus não se retirou por sua própria vontade. Foi ex pulso. Deus está exilado. Maisfoigrave queatoo de ato esconder-se de Adão comer o fruto proibido o seu de Deus de pois de tê-lo comido. “Onde e stás?” Onde está o homem? Esta é a primeira pergunta que ocorre na Bíblia . Nosso problema é o alibi do homem . É o homem que se esconde, que foge, que tem um alibi. Deus é menos raro do que pensamos. Quan do o procuramos sua distância desaparece.
Os profetas não falam do Deus oculto, mas do 32 Gên 3,8. 33 Jó 13,20-24. 159
Seu ocultamento é uma fun Deiis que se esconde. ção, não sua essência, um ato e não um estado per manente. Deus abandona seu povo e esconde sua face, quando este o abandona, violando a aliança que fez com ele34. Não é Deus que é obscuro. É o homem quem o eclipsa. Seu ocultamento de nós não faz parte da sua essência. “Verdadeiramen te, tu és um Deus que te escondes, ó Deus de Israel, Salvador!” (I s 4 5 ,1 5 ). Um Deus que se oculta e não um Deus oculto. Ele espera ser descoberto, ser admitido em nossas vidas. O efeito direto do seu ocultamento é o endu recimento da consciência: o homem ouve e não en tende, vê, mas não percebe — . seu coração está obtuso, seus ouvidos estão pesados35. Nosso dever é abrir nossas almas a ele, deixá-lo entrar novamente em nossos atos. Aprendemos a gramática do con sua distância tato com Deus; é uma aprendemos ilusão que de pode Baal Shem36 ser eliminada que por nossa fé. Há muitas portas pelas quais deve mos passar para entrar no palácio, mas nenhuma delas está fechada. Como o ocultamento do homem é conhecido e percebido por Deus, assim também é percebido o ocultamento de Deus. Ao notarmos o fato do seu ocultamento, descobrimos próprio. Nunca A vida es é o lugar em que Deus vema ele esconder-se. tamos separados daquele que precisa de nós. As nações erram e se agitam, mas tudo isso produz apenas ondulações na tranqüilidade profunda, des percebida e não apreciada. O neto do Rabi Baruch estava brincando de esconder com outro menino. Escondeu-se e ficou
34 D t 31 ,16-17.
35 Is 6. 36 Baal She m — famoso rabi no do Ha ssidism o. (N . do T .).
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no seu esconderijo durante longo tempo, pensando que o seu amigo o procurasse. Finalmente saiu e notou que seu amigo tinha ido embora, aparente mente não tendo sequer procurado por ele e que tinha se escondido em vão. Correu para a sala de estudo de seu avô, chorando e queixando-se de seu amigo. Ouvindo o fato, o Rabi Baruch desfez-se em pranto e disse: “Também Deus diz: ‘Eu me escondo, mas ninguém me procura’ ”. só sofremos derrotas, em que aHáfé épocas só tememqueque suportar horrores. Contudo, apesar da angústia, apesar do terror, jamais somos vencidos pelo desânimo supremo. “Ainda que aprouvesse a Deus destruir-me, ainda que ele soltasse sua mão e me deixasse cair, mesmo assim teria prazer, exultaria até em meu sofrimento; que ele não me poupe, pois não neguei as do Santo” (Jó 6,9-10). torren tes palavras nos desertos do desespero. EstaJorram é a orientação da fé: “Deitado no pó sacia-te com a fé” 37. “Ó Deus, com nossos próprios ouvidos ouvimos, Nossos pais nos contaram A obra que realizaste em seus dias, Nos tempos de outrora. Para expulsaste implantá-los, com tuas mãos os pagãos, Abateste povos e os expulsaste. Pois não foi com sua espada que conquisatrem a terra, Nem foi seu próprio braço que os salvou, Mas tua direita e teu braço E a luz da tua face, porque os amavas.
És rei, ó Deus, liberta Jacó! Por meu ti abateremos nossos inimigos, 37 Rabi Mendel de Kotzk parafraseando o Salmo 37,3.
1 1 - 0 homem não está só
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Por teu nome esmagaremos aqueles que se contra Não levantam confiarei em meunós. arco, Nem será minha espada que me salvará. Foste tu que nos salvaste de nossos inimigos, E humilhaste aqueles que nos odiavam. Em Deus nos gloriamos todo o dia E louvamos teu nome para sempre. Selah. E, no entanto, nos rejeitaste e humilhaste. Não acompanhas exércitos, Fizeste-nos recuar mais diantenossos do inimigo. E aqueles que nos odeiam pilham nossos bens. Entregaste-nos como ovelhas para o matadouro, Dispersaste-nos entre os pagãos. Vendes teu povo por um preço vil, Sem lucrares com sua venda. Fazes de nós um motivo de insulto para enossos vizinhos, Desprezo vergonha diante dos que nos rodeiam. Fazes de nós uma sátira entre os pagãos, Um escárnio entre os povos. Continuamente a confusão me acompanha, E a vergonha cobre meu rosto, Diante dos clamores do ultraje e da blasfêmia, Por causa do inimigo vingativo. Tudo isso nos aconteceu sem que te tivéssemos esquecido E sem que fôssemos infiéis à tua aliança. Nosso coração não se afastou de ti E nossos passos não abandonaram o teu caminho.
Lançaste-nos na morada Cobriste-nos com a sombradosda dragões, morte. Se tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus,
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Se tivéssemos estendido nossas mãos a um deus estranho, Certamente Deus o teria percebido, Ele que conhece os segredos do coração. Mas é por causa de ti que somos chacinados todo dia, Contados como ovelhas para o matadouro. Desperta, por que dormes, Senhor? Levanta-te, não nos rejeites para sempre. Por que escondes tuaopressão? face, esquecendo nossa aflição e nossa Pois nossa alma está prostrada no pó, Nosso ventre está colado à terra. Levanta-te, vem em nosso socorro, Salva-nos por tua misericórdia” (Sl 44). %
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17 Além da fé
O perigo da fé Não ter fé é insensibilidade, ter fé sem dis cernimento é superstição. “O simples crê em tudo o que se diz” (Prov 14,1 5) 38, esbanjando a sua fé em coisas exploráveis, mas ainda não exploradas. Confundindo ignorância estáé capaz inclinado a olhar como elevado tudo com o quefé,não de en tender, como se a fé começasse onde termina a compreensão. Como se fosse suprema virtude con vencer-se sem provas, estar sempre pronto a crer. A fé, necessidade da alma de elevar-se acima de sua própria sabedoria, de estar, como uma planta, um pouco acima do solo, é irreprimível, muitas ve zes desvairada, caprichosa, cega e exposta ao perigo. 38 "P ar a Israel, o herdeiro da religião da verd ade, os filhos de Jacó, o homem da verdade... é mais fácil supor tar o peso do exílio que crer em alguma coisa antes de examiná-la completa e repetidamente e de limpá-la de toda escó ria, mesmo que pareç a ser um sinal ou um m ilagre. _ A inegável evidência do amor de Israel à verdade e sua rejei ção de tudo o que é duvidoso pode ser vista nas relações do povo de Israel com Moisés. Apesar de oprimidos pela
escravidão, quando Moisés foi incumbido de levar-lhes a nova da sua redenção, disse este ao Senhor: eles não acre ditarão em mim nem atenderão à minha voz, pois dirão: o Senhor não te apareceu” (Êx 4 ,1). Sa lom ão Í bn A dret de Barcelona, 1235-1310,
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Responsa n°
548.
A afinidade da alma com o sagrado é suficientemen te forte para eliminar ou reprimir, mas não para aniquilar a força da gravitação para o que é baixo. Aqueles que estão seguros de sua fé muitas vezes tombam sob o seu próprio peso e caídos põem-se de joelhos adorando, deificando a serpente, que ge ralmente jaz lá onde crescem as flores. Quanta terna devoção, heroísmo e mortificação de si pró prio, já foi desperdiçada com o mal! Quantas vezes o homem já não divinizou Satã, achou magnífico o mal, apesar de perverso, e cheio de indescritível majestade! Na verdade fé não é segurança. É tragicamente verdade que muitas vezes esta mos errados a respeito de Deus, crendo no que não é Deus, num ideal falso, num sonho, numa força cósmica, em nosso pai, em nós mesmos. Não devemos jamais deixar de interrogar a nossa fé e de perguntar o que significa Deus para nós. Não é ele apenas um alibi para a ignorância? A bandeira branca da rendição ao desconhecido? É ele um pre texto para conforto e despreocupada satisfação? Um meio para iludir o desânimo, o temor ou o deses pero? De quem podemos esperar ajuda para nossa fé se até a religião pode ser fraude, se com o sacri fício de nós mesmos podemos consagrar até o as sassínio? De nossas próprias mentes que tantas ve zes nos traíram? De nossa consciência que tão fa cilmente erra e falha? Do coração? De nossas boas intenções? “Aquele que confia em seu próprio co ração é um louco” (Prov 28,26). O coração é mais enganoso que todas as coisas,
excessivamente ÉQuem é capaz defraco. conhecê-lo? (Jeremias 17,9). A fé individual não é auto-suficiente. Precisa 165
ser assinada pela ordem de uma orientação ines quecível . Significativamente, o Shema, a confissão prin cipal da fé judaica, não está escrito na primeira pessoa e não exprime uma atitude pessoal: eu creio. Só lembra a Voz que disse: “Ouve, ó Israel”. Crer é lembrar Nem o homem individual nem toda uma ge ração pode por suas próprias forças construir a ponte que leva a Deus. A fé é uma obra de longas épo cas, um esforço acumulado através de séculos. Mui tas das suas idéias são como a luz de uma estrela que partiu de sua fonte há muitos séculos. Muitos hinos, impenetráveis hoje, são a ressonância de vo zes de épocas passadas. Há uma memória coletiva de Deus no espírito humano e é dessa memória que participamos em nossa fé. Foi afirmado que a memória grupai de carac terísticas adquiridas é um fator importante no de senvolvimento do homem. Algumas das nossas ca tegorias a priori são coletivas quanto ao caráter e sem conteúdo individual. Adquirem um caráter in dividual mediante o encontro com fatos empíricos. “Em certo sentido devem ser depósitos das expe riências dos antepassados ” 39. A herança da huma nidade inclui não só disposições, mas também idéias, “motivos e imagens que podem surgir novamente em cada época e clima, sem tradição ou migra ção” 40. “A verdadeira história da mente não está guardada em eruditos volumes, mas no organismo
39 C . G ,
Jung
— Two Essays on Analytical Psycho
40 C. G . 1926, p. 616.
Jung
— Psychological Types. Nova Iorque,
logy . Londres, 1928.
166
mental vivo de cada um” . Há um cofre do tesouro em nossa memória de grupo. “Nada se perdeu ex ceto a chave deste cofre e mesmo essa eventual mente é encontrada”. As riquezas de uma alma estão guardadas na sua memória. Elá constitui o teste de personalidade, não para verificar se um homem segue a moda do dia, mas se o passado está vivo no seu presente. Quando quisermos entender-nos a nós mesmos, des cobrir o que é mais precioso em nossas vidas pes quisemos em nossa memória. A memória é a tes temunha da alma para a mente inconstante. Só aqueles que são espiritualmente imitadores, somente pessoas que têm medo de ser gratas e de masiadamente fracas para serem leais, têm apenas o momento prese nte. Para uma pessoa nobre, lem brar é uma santa alegria, ser grat% uma emoção su perior. Paraa gratidão uma pessoa cujosensação caráter muito não é dolo rico nem forte, é uma rosa . O segredo da sabedoria é nunca perder-se numa disposição ou paixão momentânea, nunca es quecer a amizade por causa de uma mágoa passa geira, nunca perder de vista os valores permanentes por causa de um episódio transitório. As coisas que passam por nossa vida diária deveriam ser avaliadas segundointerior? o critério: enriquecem não oexperiência nosso de pósito Só tem valor emounossa aquilo que é digno de recordação. A recordação é a pedra de toque de todas as ações. A memória é a fonte da fé. Ter fé é recordar. A fé judaica é uma recordação daquilo que acon teceu a Israel no passado. Os acontecimentos em que o espírito de Deus se tornou realidade estão
diante de nossos olhos em cores que nunca empalidecem. Muito do pintados que a Bíblia prescreve pode ser compreendido numa palavra: Lembra. “Guar da-te de ti mesmo, e cuida tua alma diligentemente
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para ;que não esqueças as coisas que teus olhos vi ram e para que não saiam de teu coração todos os dias da tua vida; ensina-as aos teus filhos e aos filhos dos teus filhos” (Dt 4,9). Os judeus não preservaram monumentos anti gos, guardaram os momentos antigos. A luz que se acendeu em sua história nunca se extinguiu. Com vigorosa vitalidade o passado sobrevive em seus pensamentos, em seus corações, em seus rituais. A recordação é um ato sagrado: santificamos o presente lembrando o passado. Talvez seja por esta razão que em alguns livros de orações judaicas encontramos dois resumos da doutrina judaica, um, baseado nos ensinamentos de Maimônides, contêm os famosos treze princípios e o outro é uma lista de recordações41. É que as coisas essenciais do judaísmo não são idéias abstra tas, mas acontecimentos concretos. O êxodo do Egito, a Lei dada no Monte Sinai, a destruição do Templo de Jerusalém deveriam estar constantemen te presentes no espírito de um judeu. Durante mais de dezoito séculos o povo esteve afastado da Terra Santa e, contudo, seu apego à Terra de Israel nunca foi rompido. A alma de Israel jurou: “Se eu te esquecer, ó Jerusalém, que minha mão direita es queça a sua destreza” (Sl 137,5). Não longe de nossa consciência corre um lento e silencioso rio, rio não do esquecimento, mas da memória, do qual as almas devem beber constante mente antes de entrar no reino da fé. Bebendo deste rio não precisamos dar um salto para alcançar o nível da fé. Só devemos estar abertos às águas do rio para ressoarmos, para recordarmos.
Há um lento e silencioso rio que corre no 41 18b e 23b.
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R a bi
E.
A zkari
— Haredim.
Veneza, 1601,
p.
horizonte de toda a história humana . O céu per tence ao Senhor, mas o rio é acessível a todos os homens. E aquele que vive segundo a sua fé en contra-se na comunidade de inumeráveis homens de todas as épocas, de todas as nações que aprenderam que um homem com Deus é maioria contra todos os homens do mal, que o amor misericordioso é mais forte que o poder. Os credos podem dividi-la, os fanáticos podem negá-la, mas a comunidade da fé dura eternamente. As guerras não conseguem des truí-la, as rivalidades não consegüem vencê-la. Se o demônio nos oferecesse todos os seus bens como preço para traí-la, seria desprezado e rejeitado. “Por que desde o nascer até o pôr do sol meu nome é grande entre os gentios e em toda parte se oferece incenso ao meu nome e uma oferta pura: porque grande é meu nome entre os gentios, diz o Senhor dos Exércitos” (Ml 1,11). Essas palavras referem-se indubitavelmente aos contemporâneos do pro feta. Mas quem eram estes adoradores de Um Deus? No tempo de Malaquias não havia grande número de prosélitos. Mas a afirmação declara: “Todos aqueles que adoram seus deuses não o sabem, mas na realidade estão me adorando a mim” 42. A fé como recordação individual Mas ter fé não significa descansar à sombra de idéias antigas, concebidas por profetas e sábios, viver de um patrimônio herdado de doutrinas e dogmas. No reino do espírito só quem é pioneiro é capaz de ser herdeiro43. O preço do plágio es-
42 Cf. R . N issim G erondi — Derasho th IX. Cons tantinopla, 1530(?). p. 107a. 43 “As Dezoito Bênçãos começam com as palavras: ‘Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus e Deus dos nossos 169
piritüal é a perda da integridade; auto-engrandecimento é autotraição. Fé autêntica é mais que um eco de uma tra dição. É uma situação criativa; um acontecimento. Porque Deus não está sempre calado e o homem não é sempre cego. Na vida de todo homem há momentos em que se levanta o véu no horizonte do conhecido abrindo uma visão do eterno. Cada um de nós já experimentou pelo menos uma vez na vida a momentosa realidade de D eus. Cada um de nós já teve alguma vez um lampejo da beleza, da paz e do poder que flui através das almas dos que se devotam a ele. Mas tais experiências são acontecimentos raros. Para algumas pessoas eles são como estrelas cadentes que passam e são esqueci das. Em outros acendem uma luz que nunca mais se apaga. A recordação dessa experiência e a leal dade à resposta de tal momento são as forças que sustentam nossa fé. Neste sentido, fé ê fidelidade, lealdade a um acontecimento, lealdade à nossa res posta. Fé é crença Deve-se distinguir entre crença e mera apreen são. Nem todas as idéias que apreendemos aceita mos como verdadeiras. Podemos imaginar algo se melhante a um elefante que voa, mas não acredita mos na sua existência real. Crer é aceitar mentalpais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó’ Perguntou-se: Por que é necessário especificar os três no mes depois de dizer ‘nossos pais’? A resposta é que a re petição serve para indicar que nem Isaac nem Jacó se ba
searam totalmente em seus pais, mas procuraram encontrar a Deus por si mesmos. É por isso que falamos do Deus de Abraão, de Isaa c, de Jac ó ” . R a b i M e i r E i s en s t a dt Panim Me’iroth, n° 39. Amsterdã, 1715.
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mente uma proposição ou um fato como verdadeiro com base em autoridade ou evidência. É a convic ção da verdade de uma dada proposição ou de um fato afirmado. Crença, neste sentido, não é um termo teoló gico, mas epistemológico que se aplica a toda es pécie de conhecimentos e quem a identifica com a fé esquece a diferença entre a aceitação de um julgamento e a aceitação de uma idéia de fé. Será a fé somente uma atitude mental? Aceitamos, pela fé, a existência de Deus da mesma maneira como aceitamos a existência da torre de Pisa? Fé não é um assentimento a uma idéia, mas um consenti mento a Deus. A fé é uma relação a Deus. Crença é uma relação a uma idéia ou a um dogma. Diversamente da crença (que acompanha o confecimento ou apre ensão, o assentimento dado ao que conhecemos), a fé eleva-se acima do conhecimento e da apreen são . Não se refere ao cognoscível, mas ao que transcende o conhecimento. Além disso, a crença é necessariamente um ato autoconsciente. Ao dizer: “eu acredito”, há consciência de que é o eu que aceita algo como verdadeiro. Crença é convicção pessoal. Mas na desconfiança e temor em que nasce a fé não há lugar para a autoconsciência. É mons truoso conceber a fé como um ato do homem que dá sua opinião de perito, como um ato de reconhe cimento, de dar reconhecimento a Deus. Um rabino hassídico, longe da sua casa, pas sou a noite em caça de um oponente do hassidismo. Antes do clarear do dia, o dono da casa, conforme seu costume, levantou-se para estudar o Talmud. Passavam-se as horas e o rabino continuava na ca
ma. “É coisa indigna de um homem tido como um santo deixar passar as horas matinais sem es tudar a L ei”, pensava o dono da casa. Quando
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afinal o rabino se levantou, o anfitrião falou-lhe sobre seu dormir até tão tarde. “Estou acordado há horas”, disse o rabino. por que nãomuitas se levantou para estudar?” E o “Então, rabino replicou: “Antes de abrir os olhos e de rezar: ‘Rendo graças a ti. . . ’ comecei a pensar: Quem é ‘eu’ e quem é ‘tu’ . Como sou indigno de dar graças a ele. Es tava acima de minhas forças encontrar uma res posta, continuar a rezar ou levantar...” Acreditar sem fé é um ato formal, muitas ve zes tão pobre de sentido espiritual como uma prova da existência de Deus produzida por uma máquina de calcular. A fé, por outro lado, não é só o as sentimento a uma proposição, mas a aposta de toda uma vida na verdade de uma realidade invisível. Não se pode reduzi-la a um assentimento do mesmo modo como não se pode fazê-lo com o amor. Sua expressão adequada não é uma sóbria afirmação, mas uma exclamação. Fé e credo Como dissemos acima, não devemos equiparar o processo da fé com a sua expressão. Correspon dentemente, a /«' ou o ato de crer deve ser distin guido de credo ou daquilo em que cremos. Tam pouco racional quanto um ato de inspiração, a fé se torna um dogma ou uma doutrina quando cris talizada numa opinião. Em outras palavras, o que é expresso e ensinado como um credo não é senão a adaptação do espírito incomum à mente comum. Nosso credo é, tal como a música, uma tradução
do inexprimível numa forma de expressão. O ori ginal é conhecido só por Deus. A fé é um ato de audácia espiritual, enquanto 172
usando termos necessariamente chegamos a um acor do com nosso desejo de segurança intelectual, de estabilidade e tranqüilidade. Os princípios supremos do pensamento e da ação são inacessíveis à análise. Todas as ciências especiais são obrigadas a admitir certo número de pressuposições que não podem ser provadas. Tais pressuposições baseiam-se numa certeza intuitiva po sitiva ou são aceitos pela razão negativa de que não são negadas por nenhuma experiêçcia. Ninguém é capaz de explicar racionalmente por que sacrificar sua vida e felicidade por causa do bem. A convic ção de que devemos obedecer a imperativos éticos não deriva de argumentos lógicos. Origina-se de uma certeza intuitiv a, de uma certeza de fé. Todas as religiões positivas baseiam-se em fundamentos de certo modo comparáveis. Os axicSfnas e os dogmas só podem ser expressos em metáforas (o princípio da preservação da energia é um exemplo) porque se referem a algo que transcende a experiência e nossos meios de expressão são derivados da expe riência . A adequação dos dogmas depende de se eles pretendem formular ou aludir. No primeiro caso apenas aparentam e enganam, no segundo indicam euma iluminam. Para seremcom adequados relação telescópica o tema devem ao qualmanter se re ferem. Devem apontar para os mistérios ao invés de representá-los. Só podem marcar o caminho, mas não o fim do pensamento. Os dogmas, se não fo rem pontos de sinalização do cominho, são obstá culos. São alusivos ao invés de informativos ou des critivos . Se tomados literalmente são superficiais,
estreitos, triviais transformam em mitos ven tríloquos. Assim, ou porseexemplo, o dogma da criação foi freqüentemente reduzido a um conto e despo jado de sua verdadeira significação, quando como 173
alusão a um fato supremo é de inexaurível impor tância . Há muitas experiências para as quais não te mos nomes, muitos estratos da fé para os quais não temos dogmas. Procurando um meio para trans mitir o inexprimível, o homem se dispõe a embarcar num veículo que segue para qualquer direção e do qual depois é difícil desembarcar. Um jovem queria ir a Nova Ior que. Esperan do carona queIorque?” passava: “Você vai na emestrada, direção parou leste, um paracarro Nova — “Não, estou indo para o oeste, para Chicago ” . — “Bem, e ntão vou a Chicago” . A idolatria dos dogmas
Muitasuma vezes o homem transforma um dogma em deus, imagem esculpida que adora, à qual dirige suas preces. Prefere crer em dogmas a crer em Deus, servindo-os não por amor aos céus, mas por causa de um credo, o diminutivo da fé. Os dogmas são a partilha da mente pobre na realidade divina. Um credo é quase tudo o que tem um homem pobre. Pele por pele, dará sua vida por queoutras tem. pessoas Pode até tirar atudo vidao de se estar essas disposto recusarema com partilhar de sua doutrina. São os dogmas desnecessários
São os dogmas desnecessários? Não podemos
estar em relação mom com entos. a realidade nãoguar por raros e fugitivos Comodivina podemse ser dados esses momentos para as longas horas da vida funcional, quando os pensamentos que, como abe 174
lhas, nos alimentam no inescrutável deserto da vida, quando perdemos a visão e o impulso? Os dogmas são como o âmbar em que são embalsamadas as abe lhas, outrora vivas, e que podem ser eletrificadas quando nossas mentes estiverem expostas à energia do inefável. Pois os problemas com que consta nte mente nos debatemos são: como comunicar esses raros momentos de percepção a todas as horas da nossa vida? Como confiar a intuição a conceitos, o inefável às palavras, a comunhão |io entendimento racional? Como transmitir a outros nossas percep ções e uni-los numa união de fé? É o credo que tenta responder a esses problemas44. “Meu filho, ouve os ensinamentos de teu pai e não esqueças aquilo que te ensina tua mãe” (Prov 1,8). Nosso credo é como uma mãe que nunca se impacienta com nossa loucura e ftbssas faltas, que nunca se esquece, mesmo que nossa fé desapareça no esquecimento. Há muitos credos, mas uma só fé universal. Os credos podem mudar, desenvolver-se, desapare cer, mas a substância da fé permanece a mesma em todos os tempos. A hipertrofia do credo pode esmagar e marcar o fim da fé. Um mínimo de credo e um máximo de fé é a síntese ideal. Fé e razão Impelidos pela audácia da fé, deixando atrás as altitudes da sabedoria, os homens de fé são oca sionalmente tomados por dúvidas: não será a fé um castelo no ar em comparação com a razão, que
é inexpugnável e sólida como uma fortaleza? Mui44 Estes problemas fará seqüência ao presente.
serão discutidos
num volume que
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tas vezes homens de fé estão prontos a trocar visões incomparáveis e inalienáveis por noções fabricadas em produção de massa 45. Mas não há taxa de câm bio para tais visões, pois querer avaliar a fé em termos de razão é como querer compreender o amor como um silogismo e a beleza como uma expressão algébrica. O que pretendemos com nosso ceticismo? Vê-lo na tela do televisor? Que a fé se cristalize em moeda corrente do conhecimento? Raramente conseguimos levantar uma torre que, apoiando-se sobre a base de silogismos, alcance a altura da fé. Querer traduzir as visões da fé em termos de especulação é como querer construir um avião com rocha maciça. Não devemos esquecer que em nossas tenta tivas de defender a crença, estamos analisando o credo em vez da fé, cujo conteúdo é fino demais para ficar retido na peneira da lógica. A razão não é a medida de todas as coisas, não é o poder que tudo controla na vida de um homem; não é o pai de todas as afirmações. O grito de um homem ferido não é produto de um pensamento discursivo. A ciência não pode ser esta belecida em termos de arte nem a arte em termos de ciência. E por que a fé, para ser válida, deveria depender da justificação da ciência? A consciência de Deus, como já vimos, não penetra na mente por meio de silogismos e a cer teza da fé não pode ser apresentada na bandeja de prata da especulação. A plausibilidade lógica não cria a fé, como também não a refuta a implausibilidade lógica.
45 “ O s teólogos ficara m gratos por pequenos favores e não se preocupam muito com o tipo de Deus que o cient ista lhes oferec e, se é que lhes ofe rece algum ” . B . R usse l l —
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The Scientific Outlook,
p. 115.
