1
Este livro vai para “Charles Perrone”, nosso BIG BROTHER do Texas, emérito passista da Escola de Samba Unidos de Austin, que nos enviou material precioso para a realização desse trabalho. 2
André Bueno e Fred Góes
O QUE É GERAÇÃO BEAT
BRASILIENSE
osebodigital.blogspot.com
3
4
AMÉRICA, ANOS 50: O PESADELO REFRIGERADO A chamada Geração Beat, assim como a cultura que ela gerou, é muito pouco conhecida no Brasil e, até recentemente, quase nada fora publicado desses escritores e poe tas. Se os livros passaram a ser publicados no Brasil, não significa que no imaginário médio das pessoas Beat, ou Beat nik, tenha deixado de ser sinônimo de sujeira: barbudos, cabeludos, calças gastas, sujos, andando pelas estradas de carona. Na melhor hipótese, a Geração Beat é associada diretamente à ótica de Hollywood diante da juventude transviada, dos rebeldes-sem-causa do tipo encarnado nas telas por James Dean e Marlon Brando. Que a figura de James Dean e Marlon Brando, ligada às Gangs de rebeldes e delinqüentes juvenis com motocicletas e roupas negras de couro na década de 50 americana, tenha a ver com a Geração Beat em alguns pontos é fato. 5
Mas que traduza, realmente, o que significou a cultura dessa geração é outra coisa bem diferente. O termo Geração Beat, assim como a cultura produzida por ela, não designa um movimento organizado, estética ou politicamente, em torno de um programa ou objetivos comuns. O nome Beat Generation foi criado por aquele que é considerado o maior escritor e romancista dessa geração, Jack Kerouac, e chegou ao conhecimento do público em geral através do New York Times, em novembro de 1952, num artigo escrito pelo jornalista e também escritor Clellon Holmes. O termo Beatnik é uma fusão de Beat com Sputnik, a nave soviética que foi pioneiramente para o espaço na segunda metade da década de 50. A metáfora resultante da fusão de Beat com Sputnik não poderia ser mais precisa, já que os poetas e escritores Beats eram, de fato, verdadeiros foguetes, inquietos, ligados, criativos, absolutamente em contraste com a pasmaceira e a caretice da década de 50 americana. Beat e Hipster, termos que denominam os pais dos Hippies e Freaks da década de 60, vieram do jargão do Jazz. Beat pode ser associado, imediatamente, com a batida dos músicos de Jazz, e aí a gente tem the beat, ritmo, movimento, embalo, ligação diretamente com o corpo e com a sensualidade. Por extensão, Beat significa também, nos textos e na própria vida das pessoas daquela geração, fluência, improviso, ausência de normas fixas, na vida e no texto, envolvimen6
to profundo que traz música, balanço, liberdade e prazer. Para Norman Mailer, hoje considerado talvez o melhor escritor vivo da América, e que na década de 50 andou muito perto dos Beats, inclusive através dos artigos escritos no Village Voice, o Jazz é a manifestação do lado negro e reprimido da América, a tradução da sexualidade reprimida, idéias que ele defende, por exemplo, em The White Negro. Beat também significava, ao mesmo tempo, bater e beatificar, céu e inferno, anjos e demônios, numa curiosa mistura em que a atitude de contestar, de agredir, de ir contra o existente vem desde logo associada com o beatífico, o convencimento pacífico, o ativismo político com fortes doses de espiritualidade. Beat não significou apenas um movimento artístico, traduzido em textos, mas toda uma vasta movimentação existencial que surgiu quase simultaneamente na Costa Leste (Nova Iorque, principalmente, e fortemente no Greenwich Village) e na Costa Oeste (Califórnia, principalmente São Francisco, Berkeley e cercanias), assim como na Carolina do Norte (onde era editada a famosa Black Mountain Review). A Geração Beat foi uma geração em movimento: ia dos poemas às estradas, passando por bares e cafés, festas e drogas, comunidades e qualquer outro palco onde estivesse a vida. Portanto, muito mais que um grupo de intelectuais reunidos em torno de um projeto estético definido num programa, muito mais que um grupo de acadêmicos estéreis tentando salvar o mundo dentro dos confortáveis muros da universidade. 7
A expressão Beat Scene (Cena Beat) diz respeito a todos os acontecimentos, palcos e lugares ocupados pela Geração Beat durante seu período de efervescência e contestação. Beat Scene significa, também, uma série de álbuns, de discos, com poetas falando, oralizando seus poemas; tradução de outro lance forte e típico da época: a tentativa de retomar a tradição oral da poesia, ao mesmo tempo em que se tentava juntar a música, o Jazz principalmente, com a poesia. Foi enorme a resistência da crítica da época, e da crítica posterior à década de 50, contra os Beats. Bruce Cook, no livro Beat Generation, e Jane Kramer, no livro Ginsberg in America, ambos livros muito completos e úteis para se entender a Geração Beat, relatam esse bloqueio crítico, responsável pela demora de sete anos na publicação do texto mais conhecido da Cena Beat: On the Road, de Jack Kerouac. A crítica de esquerda, ligada ao Partido Comunista ou agrupada em torno da Partisan Review, mandou bala, apontando os Beats como um grupo de niilistas, românticos e boêmios (portanto o oposto do revolucionário organizado) ligados aos grupos lumpen dentro da sociedade (negros, músicos de Jazz, delinqüentes juvenis, drogados, traficantes, etc), ao invés de lutarem dentro dos sindicatos, junto aos trabalhadores americanos. Dentro da ótica racionalista deste tipo de crítica, caronas, Jazz, drogas, sexo e liberações dionisíacas, mesmo que não fossem o pensamento e a ação propriamente reacionários do americano médio, tampouco eram um trabalho revolucionário. 8
A força que as sementes plantadas pela Geração Beat iriam ganhar na década de 60, viria a desmentir em grande medida esse tipo de crítica. Na base das manifestações pacifistas, anti-Vietnã e anti-nucleares, nas lutas das minorias e nas lutas pelos direitos civis que sacudiram a América, podese encontrar várias tendências, mas certamente, entre elas, o inconformismo da Geração Beat que começa, a rigor, ainda na década de 40, passa por toda a década de 50, chegando até o primeiro ano da década de 60. A figura carismática que sai diretamente das pequenas reuniões Beat para os grandes concertos de rock e para as grandes manifestações públicas da década de 60, fazendo a Geração Beat desaguar num movimento muito mais amplo que a estreiteza da década de 50, é certamente a do poeta Allen Ginsberg, o maior poeta Beat, talvez o melhor poeta americano vivo. Desse ponto de vista, a Geração Beat não termina absolutamente num fracasso, mas deságua num espaço político, estético e existencial muito amplo e importante. O fato de que, por outro lado, os Beats tenham se diluído, se retirado, se drogado ou bebido até à morte, ou tenham sido devorados pelo consumo, é significativo, mas menos relevante que seus desdobramentos em escala de massa. A crítica formalista também reagiu, e às vezes ainda reage muito mal diante da poesia e da prosa Beat. O alvo predileto desse tipo de crítica, nos Estados Unidos ou no Brasil, era o estilo Beat: textos em ação, prosa espontânea, frases do corpo em movimento, poesia brotando como vi9
sões do céu e do inferno, ligação direta da arte e da vida, da palavra e do corpo. Como se fossem eles, poetas e escritores Beats, músicos de Jazz improvisando livremente suas frases. Pode-se dizer que esses poetas e escritores fizeram, e tentaram ao máximo fazer, a “LIGAÇÃO DIRETA ENTRE A ARTE E A VIDA”, antecipando uma das metáforas mais fortes dos anos 60: PEDRAS QUE ROLAM NÃO CRIAM MUSGO (embora fosse mais difícil rolar na década de 50 e o rock que daria nos Rolling Stones estivesse dando os primeiros passos, negro pelas mãos de Chuck Berry, e depois traduzido para o consumo branco no rebolado de Elvis Presley). Uma das referências importantes para se entender a arte e a vida dos poetas e escritores Beats é certamente a incorporação que eles fizeram do movimento constante como sinônimo de liberdade, utopia de que o estar-em-movimento-no-mundo fosse a própria liberdade. Por não desejarem um esquema regular, de vida e de trabalho, os poetas, os escritores e os pirados em geral dessa geração na verdade dão continuidade a uma tradição, forte nos Estados Unidos, de escritores, poetas e compositores populares rebeldes, não-conformistas e que justamente andavam de um lado a outro do país. Diante disso tudo, é evidente que os poemas e a prosa Beat tivessem justamente um Beat (batida), um feeling (sentimento) e um swing (ginga, balanço) muito peculiares, muitas vezes inalcançável pela ótica square (careta, conformista). O que já foi visto na poesia Beat como “descuido formal”, displicência no “acabamento”, ausência de “síntese” e 10
excessiva “discursividade”, é na verdade não perceber a força do ritmo, a batida (Beat) do bop na poesia. Mais que isso, é não perceber a força do derramamento oracular de um poeta como Allen Ginsberg, a força das imagens se chocando poderosamente contra todo um fundo histórico e pessoal, é não perceber o descongelamento, a desesterilização que esses ritmos, essas imagens e essa busca da oralidade trouxeram para a poesia norte-americana. A poesia e a prosa Beat mostram com clareza as formas tentando traduzir ritmos do corpo, da história, do movimento, da libido querendo a liberação, incapaz de se estabelecer (no exato sentido de settle down). O que é bastante diferente de supor que os Beats fossem incultos, ignorantes e anti-culturais. Na verdade, eles conheciam a tradição livresca, normalmente tinham muitos livros em casa, contrastando com a pobreza material de suas casas. O que é insuportável para a crítica acadêmica é o sentido livre, vital, de apropriação não-dogmática, que os Be ats faziam da tradição literária, em língua inglesa (Whitman, William Carlos Williams, Pound, Eliot, etc), ou da modernidade européia (Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, os Surrealistas, os Dadaístas, etc). Pobres, mas livres, independentes e espiritualmente ricos, este poderia ser o lema dos Beats. Exemplo? A biblioteca de dez mil dólares de Keneth Rexroth num pardieiro de vinte dólares. Claro que nem todo poeta ou escritor Beat tinha uma biblioteca desse porte, mas os livros sempre fizeram parte 11
do circuito móvel da Geração Beat, já que eles, andando de lá para cá nos Estados Unidos, passavam constantemente temporadas uns nas casas dos outros. Assim, a informação, falada e escrita, circulava muito, já que ninguém vivia isolado na sua concha, relacionado apenas com os livros das suas estantes. A relação dos poetas e prosadores Beats com a universidade e com o esquema acadêmico era clara: não se importavam com as modas e revivais promovidos pela imprensa acadêmica, não se dedicavam mais aos textos clássicos e escolares já esgotados, mas sim, a um tipo de criação artística muito diferente das Boas Maneiras da Polidez Literária acolhida e cultuada nas Academias. A liberdade para escrever não poderia ser conseguida por esse caminho pois, embora cultíssimos, educadíssimos e preparadíssimos, os medalhões da universidade não tinham molho, estavam desligados da realidade, escreviam com excessiva consciência e controle sobre cada palavra. Entre a liberdade de referências, de movimentos, de relacionamentos, de leituras públicas e privadas, misturada com música, com sexo e com drogas da Cena Beat e os cursos, e credenciais, degraus de carreira e todos os outros protocolos da vida acadêmica havia um enorme fosso, quase impossível de ser rompido. Uma das conseqüências da enorme distância entre o circuito acadêmico e a Cena Beat dos anos 50 é que, passado todo esse tempo, a prosa e a poesia Beat são pouquíssimo estudadas nos Estados Unidos, assim como são raras e difíceis de serem encontradas as edições dos poetas, prosado12
res e analistas dessa geração. Diante disso, não é de se estranhar que a Geração Beat só esteja chegando ao Brasil, de fato, na década de 80, muito tempo depois da morte de Jack Kerouac (69) e agora que Allen Ginsberg, William Burroughs e Lawrence Ferlinghetti, vivos e ativos, já estão com sessenta anos ou mais de idade. Por aí, pode-se avaliar com precisão a força do esquema acadêmico-universitário norte-americano, que apesar de todos os louvores que lhe são feitos, conseguiu tornar desconhecido, dentro do seu próprio país, um movimento amplo e profundo como a cultura da Geração Beat. Romper com esse esquema significava romper com as visões culturais dominantes numa América branca, protestante e anglo-saxã, correlato imediato da afluência material vivida pelos muito ricos, é claro, mas principalmente por larguíssimos setores da classe média. O estilo de vida e os valores dessa classe média afluente na década de 50 era tudo que os Beats não desejavam para si próprios, era tudo que representava o mundo CARETA-SQUARE da vidinha média norte-americana. Vai daí que os Beats, e nisso quase que em bloco, se voltaram para outra tradição cultural, fortíssima: a da música negra, mais precisamente o Jazz. Muito mais que um “estilo” de música para ser ouvido comportadamente em salas de concerto ou na sala de estar com a família e os amigos reunidos, o Jazz surgiu ligado a uma raça e a uma cultura reprimidas. E surge, com força total de contestação política e de liberação sexual, em cabarés os menos familiares, em puteiros e outras áreas situadas no 13
extremo oposto das bem-comportadas reuniões dos brancos acadêmicos nas universidades. Entender isso é entender por que, na América protestante e moralista, racista e de classe média, a força da cultura negra, embora tão forte e evidente, só chega ao grande consumo devidamente “branqueada” e diluída. Já demos neste livro o exemplo do rock, negro na raiz, mas que chega ao grande consumo branco pelo rebolado de Elvis Presley. E podemos dar agora o exemplo de Michael Jackson, a super-estrela “branqueada” do momento: pode canções líricas, não pode contestação política, nem carga sexual muito forte. No caso de Michael Jackson, acrescente-se a isso um evidente “branqueamento” físico, que se traduz em operação plástica para afilar o nariz, cabelo esticado, e algum tipo de creme para branquear a pele. Os Beats, ligados na existência real das ruas, interessados nos becos e vielas da cidade, entenderam e buscaram força na cultura negra, ou na cultura das minorias raciais em geral, como forma de expressão de um ritmo de vida, de um protesto, de um desejo, de uma batida (Beat) sob todos os aspectos fascinante. Essa batida incluía o corpo, a dança, a música e o sexo, juntando o sagrado e o profano, coisa intolerável numa sociedade fortemente protestante. A mesma intolerância que a Igreja, no Brasil, demonstra diante da batida dos atabaques, que com seu ritmo hipnótico fazem baixar os santos. Diferente também do rufar dos tambores militares, que alinha as tropas e faz os soldados marcharem hipnoticamente obedecendo ordens. 14
