ALAIN BADIOU ÉLISABETH RO UDINESCO
JACQUES LACAN,
passado presente Tradução Jorge Bastos
□ DIFEL
Rio de Janeiro I 2012
Copyright © Editions du Seuil, 2012. Titulo original: Jacques Lacan, passéprésent Capa: Sérgio Campante Foto de capa: Maurice ROUGEMONT/Gamma-Rapho via Getty Images Editoração: FA Studio Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa 2012
Impresso no Brasil Printed in Brazil Cip-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ B126j Badiou, Alain, 1937Jacques Lacan, passado presente / Alain Badiou, Élisabeth Roudinesco; tradução Jorge Bastos — Rio de janeiro: DIFEL, 2012. 96p. : 21 cm Tradução de: Jacques Lacan, passé présent ISBN 978-85-7432-125-7 1. Lacan, Jacques, 1901-1981. 2. Lacan, Jacques, 1901-1981 — Influência. 3. Psicanálise. I. Roudinesco, Élisabeth, 1944-. II. Título. CDD: 150.195 12-5211 CDU: 159.964.2 Todos os direitos reservados pela: DIFEL — selo editorial da EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 — 29 andar — São Cristóvão 20921-380 — Rio de Janeiro — RJ Tel.: (0XX21) 2585-2070 — Fax: (0XX21) 2585-2087 Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora. Atendimento e venda direta ao leitor:
[email protected] ou (0XX21) 2585-2002
Sumário
Apresentação................................................... 7 1. Um mestre, dois encontros ................. 11 2. Pensar a desordem ................................49
Apresentação
Com origem numa antiga história, cujos primórdios datam de quase quarenta anos, este livro se deve a uma conjuntura: a comemoração, em setembro de 2011 , dos trinta anos de morte de Jacques Lacan. Conhecemo-nos há muito tempo e, mesmo seguindo tendências políticas às vezes distintas, mantivemos, de longa data, um diálogo fecundo, fundado no reconhecimento das diferenças e, mais ainda, numa amizade que nunca passou por estre mecimentos. Tivemos em comum a paixão pelos trágicos gregos, de que Freud tanto gostava, pela Revolução de 1789 e sua história, pela poesia como ato de resistência da língua, pelo cinema e pelo engajamento político. Em abril de 2006, um ano e meio depois da morte de Jacques Derrida, nosso amigo em comum, estivemos na École Normale Supérieure* na companhia de Yves Duroux * Prestigioso curso de formação superior, sendo a Ecole de Paris, na Rua d’Ulm, a mais famosa. (N.T.)
7
JACQ UES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
para um debate sobre alguns filósofos franceses, entre os quais Althusser, Foucault, Sartre, Canguilhem, Deleuze. Em março de 2010, na cidade de Rennes, num fórum do jornal Libération apresentado por Éric Aeschimann, nos confrontamos, outra vez, em torno dos “Lendemains qui chantenf* Tendo Saint-Just em mente, dizíamos: “A lei da felicidade não pode se limitar ao simples fato de nos incluirmos no mercado dos objetos disponíveis.” E também: “A catástrofe atual é o higienismo e a norma: o contrário da felicidade.” Não gostamos do fanatismo religioso, do cientificismo, do dinheiro em exagero nem da avaliação desenfreada, que são sintomas do abandono dos ideais da razão. Resumindo, temos em comum a con vicção de que o engajamento político deve seguir ao lado do trabalho, do rigor e da erudição. Era lógico, então, que um dia um diálogo nos reu nisse, e foi em torno de Jacques Lacan que isso se deu: trinta anos depois. Desde sempre, afirmamos que Lacan, * Literalmente, “Os amanhãs que cantam”. A expressão, tirada da autobiografia de Gabriel Péri, deputado comunista fuzilado em 1941, se tornou de uso comum. Foram as últimas palavras que escreveu, na véspera da execução: “...o comunismo é a juventude do mundo e prepara amanhãs que cantam.” (N.T.)
8
APRESENTAÇÃO
renovador do pensamento freudiano, foi um mestre, no sentido socrático* do termo, capaz de atualizar uma po lítica do sujeito, do desejo e do inconsciente. E acredi tamos que a dupla abordagem aqui proposta, histórica e filosófica — por mais fugaz que seja — , deva permitir ao leitor interrogar mais uma vez a questão crucial das relações entre revolução política e revolução subjetiva. De forma que transformamos essa convicção em diálogo de duas vozes, em dois tempos e dois momentos: Jacques Lacan, passado presente. A primeira parte, “Um mestre, dois encontros”, desen volve uma sequência de reflexões pessoais sobre a relação que cada um de nós teve com Lacan, nos anos 1960-1970. A segunda, “Pensar a desordem”, é uma crítica, evocando os aspectos mais pertinentes da contribuição lacaniana, de todos os sectarismos contemporâneos — ideal comunitarista, obscurantismo, paixão pela ignorância — que contribuíram, tanto no campo da psicanálise quanto no da política, para um rebaixamento do pensamento. * A partir dos diálogos de Platão, percebe-se que Sócrates era um mestre que se recusava a ter discípulos e que estimulava a autorreflexáo. (N.T.)
