l\lla urict! Tardif
Saberes docentes e formação profissional
'' ·"'" '' ' ""''"""iun;~i s de Catalogação na Publicação {CIP} (t ·.,to.ll'.l Bras ileir a do Livro, SP, Brasil) 1 .... 111
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· .. d ,, .,..,.. dnccn tes e formação profissional / Maurice r. .. .r,r 11. ,.,1.- Peh·ópolis, RJ: Vozes, 2010.
1\d >lio)',rilfia. ISIIN 978-85-326-2668-4 h
I . Pesquisa educacional 2. Professores •rmação profissional. I. Título.
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CDD-370.72
lndices para catálogo sistemá tico: 1. Professores : Formação profissional :
Pesquisa educacional
370.72
2. Professores: Saberes docentes: Pesquisa educacional 370.72
/.IJ EDITORA Y VOZES Petrópolis
© 2002, Maurice Tardif Direitos de publicação: 2002, Ed itora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ In ternet: http: / /www .vozes.com .br Brasil Todos os d ireitos reservados. Nenhuma pc1rte desta obm poderá ser reproduzida ou transmitida p or qualguer forma e/ou quilisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivad a em qualquer sistema ou banco de d ados sem permissão escrita da Editora. Trnduçi!o: Francisco Pe reira f 'tlilom('iín I ' org. lilerárin: Deise F. Via na de Castro
c 'a/'11: i\ndré Gross e Monique Rodrigues
ISBN 978-85-326-2668-4
Com amor e gratidão, dedico este livro a Cecília Maria Ferreira Borges. Editado conforme o novo acordo ortográfico.
Este livro foi composto c impresso pela Editora Vozes Ltda.
Sumário
Introdução, 9
Parte I - O saber dos professores em seu trabalho, 29 1. Os professores diante do saber: esboço de uma
problemática do saber docente, 31 2. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magis tério, 56 3. O trabalho docente, a pedagogia e o ensinoInterações humanas, tecnologias e dilemas, 112 4. Elementos para uma teoria da prática educativa, 150 5. O professor enquanto "a tor racional"- Que racionalidade, que saber, que juízo?, 183 Parte Il - O saber dos professores em sua formação, 225 6. Os professores enquanto sujeitos do conhecimento, 227 7. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários- Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências para a fo rmação docente, 245 8. Ambiguidade do saber docente, 277
Referêllcias bibliográficas, 305
Introdução
QUAiS são os saberes que servem de base ao ofício de pro-
fessor? Noutras palavras, quais são os conhecimentos, o saber-fazer, as competências e as habilidades que os professores mobilizam diariamente, nas salas de aula e nas escolas, a fim de r ealizar concretamente as suas di versas tarefas? Q ual é a natureza desses saberes? Trata-se, por exemplo, de conhecimentos científicos, de saberes "eruditos" e codificados como aqueles que enco ntramos nas disciplinas universitárias e nos cunículos escolares? Trata-se de conhecim entos técnicos, de saberes da ação, de habilidades de natureza artesan<~l adquiridas através de uma longa experiência de trabalho? Todos esses saberes são de caráter estritamente cognitivo ou de caráter discursivo? Trata-se de conh ecim entos racionais, baseados em argumentos, ou se apoiam em crenças implícitas, em valores e, em última aná lise, na subjetividade dos professores? Como esses saberes são adquiridos? Através da experiência pessoal, da formação recebida num instituto, numa escola normal, numa universidade, através do contato com os professores m ais experientes ou através de outras fontes? Qual é o papel e o peso dos saberes dos professores em. relação aos outros conh ecimentos que marcam a atividade educativa e o mundo escolar, como os conhecimentos científicos e w1i.versitários que servem de base às m atérias escolares, os conhecimentos cultw·ais, os conhecimentos incorporados nos programas escolares, etc.? Com o a formação dos professor es, seja na universidade ou noutras instituições, pode levar em consideração e até integrar os sa-
beres dos professores de profissão na formação de seus futuros pares?
sit~ação dentro da escola e da sociedade (fARDIF & LESSARD, 2000). Por isso, sempre me pareceu absurdo falar do "Saber"
Os oito ensaios que compõem este livro tentam fornecer respostas a estas questões que não somente têm donünado a pesquisa internacional sobre o ensino nos últimos vinte an?s, mas tam?é~ têm marcado profundamente a problematíca da proftsswnalização do ofício de professor em vários países (TARDIF, LESSARD & GAUTHIER, 1998). Esses ~~~sat~s.representa~ diferentes momentos e etapas de um 1 t~nerano de pesquisa e de reflexão que venho percorrendo ha doze anos a respeito dos saberes que alicerçam o trabalho e~ formação dos professores das escolas primárias e secwldanas. Cada um deles con stitui tun esforço de sú1tese não só ~e ~esquisas emp~·icas realizadas junto a professores de proflssao, mas tambem de questões teóri.cas sobre a natureza d?~ saberes (conhecimentos, saber-fazer, competências, habilidades, etc.) que são efetiva mente mobilizados e utilizados pelos professores em seu trabalho diário, tanto na sala de aula quanto na escola.
(ou do Conhecimento, da Pedagogia, da Didática, do Ensino, etc.), tal como o fazem certos psicólogos e pesquisadores anglo-saxões da área da educação, como se se trata_sse de wna categoria autônoma e separada das outras realtdades sociais, organizacionais e humanas nas quaiS os professores se encontram mergulhados. Na realidade, no âmbito dos ofícios e profissões, não creio que se possa f~a_:.?~ ._:ab~l~ sem relacioná-lo c?m os condicionantes e com o contexto do trabalho: o saber e sempreósãher de a1guém quetrabãlha algu.o.:a coisa no int~t~ de realizar um objetivo qualquer. Além disso, o saber nao e uma coisa que flutua no espaço: o saber dos prof~ssor~s é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a Jdentldacle deles, com a sua experiência de vida e com a sua história ~ profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc. Por isso, é necessário estudá-lo relacionando-o com esses elementos constitutivos do trabalho docente.
?.'-partir de 1980, a questão do saber dos professores fez surgu dezenas de milhares de pesquisas no mundo angl~-saxão e, mais recentemente, na Europa. Ora, essas pesq~sas empr~ga~1 teorias e métodos bastante variados e propoemas mais d1versas concepções a respeito do saber dos professores. Nesta apresentação, gostaria de explicitar a minh~ própria persp ectiva teórica, a fim de ajudar os leitores a Situarem melhor o meu trabalho entre as pesquisas contemporâneas sobre a questão.
.. Devo dizer inicialmente que, para mim, a questão dosaber dos professores não pode ser separada das outras dimensões do ensino, nem do estudo do trabalho realizado diariamente pelos professores de profissão, de maneira mais específica. Em todos esses anos, sempre situei essa questão do saber profissional no contexto mais amplo doestudo da profissão docente, de sua hlstória recente e de sua 10
.4 Escapar de dois perigos: o "mentalismo" e o "sociologismo" A abordagem por mim preconizada neste livro tenta escapar de dois perigos, que designo pelos termos de "mentalismo" e "sociologismo", e procura, ao mesmo_t~mp~, e~t~ belecer un1a articulação entre os aspectos sociais e mdiVIduais do saber dos professores. Ela se assenta na ideia de que esse saber é social, embora sua existência depend ~ do_s professores (mas não somente deles) enquanto atores mdtviduais empenhados numa prática. O mentalismo consiste em reduzir.2..~-~r,_~Stl:!§.iva .QU p~pte,~_P!._?._C~!lJ~nt<$~J!~Pçe?0!!@çp~§.t.q~':l
~~~ens.!...r-r~~~~s_a~~n!Q._~~~"!f_9J.rr!ªS·?g~,. ~§.!l~.Cn:t!!S, ~.!SS~yo suporte_:..<:..~~gg~~~'-E.9-~.m.d wJç!.J:.t_Os_. ~m
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,,. termos_ filosóficos, o m~ntaüsmo é uma forma de s ubjetivis, .· mo, pois tende a reduzu o conhecimento e t , ]idade d ' a e a propu a rea' em _a 1gu_mas e suas formas radicais, a representa~oe~ ( entais_CUJa sede é a atividade do pensamento indivi-ua pouco Importa se este é, em seguida, numa perspectiva baseada no materialismo ou no reducionismo biológico . ' determmado pela atividade cerebral) · Desde o d esmoronamento do beha~iorismo na América do Norte e o cansedas ciências cogtu·ti·vas o men taquente desenvolvmlcnto ·;, li . , < , / smo, com s uas mum~r~s v~~~m!f~ça_ções {cÕI~ 1 y:,-t· :. ~;nof s~C:.?~~nstruhvisn_:Qxé!ç!!s~_l,_~~():j_~_do processamên~ ~n ormaçao: etc.[ffie~ce_~C):" a_cg~êepÇão de con.hev ~ predomman te na ........... educação -- ··1·açao ~· ... · .2' !'! ctmento "7----------- ---.. ' ..tanto ' ...emre ao en.l _/ sr ~_ _:_-_:~~!-~~.!. apE_e~_<:!i~~_gep. · · - --
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A minha posição, no que se refere ao m.entalismo é que o 'Y saber dos~~~-~.~-~:!l ~a.~-e~ S()_~~al"- por vários ~o ti vos: lu, Em p rimeiro lugar, esse saber é social porque é par ti lha0_dF '-\D do por todo um gr~tpo de agentes - os professores -que posvJ.i ,:tsuem uma formaçao comum (embora mais ou menos variácfv <.)' vel conforme os nív~is, ciclos e graus de ensino), h·abaÚw:U ' I)( numa mesma. orgaruzação e estão SUJ·e,·tos , p or causa d a es, t. t QJ ·r u tml co1etJva de seu trabalho cotidiar1o ~c . d" . . . , ' ' on rctonament?s e ICCursos comparáveis, entre os quais programas matén as a serem e~sinadas, regras do estabelecimento, et~. Desse ponto de v_tsta, as representações ou prá ticas de um wo/ !~ssor especifi.co._p.ormais.originai.s_que..sejam,_ aobam ;;;;__ .Y _tido s?mei~te quando colocadas fm __ç!gstaç_rue :m..r~ã~ e~ sltuaçao coleti.Ya...de-t-rabaJho... ~ --__a
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~~ se:_gundo lugar, esse saber é social porque sua posse : ut~zaçao rep_o~ts~m sobre todo um sistema que vem ar~ntn a_ su~ _l egittmJda~e _e orientar sua definição e utili~a ça~. um ~e~ s•?ad~, admmis tração escolar, sindicato, associa~oes pwflsswn~IS, grupos científicos, instância de atestaç~o e de aprovaçao das competências, Ministério da Educa~;o, etc. Em suma, u_IEJ?rofessor nunca _de~~~~e em · --~~?-~~~ E.~:~n?._~er profis~~iQTh1L Ao contrári~ esse saber e proa uzião socialii1enté:-resulta de uma '
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ciação entre diversos grupos. Nesse sentido, o que um "professor deve saber ensinar" não constitui, acima de tudo, um pf'óble.;:;ãCõgniliVõ-õUêpT5temo16gicõ, ~ãs~li:n_;~~~~e;tão social, tal como mostra a lústóriãéTã pronss~o docente (NÓVOA, 1987; LESSARD & TARDIF, 1996). Por isso, no âmbito da organização do trabalho escolar, o que um professor sabe depende também daquilo que ele não sabe, d aquilo que se supõe que ele não saiba, daquilo que os outros sabem em seu lugar e em seu nome, dos saberes que os ou tros lhe opõem. ou lhe atribuem ... Isso significa que nos ofícios e profissões não existe conhecimento sem reconheci mento social. (;~ Em terceiro lugar, esse saber também é social porque ~s ~róprios ob ·etos são objetos s_q_ç}Q!s, isto é, práticas sociais .
ontrariamente ao operário de wna indústria, o professor i não trabalha apenas ~m "objeto_", ~n sujeitos_c \ ~rOJeto: transtormar os altmos;eêfi:iCã-lõSe inslTuí-los. Ensinar"-écígifcom outros seres humanos; é sabe~ / , agir com outros seres humanos que sabem que lhes ensmo; e '(,--r' ( ·. saber que ensino a oulTos seres humanos que sabem que sou ~ 1' um professor, etc. Daí decorre todo um jogo sutil de conheci- ~;~· mentos, de reconhecimen tos e de papéis recíprocos, modifi- v) cados por expectativas e perspectivas negociadas. Portanto, o . j saber não é uma substância ou um conteúdo fechado em si mesmo; ele se manifesta através de relações com plexas entre ~ o professor e seus alunos. Por conseguinte, é preciso insere1 ver no próprio cerne do saber dos professores a relação com o ou tro, e, plincipalmente, com esse outro coletivo represen tado por uma turma de alunos. Em quarto lugar, tais como mostram a história das disciplinas escolares, a história dos programas escolares e a história das ideias e das práticas pedagógicas, 9 que os professor~ ,.,~ _1;!]]..3.!.!.~~-(os "~beres a serem ensinados") e sua maneira de ~F e0si.nar (o "saber-ensina(') ~xolu.eiD....ÇQffi_Q...,re!!P-º-~-~~ m udanças sociais. No campo da pedagogia, o que era "verdadei- J rõ'':'-;rútil" e nbom" ontem já não o é mais hoje. Desse pon to de vista, o saber dos professores (tanto os saberes a serem ensinados quanto o saber-ensinar) está assentado naquilo que
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la tais com.o as ideologias pedagógicas, as lutas profissio. osição e a inculcação da cultura dom man te, are•' . naJ.s, a unp c . , . N · 1 ism.o o saber rodução da ordem sunbohca, etc. _o socw og ______ ...<..-- --:p . tos e' sempre associado a outra corsa -eal-dos atores conoe . . . u· .dd I -- -- --·- ·· · · - ·.- - :r ·-: . . sua intehg1b 1 a e não a si U1esmo, e lSSO uetermma a - . . - ·o qu -------····· -· · · · · ·. · · l"dades sooa1 s com --:. nuisador (que uwoca entao ~~.U------~--- ... para o_p~?:t::_ ---- - - · os atores de · , cação) ao mesnw tempo ern que pnva . f . expl. n1 · t e de trans or' l oda e qüâlquer capacidade de co 1ecunen o v . , . .t - e ...,ç;;o Levado ao e,.. tremo, o SJ uaça 0 " " · . . ,d 111ação de. sua propna f t ·es sooms em. · -bonecos -:-· . . ··.e sociologtsmo trans orma.~-2!.---··---··--:-·· ventrilO UO. põUCõli.n porta O que eles Sa.Lba m. dLZ~l a re_sí'leifõâa~UÜO que fazem e dizem, seu sab~r decl~ad~ n_ao p assa de umap. rova suplen""Lentar da opaodade J.de~~ogJ.ca < •_ . , li d · s "luzes emahena qual a sua conscJ.enoa esta mergu :la a. a . d nam necessariamente d e outra p~t~te,_ou seja,_ o con ·. lo oriundo da pesquisa em c•enoas soc:ats, conl:~o ~~~~ esse cujos orgulhosos distribuidores sao os sooologos e outros cientistas sociais. . · ' · ossível comDiante d o sociologrsmo, aftr mo que e unp l , l preender a na tureza do saber dos professores sem co ocado em íntima relação com o que os professores,d~os espOaçosbe~ . - · f m pensam e 1zem. sa trabalho cotidtanos, sao, aze ' .. , tem. dos professores é profundamente soctal e e, ao mesm~ o o saber dos atores individuais que o possuem_e o tncmp o~am à sua prática profissional para a ela adapta-lo e ~,ar~ fransfonná-lo. Para evitar equívocos, lembre~os q~e _so . l" não quer dizer "supraindividual": quer dtzer re açao e ~~eração entre Ego e Á !ter, relação entre mim e os outo~ re. d m ml·m relação com os outros em re açao a percub n o e . , . ""lmim e também relação de mim para cmmgo mesmopqum ' , d tr m im mesmo. ortana do de do essa relação e presença o ou o em , . " to o saber dos professores não é o "foro mtnn o _rovo re' resentações men tais, mas um saber sempre hgad~ a uma sifuação de trabalho com outros (alunos, coleg~s, pal~, et~, um saber ancorado numa tarefa complexa (ensmar), slt_ua do m espaço de trabalho (a sala de aula, a escola), enraJ.Za o nu . d d numa instituição e numa soo e a e.
Bourdieu cham a de arbitrário cultural: ele não se baseia em nenhuma ciência, em nenhuma lógica, em nenhuma evidência natural Noutras palavras, a Pedagogia, a Didática, a Aprendizagem e o Ensino são construções sociais cujos conteúdos, formas e modalidades dependem intimamente da história de uma sociedade, de sua cultura legítima e de suas culturas \ \ (técnicas, humanistas, científicas, populares, etc.), de seus poderes e contrapoderes, das hierarquias que predominam na educação formal e informal, etc.
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Finalmen te, em quinto lugar, de acordo com uma literatura' bastante abundante, esse saber é social por ser adquirido no contexto de uma socialização profissional, onde é incorporado, modificado, adaptado em função dos momentos e das fases de uma carreira, ao longo de urna his tória profissional onde o professor aprende a ensinar fazendo o seu trabalho. Noutras palavras, o saber dos professores não é um conjun to ~~ú<;!~~-5.?·~ ~i_v~3!_~~~i_?"§S?!e ~·ma -~ez por todas, ~~~-~-PE?C.t:~_?_o .~I.n.. _c ~n~~·ução ~o longo d~ ur,na carreira profis_?~O.!J~~.n.ª-. qt!?} s>.Pr9fessor._~pren.cl~ P.~:9gE_e_?si vâmenfê ã -(forninar seu ambiente de trabalho, ao mesmo te~ripo _q~~ ~e li) Sere n eJe e Oi.nteriO;iza po~ meio cie .re~ gra.s~
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Em suma, pouco importa em que sentido consideramos a questão do saber dos professores, não devemos esquecer sua "natureza social", se quisermos realmente representá-lo sem desfigurá-lo. Entretanto, ao tentarmos escapar do mentalismo, não devemos cair no sociologismo. O sociologismo tende a eliminar totalmente a contribuição dos atores na cons trução concreta do saber, tratando-o como uma produção social em si mesmo e por si mesmo, p rodução essa independente dos contextos de trabalho dos professores e subordinada, antes de mais nada, a mecanismos sociais, a fo rças sociais quase sempre exteriores à esco-
1. Cf. capítulo U.
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Essas constatações são apoiadas por pratica mente todos os estudos que se debruçaram sobre essa guesti'ío nos últimos quinze anos1 . De fa to, eles indicam com veemência que o saber dos professores depende, por um lado, das condiç~es concretas nas.9uats o trabalho deles se reãliiá'é; poi·_9ütro~~-J~ersona1Jdade e da expenencíãprõf.iSs iõ.ri..ãl dos própr~<.?~.PF2f_essores: Nessa perspecl:l.va:-o- ·sàbél: dos professores parece estar assentado em transações constantes enh·c o que eles siio (inclui.n do as emoções, a cognição, as expectativas, a história pessoal deles, etc.) e o que fazem. O ser e o agir, ou melbor, o que Eu sou e o que Eu faço ao ensinar, devem ser vistos aqui não como dois polos separados, mas como resultados dinâmicos das próprias transações inseridas no processo de trabalho escolar. Os saberes de um p rofessor são uma realidade social materializada através de uma formação, de progra mas, de práticas coletivas, de disciplinas escolares, de um
Saber e trabalho Um primeiro fio condu tor é que o saber dos professores deve ser compreendido em íntima relação com o trabalho de2. Esse$ estudos s.i o c i ta dos em diferentes partes deste livro.
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les· na escola e na sala de aula. Noutras palavras, embora os professores u tili zem diferentes saberes, essa utilização se dá em fw1ção do seu trabalho e das situações, condicionamentos e recm sos Ligados a esse trabalbo. Em smna, o saber está a serviço do h·abalho. Isso significa que as relações dos professores com os saberes nunca são relações estrita mente cognitins: são relações medi<1das pelo trabnlho que lhes fornece princípios para t!nfrentar e soluciona1· si tuações coticlianas. Essa ideia possui duns funções conceituais: em primeil'o lugar, visa a relacionar organicamente o saber à pessoil do trabalhador e ao seu trabalbo, àquilo que ele é e faz, mas também no que foi e fez, a fim de evitar desvios em direção a concepções que não levem em conta sua incorporação ru:m processo de trabalho, dando ên fase à socialização na profissão docente e ao domínio con textualizado da atividade de ensinar. Em segundo luga r, ela indica g ue o saber do professor traz em si mesm o as m arcas de seu trabalho, que ele não é somente utilizado como um meio no trabalho, mas é produzido e modelado no e pelo trabalho. Trata-se, portan to, de um trabalho multidimensional que incorpora elemen tos re lativos à identidade pessoal e profi ssion al do professor, à s ua situação socioprofissiónal, ao seu traba lho d iári o na escola e na sala de aula. Essa ideia deve ser associada à tese de Delbos e [orion (1990.} sobre os salineiros. Segundo esses autÕres, o sabgr_d!Ltrahalb.o...não. LYJ:n_;;ªber SQ~!e o_gabaJh.( mas real~e,AQ_trabalho,.~-o~~~~ai ele_~~z ~_P.O d_7_~_co~ do com formas m últi las de simbolização e O!!..QE..~r~!~la4: zaçaoli ges 2.~-~--·~·12ªlavras necesSãrias.iJ.;,~i:}li~-~5~~co~ craadõTrãlJalho. Estabelecer a distinção entre saber e traoafi,o e uma operação analítica de pe~quisador ou de engenheiro do trabalho, mas, para um grande número de ofícios e profissões, essa distinção n5o é tão clara nem tão fácil no processo dinâmico de trabalho.
Diversidade do saber Um segundo fio condutor de que m e sirvo há muito tempo é a ideia de diversidade ou de pluralismo do saber 17
docente. De fato, como veremos em diversos capítulos, quando questionamos os professores sobre seu saber, eles sereferem a conhecimentos e a um saber-fazer pessoais, falam dos saberes curriculares, dos programas e dos livros didáti cos, apoiam-se em conhecimentos disciplinares relativos às matérias ensinad as, fiam-se em sua própria experiência e apontam certos elementos de sua formação profissional. Em suma, o saber dos professores é plural, compósito, heter ogêneo, porque envolve, no próprio exercício do trabalho, conhecimen tos e um saber-fazer bas tante diversos, provenientes de fon tes vari adas e, provavelmente, de natureza diferente. No primeiro capítulo deste livro, ap resento uma tentativa de interpretação desse problema da diversidade, propondo um modelo de análise baseado na origem social dos saberes dos professores. Esse modelo, formulado em 1991, parece-m e válido ainda hoje. Na minha opinião, ele pode ser mais pertinente do que as diferentes tipologias propostas por vários autores para representar a diversidade dos conhecimentos dos professores Bourdoncle (1994), Doyle (1977), Gage (1978), Gauthier et al. (1997), Martin (1993), Paquay (1994), Raymond (1993) e Shulman (1986). Estes autores usam critérios cognitivos o u teóricos a partir dos quais propõem diferentes classificações dos saberes, mas os critérios m udam de uma tipologia para outra: ora comparam-se princípios epistemológicos, ora correntes de pesquisa, ora modelos ideais ... Por conseguinte, parece-me mais pertinente evitar o uso de tais critérios, os quais, no fu ndo, refletem sempre os postulados epistemológicos dos autores, e propor um modelo construído a partir das categorias dos próprios docentes e dos saberes que utilizam efetivamente em sua prática profissional cotidiana. Esse fio condutor relativo à diversidade do saber dos professores permite também assinalar a natureza social desse m esmo saber. De fato, como será m ostrado nos capítulos 1 e 2, os diversos saberes e o saber-fazer dos professores estão longe de serem produzidos por eles mesmos ou de se
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originarem do seu trabalho cotidiano. Ao contrário, o saber dos professores contém conl
Temporalidade do saber O saber dos professores é plural e também temporal, uma vez que, como foi di to anteriormente, é ad~uirido ~o contexto de uma história de vida e de uma carreu a profts19
sional. O capítulo 2 trata dessa questão, que também tem um impacto importante sobre a formação d os professores, como veremos nos capítulos a respeito desse tema . Dizer que o saber dos professores é temporal significa dizer, inicialmente, que ensin ar s upõe aprender a ensinru·, ou seja, aprender a dom inar progressivam ente os saberes necessários à realização do trabalho docente. Os inúmeros tra balhos ded icados à aprendizagem d o ofício de professor colocam em evidência a im portância das exp eriências familiares e escolares anteriores à formação inicial na aq uisição do saber-ensinar. Antes mesmo de ensinarem, os fu turos professores v ivem nas salas de aula e nas escolas-e, portanto, em seu futuro local de trabalho - duran te aproximadamen te 16 anos (ou seja, em torno d e 15.000 horas). Ora, tal imersão é necessariam ente formadora, pois leva os fu tu ros professores a adquirirem crenças, represen tações c certezas sobre a prá tica do ofício d e professor, bem com o sobre o q ue é ser alw1o. Em suma, antes mesm o de começarem a ensinar oficialmen te, os professores já sabem, de muitas manei ras, o que é o ensino por causa d e toda a sua história escolar a nterior. Além d isso, muitas pesquisas mostram que esse saber herdado d a experiência escolar an terior é mu ito forte, que ele persiste através do tempo e que a formação universi tária não consegue transformá- lo nem mui to menos abalá-lo. A ideia de temporalidade, porém, não se limita à his tória escolar o u familiar dos professores. Ela também se aplica diretamente à sua carreira, carreira essa compreendid a como um processo temporal marcado pela construção do saber profissional. Esse tema da carreira profissional, por sua vez, incide sobre temas conexos como a socialização p rofissional, a consolid ação da experiência d e trabalho inicial, as fases d e transformação, d e conti n uid ad e e d e ruptura q ue m arcam a trajetória profissional, as inúmeras mudanças (de classe, de escola, d e n ível de ensino, de bairro, etc.) q ue ocorrem também no d ecorrer da carreira p rofissional e, finalmente, toda a questão da identidade e da subjetividade dos professores, q ue se tornam o que são de tanto fa-
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ze~· o que fazem. São esses temas, portanto, qtl~ s~rão exp~o rad os d e diferentes maneiras através dos vanos ensaws aqui apresentados.
A experiência de trabalho enquanto fundamento do saber Se admitirmos que o saber dos professores_ não provém d e uma fonte única, mas de várins fontes e d e d tferen tes momentos da história de vida e da carreira profissional, essa própria diversidade leva nta o p roblema da unificação e ~a recomposição dos saberes no e pelo trabalho. Como os p rofessores amalga mam esses saberes? E, se há fu_:;ão,,~omoela se opera? Ocorrem contradições, dilemas, tensoes, conflitos cognitivos" en t,.e esses saberes? Es~a di ve~sid~de dos saberes também traz à tona a questão da luerarqw zaçao efetuada peJos p rofessores. Por exemplo, será que eles se servem de todos esses saberes da mesm a ma11eira? Será que pnv1legi~ certos saberes e consideran1 outros periféricos, secund ános, acessórios? Será que valorizam algu ns saberes e d esvalonzam outros? Que princípios regem essas hierru·quizações? Os professores que encon trei e observei não colocam ~o dos os seus saberes em pé d e igualdade, m as tendem a hierarquizá-los em função de sua u tilidad e no ensino. Quan_t~ m enos utilizável no trabalho é um saber, menos valor p rofissional parece ter. Nessa ótica, os saberes o~·iu~dos ?a experiência d e trabalho cotidiana parecem conshtulr o abce~~e ~a prática e da competência profissionais, po~s _essa expen : nCla é, para o professor, a condição par~ a a~ISlÇa;> e pr?~uçao de seus próprios saberes profissionms ..Ensmar e mobilizar um a pmpla variedade de saberes, reutilizru1do-os no u:~~_lho_p_~ í19.~tá-los e transfon"!_l~-los ~o
[email protected] o.trafa"lh.:. A ex~e1iência ae tral5alfiõ, portanto, é apenas um espaço onde o piOfessor aplica saberes, sendo ela mesma saber do trabal~o sob_re saberes, em suma: reflexividade, retomada, reproduçao, r~ltera ção daquilo que se sabe naquilo 9u~ se sabe fazer, a fim de p roduzir sua própria p rática profisswnal. 21
Saberes humanos a respeito de seres l.mmanos Outro dos m eus fios condutores é a ideia de trabalho interativo, ou seja, um trabalho onde o trabalhador se relaciona com o seu objeto de trabalho fundamentalmente através da interação humana. Vem dai wna questão cenb-al que tem orientado as minhas pesquisas nos últimos anos: em que e como o fato de tl·abalhar seres humanos e com seres humanos repercute no trabalhador, em seus conhecimentos, suas téoücas, sua identidade, sua vivência profissional? Minha hipótese é que o trabalho interativo e, por conseguinte, os saberes mobilizados pelos trabalhadores da interação não podem se deixar pensar a partir dos modelos dominantes do trabalho ntaterial, sejam eles oriundos da tradição marxista ou da econonua liberal. De fato, até agora, foi o LTabalho produtor de bens materiais que serviu de paradigma para o estudo do trabalho interativo. A organização escolar foi idealizada a partir das organizações industriais (tratamento de massa e em série, divisão extrema do b·abalho, especialização, etc.) e o ensino, como tmla forma de trabalho técnico s usceptível de ser racionalizado por meio de abordagens técnico-industriais típicas, como o behaviorisrno clássico, por exemplo, mas também, atualmente, através de concepções tem ológicas da comwücaç5o que servem de suporte às novas tecnologias da informação. Com essa ideia de trabalho interativo, procuro compreender as características da interação humana que marcam o saber dos atores que atuam juntos, corno os professores com seus alunos numa sala de a ula. A questão do saber está ligada, assim, à dos poderes e regras mobilizados pelos atores sociais na interação concreta. Ela também está ligada a i nterrogações relativas aos valores, à ética e às tecnologias da interação. Essas diferentes ideias são abordadas em diversas p artes do livro e de maneira m ais específica no capítulo 6.
Saberes c formação de professores Finalmente, chegamos ao último fio condutor, decorr ente dos an teriores: a necessidade de repensar, agora, a for22
mação para 0 magistério, levando em conta os saberes do.s professores e as realidades específicas de seu trabal ho cotidian o. Essa é a ideia de base das reformas que vêm se1~do realizad as na form ação dos professores em m llltos pmses nos últimos dez anos. Ela expressa a vontade de enc~ntl·ax,!'os cursos de formação de professores, uma nova art1culaçao e um novo equilíbrio entre os conhecimentos p rod uzidos pelas universidades n respeito do ensino e os saberes desenvolvidos pelos professores em suas práticas cotid~anns. Até agora, a formação para o magistério esteve domu~ada sobretudo p elos conhecim entos d isci plinares, conl~eomentos esses produzidos geralmente num~ r~doma de v1d ro, sem ne~l~ ma conexã.o com a ação proflsswnal, devendo, em segUldc, serem aplicndos na prática por meio ~e est~gios ou ? e ~u tras a tividades do gênero. Essa visão dlSClph~ar e aplicact~l nista da form ação profissional não tem mats sen t1d_o hoje em dia, não somente no camp? do ensino, mas tamb~m nos o utros seto res profissionais. E essa ideia q ue defena o, desenvolvo e ilustro nos três ú ltimos cap ítulos. Procuro mostrar como o conhecimento do trabalho dos profess~r~s e o fato de levar em consideração os seus saberes cotid ianos permite renovar nossa concepção n~o só .a respeito d~. fo~ m.ação deles, mas também de suas Identidades, contubUIções e papéis profissionais. *
São estas, substancialmente, as principais ideias qu_e ~o~ teiarn e alimentam os capítulos deste livro, o qual esta dividido em duas partes. A primeira contém cinco capítulos que tratam mais especificamente d o saber dos p~o~essores posto em relação com seu trabalho e com suas atividades prof~s sionais; a segunda possui três capítulo~ q.ue abordam mw to m ais as relações entre a formação profisswnal dos professores e seus saberes. Na p rimeira parte, os capítulos 1 e 2 forma~ um todo e discutem 0 m esmo problem a com oito anos de mtervalo. O capítulo 1 ("Os professores dian te do saber: esboço de um a 23
problemática do saber docente") . , , b . Brasil e apresenta el . . J
de
O capítulo 2 retoma os mesmos t . . contexto interpretativo mais rico en~as, situando-o~ num sões temporais do saber dos f qu~ mcorpo.ra as ~Imen ção numa h istória de v'd pro dessotes, ou SeJa, sua mscrir a e seu esenvolvim t da carreira profissional. O fato de levar en o ao 1ongo . em conta essas dimensões temporais permite d. cial, mos trando como ele é mo~:~mtzar o saber experienria pessoal, escolar e profissional c~::o~;~f~:~~;~:~ da histó0 ca pítulo 3, de maneira deliberada situa a saber no campo do estudo do trab Jh , questao do racterísticas e condicionantes obje~vo~ ~cent~, de suas ca~~s compor:e~tes clássicos da análise do t~ib~:~od{sse~r~~Je o, seu obJetivo, suas tecnologias, seus resulta mostra em que sentido o trabalho d . d~s, etc.) e damente diferente do trabalho comos piOf:ss~res e profunlho industrial, tecnológico t ) a matena '.n erte (trabamite repe.nsar toda a gues;ã: ~oes~~:od~s~:~~~lherednça pedrsua Identidade. a or e e Os capítulos 4 e 5 levam a discussão sobre o sabe. ~rofessores para um J?lano m uito mais teórico. Oca 't:Udo: Iepresenta uma contribuição às teoria , pl o ação, mas também à histór'a d s_contemporaneas da l as concepçoes da atividade edu-
caciona \. Historicamente, a atividade educacional foi considerada uma arte (nrte, techue) durante muito tempo; nos tempos modernos, passou a ser considerada como uma espécie de técnica e de ação mora], ao mesmo tempo; mais recentemente, tomou-se interação. Ora, cada uma dessas concepções atribui ao saber uma certa definição e um certo status cujos fundamentos conceituais precisam ser identificados, se quisermos compreender bem a natureza do saber que serve de bnse ao ensino. O capítulo 5, finalmente, fecha essa primeira parte do livro, apresentando uma reflexão ao mesmo tempo ep istemológica e crítica sobre a própria noção de "saber dos professores". A multiplicação das pesquisas sobre o saber dos professores gerou uma série de problemas teóricos e conceituais a respei to do sentido a ser dado a essa noção, em virtude dos diversos significados que lhe foram atribuídos por pesquisadores de linhas teóricas diferentes. Esse capítulo propõe, assim, uma linha conceitual para pensar e, sobretudo, delimitar melhor todo esse campo de pesquisa, ao mesmo tempo em que oferece perspectivas metodológicas aos pesquisadores e alunos que s~ interessam pela questão. A segunda parte do liv ro é mais prática e está muito mais voltada para a discussão dos problemas con cretos levantados atua lmente pela formação de professores. Ela retoma, essencialmente, os resu ltados da parte anterior e mostra como podem originar novas concepções da formação profissional no campo do ensino e qua is os papéis que os professores de profissão poderiam nela desempenhar. Também propõe uma reavaliação crítica das relações entre os pesquisadores universitários e os professores, assim como entre os conhecimentos universitários e os saberes docentes.
O capítulo 6 apresen ta uma breve síntese das concepções atuais relativas à subjetividade e ao seu papel no ensino. A partir daí, propõe diversas pis tas de reflexão para que sejam repensadas de outra maneira as relações entre a teoria e a prática na formação de professores.
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O capítulo 7 trata de wn dos nós górdios de todas as reformas realizadas na fo rmação de professores nos últimos vinte anos: as relações entre os conhecimentos produzidos pelos pesquisadores universitários das ciências da educação e os saberes mobilizados pelos práticos do ensino. Com base nos meus recentes h·abalhos sobre o estudo do trabalho docente, esse capítulo tenta lançar as bases de uma verdadeira epistemologia da prática profissional dos professores, ao mesmo tempo em que procura especificar as consequê.ncias dessa epistemologia pa1·a as concepções e práticas de formação no magistério. Finalmente, sempre tomando a questão do saber com o fio cond utor, o capítulo 8 apresenta wn balanço das reformas realizadas nos dez últimos anos em matéria de formação de professores. Depois de apresentar, de maneira sucinta, o modelo atual de formação profissional decantado pelas reformas, ele analisa os obstáculos e dificuldades ligados a essa reforma, relacionando-os com os problemas suscitados pela nossa compreensão atual do saber docente.
trcal; o professor Clermont Gau thier, da Universidade Lav
No Brasil, esses capíhllos foram, em sua maioria, publicados inicialmente em revistas ou apresentados e d iscutidos de maneira crítica em cursos, conferências ou comunicações diversas. Esta edição me deu a oporttmidade de revisar todos os textos, aos q uais, em alguns casos, acrescentei elementos inéditos, além de possibilitar a eliminação de determinados erros, entre os quais os tipográficos, e a atuali zação das referências bibliográficas. A tradução em português também foi revista e corrigida. Eu não poderia concluir esta apresentação sem apresentar os meus sinceros agradecimentos aos membros do grupo de pesquisa (Grupo de Pesquisa Intcruniversitário sobre os Saberes e a Escola-GRISE) que há dez anos tenho a honra e o prazer de dirigir, no Canadá, e cujos m embros colegas e assistentes - participaram da elaboração ou da discussão de certas partes dos capítulos deste livro. Quero agradecer de modo mais especifico aos meus colegas e amigos, o professor Claude Lessard, da Universidade de Mon'!.7
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PARTE I O SABER DOS PROFESSORES EM SEU TRABALHO
1 Os professores dian te do saber: esboço de uma problemática do saber docente*
S Echam am os de "saberes sociais" o conj un to de saberes de que d ispõe wna sociedade e de "educação" o conjunto dos pr ocessos de for.mação e de aprendizagem elaborados socialmente e des tinados a instruir os membros da sociedade com base nesses saberes, então é eviden te que os g rupos de educadores, os corpos.docentes q ue realizam efetivamente esses processos ed ucativos no âmbito do sistema de formação em vigor, são ch amados, de uma m aneira ou de outra, a definir sua práti ca em relação aos saberes que possuem e transmitem. Parece banal, m as um professor ' é, antes de tudo, alguém que sa be algum a coisa c cuja função consiste em tra nsm itir esse saber a outros. No en tan to, com o tentaremos dem ons trar, essa banalidade se transforma em interrogação e em problema a partir do m omento em que é preciso especificar a natureza das relações que os professores do ensino fundamental e do ensino m éd.io estabelecem
• Este capítulo foi publicado inicialn1ente em: TARDIF, M., LESSARD, C. & LAHA YE, L. (1991). Esboço de uma problemática J o saber docente. Teoria & Educnçtio. Brasil, v. 1, n. 4, p. 215-233. 1. Entenda-se: urn professor ou uma professora.
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com os saberes, a!>Sim como a naturcz.1 dos saberes dt>Sses mesmos professores. Os professores sabem decerto alguma coisa, mas o qut>, exatamen te? Que saber é es:.c? São ek>::. apenas " transmis50res" de s.1beres produzidos por outros grupos? Produzem eles um ou mais saberes, no ~mbi to de sua profiss.'io? Qual c o Sl.!u papel n.1 definição e na selcç.1o do:!> saberes transmitidos pela instituição escolar? Qual a sua função n.l p rodução dos saberes pcdagogicos? As chilm.1das ciências da educação, el.1boradils pelos pec;quisadores c formadores tmivcrsitá rios, ou os sabenw.:, c doutrinas ped.1gógicas, elabor.ltlos pelos ideólo!)OS dacducaç;io, constituiriam todo o saber dos professores?
Estas perguntas, cujas respostas não são nada cvidcnlL'S, parecem indicar a cxi....tl!ncia de umil rclaçiin problem.Hica entTe os professores e os saberes. É preciso r~saltar que há poucos estudos ou obras cons.1gr.1dos aos saberes dos pr~ fessores. Trata-se, de fato, de um cam po de pesquisa novo e, por isso, relativamente inexplorado, incl usive pelas próp rias ciências da educação. Além do milis, como veremos, essa noção nos deixa fncilmentc confusos, pois se i!plica indiferentemente elOS diversos S.1ber~ incorpOrildOs à prática docente. Considerando as questôes lc\'ant
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• Que o saL-t>r doce11tt! se compõe, na wrJade, de 1Jários <:i1lttm;" 1mn•t.>uit>tllt'S rito dift'rmi<'S Jollft.'!>. E!'-st.>S saberes -,i\ o os s,,. b~res disciplinares, cuniculare:., profi!>sionais (incluindo os das ciências da educaç3o e da pedagogia) e C'\perienciais. Abordé'lremos, nesse momento, as relé'lçõcs que o corpo docente estabelece com esses diferentes s.1bert.!s. • Que, embora os seus saber~ ocupem uma pO!>ição estr.ttégica entre os sabere:. sociais, o corpo ~occmte é d~-s nllori;:.ndo c111 rcfaçifo nos '>lll>aes que possm e tmrzsmtfe.
Tentaremos compreender esse fenômeno utili:u1ndo di\'ersos elementos explicativos. • r inalmente, base.lnd~nos em material de n~sé'l pesqu isa, ded icaremos a última parte deste capítulo à discussão sobre o statu~ particular que os protessores conferem aos saberes experienciais, já q ue, como veremos, estes últim~ constituem, para eles, os fundamentos da prática e da competência profis ional. 1 . O saber docente: u m saber plura l, estratégico e
desvalorizado Considerações preliminares Comecemos por um b to incontestável: enqu<1nto grupo social, c em virtude dns próprias funções que exercem, os professores ocupam uma posição estratégica no interior dé'ls relações complexas que unem as sociedades contemporâneas aos saberes que elas produzem c mobilizam com diversos fin". No âmbito da modernidade ocidental, o e'\traordin;1rio desenvolvimento quantitati\'o e quali tati\'O dos S
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cultura intelectual e científica moderna. Nas sociedades contemporâneas, a p esquisa científica e erudi ta, enquanto sistem a socialmente organizado de produção de conl
duzidos pela comunidade científica em exercício e p assíveis de serem mobilizados nas diferentes práticas sociais, econômicas, técnicas, culturais, etc. Por isso mesm o, aquilo que se poderia chru11ar de dimensão formadora dos saberes, dimensão essa que tradicionalmente os assemelhava a uma Cultura (Pnideia, Bildung, Lumieres) e cuja aquisição implicava uma frn usfonuação po~iti va das formas de penst~ r, de agir e ele ser, é lançado para tora do círculo relativamente limitado dos problemas e questões cienti ficamente pertinentes e tecnicamente solucionáveis. Os educadores e os pesquisadores, o corpo docen te e a comunidade científica tornam-se dois g rupos cada vez mais distintos, destinados a tarefas especializadas de transnüssão e de produção dos saberes sen1 nenhuma relação entre si. Ora, é exatam ente tal fe nôm.cno que parece caracterizar a evolução atual das ins tituições universitárias, que caminham em direção a uma crescente separação das missões de pesquisa e d.e ensino. Nos outros níveis do sistema escolar, essa separação já foi concretizada há muito tempo, uma vez que o saber dos professores que aí atuam parece residir un~ camente na competência técnica e pedagógica para transmitir saberes elaborados pOl' outros grupos. Em oposição a essa visão fabril dos saberes, que dá ênfase somente à dimensão da produção, e par a evidenciar a posição estratégica do saber docente em meio aos saberes sociais, é necessário dizer que todo saber, mesmo o "novo", insere-se numa duração temporal que remete à história de sua formação e de sua aquisição. Todo saber implica um processo de aprendizagem e de formação; c, quanto mais desenvolvido, formalizado e sistematizado é um saber, corno acon tece com as ciências e os saberes contemporâneos, mais longo e complexo se torna o processo de aprendizagem, o qual, por sua vez, exige uma formalização e uma sistematização adequadas. De fato, nas sociedades aluais, assim que atingem um certo grau de desenvolvimento e de sistematização, os saberes são geralmente integrados a processos de formação ins titucionalizados coordenados por agentes educacionais. Por
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ouh·o l~~o, ap~sar de oc~tp~r hoje uma posição de destaque no cenan o sooal e econonuco, bem como nos meios de com unicação, a produção de novos conhecim entos é apenas uma das dimensões d os saberes e da atividad e científica ou de pesquisa. Ela pressupõe, sempre e logicamente, tlll1 processo de formação baseado nos conhecimentos atuais: o novo surge e pode surgir do élntigo exatamente porque o antiao é reatualizad o constan temente por meio d os processos de élp~en dizagem. Formações com base nos saberes e p rodução d e saberes cons ti tuem, por conseguinte, d ois polos complemen tares e inseparáveis. Nesse sentido, e mesmo limitando s uarelação com os saberes a wn a função improd uti va d e h·ansmissão de conhecimentos, pode-se admitir, se não de fa to pelo menos em princípio, que o corpo docente tem uma f un ção social estrategicamen te tão impor tan te quanto a d a comunidad e científica e dos grupos p rodutores d e sa beres.
Os saberes docentes Entretan to a relação dos docentes com os saberes não se redu~ a _uma fu nção_d e transmissão dos conhecimen tos já conshtUJdos. Sua p ratica mtegra d1ferentes saberes, com os quais o corpo docente mantém diferen tes relações. Pode-se def~1ir o saber ?ocente como um saber plu ral, formado pelo amalgama, ma1s ou menos coerente, de saberes o riundos da formação profissional e de saberes disciplinar es, curriculares e.experienciais. Descrevamo-los sucintamente para, em segmda, abord ar as relações q ue os p ro fessores estabelecem com esses saberes.
Os saberes da formação profissional (d as ciências da educação e da ideologia pedagógica) Pode-se chamar d e saberes profissionais o conjunto de saberes transmitidos pe.las ins tihlições de formação de professores (escolas normats ou faculdades de ciências da educação). O professor e o ensino constiruem objetos d e saber para as ciências humanas e para as ciências da ed ucação.
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Ora, essas ciências, ou pelo menos algu mas dentre elas, não se limitam a produ zir conhecimentos, mas procu ram também incorp orá-los à p rática do pro fessor. Nessa perspectiva, esses conhecimen tos se transfor mam em saberes des tinados à formação científica o u erudita d os p rofessores, e, caso sejam incorporados à p rá tica d ocente, esta pode transformar-se em p rática cien tífica, em tecnologia d a aprendizagem, por exem plo. No plano institucio nal, a articulação entre essas ciências e a prática docente se es tabelece, concretamen te, através d a form ação inicial ou con tín ua d os p rofessores. Com efeito, é sobretudo no d ecorrer de sua form ação que os pro!essores entram em cont~t~ com as ciências da educação. E bastante raro ver os teon cos e pesqwsad ores das ciências da educação atua rem d iretam ente no m eio escolar, em con tato com os professores. Veremos m ais adian te que a relação entre esses d ois grupos obedece, d e form a global, a LU11a lógica d a d ivisão do trabalho entre prod utores d e saber e execu tores ou técn icos. Mas a prática docen te não é apenas u m objeto d e saber d as ciências da ed ucação, ela é também uma atividade q ue mobiliza d iversos saberes que pod em ser chamad os d e pedagógicos. Os saberes pedagógicos apresentam-se com o dou trinas ou concepções provenien tes de reflexões sobre a p rática educativa no sen tido amplo d o termo, reflexões racionais e nor mativas que co nd uzem a sistem as mais o u m enos coerentes d e r epresentação e d e orien tação da atividade educa ti va. É o caso, por exemplo, d as doutrinas p edagógicas centradas na ideologia da "escola nova". Essas d outrinas (ou melhor, as domi nan tes) são incorporad as à formação profi ssional dos pro fessores, fornecendo, p or um lado, um arcabouço ideológico à profissão e, por outro, algumas formas d e saber-fazer e algu m as técnicas. Os saberes p edagógicos articulam -se com as ciências da educação (e, frequen temente, é até m esmo bas tante difícil d isting ui-los), na medida em que eles tentam, d e mod o cada vez m ais sistem ático, in tegrar os resultados da pesquisa às concepções que p ropõem, a fim de legi timá-las "cien tificamen te" . Por exemplo, a ped agogia ch amada d e "ativa" apoiou-se na psi-
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cologia da aprendizagem e do desen volvi mento para justificar suas asserções normativas.
Os saberes d isciplinares Além dos saberes produzidos pelas ciências da educa-
ç~o e dos saberes pedagógicos, a prática docente incorpora
amda saberes sociais d efin idos e selecionados pela instituição wúversitária. Estes saberes integ ram-se igualmente à prática docente através da formação (inicial e c~ntú1ua) d os professores nas diversas disciplinas oferecidas pela univers idade. Pod emos chamá-los de saberes d isciplinares. São saberes q ue cm·respondem aos diversos cam pos do conhecimento, aos saberes d e que dispõe a nossa sociedade, tais como se encontram hoje integrad os nas w1iversidades, sob a forma de disciplinas, no interior de faculdades e de cursos distil1tos. Os saberes d isciplinares (por exemplo, matemática, história, literatura, etc.) são transmitidos nos curses e d epartamentos universitários independentemente das faculd ades de educação e dos cursos de formação de professores. Os saberes d as disciplinas emergem da tradição cultural e d os grupos sociais produtores de saberes.
Os saberes curriculares Ao longo d e s uas carreiras, os professores d evem também apropriar-se de saberes que podemos chamar d e curriculares. Estes saberes correspondem aos discu rsos, objetivos, conteúdos e m étodos a partü· dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes sociais por ela definidos e selecionados como modelos d a cultura erudita e de fo rmação para a cultura erudita. Apresentam-se concretamente sob a fo rma de prog ramas escolares (objetivos, conteúd os, métodos) que os professores d evem aprender a aplicar.
Os saberes experienciais Finalmente, os próprios professores, no exercício d e suas funções e na prá tica de sua profissão, d esenvolvem saberes
específicos, baseados em seu trabaHto cotidiano e no conhecimento de seu ITteio. Esses saberes brotam da experiência e são por ela validados. Eles incorporam-se à experiên.cia individual e coletiva sob a forma de fmhitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber-ser. Pod emos chamá-los de saberes experienciais o u prá ticos. Por enquanto, fiquemos por aqui, pois dedicaremos a segw1da parte d o p resente capítulo a esses saberes e às relações que eles mantêm com os d emais saberes. Até agora, ten tamos mostrar q ue os saberes são elementos constitutivos da prática d ocente. Essa dimensão da profissão docen te lhe confere o stntus de prática erudita que se articula, simultanemnente, com diferentes saberes: os saberes sociais, transfor mados em saberes escolares através dos saberes disciplinares e dos saberes curriculares, os saberes oriundos d as ciências da educação, os saberes pedagógicos e os saberes experienciais. Em suma, o professor ideal é alguém que deve conhecer sua matéria, s ua disciplina e seu program a, além d e possuir certos conhecim entos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático basead o em sua experiência cotidiana com os alunos. Essas múltiplas articulações entre a prática docente e os saberes fazem dos professores um grupo social e profissional cuja existência depende, em grande parte, de sua capacidade de dominar, in tegrar e mobilizar tais saberes enquanto condições p ara a sua prá tica. Consequentemente, seria d e se esperar, pelo menos na ótica tradicional da sociologia das profissões, que os p rofessores, como grupo social e categoria profissional, procurassem se impor como uma das instâncias de d efüúção e con trole dos saberes efetivam ente integrados à sua prática. Nessa m esma per spectiva, também seria d e se esperar que ocorresse um ce rto reconhecimen to social positivo d o papel desempenhado pelos professores no processo de formação-prod ução d os saberes sociais. Se admitirmos, por exe mplo, que os p rofessores ocupam, no campo dos saberes, um espaço estrategicamente tão importante quanto aquele ocupado pela comwúdade cien tífica,
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não deveriam eles então gozar de um prestígio análogo? Ora, isso não acontece.