Como já dissemos, o próprio termo Beat, e seu correlato próximo Hipster, vieram do jargão do Jazz, assim como várias outras gírias. O estilo de vida dos Beats também tinha a ver com o mundo do Jazz, e bem entendido, do Jazz que naquela época, e por algumas vertentes, não fazia parte do jogo comercial de diluição, de apresentação comportada para platéias caretas. E, nesse sentido, o Beat que era um dissidente realmente underground, liga-se numa força também underground. O que os Beats amavam no Jazz, nos músicos de Jazz e em todo o ambiente riquíssimo dos cabarés e dos lugares onde se tocava o melhor Jazz, não era algo imediatamente político, do tipo letras das canções referindo diretamente questões sociais. Evidente que esse tipo de abordagem, ligada ao negro oprimido na sociedade americana, nunca poderia ser descartada. Mas o Jazz, pela sua própria existência, pela sua própria capacidade de traduzir e envolver muito além das palavras, muito além do bom-senso ou da boa intenção moralizante, junto com sua forte carga sexual, interessava aos Beats, com seus saxofones sagrados, apocalipse bop santificado, sagradas bandas de Jazz e marijuana e Hipsters e paz e picos e tambores! Para os Beats, a cultura do Jazz tinha também um sentido terapêutico, o que nos ajuda a entender porque um dado cultural pode ser importante muito além do sentido explicitamente político das letras. A força que os Beats encontraram no Jazz, o sentido de Saúde, de Cura, que por aí conseguiram sentir, pode ser 15
entendido como a força do Sagrado-Profano, do não-racional, da presença firme do corpo pulsando, das pulsões e pulsações livres e rebeldes numa sociedade careta, de produção e troca de mercadorias, retificada e alienada numa maneira de viver congelada e num evidente desequilíbrio vital, sinônimo de Doença. Se os Beats foram de fato buscar força e caminho na cultura negra do Jazz, em oposição à cultura branca, moralista e protestante norte-americana, não foi apenas no Jazz que eles conseguiram força. Ainda dentro da América dos anos 50, os Beats surgiram aliados com os Delinqüentes Juvenis do tipo Juventude Transviada e Rebeldes Sem Causa, mas também se ligavam ou estavam próximos de outras minorias como os HispanoAmericanos (Chicanos), Índios, Traficantes, e uma vasta Fauna Urbana, toda ela dissidente da vida familiar e moral do protestantismo norte-americano. Esse tipo de aproximação e alianças, entre Negros, Chicanos, Beats, Delinqüentes Juvenis, Boêmios, Índios e Traficantes é interessante e mostra de comum a insatisfação e o lado reprimido e pobre na América, do ângulo das minorias raciais e culturais. É interessante também notar que esse tipo de aproximação introduz, via Geração Beat, elementos anti-racistas na cultura americana, porque sempre promoveu o contato, a miscigenação, cultural e fisicamente, mesmo que às vezes de maneira ingênua. Torna-se ainda mais interessante ao se verificar, nas biografias dos principais atores da Cena Beat, o quanto eles 16
17
andaram dentro ou próximos das universidades, dos círculos intelectuais e bem-pensantes da América. Era, portanto, a ruptura entre a classe média branca, representada por vários membros da Geração Beat, e os valores da sua classe, uma dissidência diante do caminho traçado e esperado. Na década de 60, esse tipo de dissidência existiria em grande escala, com milhares de jovens abandonando as universidades ou colégios e, num momento ainda mais agudamente político, desertando ou recusando o serviço militar e a Guerra do Vietnã. Respeitada a diferença numérica, entre os Beats dissidentes nos anos 50, e a força enorme dos protestos dos anos 60, ambas as atitudes poderiam ser sintetizadas num lema famoso: Se Ligue, Sintonize e Caia Fora (Turn On: Tune in, and Drop Out). Os Beats não buscaram força apenas dentro da cultura do seu país, mas também fora. Eles também incorporaram e usaram, a seu modo, o Zen-Budismo. Se o Jazz significava a batida, o corpo, o envolvimento hipnótico, mágico, o ZenBudismo introduziu, na cultura norte-americana, via Beats, outros elementos: a possibilidade de Silêncio, a Meditação, a Calma, a noção de Vacuidade do Ego, o Desapego Material e tudo o mais que pudesse conduzir a alguma forma de Beatitude, de Iluminação. Numa sociedade afluente e poderosa como a América dos anos 50, vivendo um materialismo desenfreado, um consumismo alienante e uma enorme pobreza espiritual, coroada com uma Guerra Fria à sombra do Horror Nuclear, é claro 18
que o Zen-Budismo significava um outro universo cultural, uma outra visão da vida, uma forte espiritualidade, tudo muito diferente da noção de Consumo (de imagens, de mercadorias, de comportamentos, de expectativas, de artefatos tecnológicos, etc). Quer dizer que, se por um lado os Beats encontraram força cultural numa raça oprimida dentro da própria América, a outra referência foi buscada fora da cultura do Ocidente, num Oriente diametralmente oposto ao American Way of Life. Já que os Beats eram, claramente, um grupo que percebia a falência dessa maneira de viver, e que o Sonho na verdade se tornara um Pesadelo. Mesmo que fosse um Pesadelo Refrigerado, era um pesadelo e tinha que ser combatido. Não combater dentro da tradição de luta da esquerda revolucionária não é sinônimo de que não houve luta; ou que, automaticamente, todo o legado poético e romanesco dos Beats seja “equivocado”; ou argumentos do tipo. O Zen entrou no tempero da cozinha Beat, de qualquer forma, em oposição a uma cultura verborrágica, palavrosa, cheia de retórica, mas mentirosa e injusta, extremamente materialista, que busca no conforto material todos os valores da vida. Jogando para escanteio qualquer questão espiritual ou filosófica mais profunda. O Zen-Budismo, enquanto disciplina ascética e moral, trata de revelações pessoais, individuais. É um conhecimento para ser transmitido sem proselitismo ou propaganda ostensiva, direto do mestre para o discípulo. A síntese desse caminho de conhecimento pode ser dada numa só frase: “Os 19
que sabem não falam, os que falam não sabem.” É claro, também, que havia um evidente choque entre o Zen-Budismo enquanto disciplina ascética e moral, de recolhimento e silêncio, e o pique dos Beats, anárquicos, liberando e buscando prazer. A maneira como o Zen foi incorporado pelos Beats, além do mais, não foi igual para todos os poetas, prosadores e teóricos da época. E vamos falar rapidamente desse assunto. Gary Snyder, poeta de São Francisco, um estudioso de línguas orientais que depois receberia instrução formal Zen num mosteiro do Japão, foi quem melhor incorporou o espírito do Zen, ao seu trabalho poético, à sua própria vida. Sua poesia, um dos grandes legados da Geração Beat, incorpora o Zen em formas sintéticas, belíssimas, e em nenhum momento descamba para o pseudo-intelectualismo ou a divulgação grosseira. Allen Ginsberg, poeta de Nova Iorque, além do ZenBudismo, incorpora o Hinduísmo a seus poemas de conteúdo fortemente social. Não importa se o seu Zen ou seu Hinduísmo são “autênticos”. O fascinante é um jovem poeta judeu americano sair de Nova Iorque, chegar às margens do Ganges, aceitar a meditação e a compassividade orientais, tornando-se o maior guru da América contemporânea. Importa frisar que Ginsberg vai encontrar, fora da sua cultura e fora da cultura dominante, o espírito e a força de poemas notáveis, como por exemplo Who Be Kind To e Wi chita Wortex Sutra. Nos livros de Jack Kerouac, a incorporação do Zen já é 20
diferente, mais episódica, mais circunstancial, quase sempre exterior ao espírito geral da narrativa. O que vem a dar num contraste engraçado entre o pique alucinado dos personagens e as tentativas, às vezes apenas engraçadas, de incorporar a espiritualidade Zen. O maior divulgador do Zen nos Estados Unidos, nas décadas de 50 e 60, foi sem dúvida Alan Watts. Ele chegou a São Francisco em 50, era um pesquisador de Zen e religiões orientais, e ao chegar a São Francisco já tinha sete livros publicados, numa carreira de pesquisador que começara aos dezenove anos. Seu trabalho de divulgação do Zen nos Estados Unidos foi acompanhado de perto pelo mesmo tipo de trabalho feito por D. T. Suzuki, falando pela televisão, fazendo conferências, dando cursos e aulas particulares. Para Watts e Suzuki, o vale tudo dos Beats não era exatamente o que pretendia a disciplina espiritual e o sentido moral do Zen-Budismo. Eles achavam que os Beats na verdade estavam buscando excitação, espalhando migalhas de Zen, para justificar a insatisfação que tinham diante da sociedade americana. Vamos agora dar uma olhada na América dos anos 50, a América da Guerra Fria, do Macartismo, da Tecnocracia, do Consumo, daquilo tudo que Henry Miller, um dos grandes antecessores dos Beats, colocou na seguinte metáfora: “Pesadelo Refrigerado”. Primeiro de tudo, era preciso bater firme, espalhar alegria e revolução, valorizar a Vida diante da Morte Organizada porque para os Beats não bastavam as ilusões coloridas de felicidade, traduzidas em carros maiores e mais rápidos, 21
maravilhas eletrônicas e um futuro sem limite com tvs-fones e viagens de foguetes à lua. Resumindo: associar o amor aos produtos vendidos pela propaganda envenena o próprio ato de amar, incentivar o sadismo no cinema e na televisão gera conseqüências que não dá para relaxar com Coca-Cola. Mas, fundamentalmente, não adiantava vender o mito do Capitalismo do Povo e da Prosperidade sem Limites, se por baixo permanecia o fato horroroso da economia destinada à produção de guerra, um modelo para morrer, e não para viver. Na década de 50, não foram muitas as vozes que, na América, se colocaram contra esse Pesadelo Refrigerado, essa Selvageria de Neon, essa Morte Organizada. Para complicar ainda mais, a década de 50 marca a ascensão do conceito de Guerra Fria, de blocos geopolíticos dividindo o planeta, de um ferrenho anticomunismo dentro dos Estados Unidos. Traduzido no chamado Macartismo, tirado de McCarthy, nome de um Senador ultra-reacionário, cabeça das perseguições executadas pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas. Nesse contexto, qualquer forma de crítica intelectual, de pensamento autônomo dissidente, passava logo por esquerdismo. E facilitava a perseguição política, o desemprego para o perseguido, e outras formas de execração pública. Vamos falar agora de alguns intelectuais tradicionais que, cada um a seu modo, colocaram-se contra esse estado de coisas. Antes que o nosso jovem leitor associe essas figuras 22
com freaks e desbundados, é bom explicar que todos eles eram intelectuais, ligados à universidade, formados na tradição humanista de crítica racional, organizada, da sociedade e da cultura. Estavam próximos da Geração Beat apenas cronologicamente, e não nas atitudes existenciais imediatas, tipo Jazz, sexo e drogas. Em 1957, C. Wright Mills, um erudito, muda de rumo e passa a publicar ensaios de sociologia agressivos, diretos, ativistas. Ele não foi o primeiro a tentar dizer a verdade sobre a América daquela época. Grupos corajosos, ligados a publicações como Dissent e Liberation, entraram antes na batalha. Além deles, desde o final da Segunda Guerra, Paul Goodman e Dwight McDonald vinham fazendo uma lúcida análise da América tecnocrática. Mills chamou mais a atenção porque seu tom era mais enérgico, sua retórica mais cativante, além dele ser o acadêmico bem-sucedido que de repente bota a boca no trombone. A sociologia visionária de Paul Goodman, um homem de muitas aptidões e bastante influência, dirigia-se muito aos jovens, e frisava as dificuldades de crescer e tornar-se adulto numa sociedade que lhes apresentava: políticos desonestos, poucas oportunidades do jovem ser útil, aptidões desvirtuadas, patriotismo ingênuo e vários outros cortes na possibilidade do jovem ir fundo na vida. Diferente da crítica moralizante de Goodman, na década de 50 um outro intelectual, que ficaria muito famoso na década de 60, já estava em ação. Ele era Herbert Marcuse, refugiado alemão, de formação marxista, portanto bem dife23
rente do pensamento liberal da oposição norte-americana. As idéias de Marcuse eram otimistas. A idéia central de Eros e Civilização, publicado em 65, em resumo é a seguinte: “a tecnologia e a organização do trabalho numa sociedade industria! desenvolvida já permitiriam a realização de uma velha utopia, o homem enfim fazendo do trabalho apenas um meio e não um fim em si. Escapando portanto do reino da necessidade e tendo acesso ao reino da liberdade”. Num outro tipo de resumo, significa o seguinte: “já que as máquinas existem, deixemos que elas trabalhem para nós, e vamos viver. Em tudo que isso implica em termos de lazer, prazer, beleza, atividades criativas e relações não-alienadas”. Eros e Civilização descreveu a ética hippie muitos anos antes da emergência desse grupo: “O Eros Orfico transforma o Ser: ele domina a crueldade e a morte através da liberação. Sua linguagem é música, seu trabalho é brinquedo.” Diante do Pesadelo Refrigerado da década de 50 norte-americana, não havia apenas os Beats ou intelectuais dissidentes como os citados. No extremo oposto do pensamento crítico e racional, tentando pensar a sociedade, seus problemas e as possíveis saídas, havia um forte anti-racionalismo, uma grande desvalorização do pensamento lógico, e da própria razão como coisas inúteis. Nesse extremo oposto, estavam os delinqüentes juvenis, desde o imediato pós-guerra: frenéticos, enfurecidos, botando pra quebrar, sem nenhuma perspectiva, sem ne24
nhum projeto. É interessante notar que, do final dos anos 40 até agora, sucederam-se grupos e mais grupos de “rebeldes sem causa”. Jovens, sempre ligados na ação frenética, vivendo no mais imediato o contraponto da organização e do controle sociais. Uma espécie de resposta necessária ao capitalismo, à indústria da guerra, ao trabalho alienado e a todos os valores dos mais velhos. Acontece que todos esses movimentos de rebeldia juvenil, que sempre se criaram entre adolescentes, mais do que uma rebeldia sem causa, era e continua sendo uma rebeldia sem saída. O fato deles nunca terem tido padrões, organização, moral, linguagem ou literatura em nada ajudou. Houve os Rebels, os Rockers, depois os Hell’s Angels e ainda depois os Skin Heads que, digamos agora, mais do que propriamente rebeldes “sem causa” foram, ou ainda são, traços claramente fascistas dentro da sociedade, tristes caricaturas, justamente, dos valores mais caros aos generais, aos cowboys, aos machões e aos predadores capitalistas em geral: a morte, a violência como razão suprema, o desrespeito pelas mulheres e pelos homossexuais, o desrespeito pela própria vida, a exaltação enfurecida das máquinas e dos símbolos exteriores de potência. Pode-se até dizer que todos esses delinqüentes juvenis fascistas praticavam, ou ainda praticam, sem nenhum pudor, escancaradamente, exatamente os valores que a sociedade capitalista, imperialista, pratica por debaixo de disfarces jurídicos, legais e retóricos. 25
No que diz respeito à América dos anos 50, David Michaske viu que esses grupos eram uma espécie de rebordosa do Sonho Americano, e ao invés de trabalho, construção social e moralidade eles vieram com “... violência, sadismo, sexo, consumo sem sentido, irreverência, flagrante desrespeito pela pessoa ou propriedade de qualquer um exceto a sua própria. Roubo, assassinato, vandalismo. Destruição sistemática de uma vitrine. O assassinato de uma vítima escolhida ao acaso apenas para provar-se ‘suficientemente forte para vestir a jaqueta dos Rebels’. Navalhas na bota, gangues no estilo de Laranja Mecânica (A Clock-work Orange). Agressividade. Desarticulação ...” Se fica difícil voltar à década de 50 para imaginar o fascismo desses grupos é, no entanto, bem mais fácil pensá-lo na década de 60, muito mais divulgada, muito mais filmada, televisada e gravada. Basta lembrar o papel do principal grupo desse tipo na época, os Hell’s Angels, primeiro diante dos festivais de música, segundo diante dos movimentos políticos da década. O Sonho da década de 60 começou a ser enterrado no Festival de Altamont, que se realizou depois do famoso Festival de Woodstock: se este foi pacífico, maravilhoso, reunindo centenas de milhares em convivência nova e harmoniosa, o de Altmont foi violento, grosseiro, baixo-astral e culminou com um assassinato. Quem viu o filme Gimme Shelter, dos Rolling Stones, há de lembrar os momentos que antecederam esse assassinato: Mick Jagger nervoso no palco, o show quase sendo interrompido e, finalmente, enquanto os Stones cantavam 26
