NOVOS NOVOS TAL TALENT ENTOS OS FNA FNAC C – LITERA LITERATURA TURA 2012 2012 5 contos inéditos de 5 autores por descobrir
ÍNDICE 1. Fashion Heroine………………………………………………..Luís Heroine………………………………………………..Luís Bento 2. O Pátio…………………………………………..……………….man Pátio…………………………………………..……………….manelmanel elmanel 3. José Augusto…………………………………Maria de Fátima Santos 4. Os Os Patos……………………………… Patos……………………………………………………..Maria ……………………..Maria J. Castro Castro 5. Shoodíaco…………………………………………….….Pedro Shoodíaco…………………………………………….….Pedro A. Amaral
Dos 701 contos a concurso, o júri, composto por Dóris Graça Dias, Carlos da Veiga Ferreira e Valter Hugo Mãe, escolheu os 10 finalistas que foram votados pelo público através do site www.novostalentosfnac.com/literatura/2012/
A totalidade das receitas deste livro reverte a favor da AMI, para o combate à infoexclusão.
Out 2012
NOTA DO EDITOR EDITOR DO EBOO EBOOK: K:
ESTE DOCUMENTO TEM SOMENTE UM OBJECTIVO: CHEGAR MAIS LONGE. MAS PARA PREMIAR A ORIGINALIDADE DOS AUTORES E A INICIATIVA DA FNAC, VISTO TER CARIZ SOLIDÁRIO, O EDITOR DESTE EBOOK RECOMENDA A COMPRA FÍSICA DO LIVRO NUMA DAS LOJAS FNAC. Ou em www.fnac.pt
FOI RESPEITADA A VONTADE ORTOGRÁFICA DOS AUTORES
FASHION HEROINE LUÍS BENTO
LUÍS BENTO | FASHION HEROINE
Às vezes escorregava em prestações suaves, pela memória desada a preto e branco desde os acordes do hino nacional a encerrar a emissão televisiva com estrondo, até aos bancos da escola onde se grafava ainda, teimosamente, Goa, Damão e Diu como territórios ultramarinos, no mapa-múndi de pontas enroladas a querer baldar-se para o chão junto de um circunspecto e inútil corta-tas num retrato com pose de presidente, faixa, medalha e comenda com os dizeres em bold cínico: Sua Excelência o Presidente da República Almirante Almirante Américo Tomás. Era da alvura das batas torturadas pela lixívia e pelo omo branco mais branco não há, que divisava a gurinha minúscula e atarracada, em redondo carica, da Dona Irmelinda nascida nas entrelinhas dos sessenta, já de casaquinho de malha assertoado pelo botão do meio de madrepérola reluzente que se vendia na retrosaria, em caixas de inocência rosácea, acantonadas nas prateleiras por trás do costado curvo do senhor Arnaldo, de óculos presos na ponta do nariz esmiuçando e remexendo até à eternidade, carrinhos de linha da coats and clark entrecortados por um chiça! envergonhado quando
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se espetava nas agulhas número três dolorosamente desarrumadas. Esbaforida, Esbaforida, pela rua General Taborda Taborda acima com a alcofa atafulhada atafu lhada de peixe, grelos e nabiças vinda da praça onde era mais barato e fresquinho, sem réstia de brilho, pigmento, laca ou perfume há muito perdidos nos vestígios arqueológicos dissecados por peritos do Neolítico. Apenas o vermelho afogueado lhe acariciava a face na pressa com que roubava tempo ao macadame para evitar o fedor a atraso em direcção à tabacaria onde, vício supremo do luxo de pobre, comprava a Crónica Feminina e se deixava levar pela fantasia da fotonovela ou pelo conforto dos anúncios dos vestidos, das malas e casacos de Inverno que ela bem precisava de um, numa alienação inocente e consentida apenas interrompida pelas letras do carro que, paulatinamente apresentadas pelo cobrador, grunhiam nos dentes amarelos do tabaco que o marido ainda andava a pagar. pagar. Se do céu caíra uma estrela, na passerela, lânguida e sensual, rica de decotes e ousadias, passeava-se um anjo livre, poderoso
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e reluzente onde o diabo até podia vestir Prada, Armani ou pele corada em pecado, mas acima de tudo, a vida se trajava de texturas quentes e garridas numa miscelânea de cor, romântica e despojada de preconceitos. Fora aí que o conhecera. Meio palmo de cara bem tratada e escanhoada com o beneplácito de Apolo Apolo em dia de tiro aos dardos. Chegara à conclusão, contudo, que Darwin só germinara e evoluíra no universo feminino e se pusera a fancos ao primeiro sinal de alerta da coutada do macho ibérico. Tolo! Tolo! Era um tonto! De sorriso idiota de conquistador em saldos confundindo Louboutin com a lobotomia que o assistente do doutor Egas Moniz zera à cabeça, numa operação delicada, da sua tia Emília. Esfumaçava, perdidamente, todo nu seguro da sua virilidade canhestra pensando que lhe tomara o corpo e não se dando conta, sequer, sequer, que ela apenas lho emprestara para que ele se perdesse no cárcere das suas coxas. Ela esboçava um sorriso malicioso e interior. interior. Ele soltava baforadas conantes de Torquemada de Queluz ocidental, olhando,
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de soslaio, ar de asno inquisidor. inquisidor. E ela voltava, sorrateiramente, à D. Irmelinda e aos seus brincos, batons, pó de arroz e outros acessórios reluzentes que, só por milagre ou distracção do Senhor, deixariam as páginas de papel. Ela bem gostaria de andar na moda, mas só a cunhada, que era uma desbragada que ntara as desgraças da vida e lhe trouxera um conjunto de batons da África do Sul onde elas andavam de mini-saia, bebiam como os homens e até já fumavam e tudo, lhe concedia carta de alforria, ainda que por breves instantes, para a terra do sonho. E foi num desses dias em que, por distracção, se atrevera a experimentar a prenda da cunhada diante do espelho gasto e roído de ferrugem, que não dera pela chegada do marido. Contrariado por não haver almoço na mesa e estarrecido pelas cores dos trapos, cou furibundo quando vislumbrou a imagem fálica do batom esgaçando por entre os dedos, pronto a tomar de assalto os seus lábios ressequidos. Alçou o braço direito e deu-lhe uma palmada com força estilhaçando o batom em pedaços no chão da casa de banho. E então sem pensar, pensar,
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decidira que era altura de romper com o medo que a agrilhoava numa tacanhez e subserviência fora de moda. Ainda ele se preparava para alçar o braço de novo quando levou, violentamente, com um jarrão de loiça de Sacavém que custara uns bons cinco quilos de escudos, na cabeça… Baixou-se para apanhar um coto de batom e, não reprimindo um sorriso, inou o peito de ar, ar, inclinou-se sobre o espelho e começou, calmamente, a pintar os lábios, percebendo, então, que a diferença entre subserviência e emancipação distava apenas doze pontos bem cosidos na testa do marido pela destreza e perícia do enfermeiro de serviço no posto clínico e que, estar no tom da moda era ousar viver numa liberdade conceptual e estética em que a vida… era o tom… A beleza Benvinda não chegara a acertar contas com a beleza, mas o algoritmo
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matemático do cálculo não era matéria que lhe tirasse o sono. O sono era pesado e justo e matéria era coisa que não lhe faltava, ali, no lado direito do lava-loiças onde escorriam preguiçosamente uns ozinhos de água dos pratos acabados de lavar ou no monte de roupa amarfanhada no cesto de plástico do Ikea, comprado em promoção, a pedir com urgência umas festas de ferro de engomar. Primeiro passear a vassoura pela marquise repleta de pêlos do Snoopy que ainda não fora à rua e fazia cruzes com as patas em aitiva contenção urinária, mas só depois de estender a roupa, ainda húmida e vincada, acabadinha de sair do carrossel lento e ruidoso dos sessenta graus de AEG Lavamat a estrebuchar de ferrugem, que não escolhera hora para cair doente e que tinha sido prenda de casamento dos padrinhos. Umas jóias de pessoas que Deus os tivesse no céu, em boa conta e a seu lado, na companhia de anjos e querubins por entre nuvens de algodão e árias de harpa anada. Nunca lhes faltaram com nada, graças a Deus, mas também não se podiam queixar. queixar. Fora ela que lhes valera com caldos e carinho na fase terminal da doença.
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O mal já andava lá dentro e a gangrena traiçoeira sugara-lhes uns previsíveis bons anos de vida. Vinda distraía-se com as horas. Vinda… Sempre se habituara ao diminutivo. Os pais, lavradores de prossão e remediados por anidade, já sustentavam uma prole ranhosa e aita de cinco mancebos, o descuido nocturno por gula intempestiva do macho zera o resto, resto, obrigando ao milagre da multiplicação dos pães por força de arranjar espaço para mais um na gamela. Foi a tia Emília mais a mulher do lugar, aquela lojeca das ferramentas, potassa e carvão a granel com um arco feito de barrotes à entrada, enfeitado com um reclame de metal corroído e desbotado com o cavaleiro dos correios telegramas e telefones onde onde se ia levantar levantar o vale da pensão nas vezes da casa do povo, fechada, porque a dona Mina andava sempre doente, quem acalmou os berros e enxugou as lágrimas com toalhas quentes. Por ser uma gravidez extemporânea e pela pressa em nascer, nascer, o pai baptizara-a logo ali, no quarto pequeno e atarracado onde o soalho exibia mazelas profundas profundas dos pregos soltos. Bem-Vinda ao mundo! Benvindo chegara e Vinda cara. Assim
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que ganhara corpo os pais mandaram-na para Lisboa para casa do doutor Rodrigo proveniente de uma família com uma carrada de nomes, para servir. Que Deus os tivesse em boa conta pois que os senhores lhe providenciaram cama, mesa, roupa lavada e ainda a meteram a estudar. Ficara-se pelo nono ano, o suciente para ler os recados e fazer contas na praça sem se enganar no troco. Enamorarase dele, do seu homem. Um artista. Fora a casa dos doutores para compor umas tomadas e dar luz aos candeeiros. Algures, entre a fase e o neutro, dera-se o curto-circuito da paixão. Era esbelto, olho vivo e resposta pronta, trabalhador e despertava o olho gordo da cobiça das amigas. Quase três horas!... E ainda tinha de ir levantar o dinheiro para pagar o condomínio, porque já tinha vergonha de encontrar a velha da administração, uma antiga professora de piano, reformada, chata, má como as cobras rumorejando sem descanso dichotes sobre a vida alheia. Desde que o marido morrera, cara amarga destilando fel às postas a cada meia sílaba do discurso. Desculpe o atraso o patrão não pagou ao meu marido mas esta
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semana faço o depósito. Se pudesse, ainda passaria pela mercearia a acrescentar mais umas parcelas na conta que já chegava à China. O mal de tudo era o Pingo Doce não aceitar cheques. Que vergonha! Desde que lhe voltara um para trás, cheio depressa para anunciar ao mundo que andava a descoberto e em pêlo, que nunca mais fora ao supermercado. Desculpe trouxe os cheques da outra conta, deixo aqui o carrinho e já volto… Nunca mais! O empregado do piercing na língua e a tatuagem dos Scorpions que o arrumasse nas prateleiras na companhia do ordenado mínimo. Tinha que se despachar ou perdia o autocarro para ir buscar o miúdo à escola arrojando com ele por uma mão e a mochila na outra, mais a Nintendo dependurada, a lancheira e a bola de futebol. Era só o tempo para passear o snoopy, snoopy, dar banho ao miúdo e preparar o jantar. Por vezes, enevoa-se-lhe a vista com uma sombra de tristeza. Ela bem suspeitava e a suspeita ganhara força quando o subsídio de Natal estoirara por completo na ocina do Carriço, para arranjar o carro que o marido espatifara no cruzamento da João Crisóstomo com a Defensores de Chaves.
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A vizinha do segundo esquerdo, mesmo por cima da padaria, bem lhe dizia que ele andava às gatas… Pois era zona de elas irem miar. Depois disso a cunhada do Victor do banco armara tê-lo visto com uma mastronça e a partir daí, o enredo ganhara forma e volume. Lá lábia para as outras tinha ele, mas olhos ou uma palavra de conforto para ela haviam-se perdido, há muito, na via láctea da indiferença e do esquecimento, tanto mais injusto quanto doloroso. Ela bem sabia quando ele chegava bem disposto e sorridente. Um beijo de fugida com receio de que lhe tomasse o gosto da outra… Havia moura na costa. Na costa, nas ancas, no sexo… Era um fartote, ela bem sabia ele dizia que tinha muito trabalho, mas ia ter com ela. Cambalhotas no quarto a rebolar nos lençóis encardidos do prazer alheio, quarenta euros de aluguer e dois de gorjeta para a recepcionista e não se fala mais nisso… Imaginava as gargalhadas, as volúpias, o prazer, o duche com sabão azul e branco, de ph neutro, para tirar o cheiro. Certamente, a outra fazia aquelas coisas dos lmes. Vinda também também faria de bom grado, mas ele não pedia. Era um frete quando ele
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se encostava. De mau humor, bem lhe via, pelo canto do olho, o ar enjoado pelo seu cabelo com cheiro a fritos do peixe do jantar que cara a descongelar, descongelar, desde manhã, em cima da bancada lavada com Neoblanc. Montava-se em cima dela sem a tar nos olhos, esses estavam presos no mastro que metia logo todo. De uma só vez… E depois começava a tremer, forte, cada vez mais forte como se estivesse cheio de frio. A rapidez com que fugia de dentro dela e se virava para o lado não lhe dava margem para protesto ou questão. Tou cansado, despejava ele, hoje tive muito trabalho. Já dormia a sono solto por entre roncos e silvos enquanto ela, de olhos postos no tecto e a mão entre as coxas, ia acabar o resto que ele não chegara a começar, para a casa de banho silenciando, a custo, o prazer que teimava em romper os pulmões e arranhar a garganta rouca de raiva. Deixava-se tombar sobre a sanita em sobressalto. E se a ouviam? Não. Ele roncava longe, num sono pesado imaginandose, porventura, num quarto de lençóis encardidos de prazer alheio e o miúdo trilhava, a fundo, o caminho de sonhos e fantasias. Não.
