© Éditions Gallimard 1976, nova edição revista e aumentada cm 1985 Reservam-se os direitos desta edição à EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA. Rua Argentina, Argentina, 171 - Io andar - São Cristóvão 20921-380 - Rio de de Janeiro, Janeiro, RJ - República Federativa Federativa do Bras Brasil il Tel.: Tel.: (21) 2585-2060 2585- 2060 Fax: (21) 2585-2086 2585-2 086 Brasil Printed in Brazil / Impresso no Brasil Atendemos pelo Reembolso Postal
ISBN 978-85-03-00923-2
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Capa: I s a b e l l a
P e r r o t t a / H y b r
i s D e s i g n
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
R74r 2a ed.
Rosset, Clément, 1939O real e seu duplo: duplo: ensaio sobre a ilusão / Clément Rosset; [apresentação e tradução de José Thomaz Tho maz Brum]. Brum]. - 2" ed., revista. revista. - Rio de Janeir Janeiro: o: José Olym pio, 2008. . - (Sabor (Sabor Literári Literário) o) Tradução de: Le réel et son double ISBN 978-85-03-00923-2 1. Alucinações e ilusões. I. Título. II. Série.
08-0561
CDD - 153. 153.7 7 CDU - 159.937. 159.937.3 3
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Rosset, Clément, 1939O real e seu duplo: duplo: ensaio sobre a ilusão / Clément Rosset; [apresentação e tradução de José Thomaz Tho maz Brum]. Brum]. - 2" ed., revista. revista. - Rio de Janeir Janeiro: o: José Olym pio, 2008. . - (Sabor (Sabor Literári Literário) o) Tradução de: Le réel et son double ISBN 978-85-03-00923-2 1. Alucinações e ilusões. I. Título. II. Série.
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SUMÁRIO
Apresentação: U m a filosofi filosofiaa do real, 7 Introdução: A ilusão e o duplo, dupl o, 13 A ilusão oracular: o acontecimento e seu duplo, 27 A ilusão metafísica: o mundo e seu duplo, 57 A ilusão psicológica psicológica:: o homem hom em e seu seu duplo d uplo,, 83 Conclusão, 119
5
crever esta noção que foi pela primeira vez elaborada como filosofia por Nietzsche em O nascimento da tragé dia (1872). E nesta obra, para Rosset, que se encontra a
grande “descoberta” de Nietzsche: “a alegria deve ser buscada não na harmonia, mas na dissonância”.i3 * Após alguns panfletos satíricos, como Lettre sur les chimpanzés (1965), Rosset formula em Logique du pire
(1971) as condições de possibilidade de um a filosofia da aprovação que nã o é outra coisa senão o estabelecimento
do caráter filosófico do discurso trágico. Utilizando como conceito-chave a idéia de acaso (hasard), afirma que “o que existe não constitui, aos olhos do pensador trágico, uma ‘natureza’, mas um acaso... quer dizer, uma nãonatureza no sentido clássico do termo”.4 Esta filosofia afirmativa ensina que a realidade deve ser aprovada incondicionalmente, alegremente, e que existe um vínculo necessário entre o trágico e a afirmação. Aprofundamento das noções encontradas em seu prim eiro ensaio, a obra descreve um êxtase diante daquilo que não é “nem natureza, nem ser, nem objeto adequa do ao pensamento”, isto é, o acaso. Trazendo o mesmo subtítulo, Elementos para uma filosofia trágica, A antinatureza (1973) é o texto da tese iLa Philosophie Tragique. Paris: PUF, p. 50. *Lo giq ue d u pire. Paris: PUF, 1971, p. 43. Publicado no Brasil sob o título Lógica do pior. Rio de Janeiro: Garamond.
8
irazendo-o para sua origem: a recusa do real. E aí que se apresenta, pela primeira vez, a idéia do real como idiota, ■.cgundo a etimologia do grego idiotès, único e singular. I.sta noção é o fundamento de Le Réel— traité de Vidiotie ( 1977) e de LObjetsingulier (1979), onde é formulada uma "ontologia do real cuja particularidade é não se apoiar soI>rc o pensamento de seu ‘ser’ nem sobre o de sua ‘unida
Esta atitude jubilosa e trágica diante da realidade idio ta é um a crítica indireta às filosofias que pretend em in terpretar o real para impor-lhe um sentido. Para Rosset,
leitor de filósofos materialistas como Lucrécio, o real não é algo que deva ser objeto de apreciação ou reform a, mas de júbilo sem motivo. Daí o interesse pela alegria como índice do saber trágico. Não a alegria ordinária, “sen timento passageiro de felicidade e, em grande parte, ilusório”,5mas o saber alegre, a gaya scienza, onde “a in tensidade da alegria pode ser medida segundo a quanti dade de saber trágico que ela implica”.6 O pensamento de Clément Rosset possui conexões com filósofos tão díspares como Gilles Deleuze e E. M. Cioran. Com o autor de De Vlnconvénient d ’être né par tilha a preocupação com a “insignificância, a doença e o efêmero”.7De Deleuze, ressalta a idéia de que “o fundo do espírito é delírio, acaso, indiferença”.8Mas ambas as aproximações são incompletas, porque elidem o essen cial de seu pensamen to: a concepção de “um real verda deiramente rico e desejável, que não seria apoiado pela hipótese de u ma outra instância, religiosa, ontológica ou
^LObjet singulier. Paris: Minuit, 1979, p. 97. 6Idem, p. 99. 7Entrevista a Christian De scam ps. In: L e Mond e Dip lom atiq ue, 12-12-1982. eRevista LArc, 1980, n° 49, dedicada a Giles D eleu ze, p. 91.
10
11istórica”.9N a realidade sem “natureza”, onde nada é exi raordinário nem ordinário, e “tudo é constitucionalmenlc excepcional”, o trágico e a afirmação encontram-se em um acorde aleatório. A presença de Nietzsche, entrevista nas teses de Lói'ira do pior eA antinatureza pode ser percebida neste O real c seu duplo. Esta visão do único, da irredutível sin
gularidade do que existe, foi expressa— no que concerne .10
indivíduo — na terceira Intempestiva: “No fundo, todo homem sabe muito bem que só vi
verá um a vez, que é um caso único, e qu e jamais o acaMi, por mais caprichoso que seja, poderá reunir duas vezes uma variedade tão singular de qualidades fundidas em um todo.”10 José Thomaz Brum Rio de Janeiro, dezembro de 1987.
"l.e Monde Diplomatique, 12-12-1982.
INTRODUÇÃO A IL U SÃ O E O D U P L O
“Quero falar de sua mania de negar o que é, e de explicar o que não é.” E. A. POE, Duplo assassinato na rua Morgue
N a d a mais frágil do que a faculdade hum ana de ad mitir a realidade, de aceitar sem reservas a imperiosa prer rogativa do real. Esta faculdade falha tão freqüentem ente que parece razoável imaginar que ela não implica o re conhecimento de um direito imprescritível — o do real a ser percebido — , mas representa antes um a espécie de tolerância, condicional e provisória. Tolerância que cada um pode suspender à sua vontade, assim que as circuns13
tâncias o exijam: um pouco como as aduanas que podem decidir de um dia para outro que a garrafa de álcool ou os dez maços de cigarros — “tolerados” até en tão — não passarão mais. Se os viajantes abusam da complacência das aduan as, estas demonstram firmeza e anula m todo o direito de passagem. Da mesma forma, o real só é admi tido sob certas condições e apenas até certo ponto: se ele abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa. Um a inte rrupç ão de percepção coloca então a consciên cia a salvo de qualquer espetáculo indesejável. Quanto ao real, se ele insiste e teima em ser percebido, sempre poderá se mostrar em outro lugar. Esta recusa do real pode, naturalmen te, tomar formas muito variadas. A realidade pode ser recusada radical mente, considerada p ura e simplesmente como não-ser: “Isto — qu e julgo perceber — não existe.” As técnicas a serviço de uma tal negação radical são, aliás, elas mes mas muito diversas. Posso aniq uila r o real an iquiland o a mim mesmo: fórmula do suicídio, que parece a mais se gura de todas, ainda que, apesar de tudo, um minúsculo coeficiente de incerteza pareça vinculado a ela, se acre ditarmos, por exemplo, em Hamlet: “Quem gostaria de carregar esses fardos, gemer e suar sob uma vida fatigante, se o temor de algo após a morte, desta região inex plorada, de onde nen hu m viajante retorna, não perturbasse a von tade e não nos fizesse suportar os males que temos por 14
medo de nos lançarmos naqueles que não conhecemos?” Posso também suprimir o real com menores inconveni entes, salvando a minha vida ao preço de uma ruína mental: fórmula da loucura, muito segura também , mas que não está ao alcance de qualquer um, como lembra uma célebre frase do doutor Ey: “Não é louco quem quer”. Em troca da perda de meu equilíbrio mental, ob terei uma proteção mais ou menos eficaz com relação ao real: afastamento provisório no caso àorecalcamento des crito por Freud (subsistem vestígios do real em meu in consciente), ocultação total no caso da forclusão descrita por Lacan. Posso, enfim, sem sacrificar nada da minha vida nem de minha lucidez, decidir não ver um real do qual, sob outro ponto de vista, reconheço a existência: atitude de cegueira voluntária, que simboliza o gesto de Edipo furando os olhos, no final de Édipo Rei, e que encontra aplicações mais ordinárias no uso imoderado do álcool ou da droga. Entretanto, essas formas radicais de recusa do real permanecem marginais e relativamente excepcionais. A atitude mais comum, face à realidade desagradável, é bastante diferente. Se o real me incomoda e se desejo livrar-me dele, me desembaraçarei de uma ma neira geral mente mais flexível, graças a um modo de recepção do olhar que se situa a meio-caminho entre a admissão e a expulsão pura e simples: que não diz sim nem não à coi 15
sa percebida, percebid a, ou melhor, m elhor, diz a ela ao mesmo mesm o tempo tem po sim e não. Sim à coisa percebida, não às conseqüências que norm almente alme nte deveríam deveríam resultar dela. dela. Esta outra ma nei ra de se livrar livrar do real assemelha-se a um raciocínio raciocínio justo coroado por uma u ma conclusão conclusão aberrante: aberrante: é uma percepção percepção just ju staa q u e se revela reve la impo im pote tent ntee pa para ra acio ac iona narr um u m co comp mpor or tamento adaptado à percepção. Não me recuso a ver, e não nego em nada o real real que me é mostrado. mostrado. Mas minha minh a complacência pára por aí. Vi, admiti, mas que não me peça pe çam m mais. mais . Q u a n to ao restan res tante, te, m a n ten te n h o o me meu p on to de vist vista, a, persisto persisto no meu comportam com portamento, ento, exatamente exatam ente como se não tives tivesse se visto visto nada. Coexistem paradoxalm parad oxalmen en te a minha percepção presente e o meu ponto de vista anterior. anterior. Aí, Aí, trata-se trata-se menos meno s de um u m a percepção errônea do que de uma percepção percepção inútil. Esta “percepção “percepção inútil” inú til” constitui, ao que qu e parece, uma das característ características icas mais marcantes marcan tes da ilusão. Estaríamos prov pr ovav avelm elmen ente te en enga gana nado doss em co cons nsid ider erar ar esta co como mo re re sultando sultand o principalm princ ipalmente ente de uma deficiência deficiência no olhar. olhar. Às Às vezes se diz que o iludido não vê: ele está cego, cegado. É inútil a realidade se oferecer oferecer à sua percepção: ele não consegue percebê-la, ou a percebe deformada, tão com ple p leta tam m en ente te aten at ento to q ue está ap apen enas as aos fan f anta tasm smas as de sua imaginação e de seu desejo. Esta análise, válida sem ne nhuma dúvida para os casos propriamente clínicos de recusa ou ausência de percepção, parece muito sumária 16
no caso da ilusão. Menos ainda que sumária: antes à margem de seu objeto. Na N a ilusão, ilusão , qu q u e r dizer, n a forma form a mais corrent corr entee de afas tamento do real, não se observa uma recusa de percep ção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar. Mas no que concerne concern e à aptidão para p ara ver, ver, o iludido vê, vê, à sua maneir m aneira, a, tão tão claro claro quanto qu anto qualqu qua lquer er outro. outro. Esta verdade verdade aparente mente paradoxal paradoxal se torna percep perceptív tível el a partir do m omento om ento em que q ue pensamo pensa moss no que qu e se passa com a pessoa cega, cega, tal tal como nos mostra a experiência concreta e cotidiana, ou ainda o romance e o teatro. Alceste, por exemplo, em O misantropo, vê bem, de forma perfeita e total, que Cé-
limène limèn e é um a coquete: esta percepção, percepção, que qu e ele acolhe acolhe todo dia sem protestar, nunca é posta em questão. E, no en tanto, Alceste está cego: não por não ver, mas por não associar seus atos à sua percepção. O que vê é colocado como fora de circuito circuito:: o coquetismo coqueti smo de Célim ène é perce bido e admi ad mitido tido,, mas ma s estr e stran anha ham m ente en te separa se parado do dos efeitos que seu reconhecimento deveria normalmente acarretar no plano prático. prático. Pode-se dizer que q ue a percepção do ilu dido é como que cindida em dois: o aspecto teórico (que designa justamente justamen te “aquilo que qu e se vê”, vê”, de théorein) eman cipa-se artificialmente artificialme nte do aspecto aspecto prático (“aquilo (“aquilo que se faz”). Aliás, é por isso que este homem afinal de contas “normal” que é o iludido está, no íntimo, muito mais 17
doente do que o neurótico: porque, de maneira diferente do segundo, ele é deliberadamente incurável. Aquele que está cego é incurável não por ser cego, mas sim por ser dotado de visão: porque é impossível lhe “fazer ver de outra forma” form a” algo que já viu e que qu e ain da vê. vê. Toda “advertência” vertência ” é vã: vã: não n ão se poderia pode ria “adv ertir” alguém q ue já tem, debaixo dos olhos, aquilo que se pretende que ele veja. No recalcamento, na forclusão, o real pode eventualm ente reapare reaparecer, cer, se acreditarmos na psicanáli psicanálise, se, graças a um “retorno do recalcado”, nos sonhos e nos atos falhos. Mas, na ilusão, esta esperança é vã: o real não aí. Observaremos de pasvoltará voltará jamais, porq ue já está está aí.
sagem a que ponto o doente de que os psicanalistas se ocupam representa um caso caso anódin o e, e, em suma, benigno, em comparação com o homem normal. A expressã expressão o literária mais perfeita da recusa da re alidade é talvez talvez a oferecid oferecidaa por Georges Co urteline urteli ne em sua célebre peça Boubouroche (1893). Boubouroche instalou a sua sua amante, Adèle, Adèle, em um p equeno equ eno apartam ento. U m vizinho de andar de Adèle previne caridosamente Bou bour bo uroc oche he da traição trai ção cotid co tidian ianaa de q ue é vítim vít imaa este ú ltilt imo: Adèle partilha o seu apartamento com um jovem namorado que se esconde num armário toda vez que Boubouroche Boubo uroche visit visitaa a sua amante. Louco de raiva, raiva, BouBo u bour bo uroc oche he irro ir rom m pe n a casa de Adèle nu m a ho h o ra in ab itua it ua l e descob descobre re o amante no armário. Cólera de Boubouroche, B oubouroche, 18
'
i qual Adèle responde com um silêncio desgostoso e ini lignado: “Você é tão vulgar”, declara ao seu protetor, “que ii.io merece nem a mais simples explicação que logo telia dado a outro, se ele tivesse sido menos grosseiro. É melhor nos separarmos”. Boubouroche admite imediai.uncnte os seus erros e o infundado de suas suspeitas: depois de ser perdoado por Adèle, só lhe resta voltar-se contra o vizinho de andar, o odioso caluniador (“Você é um velho corno e um imbecil”). Esta pequena peça cha ma imediatamente atenção por uma característica singular: ao contrário do que acontece freqüentemente, a vitima de um logro não se satisfaz aqui com nenhuma desculpa, com nenhum a explicação. O espetáculo de seu infortúnio não é velado por nenhuma sombra. Há, em suma, um impasse para o engodo: a vítima de um logro 11ão tem necessidade de ser enganada, basta-lhe realmente ser vítima de um logro. É que a ilusão não está do lado daquilo que se vê, daquilo que se percebe: assim se ex plica que se possa, como Boubouroche, ser vítima de um logro ao mesmo tempo que não se está sendo en ganado por nada. E, contudo, Boubouroche, mesmo desfrutando de uma visão correta dos acontecimentos, mesmo tendo surpreendido o seu rival no esconderi jo, continua a acreditar na inocência da sua am ante. Essa “cegueira” merece que nos detenham os um po u co nela. 19
Imaginemos que, por uma razão ou por outra, eu esteja ao volante do meu carro, muito apressado para chegar ao destino, e encontre um sinal vermelho no m eu caminho. Posso me resignar ao atraso que ele causa, parar o meu veiculo e esperar que o sinal mude para o verde: aceitação do real. Posso também recusar um a percepção que contraria meus propósitos; decido então ignorar a interdição e ultrapasso o sinal, isto é, procuro não ver um real cuja existência reconhecí: atitud e de Edipo furando os próprios olhos. Ainda posso, sempre na hipótese de uma recusa de percepção, considerar rapidamente que este obstáculo colocado no meu c aminho acarretará um sofrimento demasiado cruel para minhas faculdades de adaptação ao real; decido então acabar com isso suicidan do-me com o auxílio de um revólver guardado no meu porta-luvas, ou “recalco” a imagem do sinal vermelho no me u inconsciente. Assim enterrado, este sinal vermelho qu e ultrapassei jamais virá à tona na m inh a consciência, a menos q ue um psicanalista ou um policial se envolvam. Nestes dois últimos casos (suicídio, recalcamento), opus um a recusa de percepção à necessidade de parar em que a percepção do sinal vermelho teria me colocado. Mas ainda existe outro meio de ignorar esta necessidade, que se distingue de todos os meios precedentes no que faz justiça ao real, concordando assim, pelo menos em 20
aparência, com a percepção “normal”: percebo que o si nal está vermelho— mas concluo que é a minha vez depassar. É exatamente o que acontece com Boubouroche. O raciocínio que o tranqüiliza podería se enunciar mais ou menos assim: “Há um rapaz no armário — logo Adèle é inocente, e eu não sou cornudo.” Esta é, na verdade, a estrutura fundamental da ilusão: uma arte de perceber com exatidão, mas de ignorar a conseqüência. Assim, o iludido transforma o acontecimento único que percebe cm dois acontecimentos que não coincidem, de tal modo que a coisa que percebe é posta em outro lugar, incapaz de se confundir consigo mesma. Tudo se passa como se o acontecimento fosse magicamente cindido em dois, ou melhor, como se dois aspectos do mesmo acontecimento viessem a assumir cada um uma existência autônoma. No caso de Boubouroche, o fato de Adèle ter escondido um amante e o fato de ele ser um cornudo tornam-se miraculosamente independentes um do outro. Descartes diría que a ilusão de Boubouroche consiste em tomar uma “distinção formal” por uma “distinção real”: Bou bouroche é incapaz de perceber a ligação essencial que, no cogito, une o “eu penso” ao “eu existo”; ligação exem plar da qual uma das inúm eras aplicações ensinaria a Boubouroche que é impossível distinguir realmente en tre “minha mulher me trai” e “sou um cornudo”.
