Histórias de guerra, sonhos de paz: A Angola de Manuel Ma nuel ui e Pepetela Maria Crisina Baalha * ESUMO: O objeivo do arigo é o de mosrar a conribuição de Manuel ui e Pepeela, dois auores “menores”, segundo o conceio deleuziano, para a compreensão da realidade da Angola conemporânea, cuja hisória é revisiada aravés da fcção. Palavras-chave : Lieraura menor. Consrução ideniária. radição. Modernidade
Quando chegase, mais velhos conavam esórias. udo esava no seu lugar. A água. O som. A luz. É cero que podias er pedido para ouvir e ver as esórias que os mais velhos conavam quando chegase! Mas não! Preerise disparar os canhões. (Manuel ui. “Eu e o ouro – o invasor” invasor ” (ou em rês poucas linhas uma maneira de pensar o exo). MEDINA, 1987, p. 321
As obras que recoramos como cps para ese arigo – A pábl cág vlh , de Pepeela (2005), e “Isidoro e o cabrio”, de Manuel ui (2006) – abordam criicamene aspecos da sociedade angolana pós-colonial, acenuando o desencanameno irônico que se maniesa pela siuação arsesca, pelo riso e pelo groesco, groesco, no caso do cono de Manuel ui, e pela ensão exisene enre duas emporalidades diversas, dois modelos de sociedade, nascidas do conrono enre duas visões de mundo absoluamene absoluamene disinas, presenes na novela de Pepeela. Em ambos os casos, o embae enre a razão, o progresso e o conhecimeno cienífco, de um lado, e a sabedoria ancesral e a radição represenaada pela voz do idoso, de ouro, será relaivizado pela dura realidade da guerra que marcou indelevelmene a hisória do país. O universo narraivo susciado por essas obras nos insiga a desvendar um microcosmo espacial como uma dimensão simbólica relevane, aonde vêm deronar-se o regisro hisórico e a orça elúrica da naureza, prenunciando, prenunciando, conudo, a impossibilidade de as radições poderem ser recuperadas plenamene com oda a sua orça de elemeno organizador da culura angolana. Nesses relaos, os valores da modernidade são mediaizados pelo conhecimeno aeivo e pela percepçãoo da realidade que se maniesa em ouros níveis: a orça da radição, as crenças, os mios, percepçã a religião; em suma, elemenos que privilegiam o ranscenden ranscendenee das experiências humanas. A parir do desenvolvimeno de ais níveis, as narraivas aingem as camadas mais proundas do homem aricano, com seus quesionamenos de ordem espiriual. A realidade que surge na fcção de ui e de Pepeela aparece impregnada pela magia, por orças oculas – religiosas ou olclóricas – que desafam a razão, ou o modo ocidenal de pensar. Os escriores, preocupados em conronar e esabelecer relações enre a sua própria culura e a culura ocidenal e universal – e conscienes ambém de sua conemporaneidade, mergulham em sua região em busca de uma onologia própria, criando assim uma voz original que dialoga com ouras culuras. Essa voz que surge do “menor”, segundo Deleuze, promove uma lúcida radiografa da sociedade angolana conemporânea conemporânea e permie abordar criicamene as mazelas e conradições da hisória do país. Como lembra obson Dura, esses escriores promovem uma “críica alegórica que esmiúça os desvãos do imaginário social e culural de Angola aravés aravés de esraégias que conjugam a radição e a modernidade” (DUR, 2009, p. 60). IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