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Ninguém a ouviria. Era hora de deitar porque no dia seguinte a rotina começaria bem cedo… A partida era difícil. Duas equipas em campos diametralmente opostos. opostos . De um lado, lavar, passar, passar, engomar, cuidar do lho, no nal, ganhava a das mamas grandes… Ela bem queria, mas a hérnia não lhe permitia avarias. Ela tinha que car por baixo, direitinha, de perna aberta e ele não lhe podia dar com muita força, por isso lhe justicava os desvarios. Apesar de tudo, gostava dele. Era um bom homem, quanto mais não fosse pelo amor e carinho que devotava ao lho. Isso já lhe bastava. O que não bastava era a indiferença. A ausência da palavra. Ao menos uma palavra. Pequena, por mais pequena que fosse, assim a mais pequena do dicionário Michaelis, aquele muito pesado que havia na biblioteca da escola onde ela esmifrava, às prestações, prestações, o seu cérebro fraco num nono ano tirado tirado a ferros. Mas não. Nada! de certeza que as dizia à outra. Ela tirara-lhe a radiograa numa reles partida do destino. Sentira na noite anterior umas fortes dores abdominais que a levaram a aceitar quatro horas
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de espera na urgência. Cocktail de Voltaren na nádega esquálida ao léu, credencial para análise e exames complementares e ala que se faz tarde. Contrariado, o patrão deixara-a sair mais cedo sob promessa de compensar a hora num dia a combinar, para ir buscar as análises. E foi aí, na rua, que os vira. Saíam da pensão. Abracinhos e miminhos… Ele, um matulão… Embevecido, debicando-lhe os dedinhos em beijos e chupadelas e ela, bonita, alta, loura, de mamas grandes, contorcendo-se de riso e suspiros enlevados. A princípio estacara, mas rápido se recompusera. Não era mulher de chorar. Cada um carrega a sua cruz, a dela era maior que a dos outros todos, fazia chispas no chão e calos no lombo, mas não chorava. Água havia muita da chuva de Outono evaporando-se na calçada. Fora buscar as análises. Vesícula… Seguir o tratamento, a dieta e daqui a quinze dias venha cá para vermos como é que isso tá… Tá bem?... Sim senhor doutor, reverencial e pronunciado às arrecuas, saindo rápido do consultório porque, o senhor doutor, já fechava a porta do alto da proeminente responsabilidade de ter que atender
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uma chamada no telemóvel que acabava de se anunciar… Não se lhe ouvira um queixume. Nada. O jantar continuava a estacionar a horas sobre a mesa impoluta e posta com esmero, o miúdo asseado, trabalhos de casa feitos e o leitinho quente ao deitar, a roupa, o chão, o pó, a casa de banho, as camas lavadas… Tudo! Às vezes, o calendário estendia o m do mês para além do admissível. Nessas alturas, a economia familiar, já de si débil, entrava em rota de colisão com o equilíbrio bancário. E era nas vagas de fragilidade que ela mais sentia o peso da ausência de uma palavra. Que lhe dissesse que ainda gostava dela, que a queria, que estava bonita. Mas não. Pobre ou remediado, o pão cai sempre da mesma maneira: com a manteiga virada para o chão. E caíra… Num segundo de distracção, a fatalidade dum andaime mal escorado rebentara com ele no asfalto dando-lhe guia de marcha para o hospital. Se voltasse a andar era um milagre… Deus era injusto… Se escrevia direito por linhas tortas, então a caneta estava romba. O miúdo tinha de car nos avós. Três quartos de hora de sobressalto e sevícias no
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comboio até à Agualva-Cacém , o patrão a moê-la com argumentos estafados para não lhe dar folga, a ginástica da visita hospitalar a fazer mossa na economia débil sempre a nadar no vermelho. Ainda assim, arranjara tempo e coragem para se entregar nas manápulas nodosas da Chica cabeleireira para uma mise a preceito, para deixar as camas feitas, fazer a canja, a maçã cozida, arranjar as ores, o garrafão de água mineral, as bolachas e levar as melhoras do Arnaldo da tabacaria, do Armindo e do primo que estava estava na Guarda e soubera, por um compadre taxista, do acidente e lhe mandara cumprimentos e mais os do Manel que andava lá fora a lutar pela vida. Chegara a tempo mesmo do início da visita, com aquele vestido que só punha nos casamentos e os sapatos pretos, a pedir verniz desde a chegada dos Romanos à península, mas sem ínmo traço de cansaço. Carregada de sacos, sentara-se na borda da cama, numa respiração entrecortada pela enumeração exaustiva das coisas que lhe trazia. Foi então, naquele momento, talvez porque tivesse ganho consciência, talvez pelo arrependimento ou pela reacção aos
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sedativos ou talvez porque, anal, Deus talvez tivesse acabado por comprar uma caneta nova, que ela abrira a boca de espanto enquanto ele, com um ozinho ozinho de lágrimas piegas, quase a descambar para o choro convulsivo a escorrer pela face, vermelho e tremelicando, lhe estendeu a mão balbuciando: – Estás tão bonita! Ali, naquele cantinho bombeado a oitenta e cinco batimentos por minuto, ainda soçobrava, esbracejante, uma réstia de amor-próprio náufrago no meio de dúvidas e interrogações. A frase caíra como uma facada. Desabituara-se de esperar uma palavra de conforto, quando muito, uma imperativa ou uma interrogação, nunca uma exclamação sincera, ainda que coxa por tardia, alicerçada na deciência. Tanta dúvida ortográca e gramatical não era apanágio do seu raciocínio, o cérebro há muito que fora classicado de zona morta local de estudo arqueológico em busca de vestígios de pensamento e cogitação. O que poupara em tempo de escola não o gastara sequer com a Maria
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ou a Caras. Letras e algarismos eram sinalefas míopes no verso de contratos e livranças assinados na apressada hora de almoço, diante do gestor de conta, o mesmo que agora lhe exigia a honorabilidade dos seus compromissos. Sim… Assine aqui… Carência de juros e capital… Vá lá… Durante três meses não paga nada, depois… depois… Depois logo se via… Entre o Fiat Punto lavado, paranado e encerado todo o santo sábado, a dormir amedrontado, ao relento, entre a ameaça do vidro escaqueirado escaqueirado e o roubo do auto-rádio, entre a avaria do microondas, do frigoríco e o aparelho dos dentes dentes do miúdo, sobrava em incisivos e molares o que havia em débito excessivo para mastigar. Fosse a família desdentada e o problema estaria resolvido. Não tivera cabeça para a escola. Farta de servir os senhores deixara-se levar pela mão do marido. Agora… Agora deixara os sacos tombados no chão com o garrafão de água do luso a rebolar até ser travado pela arrastadeira a meio debaixo da cama. “Rodar para a Direita para Subir a Cabeceira”, era a inscrição no metal ferrugento da enxerga saída de lme do canal dois sobre o Vietname. Aqueles também,
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coitados… esventravam a existência em caixas de sapatos minadas por engraxadores meia-leca de Chupa Chups na boca: – Quer graxa? Quer graxa? – Bum! Quilo e meio de fígado esfrangalhado e pedaços de pâncreas solidários com a vitrina da barbearia por onde escorria o intervalo com anúncios do Oculista Cristal de Ouro e da mistela capilar do Restaurador Olex que recuperava autênticos tufos de relva em carecas seborreicas de fascinadas com o milagre imediato a troco de cinco escudos e cinquenta centavos. Sem intervalos era a vida dela que passava numa ta dolente e sem cor entre a tarefa hercúlea de acordar o marido enterrado, a sono solto, nas molas lassas e cheias de fome a comer tecido a olhos vistos, da poltrona que ele trouxera das obras de remodelação do consultório do doutor Evaristo que apalpava as mamas das pacientes na auscultação da tísica e na prescrição avulsa e distraída de remédios para os nervos. Parecia mal… Queria ela bem saber que parecesse mal. Más eram as berlaitadas ao sábado à noite de empurrão com a ajuda do canal dezoito a servir de motor de arranque, as mãos ásperas da lixívia na
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camisa branca que ele tanto gostava e que era lavada e esfregada com pedra pomes para não car encardida, assim como má era a lancheira preparada de madrugada para sobrar para a gasolina para a Praia das Maçãs onde molhava os pés sempre de olho no miúdo e comia um Cornetto ao nal da tarde num prazer lânguido e sensual sorvido aos bocados e de forma obscenamente ruidosa. E se tinha tido oportunidades... O gestor do banco. Sim… Aquele boneco de matraquilho de cabeça enterrada no pescoço e com os pés perdidos e coladinhos no fundo da palmilha trinta e três de bailarina de caixa de jóias comprada comprada na na Praça da Concórdia Concórdia durante durante a lua de mel dos tios muito amigos do senhor Cabral da contabilidade que o conheciam desde o ventre torturado em pontapés numa ânsia de nascer. De dedinhos trémulos roçava-lhe as costas da mão enquanto fazia mais uma cruz nos poucos espaços em branco da livrança armada em chagas de uma cruz que viera na companhia do Toyota para car… Ou o senhor Rodrigues do minimercado… Esse sim, homem com arcaboiço de touro do Farmville que se babava todo sempre que
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lhe sentia os vapores da colónia de drogaria usada com parcimónia. Sempre arranjava alguma coisa para arrumar e roçar-se no rabo dela em bicos de pés a tirar os pickles da prateleira para chegar às azeitonas pretas em rodelas mesmo boas para o bacalhau à Gomes de Sá. Ele esvaía-se em suor antecipando orgasmos na vontade indómita de a agarrar à força e possuí-la entre as paletes do Mimosa meio gordo e as caixas repletas de melão de Almerim. Sempre se contivera até ao dia em que a zera rodar e a encostara ao escadote, aberto para trocar a lâmpada uorescente, salpicada de caganitas de moscas mortas em combate desigual num campo de batalha mortífero que grelhava, sem piedade, o insecto mais incauto ou atrevido. Só lhe percebeu a vontade férrea quando sentiu os dedos, doidos, aos saltos, a forçar forçar a entrada entrada no seu sexo, dócil, a oferecer uma ténue resistência embalada pela língua que lhe invadiu a boca quase até ao esófago… Ainda o empurrara e tentava recuperar a respiração, mas já os mamilos túrgidos se escondiam nas mãos ávidas do merceeiro. Não fosse a dona Cristina, típico exemplar de coxinha de novela
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dando umas bengaladas inspiradas no Eça, no ferro de trancar a porta: – Ó senhor Rodrigues! Esqueceu-se das minhas compras? Tou que nem posso das minhas costas! Vá lá a ver… E rodou nos calcanhares ruminando imprecações pela falta grave, mancha negra e irrecuperável na folha de serviço do prossionalismo ostentado a retalho e a aventura teria terminado lá no fundo húmido e sem reservas da lascívia fértil em prazer tanto mais saboroso quanto proibido. Mas desde aí nunca mais houvera nada. Fosse por medo das léguas que a conta já levava no asfalto da dívida fosse porque a empregada da casa de móveis lhe escancarava as coxas sem rebuço ou interesse enquanto se extasiava com as páginas da Maria mastigadas de boca aberta numa Chiclette a desfazer-se em excesso de saliva, ele nunca mais a procurara. Ainda bem que não… Se descobrissem, parecia mal… Com o miúdo na escola e a vizinhança, recomeçar tudo do zero cheirava-lhe a vida recauchutada na fábrica Dunlop com pneu acabadinho de tratar que durava mais uns anitos mas com jeitinho e sem avarias…
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– Vinda? Em que estás a pensar Vinda? Vinda? – Nada! Não estou a pensar em nada. – Acordara do torpor de lembranças e emoções. Parecia mal… Parecia mal era a distância entre ajeitar a gola do pijama de anela mal engomado do aleijadinho e deitar a correr pelas escadas abaixo na companhia do Clooney ou outro qualquer em direcção ao innito da cção onde o amor acontece e sempre entre um take repetido por capricho do realizador ou na amálgama retorcida de argumentos e frases fáceis dos capítulos pobres e de letra miudinha do Corin Tellado. – Estás estranha! Logo hoje que estás tão bonita… “Rodar para a Direita para Subir a Cabeceira”… Deparara, de novo, com o anúncio no ferro quando se baixava para apanhar o garrafão que rebolara até à arrastadeira. Rodou a manivela enquanto lhe ajeitava a almofada atrás do pescoço. Sim… Estava bonita. Era bonita. Assim como ele… Que também fora bonito desde o momento em que chegara à vida e até ao momento em que a abandonara…
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FASHION HEROINE H EROINE LUÍS BENTO
ILUSTRAÇÃO
LITTLE HANDS ILLUSTRATION | WHO
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O Pátio MANELMANEL
O PÁTIO MANELMANEL
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Em qualquer competição, sobrepondo-se a qualquer outro critério, procuro sempre saber quem é o mais fraco para torcer por ele. Quando alguém é ostracizado ou humilhado, ergo-me pronto a defendê-lo antes de saber as suas razões. Mesmo quando o violador de crianças atravessa a multidão, sôfrega de fogo e de pedras, é do lado do criminoso que eu estou. Não é uma escolha racional. Desde cedo, algo muito forte dentro de mim me levou a acreditar que poderia mudar o mundo e salvar todos os infelizes que se cruzassem comigo. Para conseguir mudar o mundo, enveredei pela política, montando casa na esquerda. Porquê a esquerda? Por causa de uma emoção. Numa luta, o indivíduo de esquerda tem um preconceito irreprimível em favor do que está deitado no chão a levar pancada. Foi sobre este sentimento que se alicerçaram as montanhas de reexões, teorias e sistemas de teorias da esquerda.
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Qualquer arrazoado mais não é do que um encadeamento lógico a partir de axiomas não demonstráveis. ( Autor: não debites epistemologia aqui, ainda para mais com aroma a matemática. ) É por isso que conseguimos arranjar cem estudos para validar uma opinião e outros cem estudos para validar a opinião contrária. A omnipresença desses buracos nos sistemas de crenças – éticas, políticas, religiosas – garante-nos que as nossas opções estão escoradas em algo que extravasa a Razão. Na origem das escolhas, habita uma fé, uma estética, um sentimento. Fôssemos todos absolutamente racionais e fosse a Razão per se um meio de alcançar a Verdade, e caminharíamos todos para as mesmas ideias e o mundo reger-se-ia cinzentamente pelo «melhor» modelo e pelas «melhores» leis. ( Autor: estás aqui para contar uma história, Alexandre.) Na faculdade, juntei-me a uma tribo da esquerda da esquerda. Passávamos tardes ao ar livre, no verde do «pátio» (como lhe
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chamávamos), fumando charros e conversando sobre política, arte, losoa e coisíssima nenhuma. Sentíamos a universidade como algo mais do que uma fábrica de aulas. Faltávamos a algumas cadeiras para tertuliar, tertuliar, felizes por poder estender o espírito e os pés nus na relva. Éramos livres e irreverentes e portadores de ideias que tornariam o mundo num local bem melhor. Todos os meses, no primeiro dia de lua cheia, marcávamos um jantar. jantar. Nos «jantares da lua cheia», brindávamos ao astro inspirador, inspirador, à fraternidade, à poesia e à nossa cumplicidade enquanto seres superiores, libertos da fealdade das teias de aranha e da poeira venenosa depositadas nos espíritos dos nossos coevos. Em noites mais etílicas, uivávamos à Lua. Um desses jantares realizou-se na minha casa. Nessa tarde, com as compras na mão, cruzei-me com um amigo de longa data, meu vizinho, e convidei-o para o jantar. jantar. À noite, a campainha tocou e umas calças calças de ganga ganga de marca, marca, uma
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camisa aos quadrados enada dentro das mesmas, uns sapatos clássicos de sola rasa e um penteado de risca ao lado foram sucientes para espalhar um silêncio pela sala. Apresentei-o Apresentei-o como «um grande amigo meu», seguro de que isso amenizaria o ambiente. Fui à cozinha preparar o jantar. Quando voltei à sala, ele estava num canto, ngindo fazer algo útil na lareira. Levei-o para a cozinha, onde uns murmúrios chegaram até nós: «Temos betaria aqui hoje», «O gajo tem toda a pinta de ser daqueles meninos mesmo buéda conservadores», «Deve ´tar a pedir ao Alexandre salmão com caviar». Falava com ele para abafar os sons vindos da sala. As vozes foram-se extinguindo, e, quando regressou à sala, um membro do pátio entabulou conversa com ele. Não demorou muito tempo, porém, até que viesse ter comigo à cozinha: – Ó Alexandre, desculpa lá, posso fechar a porta? É que queria falar duma cena contigo… Eh, pá, ´tá toda a gente a fazer sinais e a apontar para mim. Tenho tido uma atitude tão discreta e só ´tão com piadinhas entredentes: «Olha o beto não vai gostar, olha o beto
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isto, olha o beto aquilo.» Eh, pá, nunca me aconteceu uma cena assim, pá! A perguntarem-me em que colégio é que os meus pais me puseram a estudar, o que é que eles fazem… No dia seguinte, falando de pé para um conjunto de indivíduos sentados nas cadeiras do pátio, vi-me na triste gura de pregar um sermão. Quando acabei, estava sicamente aliviado. O sermão mudava da minha cabeça para a deles – eles que reectissem se quisessem. O meu sentimento tribal não saiu abalado, mas a primeira fenda fora sulcada – num ponto, não estava em sintonia com o pátio. Se não gostava de ser discriminado por usar calças rotas, de igual modo não gostaria de viver na ditadura das calças rotas. Aquela noite permitiu-me interiorizar o que alguém perspicaz perspicaz já teria intuído – o pátio não era misturável com uma grande fatia do «resto do mundo». Com o tempo, percebi o que podia esperar e não esperar do grupo em que estava inserido, e, evitando os embates do pátio com o mundo
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herege, fui vivendo-o por dentro até ao tutano. O deslumbramento de sentir que havia criaturas como eu, com os mesmos códigos e linguagens, o mesmo desprendimento de grilhões absurdos, reforçavame a crença de que estava muitos anos à frente do cidadão médio, cujas opiniões crescentemente desprezava, ou pura e simplesmente não ouvia, à medida que me entrincheirava no pátio. Outros episódios houve, contudo, que não deixaram esbater o efeito daquele jantar da lua cheia, formando ligações com ele nos canais da minha mente. Passeando com um amigo do pátio pelos corredores da faculdade, vi-o arrancar bruscamente um cartaz. – Então? – perguntei atónito. – ´Tavam ´Tavam a anunciar uma reunião reunião de jovens monárquicos. – Foda-se, meu, eles têm liberdade liberdade de expressão. – Foda-se, digo eu! Se um patrão tem liberdade para explorar os trabalhadores à vontade, o que é que essa merda me interessa? – gritou-me, como se eu tivesse atraiçoado o ideal por que lutávamos.