Simpathy for the Devil, a cena de um jovem negro sendo assassinado pelos Hells Angels, que tinham sido contratados para fazer a segurança do show. O segundo exemplo, bem desdobrável, é ainda mais contundente: os Hell’s Angels eram, além de machões e “oligóides”, fortemente anticomunistas, no melhor estilo do Macartismo da Comissão de Atividades Anti-Americanas e, muito longe de serem “sem causa”, eram exatamente fascistas. Portanto, se a Geração Beat desemboca nos grandes Festivais de Música e nas campanhas políticas pelos Direitos Civis, Contra a Guerra do Vietnã, pela Liberdade de Palavra, a Favor dos Grupos Discriminados na Sociedade, e por aí afora, Allen Ginsberg à frente, os delinqüentes juvenis da década de 50 continuam nos Hell’s Angels que, diante das marchas contra a guerra do Vietnã, saíam para espancar os manifestantes e dissolver as manifestações, por considerá-las “coisas de comunistas”. Como se não bastasse, ofereciam-se como “gorilas” (literalmente) para ir combater os commies (comunistas) no Vietnã, deixando obviamente constrangido um governo que precisava justificar sua política imperialista e genocida, mas não através de uma aliança, à direita, tão francamente violenta. O Imaginário dos movimentos da década de 60, fartamente divulgado no Brasil através de filmes, posters, roupas, discos, livros e revistas, obviamente não tinha a ver com o Imaginário fascista dos grupos tipo Hell’s Angels. Tampouco o Imaginário da Cena Beat dos anos 50 se confunde com essas imagens de ossos, caveiras, violência 27
gratuita e destruição imbecil, embora seja mais difícil de visualizar porque há uma grande diferença entre as duas décadas: na década de 50, quem quisesse divulgação tinha que correr atrás enquanto que na década de 60, era impossível escapar dos meios de massa e da divulgação constante. Afora isso, a Geração Beat era do tipo me-deixe-empaz, não-me-encha-o-saco, e preferiam o sossego do anonimato. Mas é com eles que o sentido comunitário, de Tribos começa, coisa que se difundiria em grande estilo nos anos 60 (a ética da democracia participatória dos SDS — Students for a Democratic Society — o sentimento de solidariedade numa manifestação de protesto — os famosos sit-ins, love-ins, beins, bed-ins e similares —, os festivais folk ou de rock, a imprensa underground, as comunidades rurais, e por aí afora). A Cena Beat, muito mais íntima e localizada, tinha símbolos mais visíveis, mais para consumo e esteriotipação, do tipo: saxs e bongos, cigarro caindo do canto dos lábios, boinas ‘existencialistas’, cachecóis pretos, cópias de Howl, On the Road, Naked Lunch, artigos de Norman Mailer no Village Voice, cafés enfumaçados, certamente o Jazz, e a gíria hip, claro que só para entendidos, com a evidente intenção de deixar os Caretas (Squares) Out e os Hipsters perfeitamente IN (por dentro, por fora, gírias fortes depois incorporadas em escala, de qualquer forma vindas direto do universo da cultura negra, assim como, para usar um exemplo próximo, a gíria da juventude desbundada do Rio de Janeiro sempre veio do morro, da favela, do mundo negro marginalizado). Antes de sairmos desse Pesadelo Refrigerado para entrar nas Frases do Corpo em Movimento, chegando depois 28
às Visões do Céu e do Inferno, encarando a Utopia nas Ruas, deixemos aqui, didaticamente, um quadro simplificado dos grupos de poetas e escritores, às vezes críticos e professores universitários, mais em evidência da Geração Beat: Grupo de Nova Iorque: (Costa Leste) Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, William Burroughs, Carl Solomon. Grupo de São Francisco: (Costa Oeste) Lawrence Ferlinghetti, Gary Snyder, Philip Lamantia, Michael McCIure, Philip Whalen. Grupo da Carolina do Norte (Revista Black Mountain): Robert Creeley, Robert Duncan, Charles Olson. Com uma nota final: é claro que este é um quadro simplificado e que, dependendo do gosto e do ponto de vista do freguês, pode ir, muito ou pouco ou mais ou menos, ampliando, excluindo ou incluindo poetas e escritores, dentro do espaço que antecede ou dentro do espaço no qual se desenrola a Geração Beat. Para os objetivos deste livro, dentro desta Coleção, o quadro é significativo.
29
30
PROSA BEAT: FRASES DO CORPO EM MOVIMENTO A Geração Beat produziu, discutiu, leu e divulgou muito mais poesia do que prosa. Por isso, falar dos escritores da Geração Beat é falar fundamentalmente de duas pessoas: Jack Kerouac e William Burroughs. Para todos os efeitos, eles passaram a ser os escritores da Geração Beat embora outros romances, muitas vezes com temas parecidos com os deles, tenham sido escritos na mesma época em que eles escreveram seus romances famosos. Ambos acabaram se tornando personagens lendários para as culturas Beat, Hipster, Freak, Hippie, do Rock, dos Festivais, das Drogas, do Underground, da Contracultura. Jack Kerouac nasceu em Lowell, Massachussetts, em março de 1922. Descendia de bretões canadenses misturados com índios. Escreveu seu primeiro romance aos onze anos de idade. Seu romance mais famoso é, sem dúvida, On the Road. A Kerouac caberia reencarnar o mito do vagabundo, andarilho, dissidente, buscando valores individuais e 31
aventura. Sem nunca, no mito, buscar um pouso. Influenciado por Sebastian Sampas, com 17 anos decidiu ser escritor. Aos 18 anos, tomou conhecimento da vida, aventuras e viagens do escritor Jack London. Foi uma poderosa influência, e Kerouac decidiu ser um viajante solitário. Seu primeiro romance publicado foi The Town and The City. A história clássica acerca da criação de On the Road é que esse romance foi escrito em três semanas, duma forma muito peculiar: Kerouac botava rolos de papel de telex direto na sua máquina Underwood, e metia bronca direto, para não interromper o ritmo da mente sendo registrada cada vez que fosse preciso parar e trocar a folha de papel. Outro romance muito famoso de Kerouac, The Sub terraneans, também tem uma historinha famosa: foi escrito direto, em apenas três noites. Ainda outro de seus livros sempre muito citado é The Dharma Bums (Os Vagabundos de Arma), onde ele incorpora o Zen e, como costumava fazer com vários personagens da Cena Beat, retrata em um dos personagens o poeta Gary Snyder. On the Road estava terminado e pronto para publicação em 1949, mas só seria editado oito anos depois, em plena segunda metade da década de 50. Mais do que isso: Kerouac não tinha nem vinte e cinco anos quando escreveu esse livro, morava em Nova Iorque com uma tia e dependia de uma bolsa do governo americano. Portanto, para um leitor que leia On the Road a partir de uma ótica de 1984, muita coisa vai soar ingênua, quase boba, embora o clima frenético e aventuroso talvez ainda 32
contagie muita gente de agora. O que não pode ser esquecido é que, terminado no final da década de 40, mais de trinta anos atrás, On the Road é sob vários aspectos um precursor do que viria na década de 50, na de 60 e na de 70. Ou será assim tão difícil perceber que a expressão On the Road (Pé na Estrada, na tradução deste livro pela Brasiliense) é o correspondente quase exato para Rolling Stones (Pedras, pedras que rolam, pedras que rolam não criam musgo)? Como o definiu, empolgado, David Pichaske no seu Generation in Movement: “Pé na estrada — aquela grande mina da consciência dos anos sessenta, aquela declaração decisiva de, por e para a contracultura dos anos cinqüenta, aquele grande, heróico e doce livro do final dos anos quarenta, que não veria a luz antes de 1957, uma declaração contra o status quo do pós-guerra e contra qualquer status quo.” Acontece que a idéia de botar o pé na estrada não era nova, a mística da aventura, da viagem, da utopia do constante movimento já pintara muitas vezes antes. E, no entanto, On The Road acerta na mosca. Por quê? Vamos dar a palavra outra vez a David Pichaske: “Pé na estrada — a mística é arrasadora. Tem sido arrasadora desde tempos imemoriais. O convite de Kerouac à aventura não era nada de novo, nada particular ao tempo, à nação ou mesmo ao homem. Woody Guthrie esteve na estrada. O Ulisses de Joyce botou o pé na estrada. Tom Jones esteve na estrada. Os peregrinos de Chaucer caíram na estrada seiscentos anos atrás, e o Ulisses de Homero alguns milhares de anos antes 33
deles. Os papais dos anos cinqüenta, no entanto, não caíram na estrada.” Nessa altura, é bom informar ao leitor quem era, afinal, o tal Neal Cassady, tão importante para Kerouac, para a Cena Beat, e tão retratado nos livros de Kerouac. Neal Cassady veio do mundo da delinqüência juvenil, era um verdadeiro outsider dentro da América careta dos anos 40-50. Não tinha formação livresca, intelectual ou escolar, como tiveram a maioria dos poetas e escritores da Geração Beat (mesmo os menos famosos e quase nunca divulgados). Quando ele se aproxima de Kerouac, vem com um papo acerca de Nietzsche, querendo saber qual era a dele. Mas o próprio Kerouac sacou que o interesse real de Cassady era outro: grana, lugar pra dormir, comida. Neal Cassady atravessou toda Cena Beat, há referências a ele vindas de diversos pontos e fica nítido, no On the Road, que o motor do barato, o really crazy era MoriartyCassady, e não Sal Paradise-Jack Kerouac. Dentro do esquema de fraternidade masculina, de verdadeiro Clube do Bolinha que foi o de toda a Geração Beat, fica ainda mais nítida a liderança, o carisma e a força de Cassady, mesmo do Cassady absolutamente porralouca e irresponsável com os próprios amigos. A relação central de On the Road, entre Sal Paradise (Jack Kerouac) e Dean Moriarty (Neal Cassady) tem fortes traços homossexuais, que no entanto não dão em nada, já que o negócio era garotas, apanhar garotas, muita birita, al34
guma maconha e dá-lhe, pé na estrada. Allen Ginsberg declarou que Kerouac permitiu a mutilação da obra, retirando do original a passagem em que Dean Moriarty come um caixeiro (enquanto na vida real aceitava transar com homens). Numa famosa entrevista que deu ao Gay Sunshine, Allen Ginsberg desmontou de vez o mito, careta, da machice bem americana dos Beats: o personagem Carlo Marx de On the Road é Ginsberg, onde o poeta aparece travestido de “grande herói másculo”, ao invés de “judeu, bicha e comunista como eu era”. Neal Cassady não parou na década de 50. No começo da década de 60 ele botou outra vez o pé na estrada, outra vez de forma poderosa e original: juntou-se a Ken Kesey e seus Merry Pranksters, que saíram pelos Estados Unidos afora num ônibus chamado Furthur, promovendo famosas sessões de música e dança, onde todo mundo tomava LSD e viajava junto. Acerca desse assunto, consulte-se o livro de Tom Wolfe, Electric Kool-Aid Acid Test, onde as experiências com ácido promovidas por Kesey são mostradas como algo muito mais legal que as experiências promovidas por Timothy Leary: enquanto nas dos Pranksters era ácido, música e dança, Leary criava todo um clima místico, cobrava quatro dólares de entrada, e aparecia todo de branco, qual um guru-jacu. Assim como toda sua vida, a morte de Neal Cassady permaneceu em um quase-anonimato: apareceu morto ao lado dos trilhos de uma estrada de ferro, supostamente morto por overdose de alguma droga. 35
De qualquer forma, a importância de Neal Cassady para a Geração Beat é enorme: ele era o cara que fazia tudo aquilo que alguns Beats, ainda presos à família e à escola, no começo das viagens, gostariam de ser e fazer. No On the Road, indiretamente, Cassady sobrevive com Dean Moriarty. E a surpresa de muita gente diante da explosão de energia que atravessa todas as partes do livro, vai muito, justamente, para a energia de Cassady retratada por Kerouac. Paul Goodman foi um dos que ficaram espantados com a energia e o movimento registrados no livro: “Em trezentas páginas, esses caras cruzaram a América oito vezes!” Dentro do próprio livro, entre uma e outra dessas viagens, o personagem Carlo Marx (Allen Ginsberg) pergunta a Sal (Kerouac) qual o sentido de ficar cruzando a América de um lado para outro, indo e voltando, sem definir nada. Pegando por aí mesmo, o que se sente hoje em dia, lendo On the Road, com Dean e Sal andando de carona ou de carro coast-to-coast, de Nova Iorque pra São Francisco, e de São Francisco pra Nova Iorque, até esbarrar com o mar e a impossibilidade de continuar, é um romance desesperador, uma energia dispersa, que bem poderia ter outro nome: Sem Saída, metáfora da rebeldia sem causa ilhada e aprisionada no mapa da América careta. Diante de toda essa agitação e energia, fica até engraçado imaginar o Zen-Budismo como referência para Kerouac, já que fala em silêncio, meditação e pacificação dos desejos, rompendo as ilusões do ego e abrindo o caminho para a sabedoria. 36
37
Mas Kerouac não queria nem saber, incorporou o Zen a seu modo e mesmo a contemplação torna-se, nos seus textos, uma forma de ação, espécie de “metafísica da energia”, na expressão de David Pichaske. Um exemplo engraçado da peculiar incorporação do Budismo feita por Kerouac está no livro Desolation Angels, onde um dos personagens secundários decide que a essência do Budismo é “conhecer quantas pessoas for possível conhecer”. Mas tem um ponto que explica melhor o interesse de Kerouac pelo Budismo: a rejeição do materialismo da Sociedade Tecnocrática de Consumo e a compreensão de que a experiência pode ser uma etapa possível para a sabedoria. A vida pessoal de Kerouac, no entanto, foi por um caminho muito diferente do caminho da Sabedoria. No começo da década de 60, retirou-se de cena, incapaz de conviver com a notoriedade, e foi viver na sua cidade natal, Lowell, Massachussetts. Morreu em 69, mesmo ano em que morreu o Rolling Stone Brian Jones, com o fígado e o estômago arrasados pelo excesso de bebida, sem a beleza, sem a energia e sem a sonhada sabedoria. Para Bruce Cook, crítico do The National Observer, autor do livro The Beat Generation, “a morte de Jack Kerouac no outono de 1969 colocou um ponto final no episódio Beat. Kerouac foi vítima de seus próprios impulsos e de profunda alienação que lhe ocasionaram a cultura e a contra-cultura que ajudou a criar”. Acontece que não foi bem assim, e para explicar basta 38
fazer um paralelo entre as duas figuras mais evidentes da Geração Beat, um romancista e um poeta: Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Afora todas as coisas que já dissemos, e afora ter trabalhado em muitas coisas, Kerouac era católico e conservador. Não se considerava um Beat, mas um estranho, solitário, louco e místico. Acreditava que escrever e pregar a bondade universal eram seus deveres na terra. Consta que Kerouac votou em Eisenhower em 1956. Pior: consta também que denunciou Ferlinghetti e Lipton como comunistas, provocando uma enorme discussão. Gary Snyder foi quem mais ficou chocado com esse lance de dedo-durismo de Kerouac. Snyder profetizou o final de Kerouac: “Tu, idiota, acabarás pedindo os ritos católicos em teu leito de morte.” Por essa via conservadora e católica, somada aos problemas de Kerouac com a bebida, dá para entender como ele atravessou a década de 60 isolado, retirado, sem nenhum projeto. E coloca ainda mais em relevo a figura de Allen Ginsberg, que longe de alienar-se por qualquer cultura ou contracultura que tivesse ajudado a criar, aceita o desafio de estar em todas as frentes: festivais, passeatas, marchas, concertos, recitais, etc. Nesse nível, a diferença é fundamental: Kerouac é o católico e conservador, Ginsberg é o poeta com formação política, próximo do comunismo, que desbunda nos anos 60 mas não esquece que seu desbunde, seu misticismo, tudo tem que fluir para a sociedade, para as outras pessoas, para 39
