Um elogio da misantropia António Rego Chaves Regra geral, os editores portugueses adoptam em relação aos escritores escritores clássicos uma prática ditada pela pela lei do menor menor esforço: partem partem do princípio princípio de que todos os potenciais interessados interessados na sua leitura já sabem tudo o que é necessário saber sobre o contexto histórico em que se insere cada uma das suas obras e que conhecem a biografia do autor. Assim sendo, «Os Devaneios do Caminhante Solitário» não necessitariam necessitariam de qualquer espécie espécie de apresentação: mas a verdade é que a exigem, mesmo em Franca, onde até colecções colecções de bolso inserem introduções e cronologias sem as quais esta obra se tornaria incompreensível incompreensível para uma parte significativa dos seus mais desprevenidos desprevenidos leitores. Jean-Jacques Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) escreveu «Les Rêveries du promeneur solitaire» num momento trágico da sua existência: sabia que pouco tempo de vida lhe restava e sentia-se, sentia-se, talvez como nunca, deprimido pelas sucessivas sucessivas humilhações e perseguições perseguições de que fora alvo por parte de muitos daqueles que se viam contestados pelas suas ideias. Desde David Hume até aos seus antigos companheiros da «Enciclopédia» (Diderot, D’Alembert, D’Alembert, Helvétius, Voltaire, Montesquieu, Condillac, Quesney, Turgot) todos o repudiavam, o célebre «Emílio» fora lançado à fogueira em Paris e em Genebra, a sua casa de Motiers tinha sido apedrejada por uma turba de calvinistas fanáticos. Em finais de 1776 começou a redigir este seu último texto – que, tal como «As Confissões» e os «Diálogos», só postumamente seria publicado. Encontrava-se, então, à beira da loucura: considerava com desconfiança todos os que dele se aproximam, não se sentia seguro em parte alguma, pensava pensava que era odiado por por quantos o conheciam. conheciam. Voltaire, tão detestado pelo alto clero clero como ele próprio, a quem quem tratara como um mestre mestre e com com quem depois se se confrontaria por causa da religião e do teatro, troçara da sua obra romanesca, dos seus paradoxos religiosos religiosos e culturais, culturais, da sua apologia do primitivismo, primitivismo, denunciando denunciando a agitação política que ele teria fomentado em Genebra. Além disso, acusara-o de trair os «Filósofos» (Marie-Hélène (Marie-Hélène Cotoni). A sua solidão era, pois, na altura, quase total. A «Profissão de Fé do Vigário Saboiano» (incluída no «Emílio») fora a causa de grande parte das suas suas desgraças. O trono, trono, o altar e até alguns «Filósofos» tinham atacado a obra e o autor, por vezes com extrema violência. Protestantes e católicos consideraram consideraram a ideia de «religião natural» como um grave atentado contra a Revelação, a Igreja e os milagres. Salientou Jean Cocteau: «Rousseau cometeu a pior das imprudências. Tornou pública toda a sua vida, e comprometeu a sua obra na sua vida…A grande tarefa da última metade da sua vida foi a de se justificar. Por isso foram escritos as ‘Confissões’, os ‘Diálogos’, os ‘Devaneios’. ‘Devaneios’. Há que admirar ainda mais a sua elevação, o seu absoluto desinteresse, desinteresse, sabendo-se que estes livros foram antes de tudo discursos de defesa.» As primeiras frases dos «Devaneios» dão o tom a todas as suas páginas, concebidas como que nos intervalos de uma longa e profunda depressão, quando o doente recobra as forças que lhe permitirão recomeçar a transmitir à folha em branco o mal de que
padece: «Eis-me sozinho na Terra, sem irmão, parente próximo, amigo ou companhia a não ser eu próprio. O mais sociável e o mais afectuoso dos homens foi proscrito da sociedade por um acordo unânime.» O autor explica, depois, o seu estado de espírito, resultante de uma conspiração ou perseguição, talvez tão real quanto imaginária, de que se considera vítima: «Logo que comecei a entrever toda a extensão da intriga, perdi para sempre a ideia de alterar, enquanto for vivo, a opinião do público a meu respeito; não podendo já ser recíproca, essa alteração ser-me-ia inútil. Por mais que os homens quisessem voltar a procurar-me, já não me encontrariam. Graças ao desprezo que eles me inspiraram, a sua convivência seria para mim insípida e mesmo incómoda; sinto-me cem vezes mais feliz na minha solidão do que se vivesse entre eles. Arrancaram do meu coração todos os prazeres da sociedade. Na minha idade já não podem voltar a germinar; é demasiado tarde. Doravante é-me indiferente que os meus contemporâneos me causem bem ou mal, e façam o que fizerem, nunca serão nada para mim.» O autor de «O Contrato Social» evidencia conhecer bem a feira das vaidades onde se movia boa parte daqueles que o atacavam: «Conheci muitos que filosofavam bem mais doutamente do que eu, mas a sua filosofia era-lhes, por assim dizer, estranha. Querendo ser mais sábios do que outros, estudavam o universo para saber como estava organizado, tal como teriam estudado qualquer máquina que tivessem visto, por mera curiosidade. Estudavam a natureza humana para poderem falar dela sabiamente, mas não para se conhecerem; trabalhavam para instruir os outros, mas não para se esclarecerem interiormente. Muitos deles queriam apenas escrever um livro, um livro qualquer, para que fosse bem acolhido. Quando esse livro estava escrito e publicado, o seu conteúdo deixava de lhes interessar, a não ser que os outros o adoptassem e para o defenderem no caso de ser atacado, mas sem dele tirarem algo que a si próprios servisse, sem sequer se preocuparem com o facto de esse conteúdo ser falso ou verdadeiro, desde que não fosse refutado.» É difícil ser mais claro na oposição entre a interioridade própria do autêntico pensador e a ridícula futilidade que caracteriza a simiesca ânsia de «gloríola literária»… Havia, pois, justas razões para o elogio da misantropia pelo ensaísta dos «Devaneios». Goethe entendeu-o bem, quando proferiu a sua célebre afirmação: «Com Voltaire, é o mundo antigo que acaba, com Rousseau, é um mundo novo que começa.» E um Hölderlin, uma Madame de Staël, um Stendhal, não lhe regatearam homenagens. Mas Flaubert não lhe perdoou a melancolia, Taine o egocentrismo, Nietzsche (precisamente Nietzsche, que acabou louco!) a falta de saúde mental. Isso não impediu que, ainda há poucos anos, um reputado crítico literário francês tivesse escrito que, de todas as suas obras, «esta é a que está mais próxima de nós, aquela que mais parece perdurar como a verdadeira obra-prima do autor.» Quem ousará contrariá-lo? http://sites.google.com/site/incensuraveis/
Jean-Jacques Rousseau, «Os Devaneios do Caminhante Solitário», Edições Cotovia, 2007, 151 páginas