Nos dois exemplos que razemos aqui, o velho e o novo coabiam lado a lado na busca inruíera de recuperação da harmonia míica perdida no empo, que ambos sabem, enreano, ser apenas um sonho de nação muio mais “idealizada” do que real. Ou seja, vemos aí conronadas duas imagens: a Mama-Árica, idealizada, míica, dadivosa, éden a ser resgaado; e uma Árica devasada pelas guerras, pela ome, pelas doenças e pela miséria do povo. Pelo viés alegórico, essas narraivas azem a denúncia das conradições do presene marcado pela guerra, pelas inconsisências, os desajuses e as sequelas do araso e d a pobreza. Ao rabalharem com a memória e o reperório das radições, dos mios e supersições ancoradas no animismo religioso, Manuel ui e Pepeela consroem sua lieraura combinando a orça da palavra poéica às vivências da hisória, aravés de relaos de humor, da paródia, e, sobreudo, imprimindo um uso novo e peculiar à língua poruguesa, à qual mesclam elemenos das línguas aricanas locais e uma nova sinaxe proveniene do regisro da oralidade. Com eeio, na Árica de um modo geral, a exisência de uma lieraura escria resula da coexisência da lieraura oral radicional, conjugada a uma verene escria em língua europeia. Conorme mosra Carmen Lúcia . Secco, Manuel ui, por exemplo, “em clareza de que o processo de reconsrução da própria idenidade esá inimamene associado à recuperação das marizes orais dilaceradas por séculos de opressão” (SECCO, 2003, p. 24). A lieraura de Pepeela e de Manuel ui consroem-se, assim, a parir da conjugação da “voz e da lera”, ou seja, da “herança radicional aricana a que se uniu o azer lierário”, como bem observa obson Dura (DUR, 2009, p. 62). Essa nos parece ser uma das conribuições mais relevanes das lierauras pós-coloniais para a chamada “lieraura mundo”. Essa fcção, orjada pela exigência de demarcação ideniária e pela necessidade de problemaização dos processos hisóricos nascidos da colonização e descolonização, surge como uma conraparida lierária ao adveno da culura globalizada, insalando a presença do Ouro, anes colonizado e agora Sujeio independene, no seio de uma culura doravane mundializada (MOUR, 1999, p. 179). Ora, endências universalizanes geram suas próprias conradições e promovem a ragmenação na globalização, ou seja, a deasagem do universal que empurra para a busca da radição e para a revalorização das dierenças culurais como imperaivo da sobrevivência social. Nese senido, o exo lierário, viso agora como pare da culura em senido amplo, acompanha as ransormações recenes envolvendo a lieraura e a culura de seu país e do mundo, e essa ensão enre os dierenes modos de inerpreação leva à possibilidade de nascimeno de novos senidos. Nas sociedades modernas, onde predomina a orça do empo presene e o passado parece consanemene ameaçado de dissolução, a lieraura empenha-se em fxar relaos de memória e dar vida renovada a mundos esquecidos que nos permiam enender o que somos e para onde desejamos ir. O campo lierário orna-se o cenário de ações afrmaivas e deesas errioriais, e a subjeividade auoral é aravessada pela culura e, de maneira específca, pela própria língua (DELEUZE; GUATAI, 1975). Assim, culura, subjeividade, língua e erriório mosram-se, desse pono de visa, elemenos indissociáveis quando se raa mais paricularmene de uma “lieraura menor”. Manuel ui: “Isidoro e o cabrito” Agilidade, ironia e humor caracerizam a fcção de Manuel ui, que promove a críica do conexo social angolano ano dos empos da colonização, quano dos novos empos de independência. O cono “Isidoro e o cabrio” (UI, 2006) nos mosra a hisória de um jovem médico – douor Vieira – que é levado por um companheiro, o “camarada” Carlos Albero, aé o inerior de Angola IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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para curar a ebre de Isidoro, acomeido pelo impaludismo. Ese, apegado à erra e sem er nunca saído de sua região, resise em deixar a casa para ir ao hospial. Para a mulher, ele esá com “os espírios da ebre” (UI, 2006, p. 65). Já aí veem-se conronadas e relaivizadas duas maneiras dierenes de encarar as doenças