Outro exemplo notável de uma tal ilusão, inteiramente análoga à de Boubouroche, está em Proust, em No caminho de Swann. Num dia em que se prepara para enviar sua
“mesada” habitual a Odette (que lhe tinha sido inicialmen te apresentada como uma mulher sustentada, qualidade que esquecera desde que se apaixonara por ela), Swann se per gunta subitamente se o ato que está realizando não equiva le precisamente a sustentar uma mulher; se o fato de um a mulher receber dinheiro de um homem, como Odette re cebe dele próprio, não coincide justamente com o fato de ser o que se chama uma “mulher sustentada”. Percepção fugaz do real, que o amor de Swann por Odette logo apa gou: “Não pôde aprofundar tal idéia, pois um ataque de preguiça de espírito, que lhe era congênita, intermitente e providencial, veio naquele momento extinguir toda luz em sua inteligência, tão subitamente como, mais tarde, depois de instalada por toda parte a iluminação elétrica, se podería cortar a eletricidade numa casa. Seu pensamento tateou um instante nas trevas, ele redrou o pincenê, enxugou-lhe os vidros, passou a mão pelos olhos, e só tornou a ver a luz quando se encontrou em presença de uma idéia muito di ferente, isto é, de que no próximo mês deveria mandar a Odette seis ou sete mil francos, em vez de cinco mil, por causa da surpresa e júbilo que isso lhe causaria.”* *Cf! N o cam inh o de Swann, tradução de Mário Quintana. São Paulo: Edr tora Globo, 1995, p. 226-7. (N. do T.)
22
I Jma tal “preguiça de espírito” consiste essencialmeni.Tiii separar em dois o que é apenas um, em distinguir •mrc mulher amada e mulher paga; e Proust tem realMicnte razão em qualificar esta preguiça de “congênita”. Mas é preciso acrescentar que esta preguiça não é exclu•iva de Swann nem da paixão amorosa. Ela também i mi cerne à totalidade do gênero humano, de quem reIa
um homem no arm ário— mas olhe para o lado, ali, como amo você.” O ensaio que se segue pretende esclarecer o vínculo entre a ilusão e o duplo, mostrar que a estru tura fu nda mental da ilusão não é outra senão a estru tura paradoxal do duplo. Paradoxal po rque a noção do duplo, como veremos, implica nela mesma u m paradoxo: ser ao mesmo tempo ela própria e outra. O tema do duplo é, em geral, associado principalmente aos fenômenos de desdobramento de personalidade (esquizofrênica ou paranóica) e à literatura, particularmente a romântica, na q ual se encontram múltiplos ecos seus: como se este tema dissesse respeito essencialmente aos confins da normalidade psicológica e, no plan o literário, a um certo período rom ântico e moderno. Veremos qu e não é assim, e que o tema do duplo está presente em um espaço cultural infinitamente mais vasto, isto é, no espaço de toda ilusão: já presente, por exemplo, na ilusão oracular ligada à tragédia grega e aos seus derivados (duplicação do acontecimento), ou na ilusão metafísica inerente às filosofias de inspiração idealista (duplicação do real em geral: o “outro mundo”).
24
O real e seu d up lo
A ILUSÃO ORACULAR: O A C O N T E C I M E N T O E SE U D U P L O
/
I j um a característica ao mesmo tempo geral e parado
xal dos oráculos o fato de se realizarem surpreendendo pela sua própria realização. O oráculo tem o dom de anunciar o acontecimento por antecipação: de modo que aquele ao qual este acontecimento é destinado tem tem po de se preparar para ele e de, eventualmente, tentar impedi-lo. Ora, o acontecimento se efetua tal como fora vaticinado (ou anunciado por um sonho ou alguma ou tra manifestação premonitória); mas esta efetuação tem a curiosa sina de não corresponder à expectativa no pró prio mom ento em que esta deveria julgar-se satisfeita. A é anunciado, A se produz e não o reencontramos mais aí. Pelo menos não exatamente. Entre o acontecimento anunciado e o acontecimento efetuado há um tipo de 27
diferença sutil qu e basta para d esconcertar aquele que , no entanto, esperava precisamente aquilo de que é testemunha. Ele reconhece sim, mas logo não o reco nhece mais. Entretanto, não ocorreu nada além do acontecimento an unciado. Mas este, inexplicavelmente, é outro. Um a fábula de Esopo, 0 rapaz e o leão pintado — da qual existem numerosas outras versões tanto antigas quanto mode rnas —•, ilustra esta particularidade geral mente associada à realização dos oráculos: Um ancião timorato tinha um filho único cheio de co ragem e apaixonado pela caça: sonhou que este mor ria nas garras de um leão. Temendo que o sonho se realizasse, mandou construir um palácio custoso e magnífico para servir de moradia ao filho. Para dis traí-lo, mandara pintar nas paredes animais de todo tipo, entre os quais figurava um leão. Mas a visão de todas essas pinturas só fez aumentar o desgosto do ra paz. Um dia, aproximando-se do leão, exclamou: “Fera cruel, foi por sua causa e por causa do sonho mentiro so do meu pai que me trancaram nesta prisão para mu lheres.” Com estas palavras, bateu com a mão na pare de para arrancar o olho do leão. Mas um prego se cra vou na sua unha causando-lhe uma dor violenta e uma inflamação que resultou em um tumor. A febre que então ardia logo fez com que passasse da vida para a 28
morte. Embora fosse pintado, o leão não deixou de matar o rapaz, para quem o artifício do pai de nada serviu.1
De que se trata aqui, se abstraímos a moral exposta por Esopo, que se lim ita a observar que “é preciso acei tar corajosamente a sorte que nos espera, e não tentar trapacear, porqu e dela não saberiamos fug ir” ? Trata-se, evidentemente, do destino, e, no presente caso, de seus ardis: quer dizer que o real — o conjunto dos aconteci
mentos designados para a existência — é dado como ine lutável (destino), chamado então a se produzir a despeito de todos os esforços empreendidos para obstá-lo (ainda que pelo subterfúgio de um “ardil”). Se acontece de es tarmos prevenidos de antemão desta necessidade inerente a todo acontecimento, e logo teoricamente capazes de impedi-lo, o destino responderá com um estratagema qu e frustrará a tentativa de esquiva e, às vezes, até se diverti rá — eis a sua ironia — em transformar a esquiva no próprio meio de sua realização, de modo que, em tais casos, aquele que procura impedir o acontecimento te mido se torna o agente de sua própria desgraça, e o des tino, por elegância ou por preguiça, delega aqui às vítimas a responsabilidade de fazer todo o trabalho no seu lugar.
'Fábula 295, trad. E. Chambry. Paris, Les Belles Lettres.
29
Este é, como sempre foi dito com pertinência, o sentido mais evidente deste tipo de fábula. Mas, além deste primeiro sentido, existe certamente outro, mais rico e mais geral. A prova disso é o fato de esta fábula — e toda história análoga — con dnu ar a interes sar, a revelar à atenção daqu ele que a escuta alguma ver dade profunda, independente, então, de toda consideração do destino e de seus ardis. Qu em sabe realmente qu e nunca existiu nada parecido com o destino e com a inelutabilidade — como La Fontaine que, retomando a fábula de Esopo, extrai do apólogo uma moral inversa e assimila os efeitos do destino a “efeitos do acaso”2— qu e reconhece em toda fábula onde figuram estes temas uma reconstituição feita posteriormente e destinada a marcar com o selo da neces sidade o que tinha sido apenas um encadeamento ocasio nal e aleatório, reconhece entretanto nessas pinturas do destino o eco de uma certa verdade. Parece que algo fala nessas histórias. Este algo está claramente ligado, antes de tudo, à sen sação de ter sido enganado. Diz-se que fomos apenas um joguete nas mãos do destino; passada a ilusão do desti no, permanece a sensação de ter sido um joguete, quer dizer, de ter sido enganado. Exatamente no sentido em que, na esgrima ou em outro lugar, somos surpreendi
do horóscopo”, Fábulas, VIII, p. 16. 30
dos por um a frnta. Protegeu-se à esquerda enquanto era atacado à direita. E, ao se proteger, deixou sem defesa precisamente o lugar vulnerável, de modo que o gesto da esquiva veio se confundir com o gesto fatal. Ainda não é dizer o bastante: o gesto da esquiva e o gesto fatal são apenas um único e mesm o gesto, como o misterioso ca minho de Heráclito, q ue ao mesmo tempo sobe e desce.3 O oráculo só se realizou graças a esta malfadada pre caução, e é o próprio ato de evitar o destino que acaba por coincidir com a sua realização. Se bem que, em suma, a profecia não anuncie nada além do gesto de esquiva infeliz. Esta estrutura irônica, ou mais precisamente elíptica, da realização dos oráculos é muito freqüente e constitui mesmo um dos temas favoritos da literatura oracular. Pode-se observar, em primeiro lugar, que esta falha da “defesa” é apenas um aspecto bastante banal d a fmitude humana. Para se proteger de forma eficaz, para estar em segurança total, seria necessário poder pensar em tudo ao mesmo tempo. Ora, sabe-se qu e se o homem possui o privilégio de pensar, não recebeu o dom da ubiqüidade intelectual: ele pensa alguma coisa num dado momen to, e nada mais naquele momento. Eis por que sempre
3“0 cam inho qu e sobe e o cam inho que desce é um e o me sm o” (Frag me nto 60).
pode se torn ar u ma presa fácil: p orqu e, en quan to se pro tege aqui, sempre haverá milhares de ali por onde pegálo. Esta fragilidade, que constitui o tema da
Toca
de
Kafka, dá profund idade ao dito dos nzakara, habitantes da República Centro-Africana, tal como relata
mme.
Retel-Laurentin: “Quem sabe o que pode acontecer na outra
extremidade da alde ia?”4
No en tanto , o logro ligado à defesa desastrosa do homem diante do seu destino não é apenas o indício de um a finitude. Significa também um logro de uma espé cie inteiramente diferente, qu e se refere não mais ao des tino — sendo este ausente e inexistente — , mas à própria consciência daquele que se sente enganado. E evidente que não existe destino; também é evidente que, na au sência de qu alq ue r destino, existe ardil, ilusão e engodo. Como estes não podem ser atribuídos a um destino ir responsável já que não existente, resta procurar a sua origem em um lugar mais responsável e mais tangível. Se é verdade que o acontecimento surpreendeu a expec tativa ao mesmo tem po q ue a satisfazia, é que a expecta tiva é culpada, e o acontecim ento, inocente. O logro não está, então, do lado do acontecimento, mas do lado da expectativa. A análise da expectativa frustrada revela que, na verdade, inventa-se, paralelamente à percepção do*
*Di vin ati on et rationalitê. Paris: Ed. du Seuil, p. 303.
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r lato, uma idéia espontânea segundo a qual o aconteci mento, ao se realizar, eliminou uma outra versão do acon tecimento, aquela mesma que precisamente se esperava. Esta é uma impressão muito forte, para retomar, modifi cando um pouco o sentido, as palavras de Hume: por que é notável esta impressão de ter previsto outra coisa ;ilém da que realmente aconteceu — impressão que po dería encontrar uma aparência de fundamento no caso de oráculos como o da fábula de Esopo citada anteriorinente: o filho do rei podería ter morrido nas garras de um leão feito de carne e osso — ; é notável, então, que esta impressão de ter previsto o acontecimento de outra maneira persiste até nos casos em que se pode demonsirar que nenhuma versão do acontecimento fora realmentc prevista nem representada, aliás, nem previsível ou rcpresentável, antes que o acontecimento tenha ocorrido. Três outros exemplos bastarão para ilustrar esta es(ranha faculdade que possui o oráculo de surpreender ao mesmo tempo em que não frustra nenhuma expectativa real: a lenda de Édipo, segundo o Édipo Rei de Sófocles; a história de Sigismundo, em A vida é um sonho, de Calderón; um conto árabe, narrado por Jacques Deval em sua peça Esta noite em Samarcande. Lenda de Édipo — um oráculo prediz aos soberanos de Tebas — Laio e Jocasta — que o seu filho Édipo mataria o pai e se casaria com a mãe. Abandonado ao 33
nascer nas encostas de uma montanha, Édipo é recolhi do pelos soberanos de Corinto — Pólibo e Mérope — que, na falta de outro herdeiro, o adotam e criam como seu filho. Sabendo da profecia que o ameaça, Édipo dei xa bruscamente Corinto e seus supostos pais, tentando escapar ao seu destino. No caminho reencontrará o seu verdadeiro pai e o matará, resolverá o enigma da Esfinge e entrará em Tebas como vencedor, para lá se casar com a própria mãe, viúva do soberano morto. História de Sigismundo — Basílio, rei da Polônia, fez o horóscopo do seu filho Sigismundo, na ocasião do seu nascimento, e descobriu que os astros predestina vam seu filho a se tornar o monarca mais cruel que já existiu — “um monstro sob a forma humana” —>cuja primeira atitude seria dirigir sua força selvagem contra o pai para esmagá-lo. Apavorado com esses augúrios sinis tros, manda prender Sigismundo numa torre isolada onde este não tem nenhum a possibilidade de contato com os humanos, com a exceção do seu preceptor Clotaldo. Quando atinge a maioridade, Clotaldo liberta Sigis mundo por um dia e o apresenta à sua corte, para confir mar a verdade do horóscopo. Furioso pelos vinte anos de cativeiro, Sigismundo se comporta de acordo com a pro fecia. Trazido de volta à sua torre, e logo depois libertado por uma revolta popular, Sigismundo — que daí em diante não sabe mais se sonha ou se está acordado — 34
realiza até o fim a predição do horóscopo: tendo assumi do o comando da revolta, vence o pai, que não tem outra saída a não ser jogar-se a seus pés para implorar pela sua improvável piedade. Mas o horóscopo interrom pera suas previsões nesse instante, e, segundo a habitual estrutura oracular, a peça terminará de maneira ao mesmo tempo inesperada e conforme a predição, já que o fim da peça surpreende a expectativa ao mesmo tempo em que con corda justamente com o oráculo: tornado sábio por sua dúvida quanto ao real, Sigismundo reergue o pai e lhe restitui todas as honras devidas à sua condição real. Conto árabe —
Era u ma vez, em Bagdá, um Califa e
seu Vizir... Um dia, o Vizir apareceu diante do Califa, pálido e trêmulo: “Perdoa o meu pavor, Luz dos Fiéis, mas uma m ulher esbarrou em mim na m ultidão diante do palácio. Voltei-me: e essa mulher de tez pálida, de ca belos escuros, com o busto coberto por u ma man ta ver melha, era a Morte. Ao me ver, fez um gesto na minha direção. (...) Já que a morte me procura aqui, Senhor, permita que eu fuja para me esconder bem longe, em Samarcande. Se me apressar, chegarei lá antes desta no i te.” Então, afastou-se a galope no seu cavalo e desapare ceu num a nuvem de poeira na direção de Samarcande. O Califa saiu então de seu palácio e também encon trou a Morte: “Por que assustou o meu Vizir que é jo saudável?”
ntou. E a Morte respondeu: “Não
quis assustá-lo, mas, ao vê-lo em Bagdá, tive um gesto de surpresa, porque o espero esta noite, em Samarcande.”5 A analogia estrutural das três histórias é evidente. Nos três casos, a predição se realiza pelo próprio gesto que pretende conjurá-la: Édipo, Basílio e o Vizir encontram o seu destino por terem desejado evitá-lo. É deixando Co rinto que É dipo vai ao encontro de seus verdadei ros pais, é prendendo o filho que Basílio o transforma no monstro que predisse o horóscopo, é correndo para Samarcande que o Vizir se dirige para a morte da qual tenta fugir. Mas esta estrutura é comum à maioria das histórias que representam realizações de oráculos. Aqui, a atenção se dirige para outra particularidade, mais sin gular e mais profunda: para o fato dos três heróis desta mesma desventura serem igualmente incapazes, se tal lhes fosse pedido, de fornecer detalhes sobre a natureza de sua desdita. Todos os três foram enganados, mas ne nhum sabería dizer qual é o acontecimento esperado que o acontecimento real veio apagar de maneira inespera da, ou ainda “oblíqua”, para retomar o adjetivo que qualifica o oráculo de Delfos, Apollon Loxias.** O acon tecimento temido ocorreu, mas se produziu frustrando a 5Jacques De val, Esta noite em Samarcande, ato I.
*Apollon Loxias: o adjetivo loxós significa, ao mesmo tempo, oblíquo e equívoco. A palavra do oráculo é ambígua, loxós. Cf. A. Bailly, Abrégé du Diclionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, p. 539. (At do T.)