A razão procura integrar o desconhecido com o conhecido. A fé procura integrar o desconhecido com o divino. Seu fruto sazonado não é o juízo frio, mas a adesão, a ação, o cântico e a aproxima ção a ele. Enquanto o historiador explica os so frimentos de Israel pela geografia política da Pa lestina, que, situada na encruzilhada de três conti nentes, estava exposta à ambição dos conquistadores, o profeta fala do plano divino de permitir que Is rael fosse afligido para expiar não só os próprios pecados, mas também os pecados dòs pagãos. Quando transformada em credo, a fé é tradu zida em termos convencionais de razão. Tais ter mos vêm e vão e o que é lúcido hoje, pode ser uma caricatura amanhã. O grande conflito da ra zão não é com a fé, mas com o credo. % “ Dá-nos conhecimento. . . ” “Não pode haver mal maior para alguém que a aversão ao raciocínio. Mas a aversão ao raciocínio e a aversão aos homens nasce da mesma fonte. . . Preocupai-vos pouco de Sócrates, mas muito mais da verdade e se achardes que digo algo de verdade concordai com ela, se não, oponde-vos a mim com todas as vossas forças” (Fédon 87.91). Na tradição judaica a razão foi sempre consi derada como um dos dons principais de Deus ao homem. Será muito difícil descobrir na história do pensamento judaico alguma tendência de cons pirar contra suas conclusões ou de contestá-las. A primeira coisa pela qual os judeus rezam três vezes
ao dia, nem o “Dá-nos Se
não é o pão de cada dia, nem a saúde e perdão dos pecados, mas o conhecimento: conhecimento, entendimento, percepção”. a única garantia de um credo consistisse 177
12 - O homem não está só
no áéu entrincheiramento atrás da muralha de uma obstinada crença, seria sinal de que no fundo dela haveria medo e não fé, desconfiança e não confian ça. A verdade não tem nada que temer a razão. O que abominamos é a presunção que tantas vezes acompanha o super-racionalismo, a razão condicio nada pela vaidade, a razão subserviente à paixão. Era opinião predominante entre òs grandes pen sadores judeus da Idade Média que não pode haver conflito ensinamentos que nos foram mi nistradosentre pela os revelação e as idéias adquiridas pela razão. A idéia da sua intrínseca harmonia era, na concepção desses pensadores, uma implicação neces sária do monoteísmo. O que está contido na men sagem divina não pode deturpar a realidade nem contradizer nenhuma verdade ensinada pela ciência, porque tanto a razão como a revelação se srcinam sabedoria que Um crioudesacordo toda a essencial realidade edaconhece todadea Deus verdade. entre razão e revelação pressuporia a existência de dois seres divinos, cada qual representando uma fonte diferente e independente. Portanto, a fé nunca poderá obrigar a razão a aceitar algo que é absurdo . Nem a fé nem a razão abrangem tudo nem tampouco são auto-suficientes. As percepções da fé são gerais e vagas e necessitam de uma conceituação para serem comunicadas à mente, para serem inte gradas e para que adquiram coerência. A razão é um coeficiente necessário da fé, que empresta forma àquilo que muitas vezes se torna violento, cego e exagerado pela imaginação. A fé sem razão é muda; a razão sem fé é surda.
Mas será que realmente cremos? Certa vez um Hassid46 começou a recitar os treze princí 46 H assidism o é um movim ento religioso judaico , de
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pios de Maimônides: “Creio firmemente que o Cria dor, bendito o seucriado nome, Se nhor de todosseja os seres s. . é. ”oDeCriador repentee pa rou: “Posso dizer que creio firmemente? Se assim fosse, eu não estaria tão revoltado, não seria tão profano; não rezaria com tanta frieza. . . Mas se não creio firmemente, como ouso proferir uma men tira. . . Não, não direi mais isso; mentir é pior que não crer. . . Mas isso significaria que não creio. Entretanto, e u cre aio !.saída. . . ” Fez nov^ pausa mente encontrou Resolveu dizer:e final “Que eu possa crer firmeme nte. . . ” Esdras, o Escriba, o grande restaurador do Ju daísmo, de quem os rabinos diziam ser digno de receber a Torá se já não tivesse sido recebida por Moisés (Sanhedrin 2 1 b ), confessava sua falta de fé perfeita. Conta-nos que depois de ter recebido um decretode real Artaxerxes permissão partirdodereiBabilônia com concedendo-lhe um grupo de exilados: “Proclamei um jejum junto ao rio Àhava para nos humilharmos diante de nosso Deus a fim de obtermos dele uma feliz viagem para nós, nossos filhos, e todos os nossos haveres. Pois, eu tinha vergonha de pedir ao Rei uma escolta de soldados e cavaleiros para proteger-nos contra os inimigos durante o percurso, tínhamos ditosobre ao rei que a mão de Deus porque se estende protetora to dos aqueles que o procuram” (Esdr 8,21-22). Fé é reciprocidade A fé não é um refúgio num santuário, mas uma
interminável do coração. corajosos, Desejos au dazes, cançõesperegrinação ardentes, pensamentos um. cará ter pietista, q ue surg iu n a Ucrânia no sé culo X V I II . (N . do T . ) . 179
impulso que domina o coração, que se apodera da mente — tudo isso impele a servir aquele que res soa em nossos corações como um sino. Ele está esperando para entrar em nossas vidas vazias e ago nizantes . Confiar em nossa fé seria idolatria. Só temos o direito de confiar em Deus. A fé não é uma garantia, mas um constante esforço, uma cons tante escuta da voz eterna. A fé não é uma característica da mentalidade humana: auto-extinção da curiosidade, ascese zão, qualidade psicológica que se refere só da ao ra ho mem. Sua essência não se revela na maneira como a exprimimos, mas na concordância da alma com o que é importante para Deus, na entrega do nosso amor àquilo que Deus aprova, em sermos arrebata dos pela onda dos seus pensamentos, em sermos elevados acima do desolado horizonte do desespero humano. A fé só real quando for em unilateral, mas recíproca. O éhomem pode não confiar Deus, se Deus puder confiar no homem. Podemos ter confiança nele porque ele tem confiança em nós47. Ter fé significa justificar a fé de Deus no homem. É tão importante que Deus creia no homem quanto o é que o homem creia em Deus. Assim, fé é cons ciência de reciprocidade e parceria divina, uma for ma de comunhão entre Deus e o homem. Religião é mais que vida interior Temos a tendência de definir a essência da re ligião como um estado de alma, algo de íntimo, um sentimento absoluto, e supomos que uma pessoa
religiosa esteja dotada de aflora uma espécie de sentimen to tão profundo que não à superfície dos atos 1,7 Em Deuteronômio 32,4 atribui-se fé a Deus.
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comuns, como se a religião fosse uma planta que só pode vingar no fundo do oceano. Como já vimos, a religião não é um sentimento a respeito de algo que existe, mas uma resposta àquele que nos pede viver de certa maneira. Na sua própria srcem é uma consciência de dever, de estarmos destinados a fins superiores. A compreensão de que a vida é a esfera dos inte resses não só do homem, mas também de Deus. A fé não atinge o seu fim ao alcançar a certeza da sua existência. A fé é o início' de uma intensa aspiração a entrar em síntese com aquele que está além do mistério, de unir todo o poder que está dentro de nós com toda a realidade espiritual acima de nós. Mas qual é a língua desta comunhão, sem a qual nosso impulso permanece inarticulado? Aprendemos que o que Deu&pede do homem é maisnão quesóuma atitude ele lei, dá que ao ho mem a vida, masinterior, tambémque uma sua vontade é ser servido e não só adorado, obedecido e não só cultuado. A fé nos invade como uma força que nos impele à ação, à qual respondemos com prometendo-nos a uma devoção constante, entregando-nos à presença de Deus. Permanece uma filia ção por toda vida, uma lealdade que implica limi tação,Osubmissão, autocontrole e coragem.uma unida Judaísmo insiste em estabelecer de entre fé e credo, entre piedade e Halakha4S, entre devoção e ação. A fé é só uma semente, en quanto a ação é seu desenvolvimento ou sua deca dência. A fé desencarnada, a fé que procura viver em esplêndido isolamento é apenas um espírito, para o qual não há lugar em nosso mundo psico-
físico.O que o credo é em relação à fé, a Halakha 48 Halakha [ é a lei, a norma.
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é em relação à piedade. Como a fé não pode existir sem um credo, a piedade não pode subsistir sem uma de da ação. Como aa inteligência pode ficar norma separada instrução, religião não não pode ser divorciada do procedimento. O Judaísmo é vivido em atos e não só em pensamentos. Uma norma de vida — o objeto da busca mais urgente do homem que corresponda à sua dig nidade, deve levar em consideração não só sua ca pacidade de explorar as forças da natureza e apreciar a beleza suas Deve formas,prever mas também sentido único do das inefável. não só aseu satisfação das necessidades, mas também a realização dos fins.
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H
II. O PROBLEMA DA VIDA
18 O problema das necessidades
* Da admiração à piedade Se o homem está fundamentalmente preso e ligado nas raízes do seu ser, está desligado e de simpedido em seus pensamentos e ações, livre para agir e livre para abster-se. Tem85*© poder de deso bedecer. conhece pelos feias, seus frutos, nãoMas pelasuma suasárvore raízes.seNão há árvores mas há frutos bichados. Assim, há somente uma questão digna da suprema preocupação: como viver num mundo saturado de mentiras e permanecer im poluto, como não se deixar dominar pelo desespero, como não fugir, mas combater e conseguir manter a alma pura e até ajudar para a purificação do mundo? Esta força, esta orientação não pode ser arran cada das estrelas. A natureza é demasiadamente in diferente ou demasiadamente velha para ensinar ao homem confuso como distinguir o certo do errado. O sentido do inefável é necessário, mas não é su ficiente para encontrar o caminho que leva da admi ração à adoração, da vontade à realização, do temor
à ação. A filosofia ocidental sofreu sua trágica derrota em conseqüência da predileção dos seus grandes mes 185
tres pelo problema do conhecimento. Dirigida pela idéia de que quem sabe como pensar também sa berá viver,primariamente a filosofia, desde a época de Só crates,como tem sido uma indagação sobre como pensar certo. Particularm ente, à partir da época de Descartes concentrou sua atenção sobre o problema do conhecimento, esquecendo cada vez mais o problema da vida. Efetivamente, quanto menos importância tivesse um problema para a vida, tanto mais respeitável e digno de exploração parecia aos filósofos. Entretanto, pensar sobre os problemas últimos é mais do que uma técnica particular. É um ato da personalidade total49, um processo em que estão envolvidas todas as faculdades da mente e da alma, que está necessariamente atingido pelo clima pessoal em que se passa. Pensamos da maneira como vive mos. Para pensar o que sentimos temos que viver o que pensamos. Se a cultura há de ser algo mais que o produto de uma estufa, deverá brotar do solo da vida cotidiana e por sua vez atingir o reduto interno da personalidade humana. A cultura deve crescer de dentro para fora, partindo da existência, do procedimento e das condições concretas do homem. O problema do neutro O problema da vida não está em saber como precaver-se contra as fraudulências, ou na percepção de quanto erramos no tratamento com os outros. Começa na relação para conosco mesmos, com o tratamento das nossas funções fisiológicas e emo
cionais. A primeira coisa que entra em questão na 49 Cf. ca p. 8 acima.
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vida do homem não é o fato do pecado, dos atos errados e corruptos, mas os atos naturais, as necessi constituem um aproblema dades. menor Nossas que as posses nossas não paixões. Portanto, primeira tarefa não é como agir em relação ao mal, mas como agir em relação ao neutro, como tratar as neces sidades . A experiência das necessidades A vontade permaneceria adormecida na natu reza humana, se não fosse o fato de que existe uma maneira de estimulá-lo constantemente. Esta é a o sentimento de pres experiência das necessidades, são e urgência decorrente de causas internas ou ex ternas, para cuja satisfação o hoipem necessita mo bilizar suas forças latentes. Portanto, as necessidades são o sistema de co municações do homem com o seu mundo interior e exterior. Levam à consciência as necessidades da vida, determinam também os objetivos que o ho mem escolhe para o planejamento e a ação. Muitas vezes, embora nem sempre, as coisas do mundo que se encontram ao redor dele, permanecem fora do seu alcance visual enquanto não se tornarem objetos das suas necessidades. Absorvido em seus pensamentos e sentimen tos, o homem pode excluir-se do seu ambiente. É nas suas necessidades que se encontra novamente com o mundo. As necessidades são as encruzilhadas da vida interior e exterior. Portanto, devemos tra tar o problema da vida mediante uma análise das necessidades.
Especificamente, a necessidade denota a ausên cia ou carência de algo indispensável ao bem-estar de uma pessoa, evocando o desejo urgente de satis
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fação'-50. Psicologicamente, onde quer que haja uma necessidade há um desejo de satisfazê-lo e quando não se sente um desejo, não foi expressa a necessi dade. Ignoti nulla cupido. “Não se deseja o que não se conhece” (Ovídio, Ars Amatoria, III.1.397). Só desejamos aquilo que conhecemos. Quando encontramos uma jóia, logo Nos inclinamos porque a vimos. Mas pisamos sobre o que não vemos Sem nem sequer pensar no fato (Shakespeare, M edida por medida, Ato II, cena 1). A vida — um aglomerado de necessidades humano é um aglomerado dades.Todo Masserestas necessidades não são de as necessi mesmas para todos os homens, tampouco são imutáveis em cada homem. Há um mínimo fixo de necessidades para todos os homens, mas não existe um máximo fixo para cada homem. Diversamente dos animais, o homem é um campo de imprevisível emergência e multiplicação de necessidades e interesses, sendo al gumassãoinatas à natureza homem, enquanto ou tras provocadas pela do propaganda, pela moda, pela inveja ou aparecem como adulteração de ne cessidades autênticas. Geralmente não distinguimos entre necessidades autênticas e necessidades artifi ciais . Tomando erroneamente um simples capricho 50 O termo “ ne cessid ad e” geralm ente é empre gado em dois sentidos: um indica uma carência real, uma condição
objet iva e o outro a consciência de tal carência . Aq ui o termo é usado no segundo sentido, em que necessidade é sinônimo de interesse, ou seja, uma capacidade não satis feita que corresponde a uma condição não realizada.
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por uma aspiração somos envolvidos em desagradá veis tensões. Muitas obsessões são a perpetuação de tais equívocos. Com efeito, há mais pessoas que morrem na epidemia das necessidades que na epi demia de uma doença. Se a evolução biológica do homem pode ser explicada como uma adatação ao seu ambiente, o progresso da civilização deve ser definido como um ajustamento das condições ambientais às necessida des humanas. Não há desejos materiais que a ciên cia e a tecnologia não prometam satisfazer. Impe dir a expansão das necessidades do homem, que por sua vez são provocadas pelo progresso tecnológico e social, significaria estancar a corrente sobre a qual navega a civilização. Mas se essa corrente não for controlada pode aniquilar a própria civilização, pois a pressão das necessidades transformadas em inte resses agressivos é a constante causa das guerras e aumenta na proporção direta do progresso tecnoló gico. A moral tenta julgar e distinguir entre inte resses justos e interesses injustos, mas aparece tarde demais para poder ser eficaz. Quando os interesses se entrincheiraram não há princípios que consigam desalojá-los. A alma é demasiadamente incerta, cheia de desejos e ressentimentos, rebelde, incons tante e relutante para aceitar a hegemonia da razão. A inadequação da ética
O mais premente e os problemas — como com a aprendizagem de nhecimento da ética está
o mais ignorado de todos viver — não se resolve normas adequadas. O co tão longe de identificar-se
com a virtude quanto oalguém está a em erudição teoria musical de transformar artista.emPode-se ter muito estudo e ser perverso, ser uma autorida de em teoria ética e ser patife, saber condenar o 189
ódio è ao mesmo tempo ser incapaz de dominá-lo. Não se vive a membros vida à maneira de em um que debate as faculdades da alma, a entre mais persuasiva ganhasse a discussão. A vida é muitas vezes uma guerra em que as forças desordenadas de paixões loucas, caprichosas são lançadas numa batalha. É uma guerra que não se pode ganhar pela nobre magia de simplesmente lembrar uma regra de ouro. Como poderia uma sábia abstração com do a ira, astúcia, a insaciabilidade e ocompetir favoritismo ego apara consigo mesmo? E verdade que nossa razão responde a argu mentos racionais. Mas a razão é um estranho soli tário na alma, enquanto as forças irracionais se sentem em casa e estão sempre em maioria. Por que sofrer em nome da virtude? Por que agir con tra a natureza e escolher o que é correto quando o prazer do lado do se vício? Por que renun ciar àquiloabunda que naturalmente deveria preferir ou por que suportar voluntariamente o que natural mente se evitaria? A ética supõe que o homem consulta sua ca pacidade de julgamento, que decida sobre a atitude a tomar à luz de princípios gerais e que execute fielmente a sábia decisão. Assim fazendo, não só subestima a dificuldade de aplicar normas gerais a situações particulares, muitas vezes intrincadas, per plexas e ambivalentes, mas ainda supõe que todo homem combine dentro de si poderes judiciais e executivos. Além disso, enquanto nos aponta aquilo para o que lutamos, a teoria ética nada nos diz sobre como ganhar a batalha. Diz-nos o que de vemos fazer, mas não nos diz como dominar a lou
cura e a insensatez. É bem verdade que a ética pede a aquisição de bons hábitos e não só o conhe cimento . Mas não há nenhuma soma de hábitos que possa abranger a totalidade da vida. 190
O perigo da vida Diante das grandes e graves emergências da vida geralmente nos encontramos despreparados, ape sar da nossa educação ter o objetivo de preparar mos para as lutas a enfrentar no futuro. Ninguém pode rasgar os véus do futuro para ver as exigências que lhe estão reservadas. Ninguém é capaz de cal cular as voltas por onde girará nebulosa espiral da vida, nem de predizer a que profundidades a inveja, a paixão e o desejo de prestígio pode levar uma pessoa. O que deveríamos fazer antes de re pelir um impulso inesperado do subconsciente de vingar-nos, de insultar, de ferir? Basta um pensa mento viciado para atacar e espalhar-se como um cancro na raiz de todos os ouíftos pensamentos. Uma pessoa atingida pelo mal transforma-se rapi damente em maioria contra uma multidão de pessoas imparciais em relação ao mal. O homem não é feito para a neutralidade, para. ficar insensível ou indiferente. O mundo não pode permanecer um vácuo. Se não fizermos dele um altar para Deus, será invadido pelos demônios. Com sua ilimitada e incontrolada capacidade de ferir, com suao imensa de compaixão, poder, e pora outro lado com rápido expansão declínio da vida se tornou sinônimo de perigo. Em quem confiar para proteção contra nós mesmos? Como reabas tecer a exígua corrente da integridade das nossas almas? Incontáveis são as situações em que teste munhamos como desfalece o poder de julgamento em espíritos errantes, como a integridade colide
com um desejo vil que surge no caminho. “O que ousam os homens fazer! O que podem os homens fazer! 191
O que fazem diariamente os homens, sem saber o que estão fazendo!” (Shakespeare, Muito barulho por nada, Ato IV, cena 1,1.19). Uma das lições que tiramos dos acontecimen tos de nossa época é a de que não podemos habi tar tranqüilamente sob o sol da civilização, que o homem é o menos inofensivo de todos os seres. É como tensão se a cada minuto estivéssemos por uma semelhante àquela que dominados medeia entre o relâmpago e o trovão. A nossa ordem moral assemelha-se a portentosos e velhos carvalhos cujas raí zes estão carcomidas. Bastou uma tempestade para transformar a civilização num incrível inferno. As árvores não morrem por causa da idade, mas por causa das barreiras que impedem os raios do solo de atingi-las, estendendo-se por causa dos mais galhos dem autodomínio, queque as per raí zes são capazes de suportar. Pode ser que hoje raramente contemplamos o céu ou o horizonte. No entanto, há relâmpagos que até mesmo as ár vores mais robustas não deixam de temer. Só os loucos têm medo de temer e de escutar a cons tante queda da força e do tempo sobre suas ca beças, enquanto a vida é sepultada sob as ruínas. As necessidades não são santas Hoje as necessidades são consideradas como al go de sagrado, como se elas contivessem a quintes sência do que é eterno. As necessidades são nossos
deuses. Trabalhamos e nenhum esforço poupamos para satisfazê-las. A supressão de um desejo é con siderada sacrilégio que deverá inevitavelmente vingar-se sob a forma de alguma desordem mental. 192
Adoramos não um, mas todo um panteão de ne cessidades e chegamos ao ponto de não ver na mo ral e nas normas espirituais nada mais que desejos pessoais disfarçados. É realmente grotesco que, enquanto na ciência a visão antropocêntrica da terra como centro do uni verso e do homem como fim de todo ser foi aban donada há muito tempo, na vida real se continue a adotar uma visão egocêntrica do homem e de suas necessidades como medida de todo^ os valores, sem nada para determinar seu modo de vida, exceto suas próprias necessidades. Se a satisfação das necessi dades humanas tivesse que ser tomada como me dida de todas as coisas, o mundo, que jamais se ajusta às nossas necessidades, deveria ser conside rado como um erro abissal. A natureza humana é insaciável, e o progresso nunca eünsegue acompa nhar o ritmo da evolução das necessidades. Quem conhece suas reais necessidades? Não podemos estabelecer nossos juízos, deci sões e orientações para a ação em dependência das nossas necessidades. A verdade é que o homem que descobriu tanto sobre tantas coisas não conhece seu próprio coração, nem sua própria voz. Muitos dos interesses e necessidades que alimentamos nos são impostos pelas convenções da sociedade, ao invés de serem inatas à nossa essência. Se algumas delas são necessidades reais, outras são fictícias e adota das em conseqüência das convenções, da propaganda dra filosofal no conceito das necessidades. Mas quem ou da pura inveja.
pensamento acredita possuir peé queO conhece suas moderno reais necessidades? Comoa dis tinguir as necessidades autênticas das fictícias, ne cessidades reais de pretextos? 13 - O homem não está só
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Via de regra tomamos consciência de nossas aspirações autênticas súbita e inesperadamente. Não no início, mas já tarde no decorrer de nossa vida. Como só raramente entendemos o que queremos antes que já seja quase tarde demais, nossos senti mentos não podem ser indicadores do que é essen cial. Somos todos zelosos e prontos para dominar as forças hostis da natureza, para combater o que é hostil à nossa sobrevivência física, as doenças, os inimigos, o perigo.a Mas quantos de nós são zelosos e estão dispostos subjugar o mal dentro de nós ou a combater o crime quando não ameaça nossa própria sobrevivência, a decadência da alma, o ini migo dentro das nossas necessidades? Tendo absorvido uma enorme quantidade de ne cessidades e tendo ao mesmo tempo aprendido a apreciar grandes valores tais como a justiça, a liber dade, a fé, comose interesses começamos a perguntar-nos podemos particulares, confiar nas necessidades e interesses. Se é verdade que há interesses que todos os homens têm em comum, a maioria dos nossos interesses particulares, tais como são afirma dos na vida cotidiana, dividem-nos e antagonizam-nos ao invés de nos unir. O interesse é um princípio subjetivo, um prin cípio que divide. É a excitação sentimento acompanha uma atenção especial do dada a algum que obje to . Mas prestamos atenção suficiente às exigências da justiça universal? Na verdade, o interesse pelo bem-estar universal é geralmente bloqueado pelo in teresse do bem-estar particular, especialmente quan do tiver que ser alcançado ao preço da renúncia aos interesses pessoais. É justamente porque a for
ça dos interesses tiraniza nossas vidas, determina nossas idéias e ações, que perdemos de vista os valores mais importantes.
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Necessidades verdadeiras e necessidades falsas Curta é a distância que separa a necessidade tia voracidade. As condições do mal fazem ferver dentro de nós más necessidades, sonhos loucos. Poderemos permitir-nos seguir todas as nossas ne cessidades inatas, mesmo o nosso desejo de poder? Na trágica em que se encontra enredadoconfusão cada umdedeintergsses nós, nenhuma outra distinção parece tão indispensável quanto a distin ção entre interesses verdadeiros e interesses falsos. Mas os conceitos de verdadeiro e falso, para serem normas em nosso tratamento dos interesses, não podem eles próprios ser interesses. Determinadas que são pelo temperamento, pelos preconceitos, pela história e peloas ambiente de cada indivíduo de cada grupo, necessidades, ao invés de eserem nossas normas, constituem nossos problemas. Em vez de constituírem a fonte das normas, elas ca recem de normas. Como poderia erigir-se a ambição individual ou nacional em medida objetivamente necessária e exi gível, se nações inteiras podem ser levadas a ali mentar maus fosse criadodeumvotos estado universal e a interesses? humanidadeSepor maioria de cidisse que um grupo étnico particular deve ser exterminado, porque isso é do interesse da huma nidade, tal decisão seria certa? Ou seria correta a declaração de uma nação credora de que 2 + 2 = 5? Uma ação é certa, uma afirmação é verdadeira in dependentemente de ser conveniente ou não.
não é o certo que éooportuno, como para tam poucoVerdadeiro é necessariamente que desejamos a satisfação de prementes necessidades. O que é certo pode corresponder ao nosso interesse atual, 195
majbi não é o nosso interesse em si mesmo que é certo. O certo está acima do sentimento de inte resse. Pode exigir que se façam coisas das quais não sentimos necessidade, coisas exigidas, mas não desejadas. Quem emprega as realidades da vida como meios para satisfazer seus próprios desejos não tar dará a perder sua liberdade e será degradado a um mero instrumento. Adquirindo as coisas, torna-se escravo delas. Subjugando os outros, perde sua própria alma. A cobiça desenfreada tem como que duas faces; uma irônica e sutil vingança atrás de um sorriso cativante. Dificilmente podemos erigir as necessidades, um fator desconhecido, variável, va cilante e eventualmente degradante em regra uni versal, como suprema e perene norma ou padrão para a vida. Sentimo-nos presos no confinamento das ne cessidades pessoais. Quanto mais cedemos às satis fações, tanto mais profundo será o nosso sentimen to de opressão. Para ser iconoclasta das necessida des idolizadas, para desafiar nossos próprios inte resses imorais, que podem parecer vitais e ter sido acalentados por longo tempo, devemos ter a força de dizer não a nós mesmos em nome de um sim mais alto. Mas nossas mentes são tardias, lentas e errantes. O que é que nos pode dar o poder de dominar a deferência para com as falsas necessida des, de detectar as falácias espirituais, de repelir os falsos ideais e de lutar contra a desatenção ao que não é aparatoso, mas é santo? As necessidades não podem ser tratadas uma a uma, isoladamente, mas devem ser estudadas todas de uma só vez, em sua raiz. Para entender o problema das necessi
dades, temos que enfrentar o problema do homem, que é o sujeito das necessidades. O homem está animado por mais necessidades que qualquer outro 196
ser. Estas parecem situar-se além da sua vontade c são independentes da sua volição. São a fonte e não o produto do desejo. Conseqüentemente só po deremos julgar as necessidades se conseguirmos en tender o sentido da existência 51.
