Tal compreensão de missão, desfazendo os nossos complexos e a nossa permanente mania de autocomiseração, coloca-nos no caminho onde a missio está acontecendo. Ela nos convida a entrar na liberdade dos filhos e filhas de Deus dispondo-nos ao seu serviço, com ânimo, lucidez e senso crítico. Ao mesmo tempo, aponta para uma compreensão comunitária de missão: a mis são nunca é tarefa apenas de especialistas, mas de todo o povo de Deus, onde estiver, na casa, na rua, no bairro, na aldeia, na fábrica, na praça, na associa ção, no governo e assim por diante. 3. Vicedom é responsável por uma fundamentação reformatória da mis são. No apêndice selecionado especialmente pa ra esta edição, a justificação somente pela fé é o único fundamento firme para a missão. A missão realizada pela Igreja no âmbito da missio Dei é uma ação de fé, impulsionada pelo Espí rito Santo. Ela só pode ser assumida em atitude de profundo agradecimento pela misericórdia recebida de Deus. Assim a Igreja se to rna sinal da vida plena, dádiva da graça divina. Por isso, o paradigma da obediência não serve, como po r via de regra se interpreta o famoso texto de Mateus 28.18-20. Quando nos engajamos na mis são, não o fazemos atendendo a uma ordem, como se Deus fosse um general e a Igreja seu lugar-tenente. O que verdadeiramente nos conduz a participar daquela missio é a graça eficaz que se realiza no meio de todos os povos. Nesta perspectiva, a missão é ob ra do Espírito Santo, que trabalha sem cessar para que a Igreja de Deus - de muitas e diferentes maneiras - anuncie a compaixão de Deus por toda a humanidade. 4. Vicedom sempre é missionário. Quer somente ganhar e reunir gente para a missio Dei. Prático da missão, nunca faz dela teoria, campo de pesquisa ou fonte de prestígio. Vive na selva da Nova Guiné com pessoas tão diferentes, mas igualmente tocadas e transformadas pela missio Dei. Aqui Vicedom experi menta o milagre da comunidade de Jesus Cristo entre os povos, comunidade à disposição da missio Dei. Assim parte para conscientizar homens e mulheres, paróquias e igrejas da importância da missão. Ele as instiga a acompanhar a missio Dei e a se deixar envolver por ela. Vê nisso o centro e a meta de quantos crêem no Deus que se revela em Jesus Cristo. A lerta e chama para a única coisa que vale, enquanto todo o resto “não nos conforta, mas abate e é sem valor” (Hinos do Povo de Deus, 171, 1). Com a profundidade e o entusiasmo que apenas uma vida sob a missio Dei confere, Vicedom desdobra, então, a justificação p or graça e fé como úni co motivo e critério da missão: “a fé vive do testemunho” e “inexiste sem co munhão” (citando N. von Zinzendorf); “a missão nada mais é do que a Igreja que se movimenta” (retomando W. Lòhe, fundador do Seminário de Neuendettelsau); os sacramentos fazem experimentar a missio Dei e viver ale gremente para a missão e na missão; a comunidade contextualizada é alavanca de Deus no mundo, mostrando a vida partilhada, antecipação da vida plena no reino de Deus; a comunidade se auto-sustenta com o dízimo dos membros, usando 10% do orçamento para manter um missionário de tempo integral e colocando os outros 90% à disposição da missio Dei local e universal.
A missio Dei - embora liberte indusivc paróquias c igrejas sufocadas pelos encargos religiosos e cansadas devido ao peso do seu aparelho administrativo causa estranheza. Vicedom o exemplifica de muitas maneiras. Mostra como cada pessoa e grupo, cada povo e sociedade, cristãos ou não, igrejas inteiras até, afirmam ter a sua visão e tarefa junto aos demais e as defendem com unhas e dentes, não raras vezes contra a missio Dei. Num contexto desses, a missio Dei só pode causar estranheza, que resulta em resistência, e esta em perseguição, den tro e fora das paróquias e igrejas. Exclusivamente em tal situação se evidencia, para Vicedom, a missio como sendo de fato Dei, já que depende, em definitivo, de Deus. A cruz revela o caráter da missio Dei, sinalizando a sua consumação irresistível no “novo céu e nova terra, onde habitará a justiça” (2 Pe 3.13). No entanto, a partir das nossas experiências e motivações, levantamos as seguintes perguntas diante desta teologia da missão aqui brevemente esboçada: a) Relação entre evangelho e culturas'. Vicedom critica fortemente concepções e práticas que amarram o evangelho a certas civilizações e culturas, etnias e nações. Assevera que agindo assim compreenderíamos mal o evangelho e redu ziríamos o seu alcance global. O evangelho se dirige a todos os povos e os trans forma. Não os elimina nem submete - isto é pacífico -, mas cria neles novas e surpreendentes expressões de sua cultura. Tal convicção de Vicedom surgiu da sua experiência na frente missionária e da rejeição bíblico-teológica tanto do american way of life como motivo da missão quanto dos desvirtuamentos naciona listas do evangelho na Alemanha de Hitlcr e onde mais se manifestem. Será que hoje essa opção está superada? Na América Latina sabemos que a missão cristã, desde o século XVI, se impôs a ferro e fogo, eliminando povos inteiros, descaracterizando outros e destruindo culturas milenares. Essa histó ria bárbara, cuja abrangência nem de longe temos suficientemente claro, nos constrange a valorizar e a defender, com carinho e garra, etnias e culturas. Cremos que Deus na sua missio está presente entre elas e no que delas sobrou. Ousamos estar ao seu dispor. Tentamos seguir o evangelho que, justamente na cultura de cada povo, assume uma forma concreta e convincente. A duras penas descobrimos que apenas na inculturação - tão particular, frágil e escan dalosa - se evidencia a universalidade do evangelho. Fazemos, pois, a mesma experiência de Vicedom, só que na via contrária. Enquanto ele confessa a uni versalidade da missio Dei acima de todas as particularidades, nós confessamos a universalidade da missio Dei nas particularidades. Não podemos saber o que Vicedom diria em nossa situação. Mas certamente teria insistido no fato de que o evangelho é fermento transformador em toda e qualquer cultura. b) Conversão ejuízo divino: Para Vicedom, a missão começa com a manifes tação do juízo de Deus. Só a partir do reconhecimento do nosso pecado e da aceitação do juízo acontecem a conversão e a entrada na vivência da graça. Esta questão, entretanto, necessita de cuidadosa interpretação. Pois entre nós se acusam as igrejas de manipularem a noção de pecado e de sei em responsáveis pela culpabilização de consciências no intuito de manter as pessoas submissas ao seu poder e torná-las objetos mansos da sua exploração financeira. Não podemos nem queremos negar que tais práticas antievangélicas existam, quem sabe até aumentem em nosso contexto neoliberal. Nenhuma Igreja está a salvo delas. Em meio a essa versão eclesiástica da opressão geral, lembramo-nos de 11
que a missio Dei vem, antes de mais nada, libertar. Ela parte bem de baixo e do mais insignificante (cf. Mt 13.31s.). Eis o juízo de Deus. Na medida em que a missio Dei liberta, aparecem as nossas amarras, inclusive eclesiásticas. Assim continua o juízo de Deus, pois ele “começa na casa de Deus” (1 Pe 4.17). Vicedom, o crítico incansável da Igreja estabelecida e autoconfiante, ressalta do seu jeito o seguinte: apenas penitentes podem cham ar pessoas ao arrepen dimento. Como gente confessa e arrependida, nos aproximamos delas para conviver com elas solidariamente a partir do perdão de Deus. c) Diálogo inter-religioso: Em relação às religiões, Vicedom nos choca. Importa ver, no entanto, que a sua opção em absoluto vem de uma sup eriorida de moral ou qualquer coisa parecida. Trata-se simplesmente da manifestação da sua fé no homem de Gólgota. Ela se funda sem rodeios e meandros em trechos bíblicos que proclamam Jesus Cristo como único e universal. Ela se sente confirmada ao registrar que a missio Dei chama e congrega o seu povo de dentro das religiões e o envia para o meio delas. Visto assim, Vicedom nos desafia. A quantas anda a nossa fé, qual o seu centro e fundamento, o que nos é inalienável nela? Para o nosso afã no diálogo inter-religioso temos muitos e bons motivos, mas qual é o nosso objetivo último? Pensando na visão crítica da Igreja que Vicedom revela e na soberania da missio Dei que esboça, será que ele se oporia a um diálogo com as religiões, com a finalidade de obter a paz com justiça entre os povos, a sobrevivência da espécie humana e a conservação da criação? Sempre tão sensível aos aconteci mentos do mundo, seria ele insensível aos clamores cada vez mais ensurdece dores dos pobres e postergados, às absurdidades criminosas que os fundamentalismos de qualquer matiz provocam às vésperas do século XXI? Certamente não lhes ficaria alheio. Continuaria aprendiz. Encararia aquilo que as religiões oferecem em nossos dias - rejeição da filosofia de vida e da cosmovisão oci dentais; exemplos de convivência pacífica entre as pessoas e com a natureza como mais um chamado da missio Dei para que a Igreja dê meia-volta. Nem a Igreja nem comunidades cristãs exemplares (se um dia surgirem) salvam o nosso mundo conturbado, mas unicamente a missio Dei, quando e do jeito que a ele apraz. Graças a Deus!, diria Vicedom. Nós também? A nossa gratidão não nos tira dos conflitos do mundo, pelo contrário, nos joga para dentro deles a fim de colocarmos sinais da compaixão de Deus, materializada na cruz de Jesus Cristo. Sob e com esta cruz quebramos outras cruzes nas quais nós mes mos e outras pessoas e idéias colocamos homens, mulheres e crianças. Alegramonos que hoje podemos ap render de pessoas não-cristãs como se eliminam cru zes. Ainda assim o fazemos - oxalá o façamos - por causa do Crucificado e em seu nome. Para que não nos esqueçamos disto, lemos e relemos Vicedom. Esperamos que o estudo do presente livro seja também um estímulo para obreiros e obreiras, presbíteros e presbíteras, enfim, para todo o povo das comunidades. Urge que nos conscientizemos de que a missio Dei nos con voca a lhe emprestar a nossa cabeça, as nossas mãos e pés, e a nossa boca. Albérico Baeske e Roberto E. Zwetsch
Introdução Vivemos numa época em que todas as coisas surgidas historicamente são desvalorizadas. Isto também acontece na teologia. Com vistas a nosso tema, retorna repetidas vezes a pergunta se Jesus quis a Igreja e sua missão e se ambas são dimensões legítimas do evangelho. Essa pergunta já vinha sendo feita à missão desde sempre. No entanto, é significativo que hoje, na era da eclesiologia, essa pergunta também seja dirigida à veiculadora da missão. Em si, a ampliação do questionamento é objetivamente necessária, pois a missão não é uma dimensão independ ente, mas sempre pode ser somente um resulta do do comportam ento da Igreja de acordo com o evangelho. Por isso, questio nar a missão diz respeito também ao direito de existência da própria Igreja. No contexto do presente trabalho, porém, é impossível expor uma fundamen tação nova e autorizada da Igreja. Por outro lado, a missão não pode ser fundamen tada como dimensão autônoma. Por isso a fundamentação da missão que ora em preendemos também terá que oferecer, necessariamente, referências à fundamenta ção da Igreja e de sua tarefa. Permanece, todavia, a pergunta se não seria preferível o caminho inverso. Para isso, porém, não me sinto autorizado nem habilitado. A fundam entação da missão não é coisa nova. Ela foi tentada repetidas vezes desde os dias de Justinian von Welz*. Na missiologia evangélica alemã ela recebeu sua forma clássica através de Gustav Warneck** e de seus discípu los. Pouco considerada pela teologia científica, constantemente atacada pela massa dos incrédulos e indiferentes, objeto de mofa e zombaria por parte da imprensa sensacionalista, muitas vezes contestada por governos totalitários, a missão sempre se viu na contingência de comprovar sua razão bíblica de sen Por esse motivo ela se encontrou numa posição apologética até tempos recen tes. Em nossos dias, porém, ocorreu uma grande mudança. Todas as funda mentações da missão de que temos notícia hoje não tentam mais justificá-la em termos teológicos e, eventualmente, também fundamentá-la com argumentos secundários, como, por exemplo, o fez G. Warneck. Falam, antes, da autorida de e do comprometimento com a missão. Há uma mudança evidente de uma abordagem antropocêntrica para uma abordagem teocêntrica da missão. Isso *
N. do E.: Ju stia nia n von Welz (1621-1668): leigo luteran o, co ntestou a conce pção da ortodoxia luterana a respeito do trabalho missionário, qu e negava a validade atual da G rande Comissão (Mt. 28.18-20). Welz insistiu no envio d e estudantes cristãos co mo volun tários do an úncio do evangelho cm terras pagãs. Foi um dos que impulsionaram a formação de sociedades missionári as evangélicas.
** N. do E.: Gustav Warneck (1834-1910): teólogo alemão, foi o primeiro a sistemati zar, nos tempos mode rnos, a com preensã o da tarefa missionária da Igreja cristã. Por isso a teolo gia européia o considera “pai da ciência da missão”. Apoiou decididamente as sociedades missionári as do séc. 19. Cf. Jam es A. SCHERER, Evangelho, Igreja e Reino; Estudos Comparativos de Teolog ia da Missão, São Leop oldo , Sinodal, 1991, cap. 2; Valdir STEUERNAGEL, Obediência Missionária e Prática Histórica; em Busca de Modelos, São Paulo, ABU, 1983, cap. 5.
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é, sem dúvida, um resultado do redescobrimento da mensagem reformatória pela teologia dialética. A Igreja recebeu novo ânimo para o testemunho. Não obstante, é preciso constatar que a teologia no território alemão per maneceu estéril e imune com vistas à missão, apesar da detalhada reflexão sobre ela na Kirchliche Dogmatik de K. Barth. A teologia limitou-se essencialmente à definição do conteúdo do testemunho, mas não se deixou chamar por Deus a ponto de se desencadear uma dinâmica missionária. Difundiu-se um subjetivismo tal que hoje ninguém mais sabe dizer em que consiste a fé dos cristãos, da qual a Igreja vive (Tambaram*). Por isso mesmo ela não pode ser transmitida a outros. A pregação e atividade da Igreja se desenvolvem em convulsões nervosas, de maneira que é preciso perguntar se ainda existe uma autoridade para a missão. Isso tem profundas influências sobre a missão. Visto que ela não é uma grandeza sui generis, mas apenas traço característico e expressão de vida da Igre ja, acabam manifestando-se nela sintomaticamente as mazelas da Igreja e da teologia. Em conseqüência, toda fundamentação da missão terá que tocar nas falhas básicas da Igreja. Esse trabalho poderia ser empreendido de modo abrangente apenas por um teólogo universal. Por isso temos que tomar o outro caminho: elaborar a autocompreensão da missão sem que nos percamos em discussões sem fim. É possível que, por este caminho, possamos ajudar também a Igreja a encontrar uma nova autocompreensão. Na Escandinávia, Holanda e Suíça foram feitos significativos começos nesse sentido. Nos capítulos seguintes iremos ocupar-nos essencialmente com os resultados alcançados na Holanda, porque se preocupam de maneira mais incisiva que os outros com as fraquezas da teologia alemã e com o conceito alemão sobre missão. Desde 1945 nós somos os atacados. A crítica foi muito proveitosa e frutífera, apesar de ter cometido exageros e não ter merecido atenção por parte da teologia alemã. Acusam-nos de uma visão dc povo e identidade étnica oriunda do romantismo que teria levado a uma ideologia etnopatética, redundado em numerosos desvios do posicionamento bíblico básico para a Igreja e missão, eliminado o momento escatológico e, finalmente, levado a enxergar a comunidade somente como “um prolongamento do povo” e da identidade étnica, como “cumprimento abençoador da estrutura étnica”.1
Há que se encontrar uma resposta a esses ataques bastante duros. Não a daremos defendendo-nos contra cada uma das objeções feitas. Os interessados nisso podem consultar o supramencionado trabalho de Knak. Nós preferimos aceitar esses estímulos muito frutificantes e tentar, num confronto crítico com eles, construir uma nova fundamentação da missão e das demais tarefas da Igreja. Procederemos de maneira a sempre estabelecermos primeiro o que a Bíblia diz a respeito, para então fazer a comparação.*1 * N. do F„: Conferência missionária organizad a pelo antigo Comin - Conselho Missionário Interna cional em Madras, índia, n o ano d e 1938, no campus do Madras Christian Collcge. A Conferência anterior havia se realizado em Jerusalém , dez anos antes, no Monte das Oliveiras. Essas reuniões fazem parte dos primeiros esforços, neste século, para elaborar um pensamento missionário ecumênico. 1 S. KNAK, Oeku menischer Dienst in de r Missionswissenschaft, Theologia Viatorum, 1950, p. 157.
Capítulo 1:
A missio Dei
As antigas fundamentações da missão sofriam sobretudo dos seguintes defeitos: ou tentavam comprovar apologeticamente que a missão estaria justificada em virtude do pensamento missionário da Bíblia, e que seria possí vel e necessária entre os povos; ou fundamentavam missão secundariamente como tarefa da Igreja, ou, inclusive, a derivavam da difusão da cu ltura “cristã”2. No presente contexto não nos iremos ocupar com as fundamentações secundá rias. No entanto, a fundamentação apologética também não faz jus à Escritura. Ela destaca a missão como ob ra especial desejada po r Deus, enquanto, de acor do com a concepção global da Escritura, se atribui a Deus somente uma inten ção: salvar as pessoas. Por isso o serviço missionário não pode ser derivado do serviço da Igreja. Todo serviço da Igreja só tem sentido se levar à missão e nisso encontrar seu objetivo último. Por mais louvável que seja o fato de a Igreja e a missão se aproximarem cada vez mais e de em muitos pontos da terra a missão se identificar com a Igreja, nem por isso está banido o perigo da indolência missionária, e o mal-entendido da missão não está resolvido. Existe o perigo de a Igreja tornar-se o ponto de partida da missão, seu objetivo, seu sujeito. No entanto, com base na Escritura ela não é isso. Pois o atuante sem pre é o próp rio Deus triúno, que incorpora seus crentes em seu reino3. Tam bém a Igreja é apenas um instrumento na mão de Deus. Ela própria é o resul tado da atividade do Deus que envia e salva. Para descrever esse fato, a Confe rência de Willingen* adotou o conceito de missio Dei. A missão não c somente obediência a uma palavra do Senhor, não é apenas o compromisso dc congregar a comunidade; ela é participação na missão do Fi lho, na missio Dei, com o abrangente objetivo do estabelecimento do senhorio de Cristo sobre toda a criação redimida.'4
2 Cf. a rica bibliografia indicada cm Walter HOLSTEN, Das Kerygma und der Mensch, 1953, pp. 24ss., 32ss. 3 W. ANDERSEN, A u f dem Weg zu einer Theologie der Mission, 1957, pp. 30ss. * N. do E.: Conferência organizad a nesta cidade d a Alemanha, em 1952, pelo Co nselho Missioná rio Internacional, cuja tarefa consistiu em refo rmula r o man dato missionário c revisar as políticas de missão tradicionais. Valeu-se par a tanto do conceito cen tral de missio Dei. A declaração final afirm a que o movimento missionário tem sua origem na p róp ria ação do Deus Triúno. A Igreja cristã e cada pesso a cristã são co-participantes dessa ação qu e visa a salvação do m und o. Elas são enviadas ao mun do p ara dis cernir os sinais dos tempos e proclam ar o reinado oculto do Senhor. 4 K. HARTENSTEIN, in: W. FREYTAG, Mission zwischen G e s te r n u n d Morgen, 1952, p. 54.
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O movimento missionário do qual somos parte tem sua fonte no próprio Deus triúno.J
1. O conceito Missio Dei significa, antes de mais nada, que a missão é obra de Deus. Ele é
o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo da missão. Se atribuímos a missão desse modo a Deus, ela está isenta de todo arbítrio humano. Portanto, temos que mostrar que Deus quer a missão e como ele próprio a executa. Com isso já estão estabelecidos todos os parâmetros ne cessários. A missão, e com ela a Igreja, são obra do próprio Deus. Portanto, não é possível falar da “missão da Igreja”, muito menos podemos falar de “nossa mis são”. Visto que tanto a Igreja quanto a missão têm sua origem na vontade amoro sa de Deus, podemos falar de Igreja e missão somente na medida em que elas não são entendidas como grandezas autônomas. Ambas são tão-somente instru mentos de Deus, através dos quais Deus promove sua missão. Somente se a Igre ja cumpre, em obediência, a intenção missionária dele, ela pode também falar de sua missão, porque esta então está acolhida na missio Dei. Com isso nosso tema se reveste de grande seriedade. Se é verdade que Deus quer a missão, porque ele próprio faz missão - o que deve ser dem onstra do -, então a Igreja nada mais pode ser do que vaso e instrumento de Deus, se ela se deixar usar por ele. Se ela resiste à intenção de Deus, ela se torna desobe diente e já não pode mais ser Igreja no sentido divino: “Não há participação em Cristo sem participação em sua missão ao mundo.”56 Portanto, não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos. Missão como causa de Deus significa que ele reivindica o direi to de dispor sobre todos os seus crentes da mesma forma como é seu desejo compartilhar com todos os seres humanos seu amor através de seus crentes. Deus torna clara essa pretensão executanto primeiramente a missão por si mes mo. A Igreja somente pode repetir o que Deus fez e faz, e pode apontar para o que ele fará. Com isso a missão está fundamentada na ação do próprio Deus.
2. A missão através de Deus No entanto, para fazer jus à concepção bíblica, o conceito de missio Dei deve ser entendido, simultaneamente, como genitivo atributivo, por meio do
5 Norman GOODAL, Missions under the Cross, 1953, p. 189. 6 ID., ibid., p. 190.
qual Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. Por isso a dogmática católica fala, desde Agostinho, de envios ou da missio intratrinitária. “Sob ‘envio’ se entende a comunicação de uma das pessoas divinas através de outra às criaturas, o que ocorre em virtude da ordem original intradivina.”78 Todo envio de uma das pessoas tem por conseqüência a presença da outra. A teologia evangélica não trata desses envios como artigo dogmático próprio, porque existiria o perigo de a unidade essencial de Deus tornar-se inconcebí vel. Ela tenta, antes, compreender os processos imanentes à Trindade na relacionalidade de Deus com os seres humanos. Na piedade evangélica, po rém, a compreensão para o envio divino, essencial à Trindade, permaneceu vivo em alguns corais: “Ao Filho disse o Pai no céu: ‘O tempo está chegado...’” {Hinos do Povo de Deus, 155,5.) Ou: “Vai, Filho, te compadecer...” (Ibid., 43,2.) Essas e outras estrofes descrevem esse enviar intratrinitário e nos lembram novamente o verdadeiro motivo da missio. Neste ponto nos encontram os diante de um derradeiro mistério de Deus, que só pode ser percebido a partir do agir de Deus com os seres humanos. O derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o enviado, mas, simultaneamente, o conteúdo do envio, sem que com essa trin dade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas. Pois em cada uma das pessoas da divindade Deus age por inteiro. Esse proces so do envio intradivino é de eminente importância para a missão e o serviço da Igreja. Sua missão está prefigurada na missão divina, seu serviço está preestabelecido pelo serviço divino, o sentido e conteúdo do trabalho estão determinados a partir da missio Dei. Por sua missio Deus se revela, ao mesmo tempo, como Senhor soberano. Ele não se deixa prescrever, nem po r parte das religiões nem da incredulidade, o que pode e o que não pode. Faz parte da divindade de Deus o fato de não estar sujeito a nenhuma restrição humana. Desse modo ele dispõe de si de uma forma não mais acessível a nenhum conceito humano. O agir de Deus encon tra-se extra nos*. Assim justamente a missio Dei, como está estabelecida na dou trina da Trindade, se torna a expressão do singular governo de Deus, fato, aliás, que Maomé, p. ex., não entendeu ao tentar, através da negação da divin dade de Cristo e do Espírito Santo, restabelecer a Deus em sua unidade e transcendência. Com isso, na verdade, degradou a Deus e o privou da plenitu de de revelação e essência.
7 M. SCHMAUS, Katholische Dogmatik, 1948, vol. I, p. 377. 8 W. HOLSTEN, op. cit., p. 44. 17
3. Agir salvifico de Deus e envio Visto que a Sagrada Escritura não tem interesse especulativo, ela revela a Deus sempre somente na medida em que isso é importante para seu agir com os seres humanos. Nela Deus faz asserções a respeito de si mesmo somente na medida em que são necessárias para a salvação dos seres humanos. Por isso toda revelação de Deus em sua missio acontece na intenção de salvar a humani dade. Ao revelar-se através de seu agir, faz, ao mesmo tempo, enunciados a respeito do ser humano, coloca-o sob seu juízo e, desse modo, capacita seus mensageiros a levarem ambas as coisas às pessoas: o conteúdo do envio e, com isso, a salvação dos seres humanos. Portanto, a missão outra coisa não pode ser do que a continuação do agir salvífico de Deus através da transmissão dos atos salvíficos. Esta é sua maior autoridade e sua maior incumbência. Na Escritura esse agir de Deus, conforme estabelecido pela missio Dei, sua relação com o mundo e seu agir com as pessoas são descritos com o conceito “envio”. Ele é, com efeito, a essência da atividade criadora e do agir de Deus, de maneira que toda a história salvífica se apresenta como história da missio Der*. Por isso não forçamos a Escritura, se tentarmos definir a tarefa da Igreja a partir desse conceito. Ao mesmo tempo permanecemos dentro dos moldes da teologia autêntica, que jamais pode ser um sistema de pensamentos a respeito de Deus, mas que tem por tarefa descrever o agir de Deus na História910. Se por ora não nos referimos à especial missio Dei cm Jesus Cristo e no dom do Espírito Santo e deixamos de lado o envio dos profetas e apóstolos, ainda nos restam muitas passagens que descrevem a missio Dei. Deus envia inclu sive realidades totalmente impessoais e expressa com isso que também atua dire tamente sobre o mundo. Envia, p. ex., a espada após seu povo (Jr 9.16). Envia cereal e vinho, e também azeite (J1 2.19), e dessa maneira revela-se como Deus do amor através de seu agir; por isso envia especialmente ao povo de sua propri edade bondade e fidelidade (SI 57.S), bondade e sabedoria (SI 43.3), sua palavra (SI 107.20) e fome da Palavra (Am 8.11), sua redenção (SI 111.9). Através de seu envio, portanto, Deus sustenta o mundo e conduz os seres humanos. Ele se revela um Deus que não dispensou sua criação de seus cuidados. Nesse enviar Deus sempre está presente. Por isso envio é expressão de sua presença atuante em juízo e graça. Com isso a missio se torna um a afirma ção de sua divindade. Deus não seria o Deus dos seres humanos, se não agisse com vistas ao mundo e para dentro da realidade mais próxima das pessoas. Teria o mesmo destino que levaram todos os deuses-criadores dos seres huma nos, que, na melhor das hipóteses, ainda estão presentes na lembrança das pessoas, mas já não são mais realidade. Deus, porém, sempre se revelou como um Deus que a ninguém e a nada dispensou de seu governo. Através de seu
9 K. II. RENGSTORFF, quanto ao uso d os conceitos apostolas eapostellein, in: Theologisches Wörterbuch zum bleuen Testament, vol. I. 10 O. CULLMANN, Christus und die Zeit, 1946, p. 19.
enviar ele se confronta com todos os seres humanos em sua divindade. Todas as pessoas estão confrontadas efetivamente com ele, que sustenta a criação por meio de seu agir. Seu enviar se torna uma revelação específica onde ela se torna uma palavra ao povo (SI 19.1-6; 7-10), e em Jesus Cristo, no qual dá aos seres humanos o Redentor. Aqui serve de fundamentaçã o da missio em geral o mesmo fato objetivo do qual Holsten deriva sua fundamentação da missiologia: “Essa base é, em breves palavras, o querigma neotestamentário, a mensagem do agir decisivo de Deus em Cristo e que, por sua vez, chama à decisão.”11 Portanto, a missio de Deus sempre é, ao mesmo tempo, um chamado à decisão; seu agir, aconteça ele de maneira pessoal ou impessoal, sempre é um mensageiro que transmite o chamado; sua intervenção sempre é uma incum bência que exige resposta. Ninguém pode subtrair-se a esse chamado ou sim plesmente ignorá-lo. O agir de Deus sempre comprom ete o ser humano (At 14.17; Rm 1.8). Portanto, quem se nega a pôr-se à disposição da missio Dei tenta restringir o senhorio de Deus em seu serviço com vistas ao mundo e à salvação da humanidade. Direito, autoridade, mandato e obrigação para a missão sem pre emanam do agir do próprio Deus triúno. “Enquanto um culto é divulgado somente entre compatriotas, mesmo que seja fora da pátria, Deus somente é o Senhor p ara esta uma tribo ou cidade. Se, porém, se faz missão de fato, então se alcançou a idéia da kyrioles (senhorio) absoluta.”12Essa missio Dei, que abran ge todo o agir de Deus, pode, p or isso, ser descrita também com o senhorio de Deus.
11 W. HOLST EN, op. cit., p. 42. 12 W. FOERSTER, Herr istJesus, 1924, p. 78.
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Capítulo 2:
O senhorio de Deus
1. O motivo da missão A fundamentação da missão sob o ponto de vista do senhorio de Deus é antiga. Já Zinzendorf argumentava a partir desse princípio. Daí a linha passa pelo pietismo até G. Warneck. Para este o senhorio de Deus era apenas uma idéia a partir da qual também se podia fundamentar a missão. Sua intenção era libertar a missão do afunilamento pietista, que interpretava a idéia do reino de Deus de modo individualista, propondo-se assim a conquistar somente os que haviam sido chamados para o reino. A idéia do reino de Deus encontrou receptividade especialmente na teologia americana, e as missões americanas procuravam concretizá-la no serviço social. Diante desse fato a missiologia alemã se tornou muito cautelosa. Sentiam-se escrúpulos de fundamentar a mis são a partir da idéia do reino de Deus que havia sido usurpada de modo tão unilateral. Isso foi um erro. W. Lütgert foi o único que tentou mostrar como o reino de Deus se realiza também na História Mundial, dando-lhe conteúdo e sentido, e que reino de Deus e atividade estão relacionados tão intimamente que a pessoa que pertence ao reino de Deus também se deixa engajar no serviço social13. Se nos tivéssemos ocupado seriamente com a idéia do reino de Deus, teríamos obtido, como nos mostram os holandeses, o necessário aspecto escatológico. Hoje, quando todas as motivações para a missão se revelam insus tentáveis14, a missão alemã, estimulada por essa fundamentação, volta à idéia do reino de Deus15. O motivo da missão sempre se ocupa com a pergunta: por que temos que fazer missão? Antigamente a resposta mais simples era: Deus quer salvar a todos os seres humanos. Essa resposta tem sua validade ainda hoje. No entanto, hoje também as outras religiões se oferecem para salvar as pessoas e resolver seus problemas existenciais e contestam a pretensão da mensagem cristã. Desse modo surgem no mínimo mais perguntas: por que quer Deus salvar os seres humanos? Sua pretensão se justifica? Que resposta temos que dar às outras religiões? Qual 13 W. LÜTGERT, Reich Gottes und Weltgeschichte, 1928; allgemeine Missionszeitschrift, 1927, pp. 97ss.
Das Reich Gottes un d die Mission, Neue
14 As discussões sobre os motivos da missão encontram-se em W. FREYTAG, Vorn Sinn der Wcltinission, Evangelische Missionszeitschrift, 1959, pp. Iss. 15 Cf. S. KNAK, op. cit., pp. 157s.
o objetivo da redenção e da missão? - Por isso não se pode fundamentar a missão como o faz Holsten na fundamentação da missiologia. Ele parte tãosomente do motivo. Este, porém, só se torna efetivo se, simultaneamente, tam bém tivermos sempre em vista o alvo16. Hoje se tenta encontrar a resposta fundamentando-se a missão a partir do senhorio régio de Deus. Seria possível concili ar essa resposta com a idéia básica da missio Dei? Creio que podemos compreender o agir de Deus com os seres humanos objetivamente tanto sob a idéia do senhorio de Deus quanto sob a idéia da missio Dei. Os dois conceitos, certamente, não descrevem o mesmo processo, mas têm muitos pontos em comum. Vendo a missio Dei fundamentada no fato de que Deus é Deus, então também o senhorio de Deus tem nela sua origem última. O alvo da missio Dei é incorporar os seres humanos na basileia tou theou, no senhorio de Deus, e transmitir-lhes seus dons. Com isso a justificação, que para Holsten constitui o ponto de partida para todo pensamento missioná rio17, não é depreciada, e, sim, está envolvida pelo agir global de Deus com as pessoas, que é maior do que a mera declaração de que o ser humano é justo e a recepção em sua comunhão, porque com o Reino é dado tudo que ele tam bém faz alhures em favor do pecador justificado. Pois a justificação consiste cm nada menos do que na recepção no reino de Deus, c a doutrina da justificação destina-se a responder nenhuma outra per gunta a não ser como entramos no reino de Deus... Quem está justificado está aceito no serviço de Deus.18 Portanto, o reino de Deus poderia ser descrito como alvo da missio Dei. Outra relação existe no parceiro tanto da missio Dei quanto da basileia, a saber, o mundo do gênero humano. A partir dele é motivado o agir de Deus em seu amor e a ele está voltado. Por isso queremos, num primeiro passo, descrever esse vis-à-vis, para que se nos tornem claros o alvo do envio e o dom da basileia.
2. O parceiro de Deus Ao contrário do que acontece em outras religiões, o parceiro de Deus existe pelo fato de Deus haver criado o mundo e as pessoas. O mundo não é uma emanação da divindade e, portanto, uma parte dela. Ele também não surgiu através de um nascimento. Sobretudo, porém, o mundo não surgiu ao lado de Deus ou em oposição a ele, de modo que representasse uma força oposta. Portanto, a relação não é nem dualista nem emanacionista. Ambas 16 W. HOLSTEN, op. cit. Cf. tainb ém W. ANDERSEN, Die kerygmatischc Begründung der Religions und Missionswissenschaft, Evangelische Missionszeitschrift, 1954, pp. 29ss.; Hendrik KRAEMER, Religion and the Christian Faith, London, 1956, pp. 196ss. 17 W. HOLSTEN, op. cit., pp. 52ss.; 61. 18 W. LÜTGERT, Das Reich Gottes und die Mission, p. 97.
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essas formas de explicação, conhecidas das outras religiões, estão completa mente fora de cogitação. O mundo com os seres humanos é criação de Deus, que veio a existir através de sua palavra todo-poderosa, de acordo com sua vontade. Portanto, ele próprio criou para si um parceiro, um tu, e com isso um campo de atuação. Este já era o caso antes da queda, pois a palavra acerca da imagem de Deus só pode significar que Deus criou para si um ser que pudesse ler comunhão com ele e que encontrava nela o cumprimento de sua vida. Nessa comu nhão não havia necessidade de um envio especial nem da acentuação do se nhorio de Deus. Este existia simplesmente. A comunhão que Deus concedia aos seres humanos era a basileia de Deus. Com isso o ser humano se encontra va sob o governo de Deus. Essa parceria de Deus na comunhão é restabelecida pela redenção, sem que com isso o ser humano fosse absorvido na divindade, como o imaginam outras religiões. Redenção não é retorno à divindade, mas à atitude correta em relação a Deus. O ser humano caiu fora dessa parceria na qual se encontrava pela cria ção. A queda somente foi possível porque o ser humano era uma criatura de Deus. Se tivesse sido uma emanação de Deus, não poderia ter ofendido a Deus ou perder seu caráter divino. Por isso, sem dúvida, encontramos delitos do ser humano nas outras religiões, mas não pecados que tornassem a pessoa culpada perante Deus. Nelas, se entende pecado sempre como atitude errada em rela ção ao divino, através da qual o ser humano se prejudica a si mesmo. Pecado como delito contra Deus é reconhecido somente quando a pessoa conhece a Deus como Criador e Senhor através da revelação. Então também necessita de um redentor. Por meio da queda foi perturbada a relação entre Deus e o ser humano, a inter-relação se tornou uma relação hostil po r culpa do ser humano. Com isso o ser humano saiu da comunhão com Deus. Ele fugiu de Deus e passou a desenvolver-se ao lado dele - é o que pensa - para chegar a ser uma grandeza autônoma que teria a liberdade de aceitar a Deus ou de não o aceitar. Todo seu esforço vai no sentido de impor-se ao lado de Deus ou contra Deus. Nessa tentativa chega ao cúmulo de c rer estar fazendo um favor a Deus se retornasse a ele, de maneira que agora Deus se tornaria dependente da mercê do ser humano. Portanto, o ser humano pecador questiona o senhorio de Deus. Por meio de sua natureza determina da pela queda, porém, o ser humano também envolve toda a criação restante na inimizade com Deus. Visto, porém, que possui na relacionalidade com Deus sua verdadeira razão de ser, sem o que não pode existir, tenta encontrar para si um substituto, procurando numa outra religião uma relação com a divindade que lhe seja conveniente. As religi ões, por mais profundas que sejam as idéias que defendem, são uma prova evidente desse desenvolvimento. Elas revelam a todo instante que também o ser humano após a queda não pode negar sua destinação para a comunhão com Deus. Portanto, surgiu no âmbito da criação uma área que quer subtrair-se constantemente ao senhorio de Deus e que o combate. Superar essa área que lhe é hostil, recolocar o ser humano na correta posição de parceria, restabele cer a comunhão da pessoa com Deus e libertá-la do pecado - este é o objetivo e o conteúdo da missio Dei e do senhorio de Deus. 22
Ao mesmo tempo, também depois da queda, Deus considera seu parcei ro uma criatura. Por isso não destruiu simplesmente o ser humano pecador, como teria merecido seu desejo rebelde de ser ele mesmo o senhor. Antes, permaneceu fiel a si mesmo em sua relação com suas criaturas, e desde a queda procura reconquistar os seres humanos, com longanimidade e paciên cia, através de juízo e misericórdia, e proporcionar-lhes a participação na basileia. Se não for por outra razão, deveríamos, a partir dessa atitude de Deus, guar dar-nos de descrever o senhorio de Deus em analogia ao domínio humano.
3. O outro reino Com essa exposição, porém, ainda não descrevemos em sua enormidade e profundidade o abismo criado entre Deus e as pessoas por causa da queda. Por isso mesmo ainda não pudemos desdobrar a extensão do agir salvífico de Deus. A teologia evangélica hesita bastante em colocar ao lado da esfera do senhorio de Deus o outro, que lhe é oposto. Não obstante, é preciso saber que não se pode falar da basileia de Deus sem falar de seu contrário, da dominação à qual o ser humano está subordinado. O embate entre as duas esferas de domínio per faz propriamente o tema da Sagrada Escritura. Não devemos atribuir esse fato à limitação dos autores bíblicos e ao condicionamento deles à época. Também a outra esfera de domínio é um fato e nos está preestabelecido da mesma forma como Deus em sua criação. Em todo caso, a Bíblia tem a mais imponente visão e a mais profunda compreensão de História que se pode conceber. Não é nosso propósito desdobrar aqui uma satanologia, nem explicar a origem do mal. Falamos tão-somente do fato. Sem dúvida, encontramo-nos di ante de um mistério. A Bíblia fala do diabo sem dar explicações sobre sua proce dência. Fala dele como de uma realidade: ele é inimigo de Deus e dos seres humanos. Por isso é preciso vencer o reino dos diabos (Mt 4.3; cf. Lc 4.5). Ele está subordinado ao príncipe do mundo (Jo 12.31; 14.30; 16.11). Seu reino é um todo coeso (Mt 12.26; cf. Lc 11.18), porque concentra em si todas as forças opostas a Deus. E ele que seduz as pessoas e as leva à desobediência, procuran do, portanto, subtraí-las à esfera divina (Ef 6.11; 1 Pe 5.8). Ele c o inimigo do reino de Deus e logo também de sua missão, a qual combate constantemente (Mt 13.39; Lc 8.12). Assim como Deus, através de seu Espírito, concede aos seus força para uma vida que lhe agrada, assim o diabo transmite aos seus a força para o mal (Jo 8.44; Ap 13.2s.). É ele, portanto, que, em última análise, seduz as pessoas ao pecado, transformando-as constantemente em rebeldes contra Deus. Ele realmente exerce domínio como o entendem os seres humanos em virtude do pecado. Com seu reino ele é o adversário de Deus. Por isso Jesus entendeu que o objetivo do senhorio de Deus e o sentido de seu envio era o de destruir as obras do diabo e julgar o príncipe do mundo (1 Jo 3.8; Jo 16.11). Isso tem que estar claro, inclusive sob o risco de sermos tachados de fundamentalistas. Quem não conta com essas realidades é incapaz de executar a tarefa de Deus. Também não poderá compreender a derradeira dependên 23
cia do ser humano, nem tomar a sério o pecado em sua força real. Jamais conseguirá desvencilhar-se do sonho de que o reino de Deus seja um reino a ser realizado no mundo, que poderia ser configurado com recursos humanos. Em última análise, as outras religiões devem ser entendidas a partir das liga ções com esse outro reino. Sem dúvida, elas contêm muitas coisas boas, mas estas estão inseridas no mal e por ele ocultas. Nelas atuam os satânicos pode res antidivinos. Somente reconhecendo isso, chega-se ao verdadeiro juízo mi sericordioso sobre a pessoa gentia, que é escrava desses poderes. O reino do mundo ou o reino do diabo como oposto do reino de Deus e da missio Dei é mais perigoso ainda porque jamais se manifesta com sua verda deira face. Sempre tenta disfarçar-se sob a máscara do bem, do que con%'ém ao ser humano, com objetivos muitas vezes ideais. Por isso o limite entre ele e o reino de Deus pode ser traçado com nitidez e de modo visível somente em casos raros. Nele os bons propósitos dos seres humanos se manifestam para o mal e a ruína. Por isso K. Heim afirma, na controvérsia sobre o livro de H. Kraemer intitulado Die christliche Bolschaft in einer nichtchristlichen Welt: Nada do que Deus criou está a salvo dessa dcmonização. Tudo pode ser atingido po r ela. Por isso existe uma auto-adoração demoníaca do eu, que é imagem de Deus, uma sexualidade demoníaca, que o ser humano não domina mais, o demonismo da técnica, o demonismo do poder, a depravação demoníaca do nacionalismo. Existe o demonismo da piedade, inclusive a oração pode degene rar em convulsão demoníaca. Até mesmo o dom do Espírito Santo pode ser demonizado, como o presenciamos no movimento pentecostal. O aspecto satâ nico cm questão reside no seguinte: o poder demoníaco vive apenas de Deus e do que ele criou. Ele nada tem que não viesse de Deus. Sempre é um reflexo da glória de Deus o que é demonizado e usado contra Deus . 19
Em seu recente livro sobre as religiões, Kraemer avançou repetidas vezes até essa profundeza da compreensão das religiões. Ele chama a atenção pa ra o fato de que nem o ser humano em sua profunda miséria, nem as religiões podem ser entendidas sem o poder do mal, do diabo, que transforma todo o mal em luz e perverte todo o bem. O mundo da religião e das religiões (da cultura como um todo) pertence à esfe ra do “velho homem”, do homem não-redimido, ainda não recriado à imagem de Deus, a cuja semelhança íbi criado originalmente, e por isso se encontra, com seus maravilhosos feitos e desvios satânicos, sob o o juízo de Deus, aguardando de modo obscuro ou inconsciente sua redenção .20
No entanto, não nos cabe desenvolver aqui a compreensão bíblica das religiões; isso seria um estudo em separado. Aqui basta esboçar o outro reino que expressa com maior nitidez a realidade da perdição dos seres humanos. Somente está livre do reino deste mundo quem se deixa salvar dele para o reino de Deus pelo envio de Jesus Cristo. Esse é o único caminho. Nem o nascimento o leva para o reino de Deus (Caim e Abel), nem o fato de perten 19 K. HEIM, Die Stru ktu r des Heiden tums, Evangelisches Missionsmagazin, 1939, p. 17. 20 Hendrik KRAEMER, op. cit., p. 257; cf. também pp. 321, 337, 378ss.
cer ao povo (Rm 2), nem a ocupação (Mt 24.40), nem a mais íntima comunhão das pessoas entre si (Lc 17.34), c podemos acrescentar, também não o fato de pertencerem à mesma Igreja. Somente a fé traça o limite, somente o fato de se pertencer ao reino de Deus. É a ele que as pessoas devem ser chamadas pela missio Dei.