algum projeto de libertação. Encontramos em Kerouac o seguimento de uma tradição profundamente norte-americana de escritores do tipo de Mark Twain, Jack London e Thomas Wolfe: todos eles escritores-em-movimento, amantes e perseguidores da “verdadeira América”, sempre vista como romântica e livre, onde o indivíduo era valorizado. Por aí, temos, sempre, uma constante busca-do-oeste literário. Acontece que esse caminho, a pureza dessa possibilidade do Sonho Americano, tinha acabado, dando lugar a um país industrializado, imperialista, profundamente conservador nas suas camadas médias e totalmente voltado para um projeto de Guerra Fria, interna e externamente, o que já dava, na década de 50, num acirrado anticomunismo e antiintelectualismo. E não seria do ponto-de-vista católico, conservador e individualista que se poderia imaginar qualquer perspectiva de mudança na América dos anos 50 e 60. No entanto, foi esse o caminho de Kerouac, depois de ter agitado a cena com livros fortes, ter incentivado muitos talentos, especialmente Allen Ginsberg eWilliam Burroughs, e gastado energia em mais de um continente. O caminho do judeu, bicha e comunista Allen Ginsberg era outro. Ele sabia bem o que significava estar do outro lado do pensamento triunfante, da caretice anti-comunista, machista e católico-protestante americana. É fulminante comparar o ostracismo e a melancolia da morte de Jack Kerouac em 69 e Allen Ginsberg na linha de frente de todos os grandes acontecimentos culturais e polí40
ticos da década de 60, culminando com as grandes jornadas de 68, tanto nos Estados Unidos como na Europa (lembre-se que, na Europa, Ginsberg foi chamado “O Rei de Maio”). Deixando de lado agora as impossibilidades de vida de Jack Kerouac, vamos falar agora da estética da prosa Beat, começando por dizer que aquilo que os poetas tentaram na sua poesia, foi ao mesmo tempo tentado pelos escritores, principalmente Kerouac, na sua prosa. Sendo a primeira e óbvia conseqüência disso uma maior proximidade entre prosa e poesia, e em vários momentos uma grande dificuldade em separar uma da outra. Allen Ginsberg definiu o estilo de Kerouac como uma “prosódia bop espontânea”, dentro de um “extraordinário projeto” que consistia no seguinte: “descobrir o ritmo da mente trabalhando em alta velocidade na prosa”. Diante desse projeto, é claro que os convencionalismos, formalismos e outras esterilidades acadêmicas estavam automaticamente chutados para escanteio, sem chance de retorno. Por aí se vê, dentro da estética da prosa Beat, novamente a importância do Jazz e da cultura negra da América: o escritor Beat querendo escrever com a mesma liberdade com que um músico de Jazz improvisa suas frases, com a mesma sensualidade, com o mesmo movimento, com a mesma beleza e frescor. Frases do corpo em movimento: “a palavra escrita em prosa como um registro vibrante, vivo, dinâmico, direto, de um momento, de momentos intensos do corpo-mente em movimento contínuo”. 41
Mesmo por aí, havia precedentes dentro da literatura norte-americana. E dois antecessores ilustres certamente foram Henry Miller e Walt Whitman, buscando, justamente ... a insistência no espontâneo, no improvisado, a importância de viver no presente, a sensualidade, o desejo de quebrar as censuras, um certo sentimento de santidade, e por aí afora. A prosa de Kerouac foi muito identificada como uma Escrita Automática ou uma Escrita Espontânea (e aí é preciso lembrar as tentativas surrealistas, na Europa, de uma escrita liberada do consciente, capaz de soltar as imagens do sonho, do desejo, do inconsciente; os signos verbais vencendo as barreiras impostas pela seleção racional.) Se podemos apontar o improviso jazzístico e as idéias surrealistas como relacionadas diretamente com a Prosa Espontânea de Kerouac e outros Beats, podemos também apontar, como referência, o Expressionismo Abstrato, do tipo praticado por pintores como Jackson Pollock. Guardadas as diferenças entre o uso de cores e linhas e o uso de palavras, em ambos a mesma intenção de nunca terminar, de sempre acrescentar, de nunca parar para retocar, para excluir. No topo dessa relação que envolve Jazz, Surrealismo e Expressionismo Abstrato, existe a tentativa de abolir a distância entre a palavra escrita e a palavra falada, entre o registro visual na página e o envolvimento oral. Esse caminho, que já era forte em escritores como Henry Miller e J. D. Salinger, em Jack Kerouac vai ser muito mais acentuado, na tentativa de registrar o fluxo verbal e não-verbal que envolve situações concretas de fala. O que Jack Kerouac vai tentar recuperar em sua prosa 42
delirante, espontânea, contínua, expressionista e automática, é a variedade de ritmos, de tons, o colorido, a vibração e o ritmo das frases vivas, em movimento. Daí fica mais fácil entender a ligação com o Jazz, com a cultura negra, porque se tratava da ligação com uma cultura oral, ligada ao corpo, inseparável do corpo, incapaz de ser enquadrada num modelo linear, de texto ou de teorização. Martelando freneticamente as teclas de sua máquina de escrever, com rolos imensos de papel, para não interromper o fluxo da narrativa, Kerouac estava na verdade querendo descongelar a linguagem, da palavra escrita, linearizada e convencional demais para o ritmo do pensamento do corpo em ação, em altíssima velocidade. Por isso, muitas vezes, é só lendo a prosa de Kerouac em voz alta, em voz bem solta, soltando o ritmo, que se poderá entender esse caminho, essa estética. Valendo o mesmo para grande parte da poesia da Geração Beat, toda ela feita pensando na palavra, na recuperação da palavra poética falada e cantada. É óbvio que nem todo mundo concordava com esse caminho, nem considerava válida a prosa de Kerouac. Alguns chegaram a se perguntar se ele alguma vez merecera toda a fama e a repercussão em torno do seu trabalho. Outros, como o escritor Truman Capote, consideravam o estilo espontâneo de Kerouac “mera datilografia”, ou seja, mero ajuntamento de palavras sem nenhum valor literário. E, como o estilo da Geração Beat na prosa e na poesia era muito próximo, as críticas desse tipo também valiam para os poetas, como Allen Ginsberg, volta e meia acusado 43
de ser excessivamente “discursivo” em seus poemas. Não vamos resolver aqui polêmicas literárias envolvendo a Geração Beat. Deixamos apenas uma sugestão, aliás extensível a outros poetas e outros romancistas, não apenas os dessa geração: leia os livros, sinta os poemas, tire suas próprias conclusões, não seja esquizóide, considere o valor das suas emoções e das suas próprias opiniões. E antes de passarmos a falar do outro grande escritor da Geração Beat, William Burroughs, é importante ressaltar um aspecto que unia os escritores e os poetas dessa geração. Uma tendência nos escritores de prosa, assim como dos poetas entre os “bárbaros santificados”, é a combinação de poesia e prosa. O verso livre já pode ser visto como um passo nessa direção e, por outro lado, os escritos de James Joyce. Os antigos bardos e menestréis iam da narrativa à poesia, e vice-versa, tão naturalmente quanto eles se moviam da palavra falada para a palavra cantada. O objetivo é sempre o mesmo: criar um idioma que traga a palavra outra vez de volta à vida. Quando a palavra encontra sua voz outra vez, prosa e poesia andam juntas. Claro que se a gente pensar na prosa da Geração Beat dentro dessa referência, e das outras já apontadas, fica difícil reduzi-la a uma “mera datilografia”, mero ajuntamento disforme, incongruente e inútil, de palavras puxando palavras em intermináveis rolos de papel. Claro também que, pelo mesmo caminho, é ainda mais difícil reduzir a poesia da Geração Beat, principalmente a de Allen Ginsberg, porque é a mais atacada, à mera “dis44
cursividade”. Esse tipo de discussão em torno da prosa da Geração Beat fica ainda mais inconsistente quando se compara os textos dos dois maiores prosadores Beat, Kerouac e Burroughs, e se descobre com grande facilidade enormes diferenças formais e temáticas. Em poucas palavras: Burroughs não utiliza a Prosa Espontânea, ou Escrita Automática, que marca bastante o estilo de Kerouac. Além disso, a barra exposta nos textos de Burroughs é muitíssimo mais louca e mais pesada, fazendo certas barras e certas peripécias narradas nos livros de Kerouac parecerem histórias para criancinhas. William Burroughs, conhecido como “A Farmácia Ambulante” da Geração Beat, pela quantidade e variedade de drogas que tomava, já tinha 30 anos em 1944. Nesse mesmo ano, foi procurado em Nova Iorque por dois jovens, dez anos mais jovens que ele, que ficaram fascinados com sua loucura, inteligência e cultura: eram eles Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Tornaram-se amigos, passaram a levar altos papos sobre literatura e sobre drogas, e foi Kerouac quem insistiu com Burroughs para que ele escrevesse e publicasse. O primeiro livro de Burroughs saiu em 1953, com um título bastante sugestivo: Junkie, que a gente poderia traduzir sem susto por Drogado. Esse livro foi publicado sob o pseudônimo de William Lee, e trata obviamente de drogas, dependências, delírios e visões variadas num tom, repetimos, bastante diferente de Kerouac. Burroughs já tinha quase 40 anos quando Junkie foi 45
publicado em 1953. Seu romance mais famoso, no entanto, é certamente The Naked Lunch (O almoço nu), terminado em 1958: é um livro onde entram sexo, perversão, sadomasoquismo e drogas pesadas num clima delirante e surrealista, algo portanto muito diferente de uma dissidência organizada, com intenções de transformação social, ou com alguma base ética ou moral. Em suma, nada de edificante, nada de construtivo, nada de positivo, realmente algo do tipo “não me siga que eu não sou novela”. The Naked Lunch, no entanto, foi escrito graças à insistência de Kerouac. É como narra o próprio Burroughs, numa entrevista dada à revista espanhola Quimera (traduzida e publicada no Brasil em Leia Livros): “Foi ele quem me animou a escrever quando não me interessava realmente fazê-lo. Mas quanto à influência, em nada me sinto perto dele. (...) Nos anos 40, Kerouac me repetia que deveria escrever um livro e intitulá-lo The Naked Lunch. Não tinha escrito nada desde a época do ginásio e não me pensava como escritor, e assim o disse a ele. Jack insistia e durante anos não me lembro de têlo visto zangado ou hostil. Quando expunha meus escrúpulos a respeito da escritura, sorria como um padre que sabe que mais cedo ou mais tarde você voltará a Cristo.” William Burroughs viveu na Europa durante a década de 30 e passou a maior parte da década de 50 fora dos Estados Unidos, detestando Truman, Dulles, materialismo, burocracia e todas as figuras do Sistema. Allen Ginsberg, falando muito tempo depois dos anos 50, descreveu Burroughs como “um cientista preciso investi46
gando regiões da consciência, proibidas para a compreensão comum pelas agências de Controle”. Para Jeff Nutall, em 1960 Burroughs tinha se transformado no “deus do underground, brilhando obscuro e fabuloso atrás dos altos sacerdotes Ginsberg, Kerouac e Ferlinghetti”. Apesar disso, Burroughs, coerente na sua loucura e no seu caminho sem moralidades, jamais aceitou o papel de Guru, tão comum e tão aceito pela juventude da década de 60. Para ele, nunca teve essa de ser o Pai, o Professor, o Mestre, o Líder, o Guia, o Guru de ninguém. É novamente Jeff Nutall quem vai lembrar o constante trabalho de Burroughs para não ser mistificado ou transformado em Guru. E fazia isso, por exemplo, nos seguintes termos: “E agora eu tenho algo a dizer para vocês rapazes das esquinas do cosmos que pensaram estar em contato com o Grande Operador — Otários! Babacas! Escrotos! — Eu odeio todos vocês. E nunca pretendi dar ou pagar vocês com algo diferente de bosta de cavalo.” É claro que a venerável figura do imoralista que se coloca nesses termos sempre veio cercada de aventuras extravagantes, mas reais, nada lendárias, e que certamente não fazem dele Meu Tipo Inesquecível. A mais leve delas diz respeito a suas aventuras em Tânger, durante a década de 50, depois de ter escrito e publicado Junkie: trata-se do homossexual William Burroughs, já se livrando da dependência das drogas pesadas, vivendo muitas noites de prazer com os meninos prostituidos da Áfri47
ca do Norte. Acerca dessa temporada em Tânger, e das suas relações com esses meninos, o imoralista Burroughs tem uma síntese exemplarmente cínica e inescrupulosa. Quando perguntado acerca do sexo em Tânger, respondeu: “É tremendamente simples. As crianças são muito pobres ...” Embora homossexual confesso, Burroughs teve, pelo menos até o período da força máxima da Geração Beat, duas mulheres: uma foi uma condessa húngara, com a qual ele se casou e furtivamente arrancou do continente europeu. A outra foi Joan Burroughs. Burroughs vivia com sua mulher Joan no México e foi lá que ele a matou com um tiro de pistola no rosto. Segundo ele, de maneira perfeitamente “acidental”. Ele estava muito bêbado, sentindo-se muito mal; com lágrimas nos olhos disse de repente para sua mulher Joan: “É o momento de interpretar Guilherme Tell, põe o copo sobre tua cabeça.” Aconteceu em seguida que Burroughs, com uma pistola fajuta, bêbado, apontou para o copo mas acertou Joan, matando-a no ato. Foi preso, depois liberado, saindo direto do México, depois de um período em liberdade condicional, quando tinha que se apresentar todos os dias à polícia. É claro que toda a figura de Burroughs se mistura, sempre, com o uso das mais variadas drogas. Mas ele não era do tipo que fazia literatura estilo “minhas experiências sob controle com as drogas para ver como é”, como o foram por exemplo as experiências com haxixe do filósofo alemão Walter Benjamin. 48
As drogas, as visões, os delírios e as percepções de Burroughs são uma espécie de base, elementos que abrem uma picada literária de maneira peculiar, forte e original. Sobre relatos, troca de experiências, enfim, acerca de drogas, pode-se falar do livro The Yage Letters, correspondência entre Burroughs e Ginsberg, resultado do seguinte lance: no início da década de 50, Burroughs veio ao Amazonas atrás do Yagé, segundo ele “a droga definitiva”. Allen Ginsberg viria sete anos depois, resultando dessas duas viagens as cartas do referido livro. Acerca da literatura de Burroughs, pode-se dizer que ela apresenta um clima ao mesmo tempo surrealista e de ficção científica, traduzindo as diversas intenções e preocupações dele, enquanto escritor, enquanto filósofo, enquanto pensador em busca de entendimento e alternativas, usando para isso personagens, viagens, drogas e depois a supertecnologia eletrônica, com a qual Burroughs acredita (ou acreditava) se tornarão desnecessárias coisas como homem, natureza e discurso. Como exemplo desse clima, transcrevemos abaixo o final do conto chamado Não Pense, que trata justamente, num clima de ficção científica, de um lugar imaginário e exercícios imaginários de libertação diante do “pensamento obrigatório”: “Longe os anos luminosos da academia que nunca existiu e nunca poderá existir. O Cérebro não pode permitir que isso ocorra ou já tenha ocorrido há milhares de anos. O Cérebro não permitirá descobrir como é fácil resolver os 49