*
%
51 C í. ca p. 15 — 0 IN TE R ES SE D IVIN O — Pr eo cupação transitiva.
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10
-
O sentido da existência
A inconsciência favorita do homem Todas as nossas teorias serão falsas, lançarão areia em nossos olhos, se não tivermos a coragem de confrontar-nos não só com o mundo, mas tam bém com a alma e começarmos a admirar-nos da nossa falta de admiração, do fato de estarmos vivos, de tomarmos a vida coisa evidente. O confronto comcomo a alma é uma abertura inte lectual que abre a mente a incalculáveis problemas, cujas respostas não são fáceis. Por isso o homem moderno crê encontrar sua segurança evitando le vantar tais questões. As questões supremas tornaram-se o objeto favorito da sua inconsciência. Como a dedicação às coisas tangíveis é altamente compen sadora, procuralevantar dar atenção questões impon deráveis não e prefere uma às torre de Babel so bre a estreita base de uma profunda inconsciência. A inconsciência da realidade última é um es tado mental que é possível enquanto o homem en contra tranqüilidade na sua dedicação a objetivos parciais. Mas quando a torre começa a estremecer, quando a morte destrói o que parecia poderoso e
independente, quando nos maus da as delícias da luta não substituídas pelo dias pesadelo futilidade, toma consciência do perigo de uma atitude, eva siva, do vazio dos pequenos objetivos. Sua apre198
cnsão, se não tiver esbanjado a vida atrás de pe quenos prêmios, abre-lhe a alma para as questões que tentou evitar. O sentido da existência Mas o que está em jogo na vida humana que corre o perigo de ser perdido? O sentido da vida. Jim todos os atos que pratica, o homem procura um sentido. As árvores que plari'ta, os instrumen tos que inventa são respostas a uma necessidade ou a uma finalidade. Pela sua própria essência a cons ciência é a dedicação a um fim. Entregue à tarefa de unir o ser com o sentido, as coisas com as idéias, a mente pergunta-se se o sentido é algo que ela pode inventar e valorizar, algo que deve ser con quistado ou se há um sentido para a existência en quanto existência, independentemente do que pos samos acrescentar-lhe. Em outras palavras, será que existe sentido só no que o homem faz, mas não no que ele é? Tomando consciência de si mesmo, o homem não pára no conhecimento do “eu sou”, mas é levado a querer saber o “que” ele é. O homem pode ser caracterizado como um sujeito à ser eem um procura de vida, um predicado, sentido da de toda aumvida nãobusca só dede ações ou episódios isolados que ocorrem de vez em quando. O sentido denota uma condição que não pode ser reduzida a uma relação material nem apreendida pelos órgãos sensitivos. Sentido é compatibilidade com uma idéia. É, além disso, aquilo que um fato
éobjeto em vista de algoA mais. a plenificação de um com valor. vida éÉvaliosa para o homem. Mas o é somente para ele? Ou há alguém mais necessitado dela?
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A suposição suprema Impregnada na mente há a certeza de que exis tência e sentido estão relacionados entre si, que a vida é avaliável em termos de sentido. O desejo de sentido e a certeza da legitimidade da nossa luta para atingi-lo são tão intrinsecamente humanos como a vontade de viver e a certeza de estar vivo. Apesar dos erros e frustrações, continuamos perseguidos por essa busca irreprimível. Nunca po demos aceitar a idéia de que a vida é vazia e sem sentido. Se na base da filosofia não se encontra um autodesprezo da mente, mas a preocupação do es pírito em torno da sua suprema suposição, nosso fim é examinar para conhecer. Ao procurarmos tran qüilizar-nos com um brilhante subterfúgio, estamos, muitas vezes, tentando defraudar a suposição srci nal. Mas por que pensaríamos em duvidar, se dei xarmos de conjeturar? A filosofia é aquilo que o homem tenta fazer com sua suprema suposição so bre o sentido da existência. Os animais estão contentes quando suas ne cessidades estão satisfeitas. O homem insiste não só em ser satisfeito, mas também em ser capaz de satisfazer, em ser uma necessidade e não só em ter necessidades. As necessidades vêm e desaparecem. Mas há uma ansiedade que permanece: Há necessi dade de mim? Não há homem algum que não tenha sentido essa ansiedade. O homem não é fim de si mesmo
É um fato muito significativo que o homem não é suficiente a si próprio, que a vida não tem sentido para ele enquanto não estiver a serviço de 200
uma finalidade acima dela, enquanto não tiver valor para alguém mais. O eu pode ter a mais alta taxa de câmbio, mas os homens não vivem da moeda senão dos bens alcançáveis por meio dela. Acumu lar e investir no eu é cultivar um sentido colossal de futilidade da vida. O homem não é fim de si mesmo, incluindo tudo em si. A segundo máxima de Kant, de nunca usar os seres humanos simplesmente como meios, mas considerá-los como fins, só indica como uma pessoa deve ser tratada por outras pessoas, não como ela deve tratar-se a si mesma. Se uma pes soa pensa ser um fim em si mesma, usará os outros como meios. Além disso, se a idéia de que o ho mem é um fim for tomada como medida do seu valor, não se poderá esperar que ele sacrifique sua vida ou seus interesses pelo bem de um outro, nem mesmo de um grupo. Deverá tratar a si mesmo da mesma maneira que espera que o tratem os ou tros. Por que um grupo ou todo um povo haveria de merecer o sacrifício de nossa vida? Para uma pessoa que se considera como fim absoluto mil vidas não valerão mais que sua própria vida. Um pensamento sofisticado pode possibilitar ao homem simular-lhe que ele é suficiente a si mesmo. berto Mas odecaminho tal tipo que de ilusões. conduz àO insanidade sentimento está de fu co tilidade que nasce com o sentimento de ser inútil, de não ser necessitado neste mundo é a causa mais comum de psiconeurose. A única maneira de evitar o desespero é ser uma necessidade ao invés de ser uma finalidade. Efetivamente, a felicidade pode ser definida como a certeza de ser necessitado. Mas
quem precisa do homem?
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O homem existe por causa da sociedade A primeira resposta que vem à mente é uma resposta de caráter social — a finalidade do homem é servir à sociedade ou à humanidade. Nesse caso o valor último de uma pessoa seria determinado por sua utilidade para os outros, pela eficiência de sua obra social. Mas a respeito de sua atitude ins trumentalista, o homem espera que os outros o tomem não por aquilo que ele possa significar para eles, mas como um ser que tem valor em si mesmo. Mesmo quem não se considera como fim absoluto se revolta contra o fato de ser tratado como meio para um fim, como útil para outros hom ens. Os ricos, os homens do mundo, querem ser amados por si mesmos, por sua essência, o que quer que ela signifique, e não por suas realizações ou suas pos ses. Tampouco os velhos e doentes esperam ajuda por causa do que nos possam dar em troca. Quem tem necessidade dos velhos, dos doentes incuráveis, cujo sustento constitui uma sangria no tesouro do Estado? Além disso, é evidente que tal serviço não exige toda a vida de um homem e, portanto, não pode ser a resposta última à sua procura de sen tido da vida como um todo. O homem tem mais para dar que os outros homens são capazes ou estão dispostos a receber. Dizer que a vida poderia con sistir em cuidar dos outros, num incessante serviço ao mundo, seria demagogia vulgar. O que podemos dar aos outros é geralmente menos e poucas vezes mais que uma migalha. Há na alma avenidas que o homem percorre sozinho, caminhos que não levam à sociedade, um
mundo de que se não retraisó aos olhares público. A intimidade vida compreende terra arável,do produtiva, mas também montanhas de sonhos, um subsolo de tristeza, torres de suspiros que dificil 202
mente poderão ser usados para o bem da sociedade, a menos que se converta o homem numa máquina em que cada parafuso deve ter a sua função ou ser eliminado. Um estado que, procurando utilizar 0 indivíduo, exige para si tudo o que há no homem, é um estado exploratório. E se a sociedade concretizada no estado se revelasse corrompida e meus esforços para curar seu mal fossem inúteis, será que a minha vida como indivíduo seria por isso totalmente sem sentido? Se a sociedade decidisse recusar meus serviços e até confinar-me ao isolamento, de maneira que eu tivesse que morrer com toda a certeza, sem poder exercer nenhuma influência sobre o mundo que amo, sentir-me-ei obrigado, por isso, a terminar minha vida? A existência humana não pode derivar seu sen1ido último da sociedade, porque a própria socieda de necessita de sentido. E tão legítimo perguntar se há necessidade da humanidade como perguntar se há necessidade de mim. A humanidade começa com o homem indi vidual tal como a história nasce de um aconteci mento singular. É sempre um homem por vez que temos em mente quando proclamamos “mal a nin guém, bem a todos”, o mandamento “ama oouteuquando próximotentamos como a cumprir ti mes mo” . O termo “humanidade”, que em biologia in dica a espécie humana, tem um significado inteira mente diferente no reino da ética e da religião. Aqui a humanidade não é concebida como uma es pécie, um conceito abstrato destituído da sua reali dade concreta, mas como uma abundância de indi
víduos específicos; como uma comunidade de pes soas e não como um rebanho ou uma multidão de desconhecidos. Se é verdade que o bem de todos vale mais 203
quefío bem de um só, contudo é o indivíduo con creto que dá sentido à raça humana. Não julga mos da queraça. um Oseroposto humano tem é valor por sera mem bro é que a verdade: raça humana tem valor porque é composta de seres hu manos . Embora dependamos da sociedade como do ar que nos sustenta e embora outros homens compo nham o sistema de relações em que a curva das nossas ações tem o seu curso, é como indivíduos que somos por desejos, temoreschamados e espe ranças, que dominados somos desafiados, que somos e que somos dotados do poder da vontade e de uma centelha de responsabilidade. O auto-aniquilamento do desejo De todos os fenômenos que se verificam na alma, são os desejos que têm a taxà, de mortali dade mais elevada. Como plantas aquáticas, eles crescem e vivem nas águas do esquecimento, impa cientemente ansiosos por desaparecer. A intenção de morrer é inerente ao desejo. Afirma-se para ser extinto e ao atingir sua satisfação chega ao seu fim, cantando o seu próprio hino fúnebre. Essa intenção suicida não se verifica em todos os atos humanos. Os pensamentos, os conceitos, as leis, as teorias nascem com o objetivo de per manecer. Assim, por exemplo, um problema não deixa de ser importante depois que foi encontrada a sua solução. A intenção de permanência, o es forço para compreender o que é válido, para formar conceitos cuja força e valor continuam para sem
pre, são coisas inerentes à razão. Portanto, não é considerando as idéias, mas fazendo o levantamento da nossa vida interior e descobrindo o cemitério
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de necessidades e desejos outrora ardentemente aca lentados, que nos tornamos intimamente conscienles da temporalidade da existência. Em busca do permanente Há, entretanto, uma curiosa ambigüidade na maneira em que se mantém essa consciência. Se não há nada de que o homem esteja mais intima mente que a temporalidade existência, ra ramentecerto se resigna ao papel de damero cumpridor de desejos. Caminhando sobre uma rocha que constante mente desaba atrás de cada um de seus passos e prevendo a inevitável ruptura que terminará a sua caminhada, o homem não consegu% refrear sua amar ga ansiedade de saber se a vida não é nada mais que uma série de processos fisiológicos e mentais, de ações e formas de comportamento momentâneos, um fluxo de vicissitudes, desejos e sensações, que escorrem como os grãos de areia através de uma ampulheta, marcando o tempo uma só vez e desa parecendo sempre. Chega a perguntar-se se no fundo a vida não é como a face de um relógio de sol que sobrevive a todas as sombras que giram sobre a sua face. Não será a vida senão uma mistura de fatos sem relação entre si? Um caos disfarçado pela ilusão? Desesperada ansiedade Não há neste mundo alma alguma que, ainda
que vaga ou raramente, não tenha compreendido que a vida é sombria se não se espelhar em algo que seja duradouro. Andamos todos à procura de uma 205
convicção de que existe algo que seja digno das lutas e trabalhos da vida. Não há alma alguma que não tenha sentido a ânsia de conhecer algo que dure mais que a vida, a luta e a agonia. Com toda a sua angústia, com suas fracas luzes em meio ao nevoeiro, o homem sente-se desampa rado e contraditório. Será que a sua vontade de ser bom pode curar as feridas da sua alma, seu pavor e a sua frustração? É demasiadamente óbvio que sua vontade é uma porta aberta para uma casa dividida em si mesma, que suas boas intenções, depois de durarem por algum tempo, tocam a lama da vaidade, como o horizonte da sua vida que al gum dia tocará a sepultura. Existe alguma coisa além do horizonte das nossas boas intenções? A busca humana de um sentido para a exis tência é essencialmente uma busca do que é per manente, uma humana busca de continuidade. Em corrida certo sentido a vida é, muitas vezes, uma contra o tempo, esforçando-se por perpetuar as ex periências, ligando-se a valores ou estabelecendo re lações que não pereçam logo. Sua busca não é um produto do desejo, mas um elemento essencial da sua natureza, característica não só da sua mente, mas também da sua própria existência. Isso pode ser demonstrado tência como tal. pela análise da estrutura da exis O que é a existência?
Embora a existência como categoria geral seja indefinível, é-nos conhecida de maneira imediata
e, da suacom indefinibilidade, nãoé está te apesar sem relação a mente. Não um totalmen conceito vazio, pois mesmo como uma categoria muito geral não pode ser completamente despojada de algumas 206
relações. Há sempre um mínimo de sentido em nossa noção de existência. A característica mais intrínseca da existência é a independência. O que existe, existe na realidade, no tempo e no espaço, e não só em nossas mentes. Atribuindo existência a uma pessoa, implicamos que a pessoa é mais que uma mera palavra, nome ou idéia, que ela existe independentemente de nós e do nosso pensamento, enquanto aquilo que é um produto da nossa imaginação, coijpo os quiméricos Brobdingnags ou os Yahoos, depende inteiramente da nossa mente. Não existe quando não pensamos nele. Mas a existência assim descrita é um conceito negativo que nos diz o que não é a existência e a coloca fora da relação para conosco. Mas qual é o conteúdo positivo da existência? Será que exis tência não implica uma relação nlfcessária para com algo além de si mesma? A temporalidade da existência É óbvio que a relação da existência com o tempo é mais íntima e única que sua relação com o espaço. Não há nada no espaço que seja tão necessário que à existência ou dela faça partesem tão incor inti mamente não possamos abandoná-lo rer em qualquer prejuízo radical. A existência não implica na posse de nenhuma propriedade, nenhum domínio de outros seres. Até mesmo a posição que ocupamos no espaço pode ser livremente trocada por outra. Mas os anos da nossa vida são de im portância absoluta para nós. O tempo é a única
propriedade que oé eu realmente.essencial Portanto, a temporalidade umapossui característica da existência. Mas o tempo é a mais frágil de todas as coi 207
sas: uma mera sucessão de instantes perecíveis. É algo que nunca conseguimos segurar; o passado passou para sempre, o que está por vir está fora do nosso alcance e o presente desaparece antes que possamos percebê-lo. Paradoxal verdade — nunca possuímos a única propriedade que temos. O caráter ininterrupto da existência A temporalidade ou evanescência da existência é, na verdade, dolorosamente óbvia para todos nós. Arrastados pela correnteza mortal do tempo, que não nos permite nem continuar no presente nem voltar a qualquer momento do passado, a única perspectiva que nos cerca constantemente é a de cessar de existir, de ser lançado fora da corrente. Mas é só a temporalidade que é intrinseca à exis tência? Não é a permanência, até certo ponto, igual mente intrínseca à existência? Existência implica em duração, continuidade. Existência é ininterrupção, não um ano agora e outro depois, dispersão, mas extensão contín ua. Por mais relativa e limi tada que possa ser a ininterrupção da vida, é, tal como a temporalidade, uma das duas características constitutivas da existência. Há um elemento de constância na estrutura interna da existência que conta para a permanência dentro da temporalidade, e é só o aspecto dura douro da realidade que é capaz de ser objeto de um juízo lógico. Pois só esse aspecto constante de uma coisa que permanece a mesma, independen temente das mudanças que a coisa em si possa so frer, pode ser apreendido pelas categorias da nossa
razão. Em outras palavras, nossas categorias são os espelhos em que as coisas são refletidas na luz da sua constância. Não há nada que a mente apre 208
cie mais que a continuidade. Medimos os valores pela sua duração. Até a nossa consciência do tempo depende de um princípio que é independente do tempo. Temos consciência do tempo medindo-o, dizendo um mi nuto, uma hora, um dia. Mas para medir o tempo, lemos que estar de posse de um princípio de me dição que deve ser constante. Não podemos me di-lo diretamente comparando uma extensão de tem po com outra, pois nunca são dadas duas partes de tempo simultaneamente. Assim, o tempo por si mesmo não pode fornecer uma consciência de si, pois para ser uma consciência de si deveria estar igualmente presente em todos os estágios do tempo. Por isso a consciência do tempo pressupõe um prin cípio que não é temporal e não d esaParece> como cada instante, para dar srcem ao seguinte instante. O tempo para a sua continuação depende de um princípio que é independente do tempo, pois o tempo em si não oferece permanência. O rio do tempo corre ao longo de uma “terra sem tempo” . O segredo da existência O segredo da reside nessa relação da temporalidade comexistência a continuidade. Pois ao ten tarmos explicar a vida orgânica, seja postulando uma misteriosa “força vital”, seja exclusivamente por leis físico-químicas, o problema básico continua sem resposta: o que é que faz com que essa força ou essas leis persistam permanentemente? Será que a força impulsora da vida é a vontade de viver?
Nesse qual é Além a relação vontade de viver com talcaso, princípio? disso,da será verdade que a existência é o resultado de uma decisão delibe rada? Meu organismo cresce, multiplica-se e desen14 - O homem não está só
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volve-se porque assim o quer? Será que o ímpeto, o empenho a audácia e a aventura que caracterizam a vida são o resultado de uma escolha? Se assim for, não estamos conscientes disso. Pelo contrário, sabemos que a vontade humana jamais cria a vida. Ao gerar a vida, somos instrumentos e não senhores dela. Somos testemunhas e não autores do nasci mento e da morte. Sabemos que algo anima e ins pira um organismo vivo. Mas o que é? Usar o con ceito de uma subcônscia vontade de viver, de uma vontade que não conhecemos, é recorrer a um deus ex machina, o artifício por meio do qual na tragédia antiga se introduzia um deus na cena a fim de encontrar uma solução sobrenatural para uma difi culdade dramática, mas com a diferença de que aqui o deus aparece dissimulado com a pretensão de ser um ente natural. elementopermanente permanenteatravés em nossas vi das? Qual O queé ocontinua de todas as mudanças? O corpo cresce e declina. As paixões são todas arrastadas pela correnteza do esqueci mento. O que o homem que se encontra no li miar da morte, olhando para trás, considera per manente em tudo o que aconteceu e passou? Será a nossa vontade de viver? Nossa preocupação re flexiva? Ser é obedecer Olhando para a nossa própria existência, somos forçados a admitir que a essência da existência não está na nossa vontade de viver. Temos que viver
e vivendo obedecemos. existência é um cumpri mento e não um desejo.A Uma concordância e não um impulso. Sendo, obedecemos. Lutamos, sofremos, vivemos e agimos não por210
i|ue temos vontade de assim fazer. Nossa própria vontade é obediência, é uma resposta, um cumpri mento. Só subseqüentemente chegamos a querer o que devemos. A vontade é aparência, nosso cum primento é “a coisa em si mesma” . Não é a vida do corpo um processo de obediência? O que é o pensamento senão submisão à verdade, cumpri mento das regras da lógica? O fato de que existe lógica, independentemente da vontade que deseja que algo seja verdade, exercendo um poder coercilivo e implacável sobre nossas mentes não é expli cável como produto da vontade ou da mente. Os atos do pensamento lógico dependem da mente, mas o fato de que deve haver lógica, de que a mente só pode pensar de acordo com suas regras, 6 algo que não depende do poder da mente. %
A meta suprema Caracterizamos a busca humana de um sentido para a existência como sendo uma busca de algo duradouro e permanente e mostramos que a relação com o duradouro e permanente está na base de toda a existência. Entretanto, a piedade natural da obe diência não está é uma resposta à busca do homem. na Se o homem preso e unido ao permanente raiz do seu ser, está, como dissemos acima, livre e desimpedido nos seus pensamentos e atos. É livre para agir, é livre para refrear. Tem o poder de desobedecer. É por causa desta sua independên cia que o homem é perseguido pelo medo de que sua vida seja sem valor e pelo desejo de um sen
tido Todo supremo. ser humano abriga dentro de si uma aspiração à permanência, mas poucos compreendem o sentido do permanente e duradouro. Há somente 211
uma verdade, mas existem muitas maneiras de en tendê-la e interpretá-la mal. Há uma só meta, mas existem modos de não Oatingi-la. Qualmuitos é a meta suprema? prolongamento da existência na sua forma presente com seus prazeres e preocupações? A perpetuação do eu com suas fraquezas, vaidades e temores? Não amamos a tota lidade do ego a tal ponlo que nossa maior aspira ção seja preservá-lo para sempre. Efetivamente, co meçamos a pensar em imortalidade quando nos sen timosnaangustiados dos outros Oe não ânsia pela pela nossa perpetuação própria perpetuação. pensamento da imortalidade começa na compaixão, numa preocupação transitiva por aqueles que mor reram . A verdadeira aspiração não é a de que perdure o eu e tudo o que nele está contido, mas que per maneça tudo aquilo para o qual o eu existe. O homem ser um pesadelo, mas Foi-lhe também dado o cum primentopode de uma visão de Deus. o poder de superar-se a si mesmo, de responder por todas as coisas e de agir por um Deus. Todos os seres obedecem à lei. O homem tem a capacidade de cantá-la. Seu supremo legado consiste em com por um cântico dos feitos que só Deus compreende plenamente. Tempo e eternidade O caminho para o permanente não está no ou tro lado da vida. Não começa onde termina o tem po. O permanente não começa além, mas sim, den tro do tempo, dentro do momento, dentro do con
creto. O tempo pode ser visto sob dois aspectos: sob o aspecto da temporalidade e sob o aspecto da eternidade. 212
O tempo é a orla da eternidade. O tempo ('■ a eternidade sob forma de borlas. Os momentos tia nossa vida são como luxuosas borlas. Estão presas à vestimenta e são feitas do mesmo tecido, r, mediante a vida espiritual que compreendemos que o infinito pode ser confinado numa linha men surável . A vida sem integridade assemelha-se a fios sollos que facilmente se desprendem da vestimenta principal, enquanto nos atos de piedade aprendemos a ver que cada instante é como um fio que sai da eternidade para formar uma delicada borla. Não devemos deixar cair os fios, mas entretecê-los com a textura eterna. Os dias da nossa vida, ao contrário de fu gazes, são representantes da eternidade e devemos viver como se o destino de tod& o tempo depen desse totalmente de um só momento. Visto como temporalidade, a essência do tempo e separação, isolamento. Um momento temporal é sempre solitário, sempre exclusivo. Dois instantes nunca podem estar juntos, nunca podem ser con temporâneos . Visto como eternidade, a essência do tempo é união, comunhão. É no tempo e não no espaço que podemos comungar, adorar, amar. É no tempo que um dia pode valer mil anos. As intuições criativas desenvolvem-se durante uma vida inteira para durar um momento. Con tudo, permanecem para sempre. Pois permanecer significa estar em comunhão com Deus, “aderir a ele” (Dt 11,22). Um momento não tem outro mo mento contemporâneo dentro do tempo. Mas na eternidade cada momento pode tornar-se contempo
râneoÉdepor Deus. isso que acima dissemos que o bem é um fato ontológico. O amor, por exemplo, é mais que cooperação, mais que sentir e agir conjunta213
ménte. Amar ê ser juntamente, um modo de exis tência, não só um estado de alma. O aspecto do deamor, paixão e emoção, é apenaspsicológico um aspecto uma sua situação onto lógica. Quando um homem ama outro, constitui uma união que é mais que uma adição, mais que um mais um. Amar é unir-se ao espírito de uni dade, elevar-se a um novo nível, entrar numa nova dimensão, uma dimensão espiritual. Porque, como vimos, o que quer um homem faça a outro homem, fá-lo Significativamente também a Deus. a Bíblia descreve o amor da seguinte maneira: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua meod”. O que significa meod? Só pode significar o que significa em toda parte na Bíblia o advérbio “mento” num grau superlativo. Dese jando qualificar o verbo “amar”, o texto de re pente sentiu a falta forçao de pro gressivamente: “com detodo teu expressão. coração”. EDizainda mais: “com toda a tua alma”. Mas também essa expressão não era suficiente e então disse: “com toda a tua m uitida de . \ . ”
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A essência do homem
A unicidade do homem \
Tudo o que existe obedece. Só o homem ocu pa um status único. Como ser natural ele obedece, como ser humano freqüentemente tem que escolher. Confinado na sua existência, é livre na sua vontade. Seus atos não emanam dele como os raios da ener gia emanam da matéria. Colocado na encruzilhada que dos caminhos, direção tomar. o homem O curso deve de repetidamente sua vida é decidir impre visível . Ninguém pode escrever sua autobiografia antecipadamente. Será o homem que ocupa uma posição tão es tranha no grande reino do ser uma exceção da or dem universal? Um proscrito? Um capricho da na tureza? Um fragmento de fio que caiu do tear da natureza foi Aentretecido estra nha cornoe odepois vemos? astronomiadae maneira a geologia en sinaram-nos a desprezar a pretensiosa vaidade do homem. Mesmo sem o auxílio da astronomia e da geologia, o salmista deve ter-se sentido oprimido pelo sentimento da própria insignificância, quando lançou a melancólica interrogação: Quando contemplo teus céus, obra de teus dedos,
A estrelas quedele criaste, Queluaé eo as homem para te lembrares? E o filho do homem para dele te ocupares? (Sl 8,3-4). 215
'; Entretanto, se o valor e a posição do homem no universo devem ser definidos como um dividido pelo infinito, que oo universo, infinito designa o número de seres que sendo povoam se o homem = 1
------- como explicamos o fato de que o infinitésimo 0 0
homem é evidentemente o único ser deste planeta capaz de fazer tal equação? Uma formiga nunca é tomada de admiração, tampouco uma estrela se considera uma coisa sem importância. Imenso é o escopo da astronomia e da geologia. Mas o que é a astronomia sem o astrônomo? O que é a geologia sem o geólogo? Se tivéssemos que caracterizar um indivíduo como William Shakespeare em termos de medição, certamente nos serviríamos da descrição de Eddington sobre a posição do homem no universo e di ríamos que Shakespeare, tamanho se um en contra quase exatamente aquanto meio ao caminho entre átomo e uma estrela. Para avaliar a sua existência vegetativa, é importante saber, por exemplo, que o homem consiste de cem milhões de células. Mas para avaliar a essência do homem, a única coisa que conta para a sua ansiedade em avaliar a sua existência, devemos distinguir o que é único nele. Refletindo sobre ocom universo infinito talvez déssemos resignar-nos a posição trivial de pu ser mos uma coisa sem importância. Mas reconsiderando nossa reflexão descobrimos que não somos apenas carregados e circundados pelo universo da signifi cação. O homem é uma fonte de sentido imenso e não só uma gota no oceano do ser. A espécie humana é demasiadamente poderosa,
demasiadamente perigosa para ser uma simples brin cadeira ou capricho do Criador. Indubitavelmente, o homem representa algo de único no grande corpo
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do universo: como que um produto, uma massa :inormal de tecido que não só começou a interagir com outrasdepartes, mas otambém, certo destas. ponto, foi capaz modificar próprioatéestado Qual é a sua natureza e função? É algo maligno, um tumor, ou é como que um cérebro do uni verso? A espécie humana mostra às vezes sintomas de perversidade e o seu desenvolvimento não for controlado, pode destruir todo o corpo por causa da sua expansão. Em termos de tempo astronô mico, nossa civilização encontra-se na sua infância. A expansão do poder humano apenas começou e o que o homem fizer com o seu poder poderá tanto salvar como destruir nosso planeta. A terra pode ter pouca importância no universo infinito. Mas se tiver alguma sigfiificação, é o ho mem quem tem a sua chave. Pois uma coisa o homem, sem dúvida, parece possuir: a ilimitada e imprevisível capacidade de desenvolver um universo interior. Na sua alma há mais potencialidade que em qualquer outro ser que conhecemos. Olhemos para uma criança e tentemos imaginar a multiplici dade de acontecimentos que originará. Uma criança chamada Bach foi dotada de poder suficiente para exercer fascínio sobre muitas gerações de homens. Mas há qualquer potencialidade a saudar ou qual quer surpresa a esperar de um bezerro ou de um potro? Efetivamente, a essência do homem não está no que ele é, mas naquilo que ele é capaz de ser. Nas trevas da potencialidade
Entretanto, as trevas da potencialidade são o viveiro da angústia. Há sempre mais de um cami nho a seguir e somos forçados a ser livres — somos
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liyres contra nossa vontade -— e temos a audácia de escolher, raramente sabendo como e por quê. Nossas faltas está brilham como mil minoria formas, mas o certo abaixo do luzes solo. de Somos no grande reino do ser e com nossa tendência de adaptar-nos, freqüentemente procuramos unir-nos com a multidão. Somos minoria dentro da nossa própria natureza e na agonia e luta das paixões muitas vezes preferimos invejar os animais. Comportamo-nos como se o reino animal fosse nosso paraíso perdido, qual tentamos por con mo mentos de prazer,aoacreditando que avoltar felicidade siste no estado animal. Temos um incessante desejo de ser como as bestas, uma nostálgica admiração do animal dentro de nós. Segundo um cientista con temporâneo: “A maior tragédia do homem ocorreu quando ele deixou de andar sobre quatro pés e se separou do mundo animal, assumindo uma posição ereta. Se o homem a andar hoa rizontalmente e os tivesse coelhos continuado tivessem aprendido andar verticalmente, muitos dos males do mundo não existiriam”. Entre Deus e os animais O homem está em continuidade tanto com o resto da natureza orgânica como com a infinita efu são do espírito de Deus. Minoria no reino do ser, o homem encontra-se numa posição intermediária entre Deus e o animal. Incapaz de viver sozinho, tem que comungar com os dois. Tanto Adão como os animais foram abençoa dos pelo Senhor, mas o homem, além disso, foi
ainda incumbido de conquistar a terra e dominar os animais. O homem está sempre diante da alterna tiva de escutar ou a Deus ou a serpente. É sem
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pre mais fácil invejar o animal, adorar um totem v ser dominado por ele do que atender à Voz. Nossa existência oscila entre a animalidade e a divindade, entre o que é mais e o que é menos que a humanidade: abaixo está a evanescência, a Iutilidade e acima a porta aberta do tesouro divino onde depositamos a moeda da piedade e do espírito, i is restos imortais de nossas vidas mortais. Estamos constantemente entre as mós da morte, mas somos lambém contemporâneos de Deus. O homem está “um pouco abaixo dos anjos” ( Sl 8,5) e um pouco acima dos animais. Como um pêndulo, oscila para lá e para cá sob a ação com binada da gravidade e do movimento, da gravitação do egoísmo e do movimento do divino, de uma visão de Deus nas trevas da carne e do sangue. Não conseguiremos entender o assentido da nossa existência se não atendermos a nossos compromissos com essa visão. Mas só olhos vigilantes e fortale cidos contra a ofuscação e o superficial ainda con seguem perceber a visão de Deus na noite de lou cura, falsidade, ódio e malícia humana que invade a alma. Por causa do seu imenso poder, o homem é potencialmente o mais perverso dos seres. Muitas vezes temor domina-o de Deus apode paixão amainar, da crueldade, acessos sufocantes que só o de inveja que só a santidade pode abrandar. Se o homem não for mais que humano, será menos que humano. O homem é apenas um breve e crítico estágio entre o animal e o espiritual. Seu estado é constantemente vacilante, ora se eleva, ora cai. Não existe humanidade sem desvio. Ainda
está O porhomem apareceré omais homem emancipado. que aquilo que ele é para si mesmo. Pode ser limitado na sua razão, per verso na sua vontade, mas encontra-se numa re 219
la(ção com Deus que ele pode trair, mas não pode romper e que constitui o sentido essencial da sua avida. terra.Ele é o nó em que se entrelaçam o céu e Quando arrebatados pela alegria de agir con forme nosso agrado, seguindo qualquer desejo, acei tando toda oportunidade para agir segundo aprou ver ao corpo, sentimo-nos perfeitamente satisfeitos em andar sobre quatro pés. Mas há momentos na vida de cada um em que começamos a perguntar mos se os servir prazeres corpo ou sob os interesses do eu podem comodoperspectiva a qual devem ser tomadas as decisões. Acima das nossas necessidades Apesar das delícias que estão ao nosso alcance, recusamo-nos a trocar nossas almas por recompensas egoístas e a viver dos lucros, mas sem consciência. Mesmo aqueles que perderam a capacidade de com paixão não perderam a capacidade de horrorizar-se com a sua incapacidade de sentir compaixão. O teto caiu, mas as almas ainda estão penduradas por um cabelo de horror. De quando em quando cada um de nós tenta julgar sua vida. Nem aqueles que perderam a visão da virtude estão privados do horror ao crime. Através do des gosto e do pavor chegamos ao conhecimento de que viver segundo necessidades egoístas é matar o que ainda resta vivo do nosso temor. Só há uma ma neira de purificar o ar poluído do nosso mundo: viver acima das nossas próprias necessidades e inte resses. Somos carnais, ambiciosos, egoístas, vaido sos e por isso viver por necessidades não egoístas
significapodemos viver acima dos donossos própriosOnde meios. Como ser mais que somos? en contrar recursos que dêem às nossas almas um va220
Ini excedente que não é nosso? Viver acima das liiissiis necessidades significa ser independente de lim\ssidades mem romper egoístas. o círculoMas do como seu eu?conseguirá o ho A possibilidade de eliminar a consideração de a mesmo depende, em última análise, da natureza do eu. É mais uma questão metafísica que psi cológica. Se o eu existisse por causa de si mes mo, essa independência não seria possível nem devjável. Só se pode afirmar essa possibilidade su pondo eu énão o centro, ''mas um mio, quequeeleo não nemé seu princípio nemapenas seu fim. O homem é sentido, mas não seu próprio senlido. Nem sequer conhece seu próprio sentido, pois o sentido não sabe o que significa. O eu é uma necessidade, mas não sua própria necessidade. Todas as nossas experiências^ão necessidades que se desfazem quando as necessidades são satisleitas. verdade é que também a nossa exis tência éMas umaa necessidade. Somos da mesma matéria da qual são feitas as necessidades e nossa pobre vida está cercada por uma vontade. O que é per manente em nossa vida não é a paixão nem o pra zer, nem a alegria, nem o sofrimento, mas a res posta a uma necessidade. O permanente em nós não é nossa vontade de viver. Há uma necessidade das nossas vidas e vivendo a satisfazemos. nente não é nosso desejo,nósmas nossa resposta Perma a essa necessidade, uma concordância e não um impulso. Nossas necessidades são temporais, enquanto o fato de sermos necessitados é permanente. Quem tem necessidade do homem?