e seu raameno: conradioriamene, o “camarada” Albero conessa que ambém acredia nos “espírios”, o que provoca reação do médico. Isidoro, após uma injeção – remédio que, para os camponeses, é sempre inalível e represena o máximo da modernidade que podem olerar, acaba curado da doença, não sem a paralela e providencial, segundo os habianes da região, ajuda das práicas caseiras de cura conra os “espírios” das doenças. A noícia espalha-se pela província e a ama do “douor Goa Espessa” (UI, 2006, p. 74) chega a Luanda, onde ele ermina por ornar-se, por acaso e pela orça das hisórias que conam sobre ele, um especialisa em ineco-conagiosas. Isidoro inha, por sua vez, “passado a acrediar na medicina como acrediava em Deus, no eiiço ou nas palavras de ordem que ouvia de vez em quando pela boca dos flhos” (UI, 2006, p. 75). Conronado a duas realidades que parecem irreconciliáveis, o jovem douor quesiona-se sobre as razões do araso e de hábios aniquados que ainda imperam no inerior, como a luz, que vem de um velho candeeiro, ao invés de erem luz a peróleo: “Não percebo. ão pero da cidade. Com geladeira a peróleo. ádio com baeria de carro e luz de candeeiro. O que é que cusava um pequeno gerador ou uma puxada da esrada, que o cabo de energia não esá assim ão longe” (UI, 2006, p. 66). Isidoro e o douor ornam-se amigos e compadres; os conselhos do médico passam a azer lenamene eeio sobre a vida conservadora e reraária a mudanças do velho Isidoro. De presene, a amília ganha de Vieira os peromaxes para a luz: A dona e as crianças, logo na segunda noie depois daquela esa, queriam os peromaxes acesos. E o Isidoro disse não. Que aquilo era um luxo, ora vejam, de peromaxes odos os dias! Esava-me a senhora a explicar essa maka quando carregávamos a baaa e o Isidoro inha ido no mao (UI, 2006, p. 79).
Douor Vieira é ranserido para Luanda, sinal de ascensão em sua carreira. Carlos Albero prepara enão uma ida à capial, convidando Isidoro, que nunca havia saído de suas erras, para acompanhá-lo. Animado, conjeura ele, lembrando-se dos ensinamenos de seu pai: “Olhe que vale a pena viajar e só os anos que eu já perdi quando era miúdo e nem havia guerra mas isso era a ideia do meu pai que em se saindo só se aprendia o mal (...)” (UI, 2006, p. 84). No caminho, as reerências à guerra esão por oda pare: “Daqui aé Benguela, irando a esrada e a chuva udo vai mais ou menos. De Benguela aé Kanjala é que é a zona das emboscadas e minas” (UI, 2006, p. 82). Como é Naal, Isidoro leva um cabrio de presene para o compadre Vieira. No percurso, “um olho nos dois caminhões” que acompanhavam o comboio, levando a sua produção que seria vendida na capial, e o ouro, “no cabrio”, que seguia arás do jipe, amarrado em uma corda. Isidoro observa aônio o ráfco, o movimeno acelerado e a conusão dos prédios de Luanda. Em uma das paradas do comboio, Isidoro e o cabrio desaparecem sem deixar vesígios. Ao presar queixas à polícia, Carlos Albero é adverido por urar a “fla”, nova maneira de reerir-se à “bicha”, como era comumene usada em Angola (UI, 2006, p. 93). Chegam à casa de Vieira, as mercadorias são enregues, mas as buscas coninuam e as “operações” são ironicamene descrias como manobras miliares de guerra, paródia que expõe com humor a desproporção enre o objeo e as ações empreendidas. Finalmene, enconram Isidoro e a cena envereda pelo groesco, com o “espeáculo” de um “branco a correr arás de um cabrio”, com a “polícia e os miúdos a baer palmas” (UI, 2006, p. 98). Isidoro, cansado da correria, explica que o cabrio havia roído a corda sem que ivessem IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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percebido, num sinal