4. O reino
de Deus
O reino do mundo ou do diabo é a expressão mais abrangente para a perdição dos seres humanos, que não podem mais escapar dele por forças próprias nem voltar à comunhão com Deus. Por isso Deus decidiu ajudar a essas pessoas, arrebatá-las do reino das trevas e transportá-las a seu reino por meio de sua missio. Dessa maneira o reino de Deus não se torna apenas o oposto do reino dos diabos, mas, simultaneamente, o ponto de concentração dos que foram libertados de seu poder. Infêlizmente o pietismo estreitou o conceito de reino de Deus a tal ponto que o reino de Deus e o senhorio de Deus consistiam apenas na soma dos convertidos21. Para Warneck, porém, o reino de Deus é a manifestação antimundo que, conforme a vontade de Deus, deve abranger todos os seres humanos, o que, todavia, não significa que todos se deixem chamar para dentro dele22. Com esta última definição, porém, ainda não está dito tudo, pois não é somente o mundo do gênero humano que está sujeito ao domínio de Deus. Ele também não se restringe àqueles que retornam à comunhão com Deus. Pois Deus não dispensou absolutamente nada de sua criação de sua esfera de domí nio. Não existe um mundo que pudesse subsistir ao lado dele. Inclusive o reino dos diabos tem que servir, em última análise, a seus objetivos. Deus é rei (SI 93.1; 99.1) e reina no mundo inteiro e sobre o mundo inteiro (SI 103.19). Ele tem o poder, a glória da dignidade real, a eterna constância para isso (Mt 6.13). Todavia, tanto por sua natureza quanto por sua forma de expressão, seu reino é um reino oposto ao reino do mundo. Por isso, em contraste ao reino do mundo, ele pode ser descrito simplesmente como reino dos céus. Portanto, ele acontece de uma forma contrária ao reino do mundo. Isso se evidenciará so bretudo quando tratarmos do conteúdo de seu reino e de seus dons. Ele reina em justiça, e o direito procede dele (SI 45.6; 49.3). Em seu reino não há mais separação entre as pessoas, não existem diferenças raciais, os contrastes sociais estão superados (Mt 8.11; Lc 13.29). Por isso esse reino contém tudo o que a comunhão com Deus oferece e pelo que as pessoas anseiam desde a queda. Esse reino, que Deus cria para si agindo com as pessoas, significa, simultanea mente, a redenção delas. Por isso sua proclamação pela missio é evangelho, e
21 W. FREYTAG, op. cit., p. 2. 22 Gustav WARNECK , Evangelische Missionslehre, 1897, vol. III/1, p. 170.
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justamente como tal o reino de Deus é, ao mesmo tempo, um chamado, um apelo às pessoas. Por meio de sua proclamação, elas são chamadas a Deus e assim à decisão, à conversão (Mt 6.33; Rm 14.17). O reino é o alvo de Deus com os seres humanos.
5. Jesu s, o con teúdo do Reino Esse reino de Deus não pode se restringir a formas terrenas, mas sempre tem, enquanto o reino do mundo existir, caráter escatológico. Visto que a comu nidade de Deus tem que viver sempre no mundo, ela pode p ertencer ao reino de Deus somente na medida em que, em oposição ao mundo, se deixar determinar por ele em sua atitude de vida pela fé. Ela vive sempre no anseio e na esperança de ver o reino de Deus realizado. Primeiramente Deus satisfez esse anseio, dan do a sua comunidade as promessas messiânicas e ensinando-a a esperar pelo Redentor. O reino realizou-se pela aparição do Messias, todavia, de acordo com sua oposição ao reino do mundo, de modo diferente do que os seres humanos o haviam imaginado. Continua sendo tropeço para as pessoas e tentação para sua comunidade o fato de o Messias não ter estabelecido na terra um reino terreno com as características do reino de Deus, mas ter apenas revelado aos seres huma nos o modo de ser do reino. Somente se tivermos isso em mente seremos preser vados de muitos caminhos errados na Igreja e na missão. O reino de Deus não pode ser realizado em formas humanas. Deus, po rém, o realiza para os seres humanos, permitindo que seu Filho se torne ser humano, enviando o Messias, tornando-o portador do reino de Deus, porque o Messias se encontra e vive na comunhão com Deus e, conseqüentemente, na basileia. Ele é o enviado em nome do Senhor (Mt 21.8), ao qual competem todas as honras reais pela glorificação nas maiores alturas (Lc 18.38). Ele é o rei, que cuida dos seus regiamente e lhes retribui centuplicado o que tiverem sacrificado po r ele (Lc 18.29). Não existe poder que não lhe estivesse submisso e que ele não destruirá ao estabelecer seu reino (Mt 28.18). Por isso o senhorio de Deus e Jesus Cristo são a mesma coisa. Portanto, quem proclamar o nome de Jesus também proclama o senhorio de Deus (At 8.12; 28.31). Jesus é a res posta de Deus às perguntas das pessoas e por isso, o conteúdo da mensagem do reino (2 Tm 4.1). Tudo isso se encontra resumido na Epístola aos Colossenses, onde se afirma de Cristo tudo que no Antigo Testamento é atribuído' a Deus23. Todavia, é preciso lembrar que o reino de Deus é mais abrangente do que as obras salvíficas dejesus; ele abrange todo o agir do Deus triúno com o mundo. O reino consiste sobretudo no agir do Pai, e por conseguinte tem por conteú do aquilo que se poderia chamar de divindade. A Epístola aos Colossenses mostra isso.
23 Com referenda a todo o asunto: K. L. SCHMIDT, art. basiUia, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, vol. I.
6. A alteridad e do reino de Deus Justamente em Jesus Cristo se revela que o sen horio de Deus é algo totalmente diferente do que o senhorio de seu oposto, do reino do mundo. Ele não traz aos seres humanos um reino de felicidade exterior. Sequer cum pre seus desejos, que eles acreditam terem o direito de expressar como seres humanos. Nem mesmo lhes deixa a ilusão de que jun to a ele tudo sairá bem. Diz-lhes com clareza que terão que sofrer por sua causa. Ele não ajuda a ninguém a realizar seus objetivos terrenos, mas é o ajudador onde tudo está ence rrado na vontade do Pai. Também não tira sua comunidade da condição de estrangeiros neste mundo, concedendo-lhes um Estado próprio e unindoos nacionalmente. Afinal, ele não governa como um rei terreno. Seu reino é divino, e por isso subtraído da esfera de influência humana e demoníaca. Não obstante, atua neste mundo. Ele é co ntrário às tendências dos seres hum anos (Mt 11.29). Jesus se revela como rei pelo fato de trazer às pessoas a redenção po r meio de sua morte. “A cruz, a redenção real, acontecida, não é apenas a solução da questão da culpa, mas também da questão do poder, e isso não somente então e lá, mas aqui e agora.”24 Seu reino deve ser entendi do em termos soteriológicos e tem por isso regras bem diferentes do que os reinos do mundo. Por essa razão ninguém pode entrar nesse reino, se não abandonar todas as idéias acerca dos reinos do mundo. Por isso a participa ção no reino de Jesus sempre está associada com a metanoia, com a conver são. Quem não observar isso sempre colocará alvos errados para a Igreja e a missão e acabará no reino do mundo inclusive pelo trabalho mais piedoso. Com isso o reino de Deus está fora do alcance humano e se encontra fora de toda ética e legitimidade natural. Também está fora de qualquer ideal huma no. Por um lado, ele é estabelecido somente por Deus. Isso acontece por meio da pregação e dos sacramentos. Ela é o meio adequado de difusão do reino. Eles são o meio adequado de comunicação do reino. Deus vincula sua missio a esses dois meios, quando envia sua comunidade e a torna sua mediadora. Mas tam bém são descartados todos os recursos humanos com os quais gostamos de atrair as pessoas, tentando tornar-lhes o reino de Deus atraente; pois também elas estão sujeitas à metanoia, à conversão. Por outro lado, o reino também se encon tra fora de todo legalismo humano, n o qual a pessoa crê pode r ser alguma coisa e conquistar sua mercê. No reino de Deus valem somente as regras que ele determinou para isso e que deu aos seus por meio de Jesus Cristo. A escala de valores enfatizada no reino do mundo e em grande parte também na Igreja não tem nenhum valor normativo. Quem não se torn ar humilde como uma criança, que obedece totalmente ao Pai, não entrará nesse reino (Mt 18.4). No reino de Deus terá uma posição somente aquele que receber sua autoridade desse reino. O reino de Deus também está a salvo de toda tentativa humana de moldá-lo pelo fato de seu governo, em contraposição ao governo do mundo, se desenrolar na abscondidade. O que para este seria uma derrota, para o senhorio de Deus é onipotência e vitória. Ele acontece sob a máscara, como diz Lutero. 24 K. 11ARTENSTEIN, op. cit., p. 60.
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Não por último, o reino de Deus é diferente por causa de seu caráter escatológico. Associa-se a ele um alvo distante que anima a presença do reino em Jesus Cristo com a grande esperança da realização do reino pela volta de Cristo. Não se pode falar do reino sem efifatizar essa realização. O reino é vindouro em sentido duplo: a) Por ocasião de sua volta, Cristo estabelecerá o reino de Deus de tal maneira que Deus será tudo em tudo. Isso quer dizer que não apenas derrotará o reino do mundo e do diabo com todas as suas varia ções de poderes, mas o destruirá, de modo que o conflito na criação de Deus acarretado pelo pecado estará resolvido para sempre. Nele só haverá um a nova criação, b) Até sua volta, Cristo fará proclamar seu reino (Mt 24.14), por meio de sua missio congregará os cidadãos do reino, chamará as pessoas à decisão e estará presente em sua comunidade com os dons do Espírito, até que ele ve nha. Portanto, com seu reino e, conseqüentemente, com sua missão, Deus tem em vista um alvo bem definido na História que ele, po r sua vez, levará à consu mação por meio da missão. Desse modo a missão se torna uma decisiva força formadora da História no senhorio de Deus.
7. O reino d e Deus como dádiva A alteridade do reino de Deus também vale para o tipo de sua relação com os seres humanos. Nessa relação, o reino não é sentido como domínio, coerção ou usurpação, mas como dádiva que somente o Senhor do reino trans mite. Esse é mais um fator que o põe fora do alcance do capricho humano. Quem dispõe dessa dádiva será sempre o doador. O ser humano não pode apropriar-se dela. Com isso Deus subtrai constantemente seu reino à ambição de poder do pecado. “O reino vos será tirado e dado a um povo que produz seus frutos” (Mt 21.43). Deus elege, mas volta atrás em caso de abuso de sua dádiva. Ele presenteia, mas exige a devolução da dádiva, caso ela se voltar contra ele, para dá-la àqueles que a empregarão em benefício do reino. Em seu amor, ele sempre dá seu reino àqueles que se deixam inserir nele (Lc 12.32). São esses os que ele chama para seu senhorio e glória (1 Ts 2.12). O reino é essencialmente dádiva. Como o Pai o deu, também o Filho o dá (Lc 22.29), a fim de livrar as pessoas do reino das trevas e transportá-las para seu reino (Cl 1.13). Dessa maneira também o serviço nesse reino se torna um presente, um privilégio do qual o doador tem o direito de dispor. A dádiva e o presente são de natureza tal que não podem ser impostos a ninguém. Também neste ponto fica preservada a contraposição de Deus e ser humano. Este tem plena liberdade de decisão para aceitar a dádiva ou rejeitála. Mas também não pode roubar esse reino, apropriar-se dele, dispor dele, como tentam fazer os muitos cristãos secretos nos países gentílicos e como crêem os nacionalistas das nações jovens, quando julgam poderem reclamar direitos nacionais sobre Jesus, visto que ele pertenceria a toda a humanidade. O reino de Deus pode ser recebido somente de acordo com as regras do reino. O ser humano só pode deixar-se chamar e entrar nele em resposta a esse cha
mado, que sempre é um chamado à obediência. Portanto, o reino pressupõe na pessoa a atitude receptiva, pedinte, expectadora (Mt 10.15; Lc 18.17; Mc 15.43). Somente quem toma essa atitude receberá e herdará o reino inabalável (Hb 12.28; Mt. 25.34). A recepção, portanto, está igualmente associada kmetanoia, à conversão. A pessoa tem que permitir que Deus atue nela e sobre ela, tem que deixar-se renovar pelo Espírito de Deus; só então poderá tornar-se cidadã do reino (Jo 3.5). Esses princípios do senhorio de Deus deveriam, na verdade, ser eviden tes para todo pregador do reino. Não obstante, são esquecidos muitas vezes. Essa é a razão por que é tão difícil hoje alcançar uma compreensão correta do envio e do serviço n a Igreja e na missão. A oposicionalidade ao m undo deixou de existir em grande parte. Muitas vezes se procura o caminho para o ser humano na assimilação, quando somente uma confrontação lhe prestaria o único serviço [de que necessita].
8. O Re ino como salvação Visto que o reino de Deus é antagônico ao reino do mundo, Deus salva nele simultaneamente os seres humanos e julga o outro reino e todos que pertencem a ele. E o juízo sobre os seres humanos que vivem de acordo com as leis das trevas, apesar de terem conhecimento do modo de vida do reino de Deus (Rm 1.18ss.). Esse juízo já está presente com Jesus. Ele consiste no fato de agora as pessoas terem a possibilidade da salvação. Dessa maneira sua descren ça é o juízo sobre elas mesmas (Jo 3.17ss.). Não obstante, o juízo tem caráter futuro e destinação eterna, pois Jesus é, ao mesmo tempo, aquele ao qual Deus entregará o juízo p or ocasião de sua volta. Ele se revelará como o Messias e Rei pelo fato de ser tam bém o Juiz dos seres humanos (At 17.31). Ele pronuncia a sentença que as pessoas pronunciaram sobre si mesmas com base em sua atitu de em relação ao evangelho, e a executa (Jo 5.22-29). Por meio desse juízo a mensagem do reino se torn a existencial. Ela se torn a a mensagem da salvação para aqueles que se deixam chamar ao reino, e a mensagem da condenação para os que o rejeitam. Através desse juízo o reino, como realidade presente, entra no mais agudo contraste com o reino do mundo. Aqui não há concilia ção, mas somente separação que tem que ocorrer entre as pessoass em virtude da mensagem do reino. O que no reino de Deus presente (Lc 17.20ss.) é indi cado pela linha limítrofe entre fé e descrença se evidenciará pelo fato de Jesus ser tanto o conteúdo do reino quanto o juiz, porque p or meio dele o reino de Deus é, aqui e agora, juízo sobre o outro mundo, o que ficará patente com toda a clareza no reino vindouro. Se quisermos resguardar o sentido do reino de Deus e da missio Dei como a salvação por Deus, é preciso obter essa visão escatológica em toda a sua nitidez insistente. Deus revela seu reino da glória e da bem-aventurança no juízo não para estabelecer condições paradisíacas no mundo, mas a fim de 29
destruir o mundo do pecado e estabelecer, por meio de uma nova criação, a plena comunhão com os seus, que se deixaram salvar pela mensagem do reino, por meio de Jesus Cristo. Ele não o faz por desejo de poder, mas a partir da atitude íntima de seu ser, por amor (Jo 3.16), através do que está sendo descri ta sua relação com o mundo. Ele não quer que as pessoas permaneçam no reino das trevas (Cl 1.13) e se percam. Por isso envia seu Filho, que busca e salva o perdido (Mt 18.11; Lc 19.10). O Filho é o portador do reino e lhe dá o conteúdo. Portanto, aplicado aos seres humanos, isso não pode consistir em outra coisa do que na redenção realizada por Jesus Cristo e na nova vida dada por ele, que é concedida por ele com a justificação e o renascimento, na vida eterna que ele conquistou para os seus pela morte e pela ressurreição. Esses feitos salvíficos ocorridos são o cum primento de toda pregação da salvação, na qual se baseia o reino vindouro. Porque Deus reconciliou o mundo consigo mesmo por meio de Cristo, estabe leceu a comunhão envolvida pelo reino de Deus. Dessa maneira se cumpriram todas as promessas em Jesus Cristo. Nele o reino de Deus se aproximou dos seres humanos (Mt 3.2; 4.17; 10.7; Mc 1.15) e se tornou presente de tal maneira (Lc 17.20) que Deus já fez anunciar na mensagem da salvação o que aconteceu por meio da cruz e ressurreição. Apesar de ser servo de Deus e por scr servo de Deus, Deus faz do Filho o Messias, isso é, o portador da pregação do reino e da vontade do reino. Se, todavia, o reino é vida eterna, então também o portador desse reino tem que ter conhecimento dessa vida. O sim ao reino de Deus é o sim à vida a partir de Deus, e por isso o Messias é aquele que vai ao encontro da ressurreição. O Messias é o reino de Deus que se tornou realidade presente no oculto e na irrupção .25
É preciso acrescentar que com isso ainda não está dita a última palavra sobre o reino de Deus. Ele entregou o reino ao Filho, o Filho o realizou por meio de sua paixão e morte e na ressurreição deu aos seres humanos a espe rança da vida eterna. Com isso criou as condições para assumir o reino por meio de sua ascensão. “O fim e a virada escatológica não é essa ressurreição, mas a exaltação, que concede ao Ressurreto todo o poder do céu e da terra.”26 Agora ele é o Senhor que desde a direita de Deus chama as pessoas a seu reino e os livra do outro reino.
9. Prese nte e futuro do Reino Pela consumação dos atos salvíficos, pela exaltação de Jesus cumpriu-se o reino de Deus. Isso deve ser reconhecido para que nossa proclamação na missio 25 W. KÜNNETH, Theologie der Auferstehung, 1951, p. 109. 26 E. LOHMEYER, Mir ist gegeben alle Gewalt, in: H. SCHM AUCH, In memoriam Em st Lohmeyer, 1951, p. 28.
Dei seja
bíblica. Ela se encontrará sempre na expectativa da volta de Cristo e apontará para o reino vindouro; no entanto, poderá fazer isso somente através do discurso a respeito daquele que veio a fim de poder presentear aos seres humanos a salvação por ocasião de sua volta. Se nosso discurso fosse outro, estaríamos tirando o reino da História na qual foi revelado. Se, todavia, falásse mos tão-somente do reino já vindo, estaríamos despojando a História de seu alvo e tornando a proclamação do reino sem efeito por não ter cumprimento. Por importante que seja acentuar isso, não obstante é preciso observar que essa esperança terá um fundamento sólido somente se soubermos que o Senhor que voltará é o mesmo que veio e fez tudo que é necessário para a redenção. Somen te a partir desse pretérito perfeito o crente pode testemunhar o futuro do juízo e da consumação do reino. O reino se baseia em fatos e tem um alvo. Por isso a mensagem do reino não é atemporal e a-histórica como o mito das religiões gentílicas. Por essa razão ele também não pode ser realizado através de represen tações dos eventos, o que é perfeitamente possível nos mitos gentílicos. O reino é único em seu passado e em seu futuro. A revelação do reino baseia-se em fatos históricos. Isso perfaz sua singularidade e com base nisso tem a pretensão de ser verdade. Esta, por sua vez, dá o direito c a autoridade para a execução do envio.
Bem diferente é a situação do descrente, ao qual a mensagem do reino de Deus primeiro tem que ser proclamada. Para ele o reino de Deus ainda não veio. Ele se encontra cronologicamente antes do estabelecimento do reino. Este vem a ele através do mensageiro de Jesus, por meio da proclamação da mensagem do reino, e dessa maneira chega perto dele. Isso não é contradição, pois o reino de Deus pode avizinhar-se de uma pessoa somente porque se tornou um fato em Jesus Cristo. Também aos descrentes ele pode ser procla mado somente nestes termos: que ele já veio e que o futuro se realizará com base no pretérito. Dessa forma a proclamação do reino adquire o aspecto escatológico e a seriedade da responsabilidade, visto que a rejeição do reino é, simultaneamente, uma negação do evento salvífico. Dessa maneira também aqui ela se torna juízo e o provoca.
10. O ca ráte r decisó rio do Reino Não fosse assim, o Senhor e seus apóstolos não poderiam ter feito do reino de Deus o conteúdo de sua proclamação. Ao retomar a mensagem de João Batista, ordenando-a também a seus discípulos, Jesus o faz com vistas ao alvo de seu envio e sua redenção. Por isso o Novo Testamento emprega as mesmas expressões para descrever a proclamação do reino que usa para des crever a proclamação da mensagem salvífica. A proclamação do evangelho é a mensagem do reino (Mt 4.23; 9.35). Quem anuncia ajesus, anuncia o reino (At 8.12). Por isso Paulo só pode chamar-se um proclamador do reino (At 20.25). Por meio da proclamação, o reino se torna presente.
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O pretérito perfeito da salvação, o evento salvífico como história sc torna presen te na proclamação, para a fé que responde à proclamação e reconhece seu teste munho, e se torna presente no sacramento: toma-se pretérito presente pelo Espí rito Santo que garante ambos os modos de tornar o reino presente e os cumpre .27
Como o reino de Deus é diferente do reino do mundo e este deve ser superado por aquele, essa proclamação' leva à decisão. “Jesus não se satisfaz com o rechaço dos ataques demoníacos. Ele ataca. Por isso o conceito de reino tem uma conotação expressamente polêmica nos ditos do Senhor.”28 Jesus declara guerra aos demônios e aos poderes demoníacos e quer derrotá-los. Quer salvar o ser humano de suas garras. Isso ele faz envolvendo os seus na luta através da procla mação, libertando do outro reino os que são atingidos pela proclamação e envolvendo-os igualmente na luta por meio do arrependimento. A pessoa tem que reconhecer seu comprometimento com o outro reino e cortar as ligações no poder de Cristo. É chamada ao reino a fim de abandonar o outro reino. Nenhu ma pessoa pode tornar-se obediente ao reino de Deus sem converter-se, sem arrepender-se e permitir que o senhorio de Cristo atue nela. Os dons do reino estão descritos nas bem-aventuranças. O arrependi mento se manifesta na procura do tesouro (Mt 13.44ss.), no rompimento com o passado e com o ambiente (Lc 9.62). Portanto, a metanoia abrange a vida toda e a configura de tal maneira que na vida da pessoa chamada ao reino já se perceba algo da presença do reino de Deus, pois esse reino de Deus é a vida dada por Deus. A metanoia é o chamado ao reconhecimento da situação de morte da pessoa fora do reino de Deus. É a renúncia radical a toda tentativa de alguém querer dispor de sua vida autonomamente c o voltar-se para a qualidade diferente da vida que vem de Deus. Se o pecado como separação do ser humano de Deus é a morte, então a superação do pecado através do perdão é premissa para a vida. O reino de Deus pode ter um começo somente onde há perdão dos pecados .29
Por meio do arrependimento provocado pela proclamação do reino de Deus, este faz com que as pessoas comecem a buscar o perdão e o possam encontrar por meio de Jesus Cristo. Somente depois de dadas essas condições, podemos falar também de uma realização do reino. Jesus jamais concede seus dons de maneira a complementar elementos humanos ou potenciá-los. Através da nova vida presenteada no arre pendimento e na justificação ele proporciona à pessoa uma nova relação com o mundo em que vive e um novo objetivo de vida. Dessa nova vida surge então o serviço que Deus quer prestar ao mundo através dos seus e que tem por resulta do que todas as esferas da vida sejam invadidas e renovadas po r Cristo. Transmi tir aos seres humanos os dons do reino à parte dessa nova vida significa entregálos às mãos de pessoas que ainda estão sujeitas ao outro reino. Onde isso não é 27 H. D. WENDI.AN V), Der Herr der Zeiten, 1936, p. 20. 28 Elhelbcrl STAUFFER, Die Theologie des Neuen Testaments, 1948, p. 104. 29 W. KÜNNETH, op. cit., p. 109.
observado, a atividade da Igreja e da missão apenas contribui par a qu e o reino de Deus sucumba no desejo de po der do ser humano pecador.
11. A unive rsalida de da salvação Esse reino de Deus, com sua plenitude de dons divinos, não é proprieda de de determinado grupo de pessoas. Ele está destinado a todos os seres huma nos, também aos gentios. Se assim não fosse, não poderíamos falar de um senhorio de Deus, o reino de Deus não poderia ser o oposto ao reino do mundo que também se apresenta em sua universalidade, unidade e coesão. Na disposição de Deus em transmitir sua salvação a todas as pessoas e salvá-las ele se revela como o Deus e Senhor de todas as pessoas. Isso, porém, nem sempre foi reconhecido na teologia. No Antigo Testamento o senhorio de Deus foi relacionado teocraticamente com Israel. No Novo Testamento Jesus se apre senta como o Filho de Davi, portanto como o sucessor legítimo preconizado pela profecia de Natã (2 Sm 7.12ss.) que tem direito ao senhorio. Em parte alguma se põe em dúvida que Israel se encontra sob um governo muito especi al de Deus. Israel tem uma posição específica den tro do plano salvífico. Ele é a comunidade de Deus entre os povos, que se tornou o centro do universo dos povos, a fim de que os gentios pudessem aderir a ela e conhecer o Deus único e o verdadeiro culto a Deus. Foi essa a vocação de Israel, o sentido de sua eleição. Nele e através dele, portanto, o reino se tornou visível, a fim de que pudesse ser concedido aos outros povos30. Por isso Jesus declara a esse povo que ele não tem parte em Deus como povo, em virtude de um direito de povo eleito, mas somente como comunidade de Deus31 e somente n a medida em que os membros individuais desse povo se submetem à vontade de Deus. O nascimento não é garantia para ser mem bro da comunidade de Deus e, conseqüentemente, do senhorio de Deus; no reino pode entrar somente aquele que faz jus à justiça desse reino (Mt 5.20; 7.13s.,21). O senhorio de Deus é concedi do a Israel porque é povo eleito, mas se este recebe parte no reino depende inteiramente da maneira como recebe a oferta de Deus. Deus sempre rejeita a reivindicação de um direito. Deus também não entrega seu reino às mãos de Israel. Na pretensão nacional, Israel decidiu-se contra Jesus e, assim, contra o reino. Em contrapartida, Jesus enaltece gentios individuais e lhes promete par te no reino (Mc 5.1ss.; 7.24ss.; Mt 8.5ss.; Lc 7.1 lss.). A salvação não é tirada de Israel. Pelo contrário, sempre lhe é oferecida em primeiro lugar, mas dele ela passa para os gentios. O trabalho missionário entre eles torna-se sinal dos últimos tempos32.
30 J.JEREMIAS ,Jesu Verheissungfiir die Völker , 1956, pp. 47ss. 31 W. HOLSTEN, op. eit., pp. 75s. 32 J. JEREMIAS, op. dt ., p p. 40ss.
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Israel rejeita a salvação, renuncia ao reino e tem que ser rejeitado por Deus. Apesar disso, Jesus continua entendendo-se como o portador legítimo do reino. O exemplo de Israel evidencia duas coisas: como representante do reino, Jesus pertence a todas as pessoas; Deus mantém seu reino livre de todos os ideais humanos, age contra o desejo de poder dos seres humanos, exclui qualquer auto-salvação, relaciona a redenção com o fim. É um reino escatológico que, todavia, teve seu início no tempo presente. Com ele o outro éon já começou, embora o éon deste mundo ainda não tivesse chegado ao fim33. Por isso Jesus, como representante do governo de Deus sobre o novo éon, exerce seu governo neste mundo (Mt 13.41). Nesse reino seus cidadãos sentarão a sua mesa e expe rimentarão, desse modo, o maior privilégio que um rei pode conceder, enquan to que aqueles que acreditavam terem direito a esse reino serão expulsos. A rejeição do reino por parte de Israel, o rechaço de Israel por Deus é a razão por que o reino de Deus passa para os gentios, criando entre eles direta mente a comunidade de Deus. O Livro de Atos constitui uma ilustração singu lar desse fato. A salvação sempre é oferecida em primeiro lugar aos judeus. Portanto, seu privilégio é reconhecido. Sua inimizade, porém, sempre se cons titui em motivo para ela ser pregada aos gentios. Por culpa de Israel a salvação passa para os gentios (Rm 11.11). Estes, naturalmente, aceitam a salvação como pessoas que recebem parte na salvação destinada em primeiro lugar a Israel exclusivamente pela misericórdia de Deus. Portanto, não existe um reino espe cial para os gentios. Deus iniciou seu reino com seu povo. Por isso os gentios só podem ser acrescentados, enxertados na oliveira como ramos bravos (Rm 11.17). Por esse motivo a comunidade neotestamentária não está suspensa no vazio, ela não se encontra sem nenhuma relação na história salvífica, mas está encerrada no agir salvífico de Deus na História. Tanto Lucas no Livro de Atos quanto Paulo em suas epístolas têm grande interesse em provar que o povo de Deus surgido dentre os gentios está intimamente relacionado com o antigo povo de Deus e que essa ligação corresponde à vontade de Deus e, conseqüentemente, à revelação. Também a eleição dos gentios nos últimos tempos tem um objetivo especi al: levar novamente aos judeus essa salvação em Jesus Cristo, de maneira que, no final, toda a humanidade se encontre sob a proclamação do reino. A missão entre os gentios tem por finalidade última a conquista de Israel para o reino. Sua readmissão faz parte dos sinais dos últimos tempos (Rm 11.1 lss.). Por isso H. Schlier tem razão ao constatar: “De acordo com essas afirmações, missão entre os gentios existe, portanto, no período entre a queda e a restauração de Israel.”34 Antes de definirmos melhor a posição histórico-salvífica da missão entre os gentios, temos que falar mais uma vez de sua pressuposição concreta dentro da história da salvação. Na rejeição de Israel Deus se revela como o Senhor de todos os seres humanos. O caráter divino de seu senhorio se evidencia justa 33 O. CUI.LMANN, op. cit., 1945, pp. 70ss. 34 H. SCHI.IER, Die Entscheidung für die Heidenmission in der Urchristenheil, Evangelische Missionszeitsehriß, 1942.
mente no fato de ele não se restringir, mas querer abarcar todas as pessoas, a fim de conduzir para a verdadeira relação com Deus aqueles que lhe perten cem pela criação e que também lhe estão subordinados compulsoriamente pelo governo mundial de Deus sobre o mundo, e de agregá-los a sua comuni dade. Portanto, Deus não está mais amarrado a qualquer povo. Isso também contradiria ao envio do Filho, cuja morte redentora e ressurreição se revelari am sem sentido para o mundo, de maneira que uma missão entre os gentios não teria embasamento. Morte e ressurreição, porém, são as premissas para a proclamação da mensagem salvífica para todos os povos, que principia com sua exaltação. Isso se evidencia numa palavra como a dejo 12.23s. Jesus inter preta a chegada dos gregos como uma glorificação, mas também sabe que essa somente se poderá realizar se o grão de trigo cair na terra e morrer. Somente depois de consumada sua obra redentora, seu evangelho é uma mensagem para todos os povos. Pela morte e ressurreição de Cristo a mensagem do reino adquire importância cósmica, agora ela é a mensagem para todas as pessoas (Jo 3.16; 2 Co 5.18,21; Cl 1.10). Não existisse esse evento salvífico, a mensagem a respeito de Jesus talvez desse uma boa ética, mas não seria evangelho para todos os seres humanos e não seria capaz de resolver suas necesssidades. Agora, porém, a mensagem tem por conteúdo o evento salvífico, o perdão dos pecados e a vida eterna. Nisso podem consolar e alegrar-se todos os que se deixam chamar ao reino. A Igreja é a portadora dessa mensagem destinada a todos, mas não é sua senho ra. Ela somente pode pôr-se a serviço do reino, mas não deve restringi-lo.
12. Quis Jesu s a missão e ntre os gentios? Com o problem a judeus-gentios surgem dois complexos de perguntas que sempre desempenharam papel importante na fundamentação da missão e que ainda hoje exercem sua influência. Essas questões levaram G. Warneck a concluir, po r um lado, que Jesus teria pensado em termos evolucionistas; a princípio ele se teria restringido a Israel; mais tarde, porém, teria ordenado a missão entre os gentios. Por outro lado, desde A. von Harnack a pergunta se Jesus quis a missão entre os gentios jamais sossegou. Ainda hoje ela é respondi da negativamente por muitos exegetas, p. ex., por J. Jeremias. Ele acredita que Jesus ainda viveu inteiramente dentro da tradição de Sião-Jerusalém do Antigo Testamento: os gentios teriam que acorrer a Jerusalém e que, em conseqüência, a missão entre os gentios deveria preceder imediatamente à vinda de Jesus. Dessa maneira a missão entre os gentios em seu sentido pleno seria possível somente com a vinda do Senhor, quando, pela irrupção do reino, Jesus Cristo em pessoa conduzirá a ele a plenitude dos gentios. Essas idéias já foram defendidas por Zinzendorf e F. Fabri e levaram a que ambos considerassem a missão entre os gentios de hoje somente um traba lho preliminar que teria por objetivo conquistar pessoas individuais prepara35
das pelo Espírito Santo. Isso levou à ênfase na conversão individual, porque os povos ainda não estariam maduros para a missão gentílica p or meio da eleição de Deus. O trabalho de ambos, porém, demonstra que, assim como os autores acima mencionados, também eles não duvidavam que a tendência interior do evangelho urgia a missão entre os gentios e que a Igreja primitiva foi levada a ela po r meio do dom do Espírito Santo. Portanto, também existiria difusão do evangelho entre as nações, missão legítima, se Jesus não tivesse dado a ordem missionária. O horizonte do evangelho seria a humanidade toda. Com isso, porém , não estaria sendo dito que Jesus teve em mente a missão entre os gentios já em seu tempo de vida terrena. Podem-se aduzir passagens neotestamentárias de muito peso para uma resposta negativa à pergunta em questão35, p. ex., Mt 15.24; 15.26; 10.5ss.; 10.23. De acordo com H. Schlier, Jesus viveu na expectativa imediata do juízo final e acreditava não conseguir percorrer todo o povo de Israel antes desse acontecimento. De acordo com ele, a missão entre os gentios teria surgido somente quando, através da ressurreição de Jesus e da dispensação do Espírito Santo, em virtude da demora do fim do mundo, se abriu espaço e se haviam criado as condições para ela. Resta perguntar se as citações em questão têm que ser interpretadas nesse sentido ou se não expressam uma preocupação bem prática. A restrição de Jesus a Israel pode ter sido perfeitamente uma auto-restrição de sua atuação salvífica em benefício da recepção de sua mensa gem por todos os seres humanos. Para ser efetiva, ela tem que concretizar-se em uma comunidade. Tem que haver uma comunidade que acredita na mensa gem, que cuida dela e a preserva, de maneira que as pessoas não possam abu sar dela. O evangelho tem que lançar raízes antes de poder crescer como árvo re. Ele não é uma parasita que se agarra em toda parte e suga a fartar. Por isso ele tem que tornar-se primeiro independente, exclusivo, para então poder tor nar-se universal. Se Jesus ainda estava preso no particularismo, como pressu punha Warneck, então não se deveria dizer essa palavra num só fôlego com a afirmação de que ele é o Redentor do mundo. Se Jesus visava uma preocupa ção prática, então o particularismo era o pressuposto para o universalismo. Em todo caso, Jesus não foi um evangelista mundial, que tivesse posto à disposição dos gentios o evangelho por meio de sua proclamação, sem insistir numa decisão. O movimento mundial do sincretismo revela como o evange lho, entregue às mãos dos gentios por meio de um método de trabalho equivo cado, pode sofrer abuso, se não tiver o apoio de uma comunidade preservadora, na qual se evidencia o evangelho de modo exemplar na vida e mentalidade. Já os apóstolos tiveram que enfrentar apavorados a interpretação errada da men sagem por parte dos gentios. O Livro de Atos nos relata a respeito três exem plos: Simão, o mágico (cap. 8), a deificação de seres humanos em Listra (cap. 14), os exorcistas em nome de Jesus (cap. 19). Já Paulo debateu-se com corren tes sincretistas em suas epístolas. Portanto, Jesus teve que criar primeiro uma comunidade na qual o evangelho era realizado de maneira adequada ao reino.
35 J . JEREMIAS, op. cit., p p. 9ss.
Não po deria ter sido esse o motivo por que restringiu sua atividade a Israel? Que nessa.auto-restrição Jesus teve uma posição muito especial em relação aos gentios, isso o demonstra J. Jeremias96. Também Lohmeyer a evidencia. “O problem a dos povos gentílicos tem um lugar seguro na proclamação de Jesus (Mt 8.11; 21.43; 26.28). O alvo de os povos terem que tornar-se ‘filhos do reino’ está expresso claramente.”97 Não obstante terá que se dizer, com base nessa concepção, que Jesus admitiu a missão entre os gentios somente depois de sua ressurreição, quando Israel o havia rejeitado. A transição para a missão entre os gentios não foi um ato de desespero, e, sim, do ponto de vista escatológico, o rechaço de Israel teve que servir ao prop ósito de to rna r Jesus o Redentor das pessoas. Somente com os feitos salvíficos estavam dadas as condições para o universalismo da salvação. Isso é elaborado em muitas passagens do Novo Testamento. Pela res surreição e pela exaltação Jesus se torna o kyrios (At 2.36). “Por meio de sua ressu rreição den tre os morto s, Jesus, ou trora o Messias dos jud eu s, foi entronizado como Senhor e Salvador do m undo inteiro (Rm 1.1 ls).”3 7 3 68 Portan to, Jesus se torna Senhor de toda a criação e, ao mesmo tempo, daquele outro reino que ele já derrotou prolepticam ente (Cl 1.13). Agora o kyrios de Israel e o kyrios do mundo é o mesmo, e com isso está resolvida a contradição entre Mt 15.24 e Mt 28.18ss. A respeito disso afirma também Liechtenhan: “O envio é um ato único (Lc 10.17-20). Por isso não se pode tirar da restrição às ovelhas perdidas de Israel uma conseqüência adicional. O objetivo é ampliar o peque no rebanho.”39 Schlier o expressa de mo do ainda mais incisivo: “Pelo fato da ressurreição, a ordem missionária do Ressurreto é a superação legítima da proibição de se dirigir aos gentios, e essa proibição é o estágio preliminar legítimo daquela ordem missionária.”40
13. O lug ar escatológico da missão entre os gentios A morte e ressurreição de Jesus são a premissa para a missão entre os gentios. Por meio desta irrom peu a virada escatológica, com a qual o reino vai ao encontro da consumação. Esse reino é inaugurado pela exaltação de Jesus. Ele assume o governo. Por isso hoje se entende a ordem missionária de Mt 28.18ss. menos como ordem do que como proclamação do reino vindouro, o
36 ID., ibid., pp. 34ss. 37 E. LOHMEYER, op. eil., p. 33. 38 A. FRIDRICHSEN, The Apostle an d H is Message, 1947. 39 R. LIECHTENIIAN, DieurchristlicheMission, 1946, p. 23. 40 H. SCHLIER, op. cit., p. 182.
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anúncio da subida de Jesus ao trono, sua entronização41. Jesus tornou-se o rei do reino, e nessa qualidade manda agora que a mensagem do reino seja procla mada às pessoas, para que sejam preparadas para sua volta e salvas por meio da pregação. A missão sempre se encontra sob o signo do Senhor vindouro. Isso proporciona a seu serviço seu sentido mais profundo e seu alvo derradeiro. Se a vinda do Filho do hom em abrange um juízo sobre todos os povos, então também exige a pressuposição de que foi dada a todos a oportunidade de apro priar-se da salvação e que, dessa maneira, são imputáveis. Portanto, a proclama ção do evangelho a todos os povos é um postulado da escatologia; por isso também se encontra aqui o dei (= é preciso que) do determinismo escatológico.42
A Igreja tem por obrigação preparar essa vinda de Jesus através da mis são. O fim somente virá quando a mensagem do reino tiver sido pregada a todos os povos para testemunho sobre eles (Mt 24.14). Por isso o Espírito San to, como o fato do tempo final, leva a Igreja passo a passo à missão entre os gentios e desse modo prepara a vinda de Jesus. Missio é agora a atividade do Senhor exaltado entre sua ascensão e volta. Assim a Igreja tem somente uma tarefa: dar continuidade à história salvífica por meio da proclamação do even to salvífico já acontecido e por meio da anunciação de seu reino na congrega ção da comunidade, “até que ele venha”4®. Boa parte dos teólogos holandeses tiram conseqüências importantes dessas observações, para, a partir daí, elabo rarem uma nova compreensão de Igreja e missão. Primeiramente quero ofere cer um resumo de nossas observações de acordo com o trabalho básico de Hoekendijk, que, ao mesmo tempo, faz a ponte para o próximo capítulo44. Em seu capítulo básico sobre o contexto da missão, Hoekendijk nos mos tra que ela não somente aponta para o fim vindouro, para a irrupção do reino de Deus, mas que ela pró pria já é um prenúncio dessa vinda. Sua tarefa está relacionada com os prenúncios e ais apocalípticos. Com isso ela faz parte dos derradeiros sinais que Deus dá aos seres humanos antes do fim (Mc 13.10; Mt 24.14). Ela própria é um evento apocalíptico. Hoekendijk adota a tese defendi da por Cullmann45: 2 Ts 2.6-7 refere-se à missão, de maneira que o fato de a humanidade ainda não se ter arrependido e o anúncio do evangelho ainda estar incompleto entre os povos são os elementos retardantes antes da vinda do Senhor. Por isso esse período intermediário é a expressão da grande paciência de Deus com os seres humanos. Por meio dessa visão a missão adquire sua importância histórico-salvífica. Todo o poder no céu e na terra está entregue às mãos do Filho do homem (Dn
41 O. MICHEL, Menschensohn und Völkerwelt, Evangelische Missionszeitschrift 1941, n2 6; E. LOI1MEYER, op. eit., pp. 34ss.;J. JEREMIAS, op. cit., pp. 32ss.; S. KNAK, N eute stam entlic he Missionstexte nach neu ere r Exegese, Theologia Viatorum, 1953/5 4, p. 27. 42 R. UEC HT EN HA N, op. cit., p. 32. 43 O. CULLMANN, op. cit., pp. 145ss. 44 J. C. HOEKENDIJK, Kerk en Volk in de duitse Zendingstvetenschap, 1949, pp. 223ss. 45 O. CULLMANN, op. cit., pp. 145ss.
7.13-14; Mt 28.18). O serviço dos povos faz parte de seu triunfo. Sua glória começou (Mt 16.27; 26.62). A promessa messiânica de ls 2.2 se cumpriu. Pela proclamação da mensagem do reino, a fé em Javé abrange toda a humanidade, conforme o previu Dêutero-Isaías. Por meio da proclamação não existem mais limites entre os povos. Todos são chamados ao reino. Esse período começou com a rejeição de Israel. No entanto, a missão entre os gentios depende expres samente do dom do Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.8). Este é o grande evento do tempo final. O Espírito Santo leva ao apostolado pneumático, que é expressamente apostolado dos gentios. Mais adiante analisaremos esse conceito com mais de talhes. Com base nessa exposição deverá ter ficado claro que a Igreja somente po de ser entendida como grandeza escatológica e que, conseqüentemente, a missão outra coisa não pode ser senão continuação da história salvífica através da atuação do Senhor glorificado com sua comunidade entre os povos. Ela é a característica do novo éojv.do qual todos os crentes recebem parte e que deve ser proclamado a todolTôs descrentes, até que ele se cumpra. Com isso a Igreja recebe uma tarefa voltada para o fim. Toda a ação da Igreja encontra-se agora sob esses sinais escatológicos. Ela somente pode ser correta se objetiva, em todas as suas ramificações, a conquista dos descrentes. No serviço da Igreja realiza-se a missio Dei. Cumpre-nos agora descrever sua execução.
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Capítulo 3:
O envio
1. O sentid o do envio A missio Dei é a obra de Deus através da qual manda oferecer, por meio de seus enviados, aos seres humanos tudo que tem em mente para sua salva ção, toda a plenitude de seu reino da redenção, para que, libertos do pecado, arrebatados do outro reino, possam en trar de novo inteiramente em sua comu nhão. Dessa maneira o envio se torna um ato do amor de Deus para com os seres humanos perdidos. Ele é expressão de sua misericórdia464 7 . Esta tem pouco a ver com o motivo pietista da compaixão com os gentios. Esta não estava determinada somente pela preocupação com a pessoa perdida, mas fortemen te marcada pela consciência dos beati possidentes no sentido de não trazer às pessoas apenas a salvação por meio da mensagem, mas de poder redimi-las também de sua depravação terre na e m oral e proporcionar-lhes uma vida dig na. Para levar a salvação às pessoas, Deus empenha-se por elas através da reve lação, po r meio de sua palavra. Por isso a missio Dei está estritamente asssociada à revelação. Deus se revela efetuando ele mesmo o envio. Se não houvesse missio Dei, também não teríamos revelação. Ele envia sua palavra aos seres humanos e se revela de maneira a vir em pessoa a eles em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo (Jo 3.16; Rm 1.16).