Começamos nossa indagação com a questão do homem individual — qual o sentido do homem 221
individual — e estabelecemos sua unicidade no fato de estar repleto de imensas potencialidades, das quais toma consciência mediante sua experiência das necessidades. Também mostramos que ele não encontra a felicidade utilizando suas potencialidades para a satisfação das suas próprias necessidades, que seu destino é ser uma necessidade. Mas quem tem necessidade do homem? Te rão as montanhas necessidade dos nossos poemas? Será que as estrelas desapareceriam se deixassem de existir os astrônomos? A terra pode continuar a existir sem o auxílio da espécie humana. A na tureza está repleta de oportunidades para satisfazer todas as nossas necessidades, exceto uma — a ne cessidade de ser necessitado. No seu ininterrupto silêncio o homem é como que o meio de uma sen tença e todas as suas teorias são como pontos que indicam seu isolamento dentro de si próprio. Diversamente de todas as outras necessidades, a necessidade de ser necessário é um empenho para dar e não para obter satisfação. É um desejo de satisfazer um desejo transcendente, uma aspiração de satisfazer uma aspiração. Todas as necessidades são unilaterais. Quando estamos com fome, estamos necessitados de alimen to, mas o alimento não tem necessidade de ser con sumido. As coisas belas atraem nossas mentes, sen timos necessidade de observá-las, mas elas não têm necessidade de serem observadas por nós. A maior parte da vida é prisioneira dessa unilateralidade. Se analisarmos um espírito de tipo médio, veremos que é dominado pelo esforço de talhar a realidade à medida do ego, como se o mundo existisse para agradar o nosso ego. Todos nós temos mais rela
ções com coisas que com pessoas e mesmo quando tratamos com pessoas comportamo-nos em relação a elas como se fossem coisas, instrumentos, meios 222
,i serem usados para nossos fins egoístas. Quão rauimcnte consideramos uma pessoa como pessoa! Sonii is todos dominados pelo desejo de apropriar e de possuir. Só uma pessoa livre compreende que o verdadeiro sentido da existência se experimenta em d;ir, em doar, indo ao encontro de uma pessoa face face, satisfazendo as necessidades de outras pessoas. Ao compreendermos o excedente do que vemos iiei ma do que sentimos, nossa mpnte se evade e ;ile o coração é insuficiente. Por que estamos des contentes com viver simplesmente por viver? Quem nos fez sedentos do que é mais que a existência? Em toda a parte estamos circundados pelo inelíível. Nossa familiaridade com a realidade é um mito. No mais íntimo da nossa alma até a beleza é uma liga misturada com o veraadeiro metal da .1
eternidade. nem outono.Não Só há há terra, uma interrogação, nem céu, nema primavera, eterna in terrogação de Deus ao homem: onde estás? A reli gião começa com a certeza de que nos é pedida alguma coisa, de que há finalidades que têm ne cessidade de nós. Diversamente de todos os outros valores, os fins morais e religiosos evocam em nós um sentido de obrigação. Apresentam-se como ta refas e deveres e não como objetos de percepção. Assim, a vida religiosa consiste em servir a fins que têm necessidade de nós. O homem não é um espectador inocente no drama cósmico. Há em nós mais afinidade com o divino do que somos capazes de crer. As almas dos homens são luzes do Se nhor, acesas no caminho cósmico, e não fogos de artifício produzidos pela combustão dos componen tes explosivos da natureza, e cada alma é indispen
sável a ele. O homem é necessário, é uma necessi dade de Deus223
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O problema dos fins
Necessidades biológicas e culturais Atribuindo às necessidades uma grande propor ção na gênese das experiências artísticas e religiosas e dos juízos morais, estamos inclinados a superesti mar a sua importância e a supor que todos os ideais que conhecemos ou alimentamos são projeções das nossas próprias necessidades, que os atosdedeinteresses justiça, as criações da beleza são cristalizações — da mesma forma como cinzeiros, cadarços, lâm padas fluorescentes — e que seu valor consiste em serem desejáveis. Se considerarmos mais atentamente nosso pro blema, torna-se óbvio que há uma diferença estru tural entre necessidades biológicas e necessidades culturais52. No primeiro caso a necessidade — ou a demanda — cria o objeto; no segundo caso é o objeto que cria a necessidade. O “interesse” que a necessidade tem na arte criativa poderá oferecer aos artistas as possibilidades físicas para produzir, mas não é tal “interesse” em si que produz a arte. Será que Van Gogh realizou a sua obra em resposta 52
É necessário
distingu ir estas
necessidad es das ne
cessidades artificiais. Cf. cap. 18 acima — O PROBLEMA DAS NECESSIDADES — A vida, um aglomerado de ne cessidades .
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iin apelo de possíveis compradores ou ao entusiasmo ilns admiradores? Por acaso nosso desejo de ver uni novo Shakespeare para srcem expressar tensão da iiDKsa época deu realmente a tal anovo gênio? Apesar disso continuamos a sustentar a teoria de iiiie a arte é produto de uma necessidade, a necessi dade de auto-expressão do artista ou a necessidade tlr gozo da arte por parte da sociedade.
O mito da auto-expressão Analisemos o processo do gozo da arte. Inii iulmente podemos equivocar-nos considerando-a co mo sendo motivada pela necessidade de encontrar mos expressão para sentimentos Isentes em nossa : 1ma. Mas isso significaria que unia obra de arte não pode produzir emoções em nós se já não as ti vermos experimentado na vida real, que não somos capazes de responder a um motivo se já não o ti vermos registrado, embora vagamente, em nosso co ração . A verdade é que não nos dirigimos à arte para satisfazer, mas para nutrir interesses e sentimentos. Uma obra de arte nos introduz em emoções que nunca tivemos antes. Enquanto não formos surpre sos por ela, a obra de arte é desinteressante, enfa donha. As grandes obras, ao invés de satisfazer, produzem necessidades dando ao mundo novas as pirações. Expressando coisas das quais nem sequer temos consciência, as obras de arte inspiram novos objetivos, visões imprevistas. Ou será que o ato criativo do artista se ori gina de uma necessidade de auto-expressão? É evi 1
dente que um artista empenhado em satisfazer suas necessidades pessoais é de pouco interesse para a sociedade. Sua obra se torna importante para o 15 - O homem não está só
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mundo quando no processo da expressão consegue alcançar queBalzac são importantes para os ou tros. Se objetivos Honoré de estivesse interessado so mente em satisfazer seu desejo de dinheiro e pres tígio, suas obras não teriam interessado a ninguém além dele próprio. Sua significação tornou-se uni versal por ter conseguido criar tipos e situações, cuja importância pouco tem a ver com suas próprias necessidades particulares. segredo personalidade Só criativa não está cega O necessidade de da auto-expressão. proclama o na seu ímpeto de auto-expressão aquele que não tem nada a dizer. Deve haver algo a ser expresso, uma emoção, uma visão, um objetivo que produza a necessidade de expressá-lo. O objetivo é o número básico, a necessidade é apenas o coeficiente. Objetivos e necessidades A vida humana consiste em necessidades, as sim como uma casa consiste em tijolos. Mas assim como um amontoado de tijolos não constitui uma casa, da mesma forma a vida não é um acúmulo de necessidades. A vida como um todo relaciona-se com uma finalidade, com um objetivo. É verdade que, ao contrário do que ocorre com uma casa, o homem é mais do que um meio para um fim, mas é sua relação a objetivos, sua capacidade de com preender que a vida sem objetivos não vale a pena ser vivida, que parece indicar o status peculiar da sua existência. O que distingue o homem é que ele se relaciona com fins e não só com necessidades. As necessidades são correlativas: são esforços
para realizar ou manter fins, funções de fins e não meras emanações de causas. Definir as necessidades sem referência aos fins ou valores aos quais se relacionam é como supor que há percepções normais 226
'.cm objetos percebidos. As necessidades são a reInção do homem para com os valores e objetivos. IVi- um interesse é tornar-se consciente de tal re lação . Os fins são exigências que muitas vezes são in dependentes de necessidades. Como a nossa per cepção sensitiva não cria, mas só registra as coisas percebidas, assim o sentimento de necessidade é apenas uma resposta interna a um fim objetivo. Os sentimentos, as percepções são nossas; os fins, as coisas são do mundo. E o mundo e do Senhor. A moralidade e a religião não começam como sentimentos dentro do homem, mas como respostas i objetivos e situações fora do homem. É sempre ( m relação a uma situação objetiva que julgamos e afirmamos que algo é certo ou errado. E é em resposta ao que está além do inefável que o homem diz sim Deus. livre não se considera a si mesmo Um ahomem como um repositório de necessidades fixas, mas vê sua vida como uma orientação em direção a fins. Ter uma meta em vista, procurar atingi-la e conti nuar ampliando-a é a forma da vida civilizada. É típico do libertino adaptar os fins às suas necessi dades egoísticas. Está sempre pronto a seguir suas Efetivamente, podem vestimenta aprender anecessidades. ter necessidades, a desejartodos alimentos, e outras coisas dispendiosas, que satisfazem os ape tites ou os gostos. Mas os homens livres não obe decem cegamente às necessidades. Pesam e compa ram os seus respectivos méritos, e procuram satis fazer aquelas que contribuem para a intensificação e o enriquecimento de valores superiores. Em ou
tras palavras, aprovam só aquelas necessidades que servem para atingir fins bons. Não dizem: “As necessidades justificam os fins” . Mas, ao contrário: “Os fins justificam as necessidades”. Para serem 227
capazes de deixar de lado a satisfação de uma ne cessidade por causa de outra ou por causa de prin cípios morais, estéticos ou religiosos devem, até cer to ponto, ser independentes das necessidades. O fatalismo psicológico que ensina que existe uma única maneira, a maneira animal, é uma falácia paralisante à qual jamais se submeterá o espírito humano. A mente não c um repositório de idéias fixas, mas sim uma orientação para ou uma pers pectiva sob a qual se apreende o mundo. Tam pouco é escrava de interesses, vivendo sob a ordema alma mesmeriana de interesses predeterminados. Há mais de um fim no itinerário da vida de cada pessoa. Alguns são paradas no caminho, en quanto outros são desvios que confundem nossa ca minhada. Cegos para a meta principal, geralmente vagueamos atrás de fins egoístas e limitados, se guindo modos que nos agradam, tecendo a tela das necessidades com o entrelaçamento negligente de há bitos e desejos. Muitas coisas da civilização só servem para dar estabilidade ou até para estimular metas competi tivas e não para ajudar a busca de fins espirituais. Encobrimos o homicídio com nossa vontade de vi ver e não recuamos diante da injustiça em nosso zelo por satisfazer ambições egoístas. O erro da panpsicologia Na Idade Média as ciências eram consideradas ancillae theologiae . Hoje se pretende que os pro blemas da metafísica, da religião, da ética e da arte sejam essencialmente problemas de psicologia. Há uma tendência que poderíamos chamar de panpsico
logia. Afirma que a psicologia pode explicar a ori gem e o desenvolvimento das leis, dos princípios e valores da lógica, da religião e da ética, reduzindo
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,i forma e o conteúdo do pensamento e do compcrlamento a processos psíquicos subjetivos, a impul sos e funções do desenvolvimento psíquico. O equívoco dessa concepção está em confundir os valores, as leis ou princípios com o contexto psíquico em que elas se apresentam à nossa aten ção . É engano identificar o conteúdo do conheci mento com as reações emocionais que acompanham a sua aquisição, ou identificar os conceitos com fun ções mentais. Nossa afirmação ou ^pegação de uma conclusão, nosso sim ou não dado a uma idéia é um ato em que queremos afirmar a verdade com base na necessidade lógica ou na certeza intuitiva. E justamente a imunidade de emoção que nos per mite sustentar que conhecemos a verdade. O próprio panpsicólogo sustenta isso. As leis devem ser por ele aplicadas aos processos, aos va gos, e caóticos processose psicológicos, se quisermúltiplos classificá-los, interpretá-los torná-los inte ligíveis. Mas essas leis, para serem universalmente válidas, devem poder ser defendidas lógica e epistemologicamente. Devem ser categorias e não pro cessos psíquicos. Caso contrário, não seriam senão uma matéria a mais para a análise psicológica, sem qualquer valor cognitivo. Assim sendo, não somos forçados éa independente admitir que existem atos cognitivos cuja validade de impulsos? Do ponto de vista da panpsicologia teríamos que negá-lo. Mas não temos mais direito de dizer que as categorias lógicas são o produto de impulsos do que dizer que os impulsos são produto das ca tegorias. As categorias são fatos da consciência hu mana que são tão inegáveis quanto os impulsos.
Com parece que dependemos cate gorias efeito, para compreender os impulsos mais que das necessita mos de impulsos para o desenvolvimento das nos sas categorias. 229
A consciência do bem e do mal O bem e o mal não são conceitos psicológicos, embora a maneira como são compreendidos seja in fluenciada pelas condições psicológicas da persona lidade humana, do mesmo modo como as formas particulares pelas quais são realizadas são freqüen temente determinadas por condições históricas, po líticas e sociais. Mas o bem e o mal como tais não denotam funções alma ou dasão sociedade, e sim metas e fins e nadasua essência independentes da cadeia da causalidade psíquica 53. Na sua consciência de bem e mal ou no cumpri mento de preceitos religiosos, mesmo que para isso tenha que frustrar interesses pessoais, o homem não considera sua atitude como sendo mera expressão de um sentim ento. Tem certeza de refletir uma objetiva, de lutar doporseu umapróprio meta que exigênciaindependentemente válida gosto.é Devemos, contra o fato empírico de tal consciência, condená-la como uma idéia pretendida, ou devemos dizer que nossas teorias sobre a relatividade de to dos os fins morais são o resultado do declínio da atenção, condicionado pelo tempo, aos fins últimos? Naturalmente, a consciência de exigência que há no quais homemelenão prova alcançar que as formas particulares pelas procura seus fins morais ou religiosos são absolutamente válidas. Mas o fato de tal consciência pode indicar que está destinado a lutar por fins válidos. A concepção do homem a respeito desses fins está sujeita a variações, mas o fato do seu relacionamento a eles permanece para sempre.
As ações morais podem, naturalmente, ser ex53 o mal.
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C f. a cima cap. 13 — UM D E U S — O bem
plicadas por motivos eg oísticos. Sendo um ser so cial, o bem-estar de um indivíduo depende do bem-cstar de todosserviço os outros As sim, qualquer que membros ultrapassa do os grupo. limites das minhas necessidades imediatas pode ser um investi mento para meu próprio benefício pessoal. Nesse caso o altruísmo é egoísmo disfarçado e os atos mo rais não diferem do atendimento generoso que todo comerciante inteligente presta a seus clientes. O sacrifício dos meus interesses pessoais por causa de outro seriaque simplesmente do próprios tipo de renúncias pratico em um vistaexefhplo dos meus interesses, deixando de satisfazer algumas necessi dades para conseguir a satisfação de outras. Adap tar meu comportamento aos interesses de outras pessoas à medida que isso for conveniente para mim seria afinal tudo o que sou^moralmente obri gado a fazer. Mas o que constitui a consciência do bem e do mal, do certo e do errado, é a exigência de agir não por causa de mim, de fazer o que é certo, mesmo que isso não me traga nenhuma vantagem. A utilidade de um ato bom pode servir de incen tivo para cumprir uma obrigação moral, mas cer tamente não se identifica com ela. A arma secreta de Deus A vida do homem não é movida só por uma força centrípeta em torno do ego, mas também é impelida por forças centrífugas para fora do cen tro do ego . Seus atos não são relacionados só com ele, mas se dirigem também para além dele.
Até na busca de fins particulares, o homem é obrigado a estabelecer ou supor valores univer sais. O homem encontra-se sob uma ordem de em 231
pregar suas capacidades para objetivos não egoístas, uma ordem que é obrigado a seguir, sob pena de sofrer se assim não fizer. Essa ordem não é o produto, mas a srcem da civilização. A vida ci vilizada é o resultado dessa necessidade, desse im pulso para irmos além das necessidades imediatas em nossos esforços, além de objetivos individuais, tribais ou nacionais. O impulso para construir uma família, para servir a sociedade ou para dedicar-se à arte ou à ciência pode, muitas vezes, nascer do desejo de satis fazer nossos próprios apetites ou ambições. Mas, visto do alto da torre de observação da história, a utilidade egoísta dos atos exigidos, a possibili dade de considerá-los como instrumentos para al cançar as nossas próprias finalidades egoístas, é a arma secreta de Deus na sua luta com a insensibi lidade humana. Muitas vezes alimentamos o falso prazer de acreditar que os outros nos estão servindo quando, na realidade, somos nós que servimos aos outros. Não é nossa mente individual que é a medida do sentido da realidade. Aquele que planta uma ár vore para quem a planta? Para gerações futuras cujo rosto nunca viu? Os fins superiores dissimu lam-se astutamente como objetivos de utilidade ime diata. É como se uma divina astúcia operasse na história humana, usando nossos instintos como pre textos para alcançar objetivos que são universal mente válidos, um esquema para utilizar as forças inferiores do homem a serviço de fins superiores. A bondade não consiste em ser um objeto de interesse, em ser usufruída ou desejada por algumas
ou muitas Uma ação que não éelaboaé porque nos agrada ou pessoas. porque pensamos boa. Con forme já foi indicado acima, o bem e o mal são relações dentro da realidade. Bom é o que Deus 232
quer; bom é o que une o homem dentro de si mesmo, o que une um homem com outro, o que une o homem com Deus. A vida é tridimensional A vida é tridimensional. Todo ato pode ser examinado por dois eixos de coordenadas, sendo o homem a abscissa e Deus a ordenada. Tudo o que o homem fizer a outro homem, fá-lo também a Deus. Para os que estão atentos àquele que se encontra além do inefável, a relação de Deus para com o mundo é um fato presente, uma implicação absoluta do ser, o supremo na realidade, que se verifica mesmo que nesse momento não seja perce bido ou reconhecido por ninguém. ^Aqueles que o rejeitam ou traem não diminuem sua validade. O que é certo ou o que é moralmente bom é um fim que supera nossa experiência das necessi dades. Está acima das forças da emoção sentir ade quadamente a suprema grandeza do fim moral. Nossos esforços para expressá-lo estão condicionados pelas limitações da nossa natureza. Contudo, nem sempre fica perdida a visão desta grandeza abso luta. Ao estudar a história dos esforços homem para realizar o fim moral, não devemos doconfundir sua visão com sua interpretação. O entendimento do que é certo ou falso tem variado no decorrer dos tempos. Mas a consciência de que há uma dis tinção entre certo e errado é permanente e univer sal. Ao formular leis, o homem, muitas vezes, falha e não consegue encontrar as maneiras adequadas
de praticar justiça, nemMas conservar sempre falha uma idéia clara doa seu sentido. mesmo quando na sua visão, não perde totalmente a consciência do que alguma vez existiu na visão. O homem sa 233
be que. a justiça é uma norma à qual devem obe decer as suas leis para merecerem o nome de jus tiça. Não de é nenhuma de está nenhum código que sabemos afirme que bom odiartribo, ou que certo piejudicar-se mutuamente. A justiça é algo que to dos os homens são capazes de apreciar. Para conservar viva essa idéia, devemos esfor çar-nos para preservar e aumentar o sentido do ine fável, para lembrar constantemente a superioridade do dever à nossa vontade e de conservar viva nossa consciência viver na grande de atodos os seres emdeque somos todos fraternidade iguais perante rea lidade última. Nosso interesse exclusivo já não é mais a obediência ao ego, pois nossa preocupação agora é outro problema: como cumprir o que se pede de nós. O universo não é algo abandonado nem a vida algo desaçnparado. O homem não é o senhor do universo, nem sequer o dono do seu próprio des tino. Nossa vida não é propriedade nossa, mas posse de Deus. É essa propriedade divina que faz da vida uma coisa sagrada. O que dissemos da justiça vale igualmente da religião. Não é o seu coração a fonte daquela luz em que o homem piedoso vê suas simples palavras transformarem-se em constroem sinais de eternidade. são mãos humanas que a fortaleza Não em que se abriga o homem piedoso quando estremecem to das as torres. A realidade do sagrado não depende da sua vontade de crer. A religião não lhe gover naria o coração se fosse simplesmente obra da sua mente ou produto dos seus sentimentos.