de que não queria seguir viagem aé Angola. Acabou se solando e começou a correr no meio do rânsio da cidade, sendo perseguido pelo velho. Quano ao cabrio, senencia o velho Isidoro: “Ó compadre, desculpe. Ese cabrio já não esá em condições e ambém quer volar e esá no direio dele. E fcou a chorar agarrado ao cabrio ane o olhar miso de inriga e compaixão dos miúdos” (UI, 2006, p. 100). Como vemos, o raameno irônico e parodísico esá presene em vários momenos desse exo: logo na aberura, com a designação de “camarada douor” e “ camarada Albero”, numa alusão aos empos ainda recenes da lua revolucionária, aplicada à banalidade da empreiada dos dois companheiros, como se esivessem numa “missão” a serviço da pária; ambém a reerência à segurança da propriedade de Isidoro que é eia por “gansos”; a viagem que é descria como “manobra de guerra”; a lógica peculiar do velho Isidoro, em conrono com a lógica “moderna” e a argumenação racional de Carlos Albero e Vieira, como no recho que desacamos abaixo. - Vocês aqui êm que usar produo conra os mosquios e usar mosquieiros nas camas. Sabe, ó Isidoro, que anda a morrer gene com paludismo cerebral?, diz o médico. - O douor é que sabe. Mas acho que as pessoas que já morreram e as que esarão a morrer agora nem odas é disso que o camarada douor disse (UI, 2006, p. 69).
A abordagem humorísica esá ambém presene no que oca à religião, esreiamene vinculada ao modo de vida da população local, denunciando as práicas ancesrais, diíceis de serem aleradas: - Você, ó Carlos, ambém acredia nisso de amarrar a chuva? - Sim. E a dona Any e o Isidoro ambém. Eu nunca paguei porque enho sempre água de uma nascene mas o Isidoro em água da vala mas quando é preciso amarrar ele paga ao eiiceiro da chuva (UI, 2006, p. 70).
ui empenha-se em ecer uma críica bem-humorada e irreverene da sociedade angolana, desvendando os melindres que povoam o imaginário social e culural do país, ser vindo-se de recursos que aliam os elemenos da modernidade e os da radição. O narrador, ao debruçar-se sobre sua realidade local, universaliza o erriório no qual circulam os personagens, condensando as quesões que perpassam o nosso empo, e acena, desse modo, para as conradições de uma modernidade problemáica, muio mais imposa do que desejada eeivamene. Em seu cono, as roneiras são mencionadas, mas são como erriórios similares e não como países esrangeiros, como o Zaire, por exemplo. Na verdade, a Árica é um conceio culural e não apenas simplesmene um espaço geográfco reduor, delimiado por linhas errioriais imposas pelos colonizadores europeus. As mazelas e os descaminhos de uma hisória marcada por relações de violência e opressão são obsáculos reais a serem enrenados na reconsrução das novas nações aricanas pós-coloniais. Esse processo e seus desvios são ironizados por Manuel ui em sua obra aravés da denúncia suil dos desmandos e incoerências dos que deêm o poder, da burocracia e da corrupção. Aqui, evidencia-se, por exemplo, a críica à medicina que é praicada no país, onde os agenes são lançados a campo sem nenhuma experiência e, muias vezes, sem ormação: Agradeço-e esa missão. Mandaram-me para o Lubango quase sem eságio. Aqui, no hospial, enho aprendido muio com médicos cubanos e ouros, mas principalmene com esse camarada rovais que começou de enermeiro no empo colonial, ia azendo biologia aí nessa exensão da universidade, depois IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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ez-se por si, e de ver um grande insrumenisa de cirurgia e o grande médico, olha que ele não é médico, mas é o grande médico anesesisa, é enermeiro, é clínico geral e dá aulas de biologia (UI, 2006, p. 71).