2. En viado r e enviado Por meio do amor de Deus que assume forma na revelação e que é transmi tido aos seres humanos no envio, o Deus que se revela e envia se une, através de sua palavra, seu Espírito e sua missão, com o enviado e, através deste, por sua vez, com os ouvintes da mensagem. Foi o mérito da Conferência de Whitby, ainda hoje pouco reconhecida em seus resultados teológicos, ter elaborado isso4'. Por meio do envio Deus lança a ponte, faz a conexão com as pessoas que ele
46 G. F. VICED OM, Die Rechtfertigung ab gestaltende Kraft der Mission, 1952, pp. 9ss. (Neste volume, pp. 99ss.) 47 W. FREYTAG,... Der grosse Auftrag, 1948, pp. 32ss.
quer salvar. Por isso, do ponto de vista de Deus só existe envio com uma missão determinada e um objetivo concreto que deve ser alcançado. Por meio da in cumbência a Igreja com sua missão é somente um elo de ligação, não uma enti dade própria, uma obra independente; ela não tem tarefa auto-escolhida. Com sua missão ela jamais é uma instituição necessária em vista da religiosidade inata do ser humano; menos ainda ela é uma entidade cultural, e por isso mesmo, em princípio, não tem tarefa cultural. Ela também não é objeto de política eclesiás tica. Muito menos ainda tem a ver algo com qualquer expansionismo nacional. A Igreja pode cumprir uma variedade de tarefas. Mas não deve procurá-las ela mesma, à parte de sua única e verdadeira missão. Separadas desta, todas as coisas secundárias pertencem ao outro reino. A Igreja e a missão jamais são concebíveis separadas de Deus e por isso somente podem ser compreendidas a partir da existência de Deus e de sua missio. Elas nada mais são do que uma forma de conduta, um método de traba lho de Deus em sua relação com suas criaturas e uma congregação dos que se deixaram chamar a ele através do envio determinado por Deus. Por isso, em assuntos de Igreja e missão, a ênfase sempre recai no enviador que, através delas, quer realizar seus objetivos entre as pessoas. Por isso todo envio é, pri meiramente, um enunciado sobre o enviador, sobre o Deus que se empenha pelos seres humanos (Is 6.8; Gn 12.lss). Os term os que a Escritura usa para referir-se ao envio expressam simultaneamente o caráter absoluto da vontade de quem dá a incumbência. O enviado sempre é necessariamente aquele que se encontra sob a vontade do enviador (1 Co 9.16ss.). Este chama o enviado ao serviço. Para isso lhe dá autoridade e poder, pois o enviado sempre tem que agir em lugar daquele que envia. Com isso a missão está livre de todo arbítrio e capricho humano, mas também dos desejos humanos e eclesiásticos, por mais que estes estejam arraigados em determinada piedade ou determinada teologia. “No começo da missão sempre se encontra o eu de Deus, o único eu que tem consistência na Escritura.”48 Por isso os enviados som ente podem anunciar a mensagem falando com os profetas: Assim diz o Senhor.
3. Eleição e envio A atitude da Igreja em relação ao mundo é determ inada pelo envio. Como portad ora da mensagem, ela tem que confrontar-se com o m undo. Os holande ses desenvolveram essa questão perg untando pela posição do povo de Israel no mun do, po r sua relação com os gentios. No que se segue atenho-me às exposi ções de J. Blauw49. Primeiramente Deus efetua o envio no m undo escolhendo dentre os povos um povo de sua propriedade, cham ando e enviando-o. Israel já
48 Friso MELZER, IkrsnlU meine Zeugen sein, 1955, p. 7. 49 Johannes BLAUW, Goden en Mensen , 1950.
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tinha uma vocação missionária. Seria um engano sério ver na eleição de Israel apenas um ato arbitrário do Deus autônomo que, em sua soberania, deixa todos os demais povos entregues a seu próprio destino, para escolher para si um povo e privilegiá-lo. Precisamente a eleição de Israel foi um serviço de Deus aos povos encerrado em sua missio. Por meio dela também os demais povos foram, a princípio, colocados sob sua promessa (Gn 12.1ss.). Israel tor nou-se para eles o portador da promessa e o mediador da bênção, um sinal visível de que também eles podem ser salvos e que têm parte na salvação. “O Deus ao qual pertence o mundo é o Deus que escolheu seu povo (...) A Bíblia não começa com o Deus que escolhe, mas com o Deus que é o Criador e, portanto, o Senhor que pode escolher.”50É o Deus que pode escolher e que por isso também escolhe os gentios. Por isso escolheu primeiramente, para serviço aos gentios no Antigo Testamento, seu povo como um todo. Pois na posição do povo no concerto dos povos, na fé e obediência do povo, na forma como Deus o conduzia, também em sua desobediência e apostasia, os outros povos deveriam perceber como Deus, em seu amor e sua santidade, age com seu povo, com seres humanos que ele quer salvar. Ao mesmo tempo os povos podiam reconhecer de que modo a vida de um povo pode estar determinada por sua fé em Deus. Dessa maneira Israel se tornou tanto ponto de atração quanto advertência para os gentios. A rigorosa lei de Deus, que separava Israel dos gentios, estava em vigor até a vinda de Jesus Cristo, com a intenção de manter os gentios afastados, de mos trar-lhes a santidade de Deus, testemunhar-lhes que ninguém pode tornar-se membro do povo de Deus por escolha própria ou comportamento decente.51
Deus executa o envio agindo ele próprio com o povo, enviando-lhe ho mens que deveriam governar e dirigi-lo em seu lugar. Já a essa altura surge a idéia de que, desde a queda, a humanidade está sem liderança e à deriva (1 Rs 22.17; Is 13.14; Zc 10.2). A comunhão do mundo dos povos com Deus está rompida, mas a seu povo Deus conduz por pura graça. Por isso envia a seu povo homens para governar e dirigi-lo. Isso não mudou quando Israel pediu um rei. É significativo que, na verdade, Deus admite o reinado, mas primeiro lhe confere o verdadeiro sentido: o rei deverá ser o pastor que conduz o povo em lugar de Deus. Portanto, o rei tinha uma missão salvífica. Deus é o Pastor (SI 23 e 80) e envia pastores que pastoreiam o povo em seu lugar (Is 40.11; Jr 3.15; Ez 34.23). Portanto, Israel se encontra sob os cuidados especiais de Deus, e com isso estão criadas todas as possibilidades para permanecer povo de Deus entre os demais povos e para poder dar testemunho de Deus por meio de sua vida e existência. Ele se encontra sob a direção de Deus. Esse desejo salvífico de Deus de dirigir seu povo ainda penetra profundamente no Novo Testamen to (Mt 9.36; Jo 10; 1 Pe 2.25; Hb 13.20). De início, portanto, Deus executa o envio servindo ao povo através de sua condução.
50 <). WEBER, Bibelkunde des Alten Testaments, 1947, p. 42. 51 A. De QUERVAIN, Der ewige König, Theologische Existenz, 58, p. 23.
Israel vivia entre os demais povos. Estava sempre tentado a acomodar-se a estes. Sobretudo após a tomada da terra, conheceu os deuses da terra cultiva da, sem cuja mercê era inimaginável gozar dos frutos da terra. A transição da vida no deserto para o scdentarismo, do nomadismo para o cultivo do solo e por fim o progresso civilizatório e cultural do reinado - tudo isso afinal não eram questões técnicas, mas eminentemente religiosas. A recepção de novos cultos e formas de vida tornou-se uma questão vital para Israel. Ele sempre estava cercado por apostasia. Por isso Deus não enviou reis a seu povo, mas sobretudo profetas, aos quais manifestava sua vontade. São eles que, perma nentemente, traçam os limites em relação à apostasia. Os profetas inculcavam nos pastores do povo de Deus a vontade divina e destacavam a exigência e a promessa de condução genuinamente divina. A separação dos demais povos estava definid a pela lei. Os profetas proclamavam tanto a compreensão correta da lei quanto sua aplicação correta. Dessa maneira Israel pôde, apesar de mui ta infidelidade, atuar de modo exemplar em seu meio. Através dessa separação dos demais povos, o particularismo da salvação em Israel se torno u a condição para que a salvação se tornasse evidente tam bém a outros povos. Em tudo isso se tornam evidentes duas coisas que são importantes para o surgimento da idéia de missão no Antigo Testamento e prenunciam prolepticamente o que aconteceu mais tarde no tempo de Jesus: a idéia de missão cresce sob o chamado ao arrependimento e os profetas desenvolvem a visão universal na medida em que Israel não podia mais ser chamado o povo de Deus por causa de sua apostasia. Quando se sentiu seguro, quando passou a identificar-se com o governo de Deus, Israel estava fadado ao fracasso. Somen te agora nasce nele a compreensão para a salvação escatológica e para a dimen são da comunidade de Deus constituída de todos os povos. A transmissão da salvação passa a ser com preendida pelo resto de Israel, portan to pela verdadei ra comunidade de Deus dentre o povo, como a verdadeira vocação. A partir daí Jerusalém se torna o centro da genuína adoração de Deus e todos os povos deverão receber parte nela82. Com isso, porém, ainda não está alcançado o verdadeiro objetivo de Deus com Israel e ainda não está cumprida sua missão específica. Quanto mais um “resto” se entende como o verdadeiro Israel, tanto mais sua existência aponta para aquele um que deverá vir como Messias e Salvador prometido, o Servo de Deus, que trará a salvação a todas as pessoas. Portanto, mesmo como comuni dade dos restantes, Israel permanece povo de Deus e portador da revelação, e Deus confirma as promessas por amor daquele um vindouro que Deus quer presentear a toda a hum anidade e que a conduzirá a sua comunhão. A vocação missionária de Israel se cump riu somente quando Deus enviou seu Filho como Filho de Davi, o Filho do homem, para, em seu amor, revelar-se a todas as pessoas e executar sua ob ra da graça em todas elas63.5 3 2
52 J. HEMPEL, Die Wurzel des Missionswillens im Glauben des Alten Testaments, Zeitschriftfü r die alltesUmentliche Wissenschaft , ano 66, pp . 24 4ss.;J. JEREMIAS, op. eil., pp. 47ss. 53 O. CULLMANN, op. cit., pp. 99ss.
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4. A missio Dei specialis Portanto, o próprio Deus faz missão. A partir de sua misericórdia, ele se faz o pastor e mensageiro de seu povo que se exaure no engano (Mt 9.36; Mc 6.34). Deus envia o Servo de Deus, em cujas promessas a comunidade de Deus do Antigo Testamento aprendeu que seu Deus é um Deus dos povos. Ele faz sua missio por meio de seu Filho, que agora se torna apostolos, isto é, enviado (Hb 3.1). Nele realiza a salvação destinada aos seres humanos e os chama nova mente a sua comunhão. Com Jesus Cristo inicia-se a missio Dei especial, pois nele Deus é simulta neamente o enviador e o enviado, o que se revela e a revelação, o santo que castiga e que redime. Por meio de seu Filho o próprio Deus se torna o conteú do do envio na encarnação e na glorificação. Nele se revela uma vez por todas quem Deus é, o que ele é, como age, como pensa a respeito dos seres humanos, como os redime, qual a salvação que tem à disposição deles, como as pessoas podem aproximar-se dele, como são recebidas em sua comunhão. Isso agora se destina a todos os seres humanos. De agora em diante ninguém pode procurar seu próprio caminho de redenção. Esse Jesus ninguém pode ignorar. Todo ser humano tem que decidir-se nele e por meio dele, pois nele age com as pessoas o Deus que é seu Senhor a partir da criação. Por isso Jesus, sem dúvida, tem uma tarefa especial nesse envio, mas sempre será a tarefa e a vontade que o pró prio Deus triúno propôs a si mesmo para a salvação das pessoas. Jesus sempre age em concordância com o Pai, e atua como se o próprio Pai estivesse atuando. Ele completa a obra de seu Pai (Jo 4.34), e isso é uma prova de que Deus o enviou e que ele está atuando 0o 9.3ss.). O envio tem o propósito de revelar aos seres humanos que o Pai está no Filho e o Filho, no Pai. Por isso o envio é um assunto muito sério. Por meio dele os seres humanos são levados à presença do Deus vivo, seus deuses antigos são declarados nulos e seus caminhos de redenção são declarados falsos. Pois somente ele é a salvação e somente ele traz a salvação. Isso somente é possível porque Jesus não apenas proclama uma mensa gem, mas porque ele próprio é o conteúdo da mensagem e traz a redenção. Com isso a redenção está fora do alcance de qualquer especulação humana e também de toda meditação. O enviado de Deus realiza a redenção na cruz e por meio da mensagem da cruz dá o conteúdo a todo envio. Por meio da ressurreição ele vence todas as necessidades das pessoas, que sempre giram em torno da morte, e dessa maneira dá a certeza da vida eterna. Por meio da reconciliação e concessão da vida eterna a comunhão com Deus está completa e a pregação a respeito dela adquire sua urgência pela destinação escatológica. Por meio do envio Jesus se torna o Senhor sobre todos os poderes antidivinos, que querem destruir a obra salvífica de Deus, e também Senhor sobre aquele outro mundo resumido no reino das trevas. Jesus se torna a cabeça de sua comunidade. Dessa maneira estão resolvidas todas as perguntas que desde sempre moveram a religião, que se tornaram suas questões centrais. Todavia, não estão resolvidas do modo como o ser humano o havia imaginado, mas à
maneira de Deus e por isso de maneira absolutamente válida. O ser humano foi tirado de sua autodivinização e transformado novamente em criatura e visà-vis de Deus. Com Jesus Cristo está encerrado o tempo das trevas e da igno rância. Por isso, quem se encontra com Cristo está chamado à decisão e, conseqüentemente, ao arrependimento. Com Jesus está encerrado o processo de dar conteúdo ao envio e estão estabelecidos o sentido e alvo de todo envio. Além de Jesus não existe mais revelação de Deus. Também o Espírito Santo tom ará do que é dele e justam en te dessa maneira conduzirá todos os seres humanos à verdade. Desde que Jesus morreu e ressuscitou por causa da salvação das pessoas, tornou-se impossível qualquer redenção fora dele, por mais que as pessoas tentem enquadrar a Cristo entre as muitas figuras que quiseram mostrar um caminho de reden ção. Quem põe em dúvida a unicidade de Cristo também põe em dúvida o único Deus que o enviou. Somente através do Filho as pessoas aprendem a conhecer a esse Deus e somente através dele encontram o caminho ao Pai. Por isso Jesus não é apenas uma figura única na História, ele também é único em seu agir e seu objetivo (Rm 6.10; Hb 6; 1 Pe 3.18). Por causa desse fato fracas sarão todas as tentativas das religiões e das filosofias de substituí-lo, e nele se frustra toda tentativa do sincretismo que quer complementá-lo, apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço. Por meio dele toda auto-redenção, por mais piedosa que seja, se torna rebeldia contra a vontade redentora de Deus e po r isso deve rá revelar sempre a conseqüência da queda. As pessoas somente podem aceitar a Jesus como ele é, ou então não recebem parte nele. Podem somente confrontar-se com sua mensagem, sujeitar-se a ela, crê-la e deixar-se salvar por ele. Sua mensagem é exclusiva, pois está totalmente presa ao Deus uno. Ao mesmo tempo, porém, ela é universal, porque é a correspondência do reino e do senhorio de Deus que abrange o mundo inteiro (At 4.12; Jo 6.68). Ela pertence a todas as pessoas. Fora dessa missio Dei em Jesus Cristo não pode mais existir envios hoje. Tudo que acontece em termos de envio desde sua missio partiu dele, está deter minado por ele, encerrado em seu envio, é continuação de seu envio por ele mesmo. Tudo que para nós abrange o conteúdo e objetivo do envio é ele. Assim como nós todos nos tornamos semelhantes de Jesus por meio de sua encarnação, e assim como nos tornamos irmãos por meio de sua redenção (Rm 8.29; Hb 2.11), isto é, cidadãos de seu reino, do mesmo modo somos, também como pessoas que ele chamou a seu serviço, apenas co-enviados, va sos de seu envio. Dessa forma, nele o serviço da Igreja e da missão continua sendo a obra do próprio Deus. A misssão entre os gentios como está sendo praticada hoje é possível somente porque Deus deu continuidade a seu envio e porque, por meio do dom do Espírito Santo, fez da unicidade do envio do Filho uma »iAmo continuala. Agora fica evidente para todas as pessoas que Deus condicionou toda a salva ção a seu Filho e que, em seu amor, continua empenhando-se para atrair os seres humanos. Não existiria Igreja, não existira comunidade de Deus na terra entre todos os povos, e por isso também não existiria missão, se o próprio Deus não agisse desse modo entre todos os povos pelo dom do Espírito Santo, 45
como Lutero o descreveu na explicação do terceiro artigo do Credo. O Espíri to Santo é a força motora da missão. Os apóstolos têm ordem expressa de iniciar seu trabalho e cumprir sua vocação somente depois do derram amento do Espírito Santo (Lc 24.49; At 1.8). Pelo derramamento do Espírito Santo eles são conduzidos à pregação pentecostal, à fundação da primeira comunidade e, a partir daí, paulatinamente, à missão. Para onde vão, são movidos pelo Espíri to, e onde quer que preguem a mensagem, o Espírito está colaborando com eles. Sem o dom do Espírito Santo jamais teriam encontrado o caminho aos gentios, e a redenção acontecida em Jesus Cristo teria permanecido sem im portância para a humanidade. Talvez se tivesse formado uma seita judaica, mas não uma Igreja que abrange os povos. Também o Espírito Santo é enviado (Jo 14.26; 15.26; 16.7). Ele procede do Pai e do Filho; por isso temos em seu envio a plenitude da graça do Deus triúno. Onde ele atua, está atuando o Deus triúno. Nele Deus, em sua relação com o mundo, dá continuidade a sua presença entre os seres humanos e lhes transmite o que foi feito por eles. “Entre sua (sc. de Jesus) ascensão e volta ele está entre os povos na pessoa do Espírito Santo. O Espírito Santo é o poder por meio do qual e no qual Cristo Jesus, sentado à direita de Deus, está presente na terra.”MDeus jamais é impiedoso. O nde incumbe os seus de alguma tarefa ele também colabora, e não fica à parte como o Senhor, à maneira humana. O Espírito Santo traz a presença de Deus e a certeza dessa sua presença. O Deus triúno está presente em seu Espírito. Também o Espírito Santo é Senhor (2 Co 3.17). Com ele está dado o reino, pois ele próprio é o reino na ação de Deus (Mt 3. 11; Jo 1.20; 1.27,33; At 1.5). Por meio dele Jesus realiza sua presença prometida (Mt 28.20). Portanto, quem é movido e guiado por ele tem a prova de que através dele Deus quer realizar alguma coisa especial na comunidade ou, através da comunidade, no mundo. O Espírito sempre é a co-testemunha na proclamação e na doutrina (At 5.32; 15.28). Em sua dádiva e presença se mede o sucesso da proclamação, pois ele é a expressão para a eficácia da Palavra (At 10.26; 19.2ss.). Nessas qualidades o Espírito Santo dá continuidade à missão que Deus começou por meio de seu Filho Jesus Cristo, até o dia em que o próprio Jesus voltará e encerrará a missão. O Espírito Santo faz isso chamando as pessoas à fé, levan do-as a testemunhar e pondo-as a serviço.
5. Os apóstolos Até aqui descrevemos a missio Dei principalmente como atividade imedi ata de Deus, por meio da qual Deus se revela como aquele que age com os seres humanos e os salva. Desde a exaltação de Cristo, o Espírito Santo executa
54 II. SCHLIF.R, op. r.it., pp. 177s.
essa missão imediata transformando pessoas em seus mensageiros e instru mentos, comissionando-as em nome de Jesus e enviando-as. Essas pessoas cha madas especialmente pelo Senhor e enviadas com determinada missão são denominadas apóstolos no Novo Testamento. Elas são escolhidas pelo próprio Senhor e equipadas com sua autoridade. Elas mesmas não puderam escolher sua profissão. Muitas vezes consentiram somente sob relutância interior e tive ram que primeiro ser convencidas por ele. Sempre foram incumbidas da tarefa específica de proclamar a mensagem salvífica, a fim de levarem os seres huma nos à fé naquele que comissionava os apóstolos e congregá-los na comunidade do Senhor. Portanto, seu serviço sempre é um serviço derivado da missio Dei. No Novo Testamento encontramos uma vocação e um envio duplos para os apóstolos. O Senhor Jesus os escolhe, durante sua vida terrena, dentre o grande número de seus seguidores. Portanto, eles se tornam apóstolos em virtu de de uma tomada de decisão especial e de uma missão especial. Para isso Jesus buscou a certeza na oração (Mc 6; Mt 10; Lc 9). Essa primeira escolha leva, conforme supõe hoje a maioria dos exegetas, a um envio único, bem delimitado, com uma missão igual à que seu Senhor tinha que cumprir’5. Portanto, recebem a autoridade por parte de seu Senhor de fazerem a mesma coisa que também ele próprio faz: apoiar e ampliar sua atividade messiânica (Lc 9.2; 10.7-9). Parece que seu envio foi um ato único, pois, após a volta, encontramo-los trabalhando apenas na companhia de seu Senhor. Enquanto seu Senhor estava com eles aqui na terra, os apóstolos não tiveram uma tarefa independente. É sabido que na hora da provação do sofrimento, os apóstolos abandona ram seu Senhor. Por isso, depois da Páscoa ele tem que reuni-los novamente, reequipá-los, explicar-lhes o sentido dos eventos, e chamar e enviá-los uma segunda vez. O segundo envio, agora pelo Ressurreto, é um envio definitivo (Mt 28.19; Lc 24.47ss.; Jo 20.21; Mc 16.15). Jesus perdoou aos apóstolos, resta beleceu a comunhão com eles e removeu todos os empecilhos. Conforme suas instruções, a proclamação dos apóstolos de agora em diante nada mais é do que a interpretação dos acontecimentos históricos de sua vida terrena, especi almente desde a prisão até a ascensão. “Deus precisa de seus apóstolos, de seu empenho e fidelidade, a fim de abrir os olhos das pessoas para esse evento divino, para que permitam que ele aconteça também nelas e se ponham a serviço dele.”5®Por isso esse segundo envio não está mais delimitado por espa ço e tempo, mas conduz a todo o ecúmeno ou ao cosmo, o que significa que ele é universal sob o duplo aspecto: até o fim do tempo e até o fim do mundo. Por meio desse envio o Senhor reivindica para si a humanidade toda e inter preta suas obras salvíficas de maneira que vêm a ser para cada pessoa o ele mento decisivo para a sua redenção. Em ambos os envios chama a atenção o fato de Jesus enviar somente homens, embora tivesse muitas mulheres como seguidoras e embora também565
55 G. STÄHLIN, Die Endschaujesu und die Mission, Evangelische Missionszeitsckrifi, 1950, pp. 99ss. 56 R. LIECIITENIIAN, op. cit., p. 74.
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houvessse mulheres entre as testemunhas de sua ressurreição. Além disso, é preciso constatar que esse segundo envio não coincide com o derramamento do Espírito Santo, mas lhe antecede. Portanto, poder-se-ia dizer que a vocação parte do próprio Senhor, enquanto a execucão é derivada do Espírito Santo. “Isso, porém, significa que o apostolado não se deriva do fato de a Igreja possuir o Espírito, por mais que se necessite do Espírito para a execução da missão, mas do mandato do Senhor ressurreto. Isso está evidente em todas as fontes.”57 De acordo com isso, a ressurreição é a premissa para o envio a partir do qual os apóstolos recebem sua incumbência. No entanto, esta é realizada somente pela concessão do Espírito. Somente a partir daí (a partir de Páscoa e Pentecostes) eles são aquilo para o qual são destinados e ordenados aqui: portadores do querigma. Somente neste ponto a comunidade se desenvolve, a partir de sua forma originária do círculo de amigos crentes no Jesus Cristo vivo, transformando-se na Igreja que se espa lha pelo mundo afora e cresce.5859 A instalação no apostolado e o envio têm sua base nas aparições pós-pascoais, no faio de, por um lado, o Ressurreto renovar- e confirmar a condição de apóstolos de seus discípulos e, por outro, lhe dar uma fundamentação totalmente nova.39
Esse fato tem repercussão tão grande que na pregação apóstolica não é a cruz que está no centro, mas sempre a ressurreição. Ela é o fato decisivo. Somente se existirem ressurreição, juízo e vida eterna com Deus, a cruz adquire sua importância. Por isso a missão está fundamentada sobretudo a partir da ressur reição. Sem ela, Jesus não seria o Redentor do mundo. Ainda outro fato está relacionado com a difusão da mensagem da ressur reição. Na questão de quem poderia chamar-se apóstolo, não se coloca a ênfase primordialmente na vocação e envio, ou na capacidade para a profissão, mas no fato de alguém ser testemunha do evento da ressurreição. Ele tinha que poder testemunhar as aparições do Ressurreto, portanto, o fato decisivo na redenção (Lc 24.49; At 1.22; 1 Co 15.8ss.). Também Paulo pode comprovar seu apostolado como legítimo somente pelo fato de também ele ter visto o Ressurreto (1 Co 9.1). Além disso, os apóstolos também devem ter sido acompanhantes do Se nhor (At 1.21). Eles são, portanto, testemunhas oculares de eventos históricos, da vida, morte e ressurreição do Senhor. Com isso a proclamação dos apóstolos está acima de qualquer espiritualização. Por isso a pregação cristã é proclamação da história de Jesus e não exposição popularizada de um sistema doutrinário. Isso também pode ter sido necessário, mas sempre é secundário. Eles (os apóstolos) são conclamados por Deus perante todos os demais seres hu manos como testemunhas de sua própria obra. Eles podem e devem confirmar perante o mundo inteiro, e para que todo o mundo o ouça, que e como ele falou e agiu cm Jesus Cristo e em seu povo.60 57 H. SCHLIER, op. eit., p. 179. 58 K. BARTH, Kirchliche Dogmatik, 1953, vol. IV, 1, p. 373. 59 W. KÜNNETH, op. eit., p. 79. 60 K. BARTH, op. eil., 1945, vol. I, 2, p. 913.
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Eles são, portanto, testemunhas da obra de Jesus. Nesse contexto, porém, é decisivo constatar que nem todas essas testemunhas se tornam apóstolos, mas somente aquelas que são chamadas especialmente para isso e que recebem uma tarefa específica. Sabemos que existiram muitas testemunhas do Ressurreto, porém somente doze são escolhidos. Por mais que se tenha que enfatizar a vocação e envio dos doze pelo Ressurreto, não obstante é preciso constatar, por outro lado, que esse envio partiu simultaneamente do Deus triúno. Também os apóstolos são enviados pelo Pai, pois no ato do envio, Jesus, como o Ressurreto, representa o Pai e agrega o envio dos apóstolos a sua própria missio. Em última análise, portanto, não estamos diante de diversos envios. Trata-se sempre da mesma missio Dei que acontece aqui (Mt 28.18s.; Jo 20.21)61.
6. O nome “apóstolo” Portanto, os apóstolos acupam um lugar único e, conseqüentemente, bá sico na comunidade. Como testemunhas da vida e da ressurreição de Jesus, eles são o elo de ligação entre o Senhor e sua comunidade que não o conhece mais em sua presença corporal. Ainda havia outras testemunhas da vida terrena de Jesus, pois Jesus teve muitos seguidores. Por isso também outras testemu nhas de Jesus podiam ser chamadas de apóstolos na comunidade originária, por exemplo, discípulos que acompanhavam os apóstolos (At 14.4, 14). Igual mente, Tiago, o irmão do Senhor, é chamado apóstolo (G1 1.14). Em geral, porém, os autores do Novo Testamento são muito cautelosos em denominar alguém de “apóstolo”. Lucas inclusive mostra certa hesitação com vistas a Pau lo. Os fatos nos levam à conclusão de que a comunidade não se sentiu no direito de chamar seus enviados de apóstolos e que igualmente ninguém po dia autoconceder-se esse título. Ninguém tinha direito ao título. Quando os discípulos discutem entre si o direito de poder governar com Jesus, são repre endidos pelo próprio Jesus em suas pretensões (Mc 9.38ss.). Alguém pode realizar feitos em nome de Jesus, portanto fazer o que Jesus ordenou aos após tolos, sem, no entanto, ter o direito ao título de apóstolo (Lc 9.49ss.). Para ser apóstolo é preciso ser chamado e comissionado pessoalmente pelo Senhor Jesus. Isso se evidencia sobretudo na defesa do apóstolo Paulo de seu apostolado. Ele faz questão absoluta de ser equiparado aos demais apóstolos. Não está em discussão o reconhecimento de sua pessoa, mas de seu trabalho. Por isso Paulo fornece as provas de ter recebido uma ordem especial para o apostolado entre os gentios. Esse é o serviço para o qual foi chamado e separado desde o ventre materno (Rm 1.1; G1 1.15). Ele está convicto de ter recebido seu ministério do Ressurreto, pois ele próprio o viu. Por isso ele é testemunha da 61 G. STÀHLIN, op. cit., pp. 97ss.
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ressurreição, e tem consciência de que isso é um fato incrível e incompreensível (1 Co 15.8ss.). Portanto, recorre à mesma fundamentação e aos mesmos creden ciais para seu ministério que os demais apóstolos, e estes o reconheceram, ainda que hesitantes. No entanto, rejeita a fundamentação com a qual argumentariam todos os sucessores - a fundamentação entusiasta (1 Co 14.1ss.). Ele justamente não apela a visões e experiências (2 Co 12.1ss.). Por mais importantes que estas sejam para ele, elas não lhe dão a garantia do comissionamento. Decisivo para ele é o fato de o Ressurreto lhe ter aparecido e de ter agido nele através de Ananias e da comunidade (At 9.1ss.; 22.3-16; 26.9-18). Também ele viu o Ressurreto (1 Co 9.1). Aos colaboradores de Paulo, a um Timóteo ou a um Apoio, por exemplo, não é concedido o título de apóstolo. O problema com que nos deparamos aqui é analisado sobretudo por Fridrichsen62. Com base nessas constatações e em G1 2.7, Fridrichsen crê po der afirmar que, em última análise, somente teriam existido dois apóstolos: Pedro para os circuncisos, Paulo para os incircuncisos. Cada um deles teria estado cercado de um grupo de colaboradores, sobre os quais exercia autorida de em virtude de sua vocação especial. Tiago, por sua vez, teria sido o líder da Igreja judaica. Pedro teria proclamado a ressurreição como cum primento da esperança messiânica dos judeus, enquanto que Paulo teria anunciado a Jesus como Senhor do mundo com base na ressurreição. O serviço dos doze se teria encerrado com o primeiro envio. Depois da ressurreição eles não eram mais apóstolos. Dessa maneira o apostolado da Igreja se teria desenvolvido sob Pedro e Paulo. Em conseqüência disso, Pedro se teria sentido responsável pela propa gação do evangelho entre os judeus, embora não se tivessse limitado a eles, enquanto que Paulo, por sua vez, pela missão entre os gentios, embora sempre tomasse os judeus por ponto de partida. Ao lado deles, teriam existido nume rosos outros trabalhos missionários. Portanto, somente duas pessoas puderam aspirar ao ministério apostólico, enquanto que o serviço desse ministério, o apostolado, teria sido executado por muitos. No entanto, somente os dois após tolos teriam tido autoridade final. Podemos deixar em aberto a questão se Fridrichsen compreendeu corretamente o apostolado. O que nos interessa, porém, é a última afirmação: que o serviço do ministério pôde ser exercido também por outros.
7. M inistério apostólico e com unidade Embora Paulo tenha recebido a autoridade para o ministério do Ressurre to, de forma alguma questiona o direito dos profetas e mestres de Antioquia de enviá-lo. Portanto, ele se submete aos líderes da comunidade local, que agem em nome e por instrução do Espírito Santo. Esse fato não se evidencia desse modo nos outros apóstolos. Também entre os outros não encontramos o grande nú mero de colaboradores que Paulo reúne em torno de si e que trabalham nas co-
62 A. FRIDRICHSEN, op. cit.
munidades ou entre os gentios sob sua autoridade. Parece que os demais apósto los eram, em geral, trabalhadores individuais, que escolhiam sua tarefa, se é que se punham à disposição do serviço missionário. O Livro de Atos apenas revela que sua grande preocupação era a de estabelecer, por um lado, a conexão com o povo de Deus do Antigo Testamento e, por outro lado, com o novo povo de Deus, cor por ifiçado na comunidade primitiva em Jerusalém. Paulo, porém, não se sente responsável apenas perante os demais apóstolos e perante a comunida de primitiva. No mínimo à comunidade de Antioquia concede o direito de ser informada sobre sua atividade. Com isso já se evidencia com clareza a posição que o missionário passou a ocupar mais tarde na Igreja. Ele atua em nome da co munidade e essa é co-responsável por seu trabalho. No caso de Paulo, portanto, existem os dois elementos: a autoridade apostólica e a co-responsabilidade da co munidade. Isso mostra também o fato de ele, como único dentre os apóstolos que é comissionado pela comunidade, ter o direito de intitular-se apóstolo (2 Co 8.23; Fp 2.25; At 13.1-3). Portanto, a comunidade tinha o direito de transmitir o serviço dos apóstolos a outros, mas não tinha a autoridade de conceder a al guém o título de apóstolo. Por isso o ministério apóstolico não era um ministé rio da comunidade, mas único e básico. Por isso os apóstolos responsáveis pela ordem da comunidade não nomearam sucesssores, mas criaram um novo minis tério para a administração da comunidade (At 14.23; 20.17ss.). Entregaram a liderança da comunidade, mas não nomearam apóstolos, e, sim, bispos. Por isso a autoridade dos bispos jamais pode ser comparada à autoridade dos apóstolos. Assim, o ministério dos apóstolos é considerado único na Igreja. Eles têm o serviço e a tarefa de fundar a Igreja e eles mesmos se tornam o funda mento da construção, no qual todo trabalho posterior deve fundamentar-se (1 Co 3.9ss.; 12.38s.ss.). O começo sempre é decisivo. Os pósteros somente podem construir de acordo com o fundamento colocado, ou então têm que derrubar e destruir. Os apóstolos colocam o alicerce porque são testemunhas diretas de Jesus e porque podem agir de acordo com as instruções do pr óprio Jesus. Isso confere a seu trabalho e a sua proclamação o caráter de revelação. Os bispos não podem ter essa pretensão. “Anciãos e bispos são somente vigilantes, cuja tarefa é vigiar para que de fato se construa somente sobre o fundamento dos apóstolos; eles próprios não são fundamentos.”63 Com isso surge a pergunta se existe um ministério missionário na Igreja. Na resposta a esta pergunta, poderíamos reportar-nos aos evangelistas, que já existiam na época dos apóstolos; ao mesmo tempo, porém, deveríamos per guntar imediatamente como esse ministério está ancorado. O fato é que a Igreja fez missão em todos os tempos e se propagou. Com isso se constata, em todo caso, que a missão não depende da transmissão do ministério apostólico, mas da atitude missionária que o serviço apóstolico suscitou, o qual foi trans mitido à Igreja pelos apóstolos. Através dele, através do apostolé, do apostolado, a Igreja está conclamada a levar, nesse ínterim, a salvação em Jesus Cristo a todas as pessoas. Nessa tarefa estão resumidos todos os serviços da Igreja e
63 O. CUI.I.MANN, Petrus, 1952, p. 247.
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nela recebem seu sentido último. Isso também seria verdade, ainda que não conhecêssemos uma ordem missionária expressa.
8. Com unidade e envio, o apostolado Tanto a existência do reino de Deus quanto a missio Dei comprovam que Deus quer ser o Deus dos seres humanos e que quer agir com eles em sua misericórdia. Por isso todas as obras salvíficas de Deus foram realizadas por causa dos seres humanos e destinadas a eles. O relato sobre elas é o evangelho, que deve ser pregado a todas as pessoas. Visto que no juízo a vida e bemaventurança das pessoas dependem da fé nas obras salvíficas de Deus, a Igreja tem a incumbência de chamar as pessoas ao arrependimento, no período en tre a consumação da salvação e o juízo, onde a salvação se revelará como a redenção, e transmitir a fé salvífica. Ela deve fazer isso até o fim do tempo e até o fim do mundo. Isso faz da Igreja uma Igreja migrante, que sempre está a caminho das pessoas que ainda não conhecem a salvação. Seu serviço é uma peregrinação de povo a povo, de continente a continente, e através desse servi ço ela inicia o tempo da salvação para os povos. “Por isso o evento que começa com a peregrinação e a proclamação já não é mais um evento histórico, mas leva diretamente à consumação, e isso a partir da autoridade escatológica da quele que agora se tornou o Juiz e Soberano.”6,1 Pela ordem missionária o Senhor exaltado transmite o envio à Igreja e faz dela a mensageira para o mundo dos povos. No contexto da missio divina, ela é o instrumento da misericórdia de Deus. Ele lhe transmite a função apos tólica. Portanto, ele transmite o serviço do ministério apostólico, que cm seu conteúdo está vinculado ao que os apóstolos realizaram e proclamaram. Para descrever essa atividade da Igreja no testemunhar do que Deus fez pelas pes soas em seu reino e o que está por fazer, sobretudo os teólogos holandeses cunharam o termo “apostolado”®. Primeiramente tentaremos constatar o que ele significa, e depois iremos esclarecer sua importância para o serviço da Igreja e trabalhar o termo com base nesses conhecimentos. Iremos ater-nos a Hoekendijk em seu livro Kerk en Volk. Ele resume os dois indicativos do cumprimento messiânico (apocalíptico e histórico-salvífico) de modo a encontrar no envio do Espírito o indicativo do apostolado. De acordo com ele, o dom do Espírito é a premissa para a execução da missão entre os gentios. Essa é a expressão da intenção divina, a possibilidade dada por ele de transformar em realidade a promessa da conversão dos povos. Ela se realiza no último tempo, portanto no tempo entre a ascensão e a volta de Cristo, sendo, por isso, agir escatológico de Deus, com o qual ele executa seu 6 5 4
64 E. LOHMEYER, op. cit., p. 41. 65 Uma bibliografia detalhada enconlra-se em A. A. van RULER, Theologie des Apostolats, Evangeltícke Missionszeitschrift, 1954, pp. lss.
plano de salvação. Esses pontos de vista já elaborados estão implícitos também no apostolado. De acordo com 2 Ts 2.6s., a missão seria a grande força retarda tária. Através dela, portanto, o mundo tem que ser preparado para a vinda de Cristo e, conseqüentemente, para o juízo. A missão está inserida nesse alvo da História. Ela tem uma tarefa de conformação da História implícita no apostolado. Por isso se pode falar do apostolado somente durante o tempo intermediário. Por ocasião dos envios anteriores, a salvação ainda não estava providenciada. Agora, porém, ela existe, e por isso o envio tem caráter e incumbência univer sal, que desemboca no alvo de toda História e, simultaneamente, na consuma ção do reino. Por isso os apóstolos são mensageiros do tempo final (Is 49.8s.; cf. 2 Co 6.1s.). O apostolado gentílico do apóstolo Paulo, quanto ao conteúdo igual ao apostolado para os judeus, está inteiramente determinado de modo escatológico. Por meio do dom do Espírito, o apostolado gentílico recebe sua independência em relação aos envios anteriores (Mt 28.18ss.; Lc 24.47ss.; At 1.6ss.; Jo 20.21s.). Apostolado e Espírito sempre estão inter-relacionados, de man eira que o primeiro não pode ser concebido sem o último. Isso é verdadei ro a ponto de Paulo falar do ministério do Espírito (Jo 20.21; 2 Co 3.6). O Espírito introduz os apóstolos no plano de salvação de Deus, ele os incita ao trabalho e lhe dá forma (At 16.6;1 Co 9.16). A condução do Espírito é tão forte que toda a missão nada mais é do que uma marcha triunfal de Deus, na qual Paulo marcha como um adversário vencido. Dessa maneira o apóstolo se torna inteiramente um órgão de Deus em seu plano salvífico. Através dos apóstolos e, portanto, através da missão, Cristo conduz o mundo ao encontro de sua consumação. Num trabalho posterior, Hoekendijk resumiu e precisou mais detalhadamente essa doutrina do apostolado: No apostolado cumpre-se o evangelho (Rm 15.19; cf. Cl 1.2); ele é levado ao alvo, trava-se o combate de Deus com o mundo para o mundo. Sujeito do apostolado continua sendo “o apóstolo” Jesus (Hb 3.1); as “obras de Cristo” (Mt 11.2) têm continuação nas “obras” apostólicas “do Senhor” (1 Co 15.58; 16.10). O espaço do apostolado é o mundo; seu conteúdo é o estabelecimento dos sinais da salva ção do reino, do shalom; o apostolado se realiza no querigma (praesentatio proclamadora do shalom), na koinonia (participado corporativa no shalom) e na diakonia (demonstrado servidora do shalom).66
9. Teologia do apostolado A partir desses princípios, a teologia missiológica da Holanda procura desenvolver uma teologia do apostolado, na qual se mantém essencialmente o lugar escatológico da missão e se designa a pregação do reino como a tarefa da Igreja. No entanto, para não fazer da Igreja a única mediadora dessa mensa gem, preserva-se a predestinação, vendo-se nela a relação direta de Deus com o
66 J. C. HOEKENDIJK, Die Kirche im Missionsdenken, Evangelische Missionszeitschrift, 1952, p. 10.
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mundo e o agir de Deus sobre o mundo. O próprio Deus está em atividade ainda hoje. O apostolado se torna a forma de expressão da Igreja, de maneira que a missão se torna o limiar no qual o agir imediato de Deus passa a ser mediato. Através de seus mensageiros Deus chama os que preparou para a salvação po r meio da predestinação. Nesse processo, apostolado e Espírito for mam uma unidade, sendo que o Espírito é considerado o poder que sempre age entre os seres humanos. As conseqüências que essa teologia tira desses enunciados para a com preensão do serviço da Igreja iremos retomar no lugar oportuno. No entanto, quero intercalar já agora que se trata aqui de uma revolução na teologia. Os próprios holandeses têm consciência disso. “Se, por exemplo, no lugar que vinha sendo ocupado na sistemática pela Igreja agora se põe o reino, o aposto lado ou o Espírito, isso tem por conseqüência um terremoto cujas erupções serão perceptíveis até na cristologia.”fi7Portanto, eles têm consciência dos peri gos que residem nessa compreensão dinâmica. Sabem que podem tornar-se escatológicos, predestinacionistas de modo demasiadamente unilateral; eles nos dizem que é preciso observar que o ser humano é capaz de agir, por exem plo, na confissão. Portanto, se deveria manter o elemento pneumatológico tanto quanto o antropológico. Onde isso acontece, seria inclusive possível fun damentar a partir do apostolado o elemento étnico e o elemento confessional na Igreja. A missão, porém, enxerga mais do que a natureza, ela enxerga a História. Ela enxerga mais do que a Igreja, também enxerga os povos. Ela enxerga mais do que a cristologia, no mínimo também enxerga a pneumatologia. Ela conhece o evangelho do reino, que não é de todo idêntico com o evangelho de Jesus Cris to. (Ele é o reino apenas cm determinada modalidade, na modalidade da encarnação e da velação do reino.) Ela entende que o apóstolo tem um ministé rio, não na Igreja, mas no reino. Ela não enxerga somente a Jesus Cristo e sua comunidade, mas vê para além e através dela: o próprio Deus e seu mundo.66 78
Nessas frases podemos perceber que a teologia do apostolado ainda está em fase de construção e que ainda se está em busca de clareza sobre as relações com o oposto de cada um dos conceitos. Diante do que foi dito, façamos, antes de mais nada, um resumo do que elaboramos até agora. O envio não é um fato apenas relacionado com o tempo final, mas está fundamentado no agir do triúno Deus em sua relacionalidade com o mundo; no entanto, ele recebe seu lugar escatológico e, simultaneamen te, sua urgência pela vinda do reino em Jesus Cristo. Ele também não está relacionado apenas com o dom do Espírito Santo. Podemos constatar da mes ma forma que ele se baseia na consumação dos fatos salvíficos na ressurreição. Pelo envio do Espírito, porém, ele recebe sua força especial, sua autoridade, e por meio dele é inserido na missio Dei. A ordem do envio está objetivamente estabelecida na revelação e não depende da experiência do Espírito. Por meio
67 A. A. van RULER, op. cit., p. 3. 68 ID., ibid., p. 5.
dela a Igreja recebe sua direção, que, aliás, ela não pode manter sem o Espíri to. Apostolado e Espírito Santo, portanto, só podem estar inter-relacionados com vistas à execução do envio, de maneira que a Igreja é preservada da estag nação do status quo eclesiástico. E o Espírito que constantemente mantém viva a comisssão da Igreja. Ele chama as pessoas ao serviço do apostolado e é para elas o equipamento para esse serviço. O dom se manifesta onde a pessoa obe dece à ordem missionária. Como equipamento para o serviço, como participa ção na intenção de Deus, o Espírito Santo dá a capacitação para o apostolado e congrega na terra, através dos mensageiros, a comunidade que testemunha seu Senhor até que ele venha. Pela ordem do Senhor glorificado e pela colabo ração do Espírito Santo a Igreja adquire seu caráter apostólico, tornando-se uma grandez a que atua tanto po r sua existência quanto por seu envio especial.