problemas. Uma vez resolvidos os problemas, o artefato do cérebro se tornaria anacrônico.” “O que é um problema? Mr. Hubbard definiu o problema como postulado contra postulado, intenção contra intenção. O artefato cerebral consta de um mecanismo que o impede de resolver problemas e esse mecanismo é a Palavra. O Cérebro só pode produzir mais artefatos supervenientes que produzam mais palavras. Nesse último curso nós cortamos a palavra. O artefato cerebral com seu mecanismo de palavras auto-limitador tornou-se agora obsoleto. Não é feito de metal nem de quartzo. Não deixará nenhum rastro em suas espáduas exceto as cinzas de uma fogueira apagada.” Burroughs acredita hoje em dia, e falando é claro que de um ponto-de-vista bem americano, que nenhum movimento revolucionário seja possível hoje em dia no Ocidente: “são muitas as razões para isso; uma é que o processo industrial está muito avançado; outra é que uma revolução vinda de baixo é completamente impraticável”. Nota-se que Burroughs, nesse lance, pensa exatamente como um americano, generaliza o avanço industrial, ignora completamente o que seja a miséria e o atraso dos países do Terceiro Mundo e não tem muita noção do que está jogando fora quando afirma ser impossível uma revolução “vinda de baixo” (e, para quem vive num país como o Brasil, num continente como a América Latina, é engraçado supor uma revolução que “viesse de cima”). William Burroughs tem hoje 70 anos, portanto, idade de ser avô. Mas continua ativo e muito louco, numa época 50
em que a maioria ou já morreu ou já tirou o time de campo. Recentemente, saiu publicado seu último romance, chamado The Place of Dead Roads. Entre suas atividades mais recentes, trabalhos com David Bowie, The Police e a radical “new wave performática” Laurie Anderson. Nada mal para um velhinho muito louco estar em companhia de artistas tão modernos e tão jovens: o tempo passou, muita coisa mudou, a maior parte da Geração Beat ficou pelo caminho, mas William Burroughs continua botando lenha na fogueira.
51
52
POESIA BEAT: VISÕES DO CÉU E DO INFERNO Ao contrário da prosa, muito centrada nas figuras de Kerouac e Burroughs, a Geração Beat teve muitos e bons poetas. Pelas características deste livro, vamos falar apenas dos poetas que estiveram mais em evidência, deixando claro desde logo o óbvio: entre os que não figuram neste livro, estão muitos e bons poetas. Uma coisa é certa: o maior poeta da Geração Beat, vivo e ativo, talvez o maior poeta vivo dos Estados Unidos, é Allen Ginsberg, sendo ele portanto quem fecha e quem ocupa mais espaço nessas Visões do Céu e do Inferno. Os poetas da Geração Beat surgiram, na mesma época, na Costa Leste (Nova Iorque, principalmente no Greenwich Village), na Costa Oeste (São Francisco, na Califórnia e áreas próximas) e na Carolina do Norte (Black Mountain). Os grupos de poetas que foram surgindo nesses lugares não tinham nenhuma plataforma política e nenhum programa estético que os unisse, mas uma coisa os unia dentro 53
da variedade: a rejeição total da poesia acadêmica e formalizada, o salto por cima do intelectualismo estéril dos anos 30 e 40, a busca de uma poesia novamente ligada aos ritmos da vida, desenvolvendo para isso novas concepções do poema em paralelo com o Jazz, o Expressionismo Abstrato e uma série muito variada de referências estéticas, políticas e religiosas. As Visões magníficas de William Blake, a potência do poeta-cantor da América Walt Whitman, a modernidade e a força dos experimentos poéticos de William Carlos Williams e E. E. Cummings, algumas lições tiradas de Ezra Pound, êxtases à Ia Rimbaud, loucuras à Ia Baudelaire, a força política da poesia marxista dos anos 30 americanos, as experiências Surrealistas e Dadaístas chegando enfim aos Estados Unidos. Na verdade, as Vanguardas da Europa do começo do século, que nunca tinham chegado ao mundo da cultura anglo-saxônica, entram em cena com Breton, Duchamp, Leger, Max Ernst e outros artistas europeus refugiados na América durante a Segunda Guerra, influenciando bastante os poetas da Geração Beat. É nítida essa influência, por exemplo, em vários poemas de Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. Espiritualmente, alguns poetas da Geração Beat foram buscar no Budismo Zen, no Hinduísmo e eventualmente no Cristianismo (caso de Brother Antoninus), as bases e as referências que não existiam na América consumista, afluente, reacionária e reificada do pós-guerra. Some-se a isso o uso amplo e variado de drogas, ampliando Visões, despertando novos caminhos, incorporando um grande número de novas Imagens à poesia norte-ameri54
cana, e se verá que a composição poética da Geração Beat partiu, de fato, de muitas fontes. O curioso é que os poetas Beats, já desde a década de 50, perceberam que a transformação política e social não exclui necessariamente a espiritualidade, nem as drogas, nem as experiências sexuais, nem os poderes extáticos, visionários da mente humana. Vai daí que, mesmo com todas as referências do Budismo Zen e do Hinduísmo, posteriormente tantas vezes usadas de maneira beata e babaca, os poetas Beats estavam sempre ligados no movimento da vida, da sociedade, da transformação deste mundo. Essa poesia, ao abandonar o academicismo e o intelectualismo estéreis, criou uma série de novas e fortes Imagens e fez algo ainda mais importante: reintroduziu o som na poesia e rejeitou velhas formas de controle, levando a poesia para fora das bibliotecas, gabinetes e escritórios burocráticos da cultura. A ação desses poetas tornou a poesia muito popular, fora do circuito comercial das editoras e dos trâmites do prestígio acadêmico, através de edições independentes e leituras públicas de poesia: em pequenos teatros, em casas de Jazz, em residências particulares. Dentro da poesia em língua inglesa, reintroduzir o som na poesia significa referir, ainda a nível da página impressa, aquilo que Eliot chamava de audio-imagination (imaginaçãoauditiva) ou aquilo que Marianne Moore chamava inner ear (ouvido íntimo, aproximadamente). Indo um pouco além da página impressa, temos as re55
ferências de Walt Whitman e o estilo “Eu ouço a América cantar”, e William Carlos Williams quando buscava o que ele denominava common speach rhythms (os ritmos comuns da fala). Na prática imediata dos poetas da Geração Beat, no entanto, o grande caminho tentado foi a aliança com o Jazz, caminho esse que pode ser resumido numa frase: aliar-se ao Jazz porque essa era a linguagem musical da América. A poesia da Geração Beat tentou, portanto, trazer para si a liberdade, o ritmo, a batida, a sensualidade das improvisações do Jazz, principalmente do Bop, o Jazz posterior a Charles Parker. Escrevendo em 59, Lawrence Lipton, em The Holy Barbarians, já sintetizava essa aliança: “O que nós estamos assistindo hoje em dia nas leituras públicas de poesia e na união de poesia com Jazz é uma retomada de certos elementos perdidos da cultura oral, possibilitada pela revolução eletrônica nas comunicações, pelo fonógrafo, rádio, gravador e os meios audio-visuais como cinema e televisão. Os poetas há muito sentiam que escrever poesia apenas para a página impressa era de certa forma insuficiente, deixando incompleto o ato da comunicação.” No mesmo texto, Lipton sintetiza o que talvez seja a linha-mestra da poesia da Geração Beat, a retomada da tradição oral e da função social do poeta: “Antes da invenção da imprensa, a poesia ainda era largamente uma arte vocal. Desde seus primórdios no drama ritual, quando o poeta era profeta, vidente, xamã, sacerdote, juiz, bardo, sozinhos ou combinados, a poesia era algo para ser falado, recitado ou 56
cantado com música e, com alguma freqüência, para ser dançado. A poesia eram palavras mágicas, formas verbais desempenhando uma das funções vitais do ritual.” Já que essa foi de fato uma linha-mestra da poesia da Geração Beat, continuaremos nela ao introduzir aqui o grupo de poetas da Carolina do Norte, responsáveis pela famosa Black Mountain Review, editada pela Universidade de Black Mountain, entre 1951 e 1956. A primeira coisa a dizer é que a poesia Beat não aconteceu apenas fora da universidade, porque no corpo docente da Universidade de Black Mountain estiveram poetas do nível de Charles Olson, Robert Creeley e Robert Duncan. Se William Carlos Williams já tinha abandonado completamente a rima, Charles Olson foi ainda mais longe, ao afirmar que a métrica e as formas tradicionais tinham se tornado obsoletas. O que ele queria, e buscou com sua ação poética, era substituir o material obsoleto por novas estruturas orgânicas: “O verso vem da respiração, da respiração do homem que escreve no momento em que escreve.” Com isso, Olson reafirma com tudo um caminho que, como já vimos, tinha antecessores ilustres tanto na prosa quanto na poesia norte-americana, que chega portanto à Geração Beat, e que vai atingir sua força máxima no trabalho de Ginsberg. Buscar formas novas, orgânicas, ligadas à tradição oral da poesia, retomando portanto a função social do poeta, significou também pensar o outro pólo da questão: a platéia, os receptores da poesia. 57
Para exemplificar essa questão, podemos usar outro membro do corpo docente da Universidade de Black Mountain, também poeta, também editor da Black Mountain Re view: Robert Duncan. Para Duncan, não bastava pensar a relação do artista com a sociedade em termos de entreter ou educar a platéia. Era preciso transformar a platéia. Numa época em que esteve em Venice West, Califórnia, onde viviam Lipton e outros poetas e escritores da Geração Beat, Robert Duncan sintetizou claramente essa preocupação da seguinte maneira: “A princípio não há nenhuma separação entre o escrever e conceber o poema e o lugar onde ele vai ser apresentado. No entanto, ao ser escrito ele está sempre destinado a uma platéia, a qual deseja atingir. O poeta precisa ter a urgência de uma platéia maior, a qual é também uma urgência social. O que possa ser essa platéia ainda não está claro — para mim, pelo menos — mas essa urgência social certamente deve ser a de transformar a natureza da platéia. Não apenas encontrar uma platéia, mas que a platéia também sinta esse encontro; e ao encontrar a platéia, encontrar também as condições rituais necessárias à transformação da platéia.” De várias maneiras, em muitos lugares, graças ao trabalho de muitos poetas, esse contato foi sendo buscado. Os resultados foram muitas vezes decepcionantes, outras vezes muito bons, para platéias pequenas ou relativamente grandes, mas as platéias realmente grandes só foram atingidas pelo poeta via música popular, na década de 60: por exemplo, quando os poemas do canto-quase-fala de Bob Dylan, 58
admirador e discípulo de Ginsberg, tornaram-se a voz de toda uma geração. Para ilustrar uma outra maneira de pensar a relação do poeta com as platéias, com a própria poesia, e com a sociedade, usemos agora como exemplo Michael McCIure. McCIure, além de poeta, escreveu textos importantes para teatro (The Beard, por exemplo), viveu em São Francisco desde 1953, e é dele o famoso Poema do Peyote, que começa assim: “Livre — os sentidos vivos — na cadeira preta — de balanço — / as paredes brancas refletindo a cor das nuvens / movendo-se sobre o sol. / Intimidades! Os quartos / não importam — senão como divisões de todo o espaço / de toda a beleza e feiúra. / Ouço a música de mim e escrevo-a / para ninguém. Passo fantasias / que me cantam com Vozes de Circe ... /.” Michael McCIure era criticado por Ginsberg, que achava os primeiros poemas de McCIure “obscuros porque não refletiam nenhuma causa social”, e a resposta de McCIure era que Ginsberg vivia num “universo limitado, limitado pelo humano, pela cidade, pelas extensões psicológicas da mente”. Para se entender por onde queria seguir Michael McCIure, vejamos como ele encarava sua poesia: “Meu conceito de poesia era intensamente alquímico, em parte por causa da época. Era como estar num elevador contendo um monte de gente com cabelo de recruta e calças apertadas. Ao encará-los, percebia que não poderia sair fora do elevador a não ser que eu descobrisse alguma forma alquímica ou super-humana. A maneira de escapar era criar 59
poemas que fossem criaturas vivas. Minha esperança era que meus poemas pudessem ganhar vida, tornar-se organismos vivos através da energia que eu jogava neles. Eu queria poemas que tivessem seus próprios olhos, ouvidos, narizes, pernas e dentes.” Se conseguir audiências maiores para a poesia, interessando platéias as mais variadas, era e continua sendo algo muito difícil, que esbarra em enormes bloqueios e condicionamentos; imaginem poemas que pudessem andar com as próprias pernas, metáforas vivas fora do elevador louco da sociedade! Nessa altura do livro, é bom frisar que essa linha-mestra que estamos apontando na poesia da Geração Beat, toda ela voltada para a palavra falada e cantada, para as platéias, para a comunicação pública ou para algo além da comunicação pública de conteúdos sociais, significou um abandono do veículo livro e da tradição da palavra impressa na folha branca de papel. Para falar nisso, vamos aproveitar para colocar em cena um dos grandes mitos de toda a Geração Beat, ao lado de Kerouac, Burroughs e Ginsberg, um poeta que vive até hoje, com mais de 60 anos, na mesma mitológica São Francisco de tantas viagens: trata-se de Lawrence Ferlinghetti. Aqui no Brasil, Ferlinghetti pode ser lembrado por sua rápida aparição num filme, exibido comercialmente, O Último Concerto de Rock (The Last Waltz, no original), que mostra vários artistas na despedida do grupo The Band, que durante muito tempo acompanhou Bob Dylan. Nesse filme, Ferlinghetti é aquele velhinho muito lou60
co que aparece, como um garotinho travesso, lendo um poema amaldiçoando deus, a religião e a moral. Na história da Geração Beat, Ferlinghetti esteve presente o tempo todo, agitando sempre, mas como estávamos falando do veiculo livro, é bom informar que foi ele quem fundou a editora e livraria City Lights Books, responsável pela edição de boa parte do que de melhor foi produzido pela Geração Beat. A editora funcionava em São Francisco, e até hoje é ela quem detêm os direitos de publicação de alguns livros fundamentais da Geração Beat. O livro mais importante, mais conhecido e mais divulgado de Ferlinghetti foi publicado em 1958 e se chama Coney Island of the Mind. É uma poesia formalmente bem estruturada, empolgante, com traços surrealistas e dadaístas. Embora o espaço seja pouco, não poderíamos deixar de apresentar um trecho do poético Parque de Diversões da Mente com o qual Lawrence Ferlinghetti ajudou a formular o tom e o estilo do grupo de poetas Beat de São Francisco: Nas maiores cenas de Goya parece que vemos as pessoas do mundo exatamente no momento em que merecem pela primeira vez o título de “humanidade sofredora” Elas se retorcem pela página numa verdadeira fúria de adversidade. (...) só mudou a paisagem Elas ainda se alinham pelas estradas 61
afligidas por legionários falsos moinhos de vento e galos dementes nas auto-estradas de cinqüenta pistas elas são as mesmas só que mais longe de casa num continente de concreto salpicado por calmantes ilustrando ilusões imbecis de felicidade. A cena mostra menos carroças porém mais cidadãos mutilados em carros pintados e eles têm estranhas licenças que devoram a América.