9
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
Queremos crer, aqui e agora, que, para além da an gústia mortífera, sob a qual se obstina a se autoproclamar nossa sociedade em crise, uma representação do futuro torna possível nova esperança. Freud, afinal de contas, elaborou certa concepção trágica do sentido íntimo, bem distante do cada-um-por-si que caracteriza nossa época. Por que não pensar a possibilidade daquela invenção voltar a ser, assim como a revolução, uma ideia nova no mundo? A.B. e É.R.
10
1 Um mestre, dois encontros1
Para começar, poderiam se situar com relação a Lacan? Contar em quais condições des cobriram seu pensamento? P h il o s o p h ie M a g a z in e :
Minha aventura com a psi canálise começou em casa. Minha mãe, Jenny Aubry, era médica em hospitais e lidava com crianças abandonadas. Era também psicanalista e foi uma das primeiras a trazer para a França os princípios clínicos de John Bowlby e de Anna Freud, a quem conheceu em Londres. Desde 1953 ela se tornou não uma discípula propriamente falando, mas colega de Lacan, estando com ele no momento da fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP). É l is a b e t h R o u d in e s c o :
1Parte desse diálogo foi publicada em Philosophie Magazine, n° 52, de setembro de 2011, com o título “Choisis ton Lacan!” [Escolha o seu Lacan!]. Foi em seguida totalmente revisto, corrigido e au mentado pelos autores, a partir da transcrição de Martin Duru.
11
JACQ UES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
Lacan vinha então com frequência à casa da minha mãe e do meu padrasto (Pierre Aubry), logo depois do divór cio dos meus pais. Ela era muito amiga de Sylvia Bataille, com quem Lacan acabara de se casar. Naquela época, eu ia à Prévôté, a casa de campo de Lacan em Guitrancourt, mas estava longe de imaginar que aquele homem tão familiar fosse um pensador de tamanha envergadura. Mais tarde, na adolescência, em nada me senti atraída pela psicanálise. Não queria me di rigir a algo que interessasse tanto à minha mãe. Sonhava antes em escrever romances ou fazer cinema. Cursei então Letras, depois Linguística, e adorava a Cahiers du cinéma, a Nouvelle Vague e o cinema hollywoodiano. Em 1966, fui dar aula em Boumerdès, na Argélia. No mesmo ano, foram publicados As palavras e as coisas, de Michel Foucault, e Escritos, de Lacan. Que momento in crível! A onda estruturalista, começada por Claude LéviStrauss e prolongada por Louis Althusser em A favor de Marx, em 1965, foi uma verdadeira revelação para mim. O curso de Filosofia que segui no colegial tinha sido desastroso e eu finalmente descobria filósofos e pen sadores que escreviam de maneira formidável: pensadores da língua. Mergulhei maravilhada em Escritos, facilitada pelo fato de conhecer bem a linguística estrutural (com 12
UM MESTRE, DOIS E N C O N T R O S
origem em Ferdinand de Saussure e desenvolvida por Roman Jakobson) em que Lacan se baseava. Uma cena incrível: eu dizendo a minha mãe o quanto achava genial o Lacan “dela”. E ela respondendo: “Há muito tempo lhe digo isso!” Começamos então, as duas, a ter discussões, às vezes animadas, sobre a teoria do significante, a qual entendíamos de maneira diferente. Depois de Maio de 68, abandonei o projeto de es crever romances e me orientei para as ciências humanas e a filosofia, terminando meu mestrado em Letras sob a orientação de Tzvetan Todorov, na Universidade de Paris VIII — Vincennes (atual Saint-Denis), onde depois de fendi um doutorado de terceiro ciclo.* Segui o seminário O anti-Edipo de Gilíes Deleuze e, em seguida, me incli nei para História, ao ter contato com Michel de Certeau, que dava aula no Departamento de Psicanálise, fundado em 1969 por Serge Leclaire. Em 1972, encontrei Louis Althusser. Já Lacan, comecei a assistir a seu seminário em 1969 na Faculdade de Direito do Panthéon. Quando minha mãe falou com ele sobre meu interesse por seu ensino, fui imediatamente convocada. Na conversa que * Primeiro e mais simples doutoramento no sistema universitário francês, extinto em 1985. (N.T.)
