D OU TR IN AS
E
PROBL EMAS
Coleção dirigida por fr. Benevenuto de Santa Cruz — 3 — JULIÁN MARÍAS
A ESTRUTURA SOCIAL TEORIA E MÉTODO Tradução de Diva R. de Toledo Piza Ap A prr es e see nt n taa çã ç ãoo de Gi G ill be b err to t o F re r eyy re re
DUAS
CIDADES
TITULO DO ORIGINAL CASTELHANO La estructura Social Revista de Occidente — Madrid
LIVRARIA DUAS CIDADES Av. 9 de julho, 40 — Caixa Posta! 433 São Paulo Livraria Livraria Duas Dua s Cidades. Cidades.
Todos Todo s os direitos reservados para para a língua portuguêsa.
Êste volum vo lumee nasceu de uma projeta pro jetada da investigação investig ação sôbre sôb re a estrutura social socia l da Espanha romântica. A s neces sidades sidad es teóricas teóric as desta investigação empírica obrigaram obrigara m à formulaçã form ulaçãoo prévia pré via e de certa cert a maneira rigorosa, do tema tem a da estrutura social e da questão do método exigido para co nhecê-la. nhecê-la. Êste estudo permite perm ite penetrar, com alguma clareza clare za e precisão, na realidade realidad e concreta concr eta de qualquer qualque r estru tura social soc ial pretéri pre térita ta ou presente, e portan po rtanto to daquela cujos proble pr oblema mass fizeram fize ram com co m que eu o escrevesse.
JULIÁN MARÍAS. Madrid, Mad rid, 7 de janeiro de 1955.
APRESENTAÇÃO
EM TÔRNO DA IMPORTÂNCIA PANIBÉRICA DA OBRA DE JULIÁN MARÍAS Não N ão f a z m u ito it o tem te m p o , certo ce rto c ien ie n tis ti s ta socia so ciall an angl gloo-am amer eric ican ano, o, cm comentário a um livro brasileiro aparecido em língua inglesa, estranhava, no autor do livro, o uso de certos conceitos científicos de modo diferente do que está hoje em voga nos meios meios anglo-ameri anglo-americanos. canos. Parecia-lhe eviden evid entem tem en ente te crime crim e de lesa-ciência. A ten te n d ê n c ia de cert ce rtos os cie ci e n tis ti s tas ta s sociai so ciaiss an anglo glo-a -am m erica er icano noss c, com efeito, ainda ain da esta: esta: considerarem científi cie ntífica ca apenas a sua ciência social, isto é, a academicamente dominante nos Estados Unidos. Unidos. Isto nu m a épo época ca em que que dentro da própria próp ria ciência física há, pelo menos, duas orientações, uma determi nista, outra indeterminista, que sendo diferentes são até contra ditórias. ditórias. O que não impede imp ede a Física moderna mod erna de vir senão a mais avançada das ciências atuais. A o p r o vin vi n cia ci a lis li s m o — ma mauu provincial provincialismo ismo — em que ainda se fecham, talvez mais por simples conforto mental do que por militante sectarismo metodológico, de caráter etnocêntrico, alguns sociólogos, antropólogos e psicólogos anglo-americanos, não pode deixar de apresentar-se incômoda e até inquietante a sociologia, Intimamente ligada, ora à antropologia, ora à histó ria, para que nos inclinamos, à revelia daqueles especialistas a seu modo ortodoxos num sociologismo horizontal ou num antro polo po logi gism smoo lin li n ea earr segu se guid idoo p o r êles qu quas asee s e c tàr tà r iam ia m e n te, te , vá vári rioo s homens de estudo, no já não de todo desprezível, nesses setores de investigação ou de análise do Homem social, mundo ibérico. Um dêsses homens de estudo, que a essa condições junta a de pen pe n sad sa d o r a r g u to e a d e e scri sc rito torr a u tên tê n tic ti c o , é o P rofe ro fess sor so r J u l iá n Mar M aría ías, s, p an anib ibér éric icoo na nass suas su as preo pr eocu cupa paçõ ções es m á x im a s e na nass suas
atividades principais e já transib érico na repercussão de uma obra que é hoje de importância para quantos, em qualquer pais, se voltem para o estudo da Filosofia e das Ciências chamadas do Homem. Seu conceito de “estrutura social”, exposto no livro que aparece agora em língua portuguêsa, por iniciativa inteligente de um editor brasileiro, pode não coincidir, de modo perfeito, com os dos sociólogos anglo-americanos mais convencionais em seu sociologismo linear. Nem seus métodos de análise, antes em profundid ade do que em superfície, de problema tão complexo, tendo por ponto de partida um homem situado — o espanhol da Espanha romântica — são os métodos mais em voga entresociólogos anglo-americanos. N em por isto, é intelectual que deixe de ser sociológico nas implicações da sua obra, embora seja mais que sociológico na configuração da sua personalidade de escritor alongado em filósofo ou em pensador, à base dos seus estudos de situações especificamente ibéricas e de medi tações sôbre essas situações. Dai, talvez, explicar o autor, no início do seu livro, que o método — talvez fôsse mais justo dizer, no plural, os métodos — por êle seguido, “sólo pude descubrirse y formularse medi ante el análisis de una o varias estructuras concretas y reales”, sem que isto impeça tal método de converter-se em “un instrumiento capaz de investigar la estructura de otras sociedades diferen tes ”. E neste ponto Ju lián Marías se separa de Comte, para quem a sociedade seria uma realidade estática cuja dinâ mica seria a história. Não — adverte, ao meu ver, muito ibéri camente, o sociólogo panibárico que é Marías: a sociedade, existindo como um sistema de forças operantes, é intrínseca m ente histórica. Mais: “su modo de existir es existir histori camente, y no sólo en el sentido de estar en la historia, sino en el de “hacerse” y constituirse en el proprio movimiento histo rico. Por esta razón es ilusorio pretender estudar una socie dade en un m omento del tiem po; si se hace en serio, en ese momento aparecen inclusos otros, en distensión histórica”. Diga que ao separar-se do Positivismo linear e, sob éste aspecto, muito francés, de Comte, Marías se exprime ibérica mente, porque a sua interpretação sociologia de estrutura social parte, ao meu ver, de um conceito de tempo que é, em suas dimensões, antes hispano-oriental do que norte-europeu ou
anglo-americano: assunto de que me ocupei há pouco em confe rência, em universidades alemães e na anglo-americana, de Princeton; e acerca do qual acabo de publicar em língua inglesa pequeno ensaio — nota prévia a um livro em preparo — intitulado “On the Iberian concept of time”, que já mereceu comentários os mais simpáticos de outro insigne pensador espanhol dos nossos dias: o Professor Am érico Castro, que vem dedicando ao assunto o melhor, talvez, da sua atenção de ana lista do ethos ibérico. Êsse conceito hispano-oriental de tempo parece-me que tende a superar, nos estudos pa/n-humanos de sociologia, de antropologia e de histórias, o norte-europeu e o anglo-americano, crescentemente arcaicos, em face de modernos desenvolvimentos, quer tecnológicos, no sentido da automação , quer teoricamente físicos, no sentido de novas interpretações das relações entre espaço e tempo. Tendo aqueles conceitos — o norte-europeu e o anglo-americano — de espaço-tempo, se desenvolvido dentro de um sen tido cronométrico de vida, em correspondência com' uma eco nomia a uma só vez industrial e monetária — a do “time is money” — e de um sentido lógico, de ordem, e cronológico, de progresso — o comteano, Positivista, por um lado, e o ianquista, horizontal, por outro — são conceitos ameaçados de perder seu prestígio, em conseqüência da crescente automação e do também crescente desenvolvimento, nas áreas mais avançadas do mundo, de economias de feitio mais cooperativo do qtie com petitivo. Menos comprometidos, por conseguinte, com a identi ficação da atividade econômica com o tempo cronométrico, por motivos, em grande parte, competitivos, intra e internacio nalmente. Folgo em encontrar, em págitias recentes de um intelectual do porte de Mestre Julián Marías, como são as que constituem o seu La Estructura Social — Teoría e Método, coincidencias com modos de pensar que há anos venho exprimindo em ensaios de menor repercussão que os seus. E que partindo da atitude geral hispano-oriental, com que ambos nos situamos diante das relações do Homem social com o Espaço-Tempo, vão a par ticulares dessas relações, sociológicamente significativos, como o da distinção entre o que são vigencias regionais, de ação imediata e profunda sôbre a vida e a cultura dos grupos huma nos, e o que, em algumas dessas culturas, é nacional, como
expressão ãe “pertinencias” do homem a regiões que são ‘'pertinencias” incompletas, tanto em relação com a cultura constituida em complexo nacional como com relação a sociedades pré-nacionais e transnacionais. A Europa, para, um francés ou um alemão, por exemplo. Enquanto o que venho denomi nando de sociedade e cultura hispanotropicais, é, para um brasileiro ou um mexicano, para um venezuelano ou um cubano, para um filipino ou um luso-africano, complexo semelhante ao que a Europa é para um francés ou para um alemão, embora não tanto para um espanhol ou para um português, talvez menos europeus que um alemão ou que um francês. São relações, essas, do regional com o nacional, inserção, como escreve Julián Marías; e de implantação do regional, através ou não do na cional, em complexo transnacional. Insersão e implantação que se realizam — é na compreensão dêsse processo que vários so ciólogos ou antropólogos anglo-americanos se revelam deficien tes, ao que parece, por se conservarem demasiadamente ape gados a sentidos já obsoletos de espaço-tempo — através da coexistencia do que Julián Marías caracteriza como “diversos niveles historicos” que, entretanto, se completam em tempos presentes, sôbre os quais tanto atuam, tempos pretéritos, con servados e atuantes, como o futuro, em forma de antecipação. É urna coexistencia, essa de tempo, que o sociólogo moderno, empenhado em análises em profundidade e, por conseguinte, verticais, do Homem situado, não pode ignorar, como tendem a ignorá-la varios dos sociólogos e antropólogos anglo-americanos. Sob pena de resvalar naquela sociologia somente horizontal que, por mais estatística , matemática, sociométrica , não atinge ao “conhecimento real” — para usar-se outra expressão de Julián Marías — de situações que considere sob a forma de relações apenas abstratas. Pois, como salienta o insigne continuador de Ortega y Gasset, não há, rigorosamente, estruturas sociais que se sucedam umas a outras, porém estruturas, a qualquer mo mento que o sociólogo, ou o historiador sociológico, procure estudá-las, constituídas por “una distensión dinamica”, pelo fato de cada estrutura dessas “venir de un pasado y estar ten diendo a u n futu ro , los cuales están, ambos, presentes”. Preci samente o critério sob o qual vimos, alguns ãe nós, no Brasil, há anos procurando analisar e interpretar a formação brasileira, ao considerá-la na expressão de alguns dos seus presentes — o
nau presente pré-nacional, o seu presente paleonacional, o seu presente transicional, de paleonacional, para neonacional — mais característicos. Com o que temos escandalizado alguns dos cientistas sociais anglo-americanos mais apegados a sentidos a/inda lineares, isto é, sucessivos, de tem po social. Parecem êles enxergar no método de que Julián Marías apresenta brilhante mente a teoria, em suas páginas magistrais de sistemática sociológica, e por nós seguido há anos, em obras de sociologia ligada à antropologia ou associada à história e nada subordi nadas à ortodoxia acadêmica dos sociólogos anglo-americanos, expressão de “anarquia ibérica” projetada mticientificamente em, estudos sociais. Ou, então, de um generalismo, também ibérico, qüe, com igual anticientificismo e até com escandaloso literatismo ou esteticismo, comprometesse o especialismo verda deiramente científico a ser seguido, com absoluto rigor sectário , por todo intelectu al voltado para a análise e para a in terpre tação do Homem social. Também neste ponto é notável a coincidência de pensar que aproxima alguns de nós, homens de estudo brasileiros vol tados há anos para a análise e para- a interpretação de estru turas sociais, do lúcido continuador de Ortega que é Julián Marías; e ao qual porventu ra nos antecipamos em tenta tivas de realização de obras — recomendadas pelo próprio Ortega a editores de língua espanhola para tradução nessa língua — que vêm encontrando em recentes teoria e metodologia dos estudos das mesmas estruturas, empreendidas por Marías, vigorosa justificação de caráter científico-filosófico. Fato expressivo é que o nosso encontro pessoal — o do autor deste Prefácio com Marías — tenha se verificado há dois anos, não no Brasil nem na Espanha, mas na Alemanha, em universidade a que ambos fomos convocados para expor a estudantes alemães nossas interpretações de culturas e sociedades ibéricas: A Univer sidade de Heidelberg. Observa Julián Marías, dos modernos homens de ciência,
fís fí s ica ic a s e n a tur tu r a is v e m se co com m u n ica ic a n d o às soci so ciai ais; s; e sepa se para rand ndoo destas a Filosofia, também social, e a Filosofia das ciências, de modo quase absoluto. Mas, Ma s, co com m êste co corr rree tivo tiv o , n o ca cam m po da dass socia so ciais is:: qu quee as for fo r m a s m ais ai s rec re c en ente tess de filo fi loss o fia fi a — He H e ide id e g g e r e J a s p e r s, p o r exemplo, e também George Santayana e Bertrand Bussell, Sartre e Camus, Mumford e os Huxley — vêm se tornando, na expressão pitoresca de Marías, “hermanas uterinas de ciertas for fo r m a s lite li tera rari riaa s, n ov ovel elas as y dra dr a m a s, co conn fre fr e c u e n c ia ob obra ra de los mismos filosofos y que expresan la misma interpretación ge neral de la realidad.” realida d.” Não só só dos mesmos filós filósofo ofos: s: também de antropólogos-sociólogos que, como Frazer, na Inglaterra, R u t h B e n e d ict, ic t, no noss E s tad ta d o s U nido ni dos, s, S im m e l, n a A lem le m a n h a , vêm escrevendo, ao lado dos seus trabalhos científicos, ou simultáneamente com êles, obras de expressão literária que os ccloca na situação de generalistas, já antiga, entre intelectuais do mu mundo ndo ibéri ibérico: co: de Vives a Un Unam am uno; de Menendez y Pelayo Pelayo a Ram Ra m ón y Ca Cajal; jal; de A costa a Gregor Gregorio io Marañon. De modo que quando Julián Marías escreve sobre “la novela como método de conocimiento”, toca numa tradição ibérica — a do dentista recorrer, como recorreu Garda de Orta, a formas literarias ou humanísticas de expressão — que hoje, em vez de tradição degradada ou desprezível arcaísmo, anti-moderno e anti-científico, renasce em obras modernissimas, como as dêsse nôvoo Wells, que é Sn nôv Snow ow ; co como mo as de Aldo us H u x ley; le y; como a de Lawr La wrenc encee da A r á b ia; ia ; em ensaios ensaios sociol sociológi ógicos cos ou biológ biológico icoss do valor literári literárioo do doss de M um ford for d e de R ostan os tan d; em obra obrass de pe p e r s p e c tiv ti v a s h u m a n ísti ís ticc a s e, p o r co conn s e g u inte in te,, ge gene nera ralís lísti tica cas, s, como as de Julián Huxley, biólogo, para não falarmos nas de psicó ps icólog logos os como com o W i l lia li a m J a m e s e no noss d e p s iqu iq u iatr ia traa s como com o F r e u d e co como mo Ju ng . Jam es, aliás aliás,, já aparece aparece ñas historias da litera tura inglesa, ao lado do antropólogo Frazer e do arqueólogo La L a w r e n ce. ce . Com inteira razão — a meu ver — Ju J u l i á n M aría ar íass de dest stac acaa quee po qu porr toda a parte a vida do Hom em — a vida que o psicólogo, o antropólogo, o sociólogo, o historiador, o economista estu d a m — se projeta, guiando-se por “figuras imaginárias” dela pr p r ó p r ia: ia : ap apólo ólogos gos,, fáb fá b u las la s , m ito it o s, p a rábo rá bola las, s, hist hi stoo ria ri a s, d r a m a s, novel nov elas. as. São “figu ra s imag imaginarias” inarias” nas quais quais a mesm a vida se amplia. 8ão ela elass também tam bém “o instrum ins trum en ento to mais pod poder eroso oso dr dr
pa p a id idee ia que o homem já conheceu”. Da Daíí ao ao analista de de uma um a estrutura social interessar, nos caracteres ãe obras imaginárias , as motivações de conduta que sejam mais valorizadas na estru tura analisada; e que projeta pr ojetam m , ne ness ssee tipo tipo de literatu ra — rumo aliás projetam (acrescente-se a Marías) na literatura his tórica e na biográfia, ãe ordinário nacionalmente orientadas ou isspiraãas — o que o sociólogo-pensador espanhol chama “rela ções entre a literatura e a viãa efetiva ãentro ãe cada socie
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APRESENTAÇÃO
fi f i c t í c i a em seu se u q u a n tita ti tati tivv i s m o , se se co com m p a ram ra m os s en enti tidd o s e usos ãe tempo por diferentes sociedades em diferentes culturas. Sobretudo os sentidos e usos ãe tempo livre ou degagé. Nes N esse sess sentidos e nesses usos, e na ãistinção entre tempo engagé e tempo degagé, é que se exprime em cada sociedade, o que pode mos chamar, com Julián Marías, ãe “pretensión vital”: a que seja própria ou característica ãessa socieãaãe. Gomo alguém que vem há anos, ãedicanão o melhor ãe sua atenção ãe investigador de assuntos humamos ao estudo das relações do Homem, diversamente situado, com o tempo, diversamente vivido por diferentes sociedades e diversamente valorizado por diferentes culturas, encontro nas páginas que Ju J u l i á n M a ría rí a s ã eã eãic icaa ao a ssu ss u n to u m a d a s m a is va valio liosa sass c o n tri tr i buições modernas — o assunto já preocupava Santo Agostinho — pa p a r a o escl es claa reci re cim m en ento to do m esm es m o p r o b lem le m a ; e p a r a o qu quee o sociólogo francês Boger Bastiãe, comentanão nos Caliiers Intemacionaux de Soeiologie a orientação seguida pelo autor do livro brasileiro Ordem e Progresso, no estudo sociológico ãe três tempos, concentrados num, aparentemente, só critério com que coincide o de Marías — chamou ãe nova sociologia que se denominasse denom inasse Sociologi Sociologiaa ão Tempo. Temp o. Sociologia que se se pres pr esta ta a numersos estudos estudos ãe caráter qu an titativ o; mas que que m uito terá terá de depender, para o seu desenvolvimento em profundidade, ãe análises e ãe interpretações ãe caráter qualitativo, através ãe métodos principalmente empáticos. Nã N ã o im p o r ta qu quee tal ta l sociol soc iolog ogia ia s e ja co conn sid si d era er a d a pe pelo loss so ciólogos que se conservem objetivistas absolutos menos socio logia logia cient cie ntífica ífica ão que filosofi filos ofiaa soci social al.. P or que qu e não não soci sociolo ologia gia filo fi loss ó fic fi c a , a tra tr a v és de u m a j á reco re conn h ecid ec idaa socio so ciolog logia ia psico ps icológ lógica ica e de uma igualmente já reconhecida socilologia histórica — ambas inevitavelmente humanísticas em suas projeções? É o critério sociológico sob o qual se desenvolve o que, nos trabalhos ãe Julián Marías, ãeve ser considerado matéria socioló sociológic gica. a. Ou mista mi sta:: soci sociológi ológica ca ou filosófica. filosófic a. Êsse critério fecundamente misto se revela ãe moão vigo roso e até incisivo, nas páginas ãe La Estructura Social que o autor au tor ded dedida ida a “La “L a M uerte uer te y el valor de de la vida”. vid a”. Move-s Move-see nelas nelas muito mu ito a von vontade: tade: em assunto quase quase especificam especificamente ente ibé rico. rico. Chega, Chega, po porr vêzes, vêzes, a parecer mais continua con tinuador dor de Un Unaa-
APEESENTAÇÃO
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mimo do que de Ortega, Gasset em seu modo em/pático de con siderar atitud es hum anas, em geral, geral, ibéri ibéricas cas,, em particula p articular, r, rela cionadas com uma sociologia que de sociologia do tempo se alongasse, alongasse, psicológicame psicológica mente, nte, em sociologi sociologiaa do além-temp além -tempo. o. Da Daí í a importancia que atribui à probabilidade com que é “vivida a m orte” or te” em em cada sociedade; e que varia var ia não só com o sentido de tempo dominante nesta ou naquela sociedade como com a media de vida que se apresenta hoje — note-se a determinação de tempo histórico — tão alta, em sociedades como a dos Esta dos Unidos e as do Norte da Europa, em contraste quer com o que foi — outra vez o tempo histórico — no s é c u lo X V I na mesma mesma Europ a e, no séc sécul uloo X V I I I , nos mesmos mesmos Estados Un Uniido dos, s, quer com o que é, ainda agora, — o tempo diferente é n&ste caso mais o social que o histórico — na india e na Chima. A morte se torna assim não só mais provável, como mais presente, pa p a ra u n s do q u e p a r a o utro ut ros, s, em n ú m e r o s socio so cioló lógi gica cam m en ente te significativos, conforme condições socio-culturais, de vida, e psico ps icosso ssocia ciais, is, de exis ex istê tênn cia ci a , de u n s em c o n fro fr o n to co com m as de outros outros.. O contrast contraste, e, en tretm tr etm to , entre entre a atitud e do do homem medio dos Estados Unidos — que reduz ao mínimo a presença da morte na sua vida e na sua cultura — e o das civilizações ibéricas — em que não só toques de sino, velorios e ritos fune rários imediatos à morte como missas de sétimo e trigésimo dia, o luto durante meses e até anos, artes inspiradas pela morte sob a forma de túmulos, jazigos, monumentos, pinturas, esculturas, acentuam essa presença — não parece dever-se apenas a dife renças entre médias de vida, que torne a morte mais provávl em soci sociedad edades es ibéricas ibéricas do que na anglo-americana. anglo-americana. Parece de ver-se também a um sentido tanto coletivo como pessoal de tempo mais favorável entre os hispanos, à meditação sôbre a morte que o viver quase exclusivamente ativo ou dinâmico dos anglo-americanos, sem tempo a não ser — pa p a r a a lgu lg u n s ■— ao aoss domingos, para reflexões sôbre sôbre a mo morte. rte. A s reflexões reflexões sôbre sôbre a morte que dão um sentido tão forte de além-tempo à literatura mística nas línguas ibéricas, projetando-se também em monumentos ibéricos de arquitetura de que o Escorial é o exemplo ma/is expressivo, na arte de túmulo desenvolvida magníficamen te pelos portugueses não só em Portugal como no Oriente e no Br B r a s il, il , em está es tátu tuaa s d e s a n tos to s e em ima im a g e n s do C rist ri stoo em qu quee os artistas ibéricamente acentuam a presença da morte na vida
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ãêsses santos e na do próprio Cristo, sob formas trágicas de experiência humana, anterior à sobrenatural esperada pelos crentes através, nuns de fé, noutros, apenas, ãe espera/nça. Somente pela sociologia que recorra a métodos empáticos de compreensão do que seja Intimamente psicossocial, no com po p o r tam ta m e n to h u m a n o , além al ém do doss q u a n tita ti tati tivv o s , de de desc scriç rição ão ão que seja externa ou ostensivamente social nesse comportamento, po p o d e o sociólogo soció logo,, sem se m torn to rnaa r-se r- se ã e todo to do filó fi lóss o fo, fo , p r o c u r a r res re s po p o n d e a p e r g u n ta s como com o as qu que, e, a p r o p ó s ito it o ãe “ la p e r s p e c tiv ti v a de las ultimiãaã ultim iãaães” es”,, form for m ula Ju lián M arías: arías: pergun per guntas tas a res res pe p e ito it o ã e a titu ti tuãã e s p a r a co com m a m o r te qu que, e, sen se n ão soci so ciaa lmen lm ente te condi co ndici cionad onadas, as, sejam tam bé bém m culturalme cultura lmente nte significati significativas. vas. Por exemplo: “cual es en cada sociedad la estimación de la vida?” Ou: “con cuanta imaginación o con que mecánico automatismo se piensa (ainãa (ain ãa em cada soci socieda edade, de, evide ev idente ntem m en ente) te) en 1a 1a, m ue uerte? rte?” ” 0 que Marías consi considera dera ser para certos certos individuo ind ividuoss ou certas sociedades sentido de conexão entre a vida terrena e a ãe além, poâe, talvez, caracterizarse, de modo mais especifi camente sociológico, ãentro de uma sociologia que se especialize em ser uma sociologia ão tempo, por um sentido ãe tempo que se pr p r o lon lo n g u e n o u tro tr o , de além al ém-t -tem empo po.. A r esp es p eito ei to ão a s s u n to p en enss a M a ría rí a s — com o que concorão — ser preciso colher, ãas várias socieãades cuja estrutura o sociólogo consiãere, indo até ao que, nessa estrutura, seja atitu de do homem por ela condicionado para com a morte, a voz dos poet po etas as,, além al ém d a do doss “ h om ombr bres es ãe teo te o r ia” ia ” : “ es d ecir ec ir,, u n a vo vozz cargada de concrecion humana, expresión de una sensibilidad que no es solo inãividual, sino que descubre un oculto latido del tiem po po”. ”. Porque Porq ue “hay “ hay una vigencia vigencia del tiem po po” ” que faz a viãa ãos membros de uma um a socíeãa socíeãaãe; ãe; e ãa qual, qual, poãendo des ligarse, com relativa facilidade, um teórico da sociologia que estude apenas abstratamente ou objetivamente essa sociedade através de extremos ãe alienação, não se desprende, quase nunca, aquele cujos métodos ãe conhecimento, ou ãe tentativa ãe conhecimento, de uma sociedade — a sua própria ou outra com que procure iãentificar-se, antes de procurar analisá-la, compreenãenão-a por métoãos empáticos e não somente ãescrevendo-a ou meãinão o que nela seja mensurável — sejam os científicos perigosa perig osam m ente vizinhos vizinho s ãos poéticos. poéticos. Tais soció socióllog ogos, os, antropólogos, historiadores sociais, tornam-se, como os próprios
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poetas, vozes “cargadas ãe concreción humana” e “expresión ãe una sensibiliãaã que nos es solo inãiviãual sino que descubre un oculto latido ãel tiempo”. Raros entre os anglo-americanos, ãesenvolveram-se urna sociologia e uma antropologia extremamente quantitativistas e exclusivamente objetivistas, contra as quais, desassombrad.amente se levantaram, em anos recentes, urna Ruth Beneãict e um Robert Reãfielã, e se levantam, ainda agora, um- Lewis M umforã, e um Gorãon A llport. Contrastam com aqueles extre mistas os sociólogos, antropólogos e historiaãores sociais que, no mundo ibérico, vêm realizando obras sociológicas, antropoló gicas e histórico-socia/is, nas quais se exprime seu modo ibérico de ser analistas ão Homem e ãe suas socieãades, sem renun ciarem maciçamente, nas tradições ibéricas ãessa análise, a herança hispano-árabe, para substitui-la maciçamente pela ciência norte-européia. Renúncia que teria resultado em empo brecimento quer para o saber ibérico, em particular, — o saber ibérico especializado na análise ão Homem — quer para a sabe doria pan-hum ana, em geral, voltada para essa análise. Pois teria importado em ãesprêzo por métoãos específicos, li gados àquela espécie ãe saber, em benefício exclusivo ãe métoãos ainãa difusos, em suas possibilidades ãe aplicações a toãos os tipos ãe socieãade e não apenas aos inãustriais-capitalistas, por um lado, e aos chamados primitivos, por outro, com o homem de estudo dos assuntos sociais ão munão ibérico, passanão a ser simples subsociólogos, sub-antropólogos, sub-historiaãores sociais com relação a um feitio norte-europeu ou ãe um modelo anglo-americano, hoje, aliás, em crise — ou em revisão profunda — entre os próprios norte-europeus e os próprios anglo-ameri canos. Crise no que se refere a ser possível atingir-se, através de métoãos ape?ias objetivos e à base ãe resultados obtiãos apenas em pesquisas reálizaãas, por sociólogos, em sociedades do tipo industrial-capitalistas, por antropólogos em socieãaãees das ãnominadas primitivas, um saber verdadeiramente pansocial e realmente pan-hum ano. N um a época em que à meãicina européia os chineses e inãianos estão juntanão as suas tradi ções ãe saber médico, e ãelas aproveitando valores em certos particulares, porventu ra mais efetivos que os europeus, não é de estranhar que os analistas ibéricos ão Homem e das sua sociedades apresentem-se, nos seus estudos sedais, fiéis à tra
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dições hispano-árabes, revistas e atualizadas, dessa espécie de saber — o que procura analisar o Hom em e estudar suas socie dades — sem que tal atitude importe em repúdio sistemático ao saber norte-europeu ou anglo-americano, tão útil ao saber pan-humano na matéria ; e tão necessário à revisão e à atuali zação que se em preende dos saberes não-europeus. O notável trabalho de Julián Marías, que agora aparece em língua portuguesa representa o que a tradição ibérica de análise do Homem e de suas sociedades, guarda de especifica mente ibérico — herança dos Ramón Lulio e dos Vives, hoje continuada pelos Américo Castro, pelos Lain Entralgo, pelas Maria Zambrano, — sem que lhe falte aquela revisão ou aquela atualização de saberes ibéricos, à base de conhecimentos e de métodos de estudo assimilados de outras culturas. Atualização que Ortega y Gasset empreendeu de modo tão vigoroso, talvez até exagerando-se, na sua primeira fase de jovem espanhol impregnado, na Alemanha dos então mais modernos métodos e saberes norte-europeus, em sua reação ao então igualmente exagerado ünam uno. Exagerado, o por m uito tempo Reitor de Salamanca, em seu repúdio às ciências e às técnicas que, vindo do Norte da Europa, pudessem comprometer nos hispanos as virtudes castiças do seu modo de serem hispanos e de se anali sarem como hispanos. Tal não se vem verificando . E xis te hoje, decerto, um estilo ibérico de estudos sociais que, sendo ibérico, inclui métodos assimilados de outras culturas, onde êsses estudos tomaram., nos últimos decênios, notáveis impulsos no sentido da suc sistematização em estudos científicos, pelo uso, por seus cultores, de técnicas estatísticas, quantitativas, gráficas, matemáticas. Mas essa cientifização com sacrifício, por vêzes, das relações da Sociologia, da Antropologia, da Economia, com a História, com a Filosofia, com os estudos humanísticos. Precisamente o vigor dessas relações é que caracteriza o moderno desenvolvi mento dos estudos sociais no mundo ibérico, em obras de que a de Julián Marías — cujo critério é principalmente o filosó fico-social sem deixar, entretanto, de ser sociológico — é exemplo expressivo; e que na Espa nha — para nos referirmos tão somente à Espanha — caracteriza também os admiráveis tra balhos mais ostensivamente sociológicos apenas no sentido de
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mais cientificamente sociológicos, que os de Julián Marías, de um Echavarria, de um Ayala, ãe um Becasen. A obra, ainda em desenvolvim ento, de Julián Martas, c das que não podem ser ignoradas por nenhum intelectual ou estudante do mundo ibérico, preocupado com assuntos sociais e com problemas humanos. É completa e pro funda. Está dentro do que há de mais genuinamente ou auténticamente ibérico nas tradições de cultura das gentes hispânicas sem que essa autenticidade comprometa o que nela é contribuição de alto porte, por um intelectual êle próprio complexo, para um saber e, mais ão que isto, para uma sabedoria pan-humana que tenha por seu principal objetivo ãe estuão e por seu cons tante ponto de referência o próprio Hom em : sua chamada natureza que é mais cultura ão que natureza sem ãeixar nunca de ser natureza; seu com portamento; suas relações com am bientes ou meios diversos; suas diversas perspectivas de tempo. Inclusive o sentido ibérico de tempo que talvez seja, como sen tido ãe tempo suceptível ãe transnacionalizar-se atualmente, sob o favor da automação, o principal corretivo a ser oposto àquele sentido de tempo soviético, estudado por outro agudo pensador espanhol dos nossos ãias, Emilio Garrigues, no seu Los Tiempos en lucha; e por êle caracterizado como “tempo frenético”: o “tempo frenético” com que a Bússia Soviética, procurando superar entre os russos o tempo, como o hispánico, semioriental, da Bússia pré-soviética, vem competindo com o tempo ianque, igualmente frenético em seus extremos de ativismo ou de produtivismo . H á indícios, porém, de que a Bússia, hoje, ao que paree, em transformação, em sentido de algum modo antisoviético, embora aparentemente só anti-stalinista, recupere alguma coisa do seu tempo histórico, juntando-lhe outro tanto do tempo adquirido com sacrificio, por vêzes brutal, do seu passado e até áa seu presente, a um futuro ãe ãsenvolvimento excesivam en te económico. O que já vem acontecendo vos Estaãos Vnidos onde o trabalho furiosa ou frenéticamente continuo está senão quebraão de vários modos: inclusive pela adoção de um evidente brasileirismo ou hispanotropicalismo — o cafezinho no meio das horas de trabalho burocrático, operário, industrial. Não será surprésa para ninguém se à adoção, pelos ianques, ãêsse hispanotropicalismo, se acrescentar outro: o da siesta em rede, com o cigarro, frenética e até histéricamente
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f umado pela gente anglo-saxônica mais exagerada no seu ativismo — cigarro, aliás, já condenado pelos médicos ingleses como particularmente perigoso à saúde física dos fumantes — substituido pelo menos pernicioso charuto, cubano, brasileiro ou filipino, volutuosa e lentamente saboreado dentro ãe um tempo mais aberto ao lazer e menos dominado pelo trabalho. Precisamente o tempo hispano-oriental ou o hispanotropical talvez capaz ãe corrigir — repila-se — no munão atual, excessos do “tempo é dinheiro” e de “tempo é trabalho” ■— inclusive trabalho forçado — dos ianques, dos norteeuropeus e ãos russo-soviéticos. Isto sem ãesconhecermos o fato, de importância sociológica, ãe que, ãentro do tempo hispanotropical, há tempos, como o que tende a dominar São Paulo industrial, ianquizados, dando ao Brasil atual aquele desequilíbrio de tempos notado por Garrigues na Bússia, onde, pelo menos, ãois tempos sc contradizem, no plano econômico ou tecnológico, com projeções noutros planos: nos plano.s psicossociais e socioculturais, em geral. Há, entretanto, um tempo predom iantemente hispanooriental ou hispanotropical, ãe largas ãimensões espaciais e aparentemente capaz ãe reabsorver os excessos ãos tempos ãêle ãissiãentes ãentro ãêsse complexo ãe civilização. É o tempo que tende a ser valorizado e atualizado pela automação, seguida ãe maior lazer entre as populações moãernas: a mesma automação e o mesmo lazer que tenãem a ãesvalorizar o tempo-trabalho e a ãesatualizar o tem/po-dinheiro, isto é, os seus valores como que absolutos. Para o tempo dominado pelo lazer, que civilização — e não apenas cultura — mais apta a contribuir com valores lúãicos, festivos, religiosos ãe base mais popular do que erudita, de feitio mais democrático do que hierárquico, do que a civili zação ibérica cujas origens espanholas vêm senão magistral mente estudadas por Julián Harías em obras como La estructura social? É problema, o ão tempo ibérico e da, sua atualidade, que já vem sendo estuãaão, com particula r interêsse, por pensaãores, antropólogos e sociólogos brasileiros, com uma perspec tiva amplamente transnacional ão que naquela civilização é comum a várias socieãaães, históricamente ãesiguais nos tempos por ela já viviãos; mas, para os quais, as contribuições ãe pensadores, antropólogos e sociólogos espanhóis, baseados no
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flxtudo de origens e constantes espanholas de comportamento e da cultura, se apresentam contribuições do maior valor: essen ciais. Indispensáveis, mesmo, ao alargamento de um a visão espanhola dêsses problemas numa visão transnacionalmente ibérica ou hispânica, que inclua aquela parte do mundo ibérico nu hispânico que vem sendo chamada, por autores brasileiros, hispanotropicál. físte um dos motivos de publicação em língua portu guesa de La Estructura Social, de Julián Marías, apresentar-se lão oportuna: o que traz de colaboração magníficam ente espa nhola para uma obra, necessária e até urgente, de ampliação do que é apenas castelhano — ou apenas português ou apenas galego, ou apenas catalão ou apenas ibero-americano, num com plexo objeto transnacional de estudo antropo-sociológico e de consideração filosófica. É, essa, um a obra que talvez possa realizar-se mais a-vontaãe no Brasil do que em qualqur outra sociedade das qioe compõem o sistema transnacional de civili zação ibérica. A essa obra, livros como o de Julián Marías são de tal modo essenciais que sem êles presentes tanto na língua portuguesa como nas espanholas, não se concebe o desenvolvi mento da consciência que dê vigor filosófico, além de consis tência sociológica, àquêle sistema transnacional de civilização. Gilberto Freyre
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O TEMA DA INVESTIGAÇÃO A ESTRUTURA SOCIAL Este é um livro problemático em terceira potência. Hoje ê normal que o sejam todos aquêles que pretendem conjugar atualidade plena e rigor teórico, isto é, os que não são simples produtos inertes, traçados segundo pautas recebidas de outras situações, nem tão pouco um mero tatear arbitrário, ditado apenas pelo capricho ou pela improvisação. O primeiro estrato de problematicidade é inseparável de qualquer obra de doutrina: seu conteúdo. Os dois restantes, porém, são mais profundos e só aparecem em certas situações intelectuais — e dizer intelectuais significa dizer históricas, pois que a “vida” intelectual só é possível e tem sentido dentro da totalidade da vida real e em função da mesma — ; destes dois estratos, um é a própria figura do tema, o campo ou zona de realidade que se apresenta como tal e exige a investigação; o outro é o método dessa mesma investigação e, portanto — interessame sublinhar esta palavra — , o gênero literário que lhe pertence, sua realidade final como tal livro. O tema do estudo que êste volume inicia não pode ser mais preciso: a estrutura social da Espanh a romântica. Isto envolve uma determinação geográfica, outra temporal e histórica e uma terceira que delimita o propósito da investigação. No entanto, o sentido desta não é óbvio e não lhe permite entrar em moldes recebidos. Poderseia pensar que se trata de um estudo de história: história da Espanha na primeira metade do século XIX; mas, por outro lado, como não se relata a guerra da Independência, o levante de Riego ou a primeira guerra carlista, podese o reconhecer como sendo isso que os tratados de História costumam denominar “história interna”, diferente
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mente da maioria dos capítulos que os integram e que pelo visto são “historia extern a” . É claro que ésse “dentro” e ésse “fora” são, por sua vez, imensamente problemáticos porque não se sabe dentro ou fora de que acontecem ou existem; além disso, passandose os olhos pelo índice dêste livro podese constatar que não se trata tão pouco de historia interna. É preciso ficar claro, desde a primeira página, que não é éste um livro de história. De “préhistória” , talvez o seja: do mesmo modo pelo qual se denomina préhistória a realidade anterior àquela que conhecemos como historia, poderseia assim denominar, conservando não acidentalmente sublinhado o prefixo, não à ciência dessa realidade anterior à história e sim aquêle saber que deve ser prévio à ciência histórica. Se houvesse só um saber prévio à história, a coisa seria relativamente simples; mas existem vários, e sua conexão interna representa po r si mesma um problema delicado. Em primeiro lugar, evidentemente, a historiologia; mas esta, entendida em seu sentido estrito de análise da res gesta ou realidade histórica, é uma teoria analítica geral dessa dimensão da vida humana que é a “vida” histórica; e aqui também não se trata disto. Desde que se fala de estrutura social, há um certo direito em se supor que seu estudo constitui um capítulo da sociologia; porém, também isto seria apressado e inexato, porque não se trata de uma teoria das estruturas sociais e sim da investigação de uma bem concreta: a da Espanha romântica. Há, pois, uma dimensão empírica, concreta e histórica que não se pode passar por alto; mas, ao mesmo tempo, é preciso acentuar que estamos longe da plena concretude fática da própria história. Tratase de uma estrutura social determinada, insistindose tanto no caráter estrutural como na determinação. O sentido e o alcance preciso destas dificuldades revelar seão somente à medida em que por elas nos adentremos; mas, desde já, seu simples enunciado é suficiente para mostrar a trí plice problematicidade a que me refiro. E fica também justificada a necessidade de antepor a êste livro, em lugar de entrar diretamente no estudo da realidade espanhola do século XIX, uma introdução metódica capaz de precisar e tomar possível a investigação a que me proponho. Creio necessário porém, advertir que esta introdução de manara alguma é independente; isto é, não é uma parte de doutrina sociológica ou gnoseológica
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obtida através de uma via qualquer e que se possa “aplicar” logo cm seguida a êsse estudo concreto; está em íntima conexão com cie e sua origem se prende à própria análise dessa estrutura que nos interessa, embora, por sua vez, somente esta introdução metódica permitirá o levar a cabo. Tratase, mais uma vez, désse movimento de ida e volta que é característico de todo conhecimento de realidade e, especialmente, dessa realidade que conhecemos com o nome de vida humana. Esta introdução, por seu lado, desenvolve um método de investigação de estruturas sociais cujas possibilidades vão além daquela que lhe deu origem. Em outras palavras, somente pela análise de uma ou várias estruturas concretas e reais podese descobrir e form ular êste método; mas uma vez obtido e formulado, se converte num instrumento de conhecimento capaz dc investigar a estrutura de outras sociedades diferentes. Por esta razão dei a esta introdução metódica tôda a sua autonomia, em lugar de me limitar a indicar seus requisitos capitais dentro do corpo da investigação empírica que se lhe seguirá. Dêste modo, o leitor tem em mãos os recursos necessários para ultrapassar o tema dêste livro, convertido assim em uma primeira exemplificação de um tipo de estudos da vida coletiva.
1. Sociedade e história Imaginemos uma sociedade qualquer e tentemos estudála r.um momento do tempo para determinar sua estrutura. Em primeiro lugar, encontramos um certo âm bito de lugar e um número de pessoas que nele convivem. Entre essas pessoas existem relações de índoles diversas: grande parte é interindividual c não pertence em sentido estrito à sociedade; outras são rigorosamente sociais, isto é, afetam a vida coletiva, não nascem como tais na vida pessoal dos indivíduos, não se podem reduzir a êstes mas transcendem cada um déles e a simples soma dc suas vidas individuais. Estas últimas, por sua vez, se inserem nas formas coletivas, estão feitas de substância social e sua realidade concreta está condicionada por essas formas, as quais, por seu lado, acontecem a cada homem, isto é, radicam na vida individual; e esta é inexoràvelmente social. Em outros têrmos, u única realidade efetiva numa sociedade é a das vidas indivi
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duais, mas nelas se dá necessàriamente a sociedade, isto é, as vidas individuais são constitutiva e intrínsecamente sociais. As interpretações das coisas, sua articulação numa figura de mundo, a linguagem, os usos, crenças e idéias que me constituem na realidade pessoal que me é própria, são ingredientes sociais da mesma, cuja razão só se encontra na vida coletiva. Tentemos estudar esta sociedade, assim compreendida,, num determinado momento do tempo. É isso possível? Por êste caminho, a única coisa que me é dada são os dados: poderei saber que tal sociedade tem certo número de habitantes, que êstes perfazem tantas famílias, que a riqueza total se eleva a determinada quantia e se reparte de um a ou outra maneira; que os recursos têm tal volume e distribuição; que a população se agrupa em núcleos precisos — classes, estamentos, etc. — e exerce um determinado repertório de atividades profissionais; inclusive que as opiniões e preferências dominantes são estas ou aquelas. Tudo isto, que pode ser objeto de estatística, me inform a sôbre uma série de fatos; porém êstes, como tais, são ininteligíveis e, sobretudo, não constituem um a estrutura. Poderíamos dizer que as conexões entre êsses dados não são dados; ou, se se prefere, não são dadas. E isto pela razão de que cada um dêles é um resultado, melhor ainda, uma resultante de fôrças que atuam, que vêm de um passado e avançam para um futuro. A condição econômica de uma sociecüide não é um fato puro mas foi feita: chegouse a ela em virtude de uma série de vicissitudes pelas quais a sociedade passou; ou, em outras palavras, tal condição vem de outra anterior, só em função da qual é inteligível; e outro tanto ocorre com a divisão em classes sociais, a form a da família ou as opiniões operantes. Somente a variação que a sociedade foi experimentando explica que, neste momento, seus diversos ingredientes sejam os que efetivamente são e é êsse movimento que os liga e os enlaça numa estrutura real. Para entender um a sociedade somos, pois, forçados a percorrêla numa distensão temporal que parta do momento em que a consideremos e alcance outros anteriores, que nos remeta da presente às sociedades pretéritas de onde “provém” ; à história, em suma. É preciso corrigir a expressão que acabo de empregar: as sociedades pretéritas de onde provém a atual são, pelo menos em princípio, a mesma sociedade; esta está feita de passado, é
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cNsencialmente antiga; tôda sua realidade procede do que antes uconteceu; o que nela encontramos dependeu de que outras collas anteriorm ente sucedessem; as raízes dos usos, costumes, ercnças, opiniões, estimativas, formas de convivência, aprofun diunse no passado. Por outro lado, tudo isso são módulos, pautas, normas, possibilidades, pressões que condicionam a vida ti a sociedade presente; mas como a vida é futurição, determi nnm o que esta irá ser amanhã, isto é, a sociedade futura; mais rigorosamente, esta mesma sociedade que foi pretérita e é presente, no futuro. Encontramos, pois, em qualquer momento, a complicação intrínseca da temporalidade. Não podemos entender uma sociedade num momento do tempo, porque sua realidade — e por conseguinte sua inteligibilidade — está constituida pela presença do passado e do futuro, isto é, pela historia. Quando Comte se referiu a uma estática e a uma dinámica social entreviu a condição móvel da vida coletiva, incorrendo porém no êrro grave de fazer pensar que a sociedade é uma realidade estática cuja dinámica é a historia. E tal realidade não existe: a sociedade é por si mesma dinámica, é só dinamismo, existe como um sistema de fôrças operantes, ou melhor, é intrínsecamente histórica. A sociedade não é separável da historia; seu modo de existir é existir históricamente, e não apenas no sentido dc estar na historia mas no de “fazerse” e se constituir no pró prio movimento históricò. Por essa razão é ilusório pretender estudar uma sociedade num momento do tempo porque, usando se de rigor, nesse momento aparecem inclusos outros, em distensão histórica. Em breve veremos o quanto é isto preciso e radical, bem como afeta todos os ingredientes constitutivos de uma sociedade qualquer. Mas isto significa que só se pode estudar uma estrutura social historicamente, mesmo quando o resultado dêsse estudo não fôr história. Em caso algum, pois, a “unidade” elementar de que a teoria dispõe é um momento único e sim a articulação temporal de vários em um período; qual êste possa ser, já é outra questão, e, como logo veremos, lambém não pode ser um período qualquer, escolhido arbitrariamente, mas sim dentro de certos limites cronológicos da investigação impostos pela própria estrutura da realidade estudada. Parece clara a conexão entre sociedade e história: a primeira não é separável da segunda e esta última constitui a maneira de existir daquela. Porém, se invertermos os têrmos da
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questão surge um novo problema. Com efeito, até agora demos por suposta uma sociedade e nela descobrimos a história; ou — o que é o mesmo — descobrimos sua historicidade intrínseca. Mas se partirmos agora da história, do acontecer histórico no tempo, temos que perguntar a quem acontece tudo isso, de que realidade dizemos com rigor que é histórica, mais exatamente ainda, quem é o sujeito da história.
2. O sujeito da história No capítulo X de minha Introdução à Filosofia, dedicado à vida histórica, ao qual me remeto, apontei dois êrros que dificultam sua compreensão. Ambos se referem à relação da vida humana individual com a história ou, se se preferir, à form a de historicidade da vida humana; a prim eira expressão vai além do que seria o justo, e a outra, pelo contrário, é insuficiente. Podese pensar, com efeito, que bastaria haver vida humana para haver história; se assim fôsse, a simples tempo ralidade da vida individual, o caráter sucessivo e fluente da mesma, bastaria para que o homem — mesmo que só houvesse um único no mundo — tivesse história. Ora, isto não acontece, porque o ser histórico significa estar adscrito a uma forma determinada de humanidade entre outras e portanto se dar em um tempo qualificado, determinado por um nível, diferentemente do tempo cósmico e do simples tempo biográfico — e digo simples porque o tempo biográfico real é de fato histórico, já que a vida humana se dá inserida na história a um certo nível concreto — . Só há, pois, história se houver muitos homens, não simultâneos mas sucessivos; e nem tão pouco absolutamente sucessivos — isto é, em promoções sem imbricação — , mas sim parcialmente coexistentes, de maneira que o homem de “outro tempo” — o ancião — conviva com o dêste e se encontrem êstes dois tempos, ou mais outros, qualificados num mesmo presente. “A história — escrevi — afeta os homens enquanto são uma pluralidade coexistente e sucessiva ao mesmo tempo; a vida histórica é, pois, convivência histórica.” (*) Introdução à Filosofia — Livraria Duas Cidades — 1960 (N. do T.).
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Outro êrro possível, de sinal contrário, é aquêle que admite que n¡lo é suficiente haver vida humana para haver história, Inferindo daí que a vida individual não é histórica mas que mmples,mente está na história, a qual se acrescenta à realidade primária e essencial do homem. A história seria, por conseguinte, sobrevinda e consecutiva. Nada pode ser mais falso. ( )h ingredientes com que fazemos nossa vida individual — inter pietações das coisas, imagem do mundo, crenças, linguagem, etc. — são históricos, e, portanto, a vida mesma o é , porque sempre se realiza numa situação. Não há história sem convivência sucessiva, mas não é menos certo que só há vida individual hum ana dentro de uma convivência sucessiva; de maneira que a história me acontece na realidade radical e irredutível de minha própria vida individual, transcendendoa, porem, essencialmente. Isto esclarece o sentido da pergunta pelo sujeito da história. Naturalmente, não é o homem individual e sim essa realidade que denominamos “convivência sucessiva”; mas esta, é claro, é de homens individuais, sem os quais nada pode ser. I’erguntarse pelo sujeito da história equivale a inquirir a estrutura e os limites da convivência sucessiva, mais concretamente, das diversas unidades de convivência, isto é, das sociedades. I')cvese perguntar quais são estas; o que foi tomado como ponto de partida e como dado tomase agora problemático. Uma sociedade está definida por um sistema de vigências comuns — usos, crenças, estimativas, pretensões — . Não basta, pois, agrupar os homens de certa maneira para obter uma sociedade: se dentro de um a agrupação arbitrária regem diversos repertórios de vigências, há mais de um a sociedade; se, pelo contrário, as mesmas vigências vigoram além da agrupação escolhida, a sociedade efetiva se estende fora dos limites que lhe haviam sido fixados. Mas a noção de vigência — um a das mais lérteis da sociologia orteguiana — não é tão simples; mais adiante teremos que a estudar de perto, e veremos então como il sua complexidade corresponde o fato manifesto que salta aos olhos: a complicação das unidades de convivência ou sociedades, sua superposição em planos diferentes, a dificuldade de determinar unívocamente seus limites. Desde logo é preciso eliminar as sociedades abstratas, isto é, aquelas que são apenas o resultado da consideração isolada de uma dimensão, faceta u n o s
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•ou atividade dos homens. Os semitas, os pintores, os maome tanos, os jovens, os casados, os proletários, as mulheres, os ricos, os negros, os poetas líricos, os socialistas, os polígamos, os aristócratas, os sacerdotes, não constituem outras tantas sociedades, sociedades reais quero dizer, por muito importantes que sejam os princípios de sua agrupação — lembrese, po r exemplo, as expressões “os homens” ou “as mulheres” — . Deve se excluir também as unidades em que, embora ocorrendo unidade de convivência, esta as ultrapassa, assim como acontece com a familia; pela razão contrária fica descartada a hum anidade em seu conjunto, em que a unidade não é precisamente de convivência e onde falta — pelo menos até agora — um sistema de vigências comuns. Esclarecidas essas dificuldades mais elementares, resta ainda outra de maior importância. Realmente, se definimos com rigor as unidades de convivência ou sociedades pelo fato de existir dentro délas o predominio de um sistema de vigências básicas, advertimos no entretanto que, pelo menos na maioria das situações históricas, se dá também uma convivência em segundo grau: a convivência entre si dessas sociedades plurais. Por exemplo, a dessas sociedades elementares que foram as cidade gregas dentro de uma “sociedade” que denominamos a Héla de; ou então a desta com a Pérsia, Egito ou Roma. Em que medida esta nova “convivência” supõe vigências comuns e, portanto, forma um a nova “sociedade”? Todo trato ou relação entre sociedades requer comunidade de vigências? No caso de não as pressupor, não as produz? A relação de diversas unidades sociais em presença é a mesma que sua convivência dentro de um a unidade superior? Estas perguntas serão respondidas no decurso dêste estudo. E surge uma última questão. O nosso ponto de partida foi a constatação de que tôda sociedade é histórica, isto é, de que cada sociedade provém de outras pretéritas. Podese admitir, dentro de certos ümites, que essa série de sociedades cronologicamente sucessivas são a mesma sociedade, isto é, diversas situações históricas de uma única sociedade. Mas tomandose um prazo suficientemente longo, ou sendo a mudança histórica bastante enérgica e rápida, chegarseá a um momento em que não se poderá falar da “mesma” sociedade e sim de diferentes sociedades engendradas umas de outras por processos diversos:
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uniBo — e esta pode ser de várias classes: conquista, anexação, incorporação, etc. — , divisão, alteração da estrutura interna, migrações. E então se põe o problem a da persistência dessas sociedades visto que sua substituição não implica seu necessário desaparecimento, e. dos modos de sua coexistência. Existe uma ilinílmica das diversas unidades de diferente “nível” histórico i|uc indubitàvelmente coincidem numa mesma época, e da qual depende o esclarecimento do sujeito da história. Isto, porém, demasiado abstrato para ser suficientemente inteligível. Consideremos a situação dentro do cenário europeu.
3. Regiões, nações, Europa As nações européias se constituem mediante a incorporação de unidades menores de contexturas diferentes, que foram as efetivas sociedades na Idade Média. Em tôd a a época moderna, as sociedades sensu stricto, as unidades de convivência, são as nações; e, na medida em que certas zonas européias não são estritamente nacionais, adotam pseudomorfoses históricas de aparência nacional, determinadas ao mesmo tempo por uma vigência inexpressa da nacionalidade e por uma vontade expressa da mesma — procedente quase sempre de motivos diplomáticos — que acabam por contribuir mais ou menos lentamente para um processo de nacionalização efetiva. Porém , se é certo que a Europa, do século XVI ao XX, está composta de nações, seria inexato dizer que nela durante êsse tempo só há nações. As unidades prévias, os elementos incorporados na nacionalização, persistem, não como unidades políticas — em todo caso, como unidades políticas residuais — , mas sim como um a forma muito peculiar e nova de “sociedade” : como regiões. A região é algo bem diferente do Estado medieval, embora seus limites coincidam. A região é um a sociedade insuficiente, isto é, está definida por um repertório de vigências comuns mas parcias e débeis, que deixam fora zonas decisivas da vida e que além disso exercem pressão comparativam ente leve. Poderíamos dizer que os usos regionais tendem a se converter em meros costumes. O homem não sente que sua vida esteja regulada apenas pelas vigências regionais; tem êle que pro curar a orientação de sua conduta mais além de sua região, na sociedade geral — neste caso nacional — e ao mesmo tempo lhe vêm
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desta, queira êle ou não, as pressões e os estímulos mais enérgicos. Tanto é assim, que as atitudes regionalistas apresentam três característicos sumamente reveladores: 1) são voluntárias, isto é, não se é regionalista sem mais, e sim quando se o quer ser; enquanto é freqüente que um homem se sinta “irremediavelmente” espanhol ou alemão, inclusive mau grado seu e com desapêgo, o regionalismo tem sempre a forma de “apêgo”, da adesão voluntária e ainda do cultivo da pertinência regional; 2) dentro de certas medidas, são arcaicas, se referem a estratos antigos e pretéritos da vida, se nutrem de passado afirmado ccmo presente e “conservado”; por isso os regionalismos de todos os países são “tradicionalistas” e no fundo “reacionários”, mesmo nos casos em que tàticamente adotem formas políticas extremistas; 3) procedem de um movimento de retração, isto é, vêm da sociedade geral, retraindose dela; nenhum a atitude regionalista o é sem mais, ou seja primária e ingênuamente regionalista, mas sim se apoia na nação e a partir dela se concentra na região — daí o fato, tão interessante, da pseudomorfose nacional dos regionalismos, de seu disfarce como “nacionalismos”, prova de seu caráter essencialmente derivado. Não se confunda, porém, o regionalismo com a condição regional; esta é plenamente atual, como form a de sociedade secundária. Não digamos sociedade abstrata, porque se trata de coisa bem diversa: não se é catalão, navarro, borgonhês ou suévo como se é médico, radical socialista ou anglicano; a região constitui o que poderíamos chamar uma sociedade “inser tiva” : funciona como componente ou ingrediente parcial, mas não abstraído, portanto nem abstrato, da sociedade nacional; e isto num a forma muito precisa: a inserção dos indivíduos na mesma. Em outras palavras, o indivíduo — pelo menos em muitos países e em longos períodos da história moderna — não é diretamente nacional e seu modo de pertinência à nação é regional. Ser andaluz, vasco ou galego é, segundo o caso, o modo de ser espanhol, e, igualmente ser bávaro ou westfaliano, ser bretão ou provençal, são as formas concretas de ser alemão ou francês. Por isso, regionalismo ou antirregionalismo são duas formas de abstração: o primeiro substantiva a região, simula que ela é uma sociedade plena e suficiente, a desliga da totalidade da qual é ingrediente e na qual alcança sua realidade, e por
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isso a deixa exangue; o segundo prescinde do estrato interm édia que se coloca entre o indivíduo e a nação mediante o qual se realiza a inserção qualificada e orgânica do indivíduo no todo nacional, e com isso impõe uma uniformidade violenta e esquemática que empobrece a realidade e, ao mesmo tempo — mesmo que o antirregionalismo não o suspeite — , debilita a pertinência dos indivíduos à nação, cortando as vias naturais — quero dizer históricas, é claro — de inserção e radicação na sociedade geral. São duas formas de desarraigamento: o regionalismo corta as raízes da região que se aprofundam na sociedade nacional e converte a região em uma planta de vaso, artificial, sem suco e quase sempre exótica; a atitude antirregional — não an tirregionalista — desraiza os indivíduos de seu solo imediato — a região — e com isso desvirtua e destrói a estrutura interna da nação, sua constituição ou organização vívente. Em outra perspectiva, a nação se articula com outra “sociedade” : a Europa. Escrevo “sociedade” entre aspas porque durante tôda a história moderna — 15001900 em números redondos — e ainda hoje apesar de nossos desejos., a sociedade plenamente real não é a Europa, mas sim as nações, emborá; estas vão sendo cada vez menos suficientes e, na data em que escrevo, nenhuma sociedade nacional é uma unidade plena e conclusa, e tão pouco o é a Europa. Porém é interessante notar que desde que houve nações estas estiveram na Europa, isto é, a Europa preexistiu como um âmbito prévio à constituição das nacionalidades. Euro pa não é a soma das nações européias, não é um agregado secundário em relação a elas, mas as procede e as funda, embora sem constituir sociedade sensu stricto, pelo menos até agora. Como isto é possível? E sendo as nações insuficientes, tendo sua realidade efetiva na Europa, nela fundamentadas, como se pode dizer que são unidades reais de convivência, sociedades efetivas e rigorosas? Assim como antes me referi a sociedades “insertivas” — regiões — e a uma função de inserção1regional dos indivíduos na nação, podemos agora falar de uma relação de implantação das nações na Europa. As nações estão “feitas de” Europa, se originaram em seu âmbito como as plantas nascem em um terreno e dêle se nutrem, embora êste não seja um organismo. Quando se diz nações européias, o adjetivo não é uma determinação extrínseca ou de simples localização; as nações estão
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essencialmente referidas ao ámbito ou “mundo” europeu em que se encontram, dentro do qual se engendram e convivem. Desejo com isto exprimir uma condição fundamental de sua estrutura: há uma área de convivência das sociedades nacionais e, portanto, estas constituem algum tipo de sociedade, embora não abrangendo a totalidade das dimensões da vida. Não se trata de unidades sociais em presença — para usar o têrm o introduzido anteriormente — mas sim de uma convivência dentro de um âmbito comum, prévio às diversas unidades. Isto esclarece, ao mesmo tempo, duas coisas: a primeira é o fato da Europa não ser igual à soma das nações européias, desde que é o solo prévio em que estas se originaram, do mesmo modo que antes, na Idade Média, surgiram outras sociedades de tipo diferente; a segunda é a diferença entre a relação m útua de duas nações européias e a que existe entre uma delas, por exemplo, e um país asiático: enquanto neste último caso não há propriamente sociedade e portanto não são necessárias vigências comuns — salvo as muito abstratas e elementares que regem todo trato humano — , no primeiro existe um a “sociedade” parcial e mais tênue que as nacionais, porém definida por um repertório de vigências. A relação de um a nação a outra é a de estrangeiros entre si — diferentemente do que acontece, por exemplo, entre os países hispanoamericanos — , mas que não o são de um modo absoluto. Temse apontado o caráter polêmico e de concorrência entre as nações européias, como “modelos” ou “exemplares” que aspiram ao predomínio; porém o essencial é a concorrência, a comunidade dentro da qual — a Euro pa — cada nação pretende ser a melhor. Decorre daí a complexíssima dinâmica das vigências nacionais e européias, cujo movimento expressa a história real da Europa e de seus membros — e isto, e não meras partes, são as diferentes nações. Isto explica também um fenômeno que de outro modo pareceria paradoxal: o paralelismo entre o processo de nacionalização e o de unificação da Europa. Se as nações e a Euro pa fôssem realidades “opostas” — análogamente à contraposição nacionalismointernacionalismo — , a realização de um a delas como sociedade só aconteceria a expensas da outra; isto é, à medida que as nações fôssem sendo mais reais, a Europa desva necerseia e só seria possível a unidade européia mediante a volatização das nações. (Lembrese a influência perturbadora
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desta idéia na historia efetiva de nosso Continente e na dos esforços em pról da unificação.) Mas isto não ocorre. A aproximação da Europa a urna figura de sociedade real só foi possível graças a um processo de “maturação” das nações, de efetiva nacionalização dos membros da Europa. Vimos que uma sociedade está sempre em movimento, que sua realidade é intrínsecamente histórica, que passa de uma situação a outra e — tomadas as coisas com suficiente perspectiva — de um a sociedade a outra engendrada a partir dela. Pois bem, do mesmo modo que o passado permanece conservado e atuante, o futuro também opera em forma de antecipação. As sociedades existem na forma da coexistencia presente de níveis históricos diferentes. As regiões persistem no seio da nação que as incorporou, como unidades parciais e “insertivas” que articulam a pertinência dos indivíduos ao corpo nacional e a fazem qualificada e orgánica; sistematizam também cronológicamente as vigências, representam a pervivência dos estratos antigos e arcáicos de tôda sociedade. Inversamente, a Europa representa o horizonte das nações, seu terminus ad quem, seu porvir já presente como componente seu. A europeidade das nações é a condição de seu futuro. E por isso a unificação afeta zonas da vida que poderíamos chamar prospectivas ou projetivas. Ao mesmo tempo que o substrato arcáico da nação vive em suas estruturas regionais — e nunca é demasiado insistir sôbre sua importância — , a dimensão programática das mesmas reside em sua condição européia. N a Europa se descobre o “argumento” da vida de tôdas as nações, e por isso a política foi sempre política exterior, como se a tem chamado sem no entanto perceber bem o que isso significa. Política européia, diríamos melhor; e na medida em que uma nação afastase da Europa para se voltar sôbre si mesma, perde sua dimensão de futuro. (Hoje, a cabo do duplo processo de nacionalização na Europa e unificação da Europa, descortinase para esta em sua integridade, e ao mesmo tempo para cada um de seus países, um novo horizonte, um novo futuro, emprêsa ou programa, que se denom ina Ocidente; e desconhecer esta realidade mais ampla é a forma atual da deserção frente à Euro pa antes indicada; e do mesmo modo que a reclusão de uma nação em si mesma a desmembrava da Europa e, mais ainda, lhe amputava seu futuro nacional, qualquer forma de clausura européia, de europeismo a todo transe,
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significa hoje a obstrução do futuro europeu, ou, em outras palavras, a deseuropeização.) Estas referências concretas a nosso mundo não têm aqui outro intuito a não ser o de tomar compreensível aquilo que, metodicamente, procurava mostrar: a coexistência simultânea e o dinamismo interno de diversos graus e estratos de sociedades, isto é, de unidades de convivência que correspondem a distintos “níveis” históricos. Esta é a condição de tôda realidade hum ana, desde a família até a história universal. Mas, em bora possa parecer inacreditável, a sociologia, quando se trata de realidade familiar, obstinadamente passa por alto sua com ponente histórica: estuda seu caráter biológico — união sexual no matrimônio, geração dos filhos — , econômico, jurídico ou contratual, porém se esquece de sua condição histórica, patente no fato, tão elementar quanto inadvertido, de que seus membros são de várias idades, isto é, procedem de níveis cronológicos diversos, vêm de mundos historicamente distintos, de gerações históricas diferentes. Êste “desnível”, esta simultaneidade em um presente de tempos diversos, é o motor da história e a condição mesma de tôdas as estruturas, grandes e pequenas, em que se articula e se realiza a vida humana.
4. Inseparabilidade de sociologia e história Sociologia e história são duas disciplinas inseparáveis, porque uma e outra consideram a mesma realidade, em bora em perspectivas diferentes. A história se encontra no próprio seio da sociedade e esta só é inteligível historicamente; inversamente, não é possível entender a história desconhecendo a que sujeito ela acontece, e êste sujeito é uma unidade de convivência ou sociedade, com uma estrutura própria, tema da sociologia. Sem esclarecer as formas e estruturas da vida coletiva, a história é uma nebulosa; sem pôr em movimento histórico a “sociologia”, esta é um puro esquema ou um repertório de dados estatísticos inconexos, que não chegam a apreender a realidade das estruturas e, portanto, a realidade social. As dificuldades desta dupla exigência mútua fizeram com que a sociologia e a história permanecessem muito tempo em estado de imaturidade teórica. Quase tudo o que é relativamente claro na historiografia dos últimos duzentos anos corres
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ponde a realidades históricas excepcionalmente definidas, em que a sociedade sujeito dessa historia tornase inequívoca; assim, certos períodos da história de Roma ou porções de histórias nacionais européias na Idade Média. Quando se sai de exceções felizes, a confusão é extrema: não falemos das culturas orientais; em relação à Grécia as dificuldades são enormes, e sobretudo logo que se deixa para trás as póleis, isto é, a partir do século IV A.C.; a Idade Média européia, desde seu comêço, a história dos países mussulmanos, colocam dificuldades de princípio prévias a tôdas as questões de pormenor e das quais estas dependem. Os esforços historiológicos contem porâneos têm tentado de fato — com consciência ou não — estabelecer antes de tudo a realidade das unidades históricas; a formulação temática disto se encontra, por exemplo, na idéia de intelligible field of historical study de Toynbee (1), mas o mesmo problema já fôra debatido por Spengler <2), e em formas mais restritas, não referidas à história universal e sim a zonas concretas da mesma, por Hazard (8) e Américo Castro <4). A falta de clareza sôbre o sujeito da história tem levado inevitàvelmente a uma aceitação de unidades aparentes, por exemplo, à projeção de unidades atuais no passado, ou então à identificação das unidades políticas com as sociedades reais, visto que algumas vêzes de fato coincidem; ou, finalmente, quando se teve consciência do problema, a um simples empirismo informativo — isto é, à renúncia à história — ou a um “irracionalismo histórico”. Vistas as coisas por outro lado, a sociologia sem história cai num formalismo que só considera relações abstratas estando assim longe de se converter em conhecimento real, ou então engendra um empirismo paralelo ao histórico, no qual ao (1) Estudio de la historia, Vol. I, I, B, Emecé Editores, Buenos Aires 1951. (2) La decadencia de Occidente, onde já é proposto a fundo o problema das “culturas”. (3 ) Sobretudo em La crisis de la conciencia europea (1680-1715). Em El pensamiento europeo en el siglo XVIII se parte dos resultados do primeiro livro. (4) España en su historia. Os pontos de vista teóricos estão mais acentuados em El enfoque histórico y la no hispanidad de los visigodos e em Ensayo de hisoriología, onde já se introduz o termo “vividura”, e na nova edição daquele livro, com o título La realidad histórica de España.
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acúmulo de acontecimentos corresponde um acumulo de dados. Se na historia se costuma relatar que muitas coisas aconteceram, sem saber a rigor a quem, a sociologia corrente localiza certos fatos ignorando que os mesmos acontecem, isto é, que sua realidade consiste em ter acontecido. O resultado é o mesmo em ambos os casos: a ininteligibilidade. O problema só se esclarece um pouco se se tem presente que “vida” histórica e “vida” social ou coletiva são duas dimensões que se complicam reciprocamente, e que ambas são incompreensíveis se não se conhece primeiro o que é vida em seu sentido primario e radical, isto é, vida humana individual. A análise da vida humana nesta sua realidade efetiva descobre nela a sociedade e a historia como seus constitutivos, nela radicados; e sitúa em sua justa perspectiva as duas realidades e, po r conseguinte as duas disciplinas. A questão prévia que surge diante de qualquer realidade é onde a pôr, isto é, em que zona ou modo da realidade. A sociologia e a historia passaram por alto o problema e, precipitadam ente, tiveram por boas soluções insuficientes. Os conceitos de “acontecim ento”, “evento” , “fato social”, “relação social”, “ação recíproca”, “cultura”, “civilização”, “nação”, “Estado”, etc. foram aceitos gratuitamente e por pura inércia ou tomados de impréstimo de zonas diferentes de realidade — das ciencias da natureza, da política, da biologia, etc. — Quando Ortega, em 1934-35, dirigiu na Universidade de Madrid um seminário sôbre Estrutura da vida histórica e social — notese que se trata de vida e esta é ao mesmo tempo adjetivada como histórica e social — apresen touo como parte de seu curso de Metafísica, cuja parte estritamente teórica se formulava sob a epígrafe Principio de M etafísica segundo a razão vital. Toda a obra de Ortega responde a esta formulação do problema, renovada em seus cursos de Buenos Aires (1940) e Madrid (Instituto de Humanidades, 1948-50), antecipações de seu livro — publicado pela Revista de Ocidente em 1957 — El Hombre y la Gente. <*> Creio que é dêste' ponto de vista que se toma evidente a complicação da sociologia com a historia e, ao mesmo tempo, se supera toda confusão entre ambas. (*) O Homem e a Gente — Livro Ibero Americano, 1960 (N. do T.).
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5. As estruturas sociais, definidas por tensões e movimentos Uma estrutura social não é uma figura ou disposição dc elementos quiescentes. As vidas humanas são trajetórias, projetos, pressões exercidas em certo sentido; sua imagem poderia ser a flexa. Uma sociedade é, portanto, um sistema de fôrças orientadas, um sistema “vetorial” . Os elementos reais da sociedade não são “coisas” estáticas e sim pressões, pretensões, insistências e resistências, com as quais se realiza a “consistên ciaj” da unidade social. Todos os seus ingredientes “vêm de” e “vão a”, estão em mdvimentcefetivo. Quando não há movimento, não se trata de imobilidade e sim de repouso, de estabilização — sempre passageira — de um sistema de tensões. O ¿jue na sociedade não sofre mudança não é pelo fato de ser invariável e sim pelo fato de durar, de resistir e conservar sua figura, graças a uma série de esforços combinados. O mesmo se dá com o repouso de um ser vivo que é tudo o que se queira, inenos inércia. É preciso notar, é claro, que as analogias terminam aqui ou muito pouco além, e que tôdas as referências aos organismos biológicos, quando se trata de realidades humanas, devem ser tomadas com alguns grãos de sal. Mas não se trata apenas de que a estrutura social seja uma resultante de fôrças que atuam em determinada disposição* e sim que, como essas fôrças não são constantes mas variáveis em intensidade e direção, e como além disso os ingredientes reais de uma sociedade variam, a própria estrutura como conjunto, está em movimento. Com o que não quero dizer somente que a uma estrutura suceda outra, e sim algo mais profundo e^ im portante: que a estrutu ra como tal possui também sua trajetória, que é, ela mesma, programática, que está constituida em cada momento — e não só em momentos de substituição ou crise — por uma distenção dinâmica, por vir de um passado e estar tendendo para um futuro, os quais estão, ambos, presen tes. Conservação e antecipação são dois ingredientes essenciais de tôda estrutura social, e se mostram em qualquer secção intantânea que nela façamos. Um corte no tempo mostra a temporalidade intrínseca da estrutura, como quando se corta uma veia brota o sangue que por ela circula. Por isso tôda estrutura social é “antiga”, no sentido de que se chegou a ela, e é isto que a explica; por outro lado, ela
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se conservou, durou, e é isto que a justifica — Aristóteles advertía perspicazmente que para uma comunidade existir não é suficiente permanecer um dia ou dois ou três, mas sim durar — , e por isso tôda sociedade, dentro de certas medidas, é conservadora; porém ao mesmo tempo é essencialmente instável, é constituida de futurição, e por isso lhe pertence inexoravelmente uma dimensão inovadora. Em qualquer momento que se a tome, uma estrutura social está perdurando e inovando, está retendo o tempo que se escapa e antecipando o futuro. A rigór, passado e futuro se convertem nela em tradição e porvir: tradição, porque o passado funciona como algo legado, transmitido, entregue e de que o presente é depositário; porvir, porque o futuro não é somente o que “será”, e sim o que está por vir, o que está vindo, e mesmo sem ter chegado está presente no presente verbal do “está”: está — atualm ente — vindo, está •não estando ainda, antecipado, postulado, em forma de expectativa e iminência. tínicamente esta condição faz com que uma estrutura so^ ciai possa ser inteligível. Do mesmo modo devese entender qualquer estrutura, inclusive a de um organismo biológico um cachorro ou um ave — e até a de um artefato — máquina de escrever , fuzil, avião — , a partir da próp ria função, não a partir dos componentes estáticos ou, melhor, estratificados arbi tràriamente. Porém a diferença fundam ental está no fato de que na máquina e mesmo no organismo, dada a estrutura funcional, esta funciona, enquanto que no humano a estrutura nunca é “dada” e se constitui em virtude de seu próprio funcionamento. Em outras palavras, a estrutura social se define por seu próprio “argumento”; não se trata de que, uma vez existente, êste argumento lhe sobrevenha e sim de que ela consiste nele, s é tal estrutura determinada porque seu argumento é êste e não outro. O que nos tf>a^ d e volta, a partir de um novo ponto de vista, à evidência originária: a coimplicação ou complicação da sociedade e da história, a intrínseca histo ricidade das sociedades. E só isto justifica que — embora seja entre aspas — se possa falar com sentido de “vida” coletiva e de “vida” histórica, ou melhor, de “vida” histórica e social.
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O problema da “situação “situ ação histórica”
Podemos agora entender o que é uma “situação histórica” (5). A situação indic in dicaa um certo lugar lug ar ou situs em que q ue alguém está; mas isto exig exige, e, a despeito despe ito da variação var iação e histori histo ri cidade das situações, em que vou insistir imediatamente, uma certa “permanência”, por precária que seja, uma certa duração de tôda tôd a situação, situação, ainda aind a que sendo sendo instá instável; vel; logo veremos o alcance alcance disto e é preciso preciso desde logo logo o ter presente. Em sesegundo lugar, e para evitar uma confusão que pode ser perniciosa, devese distinguir “circunstância” e “situação”, têrmos que muitas vêzes são usados como equivalentes e que, com eleito, em alguns contextos funcionam como tais sem inconvenie veniente nte.. A rigor, rigor, diferem no seguinte: seguinte: a circun circunstância stância é tudò aquilo que está em tôrno a mim, tudo o que encontro ou posso encontrar enc ontrar à minha minh a volta; a situação situação não compreende compreen de todos todos os ingredie ingredientes ntes da circunstância circunstânc ia — muitos mu itos dêles dêles são exclusivaexclusivamente mente individuais; outros, ou tros, pelo contrário con trário,, são universais universa is e per p erm m anen an ente tes, s, p elo el o m eno en o s d e n tro tr o d e âmb âm b ito it o s m u ito it o v asto as toss — , e sim somente aquêles que nos “situam” num determinado nível histórico, isto é, cuja variação define cada fase da história; po p o rta rt a n to to,, som so m ente en te u m a p a r te d a circ ci rcuu n s tân tâ n c ia — aqu aq u e la que qu e tem, ao mesmo tempo, certa generalidade e maior labilidade — in inte terv rvéé m n a situ si tuaç açãã o h istó is tóri rica ca.. N o e n tan ta n to to,, enq en q u a n to que qu e tôda a circunstância é, naturalmente, circunstancial, há um elemento na situação situação que não o é: é: a pretensão pre tensão que me constitui e sem a qual não haveria situação; isto é, eu mesmo quando se trata tra ta de d e uma um a situação situação vital vital individual; individual; a pretensão pre tensão coletiva — real re alid idaa d e fugi fu gidi diaa q ue s e rá prec pr ecis isoo p erse er segg u ir mais ma is adia ad iann te — na situação histórica em sentido estrito. Esse situs que é a situação é um entre uma pluralidade de outros possí possívei veis; s; isto quer dizer que um a situação situação única ún ica é um contrasenso; contrasenso; se houvesse apenas uma, uma , não seria situação e sim uma um a simpl simples es determinação. determ inação. A situação se constitui pela (5) (5 ) Em minh minhaa Introdu Intr odução ção à Filosofia Filoso fia tratei reiteradamente do pro blema da situação. situação. Cf., especialmente, os itens 9, 20, 21, 35, 68 e 79. No presente livro limito-me a considerar as peculiaridades da situação histórica, reduzindo ao mínimo indispensável as referências ao problema prévio da situação vital, isto é, a situação em que se acha o indivíduo; embora, é claro, esta situação vital seja sempre também histórica.