Sem enender a guerra, Isidoro comena ao deparar-se com um erriório onde a agriculura viceja aramene: “Ó camarada Carlos Albero! É comida da chuva e do céu e é alguma revolução que anda a pôr minas na comida que ninguém lavrou e em vez de lavrarem ainda por cima minas?” (UI, 2006, p. 86). Na voz de Manuel ui não se escondem os desequilíbrios e as desigualdades que marcam proundamene a sociedade angolana, mas o que nos parece imporane assinalar é a superação da visão dicoômica na abordagem de assunos candenes ao subdesenvolvimeno e à diícil consrução da democracia. Aravés da relaivização de valores herdados da radição e das imposições da modernidade, ui escapa das esquemaizações reduoras. No cono “Isidoro e o cabrio”, Isidoro é branco, mas é ele quem represena o velho deposiário das radições, ao passo que o médico, jovem deensor das novas ideias, é negro. O ema é raado com humor quando Carlos Albero diz ao companheiro: “Francamene, Isidoro! Nem pareces um branco!” Ao que o ouro responde: “Aé que sou uma pessoa, sô Carlos Albero, e nunca pensava isso de si. Um camarada do comiê provincial abaixo o racismo! Abaixo o racismo! Você é que esá a dar uma de branco!” (UI, 2006, p. 88-9). A relaivização do binômio radição-modernidade é reduplicada pela opção pela “oraura”, marca disiniva de sua obra, assim como da de muios auores aricanos. Conorme mosra Carmen Lúcia . Secco: “Ele [Manuel ui] em clareza de que o processo de reconsrução da própria idenidade esá inimamene associado à recuperação das marizes orais dilaceradas por séculos de opressão” (SECCO, 2003, p.24). A expressão em seu exo adquire, assim, a uidez própria da oralidade que se aualiza aravés da sinaxe omada empresada às esruuras dessa orma de comunicação. A oralidade, caracerísica do modo de ransmissão das culuras aricanas, é enão reaualizada, encenando as vozes dos gs , guardiões da sabedoria ancesral. Daí a imporância dos diados e máximas proverbiais proeridos pelos personagens, como elemenos consiuines de um dos modos aricanos de pensar. Como desaca Honora Aguessy: (...) os provérbios não são obras secundárias e, além disso, revelam-se como sendo belos sms de longas e amadurecidas reexões, resulado de experiências mil vezes confrmadas. O caráer anônimo dos provérbios raduz a sua prounda inserção no âmago da experiência e da vida coleiva, depois de longas rodagens e experiências (AGUESSY, 1977, p. 118).
Ao omar a palavra, o narrador imprime à are de conar a perspeciva de “quem cona um cono aumena um pono”, numa alusão à orma de ransmissão das inormações e dos valores culurais das sociedades aricanas: Aí, o al de Isidoro já passava nas bocas para Isidoro dos gansos que se inha curado à beira da more com cabidela e pirão de massambala (...) e ainda sepidavam poruguês-mumuilamene de acrescenameno que: o clínico, ele mesmo e naquela hora lá em casa do paciene, eria mandado a dona Any preparar um rolho de erva-de-sana-maria própria para maculo de miúdos e que o al rolho oi enfado no cu desse mais-velho Isidoro e que anes que o doene se adormecesse ambém o próprio douor lhe meeu uma ea de cabra na boca e o Isidoro mamou leie de cabra aé largar a ea já com o sono sem ebre e IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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adormecer cagar nessas lombrigas de miúdos e se aguenar em pé para alar alo com a ropa dele os gansos: vamos embora! (UI, 2006, p. 72-3).