13
JACQ UES LACAN, PASSADO PRESENTE
tivemos, ele reclamou: “Mas que história é essa? Por que demorou tanto a vir me ver?” E contei também o que fa zia: começava a trabalhar com a obra de Georges Politzer na revista Action Poétique, dirigida por Henri Deluy, e ele insistiu para que eu me inscrevesse na Escola Freudiana de Paris (EFP), que ele havia fundado em 1964, sem que eu nem sequer estivesse decidida a fazer análise. Aceitei e, por assim dizer, isso traçou o meu destino. Permaneci na EFP até a sua dissolução, em 1980, pelo próprio Lacan, um ano antes de morrer. Minha trajetória é diferente. Fui um jovem sartriano convicto. Entre 1958 e 1962, como es tudante de Filosofia da Ecole Normale Supéríeure (ENS) da Rua d’Ulm, encontrei meu segundo mestre, depois do Sartre da minha adolescência, Louis Althusser. Foi como um choque entre opostos! Althusser propunha que se re lesse Marx sem os brilhos humanistas, no momento em que Sartre propunha uma visão existencial. Inteiramente por acaso, caiu-me nas mãos o primeiro número da revista La Psychanalyse, que continha o famoso relatório de Roma de Lacan (a conferência intitulada “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, de 1953). Esse texto literalmente me deslumbrou — passei por verdadeiro A l a in B a d io u :
14
UM ME STRE , D OIS E N C O N T R O S
fascínio textual, de forma que minha relação teórica com Lacan sempre foi mediada pelo escrito. Depois da desco berta inicial, continuei a seguir La Psychanalyse e come cei a fazer referências a Lacan em minhas dissertações. Intrigado com isso, Althusser me levou a uma sessão do seminário no Hospital Sainte-Anne. Estávamos em 1960-1961, de forma que fui o primeiro aluno da Ecole Normale a apresentar, a pedido de Althusser, dois traba lhos orais sobre o pensamento lacaniano. É.R.: E Freud, você lia? A.B.: Lia, sim! Comecei a leitura sistemática de Freud logo no primeiro ano na ENS. Considerávamos Freud um marco para as ciências humanas, ciências humanas estas que substituiriam, como muitos acreditavam, o idealismo filosófico pelo materialismo “sério”. Contudo, além da evidente continuidade, rapidamente me dei conta da profunda diferença entre a obra de Freud e a de Lacan, que era absolutamente inovadora. É.R.: Tão inovadora que a leitura de Lacan marcou profundamente a de Freud para numerosos intelectuais, entre os quais me incluo. Li a obra de Lacan antes de ler 15
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
a de Freud e, com isso, a minha leitura foi “lacaniana”. Mesmo assim, não devemos unir as obras de Freud e de Lacan ao ponto de achar que Freud já era lacaniano. A.B.: Seja como for, Lacan imediatamente se impôs para mim como figura maior do cenário intelectual, mesmo tendo publicado apenas uns poucos artigos, nem sempre fáceis de achar. É.R.: Era o grande drama de Lacan até 1966, quando se reuniram os textos em Escritos. Até então, não havia um livro disponível. Tudo estava espalhado. A.B.: Em 1966, justamente, eu ensinava filosofia num liceu da cidade de Reims. Entrei em contato, por intermé dio de François Regnault, também professor de lá, com a redação de Cahiers Pour l ’Analyse, a revista lacano-marxista lançada por um grupo de normaliens um pouco mais jovens do que eu. Encontravam-se ali, além de François Regnault, Jacques-Alain Miller, Jean-Claude Milner, Yves Duroux, Alain Grosrichard... Os dois primeiros artigos que publiquei na revista, muito articulados em torno da lógica matemática — minha grande paixão àquela época e ainda hoje — , se referiam explicitamente a Lacan, mas 16
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S
com um tom crítico, uma reserva distante. Por exem plo, contestava a ideia de existir um sujeito da ciência. Mantinha-me althusseriano nesse ponto: para mim, a ciência tinha mais a ver com um processo assubjetivo. Lembre que estávamos em 1966, 1967... Veio depois a tempestade que se seguiu a Maio de 68 e que revirou minha vida e me precipitou por muitos anos no pensa mento e na ação políticos. É.R.: Para você, no fundo, a leitura de Lacan foi con temporânea de um corte político, enquanto para mim foi sobretudo uma cesura estruturalista. A.B.: Acabei encontrando Lacan pessoalmente. Foi em 1969. Acho que tudo era urgente para ele, que queria então me ver com toda a urgência. Como era difícil me localizar durante o dia, pois estava sempre correndo por fábricas e locais operários, ele nunca conseguia me achar por telefone. Conseguimos, mesmo assim, marcar um al moço. Sempre sedutor, tentou me cooptar, com os mes mos encantos a que você se referiu, Élisabeth: “Por que não me procurou antes?” etc. Mas não me juntei à EFP e não me tornei analista nem, aliás, analisando. Fiquei longe do divã. De ponta a ponta, Lacan foi para mim 17
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