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relação de complicação com as demais: isto é, as as exige exige m as não as inclui inclui ou implica; não existe sem elas, elas, mas não nã o se confunde confund e com elas elas.. P o r isso, isso, estar num nu m a situação situação signific significaa estar em uma situação e não em outra, em uma de várias possíveis e “presentes” enquanto orla virtual da efetiva em que estou. M as isto isto é puram ente formal e abstrato; ao concret concretizar izarse, se, esta pluralidade adquire um caráter mais preciso, não virtual e sim real. A situação, situação , que é intrínsecam ente histórica, se apreapr esenta afetada por uma instabilidade essencial; seu m odo de existir é a transição. O fato decisi decisivo vo é que o homem hom em que estava em uma um a situação situação sai dela para pa ra ir a outra. P or que? deve devese se pe p e rgu rg u n tar. ta r. E v id idee n tem te m ente en te n ã o p o d e p e rm a n e c e r in indd e fin fi n id idaamente nela; primeiro, prime iro, porqu po rquee é provável que os ingredientes ingredientes que que a compun com punham ham se se modifiquem: alguns alguns desaparecem, desaparecem , outros irrompem, em todo o caso variam sua posição respectiva e sua pe p e rsp rs p ecti ec tivv a; m as n ã o só p o r isto is to e sim, sim , sob so b retu re tudd o , p o rqu rq u e o homem pretende estar em outra situaçã situação. o. A pretensão não é somente razão de mudança das situações mas a condição mesma de que a situação exista, de que exista algo que se possa chamar situação; demostrei dem ostrei isto h á algum algum tempo temp o com um exemplo eleelem entar: entar: se estou em uma sala com a porta por ta fechada, posso posso definir m inha situação situação como “estar encerr en cerrado ado”” ; mas isto isto só é certo po p o r q u e ten te n h o a p rete re tenn s ão, ão , p róx ró x im a o u r e m o ta, ta , o u pelo pe lo m enos en os como disponibilidade, de sair; se, de m odo algum, não nã o prepre tendesse sair agora ou mais tarde, não teria nenhum sentido dizer que estou encerrado; ainda mais: mais: não o estaria. estaria. O homem desde há muito se sentiu ligado ao solo, porque teve a pretensão mais ou menos viva de voar, até que o consegui conseguiu. u. N ão teria sentido dizer, porém, que está encerrado no planeta, ainda que não possa sair dêle, dêle, porque porq ue não pretende pre tende sair; mas aguardes aguardesee um pouco e se verá como, por imaginar suficientemente as viagens interplanetárias, começará o homem a sentir que lhe assoma com alguma alguma autenticidade — isto é inexcusá inexcusável vel — a pre p rete tenn são sã o de s air ai r d a T e r ra, ra , e e n tão tã o sua su a s itu it u açã aç ã o será se rá a d e e n c o n trarse prisioneiro nela, servo da gleba terráquea, encerrado rigorosamente rigorosamente no exterior de seu seu cárcere convexo; convexo; e m uito pro p rovv àvel àv elm m ente en te p a s s a r á d e s ta situ si tuaç açãã o d e c lau la u s u ra a o u t ra de liberdade interplanetária. Portanto Po rtanto,, um a situação não é inteligí inteligível vel isoladamente; isoladamen te; só se a entende entende com parandoa parando a com com outras; concretamente, não com
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outras quaisquer e sim com aquelas que efetivamente a condicionam e cuja referência referência real a ela é um constituti co nstitutivo vo seu. seu. As «linações históricas se dão enlaçadas em uma sucessão, cujos característi característicos cos principais são são quatro: qua tro: 1) Como o tempo é Irreversível, a sucessão das situações não é uma simples série; além de estar ordenada, só pode ser percorrida em uma direção, em um sentido preciso. 2) Êsse tempo não n ão é apenas apen as sucessivo sucessivo o sim qualitativamente qualitativam ente diferenciado; diferenciado; cada cad a momento é insubstituível uível:: não só está “localizado”, “localizado” , não só é “outro” “ou tro” tempo, tem po, como também um tempo diferente; diferente; em outros têrmos, cada situação ó um nível histórico concreto. 3) C ada ad a situação situação histórica histó rica vem de outra — de tôda tôd a sucessão sucessão delas, delas, pôsto que o raciocínio raciocínio se aplica aplica à imediatamente anterior an terior — e é, é, portanto po rtanto um resultado resultado de algo algo prévio a ela, ela, sem o qual qu al não nã o é intelig inteligível ível.. 4) P o r último, como o que constitui cada situação é uma pretensão ou projeto, o isto é o que leva a passar de uma situação a outra, a mudança histórica é sempre inovação inovação e invenção. invenção. E sta razão concreta esclarece, de outro ponto de vista, as determinações que anteriormente apareceram como exigidas pela simples estrutura da temporalidade. Se simbolizarmos a continuidade histórica como um con jun ju n to d e fios fio s que qu e se entr en tree tece te cem m n a t r a m a d a vi vida da,, perc pe rceb ebee rem re m o s que êstes fios são “longos”, isto é, se dilatam no tempo, vêm de longe longe e se afastam em direção do futuro. Pois Po is bem, o que corresponde à situação, nesta imagem, é o nó. Os fios se atam uns com outros mas não se acabam ao uniremse, prolongandose mais mais além, em ambas direções. N ão foi gratuitam ente que desde há muito se sentiu que a situação é algo que se “desenlaça”, nó que se se desata ou se corta co rta — ou às vêzes vêzes sufoca. sufoca. O desenlace é a forma de solução solução — solução, solução, isto isto é, desate desate — do drama; dram a; à índole dramática da vida humana e da história corresponde sua estrutura “nodos “nodosa”. a”. E isto nos obriga a formular form ular um a última última questão que, que, no entanto, só poderá pod erá ser trata da mai m aiss adiante: se a história é continuidade descontínua — fios fio s a tad ta d o s — , q u a l é sua articulação? Como Co mo se atam e se se desenlaçam os longos fios fios temporais? Em outras palavras, o que determina a sucessão concreta das situações; quais são, são, de fato fato — estando já suposto suposto que tenham tenha m de existir existir — as situações situações históricas. Sòmente Sòmen te esclaesclarecendo êste ponto poderseá saber com algum rigor em que
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consiste realmente uma estrutura social, desde que esta é — repito mais urna vez vez — intrínsecamente histórica. 7.
Elementos Elem entos analíticos e empíricos da estruíura.
Poderíamos dizer que a estrutura social é a forma da vida coletiva, desde que se entenda de um modo real e dinámico a pa p a lav la v ra form fo rma: a: aqu aq u ilo il o q ue in info form rmaa e con co n fig fi g u ra rea re a lmen lm ente te essa es sa vida, não um simple simpless esquema esquem a ou figura estática. M as é necessário fazér uma nova distinç distinção: ão: a form formaa de tôda sociedade sociedade não é a mesma que a de uma sociedade determinada, isto é, os elementos que integram uma estrutura social podem ser agrupados em duas class classes: es: analíticos analíticos — aquéles aquéles que são encontrados encontrado s simplesmente mediante uma análise dos requisitos de qualquer sociedade — e empíricos — aqueles outros que são descobertos mediante a experiência, ao se considerar uma sociedade real e concreta, mas que, no entanto, continuam sendo estruturais (6). Alguns exemplos exemplos esclarecerão esclarecerão melhor isto. isto. Tô Tôda da sociedade sociedade é convivência, pluralidade de homens que vivem “juntos”, submetidos a um sistema de vigências comuns; ?sto é válido para tôda sociedade, decorre da análise de sua própria noção ou de qualquer sociedade real, na forma de requisitos sem os quais não existiri existiria. a. Mas essa palavra palav ra que acabo de escrever escrever,, “juntos” “juntos ” , e que parece tão pouco comprometedora, encerra um problema: signi signifi fica ca “em presença” ou não? E star sta r juntos juntos em um a peqúena cidade, onde todos se conhecem, não é o mesmo que numa giande capital, ou num pequeno Estado, ou numa nação, etc. Os atenienses de Péricles estavam “juntos” numa acepção diversa do estar juntos dos americanos americanos de Eisenhower. Essa determideterm inação ou elemento estrutural que é o estar juntos, salvo um núcleo abstrato e invariante, puramente formal, tem caráter em pír p íric icoo ; m as ente en tenn d a se s e bem: be m: n ã o q u e ro di dize zerr q u e seja se ja u m “dado” empírico o fato de que os membros de uma sociedade estejam “juntos” de um modo ou de outro, e sim que é um elemento estrutural, que a estrutura em questão difere como estrutura segundo sua concretude empírica. (6) Cf. meu trabalho trabalho “La vida humana y su estruct estructura ura empíric (em Ac A c tas ta s d ei Congresso Congre sso Internacional Interna cional de Filosofia, Filoso fia, Bruxelas, 1953), incluído no livro Ensayos Ensa yos de teoria, Barcelona, 1954. {Obras, IV).
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A temporalidade das sociedades apresenta uma série de Clirneterísticos formais e a priori que indiquei no item anterior; mus o fato empírico de que a vida humana tenha urna certa duração média e certo ritmo de idades condiciona estruturalmente mente cada sociedade. sociedade. A s relações relações de subordinação ou coorde nnçfio entre sociedades diversas, o isolamento de uma délas, o euráter colonial em relação a uma metrópole originária, etc., Nf Nfio fato fa tore ress decis de cisiv ivos os d a estr es truu tu tura ra.. O s a spec sp ecto toss apa ap a ren re n tem te m e n te quantitati quantitativos vos — nada na da o que é humano hum ano é somente quantitativo quantitativo — têm im edia ed iata ta rep re p erc er c u ssã ss ã o estr es truu tu tura ral:l: a m agn ag n itu it u d e d o p aís, aí s, a densidade da população — ainda que não deixe de ter alguma relaçSo, isto não coincide com o que chamei antes o modo de estar “juntos” “juntos ” — , as possibilidades possibilidades — física físicas, s, técnicas, técnicas, econôecon ômicas micas,, políticas políticas — de percorr perc orrer er o território, os graus graus de adscriad scrit o — quaisquer quaisquer que seja sejam m as causas causas —• ao lugar lugar em que se se vive vi ve.. O utro elemento estrutura l e empírico é o grau de “clau“c lausura” de uma um a sociedade, sociedade, e isto isto em muitas mu itas formas: para pa ra fora fo ra e pa p a ra d e n tro tr o (difi (d ificu culd ldad ades es de s air ai r o u d e imig im igra rar) r),, p o r razõ ra zões es geográficas (condição insular, montanhas, etc.), lingüísticas, econômicas econômicas (pobreza ou riqueza), política. política. A combinação com binação de Iodos êsses motivos produz em cada caso um grau e uma forma de relativa relativa “clausura” que condiciona a estrutura estru tura inteira. inteira. A pobr po brez eza, a, p o r exem ex empp lo lo,, f o r ç a a emig em igra raçã çãoo e faz sair mas, em outro sentido, não permite viajar e impede sair. A perseguição polí po lítitica ca se tem te m exer ex erci cidd o e m ocas oc asiõ iões es d e u m m o d o cent ce ntrí rífu fugo go,, tendo sido o motor de grandes emigrações, mas em outras formas — por exemplo, em muitas atuais — sua primeira conseqüência é o “encerramento” dos indivíduos na sociedade. Imaginese as diferenças de estrutura impostas por êste elemento de clausura na França em 1910 e na União Soviética dêstes anos, entre os Estados Unidos ou a Argentina de 1880 c o Tibet na mesma data. A determinação de uma estrutura social supõe que esta questão esteja suficientemente esclarecida e êste é, propriamente c naquilo que tem de característico, o propósito da presente investigação. Não se trata de fazer uma teoria geral das estruturas sociai sociaiss e sim sim de compreend comp reender er um a concreta e real; porém diante dêstes dêstes adjetivos adjetivos não se esqueça o substantivo: substantivo: a concre tude e a realidade afetam uma estrutura, deixando intácto êste caráte ca ráterr essencial. essencial. Os “"da “"dados” empíricos, inclusive os fatos his
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tóricos que será necessário levar em conta, só interessam na medida em que determinam, empíricamente que seja, uma estrutu ra social. E, inversamente, as considerações teóricas e pu ramente analíticas só intervém enquanto tornam efetivamente possível a investigação de tal estrutura de que se trata.
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Macroestratura e microestrutura da história: épocas historicas e gerações.
O tempo histórico não é um contínuo homogêneo; possui qualidade, mais ainda, consiste em sua qualificação, e esta e não outra coisa é a condição histórica. Porém, tão pouco esta qualificação é “contínua”, isto é, simplesmente gradual, mas apresenta “descontinuidades” ou articulações. E estas de duas índoles completamente diversas, cuja confusão ou interferência tem perturbado muitas tentativas de ordenar a realidade histórica, e que, no entanto, poderiam ter sido sumamente férteis. Quando se fala de períodos históricos, é preciso distinguir se a palavra é usada num sentido estrito — períodos regulares e que se repetem automáticamente — ou em sentido muito vago e lato — qualquer divisão do tempo histórico (7) — . É claro que o primeiro só pode existir se há na história algo de estrutura fixa e invariável — pelo menos dentro de espaços muito dilatados — que justifique a reiteração e o mecanismo; se isto não se dá, tôda periodicidade estrita será arbitrária, será imposta à realidade violentamente e significará pura cabala. Acontece isto com as tentativas de estabelecer uma uniformidade na macroestrutura da história, isto é, nas épocas históricas, onde falta um princípio geral de justificação. Isto não acontece, pelo contrário, se passamos à microestrutura, fundada em algo sumamente preciso e — dentro de certos limites — invariável: a trajetória temporal da vida hum ana, sua duração e o ritmo das idades. Aí se dá um a estrutura periódica rigorosa e necessária, a das gerações, não entendidas biologicamente, é (7) Informação muito ampla — embora não completa — no livro recente de J. H. J. Van der Pot: De periodisering der geschiedenis (een overzicht der theorieên), La Haya, 1951.
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claro — gerações no sentido da genealogia — , mas sim históricamente (8). O mundo se modifica — Ortega o mostrou — cada quinze unos aproximadamente e contrapôs à afirmação de que algo muda no mundo a de que é o mundo que muda, ainda que seja bem pouco; a isto acontece a cada geração. Mas é preciso ficar claro que quando se diz que “o mundo” muda, entendese o mundo de cada homem, isto é, a sociedade em que êle está inserido; porque tomandose a palavra “mundo” em sentido absoluto, não é exato que mude cada quinze anos, visto que — até hoje — não se constitui uma sociedade com um único sistema de vigências, e as mudanças “do mundo”, as mutações genera cionais, não são sincrónicas no mundo. Feito êste esclarecimento, a questão se torna inequívoca: cada quinze anos, aproximadamente, varia — quase sempre muito pouco — o conjunto das vigências de uma sociedade; isto determina uma articulação sumamente precisa do tempo histórico, que em lugar de ser “retilíneo” é “ondulatorio”, com um comprimento de onda de quinzie anos — não é preciso dizer que estas imagens não são mais que isso e não permitem sua “exploração”, isto é, delas não se pode tirar conseqüências inertes, sem contrastálas em cada caso com a realidade histórica de que se trata — . E justamente quando várias unidades sociais entram em contacto se produz uma “interferência” dêsses diversos movimentos ondulatorios ou séries generacionais, que levanta problemas especialmente delicados, sobretudo quando não se trata de uma simples “relação” de sociedades que continuam sendo diferentes e sim da transformação de umas em outras, por fragmentação, incorporação, anexação, fusão, emigração, etc. Por outro lado, a coincidência ou desnível da escala de gerações pode servir para determinar com pequena margem lie incerteza os limites de uma sociedade ou a pertinência de várias sociedades a um a sociedade mais ampla. Um estudo minucioso e preciso das gerações nos diversos países europeus permitiria determ inar, com o rigor de um estudo espectrográ fico, a marcha do processo de unificação da Europa, e isto nos (8) Veja-se meu livro El método histórico de las generaciones, Madrid, 1949 {Obras, VI).
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diversos estratos sociais, desde as “sociedades” mais abstratas — a vida intelectual ou um aspecto déla, a arte, etc. — até a sociedade concreta e efetiva em sua integridade. Do mesmo modo, a aplicação a fundo déste método poderia esclarecer o difícil problema das sociedades medievais dentro daquilo que depois se tomou cada nação — por exemplo, Castela e Leão, ou Castela e Aragão dentro da Espanha — ou, o que seria ainda mais interessante, as relações entre a sociedade crista e a mussulmana entre o século VIII e o XV. Porém, a estrutura maior da historia, as “épocas” ou “idades” , são coisas bem distintas. A suposição de que um certo número de gerações constitui sempre um período histórico maior é completamente gratuito, a menos que se a justifique, o que até agora não foi feito. Temse salientado o fato surpreendente e paradoxal de que a unidade mais arbitrária de tôdas, o século, os cem anos “redondos”, tem, apesar de tudo, certa realidade: uma fisionomia inequívoca distingue o século X VI do X V II, êste do X V III e do XIX , etc. Parece que um a variação bem perceptível acompanha a mudança de século. Creio, porém, que há uma explicação nada misteriosa dêsse “ritmo secular” de que falou J o é l (9): a consciência que tem o homem moderno de ter mudado de século, de estar estreando um século novo. A vivência do “ano novo, vida nova” , literalmente centu plicada. Lembrese — muitos o viveram, outros alcançaram apenas a espuma deixada no mundo em que nasceram e na memória pronta dos “mais velhos” — da passagem do século X IX ao XX : já nos últimos anos do oitocentos se antecipava e se preludiava “o século futuro” ; falavase de fin de siècle, inaugurouse o novecentismo; em redor de 1916, Ortega proclamou se “nad a moderno e muito século X X ”; até os rótulos das lojas chamaram a atenção para a mtfdança. Novas modas são lançadas, os homens e as mulheres vestemse de outra maneira e isto lhes dá consciência de “outro temp o” . Produzse uma rivalidade entre os dois séculos: os “velhos” e os “jovens” discutem interminàvelmente sôbre as excelências do século fenecido e do recémestreado, personalizandoos, porque para êles (9) K. JOEL: Der sãkulãre Rhythmus der Geschichte (Jahrbuch fãr Soziologie, 1925), e também Wandlugen der Weltanschaung, Tübingen, 1928.
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se trata de uma questão pessoal. Atribuise a cada século características próprias — o século das luzes, o século do vapor e do bom tom — , rememorase suas glórias, nasce assim um “p atrio tismo secular”, e sua “xenofobia” conseqüente, inclusive seus "chauvinismos”: o “estúpido” século XIX, o “maldito” século XIX. Procurase a “aliança” com outros séculos mais remotos para desqualificar o presente ou, mais freqüentemente ainda, para combater o próximo passado: condenase o século X IX talvez em nome do século XVI, ou mesmo “a partir dêste”. É inegável que tudo isto tenha uma vertente cômica, em certas ocasiões mesmo grotesca; mas o que não está dito é que o cômico não tenha sua importância e eficácia. A “consciência secular” é uma causa evidente de um “ritmo secular” inconfundível — epidérmico que seja — na história moderna; e a prova disso a encontram os no fato de que desaparece quando ultrapassamos o século XV: na história pretérita se produzem Fenômenos análogos, porém, em outros momentos, em outras voltas do caminho histórico, porque então o contar por séculos não tinha a mesma presença no cenário. A variação mínima — cada geração — fundase na esta bilidade do sistema de vigências enquanto um a geração está “no poder”, e sua substituição por outra quando a seguinte a substitui; estabilidade e descontinuidade são, pois, os característicos dessa microestrutura histórica — po r isso é estrutura articulada — , mas a elas somase a periodicidade. Enquanto a vida humana tem a mesma duração média e a mesma configuração de idades, a geração é uma unidade constante e elementar da mudança histórica; portanto, a unidade real de sua cronologia. A geração pertence, pois, à “estrutura empírica” da vida humana, é uma forma concreta da circunstancialidade da vida humana e, nessa medida, está sujeita a uma possível variação. A duração de quinze anos para a geração, é uma determinação empírica, somente válida de fato, porém com uma significação estrutural, visto que sua validez se estende a enormes ciclos históricos. O princípio daquilo que denomino macroestrutura é totalmente diverso. Embora o sistema geral das vigências — crenças, idéias, usos, estimativas, desejos, pretensões — mude para cada geração, não se pode dizer que uma geração esgote essas vigências; estas — entendase, quase tôdas — continuam vigentes,
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perduram através de várias gerações. Entre uma e outra alterase sua configuração: algumas se debilitam, outras se intensificam, talvez alguma se volatilize e surja outra em seu lugar; sobretudo a perspectiva se modifica; no entanto, persistem. Tôda uma série de gerações vive fundando suas vidas em um sistema de vigências que se conserva e perdura no que tem de essencial; a isso denominamos um a época histórica. Mas afirmando isto subentendese que não se trata de um conceito unívoco; a vida possui muitos planos e zonas diferentes; as alterações que afetam um de seus estratos deixam intactos outros; em outros têrmos, dentro de uma forma de vida so brevêm mutações parciais — com uma repercussão total, é claro — talvez várias vêzes e com conteúdos diversos; uma mesma forma de vida — em sentido m uito lato — pode ser modulada de diversas maneiras; as épocas históricas se “superpõem” em níveis diferentes, não são tôdas da mesma “ordem” de profundidade nem da mesma “magnitude”. Isto obrigaria a estabelecer um a hierarquia das épocas e, de fato, assim se faz na historiografia — distinguimos o mundo antigo da Idade Média, esta da época moderna, etc., e dentro da mesma “idade”, por exemplo esta última, o Renascimento do Barroco ou da Ilustração — ; falta porém esclarecimento teórico sôbre seu princípio. Faltaria conhecer a função das diversas vigências na vida, sua relação efetiva — da qual quase tudo se ignora, inclusive o próprio problema — , as conexões de fundamentação que existem entre elas. Só de posse dêste saber poderseia determinar a articulação dos diversos “estratos” sociais, a relativa autonomia de uns em relação a outros, a possibilidade, portanto, de que a variação de um dêles coexista com a perduração da situação em outros, e, por conseguinte, de que a mudança de época aconteça dentro de outra mais dilatada — idade ou como se a queira chamar — que perdura. A mudança de época significa sempre uma variação importante de estrutura, podendo se apresentar sob duas formas muito diferentes. A primeira é a que em sentido mais próprio denominase uma crise; o homem vive dentro de um sistema de vigências, entre as quais são básicas as crenças no sentido estrito do têrmo orteguiano; sua vida tem um a figura, condicionada por êsses pressupostos, e tem um horizonte de futuro que lhe é essencial. Ora, com o correr do tempo, ao sucederemse
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as gerações, cada uma das quais altera um pouco a situação, uma série de experiências e ensaios vão sendo feitos, bem sucedidos uns, fracassados outros, que vão quebrantando parcialmente as crenças dominantes e diminuindo o futuro; não se pense apenas no fracasso e sim também na realização: à medida que a pretensão coletiva de uma sociedade se vai cumprindo e se satisfazendo, se vai esgotando; o “horizonte” se aproxima, e no mesmo instante em que aparece accessível deixa de ser horizonte e se converte no muro de uma prisão. É esta a forma radical da crise, que bem poucas vêzes é notada: a crise da ilusão. Nesse momento o homem se vê sem saída, sem futuro, e sobrevêm o desencanto e a melancolia. Se não acontece algo mais, então acontece alguma coisa paradoxal — na 11istória sempre acontece algo, e o acontecer máximo é que nada aconteça, porque é o próprio nada que percorre a época em que isto se dá e a nulifica — : tudo persiste, parece conservado e estabilizado, inclusive seguro, mas muda de função na vida, desaparece a incitação, o que estava diante jaz aqui, possuido e inerte, ou então fica para trás. São estas as épocas desesperançadas, não as desesperadas. Nestas se tem a impressão de que “assim não se pode continuar” ; naquelas, pelo contrário, se está persuadido de que se pode continuar assim indefinidamente. È po r êsse motivo que nesse tipo de situações o desespére é um raio de luz: só êle põe um limite à desesperança, lhe dá um “prazo breve e perentorio”, e essa limitação dá novamente figura ao tempo e lhe devolve sua função verdadeira, e com ela, antes que tudo, sua dimensão de futuro. Mas há outra forma de mudança de estrutura social e, com cia, de época: quando a situação se modifica po r inovação, quando irrompe nela um elemento novo, suficientemente importante. Êste elemento pode ser das mais diversas índoles. Uma ampliação do horizonte geográfico com a conseqüente alteração econômica, política, histórica — assim o foi a descoberta da América — ; uma transformação econômica — a industrialização — ; uma fé religiosa — pensese na inovação m áxima do Cristianismo ou. em menor escala, no Islam — ; um entusiasmo ideológico, um “mito” — a nova imagem do mundo, entre os humanistas e Galileu, a liberdade nos alvores do Romanticismo — ; talvez um temor ou uma nova relação com a felicidade. Em todos êstes casos sobrevêm uma crise, não tanto porque o
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homem não saiba o que fazer e sim porque, sentindose outro, não sabe o que fazer consigo mesmo; por exemplo, não conhece seus limites, não sabe até onde pode chegar, necessita explorarse, saindo de sua própria forma de viver, de sua época, entrando no futuro com radicalidade desconhecida. Não se esqueça, porém, de que tudo depende da pretensão, da vocação. Um a mesma situação — por exemplo, a nossa — permite duas orientações, duas “saídas” de sinal diferente. Avaliese o quanto é possível que nosso mundo se estratifique, se massifique, se uniformize, fique dominado pela técnica e pela administração, paralítico, sem ilusões nem promessas; assim o estão anunciando, há alguns decênios, todo gênero de profetas maiores ou menores. Porém é igualmente possível que o homem de nosso tempo se convença de que ainda não deu a sua medida, e isto na forma mais radical de tôdas: justamente por descobrir que não tem medida dada; e então a vida se lhe apareceria como uma emprêsa inesgotável, feita de risco, invenção, esperança e fruição do real. Quando se fala de crise, quando se anuncia o fim de uma época, quando se diz qualquer coisa de uma situação, e se esquece de que o ingrediente mais importante da mesma é uma pretensão ou vocação aberta e livre, realmente muito pouco se disse.
II DINÂMICA DAS GERAÇÕES 9.
Articulação das gerações.
Se a história é certo movimento descontínuo e qualificado, articulado em uma série de situações sucessivas e ordenadas, de modo que cada uma delas significa um nível determinado, seguese: 1) que nenhum a situação isolada é inteligível; 2) que inclusive uma secção temporal — um momento — envolve uma pluralidade de níveis, visto coexistirem nele homens de diferentes idades. Isto significa que se queremos com preender uma estrutura social temos que estudála em uma “época” — maior ou menor — e que esta se nos aparece como um drama cm diversos atos executado por certos personagens e, é claro, com um argumento. Em meu livro já citado El método histórico de Ias genera ciones tratei minuciosamente desta questão, e a êle me remeto. Aqui apenas acrescentarei algumas precisões, não concernentes agora à teoria das gerações em sua generalidade, mas sim à função precisa destas dentros de uma estrutura social concreta. Às gerações têm uma dupla dimensão: são ao mesmo tempo “atos” e “personagens”, isto é, os “quem” e os “passos” da história. O movimento histórico não é contínuo, como o de um veículo que roda ou o de um avião, e sim descontínuo, como o de um quadrúpede ou o caminhar de um homem; isto é, procede gradualmente, ou seja por passos, por passos contados; e êstes passos — aproximadam ente de quinze anos — são os intervalos das gerações. A história pode ser contada por gerações, que são o presente elementar histórico: o prazo de relativa estabilidade de uma figura de mundo, as fases da alteração desta e, portanto, o ritmo temporal da variação histórica. Por outro lado, o ver
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dadeiro sujeito da historia é, como o vimos, uma sociedade; porém uma sociedade intrínsecamente histórica, isto é, constituida pela presença em um “mesmo” tempo de vários tempos diversos; e a forma real em que isto acontece é a convivência de várias gerações, ou seja a contemporaneidade dos não coe táneos, unida à existência efetiva da coetaneidade. Coexistem, pois, simultáneamente ou são contemporâneos, homens de idades diferentes e, portanto, não coetáneos; mas o decisivo está no fato de que os grupos de homens nascidos dentro da “zona de datas” de um a geração — segundo o têrmo orteguiano — . no mesmo presente elementar, têm sociológica e historicamente a mesma idade, são coetáneos. Portanto a geração não é somente um intervalo de tempo, uma unidade cronológica concreta e efetiva, mas também e essencialmente um grupo de homens dentro de uma sociedade, um dos personagens coletivos que convivem em cada situação, um dos membros dêsse sujeito plural da história que denominamos uma sociedade, É possível estudar uma estrutura social em um dêstes presentes elementares, isto é, tomando como “época” o lapso de uma geração? Não, naturalmente, porque as diversas gerações coincidentes ficariam simplesmente justapostas ou superpostas, mas dinámicamente inarticuladas. As gerações estão em movimento: se sucedem no poder, umas deslocam outras, desaparecem umas e surgem outras no cenário histórico; o dram a não é compreensível em um só ato — a rigor, tratarseia de uma cena — . Um a “época”, ainda que seja da hierarquia mais ínfima, compreende forçosamente várias gerações, porque, no caso contrário, permaneceríamos na microestrutura, que por si só é uma abstração. Devese assistir, pois, a articulação real de diversas gerações em uma época histórica se se quizer compreender em sua efetiva realidade dinâmica — não esquemáticamente — uma estrutura social. Várias gerações, disse eu. Quantas? Vimos que o princípio de uma época nunca é formal ou estrutural, como o das gerações, e sim de conteúdo e, portanto, empírico. Uma época elementar está determinada pelo aparecimento na mesma de “algo” — deixemos em suspenso o que possa ser êsse algo — condicionado por sua capacidade de dar uma nova figura à vida. Ora, se essa nova configuração acontece de fato, isto é, se chega a se dar essa época histórica, devese executar um
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proccsso histórico no qual intervenham, com papeis diferentes, várias gerações. Isto determ ina analíticamente os limites daquilo que poderíamos chamar uma “época mínima” ou, se se prefere, "época elementar”. Esse “algo” novo, cuja presença irá modular a época, surge pela primeira vez em determ inado momento, como patrimônio' ele uma geração cuja pretensão o inclui como elemento inovador; esta geração tratará de impor ao mundo uma figura condicionada — pelo menos parcialmente — por êsse “algo”. Quando esta geração cumpre sua fase de “gestação” e inicia sua “gestão”, isto é, quando chega à posição de “estar no poder’V ao cabo de quinze anos mais ou menos, a geração seguinte já encontra êsse “algo” fora de si mesma, prévio a ela, como alga que existe ou “está aí”; êstes homens são depositários de algo que a rigor não inventaram e diante do qual iniciam a repetição e a modificação. Êsse algo, que começou por ser minoritário e com a maturidade da primeira geração só logrou uma vigência minoritária, agora é vigente. Porém somente uma terceira geração terá esta vigência em forma plena, só então o mundo estará já determinado por êsse “algo” : é a geração “herdeira”, a primeira que nasce no mundo dessa época em questão, e se instala no mesmo. Esta situação — mutatis mutandis — se pode reiterar: uma série de gerações pode viver abrigada na mesma figura de mundo, cuja vigência perdura se bem que se alterando em cada uma das que se sucedem. Mas pode ocorrer — e leremos então o caso da época “mínima” — que a vigência dêsse mundo comece a se quebrantar a partir da quarta geração; nesta se pode dar o caso de que esteja dentro dêsse mundo definido pelo “algo” que é principio da época, mas sua pretensão coletiva, sua vocação íntima já se desvie dêle; se assim acontece, o “mundo” continua ainda afetado por essa determinação, porém para esta quarta geração é só algo “recebido” , ao que não se compartilha auténticamente; o eu social de cada homem que a integra está ainda condicionado por êsse fato, mas sua pretensão original é alheia; nesta geração se dá, pois, a crise da época, a transição — entendase, o seu primeiro passo — a outra época. Vemos, pois, que à primeira tentativa de olhar as coisas mais de perto, captamos a estrutura e a duração daquilo que denominei uma “época mínima” ou “elementar”: quatro gerações, nem mais nem menos. O “campo inteligível” cronològi
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camente é, em seu mínimo, quatro gerações, isto é, sessenta anos mais ou menos. Abaixo dêsse prazo não há, a rigor, uma época, se se entennde por êste têrmo uma forma de vida realizada e na qual participa tôda a sociedade, o corpo social em sua integridade. Isto prova, seja dito de passagem, que não podem ser consideradas como épocas as fases que se patenteiam quando se faz a história de dimensões abstratas da vida — filosofia, literatura, arte, política — e que freqüentemente duram muito menos tempo, pelo fato de não intervirem nas mesmas, com tôda a complexidade de sua estrutura, uma sociedade e sim apenas grupos particulares dentro da mesma. A rigor, quatro gerações não são um número suficiente para um estudo a contento de uma época mínima, pois deveriam ser levadas em conta as duas gerações que a delimitam: a anterior, em contraste com a qual ela se inicia, na qual talvez se preludie individualmente seu tema, e a seguinte, na qual se efetiva a liquidação dessa época e se a vê em perspectiva, como uma figura conclusa e fechada. Seis gerações, no mínimo, constituem pois os seis personagens com os quais se pode construir e entender o drama mais elementar da história.
10.
A determinação empírica das gerações.
De maneira alguma é fácil decidir quais são as gerações concretas; que existem, qual é sua função e sua dinâmica, tudo isto nos é ensinado pela análise da vida humana, individual e coletiva; que a duração aproximada da geração é de quinze anos — entendida esta cifra como “número redondo” que exclui a exatidão — , é conseqüência da estrutura empírica da vida; qual é a série efetiva das gerações, em que datas precisas se produzem essas variações do mundo que são os passos da história, só poderá ser decidido mediante uma investigação minuciosa e prolixa da realidade histórica. Tudo o que se afaste disso só levará a verossimilhanças e será mero tatear. As determinações de gerações concretas — sobretudo contemporâneas — que nestes anos se multiplicam, especialmente em relação à literatura espanhola, quase sempre são arbitrárias; quando se percebe isso, é comum uma atitude de desconfiança e ceticismo diante da possibilidade de decidir quais são de fato as gerações; porém seria surpreendente que o primeiro ensaio, a primeira
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conjetura levasse a resultados rigorosos. Imaginese tudo o que custou para esclarecer um pouco as leis da hereditariedade, os milhares de experimentos e observações com a Drosophila uicliinogaster ou com as ervilhas, os anos de paciente investi que requer o mais modesto conhecimento físico ou biológico, o qual absorve a atividade de equipes inteiras, por vézes numerosas, e avaliese a incongruência que significa pedir para assuntos humanos, muito mais complexos, apenas algumas horas do consideração improvisada. Somente de posse de um método rigoroso e após uma série de indagações teóricas muito estritas, cm presença de um material empírico copioso submetido a comprovações precisas, poderseia determinar com certeza a NÓrie real das gerações numa sociedade determ inada. Enquanto isso não se alcance — e, é claro que nem de longe ainda se o conseguiu — não se pode atribuir à teoria das gerações a Inconsistência daqueles que fazem uma utilização arbitrária e quase exclusivamente nominal da idéia de geração. No capítulo VI do livro El método histórico de las gene raciones expus as indicações de Ortega sôbre o princípio de determinação empírica das gerações: descoberta de uma “gera çiio decisiva” na qual a mudança do mundo é muito maior do que costuma ser; localização de seu “epônimo” ou homem representativo, estabelecimento de uma escala provisória e hipotética, tomando como data central de uma geração aquela em que êsse epônimo completa seus trinta anos — ou sua data natalicia, o que é equivalente, visto que não se altera com isso a série das gerações — ; po r último, aplicação da escala assim obtida, como um retículo, à realidade histórica, para que ela a confirme ou a retifique, impondo deslocamentos em um ou outro sentido, até que o retículo ideal coincida com o material empírico. No mesmo livro propus um modus operandi que faz uso do mecanismo das gerações e de nossa própria ignorância relativamente à sua escala efetiva; repetiloei em duas palavras, remetendo para os porm enores à obra citada. Tomese certo número de figuras representativas, distantes entre si quinze anos — uma ou mais po r data ou várias, se possível — ; não sabemos quais são os limites das gerações, nem quais são elas; mas sabemos que tôdas estão representadas, que cada grupo de nomes escolhidos pertence a uma geração diferente. Não co
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nhecemos as gerações, mas as “capturamos” em representantes inequívocos de cada um a delas. Se tomarmos agora nomes que pertencem à série de anos imediatamente sucessivos a cada um dos iniciais, provàvelmente pertencerão em cada caso à mesma geração; procedendo assim metodicamente, iremos obtendo núcleos ou agrupamentos de nomes nos quais irão se mostrando e exemplificando característicos comuns às gerações em questão; se, acrescentando um ano mais, chegamos à “fronteira” entre duas gerações, isto é, se êste novo ano pertence à geração seguinte, teremos tropeçado com uma anomalia difícil de descobrir em um caso isolado — existe uma ampla margem para diferenças individuais, irrelevantes quando tomadas do ponto de vista daa gerações — , mas que se poderá descobrir ao se produzir simultáneamente ao longo de tôda a série, isto é, em tôdas as gerações que foram ultrapassadas ao se lhes acrescentar êsse novo ano; e êstes últimos nomes mostrarão, pelo contrário, sua afinidade com aquêles que já havíamos selecionado e agrupado na geração seguinte em cada caso, o que supõe uma dupla confirmação. Êste método tem duas vantagens indiscutíveis: a primeira, sua universalidade, visto poder ser aplicado a qualquer época, seja ou não alguma das estudadas “geração decisivas”, seja fácil ou difícil encontrar um “epônimo” da geração; a segunda, é o seu resultado imediato: em todo caso, e embora não sabemos quais são as gerações, as temos de certo modo exemplificadas em seus “representantes”, os quais necessàriamente devem revelar os característicos das mesmas e as diferenças que as separam. Mas êste procedimento, apesar de sua simplicidade e segurança, não deixa de apresentar riscos e exigir precauções. A mais elementar é a que se refere à unidade da sociedade dentro da qual se escolhem os “representantes generacionais” ; em caso de dúvida, o melhor é pecar por menos, isto é, os tomar dentro de um âmbito social inequivocamente unitário, no qual a série das gerações seja indubitàvelmente a mesma, e depois fazer os ensaios de extensão ou ampliação que se tornarem necessários. Esclarecerei com um exemplo: parece sumamente provável que tôda a Europa, ou pelo menos a Europa ocidental, constitua a partir do século X V III — talvez antes — uma sociedade com a mesma escala de gerações; seria, porém, um êrro metódico selecionar, sem mais, os “representantes” nessa sociedade mais
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nmpla e a rigor hipotética, em lugar de se ater a uma naçãpi — Iispanha, França, Inglaterra, etc. — ; urna vez obtida a escala das gerações nacionais será o momento de averiguar se ocorre o mesmo com as demais nações, isto é, se suas escalas coincidem ou mostram um décalage; e precisamente estas duas possibilidades correspondem às duas situações de existência ou inexistência dessa suposta sociedade européia. A segunda precaução referese ao tempo; como a cifra de quinze anos é — repito — um “número redondo” procedente da estrutura empírica da vida hum ana e, portanto, inseguro — quanto à sua exatidão — e variável em princípio, não é prudente tomar longos períodos cronológicos; se êstes fôssem dem asiadamente prolongados, poderia haver uma alteração tal da longevidade e do ritmo das idades, que levaria também a variar a duração da geração dentro do lapso estudado; isto é muito im provável, mas mesmo em se tratando de períodos menos dilatados subsiste o outro risco: se a duração de cada geração não é exatamente quinze anos — uma investigação empírica minuciosa poderia mostrar que o número é outro, embora sempre muito próximo — , o êrro, insignificante e de fácil descoberta cm prazos de poucas gerações, seria grave e perturbador se se tomasse vários séculos. A terceira precaução a observar é mais sutil: examinandose os “nom es” representativos temos, é claro, vidas individuais; mas se examinamos os traços das mesmas devemos nos ater àquêles que possuem caráter coletivo, isto é, aos que acusam a presença nessas vidas individuais de um sistema de vigências sociais, que constituem o perfil de cada geração; os traços estritamente individuais, po r importantes que sejam, são irrelevantes do ponto de vista das gerações. Portanto, o mais seguro para iniciar — acentuo expressamente esta palavra — a determinação empírica das gerações, e escolher uma sociedade concreta e indubitável, por exemplo, uma nação européia; dentro de sua história, um prazo suficientemente longo para que várias gerações se sucedam e se as possa ver em seu dinamismo efetivo, porém o bastante breve para que perm ita uma visão de conjunto, e nele necessària mente não ocorra nenhum êrro numérico, isto é, uma “época elementar” ou mínima; por último, na sociedade assim determinada e demarcada, examinar as diversas dimensões da estru tura social em que estejam atuando os característicos coletivos
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e, po r conseguinte, generacionais. Portanto, se por um lado não é possível estudar uma estrutura social sem conhecer as gerações reais, o melhor modo de determinar estas é sua investigação em um a estru tura precisa: um a vez mais, o movimento de ida e de volta em que consiste o método do conhecimento de realidades humanas.
11.
Coexistência e sucessão das gerações
Quantas gerações coexistem numa sociedade, isto é, vivem simultáneamente em um momento do tempo? Se prescindimos de nossa época, na qual a situação está mudando, e nos referimos só à coexistência histórica das gerações, quer dizer, àquelas que têm participação na vida coletiva, podemos distinguir três: as que estão compreendidas entre os quinze e os sessenta anos. Antes dos quinze, na infância, não existe nenhum gênero de atuação histórica; nem sequer a receptividade e a formação transcendem, em geral, a esfera da vida privada; mas, por outro lado, porque se deter nos sessenta anos? E os homens mais velhos? Intervém aqui um fator quantitativo: as gerações não são intervalos temporais e sim grupos de homens, isto é, de muitos homens; as gerações articulam as grandes partes da população de uma unidade social; um número relativamente pequeno de homens, que represente uma exígua porção da sociedade, será qualquer outra coisa; poderseá dizer que êsses indivíduos pertencem a uma geração, porém subentendendo que essa geração já não existe. E foi isto que ocorreu, em tôda a história passada conhecida, com os homens de mais de sessenta anos: em sua maioria morreram e só restam contados sobreviventes. Não se trata de haver menos homens maiores de sessenta anos do que, por exemplo, os compreendidos entre quarenta e cinco e sessenta, mas sim de que há muitíssimo menos, numa desproporção que altera a função do grupo dos anciãos. Além disso, devese acrescentar que a idade avançada torna muito menor a eficiência e a atividade; por último, os grandes “claros” nas fileiras dos velhos faz com que suas formações estejam desarticuladas, que hajam perdido a articulação que haviam formado ao longo de suas vidas. Não constituem, pois, um corpo social que atue como tal na mecânica da sociedade
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sobreviventes, com uma função individual e qualitativamente diversa. No século XX, e não antes, a situação muda. O aumento iln longevidade faz com que haja muitos velhos e que êstes iilU> sejam tão velhos; isto é, lhes permite constituir uma fruçío social coerente, ainda que nümericamente inferior às nulrtis, dizimada pela morte ou pela invalidez mas ainda em fl loiras ordenadas. Isto significa que a geração mais velha, a doi dc mais de sessenta anos, persiste. E isto levanta um p roblema delicado, que não cabe neste lugar, mas que não quero deixar de, pelo menos, formular. A presença de um a geração a mnis não é um fato desprezível porque significa uma alteração na estrutura. As gerações têm funções precisas, e a intervenção iilivu de quatro em lugar de três modifica as relações entre elas. Significa, visto se tratar de um drama, a entrada em cena de um novo personagem e como êste exige um papel, é necessário proceder a uma redistribuição dêstes. Em que medida mudam nu funções das três gerações mais jovens pela presença de outra milis velha, plenam ente ativa? O fato de que a função de “so breviventes” tenha sido assumida pelos indivíduos vivos de uma quinta geração — no momento atual, a de 98 n a Espanha faz com que esteja “presente” , em um momento da história, uma zona mais ampla do tempo histórico e dilata a retentiva CHHcncial a tôda sociedade. Estamos, pois, a caminho de uma transformação profunda da estrutura social e do esquema das gerações: se esta longevidade maior se confirma e se estabiliza durante muito tempo — esta condição é inexcusável — , não sabemos se se consolidará um novo esquema de relação inter Uencracional — quatro gerações ativas e um resto “sobrevivente” — ou então se restabelecerá o anterior, reajustandose os “papeis” das gerações e a custa, é claro, de uma alteração de seu ritmo e de um aumento do intervalo das mesmas e de sua duração. Talvez o prazo de vigência de uma figura de mundo aumente e se aproxime, em um futuro não muito remoto, dos vinte anos mais ou menos; alguns fenômenos de infanta lismo, prolongação da adolescência e da juventude, etc., fariam pensar nesta solução; é prematuro, porém, decidir acêrca das estruturas das sociedades que se seguirão à nossa. Relativamente à sucessão das gerações, devese acrescentar ainda uma palavra. Ortega distinguiu entre épocas cum u i
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lativas e épocas eliminatórias e polêmicas; nas primeiras, a geração mais jovem prolonga no essencial a tendência da anterior; ñas segundas, discrepa da mesma e se rebela: uns são tempos de velhos, outros tempos de jovens. Mas se se tom ar uma época em sentido estrito, isto é, um mínimo de quatro gerações, freqüentemente mais, teremos um ritmo que pode se apresentar sob vários aspectos: com efeito, pode se reiterar a tendência cumulativa em tôdas as mudanças de geração; pode se dar com referência a um par de gerações mas inverterse na seguinte, etc.; quanto à tendência polêmica, pode ter um ritmo alternado — discrepância com a geração imediatamente precedente e coincidência com a anterior a esta — ou consistir numa série de sucessivas discrepancias inovadoras sem reiteração. No estudo de um a época, por conseguinte, é necessário determinar êste ritmo que compõe uma determinada configuração histórica. A continuidade, a estabilidade, a conservação ou perda de equilíbrio, a celeridade da variação, são tantos outros característicos condicionados pela forma da sucessão generacional. Ao dizer “sucessão” tenhase presente, porém, que se trata da sucessão das gerações no poder — ou em qualquer de seus papeis ou funções — , não a sucessão das mesmas no mundo, na história; porque neste sentido não se sucedem, como viu claramente Ortega e também M en tré(1); recobremse ou se entrelaçam, diz Ortega; estão imbricadas como as telhas num telhado, isto é, se superpõem parcialmente, coincidem num mesmo tempo, porém com funções diferentes, em nível diverso. Coexistência e sucessão não constituem duas propriedades das gerações e sim apenas uma: seu modo de existir é a coexis tência sucessiva, isto é, histórica.
12.
As gerações e sua expressão
Um dos problemas mais delicados e difíceis da investigação das gerações é aquêle que se refere ao seu modo de manifestação e presença. Como as encontramos? Tratandose das gerações atuais, o que acho à minha volta são indivíduos; neles (1) Veja-se meu livro citado, cap. V.
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posso descobrir certos característicos que os agrupam e, sobretudo, os situam a um certo nivel. No trato com um contem poráneo, o sinto como coetáneo, como homem de meu tempo, de minha idade ou não; no primeiro caso digo que pertence à minha geração; no segundo, que é de outra, anterior ou posterior. Mas esta “impressão” não é, naturalmente, suficiente, embora de modo algum seja desprezível; deveria ser justificada, e além disso terseia de descontar o coeficiente meramente individual que poderia trazer consigo; em outras palavras, o resultado da observação de um indivíduo, enquanto não transcende do individual para nele descobrir estruturas tranpessoais, nunca é suficiente para decidir sua adscrição a uma geração determinada. Isto faz com que não haja tanta diferença, como pareceria à primeira vista, entre a investigação das gerações atuais e as de uma sociedade pretérita; em ambos os casos é necessário ;ipelar às formas de vida coletiva, que não “aparecem” no sentido em que o faz o indivíduo concreto. Isto é, as gerações se manifestam ou se expressam, e me devo orientar a partir dessa expressão à realidade que nela se denuncia. Dos inúmeros homens que vivem numa época, só alguns tantos são lembrados, talvez um po r mil, ou por dez mil; isto supõe uma qualificação dêsses indivíduos “acccessíveis”, que o são por alguma coisa — incluindo entre os motivos possíveis o acaso — . Geralmente êsses homens são lembrados, são personagens para nós porque fizeram algo concreto, cujo característico comum é o de constar; alguma ação de índole — direta ou indiretamente — expressiva: escrever um livro, pintar um quadro, pronunciar discursos, ganhar ou perder uma batalha, governar ou tentar governar, sublevarse, cometer uma traição, inventar ou pelo menos mover a pena ou os pincéis do próximo, isto é, realizar uma ação “passivam ente” expressiva. Isto significa que a história está sempre manejando um material “excepcional”; realmente, o tema da história foi a princípio, e durante séculos, o excepcional como tal: o memorável, isto é, o que merece ser lembrado, precisamente porque não é o de todos os dias, aquilo que é digno de se Salvar dia esquecimento e se conservar. Desde Heródoto até o século XV III, a história se restrigiu ao excepcional; a partir de Vol taire seu esforço tem sido no sentido de superar esta limitação;
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mas sua servidão diante do excepcional sobrevive no fato de que déle é feito o material de que dispõe e maneja. N o entanto, é necessário levar em conta outros indicios ou expressões que se manifestam fora dessa órbita de valores. A idéia da intra história, na qual Unamuno (2) tanto insistiu, embora insuficientemente elaborada, era sumamente acertada; diríamos que, mesmo não sendo uma solução adequada, é o título de um pro blema. Unamuno acentuava que falamos do “presente momento histórico” e esta fórmula diz implicitamente que há outro momento presente que não é histórico; terseia que perguntar o que é então, e Unamuno responderia que é intra-histórico; mas esta expressão é ambigua, porque se se entender — e a isso propendía Unamuno — como algo que não é histórico, é um êrro, desde que todas as formas da vida humana hão históricas; a fórmula que tantas vêzes empreguei, “intrínsecamente histórico”, colhe da idéia de Unamuno o que ela tem de fecun do, evitando qualquer evasão da historicidade. Diante de uma manifestação accessível qualquer não podemos, portanto, nela permanecer simplesmente: temos que a referir a um nível, colocála em certa zona da realidade, radicá la nos pressupostos que lhe servem de base e que lhe conferiram sua possibilidade. É a isto que chamo a interpretação de seu caráter expressivo. Êste apêlo constante do resíduo histórico excepcional ao substrato relegado e esquecido que lhe dá realidade, é a alma do método de investigação das gerações. Consideremos o exemplo mais claro: um escrito. Aquilo que nele é estritamente pessoal sustentase sôbre uma base muito mais ampla de elementos prévios, que vêm da circunstância: a lingua em que está redigido, o gênero literário, isto é, a classe de “escrito” de que se trata, o título — entendase, o tipo de título — , os recursos estilísticos que põe em jôgo, o que não diz por “dar por suposto”, as idéias que efetivamente mobiliza, as “instâncias” às quais apela automáticamente por contar com sua eficácia na mente do leitor, etc. Tudo isto é impessoal — pelo menos transpessoal — ; não procede do autor, não se explica a partir do mesmo e sim a partir de seu “mundo”. Mas aqui aparece o problema especificamente histó (2) En torno al casticismo, I: “La tradición eterna”.
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rico, sobretodo do ponto de vista concreto em que nos situamos: o das gerações. Explicarmeei. Antes da irrupção da consciência histórica — que difere do histerismo, porque éste é uma teoria e aquela uma situação real — , o homem sentiase instalado em um presente de duração vagamente definida mas considerável, ao que se denominava “a época atual’. Lembrese quanto tempo persistiu a idéia de uma “história contemporânea” iniciada em 1789: a suposta “época atual” prolongouse sem resistências por mais de um século. A reação, provocada pela consciência histórica e reforçada por uma interpretação historista do humano, conduziu ao extremo oposto: a atomização do tempo e, portanto, a volatização do presente: éste consistiria em cada ano, apurandose melhor, em cada instante. Am bas as posições são, no entanto, falsas, porque o tempo tem qualidade e estrutura; e a prim eira missão da historia que se impõe é, nesse caso, estabelecer esta, o que significa “datar” os elementos que coexistem numa situação. Todos os ingredientes que procedem da circunstância ou mundo e que estão atuando impessoal ou transpessoalmente em um escrito, não são do mesmo estrato temporal, do mesmo nivel. Se o tomamos como expressão de algo que vai além de seu autor, é necessário precisar positivamente expressão de que são éles. E sómente um a parte désses elementos — ou alguns de seus matizes— procedem da geração do escritor e, nesse sentido, são expressão sua. Dentro do marco geral do que constitui o patrimonio de um a época, cada geração inscreve sua modulação peculiar, que se deve isolar e distinguir daquilo que é comum a várias outras como também do que é privativo do autor. Na realidade concreta e unitária de um escrito atuam desde as estruturas mais universais e permanentes até a irredutível vocação pessoal, insubstituível e única. Outro tanto ocorre com um quadro, uma intriga política, a maneira de ser rico ou de amar. Na consideração de certas ações concretas de alguns tantos homens, temos que discriminar o que nelas é expressão não de um mas sim de muitos, daqueles que vivem no mesmo mundo, isto é, dos que pertencem à mesma geração. É necessário perguntar pelas estruturas mais sutis que justificam em seu pormenor essas relações de expressão.
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13.
Massas e minorias
Tôda sociedade —• Ortega o demonstrou há trinta e tantos anos — é a articulação de uma massa com uma minoria. Porém massa e minoria, embora sejam dois têrmos que indiquem, a primeira a coexistência de muitos homens, a segunda a de poucos, não significam por isso, primàriamente, quantidade, e sim duas funções recíprocas: a massa é organizada, estruturada por uma minoria de indivíduos seletos. Sem massa, não há minoria; a minoria é a minoria de uma massa — e para uma massa — ; inversamente, a vida de uma massa é impossível sem uma minoria dirigente, e de um modo ou de outro, tôda sociedade a organiza e a forma, porque sem a interação de ambas não é possível a vida coletiva. Ortega dedicou um bom número de páginas ao estudo desta articulação mostrando que a saúde de um corpo social depende, em grande parte, da normalidade dessa ação recíproca, que a demissão da minoria dirigente, sua apatia ou seu fastio, ou, por outro lado, a indocilidade da massa, provocam um estado de enfermidade social, de dissociação. Como se trata, porém, de uma função social recíproca, as duas frações sociais — massa, minoria — não coincidem forçosamente com a ordenação estamental de um povo. É normal que coincidam grosso modo, porque a estratificação social é originàriamente uma conseqüência da articulação dinâmica em massa e minoria; mas mesmo no caso mais norm al e bem ajustado, tratase apenas de uma coincidência de frações sociais, não de indivíduos; em outras palavras, mesmo no caso de que a aristocracia seja a “capa” social efetivamente dirigente, isso não se pode estender a cada um dos homens que a compõem; e de modo análogo, indivíduos das camadas sociais “inferiores” assumem, inclusive nas sociedades mais estabilizadas, funções de direção e orientação, para as quais a coletividade procura sempre um “caminho” justificativo; pensese, po r exemplo, no significado do acesso às hierarquias eclesiásticas e na faculdade régia do enobrecimento, no mundo medieval ou renascentista. Tudo isto é perfeitamente claro, mas é preciso levar em conta outros dois pontos de vista, que complicam considerà velmente a questão. O primeiro é a interferência entre os con
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ccitos massa e minoria seleta, de um lado, e homemmassa e liomemdistinto, de outro. Ortega insistiu enérgicamente no fato de que a massa não está sempre formada de homensmassas; o homemmassa é a degenerescência do homem que integra a massa: o homem indócil, inautêntico, que não reconhece sua própria condição, o “menino mimado” ou “rapazote satisfeito”, componente da m assa rebelde — entendase, em rebelião contra si mesma, contra sua condição de tal — . Em tôdas as classes sociais há homensdistintos e homensmassas, porque não se trata, diz Ortega, de classes sociais e sim de classes de homens. Devese distinguir, pois, três pontos de vista: as duas funções sociais necessárias, massa dirigida e minoria dirigente; a “solidificação” dessas funções em classes ou estamentos que normalmente e de modo estatístco as exercem; a “classe de homens” dos indivíduos pertencentes a qualquer dessas classes sociais; no caso limite ideal, a massa de um a sociedade poderia não possuir nem sequer um “homemmassa” ; êstes, no entanto, se encontram em tôdas as camadas sociais, mesmo nas superiores. O segundo ponto de vista é ainda mais delicado. Poder seia pensar que há certos homens que por sua excelência, esforço ou talento pertencem à minoria seleta ou elite enquanto que os restantes simplesmente integram a massa, dirigida e orientada por aquela. Na verdade, a coisa não é tão simples. A perspicácia de Ortega não deixou escapar o fato que denominou “a barbárie do especialismo” : o homem eminente em um campo, que goza de autoridade legítima dentro do mesmo, é propenso a se comportar, em geral, de acôrdo com essa autoridade, portanto também nas outras dimensões de sua personalidade nas quais não está especialmente qualificado. Isto é, comportase como um homemmassa, porque não aceita sua função de massa, sua função passiva e dirigida, naquele ponto onde é a única que lhe corresponde. Isto significa que, a rigor, — salvo raras exceções — a minoria dirigente não está constituida por indivíduos — entendese, em sua integridade — , e sim por ações vitais de certos indivíduos, por funcionamentos concretos dêstes na dimensão em que realmente são qualificados. O grande político, que constitui parte da minoria dirigen te por essa sua determinação, quando enfermo é apenas um homem a mais, e não pode nem deve dizer ao médico como
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éste o ckve curar mas pelo contrário, seguir dócilmente seus conselhos ou — êste sim é um direito inalinável — mudar de médico. O físico ilustre, se só entende de física, não po derá dizer ao diretor de cena a maneira de montar um espetáculo, embora lhe é lícito se abster de contemplálo se êste não lhe agrada. O pintor genial não pode opinar sôbre a política internacional de scu país, entendase ativamente, isto é, dizendo o que se deva fazer, ainda que evidentemente pode recusar o programa político que um partido lhe apresente, preferindo outro. Em outros têrmos, a pertinência à minoria dirigente não é uma condição permanente de certos homens e sim uma função que cada um exerce enquanto qualificado para isto, e tão de pressa acabe essa função o indivíduo deve reintegrarse às fileiras da massa e, portanto, ser dócil. Que a distinção aristocrática autorize a decidir sôbre política, que o poder econômico implique orientação da literatura, que a condição sacerdotal permita opinar sôbre filosofia, que o saber científico confira licança para intervir na política estrangeira, são formas de “barbárie do especialismo” e, portanto, casos de rebelião de massas, isto é, indício da condição de homensmassas daqueles que assim o fazem. A diferença entre massa e minoria possui, pois, um caráter concreto e dinâmico. É um a função, repito; o fato de que a sociedade cristalize suas funções, as solidifique e as estabilize em magistraturas aproximadas, de exatidão apenas estatística, nã.o deve fazer esquecer o núcleo decisivo da questão. Essa solidificação é necessária, pertence à índole mesma da sociedade; e a margem de inadequação e “inexatidão”, que sempre implica, expressa apenas a dimensão de inautenticidade — maior ou menor, algumas vêzes pràticamente desprezível, outras vêzes preocupante — inseparável de tôdas as formas da vida coletiva. O estudo da estrutura social de um época concreta exige que se pergunte po r duas coisas: primeiro, pelos grupos sociais que exercem titularmente as funções de direção, que são oficialmente as minorias seletas; segundo, pela realidade efetiva, isto é, pela exata medida em que êsses titulares são realmente seletos e qualificados e, portanto, até que ponto desempenham essa função; e se não a desempenham — entenda se, suficientemente, com certa plenitude — surge uma última e delicada questão: saber se a sociedade é suficientemente vivaz
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e sã para ter podido criar uma minoria dirigente “vicária” e suplente, longe talvez daquela que aparentemente cumpre essa função, ou se esta permanece vaga, como um puro vazio ou então não cumprida, portanto se a sociedade está acéfala, desorientada e inerte. Um diagnóstico preciso sôbre esta situação é imprescindível para entender a estrutura interna de uma sociedade numa época determinada e, por conseguinte, a significação dentro dela de tudo o que acontece e, mais ainda, do horizonte de suas possibilidades imediatas.
14.
A estrutura “representativa” das sociedades européias
A articulação da massa com a minoria tem um esquema de relação invariável, porém que não passa de um esquema; seus modos de realização são muito variáveis. Uma prim eira determinarão, a mais elementar de tôdas, mas que precisamente por isso se costuma passar po r cima, é a quantitativa: as palavras “massa” e “minoria” têm uma referência imediata à quantidade; Aristóteles falava — em sentido não exatamente equivalente, mas que aponta para o mesmo fato — “dos muitos” e “dos poucos” . Até que ponto a minoria é minoritária? Essa porção menor da sociedade é mínima ou consideràvelmente numerosa? Cada povo, cada época apresenta uma proporção própria que condiciona o funcionamento recíproco de seus dois componentes. Porém, qualquer que seja a proporção em que se combinem minoria e massa, há formas muito diversas de conexão e ajuste entre elas; e um a de alcance especial, característica — ainda que não exclusiva — das sociedades européias, é aquela que denomino estrutura “representativa” . Neste caso, as minorias não só mandam, dirigem, orientam, inventam, mas além disso representam os grupos majoritários. A palavra “representação” pode, no entanto, ser tomada em dois sentidos distintos, que não se excluem, e as sociedades européias são representativas em ambos. Em primeiro lugar, representação como “delegação”, substituição ou lugartenência; as minorias “estão pelas” maiorias, atuam como delegadas das mesmas, são por elas “investidas no poder” porque é evidente que são as maiorias que conferem o poder às minorias, embora sejam estas as que mandem. Mas na verdade não é isto o mais im
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portante e peculiar; há um segundo sentido, o de “representação cênica”: as minorias representam, incamam e trazem à cena o drama majoritário das sociedades. A “pessoa” é o trejeito, a máscara: esta representação é a que personaliza ou personifica a vida coletiva. Fato êste que é prenhe de conseqüências. Indiquem os algumas. Antes de tudo, a existência de um “cenário”, isto é, o estabelecimento de uma perspectiva dentro de uma sociedade. É necessário haver uma cena na qual as minorias se encontrem, e que além disso seja visível. Estas duas condições, ponto de encontro e visibilidade, são aquelas que se procura realizar de muitas maneiras no decurso da história e conduzem à criação de uma “capitalidade”, cuja existência é menos óbvia do que hoje pode nos parecer. Pensese na função dos santuários ou lugares sagrados, nos jogos da Grécia, nas assembléias excepcionais, cenários parciais ou transitórios. A existência de um cenário social está ligada à magnitude das sociedades: se estas são muito pequenas, estão sempre presentes a si mesmas, não havendo, a rigor, cenário e sim convivência atual e compartilhada; quando se diz que a democracia ateniense não era representativa mas sim direta, devese com preender que o sistema político não era o decisivo e sim uma estrutura social: a sociedade ateniense era, tôda ela, cenário, ágora, e portanto não propriamente representativa ou cênica. Se, pelo contrário, as sociedades são demasiado grandes, o encontro e a visibilidade se tomam problemáticos, até por razões físicas e de comunicação; comparese a situação européia com a dos Estados Unidos: a “visibilidade” de Washington não é comparável à de Paris ou Londres; os “representantes” acorrem a Washington como “delegados” ou substitutos dos cidadãos que os enviam, mas sua atividade tem um mínimo de re prentação cênica sendo esta função preenchida de formas muito diversas; não vou tratar dêsse problema porque aqui não é o lugar, porém constitui um tema tão apaixonante quanto pouco estudado; lembrese apenas que poderia ser o fio condutor para se entender o êxito e o sentido da televisão na América do Norte (3). A segunda conseqüência é o caráter público da vida nessas sociedades, o que de maneira alguma constitui uma determina(3 )
Veja-se meu livro Los Estados Unidos en escorzo (Obras, III).
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ção óbvia e necessária da vida coletiva. A publicidade é devida a sua condição cênica ou representativa, mas não decorre, entretanto, da simples visibilidade do cenário: reclama também a presença virtual dos espectadores. Não se pode confundir, pois, a publicidade com o mero conhecimento; todos nós espanhóis, por exemplo, sabemos muitas coisas que, no entanto, não são públicas; a notificação nunca é equivalente à publicidade. Se nós espanhóis recebêssemos am anhã um envelope contendo uma notícia seria algo completamente diferente de a termos lido publicada no jornal; a rigor, nem sequer teria sido necessário que a tivéssemos lido: bastaria que a tivéssemos podido ler. De fato, só um a fração do país lê jornais; na hi pótese anterior, todos os indivíduos teriam recebido o envelope com a notícia, e, no entanto, embora fôsse ela conhecida pela totalidade, não seria pública; a do jornal, pelo contrário o seria. Daí a perturbação que o desaparecimento da publicidade produz nas sociedades da Europa; sua falta não é um a simples carência e sim uma privação efetiva; em outras palavras, quando uma forma de vida deve ser pública e não o é, tomase clandestina. Não é por acaso que a política européia tem mostrado desde há muito uma tendência parlamentarista; e é um êrro interpretar o parlamento do ponto de vista exclusivo da soberania e portanto da democracia; a função primária do parlamento — e a mais importante — é a que tem de “parla”, de falar publicamente, de cenário enfim. Que o parlamento legisle ou não, certamente é importante, porém secundário; o decisivo está no seu falar em público das coisas públicas. Esta função de cenário da vida coletiva — que em determinado m omento da Idade M édia foi exercida pelas Côrtes — é relegada em ou tra época à Côrte; notese que a decadência das primeiras é compensada pelo desenvolvimento da segunda; o estabelecimento da capitalidade, isto é, o fato de que a Côrte se lixe e se estabeleça numa cidade permanente, tem dois sentidos: é, sem dúvida, condição para seu esplendor e plenitude, para que se desenvolvam as formas da vida palaciana e se construa o “teatro” em que consiste; além disso, tendo os países euro peus conseguido estruturas mais estáveis e rigorosas, é menos necessário que a personificação dos mesmos, isto é, a realeza, percorra o país, se faça presente em cada uma de suas comarcas. O reino adquire assim uma figura nítida, possibilita que
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seus membros se articulem e, naturalmente, surge a cabeça, isto é, a capital; e todo um sistema de referências e comunicações — materiais e sociais — põe os diferentes pontos do território em relação com essa capital. Nesse cenário — Madrid dos Austrias, Paris dos Valois e do Bourbons, Londres dos Tudor ou dos Stuart — representam para si mesmos os dramas nacionais, enquanto que os diferentes povos europeus assistem a sua própria história. A terceira conseqüência é imediata: a necessidade de um “argumento” da vida coletiva. Entendase bem: tôda vida, individual ou coletiva, necessita argumento e sem êle propriamente não existe; mas, a vida de uma sociedade sendo representativa, êsse argumento deve ser expresso, vivido e sentido como tal pelos indivíduos. E isto por sua vez, requer duas condições: ser entendido, por conseguinte ser inteligível e ser compartilhado. Que significam estas duas últimas determinações da representação? A primeira, que os indivíduos possam compreender o que está acontecendo, que sejam capazes, em certa medida, de prever e antecipar os movimentos do cenário; isto é, que saibam “de que se trata”, “onde se quer chegar”. A supremacia francesa na Europa por dois séculos aproximadamente, se deveu, em grande parte, a que sua história fôra, então, a mais inteligível de tôdas (comparese com a situação atual e se verá onde se esconde o seu maior risco). A representação potencia a dimensão projetiva de tôda sociedade, a faz essencialmente futurista e portanto lhe impossibilita ficar reduzida ao funcionam ento de suas propulsões tradicionais. Dever seia entender por isto e preferentemente do que por razões meramente políticas, portanto relativamnte superficiais, a resistência de todos tradicionalismos às formas parlamentares eficazes e, o que é ainda mais sintomático, à plenitude da vida palaciana; não sei se foi estudado por êste ângulo a história das monarquias européias, mas me parece que seria fecundo examinálas dêste ponto de vista. A segunda determinação, que se refere ao fato de ser compartilhado o argumento da vida coletiva, significa que os indivíduos estão “nele”, sentemse pessoalmente afetados pelo que acontece, mesmo no caso em que não tenha repercussões diretas sô bre êles. N ão é de se estranhar que os impostos, as convocações ou o recrutamento regular afetem os indivíduos,
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como também é perfeitamente plausível que a guerra ou a paz, a ordem do Estado ou os serviços públicos sejam considerados por todos como coisa própria. É menos claro, porém, e muito menos seguro, que os comerciantes possam falar de “nossos” músicos, que os agricultores sintam que exista algo que se possa chamar “nossos” escritores, que contem uns e outros não só com “nossos costumes” como também com “nossa história”. Isto requer uma participação ativa no drama da comunidade; notese porém, que a qualificação ativa não significa “intervenção”: os camponeses não intervém absolutamente na marcha das letras ou da ciência, os empregados ou os operários não intervém na orientação da pintura, da música ou da retórica nacional; tratase da atividade do contemplador, do espectador, que se sente complicado com o que acontece no cenário, talvez em vão, mas que está fora do cenário — salvo quando alguma vez, no teatro e na história, irrompe na cena com a conseqüência ineludível de que ali mesmo acabará a representação —. E isto nos conduz a um último ponto que gostaria de insinuar. Tomei exemplos preferentemente da vida pública por antonomásia, da vida política — res publica foi seu nome em Roma, que entendia de política e de mando — , po r ser mais claro e mais simples. Mas é preciso afirmar enérgicamente que a estrutura representativa das sociedades afeta outras dimensões bem diversas. A arte e a ciência, os usos sociais, as modas, os espetáculos, a linguagem, acusam a marca dêsse caráter re presentativo, quando êle existe. E não se pode entender uma sociedade sem esclarecer em que grau e em que formas é representativa. Estas formas alcançam uma configuração precisa dentro de um a época; funcionam então como automatismos, de maneira que se conhece desde logo — com um saber implícito e que não “consta” — o que cada coisa “representa”. Isto permite avaliar, de um modo também automático, a importância das coisas, sucessos e pessoas, facilitando a marcha da vida coletiva, em grande parte mecanizada. É a isto que se denomina uma época “normal”. Essa função de aforamento da importância, que é decisiva em tôdas as formas da vida — também nai vida dos organismos — , se executa então com plena naturalidade e sem problemas. Sabese o que “representa” um olhar
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do rei, um sorriso da rainha, o sermão de um pregador, a pastoral de um bispo, um motim popular, a retirada de um embaixador, um baile, uma tertulia, a publicação de um livro, uma elevação de impostos, — os impostos sempre se elevam — , um artigo de fundo, o gesto de um general, a mudança de um ministério, um éxito no teatro, um prêmio, uma execução, um discurso parlamentar, um auto de fé. A vida regula espontáneamente suas reações às coisas e as condutas se tomam, pelo menos em principio, claras. Mas em certos momentos tudo isto desaparece: diante de um a coisa, acontecimento ou pessoa, não se sabe o que “representam”, e portanto, o que “significam”, ou melhor, visto que se trata de realidades humanas, o que “são”. Não se sabe como tom ar cada componente da vida comum, porque não se tem uma idéia clara daquilo que existe atrás, do que se expressa nessa aparência e de como se conca tenam umas coisas com outras, uns substratos com outros. Seguese daí a desorientação, a perplexidade, o enorme coeficiente de desacerto que ameaça tôdas as condutas individuais. Quando se alteram os esquemas das represntações, quase todos erram. Paira a impressão de que a torpeza alcança e domina a sociedade inteira. Em uma palavra, a coletividade se desajusta; somente muito poucos têm a serenidade e a perspicácia para saber — entendase, não pa ra já saber e sim para averiguar — o que representa cada coisa; porém como os outros não o sabem, o indivíduo, isoladamente, não pode orientar sua conduta contando com a dos demais e por isso os melhores são como que tolhidos po r uma “paralisia” aparente. Com pare se a situação com a orientação de vários carros, pedestres ou veículos por uma rua ou por um a estrada: não é suficiente que eu veja e me oriente bem; a decisão de meus movimentos depende do fato de que os outros me vejam e por mim regulem os seus: diante do homem que caminha distraído, lendo ou de costas, não basta que eu o veja; devo parar e me esquivar de sua trajetória cega, se quero evitar a colisão. Esta imagem esclarece o que acontece na vida social quando não se conhece o esquema das representações.
15.
O problema dos pressupostos
Tudo isto nos leva a um a conclusão metódica: a necessidade de retroceder de cada realidade social a seus pressupostos.
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Nada se esgota quando tomado isoladamente; cada ingrediente da vida hum ana — neste caso da vida coletiva — se nutre, mais ainda, é constituido pelo sistema de suas referências aos demais e, sobretudo, à estrutura social. É necessário, pois, ultrapassar, os limites de todo elemento concreto para chegar a suas vin culações reais. Em outros têrmos, cada um déles está sustentado por outras realidades, em princípio não aparentes, e que lhes dão sua significação efetiva. Isto afeta principalmente às expressões que mais fácilmente permitem conhecer uma realidade social: o que se diz. Dizer é sempre “querer dizer”; nunca podemos, pois, ficar sim plesmente no que alguém diz, sem já o saber ou então procurar saber o que pretende dizer, dentro de que contexto suas palavras funcionam, que propósito querem alcançar, a quem são destinadas; que repercussões se lhes pode prever, em que medida deixam transparecer sua intimidade, que grau de veracidade possuem e pretendem ter, isto é, como pretendem “ser tomadas” . Isto condiciona a significação de qualquer dizer humano, falado ou escrito, e ao mesmo tempo o configura, o faz ser como de fato é (4). Um exemplo esclarecerá isto. Pensese na maneira habitual em que a história é feita e nas exigências que uma verdadeira explicação dos fenômenos literários impõe. Naturalmente não é possível se restringir a um catálogo ou repertório de autores e obras, e nesse ponto hoje todo o mundo está de acôrdo; tão pouco não é suficiente a investigação das origens, fontes, antecedentes e influências. Mais ainda, nem sequer basta a análise temática e estilística das obras literárias. Evidentemente tudo isso é necessário, porém não se terá chegado todavia ao mais importante e, o que é grave, àquilo que justifica tudo o mais. A compreensão e utilização de um texto literário, especialmente se se o quer fazer funcionar historicamente — seja para fazer “história da literatura” ou história geral em qualquer forma — , requer a elucidação do que é “literatura” em cada época. É preciso determinar, em cada etapa concreta, quem faz (4) Veja-se meu estudo “Los géneros literarios en filosofía” (em Ensayos de teoría, (Obras, IV).