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Fui invadido por um mal-estar orgânico, que me levou a inventar um compromisso e a despedir-me. Era uma reunião cheia de agitação no ar para a constituição do Autor: falta uma ponte no início da frase.) Os jornal da faculdade. ( Autor: habitantes do pátio eram contra a existência das guras de editor, redactor e colaborador. – O quê, bases e cúpulas? – soltou um fanático, gerando o caos entre os presentes. Depois, quando se aoraram os nomes a entrevistar, umas sobrancelhas arqueadas e um dedo em riste levantaram-se da cadeira à velocidade de uma bala: – Essa mulher nunca será entrevistada para o jornal! Nunca! Ela é co-autora de vários despedimentos! Mais importante do que construir algo era sentir que os nossos princípios permaneciam como virgens intocadas. Era preferível a pureza na inacção a fazer-se qualquer coisa com o mínimo vestígio de cedência ao Capital.
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Quando convidei alguém de direita moderada a escrever, escrever, o que deu uma nota dissonante à sinfonia monocromática ( Autor: não me agrada essa sinestesia) para a qual o Prisma deslizava, o pátio ergueuse em peso contra a «fascização» do jornal. Um elemento do pátio veio ter comigo com o jornal aberto na página desse «reaccionário», exclamando numa voz tonitruante, enquanto davas palmadas no texto para punir o pecador: – Isto é uma vergonha pra ti, ti, pá! Este gajo é mesmo ridículo! ridículo! – O jornal tem de reectir as várias tendências que existem na faculdade. – Mas se tu não concordas, porque é que publicas? – Não posso publicar publicar só aquilo com que concordo. Mas se estás tão indignado com o que leste, escreve um artigo e eu publico-to. Entregou-me um texto em que dizimava o opinante de direita. Tinhalhe dado, como a qualquer colaborador, um limite de caracteres. O artigo excedia o dobro do espaço reservado. Pedi-lhe que encurtasse o texto, recordando-o do número de caracteres acordado.
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– Não consigo reduzir isto, não dá. Diminui o tamanho da letra que eu não me importo. Procurei demonstrar-lhe o absurdo do pedido, e, durante duas semanas, roguei-lhe que encurtasse o texto. Aumentava-lhe até, excepcionalmente, o limite de caracteres. Insisti, insisti, insisti. Garanti-lhe, quando o prazo da gráca começava a apertar, que se ele não o zesse, teria de ser eu a fazê-lo – algo que me desagradaria imenso porque nunca até então rasurara ou modicara uma linha. À data do fecho, voltei a massacrá-lo. A sua posição permanecia inamovível. Com pinças, tirei as partes mais inócuas. Quando o jornal saiu, vim a saber que ele andava a pregar: – Há censura no Prisma e eu senti-a na pele. Não lhe levei a mal. Conhecia o sentimento – oh, conhecia-o tão bem! – por trás dessa atitude. Crescíamos centímetros quando a nossa rebeldia era aplacada pelas Forças do Mal. Era o mesmo entusiasmo que nos impelia a fazer tudo numa manifestação, de modo que a polícia («a bóa») nos agredisse e nos pudéssemos
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autoproclamar vítimas da repressão policial. Ser do contra sem que nos apontassem o dedo não nos acendia o instinto de poder. Quão deliciosamente transgressor era navegar contracorrente fosse qual fosse a corrente, pisar fora da estrada fosse qual fosse a estrada... Lento e teimoso de raciocínio, lá fui martelando dentro da cabeça a ideia de que para o grupo do pátio, liberdade de expressão, algo tantas e tantas vezes reclamado, era estritamente a liberdade concedida às suas ideias. Inutilmente, tentei defender a ideia de que a liberdade de expressão se aquilatava pela liberdade que determinado ambiente dava às ideias a que era precisamente mais hostil. – Tens Tens conceitos de liberdade burgueses. burgueses. Antes via uma linha longitudinal, em que de um lado estava a esquerda e do outro a direita. Quanto mais avançávamos para a esquerda, mais a liberdade aumentava. Quanto mais avançávamos para a direita, mais a liberdade se obliterava. Observando a mesma linha, as conclusões mudavam. Quanto mais nos afastávamos do meio da corda, menos liberdade de expressão havia. ( Autor: uma
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conclusão tão idiota quanto a outra.) Nos extremos, praticamente
não havia liberdade – aí morava uma sede inextinguível de poder que instalasse a Verdade. O combate ao preconceito e à discriminação inundava a nossa prática discursiva de tal forma, que estava genuinamente convicto de que lhes éramos imunes. Mais tarde, percebi que um preconceito (demorei tanto tempo a entender algo tão simples) não é apenas uma generalização abusiva, um juízo de valor pré-determinado e infundado contra minorias étnicas ou homossexuais. A denição de preconceito, a substância do mesmo, mantém-se quando as realidades distorcidas são os banqueiros ou os polícias. Muitas coisas fui compartimentando, mas outras houve que violaram a minha identidade mais profunda – aquela polpa que não pode sofrer um arranhão. Era próprio daquele grupo um modo de discutir. Metralhava-se o interlocutor com perguntas, fazendo-o entrar num comboio de lógica
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que no nal o esmagava. Uma tirada sardónica encerrava o exercício vexatório. Condenávamos, como bons juízes morais que éramos, toda e qualquer jocosidade assente no estatuto social – desde que inferior – ou no aspecto físico – desde que andrajoso, decadente ou proletário –, mas tínhamos um salvo-conduto para humilhar quem não partilhava da nossa cartilha. – Eu pago-te o psiquiatra – disse um de nós, depois de derrotar intelectualmente o oponente de direita, provocando a hilaridade grupal. Se torcia sempre pelo mais fraco, torcia só até àquele ponto em que o fraco não espancava o forte. Meus amigos, depois disso não contem comigo. É o risco na areia que não transponho. Nunca aprovarei presos políticos, tortura, pena de morte, linchamentos de fascistas, milionários ou patrões sem escrúpulos. Pensava que a universalidade da dignidade humana era mesmo… universal. Já sabem até onde eu vou, se quiserem levem-me convosco. Certo dia, fui positivamente surpreendido quando um de nós interpelou
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o resto do grupo: – Estamos sempre a apelar à compreensão das causas sociais do crime. Porque não tentamos igualmente perceber o que leva alguém a ser etnocêntrico ou de direita, em vez de o julgarmos e condenarmos? Entreolhámo-nos com espanto. Estaria ali um inimigo? Éramos fascistas das ideias. Intolerantes com os intolerantes. Preconceituosos com os preconceituosos. Genocidas intelectuais procurando eliminar até ao último resíduo qualquer ideia contrária à (nossa) Verdade. Era precisamente por termos removido esse determinante possessivo que nos faltava o grão da dúvida salutar nos nossos espíritos. O caos informe da realidade estava bem arrumadinho nos nossos esquemas mentais. A direita era materialista e egoísta. Não se ralava que uma parte da humanidade morresse de fome desde que esta, no seu estertor de morte, não espirrasse sangue para os seus casacos de pele e os seus automóveis luxuosos. A esquerda que ocupava o poder era traiçoeira, ácida e movediça ante os interesses dos
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poderosos. E nós? Nós éramos o Bem. É um truísmo armá-lo – não eram todas as nossas propostas eivadas de amor ao próximo? Seguros da nossa superior posição moral, revelávamos uma recusa eclesiástica em reavaliarmos as nossas verdades. Os livros, os jornais e as almas que não fossem de esquerda eram desprezíveis. desprezíveis. Manifestávamos um puritanismo excessivo com as palavras. Gaguejávamos quando tínhamos de nos referir a alguma minoria étnica. Não sabíamos, por exemplo, como nomearmos os Negros por serem tantas as palavras que púnhamos no Índex. Quando queríamos mencionar os trabalhos mal remunerados e com poucas qualicações, enredávamo-nos em perífrases e eufemismos no pânico de dizermos «as prossões inferiores». Outras palavras havia, como «fascista», que esvaziávamos de sentido de tão indiscriminadamente as empregarmos. O esquerdistamente correcto estava de tal modo enraizado nos nossos
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espíritos, que ltrava as nossas palavras e os nossos pensamentos. Não devia haver grupo religioso ou ultraconservador mais normativo do que o nosso. Autor: palavra-náusea) não surgia de A ausência de preconceitos ( Autor: forma natural e espontânea. Era fruto de um constante exercício de vigilância. Aceitávamos brandamente os preconceitos positivos em relação aos oprimidos e os preconceitos negativos em relação ao grupos dominantes. ( Autor: Autor: inundaste inundaste a prosa com com a palavra outra vez. vez. Que merda! ) Podíamos armar ou ouvir sem sobressaltos que as mulheres tinham uma inteligência emocional superior à dos homens ou que eles eram mais violentos do que elas, porque só o seu contrário era sexismo. Ao sairmos de um jantar de lua cheia, vimos um indivíduo a praguejar contra os «lhos da puta», «cabrões» dos Alemães, que deviam ir morrer longe, e sorrimos todos compreensivamemente – era apenas um bêbedo ou um doido. Imagino o sarilho que seria se ele vociferasse
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(um décimo que fosse) contra os Africanos ou Ciganos – para isso, já não havia bêbedos nem doidos, doidos, apenas perigosíssimos perigosíssimos nazis. «Morte aos ricos», líamos num grato com uma certa satisfação interna, acampando ali, alegremente emoldurados, para beber e fumar. E se em vez de «ricos» estivesse «sem-abrigo»? Causa de escândalo! Um motivo mais do que suciente para prender o seu autor. Uma parte importante do nosso ímpeto missionário era direccionada aos três pecados capitais da direita (eu aqui era dos piores, sempre de indicador apontado a catequizar o próximo) – o etnocentrismo, o machismo e a homofobia. Acredito que num patamar mais desenvolvido do espírito humano, o etnocentrismo ou a homofobia serão reduzidos a cinzas, porque simplesmente se deixará de reparar na na diferença. Emprestei um livro sobre história da cultura a um indivíduo do pátio outro salto e este, antes de o abrir, abrir, sensatamente perguntou: ( Autor: outro de parágrafo desconexo.)
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– Ouve lá, este autor é de esquerda? esquerda? – É. – Tens Tens a certeza? – Tenho. Tenho. – O.K. Vou Vou ler. ler. O importante, quando se ouvia uma argumentação, não era confrontar o que nos era dito com o que sabíamos e desse confronto extrair alguma aprendizagem, mas rapidamente colar uma etiqueta – esquerda ou direita. Se era a segunda, púnhamos todas as pedras de que dispuséssemos à porta dos ouvidos do cérebro. Se a robustez e a agilidade de uma mente se medem pela quantidade de incerteza que ela é capaz de albergar, então nós éramos perfeitamente estúpidos. Pejávamos a realidade de legendas, de modo que se eliminasse à nascença qualquer semente de confusão mental – tudo era preto ou branco sem matizes de cinzento. A nossa visão parcial do mundo acentuava-se. Quando só se conhece uma versão da história, seja de um dos membros do casal, de um dos
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amigos que cortaram relações, de um dos lados da guerra, tendemos a concordar com o nosso interlocutor. Não é preciso mentir – basta empolar, omitir, tratar pormaiores como pormenores. Já sabia que, de cada vez que ouvia falar do Governo ou da Igreja, era para dizer mal. Várias vezes, expressei a opinião de que perdíamos credibilidade tendo juízos tão monolíticos – os que eram bons eram sempre bons; os que eram maus eram sempre maus. Imagino o longo bocejo que suscitávamos naqueles que não eram nossos éis… Ser de esquerda – fui percebendo com a resistência de quem não quer largar o seu lho – não era ter as medalhas da tolerância e da bondade; era antes pertencer a um clube, torcer por um dos lados. Sintomático da nossa duplicidade era o facto de o nosso julgamento ser innitamente mais suave quando a tortura, a polícia política, a censura, a mortandade ou o terrorismo ocorriam do nosso lado. Distorcíamos os factos, achatando-os até que eles coubessem nos nossos ideais. Papagueávamos coisas em que não acreditávamos (a luta interna e as neuroses que não deveria haver em alguns!).
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Dizíamos, por exemplo, que tínhamos todos as mesmas capacidades. – Então e um deciente? Se os decientes têm as mesmas capacidades, porque é que vocês defendem que eles devem ter condições especiais reconhecidas pelo Estado? – alguém perguntou. Tacteámos uns bordões e melopeias que trazíamos sempre no bolso, mas como nenhum parecia encaixar-se bem na questão, tivemos de recorrer ao epíteto nazi. Quando não conseguíamos desmontar argumentos, desqualicávamos o inimigo. Era um disparate fazer assentar o princípio da igualdade ontológica na igualização absurda das capacidades do ser humano. Muitos anos antes, já um escritor explicara que por mais que diferissem as capacidades ( Autor: quarta utilização contígua.) dos indivíduos, os seus estômagos eram essencialmente os mesmos. Era um fundamento mais sólido esse, porque mesmo que se demonstrasse que éramos profundamente díspares em habilidades, ainda assim o ensaístico.) ideal da igualdade não ruiria. ( Autor: afasta-te do tom ensaístico O ponto que mais me impressionou favoravelmente no grupo do
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pátio foi a sua inexibilidade na utilização dos dinheiros e dos bens Autor: outra mudança abrupta.) Nunca vi ninguém utilizar públicos. ( Autor: o telefone institucional, nos vários cargos públicos que ocupámos, para chamadas pessoais, e vi muitos usarem o telefone pessoal para defenderem os interesses de quem representavam. Cheguei a vêlos dormir no chão para evitarem gastar um quarto de hotel com o «dinheiro» dos estudantes. A preocupação em mudar o mundo era tão exagerada, que conduzia a um certo embotamento da sensibilidade aos problemas das pessoas concretas e individualmente consideradas. Houve um tempo prévio, demasiado longo, de idealização das almas de esquerda, em que imaginava que quem lutava por um sistema que eliminasse a fome seria mais solidário com o amigo na desgraça. ( Autor: Excremento Excremento.) Puxo ta das bobinas da memória e paro. Estou a falar com o meu melhor amigo do pátio. – ´Tou ´Tou com um problema sério. Preciso muito de falar contigo a sós – peço-lhe que abandonemos o verde do pátio para irmos até um
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café lá fora, porque senão depressa alguém se juntará e quebrará a intimidade. Sentados na mesa do café, bebendo algo, atiro: – O meu pai tem um cancro. cancro. Onde? Há quanto tempo? Que tratamento está a fazer? Passados dois minutos, diz: – Não se podem privatizar os hospitais porque… E discorre longamente sobre o assunto, desatento ao olhar que lhe lança «O meu pai…». Não consigo estancar a torrente, e, no nal, quando nos despedimos, não deseja as melhoras e ainda consegue debitar uma estatística. Na minha mente pouco porosa de então, lá se foi inltrando a ideia de que a personalidade não era apenas um epifenómeno do ideário político, e, acessoriamente a esta ideia, uma verdade difícil de aceitar para alguém que concebera a esquerda como a causa suprema da sua vida: a solidariedade não era, anal, uma-virtude-cardealpatrimónio-exclusivo-da-esquerda.
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Na política, encaixotamos muitas vezes as pessoas ( Autor: palavra em abundância) em abstracções conceptuais. O abraço teórico da esquerda que envolve fraternamente toda a humanidade é precisamente isso: teórico. Gostávamos muito do povo (um conceito impreciso), mas apenas do povo abstracto. Ao outro, cabia-nos decidir por ele, ou evangelizá-lo até que conseguisse decidir-se pelo que sabíamos ser melhor para si. Autor: torço o nariz a esse vocábulo) que, com o tempo e Outro factor ( Autor: a reexão inerente, se veio juntar à lista de coisas que me afastavam do grupo do pátio era que este naufragava maldizendo as marés e os ventos, mas quase nunca procurando a bússola. Para cada mil diagnósticos negativos, havia, com sorte, uma solução apontada. Sabíamos de cor os inimigos – o capitalismo, o imperialismo, os grandes grupos económicos –, mas padecíamos de uma incapacidade de apresentar alternativas. Na origem disto, estaria talvez o sentimento consolador de nóssozinhos-contra-o-mundo e a orfandade da esquerda após a perda dos modelos.