um pensador de primeiríssimo plano, mas não um mestre psicanalista. Ainda o primado do escrito! Nesse sentido, ocupa um lugar considerável no meu trabalho filosófico, e isso desde a minha primeira obra sintética, Théorie du Sujet (1982). Ele esteve, e continua o tempo todo, pre sente em meu horizonte intelectual. P.M.: Como apresentaria o que ele trouxe à filosofia em geral e ao seu próprio pensamento, em particular? A.B.: A obra teórica de Lacan penetrou em meu mo vimento filosófico por definir uma posição totalmente singular quanto à questão do sujeito. No início dos anos 1960, estávamos, eu e outros jovens filósofos, em uma conjuntura particular. Como disse, eu mesmo era um sartriano convicto. Com a ajuda de Althusser, porém, veio a hora de romper com a fenomenologia, da qual Sartre era um dos representantes ilustres. Por que essa ruptura inevitável? Desde sua invenção por Husserl, a fenomeno logia remete o pensamento do sujeito a uma filosofia da consciência. Enraíza-se na experiência vivida, imediata e primitiva. O sujeito se confunde com a consciência e a compreensão transparente do que acontece com a pes soa. Não por acaso os fenomenologistas (pensemos em 18
UM MEST RE , D OIS E N C O N T R O S
Merleau-Ponty) deram tamanha importância à percep ção: ela é a experiência mais elementar dessa relação direta e intencional da consciência com o mundo. Além disso — e nisso a fenomenología francesa é também herdeira da psicologia tradicional — , o sujeito é apreendido como interioridade, pelo ângulo dos seus sentimentos, das suas emoções etc. Resulta daí uma forte centralização no ego reflexivo e na esfera da intimidade. Para libertar um pensamento da emancipação revo lucionária, apoiada na ciência (que vinha a ser o nosso “programa comum” na época), era preciso sair desse modelo fenomenológico — reflexivo e existencial — do sujeito. Para isso, podíamos nos apoiar nas ciências hu^ manas, na objetividade científica e no formalismo lógi co-matemático. Resumindo, contra a fenomenología, o estruturalismo representava uma tábua de salvação. Os pensamentos díspares que se juntaram sob esse rótulo têm, pelo menos, um ponto em comum: orquestraram uma revolta contra a concepção tradicional de sujeito. A constelação estruturalista teve seu acabamento num “anti-humanismo teórico”, segundo a marcante expres são de Althusser, ou na “morte do Homem”, para citar Foucault. Nesse movimento de conjunto, variantes e in flexões são possíveis. Alguns proclamaram que o sujeito é uma ilusão, um efeito no espelho de estruturas mais 19
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
essenciais, invisíveis e, mesmo assim, pensáveis pela ciên cia. Outros procuraram demonstrar, às vezes seguindo Heidegger, que o sujeito metafísico clássico náo passa de uma categoria idealista antiga. Diz-se, nesse caso, que o que há de real na noção de “sujeito” é apenas uma forma particular de objeto. Já os discípulos de Althusser sus tentaram que o sujeito é uma noção emblemática, sendo inclusive a categoria típica da era burguesa. Finalmente, qualquer que fosse a abordagem escolhida, todos os ca minhos estruturalistas levavam a uma crítica radical do conceito de sujeito. Nesse contexto, onde situar Lacan? De um lado, ele participava da ruptura com a fenomenología, à vontade pelo fato de conhecer bem o pensamento de Sartre e de Merleau-Ponty. Inseriu-se na galáxia estruturalista não apenas por recorrer, mais até do que muitos, aos forma lismos lógico-matemáticos, mas também por renegar o sujeito reflexivo como centro de toda experiência. Em sua perspectiva analítica, o sujeito depende de uma estrutura irreflexiva e, de certa maneira, transindividual: o incons ciente que, para Lacan, depende inteiramente da lingua gem. A ciência do inconsciente toma o lugar, então, da filosofia da consciência. Dito isso, Lacan — é a segunda vertente de sua posi ção singular — não vai tão longe quanto os estruturalistas 20
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S
“duros”, como Foucault, ou quanto os heideggerianos a la Derrida, que consideram que a categoria de sujeito não passa de um avatar da falecida metafísica. Lacan preferiu conservar essa categoria, mesmo tendo que renová-la pro fundamente. Isso porque, para ele, o sujeito se mantém no centro da experiência clínica, de forma que Lacan sal vou o sujeito, em plena ofensiva estruturalista. O “seu” sujeito certamente estava sujeitado à cadeia significante, dividido, desconhecido de si mesmo, clivado, exposto a uma alteridade radical (que Lacan chamou “o discurso do Outro”). Mas continuava sendo coerente, e até mesmo necessário, propor uma teoria do Sujeito. Nos anos 19601970, então, Lacan foi quem me permitiu acompanhar o anti-humanismo teórico, mantendo fidelidade à minha juventude sartriana e à noção de sujeito. Por esse motivo, ele me pareceu, logo de início, um contemporâneo deci sivo. Um contemporâneo que sabia incorporar os mate riais mais díspares para fabricar sua própria construção. P.M.: E como você, Elisabeth Roudinesco, viu essa revo lução lacaniana no que se refere tanto à psicanálise quanto à filosofia?