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literatura, que pessoas ou que grupos de pessoas, e para quem. Necessitase, pois, precisar a personalidade social do escritor, o conjunto de determinações — nada casuais, tão pouco constantes — que lhe conferem tal condição, e, não menos do que isso, a área de seus leitores, tanto qualitativa quanto quantitativamente. Não é indiferente — entendase bem, para a realidade estrita da ob ra literária — quem escreve, se é um frade ou um secular, um nobre ou um burguês, um homem que vive de sua pena ou não — ou se esta o ajuda a viver — . Tão pouco se pode passar por alto se se escreve para dezenas de cortesões ou para as massas — e que massas — ; urge precisar quantos — aproximadamente — são os leitores possíveis em cada momento, e calcular quantos dêles lêm cada gênero literário ou certas obras representativas. O número dos que sabem ler, o dos que poderiam ler por ter capacidade de adquirir livros ou ter acesso a êles; o número dos que por condição social são leitores; a presença maior ou menor de mulheres entre êles, etc. O número e tiragem das edições de certas obras, a freqüência de reimpressões, o incremento do ritmo de leitura — ou sua diminuição — num período determinado, o prazo de vigência de cada obra como leitura, antes de passar a ser tema de estudo — funções totalmente díspares — , são questões de cujo esclarecimento depende o fato literário. E como, salvo pouquíssimas exceções, não estão esclarecidas, podese dizer que a maioria dos fatos literários não são entendidos e nem é pouco o que falta para isso. Por outro lado, é preciso ver com rigor o que a obra literária, em cada caso, se propõe: ensinar, divertir, doutrinar, iniciar em um mistério, tomar “culto”, comover, provocar estranheza, abêtir; e, em cada caso, como; e com que outras atividades compartilha sua função respectiva. Por exemplo, com a narração oral, com o culto religioso, com os espetáculos, com a ciência, com a política, com a tertúlia; e concretamente em que proporção se rivalizam ou se aliam. É urgente medir com precisão a distância da literatura em relação à vida, os graus de autenticidade, espontaneidade, originalidade — coisas bem diversas — que em cada tempo e em cada gênero literário transparecem. Relativamente a êstes, se faz mister dar a razão dos mesmos e explicar com rigor seu cultivo ou seu abandono, sua fôrça em cada momento, a proporção em que
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predeterminam o conteúdo da obra literária, seu coeficiente de imprecisão, margem e folga. Devese averiguar também o pêso e a influência da literatura na vida, a estratificação dos gêneros literários — e dos autores — na sociedade, desde as obras destinadas a minorias extremas até a literatura de quiosque, cujos característicos e recursos em cada época deveriam ser objeto de investigação. Por último, uma vez chegados à próp ria obra literária — c há um longo caminho até ela — , é o momento de se perguntar perentoriam ente em que consiste, como alcança seus propósitos, quais são suas possibilidades e recursos, como se serve da língua e das formas literárias prévias para conseguir sua finalidade. A análise da obra literária — estilística, é claro, mas não somente isso — tem que responder a estas perguntas. Não basta, po r exemplo, estudar o ritmo da versificação, a estrutura das estrofes, a origem das metáforas empregadas pelo poeta. É preciso saber de onde êle parte, de que linguagem já encontrada, de que convenções vigentes, de que “regras do jôgo”, de que repertório de formas literárias elementares que, em cada época, pertencem ao domínio público, bens comunais da literatura, cujo inventário é indispensável fazer: provérbios, ou “tópicos” — como na literatura renascentista — , ou “mitologias”, ou um tom em falsete — 1790 — , etc. E isto, relativamente simples cm poesia, devese estender também aos demais gêneros, em formas mais complicadas. Em relação ao teatro, é presiso determinar a parte que representa dentro déle a “literatura”, junto a outros elementos. E em se tratando de nossa época, surgem as questões concernentes ao rádio, à televisão e ao cinema, não sòmente no sentido da adaptação das obras literárias a êstes meios e dos problemas que isto suscita, como também quanto aos característicos destas obras no mundo em que os autores e os possíveis leitores freqüentam o cinema, ouvem o rádio e assistem a televisão. Do mesmo modo, a literatura só se toma inteligível quando se está bem esclarecido acêrca de sua importância: a que tem a literatura — e o escritor — em certa época e a que tem cada autor ou cada obra determinados. A vontade efetiva de com preender obriga, pois, a apelar dos fenômenos aparentes a seus pressupostos latentes; dentro de uma época concreta, antes de chegar àquilo que hoje se costuma fazer — exame de autores e
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obras existentes — , deverseia form ular as questões prévias antes enumeradas e outras mais: por exemplo, o que pode o escritor fazer em cada caso, o que pretende conseguir — único modo de saber o que quer dizer, concretamente, êxito ou fracasso — , quais são os gêneros vigentes e em que fase de vigência se encontram, qual é a função real de cada um déles, que com ponente de inovação a produção literária possui — e em que medida, por razões sociais, se sublinha e mesmo se simula a inovação ou então se dissimula e se oculta — , em que medida há um estilo dominante ou não, quais são as relações efetivas — em autores e leitores — com literaturas antigas ou modernas estrangeiras, e que papel desempenham (função uterina, imitação, rivalidade, estímulo, etc.); quanto do passado literário nacional sobrevive e em que grau de vitalidade; como é sentido: como um lastro, um motivo de orgulho, um capital que garante uma renda, um grilhão ou um vexame; a que ponto pode a literatu ra ser — ou deve ser — desagradável ou aborrecida, ou se isto não é lícito. E outras inúmeras coisas que se poderia enumerar e ordenar com igual precisão. Todo dizer, portanto, — insisti no literário porque êste se conserva e pode ser tratado de um modo geral — remete a tôda uma série de pressupostos que o tornam possível, inteligível e significativo. E êstes fundamentos o são por estarem em relações mútuas de fundamentação, isto é, porque compõem uma estrutura, que por sua vez é uma parte ou esquema parcial da estrutura social de cuja investigação se trata. Mais uma vez, o círculo; porém, como já o mostrei em outra ocasião, não vicioso, e sim um círculo de virtudes que se chama sistema. E é preciso acrescentar que o dizer é, por si mesmo, apenas um exemplo, embora de dimensões gigantescas. Para exprimir as coisas em sua generalidade, as poderíamos formular como segue: a investigação encontra e maneja diversos dados; porém os dados são “dado s” : po r alguém, é claro, e a alguém, dentro de uma situação; êstes ingredientes constituem a realidade do dado enquanto tal, isto é, enquanto dado. Os dados requerem, portanto , inexcusàvelmente, uma interpretação ou hermeneútica e esta deve começar por determinar o âmbito em que êsses dados
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funcionam. Ora, vimos que as gerações são, ao mesmo tempo, os “quem” e os “passos” da historia, os personagens e os atos do drama em que consiste. Tô da hermeneútica, condição da inteligibilidade dos dados, requer uma determinação da dinâmica das gerações.
III AS VIGENCIAS SOCIAIS 16.
A idéia de vigencia
A palavra “vigencia” é um térmo técnico da sociologia de Ortega, que me parece dificilmente substituível. Sua origem etimológica é clara: vigência, em linguagem usual, é o estado ou condição do vigente; o vigente “tem vigência” ou “está em vigência”; e o vigente, vigens, é quod viget, o que está foem vivo, o que tem vigor portanto, e num sentido secundário o que está desperto, em estado de vigília ou vigilância. A palavra vigência é usada sobretudo em linguagem jurídica: uma lei vigente é uma lei que está em vigor, que tem “fôrça de lei”, que atualmente se impõe; essa mesma lei perde sua vigência quando já não tem essa fôrça ou vigor; um a lei das Partidas é um a lei e continua o sendo, mas não possui vigência, é inválida ou morta. Ortega introduziu no uso do têrmo duas inovações: a primeira é uma extensão do mesmo; em lugar de o restringir à esfera jurídica, o emprega em todo o seu alcance; em segundo lugar, designa com o substantivo “vigência” qualquer realidade vigente, enquanto é vigente; referese assim às vigências de um a época, às várias classes de vigências, isto é, aos conteúdos vigentes, atentando à sua condição de tais, e portanto à sua função na vida coletiva. Vigência é, pois, o que está em vigor, o que tem vivacidade, vigor ou fôrça; tudo o que encontro em meu contôm o social e com o que tenho que contar. Nesse caráter se estriba o vigor das vigências. Se em meu mundo social existe uma realidade em relação à qual os indivíduos não necessitam tomar uma posição, à qual podem desatender, com a qual, em suma, não têm que contar, não é uma vigência. Na sociedade, po r exemplo, existem
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indivíduos e grupos de individuos que são vegetarianos; mas não estou obrigado a me ocupar déles e de seu vegetarianismo, não sou forçado a aderir ou discrepar, posso perfeitamente não pensar nisso e não ter como problema a alternativa da conveniência ou inconveniência do vegetarianismo; isto significa que não se trata de um a vigência. Inversamente, tenho que contar com o fato de que outros indivíduos e outros grupos se entusiasmem pelo futebol: quando vou tom ar um ônibus em dia de jogo percebo que não consigo, porque já está ocupado por aquêles que o querem assistir; quando abro um jornal encontro inúmeras páginas dedicadas a êsse espetáculo, o funcionário não me atende porque está ocupado em predizer os resultados dos jogos do domingo, se sou em presário de teatro constato que meu público diminui pela paixão do futebol, etc.; isto significa que é esta uma vigência diante da qual devo tomar posição, com a qual tenho que me haver de um ou outro modo. De um ou outro modo, porque o fato de algo ser vigente não me obriga a aderir a êle; posso muito bem discrepar; mas aí está o importante: tenho que discrepar. Se não sou vegetariano, não discordo necessàriamente do vegetarianismo; simplesmente não sou vegetariano, e aqui termina a história, a rigor sem ter começado. Quanto ao futebol, pelo contrário, não tenho outro remédio a não ser ocuparme com êle porque, em si mesmo ou em suas conseqüências, vem a mim e tenho que fazer algo que se relaciona com êle: convites para assistir o jôgo, apêrtos nos veículos públicos, ausência de taxis quando déles preciso, distração do empregado, conversa sôbre o tema no barbeiro, imagens de futibolistas nas páginas do jornal que folheio e que me interessam ou me aborrecem se, por exemplo, prefiro encontrar as de uma atriz de cinema ou de um prêmio Nobel; páginas de notícias que tenho que ler ou saltar; têrmos futebolísticos que irrompem na linguagem. É discordando que posso compreender melhor a realidade da vigência, sua resistência, sua coação, à qual me submeto ou tenho que repelir mediante um esforço. Isto significa que o modo autêntico de realidade do social não é o simples “estar aí” mas sim a pressão, a coação, o convite, a sedução; o característico do social não é o “estar” e sim o estar atuando. Por isso não há outra expressão melhor que a de “vigência”: a vivacidade e o vigor são especialmente o que os ingredientes que compõem a vida coletiva possuem de próprio;
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porém é precso acentuar que não se trata de ações: seu vigor se exerce com sua presença, por vêzes com sua simples resistência inerte, como a do muro que me impede a passagem. Convém prevenir um equívoco. Se afirmo que tenho que contar com as vigências, poderseia entender que ésse contar é forçosamente ativo, que é um expresso atender a elas com clara consciência. Mas não se dá tal coisa. Essa minha atitude só se realiza em dois casos: quando a vigência não é plena ou quando eu, pessoalmente, estou em desacordo com ela. Em outros casos, conto com ela em forma passiva, sendo informado e conformado por ela, comportandome de acórdo com ela, submetido a sua influência tão imperiosa quanto automática. Assim como estou sujeito à lei da gravidade ou à pressão atmosférica, estou submetido às vigências. Habitualmente não penso n;i gravidade ou na pressão do ar, mas no entanto me comporto contando com ela: não deixo o livro no ar para que não caia; não ponho sôbre meu pé um pêso muito grande para que não o amasse; não me atrevo a transportar um piano, porque pesa demasiado, vôo num avião contando com a resistência do ar. Normalmente ando pela rua seguindo pela calçada, sem pensar nisso, orientado em minha marcha pela sua estrutura prévia. Quando vou beber água conto com que ela esteja fria, sem ter pensado nisso nem um instante, e só noto sua temperatura se por acaso ela estiver quente; do mesmo modo, quando na rua falo a um transeunte, tenho por certo que entenderá a língua do país, e isso só se torna problemático se por acaso êle não estiver submetido à vigência geral lingüística, o que acontece expressamente no momento em que esta não fôr cumprida. Isto significa que estamos inclusos num mundo social que não se compõe de coisas e sim de certas realidades atuantes e, como em seguida veremos, mais misteriosas e mais estranhas do que parecem, que sôbre nós exercem pressão ativa ou passiva, positiva ou negativa, e com as quais temos que contar, queiramos ou não, saibamos ou não. Esta atuação das vigências se exerce segundo certas linhas estruturais e não de um modo uniforme; porém, vistas as coisas por outro lado, o que chamamos estrutura consiste principalmente na disposição, conteúdo, intensidade e dinamismo das vigências. Como sempre, encontramos a impossibilidade de explicar os ingredientes fora de sua estrutura, e a estrutura sem nela incluir os ingredientes. Isto revela
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que as noções costumeiras — matéria e forma, indivíduo e espécie, elementos e movimentos, etc. — derivadas do pensamento acêrca de coisas são dificilmente aplicáveis às realidades humanas, e no máximo podem “ser traduzidas” analógicamente e com restrições. Se entenderm os os indivíduos como “coisas” que estão num “espaço”, ou então a sociedade como uma grande coisa “composta” de elementos, jamais entenderemos o que é vida coletiva, e portanto será inútil tentar penetrar no sentido de uma estrutura social. Necessitamos pô r em jôgo todo o adquirido até agora para esclarecer em que consistem as vigências e, portanto, de que está feito nosso contômo social.
17.
Limites das vigências.
As vigências se exercem sôbre os indivíduos, são êstes que devem contar com elas, mas estas nunca são de caráter individual. A pressão não é o resultado direto de uma ação individual mas se exerce a partir da sociedade e sempre através dela. Quero dizer com isto que uma imposição de caráter estritamente individual nunca é vigente, por exemplo, a decisão arbitrária de um déspota; a menos que tenha vigência social a crença de que os caprichos do déspota têm fôrça de lei, isto é, que através da sociedade se lhe acrescente à simples fôrça uma “sanção” peculiar que a converta em efetiva vigência. Isto é sumamente importante para entender as estruturas do poder e do mando. As vigências se produzem, pois, dentro de uma área determinada e supõem um âmbito social dentro do qual são vigentes. O “dentro” é uma dimensão essencial de tôda vigência. E correlativamente o “fora”, isto é, a zona em que já não é vigente. A vigência possui, portanto, certos limites que, por sua vez, contam consideràvelmente na constituição da própria vigência. Quando Pascal escrevia Vérité en deça des Pyrénées, erreur au-delà, formulava precisamente um a condição das vigências. E outro tanto poderseia dizer do tempo. No sentido jurídico, onde se emprega normalmente o têrmo, uma lei é vigente em certo território e a partir de um certo momento até outro em que é abolida, derrogada ou cai em desuso. A diferença essencial, não obstante, está no fato de que as vigências sociais não são promulgadas nem derrogadas; seria por isto um êrro inferir da condição limitada das vigências um
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caráter “convencional”. As vigências não são convenção, porque não são convindas, não emergem de uma decisão de indivíduos; acabamos de ver que mesmo no caso de que o conteúdo de uma vigência proceda de uma vontade individual, para que alcance caráter de vigência é necessário se interpor outra instância, rigorosamente coletiva e impessoal, da qual se beneficia a vontade em questão. Quando o homem antigo se deu conta da limitação de muitas coisas, sua restrição a certos tempos ou lugares, as interpretou como convenções — esta é a história do cinismo e, em bôa parte, de todo o pensamento helenístico — ; isto se deveu, no entanto, à quase completa cegueira dos antigos para o social; sua interpretação da sociedade como pólis, como comunidade política, os fêz entender como nómos, convenção ou lei, tudo o que não é natural, projetando assim sôbre as realidades sociais os característicos privativos das realidades políticas. Aristóteles, com uma perspicácia que não se costum a se lhe reconhecer, percebeu tão de perto o caráter do social que pouco lhe faltou para fazer uma autêntica sociologia; porém, justamente as vigências dominantes lhe impediram tirar todo o partido de sua intuição e terminou por formular o problema em lérmos de uma Política, deixando a meio de caminho suas idéias mais penetrantes e profundas (1>. As vigências não são convindas, não emanam da vida individual enquanto tal; porém, tão pouco são naturais: são especificamente sociais e isto significa que são históricas. Mas o mais importante está no fato de que a limitação das vigências possui não só caráter negativo, no sentido de que “além ” de seus limites já não são vigentes, como também a vigência enquanto tal está constituida por essa limitação positivamente tomada. As vigências “vigem” em um âmbito, são pressões exercidas dentro de um meio fechado, e estas pressões se exercem a partir dos limites e por uma massa social determinada por ôles. Os limites estão, pois, atuando sôbre o indivíduo submetido a uma vigência, e na medida em que o homem a conhece, ôsses limites lhe são obscuramente presentes. Se se pergunta quem exerce as pressões sociais, quem dá vigor às vigências, (1 ) Veja-se minha Biografía de la Filosofia (Obras, II), cap. II e III, “El sentido de la filosofia da Aristóteles” e “Introducción a la filo sofía estoica”; veja-se também “Marco Aurelio o la exageración”, em San Anselmo y el insensato, (Obras, IV).
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podese entender de duas maneiras: se se pretende aludir a alguém individual, não tem sentido algum a pergunta e se deve responder pela negativa ninguém — isto é, ninguém concreto e pessoal — o faz; se se interroga pelo sujeito das vigências, então é perfeitamente legítima e exige um a resposta precisa. O homem não sente igualmente a pressão que lhe vem de sua família — “nesta casa não se bebe álcool” — e a que procede de um círculo amplíssimo — tal insulto é intolerável — ; uma mulher não se sente submetida da mesma maneira à moda que começou a ser vigente no outono e à milenária obrigação social de esperar a iniciativa amorosa do varão: se encurta intempestivamente sua saia ou conserva o coque recém cortado em seu meio social, terá que enfrentar as represálias de uma "sociedade” de espessura temporal mínima; se resolve declarse ao homem de quem está enamorada, terá que vencer a pressão de centenas de gerações superpostas. Não se trata apenas de mais ou menos. O como de pressão, isto é, a qualidade da vigência, depende em grande parte de seus limites. Talvez a pressão da vigência inveterada seja “lenta”, e a represália à sua violação se execute tardiamente, enquanto que a réplica à infração de uma vigência recém constituída é fulminante — por exemplo, ao uso de uma saudação política, ao emprêgo de certa peculiaridade lingüística caída em desprestígio, por parecer grosseira ou “cursi” (*); e no entanto, é muito provável que com o tempo não seja possível faltar à velha e tardia vigência, enquanto que a que se refere à saudação ou ao modo de falar inverterseá dentro de poucos anos e será substituída po r sua contrária: o que antes era obrigatório será pouco depois proibido e viceversa. Da mesma maneira, os limites atuam sôbre o que poderíamos chamar o “ponto de aplicação” da vigência (quando se trata de fôrças e pressões, as imagens mecânicas são insubstituíveis, embora, é claro, devam ser tomadas apenas como imagens). Dependendo de onde procedem, as vigências afetam a uma ou outra dimensão da vida individual, a uns ou outros (*) “Cursi” — adjetivo que se começou a usar na Espanha, em meados do século XIX, para designar a imitação das formas superiores e refinadas, com poucos recursos e falta de gôsto. (Nota do autor para a tradução brasileira).
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grupos sociais, talvez a todos. Isto significa que só poderemos entender o fenômeo da vigência se percebermos quais são suas diferentes espécies e as conexões que as ligam entre si e à estrutura social. Em outros têrmos, tratase de averiguar se as vigências constituem um simples conjunto, soma ou repertório, ou se se pode falar com rigor de um sistema de vigências como componente de uma sociedade determinada e, portanto, como condição de uma estrutura social.
18.
A vigência geral e as fronteiras de uma sociedade.
Entendo por vigência geral aquela que se estende por tôda uma sociedade, portanto com a qual têm que contar todos os indivíduos que a compõem. Porém, como vimos antes, um a sociedade não é primàriamente um conjunto de homens ou um. território determinado mas está definida por certas vigências comuns; parece, pois, que nos movemos num círculo: definimos a generalidade da vigência pela sociedade e a unidade social pelo império da vigência. Será fácil escapar a esta dificuldade? Por outro lado, se escolhemos uma vigência, devese considerar como uma única sociedade tôda a área dentro da qual ela domina? Por exemplo, formará um a sociedade a parte da hum anidade onde é vigente que cabe ao homem declarar seu amor ou onde se usa o matrimônio monogâmico? É suficiente esta consideração para se ver que uma vigência não pode definir um a sociedade; se é geral, terá que se estender integralmente a uma sociedade, porém não está excluido que seu domínio alcance diferentes sociedades. São necessárias, pois, várias vigências comuns para que a área de uma unidade social possa ser dem arcada. Quantas? Esta pergunta, naturalm ente, não tem resposta; não é o número o que mais importa ■— inclusive isolar numéricamente as vigências é uma operação que pode ser metodicamente necessária, mas que envolve um coeficiente considerável de abstração e esquematização da realidade — , e sim a função e o valor das vigências. Uma sociedade está definida pela comunidade de certas vigências básicas, isto é, que determinam a conduta em seus traços gerais. Porém o têrmo “conduta” é por sua vez muito vago: conduta é possuir uma família monogâmica ou várias amantes, ganhar dinheiro mediante um trabalho remunerado ou roubar, vestirse de certo modo ou
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andar nu, fazer ciência ou metafísica, escrever poemas, ter amigos, conspirar. . . A conduta que importa aqui é algo muito preciso: os traços de conduta que interessam são aquêles que afetam a convivencia e, relativamente a êles, as vigências têm que ser comuns dentro de uma sociedade; caso contrário, não há sociedade, porque a convivência é difícil ou impossível. Mas é preciso notar mais duas coisas. Um a delas, a mais simples, é que não importa que as vigências sejam violadas — desde que a violação não seja demasiado freqüente — com a condição, no entanto, de continuarem vigentes: o ladrão que infringe a vigência de que se deve respeitar a propriedade, com seu próprio ato — isto é, com o tipo de conduta (ilegal, furtiva, excepcional, etc.) ao qual o ajusta — está afirmando a vigência; o homem ou a mulher que são infiéis a seu cônjuge, precisa* mente na medida em que são infiéis, em que se comportam como tais, implicitamente “colocam” a vigência da fidelidade, condição sine qua non para que a infidelidade como tal seja possível. Por outro lado, as determinações que afetam a convivência e em relação às quais se requer comunidade de vigências não são as mesmas em tôdas as sociedades: por exemplo, na Espanha dos Austrias era vigente a obrigatoriedade da religião católica, porque não se podia conviver com o hereje; nos Estados Unidos de hoje, pelo contrário, a diversidade religiosa não interfere na convivência, e o vigente é justamente que se possa ter uma ou outra religião; o intransigente, o que pretendesse impor uma única religião, faltaria a uma vigência básica e acarretaria precisamente uma crise à convivência norm al. Isso que chamamos convivência tem sempre uma figura determinada; quando se convive, o “con” afeta umas ou outras das dimensões do viver. Não se pode, portanto, tomar a vigência como algo inerte visto que — como todo o humano — depende de um projeto ou pretensão, de uma figura de vida que se aspira realizar. Lem brese que estar vigente significa estar vivo, mais ainda, “bem vivo”, cheio de vigor; encontro — à primeira vista passivamente — as vigências de meu contômo, tropeço com elas como com uma cordilheira, mas se me pergunto por que são vigentes, só poderei encontrar a explicação em sua gênese dentro de certa pretensão ou projeto de vida coletiva; e não apenas isto, mas também que sua vigência atual, isto é, o fato de que ainda estejam vigentes, se funda na perduração dêsse projeto
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ou na existência de outro que é coincidente com êle nessa dimensão. A primeira tentativa de precisar o que significa a expressão “vigência geral” descarta, portanto, a hipótese de que as vigências ocorram como um simples repertorio ou conjunto; seu caráter reclama uma série de relações de vmficação — a forma mais profunda e rigorosa de “fundamentação”, pois é a fundamentação não simplesmente lógica e sim real — que emanam da estrutura concreta da vida humana; e como esta é sistemática (2), as vigências existem de fato na forma de um sistema coerente, entendase, vitalmente coerente, o que muitas vêzes implica a incoerência lógica, por exemplo do ponto de vista da “irracionalidade” dos usos. Portanto, uma trama de vigências básicas coincidentes constitui uma sociedade; a área determinada por essa coincidência marca sua extensão; as fronteiras de uma sociedade são traçadas pelo dominio de um sistema de vigências comuns; a zona de validez de algumas destas se estende além das ditas fronteiras; por vêzes não apenas uma e sim várias — mas não em número suficiente para determinar uma unidade de convivência real — se extravazam da sociedade efetiva e imperam fora de seus limites; e isto significa que as fronteiras não são rígidas e estritamente lineares mas que há certa labilidade e que, sobretudo, se superpõem à sociedade sensu stricto outras que constituem unidades abstratas e mais tênues. Se tomarmos uma sociedade inequívoca — por exemplo, uma nação européia — , veremos que há dentro dela uma comunidade de vigências básicas, mas, por outro lado, perceberemos que muitas delas não são privativas da Espanha, França ou Alemanha, e sim comuns a várias ou a tôdas as nações da Europa, talvez também a vários ou a todos os paíes americanos, provà velmente umas a tais grupos e outras a grupos diferentes, em diversas configurações. Isto prova que existem, além das sociedades nacionais, outras mais amplas e menos compactas, cujas fronteiras se pode reconhecer e delimitar estudando a área de vigor das vigências. Se imaginarmos um m apa e nele simboli (2) Tema central da metafísica de Ortega: Cf. História como sistema. Veja-se também minha Introdução à Filosofia, sobretudo o ca pítulo VI, “A estrutura da vida humana”.
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zarmos cada vigência mediante traços diferentes, a superposição daquelas irá tomando mais ou menos “espêsso” o traço de cada parte do território. Obteríamos assim um a imagem plástica e intuitiva do que poderíamos chamar a “densidade” ou “consistência” das diversas sociedades. Uma cartografia social — sit venia verbo — é perfeitam ente possível, apesar das dificuldades sôbre as quais me parece desnecessário insistir e que se nunca consistiram uma objeção para a ciência, não se vê porque o hão de ser para as ciências do humano; no entanto, para estas, alguns parecem exigir a “facilidade”. Só se poderá decidir, pois, se certos grupos humanos pertencem ou não à mesma sociedade, com a aplicação a fundo da idéia de vigência e com uma determinação rigorosa do estado delas em cada caso concreto. (Imaginese, digase de passagem, como as relações internacionais e as disciplinas teóricas que tentam facilitálas, se poderiam beneficiar dêste ponto de vista; e quão longe estão hoje de encarar os problemas dessa maneira.) Surge porém uma questão de sinal diverso: ao lado das vigências que se extravazam de uma sociedade efetiva e se estendem por outras mais “tênues”, há outras que não são vigentes na sociedade tôda mas apenas em uma parte dela. São ou não vigências? Se o são, quais os seus característicos? E, em terceiro lugar, como se articulam entre si e com as mencionadas vigências gerais?
19.
O conceito de vigência parcial.
O caso mais simples é o das sociedades que denominei “insertivas”, po r exemplo as regionais. Indubitàvelmente há vigências particulares andaluzes, catalãs ou navarras, que não se estendem à totalidade da sociedade nacional. Poderseia pensar que com elas ocorre o mesmo que com as vigências espanholas, alemãs ou italianas, frente às européias; no entanto, não é exatamente isso por duas razões: as sociedades regionais s ão ’ sentidas como “insuficientes”; além disso são como que “abertas”. Com estas duas expressões quero significar: que o homem de uma região qualquer sabe de princípio que a maior parte das vigências que exercem pressão sôbre êle não são priv ativas de sua região e que não partem dela — diferentemente do membro de uma nação, que toma tôdas as suas vigências como
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nacionais e logo descobre (quase sempre com surpresa, se é que as descobre) que “suas” vigências são vigentes além da linha fronteiriça — ; e em segundo lugar, que sua região acolhe de modo normal e não excepcional homens que procedem de outras e que, portanto, não estão sujeitos às mesmas vigências, e êle próprio tem que entrar em contacto freqüente com outras regiões. Nossa língua distingue sutilmente entre “estrangeiro” — que não pertence à mesma sociedade total — e “forasteiro” — alheio à sociedade restrita e parcial — . Há um fenômeno inequívoco que nos permite descobrir a pertinência de um homem à nossa própria sociedade: a irritação ou a indignação que provoca a infração por sua parte dos usos vigentes em nossa unidade social. Se nosso vizinho aparece com brincos nas orelhas, suscita uma indignação vivíssima e represálias sociais imediatas, porém contemplamos com absoluta tranqüilidade os mesmos aros nas orelhas de um papua. Mais ainda, se nos dizem que êsse papua come carne humana — coisa mais grave, certamente, que o inofensivo uso de umas argolas — , isto nos poderá parecer atroz, mas não nos “irrita”, não nos deixa “indignados”; talvez nos repugne ou nos horrorize, o que é muito diferente. H á poucos anos, na Espanha, muita gente se irritava por ver uma mulher fumar — o fenômeno ainda persiste em certos meios, e sôbre isso tomarei a falar mais adiante — ; ora, essa irritação se aplacava automáticamente se se percebesse que se tratava de um a estrangeira. Então ficava excluída a vigência proibitiva e, portanto, sua conduta era tida como aceitável. A irritação crescente que os usos dos estrangeiros provocam em muitos países, justamente numa época em que se tomaram muito mais familiares, pela presença constante em tôdas as partes do mundo, de pessoas de nacionalidades as mais diversas, prova que são as mesmas tidas como muito menos “estrangeiras”, como pertencentes a uma sociedade comum, e portanto submetidas a um sistema de vigências coincidentes. Isto ocorria entre europeus já há alguns anos; nestes últimos, esta atitude se estendeu aos americanos: porque foram “adotados”, e porque aquilo que êles fazem não é mais visto pelos europeus como “coisas dêles”, aquêles começam a contá los como membros da mesma “sociedade”; nessa irritação — às vêzes tão irritante — está incluída, entre outras coisas de origens muito diversas, a afirmação do Ocidente como unidade social.
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Mas o caso da parcialidade “territorial” de urna vigencia é, como antes dizia, o mais simples déles; as coisas são menos claras quando se trata de uma vigência que impera numa fração não geográfica de um a sociedade total. Estas vigências fragmentárias ou parciais currespondem às diversas formas de organização dos ingredientes que compõem uma sociedade, e condicionam sua estrutura mais sutil, sua concreta articulação. Neste ponto, entramos em contacto com matizes delicados que exig m um tratamento meticuloso e portanto distinções inevitáveis. A primeira, aparentemente tênue, é decisiva: há dois modos de contar com um a vigência; um pleno, que consiste em estar submetido a ela, e um secundário, mas sumamente importante, que é conhecê-la, ter notícia da mesma, saber portanto que outros membros da sociedade têm que a acatar. Um exemplo poderá esclarecer melhor. As vigências de conteúdo especificamente feminino ou masculino se impõem, é claro, ou só às mulheres ou só aos homens, e o sexo contrário está respectivamente isento de sua pressão; porém a maior parte dessas vigências restritas são notórias ou públicas, isto é, os homens sabem que as mulheres estão sujeitas a elas, e portanto a pressão que exercem sôbre a metade feminina da sociedade conta com a “fôrça” das duas metades, embora não do mesmo modo nem no mesmo grau, como acontece no caso de uma vigência genérica e sem distinção sexual. Consideremos, inversamente, uma vigência restrita e além disso notória apenas para um dos dois sexos: sua pressão só “vem” do sexo ao qual ela afeta; sua esfera de aplicação ou domínio coincide com o “dentro” em que a sua pressão se origina. Há, po r exemplo, certas vigências que regulamentam a linguagem: temas de que “se pode falar” , rodeios, vocabulário, inclusive entonações e gestos expressivos; fora os usos gerais de um âmbito lingüístico, o modo de falar das mulheres e dos homens está regulado por usos peculiares: a mulher pode usar uma quota de diminutivos que não se permitiria ao homem, seu repertório de adjetivos não é exatamente o mesmo, não se pode servir sempre das mesmas imagens ou expressões, etc.; mas o problema não termina aqui, nestas vigências privativas conhecidas de todos e que se referem ao uso varonil ou feminil da linguagem comum: além disso há a conversa “só de homens” ou “só de mulheres”, onde outros usos
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bem diferentes imperam, aquêles conhecidos apenas do sexo interessado; é um caso de uma nitidez especial, precisamente porque exclui form almente a intervenção do sexo oposto: os homens não sabem o que as mulheres falam quando sós, porque se o homem está presente já não o falam assim; e só se pode penetrar no âm bito do falar do outro sexo em sua situação de isolamento, mediante recursos excepcionais: “traição” de um membro que o revela — indireta e interpretativamente, digase de passagem — , infiltração ou “espionagem” , etc. E isto, que em nossas sociedades tem um alcance muito limitado, em outras foi ou é uma realidade enérgica e de suma importância (3). As coisas são ainda mais complexas se descermos aos seus pormenores. Consideremos uma fração social qualquer, uma classe social — a aristocracia, po r exemplo — ou um grupo profissional — os sacerdotes, os militares, para que sejam bem definidos — . As vigências particulares e privativas destas frações são de dois tipos: umas, estritamente internas, são as que se exercem sôbre cada indivíduo dentro de seu grupo; para tomar um exemplo trivial e especialmente claro, a saudação militar que obriga os membros de certo exército enquanto tais em relação a outros; porém, como o modo norm al de cada grupo ou fração da sociedade viver com o resto da mesma é a convivência, a interação com as demais partes que a compõem, há outro tipo de vigências particulares que não poderíamos, no entanto, denominar externas ou de relação e que são as que afetam os membros de um grupo enquanto êste se afirma como tal entre os demais; po r exemplo, os usos que regem o trato dos sacerdotes com as mulheres, a figura que o militar deve apresentar aos civis, os modos de comportamento do aristocrata quando não está no “grão mundo” e sim no mundo, isto é, na sociedade geral. Poucas coisas têm mais importância do que isto. A convivência, o equilíbrio, o funcionamento íntegro de um país, dependem em grande parte da harmonia destas relações, isto é, do acêrto e vigor das vigências correspondentes. A quebra das vigências “internas” de um grupo o desmoraliza ou o degenera, o faz perder personalidade e, portanto, priva a socie (3 ) Dois exemplos do teatro, recentes e interessantes, são The Women, de CLARE BOOTH LUCE, e La casa de Bernarda Alba, de FEDERICO GARCIA LORCA.
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dade de sua função específica desarticulandoa: é, por exemplo, o fenômeno da demissão das aristocracias. Porém, inversamente, .a projeção automática sôbre a sociedade total das vigências “internas”, em lugar de as substituir pelas de relação, rompe a estrutura da sociedade, faz com que grupos invadam o campo de outros, imponham a êstes formas e estilos que não lhes pertencem, ou então se encerrem em si mesmos e se isolem na insolidariedade. Quase todos os “ismos” sociais — militarismo, clericalismo, obreirismo, plebeismo, funcionalismo, etc. — são conseqüências dêste extravazamento das vigências “internas” até a vida coletiva sensu stricto; e a resposta — os “antiismos” correspondentes — costuma consistir na negação, não do extravazamento indevido, mas sim das próprias vigências internas, portanto da legítima peculiaridade do grupo. Examinadas dêste ponto de vista, as discórdias sociais européias adquirem um realce especial, sobretudo a partir do século XVIII, no qual se quebra um antiquissimo sistema de vigências que haviam sido acertadas em muitos séculos de fricção e lutas. A época que nos interessa por ora, a transição do antigo regime ao nosso tempo, foi a crise dêsse ajuste e exigiu a invenção de novas formas e novas relações; e precisamente na Espanha, como mais adiante veremos minuciosamente, houve uma constante ruptura de equilíbrio nos dois sentidos, e por conseguinte uma desarticulação social que ainda hoje é bem visível. E para terminar, advirtase que o mais grave está no fato de que as vigências parciais são não só fragmentárias, privativas de certas zonas da sociedade, como também incluem — não forçosamente, mas com freqüência — um caráter polêmico: uns grupos se afirmam ao lado dos outros, mas ao mesmo tempo diante de outros; e, o homem individual que pertence a um déles pode também pertencer a outro diferente — pode acontecer a um aristocrata ser militar ou financista, a um sacerdote ser intelectual — , formando parte, e radicalmente, da sociedade total. Como se articulam estas diferentes dimensões da vida ■coletiva?
20.
As diversas dimensões da sociedade e a pugna das vigências.
Numa sociedade de castas teríamos o caso extremo de vigência parcial: cada casta está subm etida a certas vigências
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não só privativas dela como além disso exclusivas; isto é, que não só não se impõem às demais como se lhe estão vedadas; essa conduta determinada à qual cada casta tem que se sujeitar está proibida às restantes. A vigência possui, pois, duas faces: é ao mesmo tempo afirmativa e negativa, imperativa e proibitiva; define uma fronteira social, pa ra dentro e para fora. Quando isto se dá, não há pugna entre as vigências; talvez, poderá haver entre os grupos, porém cada um dêles com suas vigências intransferíveis. Até certo ponto, esta situação se conserva em outros tipos de sociedades, quando a articulação dos estamentos ou classes é muito pronunciada e cada um dêles repousa em si próprio: patrícios e plebeus, nobres e vilãos, talvez ainda “usia” e “majos” (*); em forma diversa, quando as relações entre homens e mulheres são claras, quando não há dúvida acêrca das vigências humanas genéricas e as particulares masculinas ou femininas. Não se pense que esta distinção de frações sociais implique forçosamente separação; pode se dar uma convivência muito próxima, porém de maneira que cada indivíduo permaneça automática e inequivocamente referido a seu sistema de vigências peculiares. As coisas se alteram quando a pertinência de cada indivíduo a várias frações é freqüente ou quando os limites entre elas se tornam imprecisos. Isto acontece, e não por acaso, mas por razões intrínsecas, com as classes sociais há mais ou menos século e meio, porém a coisa é tão importante que exige um desenvolvimento à parte. Tomemos alguns exemplos de menor vulto e que por serem mais simples são mais claros. Consideremos três: os militares, os eclesiásticos e as mulheres, e vejamos como se pode alterar em relação aos mesmos o esquema geral das vigências. Ser militar pode significar uma “condição” ou apenas uma “profissão”. No primeiro caso, constitui um grupo social definido, determinado por um sistema de vigências suficientemente “espêsso” para o delimitar claramente do civil ou do eclusiás tico. A pertinência ao grupo militar envolve, pois, quase tôdas (*) Em castelhano, “usia” é a síncope de Usiría, Vuestra Señoría; indica portanto um tratamento dado à nobreza. “Majos”, pelo contrário, se refere a pessoas que, pela maneira de se comportarem e se trajarem, denotam vulgaridade. (N. do T.).
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as dimensões da pessoa, e mesmo as que não entram diretamente em jôgo ficam afetadas e matizadas por essa pertinência. Não se esqueça que, durante séculos, o fato de seguir a carreira das armas era quase absolutamente predeterminado por uma situação social — por exemplo, pela nobreza de sangue, algumas vêzes pela condição de segundo filho, mais tarde e como forma transitória, um a tradição familiar — e não consistia numa simples decisão privada do indivíduo. As armas eram, pois, um mundo parcial e delimitado, constituído de funções muito claras e com um repertório de direitos e obrigações, de modos de conduta exigidos e autorizados, de vigências, em suma. Se, pelo contrário, ser militar é apenas uma “profissão” que qualquer indivíduo elege — as três palavras são essenciais — , não qualifica primàriamente o homem. Êste se define primeiro por tôda um a série de dimensões: país, sexo, idade, nível social, etc., e ao lado destas determinações e das vigorosas vigências corres pondentes se encontram outras mais tênues que são as profissionais. Um homem é militar como poderia ser engenheiro, professor, mecânico, pedreiro, advogado, médico, comerciante. Nos países anglosaxões isto acontece e é por êsse motivo que a profissão militar é abandonada com tanta facilidade, por exem plo ao term inar uma guerra, sendo escolhida outra na vida civil por ser mais interessante, adequada ou remuneradora em tempo de paz. E o militar estritamente profissional tem consciência de sua dedicação íntegra e absorvente a uma profissão entre outras, como o homem de emprêsa, o professor full time ou o investigador. Neste caso, o fato de ser militar influi minimamente no repertório das vigências; estas são genéricas, portanto civis, e apenas marginalmente deveselhe acrescentar as privativas de cada profissão, e portanto da militar. As coisas se complicam quando a situação não cabe em nenhum dos esquemas antes descritos. No primeiro caso, o m ilitar faz em princípio só certas coisas próprias de sua condição e está sujeito a seu estatuto. No segundo, faz mais ou menos como todo o mundo e não apresenta nenhum característico excepcional e à parte. Pode porém acontecer que, por não possuir um repertório suficiente de atividades, interêsses e formas de conduta especificamente militares, saia de seu mundo parcial e atue na sociedade geral; mas não, como no segundo caso, enquanto cidadão, isto é, enquanto membro dessa sociedade geral, e sim como militar.
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fora do corpo armado, poderíamos dizer, mas sem tirar o uniforme. Imaginemos que um militar escreva; pode o fazer como militar, usando temas militares, em função de seus conhecimentos ou experiências; ou, em outro caso, abandonando momentaneamente sua condição militar, se distraia ou descanse da mesma em uma atividade literária (Ócios de um saldado é um velho título, não me lembro de que autor); pode acontecer também que o militar de profissão, ao lado desta tenha outra, a de escritor, e enquanto a exerce funciona como um escritor qualquer, submetido às vigências que a própria atividade impõe bem como as do grêmio literário. Até aqui tudo é claro, mas não será assim quando o militar pretend a escrever — e não sôbre assuntos militares mas sim científicos, políticos, filosóficos, literários — do seio mesmo de sua milícia, apoiandose nela, projetando sôbre sua nova atividade essa condição e as vigências que lhe são próprias; neste caso se produz um a interferência entre duas ordens de vigências diversas, e sobrevêm, no mínimo, uma confusão. Outro tanto poderseia dizer da vertente política, da conduta na sociedade, etc. Na Espanha romântica, não se pode entender uma palavra sem se observar êste tipo de fenômenos, que deverão ser examinados em sua concretude histórica. Passandose às vigências do grupo eclesiástico, as coisas são ainda mais extremas, o que se poderá perceber com a simples indicação das diferenças anotadas no caso anterior. O sacerdócio não pode ser somente uma profissão; é uma condição inalienável — refirome aqui, é evidente, ao sacerdócio cristão, único que interessa nas sociedades que se trata de estudar — , escolhida, porém, livremente por um indivíduo qualquer, isto é, pertencente a qualquer estrato social. (O duplo fato de que o clero seja recrutado preferentemente de um dêles em certas épocas, e de que a decisão — pelo menos inicial — proceda habitualm ente da família, dada a extrema juventude, melhor ainda a meninice, de muitos seminaristas, matiza decisivamente a função sociológica do clero e sua projeção sôbre a vida coletiva.) Em segundo lugar, do ponto de vista social há uma distinção essencial entre os religiosos, que em princípio constituem um grupo à parte, muitas vêzes definido por uma literal clausura, isto é, um “mundo fechado”, e o clero secular, isto é, o que está no mundo. Neste caso, que é o que aqui
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interessa — se o outro grupo fica implicado é justamente n a medida em que se extravaza de sua condição e, portanto, se assimila a éste — , a peculiaridade da condição eclesiástica não leva, a não ser excepcionalmente, à constituição de um grupo eclesiástico, e sim à convivencia diferenciada do sacerdote com os seculares. Não se constituem, realmente, grupos de pastores — sua reunião é momentánea e devida a causas excepcionais: “reunião de rabadães, ovelha mo rta”, diz um refrão — , mas sim cada pastor forma grupo com suas ovelhas, e assume com elas uma função muito precisa, naturalmente pastoral. Nesta forma normal de sacerdócio, as vigências “internas” estão essencialmente ligadas às “de relação”, visto que são estas as que constituem e regulam a função ou ministerio sacerdotal; quero dizer com isto que a diversidade das vigências não significa luta entre elas mas, pelo contrário, condiciona e define a convivência do sacerdote com seus fieis. A dificuldade aparece quando o sacerdote assume funções de qualquer ordem, anólogas às que os seculares desempenham — intelectuais, educativas, políticas, econômicas, artísticas, literárias, de trabalho ou relação social — , porém não à margem e à parte de sua condição e siirt a partir dela. Isto se observou, por exemplo, no caso dos prêtresouvriers francêses, só porém por se tratar de um fenômeno insólito; a associação da condição sacerdotal com o exercício de outros misteres ou ministérios não surpreende porque é habitual, mas coloca o mesmo problema: a interferência de duas áreas de vigências diversas. Recordese um porm enor sumamente revelador: a “cotização” intelectual dos eclesiásticos dentro de uma sociedade e suas dificuldades, a constante oscilação entre o que poderíamos chamar — sit venia verbo — o “mercado livre” ou os mercados particulares. Notese que êste último tem sido normal e conta com uma tradição multisecular, ao ponto de que depois da vida intelectual ter sido “clerical” ou mister da clerezia, surgem marginalmente as “letras humanas” ou “humanidades”, mercado particular dos escritores ou pensadores laicos; quando a secularização da cultura européia fêz com que esta fôsse em sua maior parte profana e se regesse por vigências “civis”, ficou sempre o domínio das “ciências eclesiásticas” como âmbito autônomo e mercado particular; o grave, o que suscita um problema de vigências — e portanto de convivência — é o que poderíamos chamar uma transferência de cotizações:
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cm lugar de existir uma geral no mercado aberto, ou então uma particular no parcial, se obtém uma cotização neste e se transfere ou se projeta seu resultada sôbre o mercado total da sociedade inteira. (O fato de que fenómenos análogos se produzam hoje na vida económica, de onde esta imagem foi tirada, é particularmente revelador de uma situação social, da qual o intelectual e o econômico são apenas aspectos.) Consideremos, finalmente, o sistema de vigencias que afetam a porção feminina de um a sociedade. As mulheres estão submetidas norm almente a três núcleos de vigências: as gerais ou “humanas” que imperam nessa sociedade; as “internas” ou privativas da convivência feminina; as “de relação”, que regulam seu trato com os homens. Em muitas formas sociais, não há o menor equívoco; em algumas se produzem alterações — cm geral, transições de uma situação a ou tra — que ocasionam uma luta de vigências. Com efeito, pode ocorrer que se desloque a fronteira entre as vigências “humanas” e as “femininas” ; no capítulo I de minha Introdução à Filosofía insistí no fato capital que marca a nova condição das mulheres na Europa: à vigência de que uma mulher só pode fazer aquilo sôbre o que existe um acórdo social expresso, se está seguindo a vigência — até agora só “masculina” — de que pode fazer tudo aquilo contra o que não há veto social expresso. Isto é, enquanto antes a mulher só podia fazer um repertorio de coisas definidas, para as quais estava “autorizada”, num futuro bem próximo poderá fazer qualquer coisa, desde que não esteja concretamente proibida. Mas esta situação, para a qual caminhamos indubità velmente, não é ainda atual, pelo menos em muitas sociedades, e o que se dá nelas é a ampliação do número de possibilidades oferecidas às mulheres no que se refere ao estatuto de “vigências humanas”. E isto, por sua vez, não ocorre simultáneamente nem em igual medida em todos os estratos de um a sociedade. D urante vários séculos, para citar um pequeno exemplo que não deixa de ser significativo, a vigência impusera o fumar como uma possibilidade exclusivamente masculina — um fato bem curioso, digase de passagem — ; neste século, éste costume se tem ‘neutralizado”, e uma mulher pode fumar sem se expor a represálias sociais; porém, como isto não aconteceu de um modo súbito e geral, não era ainda vigente nas pequenas povoações ou em outros estratos da sociedade quando já o era nas grandes
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cidades ou nas classes superiores; e uma mulher que fuma naturalmente um cigarro em seu próprio ambiente, tropeça com a vigência oposta quando está em presença de outras porções da sociedade, num a cidade provinciana ou num meio rural: sirva êste como um exemplo mínimo da luta de vigências entre diversos núcleos sociais. As possibilidades de trabalho, o trato social, o viajar, a capacidade de iniciativa — isto sobretudo — , são outros tantos pontos em que se repete a mesma situação. Não é necessário advertir que em tôda “pugna de vigências” é decisivo o vigor que estas possuam, porque é precisamente o que decide ou dá por encerrada a luta; mas é preciso considerar ainda um aspecto aparentemente paradoxal das vigências e que pode fácilmente ocasionar enganos: refirome ao tema da discrepância como fator social.
21.
A discrepância como ingrediente social
Devese distinguir várias dimensões do fenômeno geral da discrepância, cuja confusão perturba enormemente a compreensão dos fatos sociais. Ortega mostrou satisfatoriamente e com vigor (4) que os homens são ao mesmo tempo sociáveis e inso ciáveis, que estão cheios de impulsos antisociais, que a sociedade tomada como algo puramente positivo é uma utopia, e que a realidade efetiva da convivênca humana é a luta sociedade dissociação . Terei que retom ar o assunto mais adiante, e com maior insistência, porque se trata de um fato de grande monta e que explica todo um lado da estrutura de qualquer sociedade. Por ora, é suficiente apontálo para lembrar que a sociedade não significa, de maneira alguma, unanimidade e sim que é constituída também de discrepância, e portanto é sempre pro blemática e insegura, e sua existência consiste em a estar fazendo e defendendo. Há porém outros estratos da discrepância que devem ser levados em conta neste contexto. As vigências exercem uma pressão sôbre os. indivíduos, no sentido de que êstes têm que contar com elas, têm que tom ar posição diante delas. Mas isto não significa adesão, nem sequer aceitação, nem mesmo submis(4)
Del Imperio romano. O. C., VI, p. 71-75.
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são. Frente às vigências se pode tomar atitudes muito diversas, entre as quais evidentemente cabe a de discrepar. O que caracteriza as vigencias não é o fato de que exijam submissão e sim que, se não se as acata, tem-se que discrepar; eu não uso urna túnica nem pratico as abluções alcoránicas, sem que isto envolva discrepancia, porque nenhum dêstes usos é vigente na sociedade era que vivo; porém se decido não pôr luto, não basta que continue simplesmente usando quaisquer côres apesar da morte de uma pessoa da família, e sim, pelo contrário, tenho que exercer uma certa violência, tenho que executar um ato positivo e que supõe um esforço para vencer uma resistência impessoal e coletiva; em suma, tenho que discrepar. A discrepância é, po rtanto, um dos modos possíveis de comportamento frente às vigências, é um dos aspectos de sua função social. Mais ainda, se não houvesse discrepância seria difícil perceber que há vigências; estas se fazem sentir quando a reação do indivíduo não é dócil mas sim rebelde, quando a discrepância ao mesmo tempo põe à prova e descobre o vigor das vigências. Isto não dá por encerrado o assunto; há um terceiro aspecto da discrepância, mais sutil e, por isso, mais fácil de passar desapercebido: é aquêle que eu chamaria a vigência polêmica de conteúdos vigentes. Procurarei me explicar. A ninguém ocorrerá que sejam vigentes as opiniões, condutas e indumentárias dos grupos “surrealistas” de Paris, ou “existencialistas” dêstes últimos anos; pelo contrário, seu atrativo se estriba precisamente em não serem vigentes, em se oporem às vigências. Tratase de um a simples discrepância? Significa a mesma coisa ser “existencialista” do café de Flore e omitir o luto, ser partidário do rearmamento alemão, usar chapéu côco, preferir as obras de Dumas às de Gide? Enquanto que nestes casos tratase de uma simples discrepância individual de certas vigências dominantes, a qual não possui nenhuma vigência, a existência de grupos discre pantes dentro da sociedade, pelo contrário, é por si mesma uma vigência. Isto é, não são vigentes os conteúdos— certa maneira de pintar ou de entender a poesia, usar barba, não se maquilar, pensar que tudo o que existe está de mais etc. — , mas sim o fato de afirmálos polémicamente frente ao sistema geral das vigências imperantes; o que equivale a dizer que uma destas é precisamente o fato de que sejam desafiadas, infringidas, negadas, com certos ritos e fórmulas, por exemplo, com publicidade,
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com espírito de novidade, com sujeição à moda — uma vigência — e a certas norm as estéticas — também vigentes — . Quando as sociedades não possuem saúde e elasticidade sufi as vigências são sólidas e possuem seu pleno vigor, a discrepância pelêmica dêste tipo não só é tolerada como também exigida, imposta pela vigência particular que reclama sua eventual infração. As sociedades débeis, dissociadas ou em discórdia, pelo contrário, não podem nem aceitam êsses conteúdos discrepantes. Um bom termômetro para julgar a estabilidade de uma sociedade é a normalidade dêste tipo de fenômenos. Os excêntricos da Inglaterra vitoriana, o mundo de Hollywood nos Estados Unidos, os fenômenos análogois que vêm demarcando a vida francesa entre os séculos XVIII e o XIX constituem bons exemplos. Quando a sociedade é muito firme e estável, isto é, quando cientes — bastante vigor, em suma —, duas coisas podem acontecer: quando a organização estatal é enérgica ou, pelo menos, aparece como tal, o luxo da discrepância polêmica é suprimido pela violência ou asfixiado; quando nãc é assim, êsses fenômenos de discrepância surgem, mas “não têm graça”, não são divertidos nem tonificantes, e precisamente pelo fato de não haver uma sociedade forte e as vigências não terem um vigor efetivo, também não o tem o esporte de discrepar delas; quar do se pode fazer “qualquer coisa”, tanto dá fazer uma como a outra: o frontão que não é rijo não devolve elásticamente as bolas que se lhe atiram, e nesse caso, é evidente, não há jôgo possível.
22.
Vigência implícita e vigência explícita
Dizia antes que a discrepância descobre e revela as vigências, quando não se discrepa, talvez não se saiba que determinado conteúdo é vigente; isto mostra que as vigências se fazem sentir de duas formas: explicitamente umas, implicitamente ^outras. No primeiro caso o indivíduo sabe que está submetido a uma vigência concreta, e é isto justamente o mais importante: o fato de ser concreta, existir como uma unidade numéricamente diversa de outras, estar formulada, ou, pelo menos, ser fácilmente fornrJável, exercer seu domínio apoiandoo — mais ou menos claramente — em alguma razão. Isto significa que impera menos que as outras vigências: quando se dá razões, o
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domínio não é absoluto, a justificação corrobora, sem dúvida, um a vigência, porém o faz de fora; é, uma vez mais, o arco botante que se apoia em um contraforte exterior. Lembrese do caso pleno das vigências explícitas: as leis vigentes. Não é por acaso que seja êste o uso normal das palavras vigência e vigente, antes de que Ortega tivesse dilatado a área semântica das mesmas até que dessem tudo o que levavam dentro de si mesmas: a vigência da lei é vigência explícita, a lei é promulgada, apresentada como tal, “posta em vigor” por um poder concreto; isto quer dizer que a lei po r si mesma não possui vigor algum e que necessita que êste lhe venha de fora. As chamadas “leis não escritas” — as mais importantes, como o sabia muito bem Aristóteles (5> — , a rigor não são leis, isto é, aparecem como leis quando se percebe que estavam vigentes sem que ninguém o soubesse, sem terem sido promulgadas; o direito consuetudinário não tem caráter de “lei” a não ser quando é reconhecido como tal, ou seja quando deixa de atuar con suetudinàriamente e é de algum modo “promulgado”, quando lhe sobrevêm um novo caráter de vigência explícita que originà riamente não possuia. As vigências mais fortes, sólidas e profundas não se apresentam como tais, não se anunciam nem se enunciam; por isso quase nunca há sentido em as “enumerar”, não são catalo gáveis, salvo em dois casos: retrospectivam ente, isto é, quando já não são vigentes, e por isso se pode encontrar suas pegadas, ou de um ponto de vista analítico, isto é, decorrente de uma atitude teórica que deixa em suspenso seu caráter vigente e correlativamente em situação “isenta” do observador. Basta apenas recordar que as vigências negativas não costumam consistir em proibições formais e sim em uma pressão que regula a conduta automaticamente, sem uma reflexão especial, nem tão pouco com uma consciência explícita da mesma. A pressão das vigencias implícitas, as mais importantes e mais puras, isto é, aquelas em que se manifesta em tôda a sua pureza o fenômeno da vigência, é uma pressão difusa — diferentemente da constrição da lei, por exemplo, do mandamento (5) Política, III, 16 1287 b 5-8: “As leis consuetudinárias são mais importantes e versam sôbre coisas mais importantes que as escritas, de modo que mesmo quando o homem que governa é mais seguro que as leis escritas, não o é mais que as consuetudinárias.”
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religioso ou do principio moral como tais — ; porém o fato de ser difusa não significa que seja vaga: não o é de modo algum, porque essa pressão se exerce segundo linhas de fôrça que determinam uma figura e um esquema de conduta. Não é de outro modo que a pressão das águas ou do ar em movimento decide a trajetória de um móvel sôbre o qual se exerce. Tudo se esclarece ainda melhor se se distinguir nas vigências explícitas que acabo de indicar a fôrça imperativa de cada ■conteúdo — lei, mandamento ou preceito — da vigência genérica e quase sempre implícita que os sustém: o respeito à lei, a reverência à vontade divina, o acatamento à ordem moral. Mais adiante veremos a repercussão que isto tem numa classe de vigências que, por ter um conteúdo “ideológico” ou “intelectual”, estão mais diretamente afetadas pelo equilíbrio entre a implicitude e a explicitude: as crenças. E a tal ponto, que a dinâmica destas consistem em bôa parte no grau de explicitude que possuem em cada momento. Este caráter explica a dificuldade da investigação das vigências e o fato de que sejam conhecidas tão pouco. Só podem ser determinadas a partir da vida efetiva, isto é, dos esquemas reais de conduta, os quais permitem descobrir, mediante uma análise de suas “trajetórias”, as fôrças atuantes que as produziu. Esta análise é qualquer coisa menos fácil e não nos devemos surpreender pela insuficiência de seus resultados, a menos que se a leve a cabo de um modo rigoroso e com um método adequado. Felizmente, há casos mais simples do que a investigação das vigências atuais; no passado atuaram sistemas de vigências, de um modo geral implícitas, cujo perfil, no entanto, pode ser delineado a partir do presente. Como? Pela razão de se ferem originado e depois cessado. Se comparo diversas situações, descubro que em certa data começa a atuar sôbre os homens uma nova fôrça que antes não tinha vigor e que, embora não visível para êles, o é para o espectador que contempla ao mesmo tempo duas situações caracterizadas respectivamente por su a ausência e sua presença. De um modo análogo, quando um a vigência se debilita —i perde vigor — e finalmente se extingue, a situação fica alterada e a modificação revela que cessou a sua atuação. Mais um a vez encontramos, e agora por um caminho diverso, a impossibilidade de estudar uma situação única, porque seus elementos operativos só se manifestam na
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transição de uma situação para outra — e dada a superposição de seus elementos, as duas situações entre as quais se transita são, po r sua vez, transitorias, consistem em transição — . Com esta consideração deparamos com um novo aspecto das vigencias. Até agora as havíamos tomado como certas realidades ou fôrças — vigores — , definidas por qualidade ou conteúdo, área, intensidade, direção, sentido positivo ou negativo; porém esta maneira de as ver era ainda abstrata; essas fôrças têm um ponto de aplicação concreto, que são os indivíduos aos quais afetam; uma vigência é concreta somente na medida em que se exerce sôbre homens individuais precisos. E pertence à sua realidade o modo com que os homens têm que se haver com elas; seu funcionamento consiste em sua ação, completada pela reação individual que suscitam. A explicitude ou implicitude das vigências é uma vertente que está referida, não a seu vigor intrínseco mas sim a seu modo de se exercitarem — desde logo, de se apresentarem ou de não se apresentarem aos indivíduos. Mas êste progresso em direção à concretude é só um primeiro passo: a alternativa implícitoexplícito é demasiado esquemática. Em primeiro lugar, porque a implicitude admite graus muito diversos. A implicitude total é possível? Se não é possível ou, pelo menos, não é necessária, onde se coloca a linha divisória entre a implicitude parcial e a explicitude inequívoca? Em segundo lugar, e isto é ainda muito mais importante, é insuficiente todavia dizer que algo é explícito: quais são os modos de o serem? Em outras palavras, quais são as formas possíveis e, em cada situação histórica, reais de relação do indivíduo com as vigências?
23.
A relação do indivíduo com as vigências
A forma superior de implicitude das vigências é a ignorância em relação às mesmas; e esta só é possível na medida em que as vigências às quais o indivíduo está submetido são “únicas”, isto é, se apresentam como uma exigência automática e não como uma forma particular de pressão entre outras pos síveis. Po r isso, a ignorância das vigências — pelo menos do grosso de seu repertório — só é possível numa sociedade que esteja isolada. O indivíduo imerso num corpo social que lhe parece “a sociedade” sem mais, propende a tomar suas pres-
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sões como a realidade mesma e não as percebe, como não costumamos reparar na pressão do ar a não ser quando êste se agita. No momento em que os homens sabem que outros homens estão submetidos a vigências diferentes, as suas próprias adquirem uma figura precisa e são sentidas como tais; e a conseqüência imediata é que o indivíduo tem que tomar posição frente a elas, tem que se comportar de algum modo, não agora relativamente a sua pressão — com docilidade ou rebeldia — , mas sim em relação a sua idéia, sua figura mental. Em outros têrmos, à reação estritamente social ao vigor das vigências se acrescenta uma segunda reação de conteúdo mental e que consiste em opinar sôbre elas. Porém, nesta questão todo o cuidado é pouco. A existência dêste elemento de opinião não nos deve fazer pensar que as vigências são opiniões; não me refiro a que se opine sôbre os conteúdos das vigências — quando êste fato se produz, a rigor não se trata de vigências — , nem tão pouco a que recebam sua fôrça dessa opinião, e sim que, uma vez dado o fenômeno social que estudamos longamente, o indivíduo está em certo estado de opinião em relação a suas vigências, isto é, enquanto suas, sentese vinculado de um ou outro modo a seu conjunto e a uma delas em separado. E isto significa uma maneira de se sentir inserido na sociedade e, portanto, matiza o sentido de sua pertinência. A situação normal é de adesão; entendase, adesão ao re pertório de vigências em seu conjunto; nela se manifesta coletivamente, ao mesmo tempo a personalidade e a propriedade: assim somos “nós”, êstes são “nossos” costumes, valorizações, preferências, etc. Esta adesão não exclui a discrepância, a qual se nutre precisamente da adesão genérica: em nome da totalidade de nossas vigências discrepamos de uma concreta que nos parece im própria, postiça, talvez uma degenerescência ou uma inovação improcedente. Quando o grupo social se afirma frente a outros, mais ou menos polémicamente, esta adesão se converte com freqüência em orgulho. Pouco importa que se trate da sociedade geral, do país, de uma classe ou uma fração social de qualquer tipo. Mais que a mera propriedade, se afirma a presumida superioridade; notese porém que esta superioridade não é, de um modo geral, concreta e, digamos assim, a poste riori mas, pelo contrário, a priori e genérica. As vigências são
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superiores por serem “as nossas”, previamente a tôda consideração de seu conteúdo; e isto pode chegar ao ponto de que se encontrem homens que declarem que o que pertence ao seu país é o melhor do mundo, que sua nação é admirável e incomparável, e quando isto se aceita e se elogia pormenorizadamente o que compõe essa vida nacional, se depara, com surpresa, com uma repulsa freqüente a quase tudo. Todos nós conhecemos indivíduos que exaltam hiperbólica e desmesuradamente a Espanha, enquanto que, sem preconceito, trituram implacàvelmente cada um dos valores espanhóis nos quais se poderia fundar essa orgulhosa afirmação. Quanto isto acontece se insinua um traço de insegurança na adesão monolítica que se torna suspicaz e insincera, excessivamente sublinhada e agressiva, e se nutre princi palmente de negação dos demais. Outra é a relação de complacência ou satisfação. O gôzo do indivíduo nas vigências que integram sua sociedade total ou fragmentária, sua sensação de estar “em casa” dentro dela, como o peixe na água, inclusive o deleite vaidoso, são fenômenos que matizam de um modo muito diverso a adesão normal. Esta foi, por exemplo, a reação do andaluz diante do repertório de suas vigências regionais, a do madrileño de quase todo o século XIX — provàvelmente desde meados do século X V III até o primeiro decênio dêste, atingindo um máximo na Restauração — , do francês há muito tempo, pelo menos desde Luís XIV, até há alguns decênios. Seria necessário seguir com precisão as mudanças desta atitude e sua variação nas diferentes classes sociais e nos grupos particulares e mais lábeis. Estas são tôdas relações positivas; mas não são de maneira alguma, as únicas; um a das mais interessantes é aquela em que o indivíduo se sente “amarrado” pelas vigências, por elas confinado, e ná qual estas funcionam, portanto, como uma limitação; esta atitude pode coexistir com um coeficiente maior ou menor de adesão, viva às vêzes, residual mais freqüentemente, mas na qual domina a consciência de que as vigências atuam como um freio, uma trava, um embaraço. A pressão social tem duas vertentes: é pressão contra ou barreira e pressão para ou impulso; a conduta individual se regula na sociedade pelas vigências em ambas dimensões e, é evidente, com o predomínio da segunda: é sempre mais espora que freio, porque se trata de se mover, e a principal missão da rédea é dirigir a marcha.
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Ora, em determinadas ocasiões as vigências atuam sobretudo como inibições e cadeias; os homens que lhes estão submetidos as sentem às costas, sem relação com o futuro, mais como uma sobrevivência. O caráter de alheio se intensifica; muitas vêzes se dá uma adesão resignada: a vigência se mostra como um destino inevitável e aceito; por vêzes surge um a repulsa, com diversos graus de intensidade e energia; quando esta situação se produz, as vigências continuam fazendo sentir seu domínio, porém com um profundo matiz de coação negativa. Esta atitude se dá geralmente em relação a vigências isoladas e concretas, no máximo frente a certas constelações das mesmas, localizadas dentro do horizonte total da vida coletiva. Quando a repulsa se generaliza e, sobretudo, quando se tem a impressão de que as vigências, sem deixar de o serem — isto é decisivo — , se arrastam por um longo tempo com íntimo desagrado dos indivíduos, com uma repulsão inequívoca, a relação com elas se converte em vergonha. E uma situação extrema e muito reveladora do mecanismo das vigências na vida humana. Porque a vergonha nasce do fato do indivíduo se sentir envolvido nas vigências, nelas implicado, complicado com elas, se se prefere; são parte dêle, isto é, de sua vida, são coisa sua, da qual não poderia prescindir inteiramente, da qual não lhe é possível livrarse por completo, porque seu mundo e êle próprio, enquanto realidade social, estão feitos delas. Ante uma pura constrição estranha, o indivíduo pode sentir hostilidade, divergência, desaprovação; a vergonha só se dá quando, nesta ou naquela medida, é provocada por algo que lhe é próprio. E como as coisas são sempre complexas e muito intricadas, a relação com as vigências quase nunca é unívoca; de um modo geral, dentro de uma sociedade se dão atitudes diversas, segundo os grupos ou estratos de vigências de que se trata; é imprescindível isolar e filiar essas diferentes atitudes, por um lado, e, por outro, determinar a dominante, aquela que dá o tom emocional a cada corpo social e determina o modo de inserção dos homens na sociedade a que pertencem.
24.
Graus e fases das vigências
Se se contempla o horizonte geral das vigências, do ponto de vista de uma vida individual determinada, notase em pri
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meiro lugar que a pressão exercida por elas sôbre o homem não c homogênea. Tanto naquilo que têm de negativo — o que chamei pressão contra — , como em sua vertente positiva — pressão para — , mostram uma diferença de intensidade ou grau. Esta intensidade tem que ver muito pouco com a “gravidade” dos conteúdos das vigências; homens que não têm por excessivamente inconveniente a infidelidade conjugal ou o apropriarse de bens alheios, por nada do mundo sairiam à rua com um laço no cabelo ou um temo amarelo, escreveriam sem ortografia ou de sandálias compareceriam a uma festa. H á alguns decênios atrás não teriam saído à rua sem chapéu, a não ser em caso de incêndio ou de algo parecido. Uma mulher não sairia com saia comprida pela manha; em muitos casos preferiria dizer uma mentira a uma palavra grosseira, ser caluniada a deixar de ser convidada. Isto mostra precisamente o caráter da vigência como tal: quando o indivíduo opina ou julga, reparte a gravidade de acordo com princípios de outra ordem; quando se trata dessa primeira regulamentação da conduta que é o ter que se haver com um sistema de pressões, é a ordem própria das vigências que decide. As vigências básicas são de tal maneira fortes, que mal se pode imaginar sua infração e, portanto, tão pouco seu cumprimento: simplesmente se as executa. No outro extrem o se colocam as vigências débeis, sentidas somente como diferenças de “densidade” no meio social, caminhos mais fáceis em certas ocasiões, resistências para a marcha em outras, suaves correntes que impulsionam em certo sentido, no caso das vigências para. Do mesmo modo com que a gravidade normalmente retém no solo e ordena a posição dos objetos no mundo, as vigências fundamentais estabelecem uma disposição geral da vida coletiva, e sôbre êsse fundo atuam fôrças diversas que determinam todo um sistema de campos. Estes campos de fôrças têm, é claro, sua estrutura própria.. Em primeiro lugar, uma dupla estrutura temporal. Prim eiramente, a que corresponde às gerações; cada um a destas tem, como vimos, suas próprias vigências peculiares, além daquelas que são comuns a tôdas as que coexistem numa sociedade e num dado momento do tempo. A isto devese acrescentar apenas algo, mas de real importância: se tomamos as coisas inversamente, não se pode dizer que sejam vigências de uma
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sociedade as privativas de qualquer das gerações contemporâneas, porque só possuem essa condição aquelas próprias das gerações plenamente atuais, isto é, as duas que estão em atuação histórica, em suas duas fases de “gestação” e “gestão”, segundo os têrmos de Ortega; isto é, entre os trinta e os sessenta anos. (No século XX terseia que reconhecer também vigência geral aos conteúdos próprios da geração mais velha, dos sessenta aos setenta e cinco. Para tom ar um exemplo concreto, na Espanha atual deverseia incluir as três gerações cujas datas natalicias centrais situo em 1886, 1901 e 1916; as vigências da geração de 98 — isto é, a de 1871 — e a da última que entrou na vida — os nascidos em tôrno de 1931 — não seriam agora ou ainda vigentes na Espanha)*. Em segundo lugar, as vigências não só estão afetadas por fases generacionais, como também o estão do ponto de vista da idade. Além das vigências que pertencem a cada uma das gerações e a acompanham por tôda a sua vida — seria exato dizer que constituem cada uma das gerações — , há outras que a abandonam no transcorrer das idades, possivelmente para se exercerem sôbre a geração seguinte. H á as vigências juvenis, que perdem seu vigor com a juventude; as da maturidade, que se debilitam e cedem o lugar a outras quando a velhice se aproxima; bem como há vigências “internas” masculinas ou femininas, as interiores a cada idade, e análogamente outras “de relação” que regulam o comportamento dos homens e mulheres de cada idade frente aos demais. Destas vigências, que exercem sua ação segundo fases, umas estão adscritas à fase de uma geração — os jovens da geração X, ou melhor, a juventude dessa geração — , e são portanto fugazes, e outras têm um caráter esquemático e por isso mesmo “iterativo”, isto é,' são típicas vigências “juvenis”, “senis”, etc., que reaparecem, a cada novo afluxo de homens da idade correspondente. Portanto não possuem vigência contínua e sim renovada, e em cada caso exercem sua pressão sôbre núcleos humanos diferentes; não se pode falar de uma perduração ou persistência dessas vigências iterativas e sim de uma peculiar recorrência em forma de descontinuidade. O caráter fásico não se limita, porém, àquelas vigências que são exclusivamente fásicas; mesmo nas persistentes, que (*)
Estas últimas começariam a o ser agora (Nota de 1960).
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não estão adscritas nem a uma idade nem a uma geração, mas, pelo contrário, afetam uma sociedade intera e às vêzes durante um longo período, sua forma de existência histórica não é estritamente uniforme e homogênea; apresenta matizes ao longo das sucessivas gerações, e isto em dois sentidos: primeiro, porque em cada uma delas coexiste com um repertório de vigências em parte variável e representa conseqüentemente um papel diverso em cada caso, dentro de um a figura total de vida; segundo, porque o conteúdo e o vigor de uma vigência são afetados por sua própria história; isto é, a sua pró pria duração a vai matizando e modificando. Assim como os homens, também as vigências tem “idade” : são diferentes entre si um a vigência “jovem”, que mal inicia sua influência, e outra já arraigada e inveterada ou uma terceira “imemorial” . E isto nos remte a uma nova questão: o processo das vigências.
25.
Gênese, declínio e substituição das vigências
A vigência é um caráter que sobrevêm a certos conteúdos, pertencentes originàriamente à vida individual. Nestes se originam tôdas as realidades coletivas ou sociais, como o indicou suficientemente Ortega; porém , enquanto não se transcende o individual e ainda mesmo o interindividual, não existe realidade social sensu stricto. Isto significa que, para que se dê a existência social de algo, é necessário que seja afetado um número considerável de indivíduos, não bastando, no entanto, o mero número: a simples freqüência não é condição suficiente para que algo seja realidade social. Ainda mais, em muitos casos a vigência precede a freqüência e é causa desta: porque certa conduta é vigente, é ela seguida pela maioria dos homens e dêsse modo tornase freqüente. Isto introduz um ponto de vista qualitativo que é essencial. Não é o número que decide no social e sim a função que cada homem ou cada ação representa dentro da vida coletiva. Consideremos um fenômeno relativamente simples, como é o da moda. Antes de tudo, convem não confudir a moda com o uso de vestir, etc., de certa maneira determinada. A moda não é um simples uso; o princípio dêste é justamente que se usa algo concreto e não significa a mesma coisa que estar na moda alguma coisa; mais ainda: as coisas que estão verdadei
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ramente na moda não são muito usadas, e quando isto acontece deixam de estar na moda. Não é, como se poderia pensar, um uso restrito a um grupo e sim bem pelo contrário: a aceitação da vigência inclui no grupo assim constituido por ela. A vigência que é a moda está ligada intrínsecamente a uma pretensão muito precisa: a de seguir a moda; sem ela, a pressão que a moda exerce se anula automáticamente, como no caso de inúmeras mulheres de idade madura, dedicadas ao cuidado de sua casa, para as quais a moda simplesmente não existe, enquanto que os usos próprios do vestir sim: usarão saias de certo com primento, chapéu ou não segundo sua condição social, vestirão luto, etc. A moda se origina em virtude de uma ação individual prévia a ela, isto é, que ainda não é moda e, consiste em inovação. Essa inovação supõe a rup tura de um uso ou, pelo menos, se se tom a o fenômeno geral da moda, a sua infração; possui, pois acentuado caráter negativo, pelêmico ou discrepante, e supõe certa audácia; po r êsse motivo a moda tem se originado, quase exclusivamente, em certos meios sociais elevados — aristocracia — ou marginais — o mundo do teatro, entre as mulheres de conduta livre — ; teve, pois, seu nascimento sempre em pessoas individuais capazes de pôr a descoberto sua iniciativa e com freqüência desejosas de se distinguirem ou de atrairem a atenção. Porém até aqui não há ainda a moda. Nem tão pouco quando se dá um passo mais, bem conhecido e no qual Simmel insistiu em seu penetrante estudo: a imitação individual. É exigida mais um a dupla condição: que a adoção dêsse conteúdo se estenda a um número suficiente dentro de um grupo social e que a êste se lhe reconheça uma vigência, isto é, a de ser titular da elegância, do “bom tom”, do “gôsto”, etc. Nesse momento, e só então, se origina a moda como tal e exerce sua vigência sôbre a sociedade: em primeiro lugar, sôbre todos e sôbre cada um dos indivíduos do grupo social no qual se gestou; em segundo lugar, sôbre os demais cuja pretensão inclui o “estar na moda”, isto é, participar a uma distância maior ou menor do núcleo criador; em terceiro lugar e por último, sôbre o restante da sociedade, na medida em que a esta se apresentam certos conteúdos como sendo “de moda”, ainda que sem aceitação pessoal; isto é, a moda funciona relativamente a tôd a a
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sociedade, porém para uma parte dela somente como vigência de relação. Escolhi êste exemplo porque mostra com especial clareza o caráter ao mesmo tempo quantitativo* e qualitativo da gênese de qualquer vigência. O fato se torna ainda mais visível se se considera a forma atual da moda, cujo mecanismo difere bastante do tradicional. Em nossa época, a moda é “imposta” e “lançada” po r certos profissionais: engendrase, pois, num meio em que a iniciativa e a inovação estão previstas já de antemão; paradoxalmente, contase com a inovação e em uma data fixa: sabese que haverá uma moda de outono, isto é, que se inventarão certas formas pa ra serem seguidas; isto significa que neste caso a vigência autêntica é a de “haver moda” e a de ter esta seus órgãos sociais diferenciados e definidos; já não se baseia na inspiração individual, no prestígio concreto e a pos* teriori e na existência de uma fração social que confere vigência a um tipo de conduta, mas descansa num mecanismo recí proco: a “criação” profissional e planificada da moda e a docilidade automática a ela. E aqui se tom a evidente o que afirmava anteriormente: o fato da vigência ser prévia à freqüência desta. Porque algo aparece como moda é aceito por muitos; o vigor lhe advém de uma qualificação prévia a seu conteúdo e à opinião dos indivíduos sôbre êste: o prestígio de quem lança a moda. Seria, porém, um êrro supor um automatismo absoluto, visto que nem tôda moda “proposta” se realiza, isto é, se “impõe”; e a razão é que a vigência que a apoia e a sustém pode entrar em conflito com outras vigências: certo critério estético, um preconceito nacional, uma resistência moral ou religiosa, etc. Nestes casos, o indivíduo fica submetido à pressão oposta de duas vigências diferentes, e a resultante é problemática. E notese um pormenor secundário mas muito significativo: para que se efetive a vigência da moda, deve conservar uma máscara de impersonalidade; vimos anteriormente que a moda não se constituía simplesmente com o “exemplo” da pessoa individual elegante; agora, o profissional que lança a moda mantém uma ficção: a de que “profetiza”, anuncia, adivinha o que será a moda, o que “se usará” na próxima temporada; sua “autoridade” é mais de descobridor e vaticinador do que de ditador; não é o que manda e sim o que sabe ou prevê o que estará em moda; quando alguns dos seus “criadores” confunde a dimensão
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em que se dá seu verdadeiro prestígio com a do “poder”, comete um érro que expiará depois com o fracasso: a moda “ordenada”, não prevista, revelada, comunicada antecipadamente, costuma encontrar resistência, sendo por vêzes repelida com energia. Pretendeuse transportála para outra esfera, na qual não tinha vigencia. Como confirmação histórica disso, tenhase presente o fracasso de todas as modas impostas autoritáriamente: pragm áticas contra o luxo, afirmação de um traje nacional, proibição de certas modalidades do vestir ou de maquilagem, etc.; e quando algumas destas imposições se afirma — quase sempre de modo muito passageiro — é apenas enquanto pura imposição, nunca enquanto moda, desde o motim de Esquilache (*) até a regulamentação oficial dos trajes de banho ou do comprimento das mangas. Éste exemplo pretende apenas fixar a atenção em algo concreto para que se compreenda melhor o processo das vigências. O importante é advertir a constante relação recíproca entre a vida individual e a coletiva, a função que a primeira representa na gênese de qualquer vigência, mas, por outro lado, sua insuficiência, isto é, a necessidade de que a ação individual se “socialize” para que a vigência consiga nascer. Isto quer dizer que uma vigência supõe outras, que sua constituição só é possível dentro de uma sociedade, ou seja dentro de um repertório de vigências relativamente variáveis e que se sucedem parcialmente. Tôda vigência recebe seu vigor do restante das vigências dominantes; por isso a energia de tôdas elas depende da solidez do sistema geral das vigências; não do grau de “socialização” de um a estrutura social — isto é outra coisa — , e sim do grau de sociabilidade. Mas tudo isto é apenas o comêço. Uma vez engendradas e constituídas as vigências exercem sua pressão por um tempo mais ou menos longo; sua intensidade é variável; finalmente, há um momento em que declinam e se debilitam. Por que? E como se dá esta fase do processo? Notese que a discrepância individual conta muito pouco; quase nada, se é minoritária; (*) O Marquês de Esquilache, ministro de Carlos III, proibiu aos madrileños o uso dos chapéus “chambergos” (de abas largas) e das capas longas. Os madrileños se rebelaram e depuzeram o ministro. (Nota do autor para a tradução brasileira).