Além disso, convivem com a língua poruguesa do colonizador, já “angolizada”, um léxico vindo de ouras línguas e dialeos angolanos, neologismos, inovações sináicas, num processo de consane recriação verbal: a mulher de Isidoro conversa em mumuíla; a especialidade de Isidoro é a “kaijerina”, bebida à base de angerina que aprendeu com um médico cubano, e a “jiropiga de laranja” (UI, 2006, p. 67). Manuel ui, num de seus conhecidos ensaios, eoriza sobre o processo de ranserência de um para o ouro e o diálogo enre o regisro oral e o regisro escrio. Diz ele: Eu sou poea, escrior, lierao. Da oraura à minha escria que só me resa o vocabular, signo a signo em busca do som, do rimo que procuro raduzir numa ou oura língua. E mesmo que regisre o exo oral para esr uuras dierenes – as da escria – a parir do momeno em que o escreva e procure diundi-lo por esse regisro, quase assumo a more do que oi oral: a oraura sem griô; sem a árvore sob a qual a esória oi conada; sem a gasronomia que condiciona a esória; sem a ogueira que aquece a esória, o rio, o riual (UI, 1979, p. 541).
Esse parece ser enão um recurso que permie aos escriores conciliar as raízes aricanas mais proundas e os imperaivos da modernidade. Por isso, explica Carmen Lúcia indó Secco: Grande pare desses escriores sabe, conudo, da impossibilidade de as radições poderem ser resgaadas em sua ineireza primeva. Assim, com domínio de modernas écnicas de “fngimeno” lierário, reeem sobre o próprio ao da criação e, muias vezes, rerabalham provérbios, adivinhas, máximas, criando siuações simuladas de oraura na cena exual (SECCO, 2003, p.12).
Pepetela : A parábola do cágado velho Com um raameno oalmene diverso da obra de Manuel ui que analisamos acima – e ambém de muias ouras obras de Pepeela, nessa narraiva, o humor esá ausene e a ironia aparece de orma muio subliminar. Enreano, exise em comum a proposa de uma releiura fccionalizada da hisória, das radições e da culura angolanas. A presença da memória do passado, a nosalgia como busca de algo perdido num passado disane e o mesmo olhar de desencano e espano diane do novo permeiam os dois exos. Aqui, a dura realidade da guerra é visa pelo olhar de um idoso que enxerga o “ouro lado ” do mundo, num relao que misura a maéria míica com a maéria hisórica, o empo cíclico e o empo cronológico, permiindo revisiar as imagens que a colonização, a descolonização e a independência engendraram. Nesse recano angolano, lugar fcício onde imperam o misério e o medo, e onde ressoam as marcas das paixões humanas – amor, ciúmes, ódio, a inriga em como pano de undo a guerra civil que devasou o país. Como anigo membro do MPLA (Movimeno Popular para a Liberação de Angola), e endo paricipado aivamene do processo de liberação de seu país, luando como g uerrilheiro na região do Mayombe, em Cabinda e, poseriormene, na Frene Lese, Pepeela esá consciene do papel undamenal do escrior no processo de consrução da independência da nação. Sua proposa é enão dupla: perenizar as radições e lendas mas, ao mesmo empo, promover a críica da culura exógena que ena impor padrões culurais alheios à vocação do homem angolano. Como já se anuncia no IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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íulo, A pábl cág vlh (PEPEELA, 2005) reraa, pelo uso da parábola, a hisória de Angola após a lua pela emancipação do país e a guerra raricida que se desencadeia em seguida. O que vemos é uma hisória de amor em meio a uma lua sangrena, desumana e devasadora, na qual os valores míicos angolanos se chocam com uma modernidade ora do lugar. O proagonisa, Ulume, camponês deposiário das radições e valores ancesrais que sineizam emblemaicamene oda a hisória angolana, comparilha com um velho animal de hábios milenares uma sabedoria que os promoores da guerra e dos novos empos cismam em desconsiderar. O relao se consrói enão em orno do chee de uma amília que guarda as radições ancesrais e ala em nome de oda uma comunidade rural. erriório