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O que é a religião
Como estudar a religião Há uma perpétua tentação para o espírito ana lítico de classificar a religião em categorias limita das, de marcar seus fatos com rótulos preconce bidos, como se a realidade tivesse que se enquadrar nas cômodas marcas — registradas ®as nossas teo rias —• como se aquilo que não pode ser etc. compa rado e ,carimbado como mana, tabu, totem ti vesse que ser ignorado ou negado. Cada fato par ticular da fé ou do ritual é analisado como se fosse uma conta bancária, uma matéria de cálculo em que cada pormenor é explicável e cada transação uma operação computável. Alguns cientistas, tendo atingido uma soberana independência em relação ao assunto, cam à religião crítica um método paleontológico, comoapli se essa fosse um fóssil escavado do solo ou uma planta trazida numa expedição a lugares exóticos. Na ver dade, quando arrancada da profundidade da pie dade, geralmente existe numa simbiose com outros valores tais como a beleza, a justiça, a verdade. Certos estudiosos de religião operam com ca
tegorias dos observadores de crenças etomadas rituais primitivos, como seantropológicos o caráter total, a natureza genuína da humanidade se revelasse nesse seu estágio primitivo. Parecem orientados por uma 235
doiitrina que glorifica o homem primevo que era natural e despojado das artes da vida civilizada. Conseqüentemente insistem em compreender os pro fetas em termos de homem selvagem. Era doutrina básica da antropologia antiga que na sociedade primitiva não havia lugar para as ati vidades espontâneas do indivíduo, que os pensamen tos e ações do indivíduo sempre lhe eram impostos pelas pressões sociais. Essa doutrina é uma pressu posição subjacente da teoria sociológica em que a sociedade, suas tentativas e instintos para sobreviver são consideradas como a causa mística da religião. Essa doutrina foi rejeitada pela antropologia atual que afirma que mesmo nos níveis inferiores da civilização o indivíduo não foi totalmente opri mido. A nós nos parece evidente que as grandes idéias nasceram apesar das pressões sociais, apesar das circunstâncias. Moisés teve que enfrentar lutas não só contra o faraó, mas também contra o seu próprio povo. A proibição de fazer imagens escul pidas teve que ser imposta a massas que reclamavam um bezerro de ouro. A essência da religião está fora da compreensão da sociologia. Por outro lado, a psicologia da religião, idea lizando informações neutras e indiferentes, pretende chegar a uma compreensão aplicando questionários a um grupo típicodade religião pessoas ou então tomando as opiniões e a mentalidade de uma pessoa média como perspectiva de julgamento. Mas será que a ausência de preconceito poderá compensar a falta de compreensão do assunto? Será que indife rença é o mesmo que objetividade? Como é que chegamos a formar um conceito
certo dirigimos de históriaao ouhomem de astronomia? Para àqueles tanto não nos da rua, mas que dedicam sua vida à pesquisa, àqueles que são peri tos no pensamento científico e que absorveram to
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dos os dados referentes ao assunto. Da mesma forma, para obtermos um conceito adequado da re ligião, procurar espiritual, aqueles que têm cuja a mente voltadadevemos para a realidade aqueles vida é religião e que são capazes de distinguir entre ver dade e felicidade, espírito e emoção, fé e autocon fiança. Do ponto de vista de um espírito para o qual a enigmática santidade da religião não cons titui uma certeza, mas um problema, dificilmente podemos esperar mais que uma idéia exterior, um relance distante de algo que para ò homem piedoso é prementemente atual e eminentemente real. Os peritos em religião estão em perigo de as semelhar-se aquele estudante de Yeshivah54 que afirmava entender e dominar todas as artes. Per guntado se sabia nadar, respondeu: “Não sei nadar, mas sei o que é nadar. . . ” Semelhante é a situação de pessoas que se de dicam à prosódia e são peritos em escandir versos. Vangloriam-se de uma arte que é fácil para um poeta naturalmente dotado. Ao contrário dos peri tos, o poeta ainda que saiba compor uma poesia perfeita, pode não saber ensinar a teoria da versi ficação. Mas é capaz de ensinar alguém que seja naturalmente dotado como ele, por meio de uma simples alusão. Assim as palavras do homem pie doso acendem centelhas nas almas de pessoas aber tas à religião, centelhas que se transformam em lu zes nos seus corações55. É a religião uma função da alma? Aqueles que não conseguem libertar-se da idéia de que a moralidade e a religião são a resposta do
próprio homem a uma necessidade egoísta, o resul54 Yeshi vah = academia tal múdica . (N . do T . ) . 55 J udas H alevi , Kusari, V. 16.
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tadò de um desejo de segurança e de imortalidade ou a tentativa de vencer o medo, são semelhantes a pessoas que pensam os rios, os canais, foram construídos pelo que homem paracomo a navegação. É verdade que necessidades econômicas e fatores políticos ensinaram o homem a explorar as vias flu viais. Mas serão os rios em si produtos do gênio humano? Muita gente pensa que alimentamos nosso cor po para aliviar os tormentos da fome, para acalmar os nervos irritados de um estômago vazio. Na ver dade, não comemos porque sentimos fome, mas por que a ingestão de alimento é essencial para a manu tenção da vida, de vez que fornece as energias ne cessárias para as várias funções do corpo. A fome é o sinal para comer, sua ocasião e seu regulador, mas não a sua causa verdadeira. Não confundamos o rio com a navegação, a nutrição com a fome, ou a religião com o uso que dela faz o homem. Ás teorias psicológicas que pretendem que a religião surgiu de um sentimento ou de uma necessi dade parecem esquecer que tal causa não tem eficá cia suficiente para produzir a religião. Não vêem que, por exemplo, o sentimento de dependência ab soluta ou de medo da morte não tendo absoluta mente nenhuma qualidade religiosa, sua relação com a religião não pode ser a de causa e efeito. Esse sentimento pode contribuir para a receptividade do homem para a religião, mas por si mesmo é incapaz de criá-la. Como a autêntica intenção religiosa com a qual está unido tal sentimento deve srcinar-se de outra fonte, é evidente que essas teorias não explicam o problema.
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Magia e religião A essência da religião não está na satisfação de uma necessidade humana. É verdade que o ho mem, na sua tentativa de explorar as forças da na tureza em seu próprio benefício, não recua nem diante da idéia de forçar seres sobrenaturais a fazer seus gostos. Mas tais intenções e práticas são ca racterísticas não da religião, e sim da magia, que é “o parente mais próximo da ciêpcia” e o inimigo mortal da religião, seu oposto totál. Se é impossível provar que a magia sempre precedeu a religião e que pelo reconhecimento da sua falsidade inerente, a idade da magia “deu lugar à idade da religião”, a sobrevivência da magia den tro da religião é um fato demasiadamente evidente para passar despercebido. Seu peMgo para a religião foi reconhecido no Pentateuco, onde é condenada com toda a ênfase como um pecado horrendo, bem como pelos profetas a cujos olhos era equivalente à idolatria e pelos rabinos que tomaram severas medidas para eliminá-la da vida judaica. E a luta teve que continuar através dos tempos. Abraão não estava disposto a sacrificar seu fi lho único para satisfazer uma necessidade pessoal e Moisés Onãosegundo aceitou mandamento: o Decálogo para alcançar fe licidade. “Não farás aima gens esculpidas”, efetivamente, ao invés de satisfazer, desafiou as “necessidades religiosas” de muitos po vos através dos tempos. Tampouco os profetas es tavam desejosos de agradar ou de concordar com os sentimentos populares. A religião profética pode ser caracterizada como sendo o próprio oposto do
oportunismo. Definir a religião primariamente como busca de satisfação ou salvação pessoal é fazer dela um refinado tipo de magia. Enquanto o homem vir na 239
religião a satisfação de suas próprias necessidades, uma garantia de imortalidade ou um estratagema para proteger é a Deus está servindo, mas aa sociedade, si próprio.nãoQuanto mais que afastada do ego, mais real é a sua presença. Um modo certo de passar ao largo dele é pensar que Deus é uma resposta a uma necessidade humana, como se não só os exércitos, as fábricas e os cinemas, mas até Deus tivesse que ocupar-se do ego. Sempre houve pessoas que pensaram que “é conveniente haja deuses e se (Ovídio, é conveniente acre ditemos que que os deuses existem” Ars Amatoria, Livro I, 1.637). Foi a tais pessoas que se dirigiu Amós. “Ai de vós que desejais o dia do Senhor! Para que quereis o dia do Senhor? Ele é trevas e não luz. um homem que foge de um leão. EComo cai sobre um urso; Entra em sua casa, Apóia a mão na parede, E uma serpente morde-o! Não será o dia do Senhor trevas em vez de luz? Escuridão sem um raio de luz?” (Am por 5,18-20). Crer em Deus é lutar ele, lutar contra tudo o que seja contra ele dentro de nós, inclusive nossos interesses, quando em choque com sua von tade. Deus só se torna nossa necessidade, nosso interesse, nossa preocupação quando, esquecendo o ego, começarmos a amá-lo. Mas o caminho do amor leva ao medo se transgredirmos seu mandamento
incondicional, se esquecermos sua necessidade da justiça do homem. 240
O lado objetivo da religião srcina umamente. pergunta básicaToda que investigação determina o securso da de nossa Mas o número de interrogações disponível para nossa pesquisa é limitado. São convencionalmen te repe tidas em quase todas as pesquisas científicas. Como instrumentos são transmitidas de um cientista a ou tro. Não olhamos o mundo mediante nossos pró prios olhos, mas mediante as lentçg dos nossos an tepassados intelectuais. estão dos de olhar através deNossos óculosolhos usados por cansa outra geração. Estamos cansados de olhar os seres por cima, de olhar de través as suas relações com outras coisas. Queremos ver a realidade como ela é, e não só perguntar: qual é sua causa? qual é a sua relação com suas fontes? com & sociedade? com motivos psicológicos? Estamos cansados de reunir dados e compará-los. Com efeito, quando as ques tões que antes eram sutis e penetrantes estiverem gastas, o objeto investigado não reage mais à inda gação. Depende muito da força impulsora de uma nova interrogação. A interrogação é uma invocação do enigma, um desafio ao objeto examinado, pro vocando a resposta. Uma nova interrogação é mais que a projeção ou a visão de uma nova meta. É o primeiro passo em direção a ela. Saber o que queremos conhecer é o primeiro pré-requisito de uma pesquisa. O homem moderno raramente enfrenta as coi sas como elas são. Na interpretação da religião nos sos olhos se voltam para as suas relações com os vários campos da vida e não para a sua própria essência e realidade. Investigamos a relação da re
ligião com a economia, a história, a arte, a libido. Indagamos sobre sua srcem e desenvolvimento, so bre seus efeitos, sobre a vida psíquica, social e po1 6 - 0 homem não está só
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lítica. Olhamos a religião como se ela fosse apenas um instrumentoo que e nãoé auma entidade. de perguntar: religião em si?Esquecemos O aspecto objetivo da religião geralmente fica de lado. No primeiro plano aparece, grande e saliente, seu com plemento subjetivo, a resposta humana. Escutamos o eco e esquecemos o sino, perscrutamos a religio sidade e esquecemos a religião, observamos a expe riência e descuidamos a realidade que antecede a experiência. Entender a religião através da análise dos sentimentos que inspira é não entender sua es sência. É a mesma coisa que pretender apreender uma obra de arte descrevendo nossa impressão dela ao invés de compreender seu valor intrínseco. O valor interno de uma obra de arte subsiste indepen dentemente da nossa resposta a ela. A essência de uma obra de arte não é equivalente nem comensu rável comno agozo impressão produz, dacom o que é refletido da arte.que O estrato experiência interior e o reino da realidade objetiva não se en contram no mesmo nível. Não há neutralidade o mundo fé ao reino esforço ou daRestringir consciência humanada implicaria quedouma pes soa que recusa a tomar conhecimento de Deus po deria isolar-se dele. Mas não há neutralidade pe rante Deus. Ignorá-lo significa desafiá-lo. Até o vazio da indiferença produz uma preocupação, e a amargura da blasfêmia é uma perversão do res peito a Deus. O mundo da fé não é fruto da ima
ginação nem produto da vontade. Nãopensamento, é um pro cesso interior, um sentimento ou um e não deve ser considerado como um acúmulo de episódios na vida do homem. Pensar que o homem
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está diante de Deus pela duração de uma expe riência, meditação ou cumprimento de um ritual é absurdo. A relação do homem com Deus não é um episódio. O que acontece entre Deus e o ho mem dura toda a vida. Religião como instituição, o Templo como fim supremo ou, em outras palavras, a religião pela re ligião, é idolatria. O fato é que o mal integra tanto a religião como a realidade profana. Uma santidade estreita campanilística pode ser uma fuga do dever, uma acomodação ao egoísmo. A religião exi ste por causa de Deus. O lado humano da religião, seus credos, rituais e institui ções é um meio, e não o fim. O fim é “praticar a justiça, amar a misericórdia e andar em humildade com teu Deus” . Quando o lado humano da religião se converte em fim, a injustiça s#>torna um meio. A dimensão sagrada O que dá srcem à fé não é um sentimento, um estado de espírito, uma aspiração, mas um fato perene no universo, algo que é anterior e indepen dente do conhecimento e da experiência humana — a existência. O lado a dimensão sagrada é dea toda objetivo da religião constituição espiritual do universo, os valores divinos investidos em cada ser e expostos ao espírito e à vontade do homem. Uma relação ontológica. É por isso que o lado objetivo ou divino da religião foge à análise psicológica e sociológica. Todas as ações não são apenas agentes na sé
rie causa com e efeito. tam interminável e interessam de a Deus, ou semTambém intenção afe hu mana, com ou sem o consentimento humano. Toda a existência encontra-se na dimensão da santidade
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e ridda de vivo pode ser concebido como estando fora dela. Toda a existência encontra-se diante de Deus aqui e em toda parte, agora e sempre. Não somente um voto ou uma conversão, não somente a concentração da mente em Deus engajam o ho mem com Deus. Todos os atos, pensamentos, sen timentos e acontecimentos são de seu interesse. Tal como o homem vive no reino da natureza e está subordinado às suas leis, assim se encontra ele na dimensão da santidade. Não pode fugir das suas fronteiras, da mesma forma como não pode deixar a natureza. Não consegue separar-se da di mensão sagrada nem pelo pecado, nem pela estu pidez, nem pela apostasia, nem pela ignorância. Não há possibilidade de fugir de Deus.
A piedade é a resposta Ter fé é entrar conscientemente numa dimen são em que nos mantemos em nossa própria exis tência. A piedade é uma resposta, o correlato sub jetivo de uma condição objetiva, e consciência de viver dentro da dimensão sagrada, a compreensão de que o que começa como experiência no homem transcende esferadehumana, transformando-se fato objetivoa fora le mesmo. É neste podernum de transcender a alma, o tempo e o espaço, que o ho mem piedoso vê a distinção dos atos religiosos. Se, para as nossas mentes, a oração fosse apenas uma articulação de palavras, tendo uma importância apenas psicológica e nenhum valor metafísico, nin guém perderia seu tempo numa hora de crise rezan
do e Éiludindo-se si próprio a própria aexistência do. homem que está em relação com Deus. As relações do homem com o estado, a sociedade, a família etc. não penetram 244
todos os estratos da sua personalidade. Na sra solidão final, na hora da aproximação da morte, desaparecem como palha levada pelo vento. É na dimensão do sagrado que ele se encontra firme, o que quer que lhe aconteça. A modéstia do espírito Temos a tendência de impressionar-nos com o que é aparatoso, com o que é óbvio. O grito estri dente do animal enche o ar, enquanto a voz baixa e tranqüila do espírito só é ouvida nas raras horas de oração e devoção. Da janela do bonde podemos observar a caça às riquezas e ao prazer, o assalto dos fracos, rostos que exprimem suspeita ou des prezo. Por outro lado, o que é sianto vive nas pro fundezas. O que é nobre se retrai quando exposto à luz, a humildade desaparece quando toma cons ciência de si e a disposição para o martírio perma nece escondida no segredo das coisas futuras. Ca minhando sobre a lama, vivemos na natureza, entregando-nos aos impulsos e às paixões, à vaidade e à arrogância, enquanto nossos olhos vêem a pe rene luz da verdade. Estamos sujeitos à gravitação terrestre, mas encontramo-nos diante de Deus. Na dimensão do sagrado o espiritual é uma ponte lançada sobre um pavoroso abismo, enquanto no reino da natureza o espiritual paira como nuvem flutuante no ar, demasiadamente tênue para trans portar o homem sobre o abismo. Quando um navio é envolvido por um tufão e a boca do redemoinho espumante se abre para engolir a presa tremente,
não é o homem piedoso, na absorto súplicas, com mas o timoneiro que intervém esferaem apropriada meios apropriados, lutando com instrumentos físi cos contra forças físicas. Que sentido há em implo245
rar 4 misericórdia de Deus? Palavras não detém a água, nem a meditação acaba com a tempestade. A oração nunca está entrelaçada diretamente na ca deia de causa e efeito físicos. O espiritual não in terfere com a ordem natural das coisas. O fato de que homens de intrépida sinceridade põem na ora ção o melhor de sua alma nasce da convicção de que há um reino em que os atos de fé são pode rosos e fortes, que há uma ordem em que as coi sas do espírito podem ter grandes conseqüências. Há fenômenos que parecem sem importância e acidentais no reino da natureza, mas que têm um grande sentido na dimensão da santidade. Adorar a violência, usar a força bruta é natural, enquanto o sacrifício, a humildade e o martírio são coisas inauditas sob o ponto de vista da natureza. É na esfera do sagrado que um pensamento ou um sen timento pode surgir como uma perene aproximação da verdade, em que as orações são passos em dire ção a ele aere perennior. Vivemos não só no tempo e no espaço, mas também no conhecimento, encontrando-nos próximos a ele não só mediante a nossa fé, mas também, e antes de tudo, mediante a nossa vida. Todos os acontecimentos refletem-se nele. Toda a existência é coexistência com Deus. O espaço e o tempo não são os limites do mundo. Nossa vida ocorre aqui e no conhecimento de Deus.
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Definição da religião judaica
Deus tem necessidade do homem Procuramos compreender a religião enquanto fenômeno universal. Cabe-nos agora definir a con cepção judaica de religião. Com% foi dito acima, a religião — seu lado humano — começa com um sentido de obrigação, “com a consciência de que algo é exigido de nós”, com a consciência de um compromisso supremo. É, além disso, uma cons ciência de “Deus que pede nossa devoção constan temente, insistentemente, que sai ao nosso encontro logo que desejamos conhecê-lo”. A consciência re ligiosa caracteriza-se por dois aspectos — deve ser uma consciência de um compromisso supremo e deve ser uma consciência de uma reciprocidade su prema . Só há uma maneira de definir a religião ju daica. É a consciência do interesse de Deus pelo homem, a consciência de uma aliança, de uma res ponsabilidade que pesa sobre ele e sobre nós. Nos sa tarefa é colaborar com o seu interesse, realizar sua visão da nossa tarefa. Deus precisa do homem
para atingir seus fins e a religião, tal como a en tende a tradição judaica, é uma maneira de servir a esses fins, dos quais necessitamos, ainda que não 247
tenhamos consciência disso, fins cuja necessidade devemos aprender a sentir. A vida é uma sociedade entre Deus e o ho mem . Deus não está distante nem é indiferente às nossas alegrias e sofrimentos. As necessidades vitais autênticas do corpo e da alma do homem são preocupações divinas. É por isso que a vida hu mana é santa. Deus é um sócio e um partidário na luta do homem pela justiça, pela paz e pela san tidade, e é por necessitar do homem que ele fez uma aliança perpétua com o homem, um vínculo mútuo que une Deus e o homem, um relaciona mento que liga tanto Deus como o homem. “Neste dia obtivestes do Senhor a declaração de que ele é vosso Deus, prometendo andar em seus caminhos, obedecer às suas leis e mandamentos e escutar sua voz. E neste dia o Senhor obteve de vós a declaração de que sois seu povo, exclusivo, como vos prometeu, e que obedeceríeis a seus man damentos” (Dt 26,17-18). Algumas pessoas pensam que a religião se rea liza como percepção de uma resposta a uma oração, quando na verdade ela se verifica em nosso conhe cimento de que Deus participa da nossa oração. A essência do judaísmo é a consciência da recipro entre Deus e o homem, da união aquele cidade que subsiste em eterna alteridade. Poiscom a missão de viver é sua e nossa, como o é igualmente a res ponsabilidade. Temos direitos e não só obrigações. Nosso supremo dever é nosso supremo privilégio. Interpretando Malaquias 3,18, disse o Rabi Aha ben Ada: “Então distinguireis novamente o justo do perverso” significando: “o que tem fé do
não tem o que“oserve Deusà do que não oqueserve”, que fé; significa: que aserve necessidade de Deus do que não serve ànecessidade de Deus. Não se deve fazer da Torá uma pá para cavar, um
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instrumento para uso pessoal ou uma corva para glorificar-se a si próprio” (Midrash Tehillim, ed. Buber, pp. 240s). Sua necessidade é um interesse que ele mesmo se impôs. Deus tem agora necessidade do homem, porque ele próprio livremente o fez participante da sua empresa, “participante na obra da criação”. “Desde o primeiro dia da criação o Santo, bendito seja, desejou entrar em sociedade com o mundo terrestre” para habitar com suas criaturas no mundo terrestre ( Números Rabba, cap. 13,6; cf. Gênese Rabba, cap. 3,9) . Explicando Gên 17,1, o Midrash observou: “Na opinião do Rabi Johanan nós neces sitamos da sua honra: na opinião do Rabi Simeão ben Lakish, ele necessita da nossa honra” ( Gênese Rabba, cap. 30; diversamente Teodoro, p. 2 7 7 )SÓ. “Quando Israel cumpre a vaptade do Onipo tente, acrescenta forças ao poder celeste, conforme está dito: ‘A Deus damos forças’ (Sl 60,14). Mas quando Israel não cumpre a vontade do Onipoten te, enfraquece, se assim se pode dizer, o grande poder daquele que está no alto, conforme está es crito: “Enfraqueceste a Rocha que te gerou” ( P esikta, ed. Buber, XXVI, 166b; comparar as duas versões) . A relação do homem com Deus não é uma relação de confiança passiva na sua Onipotência, mas uma relação de ajuda ativa. “Os ímpios con fiam em seus deuses. . . os justos são o apoio de Deus” ( Gênese Rabba, cap. 69,3). Por isso os Patriarcas são chamados “o carro do Senhor” ( Gênese Rabba, cap. 47,6;82,6). “Ele se gloria em mim, ele se compraz em mim; Ele será minha coroa de beleza.
56 Rabi Joh ana n e Rabi Sime ão Ben Lak ish são dois rabinos palestinenses do século III-IV, importantes para o Talmud Palestinense. (N. do T.).
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Sua glória repousa em mim, e a minha nele. Ele está perto de mim quando chamo por ele’ . (O Hino da Glória). A extrema audácia deste paradoxo foi expressa numa interpretaçã o tanaítica57 de Isaías 4 3,1 2: “Vós sois minhas testemunhas, disse o Senhor, e eu sou Deus” — quando vós sois minhas testemunhas eu sou Deus, e quando não sois minhas testemunhas não sou Deus 58. O pathos divino O Deus dos filósofos é todo indiferença, subli me demais para ter um coração ou para lançar um olhar ao nosso mundo. Sua sabedoria consiste em ser cônscio de si mesmo e esquecido do mundo. Ao contrário, o Deus dos profetas é todo preocu pação, misericordioso demais para ficar insensível à sua criação. Ele não só governa o mundo com a majestade do seu poder. Ele está pessoalmente interessado e até excitado pelo comportamento e o destino do homem. “Sua misericórdia está sobre todas as suas obras” (Sl 145,9). Estes são os dois pólos do pensamento pro fético: a idéia de que Deus é um santo, diferente e separado de tudo o que existe e a idéia do ines gotável interesse de Deus pelo homem, às vezes, iluminado pela sua misericórdia, outras vezes, escu recido pela sua ira. Ele é ao mesmo tempo trans cendente, acima da inteligência humana, e cheio de amor, compaixão, tristeza ou ira. Deus não julga os atos do homem impassivel-
Tanaítas (palavra aramaica) édaa Mishna, designaçãoistodosé, rabi nos 57 contemporâneos da compilação dos três primeir os século s da era cr istã . ( N . do T . ) . 58 Sifre Deuteronômio 346; cf. a interpretação de Sal mos 123,1.
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mente, num espírito de fria indiferença. Seu jul gamento está imbuído de um sentimento de íntima preocupação. Ele é o pai de todos os homens e não apenas um juiz. Ele é o amante comprometido com o seu povo e não apenas um rei. Deus tem um relacionamento apaixonado com o homem. Seu amor ou sua ira, sua misericórdia ou seu descon tentamento são a expressão da sua profunda parti cipação na história de Israel e de todos os homens. Assim, a profecia consiste na proclamação do pathos divino, expresso na linguagem dos profetas como amor, misericórdia ou ira. Atrás das várias manifestações do seu pathos há um motivo, uma necessidade: a necessidade divina da justiça hu mana . Os deuses pagãos tinham paixões animais, de sejos carnais, eram mais caprichosos e licenciosos que os homens. Deus de Israenecessidades l tem paixãoegoís pela justiça. Os deusesOpagãos tinham tas, enquanto o Deus de Israel só tem necessidade da integridade do homem. A necessidade de Mo loque era a morte do homem, a necessidade do Se nhor é a vida do homem. O pathos divino que os profetas tentaram expressar de muitas maneiras não era um nome para a sua essência, mas para os mo dos reação ao procedimento de Israel, que mu dariadasesuaIsrael modificasse seus caminhos. A onda de pathos divino que invadiu as almas dos profetas como uma paixão impetuosa, assusta dora, estremecedora, ardente, levou-os ao perigoso desafio da autoconfiança e contentamento do povo. Antes de todos os hinos e pregações consultavam o interesse de Deus pelo povo, a fonte da qual bro
tavam todas as torrentes de ira59. 59 Cf. A. H es pp. 56-87; 127-180.
c h el
— Die Prophetie. Cracóvia, 1936.
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A Bíblia não é uma história do povo judeu, mas a história da procura do homem justo por Deus. Visto que a espécie humana como um todo não seguiu o caminho da justiça, foi a um indivíduo — Noé, Abraão — a um povo: Israel ou ao resto de um povo, que foi dada a missão de satisfazer essa busca fazendo de todo homem um homem justo. Há no mundo um chamado eterno: Deus está implorando osurdos. homem.Todos Alguns se espantam, permanecem somos procurados.outros Um ar de expectativa paira sobre a vida. Algo é pedido ao homem, a todos os homens. “O que deseja Deus?” de anos pensou-se divine dade Durante e trevasmilhares se identificavam: um ser que egoísta cheio de desejos cegos; um ser que o homem reve renciava, mas em quem não confiava; que se revelava aos loucos, mas não aos mansos. Durante milhares de anos admitiu-se como um fato que a suprema divindade era hostil ao homem e que só podia ser apaziguada por oferendas de sangue, até que vieram os não dosuportaram mais ver a derrota de profetas Deus nasque mãos terror e proclamaram que as trevas eram a sua morada e não a sua essência, que foi clara como o sol meridiano a sua voz que res pondeu à pergunta: o que deseja Deus? Música? “Afastai de mim o ruído de vossos cânticos,
Pois não prestarei à melodia de vossasouvidos liras” (Am 5,23). Oração? “Quando estenderdes vossas mãos, 252
Afastarei meus olhos de vós. Por mais orações que façais, Não as escutarei. Vossas mãos estão cheias de sangue” (Is 1,15-16). Sacrifício? “Terá o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios como na obediência à voz do Se nhor?” ( lSam 15 ,22 ). “E agora, ó Israel, o que o Senhor teu Deus pede de ti senão que temas o Senhor teu Deus, que andes em seus caminhos, que o ames, que sirvas o Senhor teu Deus com toda a tua men te e coração e observes os mandamentos do Senhor e suas leis que te ordeno hoje, para o teu bem?” (Dt 10,12). %
A necessidade religiosa Como quase todos admitem, a religião corres ponde a uma necessidade particular da personalidade humana. Do mesmo modo como há necessidades de saúde e bem-estar, de conhecimento e de beleza, de prestígio e de poder, assim há também uma ne cessidade de religião. Tal interpretação da religião, para ser válida, deve provar que a necessidade reli giosa é diferente de todas as outras necessidades e impossível de ser satisfeita por qualquer outra ma neira que não seja a sua própria. Deve ainda de monstrar que tal como os objetivos não religiosos, como o poder, o bem-estar e o prestígio, não podem ser atingidos por meio da religião, da mesma forma
a necessidade religiosa nãonão pode ser satisfeita pela realização destes objetivos religiosos. Para satisfazer às necessidades não religiosas exploramos as forças da natureza em nosso pro-
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veitò'. Mas exploramos também alguma coisa a fim de satisfazer nossas necessidades religiosas? Qual é então a maneira de satisfazer a necessidade reli giosa? Quais são os fins que o homem procura atingir na religião? Há em todo ser humano uma inextinguível ne cessidade de algo permanente, uma necessidade de adorar e reverenciar. A divergência começa apenas no objeto e na maneira da adoração. Mas essa inex tinguível necessidade é freqüentemente desvirtuada em auto-exaltação ou num desejo de encontrar uma garantia para a imortalidade pessoal. O judaísmo mostra que ela é uma necessidade de ser necessi tado por Deus. Ensina que todo homem necessita de Deus porque Deus está necessitado do homem. Nossa necessidade dele não é senão um eco da sua necessidade de nós. Há,desejamos naturalmente, o constante crer no que ao invés de desejarperigo o quedecremos, de acalentar nossa necessidade como se fosse Deus em vez de adotarmos Deus como nossa necessidade. Por isso devemos avaliar nossas necessidades à luz dos fins divinos.