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porém, inclusive no caso de que a maioria dos individuos como tais sejam discrepantes, o vigor da vigencia em questão sofre uma diminuição muito escassa. Mais um a vez, para conseguir efeitos sociais é necessário passar pela sociedade. Imaginese, para voltar ao exemplo anterior, uma moda inadequada ou incômoda; há quinze anos atrás, nós homens espanhóis usávamos no verão roupas de tecidos pouco mais frescos que os de inverno, e de côres bastante escuras; dadas as temperaturas do país, nada seria mais absurdo; também a vigência de trazer pôsto o poletó era absoluta, e o resultando total não poderia ser mais incômodo. Se se perguntasse a cada um dos espanhóis, todos teriam dito, enxugando o suor da fronte, que tal vigência era lamentável; e, no entanto, perdurou anos e anos com solidez monolítica. Como entrou depois em declínio? O fato é tão próximo que está na memória de todos. A guerra civil havia abolido, não a moda em sentido estrito, mas os usos do vestir; a maioria dos espanhóis havia se vestido durante três anos à militar — e não me refiro ao uso do uniforme, porque precisamente a uniformidade brilhava por sua ausência — ; diversas classes de túnicas, jaquetões, “caçadoras”, “canadenses”, “saharianas”, camisas, foram sucedendo umas às outras ou coexistindo. As vigências indumentárias ficaram pois em suspenso. Quando a vida normal foi retomada, a coisa era tão literal que se pode dizer que mal existia o traje “à paisana”; persistia o uso de peças de vestiário militar, ou quase isso; introduziuse o emprêgo de tecidos leves e côres clara,s, procedentes dos uniformes de verão, e no momento em que foram lançados no comércio os paletós de seda ou linho e outras peças análogas originouse uma nova vigência: a de se vestir “à maneira de verão”. Pôdese assim tomar a Bastilha dos trajes de tecido azul ou cinza, graves e severos. Insisto nestes exemplos triviais porque neles se dá o fenômeno puro da vigência: o respeito à propriedade privada, o matrimônio canônico, o sigilo da correspondência ou o com promisso do juramento têm demasiadas implicações e requereriam um estudo minucioso de tôdas as circunstâncias conexas. Por último, as vigências podem “cessar” de duas maneiras: por dissolução e por substituição. No primeiro caso, a vigência se atenua e se debilita, perde “vigor”, exerce uma pressão cada vez menor, acabando por desaparecer. A facilidade de se que brantar a vigência aumenta; a sociedade exerce, pouco a pouco,
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represálias mais suaves, e portanto é cada vez maior o número dos que se atrevem a afrontálas. Ao fim de certo tempo, alcançase completa isenção: a conduta já não está, nessa ordem, prescrita por uma pressão social, ou, o que significa o mesmo, já não há vigência. Podese sair à rua sem chapéu como também se pode continuar a usálo; não há vigencia a respeito do uso do bigode, que há quarenta ou cinqüenta anos era quase obrigatório; diversamente do que aconteceu depois da primeira Guerra Mundial, as mulheres podem optar pelo cabelo com prido ou curto, porque não existe um penteado vigente. Em muitos países o luto não é mais vigente; em outros, como na Espanha, possui uma vigência debilitada, residual nas grandes cidades e ainda vigorosa no resto da nação; mas, em todo o caso, a vigência parcialmente volatilizada, não foi substituída por outra e o uso do luto continua sendo possível. E os exem plos poderiam ser multiplicados fácilmente. No entanto, o que se dá com mais freqüência, é a substituição das vigências. Sôbre certos conteúdos sociais se pode exercer uma ou outra pressão, mas sempre alguma. E esta costum a ser a forma de declínio da m aioria das vigências: sua rendição ou suplantação por outras, iniciadas por sua vez na vida individual, que se apresentam polémicamente, alcançam depois de algum tempo uma vigência reduzida a um grupo particular e acabam por se estender à sociedade tôda. Deixar a barba crescida ou fazêla são vigências que se têm alternado em períodos pouco menos que seculares, e sempre com caráter de substituição efetiva. Quando a vigência do duelo desapareceu, não significou isto uma simples dissolução da vigência, no sentido de que fôsse facultativo ao indivíduo o baterse ou não: tratase de que a antiga vigência pela qual em determinados casos “é preciso se bater” foi substituída por outra, cujo conteúdo é que “as pessoaS não se batem mais”. A rigorosa vigência de que uma jovem não podia sair sem que alguém a acompanhasse foi substituída por outra, não menos enérgica, que lhe veda sair com “governante” ou “dama de companhia” — nomes correspondentes a outras tantas fases bem diferenciadas — . Para terminar, devese considerar um caso limite muito significativo. É o que eu denominaria “vigências vacantes” . Como todo o social, as vigências1'são realidades que necessitam estar “cheias” ou “vazias” (vacantes); e às vêzes acontece que
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não existe nenhuma vigencia atual acêrca de um conteúdo que a reclama. Um exemplo disso são as formas do trato social, tais como o “tratamento” ou o uso do vocativo. Notese o que se tem dado nos últimos tempos, na Espanha, com o modo de se dirigir a uma senhora. Até há poucos anos, usavase o nome com a anteposição do “dona”; mas num belo dia começou a parecer que isso, ao mesmo tempo que envelhecia, não era amável: tomouse difícil dizer “dona M aria” ou “dona Pilar” a uma senhora sem lhe acrescentar anos e aburguesála excessivamente. O uso do sobrenome com o tratamento de “senhora”, normal na terceira pessoa, numa apresentação por exemplo, nunca o foi no vocativo: “senhora” simplesmente, sem o nome, soa demasiadamente cerimonioso. Só resta uma saída: o nome de batismo sem mais; e esta é a solução preferida. Porém como é excessivamente familiar, supõe também alguma violência; então se opta por evitar o vocativo nos primeiros encontros e, no momento em que se consegue um mínimo de familiaridade ou amizade, se diz simplesmente “Carmen”, “Teresa” ou “Lo lita”; isto é, como não se conta com uma vigência suficiente, suprese a sua ausência com expedientes que, como tais, tornam sc insatisfatórios. Análogamente, começa a se produzir outra vacante: a da vigência que regula o uso do “você” e do “o senhor” ou “a senhora”.
26.
A estrutura social e sua integração pelas vigências.
Ê conveniente que agora se experimente focalizar outro aspecto da questão: uma vez analizado com minuciosidade o fenômeno das vigências, é preciso, a partir de um ponto de vista oposto, tentar ver como elas se integram numa estrutura social. E é, precisamente, disso que se trata. No comêço dêste capítulo assinalei que o mundo social não se compõe de coisas e sim de realidades sumamente estranhas que consistem em atuação positiva ou negativa, e que esta se exerce segundo certas linhas estruturais; adverti, porém, logo a seguir, que a estrutura consiste principalmente “na disposição, conteúdo, intensidade, e dinamismo das vigências”. Esta expressão era bastante exata, porém ainda não de todo inteligível; agora, depois das páginas anteriores, alcança uma evidência e uma plenitude que antes não teria podido obter. Podese substituir essa expressão
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por outra mais breve: o sistema das vigências; mas com a condição indispensável de que se tome ao pé da letra a palavra sistema, como conjunto de elementos que se reclamam reciprocamente e se sustêm ou sustentam uns aos outros, mediante um conjunto de tensões operantes. E isto nos esclarece de relance algo de maior interêsse: o fato de que a estrutura social é precisamente um sistema de vigências, porém não uma sociedade. Poderíamos dizer que a estrutura social é a sociedade menos os homens e, portanto, o que de fato fazem. Com efeito, as vigências são sempre para certos indivíduos, sôbre êles se exercem, estão parcialmente constituídas pelas suas pretensões, condicionam seu comportamento, o limitam ou o canalisam, porém não o decidem. Com isto quero dizer duas coisas: 1) que a estrutura social ou sistema das vigências não pode ter realidade — nenhum tipo de realidade — que não seja com os homens, isto é, integrando uma sociedade, como estrutura de uma sociedade; 2) que, dado êsse sistema estrutural, não está dada a efetiva realidade históricosocial, a qual é livre, condicionada, evidentemente, porém aberta, indecisa, imprevisível enfim. Vimos antes também que uma vigência nunca se pode engedrar na vida individual, mas que a ação genética do indivíduo tem que passar pela “matriz” da vida coletiva para que a vigência se produza efetivamente; tôda vigência pressupõe a sociedade e portanto outras vigências: omnis vigentia ex vigentia, poderseia concluir. É esta outra forma de enunciar seu sistematismo, a mera impossibilidade de tomar uma vigência isolada das demais. Por êsse motivo também, muitas vigências se tom am “inexplicáveis”; o são, evidentemente, a partir da vida dos indivíduos e também a partir da sociedade,se se quer apenas considerar a “sua linha” ; porque a sucessão das vigências não tem caráter linear, não se vão substituindo em sua ordem e dentro de cada um dos aspectos ou dimensões da vida, porque isto constitui somente o excepcional. Normalmente, cada vigência tem suas raizes na estrutura social íntegra e suas variedades procedem dessa totalidade, não da vigência “homóloga” precedente. Daí que se to m e impraticável a derivação das vigências em linhas abstratas: uma “história da moda”, da alimentação ou do direito, tomadas ao pé da letra, são impossíveis. Quero dizer que as mudanças da moda não procedem da
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moda mas sim, da política talvez, ou da cultura; e as vigências artísticas podem muito bem depender mais do erotismo, do esporte ou da religião, do que da crítica, das academias ou das exposições. As vigências só se tornam inteligíveis a partir da form a de vida em que surgem; e inversamente, qualquer pequena variação nas mesmas, analizadas satisfatoriamente em tôdas as suas conexões, descobre uma transformação da vida coletiva em sua totalidade. Se se observa o fato de que, em certas ocasiõesr as cartas que recebemos já foram lidas antes por outras pessoas, ou se considera que num café há talvez dois têrços de mulheres, e se examina bem tudo o que estas duas modestas realidades implicam, se pode reconstruir uma bôa porção de nosso mundo. Isto nos leva a pensar que para entender o social não há outro remédio a não ser o recorrer à razão <6). Dizer isto parece um simples gracejo, mas se se pensa um pouco verseá que não o é, que de fato a sociologia tem gasto anos tentanto dispensar a razão, em muitas ocasiões proclamando isso como virtude e até conferindolhe a posição de método. As conseqüências teóricas começam a se mostrar claramente; as práticas custaram a vida a alguns milhões de homens e ameaçam pôr têrmo à dos que escaparam. Talvez fique mais claro se dissermos que a vida só pode ser entendida de dentro. Se nos situamos fora de uma estrutura social, as vigências são ininteligíveis porque justamente lhes falta seu vigor, visto que cada uma se exerce com as demais — reforçada, acompanhada, contrapesada pelas demais — e, sobretudo, sôbre um ponto de aplicação que é o indivíduo; porém como êste, por sua vez, não é abstrato, não é um simples sujeito gramatical ou “sociológico”, mas está definido por êsse horizonte de pressões positivas ou negativas que atuam sôbre êle e, na mesma medida pela pressão que exerce com sua pretensão ou projeto vital, a intelecção está inexoràvelment ligada à presença (6) No sentido em que a defini rigorosamente como “a apreensão da realidade em sua conexão”. Veja-se minha Introdução à Filosofia , sobretudo o capítulo V. Esta é a idéia que vivifica tôda a sociologia de Ortega e faz com que ela seja muito mais do que usualmente se entende por sociologia: uma teoria da vida coletiva, fundada numa teoria prévia da vida humana efetiva, isto é, individual, à qual porém lhe acontece inexoravelmente a sociedade; teoria possível somente mediante o uso da razão vital, que em sua forma concreta é razão histórica.
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dessa situação efetiva com todos os seus têrmos. O que equivale a dizer que, se se trata de uma sociedade alheia — estrangeira ou antiga — , o mais exaustivo acúmulo de materiais, as estatísticas mais completas, tôda a informação, por ilimitada que a suponhamos, é incapaz de nos fazer entender a realidade social. O que faz falta em primeiro lugar — entendase bem, em primeiro lugar — é a imaginação. É paradoxal e lamentável que o pai da sociologia, Augusto Comte, pretendesse substituir a imaginação pela observação e caracterizasse seu método próprio pelo predomínio constante da segunda. O único meio de que os dados, as informações e estatísticas sirvam para alguma coisa é “se pôr a viver” imaginàriamente a sociedade que se trata de estudar, receber dêsse modo o impacto das vigências, reconstruir o mundo alheio ou pretérito, com seu to,m vital; e ainda mais: projetarse imaginativamente — novelescamente — nesse mundo, assumir uma vida virtual que pudesse ter sido a de um seu habitante, exercer ante essa circunstância uma pressão “verossímil”; com outras palavras, transm igrar hermenèutica mente à situação que se trata de entender. Por isto não deve parecer estranho que até agora tenham sido as bôas novelas os meios mais eficazes para penetrar em estruturas sociais alheias. Com o que não quero dizer, é claro, que a sociologia se deve identificar com a novela, porém que tem de ser mais, e em caso algum menos do que ela. Deverá se integrar com todo o muito que falta à novela, mas, naturalmente, sem renunciar às possi bilidades de conhecimento que ela enoerra (7). É necessário, pois, dar mais um passo. Ao considerar a estrutura social como efetivamente integrada pelas vigências, devese ver estas em seu funcionamento real, isto é, exercendo se em interação com uma pretensão humana. Fazer isto requer, como primeira etapa, atender a um tipo muito peculiar de vigências que são as crenças; em segundo lugar, estudar a reação individual às crenças coletivas, e especialmente o problema das idéias — uso ambos os têrmos no sentido técnico proposto por Ortega (8) — ; em terceiro lugar, a questão decisiva das pre )
(7) Veja-se meu estudo “La novela como método de conocimiento” em La Escuela de Madrid ( Obras V ). (8) ORTEGA Y GASSET: Ideas y creencias. (O. C., V, p. 375ss,).
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tensões e o significado de uma problemática “pretensão coletiva” . Sòmente assim se pode ir em busca dessa realidade, nem individual nem “específica”, que denominamos estrutura social, e com isso empreender o estudo das estruturas das sociedades efetivas e concretas.
IV CRENÇAS, IDÉIAS, OPINIÕES 27.
As crenças básicas.
Como Ortega o demonstrou, das crenças não se costuma ter “nem idéia”; especialmente quando se trata das crenças básicas ou fundamentais nas quais nossa vida repousa. São as vigências radicais acêrca da realidade e das coisas reais, as interpretações recebidas nas quais nos achamos sem mais e que significam para nós a própria realidade. O fato de que estas crenças, quando formuladas — isto é, quando não funcionam como crenças sensu stricto — existam com existência mental, isto é, se apresentem numa forma análoga à das idéias, tem levado a confundir êsses dois ingredientes que representam tunções tão diferentes em nossa vida, e que são portanto duas realidades diversas. A distinção entre idéias e crenças é uma das contribuições capitais de Ortega, não só à sociologia como também à metafísica, de onde se origina (1). Quando se trata de compreender uma sociedade, é muito mais importante — e mais difícil — averiguar quais são suas crenças básicas do que saber quais são as idéias existentes. E é difícil porque muito raramente se fala nelas, porque nem se pensa nelas, já que — repito — não se tem, de um modo geral, “nem idéia”. As crenças funcionam, atuam simplesmente; nós não as temos mas são elas que nos têm ou nos sustêm, se está nelas, não são conteúdos de nossa vida mas continentes. Só se as pode descobrir por seus efeitos, isto é, o que acontece só acontece porque as crenças vigentes estão aí, atrás ou sob, tornandoo (1) ORTEGA: Ideas y creencias. Veja-se também minha Intro dução à Filosofia, especialmente os itens 4, 2?, 79, 30 e 43
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possível; os homens pensam e fazem determinadas coisas e não outras porque estão em tais crenças concretas; o que dizem e fazem nos pode remeter, antes da análise de suas condições e pressupostos, às crenças fundamentais que, geralmente, não são conhecidas. O problem a se coloca, pois, nestes têrmos: de que maneira as crenças de uma sociedade devem ser para que suas idéias e sua conduta sejam estas. Repito que raramente se fala das crenças. Só excepcionalmente aparecem enunciadas ou formuladas nos escritos da época. Denuncíamse mais fácilmente em sua variação e movimento: quando as crenças mudam, seu desaparecimento se acusa; o que costumamos perceber delas é o seu ôco, o vazio que deixaram na sociedade; são como um barco invisível, do qual se percebe apenas o sulco deixado na água. Isto significa que se nos limitássemos somente às idéias, a sua própria história seria inexplicável — daí a insuficiência de tóda tentativa de “história das idéias”, a menos que subrepti ci ámente se dê mais do que êsse mero nom e promete — ; as idéias não se derivam umas de outras e sim de uma situação total condicionada principalmente pelas crenças básicas. Justamente as idéias se originam para suprir ou completar as crenças, acorrem para encher seus ôcos, algumas vêzes para sustêlas, raramente para solapálas, porque, em primeiro lugar, isto só se faz quando já se está fora da crença, e em segundo lugar —• e isto é mais importante — , as idéias costumam ser ineficazes e inoperantes frente às crenças, e quando parece que não o são é por se estar em outra crença, que é o que realmente deslocou aquela anterior. Mais adiante veremos como, paradoxalmente, o que costuma ameaçar e debilitar as crenças é defendêlas e sublinhálas explicitamente. As crenças são sempre um tipo particular de vigências: aquelas que se referem à interpretação d a realidade. Seguem, pois, no essencial, a dinâm ica que estudamos antes. Diferentemente das idéias, que sempre se originam na vida individual, que são algo que eu penso, as crenças existem no âmbito da vida coletiva, as encontro na sociedade, nelas estou imerso, e nessa medida me constituem. O homem, em cuja vida individual se dá a sociedade, isto é, lhe acontece ser social, está “feito” parcialm ente das crenças, que são uma das dimensões essenciais de seu mundo. Daí a dificuldade de penetrar em estratos tão
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profundos e que só excepcionalmente afloram à luz. O único modo relativamente fácil de ter acesso às crenças básicas é a historia; não só no sentido de que, ao deixarem de ser vigentes, as crenças põem a descoberto seu vazio, que é ocupado por outras diferentes, e certas estruturas que pareciam ser a própria realidade revelam seu caráter interpretativo, como também de outra maneira. As variações históricas, o movimento da historia mesma são o modo das crenças fundamentais aparecerem, sua forma normal de manifestação. Pertence a sua condição subterrânea êsse modo de acusarse indiretamente na face da vida coletiva; corresponde a seu caráter operante o revelarse apenas no movimento, na própria ação vital. Se se procura entender o que acontece na história, é preciso reconstruir a situação efetiva em cada momento seu e as tensões que obrigam ir de uma situação a outra, e mais a outra; e essa reconstrução, feita primàriamente com os elementos visíveis, com o que poderíamos chamar os dados, tomase deficiente — e correlativamente, a situação incompreensível, se se dá um sentido rigoroso à palavra “entender” — ; êsses ôcos de intelecção que clamam por encherse para que a compreensão seja possível, mostram o lugar de outros elementos não manifestos e patentes, que são os pressupostos; e entre êstes, primordialmente, as crenças. Se desejo entender o que um homem faz, necessito ter presente por que e para que o faz; e percebo que é em vista de tôda uma conjuntura de circunstâncias, experiências, recursos, necessidades, projetos; mas, além disso, movido a tergo pelo fato de encontrarse — provàvelmente sem o saber — instalado em uma série de crenças básicas pelas quais nem ao menos pergunta e que são as que conferem um sentido concreto a todos os elementos patentes e fazem, em suma, que se ache numa situação determinada e não em outra diversa, que com os mesmos ingredientes visíveis seria igualmente possível. O mais importante é que a coincidência das crenças for muladas com as idéias pode levar à confusão. O “conteúdo” de uma crença, quando é conhecido e enunciado, é uma idéia, tem um a realidade mental, intelectual; parece um a afirmação, opinião ou tese que a lógica pode manejar, da qual tem sentido perguntar se é verdadeira ou falsa. Mas acontece que a crença, quando é conhecida e enunciada, não funciona como crença; cu seja que esta, em sua realidade própria, é outra coisa, e o que dizemos dela como idéia pouco tem que ver com suas ope
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Tações autênticas. A dificuldade está pois no fato de que só podem os “conhecer” as crenças formulandoas ou “ideifican doas”, se se permite a expressão; e urna vez executada esta operação intelectual, propendemos a fazêlas entrar no mundo das idéias, mesclálas com elas, julgálas a partir do ponto de vista que a estas é adequado. Em primeiro lugar, em relação à importancia; em segundo lugar, quanto à sua solidez; po r último, pelo que se refere a suas relações internas, isto é, às conexões das crenças entre si. Se se tom a nos três aspectos o ponto de vista das idéias, fatalmente se erra. Porque a importância das crenças não é intelectual e sim vital; não é tão importante num a •crença permitir entender o real mais ampla e profundamente, quanto condicionar mais decisivamente urna vida; e sua solidez não é matéria de “evidência” ou “demonstração” mas sim de lugar de “implantação” em um ou outro estrato da vida individual e da sociedade, de antiguidade ou novidade, de “fase” em que se encontre, de ámbito a partir do qual — como vimos em geral a propósito das vigências — exerça sua pressão; e finalmente, as conexões entre as crenças não são relações “lógicas” como as que ligam entre si as diversas proposições de uma ciência, e sim vínculos de fundamentação vital ou, para utilizar um têrmo que me parece expressivo, de vivificação — embora, em última análise, seja a vivificação a forma superior de fundamentação lógica, quando se dá a esta palavra todo o seu alcance, que raram ente é conhecido <2) — . Temos, pois, sem esquecer de que se trata de crenças e não de idéias, de perguntar por sua importância, solidez e conexões ou, em outras palavras, se as crenças constituem ou não um sistema e em que sentido, e qual sua ordenação ou hierarquia. 28.
Sistema hierárquico das crenças.
Para as crenças o decisivo é serem cridas; perdôese esta introdução acaciana inevitável. Realmente, tôda consideração que passe por alto esta função intrínseca escamoteia o tema das crenças e, a rigor, trata de outra coisa: dos esquemas conceituais que funcionam como seus ingredientes, de seus resíduos quando desaparecem, de seus “conteúdos”, que podem ser coin (2)
Cf.: Introdução à Filosofia, V, 42.
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cidentes com os de muitas outras realidades humanas que não são crenças. crenças. Se queremos entender enten der o fenóm fenómeno eno das crenças devese ter em conta co nta dois principios metódicos: primeiro, prim eiro, sur pre p reee n d ê la l a s in fraganti, isto é, enquanto cridas, em sua função pró p rópp ria ri a ; segu se gund ndo, o, a ten te n d e r in inic icia ialm lmen ente te a cren cr ença çass rela re latitivv a m e n te simples e elementares, sem demasiadas implicações nem interferências que turvem sua realidade. Por isso pareceme sumamente perigoso pensar nas “crenças” religiosas quando se investiga a realidade das crenças; po p o rqu rq u e em b o ra in indd u b itàv ità v e lmen lm ente te e x ista is tam m cre cr e n ças ça s relig re ligio iosa sas, s, u m a grande parte do conteúdo da religião não constitui crenças no sentido sentido técnico técnico que aqui damos à palavra. N ão o são, são, po por exemplo, os dogmas enquanto tais, que são formulados, definidos e propostos à adesão; adesão; esta adesão, que po r um lado é intelectual intelectual e por po r outro voluntário, voluntário, estará vitalmente vitalmente m obilizada obilizada — não resta resta dúvida dúvida — por uma crença em que se está, mas o próprio dogma, precisamente no que tem de dogma, não é “crença”. Nã N ã o é u m a cre cr e n ç a a ade ad e são sã o à tes te s e de q u e “ D e u s e s tá em tô tôdd a a parte, por po r essênc essência, ia, presença e potência”; é uma crença, no entanto, e decisiva, o sentirse na vida sob os olhos de Deus, em suas mãos; conta co ntarr com que êle êle está vendo o que fazemos fazemos e o que pensamos; o não nã o estarmos sós; sós; referirnos tácitamente tácitame nte a êle no sentido de “contar com êle” ao fazer o que fazemos. E desta crença em sentido estrito participam não só muitos homens que nunca ouviram nem formularam a tese enunciada acima, como também outros que “não crêm” em Deus, que negariam essa tese e mesmo aquela que afirma a existência de Deus. Seria preferível usar a palavra “fé” para se referir à religiosa — o conteúdo da fé estaria integrado por crenças e por outros elementos distintos, desde a inspiração sobrenatural até a adesão adesão voluntária voluntária e livr livree ou a persuasão — e procu rar a peculiapeculiaridade das crenças nos casos em que estas se apresentam em sua simplicidade e pureza, isto é, em suas formas elementares. As crenças se referem primàriamente ao comportamento da realidade; as interpretações básicas do real, justamente na medida em que “funcionam”, em que não são pensadas como interpretações, constituem constituem as crenças fundam entais. P o r isso isso as crenças não se originam no indivíduo propriamente por persuasão, não são rigorosamente “convicções”, mas são como que
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“injetadas” pela m archa da vida mesma. O funcionamento funcionamento da realidade que nos rodeia desde o nascimento, a apresentação de cada luna das coisas como “tal coisa”, como “tal maneira de ser e se comportar” decanta em cada um de nós a crença subterrânea rân ea correspondente. correspondente. O uso livre livre e incontrolado do ar, ar, ao lado lado do uso cheio de restrições dos alimentos, provoca em nós crenças definidas relativamente à inesgotabilidade, segurança, gratuidade do primeiro, e à limitação, incerteza e custo dos segundos; o caso da água esclarece esclarece melhor: enquanto enqua nto nas grandes cidades cidades civili civilizad zadas as de nosso no sso tempo tempo a água — que existe existe sem sem mais nas torneiras — funciona quase como como o ar, em em outras formas de cultura se converte numa realidade escassa, improvável, difíci difícill e valiosa; quando qua ndo um corte do fornecimento fornecim ento de água suspende sua fluência nas torneiras, a crença em que se estava tomase problemática, é necessário reconsiderála e sobrevêm sobrevêm uma um a pequen peq uenaa cri crise. se. As crenças a respeito respeito do próximo — p o r exem ex empp lo lo,, c o n fia fi a n ça o u desc de scoo n fian fi ança ça,, etc. et c. — o rigi ri gina nam m se, s e, não em virtude de alguma ideologia ou persuasão mental, mas sim apenas pelo modo de tratálos; o uso de fechaduras, ferro ferro lho.s, correntes, a vigilância das janelas ao cair da noite, etc., injeta na criança um repertório de crenças a respeito do homem, muito diversas das que adquire nas sociedades em que a porta não se fecha, não se confere o trôco e se aceita automáticamente a palavra palav ra alhei alheia. a. A s crenças crenças concem entes à condição masculina ou feminina procedem da forma de relação entre os sexos que funcionam de fato na sociedade em que se nasce. nasce. A origem humana da crença em Deus não é uma argumentação doutrinai feita à criança, nem ao menos a proposição formal de que Deus existe, existe, e sim sim algo algo mais simpl simples es e profun pro fundo: do: a introduçã introd uçãoo de Deus em sua vida, a apresentação de mais uma realidade em seu horizonte; a criança aceita em princípio as realidades de que falam seus pais, tomaas como efetivas — só tardiamente começará a desqualificar algumas, e desde ,logo apenas quando não são apresentadas “a sério” — ; ao falar de Deus, êste êste fica fica automáticamente incluido no mundo infantil, e precisamente na forma em que é “tratad o” : com veneração, com temor, com amor, com frivolidade, com “partidismo” e “beligerância”, segundo os casos. casos. A s crenças crenças negativas negativas — tão importantes imp ortantes — têm sua origem na aversão, temor, ódio ou desprêzo com que são vividas no meio familiar ou social certas realidades, quer se trate da serpente ou do negro, do burgaês ou da bruxa, do
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jud ju d e u o u d a p ros ro s titu ti tuta ta,, d a to torr m e n ta o u d o eclip ec lipse se,, às vêzes vêz es do defei defeituo tuoso so físi físico co,, do enfér enférmo mo — o “tí “tísic sico”, o”, o lepro so— so — , do herege ou do “papista”, hoje ainda melhor do comunista ou do fascista. As crenças são, portanto, as formas mais profundas e elementares men tares de inclusão das diversas diversas realidades realidades na vida; são as as grandes interpretações funcionais do real, das que se lança mão, po p o r c o n ta d as q u ais, ai s, a créd cr édititoo — p o r isso iss o são sã o c r e n ç a s — s « vive vi ve.. E é isto isto que condiciona seu caráte ca ráterr sistemático e sua sua hierarquia. Quero dizer que a vida — que é a organização real da realidade (3) — impõe em cada caso uma perspectiva determinada, possui diversas “amplitudes” e figuras, uma economia entre seus seus elementos que não é sempre a mesma. P o r conseguinte, o sistema das crenças não é um sistema teórico e sim vital (evidentemente, (evidentemente, os siste sistemas mas teóricos teóricos — no plural, porque po rque são históricamente históricamen te muito diferentes — são tam também bém vitais, mas só de certas formas de vida definidas pelo pressuposto básico da atitude teórica) teórica).. Referese, pois, pois, somente àquelas àqu elas zonas do real que intervém na vida, e justamente na' perspectiva e proporção em que intervém. intervém. A começar, com eçar, naturalm natu ralmente, ente, pelo espaço e tempo: numa num a sociedade sociedade primitiva e sedentária, sedentária, p or exemplo exemplo entre os habitantes de um vale, o “mundo” é, a rigor, ésse vale, e todo o restante um vago “transm “transmund undo” o” ; pa ra o homem ocidental de hoje, que percorre de fato todo o planeta, que está afetado por tudo quanto nele acontece e tem presente o com plex pl exoo q ue v ai d esd es d e o sol so l e a l ú a até at é rem re m o tas ta s galá ga láxi xias as,, o m u n d o espacial tem característicos característicos radicalmente radicalmen te diversos. diversos. O utro tanto acontece acontece com o tempo: tempo: a mínima margem da d a memoria memo ria no homem primitivo primitivo — e também nas formas mais simples simples da vida atual — se desvanece rápidamente na penumbra do “imemorial”, enquanto que o homem com consciência histórica, e ainda com mentalidade historicista, movese em um horizonte temporal dilatadíssimo, cronológico e, o que é mais, históricamente qualificado. ficado. Compreendese Com preendese que as crenças crenças suficie suficientes ntes em em um e outro caso caso não são as as mesmas mesm as — e notese notese que as crenças crenças estão estão re gidas por um princípio de “economia vital” e, portanto, de (3) (3 )
Cf. minha minha Idea Id ea de la Metafísic Meta física, a, cap. VII e ss. (Obras, II).
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suficiência e necessidade, diferentemente do caráter essencialmente “luxuoso” e vitalmente vitalmente “excessi “excessivo” vo” d a teoria teo ria — , Enquanto que as crenças são sumamente precisas, sólidas e eficazes em relação a certos aspectos ou zonas da realidade, são vagas e tênues em relação a muitos outros, faltando em absoluto a respeito de outros mais. mais. A s crenças crenças não são um repertório de respostas a um questionário formal e em princípio invariável; invariável; são os os modos mo dos interpretativos interpretativo s das realidades realidades funcionalmente nalm ente presentes presentes em cada vida. Se se investi investiga ga uma estrutu ra social, portanto, o método não pode constituir em procurar quais são as crenças dessa sociedade acerca de uma série de po p o n to toss q u e n o s p a rec re c e m imp im p o rtan rt ante tess ; é n e cess ce ssár ário io,, a n tes te s q u e isso, determinar acêrca d e que são as crenças dessa sociedade; isto desenha o perfil de sua forma de vida e nos dá o esquema do sistema dessas crenças, ainda mais importante do que seu conteúdo concreto. Êste sistema, é claro, é pendente das relações efetivas de fundam fund amentaç entação ão vital entre seus ingredientes; ingredientes; isto signific significaa que não só não é teórico no sentido de responder a uma imagem logicamente coerente do mundo, como também não está determinado por meras conexões estáticas e que sua articulação se sustém por um projeto ou pretensão constitutiva da forma de vida correspondente; correspo ndente; o repertório reper tório das crenças só só é sistemático sistemático em função do dram dra m a vital ao qual serve; serve; porém, visto visto a partir par tir desta perspectiva, não pode deixar de ser sistemático, porque se não nã o o fôra fô ra a vida não seria possí possível vel.. Evidentemente, quando quand o se diz que “é sistemático” significa dizer que “tem que o ser”; a quebra qu ebra ou falha do sistema sistema — que só é possível possível,, é claro, po rque “há sistema” sistema” — determina uma alteração alteração ou interrupção da fluência normal da vida, ou, em outras palavras, uma crise das crenças. Fica assim insinuado que a hierarquia das crenças depende jus ju s tam ta m e n te d essa es sa p rete re tenn s ão e d a fig fi g u r a d e v id ida. a. O sist si stem ema, a, p o r ser orgânico, é hierárquico; hierárqu ico; e são as funções que q ue decidem essa hierarquia. A s crenças acêrca do espaço e a estrutura estrutu ra local do mundo, que são decisivas em um povo nômade, são irrelevantes em uma sociedade sedentária e isolada, no caso extremo de um pov p ovoo ilh il h éu e n ã o nav na v egan eg ante te.. Imag Im agin inè èse se a d iv iver ersi sidd ade ad e d a imim po p o rtâ rt â n c ia d a s cre cr e n ç a s a c êrc êr c a d o m iste is teri rioo s o m u n d o anim an im a l entr en tree os “tuaregs” do Sahara e entre os habitantes da selva brasileira;
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no primeiro caso se trata de um mundo patente, definido pela visibilidade visibilidade e m inimamente inimam ente povoado; pov oado; no segundo, do latente, oculto e impenetrável enquanto tal, e além disso constituido pela pulu pu lula laçç ã o d e m il espé es péci cies es anim an imai aiss desc de scoo n h ecid ec idas as;; d a í o eno en o rme rm e interêsse entre os caboclos bra b rass ilei il eiro ross , d a s cren cr ença çass sôbr sô bree os “bichos” “bichos ” (4). Procure Pro cureii êstes exemplos extremo extremoss pa ra ser fiel à elementaridade elementaridade metódica m etódica que me parece imprescindíve imprescindível; l; mas, encurtandose as distâncias, o mesmo fenômeno aparece quando se compara duas sociedades nacionais européias ou duas etapas históric históricas as de um a socie sociedade dade;; por po r exemp exemplo lo,, a Espan Es panha ha românromân tica e a de nosso tempo. 29.
Duas formas de atenuação das crenças: a volatilização e a adesão intelectual.
A imagem de uma ideologia que mina e destrói as crenças de um a sociedade sociedade é bastan ba stante te pueril. O rtega insistiu insistiu suficie suficiententemente sôbre isso, e mostrou como as idéias são, pelo contrário, recursos de que o homem lança mão para sustentar suas crenças em crise ou para pa ra suprir sup rir sua falta (5). Com Co m o idéias e crenças não se dão no mesmo plano, é difícil o ataque ideológico às crenças, a menos que se faça uma operação prévia: a “ideificação” das crenças, sua “tradução” em têrmos de idéias, sua transformação em idéias cujos conteúdos coincidem com os das crenças. Mas quando isto se fêz, antes que se realize o ataque, as crenças deixaram de funcionar estritamente como tais, isto é, estão em crise prèviamente a serem hostilizadas. Logo veremos o quanto isto é delicado. O modo mais freqüente de diminuição, debilitação ou atenuação das crenças, de seu desaparecimento em último caso, é o que poderíamos cham ar sua “volatili “volatilização”. zação”. U m a crença que antes possuia um papel decisivo na vida, que a determinava em seus estratos mais profundos, começa a empalidecer, a ser cada vez menos intensa, a condicionar a conduta de um modo decrescente, até se se desvanecer po r fim, dissiparse, evaporarse. N ote (4) (4 ) Veja-se, Veja-se, por exemplo, o famoso livro livro de GILBERTO FREYRE, FREY RE, Casa-grande & Senzala. ( 5 ) Sobretudo Sobretudo veja-se o prólogo à Historia Histo ria de Ia Filosofia, Filosof ia, de BRÉHIER (O. C., V.).
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se que isto não significa que seu conteúdo não seja crido. A evaporação da crença deixa de pé a questão de ser ou não recusado o seu conteúdo: não se trata, de modo algum, de afirmações ou de negações. A crença nos deuses pagãos se vola tizou em um longo processo, ao têrmo do qual ninguém mais acreditava na existência dêsses deuses. A crença no progresso, que a Europa sustentou durante mais de um século, se volati lizou como tal crença, nela não mais fundamos nossa vida, mas isso não significa que os europeus atuais neguem o progresso; a maioria déles o afirmam, com mais ou menos restrições, opinam que o progresso existe e determina em boa parte o curso da historia. O mesmo se dá se se com para a crença medieval no sepulcro de Santiago de Compostela com a opinião atual, compartilhada por muitos, de que ali efetivamente está enterrado o Apóstolo, sem que dessa opinião decorram as conseqüências que aquela crença tinha para os castelhanos do século XII. Se a “volatilização” de uma crença não significa, pois, forçosamente sua negação, como se produz e qual o seu sentido concreto? Tratase de um a mudança de estrutura, e esta traz consigo um deslocamento de seus ingredientes, entre os quais figuram as crenças. Se um povo deixa de viver na selva para viver em cidades, devido talvez a um rápido processo de industrialização, as crenças sôbre o mundo animal se tornam inoperantes, ficam para trás, sem que se produza uma “mudança de opinião” sôbre seus conteúdos. As crenças quase sempre se dissipam por uma modificação da orientação, por uma variação da perspectiva, que retira a atenção daquilo que anteriormente a absorvia. Na maior parte dos homens modernos, a crença no “mau olhado” foi substituída pela crença nos micróbios; notese que o decisivo não está na opinião de que o mau olhado é im possível — ninguém se preocupou em o dem onstrar, nem a questão se propõe nesse sentido — ; a volatilização da crença na possessão diabólica não exclui o fato de que muitos milhões de homens atuais pensem que é possível e mesmo que se dê em certas ocasiões; esta idéia não evjta que efetivamente não contem com a possessão, e quando deparem com alguém que apresenta os sintomas que tradicionalmente se lhe atribuiam, não se lhes ocorra exorcizálo e sim leválo ao psiquiatra. Muito freqüentemente uma nova crença eclipsa literalmente
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outras, e vitalmente as anula, ainda que lógicamente não as afete de maneira alguma. Do mesmo modo o sol faz desparecer as estréias do céu visível, embora estas continuem ardendo no es paço e, portanto, brilhando com a mesma intensidade que durante a noite; e a lua, que não é suprimida, empalidece e se atenua, passa a um segundo plano, não se conta com ela para ver, como no meio da noite, embora esteja aí e possa ser vista. Quando o homem começa a viver de urna nova crença básica que irrompe em seu horizonte, ainda que esta não atue de maneira alguma sôbre as anteriores, altera seu significado e sua função, talvez as potencie, as atenue ou as aniquile. Deverseia estudar a dinâmica história das crenças dêste ponto de vista, como história das formas de vida, entendidas como unidades complexas, orgánicamente articuladas e movidas por uma certa pretensão. Assinalava antes que, como já mostrou Ortega, não há “história das idéias”; devese acrescentar que também não há “história das crenças”, como em geral de nenhum elemento parcial e abstrato da vida humana. É esta, em sua realidade concreta e íntegra, que possui história. Às vêzes as crenças se atenuam e se debilitam, mas não por êste processo de volatilização e desatenção, e sim precisamente pelo caminho inverso: pela adesão intelectual. O fenômeno é complexo e delicado. Ê arriscado falar muito das crenças, porque para isso é preciso enunciálas, formulálas, expressar em forma de tese ou idéia seu conteúdo; e isto já é um primeiro passo para que deixem de funcionar como crenças sensu stricto. A rigor, não se afirma as crenças; se está nelas; quando são afirmadas, quando se adere intelectualmente a sua substância, começam a atuar em outra dimensão da vida, em outro estrato indubitàvelmente mais superficial. Poderíamos dizer, embora pareça paradoxal, que a afirmação explícita das crenças é o primeiro passo para sua debilitação. Por isto já dissera que antes de que as crenças sejam atacadas, sua simples expressão em têrmos de idéias as põe em crise. Isto é, esta “ideificação” das crenças já é sua atenuação, enquanto que é relativamente secundário que sejam atacadas ou defendidas. As idéias são muito mais epidérmicas do que as crenças; além disso, são flutuantes e instáveis, variam, se retificam e se matizam. Ainda mais: as idéias, como realidades intelectuais, se movem no âmbito da questão e do problematismo, enquanto
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que as crenças funcionam como o inquestionável. Poderíamos dizer que tôda idéia é problemática, simplesmente por ser idéia; logo que se enuncia uma idéia, surge com ela sua questionabili dade; a “pretensão de verdade”, que acompanha o juizo lógico como tal, nela introduz a possibilidade da falsidade e, portanto, a exigência de justificação. Enquanto a crença repousa em si mesma, segura e quiescente, a idéia tem que se justificar a cada instante, tem que estar provando sua verdade. Formular ideolò gicamenae uma crença significa, intrínseca e inexoravelmente, pô-la em tela de juizo. Além disso, enquanto que a crença tem certa vagueza — isto é, do ponto de vista das idéias, porque como crença pode ser o próprio rigor — , sua formulação requer precisões de ordem intelectual, introduz tôda uma série de dificuldades, de possíveis contradições, de arbitrariedades, cuja justificação se converte em um grave — e talvez desnecessário — problema. Vou tomar um exemplo que me parece revelador. Contase no Gênese que Deus tomou uma costela de Adão, enquanto êste dormia, e com ela formou Eva; crer nisso, dado o pressuposto religioso em que se move o Gênese, não apresenta a menor dificuldade, e tem uma série de sentidos profundos e admiráveis: a mulher, feita do próprio homem, carne de sua carne e osso de seus ossos; a mulher, feita também de um a matéria mais refinada e mais nobre do que a terra originária, etc. Com a condição de não lhe dar demasiado alcance de “tese”, de não tentar apresentar essa crença como idéia ou pseudoidéia, de não se perguntar, com minúcia e com um suposto rigor intelectual, “como” aconteceu aquilo e o que foi que pròpriamente sucedeu: se Adão tinha um a costela a mais ou se ficou com uma a menos; se Deus lhe recriou um a costela suplementar; se o espaço ôco se encheu de carne; como se formou o corpo íntegro da mulher a partir da costela, etc., etc. Tôdas as coisas que indagaram m inuciosamente — com uma frivolidade incrível — muitos teólogos, inclusive os g/andes, pondo em perigo a crença neste ponto concreto e, incidentalmente, a totalidade da fé cristã. Poderseia centuplicar os exemplos, muitos dêles em matéria grave. Daí os perigos evidentes da apologética. Quando se formulam como teses ou idéias os conteúdos da crença, é necessário justificálos; para isso se lança mão de “razões”; e como
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freqüentemente estas são inconsistentes, a crença, perfeitamente justificável como tal, dentro da economia vital que lhe é pró pria, nada necessitada de demonstração ou prova, tomase invalidada e destruida por sua “transplantação” a um terreno inadequado e seu cultivo no mesmo por procedimentos intelectuais insuficientes. A conseqüência da “ideificação” das crenças é, em primeiro lugar, que se transladam para uma zona distinta e mais superficial da vida; secundàriamente, nelas se introduz a pro blematicidade; em terceiro lugar, ficam inestabilizadas, sujeitas sempre a prova ou comprovação; por último, vitalmente atenuadas, qualquer que seja sua justificação intelectual, porque esta opera sempre a menor profundidade que as crenças básicas. Pensese na intensidade vital de nossa adesão a uma verdade perfeitamente demonstrada, por exemplo, que num triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, e de nossa crença — indem onstrada e indemonstrá vel — de sermos filhos de nosso pai e de nossa mãe; enquanto nesta crença se funda normalmente tôda uma parte decisiva de nossa vida, a certeza intelectual do teorema de Pitágoras nos é — salvo algum caso excepcional — perfeitamente inoperante. Há ainda outra conseqüência, indireta mas de extrema im portância. As crenças “¡deificadas” se debilitam; às vêzes, se desvaneçem e se perdem; em outros casos, pelo contrário, quando apesar de sua atenuação ideológica, se sustentam em alguma vigorosa crença autêntica, ou então em um complexo de inte rêsses vitais independentes, suprem a energia que perderam como crenças com uma exasperação como idéias, isto é, com um a “intensificação” do tipo que corresponde às idéias: o partidismo, a beligerância, o fanatismo. A crença, convertida em idéia, mas deficiente como tal, degenera em “ideologia”, se transforma em um “ismo”. A fôrça que já não tem de estar sustentando e impulsionando a tergo a vida, é procurada na agressividade com que é sustentada. Daí a típica beligerância e a tendência polêmica das crenças delibiltadas, inseguras, que se afirmam suspicazmente frente a um horizonte de hostilidade abstrata. Quando se considera o conjunto das crenças de uma sociedade, devese levar em conta evidentemente sua hierarquia; porém não só aquela que como crenças lhes pertence mas tam
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bém a que possuem na fase de que se trata; isto é, o estado do “crédito” em que consistem. Junto às crenças em pleno vigor há as atenuadas; é preciso determinar “quantitativamente” — ou em relação ao grau vital de intensidade — o estado das crenças; mas isso ainda não é suficiente: é necessário discriminar por que caminho se chegou a ésse quantum de intensidade e solidez e, por conseguinte, para onde se move essa crença. Não tem o mesmo significado que esteja empalidecendo gradualmente por uma mudança de perspectiva que origine um desinterêsse crescente pelo “tema” da crença, que tenha sido “ideificada” e logo depois minada por uma crença de sinal oposto, ou finalmente que tenha sido desvirtuada pelo zélo de seus defensores, e que apareça como uma ideologia prepotente, agressiva e explícita, internamente esvaziada de conteúdo e substância de crença como tal. Pode acontecer — e éste é um caso especialmente interessante — que uma crença, esgotada como crença, tenha uma vida ulterior como ideologia dentro de uma sociedade determinada; como também é possível que uma idéia nascida em urna mente individual seja depois de algum tempo uma crença no sentido rigoroso do têrmo. E isto nos remete ao problema da relação de umas com as outras.
30.
Interação de idéias e crenças
Até agora insisti na diferença entre idéias e crenças, em sua relativa independência, inclusive na dificuldade de que se estabeleça relação de ataque entre umas e outras, enquanto permaneçam integralmente em seus planos respetivos. A esta altura iniciaremos uma nova consideração. As conexões entre idéias e crenças são múltiplas. Primeiro que tudo, umas e outras se dão em nossa vida, isto é, nela convivem, dentro de seu âmbito têm suas raízes e seu desenvolvimento; isto traz consigo uma relação sumamente elementar, porém por isso mesmo decisiva, que é a de sua coexistência. Em uma vida humana funcionam umas e outras: em que proporção? H á formas de vida nas quais as crenças constituem o fundo a partir do qual se vive; sôbre êle, um repertório mínimo de idéias secundárias orientam o homem, esporádicamente, sôbre questões muito restritas e de pouco alcance. Em outras sociedades — ou em outros indivíduos — , a vida está determinada por um complexo de idéias de alto bordo, sistemáticamente concatenadas, por uma multidão de
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idéias menores que respondem a quase tôdas as perguntas imagináveis e compõem uma rêde espêssa que envolve o viver; tudo isso, é claro, baseado em certas crenças fundamentais, quase mudas, talvez ignoradas ou pouco menos, que permanecem no fundo, como um solo nutriz. Entre êstes dois extremos se dão inúmeros graus — e estruturas — intermediários. E a investigação de uma estrutura social tem que tomar claro qual o estado preciso dessa coexistência e tratar de avaliar essa proporção. Pensese, po r exemplo, na significação dêste problema para uma compreensão da Idade Média; quando se considera a época medieval, se oscila entre a atenção às idéias — a Escolástica, a organização eclesiástica, o pensamento político, etc. — e o apêlo às crenças subjacentes, que se expressam e se denunciam de mil modos distintos. Qual é o pêso real da cultura em latim, frente a das línguas vulgares? Seria quimérico tentar uma “avaliação” em sentido estrito, comparar o “valor” de Abelardo com ô da Chanson de Roland, o de Pedro Lom bardo com o Poema del Cid, das Summulae logicales de Pedro Hispano com o Libro de buen humor, Duns Scott com o Ro mancero, Dante. . . consigo mesmo, isto é, discriminar o pêso das idéias e das crenças no mundo da Divina Comédia. Naturalmente seria êste último, o caminho para entender a época como tal e suas diversas fases: um a análise da função res pectiva de uns e outros elementos na vida do homem medieval, independentemente daquilo que intresse a nós se somos historiadores da filosofia ou da teologia ou da arte, ou se pretendemos averiguar a constituição, a partir da Idade Média, dos povos europeus de nosso tempo. E não seriam poucas as surprêsas que êste traria. Costuma se pensar que o Renascimento significa um triunfo das idéias; não é de meu feitio antecipar os resultados de uma investigação que não fiz — e que está por se fazer — ; mas se se considera, como é necessário, a fase final da Idade Média “lindante” com o Renascimento, e não — o que é absurdo, porém se faz — o século XI imediatamente ao lado do final do século XV, não será inverossímil que a época renascentista apareça como um período de crise de idéias e vigência plena de duas ou três crenças fundamentais. De um modo análogo, terseá que ver como o século XIX se inicia com um reverdecer das crenças e, além disso, com um processo inverso àquêle que antes denomi
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nei “ideificação das crenças”: um funcionamento “credencial” — sit venia verbo — de muitas idéias do século XVIII. A proporção em que as idéias e as crenças funcionam dentro da economia de uma forma de vida, determina uma série de característicos da mesma. P or exemplo, o ritmo de sua variação histórica; uma vida em que as idéias têm um papel mínimo é forçosamente lenta em sua evolução, quaisquer que sejam as crenças em que esteja assentada; pelo contrário, o predominio das idéias assegura um a mudança rápida. A causa da prodigiosa aceleração do tempo da variação histórica na Idade Moderna, sobretudo nos últimos cem anos, tem uma de suas causas principais no deslocamento do equilíbrio em direção às idéias. Mas ao se falar de mudança histórica não se disse o suficiente; é preciso saber o que muda, isto é, que zonas da vida são afetadas pela mudança; quando as crenças básicas são muito sólidas e autênticas, quando as raízes da pessoa nelas mergulham vivaz e enérgicamente, é possível uma estrutura social em que a mutação seja muito rápida mas que não impeça uma grande estabilidade social; pareceme ser éste o caso dos Estados Unidos. É possível, inversamente, que uma sociedade em que a variação é de pequeno volume ou bastante lenta, seja a própria instabilidade, por ser muito tênue ou vacilante o subsolo de crenças: não se esqueça de que os movimentos rápidos e as grandes edificações requerem um solo firme, enquanto que sôbre areia movediça ou lodo só se pode construir choças, e em nenhum outro lugar os movimentos são mais difíceis, lentos e penosos. O fato conhecido da relativa estabilidade da vida campestre, frente à mobilidade da urbana, corresponde à diversa pro porção em que idéias e crenças intervém em uma e outra. De vería ser estudado, dêste ponto de vista, a variação maior ou menor das diversas classes sociais, a diíérença entre o homem da plebe e o proletário, a surpreendente inalterabilidade das aristocracias de linhagem, frente aos demais grupos superiores de uma sociedade (intelectuais, profissionais de primera ordem, homens de emprésa). Éste fator é também característico dos diversos movimentos políticos, que têm seus acionadores em diferentes pontos, que recebem sua fôrça de certas crenças subterrâneas e às vêzes nada aparentes. Só isto pode explicar inúmeros fenômenos da vida política que, de outro modo, são incompreensíveis. Mas não se pense na alternativa tradiciona
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lismorevolucionarismo, porque um e outro podem ser, indiferentemente, questão de idéias ou matéria de crenças básicas. O estudo da vida política espanhola do século XIX — e, é claro, do século X X — é extremamente revelador. O processo pelo qual se passa de uma idéia, originada como tal em uma mente individual, a uma crença, se reduz ao que já estudamos ao tratar da gênese das vigências. Não se pense, porém, que as crenças necessàriamente se originam de idéias individuais; isto é relativamente infreqüente e quase nunca é o caso das crenças básicas; as crenças assim engendradas conservam sempre uma proximidade maior em relação às idéias; as crenças formuladas, explícitas, são por êsse motivo mais fáceis de serem confundidas com idéias, porém diversas das mesmas por seu modo de funcionar na vida. Referíame antes à idéia de progresso, nascida no século XVIII, na mente de Turgot e de Condorcet; no século X IX , converteuse numa crença coletiva na qual estavam os europeus e os americanos, que a encontraram vigente em seu mundo, como idéia recebida, como uma interpretação que expressava a própria realidade. Estas duas notas caracterizam as crenças procedentes de idéias: apresentarse como a própria realidade, porém em forma expressa. Nas crenças originárias falta êste último característico: assim na solidez do solo, na inesgotabilidade do ar, na agressividade do que nos cerca e nos é desconhecido, na pertinência a uma família ou a uma tribu, na existência de poderes superiores. Estas crenças não começam por ser idéias mas nascem de uma peculiar vivência da realidade, em relação à qual é sempre secundária sua formulação e expressão mental. Por isso, nas crenças primordiais, sempre se tem a impressão de que nunca se esgotaram em suas fórmulas ou enunciados; quando uma crença autêntica é expressada, quando se diz em que se crê, sempre se diz menos daquilo que é real. Isto expüca o fato — surpreendente, mas do qual quase ninguém se surpreende — de que se possa cantar o Credo, enquanto seria perfeitam ente absurdo cantar o teorema de Pitágoras, as leis de Maxwell ou as categorias kantianas — ou as vinte e quatro teses tomistas — ; quando se canta o Credo, se executa um a operação bem diversa de sua simples recitação ou leitura, e que lhe acrescenta algo importante, não no campo das significações, é claro, mas sim como crença. Tratase do sentido geral da liturgia e
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do culto, como forma de vida das crenças religiosas — e correlativamente de vivificação das mesmas — ; graças a êstes recursos se supre mais ou menos a deformação e mutilação que a fórmula impõe; o “plus” essencial que o crer tem sôbre o dizer aquilo que se crê, o “diz” ou pelo menos o sugere a música e, em conjunto, o que poderíamos chamar a “têmpera litúrgica”. (Qual seja esta, é ou tra questão, e nada simples; seja suficiente dizer que não é qualquer uma, e que, com freqüência, as formas degeneradas destroem o conteúdo da crença, em lugar de po tenciálo; muitas formas habituais de piedade constituem a suma impiedade: o canto fanhoso ou arrastado, a pieguice, a cantilena intrínsecamente escarnecedora, o abuso do superlativo, análogamente os altares de confeitaria, as imagens tolas, etc. E o que expressa acertadamente o ditado popular: “O Padrenosso posto em solfejo é solfejo”.) A passagem de uma crença a uma idéia já está considerada. O exemplo do progresso é excelente, porque serve para os dois processos: da idéia de progresso se passou à crença nele, e desta, novamente, a sua idéia em sua fase atual. Na vida religiosa são freqüentes os casos de crenças que deixam de funcionar sensu stricto como tais e pervivem em forma de idéias ou teses às quais se adere intelectualmente, isto é, aderem os crentes; mas êste nome é algo equívoco, porque sugere que a tudo quando adere o crente, adere como crença, e não é isso que se dá: porque é crente, isto é, porque está em uma crença, afirma como idéias recebidas muitas idéias, teses ou dogmas com os quais não tem a relação de crença no sentido rigoroso desta palavra. A distinção teológica entre fé explícita e fé im plícita é acertada, mas não suficiente par£ explicar isto. Aquêle que crê “tudo o que a Igreja ensina”, o crê com fé implícita, porque tem fé explícita na Igreja, e natu ralmente não sabe o que é isso que a Igreja ensina. Imaginemos agora que se lhe vão propondo êsse,s conteúdos; dirseá que agora, à medida que êles são enunciados e apresentados, vai crendo nos mesmos com fé explícita; mas não por isso deixa de continuar a faltar a crença no sentido estrito, no sentido em que dizíamos antes ter crença na Igreja. Pensese, por exemplo, em um dogma recém definido, como o da Assunção; antes da definição dogmática, muitos católicos — mas não todos — estavam na crença de que a Virgem havia sido elevada aos céus, sem demasiadas
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precisões quanto ao “como” e em que forma; a partir da definição, todos os católicos, os que já estavam nessa crença e os que não estavam nela, crêem no dogma definido, isto é, concordam com a definição, a afirmam, aderem a ela: não teria sentido porém dizer que agora todos estão nesta crença; mais ainda, nos que nela já estavam, se distingue essa vaga crença tradicional da precisa adesão à definição dogmática; e ainda que um a e outra se refiram ao mesmo, não são idênticas como realidades religiosas na vida individual do crente. Assim, não se eqüivalem a crença no Purgatório e nas almas, tal como se dá por exemplo no povo, com a “crença” nos direitos da Igreja em matéria de ensinamento. Não é a mesma coisa a crença na Eucaristia — que Cristo está verdadeiramente na hóstia consagrada — , e a adesão intelectual porque se está nessa crença à doutrina da transubstanciação. Tudo isto, seja dito de passagem porque não é nosso tema, tem a máxima importância para o ensino da religião e para a vida religiosa em sua integridade, tão freqüentemente desvirtuada e deslocada do plano da crença por uma liturgia descuidada, pelo excessivo manuseio, pela proliferação de minúcias piedosas, pela inserção de outras coisas (política, teorias intelectuais, etc.), pela adição do que poderíamos chamar um a “crosta ideológica” de supostas precisões doutrinais obtidas mediante um pensamento inerte que opera automáticamente e no vazio, apoiandose num mínimo de “dados” religiosos autênticos, pelo afã de “demonstrar” o que não pode ou não necessita ser demonstrado, esquecendo ou menospresando a função essencial da crença enquanto tal. Porém, à parte das transições possíveis de idéias a crenças ou viceversa, existe outra questão decisiva para a compreensão de uma sociedade: a interação efetiva, em cada momento, entre as idéias e as crenças atuais. Crenças e idéias são, ambas, órgãos de certeza; as primeiras, em sua função própria, d a certeza em “que se está”; as últimas, da certeza “a que se chega”(6). A certeza total em que repousa nossa vida é, pois, uma resultante da convivência e interação do sistema das crenças com o repertório das idéias — porque, paradoxalmente, as crenças básicas devem constituir um sistema, embora vital e não “lógico”, (6 ) Veja-se minha Introdução à Filosofia, cap. II, “A função vital da verdade”.
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enquanto que as idéias dominantes em uma sociedade podem muito bem não ter caráter sistemático — . Esta interação é necessária, porque as crenças nunca são suficiente, visto que as situações se sucedem umas a outras e trazem consigo inovações em relação às quais devese saber a que se ater. A função primária e normal das idéias — portanto, em todo gênero de sociedades e não só nas excepcionalmente intelectualizadas como as nosas — é suprir os vazios, falhas ou fissuras do sistema de crenças e fazer frente à novidade, diante da qual as crenças se sentem relativamente indefesas. Por isso, como antes afirmei, a função das idéias é esporádica e muito reduzida nas sociedades que denominamos primitivas — ou nos estratos “primitivos” das sociedades complexas e intelectualizadas — , e portanto na grande maioria das sociedades, se se toma o volume total da humanidade em tôda sua história, ainda que a situação seja diversa na pequena fração que, por razões claras, conhecemos melhor e costuma nos interessar mais. O funcionamento autônomo das idéias, com vida própria e independência, é um fenômeno histórico absolutamente insólito. Na sociedade mais firmemente regida por um sólido e com pacto sistema de crenças, a intervenção das idéias é, porém, inexcusável. Porque as crenças, que não se form aram lógicamente, não têm entre si coerência lógica mas sim vital; e como não estão tôdas na mesma fase nem no mesmo grau de intensidade, sua hierarquia se toma problemática, os deslocamentos de umas e outras provocam vazios e fissuras, e diante dêles o homem se vê na necessidade de se pô r a' pensar para chegar a saber novamente a que se ater; isto é, mobiliza suas idéias, desde logo na medida em que as vicissitudes das crenças o tornaram necessário. Mas não é só. As experiências históricas, os fracassos acumulados, quebrantam as crenças; as idéias se encontram com o fato desta falha, e operam sôbre a nova situação; é indiferente que a crítica das idéias confirme a falha e apresse o desaparecimento da crença, apoie e sustenha esta ou, por último, a ultrapasse conduzindo a uma nova formulação da questão; em todo caso, a intervenção das idéias é novamente exigida pela situação assim originada. Referime até aqui a uma situação esquemática e irreal: uma sociedade isolada. N a verdade, as diversas sociedades estão
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quase sempre e,m presença umas de outras, e irrompem constantemente na área de umas, crenças que procedem de outras, nas quais, portanto, não se está mas se sabe que outros estão. Esta situação que é decisiva, é talvez a que reclama com maior vigor o apêlo às idéias. Se se quer entender um a estrutura social, sobretudo quando se trata de sociedades superiores, devese atender enérgicamente a êste aspecto da interação idéias — crenças. E a outro, que talvez é o radical: a situação total das idéias, isto é, sua relação com as crenças vista a partir destas últimas. Em outras palavras, a crença nas idéias, a fé variável na razão que cada sociedade tem e condiciona, em segundo lugar, suas diversas formas, isto é, a crença em cada uma das maneiras em que as idéias se realizam: oratória, narração, poesia, dialética, ciência; e, por sua vez, as diferentes ciências. Quando se pergunta pela função efetiva das idéias na história, a resposta não pode ser unívoca. São as idéias que movem o mundo ou a quinta roda do carro, talvez a “mosca do carro”, como uma vez perguntou Ortega da filosofia? Isto é o que se deve determ inar em primeiro lugar, mas, entendase, para cada sociedade e cada form a ou possibilidade das idéias. Esta é a dimensão decisiva em que se move a interação entre idéias e crenças.
31.
O sistema da estimativa
Como a vida humana consiste em preferir umas possibilidades a outras e realizarse mediante a escolha de uma linha temporal que traça sua trajetória em um campo definido por uma situação, o mundo não é só um conjunto de elementos dotados de certas qualidades mas aparece como uma estrutura de caráter estimativo. A coisa é decisiva, porque afeta a própria apresentação das realidades. Quase tanto quanto o aparelho perceptivo humano, essa estrutura condiciona o horizonte do mundo que se oferece ao homem. Notese que da infinidade de elementos que existem em nosso meio, só uma pequena parte nos são realmente presentes, isto é, são notados e aparecem como tais. A disposição de nossos órgãos sensoriais e os hábitos de seu uso são, é claro, os fatores que em primeiro lugar deí terminam essa seleção; mas, a seguir, uma série de valorizações que nos fazem atender ou postergar os ingredientes perceptíveis de nosso mundo. O contôm o aparece constituido por um pano
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de fundo indiferente, sôbre o qual se recortam os objetos valorizados positiva ou negativamente, dentro de uma hierarquia variável mas existente em cada caso. A vida humana está condicionada, pois, por um sistema da estimativa, que varia históricamente e que é um dos fatóres constitutivos de uma estrutura social. No fundamental, tratase de crenças. Desde a prim eira infancia, as coisas são apresentadas à criança marcadas por um valor; o alimento e a chupeta, pouco depois o chocalho e os brinquedos, lhe são mostrados como algo positivamente valioso, se lhe induz a ter um trato favorável com êles, enquanto que se lhe carregam de emoção negativa os objetos sujos ou perigosos, provocando a aversão em relação a êles; e, em terceiro lugar, em relação a inúmeras realidades se a deixa em atitude neutra; é verdade que costuma se tratar de realidades distantes, ou tão próximas que não chegam a funcionar como objetos: as roupas, o berço, etc. À medida que a criança vai crescendo e se vai ampliando seu horizonte perceptivo, se vai enriquecendo seu mundo com mais elementos, êstes ingressam nele com sua carga emocional correspondente, se lhe injeta um esquema de comportamento determinado po r um a estimativa. Quando entra propriamente no mundo — isto é, no mundo comum ou social — , encontra um sistema de valorizações vigentes, cujo torso geral coincide com as de seu ambiente familiar, embora não integralmente. H á valorizações privadas, recebidas pela criança, não originais, mas também não vigentes na sociedade, que só pertencem a seu ambiente pessoal; há também as valorizações com vigência limitada — a um a classe social, a um a tendência política, a uma região, etc. — , interpostas entre as privadas e as da sociedade geral. Por último, começa a atuar a capacidade estimativa do próprio indivíduo, que modifica êsse sistema rece bido com o qual se defronta, primeiro passivamente, logo depois com uma independência cuja amplitude é muito variável, e precisamente um dos fatores que urge determinar para entender uma estrutura social. A estimativa se estende desde a matéria até as relidades mais abstratas. Cada substância física, desde o ouro ou as pedras preciosas até os excrementos, está afetada por coeficiente estimativo, que a apresenta como “nobre” ou “vil”. E especialmente, é claro, as realidades viventes, vegetais ou animais: a orquídea e o cardo, o trigo e a cizânia, o cavalo e o verme, o
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cordeiro e a serpente, a pomba e a aranha, o leão e a hiena, a águia e o abutre, o rouxinol e o morcêgo, o delfim, o tu barão, a sardinha ou o polvo: todos com seu halo emocional, com sua valorização adscrita, que provoca em nós um “primeiro movimento” e condiciona a vigência que dêles temos, e portanto sua realidade. E no humano, em grau extremo. Aparecem estimativamente qualificadas as raças, os tipos físicos, as profissões, as regiões de um país, as religiões. E tudo isso varia historicamente. Desde o desdém pelo trabalho nos fidalgos do ano 1.600 até a beatice do trabalho das ideologias proletaristas há um abismo. A atitude ante os negros, o semitismo ou antisemitismo, a valorização ou o desprêzo pelo militar, a veneração ou o escámeo do sacerdócio, a “cotização” social do ser castelhano, galego, andaluz ou catalão dentro da E spanha — e análogamente nos demais países — , a estimativa diversa dos dois sexos, a muito variável da criança; tôd a a realidade humana está diretamente constituida pela valorização. Imaginese a distância que separa a estimativa de um gladiador romano da de uma primeira figura do futebol em nosso tempo. Avaliese o que medeia entre a atitude de um nobre do século X, que se envergonharia de saber ler, e a estimativa vigente no século XIX em relação ao homme de lettres ou o Herr Professor — e comparese estas estimativas com as espanholas do mesmo tempo sôbre o mesmo tipo de homens — . Comparese a valorização da condição sacerdotal em 1.400, em 1.580, em 1.780, em 1.900, em 1.935, em 1.954. Recordese o que significava na E spanha — como facilidade, estima prévia e simpatia — ser andaluz ao redo r de 1.890, e a desvantagem de ser galego ou talvez estremenho; e esta situação alterouse pro fundamente em meio século. O estudo de uma estrutura social deve incluir uma determinação dêsse sistema estimativo; só em função do mesmo tor nase compreensível o que se passa, isto é, a marcha efetiva da história, a estratificação social, a industrialização ou o abandono da produção, a temperatura do patriotismo, o tom da religiosidade — influído decisivamente pela estima ou desestima do clero — , a seleção das profissões e, por conseguinte, a com posição da sociedade, as relações entre os sexos, a tolerância para os vícios e, portanto, as form as morais dessa sociedade,
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etc. Podese ir da máxima indulgência à mais áspera intransigência para com os pecados da carne, da aceitação da imoralidade econômica à rigidez em questões de dinheiro; podese tolerar a covardia pessoal ou a tomar como algo que desqualifica socialmente; a sensibilidade moral para com a traição admite graus muito diversos; a condição de homosexual pode ser atroz ou muito cómoda, inclusive privilegiada. Se não se está esclarecido a respeito de todos ésses pontos dentro de uma sociedade, nada se entende. Mas empreguei, el não casualmente, a palavra “sistema”; a estimativa, com efeito, o constitui necessàriamente, visto ser um mecanismo regulador da vida. Por isso não se pode entender o que é dominante< em urna época e em uma sociedade determinada mediante um simples catálogo de valorizações particulares; tôdas elas compõem uma figura, que é necessário descobrir e desenhar, que expressa aquilo que, em um de seus estratos mais profundos, significa para aquêles homens o verbo “viver”. (Viver, para o homem, quer dizer principalmente “valer a pena viver” : lembrese o velho propter vitam, vivendi perdere causas; e se não se quer um texto tão elevado, o comentário popular a um a form a de vida desvalorizada ou desapreciada: “isto não é viver”.) Daí a valorização aparecer sempre como um mecanismo ajustado de compensações, e que as crises históricas começam por um desajuste que costuma levar ao desconcêrto. A meu entender, a função social do duelo, vigente na Europa do século XIX, foi principalmente a de manter certa necessidade de valor pessoal em um mundo excessivamente seguro, aprazível e tranqüilo, demasiadamente pouco perigoso — refirome sobretudo à segunda metade do século, talvez até a guerra de 14 — ; a perda de vigência do duelo sobreveio rápidamente quando o mundo se tomou perigoso, quando se necessitou de considerável valor pessoal para viver com dignidade média, sem necessidade de acrescentar complicações supérfluas. O duelo mais antigo, por seu lado, o medieval ou o moderno até o século X V II, re presentava uma parte da educação nobiliária e cavalheresca, um atributo dessa condição, uma escola de treinamento, como o esporte ou a aprendizagem das línguas modernas em outras sociedades. Análogamente, a tolerância moral para certos vícios e pecados costuma compensar excessos de rigidez em outro setor; e terseia que perguntar a sério pela função, dentro do sistema total da estimativa, do afrouxamento em seu conjunto
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ou do rigorismo; e certamente verseia que significavam, dentro da economia vital, compensações de outros fenômenos, que não são necessàriamente de índole moral. Como, por um lado, a estimativa interessa vivamente os homens, porque colore o mundo, lhe dá vivacidade, relêvo e dramatismo, e por outro lado a ação individual é nela muito enérgica, apresenta uma considerável labilidade. Diferem entre si consideravelmente, não apenas sociedades distintas, mas tam bém as muito próximas; e a variação temporal é grande de uma geração à seguinte. Isto significa que a rigor não se pode “descrever” ou traçar estáticamente o sistema valorativo de uma sociedade e sim que é preciso contá-lo. A tentativa de filiálo e o expor conduz a fazer sua história. Ainda no caso daquilo que denominei uma “época mínima”, o essencial é descobrir e narrar o argumento da estimativa, que projeta como sô bre uma tela, a figura do homem nesse tempo e o perfil daquilo que, nele, se entende por felicidade.