Depois dessa palinha do Parque de Diversões da Men te de Ferlinghetti, passemos agora a outro grande poeta Beat de São Francisco, o chamado Monge Budista da Geração Beat: Gary Snyder. No começo da década de 50, em São Francisco, foi através de Gary Snyder que Ginsberg e Kerouac receberam os primeiros toques acerca do Zen. No romance The Dharma Bums (Os Vagabundos do Dharma), de Kerouac, todo ele recheado de frases feitas e lugares comuns sobre o Zen, Snyder entra como um dos personagens mais importantes, com o nome de Japhy. Já na década de 50, Gary Snyder buscava um caminho que não fosse diferente de um “continente de concreto / salpicado por calmantes / ilustrando ilusões imbecis de felicidade”. E esse caminho ele iria buscar na meditação, na pobreza voluntária, no contato com a natureza e as formas 62
mais simples da vida. A autobiografia de Gary Snyder até 1959, rápida e rasteira, sem enrolações, é a seguinte: “Nasci em 1930, em São Francisco, e cresci numa espécie de chácara ao norte de Seattle. O “Reed College” me deu, muito generosamente, uma bolsa e formei-me em 1951, em Mitologia. Fiz um curso de Lingüística na Universidade de Indiana e depois vagueei um bocado trabalhando como lenhador e guarda florestal, alternando com estudos de Chinês clássico em Berkeley, em 1956, época em que fui para o Japão para receber treino formal Zen. Estive no Japão de maio de 1956 a agosto de 1957. Trabalhei depois num petroleiro até abril de 1958, visitando os portos do Mediterrâneo e do Pacífico. Fiquei em São Francisco até janeiro de 1959.” Quando regressou, vinha casado com uma japonesa, Masa, e ambos já tinham um filho, Kai e foram viver no vale de Nevada City uma vida solitária e distante das badalações. Seus principais livros de poesia na década de cinqüenta e até o alvorecer dos anos 60 foram: RipRap and Cold Mountain Poems, de 1969, e Miths & Texts, de 1960. Depois, publicou Six Sections from Mountains and Rivers Without End, mais The Back Country e A Range of Poems, ambos em 1966. A poesia de Gary Snyder é concisa, de um artesanato sutil e preciso, bastante distante do “derramamento oracular” de Ginsberg ou do longo fôlego dos poemas para serem falados, recitados, cantados. Seus poemas estão repletos de magia, contato direto e não-verbal com realidades distantes das Cidades, traduzin63
do como pontos luminosos sacações que, no melhor estilo Zen, não se traduzem em longos discursos, mas em shots, tomadas curtas e secas, algo entre o verbal e o não-verbal. Para ilustrar o que estamos falando da poesia de Gary Snyder, vamos deixar para vocês um trecho do poema O Voto de Amitabha e o hai-kai Masa, pela ordem: Se depois de atingir o estado de Buda alguém no meu país for lançado na prisão por vagabundagem, que eu não atinja a mais alta e perfeita iluminação, patos selvagens no pomar geada na relva nova Se depois de atingir o estado de Buda alguém no meu país não conseguir apanhar uma carona em todas as direções, que eu não atinja a mais alta e perfeita iluminação. rochas molhadas zumbindo chuva trovões a sudoeste cabelo barba zumbindo vento chicoteia pernas nuas devíamos voltar não voltamos --Masa na aurora quente nua curvada sobre Kai rindo, gotejando pelos dois seios
Do Monge Budista da Geração Beat de São Francisco passemos agora ao ex-menor abandonado e ex-delinqüente juvenil de Nova Iorque que se tornou um dos grandes poetas da Geração Beat, e que aprendeu uma lição fundamental 64
para um homem: lutar com os punhos é coisa de criança, a verdadeira luta é com Palavras, Imagens, Metáforas, Magia. E que o lance era botar boca afora locomotivas vermelhas expelindo fumaça obscena e magia negra e não verdadeiras obscenidades como Gasolina, Quatro de Julho e Bomba de Hidrogênio. Gregory Corso nasceu em Nova Iorque, em 1930, no Greenwich Village, no mesmo Village da tradição boêmia e cultural, onde a Cena Beat teria boa parte de seus grandes momentos. Mas cresceu como órfão, na barra pesada, adotado por várias famílias, passando primeiro pelo inferno dos orfanatos e depois pelo inferno ainda pior dos reformatórios. É pura verdade dizer que o encontro de Gregory Corso com Allen Ginsberg e Jack Kerouac foi decisivo e mudou o rumo de sua vida. Gregory Corso, já lutando no front das Imagens Mágicas publicou na década de 50 os seguintes livros de poesia: The Vestal Lady on Brattle and Other Poems, em 58, Gasoline e Bomb, também em 58. Na década de 60, publicou The Hap py Birthday of Death, em 1960, American Express, em 61 e Long Live Man, em 62. Vale a pena ilustrar o trabalho de Gregory Corso com o diálogo muito louco e fortemente surrealista, perfeito como combate de Imagens, de Poetas Pedindo Carona na AutoEstrada. Claro que tentei dizer-lhe mas ele virou a cara 65
sem uma desculpa. Disse-lhe que o céu persegue o sol Ele sorriu e disse: “Para que serve isso.” Eu me sentia como um demônio de novo Por isso disse: “Mas o oceano persegue os peixes.” Desta vez ele riu e disse: “Suponho que os morangos foram empurrados para uma montanha.” Depois disso vi que a guerra estava declarada . . . Então lutamos: Ele disse: “A carroça das maçãs como um anjo numa vassoura racha e lasca velhos tamancos holandeses”. Eu disse: “O relâmpago vai cair no velho carvalho e libertar a fumaça.” Ele disse: “Rua louca sem nome.” Eu disse: “Assassino careca! Assassino careca! Assassino careca!” Ele disse, perdendo de vez a cabeça: “Fogões! Gasolina, Divã!” Eu disse, apenas sorrindo: “Sei que Deus voltaria a cabeça s e me sentasse calado e pensasse.” Acabamos nos evaporando Odiando o ar. 66
Chegamos agora ao fera, ao deveras fera das flores, das drogas, dos delírios proféticos, dos encantos líricos, dos desejos políticos, do movimento constante, o poeta maior da Geração Beat, ainda o maior poeta vivo da América: Allen Ginsberg. Ele começou a sair com tudo para as ruas, para a pulsação viva das ruas desde a década de 50, atravessou a década de 60 a todo vapor, não perdeu o pique na década de 70 e continua década de 80 a fora como um turbilhão de imagens frescas e renovadas da poesia, da política, da vida do homem no planeta terra. E nesse turbilhão de imagens tudo se integra, as tênues linhas divisórias se apagam, numa variedade fortíssima. Estilo? Poemas líricos e intimistas, poemas metrificados, longos trechos de quase-prosa, poemas absolutamente soltos de qualquer regra formal, poemas delirantes, poemas surrealistas, poemas firmemente engajados na transformação social. E soma, Visões do Céu e do Inferno como em Blake, o coloquial-cantante pleno de mudança de Whitman, a objetividade do tipo de Charles Olson ou William Carlos Williams, as imagens surrealistas e estranhas como se fosse ele um Breton revivido, a síntese aprendida no hai-Kay e no pensamento oriental, a poesia sinônimo de “respiração desobstruída” e ainda mais, algumas lições aprendidas com o mestre Ezra Pound (a quem visitou na Itália - Pound já velho - para homenageá-lo, para entoar-lhe mantras, para ouvir de Ezra Pound o rebate: my writing, stupid and ignorant all the way through). Allen Ginsberg é judeu americano, e assim sintetizou 67
sua biografia até 1960: “Nasci a 3 de junho de 1926, filho de Naomi Ginsberg, emigrante russa, e de Louis Ginsberg, poeta lírico e professor, em Paterson, Nova Jersey. Liceu em Paterson até os 17, Universidade de Columbia, marinha mercante, Texas e Denver; repórter, Times Square, amigos na prisão, lavagem de pratos, crítica literária, cidade do México, market research, Satori no Harlem, Yucatã e Chiapas em 1954, Howl no Oeste em 1955, viagem ao Ártico e depois Tânger, Veneza, Amsterdã, Paris, Londres. Leituras em Oxford, Harvard, Columbia, Chicago, Kaddish em 1959, volta a San Francisco e faz gravação para deixar e desaparecer por uns tempos no Oriente”. Até a década de 60, publicou: Howl (1956), Empty Mir rors (1960), Kaddish (1966), Reality Sandwiches (1963), The Yage Letters (com William Burroughs), Wichita Wortex Sutra (1966), TV Baby Poems (1967), Airplane Dreams (1968), An gkor Vat (1969), Planet News (1969). O poema mais famoso e de mais fôlego de Ginsberg é certamente o Howl (Uivo, que está para ser lançado no Brasil), de 1955 e que teve duas leituras públicas marcantes na história da Geração Beat: uma em 1955, na “Galeria Six”, de São Francisco e outra, em 1956, também na Califórnia, desta vez no “Gallery Theatre”, em Berkeley. Howl é o correspondente poético da prosa espontânea de Kerouac, e foi escrito por sugestão do próprio Kerouac: “Ele me sentou diante da máquina de escrever e disse: ‘Escreva um poema, só isso’. E dessa maneira o poema Howl, que sintetiza uma geração inteira, foi loucamente datilografado numa tarde; uma trágica comédia de pastelão de frases 68
selvagens e imagens sem sentido pela beleza da poesia abstrata da mente correndo solta, fazendo combinações desengonçadas como o andar de Charlie Chaplin e longos fraseados como de um saxofone cujo som, eu sabia, seria ouvido por Kerouac - tirando de sua prosa inspirada uma poesia realmente nova.” Embora não esperasse que seu poema, uma mistura de rapsódia, comédia, solidariedade e ódio fosse publicado, Howl foi impresso antes que o On the Road de Kerouac, sendo publicado no outono de 1956. Assim que chegou às livrarias, criou uma enorme polêmica e uma bela gritaria dos moralistas, afora os inevitáveis processos correndo na justiça. Julgado, o poema não foi considerado algo sem valor social, logo, não se tratando de mera obscenidade, resultou na liberação para a venda nos Estados Unidos. O poema é longo, com imagens muito fortes, porém aqui é possível deixar apenas os versos iniciais, numa tentativa de fazer uma tradução aproximada das imagens de Ginsberg: “I saw the best minds of my generation destroyed by mad ness, starving hysterical naked, dragging themselves through the negro streets at dawn looking for an angry fix, angelheaded hipsters burning for the ancient the ancient heavenly connection to the starry dinamo in the machinery of nigh, 69
who poverty and tatters and hollow-eyed and high sit up smoking in the supernatural darkness of cold-water flats floating across the tops of cieties contemplating jazz... Eu vi os melhores cérebros da minha geração destruídos pela loucura Histéricos, nus e famintos Tragados pelas ruas negras da madrugada a procura De um pico raivoso, Hipsters angelicais queimando-se pela primitiva ligação celestial Nos dínamos chocantes das engrenagens da noite, Miseráveis e esfarrapados com olhos sagrados nas alturas do fumo Na escuridão sobrenatural dos prédios gelados flutuando Através do topo das cidades contemplando jazz ...”