Os fins desconhecidos E natural e comum preocupar-se com objetivos pessoais e nacionais. Mas será igualmente natural e comum preocupar-se com as necessidades de ou tras pessoas ou estar interessado em fins universais? As necessidades convencionais, como o prazer, são facilmente assimiladas por osmose social. As ne
cessidades quevisão ser implantadas, fo mentadas eespirituais cultivadastêmpela dos seus fins. Não precisamos elevar-nos acima de nós mesmos para sonhar em sermos fortes, valentes, ricos, em
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sermos senhores de um império ou de “um reino de soldados ” . Mas temos necessidade de sermos inspirados para sonhar os sonhos de Deus: “Deve rás ser santo porque eu, teu Deus, sou santo. . . ” “Serás para mim um reino de sacerdotes, um povo santo ” . É Deus quem nos ensina nossos fins últimos. Abraão pode não ter sentido necessidade de aban donar sua casa e seu país, como também o povo de Israel não teve vontade de deixar suas panelas de carne no Egito pela idéia de ir para o deserto. Se analisarmos as potencialidades do homem, torna-se evidente que sua unicidade e seu sentido essencial se encontra na sua capacidade de satis fazer finalidades que vão além do seu ego, en quanto sua preocupação natural é: o que podem fazer os outros pelo meu ego? A fieligião ensina-lhe a considerar compreender o que que pode o egoeledefazer nenhum pelos homem outros eé digno de ser fim último. Há um hino antigo com o qual concluímos nossas orações diárias e que exprime nossa concep ção dos fins últimos. É um hino que pode ser con siderado o hino nacional do povo judeu. “Por isso esperamos, Senhor nosso Deus, para breve majestosa, quando serão elimios nadas ver da tua terraglória as abominações e exterminados falsos deuses; quando o mundo será formado sob o reino do Todo-poderoso, e toda a humanidade invocará teu nome e todos os maus se voltarão para ti. Que todos os habitantes do mundo reconheçam e saibam que todo joelho deve dobrar-se diante de ti, que toda língua deve jurar-te obediência. Que
se ajoelhem e prostrem ti, Senhor Deus, e honrem o teu diante nome de glorioso, que nosso todos eles aceitem o jugo do teu reino sobre eles para sempre. Pois teu é o reino e por toda a eternidade 255
reinarás na glória, como está escrito em tua Torá: ‘O Senhor será Rei por todo o sempre’ . E foi dito ainda: ‘O Senhor reinará sobre toda a terra; na quele dia o Senhor será Um e seu nome Um’ ” 60. A transformação dos fins em necessidade A educação religiosa judaica consiste em con verter os fins em necessidades pessoais ao invés de converter as necessidades em fins, de tal maneira que, por exemplo, o fim de pensar na vida das ou tras pessoas se converta em preocupação minha. Entretanto, se esses fins não forem assimilados como necessidades, mas permanecerem meros deve res, não aderentes ao coração, obrigados, mas não vividos, estado de tensão entresemente o eu e o dever. haverá O ato um moral perfeito traz uma dentro de sua flor: o sentido de exigência objetiva dentro da preocupação subjetiva. Assim, a justiça é boa não porque sentimos necessidade dela. Pelo contrário, devemos sentir necessidade da justiça por que ela é boa. As religiões podem ser classificadas em reli giões auto-satisfação, religiõesNodeprimeiro auto-aniquilamento de e religiões de participação. tipo, o culto é uma busca de satisfação de necessidades pessoais, tais como a salvação ou o desejo da imor talidade. Na segunda classe todas as necessidades pessoais são excluídas e o homem procura dedicar sua vida a Deus ao preço do aniquilamento de to dos os desejos, acreditando que o sacrifício humano
ou pelo menos a total abnegação é a única forma C f., por exemplo, no Sidur — Livro de rezas para todo o ano israelita, citado na no ta 13 . (N . do T . ). 60
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verdadeira de culto à divindade. A terceira forma de religião, abandonando a idéia de considerar a Deus um meio para atingir fins pessoais, insiste em que há uma sociedade entre Deus e o homem, que as necessidades humanas constituem preocupa ção de Deus e que os fins divinos devem conver ter-se em necessidades humanas. Rejeita a idéia de que o bem deve ser feito com desinteresse próprio, de que a satisfação experimentada na prática do bem corrompe a pureza da ação. O judaísmo pede a participação plena da pessoa no'serviço do Se nhor. Ao invés de boicotar os atos da vontade, o coração deve responder com alegria e com irres trito prazer. O praze% das boas ações Embora não seja a sua fonte, o prazer pode e deve ser um subproduto da ação moral ou reli giosa. O que é bom ou santo não é necessaria mente aquilo que eu não desejo, e o sentimento de prazer e satisfação não priva uma boa ação de sua qualidade de bondade. O coração e o espírito são rivais, mas não inimigos irreconciliáveis e sua reconciliação é um dos grandes objetivos na luta pela integração. É verdade que a idéia de justiça e a vontade da justiça são gêmeas. Mas uma pes soa moral é alguém que ama o amor do bem. Não é verdade que o amor e a obediência não podem viver juntos, que o bem nunca nasce do coração. Estar livre de interesses egoísticos não quer dizer ser neutro, indiferente ou estar empenhado na auto-superação. Deus não mora acima do céu. Ele ha
bita, temos certeza, em todo coração disposto a deixá-lo entrar. O sentido da obrigação moral permanece im1 7 - 0 homem não está só
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potente se não for mais forte que todas as outras obrigações, mais forte que a obstinada força dos interesses egoísticos. Para poder competir com as inclinações egoísticas, a obrigação moral deve estar aliada com a mais elevada paixão do espírito. Para ser mais forte que o mal, o imperativo moral deve ser mais poderoso que a paixão pelo mal. Uma norma abstrata, uma idéia etérea não é capaz de neutralizar a gravitação do ego. Uma paixão só pode ser vencida por outra paixão mais forte. Do fato de que se adota e acalenta um fim como interesse pessoal não se segue que o fim seja de srcem psicológica, da mesma forma como a nossa utilização da teoria do quantum não prova que ela se srcinou de motivos uti litários. Assim, o fato de Deus se tornar uma necessidade humana não vicia a objetividade e a validade da idéia de Deus. A solução do problema das necessidades não está em criar uma necessidade para acabar com to das as outras necessidades, mas em criar uma ne cessidade para acalmar todas as outras necessidades. Há em cada homem um sopro de Deus, uma força mais profunda que a camada da vontade e que pode ser estimulada a transformar-se numa aspira ção tão forte que seja capaz de dirigir e até de se opor a todos os ventos.
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O grande anseio
O anseio por uma vida espiritual Todos os pensamentos e sentimentos sobre o mundo tangível e cognoscível não esgotam a inter minável inquietação que há dentro de nós. Existe um excedente de intranqüilidade sobre nossos de sejos palpáveis. Sentimo-nos sós**com os homens, com as coisas, com nossos próprios desejos. As metas são maiores que a capacidade da nossa com preensão. Estamos em luta com os sonhos e os planos de Deus. Qual é a essência do nosso sentimento a res peito de Deus? Não poderíamos defini-lo como um anseio que não conhece satisfação, um anseio de encontrar sejar? algo que não sabemos sequer como de Estamos acostumados a viver com desejos efê meros, mas também sabemos que a vida é um pouco superior aos nossos interesses cotidianos, que quan do conseguimos terminar com uma autocomplacência, invade-nos uma felicidade que não é só nossa. Desiludidos de satisfações ilusórias, nossos corações
se embriagam com um entender infinito anseio que nossas mentes não conseguem plenamente. Como a força vital que nos dá o poder de lutar e de subsistir, de ousar e de vencer, que nos 259
impele a experimentar a contrariedade e o perigo, assim almas impulso dePara morrer antes há quenas viver de sedentas fraudes um e distorções. o homem piedoso Deus é tão real como a vida e assim como ninguém se daria por satisfeito apenas com conhecer e ler a respeito da vida, da mesma forma ele não se contenta com supor ou provar logicamente que Deus existe. Quer sentir e entregar-se a ele. Não só obedecer, mas também ache gar-se ele. Seu é provar do espíritoa antes de desejo ser moído pela todo mó odatrigo razão. Prefere ser subjugado pelos símbolos do inconce bível a manusear as definições do superficial. Estimulado pelo desejo do inatingível, o ho mem piedoso não se contenta em ficar confinado ao que é. Seu desejo é não só conhecer mais do que pode oferecer a razão ordinária, mas também ser mais do que é;transcendente, transformar acompreender alma num barco para a realidade com os sentidos o que está oculto à mente, exprimir por símbolos o que a língua é incapaz de dizer e o que a razão é incapaz de conceber, experimentar como realidade o que vagamente transluz na intuição.
A nobre nostalgia O anseio de vida espiritual, a consciência do mistério onipresente, a nobre nostalgia de Deus raramente sofreu retração na alma judaica. Encon trou numerosas e variadas expressões em idéias e doutrinas, em costumes e hinos, em ideais e aspi rações. É parte do legado dos salmistas e dos pro
fetas. fontes Escutemos o salmista: “Comoalma a corça anseia pelas d’água, assim minha suspira por ti, Senhor. Minha alma está sedenta de Deus, do Deus vivo; quando irei e estarei diante de Deus?” 260
(42,2-3). “Minha alma suspira e até desfalece pe los átrios do Senhor; meu coração e minha carne cantam de alegria pelo Deus viv o” ( 8 4,3 ). “Pois um dia em teus átrios vale mais que mil” (84,11). “Em tua presença há plenitude de alegria” (16,11). Será o judaísmo uma religião terrena? “Sou um peregrino na terra” (119,19), declara o salmista. “Quem tenho nos céus senão a ti? Não quero mais ninguém na ter ra” (73,25). “Minha carne e meu mas Deus rocha (73,26). do meu coração edesfalecem; minha herança para é^a sempre” “Quanto a mim, minha felicidade é a proximidade de Deus” (73,28). “Ó Deus, tu és meu Deus; com ardor te procurarei; minha alma está sedenta de ti, minha carne suspira por ti numa terra seca e sequiosa, onde não há água. . . pois tua amorosa bondade é melhor que a vida. M?hha alma se sacia de tifino e pingue meu leito lembro-me e em minhasmanjar... vigílias Em noturnas medito em ti. . . minha alma se aconchega a ti, tua direita é meu apoio” ( 6 3 , 2 . 4 . 6 .7 .9 ) . A consciência de Deus é incompatível com a autojustificação, com a idéia de tomar muito a sério as próprias obras. “Se eu for culpado, ai de mim, e se sou inocente, não ousarei levantar minha ca beça. Estou cheio de vergonha; vê minha miséria” (Jó 10,15). Há muitas leis na Bíblia que prescrevem o ofe recimento de sacrifícios no santuário. Mas, ainda que os profetas insistam que os verdadeiros “sa crifícios para Deus são um espírito arrependido, um coração arrependido e contrito” (Sl 51,19), não há nenhum mandamento de contrição. Seria neces
sário tal preceito? É possível não sofrer do fundo do coração num mundo como este? 261
“A terra está entregue às mãos dos maus. . . Os tabernáculos dos assaltantes são prósperos. E os que provocam a Deus estão seguros”. A auto-satisfação é algo muito difícil de man ter juntamente com o conhecimento da miséria co existente. Quem é capaz de pensar que suas pró prias faltas desaparecem com desculpas mesquinhas ou sentir-se feliz pretextando incapacidade moral? “Não é enorme a tua malícia? E infinitas as tuas iniqüidades? Não deste água ao sedento, Recusaste o pão ao faminto. Sendo homem poderoso que possuía a terra, Sendo homem de alta posição que nela habitava, Despediste as viúvas de mãos vazias E quebraste os braços dos órfãos” (Jó 22,5.79). “Não há nada mais são que um coração con trito” . O sentido da contrição não deve prejudicar a consciência do nosso poder espiritual, da nobreza eterna que acompanha a responsabilidade eterna. Um homem culto havia perdido todas as suas fontes de renda e estava à procura de um meio para ganhar a vida. Os membros da sua comunidade, que o sugeriram-lhe admiravam pela cultura e pela sua pie dade, que sua servisse como preceptor da comunidade nos dias do Temor. Mas ele se consi derava indigno de servir como mensageiro da co munidade, aquele que devia apresentar as orações dos seus irmãos ao Todo-poderoso. Foi ter com o seu mestre o Rabi de Husiatin e contou-lhe sua afli tiva situação, o convite que recebera de servir como
preceptor aceitá-lo e nos rezardias peladosua Temor congregação. e o seu receio em “Seja receoso e reze”, foi a resposta do rabi. 262
Descontentamento perpétuo O objetivo da piedade judaica não está em es forços fúteis para a satisfação de necessidades, às quais porventura cedemos ou que não podem ser satisfeitas de outra maneira, mas em manter e atear o descontentamento com nossas aspirações e obras, em manter e alimentar uma aspiração que não co nhece satisfação. Assim, o judaísmo é causa e não resultado de uma necessidade, uma exigência obje tiva ao invés de um interesse su bjetivo. Ensina o homem a jamais dar-se por satisfeito, a desprezar a satisfação, a suspirar pelo máximo, a apreciar ob jetivos aos quais geralmente é indiferente. Planta nele uma semente de infinita ansiedade, uma neces sidade de necessidades espirituais, ao invés de uma necessidade de obras. Ensina-lhe g contentar-se com o que tem, mas nunca com o que é. A maioria de nós somos infelizes não porque estamos insatisfeitos com o que somos, por exem plo, insensíveis às aflições ou privações de outras pessoas, mas por estarmos descontentes com o que possuímos. A religião é a fonte da insatisfação com o eu. A felicidade, conforme acima indicado, não é sinônimo de satisfação, de presunção, mas é essen cialmente a certeza de ser necessitado, de ter a visão da meta ainda por atingir. O que produz a futilidade e o desespero é a auto-satisfação. Os animais saciam-se e satisfazem-se consigo mesmos, enquanto os homens só podem estar satis feitos consigo mesmos quando seu espírito começa a decair e a atolar-se no pântano das ações superes timadas. Auto-satisfação, auto-realização é mito que
almas anelantes devem considerar degradante. Tudo o que é criativo tem sua srcem numa semente de infinito descontentamento. O progresso moral é 263
possível por causa da insatisfação dos homens com os costumes, as sanções e as maneiras de compor tamento de sua época e raça. Uma nova compreen são começa quando chega o fim da satisfação, quan do tudo o que foi visto ou dito parecer uma dis torção para quem vê o mundo pela primeira vez. A auto-satisfação é a beira do abismo, do qual os profetas procuram afastar-nos. Quando o povo de Israel ainda se encontrava no deserto, antes de entrar na Terra Prometida, já foi exortado a lutar contra os perigos da auto-satisfação. “Quando eu os tiver introduzido na terra que jurei a seus pais que lhes daria, uma terra abundante em leite e mel, e eles comerem e engordarem, e se voltarem para deuses estranhos e os adorarem, desprezando-me e violando minha aliança. .. ” (Dt 31,20). Por que é este o caminho da ruína e da desgraça: “Jesurum engordou e recalcitrou. Engordaste e te fartaste” (Dt 32,15). Se quiséssemos retratar a alma de um profeta pelas emoções que nele não tiveram lugar, certa mente a auto-satisfação seria mencionada em pri meiro lugar. Os profetas de Israel eram como que geysers que perturbam consciên cia até de hoje,desgosto obrigando-nos a sentir nossa o sofrimento dos outros. “Ai daqueles que vivem tranqüilamente em Sião E confiam na montanha de Samaria. . . Deitados sobre leitos de marfim. E se estendem em suas poltronas,
EE comem os cordeiros do rebanho os novilhos do estábulo; Cantam ao som da harpa, E como Davi, inventam instrumentos de música; 264
Bebem vinho em taças E se ungem com óleos preciosos: Mas não sentem os sofrimentos de José” (Am 6,1.4-6). Aspirações Juntamente com as potencialidades guardadas em nossa natureza, possuímos também a chave para libertá-las e desenvolvê-las. Essa chave são as nos sas aspirações. Para alcançarmos qualquer valor, te mos que esperá-lo, procurá-lo e desejá-lo. A pedra não se esforça para transformar-se em estátua e quando transformada em estátua a forma é forçada na pedra e não esperada. Mas o homem não vive só de necessidades senão também %le aspirações por algo Uma que não pessoa sabeé aquilo sequer a como que aspira. exprimir.Para co nhecer-me a mim mesmo, pergunto-me: quais são os fins que me esforço por alcançar? Quais são os valores pelos quais mais me interesso? Quais são as grandes aspirações que eu gostaria que me ani massem e impelissem? Quem está satisfeito consigo nunca aspirou real mente pelo ardor, suaé vida peloe não amor, que o autocontentamento sombra luz.sabendo A grande aspiração que se volta para a eternidade é uma aspiração para louvar, para servir. E quando as on das desta aspiração se avolumam dentro das nossas almas todas as barreiras caem por terra; a crosta da nossa insensibilidade, a histeria da vaidade, as orgias da arrogância.
Pois danãominha é só alma, o eu que não eterna é um impulso mas estremece, uma vibração que nos arrasta a todos. Nenhum código, nenhuma lei, nem mesmo a
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lei fie Deus, pode estabelecer uma norma para toda a nossa vida. Não basta ter idéias certas. Pois é a vontade e não que tem o poder executivo no reino da vida.a razão A vontade é mais forte que a razão e não se submete cegamente aos ditames dos princípios racio nais. A razão pode forçar a mente a aceitar intelectualmente as suas conclusões. Mas qual é a força que pode fazer-me gostar de fazer o que devo fazer? Um jovem foi ser ap rendiz de ferr eiro. Apren deubigorna a segurar tenaz,o afole manusear o malho,o afogo. bater na e a apuxar para alimentar Concluindo o seu aprendizado, foi escolhido para empregado na ferraria do palácio do rei. Mas pouco durou a felicidade do jovem rapaz. Descobriu que não tinha aprendido como acender o fogo. De nada lhe valia toda a sua arte e conhecimento no manejo dos instrumentos.
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25 Uma norma de vida
Os objetivos supremos não têm voz Verificamos esta amarga realidade: a vida é um perigo constante; a segurança moral e mesmo física é um mito. Poucos de nós sabem o que fazer com a vida, com a nossa força e a nossa vontade, com nossa inteligência e nossa libáMade. O coração frágil e cego; sem orientação, torna-se selvagem eé desesperado. É mais fácil lutar contra os vírus e os germes que contra a insensibilidade do coração ou contra a imperceptível decadência interna. Sem auxílio, o que fazemos senão maltratar e prejudicar? Quem nos ajudará se destruirmos o que homem algum jamais poderá reconstruir? corações produzem o desejo ser justo Nossos ou santo. Se a não mente está dotada com de a ca pacidade de compreender fins superiores e de di rigir nossa atenção a eles, independentemente de qualquer vantagem material, a vontade está natural mente inclinada a sujeitar-se a fins egoísticos, inde pendentemente das percepções da mente. Não há nada em que se possa confiar menos que no poder
de abnegação homem. Tampouco do a mente está sempre imune das per suasões dos interesses do eu. Desta forma, os fins últimos, ou não são apreendidos, ou a mente não
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os deixa falar. Cabe à religião articular esses fins que não têm voz. Fazer aentregar-nos paz com ao todas realidades significaria ego.as É nossas fácil converter a alma numa casa de loucos e pensar que é um santuário. O espírito que suspira pelo sopro divino, que deseja ser mais forte que a veemência das pai xões, deve equipar-se com armas que a mente sozi nha não pode produzir. O anseio do homem pela liberdade interior vem acompanhado de um sentimento de nós, desgosto pelas necessidades artificiais. Cada um de nal gum momento da vida, entendeu a sabedoria da máxima antiga de que “não ter desejo nenhum é divino; e ter o mínimo possível de desejos é estar próximo da divindade” (Diógenes Laércio, Sócrates, sé c. I I ). Se só os santos podem ser como o Rabi Hanina, com relação ao qual todo dia sai uma voz do monte Horeb mundo inteiro é alimentado por proclamando: causa do meu“Ofilho Hanina; mas meu filho Hanina se satisfaz com uma pequena quantidade de alfarrobas de um sábado ao outro” (Berakot 17b), todos os homens podem aceitar o conselho de que “devemos procurar diminuir nos sos desejos em vez de aumentar nossos meios”. Nem divinização nem aviltamento Há duas soluções opostas que através dos tem pos foram propostas para o nosso problema: uma diviniza o desejo, outra degrada-o. Por um lado houve aqueles que, subjugados pela obscura força da paixão, acreditavam ter no seu delírio uma ma
nifestação dos deuses e celebravam a sua satisfação como um rito sagrado. As orgias dionisíacas, os ritos da fertilidade, a prostituição sagrada, são exem-
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pios extremos de uma idéia que no subconsciente nunca desapareceu. Os expoentes outro extremo, alarmados ensi com o poder destrutivododas paixões desenfreadas, naram o homem a ver torpeza e mal no desejo, Sa tanás no arrebatamento da carne. Seu conselho é reprimir os apetites e seu ideal é a renúncia de si mesmo e a ascese. Alguns gregos diziam: “A pai xão é um deus, Eros”. Os budistas afirmam: “O desejo é mau”. Para o pelo espírito judeu, não^éosseduzido horrorizado poder das que paixões, desejos nem não são bons nem maus, mas tal como o fogo, não com binam com a palha. Não devem ser nem extintas nem alimentadas de combustível. Em vez de cultuar o fogo e ser por ele consumidos, devemos deixar que das chamas nasça uma 1uz.^^4í necessidades são oportunidades espirituais. Espírito e carne A fidelidade ao judaísmo não implica em des prezo das legítimas necessidades, numa tirania do espírito. A prosperidade é uma meta digna de as piração e uma recompensa prometida à vida cor reta. Embora não haja uma exaltação da nossa na tureza animal, não falta o reconhecimento dos seus direitos e do seu papel. Há uma sincera preocupa ção pelo seu bem-estar, suas necessidades e limi tações . O judaísmo não despreza o aspecto carnal. Não nos obriga a abandonar a carne, mas a con trolá-la e a orientá-la, a satisfazer as necessidades
naturais da carne de tal maneira que o espírito não seja molestado por frustrações antinaturais. Não temos nenhum mandamento de sermos piromanía269
cosfjda alma. Pelo contrário uma necessidade que serve para a intensificação da vida sem prejuízo a outros,arbitrária é obra do a destruição lação ou Criador, ignorantee da sua criaçãooué muti van dalismo. “Comer, bebe r e gozar do seu trabalho é um dom de Deus ao homem ” (E cl 3,13). Vida correta evidentemente implica em con trole e relativo domínio das paixões, mas não re núncia a todas as satisfações. O que é decisivo não é o ato do domínio, mas como utilizar este domínio sobre as paixões. Nosso ideal não é um domínio implacável, mas uma diligente alteração das necessi dades. A paixão é um monstro de muitas cabeças e o objetivo só é atingido mediante cuidadosa me tamorfose. Não por meio de amputação ou muti lação . O judaísmo não está ligado a nenhuma dou trina de pecado srcinal e não tem conhecimento de uma malícia inerente à natureza humana. No seu vocabulário a palavra “carne” não assumiu a coloração de pecaminosidade. As necessidades car nais não são concebidas como sendo radicadas no mal. Em parte alguma da Bíblia se encontra uma indicação da idéia de que a alma é prisioneira de um corpo corrupto, que procurar satisfação neste mundo significa perder a alma ou faltar à aliança com Deus, que a fidelidade a Deus exige a renúncia aos bens terrenos. Nossa carne não é má. Elá é matéria para apli cação do espírito. O carnal é algo a ser superado e não aniquilado. Tanto o céu como a terra são sua criação. Nada na criação pode ser rejeitado e de nada se deve abusar. O inimigo não está na carne. Está no coração, no ego.
Para a Bíblia o bem é equivalente à vida. O ser é intrinsecamente bom. “Deus viu que era bom”. A Torá é concebida como uma “Árvore da
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Vida”, representando a equivalência da vida e do bem. “No caminho da justiça está a vida” (Prov 12 , 2 8 ) . Na vizinhança de Deus Não há conflito entre Deus e o homem, não há hostilidade entre o espírito e o corpo, não há uma separação entre o santo e o profano. O homem não existe separado de Deus. O hümano é a fron teira do divino. A vida passa nas proximidades do sagrado e é esta proximidade que confere à existência a sua suprema significação. Em nossas relações com o que é imediato entramos em contato com o mais distante. Até a satisfação de nStessidades físicas pode ser um ato sagrado. Talvez a mensagem es sencial do judaísmo é que fazendo o que é finito podemos perceber o que é infinito. Devemos chegar à percepção do impossível no possível, à percepção da vida eterna nos atos cotidianos. Deus não está oculto num templo. A Torá veio para dizer ao homem desatento: “Não estás só, vives constantemente em santa vizinhança”. Lem bra-te: “Ama a teu Deus — acomo ti mesmo” . Não se próximo nos pede—abandonar vida ae dizer adeus a este mundo, mas conservar acesa nele a chama e deixar que sua luz se reflita em nossas faces. Não deixemos que nossa cobiça cresça e cons titua uma barreira para essa vizinhança. Deus está à espera em todo caminho que leva da intenção para a ação, do desejo à satisfação.
está dotado poder sentir-se de ser supe rior O ao homem seu próprio eu. Nãodoprecisa de samparado diante da “má inclinação” . Ele é capaz de dominar o mal. “Deus fez o homem ereto”.
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Se perguntarmos “por que criou ele a má inclina ção. . . o Senhor nos dirá: Sois vós que a tornais má” 61. Pode-se servir a Deus com o corpo, com suas paixões e até com “o impulso mau” {Sifre Deute ronômio, 32 ). Só é necessário saber distinguir en tre a escória e o ouro. Este mundo só adquire gosto quando recebe um pouco de mistura do outro mun do. Sem a nobreza do espírito, a carne pode real mente converter-se num foco de trevas. O caminho que leva apóia-se ao sagrado passa através do profano. O espiritual sobre o carnal, como “o espírito que paira sobre a face das águas”. A vida judaica é uma vida vivida de acordo com um sistema de controles e equilíbrios. O santo dentro do corpo Santidade não significa um ar que paira na solene atmosfera de um santuário, uma qualidade reservada aos atos supremos, um advérbio do espi ritual, a distinção dos eremitas e sacerdotes. No seu grande Código, Maimônides, ao contrário do editor da Mishna, chamou a seção que trata das leis do culto do Templo “O livro do Serviço”, en quanto à seção referente às Leis da pureza e da dieta chamou de “O Livro da Santidade” . A força da santidade é subterrânea, situa-se no somático. A semente da santidade está primariamente na ma neira como satisfazemos as necessidades físicas. Ori ginariamente santo ( Kadosh) significava o que foi separado, isolado, segregado. Na piedade judaica assumiu um novo sentido, denotando uma qualidade
envolvida, imersa em atos comuns e terrenos, pri 61 Tanhuma Bereshit /G ên ese/ n° 7.