As relações dos professores com seus própli.os sabeJ"es De modo geral, pode-se dizer que os professores ocupam uma posição estratégica, porém socialmente desvalorizada, entre os diferentes grupos gue atuam, de uma maneira ou de outra, no cam po dos saberes. De fa to, os saberes da formação profissional, os saberes disciplinares e os saberes curriculares dos professores parecem sempre ser mais ou menos de segunda mão. Eles se incorporam efeti vamente à prática docente, sem serem, porém, produzidos ou legitimados por ela. A relação que os professores mantêm com os saberes é a de "transmissores", de "portadores" ou de "objetos" de saber, mas não de produtores de um saber ou de saberes que poderiam impor como instância de legitimação social de sua função e como espaço de verdade de sua prática. Noutras palavras, a fLmção docente se define em relação aos saberes, mas parece incapaz de definir um saber produzido ou controlado pelos que a exercem. Os saberes das disciplinas e os saberes curriculares qu e os professores possuem e transmi tem não são o saber dos professores nem o saber docente. De fato, o corpo docen te não é responsável pela definição nem pela seleção dos saberes que a escola e a universidade transmitem . Ele não controla direta mente, e nem mesmo indiretamente, o processo de defin ição e de seleção dos saberes sociais que são transformados em saberes escolares (disciplinares e curriculares) através das ca tegorias, p rogramas, matérias e disciplinas que a instituição escolar gerél e impõe como modelo da cultura erudita. Nesse sentido, os saberes disciplinares e cuniculares que os p rofessores transmitem situam-se numa posição de exterio ridade em relação à prática docente: eles aparecem como produtos que já se encontram consideravelmente de terminados em sua forma e contelido, produtos oritmdos da tradição cultural e dos grupos produtores de saberes sociais e incorporados à prática docente através das 40
disciplinas, programas escolares, matérias e conteúdos~ serem transmitidos. Nessa perspectiva, os professores podenam ser comparados a técnicos e executores de~t~1ados à. tarefa de transmissão de saberes. Seu saber espeohco estana relacionado com os procedimentos pedagógicos de transmissão dos saberes escolares. Em resumo, seria um saber da pedagogia ou pedagógico. Mas é realmente isso que ocorre? Os saberes relativos à formação profissional dos professores (ciências da educação e ideologias pedagógicas) dependem, por sua vez, da universidade e de seu corpo de formadores, bem como do Estado c de seu corpo de agentes de decisão e de execução. Além de não controlarem nem a definição nem a seleção dos saberes cu rriculares e disciplinares, os professores não contr olam nem a definição nem a seleção dos saberes pedagógicos transmitidos pelas instituições de formação (universidades e escolas normais). Mais uma vez, a relação que os professores estabelecem com os saberes da form~ç~o profissional se manifesta como uma relação de exten ondade: as universidades e os formadores universitários assumem as tarefas de produção e de legitimação dos saberes científicos e pedagógicos, ao passo que aos professores com p:te apropriar-se desses saberes, no decorrer .de .sua fo~m~çao, como normas e elementos de sua competenoa prohss10nal, comp etência essa sancionada pela universidade e pelo Estado. Os saberes científicos c pedagógicos in tegrados à formação dos professores precedem e dominam .a pr~tica da profissão, mas não provêm dela. Veremos mats adtante que, ~ntre os professores, essa relação de exteriorida~e se mam!es~a através de uma nítida tendência a desvalonzar sua propna formação profissional, associando-a à "pedagogia e às teorias abstratas d os formadores universitários" . Em suma, pode-se dizer que as diferentes articulações identificadas anteriormen te entre a prática docente e os saberes constituem mediações e mecanismos que submetem essa prática a saberes que ela não p rodu z nem controla. Levando isso ao extremo, poderíamos falar aqui de uma rela-
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ção de alienação entre os docentes e os saberes. De fato, se as relações dos professores com os saberes parecem problemáticas, como dizíamos anteriormente, não será porque essas mesm as relações sempre implicam, no ftmdo, uma certa distância - social, institucional, epistemológica - que os separa e os desa propria desses saberes produzidos, con trolados e legitimados por outr os?
Alguns elementos explicativos Saber socialmente estratégico e ao mesmo tempo d esvalorizado, prática erudita e ao mesmo tempo aparentemente desprovida de um saber específico baseado na atividade dos professores e por ela produzido, a relação dos professores com os saberes p arece, no mínimo, ambígua. Como explicar essa situação? A conjugação de efeitos d ecorrentes de fenômenos de natureza diversa deve ser considerada. 1. Numa perspectiva mais ampla e de caráter histórico, podemos inicialmente citar, como foi feito anterio rmente, a divisão do trabalho aparentemente inerente ao modelo erudito de cultura da modernidade. Nas sociedades ocidentais pré-modernas, a comunid ade intelectual assumia, em geral, as tarefas de fo rmação e de conhecimento no âmbito de instituições elitistas. Era assim nas universidades medievais. Por outro lado, os saberes técnicos e o saber-fazer necessários à renovação das diferentes funções ligad as ao trabalho eram integrados à prática de vários grupos sociais que assumiam essas mesmas fw1ções e cuidavam, consequentemente, da formação de seus membros. Era o que ocorria nas antigas corporações de artesãos e de operários.
Ora, com a modernização das sociedades ocidentais, esse modelo de cultura que integrava produção de saberes e formação baseada nesses mesmos saberes, através de grupos sociais específicos, vai sendo progressivamente eliminado em benefício de uma divisão social e intelectual das fm1ções de pesquisa, assumidas a partir de então pela comunidade científica ou por corpos de especialistas, e das funções d e
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. . ç"o assumidas por um corpo docente distanciado das , . f 0Il11,l <• , in<:;t~ncias de prod ução dos saberes. Já os saberes teCl:lcos e snber-fazer vão send o progressivamente s tstematlzados 0 em corpos de conhecimentos abstra tos, sep
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é preciso também saber ensinar. O saber transmitido não possui, em si mesmo, nenhum valor form
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Em segundo lugar, a em ergência e o dese~volvin:ento ciências da educação fazem parte de u m fenomeno Jdeouas . f . t t ) lógico mais amplo (escola nova,_peda~og1a re ormt~ a, e c_. marcado por um.a transformaçao radrca_l d a rclaçao en tr e_ educador e educando. Resumidamente, d tgamos que o saber que 0 educador deve transmitu· deixa de ser ? centro de gravidade do ato pedagógico; é o educando, a cnança, es_senctalmente, que se torna o modelo e o princípio ~a arrendizagem. De forma um pouco caricatura!, poder-se-Ia d1zer que o _a to de aprend er se tom a mais importante que o fato de saber. ~ snber d os professores passa, então, para o segundo plano, fica subordinado a uma relação pedagógica centrada nas necessidades e interesses da criança e do educando, podendo chegar até a confundir-se totalm ente com um saber-faz:r, ~-llll "snber-lidar " e um saber-estar com as cnanças. Esses propnos saberes são legitimados pelas psicologias ~o des~nvolvrrne~l · to e da personalidade, notadamente as ps~cologtas hum a mstas e pós-rousseaunianas (Carl Rogers e na.). e~
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4. Um outro fenômeno surge com a constituição das instituições escolares m odernas. No decorrer dos séculos XIX e XX, a ed ucação e a itúância tornam-se ~spaç_o e p roblema públicos c campo de uma ação social ra:10nahza~a e planejada pelo Estado. Os sistemas escolares sao concebidos c<:mo instituições d e massa que dispensam a toda a ~opulaçao a ser instruída um tratamento uniforme, garanhdo por um sistema jurídico e u m planejamento ce~1tralizado. ~ ~odelo canônico de referência é o modelo fab n l da produçao mdustrial. A integração sistemática d a população em ~~ade escolar (idade essa que vai se dilatando) à escol~, l:_gltimada pelas políticas de d emocratização e pela ampliaç~o d~ d~man da social por educação, traduz-se na formaçao rap1~a de corpos de agentes e especialistas escolares. A f~~-m~çao de u m corpo docente laico, formado com base nas c1enoas_ r:ofanas e na nova pedagogia, m anifesta-s~ como uma exrgencia in terna do d esenvolvimento do Sistema escolar_mod erno. As instituições privadas (religiosas) d e !ormaçao d e m estres e a ideologia da vocação são su~stit~1das por m stituições públicas (escolas normais e umverstdades) ~ p~r uma ideologia d e caráter profissional centrada na p roftssao 45
e em suas co_nd ições. Histórica e socialmente, o cor o doc:nte _aproveitou :ssa situação para fonnul
. .
par~ce e_vo~uir, nos últimos trin ta anos, rumo a uma d~~~~~~~
CI~Ç~o tecmc~ e peclagóg_i.ca d~ suas tarefas e ftmções. A traves. os co nnoles aclmmtsh·ativos e das racionaliza ões sucessivas efetuadas no sis tema escolar a massa dos e?d dos transf ' , ucan. ounou-~e, pn meiro, em populações escolares 1 e~l segu tda, em clientelas di versificadas a lvos d · t . e, f · · ' a m er venÇao d : pro lSS~onaJs m ais ou menos especializados. O rofessm_ ~~nerahsta VJu seu campo de a tuação res tringir-~e e espeCla Izar-se com o aparecimento de n ovas cate orias de d~centes e de especialistas (escola ma ternal orto e~- . . onentação escolar, psicologia etc ) Se ,b p agogta, t~ · . ' · · u sa er, sua com peencra, s ua pedagogia, no in terior da instituição escolar foram por I~so mesmo restr ingidos e contes tados no toca; te à ~~~e~:ft~~~~=~e~~ ~!enderdem às neces~idades de clientelas • . . . m po e m tervençao se res h·ingiu e sua ~omp~tenCla dJmmuiu. O saber docen te plura lizo u-se e did . . erencJou-se com o surgimento de sub . t d d gr upos e espeClalise:s e - ~ oce~tes portad_ores e reivindicadores de sabe res y_eClflcos (01 topedagogta, ensino pré-escolar). A ideia tra~~CI~nJl do doce~1tc en9uanto educador parece ultrap assate . al docen~e curd_a da ms_tru_ção dos altmos; a formação ingr a personalidade nao e m ais da sua compet ~ . . enc1a. 46
S. E1úim, um último fenô meno parece também estar agind o de uns dez anos para cá, mais particularmente nos níveis s uperiores do sistema escolar. Trata-se da erosão do capital de confiança dos diferentes grupos socia is nos snberes trnnsmitidos pela escola e pelos professores. Essa erosão teria começado, grosso modo, com n grave crise econôm.ie
lho. Ao invés de formadores, eles seriam muito mais informadores ou transmissores de informações potencialmente utilizáveis pelos clientes escolares.
2. O docente diante de seus saberes: as certezas da prática e a importância crítica da experiência Corno os professores reagem a tais fenômenos? Nossa pesqt.úsa indica que o corpo docente, na impossibilidade de controlar os saberes disciplinares, curriculares e da forrnilção profissional, produ z ou tenta produzir saberes através dos quais ele comp reende e domina sua prática. Esses saberes lhe permitem, em contrapartida, distanciar-se dos Sélberes adquiridos fora dessa prática. De fato, quando interrogamos os professores sobre os seus saberes c sobre a sua relação com os saberes, eles apontam, a partir das categorias de seu próp rio d iscurso, saberes que denominam de práticos ou experienciais. O que caracteriza os saberes práticos ou experienciais, de um modo geral, é o fa to de se originarem da prática cotidiana da profissão e serem por ela validados. Ora, nossas pesquisas indicam que, para os professores, os saberes adquiridos através da experiência profissional constituem os fundamen tos de sua competência. É a partir deles que os p rofessores julgam sua formnção anterior ou sua formação ao longo da carreira. É igualmente a par tii" deles que julgam a perti nência ou o realismo d as reformas introduzidas nos programas ou nos métodos. Enfim, é ainda a partir dos saberes experienciais que os professores concebem os modelos de excelência profissional dentro de sua profissão. Tentemos ver então rapidamente em que consis tem.
Os saberes experienciais
ções de formação nem dos currículos. Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos (e não da prática : eles não se superpõem ~ pnítica para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam s ua profissão e s ua prática cotidiana em todas as su as dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação. Os saberes experienciais estão enraizados no seguin te fato mais amplo: o ensino se desenvolve num con texto de múltiplas interações que representam condicionantes diversos para a ahtação do professor. Esses condicionan tes não são problemas abstratos como aqueles encontrados pelo cien tista, nem problemas técnicos, como aqueles com os quais se deparam os técnicos e tecnólogos. O cientista e o técnico h·abalham a partir de modelos e seus condicionantes resultam da aplicação ou da elaboração desses modelos. Com o docente é diferente. No exercício cotidiano de sua função, os condicionantes aparecem relacionados a situ ações concretas que não são passíveis de definições acabadas e que exigem improvisação e habilidade pessoal, bem como a cap acidade d e enfrentar situações mais ou menos transitórias e va riáveis. Ora, lid ar com condicionan tes e situações é formador: somente isso permite ao docente desenvolver os habitus (isto é, certas disposições adquiridas na e p ela p rática real), gue lhe permitirão ju stamente enfrentar os condicionantes e imponderáveis da profissão. Os habitus podem transformar-se num estilo de ensino, em "macetes" da profissão e até mesmo em traços da "personalidade profissional": eles se m anifestam, então, através d e um saber-ser e de um saber-fazer pessoais e profissionais validados p elo trabalho cotidiano.
Pode-se chamar de saberes experienciais o conjtmto de saberes atualizados, adquüidos e necessários no âmbito da prática da profissão docente e que não provêm das institui-
O d ocente raramente atua sozinho. Ele se encontra em interação com outras pessoas, a começar pelos alunos. A atividade d ocente não é exer cida sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. Ela é
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realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elem ento humano é determinante e dominante e onde estão p resentes símbolos, valores, sentimen tos, atitudes, que são passíveis de interpretação e d ecisão, interpretação e decisão gue possuem, geralmente, um caráter de urgência. Essas inter ações são m ediadas por diversos canais: discurso, comportamentos, m aneiras de ser, etc. Elas exigem, portanto, dos professores, não um saber sobre um objeto de conhecimento nem tm1 saber sobre uma prática e des tinado principalmente a objetivá-la, mas a capacidade de se com portarem como sujeitos, como atores e de serem p essoas em interação com pessoas. Tal capacidade é geradora d e certezas particulares, a m ais importante d as quais consiste na confirmação, pelo docen te, d e sua p rópria capacidade de ensinar e de atingir um bom desempenho na prática da profissão. Além disso, essas interações ocorrem num determinado meio, num universo institucional que os professores descobrem progressivamente, tentando adaptar-se e integrar-se a ele. Esse meio- a escolaé u m meio social constituído por relações sociais, hierarquias, etc. Por fim, as interações ocorrem também em meio a normas, obrigações, prescrições que os professores devem conhecer e respeitar em graus diversos (por exemplo, os programas). Os saberes experienciais fornecem aos p rofessores certezas relativas a seu contexto de trabalho na escola, de modo a facilitar sua integração. Os saberes experienciais possuem , portan to, três" objetos": a) as relações e interações que os professores estabelecem e d esenvolvem com os d em ais atores no campo de sua prática; b) as diversas obrigações e normas às quais seu trabal'Lo deve submeter-se; c) a instituição enquanto m eio organizado e composto d e funções diversificadas. Estes objetos não são objetos d e conhecim ento, mas objetos que constituem a própria prática docente e que só se revelam através dela. Em o utras palavras, eles não são nada mais do que as condições da profissão. Três observações impor tantes decorrem daí:
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A) É exatamente em relação a estes objetos-condições que se estabelece umc1 defasag~m, uma distftn ci<1 crítica entre os saberes experienciais e os saberes adquiridos na formação. Aiguns docentes vivem essa distância como um choque (o choque da "dura rea lidad e" das turmas e das salas de aula) quando ele seus primeiros anos de ensino. Ao se tornarem professores, descobrem os limites de seus saberes pedagógicos. Em alguns, essa descoberta provoca a rejeição p ura c simples d e s ua for mação anterior e a certeza de que o professor é o único responsável pelo seu sucesso. Em ou tros, ela provoca w na reavaliação (alguns cursos foram úteis, outros ni'io). E, finalmen te, em outros, ela s uscita julgamentos mais relativos (por exem plo: "minha formação me serviu n
sala de aula e a interação cotidiana com as turmas de alunos constituem, de um certo modo, um teste referente tanto ao "eu profissional" quanto aos saberes veiculados e transmitidos pelo docente. Isso aparece cl~ramente nas enh·evistas que realizamos com professores: "E impossível mentir ou fazer de conta diante de uma turma de ahmos: não se pode esconder nada deles, é preciso envolver-se completamente".
A objetivação parcial dos saberes expel'ienciais Os saberes experienciais têm origem., portanto, na prática cotidiana dos professores em confronto com as condições da profissão. Isso significa que eles residem totalmente nas certezas subjetivas acumuladas individualmente ao longo da carreira de cada docente? Não, pois essas certezas tm11bém são partilh adas e partilháveis nas relações com os pares. É ah·avés das relações com os pares e, portanto, através do confronto entre os saberes produzidos pela experiência coletiva dos professores, que os saberes experienciais adquirem uma certa objetividade: as certezas subjetivas devem ser, então, sistematizadas a fim de se transformarem num discurso da experiência capaz de infonnar ou de formar outros docentes e de fornecer uma resposta a seus problemas. O relacionamento dos jovens professores com os professores experientes, os colegas com os quais trabalhamos diariamente ou no contexto de projetos pedagógicos de duração mais longa, o treinamento e a formação de estagiários e de professores iniciantes, todas essas são situações que permitem objetivar os saberes d a experiência. Em tais situações, os professores são levados a tomar consciência de seus p róprios saberes experienciais, uma vez que devem transmiti-los e, portanto, objetivá-los em parte, seja para si mesmos, seja para seus colegas. Nesse sentido, o docente é não apenas um prático mas também um formador. O papel dos professores na transmissão de saberes a seus pares n ão é exercido apenas no contexto formal das tarefas de animação de grupos. Cotidianamente, os professo-
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rcs partilham seus saberes u ns com os outros através do material didático, dos "macetes", dos modos de fazer, dos modos de organizar a sala de aula, etc. Além disso, eles também trocam informações sobre os alunos. Em suma, eles dividem uns com os outros um saber prático sobre sua atuação. A colaboração entre professores de u m mesmo nível d e ensino que constroem um material ou elaboram provas juntos e as experiências de tenm-tcaching também fazem parte da p rática de partilha dos saberes entre os p rofessores. Ainda que as atividades de partilha dos saberes não sejam consideradas como obrigação ou responsabilidade profissional pelos professores, a maior parte deles expressa a necessidade de partilhar sua experiência. As reuniões pedagógicas, assim como os congressos realizados pelas diversas associações profission
3. Conclusão: o saber docente e a condição de um novo profissionalismo Sa ber plural, saber formado de d iversos saberes provenientes das instituições de formação, da formação profissional, d os currículos e d a p r ática cotidiana, o saber d ocente é, portan to, essencialmente h eterogêneo. Mas essa h eterogeneidade não se d eve ap enas à n atureza dos saberes presentes; ela decorre também da si tuação do corp o docente diante d os d emais grupos produtores e portad ores de saberes e das instituições d e formação. N a p rimeira par te d este capítulo tentamos evidenciar as relações de exterioridade que associam os professores aos saberes curriculares, discip linares e d a formação p rofission al. Essas relações d e exteriorid ade inserem-se, hoje, num.a divisão social do trabalho in telectu al entre os p rodutores de saberes e os formadores, e ntre os grupos e instituições r esponsáveis p elas n obres tarefas de produção e legitimação dos saberes e os grupos e instituições responsáveis pelas tarefas de formação, con cebidas nos moldes d esvalorizados da execução, da aplicação de técnicas pedagógicas, do saber-fazer.
fessores dos níveis primário e secundário. Entre tan to, seria ilusório acreditar que os professores pod eriam a tino-i-la li. b nutand o-se apenas ao p lano esp ecífico dos saberes. Este empreendimen to, enquanto estratégia de profissionalização do corpo d ocente, exige a instituição de un1a verdadeira parceria en tre professor es, corpos universitários d e for madores e resp onsáveis pelo sistema edu cacional. Os saberes expt:rien ciais passarão a ser reconh ecidos a partir do mom~nto em qu e os professores manifestarem suas própnas 1de1as a respeito d os saberes curriculares e disciplinares e, sobretudo, a resp eito de sua própria formação profissional. Será preciso uma outrn refo rm a do ensino para finalmen te vermos os responsáveis pelas fac uldades d e educação e os formadores uni versitários dirigirem-se à escola dos p rofessores de profissão para aprend erem como ensinar e o que é o ensino?
Dian te dessa situação, os saberes experienciais surgem como nú cleo vital do sab er d ocente, núcleo a partir do qual os professores tentam tran sformar suas relações de exteriorid ade com os saberes em relações de interioridade com sua própria prática . Nes te sentido, os saberes exp erienciais não são sab eres como os demais; são, ao contrário, formados de tod os os d emais, mas retraduzidos, "polidos" e subme tidos às certezas con struídas na prática e n a experiência. Entretanto, p ara concluir, caberia perguntar se o corpo docente não lucra ria em libera r os seus saberes da prática cotidiana e ela experiência vivida, de mod o a levá-los a serem reconhecidos p or outros grupos produtores de saberes e in1por-se, desse modo, enquanto grupo p rodutor de um saber oriundo de sua prática e sobre o qu al poderia reiv ind icar um conh·ole socialmente legítimo. Tal empreen dimento p arece-n os ser a condição básica p ara a criação de uma nova profissionalid ade entre os pro54
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2 Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério*
sua existência é caracterizada por sua atuação profissional. Em suma, com o passar do tel1lpo, ela vai-se tornando - aos seu s próprios o lhos e aos olhos dos outros - um professor, com sua cultura, seu ethos, s uas ide ias, suas funções, seus interesses, etc. Ora, se o trabalho modifica o trabalhador e s ua identidad e, modifica ta mbém, sempre COIII o passar do tempo, o seu "saber trabalhar". De fato, em toda ocupaçã o, o tempo s urge como u m fator importante para compreender os saberes d os trabalhadores, 111110 vez que trnba/har remete a aprender a
trnballmr, ou seja, a dominar progressivamente os saberes necessários ií realização do trnúal/10: "a vida é breve, a arte é longa", como Marx já havia enunciado, toda prtíxis social é, d e uma certa maneira, um trabalho cujo processo de realização desencadeia u ma transformação real no trabalhador. Trabalhar não é exclusivamen te transformar um objeto ou situação numa o utra coisa, é também transform ar a si mesm o no e pelo h·abalho (DUBAR, 1992; 1994)' . Em termos socio lógicos pod e-se dizer aue o trabalho m odifica a identidade d o trabalhador, pois h·~balhar não é somente fazer alguma coisa, mas fazer algwna coisa d e si mesmo, consigo mesmo. Como lembra Schwar tz (1997: 7), a experiência viva do trabalho ocasiona sempre "um 'drama do uso de si mesmo', uma problemática negociação en tre o uso d e si por si mesmo e o uso d e si pelo (s) outro(s)". Se uma pessoa ensina durante trinta anos, ela não faz simplesmente alguma coisa, ela faz também alguma coisa d e si mesma: sua identidade carrega as marcas d e sua própria atividade, e uma boa parte de
TAL
• Uma versão um pouco diferente deste texto foi publicada em: TARDfF, M. & RAYMOND, O . (2000). Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no m agistério. Revista Educação e Socíedntie, n. 73, p. 209-244. 1. É importante lembrar que, para Dubar. o aspecto determinante da socializaç.ão
profissio nal, principalmente durante o período particularmente ':"arcan.te. da m· serção no ambiente de trabalho. consiste na negociação de form,Js JdenhtárJas que possibilitem a coordenação da identidade para s1 e da 1den hdade para o outro.
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diz o provérbio. Em certos ofícios tradicionais (por exemplo, os ofícios lig ados à terra e ao mar: agr icultura, salicultura, pesca, etc.), o tempo d e aprendizagem d o tr abalho confunde-se muitas vezes com o tempo da vida: o trabalho é aprendido através da imersão no ambiente familiar e social, no conta to d ire to e co tidiano com as tarefas dos adu ltos para cuja realização as crianças e os jovens são form ados pouco a pouco, muitas vezes por imitação, r epetição e experiênciô direta .d o Lebcmuelt do labor (JORION & DELBOS, 1990). Em vá rias outras ocupações - e esse é o CôSO d o m agistério- a aprendizagem do trabalho passa por uma escolarização m ais o u menos longa, cuja função é fornecer aos futuros trabal hado res conhecimentos teóricos e técnicos que o s preparem para o trabalho. Mas, mesmo assim, acontece raramente que a formação teórica não tenha de ser completada com uma formação prática, is to é, com uma experi ência direta do tra balho, experiência essa d e duração variável e graças à qual o trabalhador se familiariza com seu ambiente e assi.mila p rogressivamente os saberes necessári os à r ealização d e su as tarefas. Noutros oficios, a aprendizagem con cre ta do trabalho assume a fo rm a de u m a relação entre um aprend iz e um trabalhador experiente, como vem ocorrend o agora cada vez mais d esd e a implantação dos novos d ispositivos d e formação para o m agistério (RAYMOND & LENOIR, 1998). Essa relação de companheirismo não se limita a uma tr an sm issão d e infor57
m ações, mas desencadeia um verdadeiro processo de formação onde o aprendiz aprende, durante um. período mais ou menos longo, a assimilar as rotinas e p ráticas do trabalho, ao mesmo tempo em que recebe uma.formação referente às regras e valores d e sua organização e ao seu significado para as pessoas que praticam o mesmo ofício, por exemplo, no âmbito dos estabelecimentos escolares. Em suma, pode-se dizer que os saberes ligados ao tra balho são temporais, pois siio construídos e d onünados progressivamente durante urn período de aprendizagem variável, de acordo com cada ocupação. Essa d imensão temporal decorre do fa to de que as s ituações de trabalho exigem dos trabalhadores conhecimentos, competências, aptidões e atitudes específicas que só p odem ser adquiridas e dominadas em contato com essas mesmas situações (DURAND, 1996; MON1MOLLIN, 1996; TERSSAC, 1996). Nouh·as palavr as, as situações de trabalho parecem irredu tíveis do ponto d e vista da racionalidade técnica do saber (SCHON, 1983), segundo a qual a prática profissional consiste numa resolução instrumental de problemas baseada na aplicação de teor ias e técnicas científicas construídas noutros campos (por exemplo, através da pesquisa, em labora tórios, e tc.) . Essas situações exigem, ao contrá rio, que os trabalhadores desenvolvam , progressivamen te, saberes gerados e baseados no próprio processo de tra bali1o. Ora, são exatamente esses saberes que exigem tempo, prática, experiência, h ábito, etc. O que nos interessa, justamente, aqui, são as relações entre tempo, trabalho e aprend izagem dos saberes profissionais dos professo res de profissão que a tuam no ensino primário e secundário, isto é, dos saberes mobilizados e empregados na
prática cotidiana, saberes esses que dela provêm, de uma maneira ou de outra, e servem para resolver os problemas dos professores em exercício, dando sentido às situações de trabalho que lhes si'fo próprias. Este capítulo está dividido em três p artes: e
Inicialmente, mostraremos em que aspectos o estudo dessas relações pode ser pertinente para melhor compreender a natureza d os saberes profissionais dos pro-
fessores; ao mesmo tempo, procuraremos situar-nos no campo mais amplo da literatura sob re os saberes que servem de fundamento pa1·a o ensino, precisando brevemente no:;sa perspectiva teórica. " Em seguida, estudaremos algumas das relações existentes entre os saberes, o tempo e o trabalho, tais como se expressa m nos fenôrnenos da história da vida, da aprendizagem p ré-profissional do trabalho e da carreira dos professores . " Fi nalmente, para concluir, proporemos uma reflexé\ o e algumas pistas teóricas sobre as diversas relações existentes entre o tempo e os saberes profissionais, associando tud o isso com as questões da cognição, da identidade do trabalhador e do trabalhd.
1. Por que esse interesse pelo tempo na construção dos saberes? Abordar a questão dos saberes dos professores d o ponto de vista d e sua relação com o tempo nao é tarefa fácil em s i mesmil . De fa to, raros são os autores que trataram dire tamente dessa questão com o estamos fazendo agora. Tratemos então de justificá-la e de mostrar onde reside o seu interesse. Nos últimos vinte anos, uma g rande parte da literatura n orte-americana sobre a formação dos professores, bem como sobre a profissão docente, tem tratado dos saberes qu e servem d e base para o ensino e que os pesquisadores anglo-sa-
2. N o qu e se refere aos <"Spectos etnpírico e metodológico, este capítulo se apoia nas pesquisas de Lessard & Tardif (1996) e Tardif & Lcssord (2000), baseadas em entrevistas com 150 professoras c professores de profissão, bem com o em observc1çõc::; feitas em sala de aula e nos estabelecintentos de ensino; t.Hnbé1n form11 utili zados os dados coligidos por Raymond, Butt & Yamagishi (1993) e por Mu· kumu rera (1998). Consultar esses trabollhos para obter n1aiores esclarecimentos com relação aos procedimentos metodológicos e ao quadro teórico. Salvo indica· ção contrária, os trechos do discurso d os professores citados neste texto são provenientes dessas pesquisas.
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xões designam muitas vezes p ela expressão lmowledge base3 • A expressão know/edge base pode ser entendida de duas maneiras: num sentido restrito, ela designa os saberes mobilizados pelos "professores eficientes" durante a ação em sala de aula (por exemplo, nas atividades de gestão da classe e de gestão da ma téria), saberes esses que foram validados pela pesquisa e que deveriam ser incorporados aos programas ele formação ele professores (cf. GAUTHIER et al., 1998); num sentido amplo, designa o conj w1to dos saberes que fundamentam o ato de ensinar no ambiente escolar (TARDIF & LESSARD, 2000). Esses saberes provêm de fontes diversas (formação inicial e contú1ua dos professores, currículo e socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares, etc.). É a este segundo significado que está ligada a nossa própria concepção.
É necessário especificar também que atr ibuímos à noção de "saber" um sentido amplo que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes dos docentes, ou seja, aquilo que foi m uitas vezes chamado de saber, de saber-fazer e de saber-ser. Essa nossa posiçifo não éfortuita, pois reflete o que os próprios professores dizem a rc!spcito de seus sabaes. De fato, os professores que consultamos e observamos ao longo elos anos falam de vários conhecimentos, habilidades, competências, talentos, formas de saber-fazer, etc., rela tivos a d iferentes fenômenos ligados ao seu trabalho. F::tlam, por exem.plo, do conhecimento da matéria e do conhecimento relativo ao planejamento das aulas e à sua organização. Tratam igualmente do conhecimento dos grandes princípios educaciona is e do sistema de ensino, tecendo comentários sobre os programas e livros d idáticos, seu valor e sua utilidade. Salien tam diversas habilidades e atihtcles: gostar de trabalhar com jovens e crianças, ser capaz de seduzir a hum a, dar provas de imaginação, partiT da experiência dos alunos, ter uma personalidade atraente, de-
3. Do lado fra ncófono, fala-se muito mais de " referenciais de competência" (cf. PAQUAY, ALTET, CHARLIER & PERRENOUD, 1996).
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sempenhar o seu papel de forma profissional sem deixar de ser au têntico, ser capaz de questionar a si mesmo. Enfim, os professores destacam a sua experiência na profissão como fon te primeira de sua competência, de seu "saber-ensinar". Em resumo, como vemos, os saberes que servetn de base para o ensino, tais como são vistos pelos professores, não se limitam a con teúdos bem cirnmscritos que dependem de um conhecimento especializado. Eles abrangem uma grande d iversidacle de objetos, de questões, de problemas que estifo todos relacionados com seu trnbnl/10. Além disso, não correspondem, ou pelo menos muito pouco, aos con.h ecimentos teóricos obtidos na tuúversidade e produzidos pela pesquisa na área da Educação: para os professores de profissão, a experiência de h·abalho parece ser a fonte privilegiada de seu saber-ensinélr. Notemos também a importância que atribuem a fa tores cognitivos: sua personalidade, talentos diversos, o en tusiasmo, a vivacidade, o amor às crianças, etc. Finalmente, os professores se referem também a conhecimentos sociais partilhados, conhecimentos esses que p ossuem em comwn com os alunos enquanto membros de um mesmo mundo social, pelo menos no âmbito da sala de aula. Nesse mesmo sentido, suél integração e sua participação na vida cotidiana da escola e dos colegas de trabalho colocam igualmente em evidência conhecimentos e maneiras de ser coletivos, assim como diversos conhecimentos do h·abalho pa rtilhad os enh·e os p ares, notadamente a respeito dos alunos e dos pais, mas tambént no que se refere a atividades pedagógicas, material didático, programas de ensin o, etc. Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais, compósitos, heterogêneos, p ois trazem à tona, no próprio exercício do tra balho, conhecimentos e manifestações do saber-fazer e do saber-ser bastante diversificados e provenientes de fontes var iadas, as quais p odemos supor também que sejam de natureza dife rente. Vários autores tentaram orga1úzar essa diversidade, propondo classificações ou tipologias relativas ao saber dos professores: Bourdoncle {1994), Doyle {1977), Gage (1978), Gauthier et al. (1998), Martin (1993), Martineau (1997), Mellouki & Tardif (1995),
li l
Paquay (1993), Raymond (1993), Raym ond, Butt & Yamagishi (1993), ShuJman (1986) . Todavia, essas numerosas tipologias ap resentam dois problemas p rimordiais: por wn lado, seu número e sua diversidade dão mostras do mesmo desmembramento da noção de "saber"; por o utro, quando as comparamos, percebemos que se baseiam em elementos incomparáveis en tre si. Por exemplo, algumas tratam de .fenômenos sociais (BOURDONCLE, 1994), outras d e princípios epistemológicos (SH ULMAN, 1986; MARTI EAU, 1997), outras de correntes de pesquisas (MARTfN, 1993; RA YMOND, 1993; GAUTillER et al., 1997) ou de modelos ideais (Paquay, 1993). Em suma, a proliieração dessas tipologias sim.plesmente desloca o problema c torna impossível uma visão mais "compreensível" dos saberes d os professores como u m todo. H á alguns anos, propusemos um a primeira tentativa de solução par a essa questão do "pluralismo epistemológico" dos saberes d o professor (capítulo 1), através de LU11 modelo de análise baseado na origem social. Essa interpretação procurava associar a q uestão da natu reza e d a diversidade dos saberes d o professor à de suas fon tes, ou seja, d e s ua proveniência social. Tal abordagem nos parece válida ainda hoje. A. nosso ver, ela abrange melhor a di versidade dos saberes dos professores do q ue as diferentes tipologias propostas pelos au tores preced entes. Ela permite evi tar a u tilização d e critérios epistemológicos dissonantes que reflitam os pos tulados teóricos dos autores, propondo, ao mesmo tempo, um modelo construído c1 partir d e categorias relacionadas com a trajetó ria percorrida pelos professores ao edificarem os saberes que utilizam efetivamente em sua prática profissional cotidiana (RAYMOND et al., 1993). O quadro seguinte p ropõe um mod elo tipológico para identificar e classificar os saberes d os p rofessores. Ao in vés de ten tar propor critérios internos que permitam discriminar c compartimen tar os saberes em categorias d isciplinares ou cognitivas di feren tes (por exemplo: conhecimentos pedagógicos e conhecim ento d a ma téria; saberes teóricos c procedimen tais, etc.), ele tenta d aT conta do p luralismo do
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~.;aber profissional,
relacionando-o com os lugares nos quais os próprios professores ah1am, com as orgcmizações q ue os formam e/ou nas quais trabalham, com seus instrumen tos de t rabalho e, enfim, com sua experiência de lTaba U1o. Também coloca em evidência as fontes d e aquisição desse sa ber e seus modos d e integração no trabalho docen te.
Qundm 1 -Os snberes dos professores Saberes dos professores
Fontes sociais de aqu isição
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Modos de integração no t rabalho docente
Saberes pessoais dos A família, o ambiente professores de vida, a educação no sentido lato, etc.
Pela história de vida e pela socia lização primária
Saberes pmvenientes A escola primária e da formação escolar secundária, os anterior estudos pós-secundários não especializados, etc.
Pela formação e pela socialização pré-profissionais
Saberes provenientes da formação profissional para o magistério
Os estabelecimentos de formação de professores, os estágios, os cursos de reciclagem, etc.
Pela formação e pela socialização profissionais nas instituições de formação de professores
Saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho
A utilização das "ferramentas· dos professores: programas. livros didáticos, cadernos de exercícios, fichas, etc.
Pela utilização das "ferramentas" de trabalho, sua adaptação às tarefas
Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sa la de aula e na escola
A prática do ofício na escola e na sala de aula, a experiência dos pares, etc.
Pela prática do trabalho e pela socialização profissional
Este quad ro coloca em evid ência vários fenômen os importan tes. Em p rimeiro lugar, todos os saberes nele id en tifi63
cados sã.o realmente utilizados pelos professores no contexto de s ua profissão e da sala de aula. De f::lto, os professores uti li zam constantemente seus conhecimentos pessoais e um saber-fazer personalizado, trabalham com. os programas e livros didáti cos, baseiam-se em saberes escolares relativos às m atérias ensinadas, fia m-se em sua experiênci<1 e retêm certos elementos de sua formação profissional. 1\lém disso, o q uadro acima registra a natureza social do saber profissional: pode-se constatar que os diversos saberes dos professores estão longe de serem todos produzidos diretamente por eles, que vár ios deles são de um certo modo "exteriores" ao ofício de ens inar, pois provêm de luga res sociais anterio res à carreira propriamente dita ou situados fora do trab
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concepções não resultnm, toda via, num esforço de totalização e de unificação baseadas, por exemplo, em critérios de coerência interna, de validade, etc. Noutr os termos, um professor não possui habitualmente uma só e única "concepção" de sua prática, mas vá rias concepções que utiliza em sua prática, em função, ao mesmo tempo, de sua realidade cotidiana e biográfica e de suas necessidades, recursos e lim itações. Se os saberes dos professores possuem uma certa coerência, não se h·ata de uma coerência teórica nem conceitual, mas pragmática e biográfica: assim como as diferen tes ferramentas de um artesão, eles fazem parte da m esma caixa de ferram entas, pois o artesão q ue os adotou ou adapto u pode precisar deles em seu trabalho. A associação exis tente entre todas as ferramentas e a relação do artesão com todas as s uas fe rramentas não é teórica ou conceitual, mas pragmática: elas estão todas lá porque podem servir para alguma coisa ou ser solicitadas no processo de trabaUw. Ocorre o mesmo com os saberes que fundam entam o trabalho dos professores de profissão' . Sincretismo significa, em segundo lugar, que a relação entre os saberes e o trabalhq docente não pode ser pensada segundo o modelo aplicacionista da racionalidade técnica utili zado nas m aneiras de conceber a formação dos profissionais e no qual os saberes antecedem a prática, form ando uma esp écie de repertório de conhecimentos prévios que são, em seguida, aplicados na ação. Os saberes dos professores não são oriundos sobretud o da pesquisa, nem de saber es codificados que poderiam fornecer soluções totalmente prontas para os problemns concretos d a ação cotidiana, problemas esses que se apresentam, aliás, com frequência, como casos únicos e instáveis, tornando assim impossível a aplicação de eventuais técnicas demasiadamente padronizadas (PERRENOUD, 1996).
4. Isso, entretanto, não quer dizer q ue, aos olhos do professor, esses saberes te· n h~m todos o mesmo valo r e utilidade. Alg uns saberes serão mais importantes ou ma1s centra1s que outros, conforme as situações (cf. capítulo 1).
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Enfim, em terceiro lugar, por sincre tism o deve-se entender q ue o ensino exige do trabalhador a capacidade de u tilizar, na ação cotidiana, um vasto leque de saberes compósitos. Ao agir, o p rofessor se baseia em vários tipos de juízos prá ticos para estruturar e orientar sua atividade profissional. Por exemplo, para tomar uma decisão, ele se baseia com frequência em valores morais ou normas sociais; aliás, uma grande parte d as práticas disciplinares do professor se baseia em juízos normativos relativos às difetenças entre o que é permitido e o que é proibido. Para atingir fins pedagógicos, o professor também se baseia em juízos provenientes de trad ições escolares, pedagógicas e profissionais que ele m esmo assimilou e in.leriorizou . Ele se baseia, enfim, em s ua "experiência vivida" enquanto fonte viva de sentidos a partir da qual o próprio passado lhe possibilita esclarecer o presente c antecipar o futuro. Valores, normas trad ições, experiência vivida são elem entos e critérios a partir dos qua is o professor emite jtúzos profissionais. Desse ponto de vista, os saberes do professor, quand? vistos com o "saberes-na-ação" (knowing-in-actio11) (SCHON, 1983), parecem ser fundam entalm ente car acterizados pelo "polimorfismo do raciocú1io" (GEORGE, 1997), is to é, pelo uso de raciocínios, de conhecimentos, de regras, de normas e de procedimentos variados, decorrentes dos tipos d e ação nas q uais o ator está concretamente en volvido juntamente com os outros, no caso, os alunos. Esse polimorfismo do raciocínio revela o fato de que, durante a ação, os saber es do professor são, a um só tempo, construídos e utilizados em função de diferentes tipos de raciocínio (indução, dedução, abdução, analogia, etc.) que expressam a flexibilidade da atividade docente di ante de fenômenos (normas, regras, afetos, comportamentos, objetivos, papéis sociais) irredutíveis a uma racionn lidade única, como por exemplo a da ciência empírica o u a da lógica binária clássica.
wis.dos outros e imóveis e encontrrun-se igualmente disponíveis na memória do professor, o qual buscaria nesse " reservatório de conhecim.entos" aqueles que lhe são necessários no m omento presente ela ação. Mas as coisas não são tão simples assim. O que essa abordagem negligencia são as dimensões temporais do saber profissional, o u seja, sua inscrição na história de vida do professo r e sua construção ao longo de uma carreira. Essa inscrição no tempo~ é particularmente importante para compreender a genealogia dos saberes docentes. De fato, as experiências formadoréls vividas na fa mília e na escola se dão
Todavia, apesar de seu interesse, uma abordagem tipológica baseada na proveniência social dos saberes parece ser reléltivamente simplificadora, p ois dá a impressão de que todos os saberes são, de um certo m odo, contemporâneos
5. Trata-se, é claro, do tempo tal como é vivido e não do tempo cronológico expressoem termos de data s precisas. A reconstituição do d esen volv imento dos s«beres docentes não pode ser confundida com a composição de crónicas ou com o estabek>cimento de wna cronologia de experiências.
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to de partida e com que tudo recomece • A estrutura temporal da consciência proporciona a historicidade que define a situação de uma pessoa em s ua vida cotidiana como um todo e lhe permite atribuir, m uitas vezes a posteriori, um significado e u ma direção à sua própria trajetória de vida. O professor que busca definir seu esti lo e negociar, em m eio a solicitações múltiplas e contraditórias, formas idenhtárias aceitáveis para si e para os outros (DUBA R, 1992; 1994) utilizará r eferenciais espaço-temporais que considera válidos para alicerçar a legitimidade das certezas experienciais que reivindica. O desenvolvimento do saber profissional é associado tanto às suas fontes e lugares de aquisição quanto aos seus momentos e fases de construção. Este quad ro dá também exemplos de diferentes fatores que poderiam ser levados en1 consideração para uma aná lise exaustiva do assunto.
sabe hoje é que esse legado da socialização escolar permanece forte e estável através do tempo. Na América do Norte, percebe-se que a maioria dos dispositivos in troduzidos na formação inicial dos professores não consegue mudá-los nem abalá-los. Os alunos passam através da formação inicial para o magistério sem modificar substancialm ente suas crenças anteriores a respeito do ensino. E tão logo começam a trabalhar com o professores, sobretudo no contexto de urgência e d e adaptação intensa que vivem quando com eçam a ensinar, são essas mesmas crenças e maneiras de fa zer que reativam para solucionar seus problemas profissionais, tendências que são muitas e muitas vezes reforçadas pelos professores de profissão.
Em p rimeiro lugar, o que ch
Em suma, tudo leva a crer que os saberes adquiri dos durante a trajetória pré-profissional, isto é, quando d a socialização primár ia e sobretudo quando da socialização escolar, têm um peso importan te na compreensão da natureza dos saberes, d o saber-fazer e do saber-ser q ue serão mobilizados e utilizados em seguida quando da socialização profissional e no próprio exercício do magistério. Desta forma, pode-se dizer que uma parte imp<;ntante da competência profissional dos professores tem raízes em sua história de vida, pois, em cada ator, a competência se confunde enorm em en te com a sedimen tação temporal e progressiva, ao longo da história de vida, de crenças, de representações, m as tam bém de hábitos práticos e de rotinas de ação (RAYMOND et al., 1993). Todavia, essa sedimentação não deve ser concebida como uma simples superposição de camadas de saberes independentes umas das outras em termos de conteúdo e de qualidade. Há um efeito cumulativo e seletivo das experiências an teriores em relação às experiências subsequentes. Assim, o que foi retido das experiências fa miliares ou escolares dimensiona, ou pelo menos orienta, os investimentos e as ações d urante a formação inicial universitária. Por exemplo, por 7 ocasião dos estágios de formação prática , os professoran-
6. f: óbvio que a constituição dos saberes docentes não segue a lógica operatória piagctiana.
7. O estngio dura 800 horas e é realizado ao longo dos quatro anos de formação inici~l para o magistério.
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NLUn único capítulo, é evidentemente impossível comentar todos os elementos identificados nesse quadro o u mesmo estudar um só deles em seus pormenores. Em relação à temática deste livro, porém, dois fenômenos merecem uma atenção particular:
dos tendem a prestar atenção nos fenômenos da sala de aula em relação aos quais eles possuem expectativas ou representações fortes. Para que os professorandos prestem atenção em fenômenos menos familiares, os formadores afirmam ter que duplicar os seus esforços, multiplicar as demons trações, destacar os comportamentos de alunos que foram ignorados e, finalmente, argum entar incessantemente contra o caráter parcial e limitado da eficácia das crenças anteriores possuídas pelos altmos-professores (HOLT-m~YNOLDS, 1992; MCDIARMID, 1990; MCDIARMID, BALL & ANDERSON, 1989; MAESTRE, 1996; MOUSSALLY, 1992). Em segundo lugar, merece ate nç~ o aqui lo que, no quadro 2, chamamos de trajetória profissional. Os saberes dos professores são temporais, pois são utilizados c se desenvolvem no âmbito de uma carreira, isto é, ao longo de um processo temporal de vida profissional de longa duração no qual estão presentes dirnensões.identitárias e dimensões de socialização profissional, além de fases e mudanças. A carreira é também um processo de socialização, isto é, um p rocesso de marcação e de incorporação dos indivíduos às práticas e rotinas ins titucionalizadas das equipes de trabalho. Ora, essas equipes de trabaU\0 exigem que os indivíduos se adaptem a essas prá ticas e ro tinas, e não o inverso. Do ponto de vis ta profissional e do ponto de vista da carreira, saber como viver n uma escola é tão importante quanto saber ensinar na sala de a ula. Nesse sentido, a inserção numa cm·reira e o seu desenrolar exigem q ue os professores assimilem também saberes práticos esp ecíficos aos lugares de trabaU10, com suas rotinas, valores, regras, etc.
É portan to nos dois fenômenos essencialmente temporais- a trajetória pré-profissional e a carreira- que desejamos dem orar-nos nas páginas seguintes. Com eçaremos p elo estudo d as fon tes pessoa is (ou pré-profissio nais) d o saber-ensinar e, em seguida, abordaremos as relações entre os saberes e a carreira. Na conclusão, tentaremos destacar, a partir desses fenômenos, certas relações entre os saberes, o tempo e o trabalho.
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2. As fontes pré-profissionais do sabe1·-ensinar:
uma história pessoal e social A socialização é um processo de formação do indivíduo que se estende por toda a história de vida e comporta rupturas e contin uidades. Nesta seção, vamos tra tar da socialização pré-profissional, que compreende as experiências familiares c escolares dos professores. Em sociologia, niío existe consenso em relação à natureza dos saberes adquiridos através da socialização. Schütz (1987) .fala de " tipos" cognitivos que permitem incorporar as experiências cotidianas num reservatório (stock) de categorias cogniti vas c linguísticas. Depois de Schütz, Berger e Luckman (1980), retomados por Dubar (1991), falam de saberes de base pré-reflexivos e pré-dados que fun cionam con1o evidências e como uma reserva de categorias graças às quais a criança tipifica, ordena e objetiva seu mundo. Bourdieu (1972; 1980) os associa a esquemas interiorizados (habitus) que organizam as experiências sociais e permitem gerá-las. Os etnometodologistas (COULON, 1990) os comparam a regras pré-reflexivas que estruturam as interações co tidianas. Giddens (1987) designa-os pelo termo de "com petência", que estrutu ra a consciência prática dos atores sociais. Os cognitivistas falam dos conhecimentos anteriores estocados na mem ória a longo prazo sob a forma de figuras o u de esquemas; outros autores falam de "preconcepçôes", de teorias implícitas, de crenças, etc. De qualquer modo, trata-se de representar os desempenhos e as capacidades sociais e culturais dos indivíduos, que são ricas, variadas e variegadas, graças a um conjunto mais restrito de saberes subjacentes que permitem compreender como esses desempenhos são gerados. A ideia de base é que esses "saberes" (esquemas, regras, hábitos, procedimentos, tipos, categorias, etc.)
não são inatos, mas produzidos pela socialização, isto é, através do processo de imersão dos indivíduos nos diversos mundos socializados
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No campo do ensino, os trabalhos referentes às histórias de vida de professores rem ontam aos anos 1980, e os que tratam da socialização pré-profissional datam somente de uma década. Esses trabalhos defendem a ideia de que a prática profissional dos professores coloca em evidência saberes oriundos da socialização anterior à preparação profissional formal p ara o ensino. Eles mostram (CARTER & DOYLE, 1996; RA YMOND et al., 1993; RA YMOND, 1998 e 1998a) que há muito mais continuidade do que ruptura entre o conhecimento profissional do professor e as experiências pré-profissionais, especialmente aquelas que m ar cam a socialização primária (fanúlia e ambiente de vida), assim como a socialização escolar enquanto aluno. Ao longo de sua história de vida pessoal e escolar, supõe-se que o futuro professo r interior.i za um cer to número de conhecimentos, de competências, de crenças, de valores, etc., os quais estruturam a sua personalidade e suas relações com os outros (especialmente com as crianças) e são reatualizados e reutilizados, de m aneira não reflexiva mas com grande convicção, na prática de seu oficio. Nessa perspectiva, os saberes experienciais do professor de profissão, longe de serem baseados unicamente no traba lho em sala de aula, decorreriam em grande parte de preconcepções do ensino e da aprendizagem herdadas da história escolar. Todavia, a maioria dos trabalhos empíricos dedicados a essa questão são de origem anglo-saxônica. Não é certo, portanto, que os seus resultados sejam diretamente aplicáveis ao grupo de professores que estudamos (professores francófonos do Quebec). As únicas pesquisas que tratam explicitamente dos professores do Quebec são aquelas realizadaspor Raymond et al. (1993)" e p or Lessard & Tardif (1996). São, portanto, os resultados dessas pesquisas que vam os apresentar e discutir brevemen te.