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expectativa do mesmo acontecimento, o qual certamente
se julga que devia realmente ter ocorrido, mas de manei ra diferente. No entanto, é impossível dizer em que con siste esta “outra” maneira. Essa mesma estrutura oracular c encontrada no filme C’est arrivédemain , de René Clair (1943), com a variante sutil que aqui não é mais a ma neira como se realiza o acontecimento predito que sur preende, mas a n atureza exata — e insuspeitável — do acontecimento em si. (§e sentímos dúvidas sobre este assunto temos apenas) cjue consultar os próprios interessados, e pedir-lhes para se dignarem a precisar qual era, na sua mente, a versão tio acontecimento temido, antes que este fosse substituído pelo acontecim ento real. Caso interrogado, o Vizir res ponderá que esperava realmente morrer naq uela noite, mas não daquela forma nem naquele lugar (Samar cande) : ele temia morrer de outra forma, e em outro lu gar. Que outra forma, que outro lugar? Não sei; mas nem esta noite nem em Samarcande. O rei da Polônia, Basí lio, responderá que sabia, de fato, que o filho usaria de violência e o derrubaria p or terra: entretanto, não desta maneira, completamente inesperada, como se deu o acon tecimento. De que outra maneira, então? Basílio só po dia esperar o acontecimento lá onde o desafiara e pensara haver tornado a sua execução impossível: não será pre ciso coagi-lo para que admita que, havendo tornado 37
impossível o acontecimento em condições “normais”, ele não temia nenhum a realização precisa do horóscopo, e que a sua surpresa diante da maneira pela qual este se realizou não nega u ma outra possibilidade de realização. A versão real dos fatos, no espírito do rei, não contradiz, então, nenhuma outra versão, ou pelo menos só parece contradizer um a versão fantasmática, jamais pensada. O caso de Édipo parece, à primeira análise, mais comple xo. Édipo mata o pai e se casa com a própria mãe sem conhecer suas respectivas identidades; no que a realiza ção do oráculo contradiz uma versão do acontecimento datada, desta vez, de um conteúdo preciso: o assassinato de Pólibo e o casamento com Mérope, os soberanos de Corinto, que Édipo acredita serem os seus pais. No en tanto, trata-se aí de uma visão abstrata, incapaz de se concretizar numa história real: uma vez prevenido da ameaça que pesa sobre o seu destino e deixando Corinto às pressas, Édipo decide não tocar nem em Pólibo nem em Mérope. Desde então, permanece a questão: como Édipo podería proceder para m atar o pai e se casar com a mãe, a não ser matando por acaso um homem e se ca sando ocasionalmente com uma m ulher que seriam jus tamente seu pai e sua mãe, não sendo, ao mesmo tempo, nem Pólibo nem Mérope? Pode-se insistir, no entanto: a maneira como Édipo realiza a profecia é um ardil assi nado pelo destino. Admitamos; mas em que outro ardil 38
pensar? Esperaríamos em vão um a resposta precisa para esta questão ela mesma oblíqua: a não ser a que consiste em reafirmar obstinadamente que o acontecimento era esperado em outro lugar, e de outra maneira, sem que nunca se possa precisar a natureza deste outro lugar e desta outra maneira. É verdade que poderiamos pensar na hipótese extrema segundo a qual, sendo Pólibo e Mérope os verdadeiros pais de Édipo, este último acaba ria por matar um e se casar com o outro por acidente ou por engano. Podemos, por exemplo, imaginar um aces so de cólera maníaco, uma crise de sonambulismo, ou ainda um disfarce ou uma caracterização qualquer que impediríam Édipo de reconhecer Pólibo naquele que ele mata, e Mérope naquela com quem se casa. Este tema do disfarce, aliás, está presente de forma profunda — mas em um nível simbólico — no destino real de Edipo, já que seus pais verdadeiros estão, de certo modo, disfar çados sob feições estranhas, tomando emprestado de Pólibo e Mérope uma máscara viva sob a qual dissimu lam a si mesmos. Mas, na hipótese segundo a qual Pólibo e Mérope são realmente os pais de Édipo, estes não apa receríam disfarçados sob as feições de outras pessoas vi vas; estariam simplesmente caracterizados de tal maneira, ou interviriam em circunstâncias tais, que Édipo não os reconhecería — um pouco como na lenda de São Julião, o Hospitaleiro, que também tenta escapar de uma pre*
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dição e acaba realizando-a matando seus pais por enga no. A hipótese, no caso de Édipo, é, de qualquer modo, pouco verossímil porque Édipo deixou Corinto e seus pais para nunca mais voltar lá: onde poderia, então, encontrar seus pais disfarçados? E preciso admitir, então, que Pólibo e Mérope partem em busca do filho fugido, abandonando o seu posto real. Esta nova hipótese, mais inverossímil ainda, não basta, aliás, para tornar possível o assassinato de um e o casamento com o outro: porque Edipo sempre fugirá de seus pais, onde quer que estes acabem por descobri-lo. A profecia não poderia, então, se realizar graças a um acesso de cólera ou de sonambulismo: não haveria tempo para isso — Édipo sempre es tará já longe. Só resta então a possibilidade de um engano, graças a um disfarce perfeito. Uma noite, saindo de uma taberna tebana onde se excedeu no vinho, Édipo encon tra Pólibo que procura, incógnito, o filho, protegido por uma caracterização que o torna irreconhecível; discute com ele e o mata. Alguns dias depois, novamente embria gado, encontra um a mendiga na rua, apaixona-se por ela e a toma como mulher: era Mérope, tão bem disfarçada que após vários meses de vida conjugal ele ainda não reconheceu sua mãe na nova esposa. Esta versão dos fatos é, a rigor, imaginável; aliás, poderiamos imaginar ainda muitas outras formas possíveis de realização do oráculo. Mas que tais itinerários sejam possíveis e imagináveis, isto ✓
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não explica em nada a surpresa que acompanha a desco berta do subterfúgio utilizado, na realidade, para a realização do oráculo: surpresa ligada ao sentimento confuso de que o acontecimento real tomou o lugar de um acontecimento mais esperado e mais plausível. Ora, todas as versões possíveis parecem fmalmente muito mais im prováveis ainda do que a versão real que, no entanto, causou surpresa: se Pólibo e Mérope são realmente os pais de Édipo, a realização do oráculo deverá passar por caminhos muito mais complicados e inesperados do que os que tomou a versão real. A hipótese de uma paternidade fictícia, segundo a qual Pólibo e Mérope não são os verdadeiros pais de Édipo, é, em suma, a via mais simples para passar do oráculo à sua realização. Se então a realização do oráculo causa surpresa, não é porque sua forma é inesperada comparada com outra forma que o seria menos. Como u m acontecimento A poderia ser considerado altamente improvável com relação a um acontecimento B, se fica dem onstrado que este acontecimento B, ele próprio, é, na m elhor das hipóteses, muito mais im provável ainda? Supondo que fosse realizada esta outra versão do destino de Édipo, aparentemente mais de acordo com o oráculo, não se distinguiria ela, por sua vez, de mil outras versões de que, justamente, se vislumbraria então a maior probabilidade? A realização do destino de Edipo— tal como foi selado pelo oráculo — não elimis
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na então nenhuma eventual probabilidade igual ou su perior àquela finalmente escolhida pela realidade: já que tudo o que é imaginável aqui é mais complicado e mais improvável do que será o acontecimento real. Se a pala vra do oráculo pode ser dita “oblíqua”, a via pela qual Édipo realiza o seu destino é, em contrapartida, a via reta por excelência: não passou por nenhum desvio, e talvez seja justamente isso o que se chama o “ardil” do destino — ir direto ao alvo, não se atrasar no caminho, compa recer na hora certa. No entanto, apesar desta análise, persiste a impres são de ter sido enganado por uma fatalidade onipotente e astuciosa, que frustra todos os meios empregados para se fazer frente a ela. Mas esta fatalidade assume agora um sentido mais preciso, no que se reconheceu a sua impre cisão: o acontecimento fatal pega de surpresa porque apaga outro acontecimento que nunca foi pensado, do qual nunca se teve nenhum a idéia. A surpresa apresenta aqui um caráter propriamente inesperado: ela consiste, na realidade, em refutar o acon tecimento real em nome de um acontecimento que nunca seria imaginado, de uma realidade que jamais foi e ja mais será pensada. O acontecimento tomou o lugar de “outro” acontecimento, mas este outro acontecimento não é nada. Precisa-se, assim, o engodo de que é vítima 42
aquele que espera um acontecimento mas se espanta por vê-lo ocorrer: existe realmente engodo em algum lugar e este algum lugar reside precisamente na ilusão de estar enganado, de acreditar que há “alguma coisa” da qual a realização do acontecimento teria, em suma, tomado o lugar. E então a sensação de estar enganado que é, aqui, enganadora. Ao se realizar, o acontecimento não fez ou tra coisa senão realizar-se. Ele não tomou o lugar de ou tro acontecimento. Evidentemente, não se podería negar por isso a am bigüidade inerente à palavra profética, nem as tiradas de duplo sentido que aparecem constantemente tanto nos oráculos como nas tragédias. Trata-se apenas de compre ender que esta ambigüidade não consiste no desdobra mento de uma sentença em dois sentidos possíveis, mas, ao contrário, na coincidência dos dois sentidos que só depois se vê que são dois em aparência, mas um na rea lidade. O Édipo Rei de Sófocles abunda em ilustrações desta ambigüidade, sendo a mais elementar e mais profunda a sentença em que Edipo enuncia que ele é, ao mesmo tempo, aquele que ele é e aquele outro que pro cura: “Voltando, por minha vez — declara orgulhosa mente o rei Édipo — à origem (dos acontecimentos que permaneceram desconhecidos), sou eu que os porei à luz, èyd) (pavw. O escoliasta não deixa de observar que há nesse ego phanô qualquer coisa de dissimulado, que 43
Édipo não quer dizer, mas que o espectador compreen de, já que tudo será descoberto no próprio Édipo, 87t£l t ò Ttctv év aòtô) (pavríoexai. Egophanô = sou eu que porei à luz o criminoso — mas também: eu me des cobrirei criminoso.”6 É evidente que dizendo èycb (pavw — “eu mostra rei” e “eu aparecerei” — Édipo diz duas coisas ao mes mo tempo; mas também é evidente que essas duas coisas são uma e a mesma coisa. O que importa aqui é que se ouve apenas uma única verdade enquanto se pensa ou vir duas. Tragédia da coincidência e não da ambigüidade, a peça de Sófocles se desenvolve no sentido de um retorno implacável em direção ao único que elimina, cena após cena, a ilusão de um a duplicação possível. De modo que o trágico sofocliano não está, de forma alguma, liga do ao duplo sentido, mas, ao contrário, à sua eliminação progressiva. A infelicidade de Édipo é ser apenas ele mesmo, e não dois. É desconhecer a sua infelicidade e, de certo modo, cair na própria armadilha na qual é apanhado Edipo em Sófocles, dizer como J.-E Vernant.: “Quem é, portanto, Édipo? Como seu próprio discurso, como a palavra do oráculo, Édipo é duplo, enigmático.”7 6J.-E Vernant e E V ida l-Na qu et. M ythe et tragédie en Grèce ancienne. Faris, Maspero, p. 107. Cf. tradução brasileira: M ito e tragédia na Grécia antiga. São Faulo: Livraria Du as Cidades, p. 87. 7 Id em .
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Porque o mistério de Édipo é justamente o de ser único, e não duplo, exatamente como o mistério da Esfinge, resolvido por Édipo numa espécie de avant-première do seu próprio destino, é o de se dirigir para si mesmo e não para o outro. No fundo, é o que acontece na realização de qualquer oráculo. O acontecimento esperado acaba por coincidir com ele próprio, daí precisamente a surpresa: porque se esperava algo de diferente, embora semelhante, a mesma coisa, mas não exatamente desta maneira. E nesta coincidência rigorosa do previsto com o que efetivamen te ocorreu que, em última análise, se resumem todos os “ardis” do destino. Este oferece o próprio acontecimen to, aqui e agora, enquanto o esperávamos um pouco di ferente, um pouco em outro lugar e não imediatamente. Tal é a natureza paradoxal da surpresa face à realização dos oráculos, espantar-se quando não há precisamente mais razão para se espantar, já que o fato correspondeu exatamente à previsão: o acontecimento esperado ocor reu, mas percebemos, então, que aquilo que era espera do não era este acontecimento aqui, mas um mesmo acontecimento sob uma forma diferente. Pensava-se es perar o mesmo, mas na realidade esperávamos o outro. É hora de reconhecer, enfim, neste “outro aconteci mento” — “esperado”, talvez, mas nem pensado nem imaginado — que o acontecimento real apagou, ao se 45
realizar, a estrutura fundamental do duplo. N ada distin gue, na realidade, este outro acontecimento do aconteci mento real, exceto esta concepção confusa segundo a qual ele seria, ao mesmo tempo, o mesmo e um outro, o que é a exata definição do duplo. Descobre-se, assim, uma re lação muito profunda entre o pensamento oracular e o fantasma da duplicação, que explica a enigmática surpre sa associada ao espetáculo do oráculo realizado. A reali zação do oráculo surpreende, em suma, no que ela vem eliminar a possibilidade de qualquer duplicação. Ao se produzir, o acontecimento previsto anula a previsão de um duplo possível. Vindo à existência, ele elim ina o seu duplo; e é o desaparecimento deste pálido fantasma do real que surpreende, por um momento, a consciência quando se realiza o acontecimento. Eis por que a frase que habitualmente pontua a descoberta do que era es perado — “era justamente isto” — implica, ao mesmo tempo, um reconhecimento e uma reprovação. Reconhe cimento do fato anunciad o e reprovação porque o acon tecimento não se produziu de outra maneira. Reconheci mento e reprovação são assim inseparáveis um do outro e significam, em essência, a mesma coisa: ou seja, um olhar sobre a “estrutura” do único. O único satisfaz a ex pectativa ao se realizar, mas a frustra elim inando qual quer outro modo de realização. Esta, aliás, é a sorte de todo acontecimento no mundo. 46
Num a passagem do seu estudo sobre ‘A Lembrança do presente e o falso reconhecimento”, Bergson confirma este vínculo entre a estrutura oracular (previsão, sentimento do inevitável) e o tema do duplo. Analisando a ilusão se gundo a qual certos indivíduos desdobram as suas percep ções e têm a impressão de viverem, de certo modo, duas vezes, uma vez sob a forma do presente e outra sob a for ma do passado, Bergson não deixa de reencontrar o tema do destino: “Aquilo que se diz e o que se faz, o que você mesmo diz e faz, parece ‘inevitável’. Assiste-se aos seus próprios movimentos, aos seus pensamentos, às suas ações. As coisas acontecem como se fossem desdobradas, sem que, no entanto, se desdobrem efetivamente. Um dos indiví duos escreve: ‘Este sentimento de desdobramento só exis te na sensação; sob o ponto de vista material, as duas pessoas são apenas uma.’ Sem dúvida, ele quer dizer com isso que experimenta um sentimento de dualidade, mas acompanhado da consciência de que se trata de um a úni ca e mesma pessoa. Por outro lado, como dizíamos no iní cio, o indivíduo se encontra muitas vezes no estado de espírito singular de alguém que julga saber o que vai acon tecer, ao mesmo tempo que se sente incapaz de predizêlo.”8Observaremos, além disso, que o tema da predição, ““EÉ ner gie sp iritue lle”, in p. 921.
Oeuvres, edição
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do Centenário. Paris: PUF,
tanto aqui quanto em qualquer lugar, aparece ligado ao tema da surpresa (prevê-se a coisa, sem se poder, por isso, esperar pela sua realização concreta, que será, então, sem pre motivo de surpresa). Entretanto, toda duplicação supõe um original e uma cópia, e se perguntará quem é o modelo e quem o dupli ca, o “outro acontecimento” ou o acontecimento real. Descobre-se então que o “outro acontecimento” não é verdadeiramente o duplo do acontecimento real. É, na verdade, o inverso: o próprio acontecimento reãt é que parece o duplo do “outro acontecimento”. De modo que é o acontecimento real que, em última análise, é o “outro”: o outro é este real aqui, ou seja, o duplo de um outro real que seria, ele, o próprio real, mas que sempre escapa e do qual nunca se poderá dizer nem saber nada. O único, o real e o acontecimento possuem, então, esta extraordinária qualidade de ser, de certo modo, o outro de coisa nenhuma, de parecer o duplo de uma “outra” realidade que se dissipa perpetuamente no limiar de qualquer realização, no momento de qualquer passagem ao real. A totalidade dos acontecimentos que se realizam — quer dizer, a realidade no seu conjunto — só repre senta uma espécie de real “ruim ”, que pertence à ordem do duplo, da cópia, da imagem: é o “outro” que este real apagou que é o real absoluto, o original verdadeiro do qual o acontecimento real é apenas um substituto enga 48
nador e perverso. O verdadeiro real está em outro lugar: residiría, para retomar os três exemplos expostos an teriormente, num parricídio e num incesto diferentes daqueles que, efetivamente, esperam Édipo, num a agres sividade de Sigismundo, alheia às circunstâncias que, efetivamente, foram as da sua infância e juventude, num a morte fora de Samarcande. Q uanto aos acontecimentos que realmente ocorreram, são como imitações deste real; e o conjunto dos acontecimentos reais parece, assim, uma vasta caricatura da realidade. É nesse sentido que a vida é apenas um sonho, uma fábula enganosa, ou ainda uma história contada por um idiota, como diz Macbeth^ sentimento de ser logrado pela realidade — que expri me a verdade mais geral das histórias de oráculos — , de ser constantemente iludido por este falso real que, in extremis, substitui o verdadeiro real, que jamais se viu e que jamais ocorrerá, este sentimento de ser enganado poderia ser traduzido pela expressão popular segundo a qual certas realidades, certos atos não estão precisamen te “de acordo com o jogo”. Aliás, não só certas realiza ções ou certos atos: qualquer coisa que, ao se realizar, coloca-se assim “fora de jogo”. Aliás, os filósofos de Mégara já haviam dito esta verdade: o destino de toda realidade é situar-se fora do jogo do possível. Dir-se-á então que o acontecimento real está, de certa maneira, falsificado, que trapaceia com o real. E, para utilizar uma 49
terminologia ingênua, que combina com sentimentos igualmente ingênuos, poderemos dizer que o aconteci mento que se produziu não é o “bom”; o bom acon tecimento, o único acontecimento que teria o direito de se dizer verdadeiramente real, é justam ente aquele que não ocorreu, sufocado antes de nascer pelo seu duplo falsificado. O acontecimento real, no sentido usual do termo, é assim sempre “o outro do bom”. Observaremos aqui que toda realidade, mesmo se não foi anunciada por um oráculo ou prevista por uma pre monição qualquer, é, de qualquer modo, de estrutura oracular, no sentido definido anteriormente. Com efei to, o destino de toda coisa existente é denegar, por sua própria existência, qualq uer outra forma de realidade. Ora, o próprio do oráculo é sugerir, sem jamais precisála, uma coisa distinta daqu ela que anuncia e que se rea liza efetivamente. Mas esta sugestão malograda pode se manifestar em qualquer ocasião, porque todo aconteci mento implica a negação do seu duplo. Eis por qu e toda a ocasião é oracular (realizando o “outro” do seu duplo), e toda existência um crime (por executar o seu duplo). Tal é o destino inevitavelmente associado ao real, e que faz Sigismundo, preso na sua torre, dizer que “o maior crime do homem é o de haver nascido”;9ou ainda, em 1 > A vid a é um sonh o, I, 2.
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E.-M. Cioran, que “perdemos tudo ao nascer”, daí ”o in conveniente de haver nascido”.10Segundo este raciocínio, todo acontecimento é, na realidade, homicídio e prodí gio: se, por exemplo, esperando o ônibus, recebo um número de espera, suponhamos o número 138, elimino de uma só vez também 998 outras possibilidades. Isto é um inconveniente e um prodígio, se esquecemos qu e um acontecimento, se pode a rigor se produzir de qualquer modo, deve contudo se produzir necessariamente de uma maneira qualquer. Não posso ser ao mesmo tempo Cioran e uma outra pessoa que não Cioran, mesmo se me pare ce confusamente que é apenas por efeito de um decreto arbitrário, e em última análise bastante decepcionante, que sou justamen te Cioran e não outro. Poderemos observar qu anto a esta questão qu e a rea lização de um acontecimento, não vaticinado por um oráculo, mas simplesm ente previsto pelo bom senso, ob servando a conjuntura e um conjunto de presságios, é sempre surpreendente no sentido mesmo em que o orá culo pode surpreender: quer dizer que a surpresa, nos dois casos, resume-se ao fato de A ser realmente A, e não B. O ardil do destino, assim com o o da previsão sensata, é escamotear o duplo do único. U ma manhã, no rádio, é anunciado que o senhor presidente está muito mal; qua n'"Dc ilnco nv én ien t d'être né. Paris:
Gallimard.