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mariamente atos executados pelo indivíduo; atos particulares e simples e não cerimônias públicas. “O homem deveria sempre considerar-se como se o Santo habitasse no seu corpo, pois está escrito: ‘O Santo está dentro de vós’ (Os 11,9), por isso não se deve mortificar o corp o” (Taanit 11b) 62. O homem é a fonte e o iniciador da santidade no mundo. “Se um homem se santific ar um pouco, Deus o santificará cada vez mais; se ele se santi ficou a partir de baixo, será santificado a partir de cima” (Yoma 39a). O judaísmo ensina-nos que até a satisfação de necessidades animais pode ser um ato de santifica ção. O gozo do alimento pode ser uma forma de purificação. Algo da minha alma pode morrer afo gado num copo d’água se seu conteúdo for bebido como se a única coisa im portante no mundo fosse a minha sede. Mas podemos chegar um pouco mais perto de Deus, quando nos lembrarmos dele ainda mais intensamente na excitação e na paixão. A santificação não é um conceito celestial. Não existe um dualismo de terreno de um lado e sublime de outro. Todas as coisas são sublimes. Todas foram criadas por Deus e sua continuação na existência, sua cega aderência às leis da necessi dade conforme acima, das um coisas modo no de uni obe diênciaé, ao Criador.dissemos A existência verso é um rito supremo. Um homem que vive, uma flor que floresce na primavera, é um cumprimento da ordem de Deus: “Existam!” Vivendo estamos diretamente cumprin do a vontade de Deus, numa forma que está acima de nossa escolha ou decisão. A nossa própria exis-
62 Taanit (jejum) e Yoma (dia da Expiação), citado logo a segui r, são títulos de tratados da M ishna. (N . do T.).
273 1 8 - 0 homem não está só
tênciâ está em contato com sua vontade. A vida é santa e constitui uma responsabilidade tanto de Deus como do homem. Não sacrificar, mas santificar O autor da vida não nos pediu que desprezás semos nossa curta e pobre vida, mas que a eno brecêssemos, não que a sacrificássemos, mas que a santificássemos. Disse Rabi Ananias ben Akasias 63: “O Santo, bendito seja, quis purificar Israel; por isso lhe deu a Torá e muitas mitzvoth (normas de vida), conforme foi dito: O Senhor quis, por causa da justiça (de Israel), magnificar-se e glori ficar a Torá” (Is 42,21) 64. Antes de cumprir um mandamento, bendizemos e louvamos aquele “que nos santificaste com teus mandamentos”. Nos sá bados e nas festas rezamos: “Santifica-nos com teus mandamentos ” . Para os adeptos dos antigos cultos orgíacos o vinho era um meio usado para estimular o delírio, “o que torna o homem delirante” (Heródoto 4.79). Para os ascetas o vinho é pernicioso, é uma fonte de mal. Para os judeus o vinho está, mais que qual quer outra coisa, relacionado com o termo e o ato da santificação (Kiddush). Sobre o vinho e o pão invocamos a santidade do Sábado. “Santifica-te nas coisas que te são permitidas” (Yebamot 20a) 65, não só ritual, nas formas prescritas pela Torá. “Em todos os teus caminhos procura reconhecê-lo” (Prov 3,6). 63 Rab ino tanaít a. (N . do T . ) .
64 Mishna Makkot 3,16. (Tratado da Mishna sobre a fus tigaç ão. N . do T ) . 65 Yebamot, título do tratado da Mishna sobre o levirato.
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A santificação como razão para andar nos seus caminhos é um conceito de pragmatismo reli gioso — anão teoria segundo a qual os efeitos tangí veis servem como critério para a validade dos man damentos . O bem deve ser feito por causa de Deus e não para promover a perfeição do homem. “Diz: ‘os olhos do sábio estão na sua cabeça’ (Ecl 2,14). Dir-se-á: onde poderiam estar senão na cabeça?... Mas quer dizer o seguinte. Aprende mos que um homem não deve caminhar quatro cú bitos de cabeça descoberta, a razão para tanto sendo que a Shekhinah está sobre a cabeça. Então, os olhos do sábio. . . estão voltados para a sua cabeça, para aquilo que está sobre sua cabeça e assim sabe que a luz acesa sobre sua cabeça precisa de óleo, pois o corpo humano é um pavio e a chama arde sobre ele. E o rei Salomão advSrte e diz: ‘Não deixa tua cabeça’ 9,8), porque a luz faltar sobre óleo a suanacabeça precisa (Ecl de óleo, que con siste em boas obras e por isso os olhos do sábio estão voltados para a cabeça e não para outra parte” (Zohar III, 187a). Aprendemos que o homem é necessário, que nossas necessidades autênticas são exigências divi nas, símbolos de necessidades cósmicas. Deus é o sujeito todos os sujeitos. A vida é sua e nossa. Ele nãodenos lançou no mundo e nos abandonou. Ele participa dos nossos trabalhos. Compartilha das nossas ansiedades. Um homem que tem uma ne cessidade não é o sujeito exclusivo e último da ne cessidade: Deus tem necessidade juntamente com ele. Tomando consciência de uma necessidade, de vemos perguntar-nos: Deus tem necessidade junta
mente écomigo? Ter de Deus sócio das nossas ações lembrar-nos quecomo nossos problemas não são exclusivamente nossos. A existência judaica é uma vida compartilhada com Deus.
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Viver dentro de uma ordem A preocupação por uma vida correta, o pro blema do que deve ser feito aqui e agora constitui o centro da religião judaica . Este tem sido o tema principal da literatura judaica desde os profetas até a época dos Hassidin, tratado com um sentido de urgência como se a vida fosse um contínuo estado de emergência. Comlições melancolia e depois de numerosas elo qüentes de derrotas, começamos hoje a ecom preender que não há soluções improvisadas para problemas perpétuos; que a única segurança contra perigos constantes é a constante vigilância, a cons tante orientação. Tal orientação, tal vigilância é dada àquele que vive às sombras do Sinai, àquele cujas semanas, dias e horas seguem o ritmo da Torá.O que constitui a forma de vida judaica não é tanto a execução de boas obras isoladas, um pas so dado agora e outro depois, mas antes o segui mento de um caminho, um estar a caminho; não tanto os atos de cumprimento quanto o estado de estar comprometido com o dever, de fazer parte de uma ordem em que os atos isolados, as formações de os sentimentos esporádi cos, sentimentos os episódiosreligiosos, morais, fazem parte de todo um modelo de vida. A totalidade da vida O homem piedoso crê que todos os aconteci
mentos estão secretamente interrelacionados, que o alcance de tudo o que fazemos supera o horizonte da nossa compreensão, que tudo na história lança seu peso nos pratos da balança de Deus, que todo
ato significa um grau na escala do sagrado, indepen dentemente do fato se o homem que o pratica visa ou não tal objetivo. Os profetas de Israel consi deravam como sendo de interesse divino justamente as situações não rituais, as condições profanas. Para eles a totalidade das atividades humanas, tanto so ciais como individuais, de todas as circunstâncias interiores e exteriores, constituem a esfera do inte resse divino . Portanto, o âmbito da Torá é a vida sua totalidade, tanto o que é vulgar como o que éemsagrado . O não-heróico O judaísmo é uma teologia do ato comum, das trivialidades da vida, que não tfSta tanto do pre paro o excepcional como predominante da condução da das coisas para triviais. A característica maneira de vida judaica é a de ser uma piedade despretensiosa, imperceptível, e não extravagância, mortificação, ascese . Desta forma, o seu objetivo é enobrecer o que é comum, conferir uma beleza hie rática às coisas profanas, combinar o relativo com o absoluto, unir o pormenor com o todo, adaptar nosso ser à àsua pluralidade, aostranscende, seus con flitos epróprio contradições, unidade que tudo ao sagrado. A autoridade interior Também a vida psíquica é um processo de de
senvolvimento de desperdício. Suas necessidades não podem sere satisfeitas com injeções insuficientes e inconstantes. Não sendo um animal de hiberna ção, o homem não pode viver com reservas arma277
zenédas. Pode ter uma memória cheia e uma alma vazia. Os homens que não são livres horrorizam-se com a idéia de aceitar um regime espiritual. Asso ciando o controle interno com a tirania externa, pre ferem sofrer a sujeitar-se à autoridade espiritual. Só homens livres, que não têm a tendência de cano nizar todos os caprichos, não identificam o autocon trole com a auto rendição, sabendo que ninguém é livre se não for senhor de si mesmo, que quanto mais liberdade gozarmos, de mais disciplina necessi tamos 66. A idéia do deixa-correr, ou seja, a ausência de controle ou direção na esfera íntima é uma ilusão. A vida interior está povoada de inúmeras forças insaciáveis e competitivas. Aqui o poder não pode ficar vago. Se os princípios forem eliminados, logo um desejo inferior tenta ocupar o poder. Sob pena de cair no ridículo, o imenso reino da vida não pode ser colocado sob o controle da ética ou da jurisprudência. Como dotar o homem de capaci dade para dominar a totalidade da vida, eis o su premo desafio da inteligência. A resposta a este desafio é a vida de piedade. Para aprender a viver devemos dirigir-nos ao ho mem piedoso.
66 Cf. A. J . Nova Iorque, 1950, p. 63.
H eschel
,
The Earth is the Lord's.
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O homem piedoso
Ò que é piedade? Desde tempos imemoriais a piedade tem sido estimada como um dos ideais mais elevados do ca ráter humano. Em todos os tempos e lugares os homens procuraram adquirir a piedade e nenhum esforço ou sacrifício lhes pareceu grande demais para alcançá-la. Não! Será Trata-se isso mera ilusão,virtude uma fuga da imaginação? de uma real, de algo sólido que se pode observar claramente e que tem uma influência real. Sendo, pois, um fato específico da existência que encontramos na vida, merece indiscutivelmente um exame. O fato cie ser geralmente negligenciada ou esquecida pela pesquisa científica deve-se em parte às dificuldades metodo lógicas que envolveaotalfato tipodedeque estudo, porém mais fundamentalmente ela apresenta as pectos teológicos, que são de certo modo repelentes para a mentalidade moderna. Para alguns a piedade sugere uma fuga da vida normal, um abandono do mundo, uma separação, uma negação dos interesses culturais, sendo relacionada com um tipo de com portamento antiquado, clerical, artificial. Em outros
a palavraoudesperta afetação,umse sintoma não hipocrisia fa natismo parece indicar de umae ati tude doentia e até absurda em relação à vida. Jul gam que uma atitude como a piedade deve ser re-
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jeitáda no interesse da sanidade mental e da liber dade espiritual. Apesar disso existe entre nós o homem pie doso. Ele não desapareceu da face da terra. Efe tivamente, com mais freqüência do que geralmente se supõe, encontram-se na vida normal situações que revelam com toda a evidência uma atitude de piedade. A presença da piedade entre nós é, portan to, um fato incontestável. Porque, pois, nos deixa ríamos dominar por um preconceito, deixando de estudar tal fenômeno ou pelo menos esforçando-nos para compreendê-lo? Método de análise Para começar, podemos perguntar: o que é pie dade? É alguma disposição ou qualidade psíquica do espírito? É um estado mental? Uma atitude? Uma prática? Quais são suas características essen ciais? Qual é o seu sentido e o seu valor? Qual é a sua significação? Quais são as suas aspirações? Trata-se de um fenômeno único1ou de uma circuns tância acidental que acompanha outros fatos da vida humana? Como se apresenta a vida interior de um homem piedoso? Quais são os conceitos básicos e as percepções que se verificam nos atos de pie dade? Numa análise como esta não consideramos a fé implícita incluída em sistemas gerais de fé e de culto, mas não adquirida independentemente pelos indivíduos. Tampouco se trata de examinar crit i camente qualquer doutrina ou credo. Nosso obje
tivo posição é analisar homem a piedoso examinar não sua como relação qualquere forma especí fica de religião institucionalizada, mas suas atitudes diante das forças elementares da realidade. O que
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significa Deus na sua vida? Qual é a sua atitude para com o mundo, a vida, suas forças interiores e suas posses? A piedade não é um conceito ps icológico. O termo não faz parte da nomenclatura psicológica, da mesma forma como não pertencem a ela os con ceitos lógicos de verdadeiro e falso, os conceitos éticos de certo e errado e os conceitos estéticos de belo e feio. A piedade não indica uma função, mas um ideal da alma. Como a sabedoria e a veracidade, está sujeita ao caráter individual do homem apre sentando nuanças das suas qualidades próprias. As sim há tipos de piedade apaixonada ou sóbria, ativa ou quietista, emocional ou intelectual. Mas, embora a piedade nunca seja independente da estrutura fí sica do indivíduo, é fútil querer explicá-la por qualquer tendência ou preconceito da vida mental. Está muito longe de ser o resultado de qualquer disposição psíquica ou função orgânica. Certas dis posições podem influenciá-la ou intensificá-la, mas não a criam. Como ato, a piedade faz parte da corrente da vida psíquica . Entretanto, o seu conteúdo espiri tual não se identifica com o ato em si. É universal e distinta da função psíquica su bjetiva. A piedade Houve é uma maneira épocas em espiritual que aobjetiva piedadede era pensar tão ecomum viver. como é hoje o conhecimento da tabuada. Para compreender a piedade, temos que anali sar a consciência que acompanha os atos de um homem piedoso e classificar os conceitos latentes na sua mente. É desnecessário acentuar o fato de que a validade de tal análise não é prejudicada pela
possibilidade de que não conceitos derivados de uma análise geral podem se encontrar em cada ato de piedade. 0 fato de um poeta não estar familia rizado com as regras que governam a sua arte, ou
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não'; aplicá-las em cada poema, não significa que não existem normas para a composição poética. Para o fim que temos em vista, não precisamos ocupar-nos dos aspectos psicológicos da questão. Estes têm sua importância própria que exigiria um estudo especial. Nosso objetivo é fixar a atenção sobre os aspectos essenciais e constitutivos que são comuns aos diferentes tipos de piedade, deixando de lado os coloridos acidentais e as circunstâncias sem importância que a acompanham e que variam nos diferentes casos. Nossa tarefa será descrever a piedade como ela é, sem pretender explicá-la ou sugerir sua derivação de outros fenômenos. Não analisaremos psicologicamente o seu desenvolvimen to ou suas peculiaridades tais como aparecem na vida de um indivíduo. Não tentaremos traçar seu desenvolvimento histórico através dos tempos e na matriz das diferentes civilizações. Procuraremos ex por seu conteúdo espiritual e determinar seus con ceitos e manifestações em relação às realidades prin cipais da vida comum. Uma atitude do homem todo Rotular a piedade como uma capacidade, uma qualidade potencial da alma, seria semelhante a de finir a arquitetura como uma habilidade. É impossível entender os fatos por meio de uma simples especulação sobre suas srcens. Esta ríamos igualmente nos desviando do caminho certo, se a denominássemos de disposição, estado emocio nal, uma vibração de sentimentos românticos. Isso seria semelhante a caracterizar a lua como melan
colia, ou julgar a navegação pelo perigo que repre senta para a vida humana. Chamá-la de virtude mo ral ou intelectual seria o mesmo que querer fixar
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a sombra de um cavalo em fuga, não se conseguindo segurar nem o cavalo nem a sombra. A piedade não consiste em atos isolados, em experiências esporá dicas e efêmeras. Tampouco se limita a um só estrato da alma. Ainda que se manifeste em atos particulares, está acima das distinções entre inte ligência e emoção, vontade e ação. Sua fonte pa rece ser mais profunda que o alcance da razão e estender-se mais longe que a consciência. Embora se revele em atitudes isoladas tais como devoção, reverência ou desejo servir,daátias ciais localizam-se numadecamada almaforças muito essen mais profunda que a órbita de qualquer uma dessas ati tudes. É algo de incessante, imutável na alma, uma perpétua atitude interio r de todo o homem. Como uma brisa na atmosfera, ela percorre todos os atos, expressões e pensamentos. È ui^ sentido da vida que se manifesta em cada traço do caráter, em cada modo de ação. A única vida digna de ser vivida A piedade orienta-se para algo acima de si pró pria. Agindo na vida interior, refere-nos sempre a algo que transcende o homem, algo que passa além do instante atual, algo que supera o que é visível e disponível. Impedindo constantemente o homem de afundar nos sentidos e na ambição, é o fiel de fensor de algo mais importante que o interesse e os desejos, a paixão ou a carreira. Ainda que não negue o encanto e a beleza do mundo, o homem piedoso compreende que a vida transcorre sob hori zontes amplos, horizontes que se estendem além do
alcance da vida de um indivíduo ou mesmo da vida de uma nação, de uma geração ou até de uma época. Seu olhar percebe algo que indica a reali-
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dadé divina. Nas pequenas coisas sente o impor tante, nas coisas comuns e simples sente o supremo; na agitação do que passa sente eterno. Embora a piedade esteja aemtranqüilidade relação comdoo que o homem conhece e sente sobre os horizontes da vida, excede incomparavelmente o total obtido pe la adição das suas diferentes experiências inteletuais e emocionais. Sua essência é realmente algo mais que uma teoria, um sentimento ou uma convicção. Para aqueles que a ela aderem, a piedade é o cum primento do destino, única de ser vivida, o único caminhoa da vidavida que digna eventualmente não lança o homem no caos bestial. A piedade é, portanto, um modo de vida. É a orientação do interior humano para a santidade. É um interesse predominante pelo valor supremo de todos os atos, sentimentos e pensamentos. Com o seu coração aberto e atraído por certa gravitação espiritual, o homem piedoso como que se move para o centro da tranqüilidade universal e sua consciên cia está numa posição que lhe permite escutar a voz de Deus. A vida de todo homem é dominada por certos interesses e está essencialmente determinada pela aspiração por aquelas coisas que mais o preocupam e interessam. O interesse principal do homem pie doso é a preocupação com a preocupação de Deus, que assim se torna a força impulsora que controla o coeso de suas ações e decisões, que modela suas aspirações e seu comportamento. E um equívoco ver em atos isolados de percepção ou consideração os elementos decisivos do comportamento humano. Na verdade, é a direção da mente e do coração, o interesse geral de uma pessoa que a leva a ver
ou descobrir certas situações e esquecer outras. Conforme vimos anteriormente, o interesse é uma apreensão seletiva baseada sobre idéias anteriores,
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percepções, reconhecimentos ou predileções preceden tes. O interesse de um homem piedoso é determi nado por sua fé, deo maneira a piedade é aper fé traduzida em vida, espírito que encarnado numa sonalidade . O anonimato interior A piedade é o oposto direto do egoísmo. Vi vendo na visãovolta do suas inexprimivelmônte o ho mem piedoso costas para a puro, sua própria vaidade humana e aspira a sujeitar as forças do egoís mo ao poder de Deus. Tem consciência tanto da usura da vida humana como da pobreza e insuficiên cia do serviço humano, e assim para proteger a in tegridade e pureza interna da de\^ção contra a po luição da interferência do eu mesquinho, ele pro cura a auto-exclusão, esquecimento de si mesmo e o anonimato interioro do serviço. Deseja ser in consciente do fato de que está se consagrando ao serviço de Deus. O homem piedoso não pretende nenhuma recompensa. Odeia mostrar-se ou apare cer de qualquer maneira e é avesso a mostrar suas qualidades, até à sua própria mente. Está absorto na beleza do que adora e dedica-se a fins cuja grandeza supera sua capacidade de adoração. Não é um hábito A piedade não é um hábito que se prolonga numa rotina fam iliar. É antes um impulso, um jato, um estímulo do eu. Sem certo ardor, zelo, presteza,
vigor ou empenho, torna-se uma coisa atrofiada. Ninguém que alguma vez tenha sido impelido pela sua força conseguirá livrar-se do seu ímpeto. Em 285
moráentos de tensão o homem piedoso poderá tro peçar; poderá errar ou desviar-se. Em sua fra queza poderá temporariamente sucumbir ao agradá vel, ao invés de ficar fiel à verdade, seguir o apa ratoso, em vez do que é simples e sólido. Entre tanto, sua aderência ao que é santo apenas vacila, mas nunca se rompe. Na verdade, tais quedas são freqüentemente seguidas de um novo impulso em direção à meta. A queda provoca novo estímulo. Sabedoria e piedade Embora implique em certa profundidade espi ritual, a piedade não é um produto da inteligência inata. Suas forças brotam da pureza do coração e não do acume da inteligência. Ser piedoso não sig nifica necessariamente ser sagaz ou judicioso. En tretanto, como tendência predominante, apresenta características que são peculiares da sabedoria no sentido antigo do termo. Tanto a piedade como a sabedoria incluem certo autocontrole, autodomínio, abnegação, força de vontade e firmeza de propó sitos. Mas embora estas qualidades sejam instru mentos para a busca da piedade, não constituem sua natureza. O que constitui a sua essência é a con sideração do transcendente, a devoção a Deus. Tan to para o homem piedoso como para o sábio o do mínio de si mesmo é uma necessidade vital. Mas ao contrário do sábio, o homem piedoso julga que ele próprio não é um senhor autônomo, senão um mediador que administra sua vida em nome de Deus.
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Fé e piedade A piedade não só aceita o mistério, mas tam bém procura inseri-lo no esforço humano, empe nhando-se por elevar o humano ao nível do espi ritual. A isso não se deve chamar experiência, mas atuação sobre a experiência. Não é uma preocupa ção com o sentido e sua exploração, mas um esforço para harmonizar a vida com um sentido que se aceitou. O homem piedoso é sensível à tudo que é so lene no que é simples, ao que é sublime no sensual. Mas não visa a penetrar no sagrado. Ao contrário, procura ser penetrado e atuado pelo sagrado, de sejoso de entregar-se a ele, de identificar-se com cada tendência no mundo que se orienta para a realidade divina. Para a piedade % que pesa não é a vista, mas a impressão; não é a noção, mas o sen timento; não é o conhecimento, mas a apreciação; não é a ciência, mas a veracidade. A piedade não é um pensamento sobre o que virá, mas uma ten tativa real. Não se identifica com a prática de ritos e cerimônias. É antes o cuidado e a afeição que há na sua prática, o toque pessoal, o oferecimento da vida. A piedade é a realização e a verificação do transcendente humana. de vida. Não só um A piedadenaé vida uma questão sentido da realidade do transcendente, mas a tomada de uma atitude adequada em relação a ele. Não só uma visão, uma forma de crença, mas uma adapta ção, uma resposta ao chamado, um modo de vida. A piedade situa-se inteiramente dentro do subjetivo e nasce da iniciativa humana. É geralmente prece
dida esforço pela fépara e assim constitui realização da fé, fé, um pôr em práticaa as idéias da para seguir as suas sugestões. Não deseja apenas aprender a verdade da fé, mas também concordar
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com* ela; não só encontrar a Deus, mas aderir a ele, concordar com a sua vontade, ressoar as suas pala vras e responder à sua voz. E da piedade que nasce a revelação do eu su perior, a manifestação do que é mais delicado na alma humana, dos elementos mais puros da aven tura humana. Trata-se essencialmente de uma ati tude em relação a Deus e ao mundo, em relação aos homens e às coisas, em relação à vida e ao destino. Na presença de Deus O homem piedoso está dominado pela cons ciência da presença e proximidade de Deus. Em toda parte e sempre vive diante dos seus olhos, esteja ou não atento à sua proximidade. Sente-se envolvido graça de Deus como pordeumDeus imenso espaço quepela o circunda. A consciência lhe é tão íntima quanto a pulsação do seu coração, muitas vezes profunda e calma, outras vezes avas saladora, intoxicante, inflamando a alma. A mo mentosa realidade de Deus encontra-se nele como paz, força e infinita tranqüilidade, como uma ines gotável fonte de ajuda, como compaixão ilimitada, como aberta à espera da oração. vezes a vidaporta de um homem piedoso é de tal Por modo en volvida por Deus que seu coração transborda como se fosse uma taça na mão de Deus. Esta presença de Deus não é como a proximidade de uma mon tanha ou a vizinhança de um oceano, cuja vista podemos deixar fechando os olhos ou afastando-nos do local. Pelo contrário, esta convergência para
Deus é inevitável, inelud como ocorre com o ar do espaço que nos ível. cerca,Tal respiramos continua mente a presença de Deus, ainda que nem sempre estejamos conscientes dessa incessante respiração.
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Deus está entre o homem e o mundo A insistência sobre as coisas que são degraus no caminho que leva à santidade, a preocupação com a grande e maravilhosa visão da sua presença, não significa necessariamente uma fuga das formas comuns da vida, nem quer dizer que se perca de vista a beleza do mundo ou os valores profanos. O amor da piedade ao Criador não exclui o amor à criação, mas inclui uma consideração específica de todos os valores. Deus vem intes de todas as coisas e todos os valores são vistos através dele. O mero esplendor ou aparência não atrai o homem piedoso. Inclina-se para aquilo que é bom aos olhos de Deus e tem como valioso o que está de acordo com a sua paz. Não se deixa enganar pelo ilusório nem dissuadir pelo inconveniente ,%Vestes brilhantes, rostos sorridentes ou milagres da arte não o encan tam quando encobrem o vício ou a blasfêmia. Os maiores edifícios, os mais belos templos e monu mentos da glória mundana lhe são repulsivos quan do construídos com o suor e as lágrimas de escra vos ou erigidos pela injustiça e pela fraude. A hipocrisia e a pretensa devoção lhe merecem mais aversão que a iniqüidade aberta. É nas mãos calosas e sujas de seus devotados pais ou nos cor pos torturados e nos rostos contundidos dos que foram perseguidos, mas guardaram sua fé em Deus, que descobre a última grande luz na terra. Uma vida em harmonia Com a presença de Deus
Tudo o que o homem piedoso faz está relacio nado com o divino. Até as coisas mais insignifican tes tangenciam sua passagem. Respirando usa sua 1 9 - 0 homem não está só
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força, pensando usa do seu poder. Move-se sempre sob o pálio invisível da recordação e o maravilhoso peso do nome de Deus sua mente. A palavra de está Deusconstantemente lhe é tão vital sobre como o ar ou o alimento. Nunca está só, nunca está sem companhia, pois Deus está ao alcance do seu co ração. Na aflição ou sob o impacto de algum cho que repentino pode momentaneamente sentir-se num caminho desolado, mas basta que volte levemente seus olhos para descobrir que seu sofrimento está compensado pela compaixão de Deus. O homem piedoso não precisa de nenhuma comunicação mila grosa para torná-lo consciente da presença de Deus. Tampouco é necessária uma crise a fim de desper tá-lo para o sentido e para o apelo desta presença. Sua consciência poderá ficar temporariamente enco berta ou oculta por alguma mudança violenta, mas nunca desaparecerá. E esta consciência de estar sempre vivendo sob o olhar vigilante de Deus que leva o homem piedoso a ver alusões de Deus nas mais variadas coisas que encontra na sua caminhada cotidiana. Muitos acontecimentos comuns podem ser aceitos por ele tanto pelo que são, quanto como delicadas alusões ou bondosas lembranças de coisas divinas. Com essa atenção come e bebe, trabalha e se diverte, fala e pensa. Pois a piedade é uma vida vivida em harmonia com a presença de Deus. O valor da realidade Esta harmonia revela-se na maneira segundo a qual ele considera e avalia todos os fenômenos. O homem tem por natureza a inclinação de avaliar as coisas e os acontecimentos de acordo com a
finalidade para que servem. Na vida econômica um homem é avaliado segundo a sua eficiência, pelo seu valor no trabalho e pela sua posição social. 290
Cada objeto do universo é considerado uma utili dade ou instrumento, sendo o seu valor determi nado pela quantidade de trabalho que é capaz de executar ou o grau de prazer que oferece, de sorte que a medida de todas as coisas é a sua utilização. Mas será que o universo foi criado apenas para uso do homem, para a satisfação de seus desejos animais? Evidentemente é cruel e impensado subme ter outros seres ao serviço dos nossos interesses, vendo que cada existência tem seu próprio valor interno e que utilizá-los sem considerar sua essência individual é profaná-los e desprezar sua real digni dade . A loucura desta mentalidade instrumental manifesta-se na vingança que se segue inevitavel mente. Ao tratar todas as outras coisas como instru mentos, o homem eventualmente se transforma a si próprio em instrumento de algo que não entende. Escravizando os outros, ele próprio mergulha na servidão, servindo os senhores da guerra ou os pre conceitos que serão impostos sobre ele. Esbanja a sua vida servindo a paixões que os outros astuta mente nele excitam, pensando ingenuamente que esta é a sua liberdade. O valor intrínseco de todos os entes ■— ho mens ou mulheres, árvores ou estrelas, idéias ou coisas não está Têm totalmem entesisujeito a nenhum dos nossos —objetivos. mesmos um valor completamente independente de qualquer função que os torna úteis aos nossos fins. Isso é particular mente verdadeiro do homem, pois é a sua essência, esse segredo do seu ser em que se fundam a sua existência e o seu sentido, que exigem nosso res peito . Por isso, ainda que não saibamos de que
maneira ele de possa ser útil ou não conheçamos ne nhum meio subordiná-lo a qualquer fim ou obje tivo, devemos estimá-lo somente por isso pelo seu valor intrínseco e independente.