10. O que é “apo stólico” ? Karl Barth o explica assim: “‘Apostólico’ significa, por um lado: (a Igreja) existe através da obra e da palavra continuadas dos apóstolos, e, por outro: ela existe ao fazer ela própria o que os apóstolos fizeram e ainda fazem em virtud e da natureza de sua obra.”69 Neste ponto começa nossa pergunta. Se os irmãos holandeses entendem o apostolado como a obra continuada dos apóstolos, que somente pode ser obra do Espírito Santo, então seu ensinamento não tem nada de novo. Neste caso ele nada mais expressa do que aquilo que Lutero ensinou a respeito do sacerdócio geral de todos os crentes. Desde o início do mundo foi crença dos pais, dos profetas e dc todos os santos que somente podemos ter remissão dos pecados por causa dc Cristo por meio da fé. Mais tarde, essa também foi a doutrina c pregação de Cristo e dos apósto los, que eles receberam a ordem de levar a todo o mundo e de divulgá-la no mundo inteiro. Ainda hoje e até o fim esta é c será a compreensão e atitude unânime de toda a Igreja Cristã.70
Aqui a apostolicidade da Igreja consiste em sua fé nas obras salvíficas e em sua atitude testemunhadora, não importando onde isso acontece, em casa ou fora. Isso então também não difere muito do que G. Warneck expressa à sua maneira: Na vida cristã havia um impulso misssionário natural, ou um impulso do Espíri to, que impulsionou discípulos simples do tempo cristão primitivo à divulgação da fé cristã. Esse impulso não procedia da obediência legalista à ordem missionária determinada, mas da nova vida espiritual que fez deles testemunhas de Cristo com uma necessidade imanente.71
69 K. BA RT II, op. cit., 1942, vol. 11,2, p. 477. 70 WA 21,219. 71 G. WARNECK, Evangelische MissionsUhre, 1892, vol. I, p. 126.
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Se, todavia, entendemos o apostolado como se os mensageiros ainda hoje tivesssem todos os dons e todas as funções dos apóstolos, isso é inaceitável em virtude do que foi dito acima. Visto que no que se segue nos depararemos reiteradas vezes com a doutrina do apostolado, haveremos de perguntar se realmente podemos aplicar o termo “apostólico” à Igreja. O Credo Niceno usa o termo “apostólico” para expressar que a Igreja se baseia no fundamento dos apóstolos e dos profetas e que por isso ela é uma Igreja apostólica, e que ela o pode ser somente na medida em que em sua tradição ela se fundamenta nos apóstolos. Se, no entanto, empregarmos o conceito de outra maneira, é preci so analisar primeiro se isso pode ser feito de modo legítimo. Até agora os teólogos holandeses nos ficaram devendo essa prova.
11. A prem issa do apostolado Visto que o ministério apostólico é único, queremos perguntar primeiro que condições devem estar preenchidas para a execução da ordem missionária, para que o Espírito Santo possa testemunhar aos não-cristãos a mensagem do evangelho através de testemunhas e mensageiros, e assim surgir o apostolado na Igreja. Em geral, a resposta surge um tanto precipitada: a Igreja teria a missão de exercer esse serviço de testemunho. Quanto a isso, não há dúvida. No entanto, surge imediatamente a próxima pergunta: qual a razão por que a Igreja tem tanta dificuldade de en tender essa missão, e por que sente tão pou ca autoridade para executá-la? Na realidade, porém, no decurso da História as coisas sempre correram de tal maneira que Deus teve que arrancar o serviço missionário da Igreja à força. Como se explica que também em nossa teologia transparece tão pouco do testemunho, da autoridade e instrução? Não seria porque a Igreja e sua teologia reconhecem muito pouco o alvo do evangelho, razão pela qual a Igreja também não possui uma orientação uniforme em seu trabalho e sabe muito pouco a respeito das pressuposições que levam ao servi ço do testemunho e, conseqüentementc, ao apostolado, portanto ao serviço dos apóstolos? Acaso não estamos exaurindo nossas forças na tentativa de pesquisar os fundamentos do evangelho, ordenar sistematicamente nossos co nhecimentos, dando-nos por satisfeitos com saber, em vez de elaborarmos a relação pessoal do Senhor com os seus e destacarmos o serviço destes? Somente pode tornar-se testemunha aquele que preenche as condições que estavam preenchidas no caso dos apóstolos. Eles foram tirados do círculo de discípulos, portanto de um grupo de pessoas que viviam na comunhão com o Senhor e que tinham parte no reino. Todos esses discípulos tinham a capaci dade e a possibilidade para o serviço apostólico, embora o Senhor tivesse escolhido somente poucos dentre eles para o ministério apostólico. No entan to, o discipulado, o seguimento de Jesus era o pré-requisito para a vocação e o comissionamento deles. Esse pressuposto para o serviço apostólico permane ceu. Somente pode ser testemunha quem tem uma relação de discípulo com Jesus. Posto isso, o impulso para o testemunho e, conseqüentemente, o serviço
apóstolico surgem por si. Portanto, é condição para o apostolado, para o servi ço missionário o fato de o Senhor criar para si uma comunidade de crentes. Esta sempre existe antes da missão da Igreja, é ela que assume a atitude apostó lica. A missão, porém, não é um evento que procede exclusivamente do Espíri to. Ela tem uma base terrena no grupo de discípulos que o Senhor congrega ainda hoje e que se torna portador da missão. Por isso uma Igreja só pode fazer missão na medida em que existe nela esse discipulado. É preciso ser discípulo antes de poder tornar-se testemunha de Jesus.
12. O discipulado Com o discipulado de Jesus apareceu algo essencialmente novo na terra. Ele também é algo novo na história salvífica, pois discipulado só existe desde e por meio de Jesus. O que se denominava discipulado no ambiente helénico não corresponde ao que Jesus trouxe. Lá, o discípulo tinha a livre escolha do mestre, de honrá-lo, imitá-lo e, se possível, superá-lo. Algo semelhante acontecia no rabinismo. O que se poderia designar de discípulo no mundo das religiões não merece esse nome, porque inclusive o santo mais piedoso sempre procura alcan çar um ideal de redenção próprio. No Antigo Testamento não existe discipulado. Isso porque este sempre está associado ao seguimento. Na Antiga Aliança, po rém, Deus não podia colocar-se como exemplo. Também lá ele não chamou indivíduos, mas um povo, e os indivíduos somente na medida em que pertenci am a esse povo. Esse povo deveria ser simultaneamente sua comunidade, o santo povo de Deus. O povo inteiro deveria cumprir a lei e revelar-se perante o mundo como pertencente a Deus. Por meio desse modo de vida vinculado à vontade de Deus e seus feitos, ele deveria transmitir aos membros individuais do povo o que tinha recebido de Deus, e dessa maneira também ao mundo a seu redor. No Novo Testamento está rompido o princípio de que comunhão por nascimento significa, simultaneamente, comunhão salvífica. Jesus chama as pessoas a seu seguimento, e desse modo surge a comunidade dos eleitos. Foi ele que primeiro deu o conteúdo ao discipulado; de agora cm diante não existia mais discipulado sem seguimento pessoal. Pelo fato de ter chamado os discípulos a seu seguimen to, o Senhor fez deles o centro vital desse discipulado e os transformou em uma comunhão permeada por ele. O elemento novo nesse discipulado consiste no fato de se ser chamado para ele somente pelo próprio Jesus. A princípio, esse chamado era feito por ele mesmo, posteriormente por seus apóstolos. A pregação do reino sempre é, ao mesmo tempo, chamado ao seguimento e ao discipulado. A missio Dei outro objetivo não tem que fazer discípulos. Essa afirmação vale também, em princí pio, para o serviço da Igreja, inclusive da Igreja nacional, pois toda Igreja se torna, de alguma forma, Igreja nacional, a não ser que tivessse que renunciar à participação de seus filhos na comunidade. Em qualquer Igreja é inevitável que os que nasceram para dentro dela também sejam considerados membros da mesma. No entanto, ninguém pode tornar-se discípulo pelo fato de os pais 57
se terem decidido por ele pelo Batismo de infantes. Este foi somente um pri meiro passo. Cada indivíduo é colocado diante da decisão pessoal, porque a Igreja não deixa de enunciar o chamado e tenta levar a pessoa a um relaciona mento pessoal com o Senhor. No chamado a iniciativa sempre parte dos que chamam. Não posso me tornar discípulo porque tenho vontade, mas porque Deus me dirige a palavra. Onde nasce o desejo, ele sempre provém do fato de a pessoa ter sido atingida pela palavra de Deus, ao que deve seguir-se a respos ta. No Novo Testamento os discípulos são chamados ao seguimento (Mc 1.17; Mt 4.19; Mc 2.,14; 10.21; Jo 1.35s.). Em última análise isso tam bém se aplica ao gran de g rupo de seguidores de Jesus, que foram atingidos po r sua pregação e atraídos p or seus feitos. Também eles não puderam integrar-se no discipulado po r iniciativa própria (Jo 15.16). Isso se evidencia de modo especial no caso da cura do endemoninhado geraseno (Mc 5.18ss.) que Jesus m anda para casa, ou no caso dos três seguidores (Lc 9.57ss.) aos quais Jesus impõe condições tão severas que acabam desistindo de segui-lo. Quem se decide pelo discipulado deve antes ter rompido com seu pró prio ideal de vida, pois nele só vale a vida do Mestre, portanto, entrega irrestrita. Por isso Jesus exige na admissão ao discipulado o rompimento de todas as ligações anteriores. Os seguidores devem estar inteiramente a sua disposição e não dar ouvidos a nenhuma outra voz. Isso se nos evidencia com clareza ainda maior do que no caso dos três seguidores nas palavras que literalmente anu lam o quarto mandamento (Mt 10.37; Lc 14.26). Aqui todas as relações têm que ceder, inclusive as mais veneráveis e que comprometem a piedade. O discí pu lo deve pertencer irre stritam ente ao Senhor. Por isso o cham ado ao discipulado desfaz as relações anteriores das pessoas e elas passam a ser propri edade do Senhor. Jesus quer ser seu kyrios (Mt 24.45ss.; 25.14ss.; Lc 12.35ss., 42ss.). Os discípulos são aceitos como servos e devem sujeitar-se a seu Senhor, pois a essência do discipulado consiste no ouvir, cumprir e guardar sua palavra (Jo 8.31). Como discípulos, são tão dependentes de seu Senhor que fora dele sequer têm condições de existir. São determinados por ele em tudo e permeados por seu ser. Sem ele, nada são; com ele e por meio dele, são tudo (Jo 15). Por isso têm que cuidar para que nada os afaste do Senhor, que nada os coloque em concorrência com Jesus, ainda que tenham que sofrer em conseqüência dessa atitude e serem mal-entendidos e odiados pelas pessoas (Mt 10.17ss.). Sua vida está tão intimamente ligada à do Mestre que pessoalmente não po dem trilhar outro caminho a não ser aquele no qual o Senhor lhes precedeu (Jo 15.18ss.; 16.1 ss.). Isso não seria possível se também essa vida, que aos olhos da pessoa comum parece injustificada e difícil, não fosse um dom de seu mes tre. Jesus lhes dá tudo que os capacita para o discipulado. Em sua comunhão, transmite-lhes sua vida (Jo 14.4s.) e, conseqüentemente, seu poder. Ele lhes restitui centuplicado tudo que abandonaram por sua causa, de maneira que não sentem perda e se sentem ricamente compensados por ele. Assim podem servir-lhe sem restrições (Mt 19.29). Em virtude da morte de seu Senhor, esses discípulos passaram pela mes ma transformação que nos foi relatada a respeito dos apóstolos. A princípio, também eles tiveram em mente como alvo terreno a reconstrução de Israel.
Somente pela ressurreição compreenderam o significado do apostolado (Jo 2.2 ls.; Lc 22.38). Também eles têm que novam ente ser congregados pelo Ressurreto, e assim, em virtude da ressurreição, surge a primeira comunidade (Lc 24.36ss.;Jo 20.24ss.; Mt 28.17). Isso nos mostra que o ingresso no discipulado não se resume a um rompimento com o meio ambiente, mas que se trata de uma conversão do coração (Mt 19.28; Jo 3.5), de um renascimento para a nova vida presenteada po r Cristo, de man eira que a pessoa também se apossa interi ormente dos objetivos de Jesus com seu grupo de discípulos. Portanto, o discipulado sempre exige o ser humano todo, e tem por alvo a nova pessoa. Dentre esses discípulos o Senhor escolheu seus apóstolos e os enviou ao mun do para o serviço. Condição para o chamamento ao discipulado era, portanto, o fato de alguém ser e permanecer discípulo. Nem todo discípulo é chamado para ser apóstolo. Todo apóstolo, porém , era discípulo, e todo discípulo é tes temunha de seu Senhor, com o qual está comprometido inteiramente.
13. Discipulado e apostolado Aqui surge a pergunta se o nome “discípulo” e o que acabamos de dizer sobre o discipulado pode ser aplicado diretamente aos cristãos em geral e se com isso estão dadas as condições para o apostolado. Na cristandade primitiva, os cristãos eram denominados por diversas designações. Na maioria das vezes fala-se de pessoas que abraçam a fé, que possuem o caminho, o que significa, de pessoas que sabem da redenção e do andamento do reino de Deus. Com ambas as designações se expressa que eles se encontram em contato pessoal com o Senhor e receberam pessoalmente o que Jesus fez por eles. Em muitas passa gens, todavia, também os crentes são chamados de discípulos, enquanto que os apóstolos também são chamados de “os onze”. Portanto, a designação “discípu los” também é aplicada, sem mais nem menos, aos cristãos que foram levados à fé pela palavra dos apóstolos. Eles não se consideram discípulos dos apóstolos, mas seguidores do Senhor anunciado pelos apóstolos (At 1.15; 6.1,7; 9.19; 11.26; 11.29; 13.52; 15.10; 16.1, etc.). Posteriormente essa designação também é aplica da aos cristãos, especialmente aos mártires72. Isso é muito significativo. Portan to, são chamados de discípulos também cristãos que não conheceram a Jesus pessoalmente, que não possuem as características que são próprias dos apósto los. Portanto, também os apóstolos, as testemunhas, podem chamar pessoas ao discipulado, e com isso vale igualmente para os cristãos o que foi exposto acima sobre os discípulos. Os servos de Jesus estão em lugar do Senhor e agem em seu nome, sendo, portanto, os mediadores do discipulado, pessoas que chamam ao seguimento (1 Ts 1.6; 2.14; Fp 3.17). Com efeito, esses discípulos não são apóstolos, mas devem e podem exer cer funções apostólicas. Por causa disso são chamados à colaboração e ao servi-
72 K. H. RENGSTORFF, art. mathetes, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, vol. IV.
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ço de testemunha. De fato encontramos, já no tempo dos apóstolos, um gran de número de tais colaboradores, independentemente do fato de a comunida de testemunhar a morte e a ressurreição de Jesus por meio de sua própria existência (1 Co 11.26; 15.3ss.). Cada um desses discípulos está equipado por seu Senhor com os dons de que necessita para seu discipulado. Paulo fala dos cristãos em termos indicativos tais que nos deixam pasmos. Portanto, eles pos suem os dons de que necessitam para seu serviço no mundo. Podem viver no mundo somente de forma a se encontrarem no seguimento (Jo 14.13ss.). Tam bém eles receberam a ordem missionária e devem, por isso, ser colaboradores do reino (Cl 4.11). E. Lohmeyer74 7 35 analisa o conceito “discipulado” detalhada mente; ele transfere a reunião dos discípulos para a Galiléia, onde também teria sido dada a ordem missionária; não em conexão com uma aparição pós pascoal, mas po r um Senhor que revela aos discípulos a continuidade de seu reino. Ele entende os discípulos como a continuação do povo de Deus do An tigo Testamento e compreende a existência deste em termos puramente escalológicos. Eles se compreendem como o povo de Deus dos dias derradeiros, como o verda deiro Israel, e por isso se abrem para a missão entre os povos, vivendo do santo passado do povo de Israel e, p or isso, entregues ao próximo e santo porvir com o Senhor.74
Portanto, receberam a ordem missionária como discípulos, não como apósto los, e por isso todos os discípulos são conclamados à divulgação do reino. “Portanto, ser discípulo significa tornar-se mensageiro para todos os povos; eles não chegam a sê-lo por autoridade própria, e, sim, em seu nome e pelo poder de seu reino.”75 Com isso Lohmeyer forneceu, sem querer, a fundamen tação do apostolado da Igreja e por isso constatamos, com razão, que cabe aos discípulos cum prir funções apostólicas. Assim, o apostolado também faz parte das características do verdadeiro discipulado. Q uem se deixa engajar no servi ço da divulgação do evangelho, este é discípulo. Ele produz o fruto que seu Senhor espera dele. Para poderem prestar o serviço, o Senhor também equipa os discípulos com o dom do Espírito Santo. Este dá testemunho de Jesus Cristo e, assim, conduz à missão (At 9.17). Na perseguição, o Espírito enche os discípulos de alegria (At 13.52) e também nessa situação lhes concede a coragem para fala rem com ânimo (At 4.31). O Espírito quer falar e atu ar em lugar de Jesus. Em virtude desse dom, um discípulo não pode fazer outra coisa do que também divulgar a Palavra.
73 E. LOHMEYER, op. cit., pp. 22ss. 74 ID., ibid., p. 49. 75 Ibid., p. 38.
14. O serviço do discipu lado Por meio do Espírito, portanto, os discípulos se tornam testemunhas e colaboradores do Senhor. Sua tarefa é fazer das pessoas às quais levam o evan gelho aquilo que eles próprios vieram a ser. A princípio, isso é um enunciado bastante discutível. Sabemos que no reino de Deus não existem cópias. Até agora tivemos o cuidado de não permi tir que a missão se transformasse em propaganda, pois é da natureza da pro pa ganda transformar as pessoas em nossa própria imagem. Isso, porém, se refere somente à transmissão da tradição eclesiástica ou às características culturais da cristandade, e não à verdadeira condição de discípulo. Toda pessoa tem o di reito de aproximar-se de Jesus de modo que não precise tornar-se primeiro ocidental antes de poder compreendê-lo. Uma coisa, porém, é imprescindível: tem que ser discípulo de Jesus; do contrário não poderá ser sua testemunha. Portanto, nosso serviço visa proporcionar-lhe uma relação imediata com o Senhor. “O objetivo último da mensagem de Cristo não consiste em transmitir a doutrina de Jesus ou seus princípios morais, mas conduzir as pessoas a uma relação com ele mesmo, portanto, levá-las à Fonte inesgotável.”76 Elas devem ser discípulos do reino dos céus (Mt 13.52). Por isso não devemos cristianizar, o que sempre significa integrar o público-alvo, em primeiro lugar, numa soci edade cultural, determinada pela tradição, mas devemos missionar, o que sig nifica levar as pessoas ao Senhor de maneira que sua vida seja determinada por ele (At 14.21; Mt 28.19). Não queremos fazer cristãos, e, sim, discípulos. Se isso acontecer, os discípulos se tornarão, por sua vez, testemunhas. Eles então receberam a plenitude do que Cristo dá, e se vêem compelidos a levarem as pessoas à salvação e a colocá-las sob as ordens de seu Senhor. Onde essa rela ção direta é substituída pela dependência do missionário, onde a missão é determinada pelo modelo ocidental, aí não surgem discípulos que, com a dinâ mica da palavra, também se tornam testemunhas. Nesse discipulado se fundamenta o apostolado da Igreja, nele o apostola do tem seu solo nativo. O discipulado é a comunhão mais íntima com o Se nhor, que se põe a serviço dele, atento a seu chamado, ele é a condição para o serviço apostólico da Igreja. O discipulado não pode ser equiparado sem mais nem menos à Igreja, porque em toda Igreja o número de meros simpatizantes ainda é maior do que o dos infiéis no discipulado. Mas o discipulado está presente na Igreja, e esta sempre será, ainda que muitas vezes de modo velado, expressão do que elaboramos como características do discipulado. Mas a Igre ja também acolhe muitos hipócritas, e hoje ela está determinada, em sua antro pologia, muito mais pelo conceito racionalista do ser humano do que pela Palavra. Por isso se pergunta se ela pode, sem mais nem menos, ser também portadora do apostolado. Muitas coisas que o apostolado exige da pessoa são rejeitadas hoje, não porque não se quisesse servir a Deus, mas porque se crê
76 K. HEIM, Leben aus Glauben, p. 69.
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ter, como pessoa, direitos e pretensões especiais, pelos quais se deveria orien tar inclusive o apostolado. A rebeldia do ser humano se evidencia, desse modo, na essência íntima da Igreja. Não obstante, continua tarefa da Igreja cum prir o serviço apostólico, se ela quiser permanecer fiel a sua natureza e não abando nar seu lugar escatológico. E ela terá que cumprir essa tarefa com as pessoas que se deixam chamar ao discipulado autêntico e que, por isso, também se deixam engajar na divulgação do evangelho. E a preocupação da Igreja como instituição terá que ser representar justamente aqueles que assumem esse ser viço. Portanto, a Igreja deve estabelecer constantemente certos limites dentro de seus próprios domínios e orientar-se pela Igreja estabelecida pelo discipulado. Por meio dessa tomada de consciência da natureza da Igreja, a ordem missionária já não será mais uma tarefa especial para determinados círculos, e já não será mais uma obrigação legalista para os indecisos, mas sua execução será expres são de vida que emana da fé e é determinada pelo agir de Deus na missio Dei.
15. Missão e Ig reja Surge agora a pergunta pela relação entre missão e Igreja. Nossa resposta terá que ser dupla. Primeiramente, a pró pria Igreja é um produto do apostolado. O envio que Deus efetuou por meio de Jesus Cristo e que continua atuante até hoje através dos apóstolos, levou à formação da Igreja. Se Deus não tivesse envi ado seu Filho, não existiriam Igreja, nem apostolado, nem missão. A Igreja sur giu porque Jesus ordenou a proclamação de sua palavra através de seres huma nos e porque pessoas se deixaram chamar para fora do mundo pela mensagem da redenção. Assim justamente a Igreja é a prova mais evidente de que o evange lho pertence também aos gentios. Portanto, não é nosso dever missionar porque possuímos o evangelho, e, sim, possuímos o evangelho somente porque ele é destinado aos gentios. Do contrário, nos arvoraríamos em senhores do evange lho e abusaríamos do ministério da reconciliação. Somos Igreja porque Deus quis a missão gentílica. Visto, porém, que somos Igreja de gentios, também não podemos ser outra coisa senão um membro da missio Dei, um instrumento no agir de Deus, um sinal de que Deus está levando o mundo a sua consumação. ^Assim como Deus deu continuidade à obra de seu Filho por meio dos apóstolos, assim levou avante a atividade destes po r meio do fruto de sua obra, e ainda continua até alcançar seu objetivo (Mt 24.14). Dessa maneira a missão da Igreja é, simultaneamente, a missio Dei nos tempos de hoje, por esta encer rada e promovida (Mt 10.16; Lc 10.1; 9.2; Jo 17.18). Ela não é uma obra autô noma, de iniciativa própria, arbitrária da Igreja; ela também não se justifica pelo contexto; missão é, antes, a ob ra fundamental de Deus, obra do próp rio Deus segundo seu início, sua natureza, sua tarefa. Também na missão da Igreja ele continua sendo aquele que envia, orienta, determina. \ Também existiria missão se não tivéssemos a ordem missionária, pois pela atuação do Espírito Santo Deus não concede a seus discípulos uma fé
quiescente, muda, contemplativa e usufruidora, mas será sempre uma fé que inquieta o cristão por causa da salvação do outro, uma fé viva e atuante, que arran ca o cristão de sua edificação pessoal, transformando-o em p edra de cons trução e pedreiro. Por isso os apóstolos não podem deixar de falar (At 4.20). Esse falar, porém, sempre é expressão da certeza de redenção e salvação (Rm 10.8ss.). Eles também falam por meio de suas vidas (2 Co 4.11; 5.15). Pela fé, os discípulos sempre se encontram a serviço da reconciliação, de oferecer a salva ção aos seres humanos. A comunidade somente pode prestar esse serviço por que o Espírito Santo a capacita (2 Co 3.5s.). Ele lhe concede o impulso para o testemunho e com isso a arranca constantemente do sossego. Por meio do Espírito, a Igreja pode agir em lugar de Deus do modo como Deus agiu com seu Filho. O primeiro exemplo disso é At 13.1-3. A Igreja agora executa a missão e, através dela, a missio Dei se torna visível ao mundo. Nesse processo Deus determina quem deverá enviar e quem deverá ser enviado. Esse envio é descrito em At 14.26: "... de onde haviam sido recomendados à graça de Deus para a ob ra que já haviam cumprido”. O sentido último do envio consiste no fato de os mensageiros estarem sendo colocados à disposição de Deus para o serviço entre os gentios. Com isso não está sendo dito apenas que os missioná rios encontravam sua ajuda, alegria e consolo em Deus, mas que Deus podia dispor inteiram ente deles. A vida dos missionários estava colocada inteiram en te nas mãos de Deus, de onde não havia mais retorno. Do mesmo modo como os discípulos se põem a serviço do Senhor com tudo que são, assim podem agora ser recomendados a ele. Tudo isso se evidencia na vida do apóstolo Paulo. Para ele não existia evasiva; ele tinha que engrandecer a Jesus Cristo em seu corpo, “quer pela vida, quer pela morte” (Fp 1.20). Nem a comunidade po dia chamar esses mensageiros de volta. Tinha que deixá-los entregues à gra ça de Deus. O quanto era séria essa concepção percebe-se no fato de nãe co nhecermos as circunstâncias exatas da morte de quase nenhum dos apóstolos e de a vida da maioria se perder na obscuridade. Eles se encontravam na graça de Deus, e isso bastava. Hoje o próprio ser humano se sente responsável por sua vida, e por isso não admite mais que o Senhor da vida e do serviço a use até a morte. Já não é mais decisiva a vontade de Deus, nem o objetivo do envio, nem o andamento do reino de Deus, mas o bem-estar dos mensageiros, a segurança da vida, a cobertura financeira. Se esses fatores deixam de existir, a missão é interrompi da, como se o indivíduo ou a comunidade pudesse dispor da missio Dei. Hoje, numa situação que exige empenho máximo, é preciso perguntar se, sob esses princípios ditados pela imagem do ser humano, Deus ainda pode executar sua missio.
16. Igre ja e apo stolado Aqui é preciso perguntar mais uma vez qual o lugar que a Igreja ocupa nessa concepção de apostolado. A resposta de Hoekendijk é radical: 63
Onde se encontra a Igreja nesse contexto? Certamente não no ponto de partida, nem no ponto dc chegada. Exagerando, se deve dizer: ela não se encontra em parte alguma; ela se processa, acontece, vem a ser enquanto o evangelho do reino é anunciado ao mundo. Igreja só existe in actu Christi, isto é, in actu apostoli. Por isso ela não tem um lugar fixo, mas é uma paroikia, um assentamento que jamais se torna pátria; a caminho rumo aos confins do mundo, em direção ao fim dos tempos. “Assentada” sobre o fundamento dos apóstolos e profetas a Igreja permanece somente se ela vai com os apóstolos a anunciar o reino (...) Testemunhar o reino ao mundo, eis seu opus proprium, que, todavia, não é mais sua obra, mas ergon kyriou. Na medida em que a Igreja tem parte nessa obra - no apostolado - ela é “Igreja”.'7
Por mais que possamos subscrever a última frase, sentimos, não obstante, que aqui não está sendo questionado apenas, a partir de um conceito, todo o pen samento eclesiástico desenvolvido até hoje, mas que também a Igreja se dissol ve num evento, numa grandeza incompreensível, que se dilui constantemente no apostolado. Aqui se rompe com a visibilidade da Igreja, pela qual, por exem plo, Bonhoeffer778se empenha tão apaixonadamente. Aqui também se abando nou o que acima descrevemos como discipulado, o que se manifesta não so mente nessa comunhão mas também no envio. Pode-se descrever a natureza da Igreja dessa maneira? Sem dúvida, também conforme a Confissão de Augsburgo, art. VII, a Igre ja não é instituição; mas para que se possa pregar corretamente a Palavra e administrar os sacramentos de acordo com sua instituição, tem que se apresen tar uma comunidade, tem que existir um ministério. Acaso a Igreja não é muito mais que apostolado? Inclusive se a reduzirmos aos verdadeiros crentes, se apli carmos a ela rigorosamente o conceito de discipulado, ela não é apenas envio e querigma. É certo que aqui o Senhor pode ser tudo em seu agir. Onde, porém, está o Senhor, também surge uma comunidade visível, e essa vive79 não somente no anunciar, mas sobretudo no ouvir, que é premissa para o testemunhar. Ela também vive no amor, que se torna efetivo nela por meio de Jesus Cristo justa mente pelo ouvir, e ela vive na adoração e no louvor. Vive no sacramento e, assim, na comunhão com seu Senhor glorificado. Também nessas realidades se realiza igualmente a Igreja, porque com elas está associado o testemunho. Dois homens se opuseram a essa superficialização do conceito de Igreja e devem ser mencionados neste contexto: Johannes Blauw demonstra que a essên cia da Igreja consiste na comunhão com Cristo e que kerygma, diakonia e leiturgia devem ser vistos sempre em inter-relação e condicionar-se mutuamente. Com que facilidade a missão perde o elo com as demais manifestações de vida da Igreja! Naturalmente é possível dizer que a Igreja tem somente uma função: a missão ou o apostolado, mas, ao se dizer isso, sempre se tem consciência de que não é isso e não pode ser isso. Que todas as manifestações da Igreja devem estar 77 J. C. IIOEKENDIJK, Die Kirche im Missionsdenken, pp. 10s. 78 D. BONHOEFFER, Discipulado, São Leopoldo, Sinodal, 3. ed., 1989, p. 152. 79 W. EI.ERT, Der christliche Glaube, 1955, p. 419.
voltadas para o martyrion, isso é outro assunto (...) Com a mesma razão, porem, se pode dizer que tudo na Igreja deve visar ao louvor de Deus, ao culto, inclusive a missão.80
Ao lado disso, é sobretudo van Ruler que reconhece as fraquezas da dou trina do apostolado, que sente sua discrepância da compreensão correta de Igreja e que tenta repensar todo esse tema. “A essência do apostolado d a Igreja não consiste no fato de ela ir mundo afora, dando nele seu testemunho, e de ocupar um espaço no mundo, e, sim, no fato de ser usada. Ela é instrumento.” Aqui, portanto, a Igreja é contraposta ao apostolado como grandeza determi nada por Deus. Por sua vez, o apostolado é definido mais precisamente a partir da predestinação: ele não é uma qualidade, isso seria uma redução eclesiológica. Ele é mais que uma incumbência, pois do contrário a Igreja correria o risco do ativismo. Também é mais que testemunho, senão a Igreja sucumbe à humanização. “O apostolado é a essência da Igreja”, ela é instrumento de Deus812 .8 Por mais alvissareiras que sejam essas delimitações, elas ainda não acer tam o cerne da questão. Se a essência da Igreja realmente consiste em sua destinação ou em seu ser, portanto no fato de Jesus Cristo, como cabeça da Igreja, ter feito dela seu corpo, lhe conceder sua comunhão, unir os membros a si, permeando-a com Palavra e sacramento para fazer dela uma Igreja, dan do-lhe uma destinação como grandeza formada e determinada por ele e que tem todas as características do discipulado, então se desenvolve a partir dos dons que ele lhe concedeu e a partir dessa vida em Cristo o apostolado, que, sem dúvida, não tem outro objetivo do que levar a Igreja ao serviço para a salvação da humanidade. Para isso ela foi eleita para fora do mundo, a fim de prestar ao m undo o serviço de que ele inais necessita e que consiste justamente em lhe dar testemunho de Jesus Cristo e de chamá-lo à fé nele. Ela teria esquecido c posto a perder sua eleição se quisesse viver para si mesma e fosse abandonar esse serviço, se não fosse mediadora de fato.
Além disso, nossas objeções são confirmadas também a partir de outro raciocínio, que é muito importante tanto para os irmãos holandeses quanto para K. Barth, mas que tam bém ali é concebido inteiram ente a partir da elei ção. Trata-se da idéia de povo de Deus. Também neste caso queremos primei ramente perguntar o que a Bíblia diz a respeito.
80 J. BLAUW, Mission lebt von de r Kirche, in: Die Botschaft von Jesus Christus in einer nichtchristlichen Welt, Stud enten bun d fü r Mission, 1952, p. 16. 81 A. A. van RULER, op. cit., p. 7. 82 K. BARTH, op. cit., 1942, vol. 11,2, p. 217.
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17. O novo povo de Deus Não existe missão sem envio bem concreto. Ela não acontece numa atua ção dinâmica da comunidade, mas na transmissão concreta do serviço e em instrução. Por um lado, esse envio já está estabelecido no sacerdócio de todos os crentes juntamente com o Batismo, mas se torna um envio real ao mundo onde mensageiros são chamados e enviados. A comunidade não teria o direito para isso se não fosse ela própria, conforme constatado acima, um membro da missio Dei. Ora, através dela acontece à Igreja a mesma coisa que já constatamos na introdução com vistas ao próprio Deus. Assim como Deus se confronta com o mundo pecador em sua missio e, não obstante, estabelece seu relacionamento com o mundo através do envio, ele agora concede a sua comunidade a mesma posição. A Igreja sempre estaria no perigo de conformar-se com o mundo, de ser absorvida pelo mundo ou de estabelecer a unidade com o povo. O perigo é tão grande porque as religiões entendem a comunhão religiosa como comu nhão cultural e nacional, e porque todos os estados querem garantir a unidade do povo pela unidade da religião. Esse perigo sempre existe na Igreja porque ela, necessariamente, também se torna comunhão por nascimento. Ela pode defender-se contra esse perigo se, por um lado, pelo envio se souber colocada inteiramente ao lado de Deus e, por outro, entender-se como inteiramente enviada ao mundo. Ela está colocada ao lado de Deus porque seus membros foram tirados do mundo por Jesus Cristo pelo amor e unidos na comunidade para serem o povo de Deus. A esse novo povo de Deus se aplicam todas as qualidades que o povo de Deus do Antigo Testamento possuía (1 Pe 2.9). Através delas a comunidade se distingue do mundo. Em sua vida e atitude interior ela é diferente do mundo; não pertence a si mesma, nem ao mundo, e, sim, a Deus. Nela se revela a vida a partir de Cristo. Por isso ela é uma carta de Cristo ao mundo (2 Co 3.3), visível e legível para o mundo. Em meio ao mundo das trevas, ela é a luz, na corrupção ela é o sal. Mas também isso ela não é a partir de si mesma, mas de Deus. Não o é para si mesma, mas para o mundo. Por isso só se pode falar da essência do mundo partindo de Deus e definindo a partir do vis-à-vis o que é comunidade. Assim, somente a partir da missão pode revelar-se a verdadeira essência da comunidade. Com isso estamos afirmando que a comunidade tem que atuar no mun do sobretudo através de sua presença. Ou ela é uma comunidade do testemu nho, do serviço, do louvor, ou ela não é comunidade de Jesus Cristo. É ela que, com seu conhecimento e experiência da graça de Deus, responde vicariamente pelo resto do mundo que ainda não tem parte nos testemunhos do Espírito Santo, e que, então, nessa sua singularidade, está investida, por sua vez, no serviço da reconciliação, para testemunho da graça de Deus diante desse resto do mundo.83
83 ID., ibid., 1953, vol. IV,1, p. 166.
A congregação c renovação da Igreja não são fins em si, mas servem ao serviço da Igreja no mundo, da Igreja que é a luz do mundo e o sal da terra, não pela força dos seres humanos, mas pelo poder de Cristo, pela dinâmica do reino de Deus que move o m undo , o reino de D eus que veio, vem c virá ao m und o.84
Visto que toda a comunidade deve transmitir a Palavra e ser um ponto de atração para todos através de sua palavra, de pessoa para pessoa, por meio dos relacionamentos que cada membro tem individualmente com seus semelhan tes, Cristo também não lhe ordenou um ministério missionário especial. No entanto, legou-lhe um ministério que deve conduzi-la ao serviço missionário, o ministerium verbi divini em sua plenitude. Neste está inserido também o teste munho missionário. Por isso, o que está dito à Igreja sobre seu ministério pastoral pode ser aplicado, em primeiro lugar, ao serviço missionário da Igreja (2 Co 3-5). Portanto, o ministério pastoral, em todas as suas ramificações, não pode ter outro objetivo na comunidade do que levá-la a influenciar o mundo e capacitá-la para o serviço missionário. Tudo que é oferecido à comunidade para edificação deve servir a esse fim. Os ministérios encerrados nesse único ministério encontram sua orientação comum, sua subordinação mútua e seu auge no fato de deverem servir ao envio. Onde se entende isso, a missão deixa de ser problema, mas é o cumprimento de todo serviço que é realizado na comunidade e, portanto, a favor da comunidade. Onde, porém, esse ministério, num estreitamento dogmático, serve ape nas à manutenção, administração e autoprovisão da comunidade, ele está deter minado de modo egocentricamente humano. Onde ele apenas se propõe a edificar a comunidade e alcançar a bem-aventurança individual dos membros, é de se perguntar se esse alvo pode ser atingido, porque não proporciona aos membros a oportunidade de se alegrarem com sua fé no serviço e sacrifício. Onde falta a possibilidade da obediência e do serviço, a corrente de vida da Palavra não pode fluir, e isso muitas vezes leva os membros individualmente a por sua vez perde rem o interesse pela Palavra. Aí então o ministério, muitas vezes não-intencionalmente, em vez de ser um impulso missionário, se torna um empecilho para a missão entre os gentios. Então as próprias pessoas investidas no ministério são as que fecham o acesso ao reino dos céus (Mt 23.13). A verdadeira forma de existência da comunidade se torna evidente onde se entendeu que a Palavra e a comunidade formam uma unidade indissolúvel. Elas estão relacionadas tão intimamente que o que é dito sobre a Palavra tam bém pode ser aplicado diretamente à comunidade. O relatório sobre a Confe rência de Whitby elaborou isso em clareza insofismável85. Às vezes a palavra de Deus e a comunidade são tratadas como unidade tal na Escritura que aquilo que deveria ser dito a respeito da comunidade é dito a respeito da Palavra. Isso já se mostra nas parábolas de Mt 1.3 e Mc 4, mas é expresso de modo muito especial no livro de Atos dos Apóstolos. Nele se fala do crescimento da Palavra justamente quando se deveria falar do aumento da comunidade (At 6.7; 12.24; 84 H. D. WENDLAND, Die Kirche in der modernen Gesellschaft, 1956, p. 103. 85 W. FRF.YTAG, Der grosse Auftrag, 1948, pp. 32ss.
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19.20). Por um lado, isso só pode significar que, juntam ente com a comunida de, crescem também a força e a área de atuação da Palavra, porque crescem as possibilidades do Espírito Santo através de um grande número de testemu nhas. Por outro lado, porém, isso também significa que o ministério que tem a tarefa de proclamar a Palavra, precisa ter em vista a expansão da comunida de. Portanto, a Palavra assume forma na própria comunidade e se torna na comunidade uma Palavra que cria vida e se espalha.
18. Igreja e mundo Onde a missio Dei é compreendida dessa forma, a atuação da comunidade deve ser entendida como divulgação dessa Palavra em seu relacionamento com o mundo. Para poder divulgar a Palavra, ela sempre precisa ver no mundo, nos semelhantes incrédulos um parceiro com o qual tem que se confrontar em sua vida e fé. Onde a comunidade reconhece e preserva sua alteridade, essa atitude surge por si. A maior fraqueza da cristandade hoje consiste no fato de os cristãos não mais saberem que são cristãos. Perderam sua capacidade de salgar. Enquanto o mundo durar, porém, não pode ser eliminada a contraposição con creta de Igreja e não-igreja como tal, tão pouco como pode ser anulada, apesar de toda animosidade no relacionamento, a relação de Israel com os demais po vos. Nessa contraposição de dois povos Deus falou com o mundo. E fala com ele de maneira que sua palavra primeiramente cria Igreja, para então, por meio do serviço da Igreja, tornar-se Palavra dirigida ao mundo.85
Encontramo-nos, portanto, diante da tensa pergunta pela relação correta de Igreja e povo, ou Igreja e mundo, pergunta com a qual a teologia sempre se viu confrontada na Alemanha, frente à qual, todavia, também sucumbiu em parte. Isso deu início a uma nova reflexão sobre a missão já antes da guerra. Como G. Warneck via conscientemente o alvo da missão na cristianização dos povos, entendendo por povo cristão a Igreja nacional, uma nova reflexão se tornara urgente. Hartenstein e W. Freytag** procuraram trilhar novos cami nhos já antes da guerra. Em seus trabalhos teológicos, o primeiro preserva rigorosamente a diferença entre Igreja e povo, e o segundo designa a comuni dade como ponto de irrupção do Espírito no mundo. A Igreja e a comunidade têm a tarefa de levar as pessoas à obediência da fé. Para ambos o serviço da comunidade está determinado pelo reino vindouro. 86 K. BARTH, op. cit., 1945, vol. 1,2, p. 769. * N. do E.: Walter Freytag (1899-1959): missionário em vários países da Ásia, teólogo alemão, lute rano de tradição moraviana, teve um papel destacado no envolvimento missionário da Igreja Evangélica da Alemanha. Foi direto r da Ajuda Missionária Evangélica Alemã e desem penhou importante papel no movimento ecumênico. Seu principal conceito missiológico é o reino de Deus. Daí sua conclusão de que missão é fund amentalm ente uma atividade d e Deus (missio Dei). A missão dos cristãos significa participar dessa ação anun ciand o qu e Deus quer reu nir todas as gentes no seu reino. Essas idéias praticam ente se tornara m patrimônio comum da teologia cristã.
A crítica de Hoekendijk partiu sobretudo do conceito alemão de povo e nacionalidade determinado pelo romantismo e defendido por diversos teólo gos e missiólogos. Para definir a posição correta da comunidade no mundo e peran te o povo, os missiólogos holandeses perguntaram pela importância propedêutica do povo de Israel, o povo de Deus no Antigo Testamento, para a essência da Igreja e sua posição frente ao mundo. Uma contribuição infeliz mente muito pouco considerada veio de A. Oepkc87, que, em bora tivessse tira do de suas conclusões poucos ensinamentos para a missão, disse coisas decisi vas para a Igreja. Oepke mostrou o quanto a idéia de povo de Deus é determinante para a compreensão da comunidade neotestamentária, de ma neira que, baseada nela, a cristandade primitiva adquiriu sua autocompreensão. A pesquisa mais pro funda foi fornecida por J. Blauw88. Ele examina o que a Sagrada Escritura entende por gentios. Como os gentios são o oposto do povo de Deus, necessariamente teve que ser analisado também o que a Sagrada Escritura entende por povo de Deus. O surpreendente é que os diversos pesquisadores chegam aos mesmos resultados. A eleição de Israel foi chamado ao serviço. Israel deveria confrontar-se com o mundo de maneira que no exemplo do povo de Israel se revelasse aos povos o senhorio de Deus. Por isso a eleição de Israel já tinha importância cósmica e perspectiva escatológica. Daí resulta, através da autocompreensão da Igreja como novo povo de Deus, sua posição perante o povo e o mundo. A Igreja se encontra em contraposição ao mundo, e por isso é enviada ao mun do. Por essa razão seu serviço é quantitativamente ilimitado, ela tem que al cançar todas as pessoas. No entanto, surge uma limitação qualitativa pelo fato de a Igreja, como portadora da revelação, ter que defender a verdade e con frontar o mundo com a pergunta pela verdade. Somente se quiser ser povo de Deus em tudo e, assim, Igreja de Jesus Cristo, ela poderá ter a mais forte influ ência sobre o mundo. Desse modo sua posição especial se torna premissa para o universalismo de seu serviço salvífico. Disso também resulta que a Igreja somente poderia ser comunidade de Deus entre os povos89. Essas idéias foram trabalhadas mais intensamente na Conferência Missionária Mundial de Willingen, na qual se chegou à compreensão de missão aqui exposta e se defi niu a Igreja como povo peregrino de Deus, que vive em tendas e realiza seu serviço até que o Senhor venha90. Por meio dessas percepções foi, por um lado, fundamentado mais deta lhadamente o pensamento já exposto acima de que a predestinação e o aposto lado estão inter-relacionados. Por outro lado, também se mostrou o perigo que resulta de uma compreensão puramente dinâmica de Igreja. Se a Igreja se entende como povo de Deus, não se está defendendo certamente a instituição,
87 A. OEPKK, Das neue Gottesvolk, 1950. 88 J. 11LAUW, Goden en Mensen, 1950. 89 ID., ibitl., pp. 63ss. 90 K. HART ENST EIN, in: W. FREYTAG, Mission zwischen Gestern und Morgen, 1952, pp. 53ss.