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Percorrêramos um longo caminho de ideologias e experiências históricas para voltarmos ao início. Éramos, de novo, socialistas utópicos. Boas intenções, uma nobreza de ns, mas uma indenição nebulosa quanto aos meios que nos levariam a esse mundo de fraternidade e igualdade. Afastei-me gradualmente do pátio. Sei que uns inectiram o caminho, sei que outros, provavelmente a maioria, continuam na senda messiânica. Alguns mudaram logo que acabaram o curso. Um deles, quando lhe perguntei o que ia fazer, fazer, concluída que estava a sua licenciatura, disse-me prontamente: – Não vou fazer népia, só tirei o curso pra não dar sofrimento aos meus pais. Vou polir umas rochas p´à praia… Duas semanas mais tarde, trabalhava de fato e gravata numa seguradora. O pátio não tornou a vê-lo. Algum tempo depois de a faculdade ter terminado para o grupo do pátio, uma amiga dessa comunidade telefonar-me-ia para tomarmos café «só os dois». – A minha cena não é ser do contra. Eu não sou contra nada, sou a favor de… A energia que canalizas é totalmente diferente… Sabes 23
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uma coisa, Alexandre? Havia ali muito ódio. Não gosto do ódio. Devemos pairar acima dele. Os grupos de extrema-direita cultivam o ódio e eu demorei muito a perceber que nós fazíamos o mesmo; simplesmente, com alvos diferentes. Anos mais mais tarde, tarde, encontrei encontrei outro que continuava continuava igual até até na própria indumentária e no desenho da barba. Apesar Apesar de não me ver há muitas mudanças na minha vida, aproximou-se de mim, circunspecto e grave, e, sem uma pergunta prévia de cariz pessoal, sem ter tempo para perder com outra coisa que não fosse o preparar da revolução, armou num tom de urgência: – Isto está cada vez pior. Falta alguém que faça uma reformulação do comunismo que ainda não foi feita. Qualquer reexão sobre a sociedade, de resto, só pode vir da esquerda. Temos de nos unir e fazer essa reexão imediatamente. A crise está aí e temos de aproveitá-la. Os gajos de direita não reectem e isso é uma vantagem que nós temos. Eles só querem é putas e vinho. Fiquei momentaneamente sem reacção, e, de repente, desatei a rirme de forma audível em toda a livraria.
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Para um idealista, a realidade não é a fonte privilegiada do saber. Apesar de tudo aquilo que ela me fez engolir a contragosto, ainda assim, cada vez que conheço alguém e descubro que «é de esquerda», algo continua a sorrir dentro de mim. (A minha minha velha mente de esquerda continua a segregar o seu pus.)
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O PÁTIO MANELMANEL
ILUSTRAÇÃO ESGAR ACELERADO | WHO
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José Augusto MARIA DE FÁTIMA SANTOS
JOSÉ AUGUST AUGUSTO O MARIA DE FÁTIMA SANTOS
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São dez e meia de um dia de Outubro. A não ser que chova, venho sempre sentar-me na esplanada deste café que ca no rés-do-chão do prédio onde moro. Lá dentro é acanhado e eu não gosto. Olho o homem sentado na mesa em frente. Eu ainda não sei nada dele, que o vejo pela primeira vez, mas hei-de sabê-lo nos dias que decorrerão depois de me dizer, numa voz nasalada, sou o José Augusto. Será ainda hoje, ao iniciar-se a noite. Um pardal vem catar miolinhos, e o homem retira o telemóvel do bolso e fotografa o pássaro, uma, duas, várias vezes. Chega o Senhor Nunes. Fica embasbacado diante de mim à espera que lhe repita: sempre o mesmo desde há quase dez anos. Despediu o empregado e é ele que serve agora as cinco mesas da esplanada. Não saberá ainda que é o costume, e eu digo se faz favor uma torrada barrada com mel, sem manteiga, aviso, e um copo de leite, morno, claro. A presença do Senhor Nunes faz que me distraia do pássaro, e das migalhas, e daquele homem que ainda não sei que
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se chama José Augusto. E mal termino o meu pedido de pequeno almoço, ainda o Senhor Nunes nem deu meio passo a afastar-se, e já na mesa em frente há outro cenário. Nem homem, nem pássaro. Talvez restem umas migalhas, mas nem nisso reparo. Congemino, isso sim, que talvez o homem tenha visto as horas e se tenha considerado em atraso. Terá consultado o visor do telemóvel, que não lhe vi relógio no pulso, ele ainda de mangas curtas apesar do Outono que se anuncia frio. No pires, junto à chávena do café que terá bebido num só gole, estão duas moedas. Terão Terão feito ruído, e eu nem dei por isso, entretido a fazer o meu pedido ao Senhor Nunes. Deixei assim de ver o homem levantar-se. Deve ter rojado a cadeira no empedrado, ruído de metal que terá afugentado o pássaro. E eu, distraído, nem o vi, circundando a esplanada, entrar na ruela estreita que leva ao antigo liceu. E assim, nem poderei conjecturar que seja professor, pois não o vi perder-se de mim, a pasta enorme segura apenas com dois dedos. Eu que beberico o leite, não lhe observei o andar, andar, passinhos miúdos que ele terá dado, com a cabeça inclinada
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sobre o ombro esquerdo. E nem vi que, ao levantar-se, estremeceu cada uma das pernas a descolar as calças dos joelhos. Trinco Trinco a torrada, o mel escoando-se por buracos de boa levedura. Ainda ignoro quase tudo daquele daquele homem. Mesmo esse hábito, um jeito todo seu de pegar com dois dedos nas pernas das calças e depois sacudi-las, hei-de sabê-lo pelo rolar de outros dias. Saberei isso, como hei-de saber que gosta de Franz Liszt. E quando souber que tem vinte e seis anos hei-de dizer: tão novo! Que veio morar no primeiro esquerdo deste prédio, sei-o desde logo pelo Senhor Nunes que se intromete no meu discorrer silencioso enquanto coloca sobre a mesa o bule do leite frio que me trazem sempre, mesmo se, como hoje, não o peço. Diz-me ele: – Temos Temos vizinho novo cá no prédio, prédio, sabe? E acrescenta, apontando a mesa de onde o homem saiu: – Veio para o apartamento que estava vago no primeiro esquerdo.
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E no dia seguinte, amanhã precisamente, a empregada da casa onde compro quase tudo o que é material de pintura, há-de atirar-me, mal entre na loja: já sabe do fulano que mora agora no seu prédio? Será assim, numa intimidade que se foi criando à conta de pincéis, tintas e outras encomendas que lhe faço. E Gertrudes há-de informar-me que o homem que acabo de ver a fotografar o pardal, é professor de música e namora com uma tal Maria Teresa. A que mora na casa do rio, dirá Gertrudes, acrescentando que a rapariga alugou a casa nos nais de Setembro. E há-de ainda dizer-me: são ambos professores, vieram neste ano lectivo. E quando um dia Gertrudes me vir entrar na loja, ao mesmo tempo em que entra essa rapariga, há-de baixar o tom de voz e referir-se a Maria Teresa como se o tivesse feito outras vezes. Mas estará enganada, que eu nunca mais ouvirei falar de Maria Teresa senão no momento em que Gertrudes me disser: olhe, é ela, a que namora com o José Augusto. Gertrudes a vender aparos a uma cliente, mas desejosa de me contar.
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Será num Janeiro gelado como convém a esse mês nos países deste hemisfério e desta latitude, e eu olharei de esguelha a rapariga, enquanto njo escolher umas amostras de guache. E sentir-lhe-ei o perfume, que a sua cabeleira castanha, pintalgada de raros cabelos brancos, cará quase a roçar-me o ombro no acanhado da loja de Gertrudes. Num relance, sublinhar-lhe-ei o corpo o quanto baste para reter que é muito magra, mas que tem bem delineados as mamas e o rabo. E repararei no tom macilento da pele do rosto. Não a acharei bonita, mas ser-me-á agradável o seu olhar raiado de tristeza quando num relance talvez repare que a observo. E quando ela sair da loja a transportar um bloco de desenho, papel fabriano, carei a observála pela montra. Mas mal o carro que conduz, um opel corsa de cor indenida, deixar a minha zona de visão, já a terei esquecido. Tanto Tanto que, no início dessa noite que se fará daqui a uns meses, nesse ainda distante Janeiro, quando José Augusto entrar no meu terceiro frente, a pedir licença como será sempre seu hábito, não acharei o modo de lhe dizer: hoje vi a Maria Teresa. E é assim que nunca
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lhe falarei da rapariga. E nem falarei dela com José Augusto, e nem com qualquer outra pessoa, que nem é extenso o leque dos meus conhecidos. Os amigos, esses, caram-me pelas capitais onde vivi a minha juventude. Telefono Telefono a um ou outro, muito de vez em quando. E se ainda encontro gente deve-se a este meu ofício de fazer arte. Ainda assim, nos últimos dois anos nem compareço às apresentações dos meus trabalhos, que se me andam a tornar entediantes esses ambientes, e me cansam as viagens – os aeroportos, sobretudo. O meu agente vai tratando, e bem, dos meus interesses. E vou vendendo. Eu e Maria Teresa Teresa nunca nos encontraremos, que mesmo em terras pequenas podem dar-se destes desencontros, e será isso que se passará entre mim e essa rapariga. Não fosse o destino, o dela e o meu, a interporem-se num acaso na loja da Gertrudes, e eu poderia dizer nunca a ter visto. Que não calhará que nos encontremos uma outra vez, ao menos uma, na rua, ou num supermercado. Ou numa farmácia de serviço, cada um
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de nós dois com a sua emergência, que seria pedir demais a esses mistérios do acaso se estivéssemos ambos a aviar remédio para uma dor de dentes. E é assim que, quando chegar o distante Agosto, carei espantado de nem ter mais ouvido falar em Maria Teresa. *** Um mês de Agosto quase vermelho. Quente e seco. Nem uma brisa ondeando. Um calor imenso. E no primeiro dia desse mês exagerado, abrirei a caixa do correio. Terei descido os três lances de marmoreado acabado de lavar e ainda húmido. Serviço da Dona Emília, uma cabo-verdiana que vem em cada quarta-feira. Na caixa, um único envelope que abrirei naquele desejo curioso de quem raramente recebe correspondência que não seja contas para pagar ou o saldo do banco e muita publicidade. E carei a olhar a folha de papel timbrado. Ficarei a ler e sem entender uma palavra.
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Hei-de tirar e recolocar os óculos e esfregarei até os olhos. E voltarei ao início da leitura encostando-me um pouco a uma parede. Só depois não me sobrarão dúvidas: convocam-me para depor como testemunha. Indicam local e hora e dia em que devo apresentar-me. Um processo em que o arguido é José Augusto. E eu, sem entender a razão, atravessarei a esplanada estugando o passo no caminho mais curto para a loja da Gertrudes. Que ela saiba explicar-me. Que ela tenha ouvido na cidade. Mas hei-de retornar, duas ruas andadas, que é a hora de almoço e Gertrudes deve estar no restaurante onde tem o hábito de fazer uma refeição rápida. E a mostrar-lhe o papel dir-lhe-ei: percebe a razão? e Gertrudes háde clamar a sobrepor a sua voz ao rumor que há no restaurante: não sabe?! o José Augusto não lhe disse?! Gertrudes, espantando-se, terá o batom esborratado. Que não se fala em outra coisa na cidade, irá adiantando. Que o corpo da rapariga cou desgurado. Que se esborrachou nas rochas da falésia. – Não soube?! – exclamará, exclamará, incrédula da minha ignorância. ignorância.
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E, baixando a voz, insinuará dúvidas: – Desconam que não tenha tenha sido suicídio. Gertrudes muito encostada a mim, e eu a tentar esgueirar-me na extremidade do balcão onde ela estará mastigando dependurada num banco alto. Ela a querer contar-me pormenores, há-de puxarme a manga do casaco e segredar-me, espetando um dedo no meio da minha cara: – Olhe que o seu José Augusto deixou impressões digitais por todo o carro. Dirá, assim, frisando, não duvido, o pronome possessivo. Três letrinhas que ela colocará antes do nome de José Augusto. Augusto. Um seu que eu nunca terei ouvido antes, e que há-de sobrepor-se a tudo o que Gertrudes disser a informar-me sobre a morte de Maria Teresa. Teresa. Gertrudes com a boca cheia de leite creme a debitar informação e conjecturando: olhe que ele pode ser dado como o autor do crime, e eu a espantar-me que Gertrudes tenha percebido. Aquele pronome aposto ao nome de José Augusto a escaldar-me os ouvidos, a
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incomodar-me como nunca tinha previsto. Estará Gertrudes contando que a rapariga cou desfeita nas rochas, que morreu de imediato, e que José Augusto Augusto nem chamou socorro, e eu a preocupar-me com o que possa saber-se das entradas e saídas daquele homem no meu terceiro frente. – Onde andava que não percebeu? – clamará ainda Gertrudes de colher em riste a salpicar sobremesa pela blusa muito acentuada no decote. E dirá que o encontraram sentado no carro a ouvir música. – Diz que ouvia Liszt... Gertrudes que deixarei falando em pano de fundo, enquanto a minha atenção se centra naquele modo de ela se ter referido ao José Augusto: o seu José Augusto. Só mais tarde, a reler a convocatória, irei recear que seja tal e qual como ela disse, e terei calafrios de que seja assim tão grave. Mas no preciso momento em que Gertrudes insistir: o seu José Augusto Augusto pode estar lixado, eu apenas ouvirei reverberar, pelo ar do restaurante
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apinhado, aquele pronome possessivo. Aquele seu a acicatar-me, a remexer uma resposta que não saberia dar-lhe se Gertrudes me perguntasse. E no entanto, será verdade: José Augusto, noite após noite, a subir ao terceiro frente. E quando nos inquéritos zerem o preâmbulo às questões, armarão: o senhor José Augusto, seu amigo. E naquele pronome, será como se cada um deles, os muitos que andarão a coligir informação sobre as causas de Maria Teresa Teresa ter caído, como se cada um deles tivesse visto José Augusto ajoujado com o portátil, um dia e depois outro, desde eu o ter visto na esplanada numa manhã de sol já morno a fotografar um pardal, ainda nem sabia que aquele homem se chamava José Augusto. E quando me indagarem: sabe se o seu amigo frequentava a casa da falecida? parecerão ter a certeza que eu conhecia a existência de uma relação entre José Augusto e Maria Teresa, e eu não saberei mais do que sabia naquele Janeiro na loja da Gertrudes. Só estarei com uma convicção diversa da que tinha nesse dia, a única vez em
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que encontrei Maria Teresa, quando disse: – Está enganada, Gertrudes, que ele não namora nem com essa rapariga nem com nenhuma outra. E no entanto, no decurso do inquérito, responderei: – Não. Nunca soube que José Augusto tivesse amizade com essa rapariga. Não, eu não a conhecia. E não estarei mentindo, que José Augusto Augusto nunca me falará de Maria Teresa, e eu só a terei visto uma vez, naquele dia de Janeiro, na papelaria da Gertrudes. *** E nesse mesmo primeiro dia de Agosto, pelo início da noite, José Augusto entrará no terceiro frente pedindo licença como sempre. E há-de pendurar o boné na entrada. E só depois que ele se sente a colocar um disco no prato, lhe direi num tom baixo, a folha de papel timbrado presa entre dois dedos:
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– Olha o que recebi hoje. José Augusto olhará o papel num relance, e depois há-de tar-me como se fosse dizer: passa-me o arroz ou passa-me a manteiga, mas nem estaremos à mesa. E não dirá uma palavra. Um olhar apenas, inexpressivo do que seja o papel ou o assunto dele decorrente. E só depois que soem na sala uns acordes, e eu de papel pendente à espera, só então dirá, entredentes: – Matou-se. E corará do pescoço às orelhas, a dizer isso. E eu nem direi um som que exclame. Nem direi outro. Guardarei o papel sem sequer indagar: como sabes? ou perguntar: namoraste-a? que nem verei nisso propósito. Nem direi o que me contou Gertrudes. Indagarei apenas, um tom acima do ruído da água na chaleira para o chá que tomamos juntos desde há meses: – Também Também foste intimado? E José Augusto abanará a cabeça a conrmar, e cará balançando ao ritmo do som que roda no prato. E eu não direi: podias ter-me
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contado. Nem lhe perguntarei: não te parece estranho que me tenham chamado para depor? Por uma qualquer razão que não tentarei explicar, caremos em silêncio. Não será dita uma só palavra que nunca tenha sido pronunciada antes desse dia. Nem uma palavra que não tenhamos dito, um e outro, sobre Maria Teresa. Nada que, dito nesse dia de Agosto, pudesse revelar imprecisões. E pairará no ar o ruído dos nossos silêncios que respiraremos a bebericar o chá amornecido por uma pedra de gelo. E caremos entretidos, eu com um lápis e um bloco a fazer esboços, e José Augusto ouvindo música de olhos pregados no tecto. E antes que seja meia-noite, José Augusto háde, para meu espanto, despedir-se: hoje, desço, dirá como se isso tivesse acontecido, uma vez que fosse, desde que dormiu no terceiro frente até ser o dia seguinte. Ele descerá, e eu não carei a ver-lhe o subir e descer do dorso debaixo do lençol. Ouvir-lhe-ei os passos nos degraus até que abra e encerre a porta
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do primeiro esquerdo. E hei-de car cismando enquanto não adormeço. Desde Outubro que José Augusto sobe ao terceiro frente, o andar que habito vai para dez anos sem outra companhia que não seja esta que desde há uns meses vem acontecendo. Apareceu pela primeira vez a pedir-me a chave da varanda. Foi no m do dia em que o tinha visto na esplanada. Bateu de leve. Nem tocou à campainha. Bateu duas pancadinhas com o nó dos dedos. E mal me viu na entrada, disse, e nem boa noite, nem uma apresentação, que na agência não lhe tinham dado a chave da varanda, e ele precisava dela para guardar umas caixas na arrecadação. Que tinha alugado o primeiro esquerdo, disse depois. Que nem soubera que o prédio não tinha elevador e nem porteiro. E corou a dizer assim como se fosse falta que tivesse cometido. Se eu podia emprestar-lhe a chave. Se zesse o favor. favor. E sorriu delicado. E eu só então vi que ele era baixinho. Não mais que um metro e sessenta, mal medido. E foi sempre sorrindo que me disse:
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– Desculpe, nem me apresentei. apresentei. Chamo-me José Augusto. E estendeu-me a mão que deixou na minha num desprendimento. Um cumprimento lasso, registei eu. Depois disso, voltou umas quantas vezes para pedir de novo a chave. Vinha sempre em nais de dia. E tornava para vir entregarma, e quando fez uma cópia, já criáramos o hábito de ele empurrar a porta que eu comecei a deixar apenas no trinco. Pedia sempre um com licença tímido, mas ia entrando sem esperar que eu consentisse. E um dia acabei por lhe dar uma chave do terceiro frente, já ele desembrulhava papéis em cima da mesa da sala e ligava a aparelhagem e trazia o seu portátil. E ouvíamos música que era minha e mais a que ele trazia. Numa noite, José Augusto disse que se tinha avariado o aquecimento no primeiro esquerdo. Estavam a chegar as férias do Natal e o tempo estava muito frio. Foi depois disso que criámos o gosto de dormirmos acompanhandonos.