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do anun ciada, à noite, a morte do presidente surpreende (era então justamente isso, A era então justamente A). Aliás, é em razão desta natureza sempre surpreendente do acontecimento que a noção do destino, sugerida pe los oráculos, ganha um sentido real e universal. Porque é realmente do destino que se trata, em última análise, nas lendas oraculares, mas num sentido mais profundo do qu e o imediatamente aparente. H á realmente algo que existe e qu e se chama o destino: este designa não o caráter ' Inevitável do que acontece, mas o seu caráter imprevisível. H á, na realidade, um destino indepe nde ntem ente de qu alq uer necessidade e de qu alquer previsibilidade, por tanto, independen temente de qualq uer manifestação oracular, embora, em u m certo sentido, o oráculo o anuncie ao seu modo; é o destino do homem como de toda coisa existente. A significação deste destino aparentem ente pa radoxal, já qu e estranho à noção de necessidade, que e n tretanto parece contribuir para o que há de essencial nele, para n ão d izer a sua única base, está ligada a u m a noção exatamente inversa: à certeza da imprevisibilidade. Mas é justam ente desta certeza que fala, em termos velados, a literatura oracular. Estaremos sempre certos de sermos surpreendidos: poderemos sempre, firmem ente, esperar nu nca poder esperar. Em suma, a profundidade e a verdade da palavra ora cular são men os a de predizer o futuro do qu e a de expri52
mir a necessidade asfixiante do presente, o caráter inelu tável do que acontece agora. A predição antecipada tem um valor sobretudo simbólico: mera projeção no tempo daquilo que aguarda o homem a cada instante de sua vida presente. A todo momento, ele se defrontará com isto e com nada mais: quer a circunstância seja alegre ou tris te, quer ela triunfe ou morra, está de qualquer modo en curralado. Não há escapatória — não há duplo: é isto que o oráculo anunciava antecipadamente, e com razão. “Não se escapa ao destino” significa simplesmente que não se escapa ao real. O que é é e não pode não ser. E mais ou menos o que diz lady Macbeth ao seu marido, outra ilus tre vítima da literatura oracular: What is done is done. O que existe é sempre unívoco: na borda do real, sej; acontecimento favorável ou desfavorável, os duplos dissipam por encantamento ou maldição. Só resta o acontecimento coincidindo com ele mesmo, como no final de Macbeth, quando se realiza a predição e “a flo resta de Birnam marcha sobre Dunsinane”: A vem se con- 1 fundir com A, como Édipo se confunde com ele mesmo, / no final de Edipo Rei. Antes de se lançar num último combate contra o seu próprio destino, isto é, contra ele mesmo, Macbeth pro nuncia as palavras famosas: “A vida é uma história con tada por um idiota, cheia de som e de fúria, que não significa nada.” O pensamento do caos e da insignificân*
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cia predomina, assim, no momento do contato com o real. É que, até no último instante, Macbeth, como de resto todo homem , na hora da morte, por exemplo, espera que A difira nem que seja um pouco de A, que o aconte cimento não seja exatamente aquilo que ele é. A coinci dência do real com ele mesmo, que é, de um certo ponto de vista, a própria simplicidade, a versão mais límpida do real, aparece como o absurdo maior aos olhos do iludi do, isto é, daquele que apostou, até o fim, na graça de um duplo. Um real que é apenas o real, e nada mais, é insignificante, absurdo, “idiota”, como diz Macbeth. Aliás, Macbeth tem razão, pelo menos neste ponto: a realidade é efetivamente idiota. Porque, antes de signifi car imbecil, idiota significa simples, particular, único de sua espécie. Assim é, na verdade, a realidade, e o conjun to dos acontecimentos que a compõem: simples, parti cular, única — idiotès —, “idiota”. Esta idiotia da realidade é, aliás, um fato reconheci do desde sempre pelos metafísicos, que repetem que o “sentido” do real não poderia ser encontrado aqui, mas sim em outro lugar. A dialética metafísica é fundamen talmente uma dialética do aqui e do alhures, de um aqui do qual se duvida ou que se recusa e de um alhures do qual se espera a salvação. Decididam ente, Anão poderia se reduzir a A: o aqui deve ser esclarecido por outro lugar. “A Asia pressentiu muitas vezes qu e o problem a 54
capital do homem é o de captar ‘outra coisa’”, escreve por exemplo André Malraux,11fazendo eco à expressão romântica de Wagner, nos Wesendonf{-Lieder: “Nosso mundo não é, de forma alguma, aqui.” Não é mais um duplo do acontecimento qu e é então exigido, mas um duplo da realidade em geral, um “outro mundo” chamado a dar conta deste mundo aqui que, considerado em si mesmo, permanecería para sempre idiota. A ilusão oracular— desdobramento do acontecimento — encontra assim um campo de expressão mais vasto no desdobramento do real em geral: na ilusão metafísica.
"Lazare, Paris: Gallimard, p. 131.
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A ILUSÃO META FÍSICA: O M U N D O E SE U D U P L O
A .du plica çã o do real, que constitui a estrutura oracular de todo acontecimento, constitui igualmente, considerada de outro ponto de vista, a estrutura fundamental do discurso metafísico, de Platão aos nossos dias. Segundo esta estrutura metafísica, o real imediato só é admitido e compreendido na medida em que pode ser considerado a expressão de um outro real, o único que lhe confere o seu sentido e a sua realidade. Este mundo aqui, que em si mesmo não tem nenhum sentido, recebe a sua significação e o seu ser de outro mundo que o duplica, ou melhor, do qual este mundo aqui é apenas um sucedâneo enganador. E é a particularidade da imagem “metafísica” fazer pressentir, sob as aparências insensatas, ou falsamente sensatas, a significação e a realidade que 57
asseguram a sua infra-e strutura e explicam precisamente a aparência deste mundo-aqui, que é apenas “a mani festação ao mesm o tempo prim ordial e fútil de um espan toso mistério”.12 Esta estrutura da reiteração, onde o outro ocupa o lugar do real, e este mundo-a qu i o lugar do duplo, não é outra, repito, senão a própria estrutura do oráculo: o real que se oferece imediatamente é um substituto, assim como o acontecimento que verdadeiramente ocorreu é uma impostura. Ele duplica o real, assim como a reali zação do oráculo veio “duplicar” o acontecimento es pe rado/ Talvez esta im pressão de ter sido “du plicad o” constitua não apenas a estr utura da metafísica, mas a in da a ilusão filosófica por excelência. Observaremos, com efeito, que ela está presente no próprio âmago de filoso fias que pretendem recusar toda metafísica: por exem plo, em Marx, qu e procura descobrir no real aparente a lei Real que explica, ao mesmo tempo, o seu sentido e devir, num a atitude então duplamen te oracular (à dup li cação do visível e do invisível, que pretende fazer a divi são entre um Falso e um Verdadeiro, acrescenta-se aqui a predição, o anúncio do futuro). En tretan to, é evidente mente na obra de Platão que este parentesco estrutural entre filosofia oracular e filosofia tout court aparece de 12J.-E Attal. Ulm age "métaphysique", Paris: Gallimard, p. 178.
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forma mais manifesta. O mito da caverna, o de Er, o Panfiliano, e a teoria da reminiscência são as expressões mais precisas deste tema da duplicação do único que faz do platonismo em geral uma filosofia de essência oracular. Aqui se poderia, tom ando por base certas passagens de Platão,13objetar que o platonismo não é uma filosofia do duplo, mas sim uma “filosofia do singular”, fundada precisamente na impossibilidade do duplo.14É verdade que uma das características de todo objeto, para Platão, é de ser inimitável, de não poder ser dois. Assim, Sócrates ensina no Crátilo que a perfeita reprodução de Crátilo conduziría não a um duplo (duas vezes Crátilo), mas a um absurdo; porque é a essência de Crátilo ser apenas um, e não dois: esta essência, que define a singularidade, é por definição inimitável, mas não duplicável, porque só pode produzir imagens que jamais terão precisamente a característica do duplo. A questão, entretanto, é determi nar se a impossibilidade da duplicação ou ainda a neces sidade do singular conduzem realmente, em Platão, a uma filosofia do único. É preciso distinguir aqui dois níveis de duplicação: o nível sensível e o nível metafísico. Defrontam o-nos, de fato, com duas impossibilidades de duplicação: por um lado, a impossibilidade para o objeto 13Cr áti lo, 432a ss.: Parmênides, 132a ss. HCf. V De sco mb es, Le Platonisme, Paris: PUF, p. 40 ss.
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sensível de se duplicar em um outro objeto sensível que seria, ao mesmo tempo, ele mesm o (tese do Crátilo); por outro lado, a impossibilidade para o objeto sensível de aparecer ele mesmo como o duplo de um modelo real e supra-sensível (tese enunciada no início do Parmênides). Trata-se, no prim eiro caso, da não-repetição no nível dos objetos sensíveis: a essência do objeto sensível é de jamais poder se repetir, quer dizer, de jam ais poder reconstituir em outro lugar, em outro tempo, este mesmo objeto sen sível. Esta impossibilidade de se repetir resume, aliás, a essência do sensível e sublinha, ao mesmo tempo, a sua finitude. Jamais poder “restituir” a coisa é justamente a marca do que o sensível, abandonado a si mesmo, tem de constitucionalmente insatisfatório, a tal ponto que Kierkegaard, em A repetição, faz desta inaptidão para a repetição a principal fonte do seu afastamento — de ins piração platônica — das coisas deste mund o: ele não podería “am ar o que jamais se verá duas vezes”.15No se gundo caso, deduz-se o pensamento do caráter engano so do real, em reação a este outro real que ele é incapaz de duplicar, da impossibilidade do objeto sensível (isto é, o conjunto das coisas deste mundo) de repetir um mo delo supra-sensível (quer dizer, a Idéia, ou o real absolu to ). Nos dois casos, o caráter não-duplicável da realidade l5Vigny, La Maison du berger.
conduz a uma depreciação do objeto sensível, ao qual é precisamente censurado o fato de não poder ser o duplo, nem de si mesmo enquanto sensível, nem do outro en quanto realidade primordial. O que significa que a im possibilidade do duplo vem paradoxalmente dem onstrar que este m und o-aqui é justamente apenas um duplo, ou mais precisamente um mau duplo, uma duplicação fal sificada, incapaz de restituir nem a outra nem ela pró pria; em suma, uma realidade aparente, inteiramente urdida no estofo de um “ser menor”, que está para o ser assim como o sucedâneo está para o produto verdadeiro. O fato de que a duplicação seja considerada impossível para Platão não implica, então, de modo algum, que o platonismo não seja um a filosofia do duplo, mas sim o contrário. A verdade do platonismo permanece, pois, realm en te ligada ao mito da caverna: este real-aqui é o inverso do mundo real, sua sombra, seu duplo. E os acontecimen tos do mundo são apenas réplicas dos acontecimentos reais: eles constituem os momentos secundários de uma verdade cujo primeiro momento está em outro lugar, no outro mundo. Este é, como se sabe, o sentido da teoria da reminiscência, qu e ensina q ue jamais podería existir neste m undo uma experiência verdadeiramente prim ei ra. Nada jamais é descoberto: tudo aqui é reencontrado, trazido novamente à memória graças a um reencontro 61
com a idéia original. O pequeno escravo do Ménon não descobre, mas redescobre. A própria vontade só pode redesejar o que a necessidade já ordenou do outro mundo, como ensina o mito de Er, o Panfiliano; e, neste hábito que os deuses têm de atribuir à responsabilidade hu m a na os seus próprios decretos, reencontra-se a ironia da predição oracular, que é de delegar às suas vítimas a res ponsabilidade delas mesmas a realizarem, como na fá bula de Esopo citada anteriormente. Como toda manifestação oracular, o pensamento metafísico se fundamenta numa recusa, de tipo instinti vo, do imediato, sendo este considerado de certo modo o outro de si mesmo, ou o substituto de uma outra reali dade. Poderiamos dizer que é a própria noção de imediatidade que aparece assim falsificada: desconfia-se do imediato precisamente porque se duvida que ele seja real mente o imediatoyÉste imediato aqui apresenta-se como primeiro; mas não seria, antes, segundo? Talvez esta seja a origem desta desconfiança ancestral com relação ao “primeiro”, da qual Talleyrand fornece um eco signifi cativo quando diz que é preciso desconfiar do primeiro movimento, “porque, geralmente, é o bom”. Uma aná lise desta frase profunda revela que desconfiamos do nosso primeiro movimento, que não o consideramos o “bom”, precisamente porque nos recusamos a considerálo o “primeiro”: não é já um a “elaboração secundária”, 62
não dei à minha inteligência o tempo para deixar-se sur preender por esta ou aquela interpretação enganadora, proveniente do meu desejo e, portanto, imagem da reali dade tal como eu preferia que fosse, e não imagem da própria realidade? É provavelmente nesta direção que se deve buscar a origem de todas as manifestações de inter dição que pesam sobre as primeiras experiências: porque um Noli me tangere veda ao homem o contato deslum brante com o real da primeira vez, como é mostrado em A vida é um sonho, de Calderón, que é a tragédia da re cusa do imediato, da impossibilidade de aceder à imediatidade. A realidade hum ana parece só poder começar com a “segunda vez”. Uma precaução para nada\ esta é a divisa desta vida no segundo grau, que leva o agricultor a sacrificar o primeiro alqueire de sua colheita, os jovens romanos a fazerem a Júpiter o sacrifício de sua primeira barba, os esposos cartagineses a sacrificarem o seu pri meiro filho em honra do deus Baal. O real só começa no segundo lance, que é a verdade da vida humana, marcada com a rubrica do duplo: quanto ao primeiro lance, que não duplica nada, é precisamente um lance inútil. Em suma, para ser real, segundo a definição da realidade neste mundo, duplo de um inacessível real, é preciso copiar alguma coisa; ora, este nunca é o caso do primeiro lance, que não copia nada: só resta então deixá-lo aos deuses, os únicos que são dignos de viverem sob o signo do único,
os únicos que são capazes de conhecer a alegria do primeiro. Talleyrand tem realmente razão ao dizer que o primeiro movimento era o bom: mas tão bom qu e só é bom para os deuses, cuja parte ele define. Privada de imediatidade, a realidade humana está, naturalm ente, igualmente privada d ç.presente. O que significa qu e o homem está privado de realidade tout court, se acreditarmos no que dizem a este respeito os estóicos, cujo ponto forte foi afirmar que a realidade se conjugava somente no presente. Mas o presente seria por demais inq uietante se fosse apenas imediato e primeiro: ele só é acessível pelo viés da representação, portanto, segundo uma estrutura iterativa que o assimila a um passado ou a um futuro graças a um ligeiro deslocamento que corrói o seu intolerável vigor e só permite sua assimilação sob a forma de um duplo mais digerível que o original na sua crueza primeira. Daí a necessidade de um certo coeficiente de “desatenção à vida”, no próprio âmago da percepção atenta e útil; é somente quando se exagera esta parte de desatenção que se produzem os fenômenos de paramnésia (falso reconhecimento, sensação do déjà vu), tal como os descreve Bergson no estudo já citado
anteriormente: “Bruscam ente, enq uan to se assiste a um espetáculo ou se participa de uma conversa, surge a certeza de q ue já se viu aquilo que se vê, já se ouviu o que se está ouvindo, já se pronunciou as frases que se está 64
pronunciando — que se estava lá, no mesmo lugar, nas mesmas atitudes, sentindo, percebendo, pensando e de sejando as mesmas coisas —, enfim, que se revê, até no mínimo detalhe, alguns instantes de sua vida passada. A ilusão é, às vezes, tão completa que, a cada momento, enquanto dura, pensa-se estar prestes a predizer o que vai acontecer: como já não o saberiamos, se sentimos que vamos sabê-lo? N ão é raro então que se perceba o mun do exterior sob um aspecto singular, como num sonho; tornamo-nos estranhos a nós mesmos, quase prestes a nos desdobrarmos e assistirmos como meros espectadores o que dizemos e o que fazemos”.16Bergson vê nestes tipos de ilusões “lembranças do presente” que reduplicam anormalmente a percepção atual: “A lembrança evocada é uma lembrança suspensa no ar, sem ponto de apoio no passado. Ela não corresponde a nenhuma experiência anterior. Sabemos, estamos convencidos dela, e esta con vicção não é a conseqüência de um raciocínio: ela é ime diata. Confunde-se com o sentimento de que a lembrança evocada deve ser simplesmente uma duplicata da percep ção atual. É, então, um a ‘lembrança do presente’? Se não se diz isso, é sem dúvida porque a expressão pareceria contraditória, porque não se admite que uma repetição possa trazer a marca do passado independentemente do l6“EÉn erg ie spiri tuelle ”, p. 897.
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que ela representa, enfim, po rque se é teórico sem o sa ber e porque se considera toda lembrança como posterior à percepção que ela reproduz. Mas se diz algo parecido, fala-se de um passado que nenhum intervalo separaria do presente: ‘Senti se pro duzir em m im u ma espécie de desencadeamento q ue suprimiu todo o passado entre este minuto de antes e o minuto em que eu estava’. (F. Gregh — citado por E. Bernard-Leroy,/4 ilusão de falso reconhe cimento, p. 183.) Essa é, realmente, a característica do
fenômeno.”17A análise de Bergson consiste em fazer desta ilusão um fenômeno de desconexão semimórbido, um abandono a esta “lembrança de luxo” qu e é a lembrança do presente, enqu anto, para a percepção atual, só são úteis certas lembranças do passado. Há provavelmente algo mais geral, e mais normal, neste fenômeno de dupla percepção: não apenas uma distração momen tânea com relação ao presente, caracterizando “a forma mais ino fensiva de desatenção à vida”,18mas sim um a denegação do presente, já visível em toda percepção normal. Deve-
se observar que esta denegação do presente que relega este para o passado (ou o coloca, ao contrário, no futuro) intervém, às vezes, em circunstâncias que não se pres tam precisamente a nenhuma “desatenção”: quando a 17“LÉnergie spirituelle”, p. 921-2. l8Idem, p. 929.