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a sedentariedade ou lerdeza, a restrição a limites territoriais; não obstante, está sendo dito que, de algum modo, a comunidade tem que assumir forma para po der arrostar o mundo. Justamente se quiser exercer o apostolado, ela tem que ser uma grandeza sui generis. No entanto, esses pensamentos são reprimi dos pelo temor de que, em virtude do conceito de Igreja como organização, ela teria que ocupar-se tão intensamente consigo mesma que não lhe sobrari am forças para um testemunho perante o mundo. Esse perigo naturalmente também existe em qualquer outra forma de Igreja. Nenhuma a protege de vestir a couraça da organização e de tornar-se estéril. Antes, ela sempre deveria deixar-se empurrar para o gueto por meio de seu serviço no mundo. Pois se isso acontecer por iniciativa do mundo, o gueto se torna o lugar de sua atuação pública. Se agora, em virtude desses perigos, fôssemos eliminar a idéia de Igreja, também se perderia a idéia do apostolado. Apostolado autêntico só é possível onde a Igreja é uma grandeza visível bem definida, que se expressa na confissão. Com isso a catolicidade da Igreja não sofre restrição, antes adquire sua multiplicidade universal, que, por outro lado, também está implícita no fato de estar determinada etnicamente. Portanto, o apostolado não leva ao ilimitado, nem apaga os limites; onde se pensa a pa rtir da essência da Igreja, o próprio apostolado leva às singularidades das diferentes igrejas. E significativo que, no contexto da situação especial da Igreja, não haja referência à importância dos sacramentos. A verdadeira Igreja, porém , sempre recebe seu lugar no mundo pelo fato de se reunir em seus cultos, de se deixar incluir na comunhão com seu Senhor no sacramento e influenciar o mundo pela força recebida por Palavra e sacramento. Ela só pode transmitir a vida com a qual ela mesma se deixa presentear. Todavia, tem que passá-la adiante se quiser ficar com ela, do contrário ela fenece. A posição da Igreja perante o mundo, portanto, não resulta apenas do fato de Deus lhe ter confiado o tesou ro da Palavra e do sacramento, para, através deles, pregar a reconciliação ao mundo. Esse serviço, que faz dela um membro da missio Dei, confere então à Igreja a posição de que necesssita para alcançar seu alvo missionário.
Capítulo 4:
O alvo da missão
Muitas das coisas que deveriam ser ditas sob este título já foram expostas e mencionadas, pois não se pode expor o embasamento da missão sem ter em vista seu alvo, que confere ao embasamento a expressão derradeira. Por isso queremos restringir-nos ao que ainda não foi dito, sobretudo sobre a confor mação da comunidade.
1. A conversão dos povos A Igreja foi colocada no mundo por seu Senhor e enviada ao mundo. Este é seu ambiente, nele encontra sua tarefa. E seu dever anunciar ao m undo perdido, aos não-cristãos, a mensagem da redenção e, pela aceitação da mensa gem por parte dos ouvintes, congregar uma comunidade dos redimidos, o povo de Deus na te rra. Quem são os não-cristãos, os gentios? A ordem missionária remete a Igreja com sua mensagem a panta ta ethne, a todos os povos. Este conceito sempre criou grandes questionamentos para a missão. Sobretudo na missiologia alemã ele se tornou um termo central. Em contraposição ao pietismo, no sentido de congregar somente os que se deixam converter, G. Warneck viu nesse conceito o objetivo da missão. Não importa conquistar os indivíduos, mas os povos. A ele aderiram seus discípulos J. Richter, H. Frick, S. Knak e ainda os missionários B. Gutmann e C. Keysser. Todos eles entendiam sob “povos” não um aglomerado fortuito de pes soas de determinado grupo, da mesma língua ou de determinado país, e, sim, viam nos povos as grandezas e comunidades orgânicas determinadas pela na cionalidade e pela religião, em sua inter-relação de membros, portanto, orga nismos com uma estrutura sociológica definida e identidade étnica. Com isso os indivíduos do pietismo foram substituídos pelos individualismos nacionais. Por isso cada povo deveria ser cristianizado em suas qualidades específicas e estas deveriam ser postas a serviço do evangelho, de maneira que o povo intei ro pudesse ser integrado à Igreja. Portanto, não se tinha em mente o processo contínuo da conversão do indivíduo, que, se bem empregado, também deverá levar paulatinamente à conquista de todos os membros do povo, e, sim, tinhase em mente a conversão e cristianização das comunidades como tais. Os ho mens mencionados eram suficientemente sóbrios para saberem que o alvo 71
somente poderia ser alcançado em etapas e apenas até certo grau. Cada um deles, sobretudo os missionários, buscaram caminhos próprios que se reco mendavam a partir da nacionalidade que se tinha em vista. Nenhum deles acreditava que com isso estaria excluindo o trabalho missionário básico, que consiste na proclamação; a nenhum deles ocorreu a idéia de contornar a deci são individual. Que fique constatado isso, porque esse fator é facilmente es quecido na crítica. Ainda se deve acrescentar o fator positivo de que justam en te o objetivo missionário nessa formulação obrigou os missionários a tomarem o lado oposto bem a sério, e a ensejar-lhe uma decisão própria a favor do evangelho. Eles também sabiam que nunca se pode tomar o ser hum ano como ser individual. Pois ele sempre é influenciado em suas decisões de alguma forma po r seus semelhantes, quer pertença a uma massa anônima, qu er a uma comunidade orgânica. Conseqüentemente, a comunidade deve ser permeada pela mensagem, quando se quer conquistar o indivíduo. Na conversão dos povos se havia colocado um amplo e compensador objetivo missionário, que tirou o trabalho missionário do confinamento e lhe propôs uma grande tarefa pedagógica. Esta deveria levar os povos a objetivos cristãos, sob o maior respeito possível à nacionalidade, de maneira que da síntese de evangelho e nacionalidade pudesse nascer uma cultura sustentadora própria. As experiências pareciam dar razão aos defensores desse objetivo, pois onde ele foi perseguido, surgiram igrejas fortes, profundamente enraizadas no povo. Assim, cristianização nacional ou dos povos se tornou o objetivo do trabalho missionário e como tal foi adotado em grande escala pela missão continental, em bora executado em diferentes variações. Sobretudo a missiologia alemã se encontrava sob esse “etnopatos” (Hoekendijk). A crescente expansão da civilização ocidental com suas influências desagregadoras entre os povos, a acentuação de um cristianismo normativo pelas missões anglo-saxônias tive ram por conseqüência que a missiologia alemã se tornasse mais e mais defen sora do cristianismo condicionado à nacionalidade, sendo que os perigos de se colocar a nacionalidade acima do evangelho ou de se extrair do evangelho mais do que estava dito sobre o povo nem sempre foram vistos e considerados. Somente com Hartenstein e Freytag começou o reexame acima mencio nado, que distinguia a comunidade rigorosamente de seu ambiente natural. Durante a última gu erra, os perigos dessa missiologia foram ilustrados de modo avassalador pelos excessos do nacionalismo. Por isso mesmo tornou-se objeto de rigorosa crítica, que teve em Hoekendijk seu porta-voz91. A missão alemã deve deixar-se chamar à razão po r sua publicação, e Hoekendijk merece que a teologia alemã se ocupe com ele. Para tanto certamente forneceu suficientes desafios histórico-eclesiásticos, exegéticos, sistemáticos e missiológicos. Infelizmente, porém, até hoje o livro com suas exposições profundas e básicas não mereceu atenção. Ou a teologia é tão introvertida a ponto de não dar atenção a tais publicações, ou ela se sente muito superior ao que um homem da missão tem a dizer.
91 J. C. HOEKENDIJK, Kerk en Volk in de duitse Zendingswetenschap.
2. O conceito ta ethne Boa parte da crítica de Hoekendijk é justificada, especialmente a acusação que faz à missiologia alemã (p. 229s.) de ter traduzido o termo ta ethne de modo demasiadamente ingênuo como “povos” e de ter, além disso, aplicado a essa tradução a compreensão romântica do termo “povo”, sendo que, por influência pietista, ainda se enfatizou a peculiaridade de cada povo. Por outro lado, porém, parece-nos um tanto precipitado responsabilizar a Lutero e o luteranismo por essa compreensão do termo, embora Hoekendijk pudesse invocar como abonadores dois pesquisadores importantes. Neste ponto J. Dürr9293fez maior justiça a Warneck e à missiologia alemã, ao tentar mostrar que G. Warneck - embora sendo ele próprio biblicista e amigo dos pietistas -, tentou destacar, em contraposição ao objetivo missionário pietista de conquistar as almas individu ais e de congregá-las em comunhões cristãs, a conquista dos povos, portanto de todas as pessoas, e o estabelecimento de uma Igreja nacional. Ele fundamentou esse objetivo não apenas com abonações bíblicas, mas com a experiência histó rica e missionária. Além disso, deve igualmente ser considerado injusto que Hoekendijk acredite ter que constatar que, em conseqüência disso, Warneck e seus discípulos não teriam entendido a Igreja como grandeza histórico-salvífica, mas que teriam deixado que fosse determinada a partir do povo, de maneira que ela é compreendida mais ou menos como fator cultural. Sem dúvida, a linha escatológica não foi elaborada em Warneck e seus discípulos com a mesma niti dez e fixada com a mesma clareza como o podemos fazer agora desde K. Barth e dos estudos de O. Cullmann. Mas o simples fato de G. Warneck, apesar de sua concepção universal de missão, ter entendido sempre a verdadeira comunidade no sentido pietista, como o grupo dos crentes, poderia ter mostrado a Hoekendijk que também ele teve consciência da confrontação entre Igreja e povo. Portanto, neste ponto Hoekendijk se excede. Por mais que reconheçamos os pontos justificados em sua crítica, temos que, agora, por outro lado, examinar até que ponto Hoekendijk tem razão com vistas a nosso tema. Para começar, temos que fazer-lhe uma objeção seme lhante à que expressamos no caso dos missiólogos alemães. Enquanto que es tes traduzem de modo demasiadamente ingênuo ethne por “povos”, Hoekendijk toma o termo de maneira demasiadamente natural e apodítica na acepção de “humanidade”, ou panta ta ethne como “todos os seres humanos”, sem sua conotação nacional, entendendo este conceito como referente aos seres huma nos fora do povo de Israel, portanto no sentido histórico-salvífico. Sem podermos proceder aqui uma análise detalhada do termo - remete mos à obra Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament í9S -, temos que per guntar, antes de mais nada: mesmo que ethne tivessse que ser entendido no
92 J. DÜRR , Sendende un d werdende Kirche in der Missionstheologie G. Warnecks, 1947,pp. 146ss. 93 K. BERTRAM, & K. L. SCHMIDT, art. ethne, in: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, vol. 11. 73
sentido histórico-salvífico, poderiam então os seres humanos ser concebidos sem seu referencial nacional? Também a partir da história da salvação, o ser humano é visto em sua ambientação natural. Na Escritura, o termo ethne sem pre é usado no sentido de “liga nacional” e pode ser aplicado também a Israel. Associado a panta, o vocábulo ethne significa os povos em conjunto e também em sua diferenciação (Mt 24.9; 24.14; 25.32; 28.19; Mc 11.17; 13.10; Lc 21.24; 24.47; Rm 11.25; G1 3.8). Em outras passagens, o termo é usado inteiramente no sentido histórico-salvífico como oposto ao povo de Israel (Mt 6.7; Lc 12.30; Mt 10.5; 20.19; At 14.16). Aqui não está incluído Mt 28.19, versículo com o qual Warneck fundamenta seu objetivo missionário. Com a diferenciação dos povos também se tem em mente a religião gentílica. Não obstante, é impossível demonstrar que ethne pode ser traduzido simplesmente por “gentios” ou “seres humanos”, tampouco que panta ta ethne, como pressupõe Hoekendijk, seria um equivalente de pasa ktisis ou hapas kosmos. Todavia, é de se perguntar se a missiologia alemã tinha razão, porque ethne é um termo muito ambíguo já no Antigo Testamento. Ele não transmite mais a consciência de que o plural designa uma pluralidade de povos em sua singularidade. O termo significa “os seres humanos fora de Israel” sem consi derar seu caráter sociológico. Nesta acepção o termo também foi entendido no mundo grego, na época do Novo Testamento. Os romanos designavam com ele os não-romanos, portanto, os estrangeiros e bárbaros. Desse modo o conceito também expressaria o contraste cultural. Assim, podemos dizer: com o termo ethne se designam pessoas e povos fora da comunidade de Deus, ou fora da cultura dominante. No entanto, temos que deixar em aberto se devem ser vistos em seu contexto sociológico e condicionamento nacional. Portanto, não é possível demonstrar o objetivo missionário de Warneck a partir da or dem missionária. Também a idéia dos costumes étnicos, que devem ser preser vados, não pode ser fundamentada com o mero conceito ethne.
3. O objetivo da m issão Inicialmente temos que descrevê-lo como conquista de todos os seres humanos e sua congregação na comunidade de Jesus Cristo. Ninguém se en contra fora do reino de Deus. O evangelho se destina a todas as pessoas. Em oposição à comunidade de Deus, os povos formam, como ta ethne, uma unida de por estarem perdidos sob o pecado. Essa perdição é o elemento comum que os une e, com isso, naturalmente também a promessa de que devem ser salvos. Todos devem chegar ao conhecimento da verdade (2 Tm 2.4). A verdade está presente em Israel, pois foi Israel que recebeu a revelação. Por isso Israel não é contado entre os ethne em termos histórico-salvíficos, o que, porém, pode acon tecer no mais, quando só se fala de Israel como povo. Esse contraste históricosalvífico está, pois, determinado a partir da revelação. Ela é decisiva (1 Ts 4.5; cf. Jr 10.25). O “todos” da ordem missionária ainda é sublinhado nitidamente por Mt 24.14. Portanto, ninguém dos gentios está excluído. A mensagem deve
ser anunciada em todo o ecúmeno, que é o habitat das nações e, por conse guinte, o espaço da proclamação da Igreja. Dessa maneira ecúmeno e cosmo se tornam correlatos da basileia e, assim, o oposto da missio Dei e do apostolado. Portanto, o alvo da missão é a proclamação da mensagem a toda a humanidade e sua congregação na Igreja. Em nenhuma parte da Escritura, porém, está dito que esse objetivo será atingido. E inerente à natureza da revelação e, conseqüentemente, da natureza de Deus, que a palavra seja dirigida a toda pessoa. Élhe oferecida a oportunidade da fc c da redenção. A Escritura, todavia, tam bém é suficientemente sóbria para nos deixar claro que apenas parte das pes soas aceitará a mensagem. Como não é possível constatar quem é essa parte, a Igreja é responsável por toda a humanidade.
4. As peculiaridade s dos povos Esclarecido isso, podemos perguntar novamente pelo significado do ter mo “povo” como liga orgânica no contexto do objetivo da missão. Não se pode rejeitá-lo radicalmente por uma razão muito simples: do ponto de vista histórico-salvífico, a pessoa que não pertence à comunidade de Deus permanece sen do criatura de Deus e objeto de seu amor. Primeiramente surge uma pergunta grave em relação a Mt 28.19: se entendermos elhne puramente no sentido histórico-salvífico, a ordem missionária ainda se destina a Israel? Ainda se justifi ca a missão entre os judeus? Sabemos que a revelação de Deus em Jesus Cristo se destina justamente em primeiro lugar a Israel. Que acontecerá então com o Israel renegado, se elhne se refere somente aos gentios? Sc entendermos elhne como a humanidade em suas diferenciações nacio nais, de forma alguma se põe em dúvida que, em sua perdição no pecado, a humanidade constitui uma unidade perante Deus. Ela tem que ser salva justa mente nessa sua condição. Podemos equiparar sem mais nem menos as diferen ças existentes na linguagem, nas realidades sociológicas e sociais, à religião gen tílica e assim designá-las como expressão da apostasia e rebelião? Não podem muitos desses fatores ser concebidos também independentemente das respecti vas religiões? Não são, eventualmente, uma imagem da dependência do ser hu mano em relação a Deus? Acaso os condicionamentos lingüísticos, por exemplo, não foram levados muito a sério por ocasião do derramamento do Espírito San to? Porventura não é o caso que, segundo a Escritura, o ser humano peca justa mente nessas realidades nas quais foi lançado sem participação própria, e que nisso peca contra Deus? Em todo caso, chama a atenção o fato de que, conforme Rm 1 e 2, os gentios têm a mesma responsabilidade perante Deus que os judeus, e isso como gentios! Eles têm consciência do estabelecimento de homem e mu lher, do matrimônio, da relação pais-filhos, da proteção da vida humana. Anali sando os chamados catálogos de vícios, constatamos que as contravenções dos gentios contra Deus são, ao mesmo tempo, pecados contra suas próprias deter minações. Portanto, o ser humano peca nas ordenações que lhe foram dadas por Deus. Trata-se, entretanto, de mandamentos também firmados na revelação. 75
J. Blauw constata que a Bíblia sempre fala dos gentios do mesmo modo como fala do ser humano natural. Este peca sem revelação, transgredindo suas próprias leis. Mas, assim como a revelação não é anulada porque as pessoas não a conhecem, tampouco são anuladas as ordenações porque a consciência do ser humano está turbada. Evidentemente, não é possível escrever uma teo logia das ordenações, como aconteceu repetidas vezes; para isso a base é insu ficiente. Nesse sentido Hoekendijk tem razão com sua crítica severa a essa teologia. Em sua revelação, Deus estabeleceu outras ordenações que devem entrar em vigor através da comunidade. Mas também santificou ordenações existentes e as colocou sob seu mandamento. Por isso, é somente a partir da Escritura que se pode determinar e a partir da comunidade definir o que em cada caso pode permanecer na confrontação entre evangelho e cultura nacio nal. Deus deu o mandamento do amor também à comunidade e com isso todas as ordenações da esfera humana receberam um sentido totalmente novo. Com o conceito ethne está associada também a determinação étnica, que não é anu lada pelo mandamento do amor. Onde o amor deveria revelar-se como tal, senão justamente nos compromissos que determinam o convívio das pessoas? Em tudo isso é preciso que saibamos que um bom número de ordenações que aceitamos naturalmente como cristãs, não estão ancoradas na Escritura, mas têm sua origem na moderna imagem do ser humano e, por isso, muitas vezes se contrapõem ao pensamento bíblico, sem que nos sintamos autorizados a nos opormos a elas. Agora, a partir da Escritura é a mesma coisa adotar orde nações antigas ou introduzir as que surgirem em outro ambiente humano. Também estas últimas não oferecem à comunidade a garantia de uma confron tação autêntica. Na melhor das hipóteses, destacam a estranheza da Igreja. Em última análise, toda ordenação é um perigo para a comunidade, se não for sustentada po r pessoas que sabem pelo renascimento que Jesus faz novas todas as coisas.
5. Os cristãos pro ced entes dos gentios Duas passagens do Novo Testamento os denominam de gentios, ethne (Rm 11.3 e Ef 3.1). Isso de forma alguma significa que esses cristãos se encon trem fora da revelação de Deus, a exemplo dos demais ethne, e que não tenham direito a ela. Isso pode significar somente que eles, ao contrário dos judeus, têm outras formas de vida, sendo que também pode estar subentendido que, na verdade, é graça de Deus o fato de serem contados entre o povo de Deus. Paulo luta apaixonadamente contra a judaização das comunidades gentílicocristãs. Com a adoção das formas de vida judaicas, eles teriam tomado sobre si um jugo pesado. Paulo não teria sido tão veemente, se tivesse tido a convicção de que uma pessoa se pode tornar cristã somente via judaísmo. E precisamente isso que ele negava. Esta é a grandiosidade do evangelho: sob a palavra de Deus, a pessoa pode ser inteiramente aquilo que ela é por nascimento. Paulo também preservou nas comunidades as condições sociais como adequadas às pessoas. Portanto, não viu a característica da cristianização na transmissão de
novas formas sociais. Tinha, porem, a certeza de que a nova vida criada pelo evangelho conquistaria para si um lugar nessas ordenações e que iria rompêlas. Hoekendijk tem razão ao destacar que, no caso do ethnopathos, ninguém se pode re portar ao Antigo Testamento, onde com unhão nacional e religiosa coincidem. Quem faz isso, esquece que Israel é uma grandeza sui generis, na qual, de modo singular, aquilo que se entende por “nação” foi conformado a pa rtir de Deus. Não é a cultura nacional que determina a religião, mas a reli gião determina a cultura nacional. Ela é formada a partir da revelação. Além disso, se deveria discernir entre a aliança de Deus com as tribos e a organiza ção política de Israel, que é algo diferente. Ademais, a atuação dos profetas demonstraria que a comunidade nacional não coincidia com a comunidade de Deus. Podemos admitir tudo isso, mas, não obstante, é preciso perguntar: aca so as ordenações dos povos gentílicos não têm igualmente o direito de serem colocadas sob o juízo de Deus, e não podem elas, sob o juízo de Deus, ser determinadas inteiramente a partir de Deus? Certamente não temos a missão política de ordenar o povo, mas temos a tarefa de chamar os povos ao arrepen dimento, a fim de que permitam que sua relação com Deus seja ordenada. Pode o efeito ser outro do que uma renovação das formas de vida dos povos sob o evangelho? Hoekendijk concordaria conosco em todas essas questões, mas objetaria que o critério para essa mudança de forma alguma poderia ser tomado dos povos (o que, aliás, não queremos), mas que a comunidade somente poderia preservar sua posição singular, se ela se estruturasse puramente a partir do evangelho. Fazendo isso, ela sempre estará marcada por traços de seu ambien te, porque o evangelho sempre toma forma no ambiente; mas as ordenações não lhe seriam preestabelecidas pelo povo. Para descrever esse processo, ele usa o termo “ecologia”. Com ele oferece a solução do problema. Afirma com isso que cada povo representa um ambiente específico para o evangelho e a comunidade. Por isso a comunidade se adaptará ao ambiente do mesmo modo como o faz um animal ou uma planta. O ambiente exerce certa influência, mas, não obstante, ele não transforma. Algo semelhante ocorreria na comuni dade cristã; ela sempre vestirá um traje local, mas, não obstante, permanecerá fiel a si mesma e não se comprometerá com o povo.
6. A linh a pedagógica Warneck recomendava a pedagogia dos povos através da missão, preconi zando uma cristianização paulatina das ordenações. Ao fazer isso, certamente quis colocá-las sob o juízo de Deus, mas a premissa era que, a princípio, as ordenações permanecessem. Ele tinha consciência dos perigos; é singular que, em virtude da experiência, não acreditava em uma ruptura repentina, restrin gindo, desse modo, suas noções bíblicas. Assim se constata nele certa duplicidade que, do ponto de vista teológico, constitui o lado fraco de sua missiologia. Homens como S. Knak - através de seus conhecimentos teóricos -
e B. Gutmann bem como C. Keysser, em sua prática de comunidade, procura vam, seja de modo consciente, seja inconsciente, em última análise a síntese de história salvífica e história profana. Ao fazerem isso, certamente havia o perigo de despir a história salvífica de seu caráter ontológico e de erigir na história profana certa teocracia. Isso, porém, não é somente o caso deles. Existem mui tas igrejas jovens no m undo em relação às quais é de se perguntar se se trata de uma nação cristianizada ou de um cristianismo nacionalizado. Por outro lado, esses métodos oferecem grandes possibilidades para co locar todas as esferas da vida sob a palavra de Deus e, desse modo, permear a vida toda. Hoekendijk reconhece essas fraquezas; no entanto, quer garantir esse último fator sobretudo pela “ecologia”. Em geral, impõe-se a pergunta se Hoekendijk, no afã de preservar a posição singular da comunidade, não acaba num afunilamento piclista, que também não é superado pela recomendação do comprekensive approach (“abordagem inclusiva”). Hoje as perguntas p or povo e nacionalidade, pelo caráter autóctone da Igreja são de importância eminente para as igrejas jovens que sofrem sob o nacionalismo e, conseqüentemente, sob a acusação de serem alienígenas. Sua busca por autonomia certamente não é apenas reação contra o expansionismo e colonialismo eclesiástico, e, sim, a luta por uma configuração própria, em seu ambiente de vida. Em todo caso, a reflexão e o diálogo devem continuar. O assunto recebeu novo estímulo pelos trabalhos de MacGavran e S. Trimmingham, que mostram94 que a Igreja e a missão só podem ter sucesso se oferecerem sua mensagem através dos canais naturais como parentesco e ami zade, onde é repassada de pessoa para pessoa. Desse modo não ocorre nenhu ma ruptura social; o convertido continuaria em contato com sua família e pa rentela; a comunidade se tornaria, desde sua criação, uma grandeza social que oferece segurança, e, dessa maneira, uma comunidade também poderia ser elemento transformador. Uma das perguntas vitais mais candentes para as igrejas jovens hoje é se elas têm uma contribuição a dar para a cultura de seus povos, de modo que princípios cristãos venham a ser fatores determinantes para a construção da nação. Se isso é possível, depende, em grande parte, de até que ponto a comunidade analisou os problemas de sua própria cultura inata e se confrontou com eles.
7. Missão e civilização Será que Hoekendijk não se excedeu em sua crítica? Acaso não escreveu unilateralmente a partir da imagem moderna do ser humano? Em todo caso, ele nos mostra que hoje, em vista da imensa influência da civilização, as parti cularidades étnicas não têm mais futuro. As pessoas não querem mais arrastar 94 D. A. MacGAVRAN, The ßridges o f God, 1955; S. TRIMMINGHAM, Die christliche Kirche u nd de r Islam, Evangelische Missionszeitschrift, 1955.
consigo suas próprias formas, mas buscam o contato com a greal society, com a família da humanidade criada pela civilização. - Neste sentido ele tinha razão, em grande parte, por ocasião da publicação de seu livro. Parece que o ponto crítico está ultrapassado e que as características próprias estão sendo enfatizadas novamente. Com isso as perguntas acima tornam a ser muito candentes para toda Igreja jovem e para toda missão. Nessa situação, Hoekendijk recomenda o comprehensive approach. De acordo com ele, todas as esferas da vida do ser humano devem ser permeadas com pensamentos cristãos, de maneira que as pessoas aprendam como se pode ser cristão e agir de modo cristão em tudo. No fundo ele tem o mesmo objetivo que o trabalho relacionado à nacionalida de: não excluir nada da esfera de Deus95. A pergunta principal aqui é: que se entende por “cristão”? A Bíblia dá instruções concretas somente em poucos casos. A conseqüência é que po r meio do comprehensive approach é transmitido como cristão aquilo que percebemos como tal, nossa civilização. E temos nós o direito de transmiti-la? Seria ela cristã pelo simples fato de se ter formado através de uma história secular com o cristianismo? Não acontece, neste caso, a mesma coisa que o outro m étodo quer atingir com base na cultura nacional? Temo que os problemas que surgem neste ponto sejam piores do que na teoria da nacionalidade. O problem a nesse approach não consiste nos fatores locais existentes, mas na incapacidade do missionário de reconhecer seu valor e de confrontar-se com eles através da comunidade. Enquanto o missionário se coloca acima do povo com seu pretenso modo de vida cristão, dificilmente reconhecerá como aproveitável e em condições de ser desenvolvido o que encontrou. Conseqüentemente o rejeitará. Deste modo, porém, justamente não acontecerá uma con frontação autêntica! Pois esta não se dará entre evangelho e cultura nacional, mas entre civilização e cultura nacional. Até hoje somente muito poucos missi onários compreenderam o que é um contato e confrontação autênticos. O contato nunca pode ocorrer de modo diferente do que o contato que o pró prio Deus estabeleceu po r meio de Jesus Cristo. Este veio como ser humano a determinado povo e viveu sob as mesmas condições sob as quais esse povo tinha que viver. Dessa maneira suportou com o povo suas mazelas e, sob as mesmas condições em que o povo teve que comprovar sua fé, mostrou a seus semelhantes como o ser humano pode tornar-se e permanecer filho de Deus em todas as circunstâncias da vida. Ele criticou muitas interpretações das orde nações de seu povo, discutiu com as lideranças do povo. Reiteradas vezes con trapôs a com unidade de Deus, o reino, ao que os judeus imaginavam que fosse esse reino. Em tudo, porém, permaneceu um igual. Onde um missionário consegue tornar-se isso, resolvem-se por si muitas perguntas que, por via teóri ca, recebem um peso imenso. Não devemos acentuar as ordenações comunitárias de um povo a ponto de se oporem às ordenações do amor na comunidade. Também não as deve mos apresentar como forma inicial da comunidade. Mas também não as deve
95 E. Jan sen SCIIOON HOVE N, W ort un d Tat im Zeugnisdienst, in: Mission - Heute, 1954.
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mos desprezar ou desmerecer. Somente podemos perguntar o que a palavra de Deus diz a respeito e como podem ser estruturadas essas ordenações a partir dela. Também é preciso saber que toda particularidade da Igreja determinada pela nacionalidade não passa de uma roupagem terrena. A relação com a cultu ra nacional somente se tornará correta, quando se sabe que essa roupagem é efêmera e que a comunidade se livra dela na medida em que se deixa moldar pela vida nova, determinada pelo Espírito Santo. Em todo caso, precisa saber que não deve enfatizar essas particularidades, pois a comunidade de Jesus Cris to se constitui de membros de todos os povos, seu fator comum, sua comunida de, é a lei de Cristo, sob o qual ela vive. A n acionalidade não se apresenta como pré-estágio pa ra a recepção do evange lho, e tampouco o efeito do evangelho consiste no desdobramento da individu alidade de u m povo (...) O característico é justam en te a intenção universal, su pra -éti ca, supra-racial d a m ensagem de C ris to .96
8. O desenvolvimento gradativo O evangelho do reino deve ser anunciado a todas as pessoas. Todas as pessoas devem ouvir a mensagem salvífica de Jesus Cristo. Com isso está estabelecida a atividade imediata do mensageiro e esboçado o objetivo imedi ato da missão. G. Warneck fundamenta essa proclamação com a ordem missionária, e no mathetenein panta ta ethne colocou a ênfase no matheteuein\ ele entendeu isso como uma grande instrução pedagógica: o ouvinte deve ser educado como um aluno para se tornar discípulo. Aí naturalmente caberia ao instrutor decidir quando iria dar ao aprendiz o certificado de madureza. Warneck, portanto, não compreende a relação de discípulo como relação dire ta, conforme nós a descrevemos. Sabe que raras vezes a missão produzirá dis cípulos autênticos, porque muitas pessoas se tornam cristãs por motivos secun dários, ficando, muitas vezes, estagnadas no começo de sua relação de discípu lo e abandonando-a por vezes. Por isso bastaria o desejo de se tornar cristão. Esse desejo deveria ser reconhecido. Então toda pessoa atingida poderia cres cer para dentro da relação de discípulo ou ser educada para ela. A princípio é indiferente se isso deve ser feito pela comunidade ou se é motivado pelo fato de a pessoa atingida ser sustentada pelas ordenações cristãs de seu povo. Warneck está pensando aqui inteiramente a partir da prática e em termos bem católicos. Não pensa tanto em missionar e, com isso, em conversão, e, sim, em cristianização, na Igreja nacional. Ele pretende criar imediatamente um espaço de vida determinado por uma atmosfera cristã para os que foram conquistados. Na verdade, usa termos como salvar, converter, tornar-se crente, também juntar-se ao Senhor. Entretanto, estranhamente duvida que cristãos
96 W. KÜNNETII, Politik zwischen Dämon und Gott , 1954, p. 194.
gentílicos possam fazer imecliatamente a plena experiência de fé. A reticência de Warneck é tão incompreensível porque afinal os gentios, como pessoas ainda não atingidas pela Palavra, agora são confrontados com o evangelho, o que desencadeia uma experiência imediata, enquanto ela já é bem mais difícil na segunda geração. Atrás disso se encontra o conceito de Igreja nacional, de acordo com o qual a pessoa tem que ser atraída para dentro do cristianismo po rtanto, a idéia de que o cristão gentílico ainda não teria tradição e, por isso, não poderia ser cristão no sentido pleno da palavra. Warneck pensa inteira mente em termos pedagógicos. Ele imagina a cristianização de um povo da seguinte forma: de início, convertem-sc alguns individualmente; estes transmi tem a Palavra e suas experiências a outros. Dessa maneira, paulatinamente todo o povo é atingido. Surge a formação de tradição. Esse processo natural mente exige tempo, sob certas circunstâncias, gerações. Também neste ponto Warneck permaneceu pietista, embora defendesse a Igreja nacional. Ele ainda nada sabe do caso em que uma tribo ou um povo é atingido como um todo pelo evangelho, de maneira que a comunidade dos batizados assume a lideran ça nele, determinando, desse modo, a vida do povo.
9. O m étodo evangelístico De acordo com Hoekendijk, a missão tem a tarefa de testemunhar o rei no, erigir os sinais do reino, pregar o evangelho. Naturalmente ele tem consci ência do objetivo imediato de constituir comunidade, no entanto, não menci ona esse fato. Deixa em aberto se e como a pregação se torna efetiva. Isso pode estar relacionado à predestinação, segundo a qual Deus determina, com base na eleição, quem chegará à fé através da pregação do reino. No entanto, é possível que Hoekendijk esteja defendendo o método evangelístico de missão, segundo o qual basta, com base em Mt 24.14, que os povos sejam expostos ao testemunho. Q ue a mensagem assuma forma não constitui objetivo a ser perse guido; fica relegado à atuação da Palavra o que acontece em virtude da prega ção. Naturalmente fica-se grato por cada pessoa convertida. Através desse método de anunciar o evangelho aos gentios o mais rápido possível, bem como através da divulgação da Bíblia, transmitiu-se aos gentios a Palavra, sem que estes compreendessem, a princípio, que se lhes está exigindo uma decisão. Colocou-se em suas mãos a Palavra, sem que alguém se preocu passe com sua correta interpretação e aplicação e a preservasse de abusos. Dessa maneira o método evangelístico preparou o caminho para o sincretismo. Encontra-se aí o equívoco de que a palavra de Deus atuaria por si só e que o Espírito Santo falaria aos gentios através da Palavra. Quanto a isso, não há dúvida. No entanto, resta a questão: há consciência de que aqui se está defen dendo uma concepção mágica da Palavra, que de forma alguma pode ser justificada a partir da Escritura? Os parcos resultados do método evangelístico provam, contudo, que a palavra de Deus não desenvolve forças mágicas. Se pessoas chegam à fé p or esse caminho, isso sempre acontece pelo fato de tam81
bém ter havido contato com testemunhas. É uma experiência tanto da Escritu ra quanto da missão que o Espírito Santo atua sempre através da testemunha. A palavra anunciada que se torna evidente em sua vida, que pode ser sentida em sua personalidade, impressiona o ouvinte. Ao ouvir sempre tem que associ ar-se o exemplo. Por isso o cristianismo sempre se espalha mais onde o efeito do evangelho se torna visível numa comunidade ou na vida de uma pessoa. Disso se evidencia o quanto é importante que a mensagem se torne reali dade através do envio. Por isso ela também é uma porção da atividade e capa cidade humana, sem que com isso se pusesse em dúvida a atuação do Espírito no mensageiro. Mas o próprio mensageiro tem que ser obediente à mensagem e deixar-se moldar por ela. Sem dúvida, ninguém pode, como ser humano, tornar alguém crente. Não obstante, isso depende em grau incrivelmente ele vado da atitude do mensageiro. Paulo diz em 1 Co 9.19ss. que se tornou escra vo de todos a fim de ganhar alguns; e em Rm 1.5 afirma que recebeu seu ministério para produzir obediência da fé entre os povos. Com isso está dizen do também que o missionário tem que ter um objetivo bem concreto, e que terá que tentar permanecer fiel a esse objetivo por meio de seu próprio com portamento. Portanto, há que ser muito cauteloso com o discurso, justificado em princípio, de que Deus tem que fazer tudo. Sobre isso não se discute. Deus, porém, realiza sua obra sempre na medida em que seu mensageiro se tornou instrumento. Sempre é decisivo se este se subordina ao agir de Deus. No en tanto, fica em aberto até que ponto os ouvintes acolhem a mensagem e como ela se manifesta em suas vidas. Em todo caso, podemos deduzir das descrições da vida comunitária nas epístolas do apóstolo, de suas admoestações, das com parações da comunidade com os gentios, que também as comunidades do Novo Testamento estavam longe de qualquer perfeição. Não obstante, Paulo se refere a elas com elogios.
10. Tornar-se crente Se surgir uma contradição neste ponto, haveremos de perguntar se com preendemos corretamente o processo de alguém tornar-se crente. Acaso não nos baseamos demasiadamente em teorias, ou tomamos por ponto de partida a imagem da própria perfeição, nossa própria compreensão da fé e do cristia nismo, tornando-nos a nós mesmos a norma para os cristãos gentílicos? Pri meiramente, a conversão e fé entre todos os cristãos gentílicos consistem em se absterem de certas práticas, porque se subordinaram a Deus. Essas coisas, po rém, nunca abrangem toda a vida e pensamento da pessoa. Mas sempre perma nece o fato de que Cristo se tornou seu Senhor e eles também o querem por Redentor. Por isso se tornaram obedientes e crentes em pontos bem definidos, nos quais lhes foi concedida iluminação. Aí a Palavra os compeliu a tomarem uma decisão. Portanto, ocorreu uma conversão que, todavia, ainda precisa evi denciar-se em outros pontos, que pode ter continuidade, dependendo de como o ouvinte é conduzido pela Palavra.
No caso da fé, a história é outra. Como confiança em Deus, ela precede a conversão. Confiança nele, dependência dele, alegria por causa do perdão dos pecados e da certeza de redenção também podem existir sem que a pessoa tenha conhecimento de tudo que contradiz a Deus em sua vida. Com essa progressão da nova vida, que sempre se fundamenta na fé e que é dada pela ação do Espírito Santo, o ser humano aos poucos é tranfigurado na imagem de Cristo. Evidente mente, essa fé pode sofrer abalos, pode ser levada a dúvidas. Ela passa por trans formações. Nem por isso, porém, a nova vida tem que se tornar flutuante. A pessoa hum ana pode permanecer firme em seus conhecimentos, sua vida pode ter um cunho determinado. Segundo a Escritura, existe uma fé pequena e uma fé grande. Existe a fé fraca e a fé forte. Em nenhuma parte, porém, é dito que a fé fraca não seja fé e que ela possa ser aprofundada, ponto sobre o qual se concentra grande parte de nossa prática eclesiástica. Deus é realidade em todas essas formas de fé, sempre de acordo com a medida da fé. Isso, porém, nada muda no fato de que também a pessoa com uma fé pequena ou fraca se tornou crente. Por isso deveríamos ser bastante cautelosos em nossos juízos sobre con versão e fé. Elas não são um processso tão simples que se possa form ar um juízo a respeito. Aliás, não está no arbítrio do ser humano o que ele crê. Em todas essas formas de fé existe uma relação com Cristo e, conseqücntcmente, com Deus. A pessoa distante de Deus não tem fé. O crente pode deixar-se conduzir por Deus progressivamente de obediência em obediência. Com ela também cresce sua fé. O crente pode deixar-se permear por Jesus e tornar-se ativo no amor. Na fé, pode deixar-se presentear com a m edida do Espírito e, na confiança em Deus, levar uma vida nova. Onde, porém, não existe a fé, falta tudo. Ela sempre é o sim ao agir misericordioso de Deus e com isso tudo está encerrado em Deus. Quão maior seria nosso regozijo com a vida dos cristãos gentílicos se tivéssemos a compreensão correta para a fé!
11. Os meios da missão Para levar as pessoas à fé os mensageiros têm que cumprir sua missão e, assim, assumir a luta contra o outro reino. A ordem missionária menciona a palavra como único meio da missão (Mt 10.7; Lc 9.1s.; Rm 10,17). Em 2 Co 5.19, a proclamação é definida mais especificamente como o anúncio da re conciliação, ou como “testemunhar a graça de Deus” (At 20.24). Os apóstolos proclamaram essa pregação não como sistema doutrinário, como cosmovisão, acomodada à sabedoria humana, mas sempre anunciaram a ação salvífica de Deus ern relação às pessoas. Entre os judeus, sempre tomam por ponto de partida o agir de Deus em relação a Israel; entre os gentios, a criação e os benefícios que Deus lhes fez. No centro da pregação encontra-se a ressurrei ção. Por maior que seja o anseio por redenção, a pessoa para a qual Deus não se tornou uma realidade jamais compreenderá que o ser humano não pode redim ir a si mesmo. Q uem nada sabe do Criador rejeitará a Palavra que Deus lhe dirige. Quem não tem noção de que existem ressurreição e juízo nunca 83
entenderá seus pecados como ato contra Deus, não se sentirá responsável, rejeitando, p or isso, a Jesus Cristo como Redentor. Também em Corinto estava no centro da pregação o anúncio da ressur reição. Se, não obstante, Paulo nada sabe senão a cruz, isso acontece porque as pessoas determinadas pela filosofia grega acreditavam que podiam ser redimidas segundo a sabedoria humana. Paulo não lhes pôde pregar outra redenção exceto aquela uma que procede da ressurreição. Portanto, a fé na ressurreição de Cristo c um elemento necessário não somente na fé em Cristo, mas também na fé em Deus. Por si só, a morte de Cristo é a crise da fé, porque ela faz duvidar ou de Cristo, ou de Deus. Sua ressurreição é a superação da crise, porque nela o Pai - conforme costumamos dizer em analo gias humanas - se identifica com o Filho.97
Somente por meio da proclamação de todo o agir de Deus em Jesus Cris to as pessoas se tornam semelhantes de Jesus Cristo e recebem parte em sua história. Por issso a fé não é uma opinião, uma convicção adquirida por meio de conclusões lógicas, mas é a certeza da história da salvação. A esta os apósto los tinham o dever de proclamar. Podemos fazer isso somente na medida em que essa história se tornou nossa história por meio de Cristo, a história do agir de Deus conosco. Com isso, porém, se descreve apenas um aspecto da tarefa missionária e dos meios da missão. O querigma sempre deve visar a ser ouvido pelas pessoas. Elas não podem entrar no reino de Deus por si mesmas, têm que ser chamadas a ele. Não podem se tornar discípulos se não dão ouvidos ao chamado ao segui mento. Por isso a mensagem deve ser apresentada de maneira que seja ouvida e entendida. A proclamação dos fatos salvíficos sempre remete os ouvintes a Deus e os obriga a permitirem que seu relacionamento com Deus seja determinado a partir dele. Deus o faz concedendo aos crentes perdão dos pecados, justificação, renascimento e, conseqüentemente, uma vida nova, e preservando-os nela por meio da santificação. Onde a revelação de Deus atinge o ouvinte sempre surge algo novo: participação na vida eterna, que consiste na fé em Cristo (Jo 17.3). Com isso está alcançado o objetivo imediato da missão. O ser humano está salvo, foi arrebatado do outro reino e recebeu uma nova existência. Embora creiamos que esse ouvir seja obra do Espírito Santo, vale, também neste caso, o que disse mos acima sobre a auto-atividade de Deus. Também o ouvir passa pela testemu nha. Ele é simultaneamente compreender. Se o pregador anuncia a Palavra de tal maneira que as pessoas não a podem entender, ela permanece um eco vazio. Se não for oferecida às pessoas em sua linguagem, não a podeião compreender. Por causa da linguagem estranha ela não chega a ser a palavra do próprio Deus para as pessoas. O ouvinte precisa fazer um grande esforço pa ra entendê-la. Mas Deus quer falar às pessoas. Por isso é imprescindível que o mensageiro fale a linguagem do ouvinte. Um exemplo claro do que acontece quando se dá aos ouvintes oportunidade para uma interpretação errô nea p or causa da linguagem estranha é a história de Listra. Através da proclamação, Deus quer chegar tão 97 W. ELERT, Der christlkhe Glaube, 1955, p. 302.
perto das pessoas que to da a sua hum anid ade seja envolvida por ela. Por isso o mensageiro deve dar-se o trabalho de traduzir sua pregação para formas de pensar estranha s, deve confrontar-se interiorm ente com o m undo gentílico, a fim de po de r anunciar o evangelho.