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De vez em quando. E foi nesse entretanto de ele car por ali no terceiro frente, ainda que tenha mandado arranjar o aquecimento no primeiro esquerdo, que encontrei Maria Teresa na loja da Gertrudes. E achei um disparate que a rapariga fosse namorada do José Augusto. Contos que gostam de entaramelar, entaramelar, quei eu pensando dos comentários da mulher que me garantira que eles davam passeios entre a foz do rio e aquele braço de água por baixo da ponte: eles de mão dada, faziam os mais de quinhentos metros de passeio, garantia-me Gertrudes. Nunca acreditei que no que ela me disse. E nessa noite o sono virá com diculdade. *** E será no dia treze desse Agosto, de tal modo quente que tudo semelhava cor de fogo, que pelas duas da tarde, o inquisidor me háde fornecer uma fotocópia do original encontrado no carro de Maria
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Teresa. Que leia atentamente e depois conversaremos, há-de dizer-me. E eu hei-de voltar num outro dia, depois de ter lido e relido essa espécie de diário que Maria Teresa Teresa terá deixado, displicente ou propositado, no banco de trás do carro. E nem um nome próprio identicando. Apenas Apenas nomes de sítios. O rio, sobretudo. Várias páginas de caligraa. Um texto que me incomodará, não pelo esverdeado da tinta, nem pelo tom das frases. O incómodo estará nas letras muito esguias, inclinadas para a esquerda como se desfalecidas, cada palavra aparentando estar à beira de um precipício enquanto Maria Teresa Teresa escrevia. E eu lerei, e carei a relacionar factos que julgava esquecidos. Hei-de recordar quando José Augusto apareceu no nal daquela tarde como era seu costume. Trazia o sobretudo sujo. Manchado de um verde muito escuro. Que talvez tivesse estado a ver o mar engolir o céu na linha do horizonte. Parece sujo de limos, pensei eu, e perguntei-lhe: – Estiveste a ver o mar, mar, José Augusto? tens o sobretudo sujo.
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O mar e nem um grão de areia. O rio espraiando-se depois de correr entre arribas. Ele contara-me que gostava de car a olhar lá ao longe. Ter-se-ia encostado enc ostado e sujou o sobretudo. Mas ele respondeu-me respo ndeu-me que não fora ver o mar. E quanto ao sobretudo, agradeceu: – Obrigado. Não tinha visto que estava sujo. E encerrou-se o caso. Ele não aventou hipóteses de como tivesse acontecido, e a mim pareceu-me normal que não achasse importante falar mais disso. Mas enquanto estiver lendo os papéis que me pedirão que comente, hei-de conjecturar que talvez José Augusto soubesse a origem daquele sujo no casaco de abafo. Que talvez tivesse sido tal como Maria Teresa deixou relatado nos papéis: eles passeando de mão dada ao longo daquele braço de rio, encostando-se nas amuradas que a rocha alcantilada fazia lá em baixo. Talvez Talvez tenha sido disso que José Augusto Augusto tenha chegado com a mancha a desfear o sobretudo. Lerei e relerei a fotocópia. Baralharei até os laços dos efes e as argolas de ás e ós, que tudo me parecerá organizar-se, naquele
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texto, no sentido de que, aquele namorado de quem Maria Teresa discorre, e nem nome que o caracterize, seja, sem sombra para duvida, o meu vizinho do primeiro esquerdo. José Augusto. Augusto. Que aquele choro, que ela tão bem descreve, é tal e qual o chorar dele. Tinha sido um dia em que o abraçara a consolar-lhe um soluçar que ele fazia baixinho. Depois desse desgosto, que nunca inquiri de onde, José Augusto foi cando no terceiro frente até ser o dia seguinte. Ele que dormia enroscado no seu próprio corpo. E cismarei se não terá sido como Maria Teresa diz nos escritos, se não será pelos factos que ela descreve, que José Augusto veio chorando. Nos inquéritos ninguém me perguntará, e eu não falarei nem do casaco sujo, nem de José Augusto Augusto ter chorado. E não irei dizer que aquele sujo de cor negra ou verde muito escuro, limos ou parecido, podia ser indício de que tivesse acontecido como Maria Teresa deixou escrito. Ela descrevendo com pormenores o
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que se terá passado sob a ponte. Um texto que terá escrito à laia de diário. E ninguém aludirá ao facto de José Augusto dormir no terceiro frente uma e outra, muitas noites. Insinuarão nos modos, mas dizer, não dirão mais do que o eufemismo contido no pronome possessivo colocado antes da palavra amigo. O seu amigo, dito e repetido. E eu na maioria das questões, hei-de responder: – Desconheço. E do texto escrito pela Maria Teresa, Teresa, direi simplesmente: – Não reconheço as personagens, personagens, nem os factos narrados. narrados. Uma meia verdade, que eu estarei já convencido que entre José Augusto e Maria Teresa Teresa houve uma relação que o foi incomodando e da qual não soube distanciar-se. E nunca me disse. Nem uma palavra. José Augusto a subir, discreto, do seu primeiro esquerdo ao meu terceiro frente.
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*** E chegará um novo Outubro. Eu e José Augusto estaremos sentados, frente a frente. Ele há-de dizer-me que conduziu o carro de Maria Teresa até lá acima. Que nunca subiam até ser só arriba dependurada sobre o mar. Que Maria Teresa Teresa tinha tin ha medo, dir-me-á di r-me-á José Jos é Augusto. Augusto . Mas que, naquele dia, ele tinha insistido. Ele a contar-me o que disse, e mais o que nunca disse, nas inquirições e em tribunal. Ele a contar-me tal e qual, e nem terá cado assim nos autos. José Augusto considerado culpado uns dias antes deste estarmos frente a frente. E no entanto, ele e le apenas cou co u a ver o corpo de Maria Teresa, Teresa, caindo cain do por ali abaixo. Que ele exacerbou o estigma que ela tinha de car sem namorado. Que a incitou ao suicídio.
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José Augusto que lhe terá dito: acabou-se, Maria Teresa. Tocava a rapsódia húngara quando ela saiu do carro, dir-me-á ele tal e qual como disse em tribunal. E José Augusto há-de car num solilóquio a dizer-me desses dias. Um dia e mais outro, e ele a tentar que Maria Teresa Teresa percebesse que nem era namoro o que faziam. Terá tentado tudo para convencê-la, há-de dizer-me já no presídio quando o visito. Que lhe tinha dito, uma e outra vez, acabou-se, Maria Teresa, Teresa, até ter dito naquele dia, no cimo da falésia: – A partir de hoje, não apareço mais. Nunca mais irei passear contigo de mão dada pelo rio. José Augusto a contar-me pormenores, dessa, e de uma tarde em que ele decidiu deixá-la no passeio. – Houve uma tarde em que contei seis passos: um, dois, três quatro e por aí adiante, e fui largando a mão que Maria Teresa Teresa tinha gelada – estavam sempre geladas as mãos dela. E eu a afastar-me, a deixála pespegada no passeio. Um frio dos diabos a subir do rio. – Lá em baixo, sabes? – dir-me-á ele a querer querer nalmente contar-me 23
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tudo. Que nem se via vivalma além de um barco descendo o rio. Na neblina, semelhava um fantasma, dirá José Augusto. E Maria Teresa Teresa a desnudá-lo, a saia dela escorregando e o cinto ligas muito esticado. Só o sobretudo dele os protegia da humidade e daquele verde que escorria na rocha. E há-de relacionar com outros factos. O sobretudo sujo e a noite do choro. Que eu já saberei com certeza absoluta que era depois destas tardes no rio, que ele subia ao terceiro frente e que um dia chorara. José Augusto há-de dizer-me que até lhe largou as mãos. Que a deixou pespegada no passeio. Ela na margem do rio, e ele andando, a afastar-se, e ainda assim a sentir remorsos de a abandonar, gelada, e porque sabia que ela tinha dias de imensa solidão. Maria Teresa contava-lhe: – Sabes, José Augusto, nas tardes de domingo, sobretudo nessas tardes, antes de seres meu namorado, eu abria a torneira da água
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fria e a torneira da água quente, e cava ensopando folhas de livros, e nem lia, nuazinha, enada na banheira. E ela aconchegava as suas mãos nas minhas, dir-me-á José Augusto. E nunca me falou nela. E andou assim um ror de meses. Tantos quantos aqueles em que foi subindo, bebericando chás ferventes, e a carmos lado a lado. Até ao dia em que cou até ser dia seguinte. E depois foi cando, uma noite a seguir a outra noite. E no dia em que cismou que se veria livre de Maria Teresa, nem contaria todos os passos dados a deixá-la na borda do passeio. Levá-la-ia, isso sim, a subir lá bem ao cimo da falésia. Que José Augusto sabia. Maria Teresa Teresa dissera-lho muitas vezes: se me deixares, se terminares o namoro, atiro-me lá do alto. José Augusto Augusto subirá num de propósito. Confessar-me-á, mas não o dirá nos autos. O mês de Julho terminando, e ela sempre com aquele casaco de malha a tapar os joelhos, e ela sempre com as mãos geladas, dirá José Augusto. Há-de dizer-me que não era sua intenção que ela morresse. Estavam
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a ouvir música e a porta do carro abriu-se do lado onde ela se sentava. Que era Liszt que tocava toc ava quando Maria Mari a Teresa Teresa saiu do carro. carr o. O corpo dela a cair e o som da música troando muito alto. Em tribunal, quando inquirido, dirá ter-se sentido descansado. Ele muito sereno e Maria Teresa Teresa a cair arriba abaixo. José Augusto Augusto não confessará que a levou lá acima com um intento, mas cará provado. O juiz armará que foi premeditado, e agravará a pena. Que sentiu alívio em saber que nunca mais seria necessário ir passear com Maria T Teresa eresa ao longo do rio, dirá ele, e que estranhou que fosse aquele o sentimento quando se acaba um namoro. Será assim nesse outro Outubro. E eu, a despedir-me, hei-de pedir-lhe que me devolva a chave do terceiro frente.