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hora é grave, e o presente se torna, de súbito, claramente inassimiláveK Ã rejeição automática do presente no pas- \ sado ou no futuro é, geralmente, a ação de um indivíduo que não pensa que outra coisa venha m onopolizar a sua atenção, mas está, ao contrário, fascinado pela própria coisa, presente, da qual tenta desesperadamente se desli gar, e só consegue isso relegando-a, como por magia, para um passado ou para um futuro próximo, pouco importa onde ou quando, contanto que a coisa não esteja mais no presente nem aqui — anywhere out o f the world, como diz Baudelaire. Um duplo, por piedade, parece buscar a pessoa que o presente sufoca: o duplo encontra o seu lu- _ gar natural um pouco antes ou um pouco depois: Um romance de Robbe-Grillet, Les Gommes, cuja inspiração é antiga, já que retoma o tema sofocliano da identidade do detetive e do assassino, exprime muito precisamente esta rejeição do presente e seu desdobramento errático, que leva aqui a apresentar o acontecimento como já ten do ocorrido, mas também como devendo ocorrer: porque enquanto o detetive especula sobre o assassinato da ve lha, o assassino — que não é outro senão o próprio “de tetive” — imagina antecipadamente o assassinato que vai cometer. Assassinato cujo verdadeiro “herói” — que não é no fundo nem detetive nem assassino (ainda não dete tive nem já assassino, ou vice-versa) — aparecerá no fim do romance, que estala tão secamente quanto o tiro de 67
revólver que encerra o livro: o presente. Mas o presente é justam ente o que não é percebido, invisível, insuportá vel; e é de muito boa fé que o assassino garante à polícia que não matou: p orque o crime ocorreu no presente — eu não estava lá. O passado e o futuro sempre estarão lá para apagar o imperceptível e insuportável brilho do pre sente. Aliás, também é neste sentido qu e um a certa filo sofia pode ajudar a viver: ela apaga o real em proveito da representação. E é ainda neste sentido que Montaigne descreve o caráter para sempre indigesto do real, que beneficia as lembranças como também as previsões: “No tável exemplo da desenfreada curiosidade de nossa na tu reza, que faz com que percamos nosso tempo em nos preocupar com as coisas futuras como se não nos bastasse digerir as presentes.”19 Colocar a imediatidade à distância, associá-la a um outro mundo que possui a sua chave, ao mesmo tempo do ponto de vista de sua significação e do ponto de vista de sua realidade, tal é, portanto, o projeto metafísico por excelência. As versões deste outro mundo podem variar; sua função — afastar o imediato — permanece sempre a mesma: a função oracular, que duplica o acontecimen to, fazendo deste último a imagem de um outro aconte cimento do qual ela só representa um a imitação mais ou 1 9Ensaio s, I, cap. XI, “Dos prognósticos”.
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menos bem-sucedida, porque mais ou menos falsificada. Acontece, todavia, um pouco como no exemplo dos dois Crátilo, q ue a imitação seja tão bem-sucedida que acabà\ por se to rnar indistinguível do seu original, de modo que o outro mun do não é outra coisa senão este mund o-aq ui, sem qu e se renun cie por isso à idéia segundo a qu al este mundo-aqui permanece realmente a cópia deste outro mundo, que não difere dele, entretanto, em nada.'Esta versão particular do outro m undo define bastante preci samente a e strutu ra da metafísica de Hegel, cuja origi nalidade é a de fazer coincidir este mundo e aquele mundo, obtendo assim — ao preço de um a reiteração tautológica — um “concreto” aparen temente liberto da ilusão metafísica, pois já contém em si mesmo todas as características que d efinem igualmente o outro mundo. A dialética do único e de seu duplo parece aqui enlou quecer, no sentido que se diz de um a agulha de bússola que ela está louca; eis por que a sutileza hegeliana apa rece aqui, não “um pouco vã” e “forçada”, como escreve o seu comentador, Jean Hyppolite, mas, ao contrário, muito reveladora da loucura inerente à duplicação do único. Analisando o conceito de força,20Hegel distingue, em suma, entre duas formas de ilusão: a ilusão grosseira, 2L'Fenomenologia do espírito, Ia seção, cap. III (“Força e entendimento; manifestação (ou fenômeno) e mundo supra-sensível”).
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que consiste em tomar as coisas pelo que elas aparentam, e a ilusão metafísica — que Hegel pretende superar — , que consiste em relegar o real para um outro mundo completamente distinto do mundo da aparência. É pre ciso então distinguir não dois mundos, mas sim três: em primeiro lugar, o mundo das aparências sensíveis; em segundo lugar, o mundo supra-sensível, considerado dis tinto do mundo sensível (“primeiro mundo supra-sensível”); em terceiro e último lugar este mesmo mundo supra-sensível, mas considerado desta vez enquanto coincide em última análise com o mundo primeiro das aparências (“segundo m undo supra-sensível”). Este ter ceiro mundo, que é o oposto do segundo no que anula a diferença que este pretendia instituir entre ele mesmo e o mundo sensível, não se confunde, por isso, com o mun do imediato (sendo este último incapaz de “se pensar”, por não haver ainda percorrido o itinerário de sua dúvi da radical — metafísica — e do retorno a si mesmo), é o que Hegel chama o “mundo invertido”: isto é, um duplo do único que seria justam ente o próprio único, mas ape nas depois de uma pirueta que o desvio metafísico só teria executado para melhor voltar ao ponto de partida. Desvio que não é desprovido de lucro: porque se havia partido das aparências sensíveis, mera crosta do real, en quanto, um a vez terminada a pirueta, recaímos no “in terior ou na essência das coisas”. Descobrimos, então, que 70
o sensível não é outra coisa senão a concretização pro gressiva do além supra-sensível, do qual constitui o que Hegel chama o “preenchimento” — exatamente como o duplo, segundo a estrutura oracular, pode ser considera do a realização, o “preenchim ento” do único. Isso Hegel reconhece: “Mas o interior ou o além supra-sensível apa receu, ú t provém do fenômeno, e o fenômeno é sua me diação ou ainda o fenômeno ésua essência, e, na realidade, o seu preenchimento. O supra-sensível é o sensível e o percebido postos como na verdade são; mas a verdade do sensível e do percebido é de ser fenômeno. O supra-sen sível é então o fenômeno enquanto fenômeno" ;21exatamen te como o seu comentador: “Detenhamo-nos ainda nesta experiência que Hegel denomina curiosamente como ‘mundo invertido’. É porque o primeiro mundo suprasensível — elevação imediata do sensível ao inteligível — se reverte ou se inverte nele mesmo, que o movimen to é nele introduzido, que ele não é mais apenas uma réplica imediata do fenômeno, mas confunde-se comple tamente com o fenômeno, que assim se mediatiza a si mesmo em si mesmo e se torna manifestação da essência. Compreendemos o que queria dizer Hegel ao pretender que não havia dois mundos, mas que o mundo inteligí vel era ‘o fenômeno enquanto fenômeno’, a ‘manifesta 2lTrad. para o francês de J. Hyp polite. Paris: Au bier -Monta igne , 1.1, p. 121-2.
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ção’ que é no seu devir autêntico apenas manifestação de si por s L ^ É m outras palavras, este mundo-aqui é o outro^ de um outro mun do que é justamente o mesmo que este mundo-aqui: porqu e este itinerário misterioso, duran te o qual o fenômeno se mediatiza a si mesmo em si mes mo para se tornar manifestação da essência, não é outro senão o caminho que conduz de A até A passando por A. Esta estranha coincidência deste mundo e do outro mun do (que exprime apenas a coincidência do único e de seu duplo) não escapa a Hegel, que nela vê a última palavra do mistério filosófico, isto é, do mistério que faz com que as coisas sejam justamente o que são, e não outras. D aí a idéia, francamente absurda desta vez, de que a coincidên cia do real com o real é conseqüência de um ardil: “O grande ardil, dizia Hegel num a observação pessoal, é que as coisas sejam como são. [...] A essência da essência é se manifestar e a manifestação é manifestação da essência.”* 23 Esta identidade da aparência e do real qu e ela oculta é, ao mesmo tempo, um ardil do destino e um achado de Hegel: ela fornece, com efeito, uma explicação eterna mente satisfatória do caráter invisível do outro mundo, própria para perturbar os espíritos incrédulos. O outro uGenèse et structure de la "Phénoménologie de LE spr it" de Hegel, por J. Hyppolite. Paris: Aubier-Montaigne, 1.1, p. 132. Publicado no Brasil sob o título de Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Discur so E ditorial. 23Idem, p. 122.
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mun do é invisível porque é precisamente duplicado por este mundo-aqui, que nos impede de vê-lo. Se este m un do diferisse, mesmo que um pouco, do mundo suprasensível, este últim o seria, de certo modo, mais tangível: poderiamos reconhecê-lo na própria variação que o faria diferir do m un do sensível. Mas, justam ente, esta variação não existe. O mun do supra-sensível é a exata duplicação do mundo sensível; não se diferencia dele de maneira alguma. E esta é a razão por que se custa tanto a percebêlo: ele estará sempre dissimulado pelo seu duplo, quer dizer, pelo m un do real. Não se poderia ima ginar melhor esconderijo. A filosofia hegeliana aparece assim como a própria ess^nea do pensam ento oracular: ela anuncia no real a manifestação de um outro Real do qual não se poderia duvidar, pois já está presente integralm ente no nível do real imediatamente percebido. E pouco impor ta que, em Hegel, este real e este Real sejam apenas um só; ao contrário: esta duplicação rigorosa só segue mais de perto a estrutura oracular cujo fim é fazer coincidir, em u m acontecimento único, a surpresa e a satisfação da expectativa. Esta estrutura oracular caracteriza, aliás, como se sabe, todas as filosofias do século XIX. Encontra-se um eco particularm ente evocador desta estrutu ra em Fichte, principalmente, que, se acreditarmos em Schopenhauer, repetia obstinadamente aos seus alunos que é justamente 73
ist, w eil ei l es so porq po rque ue as coisas são assim qu quee elas são ("Es ist, ist, wie es ist"). Esta estrutura oracular do real manifesta-se igual mente nas filosofias do século XX, especialmente em certas certas filosof filosofias ias consideradas de vanguarda, vanguard a, por po r não ha h a verem ainda ain da sido comparadas comparad as às filosof filosofias ias do passado, das quais muitas mui tas vezes vezes só diferem na forma ou em detalhes. Assim Assim,, reencontramos reencontramos nitidamente a estrutura hegeliana hegeliana do real na estrutura do real segundo J. Lacan. Pouco importa que, em Lacan, o real não seja garantido, como em Hegel, por p or um outro real, real, mas sim por um “signi “signifificante” que, “por sua natureza, só é símbolo de uma au sência”.2 sência”.24 O qu quee importa impo rta é a igual insuficiência insuficiênc ia do real para pa ra da darr conta co nta de si mesmo, mesm o, par p araa asseg as segura urarr a sua próp pr ópri riaa significação, como em Lucrécio; a igual necessidade de buscar bus car “em ou outro tro luga lu gar” r” — mesm me smoo qu quee fosse em uma um a “ausência” e não em um “além” — a chave chave que permite pe rmite decifrar a realidade imediata! O que q ue importa im porta é qu quee o sen tido não este esteja ja aqui, mas sim em outro lugar — daí uma duplicação do acontecimento, qu e se desdobra em do dois is elementos, de um lado a sua manifestação imediata, im ediata, e do outro o que esta manifestação manifesta, isto é, o seu sentido.7Ó sentido é justamente o que é fornecido não por po r ele mesm m esmo, o, mas pelo outro; out ro; eis por po r que qu e a metafísic meta física, a, 2<Écriis. Paris: Ed. du Seuil, p. 25.
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que busca um sentido além das aparências, sempre foi ✓
uma metafísica do outro. E o outro do sensível que, em Hegel, Hege l, explica o sensí sensível vel,, assim como com o é o outro outr o do pênis (o “falo”) que dá, em Lacan, o seu sentido ao pênis. A analogia aqu a quii é reforçada, reforçada, aliás aliás,, por po r esta esta mesma mes ma e estra estra nha intuição — tanto em Lacan como em Hegel — se se gundo gun do a qual qu al o outro assi assim m visad visado o não é justamente justam ente outra coisa coisa senão o mesmo. Hegel: Hege l: sem o supra-sensível, supra-sensível, o sen sível não tem nenhum sentido; logo, o supra-sensível existe; e é justamente o próprio sensível. Lacan: sem o falo falo o pênis pên is não tem n e n h u m sentido; logo, o falo falo exist existe; e; ora, o falo não é outra coisa, precisamente, senão o pê nis, nis, como todos todos sabem. sabem. A estrutura estru tura oracular da ambigu am bigui i dade é, entre ent re todas, a que Lacan privil privilegia, egia, como indica o Sem Se m inár in ário io sobre “ A carta rouba rou bada da” ” sendo o real, aí, “signifi “significante” cante” apenas porq p orque ue ele ele “não “não se encontra encon tra em seu lugar” (exatamente como o acontecimento anunciado pelo orác or áculo ulo só é, de fato, espera esp erado do p o rqu rq u e ele é outro ou tro). ). Deve-se compreender desta maneira o sentido destes enigmáticos enigmáticos esquemas “E’ “E’ — “que para alguns parecem um quebraque bra-cab cabeça eça””25— , de onde resulta que q ue o eu não n ão é just ju staa m e nte nt e o eu, eu , e q u e o outr ou tro o difere dife re prec pr ecisa isam m ente en te do outro. outro. Reencont Re encontramos ramos aí a í a estrutura hegeliana da iteração iteração tautológica, tautológica, qu e se complica apenas pelo afastam ento do 15Écrits it s. Paris: Ed. du Seuil, p. 42.
significante como um eterno acessório em relação à coi sa que ele significa (enquanto a significação hegeliana vem, em última análise, “preencher” o real e coincidir com ele). ele). Daí, em Lacan, L acan, a denegação constante, de apa rência inevitavelmente maníaca: o pênis é o falo falo porq ue ele não nã o é ele, e vice-versa; vice-versa; o ser não nã o é o ser, ser, ou melhor, mel hor, só o é porq po rque ue não o é; o branco só é preto por p orqu qu e ele não o é, ou então só o é na medida em qu e o preto é justam ente o branco. Estas considerações lançam uma luz interessante sobre sobre a estrutu ra psicológ psicológica ica daquilo que, desde desde a segun da metad e do século século XIX, chama-se na F rança o chichi. * O chichi se caracteriza, antes de tudo, evidentemente, evident emente, por po r um gosto pela complicação, que traduz ele mesmo uma aversão pelo simples. Mas é preciso compreender o du plo pl o sentido desta recusa do simples, senão parece que as
sim caímos no próprio erro que pretendemos examinar do exterior. Num primeiro sentido, a aversão pelo sim ples exp e xprim rimee apena ap enass um u m gosto g osto pela pe la complic com plicação ação:: à a titu ti tu de simples prefere-s prefere-see a manob m anobra ra complicada, mesmo se o alvo visado é o mesmo, e que se esteja, aliás, prestes a negligenciá-lo por p or este exce excess sso o de complicação. complicação. Mas, num nu m segundo sentido, que não elimina o primeiro mas, ao *Chichi: termo onomatopaico (1898) que se refere a um tipo de compor tamento afetado, que prima pela ausência de simplicidade. (N. do T.)
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contrário, o aprofunda e o elucida, a aversão pelo sim ples designa um pavor diante do único, um afastamento com relação à própria coisa: o gosto pela complicação exprimindo, em primeiro lugar, um a necessidade da du plicação, necessária à assunção sub-reptícia de um real cuja unicidade crua é instintivamente pressentida como indigesta. Entendida assim, esta recusa do simples per mite compreender por que as “preciosas” fazem chichis: menos para brilhar na sociedade do que para atenuar o esplendor do real, cujo brilho as fere por sua intolerável unicidade. A coisa só é tolerável se mediatizada, desdo brada: não há nada neste mundo que possa se experi mentar assim, “diretamente”. É o que exprime muito claramente Magdelon, em Molière, quando declara ao pai que não podería “falar de um momento para outro em união conjugal” e que ela “sente náuseas só de pensar em tal coisa”.26 Conhecemos o sentido, confirmado pela etimologia, da expressão francesa de but en blanc: ir di reto ao alvo, visar diretamente o único sem o auxílio do duplo. A complicação, aqui, é apenas um tapa-buraco, um a atitude de proteção contra a inelutabilidade do ún i co, ao qual o chichi — seja de essência preciosa ou meta física, supondo estas duas essências diferentes uma da outra — constituirá apenas um obstáculo provisório, ou 16As preciosas ridículas, cena IV
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pelo menos ilusório. Provisório se se trata apenas de um chichi passageiro;
se trata de um
de qualquer modo ilusório, mesmo se
chichi obstinado
e definitivo: porque a re
cusa do único jamais será acom panhad a da preensão de um duplo, de modo q ue a busca do duplo ao qual se sa crificou o único está condenada, de qualquer modo, ao fracasso, já que é a busca do “nada” do qual loucamente se imagina que o real é o “outro”. O
chichi está
assim
relacionado a uma angústia muito profunda, que pode ser descrita sumariam ente como a inqu ietud e à idéia de que, aceitando ser isto que se é, concorda-se ao mesmo tempo qu e se é apenas isto. A unicidade implica, na rea lidade, ao mesmo tempo um triunfo e um a humilhação: triunfo por ser o único no mundo, humilhação por ser apenas este mesmo único, que r dizer, quase nada, e den tro em breve absolutamente nada. O preciosismo dese jaria um triunfo sem hum ilhação e esta é a razão por que ele traduz não apenas um gosto pela complicação, mas mais profundamente um desgosto de si enquan to único. Esta profundidade psicológica do
chichi confere
um sa
bor substancial a uma célebre passagem de La Bruyère: “O que diz? Como? Não entendo; não se importa de repetir? Percebo ainda menos. Adivinho, afinal: você quer me dizer, Acis, que está frio; por que não disse: ‘Está fazendo frio’? Quer me dizer que está chovendo ou 78
nevando, diga: ‘Está chovendo, nevando’ [...] Mas, res ponda você, isso é muito simples e claro.”27 Poderemos observar, contudo, antes de concluir, que o tema da duplicação não está forçosamente ligado a um a estrutura de pensamento metafísico. Ao lado da estru tu ra metafísica do duplo, que tende a depreciar o real (privando o imediato de todas as outras realidades, es vaziando o presente de todos os fatos passados assim como de todas as possibilidades futuras), pode-se conce ber uma estrutura não-metafísica da duplicação, que ten da, ao contrário, a enriquecer o presente com todas as *
potencialidades, tanto futuras quanto passadas. E o tema, ao mesmo tem po estóico e nietzschiano, do eterno retor no, que vem paradoxalmente suprir o presente de todos os bens dos quais o priva a duplicação metafísica. De forma que o presente, o aqui se tornam o pleno, e que o outro tempo, o outro lugar tomam o lugar do vazio ao qual estava condenada a imediatidade segundo a pers pectiva inversa. Isto graças a um “desencadeamento” que se assemelha bastante ao que evoca F. Gregh mais abai xo, quando declara: “Senti se produzir em mim uma espécie de desencadeamento q ue suprimiu todo o pas sado entre este minuto de antes e o minuto em que eu 270 s caracteres, “Da sociedade e da conservação”, 7. C£ trad. brasileira de Alcântara Silveira. São Paulo: Cultrix, p. 65.
estava”.28É provável que este desencadeamento graças ao qual o presente se reabilita, enriquecendo-se subitamente de todos os bens dos quais até então estava privado, apa reça mais claramente na poesia do que na filosofia, ainda que de afinidade poética, como é a filosofia de Nietzsche. As quimeras de Gérard de Nerval, para se ater apenas a este poeta, sugerem adm iravelmente este tema da dupli cação do presente em todo passado e todo futuro, mas para a única glória e celebração do próprio presente. A reiteração, tema dominante das Quimeras, volta-se aqui em favor dela mesma, e não em favor daquilo que é rei terado. O que importa é que tudo é eternamente primei ro. A décima terceira vez será, ela própria, sempre a primeira, e a única, como dizem os dois primeiros versos d zArtémis. O itinerário nervaliano é, aqui, o inverso do itinerário metafísico: Nerval não apaga o presente em benefício do passado ou do futuro, mas, ao contrário, apaga o passado e o futuro em benefício do presente, que se acha assim enriquecido, ou melhor, “preenchido”, como diria Hegel, de tudo o que ocorreu e de tudo o que um dia ocorrerá. Este sentido da duplicação conduz, então, não à escapada do aqui para o outro lugar, mas, ao contrário, a um a convergência quase mágica de todo outro lugar para o aqui. Esta convergência, vislumbrada 28V sup ra.