da memória, mais simbólico do que propriamene uma realidade geográfca, o pequeno povoado é habiado por pessoas que ambém se apresenam como represenações sinéicas da população angolana: Ulume, nome do proagonisa, designa “o homem”, e Munakasi, “a mulher”, em um ouro dialeo; escolhidos em meio às diversas línguas que coexisem em Angola, são nomes-sínese da herança culural de seu país. A novela descreve a idenidade caóica e ingovernável na qual a nação angolana se ransor mou, aingida por uma guerra enre dierenes acções políicas, simbolizada pelos irmãos Luzolo e Kanda que luam, cada um deles, em um campo dierene, e que se enrenam com violência diane do olhar espanado e desorienado dos pais e demais habianes do vilarejo, para os quais parece impossível deerminar quem é o verdadeiro inimigo e quem não é. Quaisquer que sejam eles, deixam arás de si um rasro de devasação, campos desruídos pelas minas, uma agriculura perdida, jovens mulheres violadas, empobrecimeno, miséria e more. A cada passagem das ropas, é preciso recomeçar do zero: reazer a criação, replanar os campos, esperar novas colheias, driblar as minas e sorer as muilações que elas acarream. Uma pare dos moradores do vilarejo decide insalar-se em ouro lugar, longe da esrada por onde passam habiualmene os soldados, o que os orna sempre mais vulneráveis às vicissiudes da guerra. Aasados do udo e de odos, undam um novo povoado e azem enre si um paco de silêncio, a fm de não revelar a ninguém o local onde vivem, para não desperar a ganância dos soldados que saqueiam os vilarejos por onde passam, em nome dos imperaivos da guerra. Apenas Ulume e sua mulher resisem e permanecem onde nasceram, por medo de que, ao reornarem da guerra, os flhos Luzolo e Kanda não enconrem mais o anigo povoado de seus pais. A guerra, cujas causas os camponeses ignoram, não az nenhum senido para eles, pois os resulados se raduzem sempre pela desruição e a miséria que carregam arás de si. Aos habianes das pobres comunidades rurais, não resa senão enar sobreviver e reinvenar a cada insane o sonho comuniário de uma paz possível, represenada emblemaicamene pelo amor de Ulume por sua segunda esposa, a jovem Munakasi, de vola à amília, depois de sua raição e a parida para Calpe, cidade que se afgura como a represenação sineizada da nação angolana após a descolonização. Com eeio, Calpe é o espaço das ideias novas, que conesam os anigos valores ribais, e que araem os jovens, ansiosos por melhores condições de vida e sensíveis aos apelos da modernidade (BAALHA, 2009). A hisória do idoso Ilume, voz da ancesralidade – a quem cabe a area de ransmiir a culura aos mais jovens pelo radição da oralidade – com marcas da culura aricana, mescla uma inriga conjugal ocada em ciúmes, desamores, inveja e eiiços à realidade concrea da guerra, responsável pela divisão énica e erriorial. Enre o ideal nacionalisa e a disopia real na qual Angola se ransormou após a evolução, Pepeela busca examinar o passado que possa produzir senido para o presene e que seja capaz de projear-se para o uuro. Nesse senido, o quesionameno críico do processo de modernização implemenado em seu país opera-se pelo diálogo com a radição, ornando-se assim um diálogo híbrido. Pepeela fccionaliza os aos hisóricos para, ao mesmo empo em que az uma reexão críica sobre eles, empreender a reomada da herança míica que esá na raiz da culura angolana. IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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De ao, Calpe, cidade imaginária que aparece ambém em ouros romances de Pepeela, é emblemáica do descompasso enre a modernidade e a radição. Calpe serve de espaço-cobaia para a implanação de um cero projeo de civilização que não leva em cona as paricularidades das diversas nações angolanas, sobreudo aquelas que oram consruídas em consonância com os princípios onológicos, que fcaram de ora dos projeos gesados nos grandes cenros de decisão políica e econômica. Nela, concenram-se odas as conradições