12. A missão e o milagre A tarefa missionária dos apóstolos tem ainda outro aspecto: “Os enfer mos curai, os mortos ressuscitai, os leprosos purificai, espíritos imundos expe li!” (Mt 10.7; cf. Lc 9.1s; 10.9; além disso, o final secundário de Marcos). Aí encontramo-nos diante de uma questão muito difícil, mas que justamente hoje é sentida de novo com grande intensidade. Como sabemos, os apóstolos toma ram essa incumbência a sério, pois ela de fato faz parte da pregação do reino. Ela é incompleta quando a ordem do milagre não é cumprida. Eles (os milagres) devem ser entendidos como manifestações do reino de Deus, efetivamente presente em Jesus, e como tais, prenúncios da vindoura ação de Deus na ressurreição. Ao estabelecimento do reino se opõem potestades deste mundo, o poder satânico-demoníaco, o pecado, a enfermidade, a morte.98
Essas potestades do outro reino devem ser superadas porque Jesus as venceu. Por isso o serviço da proclamação é incompleto quando não pode ser comprovado por meio do ato salvífico. Os milagres, como os apóstolos os rea lizaram, certamente não eram condicionados ao tempo em virtude de uma fé mais forte dos apóstolos, ou porque naqueles tempos não se conhecessem ou tros recursos contra as potestades além da magia. Também não é verdade que estaríamos muito acima daquela época e que, por isso, esses atos salvíficos não seriam mais necessários. Sabemos da existência de inúmeros sofrimentos pro fundamente sentidos e que ainda hoje as pessoas necessitam de um Salvador, do mesmo modo como naqueles tempos. A medicina moderna não tornou o milagre supérfluo nem o substituiu. Ela não apenas possibilitou a cura das doenças, mas também provocou outras. O progresso não apenas esclareceu o ser humano; ele também o enredou em um demonismo ainda pior. O ser humano continua sujeito a doença e morte. Por isso não se pode simplesmente substituir a superação sobrenatural dos sofrimentos humanos pelas ciências como dádiva de Deus. Elas jamais serão capazes de livrar as pessoas de doença e morte e de eliminar os demônios. Procuramos na cristandade, nas obras de misericórdia e também na missão externa a ligação com o progresso científi co; cremos que com isso podemos substituir o mandato de curar, e muitas vezes sequer suspeitamos o quanto nos submetemos a suas leis. Também a missão achou que podia cumprir a segunda parte da ordem m issionária através de missões médicas, escola, educ ação e serviço social. Com 98 W. KÜNNETH, Theologie der Auferslehung, 1951, p. 110.
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esses empreendimentos propôs-se a preparar o serviço missionário propria mente dito, conquistar as pessoas para darem ouvidos à mensagem; no entan to, não considerou que essa segunda parte da ordem missionária já pressupõe a fé. fé. Do lado anglo-sax anglo-saxão ão acreditava-se acreditava-se inclusiv inclusivee pode po derr realizar o reino rein o de d e Deus na terra. Deram-se falsas esperanças às pessoas. Em muitos campos missionári os a proclamação era, na m elhor elho r das hipóteses, hipóteses, uma complem entação do servi ço soci social. al. () resultado nã o podia p odia ser outro: essas essas instituições instituições da missão contri buíra bu íram m para pa ra que se prop p roporc orcio iona nasse sse tudo tu do à pes p essoa soa sem que qu e ela fosse com pro pro metida com Deus. Deus. A própri pró priaa missão colaborou na disseminação disseminação do d o secularismo. secularismo. A segunda parte da ordem orde m missionária missionária também não pode ser substituída substituída pela pe la edifica ed ificação ção de centros centr os de pereg per egrin rinaçã ação. o. A inda in da que a fé nos santos expresse a continuidade da Igreja, não se trata (abstraindo do contexto histórico-religi oso) oso) de testemunhas vivas vivas que aí atuam, mas d e mortos. Não seria justame justa mente nte a maior mazela da Igreja o fato de ela crer no Espírito Santo, mas de este, na verdade, não constituir mais uma realidade para ela? Não está a teologia refre ando-o constantemente porque, naturalmente, só pode proceder dele o que seja conciliável com nossa maneira de pensar, com nossas ordens eclesiásticas encardidas e com a ciência? Entretanto, a Igreja também entendeu hoje que há uma carência, uma deficiência em seu serviço; por isso surgiu o debate sobre o ministério da cura. No entanto, essa segunda parte de sua tarefa missionária não deve ser entendida de maneira errada. erra da. Falta Falta nela nela o “todos” que encontram os na primei ra parte da ordem missionária. Isso é significativo. Jesus não curou todos os doentes, nem ressuscitou todos os mortos, nem deu ordem para isso. Também não expeliu os demônios de todos os possessos. Se pretendêssemos a aplicação geral, estaríamos levando a ordem para a esfera humana. No caso de Jesus, a vida desempenhava um papel bem menos importante do que entre nós, onde chegamos ao ponto de o bem-estar físico estar acima dos mandamentos de Deus. Em contrapartida, tomou bem mais a sério e considerou mais importan te o sofrimento em seu significado para a pessoa. Para ele, o sofrimento era uma passagem p ara a salvaç salvação ão da pessoa. pessoa. Jesus também tamb ém sabia que com o afas afas tamento do sofrimento ainda não está eliminado o outro reino. Ele pode irromper novamente a qualquer momento, se não existem as condições para o milagre. O que, porém, ele quis e o que seus apóstolos deveriam fazer foi o seguinte: erigir sinais do reino e, desse modo, revelar ao mundo que, a princí pio, o out o utro ro reino re ino está vencido. venci do. Com isso ficava conf co nfir irm m ada ad a a prega pr egaçã ção o de que ele é o Senhor de todos os senhores e, simultaneamente, o Senhor da vida humana. Ele não usou o milagre milagre para proporcion prop orcion ar ao ser humano um a huma nidade em sentido autônomo, e, sim sim, justamente justam ente para romp ro mper er a autonomia de um mundo separado de Deus e vincular a pessoa a Deus. A segunda parte da ordem missionária deve ser vista sob essas restrições.
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13. A com un idad e como al alvo Com isso está traçada a linha clara da fé. Onde ela não existe, ergue-se uma frente contra a execução da ordem missionária. Nem todas as pessoas se deixam levar à fé e, desse modo, salvar. Enquanto for pregado o evangelho, acontecerá que pessoas deverão deverão ser tiradas de seu ambiente, ambiente, de sua comunhão pela palavr pal avraa de Deus. Com isso isso o cristianis cris tianismo mo entr en traa em oposição oposiç ão a todas toda s as demais demais religiõ religiões. es. Onde O nde comun c omunhão hão religiosa e comunhão por po r nascimento coin coin cidem, a religião não necesssita de uma comunidade própria. Isso também vale vale para par a o caso caso em que qu e a comunhão religiosa religiosa é maior que a comunhão comunhã o nacio nal. A pregação do evangelho, porém, cria uma barreira entre os seres huma nos, porq ue todos os que chegaram à fé fé são são congregados em um modo mod o de vida próp pr ópri rio, o, a comunid com unidade. ade. A comunidade cristã é um fenômeno único no mundo das religiões. Atra vés dela surge igualmente um sinal do reino de Deus na terra. A comunidade é a comunhão dos que, na fé, se entregaram ao Senhor e que vão ao encontro dele. Seus membros também pertencem ao povo. A comunidade participa da vida do povo, influencia-o através da proclamação e de sua vida diferente, e representa represe nta o povo vicariamente perante pera nte Deus. Deus. Não obstante, obstante, ela é uma grandeza grandez a sui generis, com leis de crescimento próprias. Ela pertence ao Senhor e, não obstante, ele a ordenou de tal maneira que sua integração no povo seja impor tante par p araa ela. Pois Pois se foss fossee e pudesse separar-se dele, ela seria, seria, simultaneamente, simultaneament e, uma instituição político-social e não mais se distinguiria das formas de religião gentílicas. Se, porém, constituísse uma comunhão de fé com o povo, deixaria de ser comunidad com unidadee de Jesus Cristo. Sua dupla pertença per tença lhe confere o caráter especí especí fico. Pela palavra palav ra de Deus e a comunhão comun hão dos discípulos entre si, ela ela está subordi subo rdi nada somente somen te a seu Senhor Sen hor e a partir par tir dele tem que ago ra caminhar com o povo povo,, ou també ta mbém m contra co ntra ele, ele, sob o juízo da palavra de Deus. Deus. No entanto, ela não pode po de se isolar do povo. Ela tem participação na vida nacional e, não obstante, não pode po de aceitar aceita r para pa ra si os limites do povo, povo, pois perten per tence ce à única únic a Igreja de Jesus Cristo e tem seus irmãos e suas irmãs entre todos os povos. Sem dúvida, ela tem que sofrer sob o desenrolar da história, mas não está sujeita a ele como os povos, pois sempre se encontra na continuidade que vem de Jesus Cristo e vai ao encontro de sua vinda. Nela estão congregados os filhos de Deus de todos os povos e unidos na fé no único Senhor (Jo 11.52). Sem dúvida existem nela pessoas de diferentes raças, mas essas diferenças não se expressam nela. Embora possa reunir-se somente em comunidades locais, apre sentando, portanto, todas as características humanas, ela vive, não obstante, de acordo com as leis da Igreja que é uma só. O decisivo não são as peculiaridades de sua roupagem roupag em humana, e, sim, sim, a fé comum e o único ú nico Senhor, que qu e tem riqueza para pa ra todos (Rm 10.1 10.12; 2; Cl 3.11). 3.11). Ela se enc e ncon ontra tra em meio a esta vida v ida e trabalh trab alhaa em sua conformação, seguindo suas próprias leis, mas não se entrega à vida como a querem moldar os seres humanos de acordo com seus próprios ideais.
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E quando a comunidade se tornou um só corpo, no quai estão eliminadas as antigas diferenças nacionais e sociais, cia antecipa o novo povo dc Deus, que se enco ntra sob a basikia de seu kyrios celest celestial ial,, agu arda nd o sua pa ro us ia , sua entrada triunfal como rei."
14. A im po rtância rtân cia do Batismo Batismo para pa ra a missão A apropriação da salva salvação ção sempre transcor trans corre re do seguinte modo: o crente é integrado na comunidade, recebendo, através dela, um grupo de irmãos na fé que, juntamente com o crente, servem ao mesmo Senhor. Essa unidade da comunidade está garantida tanto pela mesma fé quanto pelo mesmo Batismo. Atravé Atravéss disso a comunid com unidade ade assume ass ume forma for ma visí visíve vell na terra te rra.. Não N ão é somente s omente a fé, fé, não é somente a Palavra, não apenas a veneração de Cristo que evidenciam a posição peculia pec uliarr da comun com unida idade de no mundo mu ndo.. Se assim as sim fosse, fosse, os milhões de secretos veneradores de Cristo na índia, ou no Japão, ou entre os maometanos deveriam pertencer à Igreja. A posição peculiar da comunidade no mundo se manifesta no Batismo. Batismo. Aqueles Aqueles “cristãos” secretos renunciam renu nciam ao Batismo justamente porque po rque não querem que rem renunciar renu nciar à unidade unida de com seu povo e sua religi religião. ão. O Batismo os separaria de ambos. Ele é o sinal do reino entre os povos e isso o transforma transform a em ato de confissão confissão de Cristo perante o mundo. Por meio dele fica fica manifesto a todos que os crentes se deixaram integrar em Cristo e que através dele se desligaram da antiga comunhão religiosa. É significativo o fato de os gentios entenderem o Batismo exatamente nesse sentido, enquanto nós cristãos sempre somos reticentes em reconhecer o aspecto exterior do Batismo. Batismo. Em geral, geral, os gentios gentios nada têm a opo o porr a que seus compatriotas ouçam a palavra de Deus, a que venerem a Cristo. Sua religião oferece espaço para isso. Se, todavia, alguém se deixa batizar, eles se tornam intolerantes. Aí começa a resistência. Dessa maneira o Batismo se torna para os gentios o sinal de que os batizados romperam com o paganismo e com o povo. Através do Batismo o Senh Se nhor or trans tra nsfo form rmaa sua com c omun unida idade de nu numa ma gran gr andd eza especial no mundo. “Desde o princípio ele [o Batismo] aparece como ato decisivo de integração na comunidade e como algo natural, fora de discussão. Nisso reside resid e também tam bém uma um a caracterís cara cterística tica con constan stante te da tradiçã trad içãoo qu quee atribui atri bui o Batismo Batismo à vontade do Ressurreto.”91900 G. Warneck põe ênfase no Batismo como meio missionário, ainda que de forma pouco clara, porque, como o mostra Dürr, por um lado, está interessado em reconhecer o efeito objetivo do Batismo e, por outro, não obstante, dá mais valor à conversã conversão. o. Em contrapartid con trapartida, a, Hoekendijk H oekendijk faz pouca referência aos sacramentos e não lhes atribui caráter constitutivo. Isso admira tanto mais por ser
99 I.IECHTF.NI IAN, op. cit., p. 88. 100 1D., ibid., p. 46.
justam jus tam ente en te através do d o Batismo, que ju nto nt o com c om o ensino cria o discipulado, que a comunidade se manifesta como grandeza escatológica. Por meio dele se consti tui a comunidade dos últimos tempos dentre todos os povos. O apóstolo põe g ran ra n d e ênfas ên fasee nisso (1 Co 12.13 12.13;; G1 3.28). 3.28). Através do Batismo os crentes cren tes fazem parte pa rte do corp co rpo o de Cristo. Os não-crentes e os não-batizados não n ão têm parte pa rte nele. Por meio do Batismo surge comunidade de Jesus Cristo cm todos os povos, e dessa maneira a comunidade constitui a prova de que, pelo fato de pertencer a Deus, Deus, a humanid hum anidade ade é uma um a unidade unida de em seu pecado e em sua redenção. Por meio meio dele, a comunid com unidade ade se torna, simultaneamente, o sinal da promessa prom essa de que Deus estabelecerá essa unidade, mesmo que seja através do juízo. Com isso isso já fizemos afirmações essenciai essenciaiss sobre o p róp rio Batismo, Batismo, pois esse aspecto exterior e humano é apenas uma efluência daquilo que Cristo concede aos crentes pelo Batismo. Objeta-se que esse dom de Cristo no Batis mo outra coisa não poderia ser do que aquilo que é transmitido pela Palavra. Tudo que a Escritura atribui aos sacramentos também seria transmitido na Palavra. Neste caso, porém, se esquece a outra maneira da mediação. Pode-se ouvir ou ignorar a Palavra, pode-se levá-la a sério ou deixá-la de lado. No caso dos sacramentos, po rém, cada qual está está colocado pessoalmente diante da deci são e tem que expor-se ao agir de Deus. A pessoa pode fingir, pode fazê-lo por tradição, mas nem por isso pode subtrair-se à ação de Deus. Por meio do agir de Deus os sacramentos sempre se tornam palavra real, que tem as caracterís ticas ticas da d a graça g raça e do juízo. O Batismo é, primeiram ente, o sinal da nova aliança aliança e integ ra os batizados batizados no novo povo de Deus. Portanto, ele não é somente um ato exterior de recep ção na comunidade, no que foi transformado em muitos empreendimentos missionários. Ele tomou o lugar da circuncisão (Cl 2.11). São justamente os cristãos gentílicos que acentuam o caráter de aliança do Batismo. Para eles o Batismo é um sinal da fidelidade de Deus, que aceitou os crentes de modo visí visíve vell em sua comunhão. comun hão. Sabem que na imputação bem pessoal da reconcili reconcili ação po r Cristo se torn aram ara m proprie pro prieda dade de de Deus (Ef 1.1 1.14 4; Tt 2.14) 2.14).. Vist Visto o que no Batismo Batismo tudo isso isso é realizado realizado por po r Deus, Deus, ninguém ningu ém pode p ode arrebata arre batarr os batiz batizados ados da mão dele. Ninguém pode anular o Batismo ou substituí-lo. O batizado so mente pode decidir se o ato de Deus realizado nele deve ser um ato de miseri córdia córd ia ou de juízo. O batizado, porém, é propriedade de Deus pelo sangue da aliança. No Batismo é imputado ao crente tudo que Cristo fez por ele através da cruz e ressurreição. Os batizados se revestiram de Cristo, isto é, agora em tudo têm parte pa rte em Cristo. A histó hi stória ria de sua nova vid v idaa é como com o que qu e a co-história co -história de Jesus Jes us Cristo (Rm 6.3-5). E porque na fé permitem que esse evento crístico se realize neles, também podem, como redimidos, alegrar-se inteiramente com a pers pectiva pect iva da consum con sumaçã ação o (Tt 3.53.5-7; 7; 1 Pe 1.3s 1.3s.) .).. Para que essa fé permaneça e preserve os crentes na nova vida, o Batismo institui a comunhão dos batizados, a comunidade. Pelo Batismo eles tornaramse corpo de Cristo ou um templo, no qual estão tão intimamente unidos a Cristo pelo pe lo seu ato salvífico, salvífico, que també ta mbém m pode p odem m ter comu co munh nhão ão entre e ntre si, si, na qual a nova 89
vida cria para si um espaço. Nela devem estar sob o amor, de maneira que um membro ajude a carregar o outro e se lhe torne um auxiliador para a vida. Como comunidade, são constantémente ouvintes da Palavra e reúnem-se para oração e louvor. A nova vida não é uma vida desarraigada. Ela sempre precisa nutrir-se das dádivas que Deus oferece a sua comunidade. Por seus cultos, a comunidade torna e retorna a colocar-se do lado de Deus num mundo hostil a Deus. Na comunidade dos batizados se tornam visíveis justamente o senhorio de Deus e a vida nova a ele associada (Hb 9.4; Ef 4.13; Fp 3.12; GI 3.27). Tornar-se crente, portanto, é apenas um alvo preliminar. O próximo passo é viver como crente na comunidade, e nela e com ela servir ao Senhor. Com isso está decidido que o reino de Deus não pode consistir apenas in actu. Palavra da aliança, sinal da aliança são algo constitutivo. Com isso, naturalmente, não estamos dizendo que o reino coincida com a comunidade. Abstraindo do fato de que também entre os batizados há hipócritas, o reino de Deus é bem maior do que a Igreja empírica. Esta nunca pode ser mais do que uma forma preliminar ou um estágio intermediário. Se ela considerasse isso, certamente se orientaria mais pelo reino vindouro e não se exauriria no stalus quo eclesiástico.
15. Santa Ceia e missão Para nutrir a nova vida criada no Batismo, preservar os crentes nos dons salvíficos, fortalecer sua comunhão e estreitar sua união com o Senhor, Cristo instituiu sua Ceia como Ceia da Aliança. No entanto, seria insuficiente entendêla apenas como meio de edificação. Também a Ceia tem caráter missionário. P o r m e i o d o a to d a C e ia , J e s u s n ã o q u e r e x p l ic a r so m e n t e o s e n t i d o d e s u a morte e revelar a destinação universal da aliança que se fundamenta nele, mas quer também comprometer os participantes, ao comerem o pão c tomarem o vinho, com a fidelidade e posterior extensão aos muitos. Neste sentido pode-se c o n s i d e r a r a C e i a c o m o a h o r a d o n a s c i m e n t o d a m i s sã o e n t r e o s g e n t i o s .101
Mais importante do que essa muito arriscada ênfase na Santa Ceia nos parece ser o fato de ela separar nitidamente a comunidade da Ceia do mundo e do povo com sua religião. Ela não é apenas a expressão da comunhão mais íntima do Senhor glorificado e vindouro com os membros de seu corpo, ela não efetua apenas comunhão entre os membros baseada no perdão, de manei ra que seja formadora de com unidade no mais alto grau, mas separa os crentes das demais pessoas. Entre todos os povos a refeição conjunta expressa a comu nhão daqueles que têm a mesma fé e que, em virtude do perdão, vivem em paz uns com os outros. Na Ceia se torna evidente que a comunhão com Cristo exclui qualquer outra comunhão. Por isso Paulo pôde, de acordo com 1 Co 10 e 11, usar a Ceia para combater do modo mais rigoroso o gentilismo, a comu nhão com os demônios e, assim, o outro reino. 101 Ibi d., p. 40.
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Ao mesmo tempo, através da Santa Ceia a comunidade se torna constan temente uma comunidade confessante. Por meio dessa celebração ela procla ma ao mundo a revelação que aconteceu uma vez por todas (1 Co 11.26). Por tanto, também os dons de Deus nos sacramentos têm o seguinte aspecto du plo: servem à salvação do ser humano e, ao mesmo tempo, são o conteúdo do testemunho dos salvos. Por isso os sacramentos são de grande importância para a missão entre os povos 102 . •
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16. A Igreja - uma grandeza sui generis Todos esses meios da missão, esses dons de Deus, separam a comunidade de seu ambiente. É um mistério o fato de, através deles, a Igreja influenciar de modo mais incisivo seu ambiente justamente quando ela mesma nada mais quer ser do que uma comunidade do Senhor surgida através dos meios da missão. Quanto mais deseja ser isso e somente isso, tanto maior sua influência sobre o mundo. Através de seu testemunho, os povos vão sendo cristianizados aos poucos. Por isso surge aqui a pergunta: qual a relação da Igreja com o povo depois de este ter sido cristianizado? Também quando todos os membros de um povo são batizados, inclusive na Igreja nacional, não está eliminado o limite entre Igreja e povo, pois a divisória não separa apenas cristãos e não-cristãos, mas fé e descrença, portan to atravessa a comunidade. Por causa do pecado, que tem sua influência tam bém na comunidade, sempre haverá joio no meio do trigo. Por isso, também num povo cristianizado, a comunidade sempre deverá traçar os limites quando estes não se expressarem por si através de sua vida. Ela se confronta com seu povo, tentando sempre conquistar os mornos e indiferentes, procurando atraílos para dentro da nova vida. O limite mais marcante, porém, se estabelece pela disciplina, que, aliás, nunca deve ser entendida como castigo, mas como um meio do amor. Ela não consiste numa atividade legalista, mas é poimênica em sua forma concreta. Por sua disciplina, a comunidade não se confronta apenas com a descrença, mas ela própria sempre se congrega em torno de seu Senhor. Por isso a disci plina é, ao mesmo tempo, expressão do testemunho. Não surpreende, pois, que disciplina e missão estejam intimamente inter-relacionadas. Onde, por meio da disciplina, se conserva viva a consciência de que os seres humanos têm que ser salvos, a comunidade também não terá dificuldade em confrontar-se com o mundo no apostolado. Por outro lado, também a missão preserva na comuni dade o desejo de preocupar-se com os que andam no engano e na indiferença.
102 W. FREYTAG, Die Sakram ente auf dem Missionsfeld, Evangelische Missionszeitschrifi, 1940.
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Capítulo 5:
A comunidade da salvação 1. Com unidade e rein o de Deus Portanto, o Senhor congrega seus crentes em sua comunidade e nela os preserva em seu serviço por meio de Palavra e Sacramento. Assim a comunida de se torna portadora da revelação no mundo. Ela possui algo que outros não têm. Conhece a vontade de Deus, o poder da oração e tem o dom da vida eterna. Através do Batismo, essa comunidade agora também recebe a autori dade para um testemunho de Deus aos semelhantes. Para isso Deus também lhe dá os dons. Deus não força a ninguém em sua nova criação. Ele começa com algo que ele próprio colocou no ser humano através de sua criação, e agora usa esse dom por meio da atuação do Espírito em favor da comunidade e para o bem das pessoas. Por isso existe uma diversidade de dons e capacidades na comuni dade. Nenhum desses dons, porém, deve servir para erguer a um e escravizar a outro. No reino de Deus essa lei do mundo está abolida. Quanto mais dons alguém recebeu de Deus, tanto mais está chamado para servir e testemunhar. Tudo que podemos fazer no reino de Deus é expressar a gratidão a Deus devolvendo-lhe, no serviço, os dons que ele nos deu. Pelo Batismo também nos tornamos cidadãos do reino. Não devemos, porém, incorrer no erro de querermos identificar a comunidade com o reino. Temos que estar cientes de que, por enquanto, o reino ainda está oculto entre nós. A comunidade faz parte do reino, mas ela jamais o representa em sua amplitude, plenitude e glória. O reino excede em muito a comunidade, por que dele fazem parte as igrejas de todos os tempos, os anjos e todo o mundo de Deus. Não obstante, a comunidade tem o privilégio de estar incluída (Ap 1.6). Não se deve esperar que o reino de Deus possa ser tornado visível pela comu nidade e que tudo que a comunidade faz e representa fosse expressão do reino de Deus. Na medida em que Satanás tem permissão de penetrar na comunida de, ela também ainda pertence ao outro reino; mesmo assim, também o reino de Deus está presente nela, se ela vive na fé na morte reconciliadora e na ressurreição. Na fé e no testemunho se revela a vitória de Jesus Cristo, e, não obstante, ela está oculta na comunidade, porque só os olhos da fé podem vê-la. Por mais que o reino ainda esteja oculto pela fraqueza da comunidade e pela alteridade do agir de Deus na comunidade, ela pode, mesmo assim, sentir que ele é um reino de poder, porque cria nova vida nos que chegaram à fé (1 Co 92
4.20). Portanto, o reino está presente na comunidade e, por conseguinte, entre as pessoas na medida em que Deus atua diretamente e as pessoas se deixam chamar a ele. Estará presente, porém, em plenitude somente quando Jesus Cristo voltar com poder (Mc 9.1). A comunidade vive sempre num estágio preliminar do reino. Por isso seu testemunho e serviço devem encontrar-se sob o signo do reino vindouro e ser prestados na esperança.
2. A comunidade do apostolado Tendo recebido o dom do Espírito, a comunidade está chamada a teste munhar a favor do reino vindouro. Toda pessoa batizada tem o dever de dar esse testemunho e está autorizada para isso. A tensão entre missão e Igreja jovem só se pôd e instalar porque a missão não tomou a sério os dons do Batis mo, negando assim também aos batizados direitos iguais para o serviço. A missão não havia compreendido que o Batismo confere aos cristãos gentílicos os mesmos dons que possuem os outros membros no reino de Cristo e que, conseqüentemente, também têm os mesmos direitos e deveres. Por isso o fato de as igrejas jovens não terem sido educadas e admitidas para o trabalho da divulgação do reino por parte das missões constituiu-se numa verdadeira usurpação dos direitos e nu ma subordinação das comunidades jovens. Foram excluídas do trabalho missionário, como se o reino de Deus dependesse da comprovação de certo nível de cultura! Dessa maneira necessariamente a mis são se apresentava como privilégio da cristandade antiga e, conseqüentemen te, como a expansão eclesiástica do Ocidente. Muitas das acusações contra a missão não teriam surgido, se esta tivesse compreendido que no serviço missi onário e, concomitantemente, no apostolado se expressa a vida da comunida de como membro do corpo de Cristo. Se a comunidade não estiver permeada do apostolado, se lhe for negada a autoridade para o testemunho e se não lhe for concedida a liberdade para o serviço, ela não pode devolver os dons que Deus lhe conferiu. Por isso está fadada a definhar em sua vida e a lutar permanentemente pela manutenção desses dons. Porque o segredo desses dons consiste no fato de se manifestarem somente onde podem cumprir uma tarefa. A conseqüência é que a comunida de ouvinte e celebrante pede constantemente por esses dons e não se dá conta de que Deus atende as orações superabundantemente quando sua fé pode transformar-se em obediência. Por isso ser assim, temos um cristianismo ver dadeiramente ávido de gozo, que se exaure em edificação, mas jamais vem a ser um edifício vivo. Enquanto o serviço do ministério só acontece sob o ponto de vista do atendimento da comunidade, ele não pod e ter influência para fora. Por essa razão também se percebe tão pouco do poder do reino. Por mais que o ouvir da Palavra e o louvor da liturgia façam parte do verdadeiro culto e, conseqüentemente, da fé, eles só alcançam sua plenitude e seu alvo caso se deixarem usar para o envio. Onde se impede a possibilidade do serviço e, portanto, da obediência, a vida definha. 93
O serviço da comunidade corresponde a sua salvação e a sua posição no mundo. Ambas as coisas se impõem a partir da escatologia, são determinadas a partir da volta de Cristo e do juízo. A salvação existe porque há juízo e condena ção. Por isso a comunidade sempre tem que chamar a atenção para os meios através dos quais a salvação é conseguida. Em Jesus Cristo, ela é o fato decisivo na história da humanidade. Por isso somente podemos cumprir o testemunho do reino através da proclamação da promessa do reino afirm ando que ele já veio. Com isso, pelo conhecimento da salvação, a comunidade está colocada no serviço da revelação e da salvação. Por meio de Jesus Cristo, ela se tornou uma comunidade da salvação, e por isso também pode levar a salvação aos povos.
3. A testemu nha Por meio do Batismo, os cristãos recebem o mesmo caráter das testemu nhas que já existia na cristandade primitiva. Evidentemente, hoje não pode mos mais ser testemunhas de fatos como se fôssemos testemunhas oculares. Podemos testemunhar somente o que nos é dado na fé. A fé, porém, é a certeza do que se espera. Por isso os cristãos são autênticas testemunhas da verdade, para as quais aquilo que, segundo a Escritura, aconteceu por meio de Cristo se tornou uma certeza incontestável, portanto uma convicção própria. Dessa ma neira podem transmitir essa convicção, viva por sua fé, como verdade acontecida em Cristo e testemunhá-la perante o mundo. Quando, porém, a comunidade testemunha a verdade, ela tem que ter consciência de que, ao confrontar o mundo com a verdade, ela própria está sendo colocada perante a pergunta existencial. Justamente no testemunho da verdade se evidencia que, em última análi se, é Deus que promove sua missio e usa a comunidade para o serviço da salva ção, pois é ele que, através de sua revelação, en tra em juízo com os seres huma nos. Toda proclamação séria leva o mensageiro a uma situação de julgamento. E nela que ele tem que atuar como testemunha de Deus. Isso resulta em juízo sobre as pessoas. Deus contende com as pessoas (Is 43.9-13; 44.7-11). Ele leva os povos ao tribunal, onde se deverá decidir se ele é Deus. Nesse julgamento os membros da comunidade de Deus devem ser suas testemunhas (Is 43.10; 44.8). O testemunho da comunidade transforma o ouvinte da mensagem em culpa do, ele passa a ser réu. Isso se torna evidente sobretudo na paixão de Jesus e nos processos judi ciais a que os apóstolos foram submetidos (At 4.5; 7.12). Primeiramente os mensageiros sempre aparecem como réus. Visto, porém, que não têm nada a declarar senão apelar ao Senhor e sua revelação, eles acabam sendo os acusa dores, de maneira que os juízes passam a ser os julgados. Portanto, em última análise é Deus que entra em juízo com os seres humanos através de sua comu nidade e que pronuncia a sentença. Desse modo a mensagem do evangelho se torna já aqui, no juízo que executa, a mensagem da salvação. 94
4. A comunidade do sofrimento A contenda de Deus com os seres humanos é, como todo o seu agir, um sinal de seu governo régio com eles. Como Rei e Senhor, ele poderia destruir os seres humanos. Antes, porém, exige deles uma prestação de contas. Tam bém aqui ele escolhe primeiramente o caminho da loucura e da fraqueza, que, também neste caso, se revela mais sábia e salutar que qualquer sabedoria hu mana. Deus entra em juízo com os humanos que ele quer salvar, levando sua comunidade ao sofrimento. No sofrimento da comunidade, porém, transparece constantemente a depravação do ser humano, sua mentira, egoísmo, violência, o poder do pecado e o poder demoníaco reinante. O Senhor da comunidade revela-se ao sofrer ele mesmo com os seus e ao fazer com que nesse sofrimento as pessoas sejam reduzidas a nada em sua maldade e antidivindade. Por isso, pelo sofrimento dos cristãos, sua mensagem e o p róprio sofrimento se tornam um martyrion, uma prova da verdade. Assim a morte redentora de Cristo se torna um testemunho para Deus (1 Tm 2.6). Visto assim, o sofrimento não é uma derrota, c, sim, a mais agressiva acusação que Deus faz contra o mundo e, portanto, o mais violento ataque ao mundo. Os sofrimentos da comunidade são uma prova de que, com sua missio, Deus está obrando de um modo especial para conquistar as pessoas. Nos tem pos de sofrimento, Deus quer usar a Igreja de modo especial como instrumen to do apostolado. Quer avançar um passo em sua história salvífica com os seres humanos. Por isso os tempos de sofrimento são períodos nos quais as promes sas feitas à Igreja se cumprem de maneira especial. Elas capacitam a Igreja a se expor ao sofrimento e a se deixar usar. Faz parte da sobriedade da revelação o fato de que Deus não deixou sua comunidade na ilusão, não tendo prometido que a redenção aconteceria no sentido eudemonístico, de sorte que os cristãos pudessem esperar uma vida boa em virtude de sua conversão. Pelo contrário, deixou bem claro que a comunidade tem que sofrer por amor a ele e ele se revela como o Deus verdadeiro justamente no fato de lhe ter dito isso (Mt 10.17ss.; Mc 13.9-13; Jo 16.1ss.). Também nesse ponto ele entra em choque com outras religiões que pro metem bem-estar a seus adeptos e vêem no sofrimento uma prova de que a pessoa não tem o favor de Deus. Em todas as religiões gentüicas, a vida é uma efluência da religião, e em quase todas, felicidade é a mesma coisa que salva ção. Deus, porém, não redime do sofrimento. Desse modo confere ao sofri mento um sentido especial em seu plano salvífico, também das pessoas indivi dualmente. Assim transforma o sofrimento em privilégio especial para a co munidade, um sofrer com Cristo (1 Pe 4.12ss.; At 5.41). Sabemos que o sofri mento de muitos também pode ter outro sentido; pode ser causado pelo peca do; pode ser decorrente do envolvimento dos cristãos com seu povo. Não pre cisamos analisar isso agora. Basta saber que o sofrimento da comunidade sem pre tem um sentido especial, porque ela é propriedade e instrumento de Deus. Em última análise, ela não tem outro caminho a seguir do que aquele que seu Senhor trilhou (Rm 8.17). Através desse sofrimento, a comunidade participa do senhorio de Cristo e, assim, se torna uma grandeza escatológica, na qual os 95
sinais dos últimos tempos se revelam com especial nitidez. Kla não está livre deles, mas recebe neles a incumbência de sofrer vicariamente pelo mundo. Ela está reconciliada com Deus, e por isso sempre está a serviço da reconciliação. É precisamente no sofrimento que comprova sua posição especial no mundo e demonstra assim estar disposta a submeter-se a seu Senhor com toda a sua existência. O sofrimento da comunidade tem maior poder de testemunho do que a Palavra isoladamente. Ele se torna um testemunho de atos, uma confirmação da Palavra. Por essa razão os mártires sempre ocuparam o lugar de maior destaque entre as testemunhas. Por isso a fuga do sofrimento sempre foi consi derada, com razão, como apostasia, como negação do Senhor. Negar-se a so frer é a mesma coisa que rejeitar a missão da comunidade. Com isso ela pró pria se separa do corpo de Cristo (Lc 24.14ss.). Por isso a tarefa primordial do ministério eclesiástico é preparar a comunidade para os tempos de sofrimento (At 14.22), como também o Senhor advertiu seus discípulos acerca desse teste munho derradeiro. Nesse sofrimento, a comunidade pode ter a certeza de que o Senhor, que nos precedeu no caminho do sofrimento, lhe concede sua presença de modo especial, para, com ela, levar a missão da comunidade, dentro do contexto da missio Dei, a um resultado especial (Mt 10.20-21; Jo 14.26; Lc 12.1 ls.). Ele o faz estando próximo dela com seu Espírito, expondo-se, assim, repetidamente ao juízo e indo ao sofrimento com a comunidade. É estranho o fato de que a missiologia mais recente, com efeito, fala do sofrimento, tenta esclarecer a situação da Igreja, mas dificilmente chega a falar do significado histórico-salvífico e escatológico do sofrimento. A cristandade de nossos dias teme o sofrimento, continua sonhando com um mundo cristianizado, apela a direitos humanos e liberdade de consciência e procura fazê-los vigorar: para escapar do sofrimento, torná-lo impossível, ao invés de reconhecer sua vocação para o sofrimento. Não há espaço para o sofrimento na necessidade eclesial de segurança, nem no conceito moderno de ser huma no. Também não se coaduna com as idéias que a maioria das pessoas tem do reino de Deus. A idéia do sofrimento se manifesta na teologia contemporânea somente quando se chega a falar do pequeno rebanho, do resto que a Igreja representa rá no tempo derradeiro. Inclusive nesse contexto, fala-se apenas do apostolado, mas não do sofrimento. Com isso surge a pergunta se a referência ao resto, que, sem dúvida, encara a realidade, não acaba sendo igualmente uma fuga para a derradeira possibilidade de existência da Igreja. O Senhor não nos deixou na incerteza sobre o fato de que o mundo questionará constantemente o direito de ser da comunidade. O Livro do Apocalipse mostra de modo assustador o caminho da comunidade pelo mun do. Ela será sempre uma comunidade perseguida, atribulada, sofredora. Sem pre será estranha e peregrinadora no mundo (1 Pe 2.11). Seu protótipo sem pre será o povo de Deus migrante. Justamenle através dessa migração Deus chega ao alvo da missio Dei com sua comunidade, e precisamente nela se evi96
dencia que Deus concede a sua comunidade sua presença todos os dias, até o fim do mundo. Há sobretudo três características da mensagem que tornam a comunidade sem pátria e a fazem parecer perigosa para o governo do mundo: 1) Por causa da posição especial que lhe foi conferida pelo Batismo, a comunidade é uma prova de que ainda existe outro senhor, o Senhor do céu e da terra, ao qual devem servir todos os seres humanos e por cuja vontade devem orientar seu próprio governo. Desse modo a comunidade se torna um testemunho contra uma autoridade que se comporta como se fosse absoluta. Por meio de sua presença e da orientação de sua vida, a comunidade remete constantemente ao único Senhor perante o qual também a autoridade é res ponsável. Com isso ela destrói o sonho de que, em última análise, o bem-estar da comunhão nacional deveria ser determinante e que a comunhão nacional somente pode ser estabelecida dentro dos parâmetros que os governantes esta belecem com base em sua posição. 2) A comunidade é corpo de Cristo e, em virtude disso, tem a comunhão com todos os membros de seu corpo. Quem não se confessa membro da comu nidade do Senhor no mundo inteiro e age contra ela, esse também não pode pertencer ao corpo de Cristo. A comunidade não pode tomar em considera ção juízos nacionais, étnicos e raciais, pelo contrário, tem que destruí-los, se não quiser tornar-se infiel à fraternidade criada pela morte de Jesus. 3) Existe uma responsabilidade eterna e, pelo senhorio de Jesus e sua volta, existe um juízo. O ser hum ano somente pode considerar-se um senhor soberano enquanto a parúsia ainda não é um fato consumado. Quando tenta impedir a pregação de juízo e condenação, somente pode, com isso, rejeitar a Jesus Cristo e sua redenção. Diante da pregação do juízo caem por terra toda auto-redenção, todo niilismo, também toda imbecilização do ser humano. Ela abre os olhos para as verdadeiras inter-relações das coisas. Por essas razões o mundo não tem outra opção do que posicionar-se contra a comunidade e, por meio de rejeição, restrição e combate, levá-la cons tantemente ao sofrimento. Com esses recursos acredita poder impedir a men sagem da comunidade, a proclamação da verdade, que p ara ele é loucura. Deus é tão grande que coloca inclusive essa atitude do mundo a serviço de sua missio. Porque seu go%'erno difere do do mundo, o testemunho da comunidade tem que brilhar mais ainda justamente através do sofrimento. Em última análi se, é neste ponto que irrompe a luta decisiva entre o senhorio de Deus e o senhorio do diabo, que atinge seu auge no anticristo. Nesse embate, que, ape sar de toda a alegria com os sucessos da missão, nos confere a necessária sobri edade, a missão se torna literalmente o oponente do anticristo (2 Ts 2.6). Por isso o sofrimento da comunidade tem que evidenciar-se permanentemente, de modo especial, na missão. A comunidade só é capaz de suportar esse sofrimento e, através dele, exercer corajosamente seu testemunho, porque pode ter a certeza de que Deus a leva ao alvo derradeiro por meio de sua missio. Por meio dessa esperança, a comunidade está interiormente livre do mundo, no qual tem que viver para nele exercer seu testemunho. Ela sabe que, nesses assuntos, não será o mundo
que terá a última palavra, mas o Senhor, que sofre com sua comunidade e que põe termo à luta por meio de sua intervenção. Por isso a comunidade não luta pelo mundo, mas pelo reino, ao qual já pertence pela morte e ressurreição de Jesus. Ela já está tran sportada para o reino celestial (Ef 2.5). Por isso busca as coisas do alto (Cl 3.1) e busca a Jerusalém celestial como sua pátria (Hb 12.22). Com isso está incluída na Igreja de todos os tempos que com ela trilhou esse caminho. Essa fascinante esperança é a razão básica para a atitude da comuni dade. O sofrimento da comunidade desemboca na redenção que está encerra da no estabelecimento do reino por meio de Jesus Cristo. Com ele Deus encer ra sua missio. Então a comunidade cum priu sua missão. Ele pode, então, cantar o hino de vitória dos redimidos, não como comunidade governante, não como comunidade que tem a registrar grandes sucessos missionários, não como co munidade triunfante, mas como comunidade vencida, que tem parte na vitória de Jesus por meio da redenção (Rm 8.3 lss.). Então, porém, também poderá ter parte juntamente com seu Senhor, que em sua missio trilhou o caminho da cruz, em sua glória. A comunhão plena com Deus estará restabelecida. Deus terá chegado ao alvo com sua missio. Na nova criação não haverá mais necessi dade de missio. No entanto, agora, no tempo entre ascensão e parúsia, ela é tanto mais urgente, porque somente ela pode anunciar às muitas pessoas que se encontram fora da com unidade de Jesus o caminho para a comunhão com Deus e salvá-las do juízo.
Apêndice A justificaç ão como força conformadora da missão*
Quando perguntamos pelo sentido, natureza, tarefa e conformação da missão, precisamos investigar sua origem e o mistério último. Somente se fi zermos isto poderemos superar a crise na qual hoje se encontram a Igreja e a missão, e encontraremos o rumo e o objetivo de nosso trabalho. O trabalho que se segue será uma tentativa com esta finalidade.
1. A situação Nenh um setor vital da Igreja se encontra hoje numa crise interna e externa tão grave como a missão entre os gentios. Porém só se pode passar por esta crise sem
lhe dar atenção, caso não se tenha percebido que através dela a própria igreja é levada à reflexão. Pois a missão é o sismógrafo da vida eclesial, onde se esboçam com a maior intensidade as catástrofes que ameaçam a Igreja. Em vista da atual auto-segurança geral da Igreja, é preciso dar boa atenção a ela. Na missão a Igreja pode reconhecer quão frágeis são todos os amparos humanos dentro do “mundo rebelde”, no “atua l éon perverso" (G1 1.4). Os estados nacionalistas e
totalitários do leste, com sua cosmovisão anticristã e seu messianismo político, não se importam com garantias jurídicas ou financeiras para a Igreja. Eles negam à missão e às igrejas novas o direito à divulgação do evangelho, rejei tam Deus como Senhor e Juiz e estigmatizam seus servidores como agentes da política expansionista do capitalismo ocidental. A partir daí, a Igreja e a mis são precisam deixar-se perguntar constantemente se trilharam o caminho cor reto, em conformidade com a vontade de Deus, e como, nesta situação, podem conformar sua tarefa* 1.
* Fonte: Die Rechtfertigung ah gestaltende Kraft der Mission, 1952. 1 M. C. A. WARREN, T he Missionary Obliga tion o f th e C hurc h, 1RM, 1950, p. 393s.; W. FREYTAG, Der grosse Auftrag, Stuttgart, 1943.
