A terapia musical no candomblé Rosa Maria Susanna Barbara USP/Pós Graduação em Sociologia
Trabalho apresentado no seminário temático ST08 "Experiências religiosas e novas espiritualidades". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina São Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998 st08-4.
“Possui verdadeira música em si só aquele que compõe uma sinfonia afinando a harmonia do corpo com aquela da alma” Platão, Timeo, IX, 591 d.
Em vários lugares do mundo a música e a dança dominam todo o universo do ritual. Apesar de vários estudos terem relatado o papel e a importância da música e da dança no ritual do candomblé (Barbára, 1995; Behague, 1978, 1984; Cossard-Binon, 1967, 1981; Lody, 1995; Luz, 1995; Lunhing, 1990; Martins, 1995; Omari, 1990; Segato, 1995) falta uma análise aprofundada sobre o tema. Um estudo que abordou a função da dança e da música no ritual e a ligação entre elas foi feito pelo antropólogo antropó logo De Martino e o etnomusicólogo Carpitella, Car pitella, que no final final dos anos 50 analisaram o tarantismo. O tarantismo foi um fenômeno observado até os anos 60 no sul da Itália, embora segundo pesquisas recentes ainda pode ser encontrado nos dias contemporâneos (Di Lecce, 1997) em Puglia, uma região da Itália do sul. Segundo a tradição, em momentos específicos do ano, uma tarântula (existem vários tipos dela na região) mordia os camponeses, na maioria as mulheres, mas também os homens, usualmente nas mãos, nos pés ou no púbis. As pessoas mordidas caíam em um estado catatônico, que encontrava solução num ritual corêutico 1-musical -musical que era organizado organizado em época preestabelecid preestabelecidaa na capela capela de São Paulo em Galatina. O ritual previa um longo módulo corêutico-musical com a presença de um simbolismo onde são A palavra coreutica vem do verbo grego, xopeuo= dançar em circulo e dà palavra texne= arte, tecnica. Quer dizer a arte de dançar em circulo. 1
1
enfatizados pelos participantes os movimentos e os comportamentos da tarantula, tendo também papel fundamental as cores. Procurando abordar a complexidade do fenomeno do tarantismo De Martino desenvolve uma analise que aborda varias dimensões: a historico-religiosa, a social, a psicologica e a psiquiatrica, conduzendo a pesquisa com uma equipe multidisciplinar. O ritual do tarantismo pode ser definido como “terapêutico 2” na interpretação feita por De Martino. As conclusões de De Martino oferecem hipoteses importantes para pensarmos a função da música e da dança em rituais públicos, em particular na sua dimensão psicologica - terapeutica. Segundo ele, o modelo corêutico-musical servia como uma técnica protetora em um quadro magicoreligioso, funcionando como meio de proteção contra as crises através do acionamento de modelos tradicionais de gestos, sons, figuras corêuticas, ritmos e melodias. Além
disso funcionava como
instrumento de evocação e de controle socialmente admitidos e operantes cada vez que percebia-se a crise do tarantismo. De Martino trabalha com a relação entre crise e som no ritual. Para ele a crise é o momento em que a tarântula toma posse do corpo e deixa o indivíduo em um estado descrito como catatônico ou de grande agitação. Para ser resolvido esse estado tem que ser inserido num contexto ritual onde a música desenvolve o papel da organizadora da desordem e a dança expressa a ordem. Nesse estudo utilizamos algumas das suas observações para a investigação da dimensão terapêutica do candomblé. Entendemos que no candomblé pode-se pensar a crise enquanto chamado do orixá que promove a suspensão da identidade cotidiana. Seguindo as indicações da música que prepara culturalmente o fiel a ser possuído, as iniciadas resolvem “terapeuticamente” a crise, deixando o orixá dançar no seu corpo ao longo do ritual. Durante o fenômeno do transe, o corpo da filha ou filhou-de santo
torna-se o próprio orixá superando a dicotomia corpo/espirito, forma/conteúdo.
Objetivo desse artigo é mostrar a ligação que une a música e a dança na resolução da crise no contexto do ritual, oferecendo uma resolução que prevê a suspensão da identidade cotidiana para dar espaço a uma nova, a identidade do orixá. Essa ligação nos leva a considerar a experiência do corpo, fundamental na construção da nova identidade religiosa e na transformação da doença e do sofrimento em fundamento pessoal.
QUANDO O CORPO FALA O candomblé é uma religião fundamentada sobre crenças em divindades chamadas orixás e sobre a procura do encontro com o sagrado via o fenômeno da possessão. O transe no candomblé, como diz Prandi: "... pelos menos em suas primeiras etapas iniciáticas, é experiência religiosa intensa e profunda, pessoal e intransferível. Como a dor e as paixões não-religiosas experimentadas, não pode ser mensurado nem descrito, a não ser metaforicamente e indiretamente" (Prandi, 1991: 171). 2
Terapeutico no sentido que tem uma resolução à momento da crise, da chamada do orixá.
2
Segundo a filosofia do candomblé, o homem deve estar em contato contínuo e harmônico com a natureza, que fala aos mortais através de vários tipos de mensagens e através das suas vibrações captadas pelo corpo. Os seus ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua, fundamental para a aprendizagem esotérica, que começa desde os primeiros contatos com o terreiro e continua ao longo da vida toda. Tendo como base o contexto cultural holístico do candomblé, o corpo está diretamente relacionado a uma divindade e, por extensão, a um dos elementos naturais primordiais e aos demais elementos a ele associados, como relatam Barros e Teixeira (1992: 43). O corpo é percebido como uma das manifestações das divindades e por isso sagrado e construído segundo padrões culturais ao longo do caminho religioso e da iniciação, quando necessária. Sendo, para a filosofia do candomblé, o corpo humano uma cópia das formas e das energias do cosmo, os próprios elementos (ar, água, terra, mata e fogo 3) juntam-se segundo arquétipos 4 diferentes. As palavras de Pelosini (1994:94) aplicam-se bem a essa concepção do corpo humano: “...o universo (macrocosmo) e o homem (microcosmo) são criaturas similares, que obedecem às mesmas leis como um tipo de fantástico e perfeito relógio cósmico que marca com harmonia os ritmos universais". Assim cada parte do corpo tem um significado simbólico: a parte frontal é relacionada ao futuro e ao orixá dono-da-cabeça, enquanto a parte posterior é relacionada ao passado. O lado direito é ligado aos ancestrais masculinos enquanto o lado esquerdo aos ancestrais femininos. Cada parte está relacionada a um orixá em particular e as aberturas do corpo a Exu 5. As orelhas, por exemplo, sendo orifícios são defendidas com argolas pingentes que balançando produzem um barulho que afasta os influxos negativos. As palmas das mãos e as solas dos pés são pontos em que pode-se perder energia e recebê-la. Por isso na presença das divindades os fiéis viram as palmas de frente para elas. Cada parte do corpo corresponde a uma divindade. A cabeça é fundamental porque é a sede do orí 6 que contem o odú, o destino pessoal. "Para os iorubás a cabeça é a parte mais vital do corpo humano: contem o cérebro, a morada da sabedoria e da razão; os olhos, a luz que ilumina os passos do homem pelos labirintos da vida, o nariz que serve como uma espécie de ventilação da alma; os ouvidos com os quais o homem escuta e reage aos sons, e a boca com a qual ele come e mantém o corpo e a alma juntos. " ( Babatunde Lawal, 1983: 46). De fato existe um dito iorubá que diz: "Ori buruku, kossi orixá" ou seja "cabeça não equilibrada não dá orixá".