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por Nerval no fim de sua vida, define o estado de graça. Daí o caráter bem-aventurado da duplicação nervaliana nas Quimeras que, em vez de privar o presente de sua realida
de própria, acrescenta-lhe, ao contrário, a série infinita das outras realidadesdO presente é, a cada instante, a soma de todos os presentes; esta expressão “presente” devendo ser entendida aqui no seu duplo sentido de dádiva do instan te (dádiva deste presente aqui) e de oferenda absoluta (dá diva de todo “presente”, quer dizer, de toda duração). E o retorno final à imobilidade, a este único que vem selar, no fim de Delfica, a série de todos os instantes passados no único instante presente, não omite nenhum a realidade. Ao contrário, ele as afirma todas ao mesmo tempo, porque transporta em suas bagagens a totalidade de tudo o qu e é, será e foi, dotando assim cada instante da vida de toda a riqueza da eternidade: Conheces, D a fn e , esta antiga canção Ao pé do sicômoro, ou sob os loureiros brancos Sob a oliveira, o mirto ou os salgueiros trêmulos Esta canção de amor que sempre recomeça?... Reconheces o Templo de colunas imensas E os limões amargos onde teus dentes se cravavam E a gruta, fatal para os hóspedes imprudentes Onde do dragão vencido dorme a antiga semente?... 81
Eles voltarão, esses deuses que lastimas sempre! O tempo vai restabelecer a ordem dos antigos dias; A terra estremeceu com um sopro profético... No entanto a sibila de rosto latino Ainda está adormecida sob o arco de Constantino — E nada perturbou o severo pórtico.* Seja amigo do presente que passa: o futuro e o passado lhe serão dados por acréscimo.
*La connais tu, Dafné, cette ancienne romance, / A u pi ed du sycomore, ou sous les lauriers blancs,
/
Sous 1’olivier, le myrte, ou les saules tremblants,
/
Cette chanson d ’am our q ui toujours recommence?... / / Reconnais-tu le Temple au péristyle immense, / E t les citrons amers oà s’im pr im aien t tes dents, / E t la grotte, fatale aux hôtes imprudents,
/
Ou du dragon vaincu dort Vantique
semence?... / / Ils re viendront, ces die ux qu e tup le ur es toujo ursl / L e lem ps va ramenerVo rdre des anciensjours; L a terre a tressaili d’un so ufflépr ophéti que... II Cep endant la sibyll e au visage lat in Constantin /
—
/
Est endor mie encor sous l ’arc de
E t rien n ’a dérangé le sévère portique.
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A ILUSÃO PSICO LÓG ICA: O H O M E M E SEU D U P L O
1. “EU É UM OUTRO”
N o
Crátilo de
Platão, Sócrates mostra que a melhor reprodução de Crátilo implica necessariamente um a di ferença com relação a Crátilo: não podem existir dois Crátilo, porque seria preciso que a cada um dos dois per tencesse paradoxalmente a propriedade fundamental de Crátilo, que é de ser ele mesmo e não um outro. O que caracteriza Crátilo, assim como qualquer coisa no m un do, é, portanto, a sua singularidade, sua unicidade. Esta estrutura fundamental do real, a unicidade, designa ao mesmo tempo o seu valor e a sua finitude: toda coisa tem o privilégio de ser apenas uma, o que a valoriza infinitamente, e o inconveniente de ser insubstituível, o que a
desvaloriza infinitamente. Porque a morte do único é ir remediável: não havia dois como ele; mas, uma vez terminado, não há mais nenhum. Tal é a fragilidade ontológica de toda coisa existente: a unicidade da coisa, qu e constitui a sua essência e determ ina o seu valor, pos sui em contrapartida um a qualidade ontológica desastro sa, nada além de uma participação muito tênue e muito efêmera no ser. Pode-se, entretanto, imaginar realizado o paradoxo de Sócrates (não concebê-lo, pois isto implica contradi ção, mas imaginar que o concebemos): existirão então dois Crátilo, e um será o duplo exato do outro, de modo que não diferirão em nada um do outro e que será mes mo impossível falar a seu respeito de um “um” e de um “outro”. Esta imagem, que só faz concretizar o habitual fantasma da duplicação do único, apresenta, entretanto, uma particularidade notável: aqui o único duplicado não é mais um objeto ou acontecimento qualquer do mun do exterior, mas sim um homem, quer dizer, o sujeito, o próprio eu. Este caso particular da duplicação do ú ni co constitui o conjunto dos fenômenos chamados de des dobramento de personalidade, e deu origem a inúmeras obras literárias, como também a inúmeros comentários de ordem filosófica, psicológica e, sobretudo, psico patológica, já que o desdobramento de person alidad e define também a estrutura fundam ental das mais graves 84
demências, tal como a esquizofrenia. O tema literário do duplo aparece com uma insistência particular no século XIX (Hoffmann, Chamisso, Poe, Maupassante Dostoiévski são os seus ilustradores mais célebres); mas sua origem é evi dentemente muito antiga, pois os personagens de Sósia ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar importante no teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas, de Plauto. O duplo — no sentido de desdobramento da personalidade — não está, aliás, ligado apenas à expres são literária: também está presente na pintura, da qual constitui mesmo um tema essencial e decisivo do ponto de vista psicológico, se é verdade, como se pode afirmar, que todo pintor tem como missão fundamental ter êxito ou fracassar em seu “auto-retrato” (isto no caso de qual que r gênero de pintura, e na ausência mesmo de qualquer tentativa de se fazer representar a si mesmo sobre a tela). O duplo interessa finalmente à música e está presen te, por exemplo, no início do século XX, em três gra n des obras musicais, que servirão aqui de ilustração: Petrouchka, de Stravinski, O amor feiticeiro, de Manuel
de Falia sobre um argumento de M artinez Sierra, zA m u lher sem sombra, de Richard Strauss sobre libreto de
Hoffmannsthal. Petrouchka — Petrouchka é uma marionete, o duplo
ridículo do verdadeiro Petrouchka que ama a Bailarina, e que só pode agir ele mesmo como duplo, quer dizer, 85
como fantoche que é. Assassinado pelo Mouro, outra marionete que, por ciúme, despedaça-o com um golpe de sabre, Petrouchka reencontra, ao morrer, a sua alma, recuperando assim o original que só conseguira até en tão imitar: e é o seu ser real que se vê, de súbito, gesticu lar sobre o telhado, de m aneira fantasmática, e desafiar o seu mestre que foge enquanto o pano cai. O amor feiticeiro — A bela cigana Candeias ama o
jovem Carmelo, mas, toda vez que deseja se atirar em seus braços, vê aparecer o espectro de um ho mem que outrora amou e que continua a atormentá-la mesmo depois de morto. Um a amiga devotada, Lucia, aceita desviar para ela a atenção do espectro, liberta assim Candeias, que reencontra Carmelo e desaparece com ele, enquanto os sinos da manhã anunciam a aurora e se desvanecem to dos os malefícios noturnos. A mulher sem sombra — Como expiação de um cri
me cometido por seu pai, uma princesa foi privada de sombra e também de fecundidade: ela não pode tornarse mãe. Um subterfúgio consistiría em comprar a som bra de um a men diga, privan do assim esta últim a de fecundidade. A princesa se recusa a isso in extremis, co movida pela sorte que se destina à infeliz. Este insta nte de piedade é imediatamente recompensado por uma gra ça sobrenatural qu e extingue a maldição e restitui à prin cesa sua sombra e sua fecundidade. 86
Petrouch\a é o único destes três exemplos que apre
senta o tema do desdobramento de si sob uma forma sim ples e imediata. Em O amor feiticeiro, Candeias não é perseguida pelo seu duplo, mas sim pelo duplo daquela que foi, e qu e aparece no espectro de seu amante morto. A apaixonada de hoje é perturbada pela apaixonada de ontem; mas o amor no presente acaba felizmente por triunfar, como na Canção do mal-amado de Apollinaire, ou ainda numa outra ópera de Richard Strauss e Hoffmannsthal, Ariana em Naxos. Em A mulher sem sombra, a sombra não representa o duplo, mas constitui, ao con trário, o seu inverso. A sombra simboliza aqui a ma terialidade, a encarnação da heroína na unicidade de um aqui e de um agora, e, conseqüentemente, a aptidão para viver e para reproduzir a vida. De modo que a mulher com sombra, na qual se transforma novamente no final da ópera, é a mulher livre do malefício do duplo que leva, em todos os casos, a situar o real de uma pessoa precisa mente fora dela própria. A m ulh er sem sombra é a m u lher com duplo, porque não ter sombra significa qu e se é apenas uma sombra, que só se vale pelo real que se du plica sem chegar a coincidir com ele. Graças ao milagre terminal, a coincidência ocorre: transformada enfim nela mesma, a princesa cessa de duplicar quem qu er qu e seja e reencontra a sua sombra. A passagem da mulher sem sombra para a m ulher sem duplo não é outra coisa senão
o retorno do outro para si, do alhures para o aqui, que marca o reconhecimento do único e a aceitação da vida. Um célebre estudo de O tto Rank29chega a relacionar o desdobramento de personalidade com o medo ances tral da morte. O duplo que o sujeito imagina seria um duplo imortal, encarregado de colocar o sujeito a salvo de sua própria morte. A superficialidade do diagnóstico provém aqui de que Rank não percebeu a hierarquia real que liga, no desdobramento de personalidade, o único ao seu “duplo”. E verdade que o duplo é sempre intu iti vamente compreendido como tendo uma realidade “me lhor” do que o próprio suj ei to — e ele pode aparecer neste sentido como representando uma espécie de instância imortal em relação à mortalidade do sujeito. Mas o que angustia o sujeito, muito mais do q ue a sua morte próxi ma, é antes de tudo a sua não-realidade, a sua não-existência. Morrer seria um mal menor se pudéssemos ter como certo que ao menos se viveu; ora, é desta vida mes ma, por mais perecível que por outro lado possa ser, que
o sujeito acaba por duvidar no desdobramento de perso nalidade. No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma: não é o outro que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro. Para ele o real, para mim a som
2,“Le Double”, in Don Ju an et le double. Paris: Payot.
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bra. “E u ” é “um outro”; a “verdadeira vida” está “au sente.”30 Do mesmo modo, em M aupassant, Ele ou O Horla não são sombras do escritor, mas o escritor real e
verdadeiro, que Maupassant apenas imita de maneira las timável: não é Ele que me imita, sou eu que imito Ele. O real — neste gênero de perturbação — está sempre do lado do outro. E o pior erro, para qu em é perseguido por aquele que julga ser o seu duplo, mas que é, na realida de, o original q ue ele próprio duplica, seria tenta r matar o seu “duplo”. Matando-o, matará ele próprio, ou me lhor, aquele q ue desesperadamente tentava ser, como diz muito bem Edgar Poe no final de William Wilson, quan do o único (aparentemente o duplo de Wilson) sucumbiu aos golpes do seu duplo (que é o próprio narrador): “Venceste e eu sucumbo, mas, de agora em d iante, tam bém estás morto. M orto para o mundo, p ara o céu, para a esperança! Existias em mim, e agora que morro, vê nesta imagem que é a tua, como mataste na verdade a ti mesmo.” A solução do problema psicológico colocado pelo desdobramento de personalidade não se encontra, por tanto, do lado de minha mortalidade, que é de qualq uer modo certa, mas, ao contrário, do lado de minha exis tência, que aparece aqui como duvidosa. Quem sou eu,
30Ri mb au d.
89
eu que afirmo ser, e, mais ainda, ser eu, apoiando-me as sim nesta “falsa evidência que o eu ostenta como título de existência” da qual fala Lacan? Não basta dizer que sou único, como o é qualquer coisa no mundo. Refletin do mais atentamente, eu possuo o privilégio, que é tam bém uma maldição se quiserem, de ser duas vezes único: porque sou este caso particular — e “único” — onde o único não pode se ver Conheço bem a unicidade de to das as coisas que me cercam, e a proclamo, sem grande esforço: é que, pelo menos, me é dado vê-la, afirmá-la como uma coisa que posso observar ou manipular. Não acontece o mesmo com o eu, que nunca vi nem verei ja mais, nem mesmo em um espelho. Porque o espelho é enganador e constitui um a “falsa evidência”, quer dizer, a ilusão de uma visão: ele me mostra não eu, mas um in verso, um outro; não meu corpo, mas uma superfície, um reflexo. Ele é, em suma, apenas uma última chance de me apreender, qu e sempre acabará por decepcionar-me, qualquer que seja a jubilação que pude experimentar, aos dez meses, compreendendo (mas não vendo) que esta imagem que se agitava diante de mim tinha uma vaga relação comigo. É por isso que a busca do eu, especial mente nas perturbações de desdobramento, está sempre ligada a uma espécie de retorno obstinado ao espelho e a tudo o que pode apresentar uma analogia com o espe lho: assim, a obsessão da simetria sob todas as suas formas, 90
qu e repete à sua maneira a impossibilidade de jamais res tituir esta coisa invisível qu e se tenta ver, e que seria o eu diretamente, ou um outro eu, seu duplo exato. A sime tria é ela própria conforme à imagem do espelho: oferece não a coisa mas o seu outro, seu inverso, seu contrário, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano. O destino do vampiro, cujo espelho não reflete nen huma imagem, nem mesmo invertida, simboliza aqui o destino de qualqu er pessoa e de q ualq uer coisa: não poder provar a sua exis tência por meio de um desdobramento real do único e, portanto, só existir problematicamente. A verdadeira in felicidade, no desdobramento de personalidade, é no fun do jamais poder de fato desdobrar-se: o du plo falta para aquele que o duplo persegue. A assunção do eu pelo eu tem, assim, como condição fun damental, a renúncia ao duplo, o abandono do projeto de apreender o eu pelo eu em u ma contraditória duplicação do único: eis por qu e o êxito psicológico do auto-retrato, no pintor, implica o aban dono do próprio auto-retrato; como em Vermeer, de quem um dos profundos segredos foi representar-se de costas, no célebre O ateliê.31 A “ferida narcísica”, qu e determina o destino do que se chama um temperamento de ator, está aqui: numa
31C£ M agd elein e M ocq uot , artigo sobre Vermeer em Club Français de la
Mé daille, 1968, n° 18: “Vermeer et le Portrait en Double Miroir”.
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dúvida quanto a si mesmo, da qual só liberta uma ga rantia reiterada do outro, no caso, do público. Sabe-se que o espetáculo do desdobramento de per sonalidade no outro — tema abund antem ente ilustrado pelo romance e pelo filme de terror — é uma experiên cia de efeito aterrorizante garantido. Pensava-se tratar com o original, mas na realidade só se havia visto o seu duplo enganador e tranqüilizador; eis de súbito o origi nal em pessoa, que zomba e se revela ao mesmo tempo como o outro e o verdadeiro. Talvez o fundamento da angústia, aparentemente ligado aqui à simples descoberta que o outro visível não era o outro real, deva ser procura do num terror mais profundo: de eu mesmo não ser aqu e le que pensava ser. E, mais profundamente ainda, de suspeitar nesta ocasião que talvez não seja algum a coisa, mas nada. O vínculo entre o terror e o duplo aparece de manei ra exemplar em um filme célebre de Cavalcanti, Dead o f Night (1945). Todos os acontecimentos deste filme são
apresentados como já tendo vagamente ocorrido (senti mento de falso reconhecimento), e é apenas no final que o espectador descobre com angústia que tudo o que lhe foi mostrado como repetindo um inapreensível e onírico passado era, de fato, a premonição de um futuro im inen te: dispersão do presente segundo o duplo eixo do passa do e do futuro, naufrágio vertiginoso do real, ao qual falta 92
todo aqui e todo agora. Um episódio notável do fdme coloca, aliás, diretamente em cena o homem e seu du plo: seqü se qüên ência cia de u m vent ve ntríl ríloq oquo uo luta lu tan n d o com seu fan fa n toche, que escapa progressivamente ao controle de seu mestre e acaba acaba por po r apropriar-se da realidade deste. Cena Cen a alucinatória de desdobramento esquizofrênico, na qual um homem morre sufocado pelo seu duplo, devorado pela pe la sua su a pró p rópr pria ia imagem. imag em. O reconhecimento de si si, que já implica implica um parado parad o xo (pois (pois trata-se trata-se de apreender apreend er justam ente o que é impos sível de apreender, e que a captura de si mesmo reside par p araa d o x alm al m en te n a p róp ró p ria ri a re n ú n c ia a esta c a p tura tu ra), ), implica també tam bém m necessariamente necessa riamente um exorcismo exorcismo:: o exor cismo cismo do duplo, dup lo, que q ue põe u m obstáculo obstáculo para a existênc existência ia do único e exige que este último não seja apenas ele mesmo, e nada mais. mais. Não Nã o há eu que q ue seja apenas eu, não há aqui que seja somente aqui, não há agora que seja apenas agora: tal é a exigência do duplo, que quer um pouc po uco o mais ma is e está disposto disp osto a sacrificar sac rificar tudo tu do o q u e existe — q u e r dizer, o úni ú nico co — em benefício ben efício de todo tod o o resto, isto é, é, de tudo tud o o que qu e não n ão exist existe. e. Esta recusa do único, únic o, aliá aliás, s, é apenas uma das formas mais gerais da recusa da vida. Eis por que a eliminação do duplo anuncia, ao contrá rio, o retorno com força do real e confunde-se com a alegria de uma manhã inteiramente nova, como a que am or feiticeiro. ressoa tão alegremente no final de O amor
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Expulsando o espectro do duplo, a amável Lucia dissi pou po u os malefícios malefí cios da noit n oite, e, cujo cuj o essencial esse ncial é ocult ocu ltar ar o real sob o irreal, irreal, dissimulan dissim ulando do o único atrás do seu duplo. Mas aqui o véu se levanta, permitindo a Candeias celebrar, enfim, enqu en quant antoo o dia nasce, nasce, o feliz feliz reencontro de si con sigo mesma.