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A ideologia dominante ou imagem intelectual do mundo
Cada sociedade possui uma ideologia dominante, que produz o que chamo “imagem intelectual” do mundo, para não sobrecarregar excessivamente de teoria a realidade a que me refiro; isto é, quero dizer que ainda em se tratando de idéias e de conteúdos de caráter intelectual, o que tem vigência geral numa sociedade não é a rigor uma idéia do mundo, menos ainda o que se costuma denom inar uma “concepção” do universo, e sim uma imagem relativamente vaga, por certo não justificada cientificamente, e que dista bastante do que, nessa mesma sociedade, pensam os homens dotados de saber teórico. A origem dessa “imagem intelectual” não é exclusivamente científica; importantes ingredientes, de outras zonas alheias à ciência, vêm integrar essa imagem. Por exemplo, da religião. Não é necessário dizer que uma religião não é uma ideologia; porém, não é menos certo que em tôda religião existe, mais ou menos implícita, uma ideologia acêrca da realidade. Consideremos, pa ra recorrer ao mais próximo, o cristianismo contemporâneo tal como se ensina em suas formas mais elementares no catecismo e em qualquer manual escolar de “história sagrada” . Dêste ensinamento decorre uma noção imprecisa de mundo criado, em relação com Deus criador, uma cosmogonia, uma idéia do homem como
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realidade corpórea e anímica, urna mínima doutrina psicológica — os sentidos corporais que se enumeram no catecismo, as “potências da alma”, os vicios e as virtudes, as noções de arrependimento, atrição, contrição, “dor de coração”, devoção, etc. — , uma idéia hierárquica da sociedade — pais, mestres, superiores “em idade, saber e govêmo” — , uma visão da história — povo eleito, profetismo, plano providencial, juízo final — , uma idéia muito definida do “lugar do homem no cosmos”, em relação com as plantas, os animais, os espíritos angélicos e a Divindade, uma noção do milagre e, portanto, de uma ordem “natural”, quase de “leis da natureza”, tudo isto sem contar as idéias especificamente religiosas e teológicas, que têm uma vertente ideológica geral e contribuem também para formar essa imagem do mundo: o natural e o sobrenatural, a Encarn ação, a idéia de pecado, a noção de eficácia — po r exemplo, sacramental — , a idéia de espírito, a visão escatológica, a inter pretação da morte e da imortalidade, os princípios de justiça, mérito, prêmio e castigo, a oposição do tempo e da eternidade, etc. Este, e muito mais, é o fabuloso, riquíssimo repertório intelectual em que, sem o menor propósito científico, é introduzido o menino da última escola rural espanhola através do catecismo do P. Ripalda e do modesto compêndio de história sagrada de Fleury ou qualquer outro: o dilúvio e os sacrifícios; judeus, filisteus, babilônios, fenicios, macedônios, gregos, romanos; Baltasar, Nabucodosor e Alexandre Magno; o Nilo, o M ar Vermelho, o Sinai; a idolatria e o bezerro de ouro; formas sociais — tribus, poligamia e monogamia, concubinato — ; os Magos do Oriente; o homicídio — Caim e Abel — , a sedução — Sansão e Dalila — , o mundo dos sonhos — José — , a insta bilidade dos impérios, as paixões da alma, o destino que se anuncia e se cumpre — Mane Tecei Fares — . Isto é apenas um exemplo. O que nele me interessa é mostrar uma das vias de formação não científica da imagem intelec tual do mundo. Os relatos, as lendas, as novelas, o teatro — — em nosso tempo o cinema e os meios modernos de comunicação — ; os provérbios e refrãos; as tradições, a conversação familiar, a tertúlia de café; as narrações dos viajantes; os jornais desde que há jornais; tudo isso contribui em diversa proporção para a constituição dessa ideologia. Compreendese que, ao lado disto, tomase relativamente secundário o ensinamento científico como tal: quatro quintos de nossas idéias não
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procedem da instrução científica; isto em nossas sociedades ar quiintelectualizadas; em outras, a proporção da ciência será de uns dez por cento ou de um por mil. Com isto quero apontar que em tôda sociedade há uma imagem do mundo ou ideologia básica que é comum a tôda ela, não privativa das classes cultas ou dos homens de formação científica; porque todos, inclusive êstes, participam de uma idêntica imagem à qual se agregam e se superpõem certos elementos, particulares a cada um dos grupos sociais. Portanto, é possível se referir a êsse conjunto de elementos comuns que constituem o torso da ideologia geral, a qual, por sua vez, é um dos componentes mais importantes de qualquer estrutura social. Porém, depois de frisar enérgicamente êste ponto, é necessário insistir sôbre um aspecto bem diferente: a variação^ histórica dessas ideologias, suas diferenças de uma sociedade a outra, inclusive próximas, Cada país, por exemplo, sabe suas coisas próprias, tem suas doutrinas prestigiosas, suas tradições familiares, seus autores lidos po r “todo o mundo” . E isto varia com o tempo e com o espaço de poucos anos irrompem em uma sociedade novas idéias, novas modas, ungidas pelo prestígio do desconhecido — freqüentemente do exótico, às vêzes do proi bido — , pelo afã de novidade dos homens, especialmente de alguns grupos influentes, imitados depois pelos demais. Por isto, a imagem intelectual do mundo é — sôbre um fundo “estável” — variável, e certamente em um ritmo muito mais acelerado do que o das crenças básicas. Naturalm ente, o saber científico — no mais amplo sentido do têrmo — é um fator decisivo na formação dessa ideologia dominante. Se pode parecer que subestimei sua influência, foi sómente para evitar o êrro, tão difundido, de querer derivar da ciência a ideologia que tem vigência em um a sociedade. O papel da ciência dentro dela não é sempre o mesmo; nem tão pouco o de cada uma das ciências: a teologia, a astronomia, a filosofia, a biologia, a história, a física foram condicionando decisivamente a imagem que o homem médio reteve da realidade, em interação mas com fases de indubitável predomínio de umas ou outras. Acrescentese a tudo isto a influência da técnica na idéia do mundo: não é o mesmo esta quando o homem se comporta passivamente frente à realidade, quando a
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sofre ou, no máximo, quando a utiliza seguindo dócilmente suas estruturas e disposições, do que quando se serve originalmente dessas disposições para seus próprios fins pessoais, em princípio indepententes da realidade que encontram à sua volta, ou ainda quando vai além e produz êle mesmo essas disposições na medida em que as necessita para realizar projetos que nada têm que ver com as possibilidades “naturais”, com que contou tradicionalmente. Para tom ar um exemplo mínimo, pensese na “idéia” da realidade que decanta no homem o fato de vestirse com a pele de um animal recém caçado, com um traje de lã ou algodão, ou com um tecido de nylon, dacron ou orlon que, para começar, não sabe o que é, de onde procede nem como se faz, mas que é uma realidade produzida “a medida dos desejos”, precisam ente para satisfazer certos anseios e condições imaginados prèviamente à sua existência. Tôda a técnica dêste século anterior — tem êste caráter e está produzindo alterações decisivas em nossa imagem do real(7). A ciência que intervém na constituição dessa ideologia geral não é, po r certo, a atual, e sim a de anteontem. Notese que inclusive a instrução cietífica é sempre inatual: os manuais de bacharelato representam o estado das disciplinas intelectuais uma ou duas gerações antes; a pretensão de “estar com a última” costuma ser inoperante, porque não é suficiente “falar” das coisas mais recentes ou nomeálas; são freqüentes, por exemplo, os livros filosóficos atuais que não pordôam o último existencialista, mas que jamais conseguiram chegar ao nível histórico que significou Kant, sendo, pois, intrínsecamente “prekantianos”, talvez precartesianos. À medida que foi aumentando a velocidade de notificação e comunicação, que as idéias “chegam” mais depressa, sobreveio uma aceleração paralela da variação científica; isto sem levar em conta que não é suficiente que as idéias “cheguem”, mas que faz falta uma peculiar impregnação e assimilação, o que examinarei porm enorizadamente mais adiante. A investigação de uma estrutura social deve atender, pois, a êsse fundo geral de caráter ideológico, porém não obtido ou possuído intelectualmente, que dá a “imagem do mundo” dominante. Deve reconstruílo, assinalar suas linhas diretoras, traçar (7)
Veja-se minha Introdução à Filosofia, cap. I
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seus limites — essa imagem é sempre limitada, e não sempre por igual — , filiar seus diferentes ingredientes, avaliar a im portância e volume de cada um. E, sobretudo — mais um a vez — , pôr tudo isso em movimento: mostrar qual está sendo, em cada instante, essa imagem, para onde vai, em que medida gravita passivamente sôbre as mentes ou as mobiliza para o futuro. A realidade não é somente o que “está aí”; é sempre o que “está vindo”, e também o que “está indo”; e o coração do homem costuma estar distendido entre ambas as coisas; umas das características mais sutis e profundas de uma época está em sua atitude em relação a isto: se olha com melancolia as coisas que se afastam no passado ou se lhe arde o desejo ante a iminência das que estão assomando no horizonte. A realidade efetiva de uma sociedade e a orientação que tome na história pode depender de pequenas variações dessa sensibilidade; e é essencial que se oriente definitivamente em um ou outro sentido, ou que oscile, indecisa e distensa, sem poder renunciar a nada.
33.
O que “se” sabe e “quem” o sabe
A função social do saber estritamente intelectual e científico está condicionada pela determinação de seu sujeito. Até o século XVIII, pelo menos em seus primeiros anos, o saber tinha um caráter diretamente pesssoal: o sabido era sabido po r alguém concreto, por um homem individual, que por isso era, na plenitude do têrmo, sábio; assim Leibniz. Talvez a situação se prolongue, com menos segurança, até fins do século: Kant. Depois, a pretensão de saber o que se sabe tornase quimérica; e então surge uma nova questão que até então não havia tido sentido: isso que se sabe, quem o sabe? O que aqui me interessa não é o aspecto intraintelectual da questão, isto é, a exigência de especialização, e sim suas re percussões sociais. À medida que a totalidade do saber vai sendo inaccessível, se vai de,spersonalizando e vai sendo, cada vez mais, assunto de crença. Não é a mesma coisa, de modo algum, a “fé na razão” e a “fé na Ciência”; a primeira atitude leva a crer que eu posso conhecer tudo, pelo menos qualquer coisa, se me proponho e persevero o suficiente; entendase bem, não se supõe que tudo é sabido e sim que se pode saber. A “fé na Ciência”, pelo contrário, implica que se sabe tudo ou logo se saberá, embora eu exclua o chegar pessoalmente a êsse
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saber. A Ciência — sempre com maiúscula — tem a resposta; constitúise uma instância impessoal, depositária do saber, de caráter institucional — as Universidades, as Academias, os la boratórios — e que se materializa em bibliotecas: ai, nos livros, reside o saber. A coisa é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista. Notese que, ao longo da historia do Ocidente, a imensa maioria dos homens permaneceram fora do âmbito geral da ciência. Esta era assunto de muito poucos, que tinham acesso a ela, conheciam certas técnicas e por isso podiam cultivála e conhecêla. A começar pela leitura, e costumamos esquecer demasiadamente a universalidade do analfabetismo durante milênios; sem chegar a tanto, e ainda na Idade Moderna, em que aumenta consideràvelmente o número de pessoas que sabem ler, o latim é ainda uma fronteira que separa duas zonas enormemente desiguais da sociedade; e em todo caso, inclusive de pois de que as línguas vulgares invadem as disciplinas científicas, o acesso real aos centros de estudo, bibliotecas, etc., fica reduzido a muito poucos. Desde o século X V III, sobretudo já quando entrado o X IX , a situação muda. Um número muito maior de pessoas adquire familiaridade direta com o mundo da cultura superior; estas pessoas têm uma nova relação com a ciência: em lugar de ser para elas um a instância alheia e superior, começam a saber “de que se trata”. Isto é, a ciência se aproxima, se faz inteligível no sentido de que os cientistas entendem o que é ciência, têm a impressão de participar dela; iniciase uma peculiar comunicação que consiste em que grupos muito amplos se associam a uma realidade que excede suas possibilidades, que conserva uma grande margem de inaccessibilidade e, portanto, um máximo prestígio; é um a verdadeira “iniciação nos mistérios”, acentuando tanto a persistência do mistério quanto a efetividade da iniciação. É o momento em que o impacto social da ciência é mais forte e eficaz, em que a Euro p a vive mais profundamente sob a vigência do saber científico. Esta situação já se alterou. As razões são muito diversas — Ortega insistiu nisso, sobretudo em Reforma de Ia inteli gencia, Historia como sistema, Apuntes sobre el pensamiento, e mostrou como o fracasso da ciência nos problemas humanos foi um fator decisivo na debiütação de sua vigência — . Quero focalizar aqui o aspecto concernente ao “sujeito” da ciência, e •que não me parece desdenhável. A complexidade crescente das
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disciplinas científicas fez com que se tomem muito mais inacces síveis que no século XIX . Esta época foi — não o esqueçamos — a da “vulgarização”, iniciada já no século X V III, mas dominante no XIX , sobretodo na segunda metade; pois bem, a partir de certa data — diversa segundo as disciplinas, porém aproximadamente a princípios de nosso século — a vulgarização tomase pouco menos que impossível. Enquanto a imagem física do mundo no século passado era fácilmente traduzível em forma elementar — pensese no que significou durante mais de cinqüenta anos a Física de Ganot e suas versões mais sus cintas — , a teoria da evolução e o darwinismo toleravam uma exposição aproximada para uso das multidões, a astronomia é perfeitamente compatível com o P. Secchi e com Flammarion, as teorias geológicas, “neptunistas” e “vulcanistas”, e geográficas se transvasam sem muita dificuldade para os livros de MalteBrun ou Elisée Reclus, alguns decênios mais tarde as coisas vêm abaixo. O modêlo atômico de Bohr talvez haja sido a última teoria científica vulgarizável e vulgarizada; a grande quebra sobreveio com a teoria da relatividade; provàvelmente com nenhuma outra tantas vêzes se tenha enfrentado o propósito vulgarizador; tudo foi inútil: os que não conseguiram, com uma preparação intelectual bastante séria, entender de dentro a teoria de Einstein, tiveram que se contentar com a; magnífica fulguração de seu prestígio misterioso e com a tradução — escassamente utilizável — de que “tudo é relativo” . Outro tanto aconteceu — menos a fulguração — com a teoria dos quanta, e daí em diante em proporção crescente. Os nomes dos grandes cientistas deixaram de ser populares e nem sequer o prêmio Nobel os faz famosos entre as multidões; quando os jornais indicam que lhes foi concedido por seus trabalhos neste ou naquele tema, os leitores nem apenas entendem qual é êste. Embora o caso seja diverso, em füosofia gerouse uma situação que apresenta certas analogias: o positivismo parecia ter nascido precisamente para a vulgarização — assim aconteceu ao extraordinário pensamento de Comte em mãos de seus seguidores —, e não é de se estranhar que um de seus lemas terminasse na bandeira do Brasil — “Ordem e Progresso” — e que ainda subsistam em vários países — no Brasil e no Chile, por exemplo — positivistas que praticam a “religião da Humanidade”; a voga das filosofias de Schopenhauer e Nietzsche, por seu atrativo literário, conservou a popularidade do pensamento filo
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sófico até os primeiros anos de nosso século; porém a fenomenología impôs um esoterismo que desafiava tôdas as vulgarizações; outro tanto ocorre com o simbolismo da lógica moderna e de tôda a filosofia epistemológica afim. (O que acontece nos últimos trinta anos e culminou no existencialismo í um tema delicado, do qual terei que dizer uma palavra um pouco maisl adiante. ) As massas se sentem, pois, alheias à ciência. Qaando hoje se fala popularmente de seus resultados, o leitor tem flena consciência de que isso que tem entre as mãos não é a ciência, mas sjm um produto especialmente elaborado para êle e que precisamente acentua a distância e a inaseqiiibilidade dc científico em sentido estrito; pensese na série publicada pela revista americana Life, com o título The World we live in, “O mundo em que vivemos”, em que curiosamente se aliam a intervenção de uma preparação científica amplíssima em sua redação e o caráter explicitamente “incientífico” do texto obtido. Nada mais diferente da atitude dos leitores de Flammarion ou Echegaray, que tinham a impressão de estar nas próprias enranhas da Ciência, menos o esforço e o aparato matemático: “a Ciência sem lágrimas”. Mas não é só isso. A ciência não é alheia apenas aos que não são cientistas como também a êstes mesmos. A proliferação da produção intelectual tem sido de tal volume, e >eu conhecimento tem exigido, cada vez mais, conhecimentos tão especiais, que cada homem de ciência tem somente acesso a uma parte ínfima da bibliografia científica. A ciência havia passado da personificação no “sábio”, de caráter atual, à impeisonalidade dos “livros”, só potencial, porque os livros estão aí, porém é preciso que se vá até êles, que se os leia, para que o saber que êles contêm se realize e se atualize em alguém; pois bem: esta atualização tomase agora problemática, impossível ein seu con junto; isto é, ninguém pode percorrer essa bibliografia, possuir êsses livros que “estão aí”, porém com uma disponibilidade diminuida e em crise. A questão de “quem” sabe o que “se” sabe sofre uma inflexão: não apenas já não é ninguém concreto, como também se pensa que não pode ser ninguém eifl absoluto. E então o “se” tomase, por sua vez, equívoco. C on o que, as multidões começam a não saber bem o que fazer com a ciência; esta, que por um lado está mais perto e mais pateitte do que
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nunca — ai está a incrível técnica contemporánea, nos últimos anos a surpreendente realidade das bombas nucleares, a medicina recente, com seu fantástico progresso, etc. — , por outro lado é alheia, incompreensível e dificilmente localizável. A coisa é sutil mas de sumo alcance; se se pensa nas implicações políticas da física atual verseá como um dos componentes da situação criada em tôrno à investigação nuclear é a perplexidade em que se sentem os homens não cientistas e muitos que o são em relação à realidade pessoal da ciência — e, portanto, em relação a suas condições, exigências, riscos, possibilidades de desenvolvimento ou paralização, promessas, ameaças — . Cada sociedade representa uma posição frente à articulação do sabido com seu sujeito humano, e a nossa é particularmente instável e confusa.
34.
Os modos de difusão das idéias.
De quatro pontos de vista, pelo menos, podese estudar o processo de difusão das idéas, que é condição de sua eficácia social, portanto, de que se convertam em um ingrediente da estrutura de um a sociedade determinada. O primeiro é o que poderíamos chamar a origem social das idéias; o segundo, suas vias de comunicação e penetração; o terceiro, a velocidade e a amplitude dessa difusão; o quarto, as transformações sobrevindas às idéias ao se difundirem numa sociedade. Entendo por “origem social” das idéias o ponto da sociedade em que se engendram e a partir do qual se difundem. O mais importante é que êsse ponto se encontre dentro da sociedade de que se trata ou fora dela; não se pense que êste último caso seja infreqüente: em inúmeros casos, as idéias são “importadas”, a ponto de que essa importação é a condição de sua importância; em muitas sociedades, as idéias têm um prestígio que lhes vem de serem estrangeiras; assim ocorreu com Roma em relação à Grécia e o mesmo aconteceu dentro da Europa moderna com muitas nações em relação a outras, por exemplo, a importação de idéias políticas inglesas no século XVIII, de idéias francesas em quase todo o resto da Europa durante os séculos XVIII e XIX, de idéias alemãs entre 1870 e 1930, etc. (A Espanha teve suas fases de “exportação” para a Europa, porém não estritam ente de idéias mas de form as de vida, estimativas, estilos, etc.) Em volume considerável, a América
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recebeu da Europa, sobretudo da Inglaterra, França e Espanha, a maior parte das idéias que se foram difundindo no Novo Mundo até ainda neste século; agora começa a surgir a questão da origem interna de certas idéias americanas, de sua localização e de sua articulação com as chegadas do exterior. Nos casos em que a origem das idéias está fora da sociedade sôbre a qual atuam, o segundo ponto de vista — vias de comunicação e penetração — é o decisivo, posto que essas vias são a condição mesma de tôda realidade de tais idéias nessa sociedade; mas há outro aspecto que não pode ser passado por alto. Refirome ao fato de não se poder aceitar sem mais a tese de que as idéias de uma sociedade se engendram “fora” dela; que isto seja assim implica que duas sociedades concretas e efetivas (a “exportadora” e a “importadora”) estão dentro de uma “sociedade” mais ampla, sem dúvida abstrata e parcial, porém não menos existente (a Hélade, o mundo grecoromano, Europa, Ocidente, etc.). Avaliese como isto é decisivo para entender fenômenos como a colonização e suas diversas formas e também para processos do tipo de “japonização”, em que a índole da “sociedade” abstrata, da que formam parte as concretas que exportam e importam idéias, é problemática. Poderseia fazer uma história da colonização dêste ponto de vista, isto é, da constituição de “sociedades” mais ou menos tênues, capazes de englobar a metrópole e cada uma das colônias, ou estas entre si; e isto, por sua vez traria não pouca luz sôbre a realidade social dos países que um dia foram colônias e sôbre suas relações atuais com os antigos colonizadores. Outro tema, seja dito de passagem, que deveria ser tratado a fundo para chegar a uma compreensão decente do têrmo “Ocidente”, De qualquer modo, esteja a origem das idéias dentro ou fora da própria sociedade, existe sempre uma origem interna: aquêle “lugar” da sociedade em que se engendram ou onde acontece o fato de sua introdução a partir do exterior. Êsse lugar é sempre de um a extensão muito reduzida; um a fração extremamente minoritária do corpo social desempenha essa função; mas à parte dessa precisão quantitativa — que, além disso, não é tão precisa, pois a ordem de magnitude dessa fração pode ser consideràvelmente variável — , o mais im portante é saber que pessoas e com que figura social compõem essa minoria criadora ou introdutora das idéias. Pode se tratar de indivíduos como tais, isolados; pode se dar que se trate de corpo-
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rações como as escolas, os conventos, as instituições universitárias; é também possível que se estabeleceça um sistema de relações que levam à constituição daquilo que se chama “mundo intelectual”, “vida literária”, etc.; não é indiferente que em urna sociedade a origem das idéias seja um ponto único, pelo menos com predomínio opressor — o caso de París dentro da França — , ou uma pluralidade de centros parciais com locaüzações distintas, como ocorreu na Grécia e sucede na moderna Alemanha. Outra determinação que tem grandes conseqüências é o nível social dessa zona em que se leva a cabo a gestação das idéias; e isto em dois sentidos: o estrato social de que procedem as pessoas que assumem essa função e a hierarquia social que lhes pertence por havêla realizado; pensese nos monges medievais, nas côrtes renascentistas italianas, na Universidade européia do século XIX. As vias de comunicação e penetração das idéias no corpo de uma sociedade, partindo do ponto em que originaram ou de fora de onde chegaram, diferem enormemente. Não é o mesmo, é claro, um a sociedade de dimensões reduzidas — um a cidade grega — e uma enorme — os Estados Unidos — ; a situação varia segundo o grau de homogeneidade da sociedade, mas sobretudo segundo sua estrutura: distribuição em cidades e relações entre estas, existência de uma elite ou minoria intelectual diretora, capacidade de irradiação desta, prestígio de que goze, interferências com o poder público ou eclesiástico, margem de liberdade, número e importância das intituições docentes, meios de difusão — imprensa, livros, revista^, jornais; hoje cinema, rádio, televisão — e função social que cada um dêles desem penhe. Alguns exemplos esclarecerão o modo de atuação dêstes fatores tão diversos. A maior parte dos livros francêses são impressos em Paris; os espanhóis, desde o século XVII, em Madrid, e a partir do X IX , também em Barcelona; os alemães, diferentemente, em inúmeras cidades, das quais Berlim é apenas uma e não a primeira: Leipzig, Munich, Frankfut, Hamburgo, Halle, Tubin gen, Paderbom, Heidelberg, Stuttgart. Se pensamos na América, enquanto a produção editorial dos Estados Unidos se distribui em muitas cidades — Nova York, Chicago, Boston, Cambridge, Filadélfia, Washington, Los Angeles, Berkeley, New Haven, etc. — , a argentina se concentra em Buenos Aires, a mexicana na cidade do México, e quase se pode dizer que a de tôda a Hispa-
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noamérica nestas duas cidades. E não se trata só de centros editoriais, porque a organização da vida intelectual não coincide com êles de m aneira uniforme: enquanto em alguns lugares as Universidades estão nas cidades importantes, portanto em relação imediata com a vida social e com o que se denomina “círculos literários” — o caso máximo disso é Paris — , em outros países, como na Alemanha, existem as pequenas cidades universitárias a partir das quais se realiza uma peculiar “irradiação” de vida intelectual sôbre o conjunto da sociedade; e uma terceira forma é constituída pelas muitas Universidades dos Estados Unidos — a forma intermediária está representada pela maioria das inglêsa,s — em que o “mundo” intelectual é realizado pela própria Universidade, com seu campus, suas residências, etc., a qual está “localizada” em uma cidade, quase sempre pequena, relativamente independente e da qual só em um sentido muito remoto se pode dizer que seja uma cidade univer sitária. Isto faz com que a vida intelectual e literária seja máximamente pública na França, de um modo menos direto na Alemanha e decididamente menos na Inglaterra, enquanto que nos Estados Unidos seja profissional e exerça sua influência sôbre a sociedade através do prestígio das instituições. Por outro lado, enquanto que o número de centros docentes de caráter universitário contase, no máximo, por dezenas nos países da Europa, nos Estados Unidos se eleva, desde há muito, a várias centenas e atualmente ultrapassa consideràvelmente o milhar, o que significa que a difusão das idéias na sociedade norteamericana se faz muito mais em forma de college instruction do que de participação de uma vida acadêmica — Alemanha — ou literária — França, Espanha, Itália, Hispanoamérica — , relativamente inconcreta e que se realiza em bôa parte no jornal diário — que trata de temas intelectuais e publica artigos de escritores não jomaüstas — e nos cafés. Porém deverseia acrescentar, por sua vez, que essa “instrução universitária” americana não corresponde exatamente à européia continental mas que é em sua parte principal educação, formação pessoal, isto é, que leva a cabo — como era de se esperar — uma função que em ampla proporção se parece mais a dessa transmissão difusa do jornal e da tertúlia, do que aquela realizada no centros de ensino europeus. Diferenças análogas se dão na forma de se conseguir os prestígios, necessários por sua vez para a penetração das idéias
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na sociedade. Na França foi inexcusável, há muito tempo, o triunfo e a consagração em Paris; na Alemanha, o mundo dos Gelehrte, mais fechado sôbre si mesmo, uniu o prestígio a certos títulos acadêmicos de hierarquia rigorosa; na Inglaterra esteve vinculado em grande proporção à vida política — a qual, por sua parte, era uma escola de manners — e a prolongação natural dos centros de ensino; isto é, enquanto na Alemanha o que realmente dava prestigio era ser ordentlicher Professor (Ordinarius) em lena, Tubingen, Marburg ou Berlim, na Inglaterra se tratava mais de ter estudado em Eton, Harrow, Oxford ou Cambridge do que de ensinar nessas instituições, e o desenvolvimento do que ali se adquiria não levava normalmente à atividade acadêmica e sim ao Parlamento, ao Civil Service ou a uma personalidade de escritor que unia a erudição clássica e a pureza de estilo a um afetado descuido e um humour rigorosamente oposto à Gründlichkeit do professor alemão. Na Espanha as coisas foram demasiado variáveis para que se as possa caracterizar de um modo simples, e será necessário investigar com cuidado êste mecanismo social na transição do século XVIII à metade do século XIX, em que êste consolida uma prim eira figura pró pria neste aspecto. Os característicos e os modos de influência das publicações estão em íntima conexão com tudo isto e com a margem de liberdade de que disponham . Em sociedades em que esta é muito precária, a palavra falada adquire uma importância incom paràvelmente maior, e como desaparece ao cabo de algum tempo, isto dificulta extraordinàriamente o estudo posterior de uma sociedade em tais condições. Até o século XIX , a influência das publicações jornalísticas foi muito escassa para a difusão das idéias; há uns cento e cinqüenta anos, a existência de um sem número de revistas e jornais, muitos com grande circulação, fêz com que êstes se convertessem em um meio de primeira ordem e, em certos países, espantosamente superior a todos os demais. Naturalmente, o tipo de publicação de jornal que serve de veículo para a penetração das idéias varia segundo as sociedades; nos países latinos é, sem dúvida, o diário; na Inglaterra, a revista highbrow e alguns diários do mesmo teor, como o Umes; na Alemanha, algumas revistas intelectuais e um ou outro diário, mas em conjunto com menos fôrça de penetração do que os livros; nos Estados Unidos, sem dúvida os magazines, com um a hierarquia muito matizada entre êles: não
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é a mesma coisa atualmente The New Yorker e o Collier’s, o Time e o Newsweek, o Life e o Harper’s Magazine ou o Atlantic Monthly. Na Espanha, durante os últimos quinze anos produ ziuse uma baixa rapidíssima da influência e eficácia dos jomáis — e das revistas — para a difusão das idéas, e isto se compensou com um incremento surpreendente da fôrça social do livro. Quando os poderes públicos intervém ativamente na difusão das idéias, isto é, quando não se limitam a proporcionar os instrumentos para sua difusão — por exemplo, os estabelecimentos de ensino, bibliotecas, ,museus, etc. — , mas limitam positiva ou negativamente o conteúdo dessas idéias, as conseqüências são várias e, se bem se vê, desorientadoras. Porque, naturalmente, o Poder assegura e intensifica a propagação mecânica das idéias, isto é, sua notificação, porém ao mesmo tempo sua intervenção as disvirtua como idéias, as coloca em uma dimensão que não é a sua própria e automáticamente lhes faz perder eficácia. As idéias impostas não valem como idéias, e embora circulem o fazem fora de suas próprias vias, extravasadas, e produzem efeitos sociais de outra ordem. Um caso especialmente claro e interessante é o das autoridades religiosas, so bretudo quando têm caráter eclesiástico: quando a intervenção se mantém fiel a sua própria esfera, isto é, a do poder espiritual, põe em jôgo o sistema de crenças religiosas vigentes e as idéias conexas com elas, e, portanto, se move no âmbito próprio das idéias e sua função social; (e digo crenças vigentes, porque êste efeito se estende inclusive aos indivíduos que pessoalmente não aderem a elas). Com efeito, quando a autoridade eclesiástica se comporta como tal, como autêntico poder espiritual, tem autoridade até para os não crentes; pelo contrário, quando em virtude de conexões com o poder temporal utiliza os recursos dêste último, perde sua autoridade, qualquer que seja sua fôrça, ao abandonála para lançar mão dos instrumentos próprios do Estado; e com isso sai do âmbito genuino das idéias e perde sua gravitação sôbre êle. Os exemplos concretos de tôdas estas variações, em sociedades definidas por diversas religiões e relações muito diversas com diferentes poderes, poderiam ser acumulados sem dificuldade. Dentro da época atual se dão formas extremamente diversas, se bem que as diferenças estejam atenuadas — sobretudo, tendentes a atenuarse — pelo fato de que hoje todos os países vivem “em presença” uns de outros e as conexões entre potestades em um ponto do
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mundo são “patentes” em todos os demais e secundáriamente exercem ali sua influência. Quanto à velocidade e amplitude com que se opera a difusão das idéias, a variação é sobretudo histórica. Uma e outra têm aumentado em incrível proporção a partir do final da Idade Média, com etapas claramente definidas: a introdução da imprensa, a fins do século XV ; o aparecimento, a partir dos últimos anos do século XVII, de Gazetas eruditas que põem em comunicação os homens cultos da Europa, combinado com a fundação de Academias e a publicação de dicionários de grande difusão — Chambers, Moreri, Bayle — , sobretudo a Enciclopédia e com ela a constituição dos grupos sociais “ilustrados” em todos os países, ao mesmo tempo que dominam as línguas vulgares em tôdas as disciplinas científicas e o francês funciona como meio de comunicação internacional; o estabelecimento da Imprensa diária em começos do século XIX, unida ao triunfo geral do parlamentarismo na Europa, a industrialização, a constituição de uma burguesia próspera e numerosa e a aceleração das comunicações: ferrovias e telégrafos; por último, a incorporação ativa da América — secundáriamente de outras zonas extraeuropéias — , unida à sucessão vertiginosa dos progressos técnicos da comunicação: telefone, rádio, cinema, televisão, automobilismo, aviação. Seria porém um êrro supor que é suficiente levar em conta os meios de comunicação; o decisivo é o uso que se faça dêles, isto é, a atitute dos homens. Lembrese a rápida difusão de idéias nos meios humanísticos até meados do século XVI, e comparese com o crescente isolamento da Espanha, por exem plo, desde essa data e sobretudo desde 1640 aproximadam ente — o que Valera chamava “a muralha da China” de que se rodeou a Espanha no século XVII, e Ortega denominou “a tibetização da Espanha em tempos de Felipe IV” — . Por outro lado, tão pouco é certo que a proibição e os entraves diminuam a velocidade de difusão: depende de como se reaja a êles, isto é, da atitude daqueles que os sofrem; enquanto no século X VII, sobretudo em sua segunda metade, as restrições são efetivas, um século depois persistem igualmente — tenhase em mente os malogros de Jovellanos e as dificuldades incríveis que encontrou para im portar livros e form ar a biblioteca em Gijón — , porém são burladas, e os escritos introduzidos ilegalmente compensam a escassez de seu número com a rapidez em passar de mão
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em mão e com o crédito automático que logra o clandestino. E de um terceiro ponto de vista, o que as comunicações conseguem é anulado talvez em grande parte pelo nacionalismo: enquanto os humanistas ou os ilustrados constituem uma só familia intelectual em tôda a Europa, que se corresponde e lê mútua e ávidamente os escritos, no século passado e em nosso atual produzemse situações em que, por espírito nacionalista, vaidade local ou partidarismo político não se lê os livros que se tem ao alcance da mão e se ignora a produção intelectual do outro lado da linha fronteiriça. Tudo isto, que se refere primàriamente à comunicação entre países diferentes, vale, com mínimas correções, para a difusão das idéias dentro de uma sociedade particular; dêste ponto de vista, devese dar um valor especial à extensão da cultura média e à existência de minorias intelectuais prestigiosas; neste sentido, a comparação entre o primeiro têrço do século XIX e o primeiro têrço do século XX não pode ser mais esclarecedora; e assim, enquanto na primeira destas etapas se consuma o grande atraso intelectual da Espanha e sua desarticulação da comunidade européia, na segunda se realiza, com celeridade quase imcompreensível, a reintegração à “altura dos tempos”. Por último, — e isto é o mais interessante e o mais delicado — devese considerar as transformações que as idéias ex perimentam ao se difundirem no seio de uma sociedade. Antes de tudo, alterações de seu repertório e da figura que em seu conjunto compõem. Se se fala das idéias de uma época, se propende a pensar na totalidade das idéias que compõem a mentalidade de uma grande figura representativa: Santo Tom az, Erasmo, Descartes, Locke, Leibniz, Voltaire. Porém as idéias de uma sociedade, nesses mesmos tempos, são outras: em primeiro lugar, mais antigas, porque a lentidão da vida coletiva impõe um décalage entre o grande intelectual e o corpo social em que vive; mas é preciso analisar em cada caso qual é êsse desnível, que medida exata tem essa “antiguidade” das idéias da sociedade em questão. Em segundo lugar, nem tôdas as linhas do que escreve o intelectual criador transcendem a coletividade; e ao faltarem algumas — mais ou menos — modificase sua perspectiva e sua hierarquia, e por conseguinte o con junto de suas relações, isto é, constituem outro sistema vital. Em terceiro lugar, há uma grande diferença em sua expressão, e a
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expressão é componente intrínseco das idéias; e ao falar de expressão refirome a duas coisas: um a delas é a necessária “vulgarização” ou “popularização” das idéias, que têm que se verter em form a mais fácilmente exeqüível; é a diferença que vai dos Philosophiae naturalis principia mathematica ao New tonisme pour dames do cavalheiro Francisco Algorotti; a outra vertente da variação expressiva é a devida a todo género de precauções; não se esqueça que a liberdade intelectual quase nunca e em quase nenhuma parte existiu, e, portanto, a diferença entre o que “se diz” e o que “se quer dizer” é normalmente muito grande, desde logo em todos os escritos destinados a um a ampla difusão; geralmente, o autor não diz o que quer e sim o que pode, o que é outra coisa; o leitor, que tradicionalmente soube disso — só agora o esquece, após a experiência do século em que a liberdade intelectual teve bastante realidade (18151914) — , não conseguiu entender o que o autor disse e sim o que “crê que quer dizer”; porém como é sumamente improvável que acerte de todo, estamos diante de três instâncias: 1) o que o autor pensa e quer dizer; 2) o que diz; 3) o que a sociedade entende; se não se leva em conta isso, difícilmente se pode saber quais são as idéias de uma sociedade determinada. Porém, descontado tudo isso, o decisivo é ainda o fato de que as idéias não têm a mesma função vital nos intelectuais e nos que não o são. Por isso, em mãos dêstes últimos perdem agudeza, precisão, rigor teórico, degeneram como tais idéias; e isto não só por uma deficiência de nível intelectual das mutli dões, como também po r algo mais profundo: porque isso, o rigor teórico, não lhes interessa; as multidões usam as idéias para outros fins e em suas mãos — em suas mãos mais que cm suas mentes — perdem suas arestas, sua transparência e sua exatidão, quase sempre também sua verdade; mas, como estão em suas mãos, adquirem o que na mente dos homens teóricos nunca tiveram: fôrça. Para que as idéias de Descartes, Leibniz, Locke e Newton a tivessem, para que fôssem uma potência histórica, tiveram que deixar de ser as suas próprias para serem as do homem médio de 1790, passando pelas de Voltàire, d’Alembert, Holbach, Destutt de Tracy; para que as idéias de Hegel se convertessem em um elemento transformador das estruturas políticas e sociais do mundo tiveram que se trans
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formar elas próprias, e através, não do O Capital mas do Ma nifesto comunista, chegar às ideologias dos partidos marxistas e anti-marxistas. Dizia mais acima que as formas do pensamento atual são tão esotéricas e difíceis que a vulgarização se toma quase impossível, e dava como exemplo a teoria da relatividade ou a fenomenología; mas advertia também que nos últimos trinta anos se estava produzindo um fenômeno sumamente curioso; êste é o momento de dizer uma palavra sôbre êle. As formas mais recentes de filosofia, que, por certo, são de grande dificuldade — os nomes de Heidegger ou Jaspers bastam para proválo, e não fica atrás L’étre et le néant — , são irmãs uterinas de certas formas literárias, novelas e dramas, com freqüência dos mesmos filósofos, e que expressam a mesma interpretação geral da realidade. Pois bem: creio que isto significa, ao mesmo tempo, a possibilidade de difusão social dilatada de doutrinas em. si mesmas muito pouco accessíveis e o recurso para que essas doutrinas não degenerem ao passar para as multidões, visto que se difundem e se transmitem em forma não teórica (8).
35.
A opinião e sua dinâmica
Com o que foi dito até agora não se obteve ainda uma teoria suficiente das idéias, das crenças e de suas relações, porém se definiu as linhas de seu funcionamento dentro de uma sociedade e, portanto, determinouse as possibilidades metódicas efetivas de estudar uma estrutura social. Mas as crenças e as idéias como tais não bastam, e é necessário levar agora em conta o fenômeno da opinião. Disse crenças e idéias como tais, porque é preciso saber se as opiniões são em si mesmas diversas de umas e outras, ou apenas um a forma de seu funcionamento. As opiniões são expressas, e nisso se diferenciam das crenças em sentido estrito; não se “está em uma opinião”, como se está em uma crença, e sim se “tem” um a opinião como se tem uma idéia. Mas, por outro lado, não deixa de ser sintomático que se use o verbo “crer” muitas vêzes para manifestar as opiniões: “creio que am anhã fará bom tem (8) Sôbre isto, veja-se meu estudo “La novela como método de conocimiento”, incluído no livro La Escuela de Madrid (Obras, V ).
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po”, “creio que tal política é ,mais favorável” . As opiniões têm algo que ver ao mesmo tempo com as idéias e as crenças, mas não se confundem nem com umas nem com outras. Em que se baseiam as conexões e as diferenças? A crença em sua forma plena e rigorosa é o inquestionável; tanto o é, que não só não se enuncia como nem sequer dela se tem consciência expressa; orienta a vida na medida em que nos apresenta a realidade de certo modo, e de maneira alguma enquanto enuncia algo sôbre um objeto. A opinião tem també;m uma função orientadora; porém, longe de ser inquestionável, lhe pertence intrínsecamente a questionabilidade e precisamente na forma de ser uma entre várias opiniões possíveis. Poderseia pensar que se trata de uma crença insegura ou de bilitada; tal não se dá: a opinião mais enérgica conta com outras, às quais se opõe enérgicamente, e a opinião exclusiva ou única se desvanece como tal opinião; na política, por exem plo, quando se opina uma só coisa, a rigor não se opina essa coisa, desaparece o fenômeno da opinião, substituido pela submissão, a indiferença ou o enfado. Algo parecido acontece com as estimativas literárias, estéticas, etc.: quando são sólidamente vigentes, quando são pràticamente homogêneas ou únicas, deixam de ser opiniões; e assim, nos é difícil dizer que opinamos que Velasquez era um grande pintor, que Napoleão entendia de guerra, que Homero escreveu poemas interessantes. Por outro lado, embora as opiniões, por serem expressas e enunciadas, se assemelham às idéias, apresentam diferenças importantes. Comparese uma pesquisa do Instituto Gallup com um exame. A primeira inquere acêrca das opiniões dos sujeitos interrogados; o segundo, acêrca das idéias. Quando se pergunta quem é o “homem do ano” ou se a política que se segue no Oriente é acertada, há uma porcentagem de respostas em um ou outro sentido, e sempre um tanto por cento dos que “não têm opinião”. O aluno examinado, quando o professor pergunta qual é a fórmula do volume da esfera, a capital de Honduras, os caracteres dos equinodermes, a data da batalha de Lepanto ou as leis do silogismo, responde ou não, mas nunca se lhe ocorre dizer que “não tem opinião” ; no máximo, dirá que não tem “nem idéia” . É o mesmo? O examinando supõe que “se sabe” o que se lhe pergunta, ainda que êle próprio não o saiba; portanto, que o poderia saber, provàvelmente deveria saber e que não pode dizer outra coisa, porque seria uma falsi
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dade e o suspenderiam. O interrogado acêrca de suas opiniões parte da “opinabilidade” dos temas, isto é, de sua insegurança e da pluralidade de opiniões sôbre êles: uns opinam que o “homem do ano” é Adenauer, e outros, que é MendésFrance; um terceiro grupo é unánime em que é McCarthy, e um quarto Einstein, e um quinto Gina Lollobrigida; qualquer destas coisas e outras mais — ainda que não qualquer — se pode opinar, e nem sequer tem sentido pensar que haja uma resposta única, como para a fórmula do volume da esfera ou a data da batalha. Quando alguém declara que não tem opinião, não quer dizer que não sabe e sim que não tomou posição por falta de interêsse ou por não ter presentes as possibilidades de opinar ou por não contar com os elementos suficientes para que sua adesão se mo bilize até uma delas. Isto significa que não se tem opinião sôbre qualquer coisa, mas somente sôbre certos temas que interessam para orientar a vida. Quando leio um jornal, me informo que tal equipe de futebol ganhou uma partida, e então tenho idéia disso, porém faltame qualquer opinião esportiva, porque minha atividade não se põe em marcha, e não me oriento sôbre o futebol porque na economia de minha vida não surge a necessidade nem a fruição de saber a que me ater sôbre as probabilidades de que uma ou outra equipe vença o campeonato. O que primeiro se deve determinar, se se quer investigar a função das opiniões como componente de uma sociedade, é o que poderíamos denominar sua “área”; e isto em vários sentidos. Antes de tudo, sôbre que temas se opina em um sociedade concreta: quantos e quais. As diferenças são enormes; há sociedades em que relativamente se opina sôbre poucas coisas; há outras, pelo contrário, dominadas por uma febre de opinião. Há muitos temas sôbre os quais não se opina, não por acaso mas porque uma vigência imperante assim o estabelece; sôbre outros, por sua vez, a opinião é socialmente exigida, no sentido de que se conta com ela: a ideologia da moda, seja o rom anticismo, o surrealismo, ou o existencialismo; os candidatos às eleições, o livro discutido, as personalidades rivais, as belezas mais famosas, os atores, etc. Em segundo lugar, devese precisar quem opina em cada caso. Não me refiro só ao número dos opinantes, embora seja êste muito variável e oscile entre extremos muito distantes, mas sim à sua estrutura. (Naturalmente, ao dizer que o número dos opinantes varia, não quero dizer dos que opinam, porque todo
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o mundo opina alguma vez, e sim dos que, num certo sentido, fazem profissão de opinar, daqueles que normalmente opinam sôbre as coisas e, portanto, contribuem para formar a opinião, isto é, a opinião dominante na sociedade.) Com efeito, os opinantes podem ser uma massa amorfa ou constituir um conjunto ou uma série de conjuntos articulados. Quando se fala, por exemplo, da existência de um público, indicase ésse fato — e também outro que veremos depois — . Em algumas sociedades existem núcleos de “entendidos” ou connaisseurs que opinam de maneira coerente sôbre política, literatura, música, teatro, elegância; êsses núcleos podem ser mais ou menos incomunicantes, e, portanto, as opiniões se articulam entre si em diverso grau: talvez os que opinam sôbre a ópera não têm conexão com os que opinam sôbre a literatura, mas sim com os que regem as opiniões sôbre a beleza feminina ou a elegância; e em outros momentos ou em outros países é nos salões onde se opina sôbre literatura. A estimativa geral em uma sociedade de pende, em grande parte, desta estrutura da opinião; e portanto, o que Ortega denominou o “poder social” que possui cada profissão ou cada indivíduo: os escritores, o clero, os militares, os ricos, os políticos e cada um dêles em particular. Quando a opinião está dividida em compartimentos estanques não é fácil uma valorização genérica, e o trato social tornase titu beante e difícil, a menos que exista uma estimativa geral de tudo o que é particularmente estimado; isto é, as valorizações estritas, procedentes de círculos parciais, contarão, nesse caso, com uma “cotização” na sociedade que permite estimar o que é “importante” em qualquer campo; então o grande físico goza de estima entre os que nada entendem de física, e o grande músico entre os que dormem em um concêrto, e o grande toureiro entre os que são incapazes de distinguir um “miura” de uma vaca holandêsa, não porque êles opinem e sim porque os círculos respectivos opinem que uns e outros são eminentes. A opinião dominante quase sempre nasce em círculos reduzidos; muito freqüentemente procede de indivíduos: um crítico provoca a opinião literária ou musical, uma dama define a opinião sôbre a elegância, uma revista inicia a opinião intelectual que vai dominar numa extensa zona, um jornal de especial prestígio configura um setor de opinião pública. Um núcleo maior “segue” essas opiniões, porém ativamente; isto é, os indivíduos que o compõem opinam também, porque entendem
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do assunto, porém orientados, dirigidos por aquéle individuo ou aquéle grupo exiguo. Urna zona social muito mais ampia aceita e faz sua a opinião, sem “entrar nela” . É decisivo para o equilibrio das opiniões que éste esquema se cumpra mais ou menos perfeitamente dentro de uma sociedade, dependendo pois da existência désses fermentos prestigiosos — e de sua liberdade de expressão — , por um lado, e por outro da docilidade do resto do corpo social. Aludi ao equilíbrio das opiniões; não quero dizer com isso estabilidade, porque as opiniões devem ser instáveis. Sua pró pria multiplicidade essencial, a insegurança que as afeta in trínsecamente — há uma íntima conexão entre opinião e o parecer (assim a dóxa grega) — , o ser objeto de atos explícitos de opinar, tudo isso introduz uma considerável mobilidade e labi lidade das opiniões. A opinião rígida e imutável é indício de anquilosamento social; sua absoluta fugacidade, sintoma de inconsistência; a variação com ritmo das opiniões, sua fácil contraposição, a flexibilidade com que se discutam, se enfrentem e se corrijam, a passagem de cada indivíduo de uma para outra são fenômenos que denunciam a vitalidade e a saúde de um organismo social, como o pulsar do sangue nas artérias.
36.
Opinião privada e opinião pública
A opinião é um dos grandes reguladores da vida coletiva. A vida intelectual e artística, a convivência social, a economia, a política sobretudo, se fundam na dinâmica das opiniões. Mas é necessário introduzir ainda uma última distinção, sem a qual se pode incorrer em graves confusões e, portanto, não entender bem como funciona a opinião enquanto ingrediente de uma estrutura social. Refirome à contraposição entre opinião privada e o que se chama “opinião pública”. A opinião consiste em que eu opino; é, pois, um ato individual que o indivíduo executa como tal indivíduo. Uma mesma opinião pode ser compartilhada por outros vários indivíduos, talvez po r muitos; num limite, por todos os membros de uma unidade social; neste caso diremos que se trata da opinião geral ou comum; evidentemente não é preciso que seja a opinião de todos mas sim da maioria. (Deixo aqui em sus penso o que significa neste contexto a palavra “maioria”. É algo apenas quantitativo? É suficiente a metade dos indivíduos
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mais um? É necessário a metade mais um? E a metade de que? Da totalidade da população ou dos que denominei “os opinantes”? Como se vê, a coisa não é muito simples; mas não se pode responder a essas interogações neste momento, porque intervém na questão elementos que só aparecerão no capítulo VI). Temos que evitar, porém, um érro: considerar equivalentes a opinião particular e a privada, a geral e a opinião pública. Considerese que quando há opinião pública há várias opiniões, tôdas igualmente públicas; isto é, as opiniões minoritárias e até singulares podem ser perfeitamente públicas. Não é, pois, um caráter quantitativo a condição que se trata de precisar. Nem sequer é bastante o caráter social ou coletivo. Isto é, não é suficiente que a opinião seja o que “se” opina, diferentemente do que opina cada individuo como tal. Nem ainda é suficiente que a êste caráter se acrescente o de sabido por todos, ou seja que cada um saiba que os demais o sabem, que cada individuo saiba que a opinião de cada um dos demais é igual à sua. Falta uma condição sutil, porém de suma importância: que isso conste. Quando numa assembléia alguém pede que algo “conste em ata”, o que pede? Que os demais se enterem? Não, porque o acabam de ouvir. Que o subscrevam ou o apoiem? De modo algum. Simplesmente, que tenha existencia pública, que não pertença ao mundo privado das vivências de cada um, mas que ingresse no mundo de todos, que “esteja aí”, no âmbito comum, que fique em disponibilidade, que seja, em suma, urna instancia à qual se possa recorrer. Todos sabem que aconteceram ou acontecem muitas coisas perfeitamente conhecidas, e no entanto não constam, não se pode apelar a elas, não se conta com elas para estabelecer uma ação social de nenhum tipo, não têm existência em uma zona da realidade que é justamente a vida pública. Como algo pode constar é outra questão. Os modos da publicidade ou da publicação são muitos e mudadiços. Em certas formas de sociedade, basta que algo seja dito em público — naturalmente esta expressão não quer dizer sempre o mesmo; às vêzes, o que se diz em um café tem essa condição; outras, não a tem o que se diz em um Parlamento ou Côrte — ; em certas ocasiões, o pregoeiro é o órgão da publicidade; em outras, um pasquim, talvez uma facção militar ou as 95 teses de Lutero na porta da catedral; em outros tempos, é necessária a interven
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ção da Imprensa e do rádio, ainda mais da primeira: enquanto algo não estiver impresso parece não constar de verdade. Em muitas circunstâncias não existe opinião pública, o que constitui uma das mais graves anormalidades que podem sobrevir a uma sociedade. Mesmo se houvesse nela um repertório de opiniões dominantes, com esmagadora maioria, ou uma opinião pràticamente unânime, tudo isso não passaria de opinião privada. E notese que quando num corpo social não há publicidade, não a há em absoluto; isto é, não a possuem tão pouco as opiniões que são materialmente “publicadas”, porque então esta publicidade se converte em simples “notificação” ; em outras palavras, quando as opiniões não podem constar, aquelas que excepcionalmente constam deixam de funcionar como opiniões. A vida política, sobretudo desde a Idade Moderna, mas de um modo geral sempre, não pode ser compreendida senão quando esclarecida a respeito desta situação. E existe um processo cujos mecanismos são muito com plexos, mas que pelo menos deve ser mencionado: a publicação das opiniões privadas. Em um momento determinado, uma opinião que era apenas a de muitos indivíduos, possivelmente a da maior parte dêles, mas que era absolutamente inoperante, é publicada. Surge então uma nova realidade, diversa da anterior, que adquire eficácia numa esfera em que antes não contava e atua em dimensões da vida coletiva inaccessíveis à opinião privada, por muito compartilhada que esta seja. Só com esta idéia em mãos se pode compreender a história política da Espanha desde princípios do século XIX, e à luz dela se tomam inteligíveis muitos fenômenos que não têm sido interpretados corretamente.
V PRETENSÃO E FELICIDADE
37.
A pretensão coletiva e suas versões individuais
A pretensão, projeto ou programa vital é o que existe de mais pessoal e próprio em cada vida hum ana; ser eu consiste em exercer certa pressão sôbre as circunstâncias, oprimilas para nelas abrigar — no futuro — uma figura programática de existência. Portanto é essencial a dimensão de futuro e imaginação que intervém na constituição de tôda v id a (1). Por isso insisti, ao longo de todo êste estudo, em que uma estrutura social não está composta de elementos quiescentes, mas se define por tensões e movimentos — e quando êstes parecem faltar tratase de repouso, nunca de imobilidade — . Mas a esta altura é preciso proceder com cuidado: o que é relativamente claro quando se trata de vida individual, tornase sumamente problemático quando nos referimos à vida coletiva, e êste é o caso relativo a estruturas sociais; o eu imaginário e programático, a vocação pessoal, é uma realidade unívoca e precisa; outra coisa é a pretensão coletiva, conceito ambíguo e cheio de dificuldades. Em primeiro lugar, a relação da vocação ou pretensão pessoal com as formas da vida social é íntima (2); a figura imaginada para a qual nos projetamos se encontra — pelo menos esquemáticamente — no contômo social, e por outro lado sua projeção só tem concretude, relêvo e fôrça de incitação se se aloja nas formas precisas de um mundo, que naturalmente é (1 ) Cf. minha Introdução à Filosofia, sobretudo os capítulos VI e IX; e também meu livro La imagen de la vida humana (Obras, V). (2) Cf. Introdução à Filosofia item 76, “O pessoal e o histórico na vocação”.
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o nosso, salvo em casos muito excepcionais. A pretensão se nutre, pois, de estruturas coletivas que a tornam possível. O fato de nascer em uma sociedade determinada — país e época — ja limita o horizonte de pretensões normalmente possíveis, aumenta a probabilidade de um reduzido repertorio délas, que serão as pretensões “típicas”, e, portanto, freqüentes; por último, introduz em tôda pretensão certos traços parciais em que, sob suas diferenças, coincidirão. Mas não é só isso. É necessário articular êste ponto de vista com outros dois. Antes de tudo, impõese uma distinção importante: a expressão “pretensão coletiva” encerra um equívoco, que interessa descobrir e talvez não eliminar, porque há uma conexão nada acidental entre seus dois sentidos. Com efeito, podese entender a pretensão estatisticamente dominante entre os indivíduos de uma coletividade, portanto, um certo tipo ou esquema, de vigência coletiva, que informa as pretensões dos indivíduos como tais; porém podese entender também a pretensão coletiva em sentido estrito, isto é, a pretensão da co letividade, da unidade social de que se trata em cada caso; por exemplo, a pretensão de Israel como povo eleito, a missionária da Espanha do século XVI, a revolucionária da França em fins do X V III e começos do XIX . Estes dois sentidos são diversos, mas não separáveis; porque como o indivíduo só se pode projetar concretamente, ao projetarse individualmente o faz como membro de sua unidade social respectiva, e, por conseguinte, em função da pretensão coletiva no segundo sentido, qualquer que seja a posição pessoal que tome frente a ela, julguea bôa ou não, a apoie ou a combata, identifiquese com ela ou a considere uma loucura. O espanhol de 1580 podia muito bem não sentir a menor vocação missionária ou evangelizadora, podia ser luterano, talvez incrédulo, porém só podia imaginar e realizar sua pretensão individual como espanhol, portanto, em vista de um esquema que incluía como elementos decisivos a evan gelização das índias e o triunfo da Contrareforma; ao conviver, tropeçava com essas vigências; frente a um estrangeiro, sabia que, desde logo, era considerado como um membro da comunidade definida por êsses traços, ao ponto de que os seus próprios só se acrescentariam como retificação a êsse perfil geral de “espanhol” que inevitàvelmente lhe seria adscrito; e assim nos demais casos. A idéia das sociedades nacionais européias constituise assim, em grande parte baseandose na imagem dos
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estranhos, que atua enérgicamente sôbre o interior; e uma das diferenças mais importantes entre as diversas sociedades é o grau em que isto suceda, o mais e o menos de presença recí proca de urnas unidades em relação a outras e, portanto, de explicitude e consciência da pretensão da coletividade como tal. Nenhuma biografía é inteligível se se prescinde desta dimensão; mas, por sua vez, é preciso considerar o modo de presença dessa pretensão nos indivíduos, o estado de sua influência sôbre êles — fôrça, autenticidade, adesão — . É evidente que a pretensão coletiva de Castela enquanto foi Castela, isto é, até a unidade nacional, foi a Reconquista — diferentemente de Ara gão, por cuja história “passou” a pretensão reconquistadora, sem nunca identificarse com ela; mas não é menos evidente que desde Fernando III — no máximo desde Afonso XI — os indivíduos sentem de modo inerte essa pretensão, sem que por isso deixem de “estar” nela; a coisa chega até os reis: basta lembrar João II. O outro ponto de vista que se deve conjugar aos anteriores é o seguinte: dada a pretensão coletiva, sensu stricto, isto é, o que pretende ser a unidade social, e independentemente da relação de cada indivíduo com ela — podemos supor, para sim plificar, que é aceita de maneira autêntica — , ainda não esta riam dadas as pretensões individuais determinadas por ela, ou seja, estatisticamente dominantes, já que não se pode aplicar de um modo homogêneo e automático a cada uma das vidas concretas. A pretensão estritamente coletiva, pois, só é transfe rível ao individual mediante uma diversificação nos “papéis”. Com outras palavras, intercalase aqui uma nova estrutura, que poderíamos chamar de participação, segundo a qual os diferentes indivíduos de uma unidade social participam na pretensão coletiva. E não somente cada indivíduo participa de maneira pessoal e diferente, como também existe em cada sociedade um esque ma de participação peculiar. Isto é, por um lado os diversos indivíduos “transladam” a seu programa próprio a pretensão comum em função de sua idade, sexo, condição social e vocação íntima; po r outro, os esquemas ou módulos segundo os quais isto se realiza não são sempre os mesmos: maior ou menor homogeneidade, grau diverso de presença mental da pretensão coletiva nos indivíduos, nível de publicidade da vida, consciência histórica. Comparese — para tom ar exemplos extremos —
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a China imperial com os Estados Unidos de hoje; ou, se se prefere, a Roma de Augusto com as Gálias de Vercingétorix. A pretensão coletiva em sentido estrito tem, pois, um modo de existência difícil de se precisar. Em primeiro lugar, como vigencia social, com a qual cada um dos indivíduos se encontra e tem que contar; isto é, como sistema de usos, pressões, valorizações, relações efetivas, atividades, etc., cujo fundamento é a dita pretensão. Até aqui, esta não é “visível”; é encontrada ao viverse, ao atuarse, em forma de impulso, resistência ou orientação; o espanhol de meados do século XVI — p ara voltar ao exemplo anterior — encontrava uma organização eclesiástica, Ordens religiosas em alto grau de atividade, a Inquisição, gastos de guerra na Europa, ida e vinda de frades às índias, estudos etnológicos americanos, dízimos, prestígio e influência dos eclesiásticos, teólogos, místicos, um estilo literário, autos sacramentais no teatro, alianças políticas e inimizade com a Inglaterra; e através de tudo isso — não diretamente — acontecia para êle o modo radical de contato com a pretensão evangelizadora e católica da Espanha. Só em segundo têrmo funciona como idéia, isto é, essa pretensão tem existência mental, à qual, neste sentido, se pode chamar programa. Então é algo de que se fala, e sua realidade tornase delineada e acentuada por uma atenção expressa; po rém, ao mesmo tempo, opinase acêrca dessa pretensão explícita e isso significa sempre debilitação; pelo menos, no sentido de que se a vê de fora, em lugar de se a viver de dentro. A “participação” toma agora um caráter mais ativo, mas em certo modo planificado, que é o de “tomar parte”, em vez do irreflexivo — e mais radical — “ser parte”. Essa maneira programática da pretensão existir pode ter diversos matizes; porque falta saber em que mentes tem existência mental e quais são os modos da mesma; desde a “consignação” em que a pretensão planificada por alguns poucos é notificada — talvez imposta — ao corpo social, até a “emprêsa” em que os indivíduos se sentem, solidàriamente, implicados e embarcados. E, evidentemente, como a pretensão coletiva é um tipo peculiarissimo de vigência complexa, tudo o que dissemos delas se pode aplicar a esta; especialmente o que se refere a seus graus e fases, e, naturalmente, a sua gênese, declínio e substituição. O decisivo, o que mais importa reter, é que a pretensão coletiva não possui simplesmente uma existência psicológica,
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mas sim estritamente social. Existe coletivamente como pre tensão, isto é, como sistema de tensões operantes e,m direção ao futuro, que põem em marcha o corpo social numa direção determinada, independentemente de que seja pensada por cabeças individuais; e mesmo o seu modo de aparecer como idéia tem caráter coletivo, não — é claro — no sentido de que a pense um inexistente Volkgeist ou espirito nacional ou do povo, mas sim no sentido de que não funciona como pensamento original de alguém determinado: tratase de um conteúdo vigente com o qual os indivíduos têm que se haver, o que quer que pensem — originalmente — sôbre êle. Enquanto não se dê esta situação, poderá haver planos, ordens, decisões, declarações, porém nada que mereça chamarse pretensão coletiva. Mas dizia antes que esta existe diversificandose. O modo de participação real nela é sua fragmentação e articulação em projetos vitais individuais, mediante os quais cada homem assume um “papel” na emprêsa comum. Não é preciso dizer que entre êstes papéis constam o de objetante, o de crítico, o de adversário — a intolerância em relação a êstes é o sintoma mais inequívoco de inautenticidade da emprêsa, de falta de fé na mesma —•. A emprêsa ou pretensão distende tôdas as formas do corpo social, nelas se verte e as enche, e só assim se concretiza, se diversifica e se realiza; é a isto que denomino as versões individuais da pretensão coletiva. Estas podem ser mais ou menos esquemáticas; se podem ajustar a uns poucos tipos rígidos ou admitir grande riqueza e variedade. Em todo caso, o interessante é que se opera uma “passagem a outro gênero”: da “vida” coletiva à vida individual; nela, ao mesmo tempo, se realiza e se expressa a pretensão coletiva em que definitivamente consiste isso que temos chamado uma estrutura social.
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As “novelas” em que se expressa a pretensão comum
A trajetória da vida humana se projeta, antecipandoa imaginativamente, e só assim é possível realizála. Fazse esta projeção, evidentemente, com os materiais que se encontram na circunstância; porém não só com os materiais no sentido de coisas, recursos ou ingredientes, mas sim muito especialmente em relação a certos esquemas. O verbo “viver” tem em cada sociedade um sentido, que cada indivíduo recebe, que lhe é “injetado” pelo contômo social. Quaisquer que sejam as modu-
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lações que cada homem ou mulher imponha a êsses esquemas, as trajetórias vitais se ajustam, quase sem exceção, a certas pautas de origem social e, portanto, histórica. Poucas vêzes a vida humana nos é accessível em sua realidade com sua figura completa; só o ancião pode contemplar, íntegras, outras vidas efetivas, ao mesmo tempo que a sua se vai consumindo — daí a importância dos anciãos e de todos os “senados” ijas sociedades primitivas e nas que, sem o serem, não estão muito intelectualizadas — ; o modo de presença da vida como totalidade é, pois, a ficção imaginativa cum fundamento in re <3). Neste sentido, todo homem é novelista de si mesmo, original ou plagiário, como costuma dizer Ortega; a vida é “faina poética”. Mas estas novelas que os homens têm que imaginar individualmente, cada um a sua, partem de certos pressupostos dados; assim como o escritor se acha entre alguns gêneros literários possíveis, que normalmente tem que seguir — ou então inovar em relação a êles, o que consiste outro modo de os ter em conta — , o homem, em cada caso, aloja a trajetória de sua vida num certo “gênero literário” vigente na sociedade a que pertence. Em princípio, a “novela” que configura cada vida individual já está dada, antes de que se imagine seu conteúdo concreto, seu argumento e, portanto, a realidade precisa de seu personagem — o homem que vai vivêla — . Falo de “novela” porque me refiro especialmente à época moderna, e sobretudo ao século X IX ; tomada a coisa em tôda a sua amplitude, deverseia falar de “histórias” ou “relatos” em geral. Porém o que importa sublinhar é o fato de que a relação entre a pretensão real dos homens e a ficção imaginativa é íntima e bilateral: os relatos se fundam em um a certa apreensão da vida humana, na idéia que o verbo “viver” possui na sociedade em questão; e, por outro lado, a vida se projeta guiandose pelas suas figuras imaginárias — apólogos, fábulas, mitos, parábolas, enxemplos, histórias, dramas, novelas — , que têm sido um dos motores mais formidáveis de realização e ampliação da vida humana, e o instrumento mais poderoso de paideia que o homem jamais conheceu. (3) Veja-se La imagen de Ia vida humana e também “La novel como método de conocimiento” (em La Escuela de Madrid).
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Por isso os “tipos” de vidas têm um ar de familia em cada unidade social: há vidas primitivas, gregas, romanas, cristas medievais, árabes do .mesmo tempo; européias românticas, norteamericanas de meados do século XX, definidas todas, previamente a sua realidade concreta e a sua biografia precisa, por um modêlo ao qual todas, mais ou menos, se ajustam. A vocação pessoal em tôdas as ordens — profissional, econômica, amorosa, prazerosa, de convivência —, partindo de um impulso íntimo muito vago, se vai tornando explícita, se vai realizando — primeiro imaginativamente, como vocação concreta, logo de pois de fato — em vista de certos modelos presentes, de uma certa linguagem, de um sistema de valorizações, da idéia dominante do que pode ser uma trajetória vital ou “carreira” bem sucedida. Quando se fala de um curriculum vitae, devese ter em conta, antes que seus conteúdos efetivos, os designios ou as metas que nele se distingue; isto é, o que em cada sociedade se' considera relevante e, portanto, digno de ser alcançado e de constar no curriculum. Quando se traça em poucas linhas a biografia de uma pessoa, o que se considera? Entre os inúmeros “dados” que integram uma trajetória vital selecionase uns tantos, diversos segundo as circunstâncias, precisamente por serem os que articulam uma “novela” do tipo das dominantes no momento; e, vistas as coisas a priori e previamente a sua! realização, o indivíduo se esforça por fazer e para que lhe ocorram certas coisas que darão realidade a sua “novela” pessoal, a uma figura de vida bem sucedida, harmoniosa ou galharda. Comparese a relação com o amor na biografia de um grego do século IV antes de Cristo e na de um europeu de 1830; a necessidade de executar atos de valentia pessoal é perentória para o nobre de 1550 ou para o romântico; porém não tanto em 1770, menos ainda na Inglaterra vitoriana; os motivos não econômicos — novelescos, imaginativos, líricos — para enriquecer, quase sempre esquecidos de um modo incrível, são muito débeis em 1600 na Espanha, extremamente enérgicos na Alemanha ou na Inglaterra ou nos Estados Unidos entre 1850 e 1900. E se se pensa na diferença enorme de pretensão que existe entre “ser rico” e “enriquecer”? Pode o ser de tal ordem que, enquanto em certas sociedades é extremamente apetecível uma das duas coisas, em outras é mal vista e é a outra que se almeja. A investigação de um estrutura social deve deixar claro quais são os característicos das “novelas” em que se prefigura,
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expressa e depura a pretensão comum. Para isso é necessário ter em conta uma série de aspectos sumamente precisos: 1) o núm ero de “esquemas” genéricos ou tipos de “novela”; enquanto em certas sociedades há um repertório amplíssimo de módulos biográficos, em outras a escolha se limita a duas, três ou quatro possibilidades. 2) a maior ou menor permanência da adscrição a um esquem a escolhido; isto é, a possibilidade de mudar, alterar ou retificar a trajetória vital, de preferir um novo “personagem” não é sempre a mesma; às vêzes as pressões sociais são tão fortes, que o indivíduo mal pode contar, pràtica mente, com a eventualidade de uma retificação substancial; cutras vêzes é perfeitamente normal que um homem inicie dois ou três caminhos divergentes, que esboce uma série de figuras inconclusas — como o gênero literário ao qual os românticos gostavam de chamar “fragmento”, e que é revelador — . 3) O grau de minúcia dos modelos ou pautas; as “novelas” podem ser relatos muito suscintos ou narrações prolixas e circunstanciadas; isto é, oscilam entre marcar uns tantos pontos, entre os quais desenhase imprecisa a trajetória, ou determinar por menorisadamente a linha inteira da biografia. 4) A maior ou menor inclusão da exigência de “originalidade” nesses esquemas genéricos: pode ser norm a imposta e, portanto, regularidade estatística que cada indivíduo pretenda ser “único”, ainda que todos coincidam monotonam ente nessa pretensão; mas pode se dar também que o pressuposto tácito dessas novelas consista em que cada um é “como todo o mundo”, embora logo isso se mostre impossível e que o indivíduo se esforce em vão e originalmente em não ser apenas o que os demais o são. 5) O grau de autenticidade dessas novelas; e isto em vários sentidos: a) essas pautas podem ser criação original de uma sociedade determinada ou então podem vir de uma fase anterior e con servarem sua vigência, com intensidade variável; b) podem ser, de outro ponto de vista, de origem interna à sociedade de que se trata ou, pelo contrário, tomadas de empréstimo de uma sociedade estranha — por exemplo, a França no século XVII começa a “exportar” modelos de trajetórias vitais, que no século X V III alcançam vigência em quase tôda a Europa; do mesmo modo que antes havia sucedido em relação à Espanha, depois à Inglaterra e talvez hoje comece a se esboçar em relação aos Estados Unidos, se bem que com menos generalidade nestes últimos casos — ; c) essas novelas podem ser imediatas
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e expressadas em linguagem espontânea, ou então aparecer como formas “retóricas”, tomadas de uma forma de vida alheia e remota: pensese na gravitação de gregos e romanos sôbre as formas da vida européia no Renascimento e no tempo da Revolução Francêsa, no impacto bíblico sôbre os puritanos ingleses do século XVII e, portanto, sôbre uma parte da sociedade norteamericana; d) po r último, o coeficiente variável de autenticidade com que cada indivíduo vive, em uma sociedade, as vigências coletivas e, por conseguinte, o repertório de “novelas” ou trajetórias biográficas. É preciso fazer constar que isto é excessivamente esquemático. Para que adquira concretude suficiente e seja metodicamente eficaz, devese acrescentar outros pontos de vista. O primeiro se refere às idades: embora em princípio tôda trajetória vital compreende tôdas as idades da vida, de fato raramente assim se com porta uma pauta biográfica genérica; o que poderíamos chamar o “argumento” da vida, o núcleo em tôrno ao qual se ordena a trajetória e que “justifica” seus conteúdos, está adscrito a certa idade determinada; há trajetórias “juvenis”, as há “ senatoriais”, por vêzes — se bem com matiz socialmente patológico — “senis” ; tudo isso introduz um peculiar articulação qualitativa no tempo vital; pode haver longos anos de pre paração para chegar a ser “alguém”, enquanto que em outros casos a vida esgota muito depressa seu argumento, a continuação não está prevista, não se a imaginou, e não há outras soluções a não ser a morte prematura ou um longo declínio passivo. O segundo ponto de vista concerne ao sexo. Até agora falamos de “pessoas” sem mais, não de homens e mulheres. Não resta dúvida que as trajetórias têm um núcleo idêntico; porém, precisamente enquanto são imaginadas, enquanto “novelas” de personagens concretos, envolvem uma distinção de sexo; pois bem, os diversos aspectos que antes indiquei não se aplicam igualmente a um e outro. Lem brese de que há poucos anos o número de esquemas femininos era reduzidíssimo, e do mesmo modo eram sumamente limitadas as possibilidades de mudança de trajetória; e isto por duas razões: a maior pressão social sôbre a mulher, e a escassez do tempo “ativo” e com iniciativa de que dispunha, o qual se esgotava na primeira figura pretendida; em compensação, provàvelmente a mulher tem tido durante muitos séculos uma margem de originalidade
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maior em certos estratos profundos, porque muitos gestos íntimos não eram considerados “relevantes” e, portanto, não esta vam prescritos. Em relação à autenticidade, as “novelas” que denominei retóricas tiveram, sem dúvida, menos influência sôbre as mulheres; porém, a tiveram enorme as tradicionais, isto é, as procedentes de gerações anteriores. E pelo que se refere ao tempo, as “novelas” de personagem feminino costumaram estar articuladas a um esquema muito simples: predomínio juvenil, com uma fase muito rápida centrada em torno ao tema do amor; e estabilização brusca em uma forma de vida definida pela falta de argumento. O fato literário de que uma imensa porcentagem das obras de ficção terminem em casamento não faz senão assinalar esta situação real, e ao mesmo tempo contribuir para produzila; e dêste duplo ponto de vista deve ser interpretada a crise atual dêsse caráter da literatura de ficção, o caráter' de “tópico” que lhe sobreveio e a iniciação de formas novas; isto ê, a necessidade — na “novela” e na vida efetiva — de prolongar os argumentos. Falta ainda acrescentar mais uma palavra, a que se refere ao desenlace. Qual é a “expectativa” normal nas “novelas” de cada país e de cada época? Como devem acabar? Desde a tragédia até o happy end há um longo percurso. Mas, embora suposto o happy end, quando se acha que um final é efetivamente feliz? E até que ponto está excluída a felicidade do final trágico? Podemos ver que nada do humano é em última instância inteligível, se não o referimos a êsse tema que sc chama felicidade.
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Prazer, diversão e felicidade
Poucas coisas são tão difíceis de descobrir como a pretensão vital. As razões são muitas: seu caráter irreal e imaginativo, que sempre se altera e muda ao realizarse; a dificuldade de formulação, por sua contextura programática e total; sua complexidade, por constar de inúmeros elementos em uma conexão que é decisiva mas que pouco se revela; seu modo de ser “vago”, do ponto de vista racional e lógico, ao lado de seu rigor extremo e precisão em têrmos vitais; sua intimidade, e, portanto, o pudor nas alusões a ela; a insinceridade freqüente — sobretudo em algumas épocas — , em virtude da qual os
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homens mascaram, inclusive para si mesmos, suas autênticas apetências, inclinações e esperanças. Por isso a novela — em geral a ficção — é um instrumento precioso de investigação, com a condição de esclarecer primeiro as relações entre a literatura e a vida efetiva dentro de cada Sociedade. Isto é, em bora a ficção sempre oriente sôbre quais são as pretensões reais, nem sempre o faz in modo recto, mas sim com maior freqüência devese tomála in modo obliquo e prévia determinação ou mensuração do ângulo dessa obliquidade — gigantesco tem a da ciência literária, sôbre o qual, infelizmente, ainda falta qualquer esclarecimento — . Os prazeres oferecem um pista importante. Ao dedicarse a uma atividade prazerosa, o homem põe a descoberto — inclusive se põe a decoberto, e às vêzes com surpresa — sua efetiva pretensão. Dirseá — e com razão — que também em relação aos prazeres o homem é insincero; que às vêzes procura ocupações que na realidade não o interessam; mas, se bem se vê, se descobre que aquela ocupação a que se dedica não lhe produz o prazer que oficialmente nela procura, mas sim outro. Seria, por exemplo, uma ingenuidade crer que a enorme pro pensão pela ópera no século X IX significava desde logo fruição musical; seria, porém, um êrro desqualificar em vista disto a propensão pela ópera e supor que não era uma fonte de prazer; o era, e muito grande, embora não fôsse apenas nem sequer principalmente musical; por isso devese tomar os prazeres em concreto, na forma precisa em que funcionam. Os prazeres da mesa significam o mesmo em um convivium da Roma imperial e num pequeno restaurante de Bilbao ou Pamplona? O prazer da bebida é equivalente no inglês solitário que bebe whisky em sua casa, de sábado para domingo, na cervejaria bávara ou entre as hastes de camomila de uma taberna sevilhana? E se dêstes prazeres elementares se passar para outros mais com plexos ou mais ligados com a biografia, as diferenças são ainda maiores. As diversões normais em uma sociedade, nela vigentes, são reveladoras; porém sempre com a condição de não as tomar pelo seu “valor facial” ou nominal. Isto é, depois de inquerir se a situação das diversões nessa unidade social é “sã”, e isto em vários sentidos: de que as diversões realmente apetecidas sejam permitidas — ou de que a sociedade tenha suficiente vitalidade e iniciativa para proporcionálas — ; de que não tenham
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demasiada fôrça as inhibições que impeçam os homens de se divertirem, ou pelo menos desviem da diversão realmente dese jada para outra simplesmente substitutiva; de que, pelo contrário, não exista uma convenção de diversão excessiva, capaz de simular um excesso de frivolidade ou até de libertinagem; sobretudo, de que não haja crise de imaginação prazerosa ou atrofia dos desejos; isto é, que a diversão tenha o papel que realmente lhe corresponde na economia vital. E isto nos leva a um a questão delicada. Qual é êsse papel? Que lugar ocupam o prazer e a diversão — que não coincidem exatamente — na vida de cada sociedade, de cada classe, de cada grupo? Qual é o nível de exigência, isto é, aquele abaixo do qual o indivíduo se sente em situação deficiente? Norm almente, qual a freqüência da atividade prazerosa? Tradicionalmente distinguiuse as pessoas que levam uma vida “de pra zeres” — do bíos apolaustikós de Aristóteles em diante — e as demais; enquanto prazer e diversão apareciam como o patrimônio de alguns estratos sociais, sobretudo das aristocracias, e muito especialmente da idade juvenil, sua presença na vida dos demais era excepcional, infreqüente, reduzida a certas festas; porém, ao tomarse mais freqüente, o programa prazeroso não terá perdido em intensidade? A expectativa da diversão, seu caráter insólito, carregavaa de energias concentradas, que a diversão quotidiana exclui em absoluto. Não é o mesmo receber c prazer em “doses maciças”, como dizem os médicos, e em pequenas doses diárias, quase mesclado ao trabalho e às ocupações habituais. A decadência do carnaval, por exemplo, é bem significativa. Não se entende qual é a pretensão vigente em uma sociedade, e portanto qual é sua estrutura, se não se esclarece a questão da exigência do prazer, sua dosificação e suas formas. Mas como o prazer, a diversão e, em geral, o que Ortega chama “ocupações felicitárias” afetam a estratos muito diversos da vida, é preciso investigar, em relação a cada sociedade, a localização dessas ocupações e sua direção. O fato de que uma unidade social se distraia particularmente com a caça ou com a tertúlia, com o galanteio ou com as glutonerias, com o esporte ou com os jogos de cartas, verte uma súbita luz sôbre quem é o homem dessa sociedade, isto é, sôbre quem pretende ser.