O fogo não é considerado uma substancia prima, mas uma conseqüência do ar em movimento. A palavra arquétipo não é usada como termo da psicologia junghiana, mas em um senso mais genérico. 5 É interessante relatar o fato que Exu junto com Ogum é o guardião das entradas e das saídas como pode-se observar numa fotografia de Verger que mostra um assentamento de Ogum que evidencia entre os seus instrumentos uma chave. (1981:109). O corpo humano possui também entradas e saidas, lugares onde entram as energias boas, como a comida e outros onde expelir-se os dejetos. 6 Para os iorubanos, o ori tem status de divindade e recebe cultos complexos. No Brasil, o rito de dar comida à cabeça preservou-se como primeira etapa da iniciação e é "O culto à individualidade do homem, à cabeça, o que está dentro da cabeça. O ritual de dar comida a cabeça é o bori" (Prandi, 1991: 124) . 3 4
3
Senhora da cabeça, é Iemanjá que harmoniza as energias positivas e negativas e por isso numa das suas coreografias dança levando alternativamente as mãos a frente e atrás da cabeça. Iemanjá executa a função de orientar e de equilibrar seus filhos. Ela protege também os seios, por ser a Mãe por excelência e por isso ocupa-se da nutrição dos seres humanos. Uma lenda conta da exuberância do seu corpo e dos seus seios, dos quais um é maior que o outro. O ventre, sede dos órgãos sexuais, e o útero são protegidos por Oxum, por exemplo. As cadeiras também são uma área sagrada do corpo humano: a bacia e as nádegas representam a fertilidade 7. Ogum, o dono dos caminhos, é o dono dos pés, do movimento, da vida que continua. A voz do orixá é o ke ou o ilá, um grito que é emitido só ao longo do transe. Esse grito é o símbolo da individualidade, é a energia daquela pessoa; é o som criador e individual que testemunha a identidade daquela filha ou filho. Os olhos são muito importantes, porque conforme as palavras de algumas mães-de-santo: "nos falam do orixá daquela pessoa". Ao longo da pesquisa percebi o olhar diferente das mães-de-santo em varias ocasiões: durante a adivinhação o olhar parece suspenso, enquanto ao longo do transe, os olhos estão fechados indicando que a atenção é voltada para o interior do corpo, para uma outra dimensão, a do espirito, segundo a filosofia iorubá e conforme a pesquisa de campo. O corpo no candomblé é o templo do sagrado por excelência, é sagrado porque é vivo, vida expressa através da motricidade que experimenta o espaço e o tempo e que comunica aos outros, aos fiéis, à comunidade, expressando assim o conceito central da filosofia da existência africana “Eu sou porque você é”, conceito que sublinha a importância de cada um na comunidade e o encontro harmônico com o outro 8. O corpo pode ser considerado um vaso que contem o orixá, algo de muito precioso que "manda em nos", conforme as falas das entrevistadas. Eis o porque da forma das quartinhas que lembram o corpo das mulheres 9 que segundo alguns informantes africanos teriam uma facilidade a ser possuídas. No momento da possessão a postura do corpo muda completamente, o rosto adquire uma expressão fechada, as vezes os lábios são empurrados para frente, os olhos são fechados, a figura humana tremendo, adquire para as iabás da água 10 uma postura “mais redonda” no sentido que os cotovelos são alargados a altura do busto que é levemente dobrado para o baixo, e para os orixás guerreiros, Ogum e Xangô mais reta; mais voltada para o céu para as divindades mais jovens, Ogum, Oxossi e Iansã e mais dobrada para o chão para as divindades velhas, Nana e Obaluaié.
O corpo das mulheres é representado em várias estatuetas encontradas na Nigeria, sentado, como aquela de Íside, e é simbolicamente um trono, onde a criança senta no colo da mãe ou o fiel senta no colo do orixá. Iside era uma antiga divindade egipcia. Famosa maga era consagrada ao culto da lua, foi a esposa e a irmã de Osiride. 8 Ciclos de aulas sobre etnomusicologia africana ministradas na Pós-Graduação da USP por o Prof. Kasadi wa Mukuna. (São Paulo, 1997) 9 Em área mediterranea existem muitos vasos de bairro com uma forma idêntica aquela do corpo das mulheres, com vários seios ou com olhos pintados. (Museo Pitré. Museo etnografico del popolo siciliano. Palazzina cinese, Palermo, Italia) 10 As iabás da água são os orixás femininos Oxum e Iemanjá 7
4
O TRANSE E A IDENTIDADE FEMININA Na visão do candomblé, com a iniciação as mulheres 11 recuperam uma identidade natural e social perdida por varias causas12 que é o fundamento ou melhor a tradição religiosa e que estava presente desde o nascimento. Esta é inscrita no corpo, construído ritualmente através de longas etapas de aprendizagem e incorporação dos fundamentos da vida religiosa. A medida em que o filho-de-santo vai avançando nos passos de sua iniciação, estará também ingressando numa ordem sócio-cosmológica, onde o corpo e suas sensações ocupam lugar de destaque (Brito Polvora, 1995). O processo de construção de um filho-de santo
se dá basicamente pelos rituais nos quais o sujeito terá impressos “os sinais” desta iniciação no
corpo (Barros e Teixeira, 1992), já que será no e através deste que se inscrevem tais rituais. Segundo os contos das novas iniciadas, o chamado do orixá acontece em várias formas: sonhos, sensações, visões, doenças estranhas que não são confirmadas pela medicina tradicional e em geral um sofrimento psíquico ou físico que manifesta-se de um dia para o outro sem uma explicação certa. Nas falas das mulheres percebe-se uma dicotomia na vivência das emoções, existe um “dentro” do corpo e um “fora” do corpo. Um dentro rico e tumultuado e um fora neutro. De um lado as mulheres explicitam as suas emoções, mas só aquelas que são aceitas no cotidiano e na lógica do grupo; do outro, praticam ritos que lhe dão a liberdade para abrir outras possibilidades expressivas sobre um mundo emotivo que, para poder ser expresso, tem que encontrar modalidades que fogem ao controle do tempo e do espaço do cotidiano. As profundas emoções subjetivas são incorporadas e veiculadas no corpo e sobre o corpo. Na convivência com as filhas-de-santo e nas longas conversas com elas percebe-se a profundidade e a ambigüidade do mundo feminino cheio de desejos, de emoções quase sempre secretas e não atendidas, algo de incontrolável. Segundo algumas mães-de-santo o corpo feminino é um corpo mais acessível as energias externas pela própria característica do ser mulher: é um corpo "aberto" que deixa a mulher, mensalmente aberta, ao longo da menstruação e ao longo da gravidez. Essas experiências tão femininas são momentos nos quais as mulheres são particularmente sensíveis e têm seus corpos transformados, acompanhando obrigatoriamente os ritmos da natureza. Conforme a pesquisa, as iniciadas esperam o momento de ser recolhidas, momento nunca falado antecipadamente, com ar deprimido, tocando a cabeça como para mostrar dor e se lamentando, ou 11
Neste artigo são mencionadas as mulheres em prevalência, porque no terreiro onde foi desenvolvida a pesquisa, o Ilé Axé Opô Afonjá fundado no 1910, a maioria dos fiéis iniciados são mulheres, como foi instituído pela fundadora do terreiro, Mãe Aninha. Mas também nos outros terreiros ha uma grande prevalência de mulheres que participam da roda sagrada. 12 A iniciação tem a função de re-aprosimar a filha ao próprio orixá. Por algum motivo a antiga ligação com o duplo divino quebrou-se e a divindade pretende a cabeça da sua filha. Simbolicamente com a iniciação a filha nasce novamente, no santo, forte no seu orixá, deverá assim reaprender a viver. Periodicamente receberá o próprio orixá nos rituais ou em qualquer momento o orixá queira.