21
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
É.R.: Para começar, Lacan se situou no cruzamento de um encontro inesperado, e muitas vezes conflituoso, entre as duas disciplinas. Por um lado, foi quem fez os filósofos compreenderem que a psicanálise trazia uma re volução filosófica. Por outro, porém, foi quem levou os psicanalistas a se voltarem para a filosofia. Esse segundo movimento da balança me parece capital: Lacan se ali mentou de filosofia e fez muitos filósofos irem a seu se minário para empurrar para cima os psicanalistas, que ele considerava carentes de bagagem intelectual. Por intermédio dele, os psicanalistas redescobriram a filosofia, e os intelectuais, a psicanálise, numa época em que essa disciplina estava encurralada entre a psicologia e a medicina. E, pelo estruturalismo, literatos, como eu, por exemplo, puderam redescobrir a importância da filosofia, graças a uma geração de filósofos que, ao mesmo tempo, eram estilistas da língua e se interessavam por literatura. Não era o que eu havia encontrado no fim do colegial. No que me concerne, apenas mergulhei realmente em Spinoza e Hegel depois de ter lido Althusser e Foucault, e tendo assistido ao seminário de Lacan. Cheguei à filosofia pelas fendas abertas pelos estruturalistas e, em seguida, graças às aulas de Pierre Macherey: devo muito a ele. Na verdade, um fosso já se abrira antes de 1966 — ano 22
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S
miraculoso para o escruturalismo — entre os psicanalistas que seguiam Lacan — e se alimentavam de filosofia — e os que se mantinham afastados e preferiam levar a psica nálise para o campo da psicologia. Acho que a singularidade de Lacan está ligada ao iti nerário percorrido por ele. Não se deve esquecer que seu ponto de partida foi a psiquiatria. E a psiquiatria sempre foi mais receptiva à filosofia do que à psicologia; a psi cologia sempre quis se afastar da filosofia para se tornar “científica”, o que nunca vai conseguir. Como Georges Canguilhem, Lacan sempre criticava a psicologia como falsa ciência, querendo levar a psicanálise para as discipli nas “nobres”. Mais precisamente, no momento em que Lacan evoluiu em direção à psicanálise, a partir de 1931, a psiquiatria francesa mais dinâmica tinha uma orientação fenomenológica. O próprio Lacan foi fenomenólogo àquela época, antes de empreender sua iniciação no pensamento hegeliano, por meio de Alexandre Kojève. Após a Segunda Guerra Mundial, ele se afastou dessa herança, preferindo o estruturalismo, e se voltou para Saussure, por intermé dio de jakobson e Claude Lévi-Strauss, lendo suas obras, ao contrário do que afirmam hoje alguns psicanalistas lacanianos que “revisam” a história negando essa influência 23
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
e querendo fazer de Lacan uma esfinge autoproclamada, com inspiração apenas em si mesmo. Temos, nesse sen tido, muitos “revisionistas” no meio psicanalítico. Com certeza, Lacan se sentiu fascinado pelo pensa mento de Heidegger, mas deixou-o de lado a partir de 1957, como se pode constatar em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. Mas nem por isso, aliás, deixou de querer ser reconhecido pela pessoa de Heidegger. Claramente, porém, tomou partido da ciên cia, da objetividade formal, ali mesmo onde Heidegger, com uma orientação fenomenológica e ontológica, enun ciara que “a ciência não pensa”. Esse ponto de partida de Lacan, na psiquiatria, é fun damental e confirma o que disse Alain sobre ele ter man tido o pensamento da problemática filosófica do sujeito. A psiquiatria não se ocupa apenas do mal-estar psíquico, abordando também a loucura como um despedaçamento do sujeito. Essa ideia de excentricidade, de quebra da per sonalidade, apareceu bem cedo em Lacan, que, aliás, se inspirou nos surrealistas e, sobretudo, em Salvador Dali. Em 1932, ele escolheu como tema de sua tese de medi cina uma louca — Marguerite Anzieu (rebatizada “o caso Aimée”) — , antes de se interessar pela história das irmãs Papin, duas exemplares empregadas que assassinaram suas 24
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S
respectivas patroas, na cidade de Le Mans, sem motivo aparente algum. Lacan tinha o dom de mostrar que a pa ranoia — e mais ainda, sem dúvida, a paranoia feminina — era uma loucura lógica que simulava a normalidade, sem nenhuma causa orgânica ou constitucional. Teria a ver com a psicogênese. Foi nessa perspectiva que se inte ressou por mulheres místicas, em busca de gozo absoluto, para além das fronteiras da razão. É uma diferença crucial dele para Freud: enquanto o fundador da psicanálise tratou essencialmente das neuro ses — mesmo que hoje se saiba que os pacientes de que se ocupou sofressem de patologias bem pesadas — , Lacan mergulhou no universo atormentado da psicose, da lou cura feminina, da paranoia como sistema de pensamento lógico e até formal. Já seria o bastante, se posso assim dizer, para mostrar o alcance filosófico de sua iniciativa. Não devemos esquecer que Freud desconfiava da filosofia, assimilando-a muitas vezes ao discurso paranoico, isto é, a uma lógica da loucura... A.B.: Concordo plenamente. Para dizer isso de ma neira mais brutal, as neuroses se remetem, em última instância, à psicologia clínica. Todo mundo passa por pequenas histórias de fracassos amorosos, de obsessões 25
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