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E devese acrescentar ainda um ponto de vista que me par p aree ce decis de cisiv ivo: o: aqu aq u êle êl e q ue se refe re fere re ao q ue p o d ería er íam m os cham ar o “direito” ao prazer. A cois coisaa é bastante bastan te comple complexa. xa. Em prip rimeiro lugar, os prazeres e diversões estão muitas vêzes afetados p or um coeficient coeficientee de “ilicitude” “ilicitude” ; o ponto de partid pa rtidaa é que há prazeres evidentemente ilí ilícit citos; os; daí se passa pas sa aos casos duvidosos, em que o rigorismo vê imoralidade mais ou menos mascarada; mas carada; em conexão com isso, isso, a consciênci consciênciaa de “periculo sidade” das atividades prazerosas, inclusive inocentes, as rodeia de um halo de desconfiança e suspeição; suspeição; o fato de que os os pra p razz ere er e s cust cu stem em d in inhh eiro ei ro e adem ad emai aiss tem te m p o , de q u e s u p o n h am u m a pe p e r d a eco ec o n ô m ica ic a e s u b tra tr a iam ia m h o ras ra s do tra tr a b a lh lhoo , n as soci so cied edad ades es inspiradas por uma elevada estima da riqueza e da laboriosidade, dá um matiz “pecaminoso” a tôda forma de diversão; diversão; é bem conhecida a animosidade de muitos moralistas contra todo espetáculo e principalmente contra a literatura de ficção, considerada, pelo menos, como uma maneira de perder o tempo (4). É conhecida a pilhéria que se repete nos Estados Unidos: “Tudo o que é agradável, é imoral, ilegal ilegal,, ou engord eng orda.” a.” Porém, se é bem certo que êste ambiente de “illicitude” dificulta o pr p r a z e r e as di dive vers rsõe ões, s, n ã o se p o d e d esco es conn h ecer ec er q ue tam ta m b ém os estimula e lh lhes es dá um incentivo peculiar. E logo que a diversão diversão aparece como permitida, normal e sem problemas, começa a pe p e rde rd e r atra at ratitivv o e fôrç fô rça, a, embo em bota tas se, e, d imin im inuu i seu se u imp im p acto ac to sôbr sô bree a sensibilidade, é menos desejada, portanto corresponde muito menos ao perfil de uma um a pretensão vital. vital. É antes recebida ou ou usada passivamente, como algo que está aí, no que intervém muito pouco a imaginação e a faculdade de apetecer do indivíduo. Quando esta situação está suficientemente estabelecida, se pro p rodd u z u m a curi cu rioo s a in inve vers rsãã o d a p rim ri m e ira ir a : d a n egaç eg ação ão d a “ íici tude” do prazer se passa à reinvidicação positiva do direito ao pra p razz e r e às di dive vers rsõe ões. s. O h o m em d e noss no ssoo tem te m p o , p o r exem ex empl plo, o, que freqüenta pouco os espetáculos esportivos, as touradas, o cinema, o bar, sentese privado disso. disso. Se sua condição econôecon ômica, a falta de tempo, tempo , ou o u as formas forma s de vida vid a ■— distribuição distribu ição das horas do dia, residência afastada dos centros urbanos, etc. — lh lhee impe im pede dem m o acess ac essoo fre fr e q ü e n te aos ao s p raze ra zere ress — q u e ro d izer iz er aos prazeres oficialmente reconhecidos como tais — , sua reação reação (4 ) Em meu meu livro livro La imagen de la vida humana mostrei que, pre cisamente, com a ficção há um ganho de tempo condensado e acumulado.
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vital é o descontentamento, e isto na forma precisa de consider a r l e injustamente tratado, isto é, lesado em um direito. Ao fazer tácitamente um balanço vital, o homem de uma sociedade determinada traça uma linha e obtém um resultado. Qual é êste? êste? H á épocas satisfeit satisfeitas, as, épocas descontentes, descon tentes, épocas irritadas, épocas aborrecidas. Éste balanço vital não se justifica — salvo salvo casos extremos — pelos “dado “d ados” s” objetivos objetivos acêrca de como transcorre transc orre a vida p ara ar a êste êstess homens; é preciso articular êstes êstes d ados com a pretensão de cada um e, sobretudo, com a pretensão coletiva, com o que é vigente como pretensão dentro de cada sociedade. Somente isto dá um valor va lor real e efetivo efetivo às condições materiais dominantes. O homem é, segundo segundo o país e a época em em que vive, mais ou menos feliz, e com uma forma concreta de felicidade felicidade ou infelicidade infelicidade — e, deverseia deverseia acrescentar ainda, com graus diferentes diferentes de consciência consciência e “reconhecimen “reconhec imento” to” disso — . Na N a tu tura ralm lm ente en te,, a felic fe licid idad adee é assu as sunt ntoo e s trit tr itaa m ente en te pess pe ssoa oall e q ue depende da biografia intransfer intransferível ível de cada cad a um; um; mas a “proba “pro ba- bil b ilid idaa d e ” e p o rta rt a n to a n o rm a lid li d ade ad e o u freq fr eqüü ênc ên c ia d a felic fe licid idad adee e as formas de sua realização, dependem das estruturas sociais; e, inversamente, o que poderíamos chamar a “felicidade média” é um ingrediente decisivo de cada estrutura social.
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A noção noçã o de “felicidade “felicidade média” em uma uma época.
A felicidade está condicionada pela realização de nossa pre p rete tenn s ão p esso es soal al;; e s ta é sem se m pre pr e irre ir real aliz izáv ávee l, pelo pe lo m eno en o s n a medida em que a escolha em que nossa vida consiste implica, a cada momento, a preferência de uma possibilidade e a conseqüente preterição de outras que também são apetecíveis, cuja renúncia é dolorosa. O homem é ,ao mesmo tempo, o que necessita ser feliz e o que, desde logo, não o pode ser neste mundo. Poderseia defini definirr formalmente a vida hum ana pel peloo descontentamento, cam a condição de tomar a palavra a sério, isto é, é, sem sem ficar somente com a negação: à vida hum hu m ana perpe rtence o contentamento, ela se move em seu âmbito ou “elemento”, mas em forma sempre deficiente. Cam outras palavras, ela é, desde logo, infeliz, porém isto significa que seu modo de
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ser é a felicidade, a qual funciona como ingrediente decisivo de cada vida individual e de tôda forma de vida (5) Em poucos assuntos, porém, é tão difícil e perigosa como neste, a transição da vida individual à coletiva, sobretudo porque não é suficiente executála uma só vez e em um único sentido; há um movimento de ida e volta particularmente dificultoso e pass pa ssív ível el d e êrro êr ro.. Q u a n d o se fala fa la d e “ u m p ovo ov o feliz fe liz”” , d e u m a época feliz ou desventurada, quando se sentencia que “os povos felize felizess não têm história” histór ia”,, o que isto signif significa ica?? Talvez se reare alize a assimilação da história de uma socedade a uma biografia individual, se compare o relato das vicissitudes pelas quais passa um povo como unidade de convivência com a trajetória da vida de um homem singular. M as isto isto leva a duas questões espinhosas: sas: em primeiro lugar, falta o “quem” “que m” da vida colet coletiva; iva; enen quanto que no caso do indivíduo a coisa é clara e unívoca, aqui o mais problemático é saber de quem se predica a felicidade ou a desdita; em segundo lugar, a noção noç ão de felicidade tem tem sido referida comumente à vida inteira; entre os gregos chegou a ser obsessiva a convicção de que enquanto o homem vive não pod po d e d izer iz er se é feliz fe liz ou n ã o , p o r q u e a f o r tu tunn a p o d e sem se m pre pr e mudar com um revés inesperado (a idéia de salvação introduz um ponto de vista análogo, ainda que mais vigorosamente, em bo b o r a com co m di dife fere renç nças as esse es senc ncia iais is q ue aqu aq u i n ã o cab ca b e m enci en cioo n a r); r) ; ora, enquanto que a trajetória vital do indivíduo conclui na morte, a vida de uma sociedade não tem têrmo assinalado, e em princípio pode prolongarse indefinidamente; indefinidamente; tom ase, ase , pois pois,, necessária uma articulação das etapas históricas, para cada uma das quais tem que se supor um caráter analógicamente “biográfico”, cujo fundamento é, como acabamos de ver, mais que duvidoso. O outro ponto de vista possível considera a felicidade dos indivíduos indivíduos como como tais. tais. N aturalm ente, não se trata tra ta da felicidade felicidade d e cada um, o que levaria a um casuismo que não teria lugar aqui, e sim de uma freqüência que não é meramente estatística mas estrutural. estrutural. E m certa ocasião falei falei do “alvéolo “alvéolo material” mate rial” da vida humana, no qual se aloja a possível felicidade ou infeli(5 ) Sôbre o problema da felicidade felicidad e individual, individual, veja-se meu estudo “La felicidad felic idad humana: mundo y paraíso”, pa raíso”, em Ensayos Ensa yos de teoria (iObras, IV) .
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cidade pessoal. A s estruturas estruturas sociais sociais determinam determ inam parcialmente a possibilidade, as formas e os conteúdos concretos das trajetórias felizes das vidas individuais. À prim eira vista, a coisa é simples simples:: se a felicidade conco nsiste na realização da pretensão vital, a relação entre felicidade e estrutura social será definida pela facilidade que esta ofereça pa p a r a aqu aq u e la real re aliz izaç ação ão,, e p o r con co n segu se guin inte te p ela el a “pro “p robb a b ilid il idaa d e ” de que se cumpra. cum pra. A situação efetiva efetiva é, porém, mais complicada: essa consideração cons ideração é puram pu ramente ente formal form al e abstrata, abs trata, vist vistoo que coloca a questão em têrmos de simples realização de uma pre p rete tenn s ão qualquer; e podese perguntar: 1) Tôdas as pretensões são equivalentes equivalen tes do ponto po nto de vista da felicidade? felicidade? 2) Em que medida a estrutura social intervém na realidade de umas e outras pretensões, e na realização concreta das mesmas? Além da aproximação com que de fato se realizem, os programas vitais têm diferente conteúdo, estrutura e argumento, que não são inoperantes inoperan tes do do ponto pon to de vista da felici felicidade. dade. Não Nã o se pense sequer no grau de riqueza e variedade dos recursos vitais vitais com os quais se se imagina o program prog rama; a; há alg lgoo m ais pro pr o fundo e prévio: o que a pretensão vital tem tem de pretensão de felicidade. Isto é, tôda vida humana se inicia com uma certa expectativa em relação a si mesma, com uma avaliação prévia do que pode “dar “d ar de si”; e isto isto é, é, em princípio, anterior an terior às diversidades individuais, e procede de uma sensação geral diante da vida, coletiva, portanto compartilhada inicialmente pelo pe loss in indi diví vídu duos os e com co m a q u al êstes ês tes se e n c o n tra tr a m — com co m a reserva, é claro, de reagir de maneira mane ira pessoal frente a ela — . Poucas coisas há que caracterizem mais profundamente uma sociedade ou uma época do que esta expectativa frente ao que a vida traz. Ex Exorb orbitand itandoo a questão para, exagerando exagerand o os os seus seus têrmos, esclerecêla, poderíamos dizer que o animal não é infeliz po p o rqu rq u e sua su a e x p e c tati ta tivv a é m ín ínim ima, a, e n q u a n to hom ho m em é in intr trín ínss ecamente descontente porque não se contenta com menos do que ser fel feliz. iz. Com parese o cachorro com a criança: criança: o primeiro, desde que as condições necessárias para sua vida se cumpram — tem te m p e r a tu tura ra,, alim al imen ento to,, etc. et c. — , s alta al ta satis sa tisfe feito ito;; a cria cr iann ça, ça , com incrível freqüência e mesmo em plenà saúde, se aflige e chora; a razão decisiva é que se aborrece, isto é, o desnível entre sua pretensão imaginativa — desde os primeiros mêses de sua vida — e os recursos de que dispõe — começando pelo uso do corpo e da circunstância imediata — é desde logo muito grande.
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A criança deitada no berço, de barriga para cima, muito de pre p ress sa esg es g ot otaa as poss po ssib ibili ilidd ade ad e s q u e sua su a situ si tuaç ação ão lh lhee ofere of erece: ce: olhar olh ar o teto, espernear, chupar chu par os dedos; dedos; uma um a vez “visto” tudo tudo isso, sente que já não dá mais de si, que não pode repertirse indefinidamen indefinidamente; te; o program prog ramaa continua continu a dilatandose imaginativamente, e ao falhar a possibilidade de continuação, sobrevêm a prim eira form a de infelici infelicidade: dade: o aborrecimento. aborrecim ento. A necessinecessidade de companhia que a criança sente tão violentamente não é tanto quanto se pensa necessidade de segurança e amparo, mêdo da solidão, solidão, etc.; é, sobretudo, sobre tudo, aborrecim ento, desejo desejo de anexar a si própria as potências imaginativas e físicas do adulto pa p a r a , com co m elas, ela s, dese de senn volv vo lver er a p rete re tenn s ão g erm er m in inal al.. E m b o r a se pen pe n se o c o n trá tr á rio ri o , os adu ad u lto lt o s são sã o as “co “c o lô lônn ias” ia s” d a cria cr iann ç a peq p equu ena. en a. Este exemplo mostra, numa forma extrema, o que quero dizer. dizer. A pretensão de felici felicidade dade de que se se parte pode ser mínima — e, portanto po rtanto,, m uito fácil de se satisf satisfazer azer — ou altíssi altíssima ma e improvável; improv ável; entre os dois dois extremos colocamse todos os graus e múltiplas formas concretas. concretas. H á sociedades sociedades aborrecidas, sociedades resignadas, sociedades moderadas, sociedades exaltadas, socieda sociedades des delirantes. delirantes. Como Com o se pode pod e determinar determ inar o que denominei “felicidade média”? Devese ter em conta a “pretensão” média mé dia ou a “realização” m édia dessa dessa pretensão? pretens ão? Evidentemente, Evidentemen te, ambas am bas as as coisas coisas em sua articulação concreta. Porqu Po rquee a prepr etensão já coloca a felicidade a um nível determinado, de maneira que mesmo seu seu fracasso — a “infelicidade” “infelicidade” — signi signifi fica ca já cert ce rtoo g rau ra u de feli fe lici cidd ade ad e p o sitiv si tiva; a; e, in invv ersa er sam m e n te, te , o cum cu m p riri mento de uma pretensão excessivamente pobre, modesta, estreita, mesmo quando vivido pelo sujeito como “felicidade”, representa uma forma deficiente da mesma. Isto nos leva à conclusão de que nosso juízo sôbre a felicidade de uma sociedade alheia à nossa não coincide com o que os indivíduos dessa sociedade tiveram ou têm sôbre si mesmos. Talvez nos pareçam pareça m dignos dignos de comp compaixão aixão homens sum amente satisfeitos com seu destino, e precisamente por se contentarem com êle, êle, pois nos parece isso isso a maior m aior infelicidade; infelicidade; ou, pelo pe lo con co n trá tr á rio ri o , sent se ntim imos os in invv eja ej a ante an te a fig fi g u ra d e v id idas as q u e se julg ju lgar araa m irre ir rem m e d iàv ià v elm el m ente en te desg de sgra raça çadd as. as . M as deve de ves see d isti is tinn guir, em segundo lugar, entre o que os homens “julgam” acêrca de sua felicidade felicidade e o que “sentem” dela: dela: quando quan do em uma sociedade domina a idéia de que a vida é dor e desventura, ninguém
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concordará que é feliz; porém talvez se sinta, por trás disso, de posse de uma intensa e saborosa felicidade que não conhecem sociedades nas quais se decreta que a ventura existe sôbre a terra e está ao alcance de todos. A estrutura social inclui entre seus ingredientes isso que chamo expectativa ou pretensão específica de felicidade; determina, pois, o “nivel” em que se vai formular a questão, e com isso o grau de tensão nessa ordem das vidas individuais. Por outro lado, essa mesma estrutura torna possível em uma ou outra medida o acesso efetivo a essa felicidade, ou seja a realização da pretensão vital concreta. E antes de tudo em um aspecto decisivo: a possibilidade de tentálo. Talvez um a sociedade proteja seus indivíduos com uma grossa carapaça de dispositivos sociais que lhes dão segurança, enquanto outra os deixe à intempérie, indefesos e abandonados. Se no primeiro caso a vida envolve um mínimo de riscos, no segundo está exposta a tôdas as adversidades. Mas a contrapartida é que naquele as possibilidades de procurar a felicidade, sobretudo de inventála e tratar de a realizar, são muito reduzidas, e neste talvez o homem sintase livre para tentar ser feliz, por sua conta e risco. Quando se fala de “felicidade média” de uma época ou sociedade, não se pense em estatísticas: a felicidade é assunto demasiado complexo e sutil para as tolerar. Tratase mais do nível médio em que o homem coloca sua pretensão de felicidade, e da normalidade — e portanto freqüência — com que essa pretensão possa realizarse decentemente. Mas aqui tom a a surgir, e mais enérgicamente que antes, a estrutura social como tal: porque o decisivo é a margem de folga e franquia com que tal emprêsa possa ser acometida. É necessário que se pergunte, pois, pelas possibilidades que cada sociedade oferece, e isto desenha ao fundo o perfil dessa realidade, que vem se denunciando vagamente em muitas formas, e que se chama o Poder.
VI O PODER E AS POSSIBILIDADES 41.
Sociedade e Estado
O estudo de uma estrutura social compreende naturalmente a determinação dos característicos do Estado; não é possível entender a estrutura social de um cidade grega, de um império oriental, de um reino medieval, de uma nação moderna, sem que se tom e clara a índole dos Estados correspondentes. Mas, para o que aqui interessa, uma consideração direta e exclusiva dos Estados não é suficiente; ainda mais, pode levar a érro, po rque um “mesmo” Estado, isto é, uma estrutura política idéntica, pode afetar sociedades diversas muito diferentemente, ou a uma mesma em vários momentos de sua historia. A independência dos países hispanoamericanos, por exemplo, conduziu ao estabelecimento de Estados muito semelhantes; como, apesar de certas semelhanças muito profundas, as diferenças entre a Argentina e o México, o Uruguai e o Perú, são consideráveis, o “mesmo” Estado intervém de várias formas na constituição das res pectivas estruturas sociais. Outro tanto poderseia dizer dos Estados nacionais europeus depois das guerras napoleónicas, e ainda muito mais do que hoje se chama genéricamente “Estados democráticos”, desde a Suécia até a Birmânia, desde os Estados Unidos até a Finlândia, desde a India até a Alemanha ocidental. Confusão análoga seria passar por alto a transformação que, sob a mesma figura de Estado, tem lugar em urna determinada sociedade; por exemplo, na Espanha de Carlos V a Carlos II, na Inglaterra de Vitoria a Isabel II, não digamos nos Estados Unidos, onde persiste o mesmo sistema político e a mesma Constituição desde a Independência até hoje.
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O que interessa, do nosso ponto de vista, é a relação entre a sociedade e o Estado. É isto que, a rigor, constitui uma determinação decisiva da estrutura social. Mas não convém simplificar demais as coisas, embora uma primeira consideração dos fatos possa levar nessa direção. Refirome ao fato de que, ao lançarmos os olhos sôbre a história pretérita a partir de nosso ponto de vista atual, temos sempre a impressão de que o Estado era bem pouca coisa. A reação ante essa evidência é pensar que o Estado tem se desenvolvido com ritmo acelerado nos últimos tempos; que vai sendo cada vez mais; e, por último, que êsse crescimento se efetuou a expensas da sociedade, a qual, progressivamente, vai sendo invadida, dominada, às vêzes suplantada, em ocasiões absorvida e anulada pelo Estado. Sem dúvida, tudo isso é, em bôa medida, certo. Mas não é exato, porque as determinações “quantitativas” costumam ser bastante indeterminadas. Com efeito, é evidente que até o século X IX o Estado era extremamente restrito; suas atribuições eram mínimas; seus instrumentos, elementares e escassos; só um processo de desenvolvimento técnico e administrativo permitiu o intervencionismo crescente do Estado, até chegar a essas formas de hipertrofia que se costuma chamar, com têrmo muito vago mas de algum modo acertado, totalitarismo. Porém, depois de afirmar tudo isso que é indubitàvelmente verdadeiro, percebemos que, no entanto, o Estado do antigo regime — Isabel I da Inglaterra, Felipe II da Espanha, Luís XIV da França, José II da Áustria, Frederico o Grande da Prússia — era uma realidade enérgica e forte, a tal ponto que mal se podia imaginar a resistência frente a êle; resistência que, pelo contrário, com eça a ser freqüente e mesmo fácil a partir de 1789, coincidindo paradoxalmente com o crescimento do Estado. Isto nos obriga a dar um passo atrás e tentar formular a questão com mais rigor. Com efeito, tratase de não tomar o Estado por si mesmo e sim em conexão com a sociedade. O Estado é um instrumento seu, em certa medida uma função sua e, ao mesmo tempo, um constitutivo da própria sociedade — pelo menos de muitas sociedades — . Quando tôda uma série de regulações correm a cargo da sociedade como tal, o Estado não tem motivo para se ocupar delas; sua “impotência” em muitos aspectos — do nosso ponto de vista atual — significa apenas que êsses aspectos não são assunto seu. O Estado exerce, pois, um controle sôbre
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a sociedade, normalmente limitado em dois sentidos: 1) estende se só ao que lhe importa (por exemplo, à religião mas não à higiene, ou viceversa); 2) utiliza as estruturas e os recursos da sociedade e não os duplica, isto é, atua através dêles (um dos sintomas mais alarmantes que revelam a anormalidade da relação sociedadeEstado é a duplicação ou multiplicação de funções e organismos). Isto significa que o Estado maneja a sociedade servindose desta, apoiandose em sua estrutura e coerência; se a sociedade é um todo compacto, coerente e sólido, a ação estatal sôbre uns tantos pontos da mesma pode mover e reger todo o corpo social. Daí a impressão — real — de fôrça que produz o tênue estado nacional europeu do antigo regime; e no momento em que a sociedade européia se sente menos una, homogênea, o Estado, embora sendo em absoluto mais forte, começa a acusar uma evidente debilidade. Poderseia interpretar isto supondo que se trata de um equilíbrio de dois poderes, a sociedade e o Estado: se a sociedade é débil, o Estado será forte; se aquela é forte e enérgica, O Estado, por grande que seja seu desenvolvimento, aparecerá sempre como subordinado a ela, débil comparativamente. Êste modo de ver a situação peca por se basear em um pressuposto sumamente discutível: a “rivalidade” ou oposição entre a sociedade e o Estado. Quando isto acontece, ocorre assim efetivamente: só um a sociedade débil e enfêrma suporta a imposição de um Estado, cuja prepotência é apenas uma das manifestações dessa enfermidade social; porém o fato de que esta situação seja freqüente em nosso tempo não nos deve levar a considerála como normal, menos ainda como constitutiva da relação sociedadeEstado (1). A “docilidade” de uma sociedade em relação a seu Estado pode significar duas coisas com pletamente diferentes: a “entrega” de um a socedade dividida, dissociada, desmoralizada, a uma fôrça coativa que nem sequer necessita ser realmente muito grande, ou então a . adequação entre uma sociedade sã e enérgica e um Estado que é só o instrumento diretor e executor, ao mesmo tempo, da pretensão autêntica dessa sociedade. (1) No estudo de Ortega Del Imperio romano encontrar-se-á uma visão extraordinariamente penetrante dêste problema.
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Se procuramos estabelecer com precisão o ponto em que o Estado do antigo regime era “forte”, percebemos que se tratava do Poder mesmo, isto é, do mando como tal. Não era admitida a menor dúvida a respeito do poder real e seus organismos; mas isto não queria dizer que o Rei tivesse grandes fôrças — po r exemplo, militares ou policiais — a seu serviço, e sim que, como a sociedade estava de acôrdo e esclarecida a respeito de que o mando pertencia ao Rei, tôda possível dis cepância estava localizada dentro dêsse acôrdo social, e, portanto, reduzida de antemão a um mínimo sôbre o qual se aplicava com total decisão e folga a fôrça coativa do poder real, bem seguro de seu direito e do assentimento do corpo social. E relativamente ao que não era o mando, em sentido estrito, o antigo regime não costumava se ocupar muito; a regulação da convivência ficava a cargo da sociedade, mediante um sistema de vigências muito enérgicas e compactas. Não sei se se assinalou suficientemente que um primeiro processo de “intervencionismo” do Estado se produz já sob o anden régime, no século XVIII: multiplicamse as prescrições e pragmáticas, regulamse a partir do Poder atividades que sempre foram espontâneas, proibemse uma infinidade de coisas. Vejo a explicação dêste fato em uma dupla causa: em primeiro lugar, já começa a se produzir um crescimento do Estado, que aperfeiçoa seus instrumentos — fazenda, burocracia, censos — e sente a fruição de exercêlos; em segundo lugar, iniciase a crise da concórdia social, se está menos certo de que a questão de quem tem autoridade para mandar é coisa resolvida de uma vez para sempre, e então o Estado, inquieto, se afirma fazendose presente onde antes não sentia necessidade de o estar. Quando a crise do antigo regime, patente desde 1789, põe em tela de juízo as relações de mando, quando não se sabe bem quem deve mandar nem porque nem até onde, originase uma debilitação do poder do Estado sôbre a sociedade, embora, em absoluto, aquêle seja muito mais forte. E, com efeito, enquanto antes as subversões eram extraordinàriamente raras e condenadas a um fracasso imediato, se inicia agora uma era de revoluções, rebeliões e motins, com freqüência triunfantes, que não tem semelhante na história dos três séculos anteriores, isto é, desde a constituição das monarquias nacionais em fins do século XV e comêço do XVI. A compreensão da história
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européia — e em forma extrema da espanhola — nos ultimos anos do século XVIII e nos primeiros terços do XIX, é sumamente difícil se não se tem presente esta mudança de situação; porque é precisamente nesse tempo quando se realiza o grande aperfeiçoamento do aparelho estatal e o desenvolvimento de scus instrumentos mais eficazes: exército, polícia, organização administrativa, estatística, publicidade, meios econômicos, ensino. Esta consideração da “fôrça” do Estado não como uma magnitude absoluta mas sim em relação com a sociedade e, portanto, como um ingrediente da estrutura desta, nos levaria a introduzir uma distinção entre o poder e as potências do Estado. O primeiro consistiria em sua firmeza, solidez e plenitude de autoridade e mando; as segundas, nas capacidades efetivas de realizar determinadas funções e atuar em diversas zonas do corpo social. O que caracteriza o Estado dos últimos cento e cinqüenta anos é o fabuloso incremento de suas potências, relativamente independente do que se passe com seu poder. Durante parte dêste tempo — não os mesmos anos em todos os países — existiu um desnível entre ambas as coisas, que é um dos fatores decisivos da história dessa época. A confusão dos dois aspectos da “fôrça” do Estado obscurece por completo a idéia de sua realidade, sua função, suas possibilidades e seus riscos. E, sobretudo, a imagem da estrutura social, a qual está condicionada justamente por essas relações. O Estado posterior à Revolução francesa — a rigor, repito, a tendência se inicia alguns decênios antes — é crescentemente intervencionista, isto é, desenvolve suas potências e as leva a todos os estratos da sociedade. Não foi outro o propósito do “despotismo ilustrado” , que em tantos sentidos antecipa possibilidades políticas posteriores, maduras somente no século XIX, porém afetadas nele pela crise do poder, no sentido que dou a esta palavra neste contexto. E talvez não fôsse infecundo estudar a história dos últimos tempos dêste ponto de vista: como o esforço por alcançar um Estado “potente” e ao mesmo tempo “poderoso”, isto é, que se realize em múltiplas eficácias e maneje recursos antes inimagináveis, ao mesmo tempo que se assegura a plenitude e segurança do mando. Mas como isto se funda, por sua vez, na própria sociedade sôbre a qual se exerce o domínio do Estado, isto é, como o Estado deriva sua energia e suas capacidades da sociedade, a formulação da questão em têrmos de
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“domínio” da sociedade pelo Estado acarreta a debilitação e quebrantamento do corpo social e, por conseguinte — passada a eficácia momentânea que proporciona o uso ilimitado dos recursos de um a unidade social — , a decomposição do próprio Estado. P or ésse motivo foi ilusoria a pretensão de assegurar a plenitude do poder estatal mediante uma destruição das fôrças sociais, em lugar de tentar alcançála em virtude de uma intensificação e correta articulação das mesmas, que conduzisse a um acórdo sólido sôbre o mando, e, portanto, sôbre o próprio Poder.
42.
O Poder político e asi fôrças sodais
Até aqui empreguei em um sentido deliberadamente vago a expressão “fôrças sociais”; agora é o momento de precisar a sua significação. A realidade social — o vimos insistentemente — nunca é estática, nem sequer é composta de elementos estáticos que depois entrem em movimento, mas é constituida por tensões, pressões, pretensões; é um sistema de fôrças operantes e que atuam em todo momento, e a própria estrutura não é separável delas nem delas diferente, mas consiste na forma dessa atuação de fôrças. Ora, essas fôrças, ainda que em última instância sejam de caráter individual, isto é, ainda que se fundem na realidade efetiva das vidas humanas individuais, não são meramente individuais: entre a sociedade e os indivíduos se interpõem realidades intermédias para as quais os indivíduos convergem, e cujo sistema integra a sociedade total. Podese pensar que se trata do que se costuma chamar “grupos sociais” ; esta denominação seria aceitável se não fôsse o risco de um equívoco que passaremos a examinar. Se se entende por “grupos” os grupos concretos, isto é, os que agrupam e portanto dividem uma sociedade, é preciso dizer que não se trata déles. Por exemplo, as unidades territoriais inferiores — regiões, províncias, comarcas — internas à sociedade total; ou os estamentos ou classe sociais, na medida em que efetivamente unem diversas porções da população e as isolam ou segregam umas em relação a outras; ou os dois sexos, naquelas sociedades em que os esquemas de vida são muito diferentes e não existe uma convivência geral em tôdas as ordens, mas só pontos de contacto concretos entre homens e mulheres; ou as idades, quando a articulação delas é muito marcada e definida e, portanto, os jovens, adultos ou anciãos vivem de algum
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modo “em grupo” . Todos ésses grupos concretos, cujo interesse 6 evidente, são apenas urna parte — e não a decisiva — dessas realidades intercaladas entre a sociedade geral e os homens individuais. Quando se dá conta de que êsses grupos se entrecruzam, isto é, de que se pertence parcialmente a vários déles, que, portanto, não se pode tomar isoladamente nenhuma das organizações e divisões que impõem ao corpo social, chegase à noção de “grupo abstrato” . Simmel, sempre tão penetrante, estudou com extrema agudeza o que denominou “o entrecruzamento dos círculos sociais”. Um nobre pode ser oficial de exército, pertencer à região de Westfália, ser luterano, homem maduro, sócio de um clube de esgrima e membro de um grupo musical. Sua realidade pessoal está adscrita fragmentàriamente a diversos “gru pos” , todos os quais o contam entre seus componentes, sem que, naturalmente, fique inteiramente incluído em nenhum. Mas isto ainda não é o bastante. Se apenas se tem em conta os “grupos”, concretos ou abstratos, deixase de lado algo decisivo que deve ser acrescentado a êles, e que chamo fôrças sociais. As duas notas que as definem são: 1) transcender o individual e o simplesmente interindividual; 2) ter caráter dinâmico e operante. Explicarei. A ação de cada indivíduo ou de vários indivíduos como tais não alcança o limiar do que se pode chamar “fôrça social”; para que esta exista é necessário uma convergência qualquer de indivíduos, que funcionem de modo impessoal e portanto intercambiável (por exemplo, que sejam desconhecidos entre si). Essa convergência tem que ser ativa; não se trata de que êsses indivíduos “estejam juntos” ou “coincidam” em um a semelhança de caráter comum; seu vínculo é funcional: um a pressão, um desejo, uma opinião, uma estimativa, a organização de algo, a oposição a outra coisa, uma diversão coletiva, etc. Isto quer dizer, por outro lado, que as fôrças sociais não têm razão para adquirir caráter institucional e permanente; pelo contrário, em seu estado de pureza são essencialmente transitórias: se fazem e se desfazem, se constituem e se dissolvem, sem deixar resíduos inertes; uma parte — em bora não todos êles — dos “grupos sociais” são o precipitado, a cinza poderíamos dizer, de fôrças sociais operantes, uma vez que sua atividade se suspendeu ou se canalizou em um funcionamento mecânico. Com parese um partido po-
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.rt .
lítico com o que se cham a um movimento de opinião: quando em uma sociedade há fôrças operantes no campo da política, formamse núcleos de opinião espontâneos, fugazes, que se originam em vista de uma situação concreta, se condensam sem implicações alheias, se desvanecem tão depressa quanto a ocasião passe, sem que os indivíduos que formaram êsse movimento fiquem depois disso ligados entre si; os que coincidiram em um determinado momento e juntos exerceram sua pressão, no dia seguinte voltam a um a indiferença mútua ou a uma rivalidade; o apôio circunstancial a um homem público não continua permanentemente adscrito a êle, mas pode mesmo se converter em re pulsa quando sua próxim a gestão suscite repugnância. O mesmo ocorre com qualquer outra atividade ou aspecto da vida social. Imaginese a atividade desenvolvida por ocasião do Carnaval, nas sociedades em que o Carnaval está vivo: energias de tôda índole — econômicas, fisiológicas, imaginativas — se acumulam na breve emprêsa; milhares de indivíduos concorrem na organização dêsse festival coletivo: carros, fantasias e máscaras, bailes, músicas, engenho, tensão pessoal, esforços de tôda índole; não se intervém nisso a título pessoal mas coletivo: o anonimato da máscara sublinha isto expressamente; nada disso porém se perpetua: não se constitui uma “comissão permanente” do C arnaval — quanto isto se dá é indício de que o Carnaval está morto, que não há fôrças sociais que o sustenham, que não há Carnaval e sim outra coisa (por exemplo, decisão oficial de que haja Carnaval) — ; a quartafeira de cinzas dissolve automáticamente tôda a energia — às vêzes enorme — acumulada nos três dias de regozijo. Outro tanto terseia que dizer das tertúlias, nos casos em que têm alcance social, isto é, que vão além do círculo de seus tertulianos; dos salões quando são órgãos da opinião ou aprêço coletico; do teatro, se êste é realmente uma realidade pública; da “fama”, do “êxito”, do “prestígio”, na medida em que funcionam auténticamente e não são suplantados por fenômenos falsos, de aparência análoga, originados em uma vontade individual concreta e com recursos privados ou estatais. Ora, a vitalidade de uma sociedade como tal se manifesta em suas fôrças sociais. As energias dos indivíduos em sentido estrito são outra coisa: pode haver homens sumamente enérgicos, dotados de capacidades criadoras extraordinárias, e serem
precárias as fôrças sociais; pode acontecer, pelo contrário, que uma sociedade vivaz e elástica não conte com indivíduos excepcionais em nenhum a ordem. A facilidade, rapidez e intensidade com que em uma sociedade determinada se constituem e se desvaneçam êsses movimentos a que me refiro, é o critério que melhor permite medir sua vitalidade e vigor, isto é, a normalidade e saúde do corpo social. E acrescentei “e se desvaneçam” porque a propensão à petrificação das iniciativas, à sua conservação, uma vez passada a ocasião, a necessidade ou o entusiasmo, é um inequívoco sintoma de esclerose do organismo coletivo, devida quase sempre a uma crise da imaginação e, portanto, da faculdade de desejar. Na sociedade, as fôrças sociais são com o fluxo e o refluxo das águas; em certos casos, êsse movimento é determinado por ventos dominantes, que o definem em uma direção precisa e lhe dão certa duração, uma relativa estabilidade — por exemplo, quando se tra ta de ventos periódicos — ; e, na sociedade como no mar, é o fator que evita a putrefação das águas estagnadajs. Mas, por outro lado, para que as águas sejam navegáveis é necessário que êsse preamar e baixamar se regule por um sistema de pressões: a massa da água, a gravidade do ar que pesa sôbre ela, a estrutura da costa que lhe dá forma. Esta função é a que corresponde ao Poder público. Quando êste é suficientemente enérgico, todo o vaivém das fôrças sociais encontra prontamente seu equilíbrio; há um sistema de compensações que impede o desajuste do corpo social; se o Poder é débil, as fôrças sociais, abandonadas a si mesmas, sem corretivo, se fazem espasmódicas e perturbam a convivência. Por vêzes, um incremento da vitalidade social, que em princípio seria excelente, se converte em um fator negativo, simplesmente por falta de um aparelhamento de Poder adequado a essa vitalidade e capaz de canalizála, com o que essas energias sociais acabam por se esterilizar e se consumir. Em outros casos, pelo contrário, um Poder público prepotente e extravasado afoga a vitalidade social ao pretender aplicála diretamente a seus fins, isto é, à emprêsa estatal planejada. Com mais freqüência ainda, um Estado inseguro de si mesmo e afetado por uma debilidade interna se afirma enérgicamente e sente receio de qualquer fôrça que não seja a sua, e, portanto, das fôtrças sociais; não pode suportar seu jôgo livre e, como medida de
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segurança, as sufoca, afoga e paraliza — por exemplo, mediante um sistema de travas burocráticas muito densas, proibições, trâmites, dilações, etc., que dissipam o entusiasmo e suspendem o desenvolvimento de tôda iniciativa — . Por último, algumas vêzes o Poder público conservase adscrito a uma fôrça social particular — ou, o que é o mesmo, uma fôrça social, institucionalizada, se erige em Poder público ou se identifica com êle — ; esta fôrça, então, em virtude de seu caráter “privilegiado”, não joga livremente com as demais mas atua desde logo com uma vantagem prévia, alterando portanto as “regras do jôgo”; po deríamos dizer que as funções sociais estão perturbadas por handicap não reconhecido, que adianta o resultado e conserva a ficção do jôgo. Seria fácil alojar nas diversas possibilidades que acabo de assinalar as situações efetivas que a história nos mostra e parece evidente que não se pode entender uma estrutura social se não se esclarece qual é a situação e o funcionamento das fôrças sociais nela e quais as relações que com as mesmas tem o Poder público.
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A liberdade e as pressões
Isto nos leva a tocar um tema de grandes proporções: o da liberdade e sua relação com as pressões. A tocálo e não a tratálo, porque aqui apenas assinalo os pontos de vista que a investigação de uma estrutura social deve pôr em jôgo. Em outras palavras, o que interessa neste contexto é determinar em que medida a articulação da liberdade dos indivíduos ou das agrupações transitórias ou permanentes, com o sistema de pressões sociais ou estatais, constitui um ingrediente preciso dessa forma de realidade que se chama uma sociedade. O homem de fins do século XVIII e, ainda mais, do século XIX, ao voltar os olhos para a hjstória pretérita, tinha a im pressão de que a liberdade não havia existido antes dêle; no máximo, a reconhecia em algumas épocas da vida da Grécia antiga — e quase exclusivamente em Atenas — , talvez na R e pública romana. No momento em que o sentido histórico intervém, se percebe que semelhante impressão corresponde escassamente à realidade. Não só é inverossímil a descoberta da liberdade em fins do século XVIII, como, pelo contrário, se vê
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o quanto a liberdade foi inseparável da história européia (2). Sem dúvida, resta explicar, para não empregar só em parte o sentido histórico, o porquê dessa impressão errônea de nossos avós. A liberdade não é fácilmente perceptível; vêse melhor a falta de liberdade. Êste fato elementar tem um a conseqüência que vai muito longe: a propensão a uma interpretação negativa da liberdade, como ausência de travas, coações ou pressões. Suposta esta imagem, a atenção se concentra sôbre aquelas limitações em relação às quais se é, em cada caso, mais sensível, e de acôrdo com elas se julga a liberdade. O homem europeu desde a crise do antigo regime teve como idéia da liberdade sua realização em uma tantas liberdades que se esforçou por conquistar e — mais ou menos — alcançou no século XIX . Sem; elas, sentiase oprimido e em servidão; e assim considerava a todo aquêle que, em outros tempos ou em outras sociedades* estava privado delas. Mas o problem a é se a expressão que acabo de escrever é justa. É certo que o homem medieval estava privado da liberdade de expressão? Se empregamos a fórmula, tão usada, “liberdade de imprensa”, salta à vista o anacronismo; porém, além dele, cabe dizer que na Idade Média existia essa privação? Para isso, teria sido necessário que previamente a ela os homens daquele tempo tivessem tido a pretensão de expressarse — no sentido que se dá a esta palavra nos tempos modernos — . Isto significa que se torna necessário funcionalizar a idéia de liberdade — ou de falta de liberdade — , considerála, não como um conjunto de “determ inações”,, por exemplo jurídicas, mas sim como uma situação; e aplicar a ela, por conseguinte, tudo o que é verdade dentro de uma situação dada. Antes de tudo, sua dependência de uma pretensão. Não poder votar é um a falta de liberdade. . . se se pretende votar. Durante milênios não se o pretendeu; a partir de certa data, isto começou a ser freqüente — embora menos do que se pensa — ; porém só entre os homens. Em uma data muito mais tardia, ocorreu a um grupo reduzido de mulheres que era ilógico que só votasse a metade da humanidade — de fato, era ilógico — ; e como estas damas possuiam uma sensibilidade especial para; (2)
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a lógica, isto lhes pareceu uma monstruosa privação de liberdade; lembrese qual foi a reação da imensa maioria das mulheres: uma surpresa um pouco divertida, porque a falta de lógica não as alvoroçava excessivamente e, sobretudo, porque nunca lhes apetecera depositar papeletas nas um as eleitorais. E quando se foi estabelecendo sucessivamente em muitos países o sufrágio feminino, a reação sincera da maioria das mulheres foi esta: “Que aborrecimento, ter que votar!”. Isto é, o direito de voto, a liberdade de votar, se apresentam primàriamente como uma imposição, como uma falta de liberdade, a saber, a de ficar em casa e não se preocupar com as eleições; e não se diga que isto era devido somente à “obrigatoriedade” teórica do voto, já que esta nunca foi efetiva, mas sim que o próprio direito obriga a tomar posição, a votar ou não, sendo esta última não a sim ples ausência de ação, mas sim a ação positiva e talvez penosa dc abster-se. A história da liberdade de expressão e de suas privações teria que ser feita paralelamente àquilo que se tem entendido por “expressarse” e às próprias técnicas expressivas. Em certas épocas, “expressarse” significa falar na taberna ou no café; em outras, publicar livros; em algumas, escrever nos jornais; às vêzes, falar nos Parlam entos; agora, em alguns países, significa uma privação de liberdade expressiva não dispor de meia hora de televisão. O que num a certa data e lugar parecia — e era — plena liberdade, em outra situação é opressão e cativeiro. A liberdade de cátedra e a liberdade de greve interessam a zonas .muito diversas do corpo social, pela razão de que os homens que anseiam pela primeira não saberiam o que fazer com a segunda, e viceversa. Só é possível um interêsse abstrato na liberdade não pretendida, por razões de solidariedade ou pela crença de que as liberdades estão em conexão e a supressão de um a ameaça as demais. Mas ainda isto deverseia tom ar com muitas restrições; concretamente, restrições circunstanciais; isto é, sentese como elementos de um “sistema” certas liberdades que, por relações de funcionamento ou de origem histórica — isto é sumamente im portante — , parecem efetivamente ligadas a uma mesma figura de vida. É possível, por exemplo, que a liberdade de greve seja reinvindicada por aquêles aos quais o que na verdade interessa é a liberdade de culto; e que reclamem a liberdade de Imprensa os que pretendem gozar a liberdade
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de comércio; mas é sumamente improvável que alguém dentre cíes exija a liberdade de circulação por qualquer ponto da rúa, a liberdade de não vacinarse, de não ir à escola, de não declarar seus vencimentos, liberdades de que gozava ilimitadamente c homem medieval, “privado” por outro lado daquelas antes mencionadas. A liberdade não se opõe às pressões, isto é, a tôdas as pressões; sem muitas delas, a vida social não é possível, e portanto, nem tão pouco a liberdade. Esta se realiza entre pressões; em parte graças a elas, em parte também deslizandose entre elas, traçando sua trajetória na estreita margem, espaço ou “jôgo” que as pressões limitadas e de certa maneira contra postas deixam livre; em alguma proporção contra as pressões, voltando a atuar sôbre elas, vencendoas em alguns pontos, desviandoas ou modificandoas. Para tom ar o exemplo mais grosseiro, a política só existe como jôgo com e entre diversas pressões; sem elas, não há política; quando são incoercíveis e esmagadoras, quando não se moderam nem toleram o jôgo, a política desaparece do cenário histórico e é substituida por outras coisas. (Quais? Seria interessante averiguar o que aparece em lugar da política quando esta deixa de existir; creio que nunca esta questão foi apresentada a sério e com rigor teórico; e valeria a pena). Porém tão pouco é suficiente um critério quantitativo, isto é, aquêle que reconhece a liberdade como compatível com pressões limitadas e moderadas, mas não com as violentas e irreprimíveis. Não porque isto não seja verdade, naturalmente, mas por ser uma verdade demasiado elementar e tosca. Em primeiro lugar, a intensidade das pressões não pode ser medida de um modo absoluto e sim em proporção com a energia das pretensões e a vitalidade das fôrças sociais; a “mesma” pressão pode funcionar de maneira distinta na Roma de Sila ou na Bélgica de Leopoldo II. Em segundo lugar, assim como a pretensão de felicidade pode ser mais ou menos elevada, a de liberdade varia enormemente na história. O programa vital do indivíduo apresenta em cada sociedade um catálogo de requisitos de amplitude e conteúdo muito variável, que significam outras tantas exigências frente ao contôrno para realizarse. A liberdade real depende do que se intenta. Mas como o horizonte das pressões, presentes com mais ou menos precisão na mente dos indivíduos, faz com que êsses intentos cheguem a
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ter existência ou se asfixiem mesmo como intentos, devese ter em conta o que poderíamos chamar o nível de pretensão. Às vêzes o Poder não tem nada que reprimir, apenas se exerce, rara vez descarrega o péso de seus recursos coativos sôbre os indivíduos; e isto não significa existência de liberdade e sim precisamente o contrário: sua privação é tal, que inclusive chegou a obliterar a pretensão a ela; são as situações de resignação, entrega ou desespéro — que não são exatamente o mesmo — ; em forma extrema provocam o aviltamento; só isto explica a m anutenção de certas formas de vida particularmente opressivas, durante anos e anos, talvez durante séculos. No Dictionnaire philosophique de Voltaire, o Conde Medroso pergunta a Lord Boldmind: Vous croyez done que mon áme est aux galeres?, e Boldmind responde: Oui; et je voudrais la délivrer. Mas Medroso insiste: Mais si je me trouve bien aux galeres? E então Boldmind: En ce cas vous méritez d’y étre. O decisivo, pelo menos do ponto de vista que aqui nos interessa, que é o da liberdade como ingrediente da estrutura social, é, a meu entender, o seguinte: a vida é possível como liberdade quando as pressões, embora sendo enérgicas, não destróem a figura que a unidade social pretende ter, e portanto fazem normalmente possíveis as trajetórias individuais definidas pelas pretensões vigentes. Em outras palavras, a falta de liberdade aparece como contradição interna da sociedade que a padece. Alguns exemplos esclarecerão o que quero dizer. Se a crença dominante em uma sociedade é que o poder pertence ao monarca e êste o exerce, isto não significa falta de liberdade, e os indivíduos se sentem livres nessa ordem, embora submetidos ao poderio de uma monarquia absoluta; se o pressuposto de um corpo social é, pelo contrário, que a soberania reside no povo, e êste não tem possibilidade de exercer o mando, esta situação é de estrita privação de.liberdade. A falta de liberdade de Imprensa requer, em dito acaciano, que haja Imprensa, isto é, jornais em que se expressa “opiniões”, em que se “julga” e se “critica” , em que se informa do “que se passa” , etc. Uma situação em que não há jornais ou êstes possuem uma simples função notificadora não admite “privação de liberdade de Imprensa”; porém se se conserva a aparência da informação e esta não se pode realizar, se se imprime coisas que parecem opiniões mas que não o são, porque ninguém as opina, se se aparenta
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discutir coisas que não se permite discutir, etc., então surge essa privação. Quando Sevilha ou Cádiz tinham o privilégio do comércio com as Indias, isto não implicava falta de liberdade mercantil; como não é falta de liberdade que só o Banco da Nação possa emitir notas ou que únicamente o Estado possa cunhar moeda; mas se existem as estruturas exteriores da industria e do comércio, se se organizam emprêsas de produção e intercâmbio de produtos, e de fato não lhes é permitido fazer isso que em princípio fazem, nesse momento se produz a privação de liberdade econômica. De um modo análogo, se a crença dominante é que cada pessoa as organize como puder, trabalhe ou não, ganhe mais ou menos, viva a um nível ou a outro, segundo o possa alcançar efetivamente, esta situação poderá ser boa ou má, talvez lamentável ou inclusive atroz, porém é de liberdade; enquanto que se existem estruturas trabalhistas — sindicatos, escalas de salários, inspeção do contratos, direitos adquiridos, associação à emprêsa, etc. — e não podem se pôr eficazmente em funcionamento, nisto precisamente se estriba a destruição da liberdade, visto contradizer a situação vigente. O serviço militar obrigatório, embora o sendo, é conciliável com a liberdade; porém não o é — ainda que seu volume seja enormemente inferior — o sistema de recrutamentos forçados, em virtude do qual se contradiz o pressuposto de que o cidadão não está obrigado a servir no exército ou na m arinha. E assim sucessivamente. Dêste ponto de vista deveria ser estudado o difícil tema da liberdade intelectual, que costuma ser muito escassamente esclarecido. . Quando existe um consensus efetivo em uma sociedade a respeito de que algo é indiscutível, não é supressão da liberdade o não se o poder discutir. É evidente que quando é êste o caso, o Poder não precisa incomodarse em proibilo, porque é a pressão social como tal — a pressão intelectual quando se trata de um tema de pensamento — aquela que adequadamente o impede; e a intervenção dos poderes temporais quase sempre corresponde à não existência dêsse consensus na sociedade. Por outro lado, na m aioria das épocas históricas não houve liberdade de cátedra, nem de pubücação, nem de expressão oral pública; e, no entanto, seria inexato dizer que nunca houve liberdade intelectual; do ponto de vista do século XIX, isto é, entendendose por liberdade intelectual o que se
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entendia então na Europa ocidental, seria efetivamente assim; porém dentro dos pressupostos dominantes em cada caso, algumas vêzes houve liberdade e outras não, segundo tenha sido possível, de fato, realizar o que em princípio era reconhecido como função normal da inteligência. A falta de liberdade consiste na conservação de todos os dispositivos deuma forma de vida intelectual — por exemplo, Universidades públicas, editoras privadas, revistas, jornais, associações de cultura, congressos, centros de investigação, prêmios, etc. — com supressão das condições efetivas de seu funcionamento, isto é, dos requisitos inerentes a sua figura e, portanto, do que se supõe que significam. Por incrível que pareça, os estudos históricos que pretendem contar e explicar a produção intelectual de qualquer ordem nas diversas épocas pretéritas somente uma vez ou outra e em algum ponto excepcional levam em conta êste aspecto decisivo, do qual depende, rigorosamente, a significação e com isso a própria realidade da ciência, filosofia, literatura e inclusive da arte. Em uma palavra, o esclarecimento de uma estrutura social exige que se defina em têrmos precisos o grau em que as formas tôdas que as constituem podem ou não se realizar, e em virtude de que jôgo de pressões. Com o qual se desenha uma idéia de liberdade, segundo a qual esta não consiste em um mais ou menos de constrições particulares, mas sim no grau de aui tentícidade de uma unidade de convivência coletiva.
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A margem de individuação
Até aqui me referi à liberdade como condição de uma sociedade e, portanto, de cada uma das vidas dos indivíduos que a ela pertencem, porém só enquanto determinadas por essa pertinência. Isto significa que se trata de uma liberdade genérica e em certa medida abstrata; em outras palavras, embora o que denominei “privação de liberdade” a exclui desde logo, a situação contrária, a “vida como liberdade”, não se identifica sem mais com a existência de uma liberdade efetiva; apenas proporciona sua possibilidade, estabelece seu âm bito ou alvéolo; para que a liberdade de fato exista, não é suficiente que seja possível: é necessário realizála, porque a liberdade não é algo que “se tem” e sim que “se faz” . E isto nos leva a outro tipo de considerações.
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A liberdade concreta não consiste, é claro, na ausência de constrição mas sim na possibilidade real de projetar e realizar a vida assim projetada; sua primeira condição é, pois, a imaginação; quanto menor é esta, menor é o âmbito da liberdade. O caso limite é naturalmente, o animal; embora não pese sôbre êle a menor pressão exterior, sua fantasia mínima anula suas possibilidades de liberdade (3>. Dentro do humano, quando a imaginação é muito reduzida, a liberdade se move em uma margem sumamente estreita; entendase bem, o homem é sem pre livre, e o é forçosamente; mas isto não quer dizer que o seja de todo e sim que, pelo contrário, pode ser muito pouco Mvre. E ao falar de graus de imaginação, não se pense em uma “faculdade” ou potência imaginativa abstrata; a imaginação real está condicionada pelos materiais que maneja: lembranças, ex periências, am plitude do horizonte mental, etc. Esta situação, na qual se pensa poucas vêzes, é o primeiro fator que intervém no que se poderia denominar uma quantificação da liberdade. Em segundo lugar, a liberdade requer para seu desenvolvimento um certo grau de complexidade de convivência. Robin son Crusoe tinha uma liberdade absoluta, no sentido de ausência ds pressão ou coação social; porém o âmbito de sua liberdade real era extremamente reduzido. Por estar só, Robinson t inha que fazer tudo por si mesmo; mas isto significava automáticamente que o programa mínimo exigido por sua subsistência física absorvia quase integralmente suas possibilidades. Quero dizer que a figura de Robinson estava já predeterminada por sua situação; ser Robinson é equivalente a realizar um repertório de condutas pràticamente invariáveis e que deixam pouca margem para algo mais; por isso o “tipo” do Robinson tem (3) Evidentemente, não se trata apenas da fantasia; porém basta a. carência dela para determinar a inexistência da liberdade. Tão pouco é suficiente a fantasia para que haja liberdade; mas dadas as outras condições que não cabem neste contexto —, sua realização concreta é função dela. Ainda mais: na medida em que o animal é capaz de ima ginação ou fantasia, há nele uma “quase-liberdade”, isto é, alguma deter minação que é “homóloga” daquilo que é a liberdade humana; no outro extremo, se pode ter algum sentido inteligível a expressão “liberdade” aplicada a Deus, é porque atribuimos a êle, por via de eminência, algo também homólogo de nossa imaginação.
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validez universal, salvo os matizes (4), ou seja que a margem de individualização apenas existe. Não se é livre para ser um ou outro Robinson; e justamente, quando surgem na ilha dois homens, aparece a possibilidade de duas “versões” diferentes do solitário — precisamente porque já não o é tanto — : R o binson ou Sextafeira. O terceiro aspecto condicionante da liberdade é a existência de recursos suficientes. Primeiramente, na sociedade; mais concretamente, à disposição de cada indivíduo. Por isso, a liberdade, quaisquer que sejam suas demais possibilidades, está ameaçada e restringida por tôdas as formas de primitivismo. A simplicidade da articulação social, por exemplo, faz com que se jam muito poucos os modelos accessíveis a cada indivíduo entre os quais escolher; a escassez de meios técnicos restringe a li berdade: de viajar, de alimentarse, de realizar expriências de tôda ordem; as dificuldades econômicas reduzem o raio de ação de cada indivíduo e elimina de seu horizonte um semnúmero de possibilidades que estão “aí”, a saber, na sociedade geral, mas que não são efetivamente accessíveis ao homem concreto, isto é, não são possibilidades suas. O enriquecimento e complicação das sociedades multiplicam, pois, as figuras humanas que dentro delas são possíveis e ao mesmo tempo os atos, condutas e experiências que se podem dar em cada uma delas. A liberdade real é multiplicada, por conseguinte, graças a êsse crescimento, por uma segunda potência. A realidade humana individual admite muito mais versões, e em cada uma cabem mais concretudes diversas; a margem de individuação se dilata e se amplia; a diferença entre situações extremas é de magnitude incrível; daí que não se possa entender uma sociedade, um a situação histórca — ou dentro dela a biografia de um homem individual — , sem tentar “quantificar” — sit venia verbo, porque essa quantificação, como tôdas as humanas, é intrínsecamente qualitativa — o âmbito de suas possibilidades e, portanto, a margem de individuação. (4) Aludi, uma vez, às diferenças — sutis, mas significativas — entre o Robinson Crusoe de Daniel Defoe e o “robinson” espanhol Pedro Serrano, um século e meio anterior ao inglês, cuja história é narrada pelo Inca Garcilaso de la Vega nos Comentarios reales. (Veja-se “El Otro en la isla”, em El oficio del pensamiento, Obras, VI)
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Seria porém um êrro deixar que o pensamento seguisse inérica e avançasse mecánicamente. E isto porque precisamente a intensificação dos fatores que fazem possível e aumentam a liberdade e a individuação, a partir de certo grau as ameaça, as diminui e as pode anular. Êsse grau, por seu lado, não é fixo nem determinável abstratamente, e sim só dentro ile uma constelação ou sistema de elementos estruturais. Os Irês aspectos considerados, ao alcançarem um limite variável cm cada caso, dão marcha à ré e desempenham a função con li ária da que em princípio lhes corresponde. Assim, um excesso “imaginativo”, isto é, uma riqueza de lembranças, experiências, ensaios, projetos, teorias, restringe a liberdade, porque diante de qualquer figura imaginada surgem as dificuldades, as reservas, a memória de fracassos, a necessidade de levar em conta mais fatores, até o ponto de produzir um a paralisia. É o caso das épocas de acúmulo e amaneiramento, das sociedades “decadentes”, nas quais se chega a uma situação que, pelo caminho oposto, se liga ao “primitivismo” — e como reação costuma provocálo — . Análogamente, quando a convivência se to ma muito densa — por exemplo, quando a população aumenta em excesso — , a fricção é tal, que o “raio” de ação de cada indivíduo se reduz; enquanto Robinson mal podia ser êle mesmo, porque seus dias se esgotavam em ser homem, isto é, em continuar vivendo, aquêle que vive em uma sociedade super povoada e de estrutura muito complicada quase não pode fazer outra coisa a não ser “continuar aonde está”, adscrito ao ponto em que a sociedade o tem situado; e isto num sentido às vêzes literalmente material: alojamento, um “pôsto” ou “colocação” de trabalho, etc. P or último, a abundância de recursos, que inicialmente amplia o horizonte, pode chegar a reclamar ela própria uma atenção que antes se dirigia aos projetos, e provoca assim uma retração em relação a êstes. O homem muito pobre quase nad a pode fazer; porém o hom em muito rico dificilmente pode fazer mais do que uma coisa: cuidar de sua riqueza; êste exemplo basta para esclarecer o que pretendo dizer. Tratase, em suma, de uma questão de máximos e mínimos. A vida como liberdade, para realizarse de fato, sobretudo na forma de tolerar uma ampla margem de individuação, requer um grau de “densidade” e complexidade da convivência e das formas sociais. Porém se a sociedade se faz demasiado “densa” , m u i
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os fios que são as trajetórias vitais começam a embaraçarse, e estas perdem sua figura. Não seria impossível, ainda que de uma dificuldade teórica considerável, determinar, em cada um dos estratos da vida, o grau ótimo de intensidade e complicação. Em todo caso, é inexcusável uma avaliação dessa complexidade e, correlativamente, das possibilidades do indivíduo, dentro de cada estrutura social.
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O sistema dos usos como facilidade e limitação
No programa de um curso sôbre O homem e a gente, dado em Buenos Aires em 1939, Ortega escreveu estas teses concisas sôbre a realidade e a função dos usos: “Os usos produzem no indivíduo três categorias principais de efeitos: “ 1.° São pautas do comportamento, que nos permitem prever a conduta dos indivíduos que não conhecemos e que, portanto, não são para nós indivíduos determinados. A relação interindividual só é possível com o indivíduo a quem conhecemos individualmente, isto é, com o próximo. Os usos nos permitem a quase convivência com o desconhecido, com o estranho. “2.° A pressão, ao impor um certo repertório de ações — de idéias, de norm as, de técnicas —•, obriga o indivíduo a viver à altura dos tempos e injeta nele, quer queira quer não, a herança acumulada no passado. Graças à sociedade, o homem é progresso e história. A sociedade entesoura o passado. “3.° Ao automatizar uma grande parte da conduta da pessoa e lhe dar resolvido o programa de quase tudo o que tem que fazer, lhe permite que concentre sua vida pessoal, criadora e verdadeiramente humana, em certas direções, o que, de outro modo, seria impossível ao indivíduo. A sociedade situa o homem em certa franquia frente ao porvir e lhe permite criar o novo, racional e mais perfeito.” Nestas poucas linhas está encerrada in nuce tôda uma sociologia; convém, pois, as ter presentes em sua expressão literal. Mas o que aqui concretamente nos interessa é ver como uma estrutura social inclui entre suas determinações capitais a maneira segundo a qual os usos afetam o indivíduo em suas possi bilidades.
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Para começar, os usos apresentam um caráter duplamente quantitativo: primeiro, quanto a seu número, “área” ou campo de aplicação; segundo, em relação à sua intensidade. Com eleito, os usos podem ser muitos ou poucos, mais ou menos; cada época tem a impressão de que o número de usos vigentes aumentou ou diminuiu em comparação com a época anterior; provàvelmente as duas coisas, porque a área dos usos se “deslocou”, e afeta zonas que antes estavam isentas de regulação por um uso, enquanto outras, antes “cobertas”, ficam em franquia ou vacantes; e êste deslocamento mascara a alteração quantitativa e tom a difícil determinála. Esta impressão re ap arece quando se passa de uma sociedade contemporânea a outra: os, usos dominantes na Espanha talvez não têm vigência na França ou nos Estados Unidos, e isto faz pensar que “se pode lazer qualquer coisa”; mas em seguida se percebe que em certos temas em que a sociedade espanhola não prescreve nada concreto, a francesa ou a americana exercem uma pressão sumamente precisa. É indispensável, pois, para entender uma sociedade, fazer um “balanço” dos usos vigentes, que não pretenderá a exatidão e sim um conhecimento aproximado — e, é claro, comparativo — de seu volume; isto é, tratase de precisar se uma sociedade está muito ou pouco determinada pelos usos, em outros têrmos, se dêste ponto de vista é mais ou menos “densa” ou abandonada à espontaneidade e à improvisação. Mas não é suficiente especificar o número dos usos; êstes são pressões, fôrças que se aplicam sôbre o indivíduo. Com que intensidade? H á sempre usos fortes e débeis, que obrigam sub gravi ou sub levi, como com outro propósito costumam dizer os teólogos morais. H á sociedades em que o sistema inteiro dos usos é predominantem ente enérgico; em outras é lasso; isto é, a vigência dos usos é mais ou menos enérgica, prèviamente à quantificação da vigência de cada um em particular. A mensuração — repito que sempre aproximada e comparativa — dessa intensidade e das porções do sistema segundo as quais varia, nos daria um “mapa métrico” dos usos de uma sociedade, análogo aos que indicam em uma carta geográfica a distribuição das chuvas ou a densidade de população; e não seria impossível — tomando a expressão cum grano salis — traçar um mapa de “linhas isobáricas” , que unissem os
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pontos de igual pressão — entendase, social — . E isto, feito com algum rigor, permitiria predizer os movimentos sociais, ao desenhar dentro do corpo social as figuras de maior ou menor pressão e, portanto, mais ou menos propícias a cederem e a se modificarem. Isto traz consigo a necessidade de determinar claramente as zonas da vida afetadas preferentemente pelos usos. Mas não se pense que isto significa que urnas zonas são reguladas e outras não; o que varia é o princípio da regulação: algumas vêzes, os usos, outras, o direito, em certas ocasiões o simples costume. Enquanto em algumas épocas o modo de vestir era prescrito legalmente — pragmáticas sôbre o luxo, determinação do atavio dos nobres ou dos plebeus, das mulheres solteiras ou casadas, etc. — , em outras se rege por usos estritamente sociais, em que o Estado não intervém; assim, por exemplo, o uso do primeiro vestido de baile para a apresentação das jovens à sociedade, o emprêgo do traje de etiqueta, da gravata, dos decotes, das diversas côres e classes de tecidos segundo os sexos, idades e condição social. Quando os usos são muito débeis, tudo está permitido — dentro de certos limites —, a obrigação fica reduzida ao mínimo, e em seu lugar aparece o critério de freqüência, princípio do costume. É talvez um costume tomar café com leite, pela manhã, em alguns países, mas se em vez disso alguém come mariscos, nem por isso está violando um uso: apenas executa uma ação não costumeira, que não desencadeia represálias sociais sérias, como acontece com as infrações dos usos, por exemplo, se alguém amarra o guardanapo ao pescoço ou toma champanha às colheradas; ou se na Espanha — mas não na França — uma operária usa chapéu; ou então se na França — mas não na Espanha — se chama a uma senhora por seu nome de batismo. Em alguns casos, nessas mesmas zonas intervém ao mesmo tempo como reguladores o uso e a lei: enquanto o traje civil se orienta pelo uso, o uniforme e o hábito são determinados por um a ordenação jurídica de natureza pública; quando certos alimentos estão proibidos pela religião, ou não podem ser comidos em certas ocasiões — “dia sem carne” — , “dia sem sobremesa” em alguns países, etc. — , os usos como tais deixam de atuar, e são substituidos pelo mais forte que é o direito; outro tanto se dá com o tratamento quando não é simples assunto de corte
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— isto é, socialmente imposto pelo uso — , mas legalmente exigido; ou com a saudação ou outros fenômenos análogos. Quando os usos são numerosos e enérgicos, a vida fica informada por êles e deixa uma margem muito acanhada à es pontaneidade, à improvisação e à invenção. Se, pelo contrário, há uma quebra geral dos usos, isto é, se êstes perdem em grande parte sua vigência ou a têm atenuada, as condutas são imprevisíveis e se produz uma desorientação em relação aos demais e também acêrca do que cada um deve fazer. Em certas ocasiões, algumas formas de vida ficam asfixiadas pela pressão de usos excessivamente invasores e opressivos; pensese, por exemplo, nas relações entre homem e mulher em muitas sociedades; a impossibilidade da amizade intersexual, as dificuldades da relação amorosa, o desvirtuamento do matrimônio — durante longas épocas o consentimento foi fictício, inexistente do ponto de vista atual, devido aos usos vigentes — , tudo isso como conseqüência da pressão indiscreta de usos desorbitados. Porém, pelo contrário, a crise dos usos nessa mesma zona da vida conduz a uma falta de regulação dessas relações que as perturba e as anula no mesmo grau, se bem que em outro sentido. Isto significa que a vida humana é invenção, mas que não se pode começar do zero; o “nível” do qual parte a invenção individual é justamente o definido pelo sistema dos usos; apoiandose neles, o homem inova e traça sua trajetória pessoal; êles são, pois, ao mesmo tempo facilidade e limitação. Terseia que acrescentar ainda uma palavra sôbre uma classe de usos sumamente estranhos: os usos negativos. A rigor, não é próprio chamálos usos, porque o peculiar neles é precisamente o fato de que não se usam; nem tão pouco costumes, porque não acostumam; no entanto, se alguém executa uma ação que infringe um “uso negativo”, a sociedade exerce suas represálias habituais, e então funciona a mecânica dos usos, que revela a condição latente daquele. Eu proporia para esta classe de usos o têrmo soências; (*> o uso negativo nada impõe, tão pouco proibe algo expressamente, apenas as coisas soem níu
(*) Paralelamente ao têrmo “solencia”, derivado do verbo “soler”, usado no texto original castelhano, em português pode-se ter a palavra “soência ”, derivada do verbo “soer”. (N. do T.).
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ser assim, tal ação ou tal gesto soem ser omitidas. Não é casual e sim muito significativo, que a palavra soência não exista, nem em latim nem nas línguas románicas; o que existe é o têrmo in solência, precisam ente porque a “soência” aparece ao ser negada, violada por um ato insólito; e êste é o primeiro sentido que tem em latim insolentia ou insolens: não o desusado (que se deixou de usar), mas sim o desabitual, desacostumado, que não se sói fazer, estranho, extravagante; e por isso irritante, impertinente, perturbante, insolente em sentido moderno. A insolentia é a novidade imprevista; dizse de um nome muito extravagante, insolentissimum. E como isto exaspera e parece uma agressão ao social, a insolência se carrega de associações pejorativas: é descaramento, falta de respeito, desejo de se distinguir, falta de vergonha. Se bem se observa, se vê que a maioria das condutas que parecem insolentes são violações de usos negativos e, portanto, raramente formulados; digo a maioria porque a linguagem possui certa elasticidade que impede a exatidão, porém se pode perceber que a tendência geral é inequívoca. As mulheres, concretamente, estão submetidas, em quase tôdas as sociedades, a um acúmulo de usos negativos ou “soên cias”; foi isto que formulei outras vêzes dizendo que a situação da mulher tem sido a de não poder fazer nada, a menos que houvesse acôrdo social expresso de que se tratava de algo lícito. Em princípio, nada era possível; um a “soência” geral gravitava sôbre a porção feminina da humanidade, que se ia descobrindo e se tomando concreta à medida que as mulheres iam tentando com portam entos que se revelavam “insolentes” , qualquer que fôsse seu conteúdo: isto ocorreu com as primeiras mulheres que qui zeram estudar nas Universidades; nem sequer estava proibido, porque não estava previsto; mas aí estava latente o uso negativo de que as mulheres não iam à Universidade. O mesmo se deu quando algumas mulheres começaram a sair à rua sozinhas, ou ir ao café, ou exercer certas profissões. Idêntica impressão de insolência produziu quando uma mulher se pôs a nadar, a acender um cigarro, ou cruzar as pernas. Poderseia multiplicar os exemplos. E notese que quando se trata de um uso positivo, sua infração não é considerada especificamente como insolência: há sessenta anos parecia insolente a mulher que se pintava, mas não a que era infiel a seu marido; hoje o parece em alguns países a que usa calças compridas, mas não a que
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dispensa o chapéu, as luvas ou o traje de festa em circunstancias cm que o uso estabelece que se traga uns ou outros. É necessário determinar, pois, em tôda estrutura social, a proporção em que se distribuem os usos positivos e os negativos ou “soências”, e sua localização na vida coletiva. Somente isto permite entender o coeficiente de “elasticidade11 ou “rigidez” e paralização de uma sociedade concreta.