5
deitadas na esteira, não podendo se levantar mais pelas vertigens. É como se o mundo interior das emoções, que por muito tempo esteve fechado, saísse prepotentemente fora do seu lugar e conseguisse tomar conta do corpo sem limites. É muito comum, de fato que as iniciadas devam abandonar o trabalho enquanto esperam a data da iniciação. Segundo a observação da vida no terreiro e as falas das filhas-desanto percebe-se o corpo das mulheres como fragmentado. As experiências da vida, o casamento, os filhos, a falta de trabalho comprometem o fluir das emoções e o mundo interior pretende sair e se mostrar ao lado exterior, o mundo. De um lado as mulheres vivênciam esse corpo externo que não expressa as emoções e que vive o mundo rotineiramente, atuando numa gestualidade cotidiana; do outro se encontram no terreiro e contam as sensações do próprio corpo e as dores com metáforas muitos fortes como: “a cabeça tomou fogo!" "Naquele momento senti uma corrente correr por baixo da pele!" "Estava ai esperando o ônibus e a terra rodava, parecia de estar sobre um barco! É uma sensação de arrepiar!”. Nas entrevistas apareceu um mundo fantástico e em movimento que agita-se no corpo das mulheres e que com grande dificuldade pode ser expresso com palavras e ser entendido por aquele que não o experimentaram. Por isso as percepções vivenciadas separam, conforme as falas das entrevistadas, o mundo dos do candomblé daquele “de fora da seita”, divisão muito forte para os fieis. A iniciação dá um sentido a essas experiências e inscreve o corpo com uma própria identidade subjetiva na ordem cosmológica e social através da transformação dessas sensações e através da inversão do espaço e do tempo cotidiano. As sensações da vida são experiências valorizadas que são transmitidas e são faladas num contexto ritual em que ao corpo e as suas percepções é permitido um lugar de destaque na cerimônia religiosa. O ritual religioso repete um padrão idêntico: as forças, as energias penetram, do exterior, no corpo feminino; pode ser através da mordida da aranha, no caso do tarantismo, ou da energia do orixá ou de uma outra divindade conduzindo a uma experiência existencial que dá à mulher um novo fundamento para a própria história pessoal e social. Muitas vezes ouvi, de fato, as iniciadas dizer: "Eu tinha que passar por isso, para aprender!". Com a iniciação dá-se a transformação das experiências interiores, do sofrimento, da dor em paz ou pelo menos alivio e equilíbrio através duma nova história pessoal e social que todas as mulheres incorporam nos seus próprios corpos, como uma sorte de memória secreta que só aqueles que vivenciam a mesma coisa podem perceber.
6
A iniciação que como relata Prandi: "consiste, pois, em etapas de aprendizado ritual, por parte da filha-desanto e em estágios de adensamento da sacralidade do orixá particular desta iniciada" 13 (1991: 171) e o desenvolvimento de uma nova identidade permite a experiência e a orientação de emoções subjetivas a ser orientadas no mundo exterior. O corpo aprende assim a lidar com essas emoções e a conduzi-las sempre mais até ser “fechado”, num sentido de não se deixar mais invadir e assim dirigir a própria vida no mundo.
A DOENÇA E O SOFRIMENTO NO CANDOMBLÉ A noção de saúde no candomblé é algo de muito complicado a ser entendido, tem a ver com o lado espiritual, físico, psicológico, cosmológico e social, é uma experiência holística que o fiel é chamado a vivenciar. Sendo os rituais voltados para a reconstrução da antiga ligação entre o aiê, a terra e o orum, o mundo dos orixás, a doença física ou psíquica é na maioria das vezes, o sinal de uma falta de ligação, de uma desordem com o mundo espiritual, como por exemplo uma pessoa feita raramente deve deixar de tomar conta do seu orixá, porque a divindade pode mandar um problema físico específico para sinalizar que a comunicação com ela foi interrompida. A chamada do orixá e a seguinte entrada na religião pode acontecer por vários motivos: por herança familiar, pelo sofrimento, pelo amor, como relatam as mães-de-santo. Na categoria do sofrimento estão as doença cujas causas podem ser: 1) A doença como pedido da divindade que quer ser feita. As vezes aparecem doenças estranhas que a medicina oficial não sabe explicar e cuidar e que somem com o desenvolver das cerimonias, obrigações.
Os iniciados contam claramente que tem uma grande diferença entre o “antes” e o
“depois” da iniciação. 2) Vários problemas de ordem econômica, afetiva ou de saúde, etc. podem acontecer caso o iniciado se afaste do seu santo, no sentido de não cuidar mais dele. O santo deixa seu filho só e sem proteção. 3) No caso de ser tido fixado na cabeça do filho um santo errado. 4) No caso do encosto de Egum , quer dizer que uma pessoa é carregada da energia de um espirito de um morto. 5) No caso de estar com o corpo aberto, como durante a menstruação, causa que permite uma perda de axé, energia, o que configura uma situação de vulnerabilidade.