.A pesquisa de Raymond, Butt e Yamagishi {1993) Ao mesmo ten
8. Os autores estudar am 80 documentos autobiográficos de futuros professores e 10 histórias de v ida de professores experientes (p. 151). No caso d Üs professores experientes, foi dada u1na atenção particular às experiências anteriores à prepara~ ção formal para o magistério citadas espontaneamente pelos mesmos.
Diversos trabalhos biográficos, a maioria das vezes realizados por formadores no âmbito das disciplinas da formação inicial, permitem identificar experiências familiares, escolares o u sociais, citadas pelos alunos-professores como fontes de suas convicções, crenças ou representações e apre-
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sen tadas freq uentemente como certezas, relacionadas com diversos aspectos do ofício d e professor: papel do professor, aprendizagem, ca racterís ticas dos alunos, estratégias pedagógicas, gestão da classe, etc•. Por exemplo, Cland inin (1985; 1989) e d 'Elbaz (1983) ressaltam a con tribuição das variáveis pessoais na organização cotidiana d a sala de aula. No que d iz respeito à socialização escolar, o estudo de Holt-Reynolds (1992, citad o por Raymond, 1998a, b) sobre as concepções d o ens ino e da apren dizagem existentes entre futuros pr ofessores do secund ári o mosb·a que estes aderem "espontanea mente" a uma visão tradiciona lista do ensino e do aluno. Eles resistem aos esforços de um formador que argumente em favor de wna concep ção a tiva do es tu do e da comp reensão de textos, a qual, no tangen te às práticas pedagógicas, su põe que os alunos sejam. levados a traba lha r o mais rápido possível em tarefas que exijam a manip ulação e o p rocessam ento de info rm ações. Os futuros professores rejeitam a id eia de que os alw1os estejam sendo passivos quando o uvem o p rofessor. O que conta é que o professor apresente os conhecimentos d e m aneira interessa n te para os alunos. De acordo com esses futuros p r ofessores, "a aprendizagem dos alunos depende d o interesse; se um aluno não está interessado, não aprende; certas matérias d evem ser ensinad as d e maneira expositiva; a a ula expositiva estimula o d esen volvimento do interesse pela literatura'' (RAYMOND, 1998a). O utros pesquisad ores também se interessa ram por essa questão. Em sínteses d e pesquisas q ue tratam d os conhecimentos, crenças e predisposições dos alu nos-professores, Borko & Putnam (1996), Calderhead (1996), Carter & Anders (1996), Carter & Doyle ("1 995, 1996), Richardson (1996) e Wideen et al (1998) colocam em evidência o fa to d e que as crenças d os p rofessores q ue se encontram em formação inicial remetem a esquemas de ação e de interpretação implícitos, estáveis e resistentes através d o tempo. Pode-se formular a 9. Cf. as sínteses de pesquisas de Borko & Putnam (1996), Carter & Doyle (1996), Richardson (1996) e Wideen et ai. (1998).
hipótese de que são esses esquemas que, em parte, d ão origem à roti.nização do ensino, na medida em que tendem a reproduzir os comportamentos e as ati tudes que consti;tuem. a essência do papel institucionalizado do professor. E o que mostra particula rmente a análise das entrevistas d e H olt-Reynold s (1992), ou seja, que a visão tradicionalista do ensino tem raízes na história escolar anterior desses futuros p rofessores, os quais concebem o ensino a partir de sua próp ria experiência co mo alunos no secundário. Eles dizem ter ap rendido através de aulas expositivas em que o p rofessor apresen tava a matéria de tal maneira g ue despertava e mantinha o interesse dos alunos. Além disso, eles julgam , sempre a partir d e s uas experiências como alunos, que seus futuros al unos serão incapazes de compreender os livros did áticos ou os textos por si mesm os. De acordo com Raymond et al. (1993), esses esquem as de ação e essas teorias atributivas são, em grande parte, implícitos, forteme n te im p regnados de afetos e percebidos pelos jovens professores como certezas profundas. Eles resistem ao exam e crítico durante a fo rmação inicial e perduram muito além dos primeiros anos de atividade docente. As pesquisas de Lessard & Tru·dif {1996} e Tmdif &
Lessard {2000} Embora esta pesquisa não visasse reconstruir a história d e vida dos p rofessores a partir de uma metod ologia narrativa, elementos similares à pesquisa anterior foram espontaneam ente abordados pelos professores interrogados ou postos em evidência pela análise. Vários p rofessores falaram d a origem infan til de sua paixão e de s ua opção pelo ofício d e professor. Eu era bem pequena e já sabia que ia ensinar. Era um sonho que eu queria realizar de qua Iquer jeito. Acho que era uma coisa visceral, que estava dentro de mim, e eu nu nca pensei que poderia fa zer outra coisa.
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Muitos professores, especialmente mulheres, falaram da origem familiar da escolha de sua carreira, seja porque provinham de uma família de professores, seja porque essa profissão era valorizada no meio em que viviam. Encontra-se aqui a ideia de "mentalidade de ser viço" peculiar a certas ocupações femininas. A esse respeito, Atkinson & Delamont (1985) apontam uma icleia interessante com relação ao "autorrecrutamento" para o magistério: eles notam que, embora a experiência pessoal na escola seja significativa na escolha do magistério, ela seria menos importa nte do que o fato de ter parentes próxim os na área da educação, o que refletiria um recrutamento ligado à traclição oral dessa ocupação, aos efeitos da socialização por antecipação (LORTTE, 1975) no ofício de professor, efeitos esses induzidos pela observação, em casa, do habitus familiar e de um dos pais concen trado em tarefas ligadas ao ensino. lh 1 fsso já está tão longe. Você está me fa zendo viajar na minha história pessoal. Ta lvez seja porque minha mãe foi professora. Bom. Primeiro, minha m ãe tinha ensinado antes de se casar- cinco anos. Depois, minhas duas irmãs mais velhas também estudavam para sere m p rofessoras. Então, acho que é muito uma história de famíl ia.
Outros professores também falar am da influência de seus antigos professores na escolha de sua carreira e na sua maneira de ensinar. Entre 1965 e 1980, embora o sistema de educação tivesse sofrido mudanças importantes, especialmente nas práticas pedagógicas e nos currículos, alguns professores nos disseram que continuavam ap licando o que haviam aprendido na Escola Normal, que era, na época, a instância de reprodução da pedagogia tradicional. Eu ach o que são professores que encontrei e que eu achava que trabalhavam de maneir a muito interessante com os al unos. É um retorno ao passado meio difícil, porque, naquele momento, esses professores que me marcaram, é provável que alguns deles nunca tenham sabido da influência 76
que tiveram numa decisão que estava se formando pouco a pouco. Eu não queria fazer o primário. Depois, no secundário, sei lá, devo ter tido professores que me marcaram, que me fi zera m gostar do estilo do ensino secundário.
Outros, ainda, falaram de experiências escolares importantes e positivas, como por exemplo o prazer q ue tinham em aj udar os outros alunos da sala sempre que havia op ortunidade. Em certos casos, tais experiências são suficientemente importantes e gratificantes para ter determinado a escolha da carreira. Sim. Pra mim, foi uma coisa que veio tranquilamente. Eu não hesitei. Eu gostava de ajudar os outros. É preciso realmente querer ajudar os outros.
Observa-se também, em muitos professores, a persistência na profissão e uma importante relação afetiva com as crianças. Essa relação aparece bem antes de assumirem suas funções, aliás antes da formação inicial, e se mantém em seguida. Os professores dão também muita importância àquilo que são como "pessoas", e alguns chegam até a dizer "que foram feitos para isso, para ensinar". Um tal "sentimento" tende a naturalizar o saber-ensinar e a apresentá-lo como sendo inato: Ensina r é uma questão de personalidade. Uma pessoa que é capaz de toma r iniciativas, de se interessar pelos alunos, de dialogar com eles, de fazer projetos vai se dar bem no ensino. Eu estava no segundo ano primário. Tinha um garotinho na minha classe que não ia passar. Aí a p rofessora veio me ver e me perguntou: você pode tomar conta dele? E eu recup erei o garotinho no segundo an o. Já nessa época eu tinha isso no sangue. O ensino é uma coisa inata em mim.
Nessa perspectiva, o ensino se assemelha a uma arte: Ensinar é uma arte. É possível tornar certas coisas científicas, mas, comunicar-se, mesmo que a gen-
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te desenvolva certas habilidades, é sempre uma coisa emocional.
Quando os professores atribuem o seu saber-ensinar à sua própria "personalidade" ou à sua "arte", parecem estar se esquecendo justamente de que essa personalidade não é forçosamente "natural" ou "inata", mas é, ao contrário, modelada ao longo do tempo por sua pr ópria .história de vida e sua socialização. Além disso, essa naturalização e essa personalização do saber profissional são tão fortes que resultam em práticas as qua is, muitas vezes, reproduzem os pap éis e as rotinas institucionalizadas da escola. Vê-se aqui uma certa lógica circular peculiar à naturalização das práticas sociais: "sou um bom professor porque sou feito para esse trabalho, é uma coisa inata em mim, eu dominona turahnente a arte de ensinar; mas sou justa mente um bom professor porque atendo adequadamen te às ex pectativas sociais em relação aos com portamen tos e às atitudes in stitu cionalizadas qu e dão origem ao meu papel" . Em ültima aná lise, o saber-ensinar seria a coincidência perfeita entre a personalidade do ator e o papel do agente, ambos jusfica11do-se assim mutuamente'". Em suma, o que essa lógica circular de justificação revela é essa função de mediação que a h is tória de vida exerce entre os saberes do indivíduo e os papéis e atitudes das equipes de trabalho: a "personalidade", enquanto racionalização construída a partir do sucesso com o aluno e como professor, mos tra como o indivíduo responde às norm as institucionalizadas e como a equipe de trabalho, em troca, seleciona e valoriza essas "personalidades" que se acham em conformidade com os papéis institucionalizados. Os resultados obtidos nessas pesquisas (LESSARD & TARDIF, 1996; TARDJF & LESSARD, 2000; RAYMO ND et al., 1993) sublinham a impor tância d a história de vida dos professores, em particular a de sua socialização escolar, tan-
10. Este seria, então, um caso extremo, pois os professores negociam suas identidad es profissionais e se afastam frequentemente das normas institucionais ou d e papéis que a instituição parece veicular (DUBET, 1994; LACEY, 1977).
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to no que d iz respei to à escolha da carreira e ao estilo de ensino quanto no que se refere à relação afetiva e personalizada no trabalho. Eles mostram que o "saber-ensinar", na medida em que exige conhecimentos da vida, saberes personalizados e competências que dependem da persona lidade dos atores, de seu saber-fazer pessoal, tem suas origens na his tória de vida famili ar e escolar dos professores de p rofissão. Eles mostram também. que a relação com a escola já se encontra firmemente estruturada no professor iniciante e que as etapas tLlteriores de s ua socialização profissio nal não ocorrem num terreno neutro. Eles indicam, fina lmente, que o tempo de aprendi zagem do trabalho não se limita à duração da vida profissional, mas inclui também a existência pessoal dos professores, os quais, de um certo modo, aprenderam seu ofício a11tes de iniciá-lo. Todavia, por pertencerem ao tempo da vida an terior à for mação profissional fo rmal dos atores c à aprendizagem efetiva do ofício de professor, esses saberes sozinhos não permitem representar o saber profissional: eles tornam possível o fato de poder fazer carreira no magistér io, mas não bastam pélra explicar o que também faz da experiência de trabalho uma fonte de conhecimentos e d e aprendizagem, o que nos leva agora a considerar a construção dos saberes p rofissionais no próprio decorrer da carreira profissional.
3. A carreira e a edificação temporal dos saberes profissiona is Adotando o ponto de vista da Escola de Chicago, pode-se conceber a carreira como a trajetória dos indivíduos através da realidade social e organizacional das ocupações, pouco importa seu grau de estabilidade e s ua identidade. A carreira consiste numa sequência de fases de in teg ração numa ocupação e de socialização na subcultura que a caracteriza. O estu do da carreira procede, assim, tanto da análise da posição ocupada pelos indivíd uos n um dado momento do
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tempo quanto de sua trajetória ocupacional 11 • N a medida em que procura levar em consideração as interações entre os indivíduos e as realidades sociais represen tadas pelas ocupações, a análise da carreira deve apoiar-se no estudo de dois tipos de fenômenos interli gados: a ins titucionalização da carreira c s ua representação subjetiva entre os atores. A institucionalização da carrei.ra denota o fato de que se trata de uma realidade social e coletiva, e que os indivíduos que a exercem são membros de ca tegorias coletivas de atores que os precederam e que seguiram a mesma trajetória, ou uma trajetória sensivelmente idêntica. Pertencer a uma ocupação signi fica, por tan to, para os indivíduos, q ue os papéis p rofissionais que são chamados a desempenhar remetem a normas q ue devem adotar no tocante a essa ocupação. Essas normas não se limitam a exigências formais relativat> às qualificações dos membros de uma ocupação, m as ab rangem também atih.tdes e comportamentos estabelecidos pela tradição ocupacional e por sua cultura. Além disso, são normas não necessariamente formalizadas; mui tas delas são informais e devem ser aprendidas no âmbito da socialização profissional, no contato direto com os m embros que atuam na escola e com a experiência de trabalho. Quanto à dimensão subjetiva da carreira, ela remete ao fato de que os ind ivíduos dão sentido à sua vida profissional e se entregam a ela como atores cujas ações e projetos contribuem para definir e construir sua carreira. Desse ponto de vista, a modelação de uma carreira situa-se na confluência entre a ação dos indivíduos e as no rmas e papéis
11. Deve ficar dnro, entretem to, que a carreil'a nfio corrcsponde, hoje, a um n1odelo único. Na verdade, com o desenvolvimento das ocupações modernas, constata-se que as carreiras se estendem muito além das profissões fortemente estratificadas e regidas por sistemas hierárquicos de recompensas e por papéis. Aliás, em nosso trabalho anterior (LESSARD & TARDlF, 1996), analisamos em q ue sentido a mo· demização do ensino coincidiu, historicamente, com a emergência das carreiras nessa ocupação. Por outro lado, no ensino ou noutras áreas, a precarização cres· ccnte do empr~go e a multiplicação de novas relações com o trabalho indicam que a idcia de fases não corresponde de modo algum a um processo seguencial e linear, lógico ou natural (MUKAMURERA, 1999).
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que decorrem da institucionalização das ocupações, papéis estes que os indivíduos devem "interiorizar" e dom inar para fazerem parte de tais ocupações. Em contrapartida, a ação dos indivíduos contribu i, por exemplo, para remodelai as normas e papéis insti tucionalizados, para a lterá-los a fim de levar em conta a situação dos novos "insumos" o u das h·ansformações das condições de traba lho. A carreira é, portanto, fr uto das transações contínuas entre as in terações dos indivíduos e as ocupações; essas transações são recorrentes, ou seja, elas modificam a trajetória dos indivíd uos hem com o as ocupações que eles asswnem. A maneira de abordar a carreira, sihtando-a na interface entre os atores e as ocupações, ou entre o "ator e o sistema", como diriam Croz.ier & Fiedberg (1981), e consider ando-a, ao mesm o tempo, como um constructo psicossocial modelado p ela interação enh·e os ind ivíd uos e as categor ias ocu pacionais, permite perceber melhor o papel que o saber profissional desempenha nas transações entre o trabalhador e seu trabalho. De fa to, concebida em conexão com a história de vida e com a socialização (pré-profissional e profissional), a carreira revela o caráter subjetivo, experienci.al e idiossincrático do saber do profess-or (BUTT & RA YMOND, 1987, 1989; BUTT, RAYMOND & YAMAGISH I, 1988; BUTT, TOWNSEND & RAYMOND, 1990; CLANDININ, 1985; CONNELLY & CLAl'\J"DININ, 1985). Ela permite, ao m esmo tempo, perceber melhor a dim ensão historicamente construída dos saberes, do saber-fazer e do saber-ser do professor, na med ida em que estes são incorporados às atitudes e comportamentos dele por intermédio de sua socialização profissional. Desse ponto de vista, ela perm ite fundamentar a prática do professor - o que ele é e faz - em sua his tória profissional. Acreditamos q ue esses poucos elem en tos conceituais relativos à carreira sejam suficientes para demonstrar a necessidade de estudar os saberes profissionais dos professores, situ ando-os num quad ro dinâmico, genético e diacrônico. A seguir, vam os tratar inicialmente da carreira dos professores regulares e p ermanentes, eshtdando, em seguida, o
caso dos professores que v ivem em situação p recária, os quais representam, a tualmente, uma parte im portante ela . pro fissão docente e, contrariamente aos primeiros, v ivem h·ajetórias profissionais mais complexas e " hachu radas", com repe rcussões na própria aprendizagem do magistério c na edificação dos saberes profissionais.
As fases iniciais da carreira e a experiên cia
de trabalho Uma constatação importante sobressai d o n osso material e dos outros diferentes estudos: os saberes d os p rofessores comportam uma forte dimen são temporal, remetendo aos processos a través d os quais eles são adq u iridos no âmbito de uma carreira no ensino. Concretamente, entre os p rofessores entrevistados que possuem um emprego estável no ensino, as bases dos sa beres profissionais parecem con struir-se n o inicio da carreira, entre os três e cinco primeiros anos de tra balho. Por outro lado, o início da ca rreira represen ta também uma fase critica em relação às expe riências anteriores e aos reajustes a serem feitos em função das realidades do trabalho. Ora, este processo está ligado também à socialização profissional do professor e ao que muitos a utores cha ma ram de "choque com a realidade", "choque de h·ansição" o u ainda "ch oque cultural", noções que remetem ao confronto inicial com a dura e complexa rea lidade do exercício d a profissão, à desilusão e ao desencanto dos primeiros tempos d e profissão e, de maneira geral, à transição d a vida de estuda nte para a vida mais exigente de trabalho. Porém, antes de apresentar nossos dados sobre essas q uestões, vejamos o que diz a litera tura a esse resp eito. Eddy (1971) fez uma descrição do início da carreira que se tornou "clássica" para o ensino, distinguindo três fases ou etapas n esse processo: A primeira fase, na transição do idealismo para a realidade, é marcada pela reunião formal de ori82
entação que ocorre vários dias antes do início do ano letivo (p. 183) (tradução livre) . Num certo sentido, trata-se de um rito d e passagem. da condição de estudante à de p rofessm. Os nova tos descobrem, p or exemplo, que discussões básicas sobre os princípios educacion ais ou sobre as orientações ped agógicas não são realmente i.J.nportantes na sala dos professores. A preocupação maior é de mosh·ar aos professores que o primeiro papel deles será o de ama-seca de um grupo de a I unos cativos e turbulentos. Eles são
iniciados numa burocracia que tenta reguJar e roti n.izar ta nto os alunos quanto os professores, a fim de que tudo funcione sem embaraços. Os professores devem confor mar-se estritamente às regras impostas pela administração, a fim de poderem ser agentes eficientes da t ransmissão dessas regras aos alunos (EDDY, 1971, p. 185-186) (tradução livre). A segunda fase corresponde à iniciação n o sistema norm ativo i.J.lformal e na hierarquia das posições ocupadas na escola. O grupo ií1formal de professores inicia os novatos n
do cho9ue com a realidade para os n ovos professores. E n a famosa (ou infame) sala dos professores que essas normas são inculcadas e mantidas (EDDY, 1971: 186) (tradução livre).
tes a abandonar a profissão, ou simplesmente a se questionar sobre a escolha da profissão e sobre a continuidade da carre~·a, conforme a importância do "choque com a realidade". E o que observa Veenman (1984: 144) ao dizer:
Finalmente, a terceira fase está ligada à descoberta dos alunos "reais" pelos professores. Os alunos não correspondem à imagem esperada ou desejada: estudiosos, dependentes, sensíveis às recompensas e punições, desejosos de aprender (EDDY, 1971: 186).
Na verdade, o choque com o real se refere à assimilação de uma realidade complexa que se apresenta incessantem ente d iante do novo p rofessor,
Outros autores (HUBERMAN, 1989; VONK, 1988; VONK & SCI-IRAS, 1987; GRIFFIN, 1985; FETMAN-NEMSER &
todos os dias que Deus dá. Essa realidade deve ser constantemente dominada, particularmente no momen to em que se está começando a assu mir suas funções no ensino (tradução livre).
REMILLARD, 1996; RYAN et al., 1980) considera m que os cinco ou sete primeiros anos da carreira representam um período crítico de aprendizagem intensa da profissão, período esse que su scita expectativas e sentimen tos fortes, c às vezes contraditórios, nos novos professores. Esses anos constituem, segundo os autores, um período realmente importante da história profissional do professor, determinando inclusive seu futuro e sua relação com o trabalho. Nesse sentido, os autores interessad os pela socialização profissional dos professores falam de um segundo fenômeno de marcação' 2 que caracterizaria a evolução da carreira docente (LORTIE, 1975; GOLD, 1996; ZEICHNER & GORE, 1990). Haveria duas fases durante os primeiros anos de carreira:
2) A fase de estabilização e de consolidação (de três a sete anos), em que o professor investe a longo prazo na s ua profissão e os outros membros da instituição reconhecem as suas capacidades. Além. disso, essa fase se caracteriza p or uma confiança maior do professor em si mesmo (e também dos outros agentes no professor) e p elo domínio dos diversos aspectos do trabalho, principalmente os pedagógicos (gestão da classe, planejamento do ensino, apropriação pessoal dos programas, etc.), o que se manifesta através de um melhor equilíbúo profissional.e, segundo Wheer (1992), de um interesse maior pelos problemas de aprendizagem dos alunos, ou seja, o professor está menos centrado em si mesmo e na matéria e mais nos alunos.
1) Uma fase de exploração (de um a três anos), na qual o professor escolhe provisoriamente a sua profissão, inicia-se através de tentativas e erros, sente a necessidade de ser aceito por seu círculo profissional (alunos, colegas, diretores de escolas, pais de altmos, etc.) e experimenta diferentes papéis. Essa fase varia de acordo com os professores, pois pode ser fácil ou difícil, entusiasmadora ou decepcionante, e é condicionada p elas limitações da ins tituição. Essa fase é tão crucial que leva uma porcentagem importan te (COLO, 1996, fala de 33%, baseando-se em dados americanos) de inician-
12. Como vimos anteriormente, o primeiro fenômeno de marcação ocorreria durante a socialização pré-profissional, por ocasião da socialização escolar.
Enh·etanto, é preciso compreender que a estabilização e a consolidação não ocorrem naturalmente, apenas em função do tempo cronológico decorrido desde o ilúcio da carreira, mas em ftmção também dos acontecimentos cons titutivos que marcam a trajetória profissional, incluindo as cond ições de exercício da profissão. Por exemplo, as pesquisas sobre os professores s uíços de Genebra e do cantão de Vaud (HUBERMAN, 1989; HUBERMAN et ai., 1989) indicam que certas condições são necessá rias para que a "estreia" n a profissão seja mais fácil e para que haja consolidação da profissão e estabilização na carreira, entre as quais: ter turmas com as quais seja fácil lidar, um volume de trabalho que não consuma todas as energias do professor, o apoio da direção ao invés de um controle "policial", um vín-
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culo definitivo com a instituição (consegu ir um emprego regular, estável), colegas de trabalho "acessíveis" e com os quais se pode colaborar, etc. O que acontece quando aplicamos essas ideias ao nosso material empírico? É possível aplicar a ele as fases e etapas propostas pela literatura e fazer uma nssociação entre "saber, tempo e carreira"? No material que recolhemos junto a professores regulares, as relações entre o desenvolvimento do saber profissional e a carreira parecem bastante claras em vários casos. Como d izíamos, é no início da carreira que a estruturação do saber experiencial é mais forte e importante, estando ligada à experiência de trabalho. A experiência inicial vai dando progressivamente aos professores certezas em relação ao contexto de trabalho, possibilitando assim a su a integração no ambiente de trabalho, ou seja, a escola e a sala de a ula. Ela vem também confirmar a sua capacidade de ensinar. Os saberes não poderiam desempenhar se u papel predominante sem um elemento integrador, o conhecimento do eu profissional nesse ofício de relações humanas, conhecimento esse que vai dar ao professor experiente uma coloração idiossincrática. A tomada de consciência dos diferentes elementos que fundamentam a profissão e a integraçã.o na situação de trabalho levam à construção gradual de uma identidade profissional.
A formação teó1ica, pouco que ela tenha sido adquirida na Universidade ou na Escola Normal, não é completamente inütil, mas não pode s ubstituir a experiência. Eu tenho a impressão de que isso é um p rincípio, na pedagogia: você aprende quando faz.
Finalmente, uma outra fonte de aprendizagem do trabalho é a experiência dos outr os, dos pares, dos colegas que dão conselhos: Foi a cabeça que mergulhei primeiro no ensino. E vi que há uma desproporção entre o que se faz nos cursos universitários e o que se vive na realidade. [... ]Há muita idealização. A gente é obrigaela a abandonar muita coisa. [... ] Eu não sei se tenho ideias preconcebidas. No que se refere realmente à sala de aula, quem. me ensinou realmente as coisas foram os colegas à minh a volta. Meus melhores professores são eles.
Essa fase crítica e de distanciamento dos conhecimentos acadêmicos anteri.ores provoca também um reajuste nas expectativas e nas percepções anteriores. É necessário rever a concepção anterior de "professor ideal". Com o passar do tempo, os professores aprendem a com.preender melhor os alw1.os, suas necessidades, suas carências, etc. Com efeito, o "ch oque com a realidade" força a questionar essa visão idealista partilhada pelos professores novatos, visão essa que, por uma questão de sobrevivência, deve ser apagada:
O início da carreira é acompanhado também de uma fase crítica, pois é a partir das certezas e dos condicionantes da experiência prática que os professores julgam sua formação universitária anterior. Segundo eles, muita coisa da profissão se aprende com a prática, pela experiência, tateando e descobrindo, em suma, no próprio trabalho. Ao estrearem em sua profissão, muitos professores se lembram de que estavam mal preparados, sobretudo para enfrentar condições de trabalho difíceis, notadamente no que se refere a elementos como o interesse pelas funções, a turma de alunos, a carga de trabalho, etc. Foi, então, através da prática e da experiência que eles se desenvolveram em termos profissionais.
Também se observa uma delimitação dos territórios de competência e de atuação do professor. As mudanças não se limitam a uma questão de eficiência, "mas à maneira de viver as coisas e de compreender seu ambiente de trabalho",
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Quando a gente com eça a ensinar, pensa que tem todos os poderes. Estamos persuadidas de que, com a gente, a criança vai aprender tudo direitinho. E que a gente vai ser paciente, gentil... e aí não funci ona. A gen te va i ficando com menos expectativas. A gente consegue fa zer coisas interessantes, mas não faz milagres ...
no momento em que o p rofessor consegue especificar e separar o seu papel e as suas responsabilidades d o papel c das responsabilidad es d os o utros, principalmente no que d iz respeito aos pais. Aí ele consegue chegar a assumir apenas aqu ilo que lhe compete enquanto professor: Não é tanto o q ue eu vivo; isso não mudou tanto assim. ContiJ1ua havendo alunos, um professor e um programa. Nessa h istória também tem coisas imu táveis. Mas a minha maneira de viver isso mudou. Eu sei muilo mais o que me compete e o que compete aos outros, e aí consigo dormir melhor.
Ele tam bém sabe separar as coisas, no que diz respeito ao seu papel na aprendizagem dos alunos: Todos os meu s an os de exp el"iê ncin me perm itiram compreender que se pode aprender tudo com o tempo e que o meu papel consiste mui tas vezes em colocar o aluno na p ista de uma ap rendizagem possível. Certas aprendizagens são longas e, em um an o, n enhu m aluno e nenh um professor podem faze r m ilagres. Mas se u m pedaço d o caminh o já tiver sido feito, m inha m issão está cumprida.
Com o tempo, os professor es aprendem a conhecer e a aceitar seus próprios limites. Esse conhecimento torna-os mais flexíveis. Eles se d istan ciam mais d os progra mas, das d iretr izes e d as rotinas, em bora respeitando-os em termos gerais: Mas se não deu certo uma vez, eu não recomeço. Não faço a mesm a coisa de n ovo. Apresento outra coisa. Vamos fazer outra coisa hoje. E aí com eço urna nova a tividad e.
gad as à p rópria ação pedagógica que têm mais importância para os professores. Eles mencionam competências de liderança, de gerenciamento, d e motivação. Não se deve estar sempre empu rrando as pessoas e dizendo: "Vamos, façam isso." Deve-se ir na frente, puxando as p essoas e di zendo: " Paçam como e u, sigam-me." Essa é a minha man eira de ver as coisas.
Tais competências são adquirid as com o tempo e com a exp eriência d e h·abalho: Recebo estagiários com frequência na minha classe e, para eles, é sempre uma descoberta quando colocam o pé na minha sala de aula. Eles cu rsarnm muitas disciplinas, mas eles mesmos d izem: quando você coloca o pé numa sala de a ula com 30 crianças, as disciplinas gue você cmsou ficam longe demais. São as crianças de oito e meia às três horas... É a linha de tiro ... Você tem que mantê-los ocupados e se ocupar também.
Em suma, constata-se que a evolução da carreira é acompanh ada geralmente de um d omínio m aior do trabalho e d o bem-estar pessoal no tocánte aos alunos e às exigências d a pro fissão.
Os professores em situação precária Entretanto, é preciso relativizar esse modelo de carreira, pois ele vale sobretud o para os professores regulares e perm anentes13. Os p rofessores que estão em situação p recár ia vivem outra coisa e sua experiência relativa à aprendiza-
O d omínio p rogressivo do trabalho provoca uma abe rtura em relação à construção d e suas próprias ap rendizagens, d e suas próprias experiências, aberhua essa ligada a uma mai or segurança e ao sentimento d e estar d ominando bem suas funções. Esse d o mínio está relacionad o, inicialmente, com a matéria ensinada, com a didá tica ou com a p reparação da aula. Mas são sobretudo as competências li-
13. No Qucbec, os anos 1980 e o início dos anos 1990 foram marcados por crises econômicns e uma onda de contenção de despesas importante, diminuição d o corpo docente das escolas públicas, excesso de professores, diminuição das necessidades de contratação, etc. (LESSARD & TARDIF, 1996; BOUSQUET, 1990; CONSEIL.S DES UNIVERSlTÉS, 1986). Esta situação provocou, entre outras co isas, uma redução na contratação de jovens professores, a precarização do trabalho, particularmente entre os mais jovens, e, finalmente, a constituição de um importante exército de reserva estimado em aproximadamente 50.000 professores temporários ou subempregados (BOUSQUET, 1990), o u seja, por volta de 45% dos docentes.
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gem da profissão é mais complexa e m ais d ifícil, pois comporta sempre uma ce rta d istância em relação à id entid ad e e à situação profissional bem d efinid a dos pro fesso res regulares. É d ifícil pensar na consolidação d e competências ped agógicas enquanto os p rofessores com serviços prestad os não tiverem adquirido um mínimo de estabilidad e. Uma grande flutuação nas ftmções ocupad as, de u m ano para o outro, pode até provocar, segundo Nault (1994), a eros5o das competências. Por exemplo, os p rofessores em situação precária levam ma is tempo para d o mina r as condições pec uliares ao trabalho em sala de aula, pois m udam frequentemen te de turm a e d efrontam-se com as turmas m ais difíceis. Nesse sen tido, sua busca d e um bem-estar pessoal na realização desse trabalho é muitas vezes contrar iada por in úmeras tensões d ecorrentes d e sua situação precária. M ukamurera (1999) estudou com p rofundidad e as trajetó rias de inserção de vinte professores novatos, d o primár io e d o secundário, em situação precária. Ela m os tra que a p reca1·ied ad e tem consequências psicológicas, afetivas, relacionais e ped agógicas p rovocadas pelas mudan ças profissionais vivid as por esses professores. Seu estudo ind ica também que a carreira deles não segue o mesmo mod elo que a dos professo res que ob tiveram rapida mente a permanência no em prego, com o ocorria nas d écadas d e 1950 a 1970. Vejamos com o a p recariedade afeta a ap rendi zagem da profissão e a aquisição d os saberes p rofissionais. O fenômeno principal aq ui é, essencialmente, o da in stabilidad e d a carreira, ca racterizad a por mudanças frequ en tes e de natureza d iferente (turm a, escola, Comissão Escolar ", etc.). Essas numerosas mudanças tornam difícil a ed ificação do saber experiencial no início da carreira . LJma primeira dificuldade viv ida pelos professores em situação precária diz respeito à impossibilidad e de viver uma relação seguida com os mesmos alunos. Este problema ocorre particular mente com os suplentes ocasionais ou ainda com os professores em s ituação p recária q ue obtêm vá-
rios contratos sucessivos n um mesmo ano letivo. Os professores ensinam aqui e acolá, perd em "su as turmas" para irem assumir outras e sentem-se frush·ados por perderem tu rmas com as quais se haviam habituado e com as quais tud o estava iJ1do bem. Aí, no mês de fevereiro, "tchau, tchau". Às vezes dói p erder certas tur mas com as q uais as coisns estavam indo tão bem.
Cer tos professores chegam a ficar n um a m esma escola m ais de um ano consecutivo. Outros, no entanto, mud am de escola várias vezes, p raticamente no fim de cada con trato, especialmente nos primeiros anos de trabalho. A instab ilidad e é uma dura realidade para os jovens p rofessores em situação precária, pois o fim do contrato representa muitas vezes, segundo eles, uma ruptura com a escola e com os alunos aos quais eles se haviam apegado. É muito triste (o fim de um. contrato), porque a gente de ixa a escola à qual a gente se apegou, as crianças a quem a gente ficou apegada. [... ).
Por outro lado, embora a mudança da área d e ensino p rincipal seja pouco frequente, observa-se que os jovens professores em situação precária assumem, paralelamente, de modo parcial, carga horária em outras d isciplinas, as quais mud am de um ano para o utro à med ida q ue eles mudam de escola. O resul tado disso é q ue eles não som ente percorrem várias escolas, mas "passam" também por mais d e uma área d e ensino e por várias d isciplinas e matérias. As implicações no trabalho cotidiano são consideráveis: é preciso recomeçar sempre, ou quase sem pre, do zero, e, com o tempo, isso se torna fastidioso e d ifícil d e su por tar. Diante dessas m udan ças, os jovens professores dizem estar sempre n um perpétuo recomeço, tanto no que diz respeito à preparação d o m ater ial e d as aulas quanto em relação à compreensão da matéria, ou do próprio programa, e à aprendizagem q ue isso implica, o que exige deles um grande in ves timento d e tempo e energia para poderem cumprir com suas tarefas.
14. Unidade administrativa que engloba várias escolas de um d eterminado território.
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O que você faz, quando passa de uma matéria pra ouh·a? Você passa u m fim de semana nisso, suas noi tes naquilo. E aí você fica correndo atrás dos p rofessores para lhe explicarem uma noçã~ que não entendeu . Sempre com um certo receiO de aparecer d iante dos alunos, porque eles sabem que você tem um ponto fraco. Os alunos são bonzinhos, mas também podem ser maland ros quando estão num g rupinho. Só es tou que rendo mostrar o quanto já trabalhei, e ainda hoje trabalho, à noite, em casa, regu larmente.
Os d ados de que dispomos n os m ostram que os professo res entrevistados mudaram muito d e série e h·abalham m uitas vezes em várias séries paralelamente. Mesmo sendo na mesma disciplina e no mesm o nível de ensino, a mudança de série representa toda wna adaptação para esses professores, porque nenhuma série é realmente como a outra. Por exemplo, "o terceiro ano do seetmdário não é exa tamente como o quinto ano" '5, observa um professor. Em suma, de uma série para ou tra, há todo um esforço a ser feito parareo rga nizar os conteúdos, ada ptar a matéria e torná-la interessante em fw1ção d a nova clientela.
É também uma questão de atitude e de ad ap tação à linguagem, pois cad a faixa etária possui su ~s pró~ rias e
maneira com os alunos do 3° e do 5°. Acho que é p1incipalmente un1a questão de linguagem. Não é a mesma linguagem que você usa com os alunos do 3° e com os altmos do 5°. A gente acaba sendo um pouco mais permissivo com os alw1os do 3° ano porque eles são ma is jovens.
As mudanças de série exigem, portanto, um a grande adaptação e uma flexibilidade que nem sem pre são fáceis, principalmente quando o professor tem várias séries ao mesmo tempo (paralelamente) e / ou trabalha com ciclos de ensino diferentes e se depara, assim, constantemen te, com muda nças instantâneas ou quase instantâneas. O trecho seg uinte resume muito bem essa experiência: No primeiro ano que eu fiz isso (ensinar em séries diferentes), foi difícil. Francês na sexta série e, dep ois, fra ncês na primeira. Não é fáciL A gente n ão tem gavetinhas na cabeça nem computadores onde basta a gen te "teclar", como dizem os alunos, para dizer: aqui terminam os objetivos da sexta série, agora são os objetivos da primeira. É difícil. É preciso mudar de linguagem. Você p recisa fala r com os grand,es da sexta série como se fossem adu ltos; com os pequenos da pri meira, como crianças de seis anos. Então, dentro de menos de cinco minutos[ ... ] É in stan tâ neo. Você p assa da sexta para a primeira série em 5 segundos. É um hábito que você tem de desenvolver.
15. No sistema escolar quebcquense, o primário tem seis anos c o secundário, cinco (N .T.).
Quanto à mud ança de Comissão Escolar, ela ocorre sobretudo durante os quatro a cinco primeiros anos de chegad a dos professores no mercado de trabalho. Enquanto os professores tentam permanecer numa m esma Comissão Escolar, estas procuram conser var o mesmo pessoal experiente, dando-lhes novos contratos, pelo menos quando isso é bom para elas. O que é mais frequen te e susceptível de acontecer são as mudanças de escola, principalmente durante o período de emprego precário, pois as pessoas "em situação precária" não possuem um cargo estável e têm que andar de escola em escola, coJúorme as necessidades da Comissão Escolar à qual pertencem.
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Isso (a passagem do 3° ao 4° ou 5° ano do secundário) representa uma adaptação. Acho que é preciso ser capaz de se adaptar, porque a gente não fala da mesma maneira com os alunos do 3° e com os alunos do 5° ano, c a gente também n ão age da mesma
Na prática diária da profissão, a experiência d e mudança de Comissão Escolar e de escola é uma experiência d e aprendizagem e de adaptação ao novo ambiente fís ico e humano, a unta nova maneira d e funcionar, a utna nova cultura organizacional. Mudar frequentemente de Comissão Escolar ou de escola é, praticamen te, recomeçar d e novo a cad a vez, pois é preciso, entre ou tr as coisas, conhecer a nova equipe da escola, conhecer a clientela (os alunos), conhecer as expecta tivas de uma nova direção, conhecer o funcionamento e o reg ulamento da escola, saber onde solicitar serviços e material, iniciar con tatos, novas relações, etc. Noutras palavras, mudar de escola o u de Comissão Escolar exige toda uma adaptação, significa "estar sempre no início da escada", o que em si mesm o já representa um excesso d e trabalho e um certo es tresse, principalmen te quand o não se recebe um apoio ad equad o no ambiente de trabalho. Também tem isso (mudança de escolas). O fa to de muda r de escola, de matéria, de Comissão Escolar. Você está sempre recom eçando . .1:-hí inconvenientes e há van tagens também em tudo isso: você está sempre recomeçando, está sempre no início da escad a.
Diante dessas inúmeras m udanças e da instabilid ade profissional por elas provocada, as palavras d e certos professores d enotam um sentimento de frustração c um certo d esencanto, pois es tão decepcionad os por terem de viver durante tanto tempo essa precaried ad e d e emprego, por serem avaliados pela escola todos os an os, por serem desva lorizados e prejudicados em m uitos aspectos. O sentimento d e frus tração diante d a precariedade d e emprego está ligado, em primeiro lu gar, à insegurança com a qual d evem lidar durante anos, a sempre es tarem procurando emprego de um ano para ou tro, ao fa to d e serem jogados de Lá para cá ao bel-prazer d as Comissões Escolares. Essa frush·ação ligad a à ausência de emprego é acompanhad a, por o utro lado, d o sentimento de ser desvalorizado (em particular durante os primeiros anos de trabalho, antes que
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o prinCípio d a priorid ade d e chamada passe a va ler ou antes de se estar numa posição d e chamada competitiva), sentimento esse m otivado por situações de indiferença e de ingra tid ão para com eles, po r par te dos administrad ores (das Comissões Escolares ou das escolas, conforme o caso), sobre tudo quand o chega o momento das demissões, d e conceder contr11 tos o u carga horária, de emp regar professores regulares. Eles têm, en tão, a imp ressão d e q ue as comissões escolares fazem pouco caso deles e de seus problemas, q ue elas não assumem nenhuma responsabilid ade para com eles e não realizam u ma verdad eira gestão do pessoal ao fnzê-los en trar e sai r impiedosamente, p reocupando-se apen as com seus interesses c "manip uland o" simplesmen te listas de ca nd ida tos sem nen hum outro reconhecimento. Nessas cond ições, os professores têm a sens<1ção de não serem mais do que "tapa-buracos" e números no fim das l istas de candidatos, e te mem ser substituíd os ou excluídos apesar da ded icação e d a competência pro fissional de q ue deram provas d urante o ano in teiro (ou d u rante anos). E aí, você chega lá, dia nte dos fwKionários, você é um número no final de u ma lista. Eu já gostava de dizer assim úas escolas: "Tão bonitinh o, tão bonzinho um p rofessor de ciências físicas ou de matemática, quando chega o ou tono; eles ach am a gente capaz de ensi nar qualquer coisa; no outono, a gente é acolhido como salvadores da pátxia. Aí, quando chega o mês de abril, a gente volta a ser nomes e números no final d e uma lista!"
Outro m o tivo d e frustração e d essa sensação d e estar sendo d esvalorizado reside na "avaliação d os professores em situação precária" realizada pelas comissões escolares através d as d ireções de escolas e considerada por esses mesmos professores como um sinal de desconfiança em relação às s uas competências. Os professores entrevistados lamentam o fato de terem de ser avaliados todos os anos com fins seletivos (contraliamente aos professores permanentes), como se s ua com petência estivesse send o continuamen te colocada em d úvida e tivesse sempre de ser provada. É como se
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houvesse dois corpos docentes, dizem os en trevistados: os professores permanentes, que são, consequ entemente, "bons" . (pois eles possu em a perman ência) e n ão precisam prova r nada, e os professores em situação precária, q ue possuem a responsabilid ade de provar que são "bons", e até melhores, para merecer o utros contratos, e isso m esmo após anos de prática d o m agistério. Como professora contratada, a gente tem que p rovar que um dia vai ser boa. É como se as pessoas fossem contratadas porque não são boas. Os bons são permanentes, os outros são contratados. É como se ti vessem feito dois compa rtimentos. Noutros professores, a frustração decorre do fa to d e n ão gozarem de certos b enefícios sociais e de estare m à mercê d a direção da escola ou di1 Co missão Esco la r enqu anto p csSO
tora era tão fo rm idável, era tão próxima das pessoas que eu voltei a confia r em mim e isso me estimulou a continuar. Outros p rofessores indica m, e n tretanto, que a p recariedade d e emprego pod e provoca r um questiona mento sobre a pertinência de continuar ou não n a carreira, e às vezes até um descomprometimento pessoal em relação à profissão. Mas é sobretudo quando ela é associada dir eta ou indiretamen te a outros problem as, tais como a insegu rança em relação ao emprego, a instabilidade d a função, a substituição, a a tribuição de contra tos menos bons (carga h orária parcial, trabalho difícil e árd uo), alunos d ifíceis, p rá ticas d e a tribuição d e contratos que d eixam a desejar e a falta de apoio e d e valo rizaçâo do professor contratado, que os jovens professon~s p erdem p rogressivamen te o entus iasmo e pensam às vezes em abandonar o magistéri o . Eu quase larguei tudo, num determinado momento. Mesmo quando eu esta va na Cidade de Quebec, quando fazia p arte do comüê d os professores contratados da CECQ, eu me lembro que era um verdadeiro horror: não há realmente nada de estimulante em ens.inar noQuebec. Vão acabar direitinho com a profissão, se continuarem assim ... Contudo, a pesa r das di ferenças entre os p rofessores que possuem estabilidade no emprego c os professores contratados, os últimos partilh am também com os p rimeiros várias convicções importantes n o que diz respeito à natureza da aprendizagem d a profissão e a avaliação de su a formação inicial. Por exemplo, os professores encontrados p or Mukamurer a acusam a sua for mação, ao dizerem que estavam mal preparados, d e maneira geral, para enfrentar as dificu ldad es d o ofício: Eu me achava uma ignoran te. Eu achava que não sabia muita coisa. Como já disse no início, eu achava que, quando eu comecei, e eu ouvia todos os outros p rofessores falarem, me parecia que eu não sabia muita coisa. Eu tinha um bacharelado, mas não achava que sabia muita coisa. 97
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Quan.do a gente começa a ensinar, é como se estivesse vivendo wna nova aventu ra num mundo desconhecido: a gente não tem todas as soluções para os problemas, o relacionamento com os alunos é difícil, principalmente com os meninos (q uestão de autoridade). Alguns ped odos são até traumatizantes. Se a d ireção não tivesse me <~po iado, eu provavelmente já teria deixado o ensino. Além disso, os professores contratad os também veem a experiência como a fon te de seus saberes profissionais: Veja um mecânico, por exemplo: assim que ele terrnina o curso c chega na oficina, nas primeiras vezes, com um carro importado, tem sempre <~1guma coisa ... Precisa sempre de prática pra ser um bom professor! É claro que isso vem com o decorrer dos anos. As dificuldades são muito mais transitórias: quando você aprende a trabalhar, descobre maneiras de fazer. Eu não acred ito que se possa ensinar a ensinm·. Acho que se pode aprender técnicas, que se pode saber como elaborar um plano de aula. Mos o ato de estar numa sa la de aula, o ato de ensina r, você não pode aprender isso em lugar nenhum, a não ser na própria sala de aula. Os d ad os d as entrevis tas sobre a preca riedade d evem n os levai a relativ izar a evolução "n ormal" das carreirns, tal como vimos acima em relação aos pro fessoJes reg ulares. A tu almen te, as carreiras no magistério n ão segu em n ecessariamente um mod elo temporal un iforme com fases cla ramen te definidas. Por ou tro lado, com o 1-Iuberm a n (1989: 28) men cion a: É muitas vezes a organização da vida profissional que cria, arbitrariamente, as condições de ingresso, de contratação e de promoção que dão sentido a tais fases. [... ] Da mesma forma, a organização arbitrária da vida social cria expectati vas que são interiorizadas e às quais respondemos como se se
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tratasse de fatores psicológicos.[ ... ] Pode também haver acontecimentos socia is marcantes (crise, guerra, epidemia, desastre natural) que modificam uma sequência "normal" durante uma ou várias geraçõe::;. É preciso, portan to, desconfiar de uma divisão falsamente na tw·al d a carreira e m fases distintas e lineares. A esse respeito, é preciso dizer que nem os poucos professores regu lares (em. termos de emprego) que encontramos viveram um m odelo de carreira estável caracterizad o pelo domínio progressivo dns s ituações d e traba lho e por um jus to equilib rio en tre as diversas exigências da profissão. Certos professores passru·am por muitas m udanças de carreira que impediram a consolidação de suas compe tências nwl\ determi nad o campo de ensino. Outros vivera m conflitos d ifíceis, seja com a d ireção, seja com colegas ou alunos, e esses conflitos provocaram certos desequilíbrios pessoais (esgotamen to, seqüê ncia desenfreada de mudanças, etc.). Enfim, devido a u ma conjw1tura de em.prego mui to difícil no liúcio dos an os 1980 e no início dos anos 1990, certos professores perseverawm nu ma profissão pela q ual nã.o sen tiam mais o u nenhum .interesse.