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Soma-se a isto, em segundo lugar, algo muito mais grave: as igrejas ou ainda não estavam totalmente conscientes de sua tarefa missionária ou se tor naram inseguras quanto a ela. Ela é contestada hoje em suas próprias fileiras num duplo sentido. Isto se torna especialmente claro para nós a partir do segundo dos escritos abaixo indicados. Para falar primeiro a partir da frente de batalha, isto acontece por parte das igrejas novas, que, em sua aspiração por autonomia, se deixam determinar em suas ações também por idéias nacionais e fazem depender de seu consentimento um trabalho independente das igre jas antigas, a colaboração ou cooperação da missão no campo missionário, ou que, para assegurar sua existência, como na China, têm de renunciar a toda cooperação com igrejas estrangeiras. Neste processo elas dificilmente estão conscientes de que assim se tornam, em meio a uma esmagadora maioria pagã, senhor da ordem missionária e questionam a irmandade cristã. Em relação a algumas delas precisa-se perguntar se elas conhecem o dei divino (= “é necessá rio”) (Mc 13.10) e se sabem que “autonomia” não é um conceito bíblko-teológico, mas que a koinania (= comunhão) ê a definição da natureza da Igreja em vista do mundo não-cristão e frente a ele. O relatório de Whifby*, porém, prova também de modo inequívoco que a causa primordial para a atual situação crítica da missão deve ser procurada nas igrejas antigas e em sua teologia. Foram elas que, no marco da ideologia do Corpus Christianum (= cristandade), limitaram a tarefa missionária da Igreja, se pararam o ministério eclesiástico e o missionário e relativizaram a pretensão do evangelho. Compreendeu-se em medida demasiado diminut a que somente se pode ser Igreja deJesus na medida em que se deixa que se seja usado por seu Espírito para anunciar o evangelho como a revelação da verdade divina universal em todo o mundo da descrença e para levar a salvação única de Deus a todas as pessoas. Contentamo-
nos demais com uma teologia como ciência, sem considerar “que toda teologia cristã, conforme sua natureza mais íntima, é história bíblica”, i. é, proclamação dos fatos salvíficos e, assim, continuação da história da salvação entre os povos2. Por isso, a missão só pôde ser uma expressão da vida da Igreja contrarian do os fatos fatídicos há pouco mencionados. A comunidade missionária, como a parte mais ativa de tais igrejas, precisou constantemente procurar meios e motivos para justificar sua atividade e, como “tropa de elite” da Igreja, levar os cristãos negligentes quanto à missão a conscientizar-se de süa tarefa. É signifi cativo como, nestes motivos, também sempre se refletem a teologia dominante em cada época, a situação edesial em seu todo e uma parte da história mundi al5. Isto indica até que ponto a comunidade missionária precisou se adaptar às * N. do E.: Conferência Internacion al de Missão realizada em Whifby, Canadá, em 1947, e promovi da pelo Co nselho Internacional d e Missão. Al surgiu um a nova relação en tre igrejas-mãe e igrejas novas, no sentido da parceria na proda ma ção do evangelho no mun do em pé de igualdade como sinal do Reino, t
O. CTJLLMANN, Christus und die Zeit, Zollikon, 1946, p. 19.
3 H . SCHÀRER, Die Begründung der Mission in der katholischen und evangelischenMissionswissenschaft, Zollikon, 1944, p. 36.
correntes dominantes e estava sujeita a elas. Aqui posso me contentar em des tacar apenas alguns desses motivos a fim de esboçar a situação, bles podem ser encontrados em qualquer obra maior de missiologia45.O motivo colonial, que impulsionava principal mente missões no exterior, mas também influenciava as missões alemãs, foi empregado já pelos carolíngeos e remonta, no final das contas, à concepção do cuius-regio-eius-religio (= a religião é aqnela da pessoa que exerce o governo). Ele perdeu sua força em virtude da dissolução dos impérios coloniais que já ocorreu e que continua em grau crescente. O motivo pielisla da compaixão pelos “pobres pagãos” e sua redução individualista e sub jetiva do conceito de reino de Deus por um lado não têm mais influência por causa de sua ligação com a psicose cultural dos “superiores” e, por outro, por que hoje os próprios círculos piedstas são portadores de fenômenos próprios da Igreja nacional, de modo que ele não mais é determinante. O motivo cultural do racionalismo e idealismo, com seu compromisso de os povos “superiores” levarem aos “inferiores” a cultura cristã e, com isto, o próprio cristianismo foi um grande fiasco, porque essa cultura “cristã” se revelou no mundo corno uma cultura bárbara e a pessoa “cristã” ocidental revelou-se como a mais brutal das pessoas. Além disso, hoje todos os povos podem participar da cultura e civili zação sem ter que adotar o cristianismo. Com isto, toda a prática missionária foi fundamenta]mente modificada, pois, enquanto que até agora se podia fazer missão “de cima para baixo”, hoje lida-se com povos que estão zelosamente atentos à sua igualdade de direitos e que reconheceram que a “cultura cristã” está sob o juízo exatamente da mesma maneira como todo o mundo ociden tal'”. O motivo confessional com seu objetivo da plantatio ecdesiae (= implantação da Igreja) não pode mais se impor numa época na qual se pensa que o testemu nho da Igreja contra a frente comum da descrença somente pode ser um único e numa época na qual em círculos missionários ocasionalmentc se fala com tanto entusiasmo do ecumenismo, que todo aquele que ousa enfatizar a confis são a partir do Novo Testamento é considerado “inútil” para o ecumenismo. Como único fundamento sustentável resta a “ordem missionária”junto com o motivo da obediência. Onde, porém, a missão somente ainda é obediência a uma ordem, ela não é mais o que deve ser a partir do Novo Testamento, ou seja, fruto da fé6. É como se Deus tivesse destroçado tudo para a missão de sua Igreja. Trata-se de uma situação muito crítica, mas também muito fecunda. Está aí o kairós para que o juízo comece pela casa de Deus (1 Pc 4.17). Onde, porém, há kairós e juízo, há também graça de Deus, senão no Novo Testamento tempos de 4 J. RICHTER, Evangelische Missionskunde, vol. II, Leipzig, 192*7; M. SCI ILUNK, Die Welt-mission iter Kirche Christi, Stuttgart, 1951. Em vista da situação atua) tratado em: W. FREYTAG, Vom Sinn der Weltimssion, EMZ, 1950, p. Iss.; A. G, HERBERT, The Missionary Obligation o f the Church, p. 385ss.; K. Tracey JONES, The Missionary Vocation, IRM, 1951, p. 403s. 5 K. HARTENSTEIN, Zur Neubesinmmg über das Wesen der Mission, Deutsche, evangelische Heidenmission, 1951, Hamburg, p, 7ss.; A. G. HERBERT, The Mission of die Church, IRM, 1951, p. 383. ö A. G. HERBERT, op.
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sofrimento não poderiam ser designados com o termo kairos7. É o tempo no qual Deus, para a salvação das pessoas, quer exortar as igrejas de modo especi al e chamá-las à reflexão. Sua voz já foi ouvida muitas vezes na missão. Já em 1938 a delegação alemã em Tambaram não assinou a declaração conjunta da conferência, mas redigiu uma palavra a partir da escatologia, o que naquela ocasião dificilmente foi entendido8. O KirchenkampJ* provocou a reação princi palmente de teólogos suíços910.A terrível catástrofe da Segunda G uerra Mundi al e suas consequências na Alemanha e no exterior chamaram o mundo da missão a uma nova reflexão e trouxeram a convicção de que, no fundo, nessa crise estaria em pauta o problema “ecológico” Igreja-povo™, que somente pode ser entendido e resolvido a partir da escatologia e em vista do senhorio de Cristo. A Igreja viveria como povo de Deus entre os povos na paroikia (= “es trangeiro”), que é o âmbito de seu testemunho, e entre os tempos, a saber, entre ascensão e regresso, e como tal teria somente uma tarefa, ou seja, a de testemunhar ao mundo e comunicar-lhe por meio de sua vivência que Jesus Cristo é o Senhor, ao encontro de quem se deveria ir. Em torno dessas idéias centrais gravitam, em vista da atual situação da missão, as exposições que querem chamar a Igreja à reflexão11. No fundo, elas não são nada mais do que uma nova teologia da história. Elas têm seu valor no fato de fazer valer novamente importantes pontos de vista neotestamentários sobre a posição correta da Igreja dentro do mundo e conscientizar insistente mente a Igreja de sua tarefa salvífica. Porém elas só poderão levar à atividade missionária se a cristandade souber e anunciar ao mundo que o Senhor não vem somente a fim de consumar sua comunidade e assumir seu senhorio sobre toda a criação, mas também para julgar o mundo - não apenas nos julgamen tos do mundo, mas no juízo sobre o mundo, onde a todos será revelada a ira de Deus (1 Ts 1.9ss.)12. Somente sob este saber a cristandade poderá reconhecer 7 O. CULLMANN, op. cit., p. 33s. 8 M. SCHLUNK, Das Wunder der Kirche, Stuttgart, 1939, p. 206s. * N. do T: Termo técnico u sado pa ra designar o conflito intra-eclesial entre a Igreja confessante e a ariana duran te a dita dura nazista. 9 H. SCI IÁRER, op. cit.; J. DÜRR, Sendende und werdende Kirche in der Missionstheologie Gustav Warnecks, Basel, 1947. 10 J. C. HOEKENDIJK, Kerk en Volk in de Duitse Zendingswetenshap, s. d. e s. ed., p. 212ss. 11 W. FREYTAG, Mission im Blick auf das Ende, EMZ, 1942, p. 321ss.; Vom Sinn der Weltmission, EMZ, 1950, p. Iss; K. IIARTENSTEIN, Mission un d Eschatologie, EMZ, 1950, p. 33ss.; Zur Neubesinnung über das Wesen der Mission; G. STÄHI.IN, Die Endschau Jesu u nd die Mission, EMZ, 1950, p. 97ss.; G. ROSENKRANZ, Weltmission und Weitende, Gütersloh, 1951; G. STÄHLIN, Kirche, Mission, Eschatologie in der Sicht des Neuen Testaments, Lutherisches Missionsjakrtmeh, 1951/52, p. 21ss. 12 O juízo sobre o m undo é mencionado nos escritos citados: em FREYTAG, Vom Sinn der Weltmission, p. 5s.; STÄHLIN, op. cit., p. 135; ROSENK RANZ, op. cit., p. 17s.; em contr apart id a, HARTENSTEIN, Zur Besinnung übe r das Wesen der Mission, p. 13, só toca de passagem neste assunto. Visto que o senhorio de Gristo é um senh orio n a e por meio de sua comunidade, teme-se que, ao enfatizar o juízo, se acentue excessivamente a alma individual. Contudo, d e que o utra forma se realizaria o senhorio de Cristo, senão q uan do a pessoa individual sc converte em vista do juízo? O problema surge somen te quando se esquece de que a justificação de fato exige a fé pessoal, mas a santificação sc realiza na comunidade.
sua própria culpa, chamar as pessoas ao arrependimento, procurar perdão e despertar o anseio por perdão. Somente a partir do juízo do mundo a escatologia torna-se existencial, como pretende Rosenkranz1*. Este saber é dado pela mensagem plena da lei e do evangelho e será sempre uma pedra de toque para verificar até que ponto nós mesmos ainda lemos a compreensão reformatória do evangelho. Se, pelo contrário, a escatologia se tornar autônoma
através da acentuação do senhorio de Cristo que se realiza já agora, então não somente faltará, com o ensinamento sobre o juízo, o pressuposto para isto, mas acontecerá o que Althaus expressa: a comunidade de Jesus teria que desesperar, pois ela não pode reconhecer o senhorio de Cristo e precisa assistir ao reino de Deus diminuindo nos povos cristianizados1314. A missão e a escatologia têm suas raízes nos fatos salvíficos já acontecidos e seu alvo na salvação das pessoas diante da condenação15. A perdição das pessoas é o pressuposto de ambas, porque Deus, em sua compaixão, quer salvar as pessoas. Este ponto de partida decerto é mencionado nos escritos citados e está por trás deles, porém não leva à confor mação do tema; aliás, é em vão que se procura na literatura de missão por uma fundamentação minuciosa da missão a partir dajustificação16. A alegria missionária,
porém, somente pode crescer lá onde, em vista do juízo, os fatos salvíficos se tornam eficazes. Isto nos mostra claramente uma palavra como Rm 14.9. Portanto, preci
samos tentar fundamentar a missão a partir dajustificação.
2. A missão como obra de Deus Todos os motivos de missão citados descrevem a missão, em maior ou menor medida, como uma obra executada por seres humanos para seres hu manos, mesmo que a descrevam como uma obra cristã17. Todavia, na crise atual Deus quer nos lembrar seriamente que a missão, embora seja também tudo isto18, primordialmente é e continuará sendo de modo intrínseco Sua obra. Ela é obra de Deus que tem apenas um objetivo, qual seja, salvar as pes soas diante da perdição eterna. A condenação eterna, para a Sagrada Escritu ra, é a mesma realidade que a própria redenção, pois sem a primeira a última seria incompreensível. Os seres humanos estão perdidos em seus pecados. Dis to nós tomamos conhecimento não somente a partir de Rm 1.18-3.20; a idéia 13 G. ROSENKRANZ, op. cit., p. 6. Essas idéias, no en tanto, não são detalhad as. 14 P. ALTHAUS, Die letzten Dinge, Gütersloh, 1926, p. 121-123. 15 O. CULLMANN, op. cit., p. 70ss. 16 P. ex., G. WARNECK, Evangelische Missionslehre, Gotha, 1892, p. 111. 17 A. KÖBERLE, Die Neubesinnung au f den Missionsgedanken in der Theologie der Gegenwart, Leipzig, p. 8s. 18 K. HARTENSTEIN, Zur Neu besinn ung ü be r das Wesen de r Mission, p. 18s.
de que Deus realizará seu dia do juízo e cumprirá sua sentença perpassa tão intensamente a Sagrada Escritura que Paulo torna o juízo conteúdo de sua pregação missionária, mesmo lá onde nós seríamos mais cautelosos (At 17.31; 24-25). A doutrina dojuízo era uma parte da instrução batismal (Hb 6.2). Assim, a condenação e a redenção foram estreitamente relacionadas uma com a outra. Por isto o Senhor também viu sua missão associada ao juízo (Jo 3.22-29) e os apóstolos levaram a efeito a pregação do juízo ordenada a eles (At 10.42). O saber acerca da perdição dos seres humanos era a força motriz de sua ação, que os estimulava a apressar-se (2 Tm 4.1s.). Por conseguinte, se há um motivo de missão fundamentado no ser huma no, então ele só pode estar fundamentado em sua perdição e não em sua capaci dade de crer em Deus, como seguidas vezes foi exposto. Ora, obra de Deus a missão se torna pelo fato de ele, como Criador e Mantenedor, não se dar por satisfeito com essa situação dos seres humanos, mas querer deixar a graça ter a primazia sobre o direito e, por isto, buscar a redenção das pessoas. Assim a mis são se torna obra do próprio Deus, resolvida em sua economia salvífica antes que o fundamento do mundo estivesse posto. “Deus a todos encerrou na deso bediência, a fim de usar de misericórdia para com todos” (Rm 11.32). Essa misericórdia substitui sua ira pela proclamação do evangelho entre todos os povos conforme o kairos determinado por ele para cada povo, como se depreende de forma especialmente clara de Rm 9-1119. Por isso, a missão é misericórdia divina e condução divina. Ele faz com que
sua salvação seja oferecida a todas as pessoas, para que todas as que nele crêem não se percam (Jo 3.16; Rm 1.16). Neste “todas” está incluída toda a humanida de e, com isto, na proclamação da salvação veda-se toda limitação humana20. Assim, a missão é obra do amor paterno do Criador, ancorada no universalismo salvífico da Bíblia, vinculado ajesus Cristo, na promissio universalis (= promessa universal) como a causa salutis (= causa da salvação) também dos pagãos21. Nes te ponto é colocada a maior ênfase em todas as fundamentações da missão, contudo em geral sob um aspecto apologético, particularmente em Warneck22. Hoje isto não deveria mais ser necessário, pois, se o evangelho vem de Deus, então ele também pertence a todo o mundo de Deus23. Precisamente na propaga ção de sua palavra Deus se mostra como o Senhor do mundo e sua Igreja como “católi ca", da qual também nós queremos fazer parte.
A fim de salvar as pessoas da perdição e fazer com que o evangelho lhes seja anunciado, ele mesmo faz missão, torna a oferta de salvação missio dei (=
19 Por isso eu tam bém não rejeitaria o períod o colonial com o mesmo rigor com que isto é feito hoje: H. DÜRR, Die Stellung de Mission zum “koloniale n Na tionalismus”, EMM, 1947, p. 170ss. 20 A. SCHLA1TER, Die Verkündigun g der Rec htfertigu ng unter den Völkern, Essen, 1935, p. 4. 21 A. KÖBF.RLE, Rechtfertigung und Heiligung, Leipzig, 1929, p. 94. 22 G. WARNECK, Evangelische Missionslehre, vol. 1, Gotha, 1892. 23 A. G. HERBERT, The M issionary Obligatio n o f the Church, p. 386.
missão de Deus) e com isto torna seu amor realidade entre os povos. Ele mes mo assume o envio. Torna seu Filho apostolos (= missionário) (Hb 3.1) e, na plen pl enitu itude de do tempo te mpo (G1 4.4), 4.4), o envia e nvia ao m un undo do como revelado reve ladorr de seu s eu amor am or (1 Jo 4.9). Com isto, sua compaixão excede todos os limites humanos. É como disse um africano: “Deus tinha apenas um único filho e a este fez com que se tornasse missionário”24. Através desse envio Deus se mostra como verdadeiro e misericordioso, pois seu Filho é dado a Israel por causa da veracidade, como cumprimento de todas as promessas, porém aos gentios por causa da miseri córdia por bondade imerecida (Rm 15.8s.). Nele a prom promiss issio io unive universali rsaliss encon tra sua confirmação e os gentios são incluídos na comunidade de Deus (Ap 7.9). Portanto, Deus não faz mais nenhuma distinção entre os povos. Assim como, na história de Israel, do Servo de Deus, toda a história da salvação se concentra em direção àquele Um, que se torna Redentor e Representante dos seres humanos, da mesma maneira ela caminha, desde então, “de modo inver so a part pa rtir ir do Um, Um, progressivamente, progressivamente , pa para ra os muitos” muitos ”25,62 para que os crentes, o mund mu ndo, o, sejam bem-a be m-aven ventura turado doss através atravé s deste de ste Um (Jo 3.17)2t>. Deus mesmo me smo tes temunha tem unha ao mundo m undo o sentido e o iníci inícioo dessa missio, bem b em como com o seu se u fim. fim. Assim Assim como, por ocasião da entrada do enviado no mundo, anjos se tornam seus arautos e anunciam o início da missio dei “a todo o povo” (Lc 2.10), também a missio que ele faz levar a efeito por meio de sua comunidade será concluída através através dos arautos da última ú ltima missio dei, quando qu ando o anjo anjo correrá co rrerá apressadamente apressadamente pelos povos com um evangelho evange lho ete e terno rno,, a fim de lhes da darr a últim ú ltimaa possibilida possib ilidade de de conversão, de redenção da perdição (Ap 14.6). Assim, vivemos no grande tempo da graça, que iniciou com a vinda do Apóstolo de Deus e que terá fim através de seu regresso. É o tempo da longanimidade e paciência de Deus. Ninguém poderá acusá-lo de condenar pessoas pess oas qu quee nã nãoo tiveram tive ram op opor ortu tuni nida dade de de encontrá-lo. Paciente Pac ienteme mente nte ele car regou os vasos da ira, “a fim de manifestar a riqueza de sua glória em vasos de misericórdia, que para pa ra glória preparou de antemão. Como tais ele ele nos chamou não apenas dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (Rm 9.23s.). Assim ele torna os gentios co-herdeiros e membros do mesmo corpo (Ef 3.6). Compaixão, gratia increata (= graça incriada), é, portanto, a causa primordial de sua missio. Provavelmente ninguém entendeu isso melhor e o descreveu de forma mais clássica do que Lutero em seu hino: “Agora alegrai-vos, queridos cristãos juntos”. Com isso isso o trabalho traba lho missionário missionário está acima de qualquer qualque r dúvida humana, qualquer qualq uer limitação, limitação, suspeição e superficial superficialização. ização. Ele Ele não é paixão de determi deter mi nados círculos círculos,, mas obra obr a do própri pró prioo Deu Deus, s, pela qual hoje ele leva leva sua comuni dade ao trabalho, a fim fim de exercer exerce r sua misericórdia para pa ra com os perdidos. Não Não
24 W. FREYTAG, Mission als Tai der Liebe, EMZ, 1941, p. 195; M. JÄGER, Die Vollm Vollmac acht ht Jesu, München, 1938, p. 1Iss.; G. STÄHLIN, Engclwelt und Weltmission, EMZ, 1949, p. 22s. 25 O. CUI.LMANN, op. cit., p. 100s. 26 K. S. LATOURE ITE, What Can Wc Expect in the World Mission?, 1RM, 1951, p. 142.
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é por nosso intermédio, intermédio, mas pelo próprio Deus que sua graça vem aos povos povos,, e nós nós temos apenas uma escolha: sermos instrumentos dessa compaixão ou perdermos a gra ça de Deus (Mt 25.24-30).
Através de seu enviado, seu Filho, Deus põe em ordem seu relaciona mento com as pessoas, a fim de livrá-las do juízo (Jo 3.17s.). O amor de Deus converte o enviado em Salvad Salvador, or, em resposta a todas as pergunta perg untass das pessoa pessoas, s, naquele que traz a vida (Jo (Jo 6.6s 6.6s.) .).. A. A. G. Herbe He rbert rt proc p rocura ura coloca colocar, r, a part p artir ir desta palavra, o traba tra balh lhoo missio mi ssionário nário sobre sob re sua base corr co rret eta2 a277.Jesus Jes us se enten en tende de como o enviado28. Ele é a resposta de Deus (At 4.12). Visto que a compaixão o en viou, ele próprio não pode fazer nada diferente daquilo que vê o Pai fazer (Jo 5.19) e é, por isto, mediador dessa compaixão. Para compreender isto deve-se examinar o sentido da palavrinha dei (= “é “é necessá ne cessário”) rio”) na vida de d e Jesus; toda a sua vida é dete d eterm rmina inada da por p or ela29 ela2903. Para que a compaixão de Deus, após a morte de seu Filho, alcance as pessoas, Jesus declara que a humanidade é uma lavou ra a ser colhida (Jo (Jo 4.35 4.35-3 -38) 8) e encom enda o pedido ped ido missionário ao coração e à consciência dos discípulos (Mt 9.36s.; Mc 6.34). Com este fím ele dá a ordem missionária. O povo lhe provocava compaixão! Assim a compaixão torna-se motivo missionário legítimo, autêntico, não como sentimentalismo para com os pobres pagãos, mas como dynamis (= força) divina, como ato gracioso do amor salvador de Deus. Por isso, ai de nós se a carência exterior das pessoas nos comove mais do que a perda da salvação de sua alma e se acreditamos poder salvar as pessoas através da ajuda exterior. Neste caso, entendemos erronea mente a incumbência de Deus50. Lõhe destacou energicamente a missão como obra da misericórdia de Deus: A missão entre os gentios é a grande obra da misericórdia no Novo Testamento. Porém a missão missão entre os judeu jud euss não é meramente mer amente associada associada a ela, ela, mas constitui, constitui, antes, o círculo mais íntimo, e mais: seu centro (...) Não pode haver misericórdia maior no mundo do que estender a palavra e os sacramentos do Altíssimo, com sua plenitude de graça, para os pobres e perdidos seres humanos de todos os séculos e de todas to das as terra ter ras.3 s.311
27 A. G. HERBE HERBERT, RT, The Mission Mission o f the Ch urch, p. 386. 28 Mt 10.40; 15.24; 21.37s.; Lc 4.17ss.; 19.10; Jo 3.17; 4.34; 5.30,36,38; 6.29; 7.14; 14.31; 17.3,18. 29 W. FREYTAG, Vom Geheimnis der Mission, EMZ, 1940, p. 97s. 30 W. LÖHE, Innere Mission, in: Vier Leichenreden, Gütersloh, 1903, p. 41s. 31 ID., Von der Barmherzigkeit, Ncu cnd ettelsau , 1927, 1927, p. 47. 47.
3. Deus realiza sua obra através através de sua com unidade unidade A missão como obra da misericórdia divina, que Deus iniciou através do envio de seu Filho, é continuada por ele agora ao incumbir sua comunidade, po p o r meio de seu enviado, envia do, da propag pro pagação ação de sua palavr p alavraa e da proclama proc lamação ção de sua vontade salvadora. Assim o Senhor dá a ordem missionária (Mt 28.18-20; Mc 16.15-16; Jo 21.21). A comunidade deve efetuar esta tarefa até o regresso do isso,, o sentido propri propriamente amente dito do Senhor (Mt 24.14), portanto até o juízo. Por isso tempo intermediário entre a ascensão e o regresso de Cristo é que a misericórdia de Deu Deuss seja seja anunciad anunciada a ao mundo mundo atra travé véss do serv serviç iço o de sua com comunid unidad ade. e. Através da ordem missionária, o Senhor fez da proclamação de sua palavra a forma de existência de sua Igreja, para que ela exerça misericórdia por meio dele e em seu lugar3 lugar 32. Com isto torna-se evidente que a Igreja não pode po de se dar p or satis satis feita com o número de membros que tem. A compaixão de Deus quer abran ger a todos, ela é universal. universal. Sua revelação revelação fala com com bond bo ndade ade dos fiéis fiéis e dos que devem ser ganhos, com severidade dos apóstatas, que novamente p ode se trans formar em bondade com a mudança da pessoa (Rm 11.22ss.). Para Deus o mundo da descrença é uma unidade; por isto ele o deveria ser também para sua Igreja. Sua compaixão ilimitada compreende as pessoas errantes nas igre jas ja s antigas antig as e os gentios gentio s lá fora fo ra com o mesmo mesm o amor am or salvador. Seu Filho veio “para pa ra buscar busca r e salvar salvar o perd pe rdid ido” o” (Lc 19.1 19.10) 0).. Ele mo rreu rre u pelos pecados do d o mun mu n do, po p o r todas toda s as pessoas pessoas,, e criou com isto a premissa, premissa, a possibilidade de procla mar ma r a salvaç salvação ão entre entr e todas as pessoas. pessoas. Por isso, isso, a missão missão como serviço da comu com u nidade nidad e por p or incumbência inc umbência do Senhor Senh or exaltado só é poss possív ível el atravé atravéss da morte m orte de Jesus, ela é um fruto de sua morte (Jo 12.24). Agora a compaixão de Deus foi revelada ao mundo33. Por isso, isso, a Igreja só pod e ser Igreja I greja de Jesus na medid m edidaa em que q ue vive vive nesse ato redentor e se torna portadora da compaixão de Deus. Ela precisa ver o mundo perdido em sua unidade e executar a tarefa de Deus. Por isso, uma divisão da vontade salvífica de Deus em três partes, a saber, em assistência às comunidades, missão interna e missão externa pode ser boa na prática, mas nunca deveria ser reconhecida em princípio pela Igreja. Estes três “setores” da unida uni dade de indissolúvel indissolúvel precisam ser se r sempre sempr e vistos vistos em seu conjunto, pois eles são unidos por aquela uma vontade salvadora de Deus que deve atuar neles. Eis po r que o serviço da Igreja só pode po de ser um, como Lòhe reconhec recon heceu eu e enfatizou3 enfatizou34 4. Por causa disto, não se deve falar de “obras” da Igreja, e sim das funções vitais da Igreja. Elas se transformarão em “obras” se forem separadas do testemunho da redenção.
32 Isso é detalh ado nos escritos indicados indicados na no ta 11, onde , entretanto, a ênfase é colocada no sen hor io d e Jesus. Em relação a esta q uestão, veja CULLMANN, op. cit., p. 138s 138ss. s. 33 O. MICHEL, Berufung zur Mission, EMZ, 1940, p. 195. 34 V. nota 30.
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Esse serviço da Igreja somente é possível porque ela mesma experimentou com paixão através da ação redentora do Filho de Deus e agora representa a comunidade dos crentes e justificados. Deus compadeceu-se dela e a agraciou para ser crente (1 Co 7.25). Por isso sua fé, que então será ativa no serviço, é sempre uma fé na misericórdia divina, como já o reconheceram os pais da Reforma85. A partir dessa fé, que vive da compaixão e por isso pode ser uma confiança ousada e ativa, flui o serviço que atua pelo amor, portanto pela compaixão (Cl 5.6). Senão ele nem poderia ser obra agradável a Deus, e até obra do próprio Deus, mas seria pecado, conforme Rm 14.23. Pois, de fato, o que não é fruto da fé provém de algum modo do egoísmo religioso.
Deus quer ser misericordioso por meio daqueles que experimentaram, eles próprios, misericórdia (Lc 6.36; 10.25-37). Esse serviço continua, assim, sendo obra do próprio Deus, mesmo que ele aconteça na comunidade e atra vés da comunidade. Não somos nós que temos Deus na fé, mas ele é que nos tem8*’, para, por nosso intermédio, manifestar ao m undo seu am or e estabele cer seu senhorio. Quem crê na ação redentora de Jesus vive no reino da graça e se submeteu com isto ao senhorio de Deus. Por isso, nossa fé na justificação está profundamente vinculada com esse senhorio87. “Para que tal tesouro não ficasse enterrado, mas fosse investido e usufruído, Deus fez com que se difun disse e proclamasse sua palavra”3 3 7 6 583 4 0 9 . Através da justificação Deus introduz as pessoas em seu serviço aos descrentes, e a recusa desta incumbência não seria apenas desobediência, mas resistência à atuação divina (Fp 4.12s.) e desprezo da força que ele torna ativa na pessoa através da redenção apreendida35. Por conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação de Deus, obediência da fé, não estar desligado de Deus, mas ser tomado por ele, não é algo que é acrescen tado à ação de Deus, mas é submeter-se ao agir de Deusm. Por isso, se realmente há uma justificativa para a fundação de sociedades missionárias, então ela reside neste ponto. Visto que a Igreja estabelecida como tal não se deixou utilizar por Deus para proclamar a compaixão de Deus aos gentios, homens movidos pelo Espírito Santo precisaram reunir em torno de si aquelas pessoas que haviam experimentado a compaixão de Deus e enviar homens que se tornaram testemunhas do acontecimento salvífico entre os po vos. A pergunta, porém, é sc com isso Deus indicou o caminho à missão da Igreja para todos os tempos e se hoje, quando a maioria das sociedades missionárias sucumbiu à lei da estagnação da vida, elas ainda podem ser tidas
35 An sbach er Ratschlag, citado confo rme W. ELERT, Morphologie des Luthertums, vol. 2, Münc hen, 1931, p. 81. 36 1,. FENDT, Luthers Schule der Heiligung, Leipzig, 1929, p. 10. 37 O. MICHEL, Gottes H err sch af t un d die Völkerwelt, F.MZ, 1941, p. 226s. 38 F.. SC1ILINK, Theologie der Bekenntnisschriften, München, 1946, p. 152. 39 H. I IOFER, Die Rechtfertigungsverkündigung des Paulus nach neuerer Forschung, Güte rsloh, 1940, p. 13, 44 e 94. 40 E. GAUGI.ER, Die Heiligung im Zeugnis der Schrift, Bern. 1948, p. 55.
como visualização da Igreja de Jesus nas igrejas estabelecidas. Não é verdade que hoje a missão é sustentada, em considerável medida, pelos grupos reavivados da Igreja estabelecida que não são membros daquelas sociedades, e que se modificou amplamente a autocompreensão da Igreja estabelecida? Com refe rência a esta mudança basta ler o ensaio redigido por um jurista eclesiástico sobre a Igreja territorial bávara414.2 Hoje as sociedades missionárias podem se enten der, no máximo, como órgãos da vontade missionária da Igreja.
Porém a pergunta acima colocada também precisa ser feita a essas socie dades ainda sob outro ponto de vista. Certamente será sempre mérito delas o fato de terem dado expressão à vontade salvadora de Deus na Igreja. Por outro lado, contudo, devido ao conceito pietista de Igreja, elas contribuíram de modo considerável para fazer com que a missão apareça como obra especial da Igre ja, como algo que não faz parte de uma Igreja organizada. Elas também são coresponsáveis pelo fato de a tarefa missionária não ter sido percebida em sua unidade, pois fizeram unilateralmente propaganda pela missão entre os genti os. É significativo, p. ex., quão poucas sociedades, no período sem missão dos anos da guerra e do pós-guerra, reconheceram uma tarefa missionária voltada aos pagãos da própria Alemanha e objetivaram não apenas a reunião dos cren tes (“amigos da missão”), mas a conquista desses descrentes. Elas não pensavam a partir da unidade da vontade missionária da Igreja e para a Igreja, mas conti nuavam vendo apenas a missão entre os gentios, que naquela ocasião lhes era impossível. Dessa maneira intensificou-se a impressão fatídica de que a missão entre os gentios seria algo assim como uma paixão de certos círculos e não uma parte do envio amplo da Igreja a todos os perdidos. No trabalho missionário Deus não atua como um comandante, que so mente pode dar as armas a suas tropas, mas não a preparação interior. Com o envio através do qual ele continua sua missio e a associa à do Filho (Mt 10.16; Lc 9.2; Jo 17.18; 20.21), ele transmite à comunidade, através da misericórdia que nela opera, também a força e preparação interior para o serviço. Assim como nossa fé sempre é um receber, uma entrega da pessoa toda à ação graciosa de Deus12, também a capacitação para o trabalho missionário é uma dádiva através da qual Deus equipa para o serviço e o ministério. Assim como todo dom de Deus só pode ser recebido na fé (sola fide) e imediatamente se associa à tarefa (Mt
25.14ss.), também a missão somente pode ser feita através de uma fé alegre, certa da vitória, que torna todo cristão testemunha do sofrimento e da glória, portanto do acontecimento salvífico, e emprega o dom de Deus (1 Pe 5.1). E a fides viva (= fé viva) que dá testemunho. Esta “não é cogitação ociosa, mas (...) liberta da morte e produz vida nova nos corações (...) produz bons frutos tanto
41 P. SCHATTENMANN, Die Evangelisch-Lutherische Kirche in Bayern rechts des Rheins ,Lutherische Rundschau, 1951, p. 139ss. N. do E.: Landeskirche (“Igreja te rrito rial”) e Volkskirche (“Igreja nacio nal”) são lermos técnicos na teologia alemã que indicam uma Igreja restrita a um determinado territ ório c povo, à qual pe rtenc e a quase totalidade d a população. Esta é a visão tradicion al de Igreja na Alemanha, que atualmente sofre profundas m udanças. 42 E. SCHLINK, op. cit., p. 143s.
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tempo quanto está presente (..,).”43 É a fides da qual se diz: “Eu creio, por isto é que falo ” (2 Co 4.13), a força propulsora da qual os apóstolos dizem: “Não podemos deixar [de falar das coisas que vimos e ouvimos]” (At 4.20), uma conseqüência da nova criação44 que nos torna iguais a seu Filho, o enviado de Deus, “para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal” (2 Co 4.11), a fim de que sejamos semelhantes a ele e tomados por Deus, “que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação” (5.18), para que vivamos para aquele “que por nós morreu e ressuscitou” (5.15). É a fé pela qual Deus exerce seu senhorio. Assim a missão torna-se uma obra do amor do Senhor, amor que busca e impele, o efeito da compaixão de Deus que nos é transmitida na justificação. O envio da comuni dade resulta do ser enviado do Filho, que continua atuando nela. “O amor de Cristo nos impele, portanto45, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (5.14s.). Assim sendo, Deus conduz sua comunidade ao serviço missionário e com ele dá também a preparação para a diaconia da nova aliança, cuja realização é graça. E ele que capacita (2 Co 3.5), que dá aos seus o Espírito Santo e com isto a autoconfiança cristã (Rin 8.16) e que, através deste Espírito, atua, ele pró prio, entre os povos e em sua comunidade; pois “poder do Espírito Santo” não quer dizer outra coisa do que o efeito produzido pelo próprio Deus. Através dele Deus levou sua comunidade ao serviço missionário. Por meio dele os apósto los se tornaram testemunhas dos atos salvíficos (At 1.8; cap. 2). Ele lhes presen teou a ousadia de falar sua palavra (4.13,29,31). Ele levou os homens relutantes à missão entre os gentios (caps. 10 e 11, especialmente vv. 15-17; também cap. 8) e deu às comunidades a autoridade de enviar (13.1-4). Ele revelou aos após tolos e profetas “que os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo por meio da pregação da salvação” (Ef 3.5s.). Portanto, ele é a força motriz. Com isso, Deus retira dos cristãos toda dúvida a respeito da missão entre os gentios e tira as comunidades de uma existência de isolamento piedoso, contemplativo e egoísta. Portanto, nós não podemos nos vangloriar por fazer missão; Deus nos impele, porque podemos participar de sua vontade amorosa, da gratia efficax (= graça eficaz) entre os gentios. Por isso, a missão não pode ser outra coisa do que a atitude agradecida do cristão pela misericórdia recebida de Deus, um sinal da vida presenteada. “Pelo que, tendo este ministério segundo a miseri
córdia que nos foi feita, não desfalecemos” (2 Co 4.1). Assim é Deus, como causa efficiens (= causa produtora), que constantemente arranca de sua cristan dade cansada o serviço aos descrentes e através dela, como causa instrumentalis (= causa instrumental), opera grandes coisas apesar de suas fraquezas. Para 43 Apologia da Confissão de Augsburgo IV, 64, in: I.ivro de Concórdia, 3. ed., São I.eopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concórdia, 1983, p. 119. 44 M. JÄGER, op. eit., p. 97ss. 45 Assim conforme Preuschen, Wörterbuch zum Neuen Testament ; v. T. KITI'EL, ThWNT, vol. 2, p. 816, nota 1, contra Wendland em Neues Testament Deutsch, vol. 7, p. 132.
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tanto, cie emprega todos os meios, até a perseguição (At 11.19-21)4®. Vê-se quão pouco apropriadas são aqui as categorias da obediência, do desempenho humano. Porém o que significa então ainda a assim chamada “ordem” missionária na qual se fundam enta a missão e com base na qual Schlunk diz que a obediên cia continua sendo o mais forte e decisivo motivo da missão46 47? Parece-me que aqui quase sempre é muito pouco considerada a ligação de Mt 28.18s. com o que se segue, a qual é dada na palavrinha oun (= “por isso”). Será que ela não significa: porque ao Redentor exaltado é dada toda exousia (= poder) no céu e na terra, por isso sua comunidade na terra pode entrar em sua obra graciosa? Também a execução da ordem não é obra dela, mas fruto, resultado, realização e efetivação da autoridade presenteada a ela pelo Pai. Por isso o Batismo acontece “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!” Com isto a ordem não seria outra coisa do que a nova expressão da missio dei através da comunidade, o resumo reiterado da vontade salvífica universal de Deus. A ordem missionária tem certa afinidade com os demais mandamentos de Deus. Ela é dada aos mornos, a fim de chamá-los ao arrependimento por causa de sua resistência à atuação salvífica de Deus; porém é dada aos crentes para lhes servir de instru ção e consolo, para que façam a obra dele de modo correto; ela é dada à Igreja como advertência, para que ela se dê conta de que a missão não depende de seu bel-prazer48. A partir do que foi dito fica claro para nós o quanto falta em nossa vida missionária e, por conseguinte, na vida da Igreja. A rigor, trata-se de coisas óbvias, que, porém, não são consideradas, justamente porque se pensa que Deus opera por si mesmo, sem sua comunidade, e se esquiva assim da exigên cia existencial. Como teria que ser diferente se a atuação de Deus pudesse se m anifestar na co m unid ade “como co rrentes de água viva”! A peno sa e dispendiosa propaganda da missão se tornaria supérflua. Por outro lado, en tretanto, os fatos nus e crus nos dizem que a missão não pode ser uma obra da empolgação e do entusiasmo, mas somente uma o bra do Espírito de Deus, que constantemente torna a Igreja disposta para a pregação de sua compaixão en tre os povos. Ele faz isto por meio das pessoas para as quais o profundo nexo entre justificação e missão se tornou obrigação de consciência, “uma necessi dade que pesa sobre mim” (1 Co 9.16), e por isso sabem do “ai” que as atingi ria, do juízo que recairá também sobre elas se não se deixarem usar como instrumento. Todo o viver e pensar recebem um novo conteúdo através dessa percep ção; isto se pode constatar num homem como L. Harms, para o qual toda a palavra de Deus era uma indicação do Seu amor salvador. Ele podia com parar a missão com o nascimento de João Batista, visto que ela nasceu na época mais
46 O. DIBELIUS, Die Pfingslgeschichte als Missionsgeschichte, EMZ, 1941, p. 162. 47 M. SCIILUNK, Paulus als Missionar, Gütersloh, 1937, p. 39. 48 Jerusalem Meeting Report, vol. 3, p. 135. 111
estéril da Igreja, ou fundamentá-la, p. ex., a partir do Natal ou da Santa Ceia49 .2 5 1 0 Neste sentido, de repente todo texto fala a favor da missão. A partir dajustificação aprende-se a entender que a Igreja que adora e que agradece não pode ter nenhum outro serviço do que o de constantemente levar a salvação às pessoas perdidas ’°. Portanto, se queremos fazer missão, então nossa propaganda não deve se esgotar em relatos informa tivos, mas precisa querer despertar tal fé e dar a certeza do amor misericordioso. Quanta coisa deveria ser posta em ordem justamente nesta área, porque fora da Igreja estabelecida e em oposição a ela há missões que consideram como sua prerrogativa divina reunir em torno de si os membros da Igreja que foram despertados pela pregação da justificação e assim se apropriar da dispo sição ao sacrifício que a Igreja precisaria para a realização da missão de que é incumbida! Quão poucas sociedades missionárias têm a consciência de que é a Igreja que faz missão através delas! Será que muitas missões, ao se apropriarem da disposição ao sacrifício em ambiente estranho, não acabaram obstruindo para si mesmas o caminho para tal reflexão? Ai de nós se não mais soubermos que a missão é uma ação do Espírito de Deus e, por conseguinte, fruto da fé. Ora, podem-se separar fé e Igreja? Deus realiza sua obra missionária por meio de sua Igreja. Esta percepção não é dada à sua comunidade sem mais nem menos, mas precisa ser-lhe transmiti da pela pregação dos grandes indicativos da Bíblia que falam a seu respeito. Deus tom a a comunidade sal e luz do mundo, cidade sobre o monte (Mt 5.13ss.). Através de sua palavra ela se transforma em fermento entre os povos (13.33), numa árvore cada vez maior (13.31 s.). Seus fiéis são reis e sacerdotes, lavados dos pecados por meio do sangue de Cristo (Ap 1.5), “a fim de proclamarem as virtudes daquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz” (1 Pe 2.9). São eles os que executam o trabalho missionário, a carta de Cristo ao mundo (2 Co 3.3).
Nesse sacerdócio geral, a teologia encontra fundamentado o ministério missionário - e o entendemos como um sinal de que também ela vê a justifica ção e a missão em estreita relação -, ao passo que utiliza todas as passagens sobre o ministério apostólico para o ministério pastoral na comunidade. Tam bém Lõhe ainda pensava que, como o apostolado terminou, não haveria mais nenhum ministério missionário da Igreja. Ele fundamentou a missão com o sacerdócio geral dos crentes, pois entre os descrentes todo cristão teria a obri gação de pregar o evangelho®1. Ele seguiu assim a Lutero, que também atri buiu a responsabilidade pelo dever da missão aos cristãos que vivem entre os gentios02. Ambos observaram corretamente que nos primeiros séculos a cris tandade se disseminou mais por meio do testemunho das comunidades do que
49 W. L. WENDEBOURG, Harms ab Missionsmann, Herm ann sbu rg, 1910, p. 43 e 82. 50 A. L. BERTHOUD, Church and Mission, IRM, 1950, p. 226. 51 Kirchliche Nachrichten aus Nordamerika, 1852, p. 20. 52 W. ELERT, op. d t. , p. 339; K. HOI.L, L ut he r un d die Mission, NAMZ, 1924, p. 42s.
através de um envio organizado. Também nós queremos insistir com toda a ênfase que Deus habilita todo cristão para o testemunho e o orienta para profes sar sua fé. Se o sacerdócio geral tivesse sido praticado, o evangelho teria se difundido mais rapidamente entre os povos e às missões teriam sido poupados muitos problemas que surgiram com a penetração da descrença ocidental. A realização do sacerdócio geral traria consigo outra compreensão de missão e leria por conseqüência uma transformação da prática missionária, algo que se pretende alcançar hoje na missão através do serviço cristão dos leigos. Algo semelhante se aplicaria também à Alemanha’3. Por outro lado, é realmente de se perguntar se o ministério missionário não é um ministério da Igreja e se o Senhor deixou desaparecer junto com os apóstolos também o envio organizado e o ministério decretado para a conquista dos gentios. Trabalhos mais recentes, como o de 0. Micheloi, indicam que o Senhor exaltado criou, através da vocação do apóstolo Paulo, um novo ministé rio, um novo apostolado, um novo início da missão entre os povos. Eis a razão do conflito entre o apóstolo Paulo e os outros apóstolos, bem como - por causa da unidade da Igreja - de sua inserção na tradição. Apesar- disto, porém, atualmen te nenhum missionário poderia se reportar diretamente a esse ministério: Mas o missionário, assim como o pastor, não é diretamente enviado, represen tante de Jesus igual ao apóstolo. Sua vocação realiza-se de outra forma do que a do apóstolo, sua autoridade é diferente da autoridade do apóstolo e sua relação com a comunidade é diferente da relação de um apóstolo com a comunidade. O apóstolo fundava as comunidades; nós, porém, somos membros nessas comuni dades, os quais não receberam seu ministério sem comunidade. A palavra apos tólica transmitiu o ministério e fundou comunidades, mas colocou ambas as coisas em estreita relação mútua; nós somos apenas membros no ministério e na comunidade c assim transmitimos tal ministério c tarefa na comunidade a nos sos sucessores. Entre nós e o Senhor Cristo está o modelo apostólico.55435
Contudo, parece-me que Michel, ao formular este texto, tinha em vista por demais o pastor e o missionário de comunidade. Ainda que o tempo da missão pioneira esteja chegando ao fim, hoje ainda há missionários e, no exte rior, também pastores que podem fundar comunidades. Também o apóstolo era suficientemente humilde para se deixar enviar por uma comunidade ape sar de sua vocação direta, e, com isso, receber seu ministério da comunidade à qual era remetido. Neste aspecto, portanto, o ministério do missionário não é tão fundamentalmente diferente do ministério do apóstolo. Também o apósto lo tinha sempre consciência de ser responsável pela comunidade e obrigado a lhe prestar contas; portanto, ele não estava sobre a Igreja, mas na Igreja. Em todo caso, uma coisa o missionário pode fazer: aplicar a si as palavras sobre o ministério expressas em 2 Co 3-5 com a mesma certeza com a qual o
53 H. DÜRR, Allgemeines Priestertum..., EMM, 1909, p. 2ss. 54 O. MICHEL, Berufung zur Mission, p. 196ss. 55 ID., ibid., p. 197.