6) No caso do mal olhado: muitas vezes a inveja pode afetar através do olho grosso, uma capacidade, que poucas pessoas tem, de passar influências negativas através do olhar. Ao mesmo tempo existem algumas doenças como aquelas de pele ou distúrbios digestivos que são tratadas a nível farmacológico, com base em um profundo conhecimento de plantas medicinais, ministradas através de chás ou banhos de ervas. 13
O respeito que se tem por um santo velho, “feito” há mais tempo, é bem maior que aquele devido a um orixá mais novo
7
A IDENTIDADE SONORA INDIVIDUAL E A DO ORIXÁ Segundo as lendas a divindade suprema dá a vida ao homem através do sopro, emí , por isso o candomblé pode ser considerado uma religião pneumática 14, quer dizer que a criação originou-se pelo ritmo da respiração da divindade. Segundo a mitologia cada pessoa nasce com um dono-da-cabeça, que vive no corpo através do seu ritmo individual, da sua respiração, do seu andar. Esse ritmo pessoal por várias causas, pode ser esquecido ao longo da vida. 15 O ritmo interior ligado ao orixá dono-da-cabeça16 ao longo da aproximação à religião e mais exatamente na iniciação é feito emergir e fixado definitivamente no corpo. A personalidade do orixá é inscrita no corpo da iniciada em rituais secretos que prevêem como condição o uso do ritmo e do som. Nessa fase dramática 17 da vida da iniciada, a base rítmica do próprio dono-dacabeça,
o toque especifico e a sua cantiga vai tornar-se um ritmo permanente que serve como pano de
fundo para as atividades progressivas do recém nascido. Assim todas as vezes que os alabés18 tocarem, a identidade sonora da filha-de-santo responderá aos tambores cujo toque chamam o seu orixá. Sendo a iniciação a representação do nascimento, o fiel nasce simbolicamente uma segunda vez, numa nova vida, e sendo o som, o ritmo, o movimento, elementos constantes da vida fetal, serão também os movimentos e os ritmos que as iniciadas aprendem no ronko que irão ocupar uma parte importante da sua memória originária e serão inscritos no seu corpo. Assim, no contexto holístico do candomblé esses elementos são partes integrantes do ser e da sua identidade, não existindo a dicotomia cartesiana corpo/espirito. A identidade sonora (o toque do orixá) pode ser equiparada a um fundamento da iniciada que ela manifestará nos rituais periódicos. Os toques tão diferentes de Oiá ou de Iemanjá, por exemplo, atestam inequivocamente os traços da personalidade desses orixás, a primeira nervosa e livre, a segunda uma matrona calma e independente. De fato, cada orixá tem seu toque que é único e original e que simbolicamente corresponde a sua voz, a sua personalidade, a seu movimento, as seus aspectos mitológicos e aos elementos naturais dos quais é composto. Essa identidade sonora do orixá contém a identidade sonora do possuído. A música é a comunicação entre o filho e o orixá, enquanto a dança é a manifestação dessa comunicação. O possuído reconhece, a um nível não consciente, os ritmos e os movimentos precedentemente inscritos no seu corpo A palavra pneumatica deriva do grego pneuma= hálito. Essa é uma característica encontrada em varias religiões, como no antigo testamento, na Genesi e no Hinduismo. 15 Uma vez que o homem é formado por várias energias que o influenciam e podem atrapalhá-lo ou confundi-lo, obscurecendo o ritmo-respiração do dono-da-cabeça , é possivel que tal esquecimento esteja relacionado ou venha a conduzir a uma “guerra de orixás”, ou seja que o indivíduo seja tomado por outras energias alem daquelas do próprio dono-dacabeça . 16 “Cada indivíduo pertence a um deus em particular, dono-da-cabeça e da sua mente, do qual herdou as características do físico e da personalidade” (Prandi, 1991:86). 17 Uso o adjetivo dramática, porque a iniciação é algo de muito profundo e difícil a se falar. O iniciando morre para nascer de novo e por isso passa através momentos de completa perda da velha identidade, aquela "oscilação da presença" que De Martino identificou também no tarantismo. 18 Os alabés são os sacerdotes-músicos, cuja formação também envolve um ritual que inclui recolhimento. Cabe aos alabés conhecer todo o repertório das músicas rituais. O papel executado por eles é tão importante que em maio de 1998 nos dias 9-10 foi organizado um seminário sobre os alabés e as suas funções rituais, chamado Alayandé Siré no Ilé Axé Opô Afonjá. 14
8
e todas as vezes em que ouve a sua identidade sonora, ele responde. A comunicação acontece aí a um nível muito sutil: o som dos tambores propaga-se através de todos os sentidos, a música envolve a pessoa como um todo e a obriga a comparticipar do som. Em geral com a passagem do tempo e aumentando os anos de iniciação o ritmo interior corresponderá sempre mais ao ritmo exterior, numa progressiva união e conhecimento com o orixá do qual se é filho. Segundo o povo do santo é o orixá que decide se a própria filha tem que recebê-lo e por quanto tempo e com qual intensidade.
AS CARACTERISTICAS DA MÚSICA E DA DANÇA Para entender a função e o sentido simbólico da dança e da música no ritual é preciso lembrar que o candomblé apresenta algumas das características básicas das religiões africanas. Em primeiro lugar o fato de ser uma religião holistica. Cada aspecto da vida é ligado a um outro numa corrente infinita onde cada parte existe em função da outra, em uma eterna procura de harmonia e equilíbrio. Existe de fato uma ligação indissolúvel entre o cosmo, o ser, o divino que manifesta-se na existência dos homens e, nessa ligação entre sensível e supra-sensível, a música adquire uma importância especial porque é a vibração do orixá. Todo o ritual esforça-se por voltar ao tempo do mito, da origem e de recriar aquele tempo, aquela antiga harmonia. A música e a dança são utilizadas nesse sentido. Possuem algumas características em comum que são fundamentais ao desenvolver do ritual. Tendo como base o princípio de que o som é o resultado de uma interação dinâmica entre as vibrações que propagam-se do tambor percutido por o alabé, o sacerdote-musico. O som é condutor de axé, poder de realização que aparece em todo seu conteúdo simbólico nos instrumentos musicais. Por isso os atabaques são instrumentos sagrados e recebem todos os anos rituais apropriados, assim como são tocados só por sacerdotes especiais. A música no candomblé é caracterizada por uma ciclicidade da frase musical, ou seja o padrão rítmico, o time-line repete-se ao infinito. A noção de tempo aqui expressa é bem diferente da noção ocidental. Não se
trata, como nesta, de criar uma historia temporal, onde há um começo e um fim. No candomblé o padrão rítmico é repetido sem um começo nem um final. Não se trata de uma simples repetição 19, mas da possibilidade de se criar todas as vezes a origem. Assim na festa de Iemanjá, por exemplo, cria-se a própria energia da água do mar e esta é re-originada através a repetição do time-line e do movimento da dança. Todos os fieis presentes tem que se concentrar e dançando e cantando a mesma cantiga três vezes originase a energia sagrada do orixá. Por isso é muito importante estar presente nos momentos rituais, porque só nestes pode-se criar novamente o sagrado. Parece que existe quase uma tentativa de parar o tempo e o seu fluxo na busca de um centro único, fixo e eterno.