Em sín tese, tanto na literatu ra cons ultada quanto nas e ntrevistas que recolhemos, constata-se que a relação entre os saberes profissionais e a carreira comporta diferentes facetas e que essa re lação es tá fundam entalmen te associada ao tem po. En tre os professores regulares encon tra-se, em primei ro lugar, a ideia de dorninio progressivo das situações de trabalho. Esse d omínio abrange os aspectos didáticos e pedagógicos, o am bien te d a organização escolar e as relações com os p ares e com os ou tros atores ed ucativos . Entre os professores contra tad os encon tra-se a mesma ideia, mas o domín io d o trabalho dem ora mais a ocorrer por causa d as inúmeras m u d anças pelas q uais eles passam. O saber profission al p ossui também uma dimen são identitária, pois contribui para que o professor regular assuma 99
um compromisso durável com a profissão e aceite todas as suas consequências, inclusive as menos fáceis (turmas difíceis, relações às vezes tensas com os pais, etc.). No caso do professor contratado, essa dimensão identitária é menos forte, pois ele é arrastado de lá para cá; seu compromisso com a profissão decerto exis te, mas as condições de frustração nas quais ele está con tinuamente mergulhado colocam-no numa situação mais difíci l em relação a esse aspecto: ele também q uer se comprometer, mas as condições de emprego o repelem constantemente. O saber profissional encerra também aspectos psicológicos e psicossociológicos, uma vez que exige um certo conhecimento de si mesmo por parte do professor (por exemplo, conhecimento de seus limites, de seus objetivos, de seus valores, etc.) e um reconhecimento por parte dos outros, que veem o professor tornar-se, pouco a pouco, um de seus colegas, alguém em quem podem confiar e que não precisa ser vigiado nem guiado. Ainda assim, esse conhecimento de si m esmo e esse reconhecimento por parte dos ou tros representam um desafio importan te para os professores contratados, pois a situação na qual eles vivem dificulta a sua obtenção. Tanto no que se refere aos professores regulares quanto em relação aos contratados, o saber profissional comporta também uma dimensão crítica que se manifesta por m eio de uma crise de distanciamento em relação aos conhecimentos adquiridos anteriormente, especialmente durante a fonmtção universitária. Outros distanciamentos críticos ocorrem também em relação aos instrumentos de trabalho (programas, livros d idáticos, diretivas, regras do estabelecimento, etc.), que o professor adapta pouco a pouco às suas necessidades. Essa dimensão crítica parece desempenhar tun papel importante na busca da autonomiaprofissional, pois, graças a ela, como disse um professor entrevistado, "o professor não se sente mais observado e julgado, mas torna-se aquele que observa e que julga". Para entender as transformações e os objetos dessa d imensão crítica dos saberes experienciais, devemos levar em consideração o momento da carreira no qual ela ocorre. 100
Entre os professores regulares, o desenvolvimento da carreira parece também levar a uma certa superposição entre os conhecimentos d o professor e a cultura profissional da equipe de trabalho e do estabelecimento. O professor tende, com frequência, a aderir aos valores do grupo; ele partilha com outros membros sua vivência profissional e troca com eles conhecimen tos sobre d iversos ass w1tos. Em s uma, torna-se um membro familiarizado com a cultura de sua profissão. Em relação a esses diferentes elementos de análise, Giddens (1987) propõe um conceito interessante, o de rotinização, que nos parece pertinente para es tabelecer uma associação entre os saberes, o tempo e o trabalho. Este conceito se aplica a um número muito grande de pesquisas que colocaram em evidência o caráter ro tineiro do ensino e a importância das rotinas para entender a vida na sala de aula e o trabalho do professor. A ideia geral dessas pesquisas é que as rotinas são meios de gerir a complexidade das situações de interação e diminuir o investimento cognitivo do professor no controle dos acontecimentos . À semelhança dos modelos cognitivos simplificados da realidade, as rotinas são m odelos simplificados da ação: elas envolvem os atos numa estrutura estável, uniforme e repetitiva, dando assim, ao professo r, a possibilidade de reduzir as mais diversas situações a esquemas regulares de ação, o que lhe permite, ao m esmo tempo, se concentra r em outras coisas. Todavia, não acreditamos que a rotinização do ensino seja apenas uma maneira de controlar os acontecimentos na sala de aula. Enquanto fenômeno básico da vida social, arotinização indica que os atores agem através do tempo,Jazendo das suas próprias atividades recursos para reproduzir (e às vezes modificar) essas mesmas atividades. No nosso caso, ela demonsh·a a forte d imensão sociotemporal do ensino, na medida em que as rotinas se tornam parte integrante da atividade profissional, constituindo, desse modo, "maneiras de ser" do professor, seu "estilo", sua "personalidade profissional". No entanto, a m enos que o ator se torne um autômato, a roti-
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nização de uma atividade, isto é, sua estabilização e sua regulação, que possibilitam sua divisão e sua reprodução no tempo, repousa num controle da ação por parte d o professor, controle esse basead o na aprendizagem e na aquisição temporal de competências práticas. Ora, a força e a estabilidade desse controle não podem d epender de decisões voluntárias, de escolhas, de projetos, mas sim da interiorização de regras Ílllplícitas de açfio adquiridas com e na experiência. É aqui, a nosso ver, que os saberes da história de vida e os saberes do trabaU1o construídos nos primeiros an os da prática profissional assumem todo o seu sentido, pois formam, justamente, o alicerce das rotinas de ação e são, ao m esmo tempo, os fLmda mentos da personalidade do trabalhador. A organização do tempo escolar em etapas, ciclos e anos, e a da vida no sala de aula em função das estações do ano o u d as fes tas do calendário religioso ou civil marcam também, como pontos de referência coletivos, os saberes dos professores. sobre sua prática, as aprendizagens que os ahmos realizam na escola e as relações com os pais e a comunidade em torno da escola. O estudo de tais regularidades é, portanto, fw
trabalho na linha do tempo O objetivo deste capítulo era estudar as relações entre os saberes profissionais dos professores, o tempo e o aprendizado do trabalho. Partimos da ideia de que o tempo é um fator importante na edificação dos saberes que servem d e base ao trabalho docente. Com base nos trabalhos de Raymond et ai. (1993), de Lessard & Tardif (1996) e d e Tardif & Lessard (2000), afirmamos que os saberes profissionais dos professores eram plurais, mas também temporais, ou seja, adquiridos através de certos processos de aprendizagem e d e
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socialização que atravessam tanto a história de vida quanto a carreira. Para concluü·, tentaremos identificar algumas pistas d e re flexão, de análise teórica e de pesquisa para estudos posteriores sobre esse tema do tempo. Vamos nos deter, considerando sempre a questão do tempo, nos dois elementos centrais deste capítulo: os saberes profissionais c a identidade do professor.
Tempo e saberes profissionais Uma cons tata ção geral sobressai das análises precedentes: os sabe res que servem de base para o ensino, isto é, os fundamentos do saber-ensinar, não se reduzem a um "sistem.a cognitivo" que, como um computador, processa as info rmações a partir de um programa anteriormente definido e independente tanto do contexto da ação no qual d e se insere quanto da sua his tória anterior. Na realidade, os fundamen tos do ensino são, a um só tempo, existenciais, sociais e pragmáticos . São existenciais, no sentido de que um professor "não pensa somente com a.cabeça", mas "com a vida", com o que foi, com o que viveu, com aquilo que acumulou em term.os de experiência de vida, em termos de lastro de certezas. Em suma, ele pensa a partir de sua história de vida não somente intelectual, no sentido rigoroso do termo, mas também emocional, afetiva, pessoal e interpessoal. Desse ponto de vista, convém ultrapassar a visão epistemológica canônica do "sujeito e do objeto", se quisermos compreender os saberes do professor. O professor não é somente um "sujeito epistêmico" que se coloca d iante do mundo numa relação estrita d e conhecimento, que "processa" informações extraídas do "objeto" (um contexto, uma situação, pessoas, etc.) através de seu sistem a cognitivo, indo buscar em sua memória, por exemplo, esquemas, procedimentos, representações a partir dos quais organiza as novas informações. Ele é um "sujeito existencia l" no verdadeiro sentido da tradição fenomenológica e hermenêutica, isto é, um "ser-no-mundo", u m Dasein (HEIDEGGER, 1927), uma pessoa completa com seu corpo, 1 11:1
suas em oções, sua linguagem, seu relacionamento com os outros e consigo m esmo. Ele é uma p essoa comprome tida com e por sua própria história - pessoal, fam iliar, escola r, social - que lhe proporciona u m lastro de certezas a p artir das quais ele com preende e interpreta ns novas situações que o afe tam e con strói, por meio de s uas próp rias ações, a continuação de sua história. As pesquisas citad as an teriormente mostr
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como os p esquisadores universitá rios, por exemplo, as autoridades curriculares, etc. Nesse sentido, pod e-se d izer qu e a relação d o p rofessor com os seus próprios sa beres é acompanhada de uma relação social: a con sciên cia profissional do professor não é um reservatóri o d e conhecimen tos no q ual ele se a bastece conforme as circunstâncias; ela n os parece ser am pla mente marcada por p rocessos de avaliação e d e crítica em relação aos saberes situados fora do p rocesso de socialização an terior e da p rá tica d a profissão, p or exemp lo, os saberes d as ciências da ed ucação transmitid os d u rante a formação profission al, os sab eres curriculares produzidos pelos funcioná rios d o Min istério da Educação, os saberes d os outros a tores escolares (p ais, orientador es educacionais, e tc.) que, de uma maneira ou de outra, são exteriores ao trabalh o docente. O uso desses saberes pelo professor imp lica, portan to, uma relação social com esses m esmos saberes bem como com os grupos, instâ ncias e indivíduos que os produzem. Essas diversas relações deveriam ser abordadas por p esquisas mais profundas, a fim de conhecer m elhor, con fo rme os grupos sociais que produ zem sab eres sobr e o ensino, os critérios de legitimação ou d e inv alidação utilizados pelos professores. Finalm ente, são pragmáticos, p ois os saberes que servem d e base ao en sino estão intima mente ligados tanto ao trabalho quanto à pessoa do trab alhador. Trata-se d e saberes ligados ao labor, de saberes sobre o trabalho, ligados às funções dos professores. E é através do cumprimento dessas funções que eles são mobilizados, modelados, adquiridos, com o tão bem o demonstram as rotinas e a impo rtância que os professores dão à experiência. Trata-se, portanto, de saberes práticos ou opera tivos e normativos, o que significa dizer que a sua utilização depende de su a adequação às funções, aos problemas e às situações do trabalho, assim como aos objetivos ed ucacionais que possuem um valor sociaL A cognição d o professor é condicionad a, portanto, por su a atividade; "ela está a serviço da ação" (DURAN D, 1996). Esses saberes também são interativos, p ois são mobilizados e modelados n o âmbito de interações entre o professor e os outros atores edu 105
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cacionais e possuem, por tanto, as marcas d essas interações tais como elas se estruturam nas relações de trabalho. Estão, por exemplo, impregnados de norm atividade e d e afetivid ad e e fazem uso d e procedimentos d e interpre tação d e situações rápidas, instáveis, complexas, etc. Ora, de mod o essencial, essa tripla caracterização- existen ciais, sociais e pragm áticos - expressa a dimensão temporal dos saberes do professor, saberes esses que n fío somente são adquiridos n o e com o tempo, mas são ta mbém temporais, pois são abertos, porosos, permeáveis e incorporam, ao longo do p rocesso d e socialização e da carreira, experiências novas, conhecimentos adqu iridos durante esse processo e wn saber-fazer remodelado em função d as m udanças de prática e de situações d e trabalho. Compreender os saberes dos professores é compreender, portanto, s ua evolução e suas h·ansformações e sedimentações sucessivas ao longo da história d e vida e da carreira, história e carreira essas que remetem a várias camadas de socialização e d e recomeços.
Tempo e identidade profission al Poder-se-ia dizer, d e m an eira ba nal, que ensinar é fazer carreira no magistério, ou seja, entrar numa categoria profissional, nela assumir um papel e desempenhar uma função, e procurar atingir objetivos particula res definidos p or essa categoria. O e ns ino é, p ortanto, uma questão de estatuto. Como explica Coster (1994: 23), "a n oção d e estatuto não deve ser confundida com o regime jurídico ou contratual que defme legalmente a situação do trabalhador. Embora susceptível de ser visto como llli'. conjunto d e d ireitos e d e obrigações socialmente d eterminados, o esta tuto representa, no fundo, o aspecto normativo do papel o u o processo de instituciona lização que modela esse aspecto". Noutros termos, o esta tuto remete à questão da iden tidade do trabalhad or ta nto na organização d o trabalho quanto na organ ização social, na medida em que estas funcionam de acordo com uma imposição d as normas e d e regras que d efinem os p ap éis e posições dos a to res. Ora, essa identidade não é sim106
p lesmente wn "d ado", mas também um "constructo" que reme te "aos a tos" d e agentes a tivos capazes de justificar suas prá ticas e de d
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zem que aprendem a trabalhar trabalhando. Esse aprendizado, muitas vezes difícil e ligado à fase de sobrevivência profissional, na qua l o p rofessor deve mostrar do que é capaz, leva à construção dos saberes experienciais que se transformam muito cedo em certezas profissionais, em truques do ofício, em rotinas, em m odelos de gestão d a classe e de transmissão da matéria. Esses repertórios de competências constituem o alicerce sobre o qual vão ser edificados os saberes profissionais d urante o resto da carreira. Todavia, esses saberes não se limitam de m odo algum a u m d om ínio cognitivo e instrumental do trabalho docente. Eles abrangem igualmente aspectos como o bem-estar pessoal em trabalhar nessa p rofissão, a segurança emocional adquirida em relação aos alunos, o sentimento de estar no seu lugar, a confiança nas suas capacidades de enfren tar problemas e de poder resolvê-los (alw1os difíceis, conflitos, etc.), o estabelecimento de relações positivas com os colegas e a d ireção, etc. Nouh·as palavras, se é verdade que a experiência do trabalho docente exige um domínio cognitivo e instrwnental da função, ela também exige wna socialização na profissão e uma vivência p rofissional através das quais a identidade profissional vai sendo pouco a pouco construída e experimentada e onde entram em jogo elementos emocionais, relacionais e simbólicos que permitem que um indivíduo se considere e viva como um professor e asswna, assim , subjetivamente e objetivamente, o fa to de faze r carreira no magistério. O tempo não é somente um m eio- no sentido de " meio marinho" ou " terrestre" - no qual se encontram m ergulhados o trabalho, o trabaUlador e seus saberes; também não é unicamente um dado objetivo carzcterizado, por exemplo, pela duração administrativa das horas ou dos anos de trabalho. É também um dado su bjetivo, no sentido de que contribui poderosamente para modelar a identidade do trabalhador. É apenas ao cabo de wn certo tempo - tempo da vida profissional, tempo da carreira - que o eu pessoal vai se transformando pouco a pouco, em contato com o universo do trabalho, e se torna um Eu profissional. A própria noção de experiência, que está no cerne do eu profissional d os professores e 108
de sua representação do saber ensinar, remete ao tempo, c_o~ cebido como um processo de aquisição de wn certo domuuo d o h·abalho e de um certo conhecimento de si mesmo.
Características do saber experiencial Para concluir, destaquemos as principais características do saber experiencial evidenciadas nas análises p ropostas nos capítulos 1 e 2: • O saber experiencial é um saber ligado às funções d os professores, e é através da realização ~~ssas funções que ele é mobilizado, modelado, adqumdo,Atal_como m ostram as rotinas, em especial, e a unportano a que os professores atribuem à experiência. o
É um saber prá tico, ou seja, sua u tilização depende de sua adeq uação às fw1ções, problemas e situações peculiares ao trabalho. A cognição do professor é, portanto, condicionada por sua atividade; "ela está a serviço da ação" (DURAND, 1996: 73).
• É um saber intera tivo, m obilizado e m odelado no âm bito d e interações en rre o professor e os outros atores educativos. Ele traz, portanto, as marcas dessas interações analisadas anteriormente. Por exemplo, ele está impregnado de normativ idade e d e afetividade e recorre a procedimentos de interpretação de situações rápidas, instáveis, complexas, etc. • É tun saber sincrético e plural que repousa não sobre um repertório de conhecimentos unificado e coerente, mas sobre vários conhecimentos e sobre um saber-fazer que são m obilizados e utilizados em função dos con textos variáveis e contingentes da prática profissional.
• É um saber heterogêneo, pois mobiliza conhecimentos e formas de saber-fazer diferentes, adquiridos a partir de fontes d iversas, em lugares variados, em momentos diferen tes: história de vida, carreira, experiência de trabalho. 109
• É um sa ber complexo, não analítico, que impregna tanto os comportamentos do ator, suas regr as e seus hábitos, quanto sua consciência discu rsiva. • É ~n ~aber aberto, poroso, permeável, pois integra expenen~tas novas, conhecimentos adqui ridos ao longo d o cammh o e tU11 saber-fazer que se remodela em função das mudanças na p rática, nas situações de trabalho.
• Com o a p ersonalidad e do professor constitui um elemento fu ndam ental do processo de trabalho, seu saber experiencial é personalizado. Ele traz a marca do traba lhador, aproxim ando-se assim do conhecimento do artista ou do artesão. Por isso, é sempre difícil e u m po uco artificial disting ui r, na ação concreta, o que tU11 professor sabe e diz d aquilo que ele é e faz. • É um saber existencial, pois está ligado não somen te à experiência de trabalho, mas também à história d e vida do professor, ao que ele foi e ao que é, o que significa que está incorporado à própria vivência do professor, à sua iden tidade, ao seu agir, às suas maneiras de ser.
história de v ida profissional, c implica uma socializa. ção e uma aprendizagem da p rofissão. ~ Por fim, é um saber social e construído pelo ator em in-
teração com d iversas fontes sociais d e conh ecim entos, de competências, de saber-ensinar provenientes da cultura circundante, d a organização escolar, dos Mores educativos, d as universidades, etc. Enquanto saber social, ele leva o ator a posicionar-se d iante dos outros conhecimentos e a hierarquizá-los em ftmção de seu h·abalho. Tais características esboçam uma "epistemologia d a prática docente" que tem pouca coisa a ver com os modelos dom ina ntes do conh ecimento inspirados na técnica, na ciência positiva e nas fo rmas dominantes d e trabalho material. Essa epis te mo logia corresponde, assim
• Por ca usa da própria natureza do trabalh o, especialmente do trabalho na sala de aula com os a !unos, e das cara cterísticas anteriores, o saber experiencial dos professores é pouco formalizado, inclusive p ela consciência discu rsiva. Ele é mu ito m ais consciência no trabalho do que consciência sobre o trabalho. Trata-se daq uilo que poderíamos chamar de "saber experienciado", mas essa experiência não deve ser confundida com a ideia de experimentação, considerad a n uma perspectiva pos itivista e cumula tiva do conhecimento, nem com a ideia de experiencial, referen te, numa visão h umanista, ao foro in ter ior psicológico e aos valores pessoais. O saber é expe1ienciado por ser experimentado no trabalho, ao mesmo tempo em que modela a identidade daquele que trabalha. • É um saber temporal, evolutivo e dinâmico que se transfo rma e se constrói no âmbito d e uma carreira, de uma 110
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3 O trabalho docente, a pedagogia e o ensino Interações humanas, tecnologias e dilemas
ExiSTEM, atualmente, instrumentos conceituais e metodoló-
gicos bem elaborados que possibilitam analisar o trabalho de um modo geral e o trabalho d ocente em parti cular. Nos Estados Unidos, desde o início da década de 1980, milhares de pesquisas foram realizadas diretam ente nos estabelecimentos escolares e nas salas de au la, no intuito de estudar in loco o processo concreto da ativida de profissional dos professores. No Brusil, sobretudo a partir d o início dos anos 1990, a pesquisa ed ucacional passou a vislumbrar, na sala de aula, um espaço rico em possibilidades de investigação. Um número cada vez maior de pesquisadores da área da educação tem ido regularmente às instituições escolares observar e analisar as atividades cotidianas d os trabalhadores do ensino. Pode-se dizer que estamos muito longe das antigas abordagens normativas ou experimentais, e mesmo behavioristas, que con finavam o estudo do ensino às variáveis med idas em laboratório ou, ainda, a normas oriundas da pesquisa universitária desligada da p rática da atividade docente. Na Europa, e também no Brasil, todo o campo da Ergo-
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nornia encon tra-se atualmen te em pleno desenvolvimen to'. Esta d isciplina fornece agora, aos pesquisadores, dispositivos de análise bastante apurados para estudar o trabalho dos atores na própria escola2• Por outro lad o, a Sociologia do Trabalho, a Sociologia das Profissões e a Sociologia das Organizações já abandonaram há muito tempo o conforto de lid <~ r apenas com o pensamento teórico e passaram a desenvolver também pesquisas de campo. Podem ser igualmente associados a essas contribuições vários trabalhos na área da Psicologia, consagrados ao estudo do "pensamento dos p rofessores" (lencher's thinking}' e de suas crenças e saberes, bem com o no campo da Antropologia e da Etnologia da Educação' . Em s uma, exis te hoje uma sólida base de conhecimentos para se estudar o traball1o dos diferentes agentes d o m eio escolar, de um modo geral, e mais especificamente dos professores. O objetivo alm ejado aqui é usar os d iferentes recursos conceituais e empíricos proporcionados por esses numerosos trabaLhos para tentar repensar a natureza da pedagogia e, conseguentemente, do ensino no ambiente escolar. Pretende-se mostrar como a análise do trabalho dos p rofessores, considerado em seus d iversos compone1Ítes, tensões e d ilem as, permite compreender melhor a prática pedagógica na escola. Este capítulo está divid ido em qua tro partes. A primeira propõe uma definição da pedagogia baseada na análise d o trabalho docen te, procurando ao mesmo tempo identificar certas conseqüências conceituais importantes. A segunda
1. C f., por exemplo, os seguintes trabalhos: Amalberti et ai., 1991; Cazamian, 1987; Leplat, 1992; Theur:cau, 1992; Terssac, 1996. No Brasil: Vida!, 1990; Vidal, 1994; Wisner, 1993. 2. Cf., por exemplo, os trabalhos recen tes de Durand, 1996, e de Messing el ~I., 1994. 3. Cf. Calderhead, 1996; Tochon, 1993. 4. Uma síntese de trabalhos americanos, britânicos e franceses pode ser encon· Irada em Henriot, Agnes; Derouet, )ean-Louis; Sirota, Régine (1987). "Notes d e synthcsc. Approchcs ethnographique en sociologie de l'éducation: l'école et la communau té, l'établissemenl scolaire, la classe." Revuefrançnise dc pédagogie. O tex· lo abr~nge tri's n úmeros: janeiro, fevereiro e março de 1987.
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aborda o estudo do processo de h·abalho dos professores do ponto de vista das finalidades, do objeto e do pro~uto do trabalho. A terceira parte tenta defuur a natureza ~as tec:'ologias do ensino e o seu imp~cto sobre a pedagogta. Enftm, a quarta e última parte anahsa o pai_Jel d?s p_rofessores n? processo de trabalho escolar e certas m1plicaçoes de sua atividade profissio nal. Por meio desses d iferentes aspectos, propomos uma definição da pedagogia enquanto " tecnologia da interação hum ana", colocando em evidência, ao mesmo tempo, a questão das dimensões epistemológicas e éticas subjacentes ao trabalho com o ser humano. Pretendemos, assim, contribu ir para a elaboração de uma teoria do trabalho docente e da pedagogia. Propom os uma análise do tra?alh~ dos professores em h.mção de um modelo mterattvo msp1rado nas teorias da ação (HABERMAS, 1987; GIDDENS, 1987; RlCOEUR, 1986), nas organizações do trabalho interativo (DEEBEN, 1970; HASENFELD, 1986; MINTZBERG, 1986) e na ergonomia do trabalho docente (DUR.AND, 1996).
1. A pedagogia do ponto de vista do trabalho dos professores Na maioria dos países ocidentais, os sistemas escola ~es veem-se hoje diant~ de exigências, expectativ~s e des~~LOS sem precedentes. E no pessoal escolar, e mats espeetfKamente nos professores, que essa situação crítica repe~·cute com mais força . As pessoas se interrogam cada vez mats sobre 0 valor do ensino e seus resultados. Enquanto as reformas anteriores enfati zavam mui to m ais as questões desis tema o u de organização curricular, cons tata-se, atualmente, uma ên fase maior na profissão docente, e também na formação dos professores e na organização do trabalho cotidiano. Exige-se, cada vez m ais, que os profe_ssores se torne~n profissionais da pedagogia, capazes de bdar com os rnum er os
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desafios suscitados pel<:t escolarização de m assa em todos os níveis do sistema de ensino. O nosso objetivo, portan to, é mosh·ar com o a análise do trabalho dos professores permite esclarecer, de m odo fecundo e pertinente, a questão da pedagogia. Na verdade, noções tão vastas quanto as de Pedagogia, Didática, Aprendizagem, etc., não têm nenh uma utilidade se não fizermos o esforço de situá-las, isto é, de relacioná-las com as situações concretas do trabalho docente. Noutras palav ras, aq uilo que chamam os de pedagogia, de técnicas e de teorias pedagógicas, pouco impo rta a sua natureza, deve estar arrimado no processo concreto de trabalho dos professores, para que possa ter alguma u tilidade. O perigo q ue ameaça a pesquisa pedagógica e, de ma neira mais ampla, toda a pesquisa na área da edu cação, é o da abstração: essas pesquisas se baseiam com demasiada freq uência em abstrações, sem levar em consideração coisas tão simples, mas tão fundam entais, q uanto o tempo de trabalho, o número de alunos, a matéria a ser dada e su a natureza, os recursos dispotúveis, os condicionantes presentes, as relações com os pares e com os professores especialis tas, os saberes dos agentes, o controle da administração escolar, etc. No fundo, o que a pesqu isa esquece o u negligencia com frequência é que a escola, da mesma fo rma q ue a indústria, os bancos, o sistema hospitalar ou um serviço público qualquer, repousa, em última an álise, sobre o trabalho realizado por diversas categorias de agentes. Para que essa organização exista e perd ure, é preciso que esses agentes, apoiados em diversos saberes profissionais e em determinados recursos materiais e simbólicos, realizem tarefas precisas em função de condicionantes e de objetivos particulares. É, portanto, imperativo que o estudo da pedagogia seja sempre situado no contexto mais amplo da análise do trabalho dos professores. Omitir esse imperativo seria como falar de m edicina, hoje, abstraindo o sistema de saúde, a indús tria farm acêutica, as organizações de pesquisa subvencionada e as corporações médicas. 115
Por outro lado, a maioria dos discursos que hoje tratam do ensino c são veiculados pela classe política, p ela mídia e pelos formadores de opinião- e frequentemente por vários professores universitários - questiona se os professores trabalham bastante, se trabalham corretamente ou se dão um bom acompanham ento aos seus alunos. Constata-se, portanto, que a maioria das pessoas que se in teressam pelo ensino fala sobretudo, e até exclusivam ente, daquilo que os professores deveriam ou não deveriam fazer, ao invés de se interessar pelo que fazem realmente. Todos esses discursos mostram que o ensino ainda é, no fundo, um "ofício m ora l", que ser ve sempre de lente de aumento para as angústias e inquietações da opinião pública. Enh·etanto, se quisermos compreender a natureza do trabalho dos professores, é necessário ultrapassar esses pontos de vista normati vos. Com efeito, como qualquer outra ocupação, o magistério merece ser descrito e interpretado em função das condições, condicionantes e recursos que determinam e circunscrevem a ação cotidiana dos profissionais. Ocorre o mesmo com a pedagogia: é importante situar melhor essa categoria em relação às situações de trabaU10 vividas pelos professores. Por outro lado, é evidente que a "pedagogia" não é uma categoria inocente, uma noção neutra, uma prática estritamente utili tária: pelo contrário, ela é portadora de questões sociais importantes e ilustra, ao mesmo tempo, as tensões c os problemas de nossa época que se encontram vinculados à escolarização de massa e à profissionalização do magistério. Nesse sentido, não se trata de uma noção que pode ser definida científica ou logicam ente. Trata-se, ao contrário, de uma noção socia l e culturalmente construída, noção essa na qual entram semp re ideologias, crenças, valores e interesses. É necessário, portanto, situar o lugar a partir do qual se fala da pedagogia e tentar defini-la p elo m enos de maneira sucinta. A definição que propomos provém de uma reflexão sobre o nosso próprio ma terial de pesquisa referente ao 116
trabalho dos professores5. Ela p ode ser enunciada nos seguintes termos:
A pedagogia é o conjunto de meios empregados pelo professor para atingir seus objetivos no âmbito das interações educativas com os alunos. Noutras palavras, do ponto de vista da análise do trabalho, a pedagogia é a "tecnologia" utilizada pelos professores em relação ao seu objeto de trabalho (os alunos), no processo de trabalho cotidinno, para obter um resultado (a socialiwção e a instrução). Esta definição tem o m érito de ser simples, relativamente clara e bastante geral. Ela se aplica à situação instrucional no ambiente escolar, ou seja, a uma .forma particular de trabalho humano existente em nossas sociedades contemporâneas. Ela nos diz o seguinte: aqui lo que se costuma chamar de "pedagogia", na perspectiva da análise do trabalho docente, é a tecnologia utilizada pelos professores. Mas, qual é a importância de associar assim a p edagogia a uma tecnologia do trabalho? Lem bremos, em primeiro lugar, que o trabalho humano, qualquer que seja ele, corresponde a uma atividade instrumental, is to é, a uma atividade que se exerce sobre um objeto ou situação no intuito de transformá-los tendo em vista um resultado qualqí.ter. Além disso, um processo de trabalho, qualquer que seja ele também, s upõe a presença de uma tecnologia através da qual o objeto ou a situação são abordados, tratados e mod ificados. Noutras palavras, não existe trabalho sem técnica, não existe objeto do trabalho sem relação técnica do trabalhador com esse objeto. De fato, toda atividade humana comporta uma certa dimensão técnica (LAUGHLIN, 1989). É somente nas sociedades modernas que essa dimensão foi-se tomando progressivamente autônoma (HABERMAS, 1976; HOTTOIS, 1984). A " tecnicidade" é, portanto, inerente ao trabalho.
5. O que segue é uma tentati va d e teorização baseada em 150 entrevis tas com professoras e professores d e profiss.io, bem como em observações em sala de aula e na análise do trabalho d e p rofessores por meio d e vídeo. Um a síntese desse trabalho pode ser encon trada em : Tardif e Lessard (2000). u trnvail enseignant au q11otidien. Contributiou à l'étude du traooil daus lcs méticrs et professions d'interactious h11maiues. Europa: DeBoeck.
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Acontece o mesm o com a pedagogia: ensinar é utilizar, forçosamente, um a certa tecnologia, no sentido Jato do term o. Noutras palavras, a pedagogia corresponde, na nossa opinião, à dimensão ins trumental do ensino: ela é essa prática concreta, essa prática que está sempre situada num ambiente de trabalho, que consiste em coordenar d iferen tes meios para produzir resultad os educativos, isto é, socializa r e instruir os altmos em interação com eles, no interior de um d eterminado con texto, tendo em vista atingir determinados objetivos, finalidades, em suma, determinados resultados. Tod avia, como indica também essa d efin ição, o campo próprio da ped agogia são as interações concretas entre os professores e os alunos. O ensin o é uma atividade hu mana, um trabalho interativo, ou seja, um trabalho baseado em interações en tre pessoas. Concretamente, ensinar é desencadear
um programn de interações corn um grupo de alunos, ajiiiL de atingir determinados objetivos educativos relativos à aprendizagem de conhecimentos e à socinlização. Consequentemente, a pedagogia, enquanto teoria do ensino e da aprendizagem, nunca pode colocar de lado as condições e as limitações inerentes à in.teração humana, no tad amente as condições e as limitações normativas, afetivas, simbólicas e também, é claro, aquelas ligadas às relações d e poder. Em suma, se o ensino é mesmo uma ativ idade instrumental, tra ta-se de wna atividade q ue se manifesta concretamen te no âmbito de interações humanas e traz consigo, inevitavelmen te, a marca das relações htunanas que a constituem. Nesse caso, pode-se dizer que o professor é um "trabalhador interativo" (CHERRADI, 1990; MAHE U, 1996).
O caráter incon tornável da pedagogia Em primeiro lugar, essa definição tem o mérito de colocar em evidência o caráter incontornável da pedagogia. Quer queira q uer não, todo professor, ao escolher ou p rivilegiar determinados procedimen tos para atingir seus objetivos em relação aos alunos, assume uma pedagogia, ou seja, uma teoria d e ensino-aprendizagem. Assim como não existe t rabalho sem técnica, também não existe processo de ensino-aprendi zagem sem pedagogia, embora se manifeste com frequência uma pedagogia sem reflexão pedagógica. Essa simp les constatação permite invalidar a crença de cer tos pro fessores (principalmente nn u niversidade!) gu e p ensam não estarem fazendo uso da pedagogia simplesmente porqu e retom am rotinas repetidas há séculos. Uma pedagogia nntiga e tão usad a gue parece natural n ão deixa de ser u ma pedagogia no sen tido ins trumental do termo.
Pedagogia e técnicas materiais
Ao entrar em sala de aula, o professor penetra em um ambiente d e trabalho constituído d e interações humanas. As interações com os alunos não representam , p ortnnto, um aspecto secu11dário ou periférico do trabalho d os pro fessores: elas constituem o núcleo e, por essa razão, determinam, ao nosso ver, a própria natureza d os procedimentos e, p ortanto, da pedagogia. Antes de ir mais adiante, porém, convém especificar um certo n úmero d e consequências importantes decorrentes d a definição ncima proposta.
Essa definição também mostra que a pedagogia não se confu nde, de forma alguma, com a "maquinaria" (o "hardware"), isto é, com as técnicas mnteriais (vídeos, filmes, computadores, etc.). Tnmbém não se confw1de com as técnicas específicas com as q uais é tão frequentemente identificada: a aula expositiva, o estudo d irigido, procedimentos de ensino-a prendizagem socioind ividualizantes, proced imentos d e ensino-aprendizagem socializantes, etc. Esses meios são uma parte ou elementos do ensino, e não o todo. De fato, como veremos adiante, a pedagogia, vista sob a ótica do trabalho docente, através d a dim ensão instrumental que é o ensino, é muito mais uma tecnologia imaterial ou intangível, pois diz r esp eito sobretudo a coisas con1.o a transp osição didática, a gestão da matéria- conhecimen to da matéria e conhecimento ped agógico da m atéria (SH ULMAN, 1987) - , a ges tão da classe, a motivação dos alunos, a relação professor/ alw1o, etc.
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Pedagogia e disciplina ministrada A d efinição aqui propos ta p rocura evitar também as distinções, e até mesmo as oposições tradicionais, entre a pedagogia e a disciplina ministrada, entre a gestão da classe e o conteúd o a ser minis trado. Na medida em que um d os objetivos do professor é criar con dições que possibilitem a aprend izagem de conh ecimentos pelos alunos, num contexto de in teração com eles, a ges tão da matéria torna-se um verdadeiro desafio pedagógico. A tarefa do professor con-
siste, grosso modo, em transformar a matéria que ensina para que os alunos possam compreendê-la e assim.ilá-la . Ora, essa tarefa é essencialmente pedagógica, considerando que ela subm ete o conhecim ento à a tiv idade de a prendizagem no intu.ito de produzir um L;es ultado no outro ou, para ser mais exato, num "outro coletivo", conforme a expressão clássica de G.H. Mead (1982). Os inúmeros estudos dedicados a essa questão (TOCH ON, 1993) mostram que um professor, em plena ação com seus alun os na sala de aula, elabora estratégias e esquemas cognitivos, simbólicos, que o ajudam a transformar a matéria e m função d e condicionantes como o tempo, o progra ma, o projeto pedagógico da escola, a velocidade de assimilação d os alunos, os limites impostos p ela avaliação, a motivação d os alun os, etc. É o qu e se p ode chamar, segundo Shulman (1987), de conhecimento pedagógico do conteúdo (pedagogical content knowledge). É verdade que o conhecimento pedagógico do conteúd o a ser ensinado n ão pode ser separado do conhecimento d esse conte údo . Entretanto, conhecer bem a matéria que se deve ensinar é apenas uma condição necessária, e n ão uma condição suficiente, d o trabalho pedagógico. Noutras p alavras, o conteúdo e nsinado em sala de a ula nunca é transmitid o simplesmente tal e qual: ele é "inte ratuado", transformado, ou seja, encenado para um público, adaptado, selecionado em função da compreensão d o g rupo de alunos e dos ind ivíd uos que o compõem.
Pedagogia , ensino e arte Essa definição da pedagogia permite, além d o mais, qu e se p are de considerar o ensino como uma atividade to talmente sing ular, in efável, pertencente ao campo da arte n o sentido rom:'\ntico do termo, o u seja, d epend en te d o talento ou d e um dom p essoal. Ao contrário, ela dá uma nova persp ectiva a essa a tividade, integrando-a à esfera das outras fo rmas de trabalho humano e, d e forma mais abrangente, à esfera do trabalho em geral, das ativ idades q ue objetivam a produção d e um resultad o qualquer. Ao identifi car a pedagogia, e o ensino, consequentemente, à tecnologia d o trabalh o docente, essa definição tem o mérito de tornar possível a constituição de um repertório de conhecimentos p edagógicos próprios a essa profissão. Se existe r ealmente uma "mi e d e ensinar ", essa arte se faz presente apen as q uando as técnicas de base do trabalho são assimiladas e dominadas. Um professor perito é semelhante a um m úsico ou a um a tor que improvisa: ele cria coisas n ovas a p artir d e r otinas e de maneiras de proceder já esta bel ecidas (BROPHY 1986; PERRENOUD, 1983; SHA VELSON, 1983; TOCHON, 1993). Os verdadeiros improvisadores, contudo, são pessoas que dominam necessariam ente as bases de sua arte an tes de improvisar e para improvisar. Em suma, não existe arte sem técnicas, e a arte atua a partir do domínio das técnicas próprias a um ofício. É assim em tod as as ocupações e não h á razão para que o ensino constitua um caso à parte. Infelizmente, ainda há muitas p essoas - professores do primário e d o secundário, e m esmo professores universitários- que acreditam que b asta entrar n uma sala de aula e abrir a bocs par a sab er ensinar, como se h ouvesse uma espécie de causalidade mágica entre ensinar e fazer sprender.
Pedagogia e racionalização d o trabalho Finalmente, essa definição sugere que pelo menos uma parte do trab alho dos professores é susceptível de ser racionalizada através da introdução d e medidas de eficiên cia na organização do trab alho, graças, principalme nte, ao desen-
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volvimento das pesquisas. Enfim, como todo trabalho hum
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A definição de "pedagogia" que estamos propondo pode levar a crer que somos p artidários de tmla concepção puramente técnica do ensino. Na verdade, o que gostaríamos de definir aqui é exatamente o contrário: se a pedagogia é a tecnologia do trabalho docente, a natureza e a função dessa tecnologia são inseparáveis das outras dimensões da atividade profissional dos professores. Noutras palavras, se queremos compreender a pedagogia no amb ien te escolar, precisamos a1·ticu.lá-la com os outros componentes do processo de trabalho docente. A !.i ás, o trabalho pode ser analisado sob diversos aspectos (DE COSTER, 1994t Alguém p ode se interessar, por
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H 6. De Costcr idcntific~ as seguintes dimensões: a organização, a situ~ç5o atual, a experiência, o tempo c o espaço. Contudo, as duas últimas não nos p~rcccm cstar no rncs mo •úvcl que as três primeiras, pois a atividade, a situação a tu:~ I c a cxpc· riência também pennitem n rnanifestação de fenômenos relati vos ao tcn1pu (ccurei~ ras, d uração do trabalho, permanência ou flutuação ela situação atual, ele.) e ao espaço (lugares de trabalho, movimentos ou mudanças na carreira, nas funções, etc.). Nesse sentido, tempo e espaço parecem ser muito mais categorias lransver· S."tis. Seguindo a perspectiva de Giddens (1987), pode-se dizer q ue o tempo e o espaço remetem ao problema de manter e renovar as atividades humanas de acordo com uma determinada duração de tempo e em espaços diferentes.
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exemplo, pela organização do trabalho, pela atual condição dos professores, por sua experiência de trabalho c, enji111, pela atividade que desempenham. Considerando os limites deste capítulo, somen te essa última dimensão será estudada aqui. Além disso, ela pode ser analisada a partir de dois pontos de vista complementares: pode-se considerar a estruturação dessa atividade e ver, por exem plo, com o ela é dividida, controlada e planejada; é possível também se interessar pelo próprio processo de trabalho, COJII seus diferentes componentes. É apenas esse últim o ponto de vista que p retendemos adotar nas páginas que seguem.
2. A pedagogja c o processo de tl'abalho docente Como todo trabalho humru1o, o ensino é um processo de trabalho constituído de diferentes componentes q ue podem ser isolados abstratamente para fins de análise. Esses componentes são o obje tivo do trabalho, o objeto de trabalho, as técnicas e os saberes dos trabalhadores, o produto do traballlo e, finalmente, os próprios trabalhadores e seu papel no processo de trabaU1o. A análise de tais componentes objetiva evidenciar seus impactos sobre as práticas pedagógicas. Nesse sentido, uma boa maneira de com preender a natureza do trabalho dos professores é compará-lo com o traballlo industrial. Esta compa ração perrn.ite colocar em evidência, de for ma bastan te clara, as características do ensino. Ela ilus tra também, de maneira clara e precisa, as diferenças essenciais cnh·e as tecnologias q ue encontramos no trabalho com os objetos materiais e as tecnologias da interação humana, como a pedagogia. Vamos tratar inicialmen te dos fins, do objeto de trabalho (incluindo as relações do trabalh ador com o objeto de seu trabalho) c de seus resultados. Estudaremos, na parte seguinte, as tecnologias e os saberes do ensino. Na última parte, teceremos considerações sobre os trabalhadores. O quadro 1 apresen ta uma comparação entre o trabalho industrial e o h·abalho docen te no que diz respeito aos fins, 123
ao objeto e ao produto do trabalho. Analisaremos cada um desses pontos, detendo-nos um pouco m ais no aspecto referente ao objeto humano do trabalho docente, pois ele representa o centro do nosso questionamento teórico.
Natureza e componentes típicos da relação do trabalhador com o objeto
Quadro 1 - Comparação entre o trabalho industrial e o trabalho docente no que diz respeito aos objetivos, no objeto c ao produto do trabalho
Objetivos do t rabalho
Natureza do objeto do trabalho
Trabalho na indústria com objetos materiais
Trabalho na escola com seres humanos
Precisos
Amb íguos
Operatórios e deli mitados
Gerais e ambiciosos
Coerentes
Heterogêneos
A curto prazo
A longo prazo
Material
Humano
Seriado
Individual e social
Homogêneo
Heterogêneo
Passivo
Ativo e capaz de oferecer resi stência
Determinado
Comporta uma parcela de indeterminação e de autodeterminação (liberdade)
Simples (pode ser analisado e reduzido aos seus componentes funcionais)
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Complexo (não pode ser analisado nem reduzido aos seus componentes funcionais)
Produto do trabalho
Relação técnica com o objeto: manipulação, controle produção.
Relação multidimensional com o objeto: profissional, pessoa l, intersubjetiva, jurídica, emocional, normativa, etc.
O trabalhador controla di retamente o objeto
O trabalhador precisa da colaboração do objeto
O trabalhador controla totalmente o objeto
O trabalhador nu nca pode controlar totalmente o objet o
O produto do trabalho é material e pode, assim, ser observado. medido, avaliado
O produto do trabalho é intangível e imaterial; pode dificilmente ser observado, medido
O consumo do prod LitO do trabalho é totalmente separável da atividade do trabalhador
O consumo do produto do traba lho pode dificilmente ser sepa rado da atividad e do traba lhador e do espaço de trabalho
Independente do trabalhador
Dependente do trabalhador
Os fins do trabalho dos professores Ensinar é perseguir fins, finalidades. Em linhas gerais, pode-se dizer que ensinar é empregar determinados meios para atingir certas finalidades. Mas, quais são exatamente os objetivos do ensino? No caso do trabalhad or industrial o operário da indústria automobilística, p or exemplo - os objetivos do trabalho que ele realiza são, de maneira geral, precisos, operatórios, circunscritos e de curto prazo: ele executa uma determinada ação e pode observar o seu resultado de forma bastante rápida. Noutras palavras, o trabalhador industrial age em função de objetivos precisos e coerentes que ele sabe que pode atingir de forma concreta através de
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meios operatórios. Além disso, os objetivos de seu trabalho estão integrados num conjunto de o bjetivos relativamente coerente e hierarquizado que esh·utura a tarefa coletiva na fábrica. Comparativamente, o que se pode dizer dos objetivos perseguidos pelos professores?
sões quanto à m<~neira de compreender e realizar seus objetivos de trabalho.
Os obje tivos dos professores d efin e m uma tarefa coletiva e temp oral de efeitos incertos
Os objetivos do ensino são numerosos e variados. O número deles cresce, também, de forma desmesurada, se levarmos em con ta os objetivos dos programas, os objetivos das disciplinas e os objetivos dos outros serviços escolares, sem falar dos objetivos dos próprios professores. Esse número c essa variedade ocasionam, necessariantente, problemas de heterogeneidade e de compatibilidade enh·e os objetivos. Desse modo, eles sobrecarregam consideravelmente a atividade profissional, exigindo que os professores se concentrem em vários objetivos ao mesmo tempo, objetivos esses que são muito pouco hierarquizados.
Em primeiro lugar, o que chama a atenção, nos objetivos do ensino, é que eles exigem a ação coletiva de uma multidão de indivíduos (os professores), mais o u menos com·denados e ntre si, que agem sobre uma grande massa de pessoas (os al1.m os) durante vários anos (em torno de doze, ou sejn, 15.000 horas nos países industrializndos), a fim de obter resultados incertos e remotos que nenh um deles pode atingir sozinh o e que a maioria deles não verá se realizarem comple tamente. Nesse sentido, os professores dificilmente podem avaliar seu próprio progresso em relação ao alcance desses objetivos, os quais, como aponta Durand (1996), têm "ap enas uma função de focalização geral na tarefa real". Os objc livos d o ensino escolar são gerais e não operatórios Outra característica dos objetivos do ensino escolar é seu caráter geral, e não operatório. Nesse sentido, eles exigem dos professores uma adaptação constante às circunstâncias particulares das situações de trabalho, especialm ente em. sala de aula com os alunos, como também durante a preparação das aulas e das avaliações. No caso dos programas escolares, mesm o os obje tivos terminais - expressos com frequência em termos de competências a serem adquiridas- comportam inúmeras imprecisões, e m uitos deles são não operacionalizáveis. O resultado disso é que os professores trabalham a partir de orientações de trabalho frequentemente imprecisas, que exigem não somente improvisação da parte deles, mas também escolh as e deci126
Os ob jetivos escolares são n umerosos e variados, heterogên eos e pouco coeren tes
Consequências dos objetivos para a pedagogia Q uais são as consequências de tais objetivos para a pedagogia? São inúmeras. Aqui estão três delas: 1) Esses objetivos levam à manifestação de uma pedagogia de efeitos imprecisos e remotos, solicitando, desse modo, muita iniciativa por parte dos professores, que precisam interpretá-los e adaptá-los constantemente aos contextos mu~á veis da ação pedagógica. Diferentemente do trabalhador mdustrial, o professor precisa, o tempo inteiro, reajustar seus objetivos em função da tarefa que está realizando e de todas as suas limitações temporais, sociais e materiais. Nesse sentido, seus objetivos de trabalho dependem i.rttimamente de suas ações, decisões e escolhas. Levando em conta os objetivos escolares, pode-se dizer que a pedagogia é l.Una tecnologia constan tem ente h·ansformada pelo trabalhador, que a adapta às exigências variáveis da tarefa rea lizada. 2) Ensinar é agir na ausência de indicações claras e precisas sobre os próprios objetivos do ensino, o que requer ne127
cessariamente uma grande autonomia dos professores. Quando ensinmnos, nunca n os contentamos em ap licar objetivos; ao contrário, interpretamo-los, ndaptamo-los e transformamo-los de acordo com as exigências da situação de trabalho. Nesse sentido, do pon to de vista do trabalho docente, a pedagogia é uma tecnologia que exige dos peda gogos e educadores em geral recursos interpretativos rela tivos iis próprias finalidades da ação. Os objetivos do professor não ul trapassam. a ação pedagógica, mas se encontram to talmente integrados nela, obedecendo, por conseguinte, às s uas condições. Desse m odo, a p edagogia, enquan to tecnologin interativa que se concretiza através da reflexão e da nção no processo ensino-aprendizagem, corresponde él uma a tividade construtiva e interpretativa ao mesmo tempo: os professor es precisam interpretar os objetivos, dél r-lhes sentido em fw1ção das situações concretas de trabalho c, élO mesmo tempo, conceber e cons h·uir as situações que possibilitem a sua realização. 3) Finalmente, os objetivos podem ser percebidos como elementos que favorecem a autonomia dos professores, mas tõmbém com o limitações que ampliam sua tarefa profissional (DURAND, 1996). Objetivos imprecisos e ambiciosos dfio m uita liberdade de ação, mas, ao m esmo tempo, aumentam o empenho do professor, que é obrigado a especificá-los, c dão-lhe a impressão de q ue está lidando com objetivos completamente ir.realistas que nunca conseguirá atingir.
Individualidade e heterogeneidade d o objeto de trabalho A primeira caracteris tica do objeto do trabalho d ocente é q ue se trata de indivíduos. Embora ens inem a grupos, os professores não podem deixar de levar em conta as diferenças individ uais, pois sfio os indivíduos que aprendem, e não os grupos. Esse componente individua l significa que as situações.de trabalho n~o levnm à solução de problemas germs, umversats, globats, mas se referem a situações m uitas vezes com plexas, marcadas pela ins tabilidade, pela un.i ci? ade, pela particularidade dos alunos, que são obs táculos merentes a toda generalizélção, às receitas e às técnicéls de finidas de forma definitiva. Por outro lado, contrariam ente aos objetos ser iais do indus tri~ l, que são homogêneos, os alunos são heterogêneos.
Eles nao possuem élS mesmas capacidades pessoais nem as mes mas possibilidades sociais. As suas possibilidades de élção variam, a capacidade de aprenderem também, assim como as possibilidades de se envolverem numél tarefa, entre outras coisas: Ao se massifjca r, o ensino passou a se deparar cada vez m
3. O objeto humano do trabalho docente
A sociabilidade elo objeto
Os professores não buscam som ente realizar objetivos; eles atuam, também, sobre um objeto. O objeto do trabalho dos professores são seres humanos individualizados e socializados ao mesmo tempo. As relações que eles estabelecem com seu objeto de trabalho são, portanto, relações humanas, relações individuais e sociais ao mesmo tempo. Que características internas o objeto humano inh·od uz no processo de trabalho docente e quais os seus impactos sobre a pedagogia?
Um segundo atributo do objeto de trabalho dos profess?res é que.os alunos são também seres sociais cujas caracten shcas soc10culturais despertam atitudes e julgamentos de valor nos professores. Por exemplo, o fato de ser um menino ou u.m a me~a, branco ou negro, rico ou pobre, etc., pode o~as101:a r atttudes, reações, intervenções, a tuações p edagógtcas d tferentes por parte dos professores. Por outro lado, enquanto ser social, o aluno também sofre inúmeras influên-
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cias sobre as quais o professor não exerce nenhum conh·ole. De fato, logo que sai de s ua sala de aula, o aluno se furta à ação do professor. Nesse sentido, o objeto do trabalho docente escapa constantemente ao controle do trabalhador, ou seja, do professor.
A afetividade do objeto e da relação com o objeto Uma terceira caracterís tica do objeto de trabalho decorre de sua dimensão nfetiva. Um componente emocional manifesta-se inevitavelmente, quando se tra ta de seres humanos. Quando se ensina, certos alunos parecem simpáticos, outros não. Com certos grupos, tudo caminhn perfeitamente bem; com ouh·os, tudo fica bloqueado. Uma boa parte do trabalho docente é de cunho afetivo, emocional. Baseia-se em em.oções, em a fetos, na cap acidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de perceber e de sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios bloqueios afeti vos.
A tividade, liberdade e controle Enquanto o objeto material é, por definição, passivo, os alw1os são ativos e cap azes de oferecer resistência às iniciativas do professor. Eis por que uma das atividades dos professores, talvez a principal, consis te em fazer com que as ações dos alunos se harmon izem com as suas, ao invés de se oporem a elas. Doyle (1986) e Desgagné (1994) m ostraram. que os chamados problemas de disciplina em sala de aula se enquadram nesse contexto: Nessa perspectiva, um problema de disciplina [. ..] é todo comportamento de um ou de vários alunos
são fo rçados a ir à escola que essa dimensão de atividade ou de liberdade dos alunos se torna importante: a escola não é escolhida livremente, ela é im posta, e isso, inevitavelmente, suscita res is tências impo rtantes em certos alunos. Os protesso res devem desenvolver nos alw1os essa "sujeição voluntária " da qual já falava Etienne de La Boétie (1976), ou seja, devem inculcar-lhes a convicção de ir à escola por vontade própria e de lá estar "p ara o seu próprio bem": a obrigação .relativa à escob deve transformar-se em interesse pela escola; pouco importa que esse interesse seja obtido e mantido por m eios extrínsecos (notas) ou intrínsecos (motivação e produção de sentido).