A poesia de Ginsberg, desde o começo, foi uma poesia de protesto. Mas certamente um protesto social muito especial: Marx transfigurado na poesia delirante de Blake, revolução e visão, revelação e transformação. Desde o começo de seu trabalho, frisemos para evitar confusões, que Ginsberg quer viver aqui mesmo, não pretendeu nunca ir embora para Pasárgada: “Este é o único e exclusivo / Firmamento. . . / Existo na Eternidade. / As coisas deste mundo / São as coisas do céu. / (...) Porque o mundo é uma montanha de merda /Se vamos movê-la / é preciso / Meter a mão / .” Desde o começo, a intenção da poesia de Ginsberg 70
ia no sentido de “apenas escrever. . . soltar a imaginação, descerrar o segredo, anotar linhas mágicas saídas de minha mente real”. Theodore Roszak, em A Contracultura, observa o seguinte acerca da poesia de Ginsberg: “Há na obra de Ginsberg muito da improvisação de Charlie Parker, bem como do espírito dos action painters. Jackson Pollock trabalhava numa tela com o compromisso de nunca apagar, nunca refazer, nunca retocar, mas acrescentar, acrescentar... e deixar que a obra se transformasse por si só em algo de singular apropriado a este homem neste momento de sua vida.” Acerca da maneira como Ginsberg sempre viu sua função como poeta, Roszak disse o seguinte: “Longe de ser uma excentricidade vanguardista, a concepção que Ginsberg faz da poesia como um derramamento oracular pode reivindicar uma prestigiosa genealogia que remonte aos profetas visionários de Israel (e, para além deles, talvez ao xamanismo da Idade da Pedra). Como Amos e Isaías, Ginsberg aspira ser um nabi, um murmurador: uma pessoa que fala com línguas, que permite que sua voz aja como o instrumento de poderes acima de seu domínio consciente.” No trajeto, ainda de acordo com as palavras de Roszak, o que aconteceu foi o seguinte: “É como se, inicialmente, Ginsberg se dispusesse a escrever uma poesia de aflição encolerizada; bradar contra a angústia do mundo que ele e seus amigos mais chegados experimentaram nas sarjetas, guetos e instituições mentais da nossa sociedade. O que resultou desse sofrimento foi um uivo de dor. No fundo desse uivo, 71
porém, Ginsberg descobriu o que o Moloch burguês mais desejava sepultar em vida: os poderes curativos da imaginação visionária.” O ritmo, a fluência e o fôlego das imagens poéticas de Ginsberg, longe de serem uma “fraqueza”, como certas leituras caretas querem fazer crer, têm raízes muito precisas. Já apontamos algumas, e deixemos agora falar o poeta William Carlos Williams, comentando a poesia do jovem Ginsberg, onde ele viu “um pulsar muito diferente do ritmo dos pés que bailam, mas que encontra no vaivém dos seres humanos, em todos os estágios de suas vidas, na ida ao banheiro, à escadaria do metrô, nas rotinas do escritório ou da fábrica, a medida mística de suas paixões.” Foi Ginsberg quem fez a ponte entre a Geração Beat e a Grande Década (os anos sessenta). O mágico murmurador de mantras poético-políticas tornou-se um dos grandes símbolos das rebeliões do desejo juvenil naquela década, estando em todas: organizações de marchas de protesto, festivais de música, recitais de poesia, encontros com os grupos mais variados (músicos como Bob Dylan, acid-heads como Ken Kesey e os Merry Pranksters, fascistas como os Hell’s Angels, ativistas políticos como o pessoal do SDS — Students for a Democratic Society, etc), tanto nos Estados Unidos (principalmente a Califórnia) quanto na Europa (onde chegou a ser considerado um dos reis do Maio de 68). Em 1970, Ginsberg juntou-se ao monge Trumgpa. O resultado dessa união foi a criação da Jack Kerouac School of Disembodied Poetics (Escola Jack Kerouac de Poética Desencarnada). Essa escola funciona no Instituto Naropa, no Colo72
rado, e pertence ao monge Trumgpa. O objetivo da escola é introduzir poetas à prática da meditação, e a tradição meditativa às práticas poéticas ocidentais. Mais que isso: estabelecer a ligação entre corpo e mente, através da cadência respiratória da meditação, que eqüivale à cadência respiratória do discurso poético. Para Ginsberg, tanto a poesia ocidental quanto a meditação oriental estão relacionadas com o ato de respirar. Porém, desde a invenção das técnicas de impressão, os poetas esqueceram que a poesia está diretamente ligada à respira ção e que inspiração poética não é outra coisa senão respira ção desobstruída. Ginsberg continua vivo e muito vivo, já perto dos sessenta anos, apresentando o show poético-musical First Blues, definido por ele como “uma síntese de 30 anos de rock and roll, contendo poemas de William Blake, calipsos criticando a CIA e canções de amor”. A excursão de First Blues começou no mesmo lugar, o Gallery Theatre, no mesmo estado, a Califórnia, onde há quase trinta anos ele fez a primeira leitura de seu poema Howl. Ginsberg, cujo pacifismo atravessa as décadas de 60 e 70, num certo momento de First Blues diz: “Meu discurso ainda não destruiu os sindicatos intelectuais da CIA e da KGB. Ainda não consegui vencer os exércitos humanos que marcham para a III Guerra Mundial. Ainda não conheço o céu ou o Nirvana. Ainda não aprendi a morrer.” Ginsberg continua seu trabalho de murmurador de mantras poético-políticas, multiplicando os efeitos de seu 73
74
“derramamento oracular”, nos últimos anos, em lugares tão variados como a União Soviética, Cuba, Calcutá e as Filipinas, além da Alemanha Oriental. Howl está sendo traduzido para o chinês. Jovens estudantes, falando em nome de um Departamento Cultural chinês, convidaram Ginsberg para ir ao lançamento em Pequim. Ginsberg aceitou o convite, estará ainda em 1984 em Pequim, mas antes pediu aos estudantes para responderem algumas perguntas, dentre as quais: “Como um escritor ganha a vida na China? Quantos chineses já provaram LSD? O que os chineses acham do homossexualismo?” Finda a Geração Beat, acabada a Grande Década de 60, depois da calmaria dos anos 70, poesia para Ginsberg hoje em dia é o seguinte: “São as pessoas contando umas para as outras seus pensamentos e sentimentos. Poesia é uma forma essencial de romper o círculo vicioso da mentira dos pronunciamentos oficiais. Se os poetas conseguirem se comunicar, eles demonstrarão que a idéia de uma guerra nuclear é uma loucura. Poesia é sobrevivência.” Vamos fechar essas Visões do Céu e do Inferno falando ainda do poeta Allen Ginsberg, com uma certa tristeza por não podermos incluir aqui poemas como Sunflower Su tra (Sutra do Girassol), America, Supermarket in Califórnia (Supermercado na Califórnia) ou Who Be Kind To (Para Quem Ser Bondoso). Mas vamos fazer, ainda, duas transcrições generosas para o querido leitor: um poema e um manifesto. No poema, Ginsberg responde por que medita, da seguinte maneira: “Medito porque os dadaístas gritaram em Mirror Stre75
et / Medito porque os surrealistas comeram travesseiros no passado / porque os imagistas respiram calmamente em Rutheford e Manhatan / medito porque há 2400 anos se medita / medito na América porque os hippies voaram um dia pelos céus de Chicago / medito sem nenhum porquê / porque não sei o caminho de volta para o útero de minha mãe / medito porque é fácil / e porque fico com raiva se não o fizer / medito porque me mandaram meditar / medito porque tive a visão de que William Blake também tomou LSD / Medito porque não sei o que fazer da vida / E porque depois que Lunacharski foi demitido Stalin matou Zdanov / Medito dentro da concha do meu velho eu / Medito pela Revolução.” Já o Manifesto, que você não leu nos jornais e revistas porque estão mais preocupados com Generais, Delfins, Cavaleiros do Apocalipse e outras Necrofilias, foi redigido e assinado em Manágua, em 1983, pelos poetas Ernesto Cardenal, Eugeny Yevtuchenko e Allen Ginsberg. É com esse Manifesto que fechamos essa parte do livro, frisando que o delírio, as drogas, a imaginação visionária, o homossexualismo e as visões do Céu e do Inferno não excluem a solidariedade política, prática e objetiva: “Somos três poetas de países diferentes. Um é poeta e monge católico, filho de um país subdesenvolvido. Os outros dois são filhos de superpotências, uma socialista e outra capitalista. Mas estamos certos de que a única super potência que realmente existe é o espírito humano, e que não existe nenhum estado maior que a alma humana. O espírito humano deve ser considerado a igreja de todos, religiosos e ateus, em todas as partes do mundo. Não queremos 76
que a Nicarágua seja um fantoche nas mãos de ninguém. Somos testemunhas do sofrimento que a tirania, a miséria e a ignorância já causaram ao povo da Nicarágua. Somos testemunhas também do desejo desse povo de defender sua liberdade econômica e cultural. Ajudemos o povo da Nicarágua a escrever poesia com tinta, não com sangue.”
77
78
BEATS, HIPSTERS, HIPPIES, FREAKS, DESBUNDADOS: A UTOPIA NAS RUAS Já vai longe a famosa década de 60. Muita gente já pode falar dela para os filhos adolescentes; alguns já estarão falando dela para seus netos. Mas ela permanece uma área de referências muito forte, graças à variedade de desejos políticos, não burocratizados, que mobilizou e colocou em discussão. E permanece ainda mais forte porque a década de 70 foi um período de refluxo e rebordosas as mais variadas, tornando ainda mais sedutoras as possibilidades desencadeadas na década de 60. A Geração Beat teve seus anos de máxima potência entre, justamente, 55 e 60, portanto no alvorecer da Grande Década. Nesse momento, um dos grandes agitadores Beat sai de cena: Jack Kerouac, que se retira para sua cidade natal, Lowell, até morrer em 69, mesmo ano em que morre o Rolling Stone Brian Jones, mesmo ano em que se assistem os primeiros lances do pós-68, aquilo que Julian Beck chamou 79
“morte da cultura”. Neal Cassady, o drop-out pioneiro da Geração Beat, continua na estrada, agora junto com Ken Kesey, os Merry Pranksters e as cabeças feitas pelo ácido. William Burroughs segue adiante no seu trajeto demolidor, imoralista e muito louco, nem recuando, nem se tornando nenhuma forma de Guru ou líder. Quem faz, em grande estilo, a ponte entre a Geração Beat e os anos 60, entre os Hipsters e Beats e os Freaks e Hippies, no entanto, é o poeta Allen Ginsberg, estando na linha de frente de quase todos os grandes lances jogados nos Estados Unidos e na Europa. A passagem de uma década para outra significou muito mais que uma simples transição, natural, entre anos que se perfilam disciplinadamente diante da História. Não é à toa que o Howl (Uivo) de Ginsberg sintetiza as experiências de toda a Geração Beat. Ali estão indelevelmente marcados os dilaceramentos, as experiências-limite, as passagens por hospícios e prisões, o isolamento dos dissidentes Beats diante do grande Pesadelo Refrigerado da América reacionária, afluente, conformista e violentamente anticomunista (assim como violentamente machista, patriótica e estéril). A Geração Beat lançou seus dados, viveu suas aventuras e foi abrindo as picadas a partir dos subterrâneos, dos espaços fechados, dos grupos restritos, das contestações localizadas e muito dificultadas pelo momento histórico adverso e pela difícil expansão das possibilidades que se apresentavam como alternativas ao Sonho Americano no imediato 80
pós-guerra. Quando Ginsberg registra o desespero de ver os melhores cérebros de sua geração destruídos pela loucura, nus, famintos e histéricos em loucas madrugadas, batendo pelas sarjetas como verdadeiros párias da América em plena Guerra Fria, não são meras figuras de estilo, meras hipérboles poéticas inventadas por um artista num gabinete limpo e bonitinho: o grito era real, os uivos eram pra valer, e o caminho tinha que ser aberto na porrada, na barra pesada, com drogas pesadas, com imagens delirantes, com o pé na estrada e quase sem saída, de certa forma emparedados no mapa da América. Já o espaço que se abriu, que foi aberto, e que foi trilhado pelos jovens, pelos ativistas, pelos dissidentes e pelos desbundados dos anos 60, era muito maior, as opções mais variadas, mobilizando um número imensamente maior de pessoas que na Geração Beat, o que pode ser resumido numa frase: tudo parecia possível. O que não significa que na década de 60 americana não houvesse prisões, hospícios, reacionarismo e conformismo em altas doses. A diferença é que, com espaços maiores e mobilizando muito mais gente, rompia-se em grande medida o isolamento. Já disseram que uma imagem fala mais do que mil palavras. Isso sem dúvida vale para a incrível década de 60. Os álbuns não amarelaram, as fotos e as imagens não devem ser olhadas com lágrimas nostálgicas e conformistas no canto dos olhos; o tudo é possível está no brilho dos olhos, nas cores das roupas, na beleza das pessoas, no orgulho das 81
cabeças erguidas, na força dos grandes encontros coletivos, sinais de um desejo muito poderoso, muito variado, sem tristezas burocráticas, valendo para o comportamento, para a estética e para a política. Ao invés dos bares pequenos e enfumaçados onde os Hipsters e Beatniks com traços existencialistas europeus ouviam Jazz e curtiam seus baratos, na década de 60 os acontecimentos políticos são nas ruas e reúnem grande número de pessoas, os festivais de música são ao ar livre e reúnem milhares de pessoas, ou seja: a utopia estava nas ruas, havia música em todos os lugares e a revolução estava no ar, soprando no vento. América, anos 60, agora já se sabe que era impossível fazer uma Revolução apenas a partir das universidades, dos estudantes, da juventude, dos festivais de música e das lutas políticas localizadas, dentro dos marcos e limites do capitalismo. Mas é claro que não foi tudo em vão, mero sonho de verão, para depois acordar; findou o sonho, dentro do velho Pesadelo. América, anos 60: o Free Speech Movement, os Stu dents for a Democratic Society, a luta pelos Direitos Civis, as Marchas contra a Guerra do Vietnã, o Pacifismo Anti-Nuclear ganhando seu espaço, o sonho pacífico do Reverendo Luther King querendo justiça e liberdade para os Negros Americanos, o sonho armado dos Black Panthers querendo justiça, liberdade e espaço próprio para os Negros Americanos, as Comunidades e Tribos de drop-outs e freaks e desbundados negando e buscando alternativas naturais para a Tecnocra82