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A riqueza e a estrutura econômica
O ponto de vista a partir do qual se deve considerar aqui a situação econômica de uma sociedade não é interno à própria economia, mas determinado pela necessidade de esclarecer em que medida e forma a condição econômica afeta a estrutura social, e mais concretamente o âmbito de possibilidades dos individuos ou dos grupos. Isto quer dizer que as considerações quantitativas, embora sendo evidentemente essenciais, não podem ser as únicas que entrem em conta, e só constituem o ponto de partida. Portanto, devese começar, embora não se possa aí parar, pela avaliação da riqueza to tal de uma sociedade, que é o ponto de referência para tôda determinação ulterior, a que to m a possível qualquer gênero de qualificações. H á sociedades mais ou menos pobres, mais ou menos ricas, e em muitos graus; porém não é suficiente tão pouco uma averiguação da quantia absoluta dessa riqueza; porque esta, socialmente, tem sempre caráter comparativo: um a sociedade é rica ou pobre em com paração com as demais sociedades — uma nação européia, por exemplo, medindose pelo nível de outras — ou consigo mesma em outro tempo: sentese empobrecida ou enriquecida, arruinada ou próspera. Em segundo lugar, a consciência econômica de uma unidade social não depende só de suas riquezas atuais mas de suas potencialidades: a impressão de riqueza dos povos jovens, de economia colonial, tem se fundado mais naquilo que esperavam do que no que de fato possuiam; às vêzes uma enorme carência se tem aliado a uma ilimitada confiança no futuro econômico imediato; e, inversamente, muitos países — por exemplo, da América do Sul — começaram a se sentir pobres ou, pelo menos, não tão ricos, justamente quando chegaram a dispor de riquezas consideráveis, porque isto coincidiu
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com a descoberta da limitação de suas possibildades, com urna retração do horizonte. Por outro lado, não se pode tomar a riqueza de uma sociedade sem mais localizações precisas. E isto em dois sentidos: o primeiro, pelo fato das unidades econômicas não coincidirem forçosamente com as sociais, quer sejam as primeiras mais am plas ou mais acanhadas que as segundas; a economia das diversas regiões de uma nação, por exemplo, tiveram durante muito tempo relativa autonomia e apresentaram diversos níveis e estruturas; po r outro lado, ao mesmo tempo que esta situação persiste residualmente, a complicação progressiva da vida econômica fêz com que funcionem realmente como unidades grandes porções do mundo, sob êste ponto de vista solidárias, mas que incluem sociedades diferentes. O outro sentido em que se deve localizar a riqueza é o de sua distribuição interna; a quantia total da mesma, o fato de que uma sociedade seja rica ou pobre, não adianta ainda muito sôbre sua estrutura; pode estar concentrada em um número muito reduzido de indivíduos ou repartida igualitàriamente, e entre, os dois extremos podem se dispor inumeráveis pontos intermédios; porém tão pouco o quantitativo é suficiente, e por isso as estatísticas econômicas não são uma explicação mas apenas dados necessários para ela; esteja a riqueza em poucas ou muitas mãos, o decisivo é saber quais são: não é indiferente que seja o Estado, um estamento nobiliário, as ordens religiosas, uma classe financeira, indivíduos relativamente isolados e independentes. É evidente, para tom ar um exemplo espanhol e da época romântica, que a desamorti zação de Mendizábal não representou em princípio uma alteração substancial da riqueza, mas determinou variações decisivas na estrutura social da Espanha. Suposto um determinado volume de riquezas e uma distri buição da mesma dentro de uma sociedade, um fator estrutural importante é o que poderíamos chamar a accessibilidade à riqueza. Com efeito, os bens econômicos podem estar adscritos a seus possuidores em diferentes graus; a “fortuna” e o “ganho” são as duas formas capitais em que a riqueza se apresenta. E em ambas podem se dar formas muito distintas. Em alguns casos, a riqueza está invariàvelmente unida a outras condições sociais; por exemplo, reside em um estrato social único, talvez com vinculações individuais muito precisas; em outros casos, a
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riqueza é adquirida ou perdida com facildade, muda de mãos, c está menos unida à condição social de que ao trabalho — combinado em qualquer dose com o acertó e a sorte — ; enquanto em algumas sociedades a riqueza é fortuna inerente a uma posição social, por exemplo em forma de possessão, em outras é matéria de ganho, e existe a vigência — não importa a exatidão real disto — de que é resultado do trabalho, com c qual na maioria das sociedades teve muito pouco que ver. A idéia de que o pobre, por muito que se esforce, não pode deixar de ser pobre, de que se é rico ou pobre desde logo e provávelmente para sempre, determina uma estrutura social em forma bem diversa da convicção de que cada individuo tem uma “oportunidade” de acesso à riqueza, e ainda de que em principio essas oportunidades são iguais pa ra todos. Paralelamente à de samortização, a desvinculação significou na Espanha do século XIX uma transformação gravíssima da estrutura econômica e, portanto, da social. E na medida em que a liberdade econômica se restringe — seja pelo intervencionismo do Estado ou pela pressão de fôrças sociais (monopolios, trusts, etc.), a possibilidade real de acesso à riqueza se reparte desigualmente, segundo as localizações concretas dos indivíduos em relação a êsses poderes, e provoca uma nova forma de privilégio, quase sempre mascarado e que não “consta”, portanto não de caráter público. Em relação com êste aspecto do econômico há mais dois outros, que contribuem enormemente na articulação das sociedades: o coeficiente de segurança e a normalidade do contentamento ou descontentamento com a situação econômica. De fato, na maior parte das sociedades humanas, há menos de dois séculos, a segurança econômica foi patrimônio de muito poucos; e, no entanto, não seria exato dizer que os homem europeus anteriores a 1800 viveram em situação de insegurança; e isto por uma dupla razão: uma, aparentemente formal, está no fato de que a vivência da insegurança supõe o se mover em uma prévia segurança, que, em geral, lhes era desconhecida; a outra, de que aquêles homens tinham presente uma “segurança do pio r”, e que, portanto , as piores form as do desamparo — más colheitas, enfermidade, invalidez, orfandade — pareciam “normais” à condição da vida, e não uma situação anômala e excepcional; po r isso a consciência de insegurança nasce em épocas de relativo bemestar e de prévia estabilidade do nível econô
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mico; assim, para trazer um exemplo especialmente claro, na Alemanha e em geral na Europa Central depois de 1918, ou nos Estados Unidos, quando se produziu a depressão de 1929, de pois dos anos de prosperity, que não foi uma prosperidade qualquer — uma aventura ou “bons ventos” da sorte — , mas que pareceu permanente e definitiva. Em têrmos gerais, uma vez que se alcança um apreciável nível de segurança, tudo o que o ameaça se mostra como perigo e insegurança, e a consciência desta última depende da apetência daquela. Não se entende a vida espanhola do século XIX se não se tem presente o fantasma da “aposentadoria”; mas êste, po r sua vez, é incom preensível se se prescinde da avidez pelo trabalho seguro, permanente e sem riscos, ao qual se chama, significativamente, "“colocação” ou “emprêgo” . Por outro lado, embora a evolução econômica tenda a diminuir os riscos mais graves — a fome coletiva, por exemplo — , em compensação, a elevação do nível econômico e do bemestar aumenta as possibilidades de insegurança: uma vida economicamente ínfima está exposta ao desastre, talvez à morte por inanição, mas não a outra coisa; enquanto que uma vida montada sôbre probabilidades mais altas, sem chegar a êstes extremos, está ameaçada por uma queda dificilmente suportável sem uma transformação de tôdas as estruturas e disposições; po r isso a insegurança é mais pró pria das classes superiores e médias do que das inferiores, justamente porque nestas é menos provável e menos intenso o “piorar” . A freqüência com que em uma sociedade se prefere as “colocações seguras” mas mal remuneradas a posições mais brilhantes, porém apenas prováveis, é um dos traços mais reveladores — pela multiplicidade de suas conexões com outros elementos — de uma estrutura social e, portanto, de uma forma de vida coletiva. Análogamente ocorre com o descontentamento, que supõe a comparação com um nível, alcançado ou pelo menos imaginado e desejado concretamente, ao qual de fato não se chega — mas se poderia chegar — ou do qual se decaiu. Em outros têrmos, contentamento e descontentamento se referem mais à situação do que à condição; enquanto esta é o modo de ser ou viver que tocou por sorte a alguém, ao ponto de quase se confundir com êle mesmo, a situação é por essência uma entre vá xias, esta e não outra, e portanto intrínsecamente comparativa e
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qualificada, por conseguinte estimada em mais ou em menos. Inúmeros homens viveram sôbre o planeta sem descontenta mento econômico, não porque estivessem imersos em bemestar, mas porque sua infelicidade econômica — que é outra coisa — lhes parecia algo unido inexoràvelmente a sua condição, indu bitàvelmente desditosa, desgraçada, desventurada, etc. — palavras que remetem a outras zonas da realidade não incluidas na expresão “descontentamento” — . O descontentamento, para dizer em poucas palavras, supõe o contentamento, pelo menos em form a de possibilidade accessível; e surgiu como fenômeno coletivo precisamente graças a se ter conseguido um mínimo bem estar econômico para amplas zonas da sociedade. Além disso, enquanto o homem se atém a um mínimo, definido pelas mais perentorias necessidades, a satisfação destas parece suficiente; mas quando se vai elevando o nível de existência, e êste alcança o que não é estritamente imprescindível para subsistir, é difícel fixar seus limites, e então intervém positivamente o desejo daquilo que se imaginou e, por ser possível em princí pio, aparece como privação se de fato não se o possui. Daí a tendência à concorrência ou rivalidade que surge em tôdas as formas sociais caracterizadas por alguma margem de desafogo econômico: o luxo, as festas, os criados, os veraneios dispendiosos no século XIX, as carruagens, a aquisição dos novos modelos e dos aparelhos recentes nos Estados Unidos atuais (o que ali chamam “to keep up with the Joneses”). Como isto supõe um elemento de presença mútua e de comparação, nos conduz a outras facetas da estrutura econômica: o nível da vida e a existência de uma sociedade no sentido de “vida social”. O nível de vida define um âmbito de possibilidades. O “teclado” destas está em bôa parte determinado pela amplitude econômica; em primeiro lugar, da sociedade como tal, porque se esta é pobre, as possibilidades existentes são muito reduzidas; em segundo lugar, dos indivíduos, pôsto que essas possibilidades que “estão aí” não são sem mais disponíveis para cada um dos homens. Não é necessário insistir no fato de que o fabuloso incremento da riqueza na época industrial dilatou incrivelmente o horizonte das possibilidades genéricas do homem e, em pro porção ainda maior, o das possibilidades médias dos indivíduos na Europa e América. Porém, por outro lado, não se costuma considerar o quanto a elevação do nível de vida implica de li-
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mitação e servidão. Por exemplo, o confort, que faz sentir como penosas muitas situações e experiências, antes sentidas como normais e às quais costuma renunciar o homem habituado a viver bem: viagens incômodas, alojamentos insatisfatórios, tem peraturas extremas, m á alimentação, falta de diversões, etc. (O espírito esportivo funciona de fato como “antídoto” — isto é, compensação vital — da apetência e exigência de confort e comodidade: um caso exemplar de como a economia vital pro cura seu equilíbrio por vias aparentemente inconexas e nada “lógicas”.) A amplitude econômica, isto é, a elevação do nível de vida, tem além disso a conseqüência de ampliar também o âmbito de convivência e dilatar assim a “vida social” ou de relação. A facilidade das viagens faz com que as relações humanas se tomem muito mais ampliadas do que nos casos em que cada indivíduo vive adscrito — ou pouco menos — ao lugar em que reside; ainda na residência habitual, o número de pessoas com quem se trata está em parte condicionado pelo nível econômico. Por outro lado, o mesmo fenômeno influi no fato de que o mundo se vai convertendo progressivamente em uma estrutura intrínsecamente econômica, isto é, que funciona somente por meio do dinheiro. Não se costuma avaliar suficientemente o que isto tem de constrição e limitação: nas sociedades economicamente muito desenvolvidas, quase nada é gratuito; o mínimo programa vital requer para sua realização a intervenção de quantidades maiores ou menores de dinheiro: o deslocamento nas grandes cidades, que depende de meios de comunicação; a utilização de todo gênero de serviços, o acesso a monumentos, museus, etc.; o sentarse em muitos lugares, pràticamente tôdas as atividades, requerem dinheiro; o símbolo dêste mundo é a máquina automática que só funciona quando nela se desliza uma moeda. Por isso a probreza é mais dificilmente suportada neste tipo de sociedades do que nas economicamente mais primitivas (hoje é mais penosa nos Estados Unidos do que na Espanha, por exem plo, porque está menos prevista, porque na Espanha ainda se pode executar certas ações gratis, enquanto que o mundo norte americano — e análogamente os países industrializados da Euro pa — está articulado p or molas econômicas e se mobilizam em cada detalhe mediante pagamentos).
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Tudo isto não esgota os aspectos econômicos da estrutura social; devese levar em conta outros que também influem decisivamente nas formas que a vida adota dentro de cada sociedade. Em primeiro lugar, um fato de extraordinário volume e que ultrapassa por seus efeitos sua aparência mais visível: refirome a que em muitas sociedades, desde logo nas modernas e, so bretudo nos últimos tempos, o modo de existência efetiva dos bens econômicos é o “estar a venda” (5). O que implica que funcionam dentro de um “mercado” no sentido mais lato do termo e que, por conseguinte, a cada um dêles se lhe fixa um “preço”. E por extensão, esta mesma estrutura “contagia” realidades que diretamente não têm caráter econômico mas que, no entanto, são vividas como determinadas por um coeficiente de preço; e isto impõe uma estranha quantificação a quase todos os ingredientes da vida, e estabelece um princípio abstrato de comparação entre êles, que em outras formas de vida não tiveram; em que grau isto acontece é um a determinação im portante de tôda estrutura coletiva; e não me refiro, ao falar de grau, somente à extensão em que os preços se apliquem às coisas, mas sim à plenitude da função do preço; normalmente, êste é um uso, procedente como tal da sociedade; em certas situações, quando o Estado intervém em forma de taxa, o preço deixa de funcionar como uso e se converte em lei; mas como isto implica uma alteração de sua realidade própria, dá origem ao estabelecimento de um “preço” também inadequado, de procedência interindividual, que é o do “mercado negro” em qualquer de suas versões. Isto deixa em suspenso a função própria do preço, mas não a existência e a aplicação universal dos mesmos, e incidentalmente provoca, em um exemplo imediatamente accessível para todos, a quebra de um uso e, no que êste tem de exemplar, uma debilitação do uso, com tôdas as conseqüências sociais e morais nele implicadas (6). E, pelo contrário, notese o que significou a implantação progressiva do “preço fixo”, diferentemente do preço “fixado” em cada caso, partindo de uma procura e uma oferta iniciais, mediante a delicada articulação interindividual do “regateio”. (5) Cf. minha Introdução à Filosofia, cap. I, 15. (6 ) Cf. meu artigo “Un aspecto social de los precios’ (1948), in cluído em Aqui y ahora (Obras, III).
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Frente aos bens econômicos cabem, porém, duas atitudes bem diversas: a propriedade e o gozo. Em que medida interessa em cada caso possuir as coisas como propriedade, portanto de maneira permanente e em disponibilidade, ou então usálas, gozálas, consumilas? Cada época, cada país, cada classe social, de certo modo cada indivíduo dá sua solução particular a ésse equilibrio entre a propriedade e o gozo da riqueza. E isto influi em mil aspectos da vida: a conservação ou dissipação das fortunas, o valor comercial de certo tipo de bens preferentemente a outros, as inversões, a atitude política frente à pro priedade, a estima menor ou maior da térra, das casas, com relativa independência de sua renda, o fato de que se procure mais um ordenado elevado do que um a fortuna; e tudo isso se traduz no ritmo e nos freios psicológicos da aquisição e do gasto, na poupança, na estabilidade econômica — e, é claro, não sòmente econômica — das sociedades (7). Finalmente, convém introduzir metódicamente um conceito sem o qual a consideração econômica não pode ser rigorosamente aplicável à compreensão da estrutura de uma forma de vida: o de folga. Por não se levar em conta as pretensões humanas e por se limitar ao intraeconômico, costumase referir a folga, sem mais, à quantia da riqueza e ao nível de vida; viver com folga quereria dizer ter as necessidades cobertas com alguma sobra e falta de folga significaria algum grau de po breza. Creio que a coisa é mais complicada. A folga é, com efeito, certo desafogo, amplitude ou margem que as coisas deixam, e que toma possível seu “jôgo”, isto é, a liberdade de movimentos. Mas isto implica um a peculiar — e positiva — falta de exatidão, que em questões econômicas fica no rol do “dá no mesmo”; e isto, é evidente, é o contrário de tôda bôa contabilidade e de todo espírito rigorosamente econômico; para o contador nada “dá no mesmo”: um só centavo de diferença perturba seu balanço tanto quanto um milhão. Nas sociedades muito evoluidas economicamente — que costumam ser, e não por casualidade, as mais ricas — , é freqüente a falta de folga: esperase o trôco de um pequeno pagamento; não é indiferente pagar ou não o ônibus ao amigo, ou o taxi utilizado em comum; contase com o pagamento da pequena encomenda trazida a (7)
Cf. Introdução à Filosofia, I, 21.
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outra pessoa; só se convida ficando cada um por sua própria conta. O espanhol, por exemplo, ainda agora, sentese constrangido — qualquer que seja o nível de riqueza — ante essa atitude tão exata; não respira bem se não possui um pouco de folga; por isso permite a si mesmo gastos que outros homens não se concedem, a menos que se movam em um nível econômico muito superior; o espanhol sente mais ou menos confusamente que em bôa economia cinco centavos são cinco centavos, mas que quando isto tem que ser assim, a vida se toma triste. Por isso diante de muitos estrangeiros costuma parecer “generoso” — “mãoaberta” — , impressão que não é exclusivamente positiva, porque as vigências econômicas são muito fortes, mas que suscita certa admiração involuntária. O que ocorre é que o espanhol pensa ou pelo menos sente que a folga é uma forma vital de riqueza, não uma conseqüência da riqueza, ou um sintoma da mesma; justamente a riqueza vital — por isso a palavra “folga” não se limita ao econômico, e tem sua aplicação mais justa às formas totais da vida; há a folga de tempo, de atenção, de afeto, de compreensão — ; em suma, o luxo da vida, a forma concreta, não abstrata e quantitativa, das possibilidades. E se se fala de possibilidades e folga, é necessário acrescentar uma última precisão que consiste em saber de quem são as possibilidades. Propendese a pensar, no início, que dos indivíduos; a coisa não é porém tão simples e clara. É um fato surpreendente que as sociedades de outros tempos, evidentemente muitíssimo menos ricas do que as nossas, com um poder econômico incomparàvelmente inferior, “se permitiam” gastos que hoje se tomam impossíveis, mesmo nos países de potência econômica mais alta: deixaram por exemplo, tôda a Eu ropa repleta de catedrais e outros edifícios esplêndidos, com uma “densidade” que mostra que o fenômeno não foi uma coisa excepcional. E o mesmo se poderia dizer de outros gastos de sociedades pobres: monumentos, palácios, a Corte, etc. Dirseá que estas possibilidades eram da sociedade como tal, e que esta — ou certos poderes, o Rei, o Estado, a Igreja — as permitia à custa dos indivíduos. Porém êste modo de apresentar a questão revela até que ponto não estão esclarecidos inúmeros pro blemas: as relações entre o indivíduo e a sociedade, a m edida
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em que o individuo goza dêsses gastos que a sociedade como tal se permite, a variação histórica do que é de “interêsse geral”, a função que as diversas realidades têm na vida dos homens. O exemplo mais clamoroso de opressão econôm ica e de trabalho dos indivíduos particulares foi a construção das pirâmides do Egito, cifra da inutilidade; parece, pelo contrário, óbvio o interêsse de um serviço de estradas, de uma instituição docente ou de um museu; no entanto, terseia que examinar a fundo o papel representado pelas pirámides para os egipcios, a satisfação, o orgulho, o prazer, o ânimo, o otimismo que délas lhes veio; e uma vez feitas as contas — bem feitas — poder •seia talvez chegar à conclusão de que foram uma excelente inversão. Para nos atermos ao nosso mundo mais próximo, consideremos a irritação que produz em nossa epiderme moral, mais ou menos intensamente, o espetáculo dos vilarejos miseráveis de muitas zonas da Espanha apinhados em tôrno a uma esplêndida igreja de pedra, que levanta para o firmanfento suas torres poderosas; porém — descontandose o fato de que provavelmente quando se construiu a igreja o vilarejo não era mísero e por isso se a pôde construir — , quando se viajou por outros lugares e se comprovou a desolação de outras povoações análogas, onde a alma não tem apoio, porque sua silhueta rasa e achatada deprime infinitamente e não tolera o menor Impulso ascensional, não se pode deixar de perguntar se a orgulhosa e petulante construção, que tanto nos irritara, não será talvez artigo de primeira necessidade — e me refiro ao puramente humano, não à significação religiosa da igreja, porque o que interesa neste contexto é independente do caráter do monum ento — ; isto é, a construção das igrejas medievais ou dos palácios renascentistas talvez tenha sido algo justificado em boa economia vital, inclusive do ponto de vista dos individuos. Naturalm ente, as questões que a estrutura econômica apresenta dentro de uma sociologia digna dêste nome são incontáveis e espinhosas. Aqui não era possível — nem necessário — entrar nas mesmas: bastava assinalar uns tantos pontos decisivos em que a estrutura econômica funciona como ingrediente direto da estrutura social, e que, portanto, devem ser tomados metodicamente em conta para a investigação desta última.
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As classes sociais e seu princípio
Não cabe aqui uma teoria das classes sociais; por outro lado, quero advertir que emprego êsse têrmo em seu sentido mais lato, prévio às distinções entre castas, estados, estamentos ou classes em sentido estrito. Pertencese desde logo à classe, não se ingressa nela — apenas secundàriamente isto é possível, e na forma de mudança de classe — ; isto é, é ela um a sociedade parcial, não uma associação. Essa sociedade não é geográficamente fragmentária em relação à sociedade total — como acontece com as regiões ou comarcas — , mas significa um estrato daquela; notese, no entanto, que é secundário que êstes estratos apareçam como horizontais, isto é, uns mais altos que outros e, portanto, afetados por um coeficiente hierárquico e estimativo; isto é assim, mas não representa o decisivo e sim sua diferença e “paralelismo”. Em cada um dêsses estratos o indivíduo encontrase de início instalado. Por essa palavra entendo aqui um repertório de elementos que constituem uma “morada” ou “residência” imediata, na qual e com os quais se faz a vida. A classe é para cada homem uma primeira concre tude de sua circunstância social: usos, crenças, idéias, modos de expressão, estilos, notícias, hábitos, gestos; tudo isto é o que constitui, num a primeira aproximação, um a classe social. E por isso, o que se teria de dizer desde logo é que dentro da própria classe cada indivíduo sentese cômodo; duas determinações que se aplicam perfeitamente à casa, morada ou residência. Repare se em que esta peculiar comodidade não implica satisfação; o fato de que uma casa seja muito pouco confortável não interfere minimamente em que o dono sintase cômodo em sua casa, num sentido em que não está em nenhum outro lugar. “Como em casa não se está em nenhum lugar”, costumase dizer; e não se entende que não se esteja melhor em outros lugares e sim que não se está “assim”, cômodo, instalado, literalmente chezsoi, at home. Em outra classe social se está sempre “em casa alheia”, por esplêndida que possa ser a casa; a expressão “estar como galinha em curral alheio” reflete admiràvelmente a situação. Por esta razão, em princípio, o indivíduo não deseja sair de sua classe; a rigor, não pode, porque é a sua, porque pertence a ela, porque em certo sentido “está feito” dela: dêsses
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hábitos, formas, estilos, gostos e preferências. Em uma sociedade em que as classes existam de verdade e em forma sadia, p o d é í^ haver hostilidade entre as classes uma ou outra vez, cada uriiapoderá desejar coisas que a outra tenha — riqueza, poder, etc. — , mas para si mesma, isto é, dentro de sua pró pria condição. Quando aparece outra coisa é porque são tomadas como classes grupos sociais abstratos, definidos por uma determinação teórica ou, embora sendo real, unidimensional — por exemplo, a condição de “trabalhad or assalariado” — , que não coincide co,m a realidade humana de uma classe social efetiva. Assim, a divisão marxista — e antimarxista — dos homens em burguêses e proletários não coincide com a divisão real em classes dos povos europeus modernos, mas sim com um esquema ideológico ao qual se pretende que os indivíduos se ajustem; de fato, ao grupo “burguês” pertencem homens de diversas classes sociais, outro tanto corre com o grupo “proletário”, e finalmente, homens de uma classe são “burguêses” ou “proletários” indistintamente. Ê uma relação de “estrangeiros” a que existe entre as diversas classes sociais de uma sociedade, que naturalmente admite graus muito diferentes, mas que por sua vez supõe “contar com” as outras classes. Isto é, cada classe existe como tal porque há outras, das quais necessita para ser tal classe. É, pois, uma realidade relativa; mas se se leva isso a sério, é necessário examinar em que consiste a relação, porque quando se diz que entre duas coisas há uma, se disse pouco mais que nada. Isto obriga, pois, a inquerir sôbre o princípio das classes sociais, ou seja, ao mesmo tempo pelo vínculo de pertinência dos indivíduos a cada uma delas e pela relação concreta que as distingue e as une entre si. Quando se percebe que a maior dificuldade entre classes sociais sobrevêm ao entrarem estas em certo tipo de conexões, compreendese que a peculiaridade de cada uma afeta uma zona ou dimensão da vida. Enquanto a cooperação econômica entre homens de diversas classes não apresenta obstáculos importantes, bem como sua colaboração política ou a participação comum em uma emprêsa militar, é muito mais difícil organizar com mistura de classes um jantar, um jôgo, uma tertúlia ou um casamento. Isto é, nas formas de convivência é que a fricção das classes se faz mais patente. Mas aqui devese evitar dois êrros muito
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possíveis. O primeiro seria crer que se trata de dificuldades ¡ntcrindividuais, isto é, que surgiriam ao se estabelecer o contato dos individuos como tais. Mas não é assim, porque precisamente no âmbito estritamente interindividual é possível a convivencia entre classes diferentes, justamente quando o individual é o decisivo, quando a personalidade insubstituível de A e B eclipsa a diferença social de classe. Dois homens de classe social diversa podem ser amigos íntimos; um homem e um a mulher podem apaixonarse profundam ente, apesar da diferença de classe social. A dificuldade nasce quando se estabelece um contato concreto de quaisquer indivíduos — ou seja não interindividual — ; a relação “comensais” ou “com panheiros de jôgo” não é estritamente interindividual, mas supõe um contato efetivo e concreto de homem para homem, cada um com seu “estilo” de classe; análogamente, me referi à dificuldade do casamento e não do amor, porque enquanto êste pode nutrirse de substância individual, aquêle supõe a inclusão de modos coletivos; o Marquês de Santilhana pôde enamorarse das serranas e vaqueiras, e talvez estas dêle; porém se lhe tivesse ocorrido casarse com uma delas, teriam entrado em colisão seus mundos ou estilos respectivos, que, naturalmente, não estavam mutuamente enamorados. O segundo êrro estaria em crer que a dificuldade se deve ao fato de haver classes inferiores e superiores; que não se trata disso, isto é, que não é isto o decisivo, o demonstra a reci procidade do desconforto ou malestar: tão incômodo se sente o aristrocrata na taberna ou na partida de mus quanto o aldeão no salão ou num jantar de gala; e a serrana e o marquês sentiriam igualmente a fricção da côrte e do rebanho. As classes sociais correspondem, pois, a certas figuras de vida que envolvem a totalidade da pessoa e não somente uma atividade desta. O fato das classes propenderem a tom ar um aspecto profissional se deve simplesmente a que, nas sociedades pouco evoluídas, em que o repertório de profissões é muito limitado, as figuras possíveis coincidem com aquelas; a prova disso está em que, no momento em que as profissões se multiplicam, já não correspondem às classes mas cada um destas compreende muitas profissões, e no máximo se identifica com um “tipo de profissões”; e ainda isto não é bem exato, porque um exame mais atento m ostra o contrário: que o fato de que certas profissões sejam usualmente exercidas por pessoas da mesma classe
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projeta alguma analogia sôbre elas, em bora intrínsecamente pouco tenham que ver umas com as outras: por exemplo, o médico e o escritor, o mineiro e o cobrador do ônibus, a telefonista e a costureira. Mas isto significa, por outro lado, que as classes têm que ser poucas. Quantas? Não se pode dar um núm ero limite, porém se êste aumenta, automáticam ente as classes se esfumam e começam a ser ou tra coisa; por exemplo, profissões ou níveis econômicos. A articulação de uma sociedade em classes depende de um princípio aglutinante dentro das mesmas, diversificador dentro da sociedade; mas é preciso acrescentar que êsse princípio não é mais que um princípio: isto é, por êle começa a constituição das classes, mas nele elas não se esgotam. As diversas figuras de vida que são possíveis em cada caso estão centradas em um princípio diretor, se organizam em tôrno a êle, mas o ultrapassam em muitas direções. E êsse núcleo ou princípio costuma ser aquela dimensão da vida que em certo momento é relevante (e digo em certo momento, não em cada momento, porque, como a sociedade é sempre algo que vem do passado, é muito provável que o princípio gerador da classe atual já não seja a dimensão mais relevante da vida, e sim que o foi em outro tempo e a inércia coletiva prolonga suas conseqüências). Êsse princípio pode ser religioso — castas, patrícios e plebeus em Rom a — , de origem racial, de linhagem, econômico, etc. Os diferentes modos de se haver cam êsses aspectos da vida engen dram a pluralidade das classes ou figuras de vida, e a coincidência em um dêsses modos produz a vinculação dos indivíduos a cada um a das classes. E todos os demais aspectos adquirem um a convergência em função dêsse ponto originário. De modo idêntico em que num cristal as moléculas se ordenam em tôrno a um núcleo de cristalização e segundo certas linhas de “sistema”, as figuras vitais se condensam nos princípios geradores das classes. Porém a justificação última das classes, a razão de que se consolidem e perdurem, é que cada uma delas representa um membro da estrutura social, com uma função determinada dentro da sociedade. Por isso as classes são insubstituíveis, e isto é a compensação vital e histórica de sua ordenação hierárquica. Esta é inevitável, não porque se trate de uma simples situação de “privilégio” de umas classes em relação às demais mas porque
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a ordenação e a hierarquia são condições de todo complexo funcional, e portanto de uma estrutura de vida coletiva, qualquer que esta seja, com uns ou outros presupostos; e, naturalmente, essa ordem hierárquica não autoriza a desdenhar nenhum dos elementos, menos ainda a considerálo prescindível, porque é êle precisamente que exclui essas possibilidades: com efeito, em um conjunto desorganizado e amorfo, podese eliminar algum de seus elementos — uma porção de água de um volume dado, um fragmento de um pedaço de tecido — , porém nunca uma peça de máquina, menos ainda um membro de um organismo vivo. O estudo concreto de uma estrutura social exige portanto lucidez em relação às classes sociais; devese determ inar quantas e quais são, qual é seu princípio gerador, em que medida êste é atual ou simples pervivência, em que grau a divisão em classes afeta profundamente os indivíduos, quais são as relações entre as classes e as dos indivíduos de umas com os que pertencem a outras; por último, quais são as conexões de movimento no interior de cada uma e de umas em relação a outras; isto é, sua rigidez, estabilidade ou labilidade; e, em conexão com isto, como se sente a si mesma cada uma das classes. 48.
Labilidade das classes
A fôrça das classes é variável; de uma sociedade a outra, de um tempo a outro, as diferenças podem ser muito grandes. Entre outros fatores, isto se deve à modificação que diversos ingredientes da vida social imponham a essas “figuras de vida” básicas. O predomínio de um déles pode ter como conseqüência a atenuação do relêvo das classes; mas o que mais se dá é, uma vez mudado o princípio gerador das classes, sofrerem estas ao mesmo tempo uma transformação e um deslocamento: não só as classes adquirem contextura diversa como também a redistribuição dos homens nas mesmas se executa de outra forma. As épocas em que isto acontece se apresentam como uma crise das classes sociais, estas se esfumam, temse a impressão de que se desvanecem, porém o que realmente acontece é estarem se gestando outras novas. Por vêzes, tratase de um sim ples êrro de ótica: quando se tem uma noção inexata das cias ses, procurase entendêlas a partir do que se supõe ser seu
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princípio; e então, vendose que a realidade social não se ajusta a êsse esquema, pensase que as classes se desarticularam ou se extinguiram; mas o que efetivamente sucede é ser outra sua figura, é estarem presentes mas não no lugar em que se as procura. Isto significa que em muitos casos a atenuação das classes é só aparente; mas fica de pé a questão da possibilidade de ser eletiva e de chegar a ser total; isto é, de se caminhar para uma “sociedade sem classes”, ou inclusive chegar a ela. Talvez o único fator que realmente pode atenuar as classes é sua multi plicação; é essencial às classes o serem poucas; quando é assim, têm um perfil bem definido e assumem papeis precisos na convivência geral. Mas se as classes são mais numerosas, suas diferenças são forçosamente menores, sua justificação interna menos clara, suas funções sociais mal definidas. Então sua labilidade aumenta, tanto no sentido de que sua figura se desloque de uma para outra, como no de que é fácil para um indivíduo passar de sua própria classe originária para outra diferente. Cada homem nasce dentro de uma classe social, instalado nela, constituido parcialmente por seu estilo; tomando as coisas a rigor, o trânsito de uma classe social a outra é impossível, se se entende que o indivíduo deixa de pertencer à primeira e passa a pertencer à segunda; poderseia falar, de preferência, de “acesso” ou “ingresso”: um homem da classe A entra na B, incluise nela, atua em seu interior, porém conservando traços de sua classe nativa. Quando o princípio das classes não é estritamente intrasocial, mesmo isto é impossível; assim se dá com um regime de castas: pertencese a uma delas de uma vez para sempre e sem remissão. Em um a organização estamental, quando o princípio gerador é a linhagem, tão pouco tem sentido a transição: pertencese sem mais à linhagem dentro da qual se nasceu, e não se nasce mais que uma vez; porém a rigidez dêste esquema é moderada po r duas instâncias: a primeira, porque se tem consciência de que êsse princípio da linhagem não é absoluto; isto é, ainda que não seja um a condição social em sentido literal, o foi em sua origem; em uma sociedade cristã, por exemplo, a consciência da comunidade de origem modera o rigor da linhagem: o nobre é nobre a nativitate, mas se sabe que êle e o último plebeu descendem
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de Adão e Eva; portanto, isso que ocorre ao membro de uma linhagem não se aplica à própria linhagem: esta não é nobre a radice e sim como conseqüência de um enobrecimento, de de um acontecimento históricosocial. A segunda instância de atenuação é a seguinte: enquanto está viva a consciência de nobreza de linhagem, está viva também a potestade dêsse eno brccimento; por exemplo, a realeza continua tendo a faculdade de enobrecer; portanto, a transição de um a classe a outra é possível, não espontáneam ente, mas recorrendo ao princípio gerador das classes como tais; poderíamos dizer que não se passa de uma classe a outra, mas sim de uma delas à potestade que as pode engendrar, e através dela à segunda. A grande peripécia que aconteceu às classes é o se fundarem em um princípio econômico e o se ordenarem segundo a riqueza. Dirseá que em todo o tempo isto se deu; mas não é exato: sempre houve diferenças de nível econômico, houve ricos e pobres, e as classes coincidiram mais ou menos com êsses níveis de fortuna; porém não é esta o princípio gerador das classes e não se era nobre por ser rico, mas ao contrário: porque se era nobre — e se tinha tôda uma série de determinações sociais — se possuia a riqueza. No Guzmán de Alfarache, Mateo Alemán lamenta que a honra, a hierarquia social, esteja sendo suplantada pela riqueza: “O filho de ninguém, que se levantou do pó da terra, sendo vasilha quebradiça, cheia de buracos, partida, sem capacidade para conter alguma coisa de importância, o favor a tendo remendado com trapos, já se tira água com ela usando a soga do interêsse e agora parece de proveito. O outro filho de Pero Alfaiate, porque seu pai, como pôde ou soube, mal ou bem, lhe deixou o que gastar, e o outro que, roubando, teve o que dar e com que subornar, já são honrados, falam de cúpula e se introduzem em círculos seletos. Aquêles que antes não os teriam para semeadores, agora lhes oferecem a cadeira ao lado. Veja quantos bons estão postos a um canto, quantos hábitos de Santiago, Calatrava e Alcântara, cosidos com linho branco e outros muitos da envelhecida nobreza de Laín Calvo e Ñuño Rasura, ultrajados. Digame: quem dá a honra a uns e a outros a tira? O mais oil menos possuir” (8). Porém ao mesmo tempo está afirmando o (8)
Guzmán de Alfarache, I parte, livro II, cap. IV.
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antigo principio, porque o mais ou menos possuir não é honra mas apenas a dá, isto é, faz ingressar no marco da nobreza: “lhes oferecem a cadeira ao lado”, já os admitem em um círculo social que não é econômico, e então como se pertencessem a êste, “falam de cúpula”, isto é, com autoridade, e “se intro duzem em círculos seletos”, se intalam no ámbito ou morada da classe alheia, à qual tiveram acesso por sua riqueza. Como antes indicava, é diferente quando o princípio de articulação das classes é a riqueza; porque o dinheiro pertence àquilo que os matemáticos chamam “magnitudes contínuas escalares”, e admite todos os graus: não se é simplesmente rico ou pobre, mas se pode ser muito rico ou muito pobre, mais ou menos rico, mais ou menos pobre, em inúmeros graus; e como, por outro lado, êsses graus não são fixos e a riqueza se adquire e se perde e se torna a adquirir, as classes econômicas seriam pràticamente indefinidas, e se transitaria de uma a outra segundo os vaivéns da fortuna. O que significa que se as classes fôssem efetivamente econômicas, muito depressa deixariam de existir, pois sua extrema labilidade as anularia. Dizer que as classes tenham um enérgica dimensão econômica, é coisa diferente; mas o que não têm de econômico e sim de estilo social é precisamente o que introduz a desconti nuidade no contínuo econômico, e, portanto, define os estratos diferenciados que são, a rigor, as classes. Se entendemos por classes os níveis econômicos, então é imaginável uma sociedade sem classes — apenas digo imaginável — . Mas essa assimilação é uma arbitrariedade; e a tal ponto, que a anulação das supostas “classes econômicas” enquanto tais se obtém indistintamente ou por unificação dos níveis ou por introdução de uma mobilidade ilimitada: em uma sociedade em que todos têm o mesmo, não há “classes econômicas”; porém em uma sociedade em que todos têm acesso à riqueza segundo suas possibilidades pessoais, e portanto a alcançam em todos os graus possíveis e não se instalam em um nível fixo, peregrinando durante tôda a vida de um para outro, também não as há. E então — à parte dos nomes que se usem — os homens se instalam em figuras ou estilos de vida só parcialmente condicionados pela riqueza, e a sociedade se articula funcionalmente em vista dêstes estilos; ou, o que é o mesmo, originase uma nova estrutura de classes como membros do corpo social.
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49.
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Perfil de cada uma das classes sociais e grau de adesão a si mesmas
Definidas as classes como modos de instalação na sociedade c portanto como figuras de vida ou estilos, a compreensão concreta de uma estrutura social requer, por sua vez, a determinação também concreta de suas classes. Não basta para isso a sua enumeração: não é suficiente, com efeito, dizer que numa sociedade há tais classes; por exemplo, que na Atenas de Solon há pentakosiomedínuioi, hippeís, zeugítai e thêtes; nem sequer acrescentar a determinação quantitativa dos haveres, princípio da classificação; é necessário chegar a precisões de outro tipo, a saber, referentes a êsses diversos tipos de instalação: a isto denomino o perfil das classes sociais. Em sociedades estabilizadas, não afetadas por crises agudas, as classes existem com uma figura já antiga; consistem em um repertorio de formas de vida, composto de elementos de origens e funções diferentes: vigências, usos, “soências”, costumes, preferências, gostos, valorizações, notícias, coisas por todos sabidas, formas de expressão, matizes lingüísticos — às vêzes muito acentuados — , diversões, escala de hierarquias internas. Com tudo isso, cada indivíduo faz sua vida; e o verbo viver tem para êle um sentido muito preciso, condicionado por essa figura; assim, a vida das outras classes se lhe apresenta como “outra vida”, melhor ou pior que a sua, mas que não é a sua; cm outros têrmos, sujeita a esquemas segundo os quais não pode projetar a que lhe é própria. Dentro da fronteira de sua classe social, portanto, cada indivíduo imagina a vida pessoal que pretende realizar, julga o seu êxito ou o seu fracasso, sua felicidade ou sua infelicidade; com as formas de ou tra classe, a rigor não teria nada que fazer. E a tal ponto é assim, que para êle não tem realidade autêntica. Isto explica o fenômeno histórico — nada claro — de que em certas épocas se tenha vivido outra classe como “jôgo”; po r exemplo, é uma das razões que explicam a novela pastoril no Renascimento, mais ainda o jôgo de pastor e pastoras entre a aristocracia do século X V III: o im aginarse pastor significa estar de férias, embora de um modo irreal, da própria condição, a saber, a de cavalheiro ou dama de Versalhes; tão inexoràvelmente se é êste e não o outro, que o simulálo é um deleite; e o deleite — e portanto a vontade
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de jógo — termina no momento em que as coisas são menos alheias: desde a queda do antigo regime, os pastores estão assustadoramente próximos, e não ocorre aos cortesãos de Luís Felipe, nem por um só instante, ter como um folguedo o ima ginaremse tecelões de Lyon. Cada classe significa um esquema argumentai da vida, um “tipo” de pretensão, dentro do qual cabem as formas plenas e as deficientes, a felicidade e a desgraça, a perfeição e a torpeza, o atrativo e o enfado. Uma investigação de uma sociedade concreta tem que descobrir e filiar êsses esquemas, surpreender a pretensão genérica que os anima, os requisitos que dentro de cada um déles medem o sucesso ou o fracasso. Em outros têr mos, deve desenhar o perfil das classes atendose a elas mesmas, não confrontandoas cam um esquema alheio, por exemplo comparandoas com o que são — ou se crê que o sejam — as •classes atuais. Ainda no caso de que se justifique estabelecer uma conexão entre as classes presentes e as do passado, essa vinculação tem que ser ao mesmo tempo histórica e funcional; isto é, é preciso levar em conta a derivação efetiva das classes — que uma classe de hoje venha realmente de outra pretérita — , e a situação “homóloga” de umas em relação a outras, ou seja o fato de que desempenhem papeis funcionalmente análogos — direção, exemplaridade, defesa, sustentação econômica, etc. — . As ideologias propenderam a tomar um esquema — geralmente unidimensional e abstrato — e a passeálo sem mais ao longo da história; assim acontece, por exemplo, quando se tenta projetar sôbre as sociedades o esquema explicativo bur guesiaproletariado, útil, no máximo, para interpretar um aspecto das classes sociais européias a partir do século XIX. Naturalm ente, ao dizer que se deve traçar o perfil das classes atendose a elas mesmas, não quero dizer somente a partir de dentro; porque é essencial às classes, como antes mostrei, o serem várias e constituiremse como tais em relação, umas diante de outras. Pertence, pois, a cada classe sua figura externa, a face com a qual se apresenta às demais, e portanto o esquema de suas relações: relativa proximidade ou distância, conhecimento mútuo, exatidão maior ou menor da imagem que cada uma tem das demais, hostilidade ou afeto, admiração ou desdém, imitação, contatos interindividuais entre os membros das mesmas, confiança ou temor mútuos, impressão de “im-
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portância”, vivência de cada classe camo “ascendente” ou declinante, etc. E se consideramos agora o vínculo de pertinência dos individuos a sua classe, temos que abordar um último ponto, especialmente delicado: o grau de adesão de cada classe a si mesma. Não se trata de satisfação; esta se refere à situação da classe, a “como lhe vão as coisas”; a adesão, em vez disso, depende da sensação mais ou menos profunda de pertinência e da afirmação desta. Um aristocrata pode estar desconsolado da situação da aristocracia em certa sociedade; pode estar totalmente pessimista em relação a seu porvir; e, não obstante, sentirse radical e inevitàvelmente aristocrata, chegando até à consciência — talvez angustiante — de “não poder ser outra coisa”; e porventura também — isto não se segue forçosamente do anterior — afirmarse enérgicamente como aristocrata, manter positivamente essa pretensão, não desejar ter sido outra coisa. Quando isto acontece, os indivíduos se sentem instalados cm sua classe, nela alojados, com uma peculiar comodidade vital, independente, repito, de que as coisas lhes corram bem ou mal; porque mesmo nos casos extremos de uma classe oprimida, sentese o penoso da opressão, desejase superála, mas justamente a partir da classe: no cativeiro babilônio, os israelitas sentiamse infelizes e oprimidos, porém absolutamente israelitas e decididos a o serem até o fim; situação análoga se pode dar na convivência das classes sociais. Quando o princípio das classes é duvidoso, a instalação c muito mais difícil. O que se chamou “consciência de classe” costuma ser a afirmação deliberada de pertinência a um grupo ideológicamente definido, e que supre precisamente a deficiência da instalação. É necessário que o “proletário” tenha “consciência de classe”, justamente porque não se sente espontânea e efetivamente proletário, e sim ou tra coisa — talvez plebe, povo, etc. — ou nenhuma com clareza suficiente. Como o conceito de proletário é abstrato e fundado em uma dimensão exclusiva da vida, não traz consigo um estilo, um repertório dos ingredientes que fazem possível um a figura de vida. Ninguém pode ser proletário — entendase, viver proletàriamente — , porque de um certo esquema de condição econômica não se segue uma forma de vida íntegra. Outro tanto ocorre com o “burguês” .
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Ambos os têrmos, então, se definem pelo vazio, um por referência ao outro, e negativamente: ser proletário significa não ser burgués; ser burguês, não ser proletário. Porém como ninguém pode fazer sua vida à base do não ser, como ninguém se pode instalar na negação de uma figura de vida que por sua vez é a negação da primeira, éste esquema — e, é claro, todos os análogos, porque tratase de um exemplo particularmente volumoso — é a própria fórmula do descontentamento. Certa ocasião empreguei o têrmo “proletarização” como o fenômeno geral da perda da forma social e, com isso, da impossibilidade de instalação, que provoca um inevitável descontentamento. Nesse sentido se pode falar de proletarização de todas as classes sociais, inclusive da aristocracia; e de fato se dá em. muitas sociedades. Pensese, por exemplo, na freqüência de “proletarização” — neste sentido — do exército ou do clero; na proletarização dos intelectuais, que não consiste na condição de assalariados ou num baixo nivel de vida e sim na perda da adesão à sua própria figura, na dúvida a respeito de seu sentido e justificação. Fenômenos análogos se dão com os grupos minoritários — raciais, religiosos, políticos — quando por qualquer razão deixam de estar “instalados” em seu alvéolo peculiar. Pois bem, não é inteligível uma estrutura social sem uma idéia suficientemente clara do grau em que cada classe adere a si mesma e se encontra instalada em seu próprio alvéolo. Porque só dentro do mesmo a sociedade pode alcançar sua con cretude última, isto é, aquela em que de fato as vidas indivi dauis funcionam, as conexões entre os individuos como tais e, finalmente, os modos de realização dessas vidas; em um a palavra, as relações humanas.
VII AS RELAÇÕES HUMANAS
50.
Pessoas, homens e mulheres
Os indivíduos humanos que compõem uma sociedade estão divididos em duas metades aproximadam ente iguais: homens e mulheres. Êste fato radical significa um a das determinações constitutivas da convivência; porém como é constante e se dá cm tôda sociedade, parece que, uma vez registrado, pode ser deixado à margem, o que freqüentemente se faz. Mas na verdade as coisas não sucedem de maneira tão simples. Com efeito, o que é constante nessa situação? Somente os elementos abstratos: que das “pessoas”, metade são “homens” e metade “mulheres”. Porém estas três palavras sempre significam o mesmo? E, em segundo lugar, estão sempre na mesma relação, ou para dizer melhor, nas mesmas relações? A diferença mais profunda, ainda que aparentemente sutil, está em que homens e mulheres são secundàriamente pessoas, ou bem que as pes,soas sejam, em uma segunda determinação, homens e mulheres; isto é, que a primazia corresponda à dimensão comum, pessoal, ou, se se prefere humana, ou pelo contrário à disjunção sexuada — homem, mulher — em que a convivência se oferece (1). Em cada unidade social é decisivo o estado dêste equilíbrio: vencido nitidamente de um lado ou de outro, ou flutuante entre os dois. Do ponto de vista pròpriamente social, isto é, no que se refere às formas de vida coletiva, a diferença principal consiste em que as vigências mais fortes sejam parciais ou de (1)
Cf. Introdução à Filosofia, I, 16.
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grupo — quando o primário é a diferença entre homem e mulher — , ou, pelo contrário, as gerais — quando os homens são antes de tudo pessoas — . O mais freqüente, sem dúvida, é que as vigências gerais coincidam quase totalmente com as masculinas — salvo uma porção de pequeno volume — e que as vigências de grupo ou parciais sejam femininas em sua maioria. Isto tem conseqüências imediatas. A primeira, que o mundo — em seu sentido de realidade social — é primàriamente masculino, isto é, que o mundo é “o mundo dos homens”, no qual há, é claro, tantas mulheres quanto êles. (Ainda que do nosso ponto de vista atual propendam os a considerar isto lamentável e quase monstruoso, não se deve passar por alto o sentido de que a mulher lavre “seu mundo” dentro dêsse mundo dos homens; seria urgente medir com certa meticulosidade as invenções de humanidade, as criações sutis e deliciosas que se deve à adatação milenar da mulher a essa estrutura que hoje nos parece abusiva, sobretudo porque nossa época é uma das épocas que a percebeu. Em outra ocasião empreguei a expressão “a metade feminina dos Estados Unidos” para designar as mulheres dêsse país; e ao fazêlo tive que advertir que a usava deli beradam ente, para sublinhar que as mulheres não são simplesmente a metade da população dos Estados Unidos, a metade dos indivíduos americanos, mas sim a metade da sociedade — pelo menos — (2). A segunda conseqüência é que, sendo os usos genéricos predominantemente usos masculinos, a mulher fica submetida, salvo um pequeno repertório de usos especificamente femininos, derivados de sua condição biológica ou de suas repercussões pessoais ou sociais imediatas, a um vago e indeterminado horizonte de usos negativos, daquilo que denominei anteriormente “soências”. A pressão exercida habitualmente sôbre a mulher é negativa; não a leva a fazer tal ou tal coisa mas á não fazer, a menos que haja um acôrdo social expresso de que cada ação ou conduta é socialmente lícita. O que isto tem de limitação, paralisia e empobrecimento, nem se torna necessário encarecer; seria, porém, um êrro considerar apenas êsse lado negativo: ao lado do mesmo devese considerar o que tem de seleção, de renúncia; durante milênios, a mulher não pôde (2)
Veja-se Los Estados Unidos en escorzo (Obras, III).
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l'azer qualquer coisa — constrição pavorosa — ; mas isso a eximiu da trivialidade, da degradação, da vulgaridade que im plica o estar disposta a fazer qualquer coisa. Essa seleção im posta à mulher pela sociedade, êste “eleger” rigoroso a que se viu obrigada, à parte sua decisão pessoal, produziu nela essa elegância peculiar que a mulher possui quando comparada ao homem, prèviamente a todas as diferenças e qualificações individuais. • A terceira conseqüência é que, sendo os usos genéricos aproximadamente os masculinos, a mulher fica um pouco “à parte”, diferente — por isso, além de “elegante”, a mulher como tal tornase “distinta” — , diferenciada, e por isso atrai a atenção sôbre ela. À primeira vista, poderseá pensar que a .mulher, submetida a um rêde apertada de usos negativos, tornarseá vaga, enquanto que nas situações em que goza de franquia desenvolverá suas possibilidades e adquirirá fôrça e realce. Isto se dá quando se trata de indivíduos egrégios, isto é, a mulher com engenho inventivo e capacidade criadora tor narseá mais real, de personalidade mais evidente, quando; dispõe de liberdade e folga; porém consideradas as mulheres em seu conjunto, a situação se inverte, porque as inqualificadas — que são, naturalm ente, a maioria (, ao deixarem de ser modeladas pela constrição dos usos e não sendo capazes de inventar, se apagam, como acontece com uma silhueta pouco firme e abandonada a si mesma. E de fato, as sociedades em que a mulher está submetida à pressão de usos negativos enérgicos são aquelas em que suscita uma atenção mais viva e, portanto, em que estatisticamente — à parte, pois, de exceções individuais — pesa mais na vida coletiva. É claro que na maior parte da história conhecida, podese dizer que em quase tôda a história moderna até nosso século, a prioridade correspondeu, no Ocidente, à dimensão sexuada, isto é, bisexual, preferentem ente à pessoal ou hum ana. Mas dentro dessa situação genérica, as diferenças de uma sociedade para outra e de uma a outra época têm sido consideráveis; as alterações dêsse equilíbrio em matéria tão delicada e de am plitude tão absoluta, pois afeta em sua própria raiz a todo o corpo social, tomamse decisivas por pequenas que sejam. Um a das primeiras tarefas que se apresentam num estudo de estrutura social é a determinação da situação vigente neste ponto,.
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por comparação com as etapas anteriores, e, sobretudo, a •averiguação da direção em que êsse equilíbrio se desloca.
51.
Os modelos
O que anteriormente denominei “novelas” em que a pretensão comum se expressa (V,38) tem, além dos característicos já •estudados, outro, decisivo do ponto de vista que agora nos interessa, isto é, o das relações hum anas. Com efeito, ao lado daquilo que as “novelas” biográficas têm de novelas, deve se ter em conta o que nelas não é própriamente um ingrediente imaginário: suas fontes de inspiração reais; com outras palavras, seu condicionamento pelas vidas efetivas que cada um de nós encontra em seu contômo social. Esta é a função dos modelos, a exemplaridade. Cada pessoa se orienta em um projeto vital partindo de formas realizadas em outros; naturalmente, como ninguém pode ser seu próximo, êste só pode significar uma pauta de acôrdo com a qual o indivíduo inventa ou imagina sua própria e circunstancial biografia. As formas da exemplaridade são muito diversas e requerem condições que exigem ser enumeradas brevemente. Em primeiro lugar, a presença dos modelos. Esta pode ser direta ou não; na maioria das sociedades anteriores ao século XIX, e nele ainda, a presença im ediata foi predominante; isto tem a conseqüência de que seu campo de ação é restrito; porém, em compensação, sua influência mais completa, rica e vivaz. Normalmente, a exem plaridade se exerce dentro de uma classe: as formas mais perfeitas e brilhantes assinalam um nível para o qual tendem os demais indivíduos; entre classes diversas, a projeção não é fácil, porque a circunstância própria impede ser como o é o modêlo, e nem sequer alguém pode imaginarse concretamente realizando êsse modêlo humano. Isto é, não é possível a exem plaridade integral, mas a parcial ou fragmentária; e de fato é decisiva esta exemplaridade de umas classes sôbre outras: certos aspectos das aristocracias podem ser realizados pelas classes médias; algumas facetas dos intelectuais se podem incluir na figura dos aristocratas; êstes talvez achem que podem enriquecer sua realidade com traços tomados das formas próprias da plebe. Para citar dois exemplos de vulto, o snobismo e o
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plebeismo têm sido dois fatores decisivos na organização de diversas sociedades européias. A presença direta supõe cenários. A chamada “vida social” — salões, teatros — , as festas populares, as ruas e, sobretudo, essa esplêndida realidade que se chama a Praça Maior, cenário básico em que se tem representado o drama da vida coletiva européia, desde a Grécia até hoje. Em que medida as formas urb anas facilitam ou dificultam a presença mútua das diversas classes sociais, é outra questão que deverá ser considerada mais adiante (VII, 54). Quando as formas da convivência se complicam, como acontece em nosso tempo, a presença imediata se faz mais difícil, porém o horizonte da presença indireta se amplia enormemente. Não se pense, no entanto, que, em sociedades desprovidas de meios técnicos de difusão, o mecanismo da exempla ridade ficava reduzido à área da presença física e, portanto, interno a uma dada sociedade; porque certos indivíduos, pertencentes a alguns grupos sociais privilegiados, saiam de sua própria sociedade para ter contatos diretos com outras; e, ao voltarem, traziam a seu mundo a influência e a atração dos modelos alheios; assim se realizou durante tôda a Idade Moderna — e com menor volume e um ritmo mais lento durante a Idade Média também — a exemplaridade de umas comarcas européias sobre outras: os embaixadores, os nobres, os militares, os artistas, os humanistas, os artistas, os monges, os estudantes que saiam de Salamanca, de Burgos ou de Madrid para ir à França ou à Itália, os que iam de Paris a Londres ou de Londres à Holanda, ou de Berlim a París ou a Roma, levavam consigo os modelos próprios e voltavam enriquecidos com os alheios; não resta dúvida de que a amplitude e o tempo desta exemplaridade não eram os que permitem os meios de comunicação atuais, mas indubitàvelmente também se obtinha uma presença viva, direta no caso das minorias em que entravam em contato' efetivo, mediata porém interpretada e vivificada nas maiorias, que através das minorias privilegiadas tinham acesso aos modelos exóticos. Em segundo lugar, a exemplaridade dos modelos deve ser facilitada por uma interpretação prévia, isto é, por seu aparecimento em um escôrço preciso, no qual se tomam exemplares. Por isso é necessário um sistema de valores vigentes — o que não significa forçosamente “reconhecidos” — , de acôrdo com
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o qual são os modelos aquilatados. Ora, o sistema das preferências humanas concretas é a tal ponto íntimo e radical dentro de cada sociedade, que os nomes que o designam são quase intraduzíveis, e dentro de uma só língua é problemática sua trans posição para outra época. Enquanto as “qualidades” ou “virtudes” são relativamente abstratas e se podem transferir de uma situação a outra, as figuras humanas concretas respondem a uma secreta aspiração, quase incomunicável, de cada unidade social. São notórias as dificuldades de tradução dos nomes gregos ou latinos referentes às virtudes e aos vícios — a começar pela própria palavra areté, que significa outra coisa que virtus, a qual, por sua vez, é algo bem diverso de virtude — ; porém se se chega à palavra grega decisiva para designar o humanamente estimável — kalón — , a dificuldade aumenta de volume; e quando esta noção funciona em concreto, como no nome kalokagathós, que é precisamente o homem “exemplar” ou “modêlo”, a palavra é simplesmente intraduzível. Outro tanto acontece com expressões como bem nascido, fidalgo, honnête homme, gentleman, galantuomo, modelos humanos históricos, concretudes circunstanciais da exemplaridade. Em muitas sociedades, os nomes dos modelos são tomados de empréstimo e inau tênticos; a rigor, se se quer entender nelas o mecanismo e os conteúdos da exemplaridade, devese fazer apêlo aos nomes próprios. Quais são, em cada unidade social, os nomes que incitam,, espicaçam, alentam, comovem, despertam o desejo de ser como aquêle homem ou aquela mulher? Sem isto, não se conhece a que se ater em relação a um dos dínamos mais pro~ fundos e eficazes de uma forma de vida. Em terceiro lugar, devese levar em conta as dimensões em que a exemplaridade se apresenta. Em sociedades de estrutura muito simples e com pouca diversificação de tipos humanos, os modelos podem funcionar como um mostruário breve de versões íntegras do homem: o guerreiro, o religioso, o sábio, o magnata, a matrona; quando a complexidade é maior, a atração dos modelos se exerce em direções independentes, segundo dimensões que não são sempre as mesmas. Houve épocas sensíveis à exemplaridade física: bôa parte da história grega, o Ocidente de nosso tempo; outras muitas — assim a Idade Média européia — não tiveram essa sensibilidade ou a possuiram em grau mínimo e de forma excepcional. Talvez haja modelos se
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j;undo a eficácia e não segundo a piedade, ou inversamente; será a ciência ou o valor pessoal o que mais sinceramente comove os homens de um a comunidade. Ê necessário inquirir das dimensões humanas vivazes nesta ordem, da hierarquia existente entre elas, em terceiro lugar dos conteúdos que em cada uma se dão como exemplares. Por último, há a considerar a visibilidade dos modelos. Antes de tudo, não é o mesmo a visão direta e a indireta dos modelos vivos. Tem idéntico significado para a jovem atual a imagem de Ingrid Bergman ou de Ava Gardner na tela, que para a jovem romántica ver a duqueza de Frías em seu salão ou 110 palco da Ópera, ou para a jovem francesa de 1860 seguir as idas e vindas da imperatriz Eugênia e de sua córte? É com parável ver Napoleão entrar a cavalo, depois de uma vitória, à leitura das memórias de Einsenhower ou de Rommel? É o mesmo para o intelectual ver e ouvir no Ateneu Valera ou Cas telar que ler os livros de um autor contemporâneo, ou talvez uma sua entrevista em um jornal? Lembrese o que acontece com os modelos religiosos; à parte a exemplaridade permanente de Cristo — que é de uma ordem superior e muito mais delicada —, a vida cristã se tem nutrido ao longo da história da contemplação exemplar dos santos como modêlo de perfeição religiosa humana — sem esquecer nenhum dos dois adjetivos — ; pois bem, durante muito tempo, certo “intempo ralismo”, para o qual propenderam tôdas as formas da cultura, permitiu que funcionem como modelos vagamente atuais figuras de outros tempos remotos; em alguns casos, a irradiação delas é tal que seu fulgor perdura sem eclipses; mas em sua maioria não são traduzíveis para a nossa condição, não nos dizem nada: serão veneráveis, mas não “modelos” utilizáveis, isto é, necessitamos figuras suscetíveis de serem revividas dentro de nossa própria situação, nesse sentido atuais; e acontece que as imagens que nos oferecem os santos contemporâneos — digo as imagens, não sua realidade efetiva como pôde ser patente para outros — não costumam ser incitantes, não nos movem à admiração positiva e concreta, portanto à imitação. Uma razão disto é, quase sem exceção, o se tratar de homens e mulheres dedicados diretamente à vida religiosa, sacerdotes, frades, monjas, fundadores de institutos de obras pias, isto é, “profissionais” da religião, entendendo acertadamente essa palav ra — pa ra maior
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clareza, digase “religiosos professos” — . Tratase pois de pessoas que não estão em circunstancias comparáveis à da quase totalidade dos fieis, e portanto suas figuras não afetam nossa sensibilidade nas fibras em que seriam operantes. A rigor, em bora o homem ou a mulher sinta o apêlo da santidade dos santos contemporâneos, a figura concreta dessa santidade não lhes atrai, não lhes é accessível e imitável; não a vê como um a figura humana semelhante à sua, instalada no mesmo mundo, com os mesmos problemas, gozos e dores, com os mesmos desejos e estimativas, porém dotada de perfeição religiosa; isto é, não encontra um modêlo próximo, imediatamente inteligível e eficaz em nosso tempo, definido pela consciência histórica e, sob seus graves pecados, rebelde à inautenticidade. Os modelos vão modelando a vida. Pela sua atração e seu prestígio, sob seu poderio suave, tôdas as formas do humano se organizam. A mulher se penteia, se veste, se move observando de soslaio outra mulher de atrativo exemplar; o jovem faz os gestos do ator, do esportista, do escritor ou do político a quem admira; os gestos modulam as ações: o modo de estender a mão ou tirar o chapéu preludiam a maneira de amar; a cadência da frase leva em si o germe de uma forma de poesia e um estilo de pensamento; o modo de vestir ou a escolha de um presente, prolongados, nos levam a uma determ inada sensibilidade econômica, moral, talvez política; a fruição ou o desagrado ante uma imagem, uma devoção, um vocabulário religioso ou uma forma litúrgica comprometem em um grau incrível uma trajetória religiosa inteira. O esclarecimento de uma forma de vida coletiva requer uma indagação temática de seus modelos — dimensões em que atuam, conteúdos, grau de vivacidade, modo de presença — e, não menos, de suas falhas: daqueles aspectos em que sim plesmente não há modelos; daqueles outros em que os modelos propostos — e em cada caso é preciso perguntar propostos por quem e a quem — , talvez impostos, não funcionam como tais, porque lhes falta exemplaridade. 52.
O amor
As relações humanas concretas se definem não só pelas condições formais em que se dá o encontro dos indivíduos e
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por sua instalação em grupos sociais, e especialmente em classes, como pelos seus conteúdos. Uma enumeração suficiente déstes e ama análise de suas respectivas realidades seria assunto de uma antropologia ou de uma sociologia; como aqui se trata — não o esqueçamos — de precisar os métodos que permitirão investigar efetivamente uma estrutura social, basta levar em conta, e só dêste ponto de vista, algumas das relações humanas que condicionam intrínsecamente a estrutura de cada sociedade. As duas metades da Humanidade estão divididas e ao mesmo tempo vinculadas entre si po r sua condição sexuada; a diferença do sexo não é específica nem uma simples determinação adventicia; pertence ao que chamei a estrutura empírica da vida humana (3) e, portanto, sem ser um requisito necessário desta, é um constitutivo daquilo que denominamos o homem (4). Essa condição sexuada — diversa da dimensão estritamente sexual, que é apenas uma atividade particular e limitada dentro da economia total da vida — é o modo radical de instalação de cada individuo, mais profundo que o das classes, porque afeta os estratos mais íntimos da pessoa e, a partir déles, im pregna e penetra todos os demais. A “vida humana”, pois, em sua concretude empírica, se realiza em urna dualidade disjun tiva: homem ou mulher. Advertia, porém, que se trata, tanto de um a divisão como de uma vinculação: o sexo não é um a simples “diferença” mas sim uma relação, mais precisamente uma polaridade; cada um dos sexos coimplica ou complica o outro; em cada um vai incluido o outro, justamente na forma da referência polar. A condição sexuada não consiste, pois, nos têrmos da disjunção e sim na própria disjunção, vista alternativamente a partir de cada um de seus têrmos. Por isso a vida humana se projeta a partir do sexo próprio em direção ao outro; a divisão sexuada, longe de ser um a “separação” entre duas metades da Humanidade, faz com que a vida consista em cada fração “se haver” com a outra, introduz uma espécie de “campo magnético” na sociedade e faz com que a convivência, em lugar de ser inerte, tenha configuração e estrutura dinâmica e funcione desde logo como “emprésa”. O homem e a mulher, (3) Cf. meu estudo “La vida humana y su estructura empírica’ (em Ensayos de teoría, Obras, IV). (4 ) Cf. minha Idea de la Metafísica, cap. X (Obras, II).
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instalados em seu respectivo sexo, vivem a realidade total — não só a humana — a partir do mesmo; e a convivência aparece cindida em duas formas radicalmente diversas: dentro do próprio sexo e com o sexo oposto. Tudo o que, bem entendido, é prévio a tôda ocupação, relação ou atividade particularmente sexual, que é consecutiva a essa instalação dinâmica muito mais ampla e, é claro, permamente, que constitui por assim dizer o âmbito em que se originam os comportamentos sexuais e inclusive os “assexuais” — que nunca podem ser “assexuados” —. Sôbre êste pressuposto é que comparece todo tipo de relação amorosa. Isto é, as determinações anteriores estão ao nível da estrutura empírica, e esta é a margem de possível variação histórica; em outras palavras, as diversas formas sociais são variantes desta estrutura, que se realiza em cada caso seguindo um a peculiaridade circunstancial. Realmente, essa referência de cada sexo ao outro não acontece sempre do mesmo modo. Em primeiro lugar, a presença; é inexato dizer que os homens sempre convivem com as mulheres, porque isto é excepcional: segundo as sociedades, há uma “distância” maior ou menor entre o homem e a mulher; ou melhor, rompendo seus isolamentos respectivos, há “encontros” esporádicos entre êles; êstes encontros podem ser relativamente freqüentes e fáceis, porém quase nunca merecem chamarse convivência no sentido de convivência habitual; nossa época é uma exceção, e as conseqüências — boas ou más — a que isto vai levar não são ainda claramente previsíveis. A “distância” social entre os sexos é o primeiro fato r a determinar; e com ela, as formas, lugares e freqüências dos “encontros” : não é o mesmo entre verse fugazmente na igreja ou ao passar o carro, que contemplarse morosamente no teatro, dançar, verse sem testemunhas, trabalhar frente a frente em uma mesa de escritório, sentarse ao lado em uma aula de Universidade, em um bar, em um carro, passear pela rua. Não se trata apenas de diferenças quantitativas e sim de formas de trato: solidão ou presença de testemunhas, que êstes sejam conhecidos ou público anônimo, normalidade ou clandestinidade das relações, calma ou sobressalto, facilidade ou dificuldade de conseguilas, iniciativa. Isto condiciona as formas da sensibilidade do homem e da mulher em relação ao outro. A configuração que o sexo impõe
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¡\ convivencia determina modalidades perceptivas sôbre as quais não se tem suficiente clareza: é surpreendente a “orientação” sexuada do campo perceptivo e a conseqüente “percepção da beleza”. Em uma sala cheia de gente, em um carro do metrô abarrotado de passageiros, em uma fotografia em que se aglomeram muitas pessoas, o olhar percebe subitamente a mulher bela antes de saber qualquer coisa dos demais presentes; às vêzes passa ante nós, em um carro rápido, uma mulher a quem, a rigor, não vimos: não sabemos como ela é, não poderíamos dar nem a mais sumária descriação, não a reconheceríamos se a encontrássemos minutos depois; só sabemos que é bonita. Quando se lê os novelistas ou autores dramáticos do século XVI ou XVII, nos surpreendem os amores súbitos que ali se contam: o cavalheiro entra no jardim ao encalço de um falcão; encontra inesperadamente uma jovem, a vê e a partir dêsse momento sentese frenéticamente enamorado; êle se chama Calisto; ela, Melibea. Outras vêzes o amor surge ao ver a dama, entre veus, rezar devotamente na igreja; talvez seus olhos foram vistos numa fração de segundo, ao oferecerlhe água benta; ou, por acaso, apenas se viu da mulher sua mão branca, entre as cortinas da litera, e essa mão já não pode ser esquecida; ou, por últim o, a donzela se inflama e se lança em mil loucuras amorosas porque, de sua gelosia, percebeu uma figura embuçada e o estremecimento galante da pluma de um chapéu que cum primenta. Tudo isto — dirseá — é coisa de novelas e comédias. Seja; tireselhe porém quanto se queira de exagêro literário, ficará sempre um fundo de realidade sem o qual essas cstilizações literárias não teriam sido socialmente toleradas, tomo não o seriam hoje. Lembrese o que nos contam da sensibilidade orgiástica dos árabes diante da beleza física, e pense se se tudo isto é invariável, se se pode operar com isso como se se tratasse de “constantes”. E se se repassa um tratam ento de teologia moral percebese imediatamente que está expondo com freqüência coisas que, sob as mesmas palavras, significam algo bem diverso do que nós o entendemos. A maneira de ver a mulher e a tratar dependem em grande parte da freqüência e proxim idade de sua presença. Quando foi algo mais ou menos “insólito”, o homem se enfrentava com a mulher como algo literalmente “amável” e se considerava obrigado — diante dela e de si próprio — a fazer um gesto “amo
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roso”, pelo menos na forma de tendencia e propensão; é esta a significação da galantería. Em um a época como a nossa, em que qualquer homem vê todos os dias, durante várias horas, dezenas de mulheres, a atitude tradicional é impossível por razões quantitativas; não apenas, é claro, pela atenção e esforço que isso requeriría, como também porque o gesto “amoroso” repetido centenas de vêzes perde tôda verossimilhança, que é precisamente o que o justificava, o que lhe dava sentido, visto não se fundar em verdade alguma que nem possuia nem era suposta por ninguém. (Um dos problemas mais delicados da convivência entre homem e mulher em nossa época é encontrar o substitutivo ou “vicário” dessa galantería; porque essa é impossível; porém como tinha uma função muito im portante, ao desaparecer levou Consigo uma delicada engrenagem da vida que urge ser recuperada, embora se a movimente a partir de outros dínamos.) É necessário averiguar em cada sociedade o estado das relações nesse ponto. Porém há coisas ainda mais graves. O próprio conteúdo do amor efetivo é historicamente variável. Não se ama de modo idêntico em todos os tempos, em tôdas as sociedades, ainda que haja um núcleo funcional e alguns elementos naturais que reapareçam em tôdas as situações. Amase a partir de certos pressu postos; em primeiro lugar, em vista de certas figuras de homem e mulher que são precisamente os modelos no sentido mais enérgico da palavra; em segundo lugar, de acôrdo com um re pertório de gestos, emoções, estimativas que caracterizam cada forma de vida coletiva; em terceiro lugar, há fatores “quantitativos”, isto é, uma determinada intensidade do amor — tal temperatura ou outra diferente — , uma certa vigência dêle — em certas ocasiões o que se faz é enamorarse, em outras não “está na moda” o amor, e em cada caso tratase de determinado tipo — , uma certa freqüência estatística. Não esqueçamos que isso que se chama “amor” é uma interpretação de certas realidades vitais — e emprego o plural porque são várias e bastante diversas — , interpretação que desde logo o indivíduo que as experimenta encontra “vigentes” em seu contorno. Mais exatamente, encontra primeiro a inter pretação, e depois descobre em si mesmo — ou procura — a realidade correspondente. O jovem sabe que “há am or”, que os homens e as mulheres “se enamoram ” — e isto se lhe apre
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scnta com difrentes característicos de forçosidade, beleza, in terêsse, mistério, temor, cinismo — ; lê historias de amor ou “assiste” o amor em suas representações imaginativas, e o entende previamente a o ter experimentado realmente (5); e quando lhe acontece, efetivamente, algo que “tem que ver” com aquilo, o interpreta como amor; o mecanismo consiste em referir a nova realidade pessoal a essas noções recebidas e a fazer entrar em seu esquema, forçandoa — dentro de certos limites — a ser assim. Isto significa que o amor real está condicionado por suas formas vigentes em uma sociedade, sobretudo por suas formas imaginárias e de ficção; somente sôbre êsse pressuposto geral e coletivo podem existir os matizes auténticamente pessoais do amor individual. Pela mesma razão, o amor é inseparável de uma “linguagem”, de uma retórica e uma poética, de um modo de dizer à amada ou ao amado, e de dizerse mütuamente na relação amorosa; e é preciso entender que tudo isso lhe pertence intrínsecamente, que forma parte de seu conteúdo. Mas por outro lado é preciso fazer constar que o amor nunca é precisamente o que “se diz”, porque também lhe pertence uma dimensão secreta. Juntamente às formas públicas do amor, vigentes em uma sociedade, há suas formas reais. É necessário determinar a dose de lirismo e sensualidade, por exemplo, que se encontra na retórica amorosa e na realidade efetiva; a proporção em que o homem e a mulher se repartem em relação à iniciativa; a margem de liberdade de expressão e comportamento que cada um tem; a estima ou desdém que sentem um pelo outro; a fugacidade normal ou a normal permanência da realidade am orosa; a maior ou menor pretensão de “exclusivismo” e seu cumprimento; a importância ou trivialidade do fenômeno amoroso. Este pode ser um assunto puram ente epidérmico, relativamente inconexo, que pouco afete os estratos mais profundos da pessoa, ou bem um acontecimento radical que envolve o homem ou a mulher, ou os dois até o centro de si mesmos e os condiciona decisivamente. Em sociedades em que existe “facilidade” amorosa, normalmente o amor perde temperatura, gravidade e, portanto, interêsse. E, correlativamente, diminui seu poder, sua violência, sua delícia. Em sociedades em que (5)
Veja-se meu livro La imagen de la vida humana.
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a liberdade amorosa é grande e que estão dominadas pelo que poderíamos chamar uma “sensualidade difusa”, os atos concretos de amor, de qualquer índole, perdem seu valor, intensidade e capacidade de comoção. Pondose à parte tudo o que se tenha como retórica, apesar disso tornase incompreensível em uma clima de “inflação” o valor do beijo romântico, tal como se expressa em Victor Hugo — Enfant, si j’étais roi, je donnerais Vempire. . . — em uma Oriental de Zorrilla — Dueña de la negra toca — ou no relato de Azorín, em que o beijo de dona Inés e o poeta Diego, de Garcillán, na Segóvia de 1840, se dilata em ondas concéntricas que agitam a cidade inteira e a sacodem com um vendaval apaixonado de erotismo, murmura ções, inveja, ciumes, admiração, remorso, sacrifício. E enquanto não se percebe tudo isso claramente, não se sabe o que significa a palavra “amor” em uma situação concreta e, portanto, qual é a realidade dessa forma de vida coletiva.
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Matrimônio e família
Não é necessário insistir em que as formas do matrimônio e da famíüa constituem elementos decisivos de tôda estrutura social, ao ponto de que as sociedades se classificam com freqüência dêste ponto de vista: monogâmicas e poligâmicas, etc. Isto é tão óbvio, que sua determinação nem sequer faz parte daquilo que merece o nome de método de investigação de estruturas sociais; aqui se trata de variações históricas mais tênues, daquelas que se dão dentro de um “tipo” geral de organização matrimonial e familiar, por exemplo dentro das sociedades ocidentais modernas; e se se tom a outro esquema, seja a família poligâmica mussulmana, a tibetana ou qualquer organização primitiva, o investigador, uma vez nstalado nele, teria que chegar a precisões análogas, com conteúdos diversos. Portanto, ficaremos circunscritos às formas existentes dentro de nosso mundo ocidental moderno. Antes de tudo, convém distinguir entre matrimônio e família; o fato elementar de que o matrimônio costuma produzir uma família e de que, portanto, ambas as coisas estão ligadas, leva muitas vêzes a considerálas do mesmo ponto de vista e a as igualar. Ora, enquanto o matrimônio é uma relação inter individual, na qual entram dois indivíduos a ela preexistentes
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e que funcionam como tais, a familia deve ser vista primária mente de baixo para cima; isto é, não em sua gênese a partir do par conjugal, mas sim a partir dos filhos: a familia é, princi palmente, os pais e os irmãos — em suas formas amplas, também os avós, tios e primos — ; só secundariamente é a esposa e os filhos. “Alguém se acha” na família sem a ter escolhido; justamente ao contrário do matrimônio, que se funda em uma escolha, não é prévio e possui um caráter rigorosamente pessoal. A fusão do matrimônio e da família em uma só consideração é simplesmente uma forma de coáfusão de ambos, que perturba a compreensão dos dois. As conseqüências teóricas são graves, e delas decorrem não poucas que afetam as próprias coisas em sua realidade; por isso, já há anos assinalei entre as causas da crise da família, alguns dos defensores que lhe têm aparecido nos últimos tempos. Dos muito aspectos do matrimônio, apenas alguns tantos intervém diretamente na constituição de uma estrutura social concreta; sem dúvida, os demais podem repercurtir nela, porém investigar minuciosamente estas repercussões seria um nunca acabar; limitarmeei, portanto, a assinalar concisamente os pontos em que as formas de matrimônio condicionam im ediatamente as da sociedade. Em primeiro lugar, a freqüência estatística do matrimônio. Casamse continuamente inúmeros homens e mulheres, mas não com igual grau de “normalidade”; enquanto em algumas sociedades o solteiro é absolutamente excepcional, em outras há um número considerável de pessoas que, sem razões demasiado precisas, de fato não se casam. Isto costuma estar em estreita relação com a idade do matrimônio; o primeiro tipo de sociedades propende ao matrimônio precoce; quando po r razões econômicas ou de qualquer outra índole o casamento se atrasa, quando deixa de haver uma idade normal de se casar, as exceções começam a ser freqüentes e acabam por deixar de ser exceções. Por outro lado, falandose de idade devese distinguir: do homem, da mulher, ou dos dois? Durante longos períodos da história européia, os homens casaramse com mulheres muitos anos mais jovens; em outros tempos, as idades se aproximam, as diferenças normais são muito curtas ou nulas. São muitas as conseqüências disso: nível ou desnível das gerações, economia,
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grau de independência da mulher, fecundidade, etc.; uma delas me parece especialmente importante: que o matrimônio seja ou não uma relação de igual nível pessoal e histórico; isto é, quando marido e mulher têm mais ou menos os mesmos anos, as relações de subordinação tendem a desaparecer, e a “amizade” é mais provável; além disso, o repertório de lembranças, estimativas, experiências, etc. é sensivelmente o mesmo, enquanto que quando as idades distam mais, há muitas coisas que têm uma significação pessoal para o marido e nenhuma para a mulher — e em proporção diferente também o inverso — . Isto, por sua vez, influi decisivamente na margem de liberdade e de escolha que corresponde ao matrimônio em cada caso. Somos levados a esquecer em nosso tempo que em muitas outras sociedades o casamento pouco teve que ver com a escolha dos contraentes — especialmente da mulher — , ao ponto de que seria possível perguntarse com certa seriedade pela freqüência ou infreqüência de um consentimento efetivo. Em longos períodos da história, os casamentos foram arranjados pelas famílias sem intervenção dos interessados, das interessadas também evidentemente, e por razões de linhagem ou clase social, de fortuna, de política, por preferências endogâmicas, às vêzes raciais ou religiosas; naturalmente, nestes casos o amor tinha uma parte muito diminuta no matrimônio. Destas formas extremas à escolha recíproca livre e espontânea de duas pessoas individuais, com mínima intervenção familiar ou social, há uma longa distância, e em cada sociedade domina um certo estado da questão, que é importante conhecer. E na medida em que o matrimônio é alheio ao amor e à preferência pessoal o que acontece com êstes? Tem seu curso independente, em relações estranhas ao matrimônio? Prescin dese dêles e se convertem em exceções fortuitas? Ou para o homem se dá o primeiro caso e para a mulher o segundo? O mesmo terseia que perguntar para as relações amorosas e para as sexuais prévias ao matrimônio, sobretudo nos casos em que êste é tardio; em algumas sociedades, a “liberdade” é limitada ao homem, enquanto que a mulher fica reduzida na maioria dos casos ao amor matrimonial ou prématrimonial; em outras formas de vida coletiva, a diferença entre os dois sexos é menor; em algumas chegase a uma situação de equiparação de ambos.