Os componentes do objelo Enfim, o objeto m ateriél.l pode ser analisado e redu zido aos seus componentes funcionais. Um automóvel não passa de uma reunião de peças; um computador, de um conjunto de peças e de circuitos regid os por uma lógica binária. Não ocorre o ~esmo com o ser humano, pois se trata de um objeto que d tflcllmente pode ser reduzido aos seus componentes tuncionais. Pode-se falar, assim, de " um objeto com plexo", sem dúv ida o mais comp lexo do universo, pois é o único que possui W11a natureza física, biológica, individ ual, social e simbólica ao mesmo tempo. Con forme Shütz (1987), que retom a certas idéias de Husserl c Hcidegger, o que é pélrticulm às situações humanas é que elas têm sentido para aqueles que as vivem, ao p asso que os seres físicos e biológicos não dão um significado à s ua própria existência, mas se contentam em exis tir, os seres hmnanos existem sempre d uas vezes, por assim dizer: eles exis tem, m as também têm o sentimento o u o sentido de exis tirem (o famoso Dasein).
percebido pelo professor como parte de u111. programa de ação que entra em conflito com o progmma de ação i1úcíal cujo objetivo é "manter n ordem" e "garalltir a aprendizagem". Nesse sentido, a ordem na sala de aula o u na escola não COlTesponde a uma qualidade ontológica das situações. A ordem "não impregna" as situações, mas resulta de uma negociação / imposição das atividades dos professores ou dos outros responsáveis escolares diante das atividades dos alunos. E é porque eles
Quais são as consequências dessas diversas características do objeto do trabalho docente para a p edagogia? Embora sejam muitas, duas delas merecem destaque aqui:
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Con sequências das características do objeto de trabalho p ara a pedagogia
A pedagogia enqu anto tensões e dilemas Dado que os professores trabalham com seres humanos, a sua relação com o seu objeto de trabalho é fund amentalmente constituída de relações sociais. Em grande parte, o trabalho pedagógico dos professores cons,iste precisamente em aerir relações sociais com seus alunos. E por isso que a pedagogia é feita essencialmente de tensões e de dilemas, de nego7 ciações c de estratégias de interação . Por exemplo, o professor tem de trabalhar com grupos, mas também tem de se ded icar aos indivíduos; deve dar a s ua matéria, mas de acordo com os altmos, que vão assimilá-la de maneira muito diferente; deve agradar aos alunos, mas sem que isso se transforme em favoritismo; deve motivá-los, sem paparicá-los; deve avaliá-los, sem excluí-los, etc. Ensinar é, portanto, fazer escolhas constantemente em plena interação cornos alunos. Ora, essas escolhas dependem da experiência dos professores, de seus conhecimentos, convicções e crenças, de seu compromisso com o que fazem, de suas representações a respeito dos a lunos e, evidentemente, dos próprios alunos.
O problema do controle A segunda conseguência que merece ser destacada aqui é a ausência de um controle direto e total exercido peJos professores sobre o seu objeto de trabalho. Nada nem ninguém pode forçar wn aluno a aprender se ele mesmo não se empenhar no processo de aprendizagem. Esse fenômeno explica a opinião da maioria dos professores que julgam não poderem ser considerados responsáveis pelos resultados medíocres, ou mesmo pelo fracasso escolar, de determinados alunos, pois os alunos sofrem inL'n11eras influências que podem afetar seu
7. Cf., por rxcmplo : FETMAN-NEMSER, S. e FLODEN, R. (1986). "The cultures of teaching", p. 505-526. In: WITTROCK, C. (o rg.) Handbook oj rcscarc!J 011 /eaching. 3. cd. Nova York: M~cmillan; MESSING, K.; ESCALONA, E.; SETFERT, A.; DEMCH\JK, 1. (1995). Ln milwte de 120 s€t:cmdi'S: analyse d u travail d es enseignantes de n iveau prima ire. Québec: CEQ/CIN BIOSE, 73 p.; LAMPERT, M. (1985). " How Do teachers M~nage to Tcach?" Hnrvard [ducationnl Revierc, 55(2), p. 178-194; LORTIE, O.C. (1975). Sclrooltencher; n sociologicnl study. Ch icago: U niversity of Chicago Press.
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rendimento escolar e que os professores não podem controlar. Nesse sentido, um dos principais problemas do ofício de professor é trabalhar com um objeto que, de uma maneira ou de ou tra, foge semp re ao controle do trabalhador. 4. Os resultados do trabalho ou o produto do ensino
Tratemos brevemente dos res ultados ou do produto do trabalho dos professores. Em certas ocupações ou profissões de relações humanas, é sempre possível formular um juízo claro a respeito do objeto de trabalho e de seu resultado: o advogado ganhou ou perdeu uma causa, o músico tocou o u não uma determinada peça, o paciente está curado ou ainda está doente, etc. Em outras atividades humanas, porém, e é o caso do ensino, é difícil, senão impossível, especificar claramente se o produto do trabalho foi realizado. Por exemplo, a socialização dos alunos se estende por m uitos anos, e seu res ultado pode se manifestar bem depois do período de escolaridade. No trabalho ind ustrial; o trabalhad or pode observar diretam ente o seu produto, pois el e é física e materialmente independente do trabalhador. Além disso, um automóvel, um computador, uma mercadoria qualquer podem ser observados, manipulados, avaliados e m edidos na ausência do trabalhador e fo ra do luga r em que foram produzidos. No caso do professor, as coisas são muito m.ais complexas. Em primeir o lugar, o consumo (aprender) é produzido habitualmente ao mesmo tempo em que a produção (ensinar: fa zer aprender). Assim, torna-se difícil separar o trabalhador do resultado e observar este último separadamente do seu lugar de produção. Em seguida, o próprio produto do ensino é de uma grande in tangibilidade, pois diz respeito principalmente a ah·ibutos humanos e sociais. Ele é, portanto, dificilmente mensurável e avaliável. Por exemplo, como definir a socialização de maneira clara e precisa? Como sa-
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ber se os alWlOS vão reter o q ue lhes é ensinado? O que é uma aprendizagem significativa? Como avaliar o espírito crítico? O resultado disso é que os professores agem sem saber ao cer to se os resul ta dos de seu trabalho foram realmente atingidos. De uma forma global, pode-se di zer que, contrariamente às produções ind ustriais, é m uito difícil avaliar os produtos do traball1o escolar, e é muito complicado formular um diagnóstico claro e preciso sobre o rendimento objetivo do trabalho docen te. Para confirmar isso, basta, por exemplo, ler os grand es relatórios nacionais sobre a educação produzidos tanto na América do Sul e na América do Norte quanto na Europa: percebe-se logo que a avaliação do deser11penho das instituições escolares e do seu pessoal, inclusive dos professores, é antes de tudo uma q uestão sociopolítica, e não uma questão doci mológica. Em suma, o resultado do trabalho dos professores nunca é perfeitamente claro: ele está sempre imbricado nW11 conflito de interpretações que revela um número incoerente de expectativas sociais dian te das produções da escola. Eis por q ue, cinquenta anos após a modernização dos sis temas de ensino, ainda se discute, em todo o m undo ocidental, se o nível de fo rmação dos alunos subiu ou desceu.
5. As técn icas e os saberes no trabalho docente No item anterior, estudamos os objetivos e o objeto do trabalho docente. Na esfera do trabalho humano, porém, um objeto é sempre considerado por int ermédio de uma tecnologia, no sentido lato, a qual se assenta sobre um repertório de saberes possuídos pelos h·abalhadores. São esses dois elementos do processo de trabalho q ue vamos estudar agora: as tecnologias e os saberes q ue fWldamentam o trabalho docente. Mais um a vez, va mos nos servir de uma comparação en tre o trabalho dos professores e o trabalho dos operários da indústria.
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Quadro 2 - Co111.pnração entre o trabalho industrial e o tmunllto docente no que se refere iis tecnologias Tecnologias do Tecnologias do trabalho no setor da trabalho na indústria, com escola, com sere s objetos materiais humanos Repertó rio d e conhecimentos
Baseadas nas ciências naturais e aplicadas
Baseadas nas ciências humanas e nas ciências da educação, bem como no senso comum
Natu reza dos co n hecimentos em questão
Saberes formalizados, proposicionais, validados, unificados
Saberes não formais, instáveis, prob lernátícos, plurais
Natureza do objeto téc n ico
Aplicam-se a causalidad es, a regularidades funcionais, a classes de ObJetos, a séries
Aplicam-se a relações socia is e a individualidades, assim corno a relações que apresentam irregularidades; são confrontadas com indivíduos, com particularidades
Exemplos de o bjetos específicos aos quais se aplicam as tecnolog ias
Metais, informações, fluídos, etc.
A ordem na sala de aula, a "motivação" dos alunos, a aprendizagem dos saberes escolares, a socialização, etc.
Natu reza das tecnologias
Apresentam-se como um dispositivo material que gera efeitos materiais
Tecnologias frequentemente invisíveis, simbólicas, linguísticas que geram crenças e práticas
Contro le do o bjet o
Possibilitam um alto Possibilitam um baixo grau de determinação grau de determinação do objeto do objeto
Exemplos de técnicas conc retas
Esfregar, cortar, Lisonjear, ameaçar, selecionar, reunir, etc. entusiasmar, fascinar, etc.
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O quadro 2 m ostra diferenças importantes entre as tecnologias da interação humana e as tecnologias industriais. Com efeito, dado que o seu " objeto" são seres humanos, as tecnologias da interação são marcadas por limitações de cunho epistemológico e ontológico:
No que se refere ao aspecto episte111ológico, elas possuem as características das ciências humanas e sociais que as produzem. De fato, essas ciências são não preditivas; não desenvolveram técnicas m ateria is eficazes do ponto de vista Glusal; são fo rmuladas numa linguagem natural "imprecisa"; são plunlis; estão continuamente em mutação, etc. Nesse sentido, quando aplicadas sem alteração em situações de traba lho, elas n ão oferecem nenhum controle sobre as situações concretas. Diferentemente dos trabalhadores cuja perícia é baseada nas ciências natura is e aplicadas (cujo objeto é de natureza m aterial ou ideal), os trabalhadores cuja perícia dep ende exclusivamente das ciências humanas e sociais não possuem tun saber específico que ofereça um controle sobre as tar efas de trabalho, segundo a concepção científica e insh·umental positivista. Ora, de acordo com as pesquisas de Tardif et al. (1991), os professores utiliza m, em suas atividades cotidianas, conhecimentos práticos p rovenientes do mtmdo vivido, dos saberes do senso comum, das competências sociais. Suas técnicas não se apoiam nas ciências ditas positivas, mas sobretudo nos saberes cotidianos, em conhecimentos com.uns, sociais, baseados na linguagem natural.
No que se refere no nspecto ontológico, as técnicas de trabalho são confrontadas com a questão da contingência, da complexidade, da singularidade e da axiologia, justamente por ser seu objeto um sujeito, um ser humano, situações humanas. Por exemplo, o simples fato de os alunos possuírem uma linguagem através da qual designam e exprimem s ua situação cotidiana em sala de aula coloca os professores diante de problemas totalmente desconhecidos pelos cientistas das ciências naturais e aplicadas, bem como pelos técnicos e pelos outros trabalhadores da m atéria. De fato, por lidar com seres fa136
!antes, o professor precisa desenvolver comportamentos que sejam significativos para eles, e não somente para si mesmo, ao passo q ue os cientistas e os técnicos h·abalham baseando-se no pressuposto de que seus objetos e artefatos não são dotados de sentido por si mesmos. Nessa perspectiva, o principal problema da atividade docente não é provocar mudanças causais mun mtmdo objetivo- por exemplo, no cérebro dos alunos - , mas obter o empenho dos atores considerando os seus motivos, isto é, os seus desejos e os significados que atribuem à sua própria atividade de aprendizagem. Nesse sentido, é a própria estrutura lógica dos juízos causais técnicos, que podemos descrever por meio de uma proposição condicional do tipo "se x, então y", que dificilmente pode ser transferida para o trabalho docente e, de forma mai_c; global, para as interações humanas. No que diz respeito às tecnologias dos professores (educativas), e até prova do contrário, os saberes oriundos das ciências da educação e das instituições de formação de professores não podem fornecer aos docentes respostas precisas sobre o "como fa zer" . Noutras palavras, a m aioria das vezes, os professores precisam tomar decisões e desenvolver es tratégias de ação em plena atividade, sem poderem se apoiar num "saber-fazer" técnico-científico que lhes permita controlar a situação com toda a certeza. É a_qui que entram em cena as verdadeiras tecnologias do ensmo. Elas correspondem às tecnologias da interação, graças às quais um professor pode atingir seus objetivos nas atividades com os alunos. Podem ser identificadas três grandes tecnologias da interação: a coerção, a autoridade e a persuasão. Elas permitem que o professor imponha o seu prog rama de ação em detrimento daquelas ações desencadeadas pelos alunos q ue iriam em sentido contrário a esse programa. Descrevamos sucinta mente tais tecnologias.
A coerção A coerção consiste nos comportamentos punitivos reais e simbólicos desenvolvidos pelos professores em interação 137
com os alw1os na sala de aula. Esses comportamentos são estabelecidos ao mesmo tempo p ela ins tituição escolar, que lhes atribui limites variáveis de acordo com a época e o contexto, e pelos p rofessores, que os improvisam em plena ação, como sinais pragm áticos reguladores d a ação realizada no mom ento: olh a r ameaçador, trejeitos, insultos, ironia, apontar com o d edo, etc. Ela consiste, também, nos procedimentos adotados pelas instituições escolares para controlar as clientelas: exclusão, estigmatização, isolamento, seleção, transferência, etc. Se existe educação sem coerção fís ica, sem co ns tra ngimento m a terial direto sobre o aluno, não existe, no entanto, ed ucação sem cons trangimento, sem coerção simbólica (BOURDlEU & PASSEl~ON, 1970). De uma maneira ou d e outra, a missão d a escola e a tarefa dos p rofessores são manter os alunos fisicamente fechados na escola e na sala de aula, durante muitos anos, para submetê-los a program as de ação que eles não escolheram, a fim d e avaliá-los em função de critérios abstratos e frequentemente d o lorosos, simbolicamente falando, para as pessoas às quais eles são aplicados. H istoricamente, a educação sem coerção física é um fenômeno muito recente, inclusive no meio escolar. Todavia, o desaparecimento dessa coerção visível não significa que a coerção tenha d esaparecido das relações entre a escola e os alunos, entre os professores e os alw1os. Em vá rios testemwilios d e professores, recolhidos em nossas recentes pesquisas, percebe-se q ue certas escolas são ambientes bastante turbulentos, e até violentos, e que isso exige dos professores uma g rande disciplina e um controle severo dos grupos. Porém, além desses fe nô menos, pod em ser identificadas, no discurso dos professores, diversas formas de coerção simbólica, tais como o desprezo, a reticência ou a recusa de considerar determinados alunos como sendo capazes d e aprender, a vontade de excluir outr os alunos considerados como nocivos, a resignação ou a negligência, voluntá ria ou não, diante d e determinados alunos "lentos", o racismo, etc. Além d o mais, a análise das interações concretas entre os professores e os alunos revela também que o estabelecimen1 38
to da ord em na sala de aula e o con trole d o grupo ocorrem sempre com uma certa pé't rcela d e coerção simbólica, principalmente de cunho linguístico: sarcasmo, im nia severa, etc.
A autoridade A partir de Wcbcr (1971), tornou-se comum distinguir cliferentes tipos d e poder: o poder do puro constrangimento e o poder legítimo, o qua l se apoia em diferen tes tipos de autoridade: a) a au to ri dade tradicional (baseada na traclição, nas convenções, etc.); b) a autorid ad e carismá tica (baseada nas qualidad es do líder e d o chefe); e c) a autoridade racional-legal (baseada em normas impessoais, u m sistema de direito, uma d eontologia, incorporados na organização burocrática). Esses três tipos d e autoridade manifestam-se tambétT\ no ensino. A autoridade tradicional está ligada, ao mesmo tempo, à condição d e é't dulto do p rofessor em relação às crianças e aos jovens c à s ua condição d e "mestre" conferida pela escola. O ca risma se refere às capacidades subjetivas d o p rofessor de conseguir a adesão dos alunos, isto é, à sua "personalidade" profissional como m eio usad o na ação. A autoridade racional-legal corresponde aos regulamentos formais da organização escolar e da sala d e aula. No tocante ao professor, a autoridade reside no " respeito" que ele é capaz d e impor aos seus alunos, sem coerção. Ela está ligada ao seu papel e à missão que a escola lhe cm'lfere, bem como à sua p ersonalidade, ao seu carisma pessoal. Esse aspecto é muito importante para que se possa compreender a transformação dos atributos subjetivos em condições objetivas da profissão c em tecnologia da interação. De fa to, os professores insis tem freq uentemente na importância de sua "personalidade" como jus tificativa para a sua competência e como fonte de seu êxito com os alunos. A "personalidade" dos professores constitui efetivam ente um substituto tecnológico n uma ativ idade que não se baseia somente em saberes e em técnicas formais, universais e permutáveis de um ind ivíduo para o utro. Ela se torna um elemento essencial do controle que o professor exerce sobre seu objeto de trabal ho, 139
os alunos. O professor que é capaz d e se impor a partir daquilo que é como pessoa que os alunos respeitam, e até apreciam ou amam, já venceu a m ais tenúvel e dolorosa experiência de seu ofício, pois é aceito pelos alunos e pode, a partir de en tão, avançar com a colaboração deles.
6. ü- professor enquanto trabalhador No que se refere ao traba lhador e à sua situação no processo de trabalho, limitemo-nos aqu i a duas constatações.
A experiência profissional e a personalidade do trabalhador como meio tecnológico
A persuasão Finalmente, a persuasão reside na arte de convencer o outro a fazer algo ou a acreditar em algo. Ela se apoia em to dos os recursos retóricos da língua falada (prom essas, convicção, dramatização, etc.). Baseia-se no fa to de que os seres humanos (e em particular as crianças e os adolescentes) são seres de paixão, susceptíveis de serem impressionados, il udidos, dobrados, convencidos por uma palavra d irigida às suas paixões (temor, desejo, inveja, cólera, etc.). A persuasão constitui um fio cond utor da tradição da educativa ocidental desde os sofistas. Sua importância vem do fa to de a língua ser o vetor p rincipal da in teração entre os professores e os alunos. Ensinar em contexto escolar presencial é agir falando. A palavra eleva-se aí à condição de a to: ela v isa modificar o outro (por exemplo, socializá-lo) ou m odificar algo no outro (fazê-lo aprender alguma coisa). A ordem na sala de aula se manifesta em comportamentos físicos, mas é antes de tudo simbólica: refere-se a significados partilhados em comum que servem de mundo de refer ência para os parceiros na interação escolar. A persuasão está relacionada com o conjunto de procedimentos linguísticos graças aos quais os professores conseguem levar os alunos a partilhar os significados legítimos r.elativos à ordem física e simbólica d a sala de aula e d a escola. De qualquer modo, a coerção, a autoridade e a persuasão fazem-nos lembrar de uma verdade elementar frequentemente esquecida: o ensino se assemelha m uito m ais à atividade política ou social, q ue coloca seres hum anos em contato uns com os outros, do que à técnica material ou à ciência (ARENDT, 1983).
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O que se evidencia aqui. é que o trabalho d ocente, no dia a dia, é fundamentalmen te um conjunto de interações personalizadas com os alunos para obter a participação deles em seu próprio processo d e formação e atender às suas d iferentes necessidades. Eis por que esse trabalho exige, constan temente, um investimento profundo, tanto d o ponto d e vista afetivo como cognitivo, nas relações humanas com os alunos. Essas relações podem d ificilmente ser su perficiais . Elas exigem que os professores se envolvam pessoalmente nas interações, pois eles lidam com pessoas que p odem desv iar e anular, de diferentes m an eiras, o processo de trabalho e das quais eles devem obter o assentimento ou o consentimento, e m esmo a participação. Nesse sentido, a personalidade d o professor é um componente essencial de seu trabalho. Pelo que sabemos, não existe realmente um a palavra ou um conceito para designar um trabalho desse tipo. Por conseguinte, vamos chamá-lo de trabalho in vestido ou vivido, indicando, com essa expressão, que um professor não pode som en te "fazer seu trabalho", ele deve também empenhar e investir nesse trabalho o que ele mesmo é como pessoa. É claro que algun s p rofessores podem muito b em se furtar a essa exigência e viver seu p róprio trabalho de modo indiferente, d esapegado. Entretanto, essas atitudes, essas renúncias ao próprio significado d a função, serão vividas, na maioria d as vezes, de maneira dolorosa ou contraditória (DAVID & PA YEUR, 1991; ROBITAILLE & MAHEU, 1991), u ma vez que os alunos (sem falar d os pares e d os outros parceiros) resistem a uma despersonalização mu ito gr ande de suas relações com o professor, combatendo, por 141
.. i:
exemplo, a personalidade dele ou abstendo-se d e toda relação personalizada com ele. Aquilo que nos parece ser a característica do h·abalho investido ou vivido é a integração ou absorção da personalidade do trabalhad or no processo de trabalho q uotidiano enquanto elemento cen tral que contribui para a realização desse processo. Na literatura sociológica, podem ser encontrados diversos trabalhos que estudaram ocLtpaçôes com características mais o u menos semelhantes. Esse tipo d e trabalho deve ser relacionado co m o que H ochschild (1983), num contexto de análise diferente (o das aeromoças), chama de emotional labor. Segundo H ochsch.ild, o emotional labor requer um trabalho além d as capacidad es físicas e mentais, p ois exige um grande inves timento afetivo do trabalhado r. Nesse tipo de atividade, a personalid ade do trabalhador, suas emoções, s ua afetividade fazem pa rte integ rante do processo de trabalho: a própria pessoa, com suas qualidades, seus d efeitos, sua sensibilidade, em suma, com tudo o que ela é, torna-se, de uma certa maneira, um instrumento do traball1o. Nesse sentido, ela é um com ponente tecnológico das profissões de interação. Essa tecnologia emocional é representada por posturas físicas, por m aneiras de estar com os alunos8 . Estamos, nesse aspecto, bem próximos das "faces" que Goffman (1959) estudou tanto e que constituem o fundamento das estratégias relacionais nas .i nterações cotidianas. Além disso, o emotionallabor é o apanágio dos ofícios femininos, do trabalho das mull1eres, as quais, mais do que os homens, costumam fazer uso d e sua afetividade no mercado do traball1o e transformá-la num componente importante de seu próprio trabalho. O trabalho inves tido o u vi vido também d eve ser relacionado com o mental labor d e que falavam Dreber ct al. (1982). Fundamentalmente, o trabalho mental, em nossa sociedade, é
8. HOCHSCHILD, 1983, p. 7: "A gestão dos sentimentos a fim de criar uma expressão facial e corporal publicamente observável; o trabalho emocional é vendido por um salário e tem, por conseguinte, valor de troca".
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o apanágio das profissões ou dos grupos semiprofissionais, ou seja, das ocupações que agem, antes de mais nada, através de representações, de saberes e de processos cognitivos: o espírito ou o pensamento do trabalhador torna-se, então, um fator de produção nevrálgico no processo de trabaU\0. Ora, acreditam os que uma das consequências desse fenômeno é levar o trabalhador a viver uma carga de tralmlho n partir do seu próprio i11terior, isto é, mentalmente. Con1.o se sabe, ninguém pode deixar sua mente no h·abaU1o, nem separá-la em funções distintas: uma para a casa, outra para o trabalho, outra para os lnzeres! O trabalhador mental carrega seu trabalho co11sigo: ele nifo pensa somente em seu trabalho (o que o maioria dos tmballwdoresfaz), mas seu pensa111ento é, elll !?rand.e porte, seu trnbalho. É o que explica o caráter particulan~1ente "envolvente" ou com p rometedor desse tipo de traba lho, e a dificuldade de separa r-se d ele completamente e de estabelecer um limite preciso. O ensino comporta certos aspectos do trabalho mental, notad amente, como v imos, no que diz respeito à necessidade de os p rofessores construírem seus objetos e seus locais de trabalho, e também no que se refere à importância de estabelecer relações significativas com os alunos. Enfim , o trabalho inves tido ou vivido deveria também ser relacionado com as profissões que lidam com seres humanos em relação de dependência (DREEBEN, 1970; HASENFELD, 1986), isto é, que contam, nem que seja parcialm ente, com o traballiador para melhorar ou mudar a condição, o d estino que lhes é reservado ou a própria pessoa de tais indivíduos: crianças, idosos, deficientes, doen tes mentais, beneficiários da previdência social, pessoas necessitadas, clientes dos terapeutas, etc. Essas profissões supõem um trabalho moral, pois são sempre portadoras de um certo fardo ético que repousa, pelo menos parcialmente, sobre os ombros do trabalhador, mesmo que a organização possa aliviá-lo por meio de uma deontologia mais ou menos precisa e válida. Esse fardo é realmente assumido e vivido por professores que se confrontam, às vezes diariamente, com crianças que sofrem de diferentes problemas, por exemplo de
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carência de atenção e de amor. Nesse sentido, como dizia Tom (1984), o ensino é realmente um trabalho moral. Essas diversas características (trabalho investido ou vivido, trabalho emocional, trabalho mental, trabalho moral) permitem compreender bem a integração ou a absorção da personalidade do professor no processo de trabalho. O fenômeno de integração ou de absorção depende do objeto humano do trabalho dos professores, os quais trabalham a maior parte do tempo em copresença com outras pessoas, a começar pelos alunos; e, m esmo quando estes estão ausentes, os pensamentos e as ações dos professores es tão voltados para eles. Esse fenômeno se explica também pelo aspec to artesanal do trabalho docente, pois, como os artesãos, os professores precisam elaborar seus instrumentos e construir seus locais de trabalho: nessa perspectiva, a subjetividade do trabalhador interfere necessariamente no seu ambiente de trabalho, ao qual ela se incorpora parcialmente. Por exemplo, quando visitamos determinadas classes do ensino fundamental, observamos uma verdadeira estetização do lugar: desenhos, decorações coloridas, disposição refletida d os móveis e dos objetos, etc. Trata-se de uma ordem que reflete a personalidade da professora. A nosso ver, seria preciso tratar a questão dos estilos de ensino nesse mesmo sentido. De fa to, cada professor desenvolve com o tempo um determinado estilo de ensino. Inúmeros estudos já tentaram construir hpologias pertinentes. Outros estudos mostraram (DURAND, 1996) que, em diferentes momentos do ano letivo, um professor organiza espon taneamente suas aulas de acordo com a mesma tram a tem.poral. Legault & Royer (1998) também ressaltaram o fato de que determinadas práticas disciplinares (expulsão dos alunos) não eram usadas tmiformemente nas escolas, mas eram praticadas por uma minoria de professores que resolviam desta maneira problemas de grupo. Todos esses fenômenos e muitos outros do mesmo tipo revelam que a personalidade dos professores impregna a prática pedagógica: não existe uma maneira ob-
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jetiva ou geral de ensinar; todo professor transpõe para a sua prática aquilo que é como pessoa.
A ética A segunda constatação relativa aos trabalhadores do ensino diz respeito à dimensão ética do trabalho que realizam.. Constata-se que essa dimensão é hoje freque ntem ente deixada de lado: fala-se muito de racionalização da organização do trabalho, fala-se de cortes cada vez ma iores no orçamento, fala-se da excelência e do sucesso, mas não se fala de ética no trabalho. É como se a dimensão ética residisse exclusivamente nas grandes finalidades educativas e no sistema jurídico q ue rege os serviços educacionais, para desaparecer em seguida em prol de considerações orçamentárias e administrativas. No entanto, os ofícios ou profissões de relações humanas apontam para ques tões de poder, de maneira intrínseca, mas também para problemas de valor, pois seus próprios objetos são seres humanos capazes de emitir juízos de valor e possuem, como ser es humanos, d ireitos e privilégios. Nesse sentido, a dimensão ética não é um elemento peri férico nas ocupações e profissões de relações humanas, mas está no próprio cerne do trabalho. Como essa dimensão ética se manifesta concretamente no ensino? I) Ela se m anifesta, inicialmente, no trabalho com os grupos de alunos. Os professores trabalham com massas de alunos, com g rupos públicos, enquanto os médicos ou os terapeutas trabalham a maior parte do tempo em lugares fechados, protegidos, com um só cliente. O fato de trabalhar com grupos levanta um problema ético particular, o da equidade do tratamento.
O problema principal do trabalho docente consiste em interagir com alunos que são todos diferentes uns dos outros e, ao mesmo tempo, em atingir objetivos próprios a uma organização de massa baseada em padr ões gerais. Embora trabalhe com grupos, o professor deve também agir 145
sobre os indivíduos. Aí está um invariante essencia l desse trabalho, que é, ao mesmo tempo, uma tensão central da atividade docente: agir sobre grupos, atingindo os indivíduos que os compõem. Ora, é impossível resolver esse problema de maneira satisfatória do ponto de vista ético. E esse é um limite intransponível dessa atividade em sua forma atual: os professores nunca podem atender às necessidades sing ulares de todos os alunos assumindo padrões gerais de uma orgmúzação de massa. Eles devem, de uma maneira ou de outra, perder numa das duas tabelas. Cada professor adota, mais ou menos conscientemente, na ação concreta, soluções para esse problem a de equidade. Por exemplo, foram feitos estu dos a r espeito da atenção que os professores dão, em sala de aula, ao grupo e aos alunos considerados .i ndividualmente (MESSING et al., 1995). Esses estudos indicam que cada professor tem sua maneira própria de repartir sua atenção e de gerir s uas relações com o grupo e com os indivíduos que o compõem. Ocorre o mesmo com o acompanh amento que ele dá a seus alunos e com as avaliações a serem efetuadas. De uma maneira ou de outra, cada professor deve assumir essa tensão constante entre a aplicação de padrões gerais e os casos individuais.
cido, que é o das atitudes éticas dos professores em relação aos alunos, aos saberes e à aprendizagem. Entretanto, não se pode negar que te~is atitudes, baseadas em representações, desempenham wn papel fundamental na aprendizagem . Certos professores falam excluindo os alunos de seu discurso, ao passo que outros abrem seu discurso, dando pontos de apoio aos al unos para que eles possam progredir.
2) A dimensão ética se mmúfesta, em seguida, no componente simbólico do ensino. Quando se ensina, ensina-se sempre numa língua, em hmção de discursos, de conhecimentos, de habilidades que os alunos devem dominar. Ora, exisle uma diferença de domúúo entre os professores e os a Iunos. O professor sabe c domina algo que os alunos não sabem e não dominam. Essa diferença de domínio entre o professor e os alunos levanta o seguinte problem a: com o o professor vai dar acesso a esses códigos simbólicos que ele domina? Esse problema não é somente técnico ou cognitivo. Trata-se de um problema ético, pois, para resolvê-lo, o professor deve entrar num processo de interação e de abertura com o outro- com um outro coletivo - de modo a dar-lhe acesso ao seu próprio domínio. Estamos diante de um aspecto bastante mal conhe-
Esse problema é muito delicado e res ide, evidentemente, na ques tão de saber quem vai julgar os p rofessores e em nome de quê. Nossas próprias pesquisas sobre esta questão m ostram que a avaliação do ensino é sempre uma construção social na qual interfere um grande número de critérios utilizados p or atores com expecta tivas e percepções frequentemente muito diferentes: alunos, pais, administradores, professores, conselhei ros pedagógicos, ftmcioná1ios, sindicalis tas, jornalistas, etc. É, portanto, normal que os professores hesitem muito em ser ava liados, considerando a própria incoerência dos critérios utilizados e a subjetividade que os contamina. En tretan to, esses argumentos são supérfluos, pois não existem critérios absolutos, coerentes e perfei tamente objetivos para avaliar wn trabalho. Não vale a
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3) A dimensão ética se man ifesta, finalmente, na escolha dos meios em pregados pelo professor. Em nossas organizações escolares, o professor não exerce influência direta sobre as finalidades da educação. Vimos também que o professor tem. pouco controle técnico sobre seu objeto de trabalho, isto é, sobre os alunos. Contudo, ele pode controlar os meios, isto é, o ensino (GAUTHIER, 1996). Esse é o fundamento de uma deo ntologia para a profissão docente. Assim como um médico é julgado pela qualidade de seu julgamento m édico e de seu ato, um professor também é julgado de acordo com o seu julgamento profissional, que se revela diretamente nos atos pedagógicos por ele realizados. Nesse sentido, se os professores querem ser reconhecidos como um verdadeiro corpo de profissionais do ensino, devem aceitar fazer julga mentos críticos c esclarecidos sobre sua própria prática pedagógica, e inclusive sobre a dos seus pares.
pena ficar esperando por tais critéri os, pois eles nunca existirão. Consequentemente, é de interesse dos professores pegar o boi pelos chifres nessa his tória e destacar os critérios deontológicos que desejam ter com o fundamento de sua profissão. Como nas outras profissões, o julgamento dos pares constituiria, sem dúvida, o alicerce desse código deontológico. Seria preciso também integrar a isso o conhecimento dos resultados recentes e probantes da pesquisa pedagógica. Tais resultados poderiam servir co mo base de conhecimento de referência que todo profissional do ensino consciente deveria, em princípio, co nhecer. 7. Conclusão
O objetivo deste capítulo era mostrar de que modo o estudo do trabalho docente permite esclarecer, de maneira fectmda, a natureza da pedagogia. Partimos da ideia de que a pedagogia, do ponto de vis ta do trabalho docente, constitui a tecnologia do trabalho dos professores concretizada através do ensino. Mostram os, em seguida, que a pedagogia é totalmente inseparável dos outros componentes da atividade docente, ou seja, dos objetivos do trabalho, de seu objeto, assim como dos saberes e das técnicas particulares que caracterizam o ensino, que não p ode ser concebido separadamente do pr ocesso de aprendizagem. Finalmente, vimos em que a pedagogia resulta, quando é enraizada concreta rnente no processo de trabalho docente, em dimensões q ue se referem, ao mesmo tempo, à experiência subjetiva do ensino, com o suas tensões e dilemas, e à ética do trabalho docente, com suas escolhas insolúveis e suas possibilidades de fechamento ou de abertura diante do o utro. Podemos ressaltar cinco consequências da nossa análise: 1) Em primeiro lugar, que a pedagogia não deve ser associada ou reduzida unicamente à utilização de instrumentos a serem usados ou às técnicas a serem empregadas, mas a uma prática social global e complexa, interativa e simbólica ao mesmo tempo. Nesse sentido, a p edagogia se aproxi-
1 4tl
ma m uito mais de um a práxis do que de uma téchne no sentido restrito do termo. 2) Em segUJ1do lugar, a análise do trabalho docente nos mostrou que o professo r não é um trabalhador que se contenta em aplicar meios e que se comport<1 como um agente de uma organi zação: ele é sujeito de seu própr io h·abalho e ator de sua p edagogia, pois é ele quem a modela, quem lhe dá corpo e sentido no conta to com os alunos (negociando, improvisando, adaptando). 3) Consequentemente, não se pode separar a pedagogi
149
4 Elmnentos p ara uma teoria da r:~·
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p~~t_i~?-" educativa
NESTE capítulo, serão apresen tados elementos de uma teoria da prática edu cativa. O fio conduto r da reflexão e d a an5-
lise aqui realizadas serão os modelos de ação presentes na prática educa tiva.
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O que se enten de aqui por m od elo ou tip o de ação são as representações elaboradas e veic uladas pelos professores a respeito da natureza de sua prática, represen tações essas qu e servem para defini-la, esh·uturá-la e orientá-la em situações de ação. Estas representações estão, portanto, incorpor adas na prática; elas conferem uma inteligibilidade e um sentido à a tividade educativa, oferecendo aos ed ucadores significações, pon tos de referên cia e orientações rela tivas às suas diversas ações. Esses modelos p odem ser sistematizad os e formalizados por m eio de teorias, como ocorre n as Ciências d a Educação. Por exemplo, pode-se considerar que o b ehaviorismo, inspirado n a tradição empirista e positivista, conseguiu identificar e formular o modelo puro d a ação instrumental em Educação. A função p rá tica de tais teorias consiste em oferecer aos educad ores razões p ara agir tal com o o fazem ou como deveriam fazê-lo: uma teoria da a tividade educativa n ada mais é do que um modelo d e ação formali zado, um conjunto sistemático e coer ente d e representações que nos esforçamos p or justificar a través das normas do pensamento racional ou científico. Mas os modelos 150
da ação educativa não são necessariamente racionalizados no â mbito de teorias e de ciências; eles também podem provir da c ultura cotidiana e do mundo vivido ou então das tradi ções educativas e pedagógicas próprias a uma sociocu\tura ou a um grupo profissional tal como o corpo docente. Como mostra a pesquisa etn ográfica e antropológica, n ão há cultur<1 que não forneça aos educadores, e nquanto gru po mais ou menos especializado, representações de sua própria ação. A importância de analisar tais modelos reside no fa to de qu e a prática educativa remete a a tividades guiadas e estruturadas por represen tações, p rincipalmente por essa representação que chamamos de objetivo ou ele fim. Ao <.1gir, os educadores não se contentam e m fazer algo: eles fa zem algo em função de certas representações d e sua própria ação e da n a tureza, modalidades, efeitos e fins d essa ação. No Ocidente, desd e os antigos g regos, chamamos tradicionalm.ente d e "educação" um processo de formação do ser humano guiado por representações explícitas que exigem uma consciência e um conhecimento dos objetivos almejados pelos atores educativos, objetivos esses que são tematizados e explicitados num discurso, numa r eflexão ou nwn saber qualquer. Nesse sentido, a noção ocidental de educação refere-se a uma atividade conscien te de si mesma OAEGER, 1964); é a ação que o ser humano exerce volm1tária e conscientemente sobre si mesmo ou sobre ou tro ser humano a fim de se formar ou de formá-lo em função de certas repre8entações de sua própria ação e da natureza, dos m odos e d as consequências dessa ação. Juntamente com Max Weber, poderíamos dizer também que se trata de uma a tividade racional ou racionalizada, isto é, d e uma atividade baseada n um saber que dá aos atores razões para agir tal como o fazem , tendo em vista a realização de certas finalidades' . Ser á apresentado, neste capítulo, um quadro teórico geral para a análise dos modelos de ação a partir dos quais a prá tica educativa pode ser (e foi efe tivamente) representa-
1. W EBER, M. (1964). L'éthiquc protestante et l'espril du cnpilnlisme. Paris: Plon.
151
da, estruturada e orientada. Note-se que os educadores po·· dem utilizar e combinar vá rios modelos de ação no decmsL> d e sua a tividade. Para os fins da p resente análise, porém, é necessário distingui-los e isolá-los tms dos outros, a fim d e captar, e m cada caso, seu caráter especificam ente original. Com esse quadro teórico, nossa a mbição é simp lesmente dar i.túcio a uni trabalho de reflexão e de análise acerca da prática educativa, identificando, desde já, um h orizonte de p esquisa que seja pelo m enos suficientemente amplo para integrar os recentes conhecimentos das teorias da ação, bem como concepções mais antigas da a tividade educa tiva, sobretudo aquelas que dominaram n ossa própria tradição cultural. Antes d e começarmos, gostaríamos, entretanto, de indica r com que espír ito abordamos essa categoria d a prática L'ducativa . O pressuposto é o seguinte: julgamos que essa cntegoria d eve ser considerada com a mesma abertura de espírito e com a mesma seriedade intelectual com as q~ais consideramos hoje a ca tegoria da técn ica, o u com as qua1s os economistas do século XIX, e sobretud o Marx, con sid eravam a ca tegoria do traba lho. Escrevemos este texto, portanto, com b ase no pressuposto de que a prática educativa consti tui u ma das ca tegorias fundamentais da a tividad e hu mana, categoria tão im portante e tão rica em valo res, em significados e em realid ades quanto o trabalho, a técnica, il a rte ou a política, com os qu ais, aliás, foi muitas vezes con fu ndidil ou iden tificada. Gostaríamos de estar enganados, mas pensa mos que esse pressuposto vai e m d ireção oposta a determinadas certezas dominantes a respeito da educação. Por exemplo, a prática dos professores e professoras foi e ainda é identificada a um trabalho, a uma arte, a uma técnica, a umil atividade p rofissional, a uma ação técnico-científica. Na verdade, um bom número de modelos que serviram e ainda servem p ara conceber a atividade educativa provieram e a inda provêm das esferils nas quais os seres humanos exercem uma ação sob re il matl-riil, as coisas e os obje tos. Uma parte imp ortilnk da nnss
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1•ri lll&lo exercido pelas ações hum.an as sob re a matéria em
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já existe n a cultura antiga e medieval, que iden tifica a ed ucação a uma a rte, a qual é concebida como imi tação (mime-
sis) da natmeza. A inda é esse m esmo p rimad o que, nos dias de h oje, domina todo o desen volvimento do pensamento tecnológico na Educação, bem como as formas de ativida: des instrWTientais, técnicas e estratégicas daí d ecorrentes. E também ele que justifica iltualmente as transferências, pilr<1 a prá tica educa ti va, de modelos de ação, de organiZilÇiiL' (' de conh·ole oriundos das esferas d o trabalho, da técni c1 l' d•1 produção industrial. Este capítulo está d ividido em duas partes: Na p rimeira pilrte, serão apresen tadas, de maneir
1á3
define tanto uma competência cognitiva, lógica o u científica, m as uma competência prática ou pragm ática. 1. Três concepções da prática em educação
Todos aqueles que se in teressam pela prática educativa precisam, num dado m omento, pergu ntar a si mesmos: "O que é a prMica educativa?" Essa pergtmta se refere à na Lu reza do agir ed uca tivo e equivale a pergw1tar: "O que fazemos quando educamos? Que forma ou gue tipo de atividad e é a educação? A ação do educador pode ser comparada ao cri ar do artista, ao fazer do técnico, ao pesquisar do cientista, ao modelar d o artesão, ao produzir do operário, ao agi r do político? Ser ia ela uma mistura de todas essas formas de ativ id ade ou uma forma de ação especifica q ue possui seus próprios ah·ibutos?" Antes de tentar responder a estas perguntas, seria conveniente examinar nossa própria tradição cul tural e educacional, a fim de ver que respostas ela dá a tais interrogações. De forma esquemática, podemos identificar três concepções fundamentais da prática educativa oriundas de nosSé\ cultu ra: a primeira, associa a prá tica educativa a Llma arte; a segunda, a uma técnica g uiad a por va lores; a terceira, a uma interação. Comecemos pela mais an tiga, a qual, es tranhamente, parece estar se tornando de novo a mais atua l.
A educação enquanto arte No mundo ocidental, a mais antiga concepção a respeito d a prática educativa vem da Grécia Antiga. Ela rem onta a m ais d e 2.?00 anos e continua em vigor ainda hoje, ap esar d e te1: sofn~o. transformações subs tanciais. Essa concepção assooa a at1v1dade do educador a uma arte, isto é, a uma téchne, termo grego que pode ser traduzido indistin tamente pelas palavras " técnica" ou "arte" . Os gregos não opw1.ham , como fazemos hoje, as belas-artes à técnica, os produtos do belo aos prod utos do útil. Todas essas ativid ades estavam
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incluidas ao mesmo tipo de ação, que comportava, no entanto, d iferentes espécies2 Elaborada pelos antigos gregos:', essa concepção da educação como arte se estendeu em seguida ao mundo romano, onde foi retomada pelo cristianismo que a transmitiu aos tempos modernos, im p rimindo-lhe transformações impo rtantes, principalmente no q ue diz respeito à concepção d a criança e do ser humano em geral. Também é essa a concepção de Rousseau, no sécul o XVIII. Durante os séculos XfX e XX, ela tende a ser abandonada, pauliltinamente, em benefício de o utras concepções, principalmente a concepção d a ed ucação como ciência. É importante notar que, nos últimos quinze anos, numerosos pesquisadores voltaram a interessar-se por essa concepç5o, graças, sobretud o, aos trabalhos do teórico americano Schon (1983) sobre a atividade profiss ional e a "reflexão-na-ação" . Não tenho a in tenção nem a pretensão de descrever essa concepção de maneira exaustiva, nem tampouco a longa evolução his tórica ah·avés da qual ela sofreu lTansformações s ubs tanciais. Li mitar-me-ei a da r algumas indicações sumárias que se referem mais especificamente aos temas aqui abord ados. No quadro 1, encontram -se sis tematizad os aq ueles que me parecem ser os pri ncipa is elementos d essa concepção. Na cultura grega an tiga, e mais p articularmen te na cultura filosófica, que tomo aqui com o referencial através das obras d e Platão e de Ar is tóteles'', a arte (téclme) se distin g uia, 2. É com o .1dvcn to do capita lism o moderno c d<1 g rande indústria q ue a esfera d as atlvidad cs esté ticas c a esfera d,1c.; atividades utilitáriê'lS vão ser difc rcnciDdas c opos tas de ma neira radical. His toricamente, o dcscnvolvinlcilto das bclas-n rtcs modcrnns, baseadas na subjetividade criadora do artista bc1n con1o na soberania e na autonomia da itnag inaç5o e de suas obras, coincide com o fi m d.1 produção artesanal c com o desenvolvimento da produ ção das mercadorias em série. 3. Entretanto, essa concepção não é obra de um pensador e m particular. Ao definir a educação como arte, os gregos se re feretn a umn catcgot"ia fundamcntill de sua própria civili zação e de sua ideologia. 4. PJ" tun (1974). La République. Paris: 13udé; Aris tote (1967). Éthiqueà Nicomaquc. l'aris: Vrin; Aris tole (1970). La l'olitique. Pa ris: Vrin .
155
por um lado, da ciência (epistéme), com o o contingente se distingue do n ecessário e o particular do universal, e, p or outro lado, da prá tica (práxis), is to é, das a tividades imanentes ao agente, ao passo que a arte visava sempre a um res ultado exterior ao agente.
O objetivo da ação prática é ela mesma, ao p asso que a arte busca sem p re atin gir um obje tivo exterior à ação. De ma neira geral, os An tigos con cebia m as artes a partir da categoria de produ ção ou de fabricação e não da ca tegoria de criação: a arte (qu e engloba, repetim os, ta nto as belas-artes quanto as técnicas) produz alguma coisa a partir de alguma coisa, isto é, de uma matéria determinada. Essa produ ção n ão é uma criação, m.as u ma im itação (mírnesis) ou uma reprodução: as form as qu e o artista ou o a rtesão imprime na matéria p rovêm da Natureza, concebida, por sua vez, como produção (poiesis). Gostaria d e lembrar q ue os gregos tinham uma concepção "fixista" da Natureza (Physis); eles pensavam que os seres naturais, inclusive os seres hLm1anos, possuíam w11.a "forma" (Eidos ou Morphé: h oje, diríamos "uma estrutura") im utéível e determinada para sempre. A Na tureza não gerava seres novos, como Darwin mosh·ará no século XIX, m as rep rod uzia constante mente os mesmos tipos de seres. Os artistas c os artesãos procedia m do mesmo modo: eles n ão criava m nada d e "n ovo" ou de original, mas reprod uziam as formas na turais ou prod uziam , como diz Aristóteles, formas como a Na tureza te ria produ zido se p udesse p roduzi-las (cf., por exemplo, ARISTÓTELES, Física, Livros 1 e 2; PLATÃO, Ti meu e A repúú/ica, Livro 6).
Quadro 1 - A educaçno enquanto nrte Ação (Práxis)
Arte (Téchne)
Ciê ncia (Epistéme)
Atividade típica
Atividade ima nente ao agente, ação moral.
Fabricação de uma obra e produção de algo (efeito, resultado, etc.).
Contemplação e conhecimento rigoroso.
Ator típico
O homem prudente, o homem político, o guerreiro, o gozador.
O artesão, o sofista. o médico, o educador.
O sábio, o filósofo, o Cientista.
Natureza d a at ividade
Orientada por fins imanentes ou naturais ao agente.
Orientada por resultados exteriores ao agente.
Orientada por um interesse relativo ao puro conhecimento.
Objeto t ípico d a atividade
O homem e a existê ncia humana .
As coisas, os As realidades homen s e os puramente acontecimentos. intelectuais.
Saber típico
Antropologia, ética, política.
As técnicas e as artes: o saber-fazer.
As ciências puras, a filosofia.
Natureza do sa ber
Erudito, mas não rigoroso e necessário.
Saber que trata do contingente e do partícula r.
Rigoroso e necessário.
Objeto do saber
Os fins e as normas.
Os seres contingentes e individuais.
Os seres necessários (os números, o divino).
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II I I I I
I
II
Enqua nto atividade específica, a arte se baseia e m disposições e habilidades n a turais, em habitus específicos, ou seja, em d isposições desenvolvidas e confirmadas pela prática e p ela experiência de uma arte específica. Nem tod o aquele que quer p ode ser artista ou artesão: é preciso já ter um certo " talento" . Mas o talento sem a prática não serve para nada: é a p rá tica que possibilita descobrir o " talento" e a tualizá-lo em operações con cretas e obras singulares. O artista n ão age por agir, sua ação não é a su a própria finalidade (como ocorre com a práxis); ao contrário, ele visa a produzir alg u ma coisa (uma obra ou um resultado qualqu er) guiando-se por uma idéia prévia em relação ao objetivo a ser alcançado. Essa id eia n ão é científica, pois seu objeto é contingente e particular. A
I
1 56
II
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arte atua sobre singulares materiais, ao passo que a ciência é aplicada ao geral e ao formal. Ora, o que cru·acteriza as realidades singulares é sua contingência e sua não necessidade, decorrentes de sua materialidade. A arte humana existe porque o mundo que nos rod eia, inclusive os seres humanos que nele vivem , é lacunar e imperfeito, variável e instável, embora ordenado em suas grandes linhas: a função próptia da arte é reproduzir a ordem natural, eliminand o as imperfeições tru1to quanto possível, nos limites estreitos da ação humana. Para os Antigos, a arte não quer desfazer c refazer o mundo ao sabor da imaginação criadora, mas busca antes aperfeiçoá-lo e mostrá-lo em sua epifania. Tal como escreve Pla tão, em A república (VU: 518-519), a respeito da educação: A educação é a arte (téchne) que consiste em f<~zer a alma voltar-se de modo mais expedito <1 si mesma. Não se trata de lhe dar a facu ldade de ver, que ela já possui (por natureza); somente seu órgão não está bem dirigido, não se volta para onde se deve voltar, e isto é o que cumpre corrigir.
A arte visa portanto a completar a natu reza, a subs tituí-la e a reproduzi-la. É p reciso lembrar que, para Platão, toda arte que não corresponde a essa função deve ser eliminada da Cidade Ideal. Encontramos a mesma ideia em Santo Tomás de Aquino, no De Magisto (1988: 34), obra que servirá d e base à doutrina católica da educação e da pedagogia:
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arte (arte: arte ou técnica) opera da mesma maneira c pelos mesmos meios que a natureza [... ] Constéltamos o mesmo processo na aquisição da ciência: o mestre conduz à ciência do desconhecido pelos mesmos caminhos escolhidos pelo indivíduo que descobre essa ciência por si mesmo. A
Vinte séculos depois de Pla tão e cinco séculos depois de Santo Tomás de Aquino, eis o que di z a esse respeito, no seu L'Émile, aquele que foi chamado de "o Copérnico da pedagogia", Jean-Jacques Ro usseau : "A educação é u ma arte.