cia e a Indústria da Guerra e da Morte, os grandes Festivais de Música lançando as bases para o sonho de convivência pacífica e amorosa entre as pessoas, as escolhas pessoais descongelando os tabus diante do Corpo reprimido, abrindo espaço para as lutas de emancipação das Mulheres e dos Homossexuais, a solidariedade com as lutas de libertação dos países colonizados e oprimidos do Terceiro Mundo. Allen Ginsberg, o deveras fera, poeta da Geração Beat estava lá, testando seus delírios e suas visões na prática social, nos encontros coletivos; agora, coisas muito mais amorosas, ao invés de uivos desesperados, novas práticas políticas, flores para a polícia, marchas políticas enquanto verdadeiros espetáculos teatrais, e uma série enorme de ações típicas da década (love-in, bed-in, seat-in, be-in, por dentro, amores, camas, cadeiras, o ser e o estar no mundo em movimento). Imagens falam mais do que mil palavras; confira: as imagens dos filmes como Woodstock; as fotos das Tribos e Comunidades pacíficas; cabelos bem longos, roupas coloridas, bonitas, e a possibilidade do encontro amoroso fora dos limites institucionais da Família; o Sonho nos olhos brilhantes do pastor Luther King e o tiro no brilho dos olhos dado pelo Fascismo norte-americano; o Sonho violento de liberdade brilhando nas fotos dos jovens panteras negras carregando seu orgulho e suas armas recuperadas, tão diferente da figura do negrinho pai-Tomás dizendo “Sim Senhor”, “Pois Não Madame”, no Brasil; a foto de Jerry Bubin, fundador do partido Yppie junto com Albie Holmann, Partido da Juventude, vestido de soldado revolucionário da independência 83
americana, prestando depoimento no Comitê de Atividades Anti-Americanas, os meninos da América, de todas as formas solidários com o povo do Vietnã em luta, de todas as formas os anti-Cowboys, anti-Boinas Verdes, anti-John Waines e anti-Ronald Reagans, esse ser Necrofílico, então Governador da Califórnia; e as drogas, claro que as drogas, e Joplin, e Hendrix, e Brian Jones, e toda a energia que não cabe nas molduras lacrimejantes-oportunistas da Publicidade e seus símbolos caretas para consumo de Otários (“liberdade”, “viagens”, “calças desbotadas”, “paz-e-amor-bichos”, a juventude sadia travestida de hippie ou punk acendendo baseados e fazendo cara feia nos cenários da Televisão). Falar da década de 60, da passagem dos espaços limitados vividos pela Geração Beat aos espaços públicos e amplos ocupados nos anos sessenta, significa também falar da Europa, principalmente da França. Mas antes disso, cabe lembrar aqui um fato curioso, já apontado neste livro: “a Geração Beat sempre foi mais lida, mais conhecida, mais divulgada e traduzida em certos países da Europa que nos próprios Estados Unidos”. É novamente Allen Ginsberg, velho admirador e conhecedor de artistas franceses como Apollinaire, Rimbaud, Celine, Breton, quem vai fazer a ponte entre a Geração Beat americana e os movimentos europeus de contestação na década de 60. Como se sabe, o auge das contestações políticas na Europa foi o Maio-68 na França, quando o tudo parecia possível quase tornou-se de fato realidade: a França parou, as ruas estavam ocupadas, não havia somente estudantes e 84
gente da universidade mobilizados, mas também parte dos operários, o General De Gaulle saiu da França, indo se refugiar na Alemanha, mas na hora H, na hora da cobra fumar, veio a indecisão, o vacilo, em parte graças ao Partido Comunista, que não apoiou o movimento sindical, enfraquecendo o avanço. Nessa época, durante essas grandes movimentações na França, Allen Ginsberg, mostrando uma incrível capacidade de estar presente no centro da ação, sem nunca temer as críticas pelo seu tipo todo peculiar de “ação poética, política, espiritual”, chegou a ser considerado um dos Reis do Maio68. França, 68, confira: “A Imaginação no Poder; Chega de Tomar o Elevador, é hora de tomar o Poder; O Álcool Mata, Tomem LSD; Sejam Realistas, Peçam o Impossível. A Utopia, aí também, estava nas ruas, a poesia estava nas bocas e nos muros da cidade, tudo também parecia possível, mas refluiu.” Deixou conseqüências importantes. Entre os vários descongelamentos ideológicos resultantes do Maio-68, e que não cabe discutir nesse livro, vale frisar um, hoje em dia muito importante: o espaço político alternativo que, surgido depois de 68, permitiu, ou no mínimo facilitou, o surgimento de grupos como os Verdes na Alemanha, assim como outros grupos pacifistas europeus, reunindo tendências políticas variadas, com o objetivo de barrar a possibilidade de uma Guerra Nuclear e lutar tanto pelo congelamento quanto pela redução dos arsenais nucleares, não só dos Estados Unidos, mas também da União Soviética. Sem sofismas, e sem variantes tático-estratégicas, 85
o que está em jogo no surgimento e no crescimento dessa luta política, ecológica no seu mais alto sentido, é nada mais, nada menos que a sobrevivência da espécie humana e do próprio planeta terra. E essa sobrevivência, sem nenhuma dúvida, vai depender muito da força que essa ecologia política anti-nuclear vier a ganhar, não apenas na Europa, mas em todas as partes do planeta: “para barrar a Morte, para impedir o Apocalipse, para impedir que a Necrofilia Militarista acabe com a Vida”. Quer dizer: o pacifismo, que na década de cinqüenta da Geração Beat era visto como Utopia completa, reunindo umas poucas pessoas, vistas às vezes como “idealistas abstratos”, que iam para as ruas lutar contra as Armas Atômicas, passa a ser, décadas depois, uma importante bandeira da luta política. Nessa altura, cabe citar um poeta e homem de teatro, americano, predecessor da Geração Beat, de alguma forma próximo da agitação Beat nos anos 50, pacifista desde há muitas décadas, organizador de protestos civis pioneiros contra as Armas Nucleares e a indústria da Morte, ainda vivo e que passou pelo Brasil no começo da década de 70, acabando preso em Ouro Preto, para ser em seguida expulso do Brasil: Julian Beck, com sua companheira Judith Malina, fundadores do Living Theater, não poderiam ser esquecidos quando se fala da Utopia nas ruas. E já que o Brasil entrou no assunto pela porta da prisão (no caso, a de Julian Beck em Ouro Preto-72), é por aí mesmo que vamos, para frisar algo óbvio que muitas vezes ainda gera confusão: “foi enorme a diferença entre os acon86
tecimentos europeus e norte-americanos e o drama histórico que nos estava reservado viver”. As nossas utopias, e utopias porque até elas foram negadas de maneira violenta, eram de um tipo muito mais próximo e imediato, e diziam respeito a coisas que nos Estados Unidos e na Europa já eram coisas há muito conquistadas. São elas: partidos políticos legais, sindicatos legais, propriedade de terra, salários justos, direitos civis, constituição respeitada, apoio aos desempregados, baixos níveis de inflação, verbas para a educação e, fundamentalmente, uma tradição de militares cumprindo seus deveres profissionais, obedecendo, simplesmente, os rumos políticos escolhidos pela sociedade civil, jamais cogitando de intervir nas escolhas feitas através de eleições. Se depois de 68 houve um forte refluxo nos Estados Unidos e na Europa, no Brasil houve uma tragédia. Uma parte da juventude da classe média aderiu ao milagre, botou plástico de universidade nos carros, e foi curtir sambão jóia em bares da moda. Outra parte desbundou, mas um desbunde diferente dos que referimos antes, porque os nossos desbundados não conseguiram se politizar, não conseguiram avançar, porque não havia mesmo por onde avançar, mas no geral viveram suas utopias, envolvendo sexo, drogas e rockn’roll, pelo menos, como uma forma de inconformismo diante da caretice vigente. Enfim, uma terceira parte da juventude da classe média, vinda direto do movimento estudantil, uniu-se a veteranos militantes da esquerda para tentar o caminho da luta armada contra a ditadura militar. E como de fato as imagens 87
falam mais que as palavras, sugerimos que você assista ao documentário Jango, de Silvio Tendler, e preste bem atenção: primeiro na força popular das grandes manifestações até 64 e na solidariedade popular aos cabos e marinheiros rebelados; depois, preste atenção nas cenas posteriores ao Al-5, com a ditadura militar consolidada, os grupos isolados de estudantes brigando nas ruas, já sem apoio e solidariedade popular. Tire as conclusões que quiser, mas por favor não moralize em cima da coragem alheia, principalmente se você fez do medo sua principal trincheira. O que veio depois de 68, esperamos que todos saibam com bastante clareza. Mas o que assusta e surpreende é constatar que, nessa mesma parte em que falamos de Utopia nas Ruas e desejos políticos muito variados, é ver que o Brasil, no ano de 1984, tem como luta política central a campanha pelas Eleições Diretas, para que possa terminar de vez a ditadura militar de vinte anos. É justamente neste ano que os livros e a discussão sobre a Geração Beat chegam ao Brasil, numa curiosa combinação de tempos históricos muito diferentes. Que sejam sempre bem-vindos os sinais poéticos, os sinais estéticos, os traços das aventuras pessoais, as pistas das transformações políticas. Beat, batida, fraseado, melódico, poético, gritos, gozos, geladeiras, fornalhas, lenha na fogueira. Para que haja o combate das imagens, para que se ocupe as ruas, para que se tente o caminho que vai dar no sol. TUDO, menos as figuras rígidas, doentes, embolora88
das, baixo-astral, ligadas na morte, que o FASCISMO gera. Um abraço e um beijo em todos os que lutam CONTRA isso, tentando criar FELICIDADE E FARTURA PARA TODOS.
89
90
INDICAÇÕES PARA LEITURA A bibliografia da e acerca da Geração Beat no Brasil é quase nenhuma. Dos grandes títulos Beat, a Brasiliense lançou, agora em 84, On The Road (Pé na Estrada), de Kerouac. Promete lançar, ainda em 84, Via jante Solitário, também de Kerouac, Junkie e Naked Lunch, de Burroughs, e ao que parece também o Howl (Uivo) de Ginsberg. É possível que outras editoras entrem na parada e publiquem, logo, outros títulos da Geração Beat. Na antologia Quingumbo-Nova Poesia Norte-Americana, publicada pela Escrita em 80, tem alguns poemas, em tradução acompanhada do original, de Ginsberg, Gary Snyder e Ferlinghetti. Em algum sebo ainda se pode encontrar a Antologia da Novíssima Poesia Norte-Americana, da Editorial Futura, de Lisboa, publicada em 73. Ali, algumas traduções, sem os originais, de poemas de Ginsberg, McCIure, Corso, Peter Orlovski, Gary Snyder e Robert Creeley. Se no Brasil a situação é essa, nos Estados Unidos a situação não é, como se poderia esperar, muito melhor, já que vários títulos da e acerca da Geração Beat são difíceis de se encontrar, e muitas vezes estão out of print. De qualquer forma, historicamente: de Allen Ginsberg, Howl (56), Reality Sandwiches (63), Kaddish (66) e PIanet News (68), todos publicados pela City Lights Books, a famosa editora de Ferlinghetti, em São Francisco. De Ferlinghetti, o clássico Coney Island of the Mind, publicado pela New Direction. De Gary Snyder, Miyths & Texts, pela Corinth Press, de Nova Iorque, e RipRap, pela Origin Press. De Gregory Corso, The Vestal 91
Lady on Brattle, Gasoline e Bomb, pela City Lights Books. De Michael McCIure, Hymms to St. Garyon and Other Poems, pela Auham Press, de São Francisco. Acerca da Geração Beat, tem algumas coisas interessantes em A Contracultura, de Theodore Roszak, publicado pela Vozes, em 72, e também no A Morte Organizada, de Maciel publicado pela Ground/Global, em 78. Afora isso, as edições americanas e difíceis de se conseguir dos clássicos Beat Generation, de Bruce Cook; The Holy Barbarians, de Lawrence Lipton; Ginsberg in America, de Jane Kramer e Naked Angels, de Charles Tytell. Talvez possa ser encontrado o A Generation in Motion, de David Richaske, publicado pela Schirmer Books, de Nova Iorque, em 79. Fechando a lista, existe um álbum com fotos e textos daqueles que foram os grandes protagonistas da cena americana nos anos 60, chamado The Sixties, publicado em 77 pela Random House / Rolling Stone Press.
92
Biografia Fred Góes: sou carioca do Largo do Humaitá, com 36 anos de Rio de Janeiro, letrista, poeta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde 72 estou na luta, já tendo feito de tudo um pouco - jornalismo, rádio, televisão, direção teatral. Em 82 publiquei O País do Carnaval Elétrico, pela Editora Corrupio, na coleção “Baianada”, e o livro sobre Gilberto Gil para a coleção Literatura Comentada da Editora Abril. No momento divido meu tempo entre ofícios e pareceres na TVE, roteiros de shows musicais, a montagem de um espetáculo teatral, letras de música e as aulas da faculdade, enquanto preparo junto com meu parceiro André Bueno, O que é Letra de Música, um livro que tem por base o programa que produzimos para a rádio MEC no ano de 63. De resto vou seguindo o conselho do velho Tolstoi que dizia que, se alguém quer ser artista (e aqui artista tem o seu sentido mais amplo, de levar a vida com arte) deve começar pintando a sua aldeia, ao que acrescento: alguém que quer ser aranha, que tire das entranhas a sua teia. André Bueno: Sou poeta (Brasa, Brasil), paulista, 30 anos, professor (Teoria Literária/UFRJ), teórico (Contracultura: As Utopias em Marcha), parceiro de Fred Goes neste livro e em Tirando de Letra (o livro, e o programa de rádio). Na mão: Pássaro de Fogo no Terceiro Mundo - Vida, Paixão e Morte do Poeta Torquato Neto. E no mais: acreditar que tudo é possível, aprender que nem tudo é possível, viver a ilusão da onipotência, superar a ilusão da onipotência, continuar na luta pelas utopias de fartura e felicidade para todos, nesta vida.
93
94