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MARIA DE FÁTIMA SANTOS | JOSÉ AUGUSTO
JOSÉ AUGUSTO MARIA DE FÁTIMA SANTOS
ILUSTRAÇÃO
RUI SOUSA | WHO
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Os Patos MARIA J. CASTRO
OS PATOS MARIA J. CASTRO
MARIA J. CASTRO
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OS PATOS
Se não te importas, porque não te importas, ou porque quando te importas, te importas com coisas que não importam. Ouvir assim. Mas só algumas. Só as que parecem labirintos. Ou que importam. Ou me importam. Talvez. E ia andando pela rua. A cabeça quase em estoiro, tomei um benu-ron e pensei porque terá sido que depois dos 30 quase todos os dias me dói a cabeça, ou porque está sol a mais, ou chuva a mais, ou dormi de menos, ou dormi demais, ou dormi mal, ou ainda não comi, ou estou constipada, ou bebi demais no dia anterior, anterior, ou ainda não bebi água hoje. Mas mais agora, depois. E a minha cabeça pesa-me, enquanto ando na rua. Distraiu-se com a conversa da outra pessoa que não se importa, importa com o quê, quando e como e com, com quê, responder-me-ias. Se tivesse coragem, que nunca tive, teria falado com ela, a rapariga, era tão bonita ainda por cima, ou não bonita, mas engraçada, e estava vestida com cores bonitas, e suaves, e um lenço com franjas roxo, e tinha um rabo-de-cavalo muito pequeno atrás, sempre gostei de raparigas que atam o cabelo
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OS PATOS
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pequenino num rabo-de-cavalo pequenino. O meu é comprido e também gosto dele, assim muito comprido e caído. E ia andando pela rua, para um encontro que não queria ter. E doíame a cabeça. E a partir dos 30, também é mais difícil fazer o que não temos vontade de fazer. Ou pelo menos, assim me parece. E por isso caminhava devagar. devagar. Pareceu-me assim. Não tendo a coragem de não ir, ir, há sempre a alternativa de ir mais devagar. E devagar também se pensa melhor. Mas às vezes quando ando mais depressa, também penso melhor. Ou mais depressa. Ou talvez mais rápido. Ou com mais urgência. A urgência é uma coisa boa. Às vezes. Talvez. Às vezes aparece e nem precisávamos dela. Eu não. Mas ia devagar, no nal de contas. E ia a pensar em algo ou alguém que tinha visto no
dia anterior, anterior, na televisão, e em como lamento deixar-me assim, a ver, sozinha, em casa, deitada, dormitando, girando o corpo, almofadas, e no dia seguinte, não cou nada, porque até podia ter cado, mas não. Então pensei porque tem de car, também não tem de car, car, na
verdade. A vida e a semana, e os dias, pelo menos os dias, são feitos
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OS PATOS
também disso, de indiferença. Não só disso, mas também disso. Olhei para o telemóvel e para os envelopes dele e não havia. Entrei num pequeno café e comprei um croquete. Nunca compro croquetes, causam-me repulsa, mas este parecia perfeito e bom e comprei-o com orgulho. É bom quando variamos pequenas coisas. Dois estudantes estavam numa pequena mesa lá dentro, com livros grandes, páginas grandes, talvez sublinhadas. Bocados de cenoura ralada na mesa, restos. Pensei numa possível salada fria. Ovo. Lembrei-me de uma cena minha, da vida, anterior a hoje. Eles, talvez 20. Eu mais 10 e mais 1 e sinto tanta falta dos menos, que os olhei demasiado. E nem costumo. E nem sei porquê. Que todos sentimos falta de lá, mas que são só imagens, que quando lá estávamos, também não era tão bom assim. Diz-se assim. E sofríamos e desejávamos estar noutro lugar também. Sim, dias não sentidos e incompreensíveis e frustrados ou frustrantes, e mais, mas não, não, não me lembro de desejar estar noutro sítio. Não disso. Lá era o sítio. E é tão bom estar-se no sítio que se quer estar. E se está. E agora,
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aqui, aqui, nem sempre é o sítio. E hoje, hoje não é denitivamente
o sítio, nem o caminho, e vou a caminho de um encontro que não quero ter, e vou porque não disse que não o queria ter. Croquete terminado, e não era bom, e entro numa livraria, e dou uma volta lá dentro, ouvia-se jazz de fundo, e mexi em alguns livros e é sempre um ritual que me põe tranquila, não sei bem a causa, também não dura muito, mas dei essa volta, e gostei, costumo espreitar uma página bem a meio, e no nal, comprei uma revista de decoração,
não costumo comprar, comprar, talvez nunca tenha comprado, mas gostei do branco daquela sala que estava na capa e também me tranquilizou e por que não. Talvez gostasse de viver numa casa toda branca, sem uma ponta de cor, nenhuma cor, talvez, se também eu estivesse de branco e pantufas brancas, mas vivendo sozinha, tenho sentido necessidade de calor, talvez, e encontro-o noutras cores, não tanto no branco, mas branco sempre sempre foi a minha cor co r. Talvez Talvez a próxima próxi ma vez que vá sair à noite pinte a cara de branco, para car mais pálida, mais branca,
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OS PATOS
muito mais, para conseguir na cara aquilo que não consigo cá dentro. Na minha cabeça soa uma música e não consigo parar. E não é nada adequada a ti, encontro que terei e não quero ter. É triste, a música. Pelo menos a forma como toca. Ou o volume. Porque o que ele diz, não sei, não entendo totalmente. A tristeza tem também a sua parte de alegria, acho. Às vezes. E gosto dessa parte, aquela em que já está, “i am done i am done”, te ne ne, e já está, ainda por cima assim, tão baixinho, estando. E já se foi. E quando as oiço assim, já deveria ter percebido o efeito, onde me colocam, ou para onde me empurram, seja o que for, for, mas para que lado, anal, porque
tenho essa dúvida, se por um lado me fecham com elas e é bom sair e ressurgir depois, o depois é bom, às vezes, ou se por outro me empurram lá bem para o fundo e é um buraco e não sei se devia ir mais baixo, porque há pessoas, ou momentos, em que não se deve descer e pode estar escuro demais, é verdade que vemos a luz lá em cima, mas há o perigo, isso há, e por isso pode não ser bom, ir e entrar lá nessa espécie de coisa, e eu já vou nestes 30 mais
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1 e ainda não descobri essa parte, se tem ou não esse efeito em mim, e co até com revolta de mim, contra mim, porque já tantas
vezes pensei uma coisa, e tantas outras vezes outra, e não consigo optar, decidir, saber, porque o que quero é saber, saber, defenderme, conhecer-me, defender-me, e assim é difícil, se não conheço o efeito das coisas em mim, torna-se difícil. É pena. Tenho Tenho pena. E caminho. Muito tenho eu que andar, hoje. Optei por vir a pé, porque me apetecia, porque tinha tempo, porque andar muito traz o cansaço físico de que preciso. Quero, vem, deixa-me assim derreada, ainda por cima agora, depois dos 30, ainda é mais fácil, para além dos pés, dói também aquela parte de baixo da perna, será barriga da perna, algo assim, e depois é chegar a casa e fazer ah, uff, e deitar no sofá, e eu gosto mesmo dessa sensação, ah, cansaço físico, braços para cima, barriga ao lado. Portas fechadas. E não faço desporto, não corro, não ando de bicicleta, nem sequer passeio com amigos, só me sento a beber e a ver o rio, ou a cidade, a beber, tremoços ou amendoins salgados, depende do sítio, mas nunca corro nem ando
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a pé. Mas vejo muitas vezes o rio, isso vejo. E por isso hoje sim. Começo mesmo a car com a sensação de que cheiro a transpirado,
talvez porque não tirei o casaco, não gosto de andar de casaco na mão, então prero o cheiro e o enchimento de roupa que trago,
porque algo na mão vai-me distrair e não. Não sei se estarei a car doente. Sinto uns arrepios de transpiração,
sinto alguns arrepios, e pode demorar duas, três horas até estar na cama. Talvez até seja melhor voltar para casa, não me sinto muito bem, e também penso que devemos ir no nosso melhor estado físico quando vamos ter com alguém a um encontro que não queremos ter. ter. Não penso na aparência, mas na força física, no vigor, aquele que nos faz reagir, reagir é importante, com os sentidos todos alerta, tudo bem alimentado. Reagir é bom. E reparo agora que estou com os sentidos fracos, cabisbaixos, orelhas para baixo, sonho com um sítio pequeno e sem pessoas, e muito quente por dentro, e aquecedores em estoiro vermelho. E só sonho com estes sítios tão quentinhos quando não estou bem sicamente, ah não estou não, e agora, que
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faço. Que faço, que fazer. Começo a andar em sentido contrário e tomo a decisão de regressar a casa. Imagino-me deitada com o meu edredão bem quente e bem branco, e os estores quase fechados, gosto muito de os deixar um pouco abertos quando é dia, só um pouco, e imagino e vejo que não há nada a fazer e tenho mesmo que voltar para trás. Os arrepios tornam-se cada vez mais fortes e só penso em dormir, e ainda por cima estou com tanta vontade de ir à casa de banho, que vou mesmo ter que entrar no café do lado. Compro uma água, porque tenho vergonha de ir sem pedir nada, e vou. Os 30 não ajudaram ou ajudam, anal, a perder alguma da timidez mais antiga. E é pequena demais,
a casa de banho, tão pequena, e não acende a luz, já carreguei no botão e não acontece nada, e também já me mexi muitas vezes lá dentro, no cubículo, para acender caso seja automática, mas é velha e não me parece, e não se passa nada, não acontece nada, está escuro, e é ao descer das escadas, numa cave, ou lá o que é aquilo, parece ter também uma cozinha por ali, e não acho isso bem, e não
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vejo nada. Saio e volto a entrar, e carrego, ainda pondero ir à dos homens, mas cheira muito mal, e então entro e deixo a porta meio aberta, também no fundo daquelas escadas, quem iria aparecer. E não apareceu. Acho que as calças caram molhadas, mas foi pouco,
mas não se vê, são pretas, e foi só um bocadinho de nada, e saio, e nem lavo as mãos, a torneira era feia e porca, e piro-me daquele sítio. Na rua está uma luz forte. São 15h e o meu encontro é às 15h30, e não gosto dessa hora, a seguir ao almoço, de quê, de nada, as famílias devem gostar, gostar, talvez, que gostem, mas eu não, ainda por cima nem beber café me apetece, bebi em casa e nem tinha açúcar e a caixa estava partida. Se fosse num lme francês os personagens teriam combinado este encontro num banco de um jardim, anal seriam
15h30, são, essa hora, e não haveria complexos, não, em volta poderiam estar apenas namorados, ou crianças, que combinava-se ali, no banco, a ver os patos, quem sabe. E não seria preciso pagar nada, comprar nada, beber nada, mas talvez seja preciso alguma
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paz para isso, talvez sim. Eu também não sinto essa paz. E nunca fui ver o rio ou sentar-me na relva ou ver os patos ou ver os aviões ou nadar no mar ou fazer o que quer que seja, na minha paz, sozinha, comigo mesma. Nunca fui. E hoje para piorar, tenho um encontro que não quero ter. Tinha. Passo pela boca do metro e entro. Pago, entro, e apanho o metro na direcção que ando a dizer que não quero ter. Não estou assim tão doente, anal, e tomei um ben-u-ron, e costuma ter efeito em
mim e no meu corpo cansado de 30 mais um. É uma boa idade, dizem, dizem-me, mas sinto-me cansada, essa é a verdade, sinto o corpo pesado, a cabeça pesada, e cheia, muito cheia, e o pior nem é estar cheia, é não saber como esvaziá-la, porque às vezes tento, sei lá como, a conversar, a ver um lme, a sair à noite, a
comer, comer, a fumar, mas muitas vezes pesa ainda mais depois, talvez por não ter ainda encontrado o funil certo para esvaziar, mas fazia-me bem fazê-lo, porque esse problema é grande, estar-se muito cheio, a cabeça deve ter uma capacidade, um limite máximo, deve estar
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minimamente programada, pelo menos a minha sim, e eu sinto que anda lá mais do que devia andar, sinto que andam por lá coisas a mais, aos encontrões, e nem se sabem priorizar, priorizar, regular, regular, portar bem, porque está tudo cheio, não é fácil organizar nem ver nem estar. Nem estar. E isso cansa, cansa muito, estar assim tão cheio, tão cheia, cansa. Enquanto saio e subo as escadas, dão-me alguns encontrões, embora seja uma hora supostamente calma nos transportes, mas dão na mesma, e sabem-me bem, gosto de ver as pessoas com pressa, gosto de ver as pessoas correrem, porque será e o que será que as faz ter pressa, porque tem de haver pelo menos um destino, não tem, nessa pressa, tem de haver um ponto de chegada, só pode haver, haver, e onde chegam quando chegam. Sempre admirei a pressa. São 15h19, e o sítio é mesmo ali, a dez metros, e sinto as partículas do ben-u-ron espalharam-se, e gosto, e às vezes ainda as sinto na língua, pequenas e brancas, hoje sim, e resolvo ir comprar umas pastilhas à papelaria do outro lado da avenida. As papelarias são
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como as livrarias para mim, e hoje já entrei numa, mas ainda me acalmam mais, gosto tanto, e só não co por lá mais tempo por
haver sempre pouco espaço e uma senhora atrás do balcão muito perto de mim, a olhar para mim, porque eu gostava que fosse como uma loja de roupa, uma papelaria, e que se pudesse ver e pegar, e mexer e experimentar e tocar, e depois largar. E largar. Quando se está demasiado cheio, cheia, ter um encontro devia ser forma de esvaziar, porque acontecer é viver, estar é viver, e viver é esvaziar, esvaziar, não sei, pelo menos é assim que penso ou sempre pensei, mas desta vez este meu uxograma não está a correr bem, porque
eu sigo as setas, e tenho cuidado, e isto não vai dar ao esvaziar, esvaziar, ao car melhor, melhor, acho que por cada caixa que passo, acrescento peso e
volume e ruído, o problema também é não ser peso pesado e denso, é ser volume vazio por dentro, apenas massa que ocupa espaço, espaço, espaço, e eu preciso de algum livre, como se faz. A música música continua a soar na minha cabeça e apetece-me conhecer quem. Talvez se desse um momento transcendente, talvez fosse
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o encontro que quero ter e não tenho. Logo hoje. Mas é estranho, querer um encontro com um estranho, tem um quê de infantil, de idealizar o quê, de estranho. De parvo. De estranho. De pouca vida em mim. De vida nos outros. Mas isto é vago demais, pensando bem, estranho, estranho para quem, quem deniu o contrário, anal,
não gosto dela, da palavra, não da música. Mas não é só idealizar, pois não. Também Também por ainda, talvez, pensar que há, ou no plural, que deve existir, que bastaria ver, ver, porque tudo faz sentido no corpo, na voz, na forma como se mexe, se move, ah e como move. Nos dedos. Na ponta das unhas. Mas seria de mim para ele, e não dele para mim. E isso é pena, ou será que ele conseguiria ver logo como sou eu para ele, quando o olhasse, ou me olhasse. Que confuso. Estamos em Abril. Os meses interessam-me pouco, as estações também, os anos também, os dias também. Ando demasiado dentro do momento, de mim, ou do enchimento que trago em mim, para conseguir apreciar o dia dois do mês quatro do ano assim. E o orescer. orescer.
E o que acontece à volta. Não dou conta, ou se dou, desprezo, ignoro,
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dou-lhe um pontapé. Mas é Abril e nunca simpatizei com Abril. Atravesso de novo a avenida, agora de costas para a papelaria e corro muito ao atravessar, porque o sinal verde dura menos tempo do que o tempo que eu levo a atravessar, e então corro, e reparo que é um autocarro que está parado na passadeira e tenho vergonha, tenho mais vergonha de um autocarro do que de um carro com um rapaz bonito, porque é muita gente, e também estou muitas vezes do lado de dentro, e todos olhamos na mesma direcção e não gosto de sentimentos colectivos sobre mim, de nenhum, aliás, e incluo também aquele que me inclui a atravessar a estrada enquanto corro. E tenho roupa a mais. Encontro um colega meu do trabalho, mal pouso o pé no passeio do outro lado da avenida, mas ele já não trabalha onde eu trabalho, mas na altura sim e tomávamos muitos cafés juntos na máquina do café perto da casa de banho, mas não me apetece falar-lhe, ainda tento ngir que estou em alvoroço, carteira a cair, cair, olhar perdido para vericar que rua é esta anal, ele chama-me e sorrio e paro e falamos
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um pouco e faço um ar extremamente apressado, e ainda melhor, de pessoa a quem o tempo apanha e prega rasteiras e atropela, e voz ofegante, anal tinha feito uma corrida e já passei os 30 e não
faço ginástica. E talvez ele visse como tenho tão pouco tempo no geral, na vida, e no geral de tudo. Mas ele não parece ter pressa nem importar-se com a minha e fala. Marca um jantar, vá lá, marca tu, pois é, sim, o pessoal, o pessoal, ei ei ei, o jantar, e todos, e era giro, ei, e lembro-me bem, ah isso lembro, da máquina do café e de como me fazia sentir bem que estivesse sempre no mesmo sítio, com o mesmo sabor, mesmo depois de férias atribuladas, mesmo depois de férias paradas, mesmo depois de uma noite não dormida, mesmo depois de um almoço de quinze minutos, mesmo depois de um encontro que queria ter, e não, e a máquina sempre imutável, sempre no mesmo sítio, sempre gostei dela, do ritual de colocar a moeda, de sentir o quentinho do copo, de mexer o café, de lamber o pau do café, de lamber até não poder mais por já se estar a partir, partir, de quase partir os dentes com o pau do café, de sentir o quentinho
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entrar, entrar, de guardar o pau do café já partido no bolso das calças, para o poder partir mais nas reuniões, ali escondido, num bolso sujo, de a ver no mesmo sítio, de constatar que funcionava e que era indiferente ao tempo, ao movimento, aos altos e baixos, aos meus altos, aos meus baixos e realmente gostava dela, e gosto menos desta do sítio onde estou agora, porque já a mudaram e não me avisaram, e infelizmente até foi depois de um baixo meu, e depois dos baixos não gosto mesmo nada destas mudanças em coisas que considero aconchegantes, e acho que depois dos altos também não, na verdade não suporto a mudança exterior em coisas imutáveis que anal não o são, quando já trago a mudança em mim. Anal.