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[Seu· objetivo] é o mesmo da natureza." Para Rousseau, a arte educativa também deve imitar a Natureza; por isso ele quer que o educador deixe a criança se desenvolver conforme o seu livre desenvolvimento natural. Vê-se que a concepção "revolucionária" de Rousseau está enraizada numa longa tradição, h·adição essa que não é questionada no q ue se refere a esse aspecto essencial. Q unl é o modelo da p rMica educa ti va que fundamenta essa concepção? O educador não é um cientis ta, pois seu objetivo não é conhecer o ser humano, mas ngir e formar, no contexto específico de uma situação contingente, seres humanos concretos, indivíduos. Ora, esses indivíduos não são a simples expressão da de finição científica de ser humano, de sua essência genérica; eles representam, em cada caso, seres pa rticulares, d otados de po tencinlidades específicas. O educador também não é um técnico nem um artista, no sentido moderno desses tcrm.os: sua ação não é baseada num snber rigoroso sobre fenômenos necessários que precisam ser organi zados num sistema de ca usas e efeitos; também não é uma atividade criad orél que im põe a uma ma téria uma form a <1 rbitrá ria saída éta imagin ação do artista. Ao conlTário, o processo de formação visa aqui o "desenvolvim ento" de uma forma huma na de vida que lcm em si mesma sua próprin fina lidade, noção que eng loba, n um só tempo, os fins naturais, sociais e individuais do ser humano. Scgw1d o essa concepção, a ação do educador pode ser associada à atividade do artesão, isto é, à atividade de alguém que: 1) possui uma ideia, uma representação geral do objetivo que quer atingir; 2) possui um conhecimento adquirido c concreto sobr e o material com o q ual traba lha; 3) age baseando-se na tradição e em receitas d e efeito comprovado específicas à sua arte; 4) age fiando-se também em sua habilidade pessoal e, finalmente, 5) age guiando-se por sua experiência, fon te de bons hábitos, isto é, de "maneiras-de-fazer ", d e " truques'', de "maneiras-de-proceder" comprovadas pelo tempo e pelos êxitos sucessivos. O que caracteriza, 159
por tanto, a educação como arte é, em primeiro luga r, a ideia d e que a ação educa tiva está ligada a realidades con tingentes e individuais q ue não podem ser julgadas d e maneira cientificamente r igorosa e necessá ria . Entretanto, isso não faz o educado r-artesão agir d e m aneira arbitrária: ele orienta sua ação em função da repr esentação d e uma finalid ade q ue, para os A ntigos, era, a u m só tempo, o objetivo do ato educativo c o termo na tural d o desenvolvi men to hum ano. O que d istingue a arte do escultor d a arte d o ed ucad or é que o prim eiro age sobre um ser, u m comp os to de matéria e d e forma, qu e n ão possui em si mesmo, mas recebe d o ar tista, o princíp io (a ca usa e a origem) de s ua gênese, ao p asso que o seg undo age com e sobre um ser que p ossui, por natureza, u m princípio de crescimen to e de d esenvolvimento que deve ser acompanhado e fome.ntad o pela atividad e educativa. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a arte d e educar correspond e a uma atividad e racio nal que não se fundamenta num saber rigoroso. Q uando educamos, temos uma ideia geral do termo do processo de form ação, mas essa ideia pode nos orientar apenas d e maneira global; cabe-nos julgar, nessa o u naq uela circunstâ ncia, se a situação é confo rme ou não a essa orientação. Noutros termos, a arte de educa r exige uma capacidade d e julgam ento em situações d e ação con tingen tes, capacid ade essa guiad a p or u ma fin alid ade que, para os gregos, resid ia na ideia d e que a criança é um ser em p rocesso e, portanto, inacabado, e que o acabamento d esse processo é o adulto. Em resu m o, segund o os A ntigos, o o bjetivo d a educação não é formar uma criança, mas um adu lto, assim como o objetivo do ja rd ineiro não é plan tar um a semente, m as fazer d esabrochar u ma rosa: é a rosa completa e acabad a que constitui a verd ad e d a sem ente e, portanto, o senti do final d a arte do jard ineiro.
d ade ·com certos conhecimentos científicos. Ele age guiando-se por certas finalid ades, e sua prática corresponde a u ma espécie de mistura de talen to pessoal, d e in tuição, d e experiência, d e háb ito, de bom senso e de habilidad es confirmadas pelo uso. Nessa perspectiva, a arte de educar tem u m triplo fundamento: ela tem seu fundam ento em si mesma (é ensinando que nos tornamos bons professores); tem seu fundamento na pessoa do educad or (é possível aprend er a educa r, con tanto que o educad o r já possua as qua lidades do ofício); e, enfim, tem seu fund amen to na pessoa do ed ucand o, cuja form ação constitui a finalidade inter na, imanente d a prática educativa.
A educação enquanto técnica guiada por valoi"es A seg und a concepção identifica a prá tica ed uca tiva a um a técnica guiada p or valores. Ela s urge com os tempos mod ernos, embora possamos encontrar vestígios d ela na An tiguid ad e, p rincipalmen te em certos sofistas e na teoria das paixões d e Aristóteles. Mais u ma vez, lim itar-nos-emas a d ar i nd icações sumárias, condensadas no quad ro 2. Essa concepção repousa na oposição entre a esfer a da s ubjetivid ade e a esfera da objetividade. É p reciso sublinhar q ue essa oposição não é esp ecífica à educação, mas caracteriza a cultura d a modernidade. His toricamente, essa oposição começa a se descor tina r no século XVII com o d esen volv im ento simultâneo d as ciências físico-m atemáticas e das concepções m odernas da subjetividade. Ela tem seu ápice no fim d o século XIX e na p rimeira m etad e do sécu lo XX, numa divisão ideológica entre, de um lado, o positivism o, o em pirism o, o cien tificismo e o tecnocra tism o, e, d e ou tro lad o, o subjetivism o, o relativismo m oral, a vivência pessoal, o existencial.
Aplicad a à educação atual, essa concepção significa que o p rofessor, numa sala d e aula, não possui uma ciência d e sua p róp ria ação, conquan to ele possa alimentar sua ativilfiO
161
Quadro 2 -A educação enquanto técnica: subjetividade e objetividade ·-= · _ ______,, ,_
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Esfera da subj etivid ade
Esfera d a obj etividade
Atividades típicas
As atividades morais-legais, pessoa is, passionais, as cond utas baseadas no interesse dos atores.
As técnicas, as atividades instrumentais e estratégicas, a pesquisa científica.
Atores t ípicos
Todo ator que age basea ndo-se em seu interesse ou em regras subjetivas.
O tecnólogo, o científico, o calculador, o estrategista.
Natureza da atividade
Guiada por f1ns, por no rmas.
Guiada por objetivos axiologicamente neutros.
Objeto típico da
A conformidade às normas, regras e interesses.
O dorn ínio e o controle dos fenômenos.
O ético, o jurídico, o estético, o senso comum, etc.
As ciências e as técnicas.
Natureza do saber
Su bjetivo ou subjetivo-coletivo (social)
Rigoroso e necessá rio.
Objeto do saber
As reg ras, as normas, o interesse subjetivo.
Todos os fenômenos naturais e o ser human o como fenômeno natural.
1 atividade
Saber típico
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É ela q uem determina a maioria das teorias modernas relativa à prática, inclusive no campo da educação. Essas teorias se baseiam no p ostulado de que as a tividades humanas podem ser reduzidas a duas gr andes categorias de ação:
As ações g uiadas por objetivos axiológicos neutros q ue visam o domínio e o controle dos fenômenos do ambiente de vida (natural, social e humano). Essas ações remetem, no
162
que d iz respeito aos atores, a dois tipos de saberes interligados: um saber que se refere ao conhecimento objetivo dos fenômenos sobre os quais os atores se propõem a atuar e um saber que se refere à própria ação desses atores, is to é, à coordenação dessa ação em termos de meios e fins. A prática é vista aqui como estando baseada num a ciência objetiva dos fenôm enos que se prolonga por m eio de ações técnicas sobre esses mesmos fenôm.enos, ações guiadas somente pelo critério do êxito. As ações guiadas por normas e interesses que visam a conformidade a uma o rden1 de valores ou a realização de uma ordem de interesses. O que caracteriza esse segundo tipo de ações é que elas não se apoiam num conhecimento objetivo: elas provêm da esfera da subjetividade, isto é, das normas às qua is os atores aderem e dos interesses que eles defendem . A prática é vista, nesse caso, com o a atividade pela qual os seres humanos se orientam em função de normas e interesses contingentes q ue dependem exclusivamente deles e não de Deus ou das Leis da Na tureza. No que se refere à ed~teação, o significad o dessas distinções é que a prática educacional mobiliza duas grandes formas de ação: por um lado, ela é uma ação guiada por normas e interesses que se transformam em finalidades educativas; por outro, é uma ação técnica e instrumental que busca se basear n um conhecimento objetivo (por exemplo, as leis da apr endizagem, tuna ciência do comportamento, etc.) e num controle axiologicamente neutro d os fenôm enos educacionais. Essas duas formas de ação exigem dois tipos de saber por parte dos professores: um saber moral e prático relativo às normas e finalidades da prática educativa, e um saber técnico-científico relativo ao conhecimento e ao controle dos fenômenos educacionais. É esse, s ubstancialmente, o modelo do professor ideal proposto pela Escola Nova: o professor ideal fundamenta sua ação nas ciências da educação, principalmente na psicologia, e, ao mesm.o temp o, orienta a sua ação de acordo com uma ordem de valores e de 163
interesses chamada, nos anos 1960, de "novo h u manismo". Sua prática educativa participa, p ortanto, a um só tem po, da ciência e da ação moral; conjuga os méritos das ciências do comportamento e d a ap rendizagem e as virtudes de uma ética da pessoa, d e sua autonomia e de sua dignidade. O professor ideal é, portanto, uma espécie de híbrido d e Skinner e de Carl Rogers! Que modelo da p rática fundamenta essa concepção? N uma sala de aula, o professor se g uia por d ois saberes: 1) deve conhecer as normas que orientam sua prática; essas normas corr espondem a tudo o que não é objeto ou produto do pensamento cien tífico, m as interferem. na educação, como va lores, regras, regulamen tos ou finalidades; 2) deve também conhecer as teorias científicas existentes relativas à educação, à natureza d a criança, às leis da aprendizagem e ao processo de ensino; em tese, essas teorias deverão guiar sua ação, que será então uma ação técnico-cien tífica, ou seja, uma ação determinad a pelo estado atual d o conhecimen to científico. Nessa concepção, o que disting ue a sala de aula de um laboratório, a educação de uma ciência, a pedagogia de uma tecnologia é apenas uma diferença de g rau e não de natureza. O ensino seria derivado d e uma ciência que ainda não conseguiu controlar totalmente seu ambien te tecnológico, por razões que dependem não da ciência, mas d o estad o geral d a sociedade, baseada numa moralidad e ultrapassada (SKINNER, 1969; 1971). Enquanto profissão, a pedagogia deve tomar a medicina como ideal: a medicina baseia seus julgamen tos nas ciências e sua ação é puramente técnica, v isto que seu critério é o sucesso d e suas operações (e não o bem ou o mal, o que é bom e o que é ruim). Mas a medicina, tal como a ciência pedagógica, aliás, depara-se constantemente com situações que não são susceptíveis de passar por u m julgamento científico. Nesses casos- que são numerosos - os profissionais devem orientar-se por uma ética do trabalho e, sobretud o, pautar suas ações pelas leis, normas,
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regulamentos e finalidades em vigor na sociedad e e n a instit uição médica -ou pedagógica.
A educação enqum1to interação A terceira concepção relativa à p rática educativa a identifica a uma in teração. Essa concepção é d efendida atualm ente por várias te01ias: o simbolismo interacionista, a etnametodologia, as teorias d a comunicação, a teoria da racionalidade, etc. En tretanto, gostaríam os d e sublinhar , mais uma vez, que certos elementos d essa concepção podem ser facilmente encontrados na Antiguidade, principalmente nossofistas e em Sócrates. No q uadro geral da sofística, onde podemos situar Sócrates, a arte de educar tem suas raízes num contexto d e discussão marcado por interações linguísticas: a atividade educativa, aqui, diz respeito à comunicação e à interação enquanto processo de form ação que se expressa através da importância atribuída ao discurso dia lógico ou retórico. A discussão com o outro não é somen te um meio educativo; é, ao mesmo tempo, o meio no qual a próp ria formação ocorre e a finalidade da formação, que p ode ser identificada através da aquisição de u ma competência discursiva. Para os sofistas, ser educado era "saber falar", "saber argum entar" em público segundo as regras pragmáticas da retórica ou , segundo Sócrates, saber desenvolver uma ord em d e razões p ara legitimar asser ções num confronto com o o utro e consigo mesmo. Na origem de nossa tradição, a atividade educativa foi definida, portanto, en tre outras coisas, como uma atividade d e interlocução, d e interação lingtústica onde são testados esse "saber-falar" e esse "saber-pensar" que os gregos chamavam de fogos e que nós geralmente traduzimos por "razão". Entretanto, a n oção de interação, tal como acaba d e ser d escrita, é m uito estreita, pois dá ênfase exclusivamente às interações linguísticas: ela se baseia no p rimado do discurso ou da racionalid ade. É por isso que os Antigos concebiam
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a educação autêntica como um processo de formação que se inicia quando as crianças se tornam adolescentes dotados de uma compe tência comunicativa e racional. Hoje, isso é diferente, pois o conceito de interação abrange um leque m uito mais amplo de a tividades. N uma filiação histórica que vai de Marx, Durkheim e Weber aos teóricos contemporâneos da ação tais como Parsons, Goffman, Garfinkel, Schüts, Arendt e Habermas, podemos defini r, esquematicamente, o conceito d e interação di zendo que ele se refere a toda fo rma de atividade na qual seres humanos agem em função uns dos o utros. Falamos d e interação q uando os seres humanos orientam seus comportamentos em fw1ção dos compor tam entos dos outros. Em sua estrutura interna, portanto, o agir interativo não é orientado para a manipulação dos objetos ou para o controle dos fenômenos do ambiente circundante, mas por um confronto com o outro. O confronto com o o utro não é rigido; ele pode adaptar-se a diversos modos e a diversas modulações, de acordo com as fina lidades que os autores almejam alcançar. Por exemplo, posso expressar dian te do o utro meus sentimentos, minha "vivência "; posso também procurar um acordo com ele o u com ela p or interm édio de in terações linguísticas; posso também desencad ear um processo de negociação sobre nossos papéis mútuos, e tc. A ação so bre a natureza (o traba lho) e a ação sobre os artefatos (a técnica) incluem também interações entre os indivíduos, mas essas interações são apenas meios para a transformação da natureza ou a produção dos artefatos. Poderíamos dizer que o trabalho e a técnica, enquanto categorias fundamentais da atividade humana, são estruturados globalmente m uito m ais por r elações do tipo "lado a lado" entre os a tores do q ue p or relações do tipo "face a face": no lado a lado, a ênfase é colocada na colaboração mútun e na coordenação das ações d os indivíduos a fim de realizar alg uma coisa; no face a face, a ênfase é posta naquelas interações com o o utro que m ais se destacam na ação.
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Q uem do aplicada à ed ucação, essa ideia de in teração nos leva a captar a natureza profundamente social do agir educativo. Na educação, não lidamos com coisas ou com objetos, nem mesmo com animais como os famosos pombos de Skinner: lidamos com os nossos semelhantes, com os quais interagimos. Ensinar é entrar numa sala de aula e colocar-se diante de um grupo de alunos, esforçando-se para estabelecer relações e desencadea r com eles um p rocesso de formação m ediado por uma grande variedade de interações. A dimensão intera tiva dessa situação reside, entre outras coisas, no fato de que, embora possamos manter os alunos fisicamente numa sala de a ula, não podemos obrigá-los a participar de um programa de ação com um orientado por finalidades de aprendizagem: é preciso que os alunos se associem, de umn maneira ou de o utra, ao p rocesso pedagógico em curso para que ele tenha a lguma possibilidnde de s ucesso. Falaremos, um pouco mais ad iante (na segunda parte deste texto), dos diversos modelos de ação presentes nessa concepção dn prática educativa como interação.
Contudo, antes de abordar a segunda parte, gostariamos de tra tar rapidamente de um tipo de atividade da qual ainda não falamos. Trata-se de todo o cam po das atividades chamad as de tradicionais, isto é, das atividades nas quais os a tores agem em fw1ção daqueles tipos de ação baseados em tradições, costumes e maneiras de fazer procedentes do uso. Embora não tenham relação nem com a arte, nem com a técnica, nem com a interação, uma teoria da prática educativa não pode negligenciar as atividades tradicionais, que desempenham, na minha opinião, um pap el extremamente importante na educação, principalmente na educação familiar. A maioria dos seres humanos ed uca seus filhos sem pen sar m uito nisso: na verdade, bas ta que sejam o que são e que façam o que fazem dia após dia para formar seus filhos de acordo com m odos de vida bas tante estáveis através do tempo. Por exemplo, se somos homens, todas as manhãs vestimo-nos como homens e não como m ulheres. Interrogamo-nos (às vezes!) sobre a escolha das cores das roupas q ue 167
vamos usar, m as o fa to de vestir-se como homem é, habitualmente, uma coisa natural. É claro que certos homens se vestem de mulher, mas o que é tradicional é que milhares e milhares de homens se vistam como homens sem ne m m esm o pensar nisso, naturalmente, espontaneamente, dia após dia, ano após ano, sem nunca questionar essa atividade cotidio:ma de um tipo de animal que, ao se vestir, assLune simultaneamente os símbolos de sua humanidade, de sua cultura e de sua sexualidade. No campo da Educação, o que é normal e regular é, por exemplo, que milhares de professores se dirijam todos os dias a milhares de alunos sentados em fileiras, como se o fato de senta r os alLmos em fileira fosse normal, natural, e não LU11 fato histórico e social que data de aproximadamente três séculos e q ue anteriormente simplesmente não existia! Esse fato é um fa to tradicional queremon ta justamente ao surgimento das tradições pedagógicas modernas e à constituição da ordem escolar atual.
2. Ações e saberes na prática educativa Os elementos essenciais desta segunda parte do texto encontram-se condensados no quadro 3, que apresenta uma visão de conjunto dos modelos de ação presentes no âmbito da Educação e dos tipos de saber que U1es estão associados. Até agora, limitamo-nos a colocar em evidência certas ideias características de três modelos da prática educativa. Cada um desses modelos se baseia em certos pressupostos relativos à natureza da atividade no campo da Educação e à natureza do saber m obilizado pelos educadores para realizar sua atividade. Contudo, acreditamos que essas três concepções continuam sendo limitadoras em relação à realidade da ação educativa. Gostaríamos, então, de esboçar as linh.as gerais de uma argwnentação que possa enriquecer nossa concepção a respeito da atividade educativa de um modo geral e da ação do professor em particu lar. Para com eçar, situemos melhor os princípios de construção do quadro 3.
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3Agi r instrumental (Watson , Skinner, Gagné, etc.)
Cond utas guiadas por objetivos especificados em comportamentos observáveis.
A tecnologia da ed ucação, a educação especia lizada, a reeducação.
Atividades que objetiva m a modificação do comportamento através do condicionamento.
Agir de acordo com regras técnicas ou com uma metodologia do comportamento.
4Agir est ratégico (Newman , Scho n, etc.)
Condutas gu iadas por objetivos em situações de inte ração.
A prática cotidiana dos professores nas salas de au la.
Gestão e orientação das interações dentro de um grupo para atingir um objetivo.
Agir de acordo Saber estratégico com regras paradigmáticas. calculador.
A prática guiada por normas: disciplina, currículo, etc.
Atividades que Agir de acordo Saber normativo. garantem o com regras respeit o a éticas, jurídicas, normas ou a .estéticas . sua realização.
Condutas que comportam uma negociação relativa aos papéis dos atores educativos.
As interações entre os professores e os alunos exigem uma construção da ordem pedagógica.
Negociação dos papéis num programa de ação em curso numa sala de aula.
Agir de acordo com papéis socia is contingentes e negociáveis.
A educação é Saber cotidiano, saber uma interação socia l. comum, saber na ação.
Condutas nas quais o ator expressa sua subjetividade, sua vivência.
As pedagogias personalist as , as atividades terapêuticas.
Expressão do que vivem e séntem os atores da ed ucação .
Agi r expressando sua vivência.
Saber como consciência de si ou autorreflexão.
A educação é uma atividade de expressão de si mesmo.
Condutas nas quais os atores participam como iguais numa discussão.
A educação democrática.
Argumentação Agir pela discussão . entre os educadores e os educandos sobre as razões da ação.
Saber arg umentar.
A ed ucação é uma atividade de comunicação.
5-
Condutas Agir normativo guiadas por (Well, Moore, normas, por etc.) valores .
6Agir dramatúrgico (Goffman, Doyle, etc.)
7Ag ir expressivo (Schütz, Rogers, etc.) 8Agir comunicacional (Habermas, Apel, etc.)
Saber A educação é uma tecnologia. técnico-científico axiologicamente neutro.
A educação é uma arte.
A educação é uma atividade normativa ou moral.
I
A tipologia clássica da ação, elaborada por Max Weber (1971), represen ta um primeiro fio condutor para analisar as
ricas tramas interacionais presentes no ensino e os saberes que elas trazem à tona. Na sua obra Economia e Sociedade, publicada em 1922, Weber identifica quatro tipos fundamentais de ação social: as atividades relacionadas com objetivos, as atividades relacionadas com valores, as atividades tradicionais e as atividades guiadas p or afetos. De acordo com a tese clássica de Weber, esses diferentes tipos de ação não são comparáveis entre si. Os dois primeiros seguem racionalidades diferentes, uma vez que a realização de objetivos e a concretização de valores recorrem a critérios completamente diferentes, tanto para o ator quanto para qualquer pessoa que se esforce para compreender seus motivos. Por exemplo, uma discussão entre professores a respeito do melhor tratamento para tal forma de dificuldade de aprendizagem envolve critérios científicos e téaucos s usceptíveis de justificação empírica: algw1s colegas podem criticar tal tratamento baseados em determinadas informações técnicas. Entretanto, a discussão muda de direção a partir do mom ento em que se h·ata de saber se esse tratamento deve ser aplicado a um aluno contra a vontade de seus pais ou então a um aluno cuja reputação social poderia ser abalada por causa desse mesmo tratamento. Passamos então dos critérios técnicos para o campo das normas sociais e éticas que não podem ser justificadas por meio de crité rios científicos ou empíricos. Ocorre o mesmo com as ações tradicionais e afeti vas: suas regras de produção e os significados que assumem para aqueles que as realizam são irredutíveis a uma racionalidade científica, lógica ou técnica. A importância dessas distinções efetuadas por Weber reside no fato de revelarem a diversidade das ações sociais: não som ente as pessoas agem por motivos muito diferentes (inclusive em circunstâncias semelhantes), mas esses motivos não são negociáveis entre si a partir de uma racionalidade única, por exemplo, de um conhecimento cientifico o u téCiuco. Contudo, ainda é possível enriquecer essa concepção, atualizando a tipologia weberiana através de inúmeros tra172
balhos que tratam da atividade social,; da interaçã~ ~'que estão ligados àquüo que chamamos de teonas da açao . De fato, depois de Weber (1922), outros h·abalh os como os de Parsons (1978), Goffman (1959), Garfinkel (1970), Arendt (1983), Touraine (1965), Crozier & Friedberg (1981), Habermas (1987), Apel (1988), Ricouer (1986), Schutz (198~), Giddens (1987) - os mais impo rtantes - enriqueceram constderavelmente a concepção sociológica da atividade social. Esses trabalhos colocar am especialmente em evidência a existência de outros tipos de interação constih ttivas das situações sociais cotidianas. As ideias de Crozier sobre a ação coletiva nas organizações permitiram identificar as formas de atividade estl'atégica, nas quais os au~ores a~em_ em função de informações limitadas, em ambtentes ~s~ave1s,. ao mesmo tempo em que procuram realizar seu propno projeto e estabelecer relações coletivas. Os esh1dos de Goffman, sobre a atividade que chamamos de "dramatúrgica", ajudam a compreender as formas de interação cotidian~, na qual os atores entram em presença, lidando de man.e tra comp~exa com toda uma gama de códigos e de regras mterpret.atJvas que eles podem m odificare adaptar conform e a necessidade. Em suas teorias da ação, Habermas e Appel destacaram os fundamentos linguísticos e de comunicação da interação ht~ mana, distinguindo-a assim das relações sujeito / objeto. nalmente, seguindo a tradição fenomenológica. e herme.neutica Schutz Ricoeur, Garfin.kel e muitos o utros mtroduztram um~ manei~a nova e fecunda de abordar o "mundo vivido", mundo esse enraizado na "consciência" e no agir expressivo e através do qual os atores humanos constroem o seu próprio mundo comum de acordo com as múltiplas perspectivas da sua subjetividade, que, por sua vez, está enraizada na historicidade do "mundo da vida" (Leb(;n swelt).
! I-
O quadro 3 retoma, portanto, a tipologi~ weberi~a clássica da ação social, acrescentando-lhe os hpos de açao colocados em evidência pelos teóricos citados anteriormente e inferindo os pap éis típicos do _professor e as definições típicas do ensino daí decorrentes. E preciso dizer que se tra-
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ta de "tipos ideais", pois as atividades concretas dos atores sociais manifestam -se geralmente como tipos mistos e rara. mente puros. No estudo do ensino, algumas das contribuições mais marcantes ~~s últimos trinta anos (MEHAN, 1978; WOODS, 1990; SCHON, 1983; DOYLE, 1986; SHULMAN, 1986; DURAND, 1996, etc.) tiveram origem ou inspiraram-se nes~a renovaç~o ? as teorias d~ açfío. húeliz rnente, até agora, a Imensa ma10na das pesqtusas sobre o ensino, quando não caem no pensamento mágico, na moralização ou na retórica comw1ista, cognitivista e humanista, permanecem dependentes sobretudo de uma concepção estritamente instrumental da ação, onde a interação professor 1altmo é concebida ~egu~do o r~1od~lo canônico da relação sujeito 1objeto e o ensm o e reduzido as regras da atividad e técnica baseada na relação meios/ fins. Part~do do quadro 3, ressaltemos agora, brevemente, alguns fios condutores passíveis de enriquecer nossa compreensão a respeito da atividade educativa e do ensino.
1) O que o q~adro 3 mostra, primeiramen te, é que o proc:sso de formaçao do ser humano é tão rico, complexo e vanegado quanto o próprio ser humano. O ser humano é a u.~ só tempo, um manipula dor de fenômenos objetivos, ;oClaJs e humanos; é um negociador que discu te com seus semelhantes; é um ser que pauta seus comportamentos por nor~as e que descobre, no ambiente em que vive, desde 0 nas~1m~nto, m_odelos de comportamento que tende a reproduzir; .e tambem. um ser que expressa sua s ubjetividade e que onenta sua v1da de acordo com uma dimensão afetiva e em ocional. Em suma, o processo de formação do ser humano reflete exatamente todas as possibilidades e todos os matizes dos seres que somos. Por conseguinte, pode-se afirmar que as três concepções analisadas anteriormente são unilaterais e redutoras. Dizer que a prática educativa é uma arte uma técnica ou uma interação é s ublinhar, em cada um des~ ses casos, uma dimensão essencial da prática educativa à qual, porém, as outras não podem ser reduzidas. Se quere174
mos.chegar a uma visão matizada da prá tica educativa, devemos evitar rejeitar, de maneira dogm ática e unilateral e em proveito de um l'mico tipo, os diferentes tipos de ação que existem efetivamente na educação. 2) No que diz respeito ao ensino propriamente dito, o quadro 3 indica que o trabalho do professor não corresponde a um ti pu de ação específico. Ao contrário, esse trabalho recorre constan temente a uma grande diversidade de ações heterogêneas. Os diferentes tipos de ação encontram-se também na prática dos professores de p rofissão. Nos últimos dez anos, muitos trabalhos foram dedicados à análise da atividade dos professores tal como ela se processa nesse sistema de ações que é a sala de aula. Esses trabalhos são, em grande parte, tm1a reação às abordagens técnico-científicas que associavam, de um certo modo, a atividade dos professores a uma tecnologia de modificação do comportamento. Esses trabalhos identificam a atividade educativa a uma interação social atra vés da qual a ordem pedagógica é construída graças às interações e negociações dos atores. No q.uadro 3, essa corrente de pesquisa corresponde especifiCamente aos tipos de agir estratégico e dramatúrgico analisados originalmente por Goffman, Garfinkel e vários outros teóricos da ação. A heterogeneidade da atividade dos professores, no que se refer e aos tipos de ação concretamente mobilizados, permite compreender, a nosso ver, por que a literatura sobre o ensino propõe visões às vezes tão diferentes dessa profissão: • O ensino é concebido, com frequência, como uma técnica (cf. SKINNER, 1969; GAGNÉ, 1976; TARDrF, 1992): basta combinar, de modo eficaz, os meios e os fins, sendo estes últimos considerados não problemáticos (evidentes, naturais, etc.). • O utros teóricos (cf. NEILL, 1970; ROGERS, 1968; PARÉ, 1977) destacam muito mais os com ponentes afetivos, assimilando o ensino a um processo de desenvolvimento pessoal ou mesmo a uma terapia.
1 75
• Outros autores pr ivilegiam uma visão ético-p olítica da profissão, concebendo o ensino como uma ação ética ou política (cf. FREIRE, 1974; NAUD & MORIN, 1978; e as muitas concepções que associam a educação à luta politica, à emancipação coletiva, etc.). • O ensino também é definido como rm1a interação social e necessita, por exemplo, de um processo de "co-construção" da realidade pelos professores e alunos. Esse ponto de vis tél é d efendi do especialmente pelos en foques sociocons trutivistas (LAROCHELLE & BERNADZ, 1994). • Finalmente, detem1inadas concepções assimilam o ensino <1 wna arte cujo objetivo é a transmissão de conhecimentos e valores considerados fundamentais (cf. ADLER, 1982; ALAIN, 1986; MORlN & BRUNET, 1992). Constatamos, portanto, que essas diferentes concepções da profissão docente privilegiam com freg uência um único tipo de ação em deh·imento dos outros. 3) Na realidade, o qu e torna complexo o trabalho dos professores é justamente a presença simultânea e necessária desses diferentes tipos de ação, os quais obriga m os atores a realizarem uma grande variedade de interações com os alunos em função de vários objetivos que não são necessari(lmcnte coerentes ou homogêneos. De fa to, objetivos práticos, normas, afetos e tradições não obedecem necessariamente a uma mesma lógica, e podem muito bem mostrar-se contraditórios ou pelo menos incompatíveis. Por exemplo, um professor pode ser forçado a exigir o respeito das h·adições de um estabelecimento com as quais está em desacordo; pode viver conflitos de valores entre os objetivos escolares (avaliar os alunos) e os seus próprios valores (lutar contra a competição, estimular a partilha e a cooperação); pode também se ver concretamente diante de escolhas difíceis e sem solução lógica, como por exemplo entre fazer a turma avançar rapidamente ou cuidar dos alunos com dificuldades, retirar os alunos perturbadores ou procurar integrá-los,
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etc. Tais escolhas são ainda mais difíceis por não se manifesta rem no contexto de uma reflexão abstrata, realizada por um pensador que dispõe de muito tempo, mas surgirem durante a própria ação, no conta to com as pessoas, em meio a limites de recurso e de temp o. Nesse sen tido, os dilemas inerentes ao ensino se situam no próprio cerne das interações cotidianas na sala de aula.
4) Embora as atividr~des instrumentais também desempenhem um papel m uito importante em sua estrutura interna, a atividade do professor não está voltada, primeiramente, para a manipulação de objetos ou para o controle d e fenômenos do meio de vida ambien te, mas para um face a face com um outro coletivo. Ora, esse face a face não é rígido; ele pode assumir diversas formas e m.odulações, conforme as finalid ades almejadas pelos atores e s uas perspectivas sobre a situação. Por exem plo, diante dos alunos, um professor pode expressar seus sentimentos, sua vivência; p ode buscar também um en tendimento com um aluno específico ou com a turma por meio de in terações linguísticas; pode desencadear um processo de negociação social a respeito de seus papéis respectivos, etc. A ,ação sobre a natureza (o trabalho indus trial) e a ação sobre os artefatos (a técnica) supõem igualmente interações entre os indivíduos, mas essas interações não p assam de meios para transformar a natureza ou produzir artefatos. Pode-se dizer que o trabalho e a técnica, enquanto c
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lisado em função dos tipos de ação presentes na prática. Tal como s~gere o quad ro 3, "o saber-ensinar na ação" supõe u__m ~OnJunto de saberes e, portanto, um conjunto de competencws dlferenc1adas. Para ensinar, o professor deve ser capaz de assimilar uma tradição pedagógica que se manifesta através d e hábitos, rotinas e truques do ofício; deve possuir uma competência cultural oriw1da da cultura comum c dos saberes cotidianos que partilha com seus alunos; deve ser capaz de argumentar e de defender um ponto de vista; deve ser capaz de se expressar com uma certa autenticidade, diante de seus alunos; deve ser capaz de gerir Lmla sala de au la de maneira estratégica a fim de atingir objetivos de aprendizagem, conservando sempre a possibilidade de negociar seu papel; deve ser capaz de identificar comportam entos e de modificá-los até um certo ponto. O "saber-ensinar" refere-se, portanto, a uma pluralidade de sa beres. 6) Esse pluralismo do saber está ligado à diversidade dos tipos de ação do professor. De fato, se admitirmos que o trabalho docente é uma atividade intencional que procede por objetivos, motivos e intenções, deveremos também admitir que esses componentes teleológicos da ação são muito distintos. Noutros termos, os objetivos do professor na ação dependem dos tipos de ação presen tes: ele age às vezes em função de normas que ele defende ou quer fazer respeitar; age também em função de emoções, sentimentos, afetos; age ainda de acordo com os papéis sociais dos atores escolares; age por razões o u motivos que lhe parecem " raciona is" ~u bem~- fundados, etc. É evidente que esses diferentes objehvos nao podem ser reduzidos ao m odelo de ação instrumental, em q ue os meios sã.o, de um certo modo, deduzidos dos fins. Por exemplo, exigir que os alunos respeitem um valor no qual se acredita, supõe a exis tência, em segundo plano, de um sis tema normativo ao qual o professor se refere, implicitamen te ou não, para impor esse valor. Mas esse sis tema normativo nada tem de um "estado de coisas" sobre o qual poderiam ser emitidos juízos empíricos; trata-se, pelo contrário, de uma construção simbólica que se apoia na capacidade de realizar um julgamento moral, na capacidade, 178
por exemplo, de distinguir entre o jus to e o i11justo, entre o bem e o mal, etc. Pode-se supor, portanto, que, ao agir, o professor se baseia em vé'i rios tipos de juizos práticos para estruturar e orientar a sua atividade profissiona l. Por exemplo, ele se baseia com frequência em valores morais ou em normas sociais para tomar uma decisão. Aliás, uma grande parte das prfiticas disciplinares do professor inclui juízos normativos sob re as diferenças entre o que é permitido e o que é proibido. Para atingir os firls pedagógicos, e le se baseia também em juízos d~correntes de tradições escolares, pedagógicas e profJsstonats assimiladas e interiorizadas por ele. Por fim, ele se baseia em sua "experiência vivida" enquan to fonte viva de sentido a partir da qual o passado U1e permite esclarecer o presente e antecipar o futu ro. Valores, nor mas, tradições e experiência vivida são elementos e critérios a partir dos quais o professor emite juízos profissionais. De acordo com esse ponto de vista, o saber do professor no trabalho parece ser fundamentalmente caracterizado pelo "polimorfismo do raciocínio" (GEORGE, 1997), isto é, pela utilização de raciocínios, de conhecimentos e de procedim entos variados decorrentes dos tipos de ação nos quais o ator está concretamente empenhado juntamente com os outros, no caso, os alunos. Essencialmente, esse polimorfismo do raciocínio traduz o fato de que, no decorrer da ação, os saberes do professor são, ao m esmo tempo, construidos e utilizados em função de diferentes tipos de raciocínio (indução, dedução, abdução, analogia, etc.) que expressam a maleabilidade c a flexibilidade da atividade docente diante de fenômenos (normas, regras, afetos, comportamentos, objetivos, papéis sociais, etc.) que não podem ser reduzidos a uma racionalidade única, como por exemplo a da ciência empírica o u a da lógica binária. Por conseguinte, os saberes do p rofessor não são mensuráveis entre si. Agir conforme as normas, agir conforme os fatos, agir conforme os afetos, agir conforme os papéis, saber argumentar, etc., são tipos de ação que exigem dos 179
professores competências que não são idênticas e mensuráveis. Os vários saberes mobilizados na prática educativa não possuem unidade epistem ológica, no sentido de que não se pode, por exemplo, derivar uma norm a de um fa to, passar do prescritivo ao descritivo, justificar uma tradição a través de arg umen tos racionais, etc. Esse pluralis mo e essa ausência de uma epistemologia tornam problemáticas, e até mitológicas, todas as p esquisas sobre o professor ou a professora ideal cuja formação poderia ser realizada graças a uma ciência o u a um saber único, como por exemplo uma pedagogia específica ou uma tecnologia da aprendizagem . 7) Mas, na falta de uma unidade epistemológica, defendo, com o quinta e última ideia, que o "saber-ensinar" p ossui uma especificidade prá tica, que deve ser buscada naquilo que se pode chamar de cultura profissional dos professores e professoras. Essa cultura teria um triplo fu ndamento ligado às condições da prá tica do magis tério. Ela repousaria, em primeiro lugar, na capacidade que chamam os de discernimento, isto é, na capacidade de julgar em situações de ação contingentes, com base nos sistemas de referência, de saberes ou de norm as incomens un'íveis entre si e en b·e os quais podem surgir tensões e contradições. Se não sou capaz de estabelecer a diferença entre uma norma, um fato, um afeto, um papel social, wna opinião, uma emoção, etc., sou u m perigo público numa sala de aula, pois sou incapaz de compreender todas as sutilezas das interações com os alunos em situações de ação contingentes. Nessa perspectiva, uma das missões educativas das fac uldades de educação seria a de enriquecer essa capacidade de discernimento, fornecendo aos alunos uma sólida cultura geral que teria justamente como base a descoberta e o reconhecimen to do pluralismo dos saberes que caracteriza a cultura contemporânea e a cultura educativa atuaL Essa missão exige sem d úvida um a seleção mais apurada dos candidatos e candidatas que querem fazer seus estudos em Educação, de modo que pelo m enos se espalhe o rwnor de que nem todo aquele que quer pode ser professor.
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A cultura profissiona l estar ia baseada, em seguida, na prática da profissão concebida como p rocesso de aprendizagem profissional. Nos últimos dez anos, várias pesquisas realizadas no Quebec e noutros l ugares tendem a mostrar que a prática cotidiana do magistério constitui, para os professores e professoras, a base para a validação de s uas competências. O ensino ocorre num con texto constituído de múltiplas interações, as quais exercem sobre os professores condicionamentos d iversos. Tais condicionam entos não são problemas teóricos, como aq ueles com os quais o cientista se depara, nem problemas técnicos, como aqueles encontrados pelo tecnólogo ou pelo técnico. Para o professor, esses condicionam entos s urgem ligad os a situações concretas que não são definidas de uma vez por todas e que exigem uma certa parcela de improvisação e de habilidade pessoal, assim como a capacidade de enfrentar situações mais ou menos transitó rias e variáveis. Ora, esta capacidade de enfrentar situações é formadora: só ela permite que o professor desenvolva certos habitus (is to é, certas disposições adquiridas na e pela prática real) que lhe darão a possibilidade de enfrentar os cond icionam entos e os imponderáveis d a profissão. Os habitus p odem se transform ar num estilo de ensino, em " truques do ram o" o u mesmo em b·aços da "personalidade profission al": eles se expressam, então, através de wn saber-ser e de wn saber-fazer pessoais e profissionais validados pelo trabalho cotidiano. Nesse sentido, a prática é como um processo de aprendizagem através do qual os professores e professoras retradu zem sua formação anterior e a adaptam à profissão, eliminando o que lhes parece inutilmente abstrato ou sem relação com a r ealidade vivida e conservando o que pode servir-lhes, de uma maneira ou de o utra, para resolver os problem as da prá tica educativa. Para as faculdades de educação, o reconhecimen to da prática da profissão como processo de aprendizagem profissional deveria incluir o d esen volvimento de uma parceria com os professores, de modo que estes tomem parte, diretamente, na formação de professor es.
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Finalmente, essa cultura profissional selia baseada nwna ética profissional do ofício de professor. Tentei mostrar que a prática educativa mobiliza diversos saberes de ação e se refere a diversos saberes. Mas esse pluralismo da ação e do saber pode e deve ser subordinado a finalidades que ultrapassem, em termos de dignidade, os imperativos da prática, porque dizem respeito a seres humanos, crianças, adolescentes e jovens em formação. Tais finalidades supõem que a prática educativa tenha sentido não somente para aqueles e aquelas que a fazem, mas também para os alunos: uma ética da profissão não é somente uma ética do trabalho bem feito, é uma ética d o sentido da educação com o responsabilidade diante do outro. A educação é uma arte, uma técnica, uma in teração e muitas outras coisas, mas é também a atividnde pela qual prometemos às crianças e aos jovens um mtmdo sensato no qual devem ocupar um espaço que seja significativo para si mesmos. Ora, essa promessa não pode ser o resultado final de un1 processo de produção: não se produz sentido como se produzem bens de consumo o u instrwnentos de destruição. Por isso, essa promessa de sentido deve ser cumprida constantemente e mantida a cada dia no confron to com o o utro. Na educação, o objetivo último dos professores é forma r pessoas que não precisem mais de professores porque serão capazes de dar sentido à sua própria vida e à s ua própria ação. Será que esse objetivo ainda pode ser realizado hoje, n os limites de nossa educação e de nossa cultura? Deixamos a questão em aberto.
I tl
182
5 O_ profe~sor
enquanto "ator racional"
Que racion alidade, que saber, que juízo?*
\ ESTE capítulo propõe um enfoque heurístico e crítico cujo objetivo é fornecer pistas para responder à seguinte pergunta: o que se deve entender p or "saber" quando essa noção é empregada, como ocorre hoje num grande número de pesquisas, em expressões como "o saber dos professores", "os saberes dos professores", "o saber ensinar" e "o saber docente"? Esta pergunta diz respeito a uma rea lidade muito complexa e evidencia uma noção central da cultura intelectual da modernidade. Na verdade, o que é o "saber"? O que é um "saber"? Perguntas como esta suscitaram e ainda suscitam uma infinidade de respostas apresentadas por autores de muita sabedoria, mas frequentemente em desacordo, cujas obras abarrotam as prateleiras de todas as bibliotecas do mundo. Convém, portanto, não alimentar tantas ilusões quanto à possibilidade de se chegar a formular uma respos-
' Este c.1pítulo é uma versão modificada (principalmente a última parte) de um texto publicado inicialmente em francês e traduzido logo após em português: TARDIF, M. & GAUTHlER, C. (2001). O professor enquanto "ator raciona l". Ln: PERRENOUD, P. et ai. (orgs.). Fonnando Professores Profissionais. S.io Paulo: Artmed Editora, p . 177-202.
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ta que possa satisfazer a todo o mundo, embora se deva ter em mente que se trata de um empreendimento ~1ão somente útil, mas necessário, pois é assim que a pesqUisa progr1de, ou seja, propondo respostas para certos problemas e ten~~ do validá-los por diversos meios (argumentação, expenencia, obser vação, etc.). De maneira esquemática, podemos identificar dois grupos de problemas que se encontram interligados e que afetam atualmente a pesquisa sobre o saber dos professores. Um primeiro grup o decorre da existência d e vá rias correntes alternativas de pesquisa. De fa to, constata-se que a questão do saber dos p rofessores constitui, atu alm~nte, a p reocupação central de várias correntes de pesqu:sa, as quais se proclamam partidárias de diversa~ concepçoes do saber e do ensino. Por exemplo, Shulman (1 986), num artlo-o sú1tese sobre essa questão, identifica pelo menos cinco o • . paradigmas de pesquisa. Paquay (1994) propos uma hpologia que engloba seis concepções do prof?~sor, ca~a uma das quais relacionadas com saberes especJf1cos. Nos mesmos já propusemos urna tipologia com cinco tipos de saber (TAR DIF, LESSARD & LAHAYE, 1991). Em s uma, de alguns anos para cá, tem havido uma profu são de livros e _d e trabalhos sobre essa questão do saber dos professores, alem de uma multiplicação incessante de tipologias e categorias (RA YMOND, 1993). Essa situação exige, portanto, uma reflexão crítica sobre os pressupostos respectivos das correntes de pesquisa em questão, a fim de colocar em evidência suas convergências e divergências.
almente de "saberes"? Não seriam, antes, crenças, certezas sem fundamentos, hnbit11s, no sentido de Bourdieu, ou esquemas de ação e de pensamento interiorizad os ~u:a~te a socialização profissional e até no transcorrer da h1ston a escolar ou familiar dos professores (RAYMOND, 1993)? Se se trata realmente de "saberes", como chegar até eles? Bastaria interrogar os professores? Nesse caso, o que se deve considerar como "saber": suas representações mentais, suas opiniões, suas percepções, suas razões de agir ou outros elementos de seu discurso? Seria preferível observá-los? Isso seria suficiente? O que se deve observar, exatamente? Dever-se-ia fazer a distinção enh·e saberes explícitos e implícitos, entre seus saberes durante, antes e após a ação? Deve-se supor que eles sabem mais do que dizem, que seu "saber agir" ultrapassa seu "saber pensar", em. suma, que seus saberes excedem sua consciência ou sua razão? Mas, nesse caso, o que nos autoriza a chamar tal excesso de "saber"? Desde quando chamamos de "saber" alguma coisa que fazemos sem precisar pensar ou mesmo sem pensar? Finalmente, por que damos tanta importân cia a essa noção de saber? Trata-se de uma moda, como tantas que existem em ciências sociais e nas ciênéias da educação? Não seria preferível e mais honesto fal ar simplesmente de" cultura dos professores", de "habilidades" ou então de "representações cotidianas" ou "concepções espontâneas", como fazem os psicossociólogos? Não temos respostas prontas para essas perguntas, mas mesmo assim elas merecem ser feitas.
Um segundo grupo de problemas, mais graves, a nosso ver, decorre da noçã.o central utilizada por todas essas correntes de pesquisa: o saber dos professores. O mínimo que se pode dizer é que essa noção de saber não é clara, ?inda que quase todo o mundo a utilize sem acanhamento, mclusive nós. O que entendemos exa tamente por "saber"? Os profissionais do ensino desenvolvem ;(ou p roduzem real: mente "saberes" oriundos de s ua prahca? Se a resposta e positiva, por que, quando, como, de que forma? Trata-sere-
Diante dessa imprecisão e dessa equivocidade que caracterizam a noção de "saber", convém, como s ugere Raymond (1993: 197-198), "reconhecer que não sabemos quase nada a respeito d a cons trução dos saberes docentes do p onto de vista dos p róprios professores. Precisamos de ferramentas conceituais e metodológicas para guiar nossos esforços de compreensão do que são as interações de di versas fontes na cabeça e nas ações dos educadores". Seguindo essa sugestão, vamos propor, nas páginas que seguem, ~1gumas ferramentas conceituais e metodológicas com o fim de precisar e restringir o uso e o sentido da noção de saber
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no âmbito da pesquisa sobre o "saber docente". Depois de relembrar brevemente certas concepções do saber, sugeriremos uma pista de trabalho, associando o saber a exigências de racionalida de. A p artir dat procuraremos ressaltar a dim ensão "argumentativa" e social do saber dos professores, propondo que se considere esse saber como a expressão de uma razão prática, a qual per tence m uito mais ao campo da argum entação e do julgamento do que ao ca mpo da cognição e da inform ação. 1 . Jogos de poder e jogos do sa ber na pesquisa
Em virtude de vários de seus aspectos e dos inúmeros problem as q ue suscitam, as interrogações a tuais relativas aos saberes profissionais, às p rofissões, ao ens il1o, à perícia, às com petên cias, etc., torn aram-se, hoje, de um certo modo, "m eta-questões" e "trans-questões". Trata-se, de fa to, de interrogações primeiras, principiais ("m eta"), das quais inúmeras outras questões e decisões importantes decorrem ou dependem. Essas questões ultrapassam também, e muito, a esfera do ensino e da formação de professores; elas se dirigem agora à maioria dos atores das diversas esferas da prática social, assim como às concepções da formação q ue os preparam para ahtar nessas esferas. Ao mesmo tempo, elas alimentam e atravessam ("trans") várias problemáticas e várias disciplinas, várias teorias e campos discursivos, vários projetos políticos, ideológicos, socioeducativos e pedagógicos. Por exemplo, pensemos na questão da perícia e do perito que "atravessa" atualmente a psicologia e a sociologia cognitiva, a teori a dos sistemas especialistas, a inteligência artificial, a etnometodologia, a sociologia crítica da perícia, a comun icação, a linguística, a teoria da ação, etc. Além d isso, cada um desses campos do conhecimento é heterogêneo, p lural, in stável, colocando em confron to concepções, descrições e definições da p erícia e do p erito baseadas em diferentes postulados e em diversos sistemas de notação e de descrição da realidade. 1 86
Por outro indo, haveria realmente necessidade de lembrar aqui todas as dimensões, sejam elas ju rídicas, éticas, sociais ou eminentemente políticas, ligadas à questão da perícia e dos peritos de toda espécie? Qual é o preço- huma no, econômico, simbólico - que nossas sociedades estão prontas a pagar para con tinuar a acreditar em seus peritos? Não há dúvida de que essa q ues tão da perícia é, também, um.a questão de poder, ou então uma questão sociopolítica. Pouco importa o que pensam certos psicólogos e certos "managers" da aprend izagem, a perícia não se resume apenas a uma simples questão de competências cognitivas e praxiológicas; ela é também, e continuará sendo, um constructo social inserido em relações de poder com os leigos, os outros peritos, os "dirigentes'', os financiadores, os clientes. Por isso, acreditamos q ue as pesquisas que, sem maiores questionamentos, associam o perilo a um indivíduo que possui atributos empíricos (cognitivos ou outros) cujo repertório e natureza elas se propõem a determinar, seguem uma pista passavelmente problemática, para não dizer redutora. Dizer que alguém é um "perito" é enh·ar numa lógica predicativa baseada não em predicados naturais, mas numa gramática social cujas categotias (eficiência, sucesso, rapidez na resolução de problemas, ra cionalidade, etc.) se referem ajogos de linguagem normativos e, por conseguinte, sociais. Da mes ma forma, dizer que alguém sabe ensinar significa menos dizer que ele possui "em si mes1no", en1 seu cérebro, em sua memória, em seus "conhecimentos anteriores", um saber, no sentido trad icional de uma teoria o u de uma represen tação que implica um certo grau de certeza, d o que dizer que sua ação pedagógica é conforme a certas normas e a certas expectativas, as q uais podem ser fixadas por várias instâncias (a instituição, os pares, os alunos, os pais) ou, na maioria das vezes, por todas essas instâncias ao mesmo tempo. Isso provoca invariavelmente tensões e u m conflito de interpretações da definição normativa do "saber ensinar" . Oco rre o mesmo com outras interrogações sobre a profissionalização, os saberes, as com petências, etc.
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Ora, temos a im pressão de que as ciências da educação acolhem essas interrogações muitas vezes como se fossem naturais, sem se preocup ar em desmontá-las, em analisá-las, enfim, em medir a insinuante porção de arbitrariedade, de não di to e de "pronto p ara pensar". Querem os realmente que nossos filhos sejam educados por peritos, por profissionais? Precisamos de peritos, de profissionais para formar seres humanos? A perícia, o profissionalism o são possíveis ou m esmo desejáveis num espaço de ação como a educação, continuamente tomado e estruturado por interesses, normas e fins (LABARH.EE, 1992)? O que está em jogo nessa passagem ou nessa derrapagem d o m estre para o perito, do oficio para a profissão? Que m odelos de dom ínio, isto é, de saber e de poder estão presen tes nesse deslocam.ento? Como Nietzsche diria, sem dúvida: o que é q ue em nós, indivíduos e coletividades, quer, deseja, reivindica peritos, profissionais, cientistas?