19
Sobre o conceito na musica de repetição e reciclagem veda-se Nketia, (1986).
9
A característica principal da música é de ser polirítmica, quer dizer que cada atabaque tem seu padrão rítmico que se liga àquele dos outros tambores num ensamble thematic cycle que harmoniza os vários instrumentos. O atabaque maior, o rum, é o único que se permite variações, ele toma conta da cabeça que manda sobre o resto do corpo e dirige os pés através da coluna humana. O rum é tocado com as mãos 20, corresponde ao “fundamento religioso”. O rumpi e o lé são a base rítmica. O primeiro manda sobre os braços enquanto o segundo dirige o movimento dos ombros, que é contínuo e o mais solto possível; o lé produz um som seco, firme e penetrante. Toca-se com as varetas e, segundo o toque utilizado pelo alabé, emite sons de diferentes alturas. Os sons mais “acentuados”, o stress, conduzem os movimentos do corpo todo da filha-de-santo
na dança. Assim os dois tambores menores criam um fundo rítmico sobre o qual o rum
manda e cria variações. Existe um outro instrumento, o agogô, uma campainha de metal que é percutido com uma vareta. É um metalofone que emite um som com um timbre agudo. No toque de Oiá é tocado com um ritmo fortemente sincopado. Pode-se entender melhor a função da música tomando outra vez Carpitella quando falando da música da tarantela explica que: "....tem uma divisão entre a pulsação da seção rítmica (organeto, pandeiro e violão) e a pulsação de fora, o off-beat do violino (para o caráter de improvisação da parte melódica)...forma-se assim uma sobreposição entre as pulsações: um ritmo isométrico 21 puro acentuado e efeitos rítmicos atrasados, síncope, que junto dão origem a uma estrutura polirítmica. (Carpitella in: De Martino, 1994: 351) Existem dois aspectos expressos na música que refletem dois momentos típicos das técnicas religiosas: a dilatação e a exasperação da crise que é musicalmente elaborada com técnicas expressivas particulares como os ritmos acentuados, síncope, efeitos instrumentais, vários tipos de percussões dos tambores, gritos), e do controle e contenção da crise que reflete-se sobretudo no obstinado ritmo isométrico. Talvez enquanto a poliritmia atua em função da dilatação e da exasperação da crise, o ritmo isometrico obstinado funciona como controlador e contendor da crise. Para entender a conexão estreita entre a música e a dança e a experiência do fiel é preciso ter em mente que são percebidas por todos os sentidos, não só através do ouvido e do olhar, mas também através da pele, envolvendo o fiel como um todo. A característica polirítmica da música existe também na dança. Cada parte do corpo segue um padrão de movimento, como se correspondesse a um ritmo, a um "time-line" específico. A base dos movimentos, a parte isométrica, é dada pelo movimento dos pés ligados à cabeça via coluna vertebral.
Outra
característica da dança, em estreita conexão com os ritmos é o policentrismo, ou seja o fato do que o movimento tem que sair do interior e propagar-se para o exterior. No corpo humano não existe um só centro de pulsão energética, mas muitos. Os principais são a bacia, os pés e um ponto no fundo do 20 21
É tocado com as mãos a depender do toque e da nação. Isometrico significa de igual dimensão. Do grego isso=ugual.
10
pescoço que manda nos movimentos dos ombros, segundo os informantes. A dança sagrada não é puro deslocamento no espaço, mas o corpo se movimentando, ocupa uma estrutura espacial, cria um espaço pessoal. As filhas-de-santo movimentam-se em todas as direções, cada uma na sua estrutura espaçotemporal, seguindo a reciclagem da frase-musical. Outra característica é a forma do círculo. As danças desenvolvem-se em círculo e na direção anti-horária. O circulo sagrado lembra o tempo-espaço do mito que segundo as lendas remete à antiga divindade da terra. A repetição do movimento é percebida como uma criação de algo de novo, cada movimento dá origem a divindade e dá a possibilidade de voltar no tempo e no espaço da começo. Nas danças do candomblé os pés estão em contato contínuo com a terra para absorver as suas energias e, simbolicamente, percutindo-a ao longo da dança, o fiel é obrigado ao encontro com “esse mundo”, aquele no qual vivemos e estamos presente no aqui e agora; não é como na dança clássica onde a performance advém sobre as pontas do pés simbolizando a procura de um “outro mundo” e ou a rejeição deste. O corpo em movimento assume um significado simbólico, segundo os níveis de verticalidade, alto-médio baixo. O nível alto relaciona a pessoa com o elemento ar; o nível baixo relaciona o corpo com a energia da terra, que, segundo Oliveira (1994): “tem que dar o apoio necessário para sustentar-se”; o nível médio inter-relaciona os outros dois. O corpo movimenta-se também na horizontal, ampliando os movimentos semelhante a uma bola hipotética, como nas danças de Iemanjá, ou desenhando com os braços, uma forma redonda, como nas de “afastamento” de Oiá-Iansã. Assim as danças podem desenvolver-se tanto ampliando os movimentos, quanto subindo e descendo ao longo de uma linha imaginária, como na dança das ondas de Iemanjá. Nas danças sagradas tudo tem um sentido e um significado. Assim, os orixás jovens pulam dançando, e interrompem os
movimentos com paradas repentinas e nervosas, como Oiá-Iansã ou Ogum,
demonstrando mais energia, enquanto os orixás mais velhos dançam com mais calma e com movimentos mais contínuos, como Oxalá ou Nanã Buruku. Os orixás guerreiros dançam com uma postura mais ereta, com pulos nos momentos mais dramáticos e alcançando com o corpo mais espaço, seja na linha vertical seja na horizontal, enquanto as divindades velhas dançam curvadas na direção do chão. É o caso de Omolu ou de Nanã Buruku, cuja gestualidade expressa sua ligação com os ancestrais e com o retorno à terra, aiê , ao orum, o não conhecível. Em geral todas as danças dos orixás possuem as seguintes características: 1) a importância do grupo que fortifica a ligação entre os fiéis e oferece a possibilidade de ver a própria imagem refletida como num espelho, dançando os mesmos passos com os irmãos-de-santo e a possibilidade de individualizar-se no transe, dançando por si e para os outros a própria identidade rítmica; 11
2) a relação com o elemento terra, a mãe terra que alimenta e que é a base dos homens, sendo o lugar dos ancestrais; 3) a importância do ritmo que como explica Belinga (1994) é o próprio “verbo” e tem assim a função de chamar e de organizar a desordem, o momento da crise seja a nível macrocósmico, seja a nível microcósmico; 4) a simplicidade dos movimentos que podem ser repetidos ciclicamente e que ajudam o fiel a si concentrar sobre si mesmo para permitir a descida da divindade e a sua fixação no corpo; 5) a oferta de uma simbologia dançada, cantada, tocada que permite à iniciada dar uma resposta ao nãosenso do sofrimento traduzindo a dor na linguagem do mito. No ritual, a dança não pode existir sem a música e vice-versa, porque um é para o outro um “call and response” a nível energético. O rum, o tambor mestre, na dança do transe, dialoga com o orixá, a filha-de santo possuida. O time-line não é fixo, mas segue a dança e a dança segue os mandamentos do tambor.