incômodas, de impotência latente, histórias terrivelmente idênticas e cansativas. Sempre achei incrível que os psica nalistas consigam passar o dia, mesmo que cochilem um pouco, ouvindo essas confissões sintomáticas. Vejo nisso certa forma de heroísmo, até. A neurose é um tédio! Já a loucura perturba a filosofia desde as suas origens: o que vem a ser essa forma violenta de engolfamento do sujeito? Como conceber esse surgimento em si de uma alteridade radical? E evidente que a psicose é muito mais interes sante para o filósofo. É.R.: Confesso certa reticência: Lacan se interessava muito pela paranoia, mas, para mim, a grande “loucura filosófica” — loucura de duas faces (exaltação e depres são) — , a que me parece mais fascinante, mais literária, mais criativa continua sendo a melancolia. Por isso me aprofundei na figura de Théroigne de Méricourt, mulher melancólica, pioneira do feminismo e que perfeitamente encarna a exaltação revolucionária de 1789. Foi a queda do ideal revolucionário que a precipitou na loucura, em 1793. Terminou sua vida no Hospício de la Salpêtrière, observada por Esquirol. Como não pensar no destino de Althusser? Sempre me impressionou a falta de interesse 26
UM MEST RE , D OIS E N C O N T R O S
de Lacan por essa forma de loucura que, no entanto, cau sou tanta curiosidade, desde Homero e Aristóteles. A.B.: Lacan privilegiou a paranóia por ser bem mais sistemática. Isso chama a atenção já em Freud: O caso Schreber é um texto impressionante, de lógica implacá vel. É como se o caso se reconstruísse por inteiro numa matriz de autossuficiência. A paranóia convém perfeita mente bem à análise estrutural, motivo pelo qual Lacan se interessou tanto por ela. P.M.: Elisabeth Roudinesco apontou uma primeira di vergência entre Freud e Lacan, pela importância que cada um deu à neurose e à psicose. Mas acredita existir o mesmo hiato na concepção e na condução do tratamento? As diferen ças entre uma análise freudiana e uma análise lacaniana — e sabemos que a prática das sessões curtas causou escândalo e, em parte, motivou a exclusão de Lacan da Associação Psicanalítica Internacional (LPA) — eram imediatamente visíveis? E.R.: Com certeza. A diferença saltava aos olhos nos anos 1960, sobretudo em Paris. Os psicanalistas freudianos ortodoxos eram adeptos de uma espécie de materialismo 27
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
vulgar. Interessavam-se por lembranças, por emoções, pelo ego, por perturbações narcisísticas, por comporta mentos normais ou anormais, e consideravam tudo que ultrapassasse o âmbito estrito da clínica como especula tivo e, por isso, perigoso: não estávamos longe da psico logia do comportamento. Pela teoria e pela prática, Lacan permitiu que se escapasse disso, pois punha em destaque a linguagem, com o foco no que se diz, e a necessidade do corte no centro do processo analítico. Não era limitado, respeitava as vocações dos pacientes e não ficava obce cado por um ideal de cura ou de normalização. Naquela época, os psicanalistas freudianos ortodoxos pressionavam os alunos de Lacan para que escolhessem em qual campo estavam e faziam da psicanálise uma religião interpretativa. Lacan, ao contrário, demonstrava abertura de espírito: se um padre, por exemplo, o procurasse em análise — e isso várias vezes aconteceu — , ele aconse lhava que permanecesse padre, se fosse este o seu desejo de verdade. Foi por Lacan compreender a essência da es piritualidade — como, aliás, a da filosofia — que alguns jesuítas, principalmente, se sentiram atraídos, apesar de seu ateísmo e de sua plena ligação com o rigor do discurso da ciência. O paradigma biologizante da teoria freudiana, revisto pela ótica de um positivismo rasteiro, incomodava 28
UM MEST RE, D O IS E N C O N T R O S
consideravelmente os religiosos que porventura procuras sem seguir um tratamento. A.B.: Isso porque, com frequência, o positivismo é uma religião invertida, de forma que, em vez de servir à ciência, à qual se diz vinculado, ele a sujeita por finalidades ideo lógicas estranhas ao devir específico da ciência. Donde, um religioso ter mais motivos para temer o positivismo do que para temer a ciência propriamente. Nada impede que se ache, por exemplo, que Deus admire a ciência e não goste da ideologia positivista... É.R.: É verdade! E era também incômoda para eles a assimilação freudiana da religião à neurose. De fato, os psicanalistas freudianos franceses eram, em sua maioria, anticlericais, positivistas pouco abertos ao engajamento intelectual ou espiritual e pouco orientados para o dis curso filosófico. Donde a conversão — apesar de não gostar muito dessa palavra com conotação tão forte — de muitos jesuítas ao pensamento de Lacan. Dito isso, Lacan, já no final da vida, deu preferência a uma con cepção dogmática do tratamento ultracurto, fonte de frustração e até de “trapaças”. De tanto criticar o recurso à emoção, os lacanianos fundamentalistas, obnubilados 29
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