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Uma atitude em relação à realidade total Além disso, a piedade é uma atitude em rela ção à realidade total. O homem piedoso está atento à dignidade de cada ser humano e às relações com o valor espiritual que até as coisas inanimadas pos suem inalienavelmente. Tendo capacidade para per ceber as relações das coisas com os valores trans cendentes, será incapaz de desprezar qualquer uma delas escravizando-as ao seu próprio serviço. O se gredo de cada ser é o cuidado e o interesse divino nele investido. Em cada acontecimento há algo de sagrado em jogo. Esta é a razão da reverência com que o homem piedoso trata a realidade. Isso ex plica a sua solenidade e a sua conscienciosidade ao tratar as coisas tanto grandes como pequenas. Reverência A reverência é uma atitude específica em re lação a algo precioso e valioso, em relação a alguém que é superior. É um cumprimento da alma; uma consciência de um valor sem gozo deste valor e sem procurar nenhuma pessoal. transé parência única nas vantagem coisas e nos fatos.HáOuma mundo transparente. Não há véu algum que possa ocultar completamente a Deus. O homem piedoso está sem pre atento para ver através da aparência das coisas um traço do divino. Por isso a sua atitude para com a vida é de esperançosa reverência. Por causa desta atitude de reverência, o ho
mem piedoso está em paz com a vida, apesar seus conflitos. Condescende pacientemente com dos as vicissitudes da vida, porque vislumbra espiritual mente o seu possível sentido. Cada experiência
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abre a porta para um templo de novas luzes, ainda que o seu vestíbulo seja escuro e sombrio. O ho mem piedoso aceita as provações da vida e sua necessidade de angústias, porque sabe que isso faz parte da totalidade da vida. Tal aceitação não sig nifica complacência ou resignação fatalística. Ele não é insensível. Pelo contrário, é agudamente sen sível à dor e ao sofrimento, à adversidade e ao mal em sua própria vida e na dos outros. Mas possui a força interior de elevar-se acima das aflições, e com a compreensão do que esses males são na rea lidade, as aflições lhe parecem uma espécie de arro gância . Nunca sabemos qual é o sentido último das coisas. Distinguir muito nitidamente o que jul gamos bom ou mau na experiência é desonesto. É melhor amar que entristecer-se e, com a consciência amorosa do longo alcance de tudo^o que atinge nos sas vidas, o homem piedoso nunca superestimará o peso aparente dos acontecimentos do momento. Gratidão O homem natural sente uma sincera alegria ao receber um presente, ao ganhar algo que não me receu. O homem piedoso sabe que nada do que tem foi merecido. Nem mesmo suas percepções, seus pensamentos e palavras, nem sequer sua vida lhe pertence merecidamente. Sabe que não tem direito a nenhum dos dotes que recebeu. Assim, sabendo que merece muito pouco, nunca se arroga nada. Como sua gratidão é mais forte que seus desejos, pode viver com alegria e paz de espírito.
Cônscio da evidência da natural bênção tem de Deus tudo o que recebe, o homem duas em atitudes em relação à vida: alegria e tristeza. O homem piedoso tem só uma atitude, porque para ele a
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tristeza representa uma arrogante e presunçosa de predação das realidades fundamentais. A tristeza implica que o homem pensa ter direito a um mun do melhor, mais agradável. A tristeza é uma re cusa e não um oferecimento; uma censura e não uma apreciação; uma retirada e não uma busca. As raízes da tristeza encontram-se na pretensão, no fastio e no desprezo do bem. O homem triste, vivendo irritado e queixando-se constantemente do seu destino, sente hostilidade em toda parte e pa rece nunca perceber a ilegitimidade das suas pró prias queixas. Tem um sentido muito agudo para perceber as incoerências da vida, mas nega-se obsti nadamente a reconhecer a delicada graça da exis tência .
Os atos comuns são aventuras O homem piedoso não considera a vida como coisa evidente. As graves ocupações não conseguem encobrir-lhe o milagre da vida e a consciência de que vive através de Deus. Nenhuma rotina da vida social ou econômica consegue embotar sua atenção para o inefavelmente maravilhoso na natureza e na história. A história ele uma perpétuae improvização do Criador,é para que sofre contínuas violen tas interferência s do homem. Seu coração está fixo neste grande mistério representado por Deus e pelo homem. Assim, sua riqueza principal não é al guma experiência isolada, mas a própria vida. Toda experiência excepcional serve apenas como buraco de fechadura para a chave da sua fé. Não depende
do excepcional, para eledoosespiritual atos comuns cons tituem aventuraspois no campo e todos os seus pensamentos normais são como que sensações do sagrado. Em todas as coisas sente o calor oculto
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do bem, e encontra sinais de Deus quase em cada objeto ordinário sobre o qual cai o seu olhar. Por isso suase palavras trazem esperança para um mundo sórdido desesperado. Responsabilidade O âmbito em que o homem piedoso se sente envolvido não é um campo isolado como, por exem plo, o dos atos éticos, mas cobre \oda a vida. A vida é para ele um desafio do qual nunca poderá libertar-se. Nenhum subterfúgio de sua parte lhe possibilitará fugir e evadir-se dela. Nenhuma esfera de ação, nenhum período da vida pode ser subtraí do a ela. Desta maneira a piedade não pode con sistir somente em atos específico^ tais como ora ções ou observâncias rituais. Está relacionada e é concomitante com todas as ações, acompanha e dá forma a todas as ocupações da vida. O homem não pode desincumbir-se da sua responsabilidade perante Deus por uma excursão ao reino da espiritualidade, fazendo da vida um episódio de uma rapsódia es piritual. O sentido da responsabilidade é o andaime cm que se firma ao continuar diariamente a cons truir a vida. Cada um de seus atos, cada incidente da mente, se verifica neste andaime. Incessante mente o homem está trabalhando, seja construindo, seja demolindo sua vida, sua casa, sua esperança em Deus. Responsabilidade implica em liberdade. O ho mem que depende do ambiente, de laços sociais, da disposição interior, pode, contudo, gozar de li berdade diante de Deus. O homem só é verda
deiramente independente e livre diante de Deus. Mas a liberdade por sua vez implica em respon sabilidade. O homem é responsável pela maneira 295
como írása a natureza. É impressionante a falta de consideração que o homem moderno tem da sua responsabilidade em relação a este mundo. Encon tra diante de si um mundo repleto e transbordante de maravilhosos materiais e forças e sem hesitação ou escrúpulo lança mão de tudo o que estiver a seu alcance. Onívoro em seus desejos, ilimitado em seus esforços, persistente em seus objetivos, o homem está progressivamente mudando a face da terra. Parece não haver ninguém que negue ou desafie a sua eminência. Iludidos por esta apa rente grandeza, nem sequer pensamos se há um fundamento para nosso suposto direito de possuir nosso universo. Nossos caprichosos desejos e im pulsos, por naturais que sejam, não constituem ne nhum título de propriedade. Esquecidos disso, con sideramos nosso direito como coisa evidente e lan çamos nossas mãos sobre tudo, sem jamais nos per guntarmos se isso não é rapina. As centrais elé tricas, as fábricas, os supermercados familiarizam-nos com a exploração da natureza em nosso proveito. Enganados pela familiaridade, a armadilha invisível da mente, facilmente nos entregamos à ilusão de que estas coisas estão à nossa disposição e pouco pensamos que o sol, a chuva, os cursos d’água, de forma alguma são fontes de recursos de nosso di reito. Só despertamos da nossa ilusão quando ines peradamente somos colocados diante de coisas ob viamente fora do alcance do poder ou da jurisdição humana, tais como as montanhas ou os oceanos ou acontecimentos incontroláveis como a morte súbita, terremotos ou outras catástrofes. Na realidade o homem não tem poderes ilimi
tados sobre ea osterra, assimNão como os tem sobre as estrelas ventos. temnão poder completo nem sequer sobre si mesmo. Em sentido absoluto, nem o mundo nem sua própria vida lhe pertencem.
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E nas coisas que consegue controlar mais ou menos, o que controla não é a essência, mas apenas a apa rência,olhos comodescobertos é evidente uma para flor quemou quer olhe com umaque pedra. Surge, então, a interrogação: Quem é o senhor? Quem é o dono de tudo o que existe? “A terra é do Senhor” . O homem piedoso olha as forças da natureza, os pensamentos da sua própria mente, a vida e o destino como propriedade de Deus. Este modo de ver orienta a sua atitude em relação a todas coisas. murmura as ocalami dades as caem sobreNão ele ou quandoquarido o invade deses pero. Sabe que tudo na vida é de interesse divino, porque tudo o que é, é posse divina. Um sçflom perpétuo compreende, que tudo Oo homem que possapiedoso ter à sua disposiçãotambém, lhe foi dado de presente. Há uma diferença entre uma posse e um presente. Posse é isolamento. A própria pala vra exclui os outros do uso do objeto possuído sem o consentimento do possuidor, e aqueles que insis tem na posse em última instância perecem na auto-excomungação e isolamento. Por outro lado, ao receber um presente, quem o recebe, obtém, além do presente, também o amor do doador. Um pre sente é um vaso que contém a afeição que se des faz assim que o recebedor começar a considerá-lo como uma propriedade. O homem piedoso afirma que tem um presente perpétuo de Deus, pois em tudo o que lhe acontece sente o amor de Deus. Em todas as mil e uma experiências que constituem
o seu dia está consciente deste amor que intervém na sua vida.
'A O
- O homem não está só
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O sentido do sacrifício O homem comum tem a tendência de na nãovida. ver nenhuma indicação da presença do divino Na sua presunção e vanglória considera-se como o dono. Isso é um sacrilégio para o homem piedoso e o seu método de proteção contra tal alucinação é a ascese e o sacrifício. Liberta-se de toda idéia de ser dono, desistindo, por causa de Deus, de coi sas que são desejadas e apreciadas e privando-se, por causa dos outros que necessitam da sua ajuda, de coisas que são valiosas para ele. Portanto, sacri ficar não é abandonar o que nos foi dado, lançar fora os dons da vida. É, pelo contrário, devolver a Deus o que dele recebemos, usando-o a seu ser viço. Assim, dar é uma forma de agradecer. Tanto a autodesapropriação como o ofereci mento são elementos essenciais do sacrifício. O mero oferecimento sem a autodesapropriação seria sem participação pessoal e facilmente poderia cair num ato ritual superficial em que o aspecto me cânico é mais importante que o aspecto pessoal. Terminaria na exteriorização e perfunctoriedade do sacrifício, como tantas vezes aconteceu na história da religião. Por outro lado a autodesapropriação sozinha tende a fazer da ascese um fim em si mes ma e se transforma em fim em si mesma perde sua relação com Deus. A verdadeira ascese não é apenas privar-nos a nós mesmos, mas dar a Deus o que é valioso para nós. A pobreza tem sido um freqüente ideal dos homens piedosos. Mas um homem pode ser pobre de bens materiais e agarrar-se ainda mais tenaz mente às suas ambições e bens intelectuais. A mera
pobreza por si mesma não é um bem, pois a amar gura da pobreza, muitas vezes, perturba o equilíbrio dos valores no caráter humano, enquanto o gozo 298
dos dons de Deus pelo homem justo lhe dá forças para servir e meios para dar. O objetivo do sacri fício não está na autopauperização como tal, mas em entregar todas as aspirações a Deus, criando assim um lugar para ele no coração. Além disso, é uma imitatio Dei, pois é feito segundo a maneira do Doador divino e lembra ao homem que ele é criado à semelhança do divino, sendo assim rela cionado a Deus. *
A afinidade com o divino Mas isso apresenta outro problema. Como de vemos entender esta afinidade do homem com o divino? Um indício da afinidade do homem com Deus é a sua persistente aspiraçíto a ir além de si mesmo. O homem tem a capacidade de dedicar-se a um fim superior, a possibilidade de uma von tade de servir, de dedicar-se a uma tarefa que está acima dos seus próprios interesses e da sua própria vida, de viver por um ideal. Este ideal pode ser a família, um amigo, um grupo, a nação, como tam bém a arte, a ciência ou o serviço soci al. Em mui tas pessoas esta vontade de servir é suprimida, mas no homem piedoso desabrocha e floresce. Em mui tas vidas esses ideais parecem becos sem saída, mas no homem piedoso são passagens que conduzem a Deus. Se tais ideais se converterem em ídolos, fins em si mesmos, aprisionarão e cercarão a alma. Mas para o homem piedoso são aberturas que deixam entrar a luz desde longínquas paragens para ilumi nar muitos pormenores insignificantes. Para ele os
ideais tino . são passos na caminhada, mas jamais o des
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O tesouro de Deus Finalmente, a piedade é fidelidade à vontade de Deus. Quer seja entendida ou não, esta von tade é aceita como boa e santa e obedecida na fé. A vida é um mandato e não o usofruto de uma renda; uma tarefa e não um jogo; uma ordem e não um favor. Ao homem piedoso a vida nunca se apresenta como uma cadeia fatal de acontecimen tos que seguem necessariamente um ao outro, mas como uma voz que traz um apelo. É um fluxo de oportunidades de servir. Cada experiência é um sinal para um novo dever. Assim tudo o que en trar na vida constitui para ele um meio de renovar a devoção. Portanto, a piedade não é um excesso de entusiasmo. Significa a decisão de seguir um rumo de vida definido, em busca da vontade de Deus. Todos os pensamentos e planos do homem piedoso giram em torno desta preocupação. Nada consegue distraí-lo ou afastá-lo do caminho. Todo aquele que parte para este caminho não tardará a aprender quanto é imperioso o espírito. Sente-se obrigado a servir e ainda que, algumas vezes, possa tentar fugir, a força desta necessidade inevitávelmente o fará voltar ao caminho certo, à procura da vontade de Deus. Antes de agir, pára a fim de pesar os efeitos do seu ato na balança de Deus. Antes de falar, considera se suas palavras lhe serão agradáveis. Desta maneira, no domínio de si mesmo e com sincero esforço, com sacrifício e sinceridade, mediante a oração e a graça, avança no seu caminho. Para ele o caminho é mais importante que a meta. Seu destino não é realizar, mas contribuir e sua von
tade preocupação de servir caracteriza todo odeseu procedimento. Sua com a vontade Deus não se limiao ao campo das suas atividades. Seu grande desejo é colocar toda a sua vida à disposição de Deus. É
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nisso que encontra o verdadeiro sentido da vida. Sentir-se-ia infeliz e perdido sem a certeza de que a sua vida, por mais insignificante que seja, tem uma finalidade no grande plano e sua vida recebe novo valor ao sentir-se engajado na realização de objetivos que o afastam de si mesmo. Desta ma neira sente que em tudo o que faz está subindo, degrau após degrau, uma escada que leva à reali dade suprema. Ajudando uma criatura está ajudan do ointeresse Criador.deSocorrendo a um pobre, trata de um Deus. Admirando o bem, reve rencia o espírito de Deus. Amando o que é puro é atraído para ele. Promovendo o que é justo, está encaminhando as coisas em direção à sua von tade, em que devem terminar todos os fins. Subin do por esta escada, o homem piedoso atinge o es tado do esquecimento de si mêSmo, sacrificando não só seus mas também sua vontade, pois percebe que desejos, o que importa é a vontade de Deus e não a sua própria perfeição ou salvação . Assim, a glória da dedicação do homem ao bem se trans forma num tesouro de Deus na terra. Nosso destino
éservir
O maior problema não é como continuar, mas como exaltar nossa existência. O anseio por uma vida além da sepultura é presunçoso se não houver um anseio de vida eterna antes da descida à se pultura. A eternidade não é um perpétuo futuro, mas um perpétuo presente. Ele plantou em nós a semente da vida eterna. O mundo do futuro não
é só Nosso um depois mas também um aqui, agora. maiordaqui, problema não é como continuar, mas como voltar. “Como poderei retribuir ao che116,12). Quando a vida é uma resposta, a morte
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é unia chegada em casa. “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos” (Sl 116,14). Porque nosso maior problema é apenas uma resso nância da preocupação de Deus: Como poderei re tribuir ao homem toda a sua generosidade para co migo? “Pois a misericórdia de Deus permanece para sempre ” . Este é o sentido da existência: reconciliar a li berdade com o serviço, o passageiro com o perma nente, entrelaçar os fios da temporalidade no tecido da eternidade. A mais profunda sabedoria que o homem pode alcançar é saber que seu destino é ajudar, servir. Temos que vencer para sucumbir. Devemos adqui rir para dar. Devemos triunfar para sermos subju gados. O homem deve entender para crer, conhe cer para aceitar. A aspiração é ter, mas a perfeição é dar. Este é o sentido da morte: a suprema dedi cação de si mesmo ao divino. Assim entendida, a morte não será distorcida pelo desejo da imor talidade, pois este ato de entregar é reciprocidade da parte do homem pelo presente da vida dado por Deus. Para o homem piedoso morrer é um privi légio .
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ÍNDICE
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Apresentação
I . O Problema de Deus 15
1. O SEN TIDO DO INEFÁ VE L A consciência da grandeza, 15 — O sentido do inefável, 16 — O encontro com o inefável, 17 — Existe alguma via de acesso à essência?, 17 — A dispari dade entre alm ^ e ra zão , 19.
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2. A ADM IRAÇÃO, BASE DO CON HECIMEN TO Razão com a razã o, A raiz
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e admiração, 22 — A filosofia começa admiração, 24 — O mistério dentro da 25 — Experiência sem expres são, 27 — da razão, 28.
3. O MU ND O É UMA ALUSÃO Uma introspecção 29 —alusivo Uma percep ção universal, 29 cognitiva, — O caráter do ser, 32.
34
4. SER É SIGN IFICA R A universalidade da reverência, 34 — A reve rência — um imperativo categórico, 36 — A Signif icaç ão fora da mente, 37 — Suposição
e
certeza de A ciência — uma entrada no significação, infinito, 39 38——Todo conhecimento é apenas uma partícula, 40 — Será o i nefáve l uma ilusão, 42.
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5. CONHECIMENTO POR APRECIAÇÃO Uma percepção no fim da percepção, 44 — O modo da uti lidade, 45 — 0 dese jo do mara vi lhoso, 46 — O mundo como objeto, 47 •—• Estará o mundo à mercê do homem?, 48 — Cantamos por todas as coisas, 50.
51
6. UMA INTERRO GA ÇÃO QUE TRAN SCENDE AS PALAVRAS Não sabemos perguntar, 51 53 —— ParãSouquê? Por quê?, 52 como — Quem é “eu”?, o que não sou, 56 —• Não há sujeito para inter rogar, 56.
58
7. O DEU S DO S FILÓSOFO S Deus como problema especulativo, 58 — Será a ordem a coisa mais importante?, 61 — Filo sofia da religião, 62.
64
8. A QU ESTÃO
SUPREMA
O que a admiração suprema dá ao homem, 64 — A religião começa com o sentido do inefável, 65 — A questão suprema, 66 — A situação que determina a interrogação, 68 — Além das coi sas, 69 — Uma presença espiritual, 71. 73
9. NA PRESEN ÇA D E DEUS D a Su a presença é Sua ess ência , 73 — A au rora da fé, 74 — O que fazer com a admiração, 74 — Quem é o enigma? 76 — Interrogação invencível, 77 — Em busca de uma alma, 78 — A premissa da glorificação, 80 — Deixemos a intuição acontecer, 81 • — D eu s está solicitan do
o homem, 82 — A invasão da grande realidade, 83. 86
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10 . DÜ VID AS
91
1L. A FÉ A fé não é um atal ho, 91 — Caminhos d a fé, 92 — Alguns de nós e nrube sce m, 94 — A pro va da fé, 96 — Um ato do espírito, 98.
101
12. O QUE EN TEN DE M OS POR D IVIN O O perigo das palavras, 101 — Padrões de ex pressão, 103 — O que entendemos por divino, do 104 universo, — O atributo 107 da — perfejção, Fraternidade 105 cósmi — A idéia ca, 108 — O reino do ser e o reino dos valores, 109 — O uno não é Deus, 111.
115
13. UM D EU S A atração do pluralismo, 115 — A unidade como objetivo, 116 — Não se né§a a pluralidade, 117 — Para onde irei, 118 — Escuta, ó Israel, 119 •— U m significa único, 121 — Um significa so mente, 123 — Um significa o mesmo, 123 — O bem e o mal, 125 -—Ele é tudo em toda parte, 127 — A unidade de Deus e a unidade do mundo, 129.
130 14. DEUS É O SUJEITO O “eu” é um “algo”, 130 — O pensamento de D eu s não tem fachada, 132 —- A visão de D eus sobre o homem, 134 — Deus é incognoscível?, 135 — Nosso conhecimento é uma alusão, 137 ■— Con hecimen to o u enten dime nto, 138 . 140
15. O IN TE R ES SE D IVIN O O problema da existência, 140 — Vida é preo cupação, 141 — Preocupação transitiva, 142 —
As três dimensões, 144 — A necessidade de esquec er-se a si mesmo, 145 — Libe rda de é êxtase espir itua l, 146 •—■ O in teresse divino, 148 — Expressão contínua, 149 — A civilização pen
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dente de um fio, 151 — Compaixão, 153 — Manifestação e ocultamento, 155. O DEUS QUE SE OCULTA ALÉM DA FÉ O perigo da fé, 164 — Crer é lembrar, 166 — A fé como recordação individual, 169 •— Fé e crença, 170 — Fé e credo, 172 — A idola tria dos dogmas, 174 — São os dogmas desne cessários?, 174 177 — — Fé Fé e razão, 175 — “179 Dá-nos conhecimento”, é reciprocidade, — Religião é mais que vida interior, 180.
I I . O Problema da Vida O PROBLEMA DAS NECESSIDADES D a admiraç ão à piedade, 185 — O problema do neutro, 186 — A experi ência das necessida des, 187 — A v ida •— um aglomerado de ne cessidades, 188 — A inadequação da ética, 189 — O peri go da vida, 191 — A s necess idade s não são santas, 192 — Quem conhece suas reais necessidades?, 193 — Necessidades verdadeiras e necessidades falsas, 195. O SENTIDO DA EXISTÊNCIA A inconsciência favorita do homem, 198 — O sentido da existência, 199 — A suposição su prema, 200 — O homem não é fim de si mes mo, 200 — O homem existe por causa da so ciedade?, 202 — O auto-aniquilamento do de sejo, 204 — Em busca do per mane nte , 205 —
Desesperada 205 — O que é a exis tência, 206 ansiedade, — A temporalidade da existência, 207 — O caráter ininterrupto da existência , 208 — O segr edo da existên cia, 2 09 ■— Se r é obe-
decer, 210 — A meta suprema, 211 — Tempo e eternidade, 212. 215
20. A ESSÊ N CIA DO HOM EM A unicidade do homem, 215 — Nas trevas da potencialidade, 217 — Entre Deus e os animais, 218 — Acima das nossas nece ssi dades, 220 — Quem tem necessidade do homem?, 221.
22 4
21.
O PRO BLEM A DO S FIN S .^ Necessidades biológicas e culturais, 224 — O mito da auto-expre ssão, 225 — O bjetivo s e ne cessidades, 226 —■ O erro da pan-ps icologi a, 228 — A consciência do bem e do mal, 230 — A arma secreta de Deus, 231 — A vida é tridi mensional, 233. %
235
22 . O QUE É A R EL IGIÃ O Com o estudar a rel igião, 235 — É a religião uma função da alma?, 237 — Magia e religião, 239 — O lado objetivo da religião, 241 — Não há ne utral idade, 242 — ■ A dimensão s agra da, 243 — A piedade é a resposta, 244 — A mo déstia do espírito, 245.
247
23 . D EFINIÇÃ O DA R ELIG IÃO JUD AICA Deus tem necessidade do homem, 247 — O pathos divino, 250 — “O que deseja Deus?”, 251 — A neces sidade r eli gios a, 252 — O s fins descon hecido s, 25 4 ■— A tran sform ação dos fin s em necessidades, 256 — O prazer das boas ações, 257.
25 9
24 . O GR AN DE AN SEIO
O ans eio por uma vida esp iritual , 259 —■ A nobre nostalgia, 260 — Descontentamento per pétuo, 263 — Aspirações, 265.
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UMA NORMA DE VIDA Os objetivos nem supremos não têm268 voz,—267Espírito — Neme divinização aviltamento, carne, 269 — Na vizinhança de Deus, 271 — O Santo dentro do corpo, 272 — Não sacrifi car mas santificar, 274 — Viver dentro de uma ordem, 276 — A totalidade da vida, 276 — O não-heróico, 277 — A autoridade interior, 277. O HOMEM PIEDOSO O que é piedade?, 279 — Método de análise, 280 — Uma atitude do homem todo, 282 — A única vida digna de ser vivida, 283 — O anonimato interior, 285 — Não é um hábito, 285 •— Sabedoria e piedade, 286 — Fé e pie dade , 287 — N a presença de Deu s, 288 ■— Deus está entre o homem e o mundo, 289 — Uma vida em harmonia com a presença de Deus, 289 — O valor da realidade, 290 — Uma ati tude em292relação à realidade total, Reve rência, — Gratidão, 293 — Os 292 atos — comuns são aventuras, 294 — Responsabilidade, 295 — Um dom perpétuo, 297 — O sentido do sacri fício, 298 — Afinidade com o divino, 299 — O tesouro de Deus, 300 — Nosso destino é servir, 301.