Na dança e na realização da música a idéia fundamental é de estar em harmonia consigo mesmo e com o resto do grupo, tendo a comunidade uma maior possibilidade de sobrevivência quando todos os fiéis participam. Sendo a música tão importante, assim são os sacerdotes-músicos, os alabés que aprendem o repertório ao longo do tempo. São eles que podem chamar a comunidade e sobretudo os orixás a descer na festa, são eles que ajudam os fiéis a cair no santo acelerando os ritmos, e que encerram a festa com um toque especial. A dança sobretudo na primeira parte do ritual, no xirê, é um tipo de meditação dinâmica e por isso dançase “pequeneninho”, com a função de se concentrar. Os toques dos orixás poderiam ser comparados a um mantra
que ajuda a se focalizar no próprio eixo. A percussão dos pés, a repetição dos mesmos
movimentos sustentados pelos ritmos dos tambores, obriga o corpo a se centrar e a seguir o ritmo que do exterior liga-se ao interior, parando o fluxo do pensamento cotidiano e obrigando o fiel a se relacionar com o interior, por isso na dança os olhos estão fechados a simbolizar que o olhar é voltado para o interior. Conforme já observado através da dança e da música pretende-se parar o fluxo do tempo para poder voltar ao momento do mito, onde tudo começou e onde pode-se agir com a ajuda da magia para poder reequilibrar as energias, como era no começo e sempre será. O ritual todo é um esforço para voltar ao “começo”. O tempo é o tempo circular do mito que começa e acaba no mesmo ponto, ciclicamente e ritmicamente seguindo os ritmos da natureza, dia-noite, sol-lua, estações, etc. O tempo, nesse sentido é movimento, é a materialização do movimento, como diz Duplan (1987): "para marcar o tempo, temos que agir, batendo sobre um tambor com a mão ou sobre o chão com os pés. Criando o tempo, criamos o movimento." O espaço sagrado é o “campo” do culto, o lugar no qual o caos transforma-se em cosmo, tornando possível a vida humana, por isso é polissêmico. Existem dois espaços, um interior, o próprio corpo da 12
filha-de-santo,
receptáculo do sagrado, sagrado ele mesmo, e um externo o barracão. Esses dois lugares
são o teatro da transformação ritual. Neles o fiel deixa o mundo cotidiano e alcança o encontro tão assustador, mas tão desejado, com o divino. É só no espaço sagrado continente que ele pode voltar à totalidade e comunicar-se com a divindade. A dança desenha não só o percurso do corpo no espaço para chegar ao divino, mas também percorre a planta arquitetônica do templo, desenhando o caminho para alcançar o sagrado. O espaço sagrado, o barracão,
durante a dança, é preenchido com os corpos em movimento que expressam as várias
possibilidades no espaço do divino e a liberdade do homem em se movimentar para todas as direções. A divindade e o homem podem utilizar uma estrada curvilínea ou um caminho que prevê varias mudanças de direções.
OS RITMOS SINCOPADOS A síncope, outra característica típica da música africana e do candomblé é o efeito rítmico produzido pelo prolongamento ou deslocamento do acento do tempo fraco ao tempo forte. O prolongamento do acento faz com que não exista uma percussão na batida forte. Assim, produz-se uma quebra da expectativa por uma batida forte e por isso verifica-se um choque. Os ritmos sincopados quebram a ordem dos ritmos esperados e criam assim um novo padrão de ordem. O nosso corpo, o coração, o nosso andar obedecem a um funcionamento rítmico isócrono. A falta desse ritmo provoca um choque, uma sensação de caída. Simbolicamente nos fala da possibilidade das coisas não acontecer sempre na mesma forma, e obriga o corpo ao movimento. O ritmo sincopado proposto num modo obsessivo adquire, no contexto ritual, uma grandíssima importância porque altera a expectativa do padrão rítmico, movimentando os acentos do tempo forte para o tempo fraco. Abre assim, talvez, a porta a outras dimensões, indicando metaforicamente outras vias de conhecimento; vias que requerem o corpo e não apenas a mente. Contribui, junto com outras componentes do rito a abrir as portas do orum, o inconhecivel. Esse movimento contínuo da sincope pode simbolizar o ritmo do universo e de todos os seres que o habitam: “que movimentam-se entre os dois centros da vida e da morte,..... Essa polarização indica o movimento contínuo e a circulação do axé, a energia vital, a qual é a única ...a dar um sentido à música e ao canto entoado pelas filhas ou filhos-de-santo”. (Luz, 1995:571). Segundo Sodré, a síncope contribui a dar uma idéia de um tempo homogêneo capaz de voltar continuamente sobre ele mesmo, onde cada fim é o começo cíclico de uma situação. (1979:21, cit de Luz, 1995: 567)
13
A síncope produz simbolicamente uma ação cíclica que liga-se ao conceito de reversibilidade do tempo e do espaço no mito, que permite aos fieis voltar naquele tempo e, assim, se juntar a energia do orixá. Essa volta não é uma simples emoção, mas produz efeitos físicos no organismo, na respiração, no movimento, muito mais fluido, enfim no corpo todo.