pelo formalismo dos nós e dos maternas, correm o risco de perder de vista o sofrimento dos pacientes. Quanto mais inovadora uma teoria — e a de Lacan foi muito! — , mais ela corre o risco de cair, a qualquer momento, no dogma. E o lacanismo náo é uma exceção à regra. P.M.: Para você, Alain Badiou, o tratamento, no sentido lacaniano, apresenta um interesse propriamente filosófico? Sente-se que, potencialmente, ele põe em função a renovação do sujeito, a que você se referia... A.B.: O tratamento é um ato que, ao mesmo tempo, pressupõe e atravessa uma forma. A forma, no caso, são as estruturas objetivas do inconsciente. E o tratamento, mesmo se remetendo a elas, também as retalha e frag menta. Para Lacan, que nesse ponto é moderado, a análise não tem como meta a “cura”, mas deve conduzir a esse ponto real em que o sujeito pode se refazer e voltar a viver. Ela pode mudar a direção do que se apresentava como um destino e reabrir as capacidades do sujeito. Sempre achei magnífica a definição proposta pelo próprio Lacan: o tra tamento tem como finalidade “elevar a impotência ao impossível”. O impossível é o real, no sentido lacaniano; isto é, o que jamais se deixa simbolizar. O que se espera 30
UM MESTRE, D OIS E N C O N T R O S
da análise, então, é o desbloqueio de uma situação inicial de impotência da qual o analisando sofre (estou afastado do meu desejo, tomado pela dureza, pela estagnação da existência), devendo ela conduzir a um ponto real em que o sujeito, até então, preso no imaginário, recupere parte de sua capacidade de simbolização. No plano filosófico, esse dispositivo é absolutamente notável. O ato (o que se desenvolve no tratamento) per manece inteligível, do ponto de vista da forma (as estru turas do inconsciente), ao mesmo tempo que as atravessa. Algo acontece na análise (o face a face do Sujeito com um ponto real), mas, para teorizar esse acontecimento, é preciso vinculá-lo a seu contexto formal. Lacan, sobre tudo em seus últimos anos, é para mim um herói filosó fico, pois evitou dois obstáculos. De um lado, escapou do determinismo rasteiro, dizendo que um corte surpreen dente pode acontecer no tratamento. Por outro lado, manteve-se firmemente distante das doutrinas espirituais ou religiosas, na medida em que esse corte nada tem de miraculoso — ele se relaciona diretamente com as formas racionais do inconsciente. É.R.: Lacan vira as costas tanto ao cientificismo quanto ao obscurantismo. 31
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
A.B.: Exatamente. São dois obstáculos hoje mais ameaça dores do que nunca! Constituem nossa conjuntura! Não é de agora, aliás, que uma secreta aliança se faz entre esses supostos adversários que são o cientificismo limitado e o obscurantismo supersticioso. E é por isso que precisa mos tanto de Lacan. Em todo caso, sinto-rne integral mente lacaniano nesse ponto. Para pensar o que é uma verdade, preciso encontrar o ponto em que a forma do que é e o que provoca ruptura com essa forma são con comitantes. Meu trabalho é uma busca do formalismo adequado para pensar a possibilidade de um corte efe tivo no contexto das formas. Nem determinismo (o atual comportamentalismo é um avatar disso na clínica) nem abertura neorreligiosa (dentro da qual se inscreve atual mente certa fenomenología), apenas materialismo radical que reconhece o imprevisível real — o que chamo acon tecimento. Com esse intuito, sigo à minha maneira os passos de Lacan. P.M.: Apesar, no entanto, de ter se interessado filosofica mente•, você, Alain Badiou, pessoalmente nunca seguiu trata mento. A.B.: Não. Essa experiência, para mim, se manteve to talmente estranha, mesmo que muito praticada à minha 32
UM ME STRE , D O IS E N C O N T R O S
volta. Minha emancipação pessoal, para usar uma expres são pomposa, passou pelo ativismo político, pelo encon tro amoroso, pela escrita teatral e romanesca, pelo gosto pelos formalismos matemáticos, tudo isso reunido, afinal, na filosofia. Não julguei necessário acrescentar a essas ex periências uma análise. Acho que, como o próprio Lacan, sempre considerei que só cabe se engajar num tratamento analítico quando nos sentimos afetados por sintomas que introduzem em nossa vida impotência e sofrimento ex cessivos. Sendo suportável o sofrimento, por assim dizer, normal, o único motivo para buscar uma análise seria o de me tornar psicanalista. Por minha parte, engajado numa lógica política coerente, ativando simbolizações fi losóficas multifacetadas e, principalmente, sendo feliz na existência, considerei poder perfeitamente não assumir um tratamento. É.R.: Por minha parte, hesitei antes de entrar no pro cesso de formação psicanalítica. Não tinha certeza de ter vontade plena de me tornar psicanalista em tempo integral. Além disso, me sentia bem, não apresentava sintoma algum! Mas, sendo filha de analista, a passagem era quase obrigatória. Acabei fazendo análise com Octave Mannoni e, depois, supervisão com Jean Clavreul. Um 33
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
tratamento freudiano bastante tradicional — com sessões de 45 minutos — e uma supervisão também tradicional. No fundo, o que eu gostava naqueles lacanianos era que tinham permanecido bastante freudianos, mas integrando na prática e na clínica a inovação lacaniana, como minha mãe, aliás. De forma alguma iria para o lado da psicotização da neurose, defendida por epígonos de Lacan. Muitos fizeram como eu, e devo dizer que foi uma experiência formidável. Hoje, infelizmente, a psicanálise muitas vezes deixa de ser uma aventura intelectual, uma viagem, uma busca, uma iniciação. Nesse sentido, acabo me juntando a Alain, mas por outras vias: todo tratamento dito “tera pêutico” se parece com a formação dita “didática”. Hoje em dia, as pessoas fazem análise somente quando “precisam”. Mas o tratamento é uma apaixonante tra vessia de si mesmo, e não um serviço utilitário, visando “eficácia”, mesmo, havendo a noção de tratamento bemsucedido. Quando bem-conduzido, por um clínico inte ligente, traz um acréscimo de lucidez, se o comparamos a outros engajamentos, sobretudo políticos. P.M.: Falemos de política, justamente. Acham que o pen samento de Lacan tem um alcance político? O problema se 34