Esta coincidência de si consigo mesmo acaba, aliás, sempre por prevale prevalecer cer,, mas nem n em sempre tão alegremen alegrem en te. O retorno de si a si mesmo segue caminhos muitas vezes mais complicados ainda do que os artifícios utili zados por Candeias C andeias para proteger-se proteger-se do seu seu duplo. É certo quee não se escapa qu escapa ao destino que q ue faz com que o eu seja seja o eu, e que o único seja seja o único. único. De qual q ualqu quer er maneira, por tanto, se será si próprio. Mas dois itinerários são aqui possíveis: o simples, sim ples, q u e consiste cons iste em e m acei a ceitar tar a coisa, e até em regozijar-se com isso isso;; e o complicado, qu quee consiste em recusá-la, e que retorna a ela com juros, em virtude do volen tem duantigo adágio estóico segundo o qual fa ta volentem tomam os o segundo segundo itinerá itinerá cunt, nolentem trahunt* Se tomamos rio, procuraremos evitar a coincidência de si consigo mesmo por uma um a esquiva esquiva semelhante àquelas que trans mite a literatura litera tura oracular, oracular, e cujo destino habitual habitu al é preci pita pi tarr o acon ac ontec tecim imen ento. to. A esquiv esq uivaa subl su blin inha hará rá en entã tãoo a m á *“0 destino guia aquele que conse nte e arr arras asta ta aquele qu e recusa.” C éle bre verso de Sêneca. (N. do T.)
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direção que se queria evitar ou pelo menos ocultar; ou melhor, ela a constituirá inteiramente, como Édipo fa brica bric a o seu de desti stino no com os esforços esforços pelos pe los qu quai aiss tent te ntaa es capar capa r a ele ele.. É recusand rec usando-se o-se a ser o isto ou ou o aquilo aqu ilo qu quee se é, ou ainda a aparentá-lo aos olhos dos outros, que nos tornamos precisamente o isto ou o aquilo, e que apare cemos como tal aos olhos dos outros. Nada mais “pas tor” do que querer mostrar que não se é, para se ater apenas a um único exemplo, e um já é suficiente, por que aqui não se se trata trata de depreciar depreciar ninguém. ninguém . O que qu e im im port po rtaa é ape a pena nass q u e a qu qual alid idaa de q u e se pre pr e tend te ndee oc ocul ulta tarr ou denegar, denegar, por um afastamento afastam ento de si, si, é justam just ament entee cons tituída por esta própria distância; distância que contri bui, bu i, p o r ou outr troo lado la do,, p a ra torn to rnaa r esta es ta q u a lid li d a d e pa para ra sempre invisível aos olhos do seu possuidor. Como eu seria isto, isto, se a m inha in ha vida inteira consiste consiste justam jus tam en ente te em estar afastado disto? disto? O afastamento de si por si mesmo, o qual sempre acaba por confirmar o seu próprio eu, é igualme igua lmente nte per ceptível no afastamento de outros que não si próprio, quan qu ando do parece que estes estes são são ao ao mesmo tempo indesejá veis e semelhantes. É o caso, particularmente, de certos grandes papéis do teatro. teatro. Quem Qu em aparece no teatro seme lhante lha nte demais ao eu que qu e se decidiu decidi u não ser será log logo, o, ele ele própr pr óprio, io, desdobrado, segundo a estrutura da duplicação que, acredita-se, já demonstrou sua eficácia no que 95
concerne ao eu. Em lugar da personalidade teatral tal qual ela é, aparece um outro personagem q ue relega a personalidade incomodam ente semelhante para um a espécie de exterioridade mágica, da qual o eu não tem mais nada a temer por estar sem relação com ela. Tartufo, por exem plo, não está aqui, mas em outro lugar; não é nem você nem eu, mas um outro: é isto o que se quer dizer qu an do se declara que ele não é sincero, mas sim hipócrita. Da mesma m aneira o procurador Maillard, em La Tête des autres, de Marcei Aymé, não é de modo algum o ba-
nal “senhor de bem” que ele evidentemente é, mas um crápula grotesco, ou ainda um “canalha ” — para se ins pirar aqui no diagnóstico sartriano, interessante por ilustrar bastante esta fatalidade que, volens nolens, condena de preferência à semelhança aquele que procura não se assemelhar: tendo o autor de O Ser e o nada em comum com o procurador Maillard precisamente a propriedade fundame ntal de ser um “senhor de bem”. O espetáculo da cegueira no outro — desta segurança que ele tem de estar em outro lugar enq uanto está aqui, desta certeza de ter evitado um eu indesejável enqu anto mergulha nele por inteiro — é causa ao mesmo tempo de regozijo cômico e de ligeira angústia psicológica. Geralmente tenderiamos a abrir a boca para assinalar um erro tão evidente: você está enganado — o duplo que fabricou é apenas um a representação infeliz de sua 96
unicidade, cujo caráter desagradável, aliás, ela agrava. Porque lhe perdoariam facilmente por ser indesej ável, isto é, você mesmo, se não acrescentasse esta bufonaria de considerar-se um outro. Mas isto é esquecer que só nos tornamos indesejáveis tentando não sê-lo, e que pedir ao outro para reconhecer qu e é indesejável equivale a qu e rer suprim ir sua própria indesejabilidade. Porque “ser si próprio” coincide aqui “com considerar-se um outro”; de modo que, pensando criticar a sua dissimulação, critico ele mesm o em pessoa. Mostrando-lhe qu e é diferente do que pensa ser, espero secretamente que ele seja diferente do que é, imaginando confusamente que ele podería real mente não ser ele mesmo, mas justamente um outro. Minha advertência seria, portanto, tão ilusória quanto a ilusão qu e ela critica. Insistindo nisso, só entraria na ilu são de uma duplicação do único, no momento em que pretendo percebê-la no outro e censurá-lo por isso: cain*
do assim eu mesmo na cilada que queria denunciar. E aqui, nesta evidência tão tautológica que nem sempre aparece, que a fábula da palha e da viga ganha a sua sig nificação essencial — mais do qu e na morna lição de moral que dela habitualm ente se quer tirar. Esta fantasia de ser um outro cessa naturalmente com a morte, porque sou eu quem morro, e não o meu duplo: a frase célebre de Pascal (“Morre-se só”) designa muito bem esta unicidade irredutível da pessoa face à morte, mesmo 97
se ela não a tem principalmente em vista. A morte signi fica o fim de qualquer distância possível de si para si, tanto espacial quanto temporal, e a urgência de uma coinci dência consigo mesmo; é aqui q ue a tese de Rank encon tra um sentido profundo, e mais ainda o provérbio de André Ruellan em seu Manueldu savoir-mourir .32‘A mor te é um encontro consigo mesmo: é preciso ser exato pelo menos uma vez.” N o entanto, há um a maneira de faltar a este últim o encontro, ao mesmo tempo precipitando-se nele comple tamente: a que relata Mallarmé no primeiro dos seus Contos indianos, que é, ao mesmo tempo, uma das mais
curiosas histórias de duplo e a mais perfeita ilustração da estrutura oracular. A impossibilidade de ser ao mesmo tempo isto e aquilo, si próprio e o outro, é o tema princi pal deste conto cruel, cuja crueldade reside paradoxal mente no seu próprio êxito: porque, ganhando aquilo, perde-se necessariamente isto. U m rei envelhecendo sus pira pela sua juventude perdida: por qu e não é jovem de novo, por que não se parece, por exemplo, com este belo rapaz cujo retrato a rainha lhe mostrou? Fazem -no acre ditar que a metamorfose é possível, graças à magia: por que este retrato é encantado, e o rei poderá tornar-se
32Paris: Ed. E Horay, p. 37.
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idêntico a ele apenas contemplando-o intensamente, em um a cerimônia iniciática cujos pormenores os feiticeiros lhe precisarão, por intermédio da rainha. Chegado o mo mento, aparece o original do retrato, isto é, o amante da rainha em carne e osso, que encontrou aí um bom meio de substituir, sem esforço, o monarca, graças a um assas sinato noturno: “Com um golpe de cimitarra, súbito, ele trespassa o corpo do miserável que talvez, por um segun do, acreditou na fulgurante realização da metamorfose: ao menos, por caridade, o supõe, aquele que o tirano considerava uma aparição de sua beleza próxima, e que era o próprio herói.”33A estrutura oracular é reduzida aqui à sua expressão mais simples, por um atalho irônico qu e leva diretam ente da coisa que se que r evitar à coi sa que se quer obter, porque é a mesma. O acontecimen to se produziu tal como era desejado e anunciado: “eu” tornou-se “um outro”, e o monarca rejuvenescido pos sui todas as qualidades que se esperava da metamorfose: jovem, agradável e belo. A viagem encantada que con duz de um ao outro, do único ao seu duplo, chegou aqui ao seu termo; mas, no intervalo, o viajante morreu. No entanto, estava-se quase lá. Só falta um detalhe para o novo rei: ter permanecido ele mesmo tornando-se ao mesmo tempo outro. Falta-lhe apenas um pouco de 33“Le Portrait enchanté”, in: Oeuvrescompletes. Paris: Bibl. de la Pléiade,
p. 595-6.
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mem ória para garantir a continuidade do único ao seu duplo; desta memória da qual Leibniz, em seu Discurso de metafísica, diz ser parte integrante e necessária da subs
tância, porq ue “a imortalidade desejável implica a lem brança”.34E Leibniz ilustra esta definição do único através de uma história chinesa que poderia servir de epígrafe para o conto indiano de Mallarm é, e que, para nós, ser virá de epílogo: “Suponhamos que algum particular deve tornar-se rei da Chin a de um mom ento para o outro, mas com a condição de esquecer o qu e foi, como se acabasse de nascer inteiram ente de novo. Isto não seria o mesmo, tanto na prática quanto nos efeitos que se podem aper ceber, que se devesse ser aniquilado e que em seu lugar fosse criado no mesmo momento um rei da China? E nenh um particular tem qu alquer razão para desejar isto.” Isto qu er dizer que tudo o que é é um e que não há duplo do único: que é preciso então resolver-se, já que qu alq ue r outra opção está excluída, a ser “pa rticu lar” ou a não ser. 2. D A BESTE IRA
A segurança em qu e se encerra a vítima de um a profecia é parecida com aquela na qu al repousa a pessoa que pro-
* Artigo 34.
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cura no outro um personagem de substituição e um a es capatória do destino que a condena a ela mesma: nos dois casos, a segurança é um a armadilha que acaba por ligar o herói trágico ao seu destino e encerrar o homem nele mesmo. A fuga e a esquiva se exprimem por um gesto que constitui precisamente, e integralmente, o dano do qual queríamos nos desviar. É querendo evitar matar o pai que Édipo se precipita no caminho do homicídio, é querendo a todo custo ser um outro que o homem habi tualmente se confirma nele mesmo. De modo que a se gurança com que se julga protegido aquele que tentou esquivar-se de seu destino constitui o lugar exato de sua perdição. O outro lugar aparente não é outra coisa se não o aqui do qual se julgava afastado, e a proteção com a qual se contava revela-se como aquilo que justam en te causou a desgraça: como o relógio do pescador, na Descida no Maelstrõm de Edgar Poe, que deveria assi nalar a hora perigosa da maré e que se percebe tarde demais que parou às sete horas. A falsa segurança é mais do que a aliada da ilusão; ela constitui a sua própria substância e é, no íntimo, a ilusão em pessoa, como diz Hécate em Macbeth: “A segurança é a maior inimiga dos mortais.” Esta segurança ilusória é também característica de um fenômeno próximo mas distinto da ilusão, a besteira. Mais exatamente, ela caracteriza uma certa forma de besteira
cujo mecanismo e incontestável vigor ela ao mesmo tem po esclarece. De maneira geral, a besteira pode ser considerada de dois pontos de vista: o de seu conteúdo e o de sua forma. A questão do conteúdo da besteira coloca um problema de inventário aparentemente insolúvel, que é, aliás, estranho à problemática do único e de seu duplo. Podemos então nos contentar aqui em descrever sumariamente o conteúdo da besteira como toda manifestação de apego a temas irrisórios, estes sendo inesgotáveis tanto em nú m ero quanto em variedade. Mas, para um conteúdo idên tico, a besteira pode apresentar duas fo rm as bastante diferentes, conforme a adesão ao tema irrisório seja imediata e espontânea, ou, ao contrário, só intervenha de man eira retardada e refletida. N o prim eiro caso, o tema é admitido imediatamente por hereditariedade ou am biente culturais, sem q ue seja colocado o problem a geral da besteira, isto é, a questão de saber se o tema é inteligente ou não: besteira do primeiro grau, irrefletida e es pontânea. No segundo caso, o tema só é admitido após madura reflexão, o que quer dizer que aqui o problema da besteira foi examinado cuidadosamente, e aparenteme nte resolvido — já que o tema levado em consideração só foi selecionado após um exame crítico dos mais severos, de modo q ue o tema ao qual nos dedicamos 102
parece definitivamente a salvo da crítica: besteira do se gundo grau, interiorizada e reflexiva. Nesta segunda for
ma de besteira, tomou-se consciência do problema da besteira; sabe-se que é preciso evitar ser estúpido, e, à luz deste escrúpulo, escolheu-se uma atitude “inteligente”. Naturalm ente, esta atitude não é outra coisa senão a bes teira “em pessoa”, da qual se podería dizer, parafrasean do Hegel, que é a “besteira tornada consciente dela mesm a”: mas não no sentido em que ela seria consciente de ser estúpida, mas, ao contrário, consciente de ser inte ligente, de constituir um brilho de lucidez sobre um fundo de besteira outrora ameaçadora do qual se julga doravante defmitivamente livre. Esta besteira do segundo grau, apanágio das pessoas geralmente consideradas — com razão, aliás — inteli gentes e cultas, é evidentemente incurável: porque cons titui uma forma de besteira absoluta, diferentemente da besteira do primeiro grau. Pode-se sempre esperar que esta última, imediata e espontânea, seja virtualmente inteligente: pode-se imaginá-la livre do erro um dia, na ocasião de uma tomada de consciência mais ou menos hipotética. Esta esperança é vã no caso da segunda for ma de besteira: porque nesta a tomada de consciênciayá ocorreu. A imbecilidade confirmada encontra-se assim
num impasse semelhante ao da ilusão: incurável por 103
raciocinar bem demais, como Boubouroche é incurável por ver bem demais, na peça de Courteline. O último ferrolho que protegia a pessoa da opção definitiva foi pelos ares, como um último marco que se teria perdido, ou uma última chance que se teria deixado passar. A analogia entre esta forma incurável de besteira e a estrutura oracular ou psicológica da esquiva é evidente. Como Édipo ou qualquer um encontram-se por terem querido evitar-se, da mesma forma a besteira instala-se definitivamente nela mesma por ter querido escapar à besteira: ela se torna estúpida por medo de ser estúpida, ou, mais simplesmente ainda, torna-se ela mesma por ter desejado ser outra. Mesma ilusão de segurança, ligada a um a mesma confusão entre o aqui e o outro lugar: imagino a besteira afastada para sempre e uma certa inteligência aqui, enquanto a besteira está aqui e a inteligência em outro lugar, para sempre. Esta fatalidade é igualmente a do esnobismo e, de maneira geral, a de todos aqueles que, duvidando deles mesmos, tentam buscar a salvação em um modelo : outro mágico de quem espero que me fará escapar à minha sorte, enquanto ele me encerra inexora velmente em mim mesmo.