CONCLUSÃO O conceito de doença é algo de muito difícil a ser definido no candomblé, porque em geral qualquer desordem ou modificação da normalidade tem a ver com o lado espiritual. Conforme observei, no candomblé o orixá pode chamar o fiel de várias maneiras, muitas vezes através de uma doença ou de uma desordem psíquica. Se a divindade exige ser feita, a filha-de-santo será iniciada, obtendo em vários casos a cura da doença e um maior equilíbrio psicológico. O tratamento é em grande medida conduzido através da música que põe em comunicação a terra, o aiê com o mundo espiritual, o orum; o exterior e o interior. A cura da doença na terapêutica do candomblé representa um aspecto muito fascinante, e é oposta à terapêutica oficial, onde o doente é privado do próprio corpo que na maioria das vezes é fragmentado e sem uma própria historia. No candomblé, o sofrimento é inscrito numa rede de relações que consegue juntar a experiência pessoal, social e sobrenatural, oferecendo uma explicação e um tratamento mais abrangente da própria dor. É um tratamento que utiliza basicamente o elemento sonoro - musica l22. A música coloca o fiel em uma nova dimensão existencial, a da experiência religiosa, protegendo-o no contexto ritual. No momento em que existe uma harmonia entre a musica interior e aquela dos tambores, advém o conhecimento do outro, do divino e através do outro de si. Aparece assim o conceito do “duplo” divino; a filha-de-santo , deixando-se possuir, cria ela mesma o “outro” e nesse processo de criação-incorporação o experimenta intensamente dentro de si, até ela mesma possui-lo, até inscrevê-lo no próprio corpo como uma nova identidade-rítmica interior a qual poderá fazer referência ao longo da sua vida. No candomblé é através do corpo que o homem começa o caminho da cura e do conhecimento religioso. É no corpo que vivem as experiências e unem-se as várias informações simbólicas sobre o mundo; é no corpo que, vivendo as energias sagradas, o fiel pode comunicar com o divino. O corpo com a iniciação age primeiro no mundo sagrado depois no mundo cotidiano através uma gestualidade e uma dança aprendidas ao longo da estadia no terreiro e interage dinamicamente com o espaço e com o tempo aos quais dá novos sentidos e novas direções. Na dança de possessão, o corpo possuído pelo orixá, como relata Galimberti: “habita o mundo. Um habitar que não é conhecer, mas se sentir em casa” (1993:69). O espaço não é um espaço posicional (no qual o corpo posiciona-se como objeto frente a outros objetos), mas situacional (no sentido de ser vivido pelo A música influencia especialmente a dimensão corpórea e os processos psicocorpóreos, conforme as pesquisas recentes em musicoterapia. 22
14
corpo com todos os sentidos) porque se mede a partir da situação na qual o corpo se encontra. É um espaço que existe porque esse corpo existe, assim que o corpo não é um grão de areia no espaço, pois não existiria espaço se ele não existisse. Desde o corpo é possível tomar todas as direções no espaço. Esse espaço corpóreo (considerando o espaço realmente vivido e conhecido sensualmente) não tem um significado só teórico, mas traz consigo os traços dos sentimentos pessoais, das necessidades sociais e dos elementos emotivos, como os de ter lugares conhecidos onde o corpo pode voltar. No espaço cada objeto, cada planta, cada parte do corpo humano remetem simbolicamente a outras coisas. Assim como a coluna sagrada presente em vários terreiros liga o aiê, a terra ao orum, o mundo sobrenatural, a coluna vertebral liga a cabeça, o ori com os pés, a ancestralidade, permitindo ao longo do transe de voltar ao tempo da origem quando não existia o corte entre o mundo dos homens e aquele das divindades. No candomblé o corpo aprende a conhecer a própria origem e a própria essência não só como mero conceito cognitivo, mas através da experiência direta e vivida das emoções que o formam. Cada homem possui o próprio duplo sonoro no orum que encontra no momento da possessão que aprende a conhecer e a expressar através da música e da dança, aprendida em momentos específicos e num estado alterado de consciência para dar a possibilidade de construir uma nova identidade. A musica dos atabaques conduz o fiel em uma viagem simbólica que o transforma. A filha-de-santo possui, dançando o próprio ritmo, o próprio tempo e o próprio espaço. A percussão dos tambores, como sublinha Duplan 23 é a materialização do tempo e ter consciência do tempo é conhecer a historia da própria família, é saber de ser um anel numa corrente infinita que originouse com o primeiro ancestral mítico do qual o homem é uma parte. As danças ligadas estreitamente à música, permitem a presença viva, partícipe e consoladora da divindade entre os homens. Através das coreografias e através a contração e a expansão dos movimentos o orixá expressa a própria qualidade energética, percebível só pelas iniciadas. A dança e a música expressam a divindade numa única imagem onde conteúdo e forma se interligam estreitamente. Esta unidade só é alcançada em momentos específicos, construídos ritualmente, seguindo modelos culturais que repetem-se no tempo. É transmitida através da experiência corporal e musical porque os conteúdos são tão profundos que não poderiam ser comunicados só com palavras. Eis porque o uso da linguagem não-verbal nos ritos remete a imagens e sentimentos raramente expressos e por isso adquire um grande poder. Os gestos possuem um significado, um efeito restaurador que as simples palavras não podem oferecer. Vivendo o mito, dançando-o e cantando-o, o fiel consegue assumir, canalizar e expressar os afetos e os próprios sentimentos; o ritmo das percussões que ressoa no interior do corpo obriga o fiel ao ser, à presença e não à fuga que o homem experimenta na frenesi do mundo contemporâneo. Duplan é dançarino e formador na área de dançaterapia. Ele fundou uma própria metodologia chamada Expression Primitive. Os seus conceitos são tomados dà Revista Arteterapia (1993). 23
15
A comunicação com o mundo invisível através do transe permite de meter em ato e de dinamizar as experiências mitológicas favoráveis à cura, com a mobilização das identidades míticas que podem traduzir a doença e canalizá-la em novas experiências corporais no interior da estrutura continente do rito. A música e a dança são terapêutica num sentido que não é através das palavras que advém a cura, mas através das experiências emocionais vividas pelo corpo até a construção de uma nova identidade mais profunda que será a nova base daquele fiel. As percepções do corpo não são mais rejeitadas como algo de desconhecido, mas aceitadas e experienciadas como algo de precioso e de aconselhador. Creia-se assim novas possibilidades existenciais através de uma dialética que liga o exterior e o interior. Esses rituais articulam e ordenam novas “possibilidades existenciais”, favorecendo assim uma nova organização e uma nova harmonia interna. Novas possibilidades existenciais que são oferecidas do externo: das outras filhas já iniciadas e dá Mãe-de-santo. As sacerdotisas “falam” à iniciada agindo com ela, dançam, cantam e transformam as velhas experiências em experiências preciosas. A iniciada recolhe essas novas informações passadas a nível não-verbal com as quais acorda, vive e canaliza as próprias emoções. As iniciadas aprendem a reconhecer o próprio ritmo sonoro e ao acolhê-lo. Essa experiência não é puramente auditiva mais envolve todos os sentidos. A possessão permite assim um jogo, uma ligação entre o interior e o exterior. O fiel deixando-se possuir cria o outro e nesse processo de criação-incorporação o experimenta intensamente dentro de si até ele mesmo possui-lo.
O tempo é
movimento e criando o tempo cria-se o movimento que é vida, axé, energia de vida, por isso o candomblé permite a presencia das divindades vivas, porque aclama a vida como algo de precioso e sagrado que deve ser vivido agora e aqui . A arte executa aqui a parte do leão criando formas que simbolizam os sentimentos humanos (Langer, 1980:40). O sofrimento e a desordem interna são acessíveis só através da linguagem dos símbolos quer dizer através da comunicação não-verbal.
O ritmo, a musica, a dança, as cores permitem uma
comunicação bem mais profunda do simples comunicado explícito. O ritmo das palavras, o toque parecido a um mantra, a concentração e a expansão do corpo, o nível de verticalidade e de horizontalidade, o uso do espaço, o uso do tempo, da música e da dança oferecem à filha-de-santo a possibilidade de construir e viver a própria identidade-ritmo, através uma pluralidade de meios impregnados de emoção e não transmitidos mecanicamente.