Necessidade de um enfoque crítico Essas questões poderiam surpreender talvez alg umas pessoas, que as achariam, sem dúvida, demasiado ou inu tilmente críticas. Com efeito, que motivo, gue interesse, que atualidade elas podem invocar em seu fa vor? As pesquisas contemporâneas não deno tam, à sua maneira, particularmente na América do Norte, um progresso positivo em relação aos trabalhos das décadas anteriores, largam ente dominadas por enfoques instrumentais e tecnológicos do ensino ou por concepções psicológicas, ou mesmo terapêuticas, da ação do professor? Por outro lado, o interesse atual poresses temas de pesquisa não seria o sinal de uma evolução positiva m arcada pelo reconhecimento da originalidade e da esp ecificidade dos saberes dos práticos em relação aos conhecimentos formais dos pesquisadores universitários? Enfim, e de maneira mais ampla, toda a questão da profissionalização do ensin o não é também o indício positivo de que as coisas começam a "h·emer nas bases", que o ensino terá em breve, como alguns esperam- o seu verdadeiro valor reconhecido, isto é, como uma a tividade de profissional, de 1 1111
perito, de prático reflexivo e competen te? Digamos que aderimos à maioria dessas "positividades", mas isso não nos impede de acolhê-las sem entusiasmo, ou seja, com. circunspecção e um pouco de desconfiança. Julgamos que hoje seja necessário provocar um deslocamento do olhar em relação a esses objetos de conhecimen to, que se tornaram agora "hipervisíveis" no espaço noético das ciências da educação e que constituem, ao mesmo tempo, cam.pos de ação den tro dos qu ais estão se desenvolvendo, atualmente, quase de forma saturada, diversos projetos mais ou menos concorrentes de transformação e de melhoria das p ráticas profissionais e das práticas de formação. O ra, dian te dessa hipervisibilidade e dessa saturação, acreditamos q ue um exercício crítico com o este pode mostrar-se útil, especialmente no que se refere a uma pedagogia do conhecimento: ele pode nos ensinar a olhar esses objetos de conhecimento e esses campos de ação de outro modo, sob um ângulo diferente, de través, obliquamente, numa outra p ersp ectiva ou sob uma outra luz, com o risco de descobrir alguns aspectos mais obscw-os, cheios de sombra e talvez invisíveis com relação à racionalidade cognitiva, a qual só reconhece a existência das'coisas e dos seres humanos através da mediação iluminadora do saber. De m anei ra m ais global, ac reditam os que todo constructo teórico referente a práticas deve ser questionado n um dado momento, de maneira crítica, quanto à natureza das idenlidades, das abstrações por ele pressupostas ou elaboradas para fixar os limi.tes de seu objeto, isto é, suas ações, seus atores e seus saberes. Assim, por exem plo, quem são o l!omo oconomicus, da teoria econômica, com seus atributos abstratos (pensamento calculador, necessidades naturais, interesse, busca do custo mínimo) e o homo fnber, o homem tecnológico, com seu saber consisten te, seu domi nio dos m eios, seu agir tendo em vista um fim, seu poder de manipulação dos seres técnicos, senão idealidades, abstrações portadoras de efeitos práticos às vezes exagerados? Por o utro lado, as noções e os p róprios problemas discutidos aqui (saber, perícia,
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competência, profissional, etc.) designam justamente, quer queiramos quer não, modelos de saber e de poder. De fato, que são o profissional, o cientista, o perito, o ator competente, o prático reflexivo senão modelos, constructos simbólicos e sociais através dos qua is nossas sociedades designam hoje atores e atividades que deveriam sup ostamente representar o mais alto grau do domínio prático e discursivo? Para ter uma ideia desse domínio, de seu alcance e de sua eficácia, citemos um texto de Perrenoud q ue condensa de maneira exernplar os traços ideais do ator, tal como é visto pela pesquisa atual': "Um profissional deveria ser capaz de analisar situações comp lexas referentes a vátias formas de interpretação; de escolher, de maneira rápida e refletida, estratégias adaptadas aos objetivos e às exigências éticas; de extrair, de um vasto r epertório de saberes, técnicas c ferramentas, aqueles que são mais adequados e estruturá-los em forma de dispositivo; de adaptar. rapidamente seus projetos por ocasião das interações forma tivas; enfim, de a11alisar de maneira crítica suas ações e os resultados delas e, por meio dessa avaliação, de aprender ao longo de toda a sua carreira." Perrenoud sublinha, apesar de tudo, que "esse modelo bastante racionalista não chega a explicar o funcionamento real dos professores-peritos em interação com grupos de aprendizes". Mas, como pensar essa distância que separa o modelo do ator real ("o professor -perito", como escreve Perrenoud)? Trata-se de w11a distância, digamos, cognitiva, que se pode eliminar através de um s uplemento de pesquisas e de formação, de um suplem en to de "competências profissionais", de conhecin1entos e de perícia, ou trata-se de uma distância ontológica e, por conseguinte, refratária a toda tentativa de redução do ator ao modelo do ator? Nesse caso, que d istorção, que reviravolta ou mesmo que culpa seria preciso provocar no professor para poder continuar a pensá-lo assim conforme o modelo ideal do a tor? ·1. Este trecho foi extraído do texto de apresentação do Simpósio ln temacional da
Rede de Educação e Formoção organizado na Bélgica em setembro de 1996 e do qual participei.
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Dois excessos da pesquisa De maneira mais concreta, dois excessos parecem caracterizar e ameaçar as pesquisas (inclusive as nossas) sobre o saber docente, atualmente: a) "o professor é um cien tista''; e b) "tudo é saber".
O professor é um cientista O primeiro desses excessos reside na ideia de que o p rofessor se define essenci.a lmente como LUn ator dotado de wna racionalidade baseada exclusivamente na cognição, ou seja, no conhecimento. Nas ciências da ed ucação, várias concepções atuais do saber docente, da atividade docen te e da formação de professores se apoiam num modelo do ator ao qual elas atribuem uma racionalidõde definida como um repertório de competências e de desempenh os pensados quõse que exclusivamente em termos de saberes, de conhecimentos. A exemplo da antiga ideologia behaviorista, esse modelo dá origem a uma visão científica e tecnológica do ensino. Na verdade, o a tor-modelo ou o professor ideal parece ser largamente, senão estritamente concebid o como um "sujeito epistêmico", um sujeito científico ou definido essencialmente pelo seu caráter de m ediador do saber, s ujeito esse no qual às vezes se enxerta uma sensibilidade (as famosas "m.otivações" e os interesses), assim como valores e atitudes, o que dá um a aparência realista ao modelo. As pesquisas atuais estão poderosamente centradas num modelo do ator visto como um sujeito epistêmico cujo pensamento e cujo fazer são regidos pelo saber, concebido, com frequência, em função de uma teoria informacional do conhecimento e de uma prática instrumen talizada pensada de aco rdo com uma sintaxe técnica e estratégica da ação. Ora, esse modelo do ator corresp ondc aos professores? De forma mais radical, o que entra em jogo na enorme quantidade de pesquisas que se propõem a compreender a mestria do mestre, sua ação e seu discurso, a par tir da p ersp ectiva da cognição?
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Tudo é saber O segundo excesso parece caracterizar aquilo que se pode chamar de abordagens etnográficas, quando levadas ao extremo. Ao passo que um certo cognitivismo promove lUTl m odelo depurado, quase computacional e estratégico do ator, o excesso etnográfico consiste, a nosso ver, em h·ansformar tudo em saber, is to é, em tratar toda prod ução simbólica, todo constructo d iscursivo, toda prática orien tada e até toda forma humana de vida como se procedessem dosaber. Nessa perspecti va, tudo é saber: os hc:1 bitos, as emoções, a intuição, as maneiras de fazer (o famoso saber-fazer), as maneiras de ser (o igualmente famoso saber-ser), as opiniões, a p ersonalidade das pessoas, as ideologias, o senso comum, todas as regr as e normas, qualquer repr esentação cotidiana. Mas, então, de que adianta falar de saber se tudo é saber? Ao torna r-se uma referência obrigatória para uma multiplicidade de jogos de linguageii1, essa noção perde todo o seu sentido e todo o valor discrim inante. Em educação, esse excesso parece estar no cerne de várias p esquisas sobre o saber dos professores, em particular o saber experiencial e/ ou o saber prático. O problema não consiste, a nosso ver, em afirmar a exis tência de saberes informais, cotidianos, experienciais, tácitos, etc., mas em designar esses diferentes saberes por meio de uma noção imprecisa, inde finida. Nas ciências naturais ou nas ciências da educação, na pesquisa qua litativa ou quantitativa, acreditam.os que os im perati vos de base sejam os mesmos para todos os pesquisadores, ou seja, propor n oções relativamente claras e definidas de modo a p ossibilitar o estabelecimento de consensos e o confronto dos fatos. Como dizíamos anteriormente, cons tata-se que as pesquisas sobre os temas aqui abordados resultam hoje numa verdadeira profusão de concepções do sa ber e do ator, de suas competências e de su a perícia. A nosso ver, é im possível fazer maiores progressos nessas pesquisas sem pelo m enos tentar produzir uma noção que seja bastante precisa e bastante operatória ao mesmo tempo, para suportar as in192
vestigações empíricas. Esse é o sentido da nossa reflexã? neste texto que propõe uma espécie de refocalização conceitual global da concepção de saber. Contudo, não se pode ocultar que esse empreendimento é cheio de armadilhas! Na verdade, ning uém é capaz de produzir uma definição do saber que satisfaça todo o m undo, pois ninguém sabe cientificamente, nem com toda a certeza., o que é um saber. Devemos, então, contentar-nos com uma definição de uso restr ito, decorrente de certas escolhas e de certos interesses, principalmente daqueles ligados à nossa pesquisa. O importante, aqui, é estarmos conscientes dessas escolhas e desses interesses e compreendermos seu caráter relativo, discutível e, por conseguinte, revisável. 2. Concepções do saber: a ideia de exigências de
racionalidade e seu interesse pa ra a pesquisa Acreditamos que seja possível propor uma definição do saber que, embora não sendo aceita lmanimemente por todos, possua uma forte carga de validade e uma quase universalidade, pelo menos em nossa h-::1dição intelectual ocidental. Nessa perspectiva, acreditamos que não vale a pena inventar um novo conceito de saber para nosso uso pessoal (seria como reinventar a roda); julgamos que seja preferível apoiar-se nas concepções existentes. Relembremos, portanto, essas concepções, mas de maneira bastante breve e sem entrar numa longa genealogia histórica ou numa discussão epistemológica sistemática. No âmbito da cultura da modemidade, o saber foi definido de b·ês maneiras, em função de três "lugares" ou topos: a subjetividade, o julgamento e a arg umentação.
Três concepções do saber a) O sujei to, a representação Pode-se chamar de saber o tipo particular de certeza subjetiva produzida pelo pensamento racional (Descartes). 193
Essa con cep ção d o saber o opõe aos ou tr os ti pos d e certezas subjetiv as basead as, p or exemplo, na fé, n as cren ças, n a convicção, no p reconceito. Ela o opõe também à dúvid a, ao erro, à imaginação, e tc. Segundo os d efen sores d essa con cepção, a certeza subjetiva esp ecífica ao saber pode assumir d uas formas fundamentais: a) A forma d e uma intuição intelectual, a través da qual uma ver dad e é im ed ia ta mente iden tificada e captad a. Pode ser o caso, por exemp lo, de certas ve rd ades ma temáticas ou lógicas (o tod o é m aior que a p arte). b) A forma de u ma represen tação intelectual resu ltante de u ma cadeia d e raciocínios o u de uma indução. A in tuição é imedia ta, ao passo que a rep resen tação é med ia ta: ela resulta d e um p rocesso d e raciocínio e v isa uma ou h·a coisa, que é o rep resentado. É a subje tiv idade, portanto, que é considerada aqu i como o "lugar" do sab er. Saber alguma coisa é possuir um a certeza subje tiva racional. Essa concep ção do sab er ligada à subje tivid ad e é o fwl dam en to da ma ioria d as p esqu isas n a área da cognição. Historicamente, essa corrente de p esquisa está ligada, n a América do N orte, ao neocartesianismo de Ch omsky, e, n a Eu ropa, ao neokantismo de Piaget. Em ambos os casos, o saber é abordado em termos d e representações mentais que se referem seja à gên ese (Piaget), seja à estrutura inata (Ch omsky) do pensamento, com seu eq u ipamento próprio, seus mecanismos e se us procedim en tos, suas regras e seus esqu em as. De m.odo global, as ciên cias cognitivas se interessam pelo es tudo d as regras que regem os p rocessos cogn itiv os (memória, apren d izagem , compreensão, lingu agem , p ercepção, e tc.) associados a fenôm en os rep.resentacion a is, is to é, a símb olos ligados p or uma sintaxe e possu id ores de uma fun ção referencial ou intencional intrínseca. N esse sentido, o saber cognitivo é um saber su bjetivo: é uma construção oriw•da da atividade do sujeito e ora concebida segundo um modelo de p rocessamento d a infon nação, ora segtmdo um modelo b iológico d e equilibração. Enfim, o saber cognitivo id eal, tan to e m P iaget qu an to n as n e u rociên cias american as, é con cebido estritamen te de acordo com o modelo das ciê ncias 194
empíricas nat urais e d a lógica matemática . N essa concep ção d o saber, o ideal da racionalidade é o pensamento lógico-matemá tico, e o sabe r ideal é a matemá tica.
b) O ju ízo, o discurso assertórico Pode-se chamar d e sa ber o juízo verdadeiro, isto é, o discu rso que afirma com .razão algu ma coisa a resp eito d e algu ma coisa. O juízo é, p ortanto, por assim dizer, o "lugar" do sab er. O saber é, p or conseguinte, como n a p rimeira con cepção, m uito mais o resultad o d e uma a tividade intelectual (o ato de julgar, o julgamento) d o que uma intu ição ou uma r epresentação s ubje tiv a. De maneira m ais concre ta, o juízo refere-se à dimensão assertórica ou proposicional d o saber ta l como se desenvolveu no Ocide n te (H ABERMAS, 1987). De fa to, cham amos tra d icionalmente de saberes os d iscursos que a firmam algo d e verdadeiro a resp eito da n a tu reza d a realid ade ou d e tal fen ômen o p articular. Por exemp lo, se dizemos que o quad ro é n egro e o q uadro é efetivamente negro, então esse juízo é verdadeiro. Nesse exemp lo, o juízo tem a forma lógica d e: Apertence a X, A é um a trib u to d e X. Esse ju ízo é verdadeiro se e somen te se a essa fo rma lógica corresp onde, na realidade, u ma relação análoga à forma lógica e ntre o quadro e a co r p reta. Diferentemente d a p rimeira concep ção, o saber reside, p ortanto, n o d iscurso, num certo tip o d e discurso (a asser ção), m uito mais d o que no espírito su bjetivo. Observemos q ue, nessa con cepção, só os d iscursos sob re fatos p odem ser defin idos como sab er no sen tido estrito: o saber se limita ao juízo de realidade e exclui os juízos d e v alor, a vivência, etc. Essa concep ção assertórica ou pr op osicional d o saber é tão an tiga q uanto o pensamento ocid ental, m as foi Kant, p rincipalmente, que a in troduziu n a cultura intelectual da mod ernidade. Ka nt dizia mais ou menos isto n a Crítica da razão pura: uma percepção ou u ma represen tação n ão é ve rdadeira n em falsa; só o juízo qu e emito sobre a coisa perce-
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bida ou representada pode ser dito verdadeiro ou falso. No século XX, foi o matemático Tarski (1956) quem a defendeu, reatualizando a velha teoria da verdade-correspond ência. Essa também é a concepção de Karl Popper (1972; 1978): o conhecimento objetivo consiste em emitir juízos hipotéticos e em tentar mosh·ar que são falsos. Entretanto, e essa restrição, como veremos, é extremamente importante no nosso caso, todos esses autores e muitos outros limitam o saber a juízos de realidade. Essa limitação significo que só os asserções referentes aos Jatos podem ser ditas verdadeiras 011 falsas. Noutras palavras, nem tod as as formas de juízo correspondem a saberes, a um "conhecimen to objetivo" (POPPER, 1972). Os juízos referentes, por exemplo, à vivência pessoal, a valores, a engaja mentos políticos, etc. estão excluídos da ord em positivista do saber. Eis por que o positivismo associa o saber completam ente à ciência empírica (KOLAKOWSKI, 1976).
c) O argumento, a discussão Essa terceira concepção coaduna-se diretamente com a nossa visão do saber docente, que é, a nosso ver, um saber que se desenvolve no espaço do outro e para o outro. Segundo essa concepção, pode-se chamar de saber a atividade discursiva que consiste em tentar validar, por meio de arg umentos e de op erações d iscu rsivas (lógicas, retóricas, di aléticas, empíricas, etc.) e linguísticas, uma proposição o u uma ação. A argumentação é, portanto, o "lugar " d o saber. Saber alguma coisa é não somente emitir um juízo verdad eiro a respeito de algo (um fato ou uma ação), mas também ser capaz de determinar por que razões esse juízo é verdadeiro. Ora, essa capacidade de arrazoar, isto é, de argumentar em favor de alguma coisa, remete à dimensão intersubjetiva do saber. Segundo essa concepção, o saber não se red uz a uma represen tação subjetiva nem a asserções teóricas de base empírica, ele implica sempre o ou tro, isto é, uma dimensão social fundamental, na medida em que o saber é justamente uma construção coletiva, de natureza linguística, oriunda 196
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de discussões, de trocas discursivas entre seres socia is. É preciso ver essa ideia de argumentação no sentido lato, qu e excede a lógica proposicional. Os partidários da teoria da argumentação (ou da comunicação) se esforçam principalmente para elaborar uma ideia de saber que ultrapasse o âmbito das ciências empíricas e, portan to, a concepção positivis ta do juízo de realidade. A ideia deles é que vários tipos de juízo comportam exigências de racionalidade e de verd ad e sem contudo pertencerem à classe dos juízos de realidade (H ABERMAS, 1987). Noutras palavras, o saber não se resh·inge ao con hecimento empírico tal como é elaborado pelas ciências naturais. Ele engloba potenci<'llmente diferentes tipos de discurso (principalmente norm ativos: valores, prescrições, etc.) cuja validade o locutor, no âmbito de uma discussão, procura estabelecer, fornecendo razões discutíveis e criticáveis. Os cri térios de validade, portanto, não se limitam mais à adequação das asserções a fatos, mas passam antes pela ideia de acordos comunicacionais dentro de urna comunidade de discussão. Desse modo, o que chamamos de juízos de valor podem resultar de consensos racionais. Por exemplo, pode-se debater, através. de razões, de argumentos, se um comportamento é ou não conforme um va lo r que ele d everia realizar ou seguir. Esse valor não se refere a um fato, mas a uma norma partilhada por uma comwtidade e em relação à qual existe um entendim ento mínimo. Na argumentação, os interlocutores procuram ultrapassar os pontos de vista iniciais de sua subjetividade, tentando demonstrar a validade intersubjetiva de suas palavras ou ações. Essa demonstração é feita concretamente por meio d e argumentos e de conh·a-argumentos. A abordagem "argumentativa", de comunicação
2. Por exemplo, a etnometodologia e os trabalhos mais recentes de B. Latour (1985) mostraram que as proposições empíricas das Ciências Naturais se _inserem sempre numa ordem social de discussão e de negociação entre parceiros. E importante sublinhar que, no tnngente às Ciências Cognitivas, a Escola de Genebra (Dasen, Mugny, etc.) e a psicossociologia de Moscovici representam tentativas de sair d o subjetivismo piagetiano, inserindo o processo de construção do saber no contexto das interações sociais.
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ou discursiva d o saber é defendida -mas de maneiras bem diferentes - por pensadores como Gadamer, Perelman, Ricoeur, Habennas, Rorty e Lyotard, entre outros. É a ela que o nosso próprio enfoque está ligado.
Saber e exigên cias de racionalidade Ao relembrar essas três concepções, o nosso objetivo não é agir enquanto epistemólogo, filósofo ou his toriador das ideias, mas, de maneira ma is humilde, identificar e precisar certos traços semânticos f undamentais ligados à noção de saber tal como a empregamos correntemente enquanto herdeiros de uma tradição que se manifesta através de linguagens e de usos, na esperança de poder usar alguns desses traços para definir, de maneira mínima, o próprio objeto de nossas pesquisas: o saber dos professores. Ora, embora haja diferenças impo rtantes entre elas, essas três con cepções poss uem a lgo em comum: elas associam sempre a natureza do saber a exigêúcias d e racionalidad e. Num dos casos, essas exigências têm como fundam ento o pensamento do s ujeito racional; no outro, elas têm como fundamento o ato de julgar; enfim, no último caso, se baseiam em argumentações, isto é, em racionalizações. Acreditamos que essa ideia de "exigências de racionalidade" fo rnece uma pista muito in teressante para as pesquisas sobre os saberes dos professores, pois ela permite restringir nosso campo de estudo aos discursos e às ações cujos locutores, os atores, são capazes de apresentar wna ordem qualquer de razões para justificá-los. Saber alguma coisa ou fazer alg uma coisa de maneira racional é ser capaz de responder às pergw1tas "por q ue você diz isso?" e "por que você faz isso?", oferecendo razões, motivos, jus tificativas suscep tíveis de servir de va lidação para o discurso ou para a ação. Nessa perspectiva, não basta fazer bem alguma coisa para falar de "saber-fazer": é preciso que o ator saiba por que faz as coisas de uma certa m aneira. Nessa mesma p erspectiva, não basta dizer bem alguma coisa para saber do que se fala. Propomos, então, q ue a noção de saber seja associada, de maneira global mas sistemática, a essa ideia de exigên-
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cias de racionalidade. Decorre daí um certo número de consequências intelectuais importantes para a pesquisa sobre os saberes dos professores: Doravante, chamaremos de "saber" unicamente os pensamen tos, as ideias, os juízos, os discursos, os argum.entos que obedeçam. a certas exigências de racionalidade. Eu falo o u ajo racionalmente quando sou capaz de justificar, por meio de razões, de declarações, de procedimentos, etc., o meu disc urso ou a minha ação diante de um outro ator que me questiona sobre a pertinência, o valor deles, etc. Essa "capacidade'' ou essa "competência" é verificada na argumentação, isto é, nu m d iscurso em que proponho razões para justificar m eus atos. Essas razões são d iscutíveis, criticáveis e revisáveis. Diremos que essas exigências são minimamente respeitadas q uando o locutor ou ator ao qual nos dirigimos é capaz de apresentar razões, qualquer que seja a natureza ou o conteúdo de ver dade delas, para justificar seus pensamentos, seus juízos, seus discursos, seus atos. Nesse sentido, essa idéia de exigência~ de racionalidade não é normativa: ela não determin
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pendem das razões dos atores e dos locutores, e do contexto no qual eles falam e agem. O meU1or método para ter acesso a essas exigências de racional idade presentes no locutor ou no ator é ques tioná-lo (ou questionar-se) sobre o porquê, isto é, sobre as causas, as ra zões, os motivos de seu discurso ou de sua ação. A noção de porquê engloba, por conseguin te, o conjunto dos a rgumen tos ou motivos que um ator pode apresentar para prestar contas de seu comportamento. esse sentido, ela engloba também o "como", na med ida em que os meios dos quais o ator se serve para atingir seus objetivos se baseiam também em motivos, escolhas, decisões, etc. De qualquer modo, essa ideia de exigências de racion<~Jidad e está relacionada com um "modelo intencional" do ator humano, ou seja, ela procede da ideia de que as pessoas agem não como máqu inas ou por pmo automatismo (sob o domínio das leis sociais ou psicológicas, por exemplo), mas em função de objetivos, de projetos, de finalidades, de meios, de deliberações, etc. Decorre daí, concretamen te, que uma das principais estratégias de pesquisa relacionada com essa visão do saber consis te em observar atores e/ ou falar com eles, mas fazendo-lhes perguntas sobre s uas razões de agir ou de d iscorrer, ou seja, no hmdo, sobre os saberes nos quais eles se baseiam pa ra ngir ou discorrer.
Racionalidade, saberes com uns e implícitos Essa última ideia é importante, pois ela afirma que o estudo das razões de agir ou de discorrer permite chegar aos saberes dos a tores. Procuremos apoiá-la. Quando discutimos sobre um assun to qualquer, alguém pode nos perguntar: "por que você diz isso?", "o que lhe permite afirmar o que está afirmando?" Acontece o mesmo com os nossos atos. De fa to, alguém pode nos perguntar: "por que você faz isso?", " tem certeza de que está procedendo da maneira certa?" Quando nos deparamos com tais perguntas, podemos tentar responder por meio de argw11entos visando a justifi-
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car ·as razões de nossas palavras ou de nossos atos. Nesse caso, ado tamos p recisamente uma atitude "argumentativa". É evidente que uma atitude assim, a qual implica uma participação ativa de nossas atividades linguísti~a: e intelectuais, incomoda e consome-nos bas tante: se hvessemos que justificar, todas as vezes, cada um dos nossos discurs~s, cada uma de nossas ideias, cada um dos nossos a tos, estanamos mortos antes de ter acabado! É por isso que a ideia de racionalidade se refere também a um saber em relação ao qual nos entendemos e que serve de base aos nossos argumen tos. Por exemplo, o matemático que quer demonstrar um teorema se apoia no saber e nos procedimentos matemá ticos já exis tentes. O físico, o biologista e o químico procedem da mesma maneira : eles progridem a partir de saberes e de regras já estabelecidos. Esses saberes e essas regras são pressupostos, ou seja, eles não constituem o. o~1eto OL~ o problema da discussão, mas o quad ro que possJbÜJta a dJscussão. Ocorre o mesmo com as ciências sociais e humanas, bem como com os nossos discursos e atos cotidianos: quando discutimos ou agimos com os outros, admitimos a exis tência de saberes comuns e im plícitos que pressupomos sem maiores discussões e que nos evitam ter que recomeçar sempre do nada. 3 São p recisamente esses saberes com; ms e implícitos que constituem o "episteme cotidiano". E claro que esses saberes podem ser questionados a qualqu~r momento. N~ ciência, essa é justamente a situação descn ta por Ku hn: ha mudança de parad igma quando a contestação se refere ao quadro da discussão, ou seja, aos saberes comuns da comunidade científica que serviam anteriormente de quadro
3. No ensino, as rotinas oriundas da experiência profissional parecem H~strar bem os sabe res implícitos dos professores: partindo de sua própri~1 expen enc1a e da repetição d as s ituações escolares, os professores de profissao elaboram soluções típicas, protótipos de ação a partir dos qu ~is eles in~enta':' e nnprov1sam (TOCHOI\:, 1993) no contexto da sala de aula, ao ~ IVO. As roll~assao, ~10 fundo, saberes-na-ação derivados do conhecimento expenenc1al da açao (tSto e, por c~ntato d ireto) e transformados em formas de agir que permitem ev1tar uma reflexao dem asiado prolongada.
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de referência para resolver as discussões "normais". Entretanto, nas ciências ou noutras áreas, é impossível conceber uma cons tatação que não se apoie em pressupostos, ou seja, num saber qualquer. Noutras palavras, é impossível duvidar de tudo (-como o fez Descartes) ou não saber de n ada (como Sócrates). Um saber é contestado e contestável a partir de outro saber. Se contestamos a racionalidade de um discurso ou de uma atividade é porque nos referimos a uma determinada ideia do que seja racional. Na vida diária, nossos discursos e nossos atos se apoiam, por conseguinte, em saberes qu e proporcionam um quadro de inteligibilidade e de sentido às coisas que empreendemos'. Se questionarmos o outro a respeito de suas próprias ações, pedindo-lhe que as explique, que nos diga o porquê de seu agir, ele será levado a explicitar, através das suas razões de agir, os saberes nos quais se baseia para agir assim. Nessa perspectiva, a ideia de exigências de racionalidade, tal como propomos aqui, não se relaciona com um ator hiper-racional cuja ação e cujo discurso resultariam de um conhecimento completo da situação; ao contrário, essas exigências parecem ser tributárias de uma racionalidade fortemente m arcada pelo saber social, saber (colocado em) comum e partilhado por uma comunidade de atores, saber prático que obedece a várias "lógicas da comuni cação" e está enraizado em razões, em motivos, em interpretações onde estão presentes vários tipos de jt.úzo.
4. É interessante mencionar que possuímos hoje uma teoria línguís tica consistente que trata dos contextos li_n guísticos nos quais estão presentes os saberes i1nplícitos. De fato, nos últimos anos, n umerosos estudos foram dedicados a essa questão na p ragmática, o nde foi elaborada uma teoria d a implicitaçõo, ou seja, propos ições implícitas que se ligam aos discursos explícitos e que permitem ancorar nossos discursos cotidionos em situações conhecid as pelos inte rlocuto res. Essa teo ria da ünplicitação c a prllgmática, de maneira mals ampla, afirn:wm~ sobretudo, que a linguagem cotidiana não pod e ser compreendida tmíca mcnte por meio das propriedndes forn1ais inerentes a um sisten1a se1niótico, como acredita va1n o es truturalismo e a linguística generativa de Chomsky. Ao contrário, a linguagem cotidiana es tá, d e um certo modo, sernpre "aberta" e "co nectada" a uma s ituação, a um aqui c agora a partir do qual os interlocu tores falam . Essa propriedade referencial da linguagent encontra-se, também, no cerne da e tnometodologia, con1 a noção d e indexicalidade.
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li1teresse dessa abordagem para o estudo do saber dos professores Mas qual é a pertinência de introduzir essa ideia de exigências de racionalidade para definir a noção de "saber dos professores"? De maneira mais ampla, qual é o interesse dessa abordagem para o nosso campo de estudos? Acreditamos que esse interesse seja múltiplo. Pensamos, de fato, que esse conceito de racionalidade não é somente uma construção teórica. Ele se refere também a uma "capacidade" essencial dos atores empenhados na ação, a saber a de elaborar razões, de dar motivos para justificar e orientar suas ações. Em suma, os próprios atores sociais são dotados de racionalidade, ou seja, da capacidade de agir, de falar e de pensar elaborando um a ordem derazão para orientar sua prática. Nesse sentido, ao falar, como estamos fazendo, de exigências de racionalidade, não fazemos mais do que nos referir a uma competência essencial dos atores sociais, cujas ações, em sua maioria, obedecem a certas exigências de racionalidade. Essa competência parece ser ainda mais forte e (er mais importância ainda no que diz respeito aos profissionais, cujas ações sociais são regidas em função de exigências de racionalidade que ocasionam, com frequência, formulações explícitas no âmbito de teorias cientificas ou formalizadas . Para os pesquisadores, a principal annad ilha metodológica consis te em abordar essa competência com uma ideia preconcebida, por exemplo, importando para o mundo social cotidiano exigências de racionalidade provenientes das próprias ciências ou da pesquisa universitária; é preciso, ao contrário, aceitar o fato de que a competência dos atores sociais procede de uma racionalidade instável, fluida, que não obedece necessariamente aos cânones d o pensamento lógico e científico. Em relação ao nosso objeto de estud o, significa que os professores não são cientistas, embora a maior parte do tempo eles se apóiem, para agir, em m otivos que obedecem a exigências de racionalidade. Voltar emos a falar disso mais adiante. 203
Com o dizia o fundador da etnometodologia, H . Garfinkel, os atores sociais não são idiotas culturais. Por pertencerem a um ambiente de vida social, eles são dotados de competências extremam ente diversificadas as quais se manifestam concretamente através de procedimentos e de regras de ação que eles utilizam para orientar-se nas d iversas situações sociais. Além disso, o uso desses procedimentos e regras não se fa z mecanicamente, mas exige dos atores sociais uma "reflexividade", isto é, a capacidade linguística de "mostrar" e de "retomar" os procedimentos e as regras da ação, de modificá-los e de adaptá-los às numerosas circunstâncias concretas das situações sociais. Essa ideia de racionalidade permite levar em conta os signi ficados e as razões que os atores atrib uem às suas ações enquanto elementos de análi se necessários, mas não sufi cientes: ela permite, assim, fazer uma ponte, uma passarela, estabelecer uma articulação entre o discurso objetivante relativo aos fenômenos sociais e os discursos elaborados pelos atores sociais envolvidos na ação, sem a qual nem haveria fenômenos sociais.' Por esse motivo, ela parece ser o núcleo de uma possível colaboração entre "teóricos e p ráticos", entre os pesquisadores universitários e os professores de profissão, na medida em que essa colaboração exige que os primeiros reconheçam que os segundos possuem uma racionalidade, ou seja, saberes e um saber-fazer baseados em razões, motivos, argumentos, etc., diferentes, por hipótese, daqueles que encontramos na ciên-
5. f! claro que o perigo inerente (não somente metodológico, mas também epistemológico) a um~ tnl nrticulnção reside nas limjtaçôcs intrínsecas da
r:~ cionalidade
dos atores- no caso, os professores - empenhados numa açAo concreta. De fato, as razões q ue eles elaboram para se orientar (que podem ser encon tradas sobre tudo nas explicações que nos dão a respeito de seus comportamentos, d e suas estratégias, quando lhes fazemos perguntas sobre sua trajetória proíissional, etc.) não correspondem necessariamente às "condições objetivas" que determinam a orientação de sua ação: os atores não fazem sempre o que d izem fazere não dizem necessariamente, inclusive a si mesmos, o que fazem efetivamente. Nesse sentido, os di sc ur~
sos que eles emitem a respeito d e sua s ituação, as explicações que dão a res peito de seus atos devem ser avalizados: é preciso vê-los como são, a saber, elementos de "nálise entre outros, elementos que, para se ton1arem inteligíveis, devem ser s itua· dos num quadro interpretativo que leve em con ta todos esses elementos.
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cia e na pesquisa, mas adeq uados às situações práti cas da profissão docente. Por outro lado, numa perspectiva mais global, essa ideia de racionalidade é igualmente interessan te, pois o que caracteriza a educação atual, no que se i"efere aos saberes, às práticas e às instituições, é uma forte tendência para: racional ização. No que diz respeito aos saberes, essa tendenCia se manifesta principalmente através da existência das ciências da educação; no que diz respeito às práticas educativas, essa tendência se manifesta pela aplicação de modelos de atividade racionais, inspirados na técnica e na ação instrumental o u estratégica; no que d iz respeito às instituições, essa tendência se man.i.fes ta através da existência de sistemas escolares sujeitos a plimejamentos, a controles a planos de gestão. Em suma, a educação atual apresenta um conteúdo racional muito for te. Ora, o trabalho dos professores é largamente marcado por esse forte conteúdo racional: segm entação do trabalho, especialização, objetivos, programas, controles, etc., racionalizam, de um certo modo, o trabalho docente, antes mesmo da intervenção do saber dos atores. Nesse sentido, pode-se dizer que os pro.fessores estão integrados num ambiente socioprofi.ssional que determina, de antemão, certas exigências de racionalidade no interior das quais o trabalho docente encontra-se preso, estruturado, condicionado. Enfim, acreditamos que, ao identificar saberes e exigências de racionalidade, estamos tomando possível a constihlição de um verdadeiro repertório de conhecimentos para o ensino que refli ta os saberes dos professores, isto é, seus discursos e atos, pois eles sabem por que os dizem e fazem. Pensam os, com efeito, que esse repertório de conh ecimentos poderá existir se, e som ente se, recor~hece:mos que ~s professor es possuem a capacidade de raclOnalizar sua pr~ pria prática, de nomeá-la, de objetivá-la, em s~1~n.a, de dehnir su as razões de agir. Entretanto, ao contrano de certos pesquisadores que, na nossa opinião, caem no excesso etnagráfico, acreditamos que as razões de agir dos profess?res são criticáveis e revisáveis, que precisam, por consegumte,
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serem validadas pela confrontação com os fatos e também com as proposições d as ciências da educação e da pesquisa em get;al. Nesse sentido, os saberes dos professores são, para nos, saberes com ftmdamentos racionais, e não saberes sagrados: o valor d eles vem do fato de poderem. ser criticados, melhorados, tornar-se mais p oderosos, mais exatos ou mais eficazes. De qualquer modo, julgamos que nossa defitúção dosaber é a um só tempo flexível - pois não faz nen.hwn juízo prematuro sobre a natw·eza d as exigências de racionalid ade, r:'as, pelo con trário, se apoia no que os p róprios atores constderam como racional - e restritiva, pois se recusa a reconhecer como saberes atos e pensamentos sem raciona lidade, is to é, aqueles que os atores produzem sem razão ou cujos motivos são incapazes de explicitar e de d iscutir. Nessa perspectiva, pensamos que um ato bem-sucedido não é necessariamente um ato profissional.. Ele pode depender do ta lento do ator social, sendo então um ato privado, idiossincrá tico, cuja arte particular se perderá com a m orte d aquele que o executa. De qualquer maneira, elaboramos a lúpótese de que a ~oção de saber, tal como tem sido empregada até agora n~ hterat~ra científica (inclusive em nossas próprias prod uçoes coletivas), abrange, na verdade, várias realidades que não têm nada a ver com o saber, a menos que chamemos tudo de saber. Recusamo-nos a reconhecer como saberes profissionais dos p rofessores todos os discursos e atos para os quais os docentes são incapazes de apresentar razões com o objetivo de justificá-los. Desse modo, evitamos cair no excesso d e certas abordagens etnográficas. Por outro lado, ao associar o saber à racionalidade concreta dos atores c às suas linguagens, evitamos também o excesso de certos ~o~itivistas que possuem uma visão computacional e subJehvlsta do professor. O que nos interessa não é o que acontece na ca~eça dos professores e das pessoas em geral, em sua memona ou em suas representações mentais. A nosso ver, o saber ~1ão reside no sujeito, m as nas razões públicas que um SUJeito apresen ta para tentar validar, em e ah·avés de u ma argumentação, u m pensamento, uma proposição, 206
um ato, um m eio, etc. A exemplo de Karl Popper (1972), consideramos que o saber possui uma certa existência objetiva que reside nas razões, nos discu rsos, nas linguagens, nas argumentações que d esenvolvemos para apoiar nossas ideias e atos. Essas argumentações dependem apenas da pessoa que as enuncia. Nesse sentido, nosso enfoque do saber é discursivo, e não represen tnci.onal; argumentativo, e não mentalis ta; de comunicação, e não comp utacional. Após a ap resentação desses elementos teóricos sob re a noção de saber, gostaríamos agora de especifica r e exemplificar a ideia de exigências de racionalidade, em primeiro lugar, em função de uma certa concepção do ator docente; em segtmdo lugar, em relação ao juí'zo profissional que nos parece ser o fundan1ento da pedagogia e do saber docente; e, em terceiro lugar, em relação à ideia de "razão p rática" . Vam os p roced er de maneira sistemática, tratand o rapidamente certos aspectos que não podem deixar de ser considerados por serem mais ricos ou ma is promissores para a pesquisa. Isso nos d ará wna melhor ideia das múltiplas consequências e aplicações de nossa abordagem.
3. O sa ber docente: uma razão prática , social e voltada para o outro O primei ro ponto que querem os co locar em ev id ência é a representação do p rofessor que se des taca da nossa reflexão. Noutras palavras, como vemos o professor ? Estaquestão é importante, pois remete às críticas que formulamos anteriormente a respeito dos modelos do ator e de suaraciona !idade.
Um profissional dotado de razão e confrontado com condicionru1tes contingentes Ao ser aplicada ao magistério, nossa abordagem teórica sobre o saber resulta, no fundo, numa visão muito prática d essa profissão. 207
A partir de certas ideias de Giddens (1987), propomos que o ensino seja concebido como uma atividade baseada n um modelo de conhecimentos limitados e dotada de uma consciência profissional parcial mas dinâmica. Ensinar é perseguir, conscientemente, objetivos intencionais, tomar decisões consequentes e organizar m eios e situações para atingi-los (SHAVELSON & STERN, 1981). Nesse sentido, como gua lquer outro p rofissional, um professor age em função de ideias, de m otivos, de projetos, de objeti vos, em suma, de intenções ou de razões das quais ele está "consciente" e que ele pode geralmente justificar, por exemplo, quando o interrogamos sobre su a prática, seus projetos ou suas decisões. Em suma, pode-se dizer qlle, de um 111odo geml, um professor sal1e o que faz e por que o faz. Esse conhecimento se refere concre t;:~ .. mente a comportamentos intencionais dotados de significado para o professor; esse significado pode ser "ver ificado", de um cer to modo, no "discurso" (verbal ou m.ental) que ele elabora ou pode elaborar, quando necessário, a respeito de suas atividades. De acordo com a metodologia empregada para captá-lo, esse discurso pode assmnir diversas formas: raciocínio prático, encadeamento de informações, relato explicativo, justi ficação e racionalização a posteriori, etc. Ele corresponde àquilo que chamamos aqui de consciência profissional do professor, ou seja, aquela que se man ifesta por meio de racionalizações e intenções (motivos, objetivos, premeditações, projetos, argum en tos, razões, explicações, justificações, etc.) e graças à qual ele pode dizer discursivamente por que e como age. Em resumo, a consciência profissional parece-nos ser caracterizada p ela capacidade de ju lgamento e, de maneira m ais ampla, de arg umentação. Para atingir essas finalidades pedagógicas inerentes ao seu h·abalho, o professor deve tomar certas decisões em função do contexto em que se encontra e das contingências que o caracterizam (a manutenção da ordem na sala de aula, a transmissão da matéria, etc.). Ora, tomar decisões é julgar. Esse julgam ento se baseia nos saberes do professor, isto é, em ra zões que o levam a fazer esse ou aquele julgamento e a agir em conforillidade com ele. Essa visão do professor, esse modelo do ator, p or mais simplificado que seja, parece-nos 2011
corresponder, em seus aspectos gerais, ao trabalho do professor, c também é suficiente para atender às necessidades do nosso campo de pesquisa sobre os saberes dos professores. El.e perillite, sobretudo, evitar q ue caiamos nos excessos do "psicologismo" que m arcam há muito tempo a pesquisa sobre o ensino. Em relação à pesqu isa, esse modelo do ator leva-nos a interessar-nos não pelas representações "mentais do professor", mas por seus juízos tais como podem ser ex])l·essos em proposições, num d iscurso, etc.
O professor n ão é um cientista: o espectro
do julgamento Segundo essa visão, o professor não é um cientista, pois seu objetivo não é a produção de novos conhecimentos, nem mesmo o conhecimento das teorias existentes. Os juízos do professor estão voltados para o agir no contexto e na relação com o outro, no caso os alunos. Ele não quer conhecer, m as agir e fazer, e, se procura conhecer, é para m elhor agir e fazer. O professor também não é um cientista pelo fato de os seus juízos não se reduzirem a juízos empíricos, mas abrangerem um espectro muito mai~ amplo de juízos. Esse aspecto parece-nos fu ndam ental e m erece ser discutido. Como m encionamos antet;ormente, os partidários da concepção argumentativa do saber buscam desen volver uma teoria do juízo q ue exceda os juízos de realidade para englobar diversos tipos de juízo nos quais estejam presentes exigências de racionalidade. Noutra ocasião, já discutimos as implicações desse enfoque recente e muito r ico em possibilidades para o estudo do saber e da ação em Educação. Limitemo-nos a algmnas considerações básicas sobre esse assunto. A nosso ver, "o saber ensinar na ação" implica um conjunto de saberes e, portanto, um con jtmto de competências diferenciadas. Van der Maren (1990: 1.024) descreveu muito bem o contexto característico da ação pedagógica, a qual requer um vasto leque de competências: Ela [a situação educativa] define-se através dos oito aspectos seguintes: (1) uma pessoa (adulta)
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supostamente dotada d e saber (2) está regularmente em contato (3) com um grupo (4) de pessoas (crianças) que se supõe estarem aprendendo (5), e cuja presença é obrigatória (6), para ensinar-lhes (7) wn conteúdo socialmente detenninado (8) por meio de uma série de decisões tomadas em s ituação de urgência.
Ora, para realizar esse trabalho e solucionar as numerosas dificuldades por ele ocasionadas atra vés das mú ltiplas interações entre esses oito elemen tos fundamentais, o professor deve ser capaz de assimilar uma h·adição pedagógica transformada em hábitos, rotinas e truques do ofício; deve possuir uma competência cu ltural proveniente da cultura comum e dos saberes cotidianos que partilha com seus alunos; deve ser capaz de discutir com eles e de fazer valer o se u ponto de vista; deve ser capaz de se expressar com uma certa auten ticidade dia nte de seus alunos; deve ser capaz de gerir uma classe de maneira es tratégica a fim de atingir objetivos de aprendizagem, ao mesmo tempo em que negocia o seu papel; deve ser capaz de identificar certos comportamentos e de modificá-los numa certa medida, etc. Em s uma, o "saber ensinar", do ponto de vista de seus fundamentos na ação, remete a uma pluralidade de saberes. Essa p luralidade de saberes forma, de um certo modo, um "reservatório" onde o professor vai buscar suas certezas, modelos s imp lificados de realidade, razões, argumentos, motivos, para validar seus próprios julgamentos em função de s ua ação. É claro que, dentro da própria ação, esses julgam entos podem ser instantâneos ou parecer originados de uma intuição e não de um raciocínio; mas o que chamamos de deliberação não é necessn riamente um processo longo e consciente; por o utro lado, o que chamamos de intuição intelectual nos parece ser o resultado de processos de raciocínio que se tornaram rotineiros e implícitos de tanto se repetirem. Assim, ao agir, o professor é forçado a tomar decisões, a fazer escolhas, etc., resultantes de julgamentos profissionais que não se limitam a fatos, isto é, a um saber empírico. Na rea lidade, o professor se baseia em vários tipos de juízo para
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esti·uturar e orientar sua atividade profissional. Por exemplo, ele se baseia com freg nência em valores morais ou em normas sociais para tomar uma decisão. Aliás, uma grande parte das práticas disciplinares do professor colocam em jogo juízos normativos sobre as diferenças entre o que é permitido e o que é proibido. Para alcançar fins pedagógicos, o professor também se baseia em juízos ligad os a tradições escolares, pedagógicas e profissionais que ele mesmo assimi-
lou e interiorizou. Finalmente, ele se baseia em sua "experiência vivida" com o fonte viva de sentido a partir da qual o passado lhe permite esclarecer o presente e antecipar o fu turo. Valores, normas, h·adições, experiência vivida são elementos e cri térios a partir dos quais o professor faz julgamentos profissionais. Ora, como se pode constatar, esses diferentes tipos de juízo não se reduzem ao conhecimento empírico ou a uma te01·in infonnacional do ensino, c nem por isso são irracionais. De fato, seguiJ· utna norma, respeitar uma tradição, adotar um valor, agi r em função da experiência vivida não são comportamentos irracionais ou a-racionais, na medida em que o ator é ca paz de dizer por que adota tais comportamentos.
Limites da con sciência profissional Entretanto, é evidente também que os comportamentos e a consciência do professor possuem várias limitações e que, por conseguiJ1te, seu próprio saber é limitado. Como qualquer outro ator humano, o professor sabe o que faz até um certo ponto, mas não é necessariam ente conscien te de tudo o que faz no mo mento em que o faz. Além disso, também nem sempre sabe necessariamente por que age de determinada maneira. Por fim, suas próprias ações têm muitas vezes conseguências imprevistas, não intencionais, cuja existência ele ignora. Essa ques tão das conseqüências não intencionais da atividade profissional dos professores é da maior importância.
Defato, se os professores sabem o que fazem, como podem reproduzir fenômenos aos quais, no entanto, se opõem conscientemente? Tal questão é crucial para toda concepção a respeito do sa211
ber docente e, de maneira mais ampla, da profissão docente. Ela tam bém representa um elemento capital para toda teoria da educação, pois levanta o p roblema clássico, que se tornou uma verdadeira aporia, das relações entre os "determil1ismos sociais" e a "liberdade" dos atores. Para ilush·ar esse problema, basta citar o fracasso escolar, que todos os estudos mostram depender princip almente da origem socioeconômica e cultura l elos alunos. Ora, uma grande p arte dos professores defende valores de igualdade e de justiça em relação aos alunos, recusando-se a selecioná-los e avaliá-los a partir de sua origem socioeconômica. No entanto, por serem os principais agentes da escola, e a menos que sua ação seja considerada nula e sem efeito, é preciso reconhecer, como d.iria Bourdieu, que os professores "realizam objetivamen te uma tal seleção", levando assim uma mult idão de alunos ao fracasso escolar. Observa-se portanto um corte importante en tre as intenções profissionais dos professores e os resultados objetivos de suas ações. Os exemplos desse tipo poderiam ser mul tiplicados, mas o princípio é o mesmo: a menos que os professores sejam tnmsformados em seres oniscientes, é preciso admitir que existe, às vezes, um abismo entre suas boas intenções e o que fazem realmente. Toda ação encer ra, potencialmente, consequências não intencionais que escapam à consciência dos atores e ao seu conhecimento a respeito do que vai acontecer. Nessa perspectiva, podemos dizer, baseados em Habermas (1987}, que toda atividade social comporta sempre dois aspectos ind issociáveis: um aspecto intencional, que pode ser estudado levando-se em conta os motivos do ator, seu discurso, seus objetivos, os sigrúficados que atribui à sua atividade, etc., e wn aspecto não intencional, que pode ser estudado levando-se em conta as regularidades resultantes dessa ação, a través, por exemplo, de estudos descr itivos ou estatísticos, quando se trata da ação de um grupo como o dos professores. Ora, o que acaba de ser dito ern relação à ação vale também em relação ao conhecimento: o que um 212
ator sabe fazer pode ser estudado em função dos conhecimentos que p ossui, do seu discurso; mas também se pode estudar o seu "saber-fazer" observando e descrevendo sua atividade, a fim de inferir de suas ações com petências subjacentes que a tornem possível. Por exem plo, é possível es tudar as concepções e conhecimentos pedagógicos explícitos de um professor, mas também se pode estudar o que ele faz realmente ao agir: quem já não encontrou, um dia, professores que se declaram partidários de uma pedagogia libertária, mas cuja ação expressa todas as rotinas de uma au toridade não partilhada! A concepção que propomos comporta determ inadas conseqüências conceituais im portantes: • A relação entre o sa ber do professor e sua atividade não é uma relação de transparência perfeita nem de domínio completo: a ação cotidiana constitui sempre um momento de alteridade para a consciência do professor. Não fazemos tudo aquilo que d izemos e queremos; não agimos necessariamente como acred itamos e queremos agir. Em suma, a consciência do professor é necessariamente lim itada e seu conhecimento d iscursivo da ação, parcial. Agir m mca é agir perfeitamente e em plena consciência, com uma consciência clara dos objeti vos e consequências da ação, das motivações afetivas subjacentes, etc. • O professor possui competências, regras, recursos que são incorporados ao seu trabalho, mas sem que ele tenha, necessariamente, consciência explícita disso. Nesse sentido, o saber-fazer do professor p arece ser mais amplo gue o seu conhecimento discursivo. Por isso, uma teoria do ensino consistente não pode repousar exclusiva mente sobre o discu rso dos professores, sobre seus conhecimen tos discursivos e sua consciência explícita. Ela deve regish·ar também as regularidades da ação d os atores, bem como as suas prá ticas objetivas, com todos os seus componentes corporais, sociais, etc. 213
• Como vimos no capítulo 2, a atividade profissional comporta antecedentes afetivos d ecorrentes da história d e vida do professor, de sua carreira e de sua personalidade. Ela comporta também consequências não intencionais decorre n tes d os efeitos imprevisíveis de sua ação. A consciência profissional está, por assim dizer, delimitada p elos fundamentos motivacionais ou afetiv os da ação e p elas con seqüências não motivad as que d ela resultam..
Esta fig ura e a discussão precedente sugere m , po rta nto, que o saber experiencia 1d os professores é um saber com pósito no qual estão presentes conhecimentos discursivos, motivos, intenções conscientes, e tc., assim como competên cias prá ticas que se revelam esp ecialmente a través do uso gue o professor faz das regras c recm sos incorpo rados à s ua ação.