E aposto que essa máquina ainda lá está. Essa, a do meu colega. Fiquei a pensar algum tempo sobre isso e também sobre não gostar muito do sítio onde a actual está e também há outra coisa, lembreime, é que nesta passa lá muita gente, é mesmo muita, e uma coisa é estar-se num grupo de cinco pessoas, um grupo junto, eu com este colega e outros, mas outra coisa são dez outros soltos passarem por
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lá, para trás, para a frente, e rirem, e irem abrir a janela, e sentar até no parapeito dessa janela, ao vento, e rirem, porque riem, pois não, é movimento a mais, já nem preciso de o comparar com o meu, está todo lá fora e não o quero. Vou passar a ir buscá-lo e levá-lo para a minha secretária, isso é que é uma boa ideia, se não entornar pelas folhas todas, faço mesmo isso. Mesmo. E mesmo que entorne. Se for só um pouco. E no cantinho. Tenho uma dor no ombro, do lado direito, e às vezes parece que ca um pouco preso. Tenho esta dor há cerca de um ano, mas há dias em que me esqueço dela. Quando o tempo e o céu cam mais
escuros, então dói mais, pelo menos é o que parece. Se eu fosse a pessoa, essa pessoa, que estivesse à espera, de uma pessoa, que vem de encontro a um encontro que não quer ter, ter, eu desmarcava, por ela. Tenho Tenho mais facilidade em desmarcar pelos outros, do que por mim. Para tirar peso ao outro, coitado do outro, não me quero impor, não gosto de me impor, impor, e mal sentisse aquelas reticências, e eu mostrei-as, ah sim, aquele esforço em esforço, ui
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eu desmarcava sim, coitada da outra pessoa, e eu como peso de outra pessoa é algo que me causa náuseas, co até enjoada, não,
peso noutro não, eu como peso, credo. Virem ao encontro que não querem encontrar, encontrar, não, não, não, eu nesse papel não, mas se calhar já estive nesse papel papel e nem dei conta, parva, parva, burra, burra, distraída, distraída, e sorri para essa pessoa, e marquei mais encontros com ela, e fui para casa com alegria, e se calhar, quem sabe, eu era esse com quem alguém não se queria encontrar e não percebi, então aí ainda com mais náusea co, ser esse alguém e esse peso de alguém, e não dar
conta e por isso estar leve, é tão mau passar-se ao lado da realidade dos outros, ou do que somos para os outros, nem suporto pensar, agora de repente sinto-me bastante agoniada mesmo. Respira, respiro, o ar está límpido, mesmo nesta avenida com tanto trânsito e com tantos autocarros com tantas pessoas que olham tanto para nos ver atravessar, atravessar, mesmo assim, sinto o ar límpido, e respiro, bem fundo, e realmente faz bem, não dizem que faz bem, pois faz. Mas alguma náusea, ainda.
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Sentei-me. Num banco verde, típico dos jardins, não sei se ainda existem, mas este existe, e está aqui, madeira, tiras, e sento-me. O verde está todo a sair e por baixo é castanho, mas prero o verde.
Continuo a respirar e gosto disso. Tenho a cara fria, e gosto disso. As orelhas frias, apesar de ter vindo a transpirar, transpirar, agora esta brisa que passa neste canto à sombra, põe-me as orelhas assim. Vejo uma rapariga a atravessar a mesma avenida que eu atravessei, com uma mala muito parecida com a que também eu trago ao ombro, e também ela meia a cair. A rapariga é muito gordinha e transpira o dobro de mim, pois também ela se esforça por passar a avenida toda de uma vez, mas andando e caminhando é mesmo impossível, e há quem continue a andar ignorando, mas ela corre, para se ajustar à duração daquele sinal. Ela, como eu, ao passar aquela avenida que olho, tenta ajustar-se ao tempo cá de fora. E dura pouco. E tenho pena. Quando chega ao lado de cá, encontra um rapaz muito magro, de pernas magras, faz um ar de surpresa e desapontamento, fala-lhe, despacha-o, está com o pé direito muito para a frente, como quem
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arranca, e ele não a deixa ir, ir, ele não tem pressa para atravessar no sentido inverso ao nosso, o sinal dura pouco, mas ele parece não se importar, o sinal muda e volta a mudar, e ele parece sereno, e sem pressa, e reparo que também gosto de pessoas que não têm pressa porque acabam de ter um encontro que queriam e querem ter. Ela consegue nalmente arrancar o pé esquerdo, junta-o ao direito,
e segue, apressada, esbaforida, transpirada, vai para cima, a minha direcção será para baixo, e segue a rua, e reparo que tem uma mancha no nal da sua saia comprida, e que me parece muito enchouriçada
nessa saia, justa, verde, pois realmente é um pouco gorda, e tem uma mancha grande a três quartos da perna, e várias outras manchas pequenas em redor, redor, e não são tão discretas assim. Com a minha mão toco na parte de trás das calças que molhei naquele café, escuro, e ainda está lá, estão molhadas, mas são pretas, e não se vê, disso tenho a certeza. Uma senhora passa por mim e espirra na minha direcção e relembro-me como gostava de espirrar quando era mais nova, talvez nos 30 mais 1 e menos 20, e sentia prazer em não tapar
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o nariz, e deixar sair tudo, sabia-me bem, sicamente bem. Fico a
seguir a rapariga. Gostei dela. O ombro dói-me. A cabeça já não. Os arrepios sim. Costumo gostar de música que se repete muito, de discos em que as músicas se repetem, uma atrás da outra, em que a voz não sobe demasiado, e continua, e é igual, e continua, e tudo se repete. E apenas se repete, mas não está cansada nem cansa, mas repete-se. Esta que trago em mim repete-se, mas mesmo assim prero-a a ela. Mesmo assim, elevou-se, lá no meio de tudo o que
repeti. Quando estava nos menos 15, nesse número, não gostava tanto da repetição. Não a apreciava ou não sabia ou não compreendia ou não queria ou não sabia. Mas também não gostava de sítios em repetição e agora sim. De os tentar de novo, de os repetir, aos sítios velhos. De sentir a sabedoria de quem já lá esteve. Mesmo sem lá ter aprendido. E gosto de sítios novos, também, sim, não é que não goste, mas só depois de já lá estar. estar. Estar. Porque me ocupam. Mas antes de lá estar, estar, não. Porque me anseiam. Agora estou velha, talvez, ou chata ou cansada ou sugada ou doente
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ou pesada ou apenas com volume a mais, e ligo-me assim à repetição. E já foi. Vejo a rapariga. Gosto dela. Já lá vai, bem para o cimo da rua. Reparo que não tem pressa, não aparenta tê-la, segue até bem lenta, muito lenta, pela rua, os ombros muito caídos, tortos até, marreca até, desleixo até, e segue. Anal. Talvez Talvez também ela ande a representar e
não parecia. Me parecia. Naquele sinal. Com o pé apressado, para a frente, que representava. Com esse pé falso. Penso sobre os nossos papéis, o que me dão, o que me dou, o que escolho não fazer, fazer, o que faço todos os dias, o que fazem, os que percebo, os que não, os que observo, aqueles em que participo, e penso, penso nos papéis, nos meus papéis, nos teus papéis. E levanto-me. Para ver o teu.
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OS PATOS MARIA J. CASTRO
ILUSTRAÇÃO
SÉRGIO MARQUES | WHO
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Shoodíaco PEDRO A. AMARAL
SHOODÍACO PEDRO A. AMARAL
PEDRO A. AMARAL | SHOODÍACO
A próxima reunião shandy será a 13 Nov., Nov., no Avenida Palace, em Lisboa. Queira comparecer. comparecer.
O convite foi-me enviado por telex para a única pensão de Salvaterra de Extremo onde estava a escrever o meu segundo romance. Confesso que quei um pouco surpreendido com a convocatória, porque ainda não me considero um perfeito e inútil shandy . Tento fazer o melhor contrabando de palavras possível, foi por isso que me instalei nesta terra raiana. Apanhei o Sud Express na manhã seguinte e cheguei à capital ao nal do dia. A viagem decorreu normalmente se não der muita importância a esta pequena nota de rodapé. Estava um frio de rachar quando cheguei. Havia putos na plataforma do Oriente a venderem caracoletas e sardinhas no pão takeaway . Evitaram-me a todo o custo, talvez por não ter cara de inglês abastado. Um táxi apanhou-me e zarpámos para o hotel. Quando cheguei, identiqueime com o meu cartão de dador de verbetes, e a melíua recepcionista deu-me em troca o cartão magnético de uma suite. Viria a saber mais tarde que Valery Larbaud, durante a sua breve passagem por
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Lisboa nos anos vinte, pernoitara na mesma suite. Pousei a mala em cima do sofá. Havia Raposeira num balde de gelo e 24 passas numa taça de cristal para comemorar a passagem para o dia seguinte. Tirei a carta de Tarot do bolso e pus-me a analisá-la. Bebi mais de meia garrafa e adormeci em cima da cama com a roupa que trazia, embalado pelo relógio de pêndulo melancólico do meu smartphone. O sol ainda não tinha nascido quando acordei. Tinha a boca seca. Levantei-me para ir tomar banho e reparei numa carta no chão junto à porta de entrada. O envelope não tinha remetente, apenas um enorme nariz mais ou menos semelhante a este:
A carta cheirava a canela e dizia o seguinte: A lua está cheia. Está de tal forma cheia que parece que vai parir pequenas luazinhas. A sua missão, caso a aceite, será a de elaborar sucintamente (não queremos verborreias técnicas) os signos de um novo Zodíaco (o actual é bastante falível) para serem lidos e
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apreciados na próxima reunião shandy que irá ocorrer amanhã à noite. Esta carta não se irá autodestruir – p. f. tenha a bondade de a rasgar em pequenos quadrados de 2 mm² (envio em anexo uma amostra para sua referência). Imprescritivelmente, D. P.S.S.T.: Não se esqueça do seu odradek.
Ouvi água a correr. co rrer. Era o meu odradek que que estava a tomar banho. É despropositado e um pouco hindu nas suas maneiras. Encostei-me no sofá e olhei para a janela. Será esta a oportunidade para ser tratado nalmente como um shandy ? Ou será uma armadilha de algum rival literário? Senti a cabeça coagulada. Tranquei a porta da casa-debanho e pedi à recepção para não ser incomodado. Não posso retirar todos os espelhos da suite, vou ter de os evitar ao máximo. Decidi arriscar. arriscar. A partir daquele momento, cara gloriosamente entregue a mim a mesmo. O meu odradek gania gania na casa de banho e arranhava
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a porta. Assim que me sentei, ouvi um disparo de canhão que fez estremecer as janelas. O odradek calou-se. calou-se. Vinha do castelo de S. Jorge e anunciava que o gelo no Tejo Tejo estava a quebrar-se. Arregacei as mangas e beijei a mão esquerda com a direita atrás das costas. Porco-preto (Nivoso) É o primeiro signo do Shoodíaco e não é governado por nenhum planeta, pois é completamente ingovernável. Alimenta-se exclusivamente de carne de porco quando está apaixonado(a). Consegue farejar e detectar sentimentos nobres naqueles que o rodeiam, mesmo quando estes não passam de uns grandes bastardos aos olhos dos outros. Não consegue expressar os seus sentimentos e mete os pés pelas mãos e as mãos pela pélvis. Quando conquista a pessoa armada, o nativo deste signo torna-se cronicamente ciumento e possessivo, não partilhando o ente querido com ninguém. O nativo do sexo masculino do último decanato não tem maneiras à mesa e devora quase tudo
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o que lhe põem à frente. Não espera até que mais de metade da mesa esteja bobonicamente servida, pois é tão sôfrego como uma retroescavadora. Não gosta de ler nem é grande melómano. Tem muito jeito para os negócios e é muito empreendedor. Estabelece suiniculturas ou matadouros, equipando-os com a mais recente tecnologia e não olha a meios para contratar mão-de-obra altamente qualicada. Despreza imperialmente vegetarianos. Gargântua era um Porcopreto exemplar. Por mais que tente, não consegue contrair doenças do foro psíquico, nem compreende a existência de psis. Quando deseja relaxar, relaxar, aprecia particularmente o assobio de uma velha chaleira a ferver ou refugiase no campo para escutar o terno rachar dos lenhadores. Harpa (Pluvioso) O nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e auta.
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Génesis 4:21
Jubal era descendente directo de Caim e tinha vergonha de o ser. Decidiu cantar aos sete ventos a sua desdita e inventou um instrumento de corda que se assemelhava a um arco de caça. Jubal pensava que, deste modo, ludibriaria o seu pai, Lameque, caçador furtivo que não alinhava em cantorias. Um dia, porém, Lameque descobriu o lho a cantar o “Blues de Abel” no cimo de um monte e aprisionou-o na sua tenda até ao m dos seus dias. A lenda diz que no local onde Jubal morreu nasceu Şanlıurfa, no sudeste da Turquia, Turquia, onde todos aqueles que nascem com cinco dedos em cada mão tocam çeng (tipo (tipo de harpa quadrada otomana). A constelação de Harpa pode ser vista na ilha de Tristão da Cunha, no Hemisfério Sul, e representa Jubal a dedilhar o delicado instrumento. O Harpa é facilmente reconhecível pela sua testa alta. Os Harpas parecem utuar, utuar, têm um ar etéreo e um olhar indecifrável. São seres cerebrais de tal modo desconcertantes que se desconcertam a eles próprios e optam pela via verde da loucura. Sentem que não recebem
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estímulos sucientes no seu dia-a-dia, aborrecem-se de morte com os outros e entram numa espiral de conito interior de proporções gigantescas que o comum dos mortais não consegue conceber. Mal comparado, é como se um espectador militante do La Féria entrasse por engano numa sala onde estivesse a ser representada uma peça de A. Jarry ou de Beckett. Casam-se tarde, gostam de solteirar até aos quarenta. São capazes de amar, mas apenas se o outro for Harpa também. Entre os dois nasce uma cumplicidade abissal que desconcerta aqueles que lhes são mais próximos. Não discutem. Não gritam. Alguns casais não procriam, porque detestam o berreiro insuportável dos infantes. Quando decidem ter um lho (unigénito, naturalmente), o destino da criança está selado a partir do dia em que nasceu. Orientação sexual incluída. A única desarmonia que poderá surgir no seio de copa A do casal estará relacionada com a falta de dinheiro que causará a ruptura se não for precavida, o que pode obrigar o homem a fazer trabalho
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braçal como complemento nanceiro; já a mulher, belíssima como a Sarah Bernhardt, poderá prostituir-se em esferas de alta-roda. São gastadores, na medida em que não valorizam o dinheiro. Se trabalharem em demasia, irão coleccionar úlceras e colapsos nervosos. Recusam-se a ser tratados. Não subscrevem cartões de pontos de psicólogos, porque os vêem como proxenetas mentais. São o mais recente upgrade dos hippies. Cheiram ligeiramente melhor. Apanhador de Maçãs (Ventoso) (Ventoso) O maior sonho do Apanhador de Maçãs era ser tanoeiro na sua terra, mas a vida foi-lhe madrasta. De estatura baixa, rosto macilento, queimado pelo Sol, olhos vivos escuros, por vezes cor de amêndoa doce, sobrancelhas bastas. Prestam juramento aos seus senhores e barbeiam-se uma vez por semana. Vivem em pequenos grupos. Nas poucas horas vagas, frequentam bares alternadamente. São uns pobres diabos mal governados. Alguns optam por mudar a data
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de nascimento, adoptando um novo signo para ver se têm melhor sorte. A maioria, porém, aceita estoicamente o fardo e assim vão levando a vida. Ganso-Patola (Germinal) O maior coleccionador de molas para a roupa teve a felicidade de pertencer a este signo. Chama-se John Euclides Firespring e viveu perto da fronteira que separa as duas Carolinas. Como é do conhecimento geral, as Carolinas são os dois estados que apresentam o maior índice de utilização de molas de roupa por habitante dos EUA. As Carolinas possuem ainda a maior taxa de admiradores de Herman S. por milha quadrada do continente norte-americano. O escritor alemão, ganso-patola assumido, escolheu a via budista e declarou guerra à falsa beleza e à obscuridade. Não conseguimos entender como é que este autor tão belo é adorado pelos hillbillies das Carolinas, cuja fealdade é proverbial e quase invejável. Os nativos Ganso-Patola presidem todas as colectividades e
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associações de coleccionismo. São eleitos por unanimidade e refastelam-se na cadeira do poder até morrerem. Com o tempo, tornam-se tiranos e debicam tudo aquilo que estiver ao seu alcance para aumentar o seu relicário. Se alguém ousar contrariar a sua vontade, mandam colocar um círculo de bustos de mármore da Rainha da Inglaterra à volta da casa do prevaricador com o objectivo de o enlouquecer. Não conseguem deitar nada fora e aproveitam tudo. Já decerto reparou naquele indivíduo que usa calças axadrezadas de golfe gastas e um velho chapéu de palha, e que ronda duas vezes por semana os contentores de lixo da sua rua. Não é um sem-abrigo, é um Ganso-Patola em toda a sua glória. Quando encontra algo valioso, como, por exemplo, uma extensão eléctrica sem cabo ou uma lata colorida de ananás às rodelas, delimita e sinaliza a área como se fosse um terreno cheio de achados arqueológicos. Quando a vida lhe corre bem, janta fora todos os dias, bebe mais do que a sua conta e começa a coleccionar gota, gadeiras e hepatites. Apesar
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destes excessos, gosta de desporto, mas pratica modalidades que não lembram nem ao diabo, como, por exemplo, petanca, curling , softball , etc. As mulheres são late bloomers, desabrocham tarde, mas fazem-no com tanta graciosidade que merecem ser lmadas. Camaleão (Floreal) Eu sou a árvore que se esqueceu de morrer Eu sou rosa Eu estou no Quai D’Orsay Eu sou galante Eu sou o fetiche de uma catequista Eu não me lembro Eu sou um murro no estômago Eu sou a fécula Eu ajoelho-me Eu sou um conto mal contado Eu sou circuncidado
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Eu digo-te para te calares Eu sou o Fozzie Bear Eu sou um cubo de gelo na tua boca Eu sou a cabra que uiva Eu sou AB Rh+Eu njo que ouço Eu conto formigas Eu tenho diabetes bons Eu trinco Eu desço Eu aborreço-me de morte Eu sou a menina do papá Eu sou o salmo Eu sou uma vergonha Eu sou o rabo preto de um cavalo branco Eu sou a Rainha Zenóbia Eu tenho tempo
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Eu sou Camaleão Beluga (Pradial) As Belugas são as vacas sagradas da Índia que dão o leite que escorre pelas ruas sujas e poeirentas de Calcutá. São as belas circassianas tornadas escravas nos grandes haréns otomanos. Signo cardinal, feminino, sensível. As melhores amas-de-leite são deste signo; as melhores frauleins da oktoberfest , com a sua pele rosada, sorriso fácil, peito generoso e quatro canecas em cada mão são Beluga. Têm um rancho de lhos pela vida fora. Há quem diga que as nativas deste signo podem tratar a infertilidade feminina só com um toque da sua mão no ventre dessas mulheres menos abençoadas – anal, Beluga é o único signo regido exclusivamente pela Lua, planeta da fecundidade. Há quem diga também – com pouco rigor cientíco – que essas mulheres deveriam procurar apoio médico em clínicas de fertilidade. No século XIX, a nativa Beluga era a madame amejante, dona
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do melhor prostíbulo da cidade, que conhecia diplomatas, juízes e deputados, fruto de uma longa e bem sucedida carreira dedicada aos cuidados primários. Nos nossos dias, é a principal accionista de redes de websites de chats e performances eróticas. Acessos de irritabilidade imprevisíveis. Fica angustiada quando a vida não lhe corre de feição. Apraz-lhe dourar a pílula para cativar alguém e é exímia em embelezar uma mentira para seu proveito. Tem uma memória de paquiderme e pode facilmente transformar-se num, se não frequentar regularmente aulas de radical power ftness. É muito lambareira e gosta de provar de tudo um pouco. A imaginação glugluteante das Belugas não tem m. Se tiveram uma infância difícil, podem desenvolver casos complexos de mitomania. Florbelam copiosos livros de poesia como se não houvesse amanhã e engrossam os escaparates com romances light de de capas lustrosas em que a personagem central é quase sempre uma mulher sosticada cujo mundo desaba no 2º ou 3º capítulo, porque contraiu uma terrível doença rara e que, após inúmeras provações e muita dor física,
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psicológica e literária, se torna num melhor ser humano, graças não só ao amor do médico adúltero, como também à sua própria tenacidade e perseverança que não mais do que dois sinónimos. E como caracterizar os homens deste signo? Bom, citando Roland Barthes, os homens deste signo “são, na sua essência, uns bananas”. Helianto (Messidor) Ao que ingrato me deixa, busco busco amante Ao que amante me segue, deixo deixo ingrata Constanto adoro a quem meu amor maltrata Maltrato quem meu amor busca constante. Sor Juana Inés de la Cruz
O helianto foi imortalizado por Van Gogh em vários dos seus quadros. O holandês ofereceu os primeiros trabalhos ao seu amigo Gauguin para este decorar o quarto. O francês aceitou os quadros, não sem antes lhe perguntar se iria receber algum com taitianas seminuas.