BIBLIOGRAFIA
ASANTE, K. Welsh. Commonalities in African Dance: an aesthetic foundation. Rithms of unity, Wesport. Connecticut :Greenwoad Press, 1985. 16
AUGRAS, Monique. O Duplo e a Metamorfose. Petropolis: Vozes, 1983. BABATUNDE LAWAL. A arte pela vida: a vida pela arte. In: Afro-Ásia, n.14, publicação do CEAO da UFBA, Salvador 1983. BARBÁRA, Rosamaria. A dança do vento e da tempestade. Tese de mestrado da Ufba, 1995. BARROS, José Flávio de & TEIXEIRA, Maria Lina. O Código do corpo: Inscrições e Marcas dos Orixás. in: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de, Meu sinal está no teu corpo: escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo: Edicon/Edusp, 1992, pp. 36-61. BASTIDE, Roger. Les Amériques Noires. Paris: Payot, 1967. O Candomblé da Bahia (Rito nagô). São Paulo: Nacional, 1978. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz . BÉHAGUE, G. Some Liturgical Functions of Afro-Brazilian Religious Music in Salvador. Bahia “World of Music” , Berlino 19/3 e 4, pp.4-23. Patterns of candomblé, Music performance: na Afro-Brazilian Religious Setting. “Performance Practice”, Contributions in Interculture and Comparative Studies, Westport, 12, pp.223-54. BELINGA, S.M.Eno. Musica e Letteratura nell'Africa Negra. Milano: Jaka Book, 1994. BOAS, Franz. Dance and Music in the Life of the Northwest Coast Indians of North America. In: BOAS, Franziska. The Function of Dance in Human Society , New York: The Boas school, 1944. BRAGA, Julio. Contos Afro-Brasileiros. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1989. Ancestralidade Afro-Brasileira. Salvador: Ianamá, 1992. BRITO POLVORA. O corpo batuqueiro . in: FACHEL LEAL Ondina, Corpo e Significado, UFRGS, 1995, pp.125-137 CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. Religiões Negras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. CIAUDANO, Sandro. La musica nel candomblé . Acta do III Congreso em Etnomedicina. Universidade de Genôa, Departamento de Antropologia Fisica, maio 1996. COSSARD-BINON, Giséle. Contribuition a l’etude des candomblés au Brésil: Le candomblé angola. Doctorat de Troisième cycle (mimeo), Paris: Faculte des Letres et Sciencies Humaines, s.d, 1967. A filha-de-santo. in MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de, Olóòrisa: Escritos sobre a religião dos orixás, São Paulo: Ágora, 1981. COSTA LIMA, Vivaldo da. A familia de santo nos candomblés jêje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intra-grupais. Salvador, Ufba, dissertação de Mestrado, 1977. DAVIDSON, Basil. La civiltá africana. Torino: Einaudi, 1972. (or. The Africans. An Entry to Cultural History, London: Longmans, Green and Co. Ltd, 1969). DI LECCE. Il Rito della Taranta oggi. in: FERRARIS de NIGRIS, Musica, Rito e Aspetti terapeutici nella cultura mediterranea , Genova: Erga, 1997. DE MARTINO, Ernesto. La Terra del Rimorso. Milano: Il Saggiatore, 1994. ELIADE, Mircea. O mito do eterno ritorno. Lisbõa: Edições 70, 1969. FALDINI, Luisa. Religione e magia..Culti di possessione in Brasile. Torino: Utet, 1997. GALIMBERTI, Umberto. Il corpo. Milano: Feltrinelli, 1993.
17
JANH, John. Muntu, La civiltá africana moderna. Torino: Einaudi, 1975. (Tit.orig. Umrisse der neoafrikanischen Kultur, Eugen Diederichs Verlag, Dusseldorf, 1958). LANGER, Suzanne. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva, 1980. (Tit.orig. Feeling and Form, 1953). Trad. M. Goldberger. LEPINE, Claude. Os estereótipos da personalidade no candomblé nagô. in: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de, Olóòrisa, escritos sobre a religião dos orixás , São Paulo: Agora, 1981. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques IV, L’ Homme Nu. Paris: PUF, 1967 LODY, Raul. O Povo de santo, historia e cultura dos orixás, voduns, inquinces e caboclos. Rio de Janeiro: Palladio, 1995. . LUNHING, Angela. Die Musik im candomblé nagô-ketu. Studien zur afrobrasilianischen Musik in Salvador, Bahia. In: Beitrage zur Ethnomusikologe, n.24, Hrsg.J.Kuckertz Musikverlag Karl Dieter Wagner, Hamburg, 1990 a. Música: coração do candomblé. In: Rivista USP, n.7, São Paulo, 9-11, 1990b, pp.115-125. LUZ, Marco Aurelio. Agadá: Dinamica da Civilização Africano-Brasileira. Centro Editorial e Didatico da UFBA, SECNEB, Salvador, 1995. MARTINS, Suzanna. A study of the dance of Iemanjá . Dissertation to the Temple University, 1995. NEUMANN, Erich. La grande madre. Roma: Astrolabio, 1981. (Tit.orig. Die Grosse Mutter, Zurich: Verlag, 1991). NKETIA KWABENA, J. La musica dell’Africa. Torino: SEI, 1986 (orig. The Music of Africa, W.W.Nortone Company, 1974). OMARI, Michelle, S. From the inside to the outside: the Art of Candomblé. Monograph Series (Number 24), Los Angeles: University of California, 1990. PELOSINI, Gaetano. La magia della spirale. L’ equilibrio totale in un ordine cosmico. Roma: Esoterica, 1994. PRANDI, Reginaldo. Os Candomblés de São Paulo. São Paulo Hucitec e Editora da Universidade de São Paulo, 1991. ROYCE ANNYA P. Field Guide for the Collection of Ethnic Dance. MS, 1969 b. The Antropology of Dance. Bloomington: Indiana Unversity Prees, 1980. ROUGET, Gilbert. Musica e transe. Torino:Einaudi, 1985. SACHS, Curt. World History of the Dance. New York: W.W. Norton & Co., Inc., 1937. SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos (Mestre Didi). História de um terreiro nagô. 2a. ed., São Paulo: Max Limonade, 1988. SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte. Petropolis: Vozes, 1977. SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é agora. São Paulo: Oduduwa, 1993. SEGATO, Rita. Santo e Daimones. Brasilia. UNB, 1995. SODRÉ, Moniz. Samba o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979 VERGER, Pierre. Note sur le culte des Orisa et Vodun. Ifan-Dakar, Mémorie de L’Institut Francais d”Afrique Noir, 1957. Flux et Reflux de la traite des négres entre le Golf de Bénin et Bahia de todos os Santos. Paris: Mouton, 1968.
18
Orixás. Salvador: Corrupio, 1981.
19