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3. O ABANDONO DO DUPLO E O RETORNO A SI
Uma das características da arte de Vermeer — como tal vez de toda arte que alcançou um certo grau de nobreza — é pintar coisas, e não acontecimentos. O mundo que Vermeer percebe não é aquele, para sempre mudo, dos acontecimentos insignificantes, mas o da matéria, eter namente rica e viva. Poderiamos dizer que nele o anedótico dissipou o anedótico: o acaso de um momento do dia, nu m a peça onde nada de importante acontece, apa rece como o essencial de um real cujos acontecimentos aparentemente notáveis constituem, ao contrário, a par te acessória. Deste real captado por Vermeer o eu está ausente, porque o eu é apenas um acontecimento entre outros, mudo e insignificante como eles. Não existe, aliás, auto-retrato de Vermeer, e a biografia do pinto r está con tida em dez linhas anódinas. Entretanto, Vermeer pare ce na verdade haver pintado a si mesmo uma vez, por um jogo de duplo espelho: nesta tela sem nom e preciso, hoje chamada O ateliê?5Mas de costas, como um pintor qu al quer, que podería ser qualquer outra pessoa trabalhando3 5
35C£ supra, p. 91 e nota; c£ tam bém dr. D . H an n em a, Over Johannes Vermeer
na sua tela. Nada, na roupa, na estatura, na atitude do pintor, que possa ser considerado sinal distintivo, nada, portanto, que dem onstre uma complacência qualq uer do pintor com relação a si mesmo. Ao mesmo tempo este O ateliê — como todas as telas de Vermeer — pare ce pleno de um a felicidade de existir que irradia de to das as partes e atinge imed iatam ente o espectador, e que revela uma jubilação perp étua diante do espetáculo das coisas: a se julgar por este instante de felicidade, fica mos facilmente convencidos de que aq uele q ue fez isto, se fixou na sua tela apenas um único momento de sua alegria, teria feito facilmente o mesmo tanto com o ins tante anterior como com o instante posterior. Só lhe faltou tempo para celebrar todos os instantes e todas as coisas. Seria certamente exagerado fazer derivar esta alegria apenas do abandono de sua própria especificidade, desta descoberta de que o eu, enq uanto ser singular, não só não interessa a ninguém , como também não interessa a mim mesmo, que só tenho vantagem em desemb araçar-me da minha imagem. Esta indiferença para consigo mesmo é aqui antes efeito do que causa: ela mais assinala uma beatitude do que a provoca. Mas o vínculo entre o gozo da vida e a indiferença para consigo não é, aqui, menos manifesto. O pintor de O ateliê, de certo modo, tornou 106
visível o invisível: ele pin tou sua ausência, mais bem ex pressa assim do que se tivesse se contentado simplesmente em renun ciar a qualqu er forma de auto-retrato. Q ua n do nada é dito, sempre é possível imaginar alguma se gunda intenção. Este não é o caso aqui: porque o nada está dito aí com todas as letras e mostra-se, bem à vista, na tela. Senão o nada, pelo menos um muito pouco, um quase nada digno de nota. O que Vermeer pinta em seu O ateliê, considerado a outro ponto de vista, é igualmente o indício de um a ple nitude, que explica a atmosfera serena e jubilosa da obra. Esta plenitude é a mesma que experimenta Candeias no final de O amor feiticeiro: a reconciliação de si consigo mesmo, que tem como condição o exorcismo do duplo. Renunciar a pintar-se de frente equivale a renunciar a se ver, qu er dizer, renunciar à idéia que o eu possa ser per cebido num a réplica que permite ao sujeito apreenderse a si mesmo. O duplo, que autorizaria esta apreensão, significaria tam bém o assassinato do sujeito e a renúncia a si, perpe tuam ente despojado dele mesmo em benefício de um duplo fantasmático e cruel; cruel por não ser, como diz Montherlant: “Porque são os fantasmas que são cruéis; com as realidades podemos sempre nos arranjar.” Eis por que a assunção jubilosa de si mesmo, a presença verdadeira de si para si mesmo, implica necessariamente a renúncia 107
ao espetáculo de sua própria imagem. Porque a imagem, aqui, mata o modelo. Intimamente, o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mes mo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O nar cisista sofre por não se amar: ele só ama a sua repre sentação. Amar-se com amor verdadeiro implica uma indiferença a todas as suas próprias cópias, tais como podem aparecer para os outros e, pelo viés dos outros, a mim mesmo, se presto muita atenção a eles. Este é o miserável segredo de Narciso: um a atenção exagerada ao outro. Esta, aliás, é a razão por que ele é incapaz de ama r
alguém, nem o outro nem ele mesmo, já que o amor é um assunto importante demais para que se delegue a outro a responsabilidade de negociá-lo. Qu e te importa se te amo, dizia Goethe; isto só tem valor se concorda mos implicitamente qu e o assentimento do outro é igual mente facultativo no am or que se dirige a si mesmo: q ue te importa se me amo. O pinto r de O ateliê já está livre do fardo do q ual se desemb araça Candeias no final de O amorfeiticeiro-, o da imagem de si. Fuga do duplo, abandono de sua imagem, em benefício do eu enq uanto tal, isto é, enqu anto invisí vel, inapreciável, e digno de ser amad o somente às cegas, como é regra em todo amor. 108
A obsessão pelo duplo, na literatura romântica, reve la curiosamente um a preocupação exatamente oposta. A perda do duplo, do reflexo, da sombra, não é aqui liber tação, mas efeito maléfico: o homem que perdeu o seu reflexo, como, entre muitos outros, o herói de um céle bre conto de Hoffmann,36não é um homem salvo, mas sim um homem perdido. Em vez de procurar se desem baraçar de sua imagem, de considerá-la um fardo pesa do e paralisante, o herói romântico investe nela todo o seu ser, e só vive, afinal de contas, porque sua vida é ga rantida pela visibilidade de seu reflexo, reflexo cuja ex tinção significaria a morte. Está assim perpetuamente em busca de um duplo que não pode encontrar, com o qual conta para lhe garantir o seu ser próprio; se este reflexo desaparece, o herói morre, como no final de William Wilson de Poe. O angustiado rom ântico aparece então —
pelo menos em todos os textos que colocam em cena o duplo — como essencialmente duvida ndo de si mesmo: necessita a todo custo de um testemunho exterior, de algo tangível e visível, para reconciliá-lo consigo mesmo. So zinho, ele não é nada. Se um duplo não o garante mais no seu ser, ele deixa de existir. Pode-se observar a este angustiado qu e ele encontra rá o reflexo de si mesmo que procura não em um espelho
ou em uma duplicata fiel, mas nos documentos legais qu e estabelecem a sua identidade. Insignificante confirmação, responderá, porq ue ele qu er um a imagem de carne e osso, não uma conjetura de ser fundada sobre papéis conven cionais, ao mesmo tempo perecíveis e falsificáveis à von tade. Mas isto é pedir demais: porque a única imagem um pouco sólida qu e se pode oferecer de si mesmo resi de precisamente nestes documentos, e apenas neles. Os sofistas gregos, ao que parece, haviam compreendido basta nte pro fu ndamente que só a instituição — e não um a hipotética naturez a — é capaz de dar corpo e exis tência ao que Platão e Aristóteles conceberão como “substâncias”: o indivíduo será social ou não será; é a so ciedade, e suas convenções, que tornarão possível o fe nôm eno da individualidade. O que garante a identidade é e sempre foi um ato público: uma certidão de nasci mento, u ma carteira de identidade, os testemun hos concordantes do porteiro e dos vizinhos. A pessoa human a, concebida como singularidade, só é assim perceptível a ela mesma como “pessoa mora l”, no sentido jurídico do termo: qu er dizer, não como um a substância delimitável e definível, mas como uma entidade institucional que garante o estado civil, e apenas o estado civil. Isto quer dizer que a pessoa humana só existe no papel, em todos os sentidos da expressão: ela existe sim, mas “no p ap el”, 110
só é perceptível do exterior, teoricamente, como possi bilidade mais ou menos plausível. É fácil reconhecer os limites desta plausibilidade na ocasião de múltiplas ex periências: toda vez que, após um incidente ou uma cri se qualquer, não estamos em condições de provar nossa identidade. Quando estamos sem documentos, é inútil gritar que somos nós mesmos: isto não diz nada a nin guém, como mostra um sainete de Courteline, A carta registrada. Um empregado dos correios reconheceu num cliente que veio buscar um a carta registrada um de seus velhos conhecidos: a conversa fica animada, recordamse mutuamente lembranças comuns; depois, o cliente solicita a sua carta. Mas o empregado recusa-se: para le var a sua carta, é preciso que o cliente prove a sua identi dade. Absurda devoção ao regulamento, observa o cliente; mas o empregado retruca: “Reconheci você como homem do mundo; mas como funcionário ignoro quem é você.” O cliente exibe então diferentes documentos cuja auten ticidade é reconhecida pelo empregado: entretanto, um pequeno detalhe faz com que, sempre, o documento apresentado dê lugar a uma dúvida possível e se revele impotente para a decisão, de modo que a carta permane cerá finalmente nas mãos do empregado, até o dia em que seu amigo lhe tiver demonstrado, de maneira irrecusável, que ele na verdade é decididamente ele mesmo, e não um outro. 111
Dem onstração impossível: porqu e o empregado tei moso não exige, em suma, outra coisa senão um duplo do único. Faz-se ouvir aqui, por trás da sátira do for malismo burocrático, o eco surdo de uma angústia mais profunda, qu e tem po r objeto a identidade não apenas legal, mas existencial: sou eu mesmo, sou realmente eu que vivo, eu que n enhum documento garante, como aca ba de me dem onstrar este empregado escrupuloso? Para assegurar-me disso, seria preciso uma d uplicata qu e jus tamente me falta e me faltará sempre. Tenho, portanto, realmente razão de duvidar de mim, e descubro na mi nha incapacidade para desdobrar-me um sério motivo para interrogar-me, não apenas sobre o caráter efêmero e frágil de min ha existência, mas também sobre esta pró pria existência, tão efêmera e frágil sob um outro ponto de vista. A angústia de não ter nenh um duplo onde apa nh ar o modelo de seu ser próprio não está ligada funda me ntalm ente à angústia de dever morrer, como pensa O. Rank — repito: esta tese é justa, mas superficial: porque o temor de morrer é apenas um a co nseqüência do temor de não viv er— , mas àquela, mais profunda, de duvi dar de sua própria existência. Se necessito de um duplo para atestar o meu ser, e se só existe duplo de papel, devo concluir que minha pessoa é de papel, ou minha alma, como imagina Michel Tournier, que conta uma fábula estranha a este respeito: um benfeitor da humanidade, 112
que tinha de destruir, no Quai des Orfèvres, um proces so embaraçoso que lhe dizia respeito, procura, por filan tropia, queimar a totalidade dos processos e arquivos de todos os edifícios públicos, prefeituras, repartições mu nicipais, comissariados. Uma vez queimado o último processo, constata que a humanidade se degradou: os homens não sabem falar, andam de quatro, farejam a cal çada com a cara. Espanto do filantropo, que “acaba por compreender que, querendo libertar a humanidade, ele a rebaixa a um nível bestial, porque a alma humana éfei ta de papel".37 É justamente isto que pressente e teme o herói ro mântico: que não queimem o meu duplo, porque não sou nada fora dele e só existo no papel. Q ueimar o duplo é, ao mesmo tempo, queimar o único. Temor justificado num certo sentido: não que o indivíduo seja de papel, mas porque ele é incapaz de tornar-se visível — enquanto único — em outro lugar que não no papel. A angústia de ver desaparecer o seu reflexo está então ligada à an gústia de saber que se é incapaz de demonstrar a sua exis tência por si mesmo: a últim a prova, a prova pela própria coisa, que se pensava guardar como trunfo decisivo, é para sempre inoperante. As provas ou argumentos que se ex põe são destinados a demonstrar a coisa; ora, pode ser que,
por azar e por sorte, se seja capaz de mostrar a coisa que nos esforçávamos para demonstrar: e o interlocutor per manece impassível. Entretanto, não tento convencê-lo, indico a coisa para ele com o dedo. Ele se recusa a adm i tir, por exemplo, que a Córsega seja visível do continente quando o tempo está claro; após haver me esgotado em argumentos hábeis, levo-o para os cumes de Nice e mos tro-lhe a Córsega: ele zomba, e me pede para demons trar a coisa mais seriamente. Diálogo de pesadelo, que seria o de Pascal apresentando ao libertino não mais ar gumentos em favor do deus de Abraão e de Jacó, mas este Deus em pessoa, visível e resplandecente, sem conseguir com isso obter um assentimento de seu interlocutor. Eis por que todo pensamento sensato faz um a pausa obrigatória, na condução do raciocínio, quando se atin ge a coisa mesma. Aristóteles e Descartes denom inam este momento com a mesma palavra: a evidência, o direta mente visível, sem o auxílio e a mediação do raciocínio. Há um momento em que cessa o domínio das provas, em que se topa com a própria coisa, que não pode ser garantida por nenhum outro lugar além dela mesma. É o momento em que a discussão pára e em que se inter rompe a filosofia: adveniente re, cessat argumentum. Existe, entretanto, um domínio em que a argum en tação não cessa, porque a coisa não se mostra nunca: e é justam ente o m eu domínio, o eu, minha singularidade. 114
Falta-me ser visível para que me detenha racionalmen te em mim mesmo. Sem dúvida, se sigo Aristóteles neste ponto, posso decidir que sou um homem; mas não pos so, por outro lado, conseguir pensar que sou um ho mem, justamente aquele que sou. A idéia segundo a qual eu sou eu é apenas um a vaga suposição, ainda que insistente: uma “impressão forte”, como diz Hume. E Montaigne: “Nossa realidade são apenas pedaços cos turados.” E Shakespeare: “Somos feitos da matéria dos sonhos” — sonhos cuja própria matéria é de papel: caso o papel falte, como na história de Courteline, o sonho se dissipa. Uma solução, neste caso desesperado, consiste em agarrar-se ao papel: já que m inha pessoa é duvidosa, que ao menos os documentos que demonstram sua veraci dade sejam de um a solidez à toda prova. É a solução in versa da de Vermeer, que abandona o eu em beneficio do mundo: aqui abandona-se o mundo em beneficio do eu, e de um eu de papel. O duplo apagará o modelo. É mais ou menos o que quer dizer Platão no mito de Theu th:38 a lembrança escrita tomará o lugar da lembrança viva — valendo mais, na opinião de alguns, um papel sólido do que uma vida incerta. Atormentado por não ser nunca ele mesmo — e isto não sem alguma razão, em certos mFedro, 274 ss.; Filebo, 18.
casos — , torna-se assim um hom em de papel, vítima da invenção maléfica do deus Th eu th. O traço escrito serve de duplo onde avaliar o seu ser, ou melhor, sua falta de ser. E igualmente assim que se fica ridículo, no sentido bergsoniano: por nu nca dizer mais nada mas sempre re petir, em busca de um improvável “padrão”. A angústia de não ser nada ou quase n ada co nduz logo ao absoluta mente nada; o “eu não sei o quê e o quase nada” de V Jankélévitch conduz então ao eu não sei e ao absoluta mente nada. Já que me obrigo a repetir um eu cujo m o delo procuraria em vão, condeno-m e a repetir o outro: e este próprio outro q ue assim gloso é ele mesm o apenas o reflexo de um a ausência. Jogo de ressonância inte rminá vel, onde se repete ao infinito o eco de um a incapacidade para dizer “eu”, para experim entar-se como algo. Esta seria a essência da infelicidade do intelectual contemp o râneo, se acreditamos em François Wahl, evocando aqui Jacques D errida: “A repetição como eterna ausência de algum presente verdadeiro.”39 Frase profunda, contanto que seja abreviada e ra dicalizada. Porque a repetição é sempre eterna ausência de algum presente. Que m repete não diz nada, qu er di zer, não é nem capaz de repetir-se. O original deve dis pensar qualq uer imagem: se não me encontro em mim y>Q u’est-ce qu e le siruciuralist ne?. Paris: Ed. du Seuil, p. 431.
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mesmo, reencontrar-me-ei ainda bem menos no meu eco. E preciso então que o eu seja suficiente, por menor que seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo, que não é nada. É o que exprime admiravelmente a linguagem corrente quando declara, sem tomar muito cuidado, que “não se pode virar outro"
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CONCLUSÃO
O s diferentes aspectos da ilusão descritos anteriormente reenviam para uma mesma função, para uma mesma estrutura, para um mesmo fracasso. A função: proteger do real. A estrutura: não recusar perceber o real, mas desdobrá-lo. O fracasso: reconhecer tarde demais no duplo protetor o próprio real do qual se pensava estar protegido. Esta é a maldição da esquiva: reenviar, pelo subterfúgio de uma duplicação fantasmática, ao indese jável ponto de partida, o real. Vê-se agora por que a es quiva ésempre um erro: ela é sempre inoperante, porque o real tem sempre razão. Certamente podemos tentar nos proteger de um acontecimento futuro, se este é apenas possível; nunca nos protegeremos de um acontecimento passado ou presente, ou ainda “inevitável no futu ro ”, como na simbólica oracular que anuncia por antecipação 119
uma necessidade inelutável que já tem todas as caracte rísticas de um a necessidade presente: e o gesto pelo qual se tenta livrar-se dela nunca poderá “fazer melhor” do que reproduzir literalmente o acontecimento temido, ou, mais exatamente até, constituí-lo. E o que acontece a Édipo, como a qualquer homem em crise consigo mes mo, quer dizer, a todo homem num momento ou em outro de sua existência. Viu-se que algo análogo aconte ce em setores muito diferentes da ilusão: o fantasma do duplo interessa, por exemplo, ao mecanismo elementar da tolice, mas está igualmente presente em um a tendên cia fundamental da metafísica, ou pelo menos de uma certa metafísica. A subordinação dessas diversas ilusões ao tema do duplo não significa, por certo, que necessariamente toda forma de ilusão está ligada ao duplo. Antes de considerar certa uma tal conclusão, seria necessário proceder a um recenseamento completo, impossível por definição, de to das as manifestações da ilusão. Observaremos simplesmen te — seguindo nisto o exemplo dos advogados, que deixam para a acusação o encargo de fornecer a prova — que a tese aqui apresentada permanece verdadeira até que lhe tenham objetado um caso de ilusão que não se reduza, de maneira direta ou indireta, a uma duplicação mágica da coisa e a um a hesitação confusa entre o único e seu duplo. Caso que, ao que parece, ainda não foi encontrado. 120
Talvez devéssemos levar em conta, é verdade, as cé lebres “ilusões dos sentidos”, que evidentemente não têm nenhuma relação com a recusa do real pela duplicação dele mesmo. Mas o que se chama de ilusões dos sentidos são mais erros do que ilusões propriamente ditas. Não colocando em jogo o desejo ou o medo — e neste ponto é difícil não concordar com Freud quando relaciona, em O fu tu ro de uma ilusão, a ilusão ao desejo, diferentemen te do erro — , elas não implicam nenhuma proteção com relação ao real e podem assim ser assimiladas a simples erros de julgamento, como os céticos gregos já haviam observado. E igualmente em vão que se procuraria do lado de certas formas banais de ilusão — as que a linguagem corrente retém cotidianamente quando diz deste ou da quele que “se iludem” — um meio de contradizer a tese que liga a ilusão à duplicação. Fala-se de “iludir-se” em situações freqüentes que podem muitas vezes parecer distantes, na verdade, do tema do duplo. Assim, iludome todos os dias, cada vez que me julgo inteligente, belo, agradável, e logo rico, coberto de favores e de honras. À primeira vista, este gênero de ilusão banal parece despro vido de relação manifesta com a duplicação. U m exame mais atento mostraria, entretanto, que, em todos os ca sos, a visão otimista de si mesmo e de sua sorte implica um quiasmo entre o que é percebido e o que é deduzido ✓
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da percepção, análogo àq uele pelo qual se viu qu e Bou bouroche distinguia entre o pensamento de seu rival e o pensamen to da fidelidade de sua amiga. O personagem de Bélise, em LesFe mmes savantes, de Molière, é o exem plo típico desta dupla visão que permite associar o oti mismo pessoal a um a percepção afinal de contas realista dos fatos. Bélise julga-se bela, inteligente e amada; sa bendo que C litan dre — que ela inclui entre seus am an tes mais devotados — está prestes a casar-se com uma rival, ela se convence mais ainda dos sentimentos de Clitandre a seu respeito. Mesma atitude quando lhe observam que todos os seus outros supostos amantes afastaram-se da sua presença: nada mais normal, ela respon de, já que me amam. Bélise consegue ver ao mesmo tempo que não é cortejada por ninguém e que é amada por todos, exatamente como Boubouroche vê ao mesmo tempo qu e Adèle tem um amante e que Adèle lhe é fiel. Toda auto-satisfação ilusória — deveriamos dizer: toda auto-satisfação? — pertence no fundo a este mes mo esquem a duplicatório que opera um desdobramento paradoxal entre a coisa e ela própria. A cegueira cotidia na qua nto a si, ilustrada de maneira caricatural pelo per sonagem de Bélise, é assim u ma variante entre ou tras do fantasma do dup lo inerente à ilusão. Ela é apenas u ma forma derivada e trivial da cegueira prim eira e “nobre”, que encon tramos na maldição do oráculo e na tragédia. 122
Sua estrutura não difere fundamentalmente da de to das as ilusões evocadas anteriormente, e nos arriscare mos a pensar que provavelmente é o que ocorre em toda ilusão. Restaria, enfim, mostrar a presença da ilusão — isto é, da duplicação fantasmática — na m aior parte dos in vestimentos psicológico-coletivos de ontem e de hoje: por exemplo, em todas as formas de recusa ou de “contesta ção” do real, onde é fácil provar que não chegariam a acusar o que existe sem o auxílio de um duplo ideal e impensável. Mas esta demonstração correría o risco de provocar polêmicas inúteis e só conduziría, aliás, na melhor das hipóteses, à exposição de verdades em suma bastante banais. Um tal desenvolvimento seria então fá cil, mas fastidioso, e o evitaremos aqui.
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