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Van Gogh gostava tanto de heliantos que, juntamente com o seu irmão Theo, criou o Movimento “Dia Internacional da Guerrilha Girassol”. No 1º de Maio, militantes desta organização apátrida lançam atentados terroristas um pouco por todo o lado, semeando indiscriminadamente sementes de helianto e plantando ores em canteiros e jardins urbanos sem deixarem testemunhas. O intenso magnetismo e o profundo sentimento de justiça de Helianto apenas podem ser comparados com a sua sobranceria e a sua neurose de fracasso. Gosta de pensar que é um ser dotado e que é o único ser à face da Terra com visão e cultura sucientes para avaliar tudo e tordos. Olha sempre de cima para baixo quando é apresentado a alguém e gosta de armar a sua presença com alguma teatralidade. Se ocupar um cargo de poder, terá decerto uma legião de bajuladores biliosos que o seguem com pétalas de rosa numa mão e cicuta na outra. Helianto, vaidoso e encandeado com tanta adulação, será traído por quem menos espera e o seu riso da loucura ecoará pelos longos e frios corredores do Parlamento. Quando um
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líder político deste signo é vilipendiado ou a sua integridade mental é posta em causa, responde com discursos cheios de cólera, febre amarela e indignação, arrasando inimigos e detratores, ameaçando com ultimatos e medidas extremas como, por exemplo, o abandono da vida político-partidária para se recolher num mosteiro ou num conselho de administração intravenosa de uma multinacional cotada na bolsa. A sua Fé pode mover mortalhas. A sua Fúria pode varrer a Albânia. É Ajax louco que corta a cabeça a ovelhas, julgando-as chefes acaicos, suicidando-se em seguida, recheado de opróbrio. É o grito demente e rebarbativo de Aquiles Aquiles no campo de batalha que vinga a morte do seu amante. É Perseu que degola Medusa usando o seu escudo, pois é demasiado tímido para a olhar “olhos nos olhos”. Amolador (Termidor) (Termidor) Adão amuou: a ardente amoladora atiçou a arrebatada amada, azucrinando Adão. Acção ardilosa. Adão arrastado, a amada
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arrancada a Adão, ambos se acanharam, abotoando-se abaixo. A amoladora acalcanhada. Absolutamente arrasador. arrasador. Ai ai Adão. Agora, apaches, argentinos, anglo-saxões, antiquários, as altíssimas AutoridadesAndróginas, aviadores, assaltantes, advogados apátridas andam amiúde (d´)anoraques. Amoral (a)mostrar a área amorosa. Ali, aqui, além, além, até à Austrália. Anjos arvorando a antena aureolada, aureolada, alugadas amas-de-leite amamentando: acciona-se automaticamente a acta anti-assédio. Absurdo! Absurdo! Alfaiates aplaudem. Ando atribulado, autocarro atrasado avizinha-se. Avisto-o. Alto! Arménio arrojado atropelado ao atravessar a alameda. “Assassino! Assassino!”. Assistência (d’)aposentados aparecem a apreciar a arena acidental. Ambiente adverso. Aguardo atarantado: ando a arroz, a alcachofras, a atum, automedicado. Avanço andarilho. (A)levanta-se a aragem. Arrepio. Arrefeço. Atchim! Atchim! Arco-íris. A astrologia alerta: ascendente Amolador, Amolador, alergia agonizante, amor (adúltero) ardente.
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Clepsidra (Fructidor) No regresso a casa depois de uma noite de festejos, Ctesíbio, matemático grego de Alexandria, reparou numa constelação que, com alguma imaginação e muito hidromel, se assemelhava “a duas gregas que pareciam estar a tentar roubar água da ânfora uma da outra”. Baptizou a constelação de clepsidra – do grego kleptein, (roubar) e hydro (água). Tal como o matemático grego, os nativos deste signo fazem os possíveis para serem funcionários exemplares. Nunca se atrasam nem nunca se adiantam, e raramente pedem atestados médicos para poderem repousar uma ou duas semanitas. As suas qualidades laborais são incomparáveis. Se as contas da sua empresa estiverem nas mãos de um Clepsidra, é provável que o barco ainda se aguente por mais algum tempo antes de ir completamente ao fundo (a insolvência da empresa foi provocada por “clientes que se esqueceram de pagar a cento e trinta dias – o conselho de administração oral fez tudo o que estava ao seu alcance para salvar a empresa”).
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São “certinhos” e transparentes como a água da clepsidra. Não se deixam enganar por promessas falaciosas de aumentos no nal do ano e de pagamentos por fora. Quando a esmola é grande, o Clep descona. Têm de ver a cor do dinheiro. O seu 11º 11º Mandamento é: – Não aceitarás cheques pré-datados. pré-datados. Uma das características mais vincadas dos Clep é a sua obsessão por roupa. São capazes de perder a pose ao ponto de abraçar ou até roubar um beijo ao patrão se este usar um fato Armani ou Zegna. Não conseguem ver estafermos mal amanhados. À noite, gostam de usar um robe de seda e de fumar a sua cigarrilha blasé, encarnando um Decadentismo nissecular algo mascavado. São enfadonhamente previsíveis e têm horror a imponderáveis. Se gostam da organização de certa agência de viagens, serão seus clientes até morrer, ainda que a Benidortour organize pacotes turísticos sempre para o mesmo destino, em todos os verões. Se apreciaram o atendimento de um restaurante recomendado por um amigo (que nunca mais lá voltou), é bastante provável que levem lá
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a companheira todos os meses (para imenso rejubilo da consorte). Vêem-se como uma espécie de vedeta ou modelo a seguir no seu pequeno mundo. É uma forma semi-inconsciente de se desligarem da sua realidade pequeno-burguesa. Seleccionam cuidadosamente o seu círculo de amigos e rotulam-nos de acordo com a sua idade, peso, estado civil e estatuto social. Não perdem uma única comédia romântica e cam sempre muito admirados com a realização de ciclos de cinema independente: “Quem é que no seu perfeito juízo pode ser mecenas daquilo e, pior ainda, quem é que ainda têm paciência para ver aquilo?”. Boi Almiscarado (Vindimiário) Em 1863, Don Facundo, o fundador da Bacardi, recrutou uma legião de cossacos Baikal para criar bebidas espirituosas em Cuba. Ninguém sabe por que Facundo escolheu cossacos. Além de tresandarem a bosta de cavalo, passam a vida de braços cruzados com um copo de vodca em cima da testa ou a fazer acrobacias em cima dos equídeos.
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Os eleitos de Facundo não foram excepção à rega. Sentindo-se enganado, Facundo enclausurou-os numa velha fábrica de açúcar e pregou-lhes um longo e inamado sermão, chamando-os mujiks. Os cossacos ofenderam-se, alguns até choraram, mas resolveram arregaçar as mangas e os limões para provarem a Facundo que estava errado. Criaram assim o primeiro Bacardi Limón que, segundo a lenda, ainda continha as copiosas lágrimas dos apátridas. Não há bela sem serão: um destes cossacos, de seu nome Fidelio K. Astronov, Astronov, recusou colaborar com o protocapitalista cubano e exortou palavras de ordem e de luta aos seus camaradas. Ninguém lhe deu ouvidos e narizes, já que Fidelio, além de ser soporicamente monocórdico, era mau dançarino. No entanto, antes de ter decidido cruzar os braços por tempo indeterminado como forma de protesto, o russo (boi almiscarado até ao tutano) já tinha deixado a sua semente revolucionária espalhada pela ilha. A ancha presença de Júpiter na quarta casa indica maturidade. No entanto, a presença de caixas de piza vazias espalhadas pelo apartamento do Boi Almiscarado sugere outra coisa. Na juventude,
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é um “táctil”, um hedonista à deriva. Move-se, fala e trabalha com lentidão. Como isso não bastasse, também come devagar. devagar. É sempre o último a terminar a refeição num jantar de grupo. Nativo com o mesmo ascendente do signo solar (Boi Almiscarado/Boi Almiscarado/Boi Almiscarado) Almiscarado) chega a regurgitar para tornar a mastigar o bolo alimentar muito vagarosamente. É recomendável que opte por uma vida saudável no campo, em contacto com a mãe natureza; deve andar nu e explorar a sua sexualidade sem complexos nos bosques e nas serranias. Torga era um Boi Almiscarado assumido. Quando nalmente decide constituir família, a escolha por uma vida em comum torna-se sagrada. Pesa muito bem os prós e os contras da Nicarágua na sua decisão. Por vezes, chega mesmo a pesar o objecto da sua decisão, ou seja, a futura consorte. Atenção aos antrazes, furúnculos furúnculos e gangrenas. gangrenas. Saiam mais vezes e distraiam-se: frequentem os leilões de gado da sua região. Mandrágora (Brumário) Signo do elemento Terra. Uma terra permeável, húmida, onde, segundo a lenda medieval, o homem enforcado deixava cair o sémen. 23
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O nativo de Mandrágora é permanente, passa no Tempo e o Tempo parece não passar por ele – não se deixem enganar: não é tão sólido e rme como à primeira vista seria de esperar. esperar. Se conseguir detectar sinais de fraqueza neste nativo é porque é um bom observador ou conhece muito bem o indivíduo. É um bom exercício para todos os psi-wannabes. Possui uma líbido intensa: decerto o leitor tem um amigo que mora num r/c ou até num luminoso -1 que já lhe descreveu, num misto de lamúria e inveja que, de vez em quando, ouve uns gemidos intermináveis que descem do 4º andar a altas horas da madrugada. Já adivinhou o signo da criatura que vage nessas noites subtropicais – é uma Mandrágora. Feminino, sim. O homem Man opta opta por expelir grunhidos abafados. Embora seja representado por uma planta, os nativos deste signo têm uma líbido animalesca, como se andassem endemoninhados por um cio irreprimível e interminável. No entanto, o homem sabe ser discreto, gosta de se manter na sombra, uma vez que não pode andar sempre debaixo da terra. Quando, por motivos de força maior, se vê obrigado a ir para um
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motel, pede delicadamente ao seu par para fazer o check-in. Mas quando o impassível funcionário pergunta quantas horas tenciona car, o Man não se faz rogado: “Dezoito, vinte, se for caso disso.” Se o planeta Vénus estiver alinhado com a Lua, é provável que se venha embora precocemente. A maioria, no entanto, prefere usufruir do resto das horas a ver canais codicados ou a sentir a textura do colchão de água só para não dar parte de fraco. Por esta altura, o respectivo par já estará longe. O Mandrágora não deseja ser o centro das atenções, mas todos os que o rodeiam são atraídos pelo seu irresistível carisma. As pessoas revigoram-se a seu lado, tudo parece fazer sentido quando há um Man por perto. Contudo, se esta aproximação se prolongar por tempo indeterminado, alguém sairá magoado. Todos Todos nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos por revelar pontos fracos e ele alimenta-se disso. Peça a Deus para que isso aconteça o mais tarde possível, caso contrário, ele ou ela irá destruí-lo sem dó nem ré. Piedade? Clemência? Hermenêutica? O que é isso? A sua represália é ardilosa e requintada: o pobre diabo ca inteiramente à sua mercê e não olha
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a médicos para atingir os rins. O grande e malogrado Bruno Schultz era um Mandrágora ao contrário. Pinhata (Frimário) A pinhata é um fruto originário do México, muito apreciado em todo o mundo, com propriedades regenerativas e tranquilizantes. Tem Tem uma casca colorida, muito dura. Para a abrir, é necessário uma venda e um bastão. O fruto é muito saboroso e nutritivo. O seu planeta regente é Caronte, planeta gémeo de Plutão. Tal Tal como o fruto, o nativo Pinhata é muito duro por fora, mas muito saboroso por dentro. Dada a desorestação e a procura em restaurantes gourmet , Pinhata é um signo criticamente ameaçado e está em vias de extinção. Os seus nativos escolhem uma vida de reclusão monástica, de hábitos noctívagos e não gostam de ser frequentados. Sabe-se muito pouco sobre eles. Ω Quando terminei, de madrugada, senti-me mais só do que Napoleão em Sta. Helena. Levantei-me para ir à casa de banho. Não quis
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acreditar no que vi. O meu odradek tinha tinha morrido de solidão. Estava pousada no meu lugar uma estranha carta de Tarot: Tarot: parecia ser o Louco a lançar três dados montado num lavagante de ar triste a pairar sobre o mar. Não façamos guizos de valor precipitados, trata-se de uma doença hereditária. Três quartos da população Clep sofre da síndrome de Brummel: a sua visão ltra pessoas mal vestidas ou fora de moda.
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