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apóstolo o fez e como o fazem com naturalidade os dignitários eclesiásticos. Precisa estar claro para nós que estes capítulos singulares fazem primordial mente afirmações sobre o ministério missionário e não, como se supõe eo ipso (= por si mesmo) na teologia, sobre o ministério do pastor assim como ele é hoje. O ministério é primeiro ministerium verbi divini (= ministério da palavra de Deus) e somente a partir desta função básica pode se dividir em ministérios segundo a finalidade. Devem-se observar os muitos “nós” nestes capítulos, com os quais Paulo se refere em primeiro lugar a seus colaboradores, se não está até mesmo falando na forma inclusiva. Algo semelhante se poderia dizer de mui tas outras passagens que fazem afirmações sobre o ministério. Porém o que a teologia, desde Lutero, tem feito dessas passagens? Ela as aplicou primordial mente ao ministério do pastor de comunidade e inverteu a relação, de modo que se relegou o missionário ao sacerdócio geral, sem, ao fazê-lo, ter transmitido a responsabilidade e a obrigação missionárias ao ministério eclesial, como é indica do por estes capítulos. Com isto, fez-se do missionário um ser híbrido, que não cabe na vida eclesial. Decerto ele é ordenado para a pregação pública e pa ra a administração dos santos sacramentos - e, ainda assim, não seria um dignitá rio em sentido pleno? Como isto combina teologicamente? Que conscqüências tem isso para o conceito de ministério? Isto precisa ser ouvido principal mente pelas igrejas alemãs, pois elas como tais - em contraposição a igrejas de outros países - até hoje não praticam, elas próprias, o envio. Ora, com base na fé na justificação não há duas formas de autoridade minis terial na Igreja, mas somente um único ministério, aquele que prega a reconci liação e assim leva a efeito o acontecimento salvífico entre as pessoas a serem reconciliadas (2 Co 5.18). Sob esta autoridade ministerial também o missioná rio faz seu serviço. O ministério da reconciliação pode ser exercido pela Igreja de dois modos entre os gentios; primeiro, por meio do sacerdócio geral dos cristãos que mo ram entre os gentios, uma tarefa que somente é reconhecida por muito pou cos, em bora Paulo, em Rm 10.8ss., faça dela, por assim dizer, a causa salutis: “Porque com o coração se crê para ser justo, e com a boca se confessa a fim de ser salvo.” Segundo, através do envio de missionários56, o qual tem seu modelo nos Atos dos Apóstolos e foi praticado pela cristandade toda vez que os gentios moravam a uma distância muito grande das comunidades cristãs. Ambas as coisas são uma exigência da fé na justificação, pois o ato redentor de Cristo somente pode ser tornado perceptível para as pessoas quando ele for crido, proclamado e ensinado pela Igreja. Os dons da justificação, a preparação para o serviço somente podem se tornar eficazes quando conduzem ao testemu nho. “Como, porém, crerão se nada ouviram? Como ouvirão, se não há cjuem pregue? Como, porém, pregarão se não forem enviados?” (Rm 10.14ss.) Por isso, servir ao evangelho significa “zelar pela manutenção da prega ção do evangelho e pela vocação e envio de pregadores do evangelho”57. Não se
56 G. WARNEGK, Evangelische Misstonslehre, vol. 2, Gotha, 1892. 5 / E. SGHL1NK, op. cit., p. 312.
pode serjustificado e deixar outras pessoas na condenação. A vontade salvadora de
Deus precisa ser revelada a todas as pessoas, para que também elas tenham parte em sua compaixão e, por conseguinte, em seu senhorio. Assim, em Paulo justificação e missão se tornam conceitos correlatos08. Sem fé na justificação a missão está sem pressuposto, sem a misericórdia de Deus está sem conteúdo, sem reconciliação, sem objetivo. Ora, uma fé na justificação que não atua no testemunho, portanto no serviço missionário, é um saber morto ou uma fé egoísta - e sobre ela é proferida a sentença na Escritura.
Ora, a missão como missio dei não pode ser realizada pela comunidade se esta não se entende sempre como instrumento e tem a consciência de estar a serviço do Senhor. A melhor expressão disto é a oração da comunidade missionária. Por isto, a missão e a oração estão relacionadas tão estreitamente quanto a missão e a justificação. Seria necessário um trabalho específico para descrever tais nexos. Handmann fez um trabalho preliminar referente a esta questão, mesmo que sob outro ponto de vista1’9. Como a justificação leva à adoração, ao agradecimento e ao louvor mostra-nos a vida de oração da pri meira comunidade e do apóstolo Paulo. Deles podemos também aprender como os dons da justificação e a preparação para o serviço se tornam eficazes através da oração, como a oração abre as portas, como os mensageiros são enviados sob oração, como a intercessão mútua sustenta todo o trabalho e como, assim, a ação toda é posta nas mãos de Deus. Aqui, na oração, tudo é desligado das pessoas para que somente Cristo atue através do serviço dos crentes.
“Para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada pelo Espírito Santo. Tenho, pois, motivo de gloriar-me em Cristo Jesus pelo meu serviço a Deus. Pois não ousarei discorrer sobre coisa alguma senão daquelas que Cristo fez por meu intermédio” (Rm 15.16ss.) De uma fé assim se originou, através da atuação do Espírito Santo, a Reforma. Nela pode-se reconhecer a dynamis divina dajustificação', pois o ideário reformatório foi transmitido de boca em boca por inúmeros leigos anônimos. Mas mesmo a Reforma não levou à missão entre os gentios? As vozes que expressam a censura de que para os reformadores a ordem missionária nada significava ainda não desapareceram. Sem levar em conta que essa censura não está totalmente correta559680, podemos afirmar que a Reforma foi um dos maio res movimentos missionários da história da Igreja, pois os reformadores ainda se atinham à unidade da tarefa missionária. Visto que o trabalho missionário estava proibido a eles nos reinos coloniais católicos, eles fizeram missão junto aos descrentes de seu próprio meio61.
58 A. KÕBERLE, op. cit., p. 97. 59 R. HANDMANN, Das Gebet eine Missionsmackt, Leipzig, 1912. 60 K. HOLL, op. eil.; VV. ELERT, op. cit., p. 336ss. 61 A. KÖBERLE, op. cit., p. 98ss.
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Em todo caso, na época da Reforma estava viva uma convicção que só pode resultar da fé na justificação e que repetidamente levou aos maiores fei tos missionários: a convicção de que sem a fé no evangelho ninguém pode ser salvo. Os reformadores ainda não sofriam do “enfraquecimento dos ossos” de nossa época, que relativiza a pretensão de salvação do evangelho, mas estavam convencidos da necessidade salvífica absoluta do evangelho. Com isto eles ti nham um autêntico motivo bíblico para a missão, que produziu efeitos até os dias de hoje e que perm anecerá enquanto alguém es perar ser salvo pela fé na mise ricórdia de Deus. Por isso é um tanto unilateral a afirmação de Hartenstein de que “a identificação da voz viva do evangelho com a doctrina sobre Cristo para lisou, a partir da Reforma, a vontade missionária”62. Deve-se admitir que os epígonos de Lutero e Calvino quiseram fazer da inexistência de missão uma doutrina. Mas o que reiteradam ente se manifestou em August Hermann Franke, Zinzendorf e nos fundadores da missão até Hudson Taylor63foi precisamente a tese da necessidade salvífica da justificação, de modo que um John G. Paton pôde reagir a um jovem missionário com seu motivo cultural dizendo-lhe: “Jovem, você acredita que eu teria arriscado minha vida entre os selvagens e canibais das Novas Hébridas se eu não acreditasse que cada homem, cada mulher, cada criança que encontrei estariam sujeitos ao inferno?”64 A miséria de nosso tempo é que nós não mais possuímos essa convicção reformatória, de modo que ela atuasse de forma determinante em nosso serviço65. Nes te sentido ainda sofremos as conseqüências da época liberal de nossa teologia e da escola da história das religiões, que aplicaram sua reflexão relativizante também à revelação de Deus e com isto tiraram da Igreja o âmago de sua fé. Certamente Deus também pod e salvar pessoas que não tiveram nenhuma opor tunidade de ouvir o evangelho. Só que a pergunta é se ele não exigirá suas almas de nós. Neste sentido Spurgcon (cuja palavra, entretanto, não posso do cumentar) decerto tem razão ao dizer: “Se os gentios podem ser salvos sem o evangelho, isto eu não sei, mas uma coisa eu sei: que nós não poderemos ser salvos sem levar-lhes o evangelho.” Portanto, o erro decerto não foi ter identi ficado a voz do evangelho com a doctrina, mas não ter mais descrito e entendi do a doctrina como “palavras da vida eterna”. Em todo caso, poderíamos nos considerar felizes se essa dinâmica da justificação irrompesse novamente em nossa Igreja.
K. HARTENSTEIN, Zur Neubesinnung über das Wesen der Mission, p. 20. 03 W. EREYTAG, Mission im Blick au f das Ende, EMZ, 1942, p. 322. ^
^ ' B UR IO N, Modern Mission in the South Pacific, London, 1949, p. 12.
05 A. G. HERBERT, The Missionary Oblig atio n o f the Chu rch, p. .385.
4. A conformação da p regação m issionária Nesta parte não se trata de oferecer um a doutrina da missão, mas de tirar as conseqüências resultantes do que até aqui foi dito. Se até agora tratamos do sujeito da missão, então agora temos que perguntar por seu objeto. Com base em Rm 1.18-3.20, este não pode ser senão todas as pessoas. Todas pecaram e, po r conseguinte, estão em dívida com Deus (3.19). Por isto, todas também serão julgadas por Deus. No juízo não há distinção de pessoas e, em conseqüôncia, nenhum povo privilegiado. Todas as pessoas estão sob o pecado (3.9) e perdidas. Porém, visto que Deus quer salvar a todas através do ato amoroso de seu Filho, po r meio da justificação, na missão elas são confrontadas com a mensagem desse amor. Elas são, assim, o “tu” da salvação e, por conseguinte, da missão66. Uma vez que a humanidade é vista corno unidade, ela se defronta como unidade com aquele Um que é seu Redentor e Reconciliador. Assim como há somente um a humanidade caída, da mesma maneira h á somente um evangelho, uma salvação. Esta Deus realiza. “Ele deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Tm 2.4.) Por tanto, a missão é dirigida a toda a humanidade. Assim como todas elas peca ram naquela uma pessoa, da mesma maneira também poderão ser salvas so mente por meio daquele Um (Rm 5.12,18). Por isso, a pregação missionária não pode levar em consideração limites de povo e raça. Em meio a esta humanidade pecadora vive a comunidade de Jesus Cristo. Também ela é pecadora, portanto se encontra numa solidariedade de pecado e culpa com o meio que a cerca. Por outro lado, contudo, ela é “tirada para fora” do mundo pecador pelo amor de Deus67, ela faz parte, através do perdão recebi do e do novo nascimento, da nova criação que inicia com aquele Um, e, na condição de comunidade dos justificados e reconciliados, é a portadora da pro messa divina e da vontade amorosa de Deus entre os povos. O amor de Deus é vertido em seu coração (Rm 5.5b). Com isto Deus não a tira do mundo, mas faz deste o espaço do testemunho da comunidade. Seu agraciamento é, portanto, com promisso. A comunidade possui algo que as outras pessoas não têm, mas que precisam em vista de sua salvação. Por isto, a comunidade ingressa numa relação de culpa com a parte restante da humanidade, à qual ela tem que servir com o evangelho (Rm 1.14). Como pretende louvar e agradecer a Deus por seu agraciamento, se ela como nova criação não continua a obra daquele que foi a primícia, mas subtrai a seus próximos o que Jesus conquistou também p ara eles? Como ela pode ser uma comunidade crente em desobediência e egoísmo? Neste sentido as igrejas antigas correm constantemente o risco de restringir ao pró prio povo a dinâmica da justificação que rompe todos os limites. O fato de pen sarmos e agirmos no âmbito da Igreja territorial e nacional é uma expressão da limitação de nosso cristianismo. Ambos os conceitos e sua fundamentação na teologia c no direito eclesiástico prejudicaram repetidamente a vida eclesial pelo
66 K. HARTENSTEIN, Die Mission als theologisches Problem, Berlin, 1933, p. 32ss. 67 W. EREYTAG, cf. abaixo nota 80.
fato cie que as igrejas podiam cruzar os braços com base na idéia de um Estado e povo cristãos e não reconheciam sua tarefa para além das fronteiras do povo. Resultou daí a alternativa “povos cristãos e não-cristãos” no lugar de “Igreja e não-cristãos”. Isto, poré m , teve com o co nseq üênc ia que se ficou cego em relação à descrença existente nas próprias fileiras e não se entendeu que a frente de bata lh a sem pre perpassa ao m esm o te m po as própria s com unid ades68. Assim as igrejas p erderam , juntam ente com a vontade de fazer missão jun to aos nãocristãos, também o senso da necessidade de salvação dos próprios batizados.
Este problema ocorre em toda parte o nde se trabalha visando uma Igreja nacional 9, só que a situação no campo da missão é outra. Ou a mensagem foi aceita em bloco pelas ligas nacionais, de modo que teoricamente a comunida de determina o povo e, por conseguinte, a pertença plena ao povo é tornada dependente do fato de se ser membro da comunidade - o que somente é possível através de uma assimilação mútua. Foi o que aconteceu com muitos povos primitivos, sobre cujo cristianismo hoje é difícil afirm ar se se trata de um povo cristianizado ou de um a Igreja nacionalizada. Ou então comunidades foram fundadas num meio gentio sem que se lhes transmitisse a dinâmica da justificação, de modo que hoje elas dificilmente desenvolvem uma atuação missionária. No primeiro caso os limites foram apagados, no último a tarefa missionária não foi sentida. Apenas poucas igrejas novas encontraram a posi ção correta em relação a seu povo. A maioria delas está hoje, de modo inquietante, exposta à influência do nacionalismo, de sorte que freqüentemente é preciso perguntar quais são os motivos que determinam suas ações. Esta per gunta precisa ser feita até mesmo em relação às uniões eclesiais. Na índia, por exemplo, quando se procura unificar numa única Igreja toda a cristandade evangélica indiana, neste processo não é decisivo somente o motivo neolestamentário; neste caso não se iria parar nas fronteiras da índia. Isto tudo são indícios do fato de que também lá onde se quis evitar o sistema de Igreja nacional, o pensamento baseado nesse sistema determinou a ação. O conceito “Igreja nacional” é uma contradição em si mesmo e insustentável com base no Novo Testamento. A partir deste, só pode haver Igreja no povo ou entre os povos, a qual se compõe de todos os crentes. Deus quer reunir seu povo através de seu evangelho, do serviço da comunidade, que consiste na procla mação da justificação; e isto não se identifica com limites nacionais. Esse povo se compõe de todos os batizados e crentes. Por isto, dentro da comunidade não pode haver antagonismos nacionais. Ela sobrepuja todos os limites nacionais, consiste de irmãos e irmãs e isto é a ped ra de toque para verificar “se a doutri na da justificação compreendeu a fé e a vida da comunidade em profun dida de”70 (Rm 10.12; G1 3.23; 1 Co 12.13; Cl 3.11).
68 E. SCHI.INK, op. eil., p. 286. 69 J. C. HOEKENDIJK, op. cit., p. 125ss., ond e este prob lem a ö trata do a fundo; ID., Th e Call to Evangelism, IRM, 1930, p. 162ss. 70 O. MICHEL, Gemeinde und Völkerwelt, EMZ, 1941, p. 293.
A fim de reunir tal comunidade dentro do mundo, Deus usa, através do Espírito Santo, sua Igreja e faz proclamar sua salvação entre as pessoas perdidas. O que está em jogo aí é unicamente a redenção do pecador. Receio que hoje, no trabalho missionário, esse objetivo seja sobreposto, em grande parte, pelas mui tas preocupações e necessidades, bem como pela definição do relacionamento com as igrejas novas, de modo que ele não mais ocupa a posição dominante e que a tudo perpassa. Também o trabalho missionário pode se tornar rotina eclesial, e este talvez seja seu maior perigo. Se tivesse permanecido determinante no trabalho, as discussões com as igrejas novas teriam que ter tomado outro rumo, pois a missão como salvação do pecador transmite ambas as coisas: simul taneamente autoconfiança cristã e subordinação. Onde a perdição das pessoas arde na alma, passam para o segundo plano as questões relativas à necessidade de ter seu valor reconhecido. Assim as igrejas novas teriam aprendido que a verdadeira autonomia somente é obtida na oferta do evangelho, na confrontação com o mundo da descrença, e as igrejas antigas teriam experimentado que no trabalho missionário uma Igreja nova chega à força da idade adulta e que seu relaciona mento mútuo nunca pode ser uma questão de subordinação ou superioridade, mas somente de um enquadramento comum na mesma e única atividade. Então também as igrejas antigas teriam evitado que o objetivo se deslocasse durante as discussões e se teriam dado por satisfeitas com um serviço de assistência, que só pode servir ao objetivo de forma indireta. Acaso hoje o trabalho missionário não é determinado preponderantemente a partir da situação, isto é, a partir do ser humano? Ora, no trabalho do reino de Deus decisiva nunca é a situação, mas sim a Igreja que se defronta com ela a partir da palavra de Deus. Com uma definição correta do objetivo, em todo caso não se teria podi do dizer, em meio a um m undo de descrença, que o tempo da missão pioneira, portanto da conversão e da fundação de comunidades, tenha chegado ao fim. A situação que se modifica é sempre um bloqueio do caminho; justamente por causa disto deve-se constantemente abrir novos caminhos. De modo algum tenho a impressão de que com a existência das igrejas novas o trabalh o tenha se torna do mais fácil e menor. Por isso precisa-se também dos “escoteiros” da Igreja antiga e nova, “a fim de ganhar muitos” e “salvar alguns” (1 Co 9.16-23). Leiase mais uma vez estes versículos para que se tenha uma noção do que significa estabelecimento do objetivo missionário. Neste curto trecho Paulo usa seis vezes o hina (= para que) divino e com isto dá cada vez a mesma fundamenta ção. Ele também teve uma Igreja nova e suas dificuldades realmente não eram menores do que as nossas, mas ele perseverou no objetivo. O objetivo é alcançado através da proclamação dos fatos salvíficos, da oferta da reconciliação. Neste sentido é óbvio que as pessoas que se tornaram ignorantes precisam saber primeiro contra quem e como elas pecaram, por que estão perdidas e com quem devem se deixar reconciliar a fim de serem salvas. Neste ponto a pregação do primeiro artigo do credo adquire sua impor tância. Assim, a tarefa da Igreja somente pode consistir em chamar, através da pregação da lei e do evangelho, do juízo e da graça, as pessoas para se coloca rem sob o senhorio de Deus, levá-las à fé, para que abracem a sola gratia. Assim, através da ação do Espírito Santo é alcançado o objetivo da revelação de Deus: a salvação e renovação das pessoas. 119
Este serviço a Igreja só pode prestar aos descrentes se ela emprega os meios de missão que Deus lhe deu na revelação. Ele acontece através da viva vox evangelii em palavra e sacramento, que são o conteúdo da revelação. Esta não é uma cosmovisão ou um programa social, “não é especulação ou gnose, mas justificação, santificação, renascimento, vida eterna (Jo 17.3). Deus nunca se revela de outra forma do que fazendo algo novo da pessoa.”'1 Somente a revelação, através da ação do Espírito Santo, leva ao reconhecimento da situação de peca do e ao arrependimento, porque ela mostra à pessoa como ela realmente é. Somente ela tem a força de libertar a pessoa dos vínculos com os demônios, com os pecados e com o mundo alheado de Deus - incluindo o povo. Por outro lado, ela lhe mostra Deus na imagem do Deus invisível (Cl 1.15) e coloca-a assim bem pessoalmente diante da decisão. Ela dá ao ser humano a força de rom per com sua vida, de agarrar a salvação na fé e de se deixar presentear com o perdão dos pecados'2. Assim, através da apresentação dos fatos salvíficos é desencadeado o processo fundamental que leva à conversão e ao renascimento e, por conseguinte, à renovação da pessoa. Todo método missionário precisa considerar essas linhas básicas da apro priação da salvação, se pretende levar à fundação da comunidade de Jesus e proclamar seu senhorio entre os povos. Infelizmente justo neste ponto pecouse muito no campo da missão através da impaciência humana, insuficiência, descrença e sabedoria mundana, porque se cria ter que apoiar a ação do Espí rito Santo através de meios humanos, seja através da atividade filantrópica, da proclamação do social gospel**, da disseminação da civilização ou adaptação à índole nacional. Queria-se tornar a decisão do gosto das pessoas ou facilitá-la, e precisamente com isto impediu-se que as pessoas interpeladas chegassem à alegria da filiação divina. O resultado disso foi que os atingidos associaram expectativas errôneas com a aceitação do cristianismo e acreditaram que o essencial da vida em comunidade consistisse no cumprimento de determina das prescrições sociais, a fim de obter um nível de vida mais elevado. Os cris tãos foram levados a um novo legalismo, sem terem experimentado a liberda de dos filhos de Deus. - Sem dúvida, jun to com o trabalho missionário aconte cerá a promoção do povo, mas ela não deve ser antecipada; precisa, isto sim, ser uma conseqüência da pessoa renovada e, por conseguinte, do evangelho. Portanto, ela precisa partir da comunidade, para não resultar numa superficialização da mensagem. Deus salva a pessoa interpelando-a de forma bem pessoal e conduzindo-a à fé através de sua palavra. Com a aceitação da salvação, porém, ele a coloca simul taneamente na comunhão dos salvos, para que ela permaneça no estado de pessoa justificada e encontre a força e ajuda de que precisa para sua nova vida. Isto acontece através da inserção na Igreja visível, da participação no corpo de Cristo, VI ID., Die Fürbitte des Erlösers, EMZ, 1941, p. 356. 72 K. HARTENSTEIN, op. cit., p. 37 e 41ss.; A. KÖBERLE, op. cit., p. 153s. * N. do E.: Este termo se refere à teologia de Walter Rauschenbusch e Reinhold Niebuh r. A crítica se refere à reduçã o d o evangelho à ação social.
que é comunicada pelo Batismo13. Através dele a velha pessoa é entregue à mor te, morre para o pecado, torna-se uma nova pessoa através do Espírito Santo e recebe participação na ressurreição do Senhor (Rm 6; Cl 2.11). Com isto, o batizando experimenta o perdão único dos pecados, como a Igreja ensinou reiteradamente e como testemunham os batizados em todas as áreas de missão em que o Batismo é praticado de acordo com a Sagrada Escritura7 7 347 5 . Simultane amente, porém, eles recebem participação na salvação e na vida eterna (Tt 3.3-7; 1 Pe 1.3s.). Assim, ao batizando é transmitido tudo o que Cristo fez por ele; por conseguinte, o Batismo não está fundamentado somente na compaixão de Deus, mas comunica à pessoa no renascimento ajustificação, pois transmite-lhe o mérito de Cristo. Aqui coincidem o renascimento e ajustificação, e a pessoa não pode fazer outra coisa do que se deixar presentear tudo na fé1''. No Batismo, portanto, a nova vida torna-se existente. Porém ela não teria nenhuma duração posterior se Deus não desse ao renascido, através da comu nicação do Espírito Santo, a força para levar uma vida agradável a Ele. Por isso, através do Batismo a pessoa é renovada em sua consciência (1 Pe 3.21), purificada das obras mortas, portanto dotada de uma nova norma de consciência, para servir ao Deus vivo (Hb 9.14). Ela, de agora em diante, está sob o senhorio de Deus. Com isto a santificação, que o Espírito Santo iniciou prolepticamente através do ouvir da palavra e realizou no Batismo, torna-se repetidamente atu ante no Batismo, por meio da confiança da pessoa crente na ação de Deus no Batismo767 7 , para que ela possa produzir frutos (Cl 1.10-14). Portanto, na nova vida todo dever baseia-se num ser11, trata-se sempre de ser santificado78. Por isso não se podem sep arar ajustificação e a santificação; ambas coincidem no Batismo. Somente com base nisto Paulo pode fazer as muitas afirmações indicativas e positivas sobre as qualidades da nova pessoa ou falar sobre os frutos do Espírito. Quando, porém, contempla sua própria vida, ele sabe que não alcançou o objetivo da santificação p or meio de esforços próprios (Ef 4.13; Fp 3.12). Só se pode tomar com base no ser tomado por Cristo. O Batismo, assim, nos coloca na com unhão com Cristo, no âmbito de sua ação. O ser eleito, o ser plasmado por ele são a base e o conteúdo de nossa vida de cristãos (Jo 15.1-17). “Porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes.” (G1 3.27.) Essa comunhão, esse estar-em-Cristo são a base da vida da Igreja, da co munidade dos batizados. Nela a cabeça, através de sua comunhão com cada
73 A. G. HERBERT, T he Mission of the C hurch, p. 390. 74 H. W. GENSICHEN, Das Taufproblem in der Mission, Gütersloh, 1951, p. 15ss. 75 E. SCHLINK, op. cit., p. 142ss. e 158ss. 76 H. W. GENSICHEN, op. cit., p. 30ss. e 44ss.; J. v on WALTER, Die Theologie Luthers, Gütersloh, 1940, p. 272s. 77 O. CUI.LMANN, op. cit., p. 199. 78 K. GAUGLF.R, op. cit., p. 37-52.
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um dos membros, junta todos os batizados em seu corpo e torna a comunida de dos reconciliados uma comunhão de vida. Por isto, ser justificado significa sempre estar na comunidade de Jesus. Não há Batismo sem comunhão batismal79. Esta frase, entretanto, pressupõe a ação de Cristo no sacramento. Neste senti do, seria de se perguntar até que ponto as missões para as quais o Batismo é somente uma cerimônia, um símbolo, um ato de aceitação na comunidade (que é determinado ou sobrepujado pela experiência da conversão ou do batis mo do Espírito!) agem corretamente e estão aptas a transmitir a graça do Batismo aos crentes. Cristo vinculou sua ação à palavra e ao sacramento. Uma prática superficial do Batismo junto com uma compreensão imprópria do sacramento não pode levar à vivência da justificação e, por conseguinte, também não a uma comunidade cristã autêntica. Um missionário que duvide da ação do sacramento não pode fundar sua comunidade somente em Cristo, que oferece tudo aos seus de graça no sacramento e transforma os batizados em propriedade sua. Se encontramos tão poucas comunidades verdadeiras no campo da missão, a razão disto decerto está na prática batismal. Isto pode ser percebido claramen te na comparação com as comunidades nas quais a graça do Batismo e a nova aliança tornaram-se realidade. Onde não se tem essa compreensão de Batismo também não se sabe o que é confissão e que importância ela tem para a comunhão dos cristãos com seu Senhor e na vida da comunidade, que se baseia no perdão. Além disso, dever-se-ia perguntar neste ponto qual é o alcance da comunhão batismal e se o movimento ecumênico age corretamente em seus esforços de tornar visível a unidade da Igreja quando acolhe em suas fileiras também os que desprezam o Batismo. O Batismo é o elemento comum que une toda a cristandade. Justa mente por causa disso dever-se-ia encará-lo com muita seriedade no trabalho missionário. Como através dele é fundada a comunidade, assim ele também seria capaz, se entendido biblicamente, de plasmar a unidade da Igreja. Por meio dele é eliminado entre os batizados tudo o que divide, a cerca é derruba da, eles são transformados em cidadãos e companheiros de Deus aqui nesta terra (Ef 2.2s.). O laço mais íntimo dessa comunhão é, por isso, o perdão, que é praticado nela e por meio dela e que ela só pode presentear porque ela mesma recebeu perdão. E sempre o Senhor que continua a agir na comunidade através de seu ato sacrifical. “Se procuras a Igreja, não a encontrarás antes de veres a ele e a seu amor. A Igreja é o milagre de que neste mundo no qual vivemos haja um grupo de pessoas que, em Cristo, Deus livra, por amor, do medo, sofrimento, pecado e morte. A Igreja vive do amor. O am or é seu fundamento de vida”80. Em parte alguma esse amor se expressa e se consuma de forma tão acen tuada na comunidade quanto lá onde a comunidade pratica o perdão e vive, ela própria, da fonte do perdão: na Santa Ceia, onde ela celebra a morte reconciliadora de Jesus, torna-o atuante em seu meio e o proclama através de seu comer e beber, até que ele venha (Rm 5.6-11; 1 Co 11.26). Na Ceia a vida
79 O. MICHEL, Ge me inde u nd Völkerwelt, p. 294. 80 W. FREYTAG, Mission als Tat d er Liebe , p. 194.
da comunidade é constantemente renovada. Aqui cada membro individual mente recebe a força do amor, o fortalecimento da fé e torna-se consciente de sua condição de membro do corpo de Cristo, da comunhão que o próprio Cristo estabelece reiteradamente através da partilha de sua carne e seu sangue. Por isso a Santa Ceia é a ligação mais forte e íntima do Senhor com sua comunidade e a antecipação da comunhão eterna que ela pode ter com ele. Cada celebração da Ceia é um acontecimento escatológico, que torna a própria comuni dade uma grandeza do final dos tempos-, ela ainda está neste mundo para executar sua tarefa salvífica no mundo em vista da vinda do Senhor81, porém não perten ce mais a este mundo perdido, mas é tirada dele por amor e destinada à alegria e glória eternas. Na Santa Ceia o Senhor dá à sua comunidade tudo o que ela precisa para sua vida no estrangeiro. Por isso, sobre cada celebração da Ceia está a seriedade do fim dos tempos, a expectativa dos que estão de partida. Por isso, uma autêntica comunidade de Ceia não pode se prender mais a este mundo, mas, através da Ceia, separa-se de tudo que não é de seu Senhor. Assim a Santa Ceia adquire a maior importância para o trabalho missionário, para a condução da comunidade, para a vida da Igreja. Freytag a salientou em dois trabalhos82 que nunca mais deveriam deixar de ser levados em conta ao se abordar a Ceia na teologia e na condução da comunidade. Ele expõe ali como o Senhor, através da dádiva de sua carne e sangue, estabelece comunhão, se corporifica na comuni dade e a capacita a se separar de tudo o que atrapalharia essa comunhão. Assim como a Igreja antiga usou a Ceia como a arma mais forte contra o paganismo, da mesma maneira a Ceia também desfaz, nos campos missionários, todos os víncu los com poderes extracristãos e leva as comunidades a romperem sua casca. Ou uma comunidade vive no sacramento ou ela morre. Esses são os meios de missão que a comunidade tem para levar a reden ção à humanidade perdida. “São três os que dão testemunho”, diz João, “o Espírito, a água e o sangue” (1 Jo 5.6). Estes três dão a fé que vence o mundo. Se a missão se recordar destes três, então a crise na qual ela agora se encontra será uma crise fecunda. Então as muitas conferências não se ocuparão com programas, relatórios, propostas de melhoramento e questões da impregnação dos povos com o espírito cristão e democrático, aos quais Deus tantas vezes ignora e passa pa ra a ordem do dia, mas levarão a um apreço alegre desses meios da graça e da missão e assim também a um exame consciencioso de seu emprego e a uma confrontação autorizada da Igreja com os descrentes. Então a missão tam bém po de rá experimentar que seu êxito não reside em sua atividade social, filantrópica ou civilizatória, mas na oikodome (= edificação), na construção es piritual da Igreja de Jesus Cristo através dos três meios da missão. Mas então ela também saberá que sua tarefa não termina com a conversão de pessoas, a fundação de comunidades e a formação de novas igrejas autônomas, mas so mente quando as igrejas novas, através da administração própria e correta
81 H. SASSE, Vom Sakrament des Altars, Leipzig, 1941, p. 72-73. 82 W. FREY TAG, W. Die Verleiblichung des L ebens aus C ristus, Mission und Pfarramt, Berlin, 1946, caderno 3; Die Sakramente auf dem Missionsfeld, EMZ, 1940, p. 22 e 49ss.
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desses três meios de missão, realmente se tornarem “autônomas”, isto é, livres de todos os vínculos falsos, e orientarem sua vida somente pelos três meios. O serviço da missão somente estará concluído quando Deus levar a cabo a reden ção das pessoas através do retorno de seu Filho.
5. O caminho da comun idade até a justificação final O objetivo da missio dei é a redenção das pessoas da condenação eterna. Por isso também a missão da Igreja não pode ter outro objetivo. Ela continua a missio dei po r incumbência dele, sob sua promissão e colaboração, e com isso torna-se, ela mesma, um acontecimento histórico-salvífico e histórico-eclesiás tico que se realiza entre a ascensão e o reto rno do Senhor. Com isso a comuni dade se torna comunidade da salvação entre os povos. Ela é o símbolo do fato de que Cristo redimiu este mundo e simultaneamente o corpo de Cristo, por meio do qual ele continua sua atuação e constantemente manifesta ao mundo que ele é o Senhor, a quem também os demônios estão subordinados83. Isto se expressa em cada conversão e fundação de comunidade. Isto acontecerá nesse meio tempo através da Igreja até ele surgir visivelmente em sua glória, para revelar seu senhorio agora oculto. Portanto, a tarefa da comunidade somente pode ser a de servir ao senho rio de Cristo. Para isso ela é habilitada com seus dons. Logo, sua existência não é um fim em si mesma, mas tanto sua forma de existência quanto sua essência são determinadas sempre a partir do testemunho que ela deve à humanidade perdida. Por meio do testemunho ela dá continuidade ao apostolado e torna-se, assim, Igreja apostólica - um pensamento que teve um efeito arrebatador principalmen te na teologia holandesa84. Portanto, ela não é uma Igreja apostólica apenas porque se encontra sobre a base dos apóstolos e profetas, mas porque desempe nha as funções apostólicas da Igreja. Se não for assim, então ela pode se reportar tão pouco aos apóstolos como os judeus a Abraão. Ela somente é Igreja apostó lica quando envia os “mensageiros em lugar de Cristo” e se engaja pela salvação das pessoas através da doutrina dos apóstolos. Somente por meio da proclama ção dos fatos salvíficos testemunhados pelos apóstolos o senhorio de Cristo é levado aos povos e, por meio disso, as pessoas são colocadas diante da decisão. Portanto, elas também podem rejeitar ao Senhor; pois Jesus, o Senhor, agora vinculou seu senhorio somente à sua palavra e seu sacramento. Jesus Cristo, em quem Deus estava presente (2 Co 5.19), através do qual ele criou a nós e todas as coisas (Jo 1.3; Cl 1.16; 1 Co 8.6) e para o qual é
83 G. ST.4HI.IN, Kirche, Mission, Eschatologie in d er Sicht des N euen Testaments, p. 25s. 84 J. C. HOEKENDIJK, T he Call to Evangelism, p. 170ss.
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direcionada toda a nossa existência (Cl 1.16; 1 Co 15.49), tem direito sobre todas as pessoas. Por isso todas estão sujeitas ao juízo. Porém ele não exerce seu senhorio como um tirano antes, o âmbito de seu senhorio é o reino da graça. Sua basileia (= reino), por conseguinte, se torna menos visível no êxito da pregação do que no fato da pregação8586. Esta irá passar pelos povos no tem po intermediário. A ela o Senhor vinculou sua vinda (Mt 24.14). Assim, a pre gação da justificação sempre tem como objetivo a consumação81’. Aqui não considero como minha tarefa reproduzir in extenso (= detalha damente) o conteúdo dos trabalhos muito ricos que fundamentam a missão a partir da escatologia87. Eles têm o grande valor de aguçar a consciência da Igreja com vistas à responsabilidade última, mostrar-lhe as autênticas tarefas eclesiais e indicar-lhe a postura correta dentro do mundo. Meu objetivo era o de salientar como a missão e o senhorio de Cristo têm sua fundamentação e possibilidade na ação salvífica de Cristo. Esta ação salvífica, porém, somente pode ser entendida a partir da escatologia. Isto se aplica especialmente aos feitos centrais de sua atividade terrena, à sua morte e ressurreição (Rm 4.23ss.; 8.33ss.). Somente através de sua morte e através de sua ressurreição Jesus se tornou o Senhor e se tornará por toda parte onde for anunciada esta mensa gem (Fp 2.5-11). Neste sentido sempre se apontou para os nexos escatológicos. O testemunho da comunidade acerca da ação salvífica de Jesus sempre a levará ao caminho que foi trilhado por seu próprio Senhor, pois pelo fato de pregar a reconciliação e assim proclamar o senhorio de Jesus ela desafia o mal, que se apresenta para o combate8889. Assim como o Senhor somente chegou ao objetivo por meio de seu sofrimento, também sua comunidade é exposta a sofrimentos e tribulações8
Este é um fato que, nos trabalhos sobre a relação entre escatologia e missão
85 O. CULLMANN, op. dt., p. 141. 86 W. FREYTAG, Die Weltmission im Blick au f das Ende, p. 321. 87 V. nota 11. 88 K. S. LATOURETTE, What Clan We Expcct etc., op. eil., p. 146. 89 M. JÄGER, op. cit., p. 70s.; G. STÄHLIN, Die En ds ch au jes u un d die Mission, p. 134ss. 90 M. JÄGER, op. cit., p. 106.
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que conheço, parece-me, com exceção daquele de Stáhlin, não ter sido consi derado com a mesma ênfase como ocorre no Novo Testamento. Com isto, é evidente que eles correm o risco de se tornarem, sob o ponto de vista do senhorio de Cristo, uma theologia gloriae (= teologia da glória), que é ino portunaju stamente hoje, quando se reconheceu a com unidade em sua posição como povo de Deus. O caminho da Igreja e da missão passa, até atingir seu alvo, por sofrimen tos cada vez mais intensos. Hoje dificilmente se reconhece o significado deles para a educação da Igreja por Deus e na representação pelos pecados dos povos. Isto se deve, por um lado, ao fato de que, nesta época em que a Igreja nacional está no fim, as igrejas ainda não conseguem imaginar como o teste munho e a proclamação seriam possíveis sem a atitude fundamental benévola dos povos, com base na qual se pode proteger jurid icam ente os “direitos” da Igreja. A conseqüência sempre é ainda que se confia mais em garantias jurídi cas do que nas manifestações vitais da comunidade oriundas da fé. Por outro lado, nas missões, principalmente nas anglicano-americanas, ainda perduram os efeitos das idéias liberais do século 19, das doutrinas do social gospel e do reino de Deus erroneamente entendido, de modo que praticamente não se tornou familiar o pensamento de que os sofrimentos fazem parte da profissão da Igreja. Porém elas são uma advertência para repararmo s aonde po de levar um trabalho missionário fundado no senhorio de Deus ou de Cristo quando se o afasta da fundamentação na soteriologia. Quando se segue Schaeder* e se fundam enta a missão com uma “imperiologia”, então a redenção se torna con seqüência do senhorio de Jesus e não como n o Novo Testamento (cf. Fp 2.5-11 e todas as passagens que remontam a Is 53.11s.), onde, justamente ao contrá rio, o ser Senhor de Cristo é conseqüência do sofrimento e da morte. Neste caso Jesus não é mais o dominus (= pai de família) em seu dominium (= âmbito de proteção) conquistado p or meio de sofrimento e morte, mas um despotes (= imperador)91. Então, porém, também se precisa necessariamente ig no rar o fio condutor que, a partir de Is 53, também no que diz respeito à Igreja, se estende por todo o Novo Testamento. A me lhor referência a ele é a palavra de At 14.22: “Fortalecendo as almas dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé; e mostrando que, através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus.” Aqui não se deixou os cristãos com nenhuma ilusão, não se lhes prometeu um paraíso e também não se quis fun dar n ada parecido. Antes, de forma bem sóbria, mas também num a atitude poim ênica correta, chamouse-lhes a atenção para as conseqüências do ser cristão e instituiu-se-lhes anciãos, po rtanto pastores que, nos acontecimentos escatológicos, os conduzissem no caminho indicado p or Deus.
* N. doE .: Erich Schaeder (1861-1936), teólogo alemão que exigia uma teolog ia bíblica teocêntrica em con traposição à visão antropocêntrica da ép oca liberal. De certo modo , foi um precurso r da teologia dialética, cujo ma ior expo ente foi Karl Barth. 91 W. ELERT, Zwischen Gnade und Ungnade, München, 1948, p. 74s. e 78ss.
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Com isto é dado ao ministério, à direção da missão e da Igreja nova, uma tarefa especial: prep arar as comunidades para os sofrimentos e as tribulações. Aqui reside decerto o maior pecado de omissão do trabalho de missão, mas também uma deficiência na direção das comunidades em nosso país. Provavelmente teria-se agido mais de acordo com o modelo do Senhor e seus discípulos preparando os cristãos chineses para o sofrimento do que construindo universidades para eles. Com este pecado de omissão relaciona-se decerto também o fato de que hoje as igrejas novas enfatizam mais seus direitos do que suas obrigações; que elas aspiram a direitos iguais e buscam identificação com as igrejas antigas justo ali onde, segundo a palavra de Deus, poderiam plasmar sua vida de for ma própria; que elas pensam encontrar no modelo ou sistema ocidental de educação a chave para a vida independente e com igualdade de direitos, ao passo que deveriam se deixar determinar totalmente a partir do Novo Testa mento. A pregação do sofrimento, da capacidade para o sofrimento, do sentido dos sofrimentos, do sacrifício, do consolo, da força no sofrimento era uma parte essencial da proclamação neotestamentária. Por isto, a primeira comuni dade não recorre aos tribunais, nem pede a Deus que a livre do sofrimento, mas suplica: “Concede a teus servos que anunciem com toda a intrepidez tua palavra!” (At 4.29), a palavra da reconciliação, em cuja persistência e compro vação a comunidade experimenta sua justificação final (Mt 24.13; Ap 2.10). Assim também o sofrimento e a missão estão estreitamente relacionados. Isto, porém, só é possível porque a comunidade pode ser fiel na grande certeza da salvação que flui da justificação, como se expressa em seu canto de vitória de Rm 8.3 lss. Palavras como estas a com unidade somente pode aplicar a si mesma por que sabe que Cristo abarcou tudo em sua morte e ressurreição e ofereceu-lhe na palavra e no sacramento o que lhe quer presentear na eternidade. Ele a transformou já agora no ser celeste (Ef 2.5s.), para que ela procure o que é do alto (Cl 3.1), ajerusalém celeste (Hb 12.22); para que ela espere o novo céu e a nova terra (2 Pe 3.13), onde Deus irá enxugar todas as lágrimas e sua condi ção de estrangeira terá fim (Ap 21.1-7), porque ele, em seu juízo, por causa de Cristo lhe dará a recompensa de sua fidelidade. Assim, sobre cada trabalho de missão estão a seriedade da partida e a pressa, mas também uma certeza confiante: a certeza de que na justificação final será revelado tudo o que Deus já agora nos ofereceu na justificação por meio da palavra e do sacramento. Por isso, a justificação não é nenhuma “almofada de descanso”, como foi entendida erroneamente com muita freqüência, mas o fundamento e motor para o esplêndido serviço de levar a salvação às pessoas perdidas e edificar a comu nidade do Senhor, na qual ele consumará tudo o que ela pôde, na fé, aceitar de sua mão.