do processo revolucionário e odos os descaminhos provocados por aqueles que deêm o poder em suas mãos e agem em ineresse próprio. Como lembra obson Dura: “Ao alegorizar o ecido hisórico, a obra de Pepeela busca novas maneiras de reeir sobre seu país (...) a fm de que o presene da nação possa ser compreendido, assim como possam ser pensadas algumas direrizes para seu uuro” (DUR, 2009, p. 20). Assim, a Pábl nos oerece um relao alegórico que preende reinvenar a nação a parir da esperança, da paz e do amor, buscando, aravés do resgae do conhecimeno aeivo, reunir as orças conradiórias em jogo na consrução de uma nação moderna. Conclusão O rabalho eséico e a qualidade poéica da lieraura que se produz na Árica esá longe de ser roulada, como o azem alguns segmenos da críica ocidenal, como uma “lieraura menor”, no senido de “baixa qualidade”. alvez a grande conribuição desses “menores” seja o ao de reinvenarem poeicamene uma linguagem que leva em cona as esruuras da oralidade, marcas da radição aricana de um modo geral e que remona aos empos imemoriais da oraura. Nos dois exemplos que rouxemos aqui, o velho e o novo convivem numa enaiva de recuperação da harmonia míica perdida no empo, embora o om amargo apone para mais uma uopia da nação “desejada”. Ambas as obras azem a denúncia das conradições do presene aravés do seu conrono com a herança do passado. Como adverem Deleuze e Guatari em seus esudos sobre a “lieraura menor”, como o espaço dessa lieraura é exíguo, odo empreendimeno individual ransorma-se imediaamene em empreendimeno políico (DELEUZE; GUATAI, 1975, p. 30). De ao, ano o cono de Manuel ui como a novela de Pepeela ilusram o desejo desses escriores de revelar os melindres da sociedade angolana conemporânea, reescrevendo criicamene a hisória desse país. Se os empos são de guerra, os sonhos são de paz. Na jovem nação dividida pelas luas raricidas que mergulharam o país na miséria e na dor, os velhos sonhos de liberdade, jusiça e igualdade sociais permanecem vivos. Esse desejo, como lembram Jean-Marc Moura e Jean Bessière, az do romance uma “escriura do direio; essa escriura do direio az da lieraura o que esende os limies da polis, reorça a sociedade civil, sua linguagem e suas possibilidades” (BESSIÈE; MOUR, 1999, p. 9). Do choque enre a radição e a modernidade conroversa, onde o endógeno e o exógeno vêm se misurar, alvez seja mais prudene deixar a palavra com o narrador que ala sobre a sabedoria de Ilume. Diz ele que: Ulume já se inha preocupado mais com essas ideias. Quando os brancos oram embora e os jovens griavam palavras dessas (conra a poligamia), acrediou mesmo não iam escapar a proundas mudanças. Pelo menos os mais velhos esavam desesperados, davam murros no peio, dizendo vão acabar com odas as radições, que será de nós ? Mas parece que apenas em Calpe (cidade) e nas ouras cidades oram aplicadas novas leis. Pelo menos no kimbo (aldeia) fcou udo na mesma. E com o empo as pessoas esqueceram as ameaças de IPOTESI, Juiz de Fora, v. 14, n. 2, p. 179 - 187, jl./. 2010
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ransormações radicais. Kanda alava nisso a Munakasi (Mulher) ? Muio bem. Uma coisa é o que se diz e o que se sonha, oura é o que se cumpre. O veno que uiva muio não é perigoso, diria a cágado velho se alasse. Ulume se deeve nese pensameno. Esava a improvisar provérbios, o que poderia ser maléfco. Aé porque o veno que uiva pode arrancar uma chapa do elhado duma casa e corar o pescoço a alguém, já inha aconecido (PEPEELA, 2005, p. 57).
Histories of war and dreams of peace: Angola by Manuel ui and Pepetela ABSTRCT: e aim o his paper is o show he conribuion o Manuel ui and Pepeela, wo “minor” wriers in erms o deleuzian conceps, o he undersanding o he curren Angola´s realiy which is revisied by means o lieraure. KEYWODS: Minor lieraure. Ideniy consrucion. radiion. Moderniy
Nota explicativa: *
Proessora do Deparameno de Leras Neolainas, UEJ.
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