Um alemão no século XX António Rego Chaves
O alemão Ernst Jünger (1895-1998) foi sem dúvida um escritor maior do século XX. Por ocasião do seu 90.º aniversário, concedeu ao jornalista Julien Hervier uma série de entrevistas no seu refúgio de Wilflingen, tendo declarado, ao referir-se à I Guerra Mundial, em que combatera: «Para mim, um acontecimento importantíssimo foi a grande ofensiva de 21 de Março de 1918. Foi um grande confronto: milhares de homens pereceram em minutos. É difícil descrever tal fenómeno: por exemplo, o medo foi suprimido.» (…) «Há que respeitar a própria história. Experimento por esse jovem tenente que fui uma verdadeira simpatia, ainda que me sinta muito longe dele.» Lendo «A Guerra como Experiência Interior», não podemos deixar de evocar o guerreiro quase lendário, voluntário da Legião Estrangeira em 1913, heróico combatente da I Guerra Mundial, catorze vezes ferido em combate e condecorado – tal como o futuro general Erwin Rommel –, com a mais alta distinção militar alemã, a Ordem de Mérito e, enfim, o oficial integrado nas forças nazis ocupantes ocup antes de Paris. O já referido Julien Hervier, também tradutor de numerosas obras de Jünger, fez notar que todo o seu primeiro período de criação foi colocado sob o signo da guerra e do exército, com relevo para «Tempestades de Aço», que q ue André Gide considerou ser «o mais belo livro de guerra» que leu. Nesta altura, o jovem intelectual alemão encontrase profundamente marcado pelo pensamento de Nietzsche, bem como por Ariosto, cujo «Orlando Furioso» terá constituído para si leitura privilegiada nas horas de repouso em plena frente de batalha. Entre 1920 e 1925 escreve nada menos do que cinco obras consagradas à guerra: «Tempestades de Aço» (1920), «A Guerra como Experiência Interior» (1922), «Sturm» (1923), «O Bosquezinho 125» (1924), «Fogo e Sangue» (1925). E – há que não esquecer este incómodo «pormenor» –, publica em 1923 em «O Observador do Povo» um artigo «onde glosa as virtudes do nacionalsocialismo e venera a sinistra figura de Hitler. De facto transmuta-se num intelectual orgânico, numa meretriz, num apologeta do nazismo» (Daniel Múgica). A descoberta de Rimbaud salvá-lo-á da obsessão bélica e militarista, tal como o convívio com intelectuais da estirpe de Bertolt Brecht, Ernst Toller ou Carl Schmitt. O resultado será, em 1929, a publicação de «O Coração Aventuroso» – que de facto inaugura a sua carreira, não como um soldado que faz livros, mas como um escritor que foi soldado. António Carlos Carvalho, no posfácio desta edição portuguesa de «A Guerra como Experiência Interior», transcreve uma afirmação do escritor que ainda hoje dá que pensar. Dizia ele a Antonio Gnoli e Franco Volpi, em 1997, que o choque registado entre 1914 e 1918 foi profundamente diferente dos anteriores, porque não envolveu apenas exércitos, mas potências industriais. E acrescentava: «Daí a minha tentativa de elevar a literatura à categoria de experiência de vida antes que acontecesse definitivamente tudo o que Marx tinha previsto, isto é, que não seria mais possível 1
conceber uma “Ilíada” após a invenção da pólvora para canhão.» De facto, Jünger talvez não tenha então abdicado de escrever a sua «Ilíada» quando já não havia espaço psíquico para ela. A I Guerra Mundial, selvático confronto do expansionismo germânico com os imperialismos britânico, russo e francês, evidenciava estarem em causa, acima de tudo, gigantescos interesses económicos e geoestratégicos onde o requintado esteta alemão persistia em observar, acima de tudo uma epopeia, mítica «embriaguez» da sangrenta «festa» da burguesia e da arraia-miúda alemãs irmanadas por sublimes sentimentos patrióticos. Contra «a massa e o igualitarismo, novos deuses» que considerava execráveis, erguia o estandarte da virilidade, louvando a «raça sã, vigorosa, que gosta do combate pelo combate», fonte de incomparável «prazer cavalheiresco». Nada mais delirante… Desde a invasão da Bélgica pela Alemanha, a 3 de Agosto de 1914, até à data em que o livro termina, 21 de Março de 1918, vésperas da derrota germânica, tudo se teria passado sob a égide de um hegeliano e místico «espírito das trincheiras». A fraude intelectual cometida pela mente elitista de Jünger dificilmente poderia ter chegado mais longe no desprezo pelo «falatório dos democratas» da República de Weimar e no panegírico da «ética europeia pura e dura», do «autêntico espírito combatente» e da «sacrossanta bravura viril» anunciadores da bárbara desforra nacionalista que, em nome da «honra da Alemanha», iria tomar corpo, após a aplicação do humilhante Tratado de Versalhes, com Adolf Hitler. Proclamando que «só a guerra fez das grandes religiões o apanágio da terra inteira»; que «a guerra fez surgir à luz do dia as raças mais capazes, fez de inúmeros escravos homens livres»; que, «como o instinto sexual, a guerra não é instituída pelo homem, é lei da natureza, e por isso nunca poderemos fugir ao seu império», Jünger acabaria por sustentar que «a civilização superior tem como dever sagrado possuir os batalhões mais numerosos» e que o êxtase, «próprio do santo, do grande poeta e do grande amor, é também o apanágio da grande bravura». Dir-se-ia que o fantasma de Nietzsche, enfim reconciliado com o de Wagner, tomara Bayreuth de assalto para a transformar em capital da ópera bufa… Do outro lado da barricada, um Henri Barbusse, com «O Fogo» (1916), um Robert Graves, com «Adeus a Tudo Isso» (1929), um Céline, com a «Viagem ao Fim da Noite» (1932), utilizando o realismo, a crueza e o rigor exigível pela memória de milhões de mortos, erguem imperecíveis monumentos à desmistificação da Grande Guerra. Quanto ao grande escritor alemão, retomará uma brilhante carreira cujos pontos cimeiros – «O Trabalhador» (1933), «Sobre as Falésias de Mármore» (1939), «Heliopolis» (1949), «Eumeswil» (1977) e um fascinante «Diário», iniciado em 1939 – o tornarão numa referência obrigatória da literatura do século XX. Ernst Jünger, «A Guerra como Experiência Interior», Ulisseia, 128 páginas
2