Tal como mostra a fig ura seguinte, a consciên cia profissional do professor está, d e um certo modo, merg ulhada, no âmbito de seu trabalho, naquilo que Giddens (1987) cha ma de "consciên cia prática", que corresponde a tudo o que ele sabe fazer e d izer. Nessa perspectiva, o conhecimento discursivo é apenas uma parte do seu "sabe r-en sinar" _Por outro lado, as próprias práticas profissionais (in clusive a consciência prá tica) estão enraizadas na história d e vida do professor e em sua person alidade e são portadoras de consequências n ão intencionais.
As rotinas, que são fenôn1e nos fundamentais no ensino, permitem dar uma boa ideia daquilo que chamamos d e consciência prática. O que é uma rotina? Agir é agir n o tempo, com o tempo: a ação se insere, portanto, numa duração. Ora, um d os problemas ca pitais relativos à compreensão da atividade huma na é justame n te o d e ca ptar como uma ação pode man ter-se através do tempo, tanto subjetivamente, já que, em tese e de fa to, é o mesmo ator q ue age, quan to objetivamente, já que a ação se repe te de u ma forma relativamente estável e que todas as lições se assemelham um as às ou tras: d ia após dia, é sempre o "mesmo" professor que entra na sala de a ula; dia após dia, ele dá a "mesma" lição d iante dos " mesmos" ál unos.
Figura - P!'ática e consciência profissional Consciência profissional:
tudo o que um professor sabe dizer a respeito o.le suas n tividades (conhecimen tos discursivos, explícitos: objetivos, m otivos, justificações, intenções, p rojetos, razões de agir, etc.)
1
Antecedentes pessoois do pmf<-'S.•o r ligados à sua história de vida, Trabalho do· à s ua personalidade e -+ professor -:à sua aprendizagem
Consequências
--+- não intencionais de s uíls atividades
da p rofissão
r
Consciência p rática: tudo o que um professor faz e diz na ação (regras, competências implícitas, saber-fazer, rotinas, etc.)
214
O saber-fazer: o exemplo das rotinas
Gidde ns (1987) propõe o conceito de rotinização para falar d esse problema. Esse conceito es tá relacionado com um grande número d e estudos que colocaram em evidê ncia o caráter ro tineiro do en sino e a importân cia das rotinas p ara compreender a v ida n a sala de a ula e o trabalho d o professor. Como vimos nos capítulos anteriores, a ideia geral desses estudos é que as rotinas são meios de gerir a complexid ade das situações d e inte ração e de diminuir o investimento cognitivo do professor no controle dos acontecimentos. Todavia, não acreditamos que a rotinização do ensino seja apenas uma maneira de controlar os acontecimentos na sala de aula. Enquanto fenômen o básico da vida social, a rotinização indica que os atores agem através do tempo, Jazendo das
suas próprias atividades recursos para reproduzir essas mesmas
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atividades. No nosso caso, ela demonsh·a a for te dimensão socio temporal do ensino, na medida etn q ue as roti.nns se tornam parte integrante da atividade profissional, consti tuindo, desse m odo, " m aneiras de ser" do p rofessor, seu "estilo", sua " personalidade profissional" . Entretanto, a menos que o ator se torne um autôma to, a rotinização de uma atividade, is to é, sun cstnbilizllçiio e sua regulação, que possibilitam sua divisão e S l/11 reprodução no lelllpo, repousa num conh·ole da ação por parte do professor, controle esse baseado na aprendizagem e na aquisição temporal de competências práticas. Ora, a força e a estabilidade desse controle não podem depender de decisões voluntárias, de escolhas, de projetos, mas sim da interioriznção de regras implícitas de ação adquiririas com e na experiência da ação. N ing uém escolhe ser rotineiro; no entanto, todos nós o somos, não por opção, mas porque o tecido ontológico da vida social é feito precisamente de tais r egularidades prá ticas. Essas regularidades não são somente "formas exteriores", convenções o u hábitos dos quais poderíamos prescindir ao agir: o fato de uma atividade ser rotineira é um recurso fundamental da ação que tom a possível a sua reprodução pelo m esmo ator. De fato, que seja realm ente sempre o mesmo ator que aja - eu que ensino, eu que falo, eu que avalio- depende intimamente da rotinização do próprio ator, daquilo que chamamos de sua personalidade. No que diz respeito ao problema de que h·atamos, significa que urna boa parcela da atividade do professor, tudo o que chamamos suas rotinas e sua personalidade, não depende diretamente de sua con sciência profissional, do conhecimento explícito daquilo que ele faz e daquilo que é. Na realidade, a dimensão temp oral da atividade provoca uma espécie de anamnésia da consciência discursiva: não podemos agir senão esquecendo o processo histórico de aprendizagem através do qual nos tornamos competentes para realizar essa ação. Esse processo não está "atrás de nós", m as ancorado e interiorizado em cada um de nossos atos.
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A m zão pedagógica e seus conteúdos Antes de completar nossa abordagem, relembremos brevemen te alg uns dos seus aspectos conceituais. Definim os o professor como um profiss ional dotado de razão e cujos saberes são regidos por certas exigências de racionalidade que lhe permitem emitir ju ízos dian te das condições contingentes de seu trabalho. Afirmamos que esses juízos não se limitavam a juízos de realidade, mas abrangiam um vasto leque de tipos de juízos, m ostrando assim que os saberes nos quais o professor se apoia para julga r são diversos e plurais. Por fim, colocam os em evidência as limi tações da consciência intencional do professor e de s ua capacidade de julga mento ou de racionalização da ação. Após essas diversas ca racterizações do julgamento, gostaríamos de concluir nossa reflexão insis tindo brevemente nos conteúdos e n a esp ecificidade do julgamento do professor. N a verdade, do que ele trata? outras palavras, quais são os objetos dos saberes do professor?
Um postulado: os sab,eres es tão ligados ao trabalho Em nossas pesquisas anteriores, sempre afirmamos que os saberes do professor deviam. ser compreendidos numa relação direta com as condições que estruturam seu trabalho. Esse pos tulado permanece completamente válido ainda hoje. Esse pos tulado significa q ue o trabalho docente, como todo trabalho humano especializado, requer certos saberes específicos que não são partilhados por todo o mundo e que p ermitem. que o grupo dos professores assente sua ativida de num certo repertório de saberes típicos desse ofício. Para evitar equívocos, acrescentemos que, a nosso ver, esse repertório de saberes não se refere a saberes intemporais e universais, que seriam o alicerce de toda a tividade pedagógica o u da Pedagogia, nem a processos cognitivos gerais, peculiares a todo ser humano, que garantiriam o funcionamento da com unicação pedagógica. Pensamos, pelo contrário, que os saberes do professor dep endem intimamente das
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condições sociais e históricas nas quais ele exerce seu ofício, e mais concretamente das condições que es truturam seu próprio trabalho num lugar social determinado. Nesse sentido, para nós, a questão dos saberes está in timamente ligada à questão d o trabalho docente no ambien te escolar, à sua organização, à sua diferenciação, à sua es pecialização, aos condicionantes objetivos e subjetivos com. os quais os professores têm que lidar, etc. Ela também está ligada a todo o contexto social no qual a profissão docente está inserida e que de termina, de diversas m aneiras, os saberes exigidos e adq uiridos no exercício da profissão. Evidentem ente, do ponto de vista empírico, esse r epertório de saberes está profundamente imerso no conjunto dos saberes que os ind ivíduos que ensinam podem possuir. Por exemplo, é claro que a cultura geral d os professores, seus conhecim entos pessoais, seu senso comum, em suma, todos os "saberes" que eles adquiriram durante a vida inteira e que podem partilhar com um grande número de indivíduos, desempenham um papel no ensino. Entretan to, acreditamos que esse papel é suficientemente condicio nad o pela prática da profissão, de modo que os saberes ad quiridos fora da profissão são en tão utilizados - quand o o são - para fins específi cos ao ensino. Por exemplo, um professor pode muito bem utilizar sua cultura pessoal para atingir fins profissionais. Ele pode também se basear em valores pessoais para agir numa sala de aula. Esses valores pessoais são, então, incorporados à sua ação profissional: eles tornam-se, por conseguinte, m eios a serviço d o trabalho docente, e é nessa perspectiva que convém estudá-los. Na realidade, ocorre o m esmo com todo trabalho h umano: os conhecimentos do trabalhador são muito mais amplos do q ue os exigidos por seu trabalho. Todavia, esse trabalho requer certos conhecim entos específicos que não devem ser confundidos, do pon to de vis ta da estra tégia de p esquisa e da delimitação de seu objeto de estudo, com todos os conhecimentos p ossuídos pelo trabalhador. Na verdade, só um estudo empírico ap urad o do "saber d ocente" pode nos informa r a respeito de quan do e como esses conhecimentos tornam-se e agem concreta2 18
mente na prática da pro fissão, e em que medida eles "dão cor" a essa práti ca. Porém , além d a distinção um pouco abstrata que acabamos de estabelecer entre esses dois tipos de saber, acreditamos gue o caráter específico dos saberes profissionais depende de fen ômenos muito concr etos: 1°) eles são adquiridos principalm ente no âmb ito de uma formação específica e relativamente longa na universidade; ~ ) su a aquisição é acompanhada de uma cer ta soClah zaçao profissional e de uma exp eriência d o ramo; 3°) são usados n uma instituição - a escola - q ue p ossui um certo número de traços originais; 4°) são mobilizados no âmbito de um tr abalho - o ensino - que também p ossui certas características específicas. Essas condições de aquisição e d e u tilização parecem. ser, portanto, vari áveis bastante "pesadas", do pon to de vis ta sociológico, para que se possa postu lar o caráter d istin to e esp ecífico dos saberes dos professores em relação aos o utros ofícios, profissões ou aos conhecimentos com uns das pessoas comcms. Nesse sentido, não acreditamos que qualquer pessoa possa entrar numa sala d e aula e considerar-se, de rep ente, professo r. 0
A relação com o o utro Mas de que tratam os julgamentos do professor, a gue realidade se referem esses saberes? A ação profissional d o professor é estruturada por d uas séries de condi cionan tes: os cond icionantes ligados à transmissão da matéria (cond icionantes de tempo, de organização sequencial dos conteúd os, de alcance de finalidades, de aprendizagem p or parte dos alw1os, de avaliação, etc.) e os condicionantes ligados à ges tão das interações com os alunos (manutenção da disc ~ plina, gestão das ações desencadeadas pelos al unos, mohvação da turma, etc.). O trabalho docente no amb1ente escolar consiste em fazer essas d uas séries de condicionan tes convergirem , em fazê-las colabor ar en tre si. Nesse sentido, a transmissão da matéria e a gestão das interações não constituem elem entos entre outros do trabalho docente, mas o próprio cerne da profissão. É por isso que o estud o d os con-
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teúdos transmitidos, a maneira como o professor os compreende, os organiza, os apresenta, os diz, em suma, utiliza-os para "interatuar" com os alw1os faz parte integrante d a pesquisa sobre os saberes do professor. Da mesma maneira, o modo como os altmos "interatuam" com os saberes disciplinares e curriculares por intermédio da ação do professor constitui um objeto essencial da pesquisa nesse campo. A transmissão e a gestão são ftmções tão importantes que toda a organização escolar está globalm ente orga nizélda para facilitar a convergência d esses elemen tos e oferecer aos professores um quadro de trabalho já estruturado em função d essas d uas séries de condicionantes. Por exemplo, os programas são modelos "discursivos d e ação" que estruturam a transmissão da matéria: eles determinam com maior ou m enor precisão os objetivos a serem atingidos, as coisas a serem aprendidas, os conteúdos a serem ensinados, as etapê1S a serem seguidas, etc. Eles oferecem, assim, aos professores um modelo de transmissão, de organização e de es trutu ração do con teúdo. O ambien te físico (classe fechada, carteiras enfileiradas, etc.) e social (seleção daqueles que pod em entrar na sala de au la, normas punitivas, regras de exclusão da classe, regrêiS que detenninam os comportC~men tos aceitáveis, etc.) já oferece um quadro para gerir os cond icionantes ligad os à interação com os alunos. Em suma, a ordem escolar já oferece aos professores um quadro facilitador para estabelecer a ordem na sala de aula: an tes mesmo de começar seu trabalho, an tes mesmo de enh·ar numa sala de aula, um professor já possui um certo número d e certezas quanto ao seu quadro habitual de trabalho. Exa tamente como o operário ao enh·ar na fábrica ou o executivo ao entrar no escritório, o professor, ao entrar na escola e na sa la d e aula, se insere num dispositivo já ordenado em seus aspectos principais (TARDIF, 1993). Entretanto, o professor também é enormemente responsável pela ordem na sala de aula e pela convergência en tre os condicionantes ligados à transmissão e à interação. O quadro socioinstituticional delimita suas atividades, mas lhe
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deixa, ao mesmo tempo, uma boa margem d e iniciativa para realizar seu trabalho. Noutras palavras, a ordem na sala de aula é certamente condicionada pela organização física e social da escola e das salas d e aula, mas é ao mesmo tempo uma ordem consh·uida pela ação do professor em interação com os altmos. Ora, é precisamente nn constmção dessa ordem
pedagógica que o professor deve exercer seu julgmne11to proftssio11al, tomar decisões, pensar e ngir em f unção de certas exigências de rncionalidnde. No decurso d e se u trabalho, o professor normalmente não precisa tomar decisões a respeito do que já está determinado de antemão (o sistema escolar, o ambiente físico, as relações sociais, as grandes finalidades, etc.), mas d eve refletir sobre o qu e depende dele. Parafraseando Schon, sua "razão na aç5o" es tá ligada a contingências com as quais ela deve lida r em. fun ção d e finalidades que ele mesmo d eve provocar através de sua ação. Nesse sentido, trata-se de uma ra zão prática e não de uma racionalidade teórica. Parafraseando Marx, d es ta vez, o professor não se propõe a compreender o mw1do, m as a transformá-lo. Ora, esse mundo é o mundo social tal como ele se oferece através, com e no outro, isto é, em suas interações com os alunos. A razão do professor, a razão ped agógica, se estabelece sempre em sua relação com o outro, isto é, em suas interações com os alunos. Nesse sentido, ela difere, e profundamente, da racionalidade cien tífica e técnica, a qual está voltada para a objetivC~ção e para a manipulação dos fatos. Essa dimensão social da razão pedagógica se mostra nesse fenômeno educativo que é fundamental, se queremos compreender a natmeza da atividade do professor: é sempre possível manter os alunos "presos" fisicamente numa sala d e aula, mas é impossível levá-los a aprender sem obter, de uma m aneira ou d e outra, seu consentimento, sua colaboração voluntária. A fim de aprender, os alunos devem tornar-se, de uma maneira ou de outra, os atores de sua própria aprendizagem, pois ninguém pode aprender em lugar d eles. Transforma r os alunos em atores, isto é, em parceir os da interação pedagógica, parece-nos ser a tarefa em tomo da qual se articulam e ganham sentido todos os saberes do 221
professor. Se aceitarmos este último ponto, ele nos levará, então, e m direção a uma pista de trabalho q ue coincide com a ideia de julgamento jurídico formulada anteriormente. Essa pista de trabalho é o que se ch amou de "nova re tórica" e foi proposta pelos trabalhos de Perelman (1970). Ela consiste em ver no ensin o uma ativid ade ling uística, discursiva, qu e se d efine essen cialmente e m sua relação com um público, um auditório. Em suma, o professor deve, como um de nós já escreveu, "cortejar o consentimento d o ou tro a fim de ganhar a batalha da aprendizagem ". Essa relação com o auditório está n o próp rio cerne d a concepção argumentaliva do sabe r docente aqui esboçada. Ensinar é, obrigatoriamen te, entra r em relação com o o u tr o. Ora, para que essa relação se estabeleça, é preciso q ue o professor e os alunos se en tendam minimamente: o auditóri o deve estar pronto para ou v ir e o professor deve dar bastante importância à adesão d o grupo para produzir seu discurso. Isso implica um certo arsenal d e competências por parte do professor: teatralização, capacidade d e exercer sua autoridade, habilidades d e comunicação, e tc. Esta ú ltima pista de lTabalho está a tualmente no centro das pesquisas sobre a argumentação, sobre a pragmá tica, a psicossociologia da pers uasão e a análise do discurso. Ela nos parece p articularmente interessan te c promissora, n a medida em que permite sair dos e nfoques mentalistas e cognitivos e situar o professor em seu "ambiente na tural" : a linguagem pública nn interação com o o utro.
talistas, representacionais e su bjetiv istas do "saber", estando mais próxima de certas correntes de pesquisa nas áreas da sociocognição e da psicologia social. Para nós, o saber não é um predicado que serve para denominar a potência ou a eficiência do s ujeito computacional imaginado por certos cognitivistas e "managers" da pedagogia. O saber é um constructo social prod uzido p ela racion alidade concreta elos a tores, por s uas d eliberações, racion alizações e motivações que cons tituem a fo n te d e seus julgamentos, escolhas e deci-
sões. Nessa perspectiva, ac red itamos que as "competências" do professor, na medida em que se trata mesmo d e "competências profissionais", estão dire tamente ligadas às suas capacidades de racionalizar sua própria prática, de criticá-la, de revisá-la, de objetivá-la, buscando fundamen tá-la e m razões d e agir. Nesse sen tido, o prá ti co reflexivo correspende ao profissional dotado de razão do qual fa lávamos anteriormente e o qual concebemos en1 função de tU11 e nfoque a rgurn entativo e delibera tivo, e não cognitivo.
Ao longo deste texto, p rocuramos fornecer vários elementos, ideias, pe rspectivas e pistas de trabalho que permitissem conh ecer a nossa posição em relação às questões de base aqui discutidas. Para sermos claros, d igamos que nossa concepção do professor e d e sua formação p rofissional está ligada, de forma global, à v isão do "prático reflexivo" proposta por Schon. Contudo, a orientação de nossas pesquisas d istancia-se consideravelmente d as visões cogn.itivistas, men-
Nosso enfoque se distancia também dos trabalhos a tuais sobre a perícia e o perito, sobre as diferenças on tológicas entre o perito e o ap ren.d iz, o perito e o leigo, etc. Temos dificu ldade em ac reditar na existê ncia de peritos em Educação, pela simples razão d e que as atividades educativas ocorrem fo rçosnmente e muito concretamente num contexto de comprom issos normativos contínuos. Ora, a té p rova em contrário, não existe perícia no que diz respeito às normas, nem mesmo em relação a essas escolhas tão "simples" q ue um professor deve fazer todos os dias n o que se refere à distribuição de seus recursos limitados, de seu tempo, de sua energia. Existem p eritos do jogo de xadrez, do jogo de damas, mas não existe perito que possa nos dizer se d evemos jogar xadrez ou damas: assim que as reg ras do jogo mudam, assim t]ue m uda mos de jogo (de ling uagem, de poder), os peritos mudam e deixam d e ser peritos. Nenhwn perito pode d izer se é preferível dar ênfase à progressão d a turma ou traba lhar mais com os mais lentos, com o risco de dim inuir o ritmo da turm a. Nenh um perito pode dizer-nos se é
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4 . À guisa de conclusão
preferível ensinar de acordo com um certo estilo (democrático, autoritário, etc.), de acordo com certos valores, etc. Embora nos recusemos a aderir ao mito do perito (BOURDONCLE, 1993), acreditamos que os práticos experientes (que são diferentes dos peritos, Elbaz, 1993) apoiam-se numa certa racionalidade, em certos julgamentos que convém tornar públicos, estudando-os principalmente no âmbito de pesquisas na área das ciências da ed ucação. Finalmente, nossa posição se distancia também dos enfoques que tendem a assimilar o ensino a uma ciência, a uma técnica, a uma atividade profission al basead a numa racionalidade exclusivamente epistêrnica. Nosso enfoque procura associar constantemente saber docente e racionalidade, m as uma racionalidade concebid a em função d a realid ade dos atores sociais empenhados em atividades contingentes e que se apoiam em saberes contingentes, lac unares, imperfeitos, saberes limitad os principalmente por pod eres, normas, etc. Nesse sentido, nossa proposta d e trabalho constitui um discurso em favor de uma racionalidade limitada e concreta, enra izada nas p ráticas cotidianas d os atores, racionalidade aberta, contingente, instável, alimentada por saberes lacw1.ares, humanos, baseados na vivência, na exp eriência, na vida.
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PARTE II O SABER DOS PROFESSORES EM SUA FORMAÇÃO
6 Os professores enquanto sujeitos do conhecimento*
NESTE capítulo, será nbordada a questão do conhecimento dos professores, isto é, dos saberes, do saber-fazer, das competências e das habilidades que servem de base ao traba lho dos professores no ambiente escolar.
Juntamente com algumas outras grandes interrogações, essa qLlCstão dom.ina, de uma maneira geral, a literatura produzida nas ciências da educação norte-americanas e anglo-saxônicas nas duas últi mas décadas. Ela também se faz presente na Europa desde o início da década de ]990, aproxi madamen te, e começa a penetrar em vá ri os países latino-americanos, especialmente no Brasil. Historicamente, essa questão está ligada à da profissionalização do ensino e aos esforços feitos pelos pesquisadores no sen tido de definir a natureza dos conhecimentos profissionais que servem de base ao magistério. Todavia, com o passar do tempo, ela foi-se alargando e se ramificando e deu origem a produções teóricas autônomas relativas, por exemplo, ao trabalho dos professores e à sua formação, ao p ensamen to dos professo res c à sua h istória de vida, às relações
,. Este capítulo foi apresentado inici«lmenlt! nutna mcsa~redondi'l re<1 lizi1da no
Congresso do Endi pe de 2000.
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entre a cultura escolar e a cultura dos professores, ao lugar do saber dos professores enh·e os saberes sociais, etc.
atuam na área de ciências humanas e sociais e se interessam pelo ensino.
Vários autores preocuparam-se em estabelecer a genealogia dessa questão, estudando, por exemplo, os laços que a ligam ao movimento de profissionalização do ensino, às recentes reformas escolares ou às transformações do saber que afetam nossas sociedades modernas avançadas ou pós-modernas. Não é minha intenção refazer essa genealogia nem delimitar as condições sociais, culturais e educacionais que foram determinantes na edi ficação da questi'ío do conhecimento dos professores.
Ora, como tentarei mostrar agora, considerar os professores como atores competentes, como sujeitos do conhecimento, permite renovar as visões vigentes a respeito do ensino.
O meu objetivo é mosh·ar de que modo essa questão pode nos ajudar a repensar certos temas, especialmente o da subjetividade dos professores, do qual vou tratar estabelecendo relações com a questão dos saberes e da prática docentes. No que diz respeito à subjetividade, um postulado central tem gu iado as pesquisas sobre o conhecimento dos professo res nos últimos vinte anos. Esse postulado é o seguin te: os p rofessores de profissão possuem saberes específi cos que são mobilizados, utilizados e produzidos por eles no âmbito de suas tnrefas cotidianas. Noutras palavras, o que se propõe é considerar os professores como sujeitos que possuem, utilizam e produzem saberes específicos ao seu oficio, ao seu trabalho. A grande importância dessa perspectiva reside no fato de os professores ocuparem, na escola, uma posição fundamental em relação ao conj unto dos agentes escolares: em seu trabalho cotidiano com os alunos, são eles os principais atores e mediadores da cultura e dos saberes escolares. Em suma, é sobre os omb~os deles que repousa, no fim das contas, a missão educativa da escola. Nesse sentido, interessar-se pelos saberes e pela subjetividade deles é tentar peneh·ar no próprio cerne do processo concreto de escolarização, tal como ele se realiza a partir do trabalho cotidiano dos professores em interação com os alunos e com os outros atores educacionais. Essa perspectiva de pesqwsa fo.i negligenciada durante muito tempo pelas ciências da educação e, de maneira geral, pelos teóricos e pesquisadores que 22U
Este capítulo será desenvolvido da seguinte maneira: o
Num primeiro momento, tratarei da questão da própria subjetividade, apresentando as concepções a tua lmen te propostas a esse respeito.
• N um segundo momento, mostrarei como esse postu lado permite repensar as concepções tradicionais referentes à relação en tre teoria e prática e, em especia l, as relações entre a pesquisa un iversitári a e a prática do ofício de professor. • Na conclusão, tra tarei de cer tas consequências mais práticas e mais políticas desse postulado a respeito da formação dos professores, da pesquisa sobre o ensino e da organização do trabalho docente na escola. 1. Pr imeira consequência: recolocar a
subjetividade dos professores no centro das pesquisas sobre o ensino Ao s ustentar que os professores são atores competentes, sujeitos do conhecimen to, tais considerações permitem recolocar a questão da subjetividade ou do ator no centro das pesquisas sobre o ensino e sobre a escola, de maneira geral. De fato, esse postulado propõe que se pare de considerar os professores, por um lado, como técnicos que aplicam conhecimentos produzidos por outros (por exemplo: os pesquisadores Lmiversitários, os peritos em currículo, os funcionários do Ministério da Educação, etc.), e, por ouh·o lado, como agentes sociais cuja atividade é determinada exclusivamente por forças ou mecanismos sociológicos (por exemp lo: a luta de classes, a transmissão da cultura dominante, a repro229
dução dos hábitos e dos campos sociais, as estruturas sociais de dominação, etc.). Apesar de todas as diferenças existentes entre a visão tecnicista e a visão sociologis ta, elas possuem em comum o fato de despojar eis atores sociais de seus saberes e, portanto, dos poderes decorren tes do uso desses saberes, e de s ujeitar os professores, por um lado, aos saberes dos peritos e, por o utro, aos saberes dos especialistas das ciências sociais. Em L'útima análise, nessas duas visões, o professor não passa de um boneco de ven tríloquo: ou aplica saberes produzidos por peritos que detêm a verdad e a respeito de seu trabalho ou é o brinquedo inconsciente no jogo das forças sociais que dete rminam o seu agir, forças que somente os pesquisadores das ciências sociais podem rea lmente conhecer. Ao contnhio dessas duas visões redutoras do ensino, acredito qu e, para com preender a natureza do ensino, é absolutamente necessário levar em conta a subjetividade dos atores em atividade, isto é, a subjetividade dos pr óprios professores. Ora, um professor de profissão não é somente alguém que aplica conhecimentos produzidos por outros, não é somente um agente determinado por mecanismos sociais: é um ator no sentido for te do termo, isto é, um s ujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito q ue possui conhecimentos e um saber-fazer provenientes de sua própria a tividade e a pa rtir dos quais ele a estrutura e a orienta. Nessa perspectiva, toda pesq uisa sobre o ensino tem, por conseguinte, o dever de registrar o ponto de vista dos professores, ou seja, s ua subjetividade de atores em ação, assim como os conhecimentos e o saber-fazer por eles mobilizados na ação cotidiana. De modo mais radical, isso quer dizer também que a pesquisa sobre o ensino deve se basear num diálogo fec undo com os professores, considerados não como objetos de pesquisa, mas como sujeitos competentes que detêm saberes específicos ao seu trabalho. Na América do Norte e na Europa, os trabalhos que procuram levar em consideração a subjetividade dos professo-
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res são desenvolvidos atualmente a partir de três grandes orientações teóricas: Uma prim eira orientação caracteriza as pesquisas sobre a cognição ou sobre o pensamento dos professores. São pesquisas de inspiração psicológica e fazem parte da corrente das ciências cognitivas, especialm ente da psicologia cognitiva. Na América do Norte, a maioria dessas pesquisas p rocura estudar o ensino como um processo de tratamento do informação, colocando em evidência os processos mentais que regem o pensamento do professor em diversas situações, por exemplo, durante a gestão da classe, no momento da transposição didáticél da matéria, nas interações com os alw1os, etc. De acordo com essa orientação teórica de pesquisa, os saberes dos professores são representações mentais a partir das quais os práticos ordenam sua prática e executam suas
Uma segunda orientação caracteriza as pesquisas c1ue tratilm dilquilo que se pode chamar de "vidil d os professores". Tais p esquisas se baseiam em diversas co rrentes teóricas com o a fenomenologia existenciill, as histórias de vida pessoal e profissional, os estudos sobre as crenças dos professores, os enfoques narrativos que estud am a "voz dos professores", ou seja, seus próprios relatos e metáforas p essoais referentes ao seu ofício, etc. essa segunda orientação teórica, a s u bjetivid<~de dos p rofessores é vista de mane ira m uito mais ampla do que na prim eira, p ois não se limita à cognição ou às representações mentais, mas engloba toda a histó ria de vida dos professores, suas experiêncic:1s famili
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desses m esmos professores e se limita, na m aioria das vezes, a uma transmissão de conhecimentos. Assim, eles criticam a organização do trabalho docente nas escolas, o qual, muitas e muitas vezes, privilegia con cepções burocráticas e autoritárias que esvaziam a contribuição e os conhecimentos práticos dos professores experientes. Finalmente, wna terceira orientação teórica se baseia em enfoques que, de uns trinta anos par il cá, vêm sendo propostos no campo da sociologia dos atores e da sociologia da ação: simbolismo interacionista, ctnom etodologia, estudo da lingur.gem comum ou cotidiana, estudo da comunicação e elas interações comunicaci.onais, pesquisa sobre as com petências sociais ou os saberes sociais dos atores, etc. Outras correntes de pesquisa mais recentes es tão presentes igualmente nessa orientação, entre as quais as tendências m ais críticas da sociologia contem.porãnea de inspiração neomarxis ta, pós-modernista ou pós-estruturalista que propõem uma crítica ao sujeito tradicional e, ao mesm o tempo, às tenta tivas de reformu lar novas concepções da subjetividade. Nessa terceira orientação, a subjetividade dos professores não se reduz à cognição,ou à vivência pessoal, m as remete às categorias, regras e linguagens sociais que estruturam a experiência dos atores nos processos de comunicação e de interação cotidiana. O pensamento, as competências e os saberes dos p rofessores não são vistos como realidades estritamente subjetivas, p ois são socialm ente construídos e partilhados. Por exemplo, d izer que wn professor sabe ensinar não é somente avaliar uma per ícia subjetiva fundada em competências profissionais, mas é, ao m esmo tem po, emitir um juízo social e norma tivo em relação a regras e a normas, a jogos de linguagem que definem a n atureza social da competência dos professores dentro da escola e da sociedade. Essas três dimen sões da p esquisa não são impermeáveis, pois entre elas ocorrem várias trocas teóricas e metodológicas. Com o passar do tempo, cada uma delas foi produzindo resultados de pesquisa interessantes e utilizáveis na formação dos professores e na pesquisa sobre o ensino. Entre-
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tanto, como já foi mostrado, elas se baseiam em visões bastante diferentes da s ubjetividade dos professores: a primeira privilegia uma visão cognitiva da s ubjetividade; a segunda, uma visão existencial; a terceira, uma visão social. Essas diferentes concep ções mostram que a questão d a subjetiv id ad e é rica e complexa, e pode ser estudada através de enfoques variados. Todavia, apesar das difere nças existentes enh·e elas, essas três concepções afirmam também que, em toda atividade profissional, é imp rescindível levar em consideração os pontos d e vis ta dos práticos, pois são eles realmente o polo ativo de seu próprio trabalho, e é a partir e através d e suas próprias experiências, tanto pessoais quanto profissionais, que constroem seus saberes, assimilam novos conhecimentos c competências e desenvolvem novas práticas e es tratégias de ação. Na conclusão, trataremos de algum as conseqüências p ráticas e políticas decorrentes dessa perspectiva. Antes, porém, gostaria d e mostrar que o pos tulado de que os professores são sujeitos competentes permite também compreender d e outra maneira as relações entre a teoria e a prática, entre a pesquisa e o ensino. 2 . Segunda consequência: repensar as relações
entre a teoria e a prática Se assumirmos o postulado d e que os professores são atores competentes, sujeitos ativos, deveremos admitir que a prática deles não é somente um espaço de aplicação de saberes provenientes da teoria, mas também um espaço de produção de saberes específicos oriw1dos dessa mesma p rática. Noutras palavras, o trabalho d os p rofessores de profissão deve ser considerado como um espaço p rático específico d e produção, de h·ansformação e de m obilização d e saberes e, portanto, de teorias, de conhecimentos e de saber-fazer específicos ao ofício de professor. Essa perspectiva equivale a fazer d o professor- tal como o professo r universitá rio
ou o pesquisador da educação- u m sujeito do conhecimento, um ator que desenvolve e possui sempre teorias, conhecim.entos e saberes d e sua própria ação. É uma ide ia qu~:: se op õe à concepção tradicional da relação en tre teoria e prática. De fa to, segundo essa concepção, o saber está somente do lado d a teoria, ao passo que a prática ou é desprovida d e saber ou por tadora de um falso saber baseado, por exemplo, em crenças, ideologias, ideias preconcebidas, etc. Além d isso, ai nda segundo essa concepção tradicional, o saber é produzido fora d a p rática (por exemplo, pela ciência, pela pesquisa p ura, etc.) e sua relação com a prática, por conseguinte, só pode ser uma relação d e aplicação. É exatamente esta concepção tradicional que dominou, e donúna ainda, de mane·ira geral, todas as visões da formação dos professores ta nto nas universidad es d o hemisfério Norte quan to nas universidades do hem isfério Sul: os professores são vistos como aplicadores dos conhecimentos produzidos pela pesquisa universitária, pesquisa essa que se desen volve, a maioria das vezes, fora da prática d o ofício de professor.
Mas a concepção tradicional não é apenas profundam ente redutora, ela também é contrária à realidade. Hoje, sabemos que aquilo que chamamos d e " teoria", d e "saber" ou de "conhecimentos" só existe através de um sistema de práticas e d e atores que as produzem e as assumem. Por exemplo, a pesquisa wuversitária na área da educação está assentada hoje num sistema de produção largamente institucionalizado e muito complexo onde ocorrem práticas de seleção e de financiamento da pesquisa, das práticas de construção e de difusão dos produtos teóricos, das práticas de redação e de estruturação discursiva, das práticas sociop olíticas de argumentação, d e justi fi cação, de defesa e de consolidação dos territórios discip linares e dos prestígios simbólicos, etc. Além do mais, tod as essas práticas são sus tentadas, assumidas, produzidas e reproduzidas por atores bem reais: administradores d a p esquisa, dirigentes políticos e financeiros, pesquisad ores de carreira, editores, leitores, con-
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sumidores da pesquisa, organizadores d e congressos e seus públicos, etc. Em suma, longe de se posicionar simplesmente do lado da teoria, a pesquisa na área da educação é regida e produzida por um sistema de práticas e de alores. Ora, a principal ilusão que parece dominar esse sistema, e que, ao mesmo tempo, serve para fw1d amen tá-lo dentro das universidades, é justamente o fato de levar a acredi tar que nelas podem ser p rod uzidas teorias sem práticas, conhecimentos sem ações, saberes sem enraizamento em atores e em sua su bjetividade. Ao m esmo tempo, em comp ensação, essa ilusão nega aos profissionais do ensino e às suas práticas o poder de produzir saberes autônomos e específicos ao seu traba lho. Noutras p<1 !avras, a ilusão tradicional d e uma teoria sem prática e de um saber sem subjetividade gera a ilusão inversa que vem jus tificá-la: a de uma p ráti ca sem teori a e de um sujeito sem saberes. De fa to, é como se o trabalho dos professores fosse permeado por diferentes sabe res (por exemplo, o saber d os peritos, o saber dos fu ncionários que elaboram os currículos, o saber dos d idatas e dos teóricos da pedagogia, o sabe•· p rod uzido pelas disciplinas cien tíficas e transpostos para as ma térias escolares, o saber oriundo das pesquisas na área d a educação, o saber p roveniente da sociedade ambiente e dos m eios de comun icação an tigos ou novos, etc.), mas esses saberes não pudessem nem devessem ser produzidos pelos p róprios professores. Compreender por que isso acon tece é uma questão de poder e não de ~aber, mas não abordaremos essa questão no momento. E preciso saber, porém , que todo trabalh o human o, mesmo o mais simples e mais previsível, exige do trabalhador u m saber e um saber-fazer. Noutras palavras, n ão existe trabalho sem um trabalhador que saiba fazê-lo, ou seja, que saiba pensar, produzir e reprodu zir as condições concretas d e seu próprio trabalho. O trabalho- com o toda práxis- exige, por conseguinte, um sujeito do trabalho, isto é, um ator gue utiliza, mobiliza e produz os saberes de seu trabalho. Não poderia ser diferente com os p rofessores, os quais realizam um trabalho que não é simples nem p revisí236
vel; mas complexo e enormemente influenciado pelas p róprias decisões e ações desses a tores. A oposição tradicional entre "teoria e prática" é muito pouco pertinente e demasiadamente simplificadora no que se refere aos aspectos epistemológico e conceitual. A pesquisa universitária na área da ed ucação e a prática do ofício de professor não são regidas pela relação entre teoria e prática, pois ambas são portadoras e produtoras de práticas e de saberes, de teorias e de ações, e ambas comp rometem os atores, seus conhecim entos e suas subjetividades. Nessa p erspectiva, a relação entre a pesquisa universitária e o trabalho d ocente n unca é uma relação entre um a teoria e uma prática, mas uma rebção entre atores, en tre sujeitos cujas p ráticas s5o portadoras ele saberes. 3. Algumas consequências práticas e políticas
Duas teses principais foram defendidas até aqui. Primei ra tese: os professores são sujeitos do conheci mento e possuem saberes especí~icos ao seu ofício. Segunda tese: a prática deles, o u seja, seu trabalho cotidiano, não é somente um lugar de aplicação de saberes produzidos por outros, mas também um espaço de produção, de transformação e de mobilização de saberes que lhe são próprios. Ora, se leva rmos essas duas teses a sér io e, sobretudo, se aceitarmos segui-las até as últimas consequências, elas conduzirão a uma nova concepção do ensino. Vejamos, de maneira sucinta, alguns elementos dessa nova con cepção relativa à pesquisa universitária em ciências da educação, à formação de professores e à organização d o ensino no ambiente escolar .
A pesquisa universitária · No que diz respeito às ciências da educação, a perspectiva defendida aqui propõe uma mudança radical nas concepções e nas práticas de pesquisa atualmente em vigor.
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Em primeiro I ugar, ela propõe que se pare de ver os professores de profissão como objetos de pesquisa e que eles passem. a ser considerados como sujeitos do conhecimento. Isso significa, noutras palavras, que a produção dos saberes sobre o ensin o não pode ser mais o privilégio exclusivo dos pesquisadores, os quais d evem reconhecer que os professores também possuem saberes, saberes esses que são diferentes dos conhecimentos universitários e obedecem a outros condicionantes prá ticos e a outras lógicas de ação. A pesquisa universitária sobre o ensino começará a progredir a partir do momento em que ela reconhecer que não produz uma teo ria sobre uma prática, m as que ela mesma é uma prática referente a atividades (ou seja, ensinar ) e a atores (ou seja, os professores) que dispõem de seus próprios saberes e de seus próprios pontos de vista. Em segundo lugar, essa perspectiva propõe a elaboração de novas formas de pesquisa universitária que considerem os professores de profissão não como cobaias, estatísticas ou objetos de pesquisa, mas como colaboradores e até como copesquisadores. De fato, se o professor é realmente um sujeito do conhecimento e um produtor de saberes, é preciso então reconhecê-lo como tal e dar-lhe um espaço nos dispositi vos de pesquisa . Pouco importa o nome que lhes dermos (pesquisa-ação, pesquisa colabora ti v a, pesquisa em parceria, etc.), essas novas formas de pesquisa exigem dos pesquisadores universitários um esforço importante para ultrapassar as lógicas científicas, disciplinares e monodisciplinares que regem atualmente o sistema de pesquisa i.nstitucionalizado nas universidades. Pensemos, por exemplo, na superespecialização da pesquisa universitária, na fragmentação dos campos de conhecimento, na "bitolaçã.o" dos pesquisadores a uma única disciplina, nos esforços que fazem para produz ir um conhecimento padronizado de acordo com as normas de sua disciplina, conhecimento esse que, muitíssimas vezes, não tem, infelizmente, nenhuma relação com o ensino e nenhum impacto sobre ele, pois é produzido de acordo com práticas, discursos e atores que agem em es-
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paços institucionais e simbólicos completamente separados da realidade do trabalho docente. Em terceiro lugar, essa perspectiva visél a produzir, pelo menos numa parte das ciências da educação, uma pcsqt~isa não sobre o ensino e sobre os professores, mas para o ensmo e com os professores. Noutras palavras, se a pesquisa universitária vê nos professores sujeitos do conhecimento, ela deve levar em consideração seus interesses, seus pon tos de vista, suas necessidades e suas linguagens, e assumir isso através de discursos e práticas acessíveis, úteis e significativas para os práticos. Se sou professor numa universidade do Rio de Janeiro e publico um artigo em inglês numa boa revista americana, é claro que isso é excelente para o meu currículo e para a tninha ascensão na carreira universitária, méls será que isso tem alguma utilidade para os professores do bairro da Pavuna nesta cidade? Este exemplo mostra que a pesquisa universitária sobre o ensino é dem~siadas vez~s produzida em benefício dos próprios pesqwsadores uruversitários. Noutras palavras, ela é esotérica, ou seja, modelad a para e pelos pesquisadores universitários, e enunciada em linguagem acadêmica e em função das lógicas disci plinares c das lógicas de carreira na universidade. Em consequência, ela tende a excluir os professores de profissão ou só se dirige a eles por meio de formas desvalorizadas ct~mo a da vulgarização científica ou da transmissão de conhecunentos de segw1da mão. Finalmente, em quarto lugar, a perspectiva aqui defendida exige, por parte dos professores de profissão, o esforço de se apropriarem da pesquisa e de aprenderem a reformular seus próprios discursos, perspectivas, interesses e necessidades individua is ou coletivos em linguagens susceptíveis de uma certa objetivação. Vinte anos de pesquisas mostram que os saberes dos professores se baseiam, : m ~oa parte, em sua experiência na profissão e em suas propnas c~m petências e habilidades individuais. Contudo, por deftrução, a experiência e as habilid ades indiv iduais, por serem sempre, e profundamente, ligadas a wna subjetividade, pre-
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cisam, se quiserem ser acessíveis e úteis aos outros professores e atores educacionais, ser reformuladas e traduzidas por meio de um discurso público susceptível de ser discutido e até contestado. Se os professores são, efetivamente, sujeitos do con hecimen to, devem fazer, então, o esforço d e agir como tais, ou seja, o esforço d e se tomarem atores capazes de nomear, de objetivar e de partilhar sua própria prática e sua vivência profissional.
A formação dos professores A perspectiva aqui apresentada também supõe certas mudanças substanciais nas concepções e nas práticas vigentes em relação à formação de professores. A esse respeito, d evem ser feitas três b reves cons iderações: Em primeiro lugar, reconhecer que os p rofessores de profissão são sujeitos do conhecimento é reconhecer, no mesmo tempo, que deveriam ter o direito de dizer algo a respeito de sua própria formação profissional, pouco importa que ela ocorra na universidade, nos ins titutos ou em qualquer outro lugar. É estranho que os p rofessores tenham a missão de formar pessoas e que se reconheça que possuem competências pa ra tal, mas q ue, ao mesmo tempo, não sereconh eça que possuem a competência para atuar em sua própria formação e para controlá-la, pelo menos em parte, is to é, ter o poder e o direito de determinar, com outros atores da educação, seus conteúdos e formas. Na América do Norte e, principalmente, nas três mais importantes províncias canadenses (a Colúmbia Britânica, Ontário e Quebec), têm sido feitos esforços importantes no sentido d e implantar currículos de formação de professores sobre os quais os professores de profissão tenham um certo controle legal, político e prático. Nas universidades americanas e canadenses, também se procura implantar vários e novos dispositivos d e formação nos quais os professores d e profissão sejam considerados, d e fato e de direito, formadores dos futuros professores. Esses .fenômenos, e muitos outros semelhantes, mostram que a formação para o magistério está se transformando lenta240
rnente, mas na direção certa, dru.1do um espaço cada vez m aior aos p rofessores de profissão, os quais se tornam parceiros dos professores universitários nn formação de seus futu ros colegas. Em segundo lugar, se o trabalho d os professores exige conhecimentos específicos a sua profissão e dela oriundos, então a formação de professores deveria, em boa parte, basear-se nesses conhecimentos. Mnis uma vez, é estranho que a formação d e professores tenha sido e ainda seja bastante dominada por conteúdos e lógicas disciplinares, e não profissionais. Na formação d e professores, ensinam-se teorias sociológicas, docimológicas, psicológicas, didáticas, filosóficas, históricas, pedagógicas, etc., que fo ram concebidas, a maioria das vezes, sem nenhum tipo de relação com o ensino nem com as realidades cotidianns do ofício de professor. Além do mais, essas teorias são m uitas vezes pregadas por professores que nunca colocaram os pés numa escola ou, o que é ainda pior, que não demonsh·am in teresse pelas realidades escolnres e pedagógicas, as quais consideram demas.i ad o triviais ou d emasiado técnicas. Assim, é normal que as teorias e aqueles qu e,as professam não tenham, para os futu ros p rofessores e para os professores d e p rofissão, nenhuma eficácia nem valor simbólico e prático. No entanto, se quero saber como realizar um trabalho qualquer, o procedimento mais normal consiste em aprendê-lo com aqueles que efetuam esse trabalho. Por que seria diferente no caso do magis tério? Somos obrigados a concluir que o principal desafio para a formação d e professores, nos próximos anos, será o de abrir um espaço maior para os conhecimentos dos práticos d en tro do próprio currículo. Finalmente, em terceiro lugar, a formação para o ensino ainda é enormemente organizada em torno das lógicas disciplinares. Ela funciona por especialização e fragmentação, oferecendo aos alw1os disciplinas d e 40 a 50 horas. Essas disciplinas (psicologia, fi losofia, didá tica, etc.) não têm relação entre elas, mas constituem unidades au tônomas fechadas sobre si m esmas e d e cu rta d uração e, portanto, de p ou-
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co impacto sobre os alunos. Essa formação também é concebida segundo um modelo aplicacionista do conhecimento: os alunos passam um certo número de anos "assistindo aulas" baseadas em disciplinas e constituídas, a maioria das vezes, d e conhecimen tos disciplinares d e natureza declarativa; depois ou durante essas aulas, eles vão estagiar para "aplica r" esses conhecimentos; finalmente, quando a formação termina, eles começam a trabalhar sozinhos, aprendendo seu ofício na prática e constatando, na maioria das vezes, que esses conhecimentos d isciplinares estão mal emaizados na ação cotidiana (WIDEEN et a L, 1998). O que é preciso não é exa tamente esvaziar a lógica disciplinar dos program.as de formação para o ensino, mas pelo menos abrir um espaço maior para wna lógica de formação profissional que reconheça os alunos como sujeitos do conhecimento e não simplesmente como espíritos virgens aos quais nos limitamos a fornecer conhecimentos disciplinares e inform<~ções procedi mentais, sem realizar um trabalho profundo relativo às crenças e expecta tivas cognitivas, sociais e afetivas através das q uais os futuros professores recebem e p rocessam esses conhecimentos e uúormações. Essa lógica p rofissional deve ser baseada na análise d as práticas, d as tarefas e d os conhecimen tos dos p rofessores d e profissão; ela d eve proceder por meio d e um en foque reflexivo, levando em conta os cond icionantes reais do trabalho docente e as estratégias utili zadas para elinúnar esses condicionantes na ação.
Consequências p olíticas Até agora, foram apresentad as consequências práticas e organizacionais relativas à p esquisa universitária e à formação de professores. Para terminar, serão tecidas consid erações a respeito de certas consequências políticas resultantes da perspectiva aqui d efendida. Nos últimos anos, tive a oportunidade de v iajar muitas vezes por vários países, tanto da Europa quanto das Américas. O que será dito a seguir está baseado, por tanto, tanto em minhas reflexões pessoais e em minhas pesquisas quanto no meu conhecilnento relativo à
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situação da profissão docen te nesses países. Duas ideias merecem destaque: A primeira é que os professores só serão reconhecidos como sujeitos do conhecimento quando lhes concedermos, dentro do sis tema escolar e d os estabelecimentos, o status ele verdadeiros atores, e não o de sim ples técnicos ou de executores das reformas da educação concebidas com base numa lógica bw-ocrálica " top and down". Pessoalmente, não vejo como posso ser um sujeito d o conhecimento se não sou, ao mesmo tempo, o ator da minha própria ação e o autor do meu próprio discurso. A desvalorização dos saberes d os professores pelas auto ridades educacionais, escolares e universitárias não é um problema epistemológico o u cognitivo, mas político. Histo r.icamentc, os professores foram, du rante muito tempo, associados a um corpo eclesial que agia com base nas virtudes da o bediência e da vocação. No século :>G'<, eles se tornaram um corpo estatal e ti veram que se submeter e se colocar a serviço das missões que lhes eram confiadas pela autoridade pública e est<~ tal. Portanto, seja corno corpo eclesial ou como corpo esta tal, os professores sempre estiveram subordinados a organi zações e a poderes maiores e mais fortes que eles, que os associavam a executores. Ainda hoje, na ma ior ia dos países, embora os professores ocupem a posição ma is importa nte entre os agentes escolares, embora o papel deles seja tão importante quanto o da comunidade científica, no que se refere ao aspecto sociocultural, eles se encontram, com muita frequência, em último lugar na longa sequência dos mecanismos de d ecisão e das estruturas de poder g ue regem a vida escolar. Em suma, seu poder, não somente na vida dos es tabelecimentos escolares, mas na org<~nização e no desenvolvimento d e seu próprio trabalho, é rea lmente muito reduzido. Entre tanto, se quisermos que os professores sejam st~eitos do conhecun ento, precisarem os dar-lhes tempo e espaço para que possam agir como atores autônomos de suas próprias práticas e como sujeitos competentes d e sua próp ria profissão. 243
Minha segunda ideia é a seguinte: Em todos os países que visitei nos últimos an os, pude obser var, no âmbito da profissão docente, muitas divisões internas que geram lutas de poder e de prestígio, exclusões e ignorâncias reciprocas enh·e todas as pessoas que têm a m issão de educar as novas gerações. Sou um professor de profissão. No Can adá, durante dez anos, ensinei mun nível que corresp onde mais ou menos ao fin1 do ensino médio no Brasil, e ensino há dez anos na universidade. Ora, o que vejo em meu país e em muitos outros é LUna profissão docente dividida que luta muitas vezes conh·a si mesma: os professores do secw1dário criticam a competência e o valor dos professores do prin1ário; os professores do primário e do secundário criticam os professores universitários, cujas pesquisas acham inúteis e demasiado abstratas; os professores universitários, q ue muitas vezes se consideram guardiães do saber e estão cheios de seus próprios conhecimentos, criticam os professores de profissão, pois julgam-nos apegados dem ais às tradições e rotinas. Por toda parte reinam hierarquias simbólicas e materiais estéreis entre os professores dos diferentes níveis de ensino. Defendo, portanto, a unidade da profissão docente do pré-escolar à universidade. Seremos reconhecidos socialmente como sujeitos do conhecimento e verdadeiros atores sociais quando começarmos a reconhecer-nos uns aos outros como pessoas competentes, pares iguais que podem aprender uns com os outros. Diante de ouh·o professor, seja ele do pré-escolar ou da universidade, nada tenho a mostrar ou a provar - mas posso aprender com ele como realizar melhor nosso ofício comwn.
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