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O que tem conexão evidente com a existência e importancia da prostituição e outras formas sociais análogas. Em todo caso, o matrimonio tem significação desigual do ponto de vista da pertinencia a éle de cada um dos cônjuges. Pode acontecer que os dois — ou só a mulher — fiquem absorvidos na unidade superior e já não tenham mais vida autônoma; no extremo oposto, cada um dos esposos continuam mais ou menos “em si mesmo”, prolonga sua trajetória vital, que sim plesmente fica “associada” à outra. Isto é, às vêzes o matrimônio significa uma anulação da mulher; talvez, pelo contrário, seu “lançamento em circulação” social — assim naqueles meios em que a mulher solteira “não conta”, e só a casada tem acesso ao “mundo” — ; possivelmente a constituição de uma nova em prêsa dual e uma potenciação recíproca; certas ocasiões, muito pouca coisa, uma associação relativamente epidérmica e — com certa probabilidade — passageira. E isto remete à questão decisiva da estabilidade do matrimônio. Esta, do ponto de vista das estruturas sociais, não coincide exatamente com sua indissolubilidade, porque há sociedades em que, sem divórcio, o matrimônio é instável, enquanto que em outras, existindo a possibilidade de separação legal, há estabilidade estatística, porque o divórcio é pouco usado, ou em todo caso com caráter excepcional e em vista de uma nova situação que em princípio pretende ser também estável. Naturalmente, a estabilidade é maxima quando, dadas certas condições sociais de firmeza, estão reforçadas pela vigência da indissolubilidade religiosa e legal; a qual, por seu lado, freia e restringe — ainda que não impeça — a instabilidade procedente de causas estritamente sociais. Por último, deverseia levar em conta outro fator: a “duração” do matrimônio, que nada tem que ver com o que acabo de dizer. Refirome a que a relação especificamente matrimonial como forma de convivência entre homem e mulher tem possibilidades muito diversas: freqüentemente se a considera como um simples trâmite para a “fundação de uma família” — êste ponto de vista domina as teorias da chamada “sociedade conjugal”, quase sempre cegas para o matrimônio em si mesmo — ; em outras palavras, a vida do matrimônio como tal é efêmera e se prolonga na realidade bem diferente da família. Pode acontecer porém que isto não seja assim, que o matrimônio
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tenha “argumento” e, portanto, capacidade de perduração como algo que, ainda que dando origem a uma família e existindo dentro dela, não se reduz à família. É evidente que um estudo da estrutura social requer uma série de cortes na mesma, porque as sociedades não são homogêneas e a condição do matrimônio quase nunca é a mesma em tôdas as classes ou grupos sociais, nas grandes cidades e nas aldeias, talvez, dentro de um mesmo tempo, nos casais pertencentes a gerações diferentes. Quanto à família, insisto em que, vista a partir do indivíduo que “se encontra nela”, portanto primàriamente a partir dos filhos, é uma sociedade parcial, justamente o modo de inserção norm al na sociedade em sentido estrito. Que a origem dessa “sociedade” seja uma associação — a dos esposos — não autoriza a entender a família como associação, porque esta — o matrimônio — ainda não é família. E o marido ou a mulhex formam parte da família, são “da família”, só enquanto lhes sobrevêm uma condição secundária, resultante de sua inserção na família dos filhos (ou então, em algumas formas, sua incor poração à família das gerações anteriores, à qual já pertencia como filho o outro cônjuge). A família sensu stricto é, pois, uma realidade social, porém peculiarissima, porque seu funcionamento efetivo é constituido por relações interindividuais. O filho, desde seu nascimento, en contrase em e com uma família que não escolheu nem procurou ter, e que está definida por um repertório de usos coletivos e vigências; de certo modo, se pode dizer o mesmo dos pais em relação aos filhos: também “se encontram ” com êles; e outro tanto acontece aos irmãos entre si. Mas, por outro lado, a enorme proximidade da relação familiar faz com que a maneira concreta de existir seja pessoal, isto é, que nela, junto às “funções” ou “papeis” pai, mãe, filho, irmão — em princípio assimiláveis às relações sociais mestre, discípulo, companheiro, juiz, acusado, eleitor, deputado, etc. — se dá a realidade individual e humana de cada um dos que assumem essas funções. Esta dupla face ou vertente da famüia se apresenta em tôdas as suas formas; mas segundo estas, predomina um a ou outra daquelas. Principalmente, segundo a amplitude do âmbito familiar; quando se trata da famüia como linhagem, entram nela talvez três ou quatro gerações — no sentido genealógico, não no histórico — : avós, pais, filhos, netos, com todos os
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colaterais e provàvelmente os criados; e o mais importante é então sua dimensão de “sociedade”, isto é, o que tem de instituição coletiva. Através de um a série de etapas intermédias, chegase ao outro extremo: a família definida pela convivência estrita, os que se reunem na sala de jantar ou na cozinha: pais, filhos, irmãos; como aqui a proximidade é máxima, a substância desta forma de família é sobretudo individual e pessoal. Poderíamos dizer que esta é função do matrimônio e depende: decisivamente dêste. Porém não são êstes os únicos aspectos a serem levados em conta. Dentro da família há diversas relações que em cada sociedade variam: econômicas — vinculação, morgadios, existência freqüente de capital de cada um dos esposos ou preponderância! dos vencimentos e, portanto, dos bens de renda; dependência mais ou menos longa dos filhos, etc. — ; de autoridade — do pai sôbre os filhos, do marido sôbre a mulher, eventualmente dos dois sôbre os filhos, e tudo isso em graus muito diversos; de continuidade — normalidade da residência na mesma cidade, da continuação da profissão paterna — ; de classe social — pertinência da geração jovem à mesma que a dos pais ou freqüência do “ascenso” dos filhos, por exemplo, nos países de imigração ou de economia colonial — ; quantia e figura do coeficiente de discrepância normal entre os filhos e os pais; sentido vivo ou atenuado da linhagem ou do sobrenome, etc. Todos êstes elementos permitem precisar em que grau a família cumpre em uma sociedade concreta sua função primária, a de ser a grande facilidade elementar que encontram os indivíduos desde que nascem. E devese ainda perguntar: desde que nascem, sim, porém até quando? Até que idade a família acompanha e sustenta o indivíduo, a partir de quando o deixa só — ou quase — abandonado a si mesmo, ou então invertem se os têrmos e se converte no primeiro problema sério com que cada um tem que se haver? Como a família é a form a elementar, não de sociedade, mas de articulação do indivíduo na sociedade, sua organização e estado se converte em um fator decisivo de tôda estrutura social. 54.
A amizade.
A amizade é, evidentemente, uma relação interindividual; porém, como tôdas, está condicionada pelos usos e vigências;
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coletivos; e ela, por sua vez, em sua realidade íntegra, funciona como um elemento componente das formas de vida coletiva. E, sobretudo, ao lado da amizade em sentido rigoroso, se dão também as formas “socializadas” dela, em peculiar interação ío m seus modos mais autênticos, e que são diretamente um ingrediente da sociedade. A amizade sensu stricto se dá em uma zona muito precisa de nossa vida, que é a intimidade; é um fenômeno íntimo — e nisto se assemelha ao amor — ; porém, por outro lado, é feito de respeito; creio que estas duas notas são essenciais ao fenômeno amistoso. Quando se fala de respeito, entendase bem: respeito à intimidade; o amor também respeita a pessoa amada, mas não sua intimidade, pois a invade e penetra com uma violência intrínseca, por doce que o seja, que lhe é essencial. O modo de trato do amor consiste na irrupção dentro da intimidade da pessoa a quem se ama, e na exigência de ser invadido de form a análoga. Na amizade isto não se dá; nutrese de reserva; •disse eu, uma vez, que é sempre um pacto tácito de não^agressão. Isto é, os amigos têm uma “folga” — esta é inseparável da amizade, e onde faz falta há uma grave deficiência — , mas não “abandono”; há sempre entre êles um freio, e precisamente a delícia da amizade consiste em boa parte em sua livre limitação, nesse gesto de ter as rédeas nas mãos e refreálas, elásticamente, para manter a efusão interior em seu justo limite. Enquanto pertence ao amor o ser desmedido, a amizade é sempre medida, tem que ser feita de mesura e ajuste; poderíamos dizer que é um sentimento exato. Não se pense que a amizade autêntica é por isso coisa fria ou pelo menos feita de tibieza. Pelo contrário, para que a amizade alcance sua medida justa, isto é, para locupletarse e ser em forma plena, tem que extravasarse de um ímpeto que, precisamente porque se extravasa, pode inverter parte de seu im pulso em refrearse, limitarse e perm anecer como amizade; caberia dizer que a amizade é um sentimento que inclui seu próprio limite ou dique; o ponto em que term na o constitui e o faz ser precisamente amizade, nem mais nem menos. É claro que aí reside a dificuldade do fenômeno amistoso, e é a causa de sua relativa infreqüência: a maioria das amizades são mais ou menos. Isto é, sob o nome de amizade — como acontece com o amor — se ocultam suas aproximações ou modos defi-
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cientes: os chamados amigos são muitas vêzes companheiros, camaradas, simples conhecidos, ou também amigos pretéritos, residuais. Tudo isto pertence à vida individual em seu sentido mais estrito; porém os modos da amizade, todos êles, e não somente os inautênticos, se dão em virtude de certas condições sociais. Primeiramente, alguns característicos quantitativos. Em cada sociedade há enormes diferenças individuais, mas por baixo das mesmas há uma normalidade em relação ao número de amigos que cada pessoa costuma ter. H á sociedades que vivem “em amizade” ; outras, pelo contrário, se caracterizam po r ser insólita nelas a relação amistosa. O grau de “proximidade” social, que se viva em solidão ou em presença mútua — em parte devido à estrutura das cidades, da qual logo será preciso dizer uma palavra — , determ ina a probabilidade e, portanto, a freqüência do vínculo amistoso. Para se entender uma forma de vida coletiva, é necessário determinar o círculo de amigos que é normal ter dentro dela; e em seguida traçar um mapa, isto é, precisar suas hierarquias e distâncias. Em segundo lugar, devese ter um conta a origem das amizades. Algumas procedem da infância, e existe o tópico de que os amigos mais antigos são os mais amigos; dizse às vêzes: “Somos amigos desde crianças; amigos íntimos” . É pouco provável que isto seja verdade, porque as amizades infantis são anteriores ao nascimento da intimidade nos indivíduos; isto é, o amigo de infância, se é apenas isso, não é um amigo íntimo, mas sim provàvelmente trivial, familiar, inerte; para que a amizade infantil seja autêntica e íntima, deve ser renovada e “riva lidada” depois. A quadra natural em que as amizades se engendram é a adolescência e a primeira juventude, os anos de estudo ou aprendizagem; então, o indivíduo já está “feito” como pessoa, mas ainda tenro, poroso, sem cascas isolantes, sem precauções; como cada um é ainda pouca coisa, como não possui sequer lembranças nem passado, não pode viver a partir de si mesmo e vive com os demais, em com panhia fácil e espontânea — o fenômeno freqüente do adolescente arredio e “retraido”, solitário, não altera a situação, porque é seu modo de viver os outros, e quase sempre demonstra uma sensibilidade exacerbada para a amizade, e em especial para a amizade íntima — ; quando a trajetória pessoal se inicia, ligase normalmente com
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as outras, e se realiza na convivência. Isto não significa que não se possam dar depois amizades muito vivas; possuem porém um caráter agora muito individual e concreto, e por isso são mais improváveis e escassas. Depois da juventude, a amizade é sempre um dom inesperado, com o qual não se pode contar, e depende das ocasiões; portanto, da configuração da vida. Isto é, tem condições que se cumprem em diversos graus e modos: folga de tempo — a ameaça mais grave que hoje paira sôbre a amizade — , um mínimo de folga econômica, confiança — o receio e a desconfiança coletivos são uma enfermidade social que quase impossibilita a criação de novas amizades e corroi as antigas — ; e, sobretudo, concórdia; porque quando uma sociedade está profundamente dividida, quando diante do próximo se pergunta antes de tudo qual a sua opinião, a que ideologia política ou religiosa pertence, a amizade fica automáticamente comprometida e adulterada; dirseá que dentro do próprio grupo é mais fácil e mais forte, mas não é assim, porque a relação feita em uma ou outra medida de partidarismo não é propriamente amizade, justamente porque se nutre de coincidências exteriores, públicas, e não de pequenas afinidades privadas e entranháveis, isto é, de intimidade. Mas fique bem claro que a palavra concórdia não significa unanimidade ou uniformidade; as mais variadas diferenças de opinião, estimativas ou gôsto não impedem a amizade, mas sim costumam estimulála, com a condição de não afetarem os estratos mais profundos da pessoa, deixando uma zona radical isenta e livre para a intimidade. A diferença religiosa ou a oposição política não são um estôrvo para a amizade; porém o politicismo ou o fanatismo, pelo contrário, a desalojam de seus redutos, e, digase de passagem, contradizem intrínsecamente a amizade na medida em que são constituídos temáticamente pela ausência de respeito. Até aqui, porém , não fiz menção de um ponto delicado: o sexo. E é necessário notar que quase sempre se entendeu a amizade como um a relação dentro do próprio sexo; ainda mais, é muito difundida — sobretudo, o foi — a opinião de que a amizade intersexual é impossível, de que ou é menos que amizade, isto é, muito pouca coisa, ou é simplesmente amor. E, com efeito, na grande maioria das sociedades conhecidas a amizade entre
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homem e mulher tem sido considerávelmente infreqüente(6). Eu creio que, longe de ser impossível, a amizade intersexual é a culminância do fenómeno amistoso, sua forma mais intensa e pura; que nossos melhores amigos quase sempre são nossas amigas, e que se alguém entende um pouco o homem ou a mulher, é uma pessoa de outro sexo. Mas é preciso acrescentar que o nascimento normal da amizade entre homem e mulher requer condições sociais improváveis, que raram ente se dão — nos últimos trinta ou quarenta anos, por exemplo, graças às quais houve um reflorescimento de amizade entre homens e mulheres que constitui uma das criações ou recreações do meio século que acaba de passar — . Convém recordar as dificuldades que alguns indivíduos, com uma singular vocação para isso, encontraram em outros tempos para estabelecer relações de amizade com pessoas de outro sexo; como esbarraram com a inexistência de moldes coletivos para abrigálas; como foram levados a uma adulteração de seus próprios sentimentos pela pressão das vigências e pela interpretação que êles mesmos, movidos por essas vigências, lhes emprestavam. Nada esclarece melhor certos matizes delicados de estrutura social do que a história de algumas destas amizades e de seu desvirtuamento quase fatal e conseqüente fracasso. Tudo isto nos obriga a procurar esclarecer os mecanismos da interação constante entre o individual e o coletivo, que é precisamente aquilo em que consiste a realidade social. Em outras palavras, perguntar pelas formas de convivência, ou seja pela efetividade imediata da vida social.
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A vida social.
Cada indivíduo vê certo número de pessoas. A grande parte delas, simplesmente vê: são os desconhecidos que encontra na rua, na igreja, no teatro, no café. Outra porção é composta de pessoas às quais vê e, por exemplo, cumprimenta: são os simples conhecidos, vizinhos, comerciantes habituais, clientes, com os quais “tropeça” ocasionalmente porque suas trajetórias vitais respectivas se cruzam. Um terceiro grupo é formado pelas (6) Veja-se o artigo “Una amistad delicadamente cincelada”, e meu livro Ensayos de convivencia (Obras, III).
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pessoas com as quais trata, isto é, aquelas para as quais se volta com atos concretos de convivência, que lhes estão individualmente destinados. Esta última fração contém zonas muito diversas; deveriam ser demarcadas levando em conta a freqüên cia e a proximidade do trato: há pessoas com as quais se convive uma vez por ano; outras, cada dois meses; outras, tôdas as semanas; algumas, diàriamente; e, com relativa independência disto, em graus diversos de intimidade. . A primeira tarefa que se apresenta, se se quer determinar as condições da convivência em uma sociedade, é uma avaliação média do volume de cada um déstes grupos em cada um dos estratos sociais. Se se com parar várias unidades, acharseá diferenças quantitativas enormes, que chegam a ter significação estrutural. Por exemplo, do ponto de vista do “balanço vital” e, portanto, da felicidade. Quando se compara as condições de vida de diferentes países e de diversas épocas, poucas vêzes se tem em conta, ao lado do nível econômico, da segurança, do processo técnico, o que significa a am plitude e intensidade da convivência; as condições econômicas de muitos povos latinos seriam insuportáveis com as formas de “vida social” e conversação de alguns povos nórdicos. E às vêzes se procura uma melhoria material, sem perceber que traz consigo uma perturbação de um estilo de convivência, de conseqüências dificilmente previsíveis, sobretudo porque não se costuma fazer esforço mental algum para imaginálas. Quais são os resultados — bons ou maus — de substituir a casa de habitação coletiva, com seu pátio comum e suas galerias que se seguem umas às outras, pelo bairro de pequenas casas proletárias? Qual é a conexão do clima com as formas de convivência? Como repercute sôbre as formas reais da vida o fato de que as mulheres de uma aldeia ou de uma cidade deixem de ir com seus cântaros à fonte, porque dispõem de água nas torneiras de suas casas? Qual o significado da substituição parcial dos teatros pelos cinemas, ou dos cafés pelos bares? Será o mesmo passar o serão no jôgo de prendas, escutando o rádio ou contemplando a televisão? Em segundo lugar, terseia que determinar a articulação da “distância social”. Diferem entre si um a sociedade sem cerimônia e outra cheia de etiqueta: apresentação, tratamento de “senhor” ou seus equivalentes, reserva entre vizinhos, inaccessi bilidade norm al do lar alheio, ausência de mulheres na convi
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véncia extra familiar, isolamento das classes. Quantos são os “próximos” em cada caso, e o que se denomina proximidade? Uma terceira precisão necessária é a que se refere às dimensões da vida em que se dá a convivência. Até que ponto se tem relações “integrais” , que envolvem a pessoa inteira? Ou predominam mais os “compartimentos estanques”, incomunicáveis, dentro de cada um dos quais acontece, inconexa, a vida social? H á o companheirismo de trabalho, que não transcende a vida familiar; companheiros de oficina ou de escritório que não vão juntos ao teatro, que não conhecem as respectivas famílias; relação quotidiana entre jogadores que nada sabem daquele que senta à sua frente durante três horas diárias; tertúlias de “homens sós” que começam e terminam à volta da mesa do café ou no próprio círculo, sem se projetarem em nenhuma outra esfera. O mais importante é, sem dúvida, a mescla ou separação dos dois sexos na vida social. As diferenças entre sociedades, épocas, classes, cidades, são neste ponto extremas e absolutamente decisivas. Entre as “cidades com ruas sem mulheres” da Andaluzia que cantou Antônio Machado, e as cidades dos Estados Unidos, a distância é máxima. Entre Madrid e a pequena cidade provinciana espanhola de hoje, é ainda considerável. Cada sociedade articula suas formas de convivência; muitas não podem ser compreendidas se não se tem presente que constituem expedientes para suprir ausências ou falhas de outras formas. As “visitas” do século X IX e princípios dêste, os entre atos dos espetáculos, o carnaval, as romarias, os parques de diversões, a toilette quase pública das damas do século XVIII, o “rosto velado” das do século XVII, tudo isso são formas que não se explicam diretamente, por seu “valor facial”, mas sim as remetendo a uma situação total, na qual adquirem seu sentido, a partir da qual se tornam compreensíveis e plenas de significado, talvez condições de certas parcelas ou matizes da felicidade. Essa conexão sistemática das possibilidades e modos de convivência se materializa, por assim dizer, na forma das cidades; e adquire vitalidade e movimento — portanto, inteligibilidade plena — no uso das mesmas: isto é, no emprêgo e destribuição do tempo e na articulação da vida quotidiana. Vejamolo.
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As cidades.
Um dos temas mais sugestivos — Ortega há muito o acentuou — é a morfología das cidades. Em poucas coisas a forma da vida coletiva se revela melhor. E a razão é clara: a cidade é em certo modo “utilitária”, está destinada a cumprir funções vitais, desde as mais elementares até outras muito complexas; corresponde, pois, de fato, àquilo que os homens fazem, isto é, aos conteúdos reais de suas vidas; além disso, como se trata de uma criação coletiva, não depende do capricho pessoal, nem sequer da inspiração; em terceiro lugar, como a cidade requer um longo tempo para se fazer, não reflete uma tendência passageira, uma improvisação ou as conseqüências de um ato ;de vontade individual (salvo poucas exceções, que por sua vez são reveladoras, porque manifestam estruturas coletivas que as tornaram possíveis). Porém, po r outro lado, a cidade não é apenas utilitária, como um simples instrumento ou um mecanismo; tôda cidade é também artística — por isso pode ser bela ou feia, o é uma das duas coisas irremediàvelmente, ou as duas em certa proporção — , isto é, expressiva, e o que se ex pressa é um estilo, uma estrutura de alma, uma pretensão que vai além do meramente funcional e utilitário — quando a cidade se reduz a isto, significa que essa e não outra é a pretensão imaginativa dessa sociedade, ou seja, que o fato de que algo seja somente utilitário não é utilitário: vai mais longe e descobre zonas muto profundas do homem que assim se apresenta. Por tudo isto, uma cidade é o texto em que se pode ler a contextura de uma alma. Mas devese acrescentar uma no ta im portante: a cidade que demora em fazerse — por isso não é caprichosa — , dura muito tempo; exceto em sua fase de fundação, quando ainda não é cidade, é sempre antiga. Norm almente o indivíduo vive em uma cidade que não fêz, que nem sequer seus coetáneos fizeram, mas sim seus antepassados; é verdade que a transforma e a modifica, sobretudo a usa a seu modo, descobrindo nisso sua vocação peculiar; porém, desde logo, é uma realidade recebida, herdada, histórica. Isto é, nada mais nada menos do que a própria sociedade. Por isso é defícil de entender; por isso é profunda, radicalmente reveladora. '• O que primeiro se tem a dizer quando se estuda a estrutura de uma sociedade do ponto de vista das cidades é que pode
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não as haver. Isto é, há formas de convivência que não são cidades — normalmente coexistentes com estas — ; a isto se denomina ruralismo, e nada é mais urgente do que determinar a proporção de ruralismo em uma sociedade concreta e sua função dentro dela; evidentemente, incluindo nessa função o estado dinâmico do ruralismo: que esteja em situação estacionária, que seja um resíduo em vias de desaparecer ou, pelo contrário, que esteja em um processo de ruralização. Naturalm ente a oposição entre cidade e campo não é absoluta; o ruralismo requer as cidades (eu diria mais, se manifesta nas cidades, é propriamente uma afecção das cidades); porque se não houvesse estas, dificilmente se poderia falar com rigor de uma sociedade. O campo como “mundo” humano não exclui a existência de “povoações” e nem sequer impõe que estas sejam muito pequenas; o são o rancho, a granja, o casario vasco, a aldeia galega ou asturiana; porém não o pueblo castelhano, ainda menos o andaluz — não digamos algumas povoações africanas — e que, no entanto, são formas estritas de vida rural. O característico desta é sua radicação no campo, e isto em três sentidos: primeiro, a localização em um a comarca determinada, naquela em que alguém nasceu ou se estabeleceu — por exemplo, em virtude de um a colonização — ; segundo, a profissão de camponês, lavrador, agricultor ou pecuarista; terceiro ,a pro priedade da terra. Podese ver que é relativamente secundário que o camponês “viva no cam po” ou “vá ao campo” — como é freqüente em Castela, em Andaluzia, em grande parte da França — , a partir da povoação rural em que esteja. E a convivência se determina por uma série de usos comuns — antes de tudo os usos agrícolas, o que se costuma chamar em cada região “uso de bom lavrador”, mas também tradições, divertimentos, cantos e bailes, costumes, alimentos — . Por último, é característico do mundo camponês o ser composto de poucos indivíduos, conhe cidos pessoalmente, dos quais se sabe os nomes, entre os quais se percebe imediatamente o “forasteiro” ; é, pois, um mundo fechado, finito e definido, e além disso conhecido por todos. Mas ainda há mais: êste mundo mínimo se articula com outros semelhantes, com os quais entra em comunicação infre qüente e excepcional — festiva ou econômica, ou ambas ao mesmo tempo: a feira — ; são as demais unidades rurais, as outras povoações ou aldeias, que são outras, mas que possuem
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uma afinidade essencial, princípio da comarca ou da região — segundo os casos — . E diante a isto, o outro, o mundo alheio e em princípio oposto, a cidade. A cidade que pode estar localmente próxima, vitalmente é muito distante, porque está definida por outra forma de vida e por conseguinte por outro tipo humano. Daí o não ser fácil a “instalação” ; o camponês sentese cheio de desconfiança em relação à cidade, vêse nela como “galinha em curral alheio”, olha com desconfiança e hostilidade o homem urbano, pensa que vai ser por êle enganado e escarnecido. Na cidade, por sua vez, é freqüente o desdém pelo “matuto”, ou “caipira” — nomes significativos — , e se propende a considerálo como um tipo cômico, desajeitado e embaraçado, que se move na cidade como uma ave aquática sôbre o solo. Esta situação nada tem de comum com as rivalidades e hostilidades entre homens rústicos, fundadas precisamente na comunidade de pressupostos e no que, se entendem muito bem. Daí o êrro abstrato de considerar como uma classe única — os proletários — “operários e camponêses”, cuja distância social é enorme, muito maior que entre o peão agrícola e o proprietário, ou os diversos habitantes da cidade ,7) Tôdas as sociedades são, em maior ou menor proporção, rurais; a função recíproca do urbano e do campestre nas mesmas é uma questão delicada e que importa muitíssimo entender. Há cidades de costas voltadas para o campo; outras orientadas para êle. Em algumas comarcas se dão graduações desde a cidade rural até a cidade pura, que ignora o campo, o nega, e no máximo entra em relações com êle mediante a “excursão”. Falta ainda trata r das cidades mesmas. A razão de que as cidades sejam decisivas em tôda sociedade, até naquelas de predomínio rural, está no fato de serem o órgão da socialização ou, se se prefere, da sociabilidade. Uma sociedade é sociedade e, sobretudo, é uma graças a suas cidades. E as formas destas refletem admiràvelmente a estrutura social. Não pretendo fazer aqui uma morfología ou tipologia das cidades; assinalarei apenas uns tantos pontos de vista metódicos que se orientam nessa direção ou, de um modo mais restrito, na da interpretação do que significam as cidades dentro de uma unidade social. (7) Veja-se meu artigo “El campasino y su mundo” em Aquí y ahora (Obras, III).
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O primeiro ponto de vista a considerar é o tamanho das cidades, que tanto preocupou os gregos, sobretudo os autores de tratados políticos ou politeíai. Abaixo de um certo tamanho, a cidade não é possível, porque não atinge o desenvolvimento, a diversificação de tipos, profissões e serviços que a vida urbana requer. Se, pelo contrário, ultrapassa certa magnitude, a unidade se tom a problemática. Naturalmente, não se trata de constantes: o limite da cidade antiga, na qual se caminha a pé, no m áximo a cavalo, em liteira ou em carro, não coincide com o da cidade moderna, com meios de transporte freqüentes e rápidos; indubitàvelmente, êstes meios de fato são muito limitados, porque sua multiplicação os complica e os dificulta: as grandes cidades atuais tendem a se dividirem em bairros, dentro dos quais a vida se dá, apenas com saídas esporádicas até outros alheios. Dentro de um país, é importante a graduação das magnitudes das cidades — Alemanha, Itália, os Estados Unidos — ou a descontinuidade em que se passa de cidades pequenas ou medianas a algumas imensamente maiores — Paris na França, a grande distância de tôdas as demais, Viena, Buenos Aires, Rio e São Paulo no Brasil, inclusive Madrid e Barcelona na Espanha — . O critério social para distinguir entre grandes e pequenas cidades é que os habitantes delas sejam conhecidos individualmente entre si ou não; que a rua seja um mundo conhecido — ou pelo menos em grande proporção — , em que se sabe quem é cada um, ou no máximo baste perguntar para o saber, ou então um âmbito de desconhecidos. Aind a mesmo nas cidades relativamente grandes funciona a relação de conhecimento mútuo em grupos parciais: a aristocracia, os intelectuais e artistas, a grande burguesia, os moradores de um bairro. Quando se passa de certa magnitude, entrase inexoràvelmente no anônimo, inclusive dentro das minorias, a não ser exíguas e especialmente qualificadas. Um segundo ponto de vista é o da clausura das cidades. O caso extremo é o da cidade murada. Porém mesmo sem muralhas, a cidade pode estar fechada e isolada, ou porque esteja “absorta” em si mesma — como, segundo Ortega, o Madrid de
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Felipe IV ou o de La Verbena de la Paloma (*) — , ou porque fora dela haja um contorno inóspito e pouco atraente. Mesmo as grandes cidades dos Estados Unidos são muito mais abertas do que as européias e as sulamericanas. Como extremo oposto à cidade murada está a pequena cidade norteamericana — assim em New England — , que propriamente “está no campo” , onde a vegetação penetra por tôdas as partes, que pode ser interpretada igualmente como uma cidade cheia de jardins comunicantes ou como um parque ou campo com pequenas casas; de contorno indeciso, que se prolonga com menor densidade de vivendas ao longo das estradas e se une quase tão impercepti velmente a outras cidades que estas se apressam a avisar em uma tabuleta: Welcome to X ou You are entering Z. Em terceiro lugar, as cidades apresentam diversas estruturas internas. O característico das cidades mediterrâneas clássicas, também das medievais de tôda Europa, embora em menor grau, foi o estarem definidas por um centro, quase sempre uma praça — ágora, foro, praça pública, praça maior — ; são cidades cefálicas, se cabe a expressão, com uma cabeça em que se condensa a vida e em que, sobretudo, a cidade inteira se faz presente a si mesma. Quando é muito grande, se pode dar uma multiplicação dêsses centros: é a cidade policéfala, em que há, por exemplo, duas, três, quatro praças, em tômo das quais a vida se organiza; às vêzes essas praças são simplesmente centros de partes da cidade, com diversidade apenas topográfica; em certas ocasiões implicam uma diferenciação de funções: pode haver um centro da vida mundana, um centro econômico, talvez um terceiro popular, possivelmente um outro político; finalmente, existem cidades acéfalas, nas quais falta o centro da convivência, e esta é inorgânica; são cidades com menos unidade e, sobretudo, com menor publicidade; cidades sem “Praça Maior”, geralmente minimamente políticas — as cidades dos Estados Unidos em sua maioria — . Algumas vêzes a organização da cidade não se faz à volta de praças e sim linearmente, ao longo de ruas centrais: é a “Rua M aior” — Main Street das (*) Trata-se de uma pequena peça musicada — sainete ou zarzuela —, de 1894, muito popular na Espanha. A letra é de Ricardo de la Vega, e a música de Tomás Bretón (Nota do autor para a tradução brasileira).
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cidades americanas — das cidades sem cabeça mas com uma espinha dorsal, vertebradas ou cordadas, possivelmente com algumas praças secundárias como centros subordinados, por exemplo nos extremos da rua principal (assim Sória na Espanha). Um quarto aspecto é a organização social das cidades, isto é, a distribuição urb ana das classes sociais. Existem bairros precisamente definidos, como na Idade Média ou no Renascimento: bairro nobre, bairros ou ruas gremiais — bordadores, latoeiros, curtidores, ferreiros, tecelães, lupanares — , bairro judeu ou ghetto. Estas frações relativamente isoladas e independentes se encontram em certos pontos: catedral, mercado, praça, e só ali se vêm e convivem. Porém , embora persistindo uma, diferença de bairros de diferente nível social, há uma convivência nos mesmos de várias classes sociais; assim, no século X IX foi freqüente que se estratificassem em planos horizontais, isto é nos diversos andares das mesmas casas: no subsolo de um edifício vivia um médico — em favor da clientela para quem era penoso subir escadas — , no principal um aristocrata, no segundo um notário, no terceiro um funcionário, no sótão uma costureira, e nos cômodos interiores um sapateiro e um cordoeiro ou um aguadeiro. Nos últimos tempos se encaminhou para uma divisão por bairros, e as diversas classes sociais só se vêm excepcionalmente, já não convivem nessa forma mínima do encontro e do cumprimento na escada ou à porta da casa comum — as conseqüências políticas e sociais disto são especialmente graves — . (Muito recentemente, quando as dificuldades de encontrar moradia forçaram as pessoas a viverem onde a encontram, em bora fora de seu gôsto ou conveniência, uma nova mescla de classes sociais se produziu, porém com o caráter de confusão inorgânica e ao acaso. E p ara a época estritamente atual é preciso levar em conta as cidades nas quais não se reside e que estão destinadas a funções de convivência — centros industriais ou financeiros, escritórios públicos e privados, casas de espetáculo, comércio — , ao lado de bairros ou cidades residenciais, dedicadas apenas à vida privada e familiar — assim os suburbs das cidades norteamericanas — , o que dá origem a um a cisão das agrupações urbanas e a um constante tráfego entre as duas partes das mesmas — os commuters dos Estados Unidos, que se dirigem pela manhã à cidade grande e voltam à tarde, depois do trabalho, à casa de madeira com gramado e árvores de seu
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suburb, a dez, vinte ou cinqüenta milhas talvez — . Na Espanha, à medida em que algo análogo se passa, é justamente o contrário: o funcionário que presta seus serviços em uma cidade pequena vive em Madrid ou em Barcelona e vai trabalhar no lugar de seu “destino” ; é o se chamou originàriamente “guadalajarismo” , e, à medida em que as comunicações foram melhorando, se vai estendendo até Sória, Saragoça, Oviedo, Murcia ou Granada). Nas cidades em que estão centralizados os serviços de todo gênero, as diferentes partes urbanas entram obrigatòriamente em relação. E ra o que se dava com as catedrais na Idade M édia e em bôa parte dos séculos modernos; foi o caso norm al do comércio, centralizado em poucas ruas onde se comprava; dos espetáculos, concentrados em pequeno número de locais próximos; dos Bancos — há poucos anos todos os de M adrid esta vam na calle de Alcalá — ; dos cafés acumulados em certas partes da cidade. Porém em outras estruturas urbanas, e a elas se tende de modo crescente, tôdas essas funções se dispersam: multiplicamse as igrejas, deixa de haver uma à qual afluem todos os fiéis e se vai, às pressas, à mais próxima; podese com prar quase tudo na sua própria rua ou na imediata; vaise ao cinema do bairro, onde são passados os mesmos filmes que em dez outros; freqüentase o café onde se pode ir caminhando, sem necessidade de transportes públicos; utilizase os serviços da sucursal mais próxima do Banco, que as estabeleceu em tôdas as zonas da cidade. Por último, a partir da época industrial, devese levar em conta as cidades com uma periferia proletária, que em alguns casos é simplesmente de caráter operário, em outros tem um caráter de regressão e degenerescência social, e finalmente em outros ainda, de bairros “marginais” não assimilados ao con junto social urbano: bairros judeus, negros, índios; de imigrantes incorporados deficientemente; de discrepantes ou vencidos. São as formas diversas de arrabalde, subúrbio — no sentido espanhol recente —, banlieue, slum. 57.
O tempo e a vida quotidiana.
O caudal de tempo que cada homem possui vai sendo invertido nas ocupações da vida quotidiana. Um a forma de vida coletiva é, entre outras coisas, uma maneira peculiar de consu
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mir o tempo de que se dispõe. E a porção dêsse tempo e seu uso revelam a pretensão do homem em cada sociedade. Sua porção? — poderseá dizer — . Não é esta invariável todos os dias, exatamente vinte e quatro horas? Poucos exemplos mostram tão claramente quanto êste, como no homem nada é natural — entendase, nada é só natural — , e que o hum ano reclama sempre uma intervenção livre e imaginativa da pessoa, que transforma os “dados” físicos e faz dêles ingredientes de uma vida pessoal. Os homens costumam se queixar — pelo menos em nossa época — de falta de tempo; em compensação, sabemos de outros que sentiram a penosa necessidade de “matar o tempo” que, pelo visto, lhes sobrava e lhes era um estorvo. Vinte e quatro horas, segundo parece, não são sempre o mesmo tempo. Desde logo, não é indiferente que o tempo esteja ou não quantificado no sentido estrito; em formas de vida primitivas, o tempo se divide em duas partes, dia e noite; e a segunda tem significado apenas para o descanso; a primeira, por vez, se divide e se articula segundo a altura do sol sôbre o horizonte, porém muito vagamente. Entre os povos antigos e medievais, ainda hoje na vida do campo, as horas são aproximadas e impõem apenas uma elástica “configuração” ao dia, que não chega a ser estrita quantificação. Esta só aparece com os relógios exatos, quando cada hora se abre e lança sôbre nós, como uma granada, seu conteúdo terrível: sessenta minutos, cada um dos quais encerra — e isto é simplesmente pavoroso — sessenta segundos. A partir daí o tempo, em lugar de fluir mais ou menos depressa, ou então nos banhar vagaroso no remanso do deleite, ou tomarse compacto e resistente na espera, se converte em uma magnitude mensurável e exata que chega, passa, se acaba, se desfaz e nos faz viver sobressaltados e descontentes. A “hora fixa”, a interferência das séries de ações, a necessidade da simultaneidade, isto é o grave. Que a minha chegada à estação tenha que coincidir com a pressão do vapor nos^ ém bolos da locomotiva; que tenham de ser simultâneos minha chegada ao escritório e a vertical do ponteiro do relógio; que os aplausos no teatro tenham que preceder a passagem do último ônibus que me conduzirá à minha casa. Creio que as estradas de ferro foram os fatores da primeira quantificação do
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tempo humano; as conseqüências foram — e continuarão a ser — tremendas. Não é apenas isto. Do tempo de que dispõe — mais ou menos quantificado — , o homem faz duas partes: o que considera seu e o que lhe parece alheio; aproximadamente, esta divisão coincide com aquela introduzida por Ortega a respeito das ocupações: trabalhosas e felicitárias. O tempo que cada um “vende” para viver não é “seu”; é tempo “alienado”, que se sente como perdido; o “próprio” é o resto livre, daquele que se pode dispor pa ra o que se queira. Em que proporção em cada sociedade se dividem ambos, em cada forma de vida, em cada classe? Salvo formas de trabalho excessivamente opressor — assim como o trabalho forçado dos escravos, galeotes, presidiários, ou de formas econômicas excepcionalmente penosas — , sempre resta uma margem “livre”. Porém a decisão de se um tempo é livre ou não, depende de como é vivido subjetivamente, isto é, da pretensão vital. É o grande problema do “ócio” — palavra quase inútil no espanhol; deverseia perguntar sèria niente por que — , o loisir ou leisure, do otium latino (oposto ao negotium) ou da skholé grega (de onde vem, não as férias mas sim a escola). Ao homem do povo parecem “ócio” muitas ocupações que não são seu trabalho — freqüentemente todo trabalho que não é muscular — ; desde logo, as ocupações da aristocracia, que é interpretada como “classe ociosa”, embora ela mesma considere que êsses afazeres constituam uma tarefa penosa, uma corvée, ainda que de fato exijam grande esforço. Pelo contrário, talvez o escritor, o artista, o investigador, ainda que sinta a fadiga e necessite exercer violência sôbre si para levar a cabo sua obra, não a vê como “trabalho” no sentido de tempo alienado, e sim como o que é mais seu, e lamenta não ter tempo. . . para isso. Em nossa época, entre o tempo próprio e o alienado ou vendido utilitàriamente para se poder subsistir, devese levar em conta uma terceira fração que poderíamos chamar o tempo de ninguém; e êste absorve uma parte considerável de nossas vidas, as mutila e as recorta, as diminui. É o tempo que “se perde”: em primeiro lugar, em se deslocar — não viajar, nem passear, que são duas formas de “inverter” o tempo — ; as horas e horas consumidas diàriamente nos bondes, nos ônibus, nos metrôs, nos trens suburbanos; as que desaparecem diante
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das bilheterias dos teatros e cinemas; os infinitos minutos que se desvanecem diante do disco vermelho dos cruzamentos; as horas inumeráveis aniquiladas nos trámites burocráticos, que são a forma atual dos sacrificios humanos, nos quais a vítima é diretamente o tempo, substância da vida biográfica. E esta é a razão de que, depois de ter sido conseguida em todos os lugares a redução do dia de trabalho, quando se passou da labuta de sol a sol às onze ou dez horas, depois à quase mítica oito horas, por último às quarenta horas semanais ou menos talvez, se oiça uma perpétua queixa de falta de tempo. A distribuição do dia é um dos fatores que mais sutil e profundam ente condicionam uma forma de vida. Madrugar ou tresnoitar, comer a tal hora ou outra, concentrar o trabalho em uma primeira parte do dia para deixar uma livre margem ao fim do mesmo, ou então fazer com que o trabalho se estenda menos premente e com descansos, da manhã à noite; tudo isto revela uma pretensão média dominante em uma sociedade, um repertório de desejos, uma idéia do que é a vida feliz. O homem que se levanta ao amanhecer, corre pressuroso ao seu trabalho, o interrompe por meia hora, uma no máximo, para fazer um almoço rápido, depois se esforça para terminar às cinco da tarde e ficar com um fragmento de dia exclusivamente seu, possui outra contextura que aquêle que prefere permanecer na cama até que o dia se levante de todo, ir à sua casa almoçar lenta e copiosamente, conversar à sobremesa, talvez dormir um pouco a sesta, voltar ao local do trabalho outra vez, terminálo já à noite, sem tempo de iniciar qualquer outra atividade a não ser passear, tomar um aperitivo com os amigos, assistir um cinema. De quanto tempo livre dispõe o homem médio de cada grupo em uma sociedade determinada? Em que o inverte? O que lhe parece “perder o tempo”, e o que, pelo contrário, aproveitálo? São estas as perguntas que se deve responder em cada caso. E precisar também se em uma época concreta essa articulação da vida quotidiana que está vigente corresponde às apetencias autênticas dos indivíduos, ou se êstes a sentem como uma imposição coletiva, como uma organização que perdura por inércia e que se desejaria mudar. Qual é o lugar sentimental das “diversões” oficiais, do passeio, da tertúlia, do não fazer nada a não ser, por exemplo, tomar sol. Quantas horas de solidão o homem possui, quantas a mulher? O que representam
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o jôgo, a leitura, o esporte, o galanteio? Qual é o lugar do aborrecimento em uma sociedade? E éste, a que conduz? Talvez a fazer ciência, ganhar dinheiro, conspirar, ou possivelmente a tomálo como a própria condição da vida. Para sermos sinceros, teremos que reconhecer que a sociologia e a historia não nos permitem, até hoje, responder suficientemente estas perguntas em relação a quase tôdas as sociedades, incluindo a nossa própria; e que sem as responder não sabemos o que significou para êsses homens “viver”, menos ainda “ser feliz”. 58.
As idades e a trajetória vital.
Não só o tempo de cada dia, o da vida quotidiana, pode ser ordenado de diversas maneiras; o tempo total de que o homem dispõe em sua vida terrena se ordena de maneiras diferentes, e esta sua disposição interna afeta a melodia vital em seus estratos mais profundos. Desde logo, a trajetória vital pode ser mais ou menos longa; não apenas de fato e em cada individuo, como também estatisticamente e como determinação da estrutura empírica da vida. Em bora a morte seja certa e a hora incerta, contase — vaga e inseguramente, mas com firmeza — com uma duração aproximada de nossa permanência neste mundo. Os homens vivem, de um modo geral, tantos anos; podem morrer antes, porém sentese que morreram “antes do tempo”, que sua morte foi prematura; podem também morrer depois, porém se pensa que é uma sorte ou dom inesperado que não lhe é devido, com o qual não se pode contar. A economia vital se ajusta a um horizonte provável e opera em função déle e — repito — de sua insegurança. Mais acima (11,11) me referi à repercussão sôbre as gerações do fato comtemporâneo da longevidade média humana. Em cada vida individual e nas relações interindividuais repercute análogamente. O horizonte da vida, que há bem pouco tempo se fechava aos sessenta anos, hoje se dilata, pelo menos, quinze ou vinte anos mais. E sendo a trajetória vital mais longa, é mais “distendida”, isto é, possui outra curva, outra figura diferente; e suas articulações, as idades, variam de duração absoluta e de função no conjunto. Em cada sociedade há uma idade que é considerada adulta — e costuma ser diferente para os dois sexos — . A infância
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pode ser muito rápid a ou bastante longa; a juventude também. Mas não seria suficiente uma simples determinação cronológica de sua duração; terseia que precisar tôda um a série de dimensões reliativamente autónimas. Por exemplo, em algumas sociedades a iniciação sexual é precoce — pelo menos é mais precoce do que na época anterior ou na sociedade vizinha — ; pode porém acontecer que a dependência econômica do jovem em relação a seus pais se prolongue mais; se de um lado, pois, parece que a infância se abrevia, de outro, pelo contrário, se dilata. Talvez o jovem se sinta apto para ocupar postos im portantes, sentese porém justificado por longos anos não fazendo obra intelectual, literária ou artística importante, madura, adulta — talvez seja esta a situação nos últimos anos — ; pode ocorrer que desde muito cedo o jovem tenha que enfrentar os perigos da guerra, porém um sistema de autoridade senatorial o exclui até bem tarde da intervenção na vida pública. A juventude é às vêzes fugaz; ou então se estende elásticamente durante decênios; e isto pode ser — e é preciso determinar do que se trata em cada caso — vitalidade, flexibilidade, necessidade de perpétua provisoriedade. Com a maturidade lidarizarse com uma atitude ou forma de vida, insegurança e necessidade de perpétua provisioridade. Com a maturidade acontece algo semelhante: o homem se instala nela longos anos, como em uma idade que simula uma ilusão de permanência e estabilidade, ou pelo contrário se lhe apresenta como a anunciação de próxima e inevitável decrepitude. E a velhice, po r último, funciona algumas vêzes como simples espera insubstantiva da morte, enquanto que em outras sociedades se converte em uma idade com atributos positivos, segura de si mesma, talvez orgulhosa e cheia de esperança. O esquema das idades afeta ainda mais profundamente a mulher. Do ponto de vista biológico se admite que a mulher é mais precoce que o homem e que seu envelhecimento é mais. rápido; porém, mesmo que seja assim efetivamente, parece problemático que se trate apenas de um ritmo biológico; será, talvez, uma estrutura vital traçada por uma situação social concreta, embora não reste dúvida qué fundada nas condições biológicas. De fato a infância se prolongou: as mocinhas de quatorze anos, que em outros tempos muito freqüentemente já estavam casadas, hoje, salvo exceções, nos parecem meninas..
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A juventude, em compensação, que há um século terminava pouco depois dessa idade, dura incrivelmente mais — ainda que a expressão sôe insólita, ouvese dizer com perfeita naturalidade “uma moça de quarenta anos”, enquanto que o ouvido não protesta mas sim a intuição quando se fala de “um ancião
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bordinação da mulher a um marido muito mais velho e experimentado; falta de comunidade de “nivel histórico” , por pertencer a diferentes gerações; menor probabilidade da “amizade inerente ao casamento, não só pela diferença de idade como sobretudo pela falta de maturação independente da mulher, quando passa da infância ao casamento quase sem transição. Nossa época se situa em um extremo de “durabilidade” da mulher e de “paralelismo de idade” entre os sexos; seria porém um êrro supor que tôdas as sociedades anteriores se ajustaram ao mesmo esquema; as diferenças são muito importantes, e sòmente uma mensuração meticulosa de cada uma das idades e sua articulação entre si pode permitir reconstruir a figura efetiva da trajetória vital. 59.
A morte e o valor da vida
Embora a morte possa parecer um elemento constante e invariável, sendo como é inevitável para todos e têrmo da vida, dáse absolutamente o contrário: é difícil encontrar outra realidade a respeito da qual variem tão profundamente as interpretações e que condicione em tal medida a perspectiva em que as demais se apresentam. As razões pelas quais a morte é previvida de diferentes maneiras são várias. Uma delas sua freqüência, isto é, aquela com que aparece diante de nós; todos os homens morrem, e a morte se dá, portanto, uma vez em relação a cada um; como a vida média na Europa em redor de 1500 era calculada em vinte e dois anos, e nos Estados Unidos em 1953 em sessenta e nove, isto significa que a morte feria antes com freqüência mais de três vêzes maior; se em lugar de tomar as condições européias se compara com as da Índia ou da China, que em tôdas as épocas tiveram enorme mortalidade, se vê a que ponto pode se mostrar diversa a vivência do fenômeno mortal como algo que acontece no mundo em que vivemos. E isto leva à modificação da consciência de “certeza” da morte: em certas formas de vida, ela é sempre iminente; contase com ela como podendo sobrevir a qualquer momento, como algo que nos pode alcançar quando menos esperemos, a nós ou às pessoas que não nos são indiferentes; em outras situações, pelo contrário, a morte parece mais longínqua; podemos dizer que é certa, porém em cada caso e em
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cada momento improvável; certa e inevitável, mas concretamente inverossímil. A determinação do grau de probabilidade com que a morte é vivida em cada sociedade, é um requisito imprescindível para entender essa forma de vida e tôda uma série de comportamentos humanos. A mortalidade infantil elevada, o desaparecimento de milhares de pessoas por fome, epidemias, inundações e qualquer gênero de desastres; a facilidade do falecimento “inexplicado”, por enfermidades vagas que não são localizadas, são fatores que levam a uma fácil aceitação coletiva da morte como algo que pertence à própria condição da vida em seu pormenor, portanto, dentro de sua trama quotidiana, não como um pano de fundo que a limita no futuro. Em outras formas de vida, porém, a morte está mais ou menos “localizada”, contida dentro de certas fronteiras e as grandes calamidades parecem descartadas: esperase que não haja fome, nem peste, nem terremoto, nem — em algumas fases da história — guerra. A m orte se racionaliza, se reduz a medida; as companhias de seguros a pre vém e a calculam estatisticamente; e até para cada indivíduo avaüase sua probabilidade: uma estipulação de sua idade e um reconhecimento médico fixam a importância da apólice que se deve pagar, isto é, a verossimilhança da morte. Explicase cada óbito, sabese — ou se pretende saber, pelo menos — porque morreu cada homem; da vaga “dor de costas” que acabava com tantas vidas há meio milênio e mesmo há um par de séculos, às precisões do diagnóstico atual há um longo caminho; cada vida é definida incrivelmente melhor; lutase com a morte como se em princípio fôsse possível vencêla; onde antes deixavase a foice trabalhar, agora são tentados remédios extraordinários: operações, transfusões, transplantes de órgãos; os médicos vôam de avião até pacientes remotos; êstes acorrem de continente a continente em busca de hospitais famosos; os “pulmões de aço” vão e vêm céleremente, competindo em velocidade com a morte. E como conseqüência disso, esta parece sempre, e cada vez mais, acidental e violenta, em vez de ser inevitável e natural. Ainda não podemos medir a transformação que isto produzirá na sensibilidade vital, no modo de sentirse instalado na vida. Nós os homens de hoje, pelo menos os que já somos adultos, não nos sentimos muito afetados, porque estamos submetidos às vigências anteriores — do mesmo modo com que a
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segurança da aviação está minada subjetivamente pelas recordações de um tempo ainda muito próximo, em que voar era simplesmente disporse a cair — ; dentro de poucos decênios, se outros fatores não vierem alterar esta situação, verseá a enorme transformação operada. E faço esta restrição porque a ameaça de guerra, e sobretudo das armas atômicas, está introduzindo nas mentes a noção da probabilidade da morte com uma fôrça desconhecida no Ocidente há séculos; talvez se trate de uma compensação necessária para a boa economia da vida. Mas não se trata apenas da freqüência ou probabilidade da morte; uma vez que ela se dá ou na medida em que ameaça, o que faz o homem com ela? Ao longo da história, a ocupação hum ana com a morte varia em intensidade e em conteúdo. Não se pense na “preparação para a morte” mas sim em coisas mais triviais. Por exemplo, nesse tipo de mulher espanhola, tão freqüente no século passado e que perdurou por êste a dentro, que se poderia chamar “préviuva”, que passava a vida antecipando a morte de seu marido, prevendoa e contando com ela. Pense se igualmente na reação diante da morte alheia: cabalas a res peito da data em que se dará, toque de finados na igreja, velório, entêrro com cerimônia coletiva, ritos funerários, luto longuíssimo e tétrico com suspensão da vida social e quase da vida privada. Com parese êstes usos com a redução ao mínimo da presença e do aparato da morte, quase sitiada em algumas sociedades — é a tendência dominante nos Estados Unidos — , onde mal se a aponta, se abreviam trâmites, se localiza o luto à função de traje de cerimônia fúnebre, sem repercussão sôbre a vida quotidiana, tendese a “normalizar” a situação logo que a morte se tenha dado — pelo menos na dimensão da convivência e, portanto, de sua repercussão social — . Desde a mulher indú, para quem a morte do marido significa o fim de sua própria vida na fogueira, até a situação daquele que desa parece quase “pé ante pé”, inadvertidamente e sem perturbar a ninguém, a distância é tão grande como só o pode ser no humano, isto é, no histórico. Isto é suficiente para o que aqui me interessa: mostrar que uma estrutura social está parcialmente definida pela realidade que a morte possui dentro dela e assinalar quais são os pontos de vista a partir dos quais se a deve considerar para determinar sua função concreta. E um estudo minucioso disso revelaria
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que as diferenças entre sociedades, muito próximas no restante, podem ser grandes e, sobretudo, que a variação é às vêzes muito rápida dentro de uma sociedade, perceptível talvez de uma geração à seguinte. Em conexão com isto, devese acrescentar uma palavra sôbre um tema muito próximo, mas que se deveria tomar inde pendentemente e não em estrito paralelismo: o valor que a vida humana tem em cada sociedade, portanto a resistência que nela provoca a ação violenta, sobretudo quando com caráter individual, como por exemplo o crime; mais ainda quando não é algo fortuito e acidental mas simplesmente deliberado e voluntário, como a pena de morte. Em grandes períodos da história ocidental — para não trazer exemplos mais remotos — , esta não teve demasiada importância; foi aplicada com certa liberalidade, porém, sobretudo, com perfeita naturalidade, como algo que está dentro da ordem e acêrca do qual não há porque fazer demasiada algazarra. Não se pense sòmente em crueldade e dureza de coração, porque o grave está no fato de que dêsse estado de espírito participavam em certa medida as vítimas: ser enforcado ou decapitado era certamente algo lamentável, que se devia evitar se possível; um contratempo grave, um mau trago, um revés da sorte; salvo exceções, nada mais. Tenhase presente as Memórias do capitão Alonso de Contreras; lembre se o procedimento da Santa Irmandade nos tempos dos Reis Católicos; o humor com que os escritores do século X V I e XVII se referem a uma execução, tanto quando se trata da realidade — Cartas de Jesuítas, Barrinuevo, Cartas de Madame de Sévigné — como quando se trata de ficção — Cervantes, Quevedo — . Enquanto o verdugo Alonso Ram plóm escreve a atroz carta burlesca a seu sobrinho Pablos contandolhe como acaba de enforcar seu pai e esquartejálo depois, e quão galhardamente se portou, Victor Hugo escreve Le demier jour d’un condamné à mort, Lara y Espronceda El reo de muerte, Dickens subleva a opinião inglêsa contra as execuções. Lembrese o patetismo, o lirismo, a retórica com que se antecipa, descreve e lamenta em vários capítulos a morte na forca da ciganinha Esmeralda, em Notre Dame de Paris, e comparese com êste parágrafo de Salas Barbadilho, desenlace de sua novela La hija de Celestina, onde se conta a execução dos protagonistas: “[A Pe rico]. . . a graça tornouse amarga; porque, dentro de dois
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dias, o fizeram adorno da forca, dependurandoo nela, com satisfação de tôda a Córte. Elena não o acompanhou, porque à tarde a levaram — causando nos corações mais empedernidos lástima e sentimento doloroso — ao rio Manzanares, onde dan dolhe um garrote, conforme a lei, a encubaram”. Qual o valor que se confere à vida, dentro de uma determinada sociedade? Com que imaginação ou com que mecânico automatismo se pensa na morte? Isto é provávelmente o decisivo, não uma simples questão de “crueldade” ou “ternura”. O que leva a perguntar, um pouco mais sériamente, como funciona a morte no horizonte vital, qual é seu lugar e seu péso na perspectiva das ultimidades e, portanto, como se organiza a figura total da vida.
60.
A perspectiva das ultimidades
As últimas palavras que acabo de escrever levariam talvez a pensar que o referirse à morte em virtude de um ato de simples menção, sem plenitude imaginativa, a liberta de seu as pecto de realidade trem enda, enquanto que a consideração que põe efetivamente em jôgo a imaginação lhe dá uma feição pavorosa e angustiante. E sem dúvida norm almente é assim; mas, a rigor, as coisas são bastante mais complicadas. Porque o que de fato acontece é que a falta de imaginação esquematiza a morte, a reduz a suas conseqüências — entendase a algumas de suas conseqüências — e, sobretudo, a aliena, a converte em morte de qualquer um, de ninguém determinado, e nessa mesma medida a trivializa. Para bem e para mal; isto é, para lhe tirar horror e ao mesmo tempo atrativo. Porque não se pode desconhecer que a morte pode excercer — e muitas vêzes o fêz — uma singular fascinação sôbre os homens. Temos que prescindir aqui, é claro, das atitudes individuais que, como componentes de uma estrutura social, não são relevantes; o que interessa são as vigências nesta dimensão da vida, aquelas que cada indivíduo encontra e que exercem sua pressão sôbre êle, qualquer que seja sua posição pessoal; porque esta tropeça com a atitude dominante, da qual cada membro da sociedade, enquanto tal, participa, embora como indivíduo singular reaja contra ela e seja um discrepante.
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Imaginese uma sociedade definida pelo esquecimento coletivo da morte. Todos os homens sabem, naturalmente, que têm que morrer, e a realidade se encarrega de o recordar a cada passo; não obstante porém, os conteúdos da vida omitem a morte, esta permanece exterior a êles, inconexa, como término extrínseco da vida, “fora déla”. Em tal situação, o individuo mais intimamente ocupado e preocupado com a morte não tem suportes coletivos pa ra sua atitude pessoal; na medida em que se move entre estruturas sociais, em que põe em jôgo as molas comuns — crenças, usos, estimativas, modos de expressão — , sua vida transcorre “alheia” à morte, e sòmente em virtude de uma violência interna pode reinvidicar para si próprio um reduto em que a morte propriam ente existe; o que implica que essa existência terá, inclusive para êle, caráter excepcional. Pelo contrário, o indivíduo menos propenso a orientar sua vida para a morte, cujas crenças o levam a um máximo de indiferença, se está submerso em uma sociedade que faz da morte seu centro, não terá outro remédio a não ser o de se haver com ela a cada passo, e portanto, ainda que sua vocação o leve em outro sentido, sua vida estará constituída, em proporção apreciável, de diversos afazeres em tômo ao morrer. Porém a morte funciona em dois sentidos bem diversos, cada um dos quais, por sua vez, se desdobra em duas possibilidades diferentes. Ainda que de maneira excessivamente esquemática, poderíamos distinguir quatro perspectivas em que a morte pode aparecer; indubitàvelmente são muitas mais, e êste esquematismo é insuficiente; mas como aqui não se trata da vida individual e sim da função da morte como ingrediente das diversas estruturas sociais, é justamente êsse esquema o que interessa e se toma coletivamente operante. A morte é uma fronteira e, portanto, tem dois “lados”: para cá é o térm ino ou o acabarse da vida; para lá é, desde logo, um mistério que se pode interpretar de muitas maneiras: o aniquilamento, a reencarnação, diversos graus e formas de imortalidade, a dúvida. As duas vertentes, os dois “lados” da fronteira são inseparáveis; porém a atenção se orienta muitas vêzes preferentemente para um dêles, em certos casos com quase absoluto exclusivismo. Em certas sociedades o que conta é a finiíude da vida; esta se acaba em um dia mais ou menos remoto, e a êsse dia chamamos o de nossa morte. Outras vêzes,
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suposto isto, se pensa e se sente que “a vida” é só “esta vida”, trajetória provisoria e fugaz que nos leva à outra através de uma porta chamada morte; a outra vida exerce sucção sôbre esta, a atrai para si e faz com que a morte não funcione como um muro ou barreira, e sim como uma passagem — porta mais ou menos estreita — ou como um poço negro que não leva a nada, quando se espera o aniquilamento no outro lado da linha fronteiriça. Não é necessário insistir na gravidade que tem, para uma forma de vida e de convivência, o fato de ter um ou outro sinal a crença dominante em uma sociedade: a perspectiva de todos c de cada um dos elementos que estudamos neste livro, se altera em função desta última vigência decisiva que volta a atuar sôbre todo o restante e lhe dá uma concretude precisa. E não só isso. Estas duas interpretações da morte, a cismundana e a transmundana, deixam abertas, por sua vez, duas possibilidades respectivamente: as determ inadas pela conexão da morte com a vida. Explicarmeei. Partamos da atitude cismundana. A vida é finita, os dias estão contados, um déles será o último. O que quer que faça o homem, po r fim morrerá: adoecerá incuràvelmente, sofrerá um acidente, poderá ser assassinado. Em todo caso, o homem viverá dia por dia, e um dêstes não terá amanhã. Esta atitude se move sôbre a crença em uma faticidade da morte, que a faz inevitável e independente da vida. Chamo a isto a morte cismundana inconexa. Propriamente, nada tem que ver com a vida; esta transcorre a seu modo, até que termine; talvez a vida possa ser mais ou menos exposta à morte, mais ou menos perigosa: um a vida que se abstém de excessos, riscos, aventuras, oferece menos vulnerabilidade, toma a morte, em cada momento, menos provável. Isto é tudo. E por conseguinte, a vida aparece como indiferente vista a partir da morte, e esta como “inorgânica”, isto é, não se articulando com a vida nem tão pouco conferindo articulação alguma a ela. Dentro da mesma atitude cismundana, as coisas podem ser de outra maneira: Basta que se sinta a morte como algo que forma parte da vida. Se se pensa que a vida termina positivamente na morte, que esta lhe confere unidade e figura, a vida tôda se orienta para o morrer, cada ato vital preludia um modo de morte, o postula, o exige por uma lógica interna, não aceita qualquer morte. Inversamente, esta volta a operar sôbre a
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vida anterior, a configura, a “explica” e interpreta, isto é, dá sua verdadeira significação a cada um dos atos vitais que estavam incompletos, inconclusos, imperfeitos, à espera de que a morte lhes desse o último toque e a plenitude de sua realidade. Então a vida se orienta para a morte; não no sentido de que a busque ou procure, mas sim no de que a escolha; a vida se converte na busca de uma boa morte, e isto, repito, em sentido cismundano. Por isso a morte aparece como uma boa ocasião' ou oportunidade, que se deve aproveitar. Ninguém expressou éste modo melhor do que Quevedo, ao idealizar nostálgicamente a atitude vital dos espanhóis anteriores a seu tempo:
Y aquella libertad esclarecida, que en donde supo hallar honrada muerte, nunca quiso tener más larga vida. Y pródiga del alma, nación fuerte, contaba por afrentas de los años envejecer en brazos de la suerte. Del tiempo el ocio fuerte, y los engaños del paso de las horas y del dia, reputaban los nuestros por extraños. Nadie contaba cuánta edad vivía, sino de qué manera; ni aun un hora lograba sin afán su valentía (9). (E aquela liberdade esclarecida, que onde soube achar honrada morte, jamais quiz possuir mais longa vida. E pródiga de alma, nação forte, contava como afronta das idades envelhecer no âmbito da sorte. Do tempo o ocio forte, e os enganos do tránsito das horas e do dia, reputavam os nossos como estranhos. (9) Quevedo: Epístola satírica y censoria contra los costumbres presentes de los castellanos, v. 34-35.
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Ninguém contava o quanto que vivia senão de que maneira; nem só uma hora usava sem afã sua valentia). Quando a morte honrada se apresenta, urge aproveitála em lugar de querer prolongar a vida envelhecendo de modo inerte, sofrendo as “afrontas das idades”, que desfiguram a silhueta harmoniosa de uma vida bem acabada; e frente à quantificação da idade, a forma, a figura, a maneira. Sòmente isto perm ite entender a vida espanhola do Século de Ouro e, em certo modo, a vida espanhola de qualquer idade, porque quando vivemos de outra maneira nos sentimos “em falta”, privados de nosso autêntico modo de ser. A mesma dualidade se pode dar na atitude transmundana diante da morte. A consideração do lado de lá da fronteira mortal pode ser positiva ou negativa, segundo se espere ou não; porém em ambos os casos se abrem duas possibilidades de inconexão ou conexão com a vida terrena. Aquêle que pensa que ao fim de tudo será aniquilado, o que quer que faça, ainda que disso se angustie, desliga a morte da figura de sua vida, e uma e outra são mutuamente “indiferentes”. Pelo contrário, a posição desconfiada de Sénancour, que tanto comovia Unamuno, é radicalmente oposta: “L’homme est périssable, il se peut; mais périssons en résistant, et si le néant nous est réservé, ne faisons pas que ce soit une justice” (10). E outro tanto se pode dizer da atitude esperançosa, inclusive da crença firme na imortalidade. Quando esta fé se mecaniza — a isto se dá em muitas formas sociais — , a “outra vida” parece assegurada pelo cumprimento de certas condições, de algum modo abstratas, isto é, desligadas da figura total e concreta da vida terrena. Se se cumprem certos requisitos — moralidade, ritos, sacramentos, etc., segundo os casos — , será alcançada uma vida ultraterrena, em uma ou outra forma, segundo as diversas crenças; e isso com relativa independência da vida que se levou a cabo no mundo; digo relativa, porque se reduz aos pontos que são objeto dessa exigência a vinculação entre esta vida e a outra. Portanto dá no mesmo ter vivido de um modo — humano — ou de outro; é indiferente que a vida (10)
Sénancour: Oberman, lettre XC.
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dêste mundo haja tido ou não figura, beleza, plenitude, intensidade, autenticidade, desde que se abra a porta da perdurável. Chamo a isto a morte inconexa, porque não conhece entre as duas vidas outra conexão a não ser um condicionamento, e em caso algum a vida futura se apresenta como uma maturação ou perfeição, como uma culminância coerente desta. Frente a esta atitude há, não obstante, aquela que afirma essas conexões. Ainda que nas Danzas de la Muerte se vê desfilarem todos os tipos humanos do tempo — o Papa, o Imperador, o Condestável, o Físico, o Cura, o Lavrador, a Donzela, etc. — e são mencionados seus respectivos ofícios ou modos de viver, a substância é igualitária e, nesse sentido, abstrata: todos acabam igualmente, todos morrem sem distinção, sem mais diferença que o prêmio ou o castigo, segundo tenha agido “bem” ou “mal”; salvo isto, à hora da morte todo demais é indiferente, tanto dá ter sido um pontífice ou uma jovem, cavaleiro ou labrego, tal pessoa individual ou outra diversa. Não é êsse pressuposto que vivifica as Copias de Jorge M anrique, embora assinale que tudo passa, que a morte tudo destroi, encerra e transpõe. Em primeiro lugar, a evocação de todo êsse mundo fenecido está penetrada de seu colorido, sabor e perfume; tudo está individualizado, vivido concretamente; é irreparável, insubstitúível, mesmo quando perecível e destinado a passar; daí a fruição e a melancolia que impregnam as estrofes:
¿Qué se fizieron las damas, sus tocados, sus vestidos, sus olhares? ¿Qué se fizieron las Damas, de los fuegos encendidos de amadores? ¿Qué se fizo aquel trovar, las músicas acordadas que tanían? ¿Qué se fizo aquel danzar, aquellas ropas chapadas que traían?
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(O que foi feito das damas, de seus tocados, vestidos, seus perfumes? O que foi feito das chamas, dos fogos mui inflamados de amantes? Que foi feito do cantar, das músicas harmoniosas que soavam? Que foi feito do dançar daqueles ricos brocados que trajavam?) E quando Jorge Manrique vai narrar a morte de seu pai, o mestre don Rodrigo, cuida bem de traçar seu perfil, de ex plicar quem o foi, de apresentar a morte como cumprimento e coroação suprema de sua trajetória mundana, de sua biografía; a ponto de fazer entrar em jôgo, além da vida terrena, a da honra e da fama, e ambas são, não desprezadas nem desqualificadas, mas apenas menosprezadas (prezadas, embora menos) ao lado da vida eterna sobrenatural; e esta se põe em íntima conexão com a que o mestre está terminando em sua vila de Ocaña, histórica e circunstancialmente:
Después de puesta la vida tantas veces por su ley al tablero, después de tan bien servida la corona de su rey verdadero, después de tanta hazaña a que no puede bastar cuenta cierta, en la su villa de Ocaña vino la Muerte a llamar a su puerta. . .
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(Depois de jogada a vida tantas vêzes por sua lei ao tabuleiro, depois de tão bem servida a corôa de seu rei verdadeiro, depois de tanta façanha a que não pode bastar conta certa, em sua vila de Ocaña veio a Morte o chamar à sua porta. . .) A Morte o anima concretamente, apoiandose, em sua per suação e em seu convite para a grande viagem, no que Don Rodrigo foi, quiz ser, preferiu e estimou:
No se os faga í a n amarga la batalla temerosa que esperais, pues otra vida más larga de fama tan gloriosa acá dexáis. Aunque esta vida de honor tampouco no es etemal ni verdadera, mas con todo es muy mejor que la otra temporal perescedera. El vivir que es perdurable no se gana con estados mundanales, ni con vida deleitable, en que moran los pecados infernales;
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mas los buenos religiosos gánanlo con oraciones y con lloros, los caballeros famosos con trabajos y aflicciones contra moros. Y pues vos, claro varón,
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mas os bons religiosos ganhamno com orações e com choros, os cavaleiros famosos com trabalhos e aflições contra mouros. Pois vós, preclaro varão, tanto sangue derramastes de pagãos, esperai o galardão que neste mundo ganhastes pelas mãos; e com esta confiança, e com a fé tão inteira que possuis, partí com bôa esperança, que est’outra vida terceira ganhareis). E ainda com mais concisão e com dilacerado apégo, Que vedo exprime esta conexão da morte com a vida, em seus sonetos amorosos:
Cerrar podrá mis ojos la postrera sombra, que llevare el blanco dia; y podrá desatar esta alma mía hora a su afán ansioso lisonjera; mas no de esotra parte en la ribera dejará la memoria, en donde ardía: nadar sabe mi llama la agua fria, y perder el respeto a ley severa. Alma a quien todo un Dios prisión ha sido, venas que humor a tanto fuego han dado, medulas que han gloriosamente ardido, su cuerpo dejarán, no su cuidado: serán ceniza, mas tendrá sentido; polvo serán, mas polvo enamorado.
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(Venha fechar meus olhos a postreira sombra, que me trouxer o branco dia; e venha desatar a minha alma hora a seu afã ansioso lisonjeira; mas não dess’outra parte na ribeira deixará a memória, aonde ardia; transporá minha chama a água fria, perdendo o respeito à lei severa. Alma a quem todo um Deus prisão há sido, veias que humor a tanto fogo hão dado, medulas que hão gloriosamente ardido, seu corpo deixarão, não seu cuidado: serão cinza, mas terá sentido; pó o serão, mas pó enamorado). ( E talvez de um modo mais explícito, com plena consciência da finitude da vida, mas sem que isto lhe sirva de pretexto para renegála e não lhe ser solidário:
No me aflige morir: no he rehusado scabar de vivir; ni he pretendido alargar esta mueftre, que ha nacido a un tiempo con la vida y el cuidado. Siento haber de dejar deshabitado cuerpo que amante espíritu ha ceñido; desierto un corazón, siempre encendido, donde todo el Amor reinó hospedado. (Não me aflige morrer; não hei recusado acabar de viver; e nem pretendido alongar esta morte, que há nascido igualmente com a vida e o cuidado. Sinto ter que deixar desabitado corpo que amante espirito há cingido; deserto um coração sempre acendido, onde todo o Amor reinou hospedado).
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Poderseá perguntar por que êste estudo termina com o testemunho dos poetas. Interessame demonstrar que não se trata de meras possibilidades e sim que essas quatro maneiras da morte funcionar, realmente se deram em diversas circunstâncias históricas, que as diferentes perspectivas assinaladas não são simplesmente imaginadas; e por isso foi mister trazer aqui a voz dos poetas, não a dos homens de teoria; isto é, um a voz carregada de concretude humana, expressão de uma sensibilidade que não é somente individual mas que descobre a pulsação oculta do tempo. Devese porém ter em conta que as atitudes individuais são muitas e muito diferentes e que nenhuma delas é suficiente para caracterizar o que uma sociedade é. Ao lado daquilo que cada um de nós pense, sinta e acredite, existe a vigência do tempo, com a qual todos nós deparamos, com a qual temos que fazer nossa vida. Como se acha nosso mundo — não apenas nós mesmos — frente à morte, ao aniquilamento, à imortalidade? Em que medida se desinteressa, se angustia, duvida, confia na vida perdurável? Com profundo acêrto, Una muno entitulou seu livro Del sentimiento trágico de la vida en ios hombres y en los pueblos; porque talvez o possua um povo, embora possam déle carecer muitos de seus homens, ou o sintam apenas alguns indivíduos, estrangeiros junto a outros que nem sequer o suspeitam. Urge investigar, com o máximo escrú pulo e rigor, qual é o estado, vigor e autenticidade das vigências. Porque éste é o ponto crucial da questão, e sem que isto se esclareça nunca se poderá pesquisar a sério uma estrutura social.
s
INDICE Pág. APRESENTAÇÃO .................................................................... I.
II.
O tema da investigação: a estrutura social ..................................................... 1. Sociedade e história 2. O sujeito da história ................................................... ............................................. 3. Regiões, nações, Europa 4. Inseparabilidade de sociologia e história .................. 5. As estruturas sociais, definidas por tensõese movi mentos 6. O problema da “situação histórica” .......................... 7. Elementos analíticos e empíricos da estrutura ......... 8. Macroestrutura e microestrutura da história: épocas históricas e gerações ......................................
27 30
33 38 41 43 46 48
Dinâmica das gerações 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.
•III.
9
Articulação das gerações ............................................... 55 A determinação empírica das gerações .................... 58 Coexistência e sucessão das gerações ........................ 62 As gerações e sua expressão ....................................... 64 Massas e minorias .......................................................... 68 A estrutura “representativa” das sociedadeseuropéias 71 O problema dos pressupostos ..................................... 76
Às vigências sociais 16. 17. 18. 19. 20.
A idéia de vigência ........................................................ 83 Limites das vigências ...................................................... 86 A vigência geral e as fronteiras de umasociedade 89 O conceito de vigência parcial ..................................... 92 As diversas dimensões da sociedade e a pugna das vigências ............................................................................ 96
INDICE
292 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. IV.
A discrepância como ingrediente social ...................... 102 Vigência implícita e vigência explícita ................... 104 A relação do indivíduo com as vigências ............... 107 Graus e fases das vigências ......................................... 110 Gênese, declínio e substituição das vigências ......... 113 A estrutura social e sua integração pelas vigências 119 As crenças básicas ......................................................... 125 Sistema hierárquico das crenças ................................ 128
Crenças, idéias, opiniões 29. Duas formas de atenuação das crenças: a volatiliza ção e a adesão intelectual ....................................... 30. Interação de idéias e crenças .................................... 31. O sistema da estimativa ............................................... 32. A ideologia dominante ou imagem intelectual do mundo ............................................................................... 33. O que “se” sabe e “quem” o sabe .......................... 34. Os modos de difusão das idéias ................................ 35. A opinião e sua dinâmica .......................................... 36. Opinião privada e opinião pública ............................
V.
145
149
153 157 166 170
Pretensão e felicidade 37. 38. 39. 40.
VI.
133 138
A pretensão coletiva e suas versões individuais .. As “novelas” em que se expressa a pretensão . . . . Prazer, diversão e felicidade ...................................... A noção de “felicidade média” em uma época .........
173 177 182 186
O poder e as possibilidades 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49.
Sociedade e Estado ........................................................ O poder público e as fôrças sociais ........................ A liberdade e as pressões ......................................... A margem de individuação ........................................ O sistema dos usos como facilidade e limitação .. A riqueza e a estrutura econômica ........................ As classes sociais e seu princípio .............................. Labilidade das classes ................................................... Perfil de cada uma das classes sociais e grau de ade são a si mesmas ..........................................................
191 196 200» 206** 210 215 225 229
238