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S
apresenta ainda mais, pois elepróprio proibiu toda forma de aproveitamento ideológico ou partidário de seu ensino. A.B.: A meu ver, a psicanálise lacaniana se inseriu num contexto político significativo. Encontra-se aí o sentido profundo do tratamento, que visa, como disse, a uma abertura do sujeito com relação a um estado original de impotência. E esse processo pode adquirir uma dimensão coletiva. Para mim, o campo da política corresponde à liberação de possibilidades de vida que uma determinada situação bloqueia, torna impossível. A opressão se define sempre pela esterilização das capacidades individuais e coletivas. Desse ponto de vista, o tratamento lacaniano, apesar de totalmente apolítico em seu próprio exercício, propõe ao pensamento uma espécie de matriz política. Vejo uma continuidade entre o pensamento de Lacan e a atitude de tipo revolucionário, que reabre uma disponibi lidade coletiva mergulhada na repetição ou barrada pela repressão estatal. P.M.: Lacan inclusive chegou a se apresentar como “o Lênin da psicanálise"... A.B.: Exatamente, e concordo com a expressão. Lacan se comparava a Lênin, comparando Freud a Marx. Com 35
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE
essas aproximações um tanto metafóricas, ele quis subli nhar que Freud se situava ainda dentro de uma lógica médica de cura, e Marx numa postura de promessa. Lênin deixa de prometer o comunismo: ele decide, age, organiza. E Lacan, por sua vez, deixa de buscar a cura, como fazia Freud. E feroz adversário de uma visão adaptativa da psicanálise, que se contentaria em domesticar o animal humano para melhor conformá-lo ao meio social, transformando-o num animal submetido aos valores do minantes, sem ter mais que passar por sofrimentos psí quicos ocasionados por qualquer não conformidade ou originalidade excessiva. A ambição da psicanálise, para Lacan, é bem mais radical. A psicanálise é um vetor de emancipação, mesmo que se apresente sob formas expli citamente apolíticas. Lacan, com sua visão de tratamento, foi para nós, jovens, mesmo que ele próprio não visse as coisas dessa maneira, um dos operadores da mobilização geral, entre 1968 e os anos 1980. Essa era já a minha aná lise, à época de Maio de 68: achei ser um acontecimento que, assim como o confronto com o real no tratamento, permitia que voltasse a se abrir uma liberdade nova — nesse caso, uma esquerda radical — , agindo no sentido das emancipações locais contra a máquina capitalista desigualitária. Lacan, como se sabe, era claramente menos entusiasta... 36
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S
É o mínimo que se pode dizer! Para ele, Maio de 68 foi um movimento de encobrimento, exprimindo não uma vontade de libertação generalizada, e, sim, pelo contrário, o desejo inconsciente, por parte dos revoltosos, de servidão ainda mais feroz. É .R .:
“É ao que aspiram como revolucionários, um amo.” Quando ele pronunciou, na Faculdade de Vincennes, essa famosa frase, foi duro engolir a pílula. E verdade que Hegel também não teria gostado nada do revolucionarismo proletário do discípulo Marx! Aliás, quando Lacan morreu, escrevi que era o nosso Hegel. O fato de um mestre achar que os discípulos estão desen caminhando seu pensamento numa direção errada com prova estar vivo esse pensamento. A .B .:
É.R.: No fundo, Lacan estimava que a verdadeira re volução, a única que valeria a pena, era a psicanálise freu diana! Segundo ele, a agitação esquerdista só poderia levar à restauração do despotismo. Para além de Maio de 68, a questão da relação de Lacan com a política implica em al gumas referências factuais. Ele vinha de uma família cató lica de direita: a França antiga, chauvinista e intolerante, no que isso tem de mais detestável. Preparou-se, então, 37
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
contra essa genealogia, e sua tendência natural o levou à centro-esquerda, encarnada na época por personalidades políticas como Pierre Mendès France e representado na mídia pela revista semanal L’Express. E isso lhe valeu o persistente ódio dos meios direitistas. Publicamente, po rém, Lacan permaneceu a vida toda uma esfinge. Nunca se engajou como Sartre. Assinou uma única petição em toda a sua existência. Mantendo-se voluntariamente afas tado das lutas mais ardentes de seu tempo, não participou da Resistência, à época da Segunda Guerra, e nem se sabe ao certo, apesar da aversão visceral que tinha pelo racismo, se foi um anticolonialista ativo. Mas acompanhou o proV J cesso de descolonização, dando apoio principalmente a Laurence Bataille, filha de Sylvia e Georges Bataille, quando, com o primo Diego Masson, ela aderiu a uma rede de apoio à Frente de Libertação Nacional argelina. Em maio de 1960, quando foi detida e depois encarce rada na prisão de Roquette, ele levou para ela as folhas datilografadas de seu seminário A ética da psicanálise e, mais precisamente, as páginas dedicadas a Antígona. Mas a falta de engajamento militante não impediu que se interessasse pela atualidade política e acompanhasse os movimentos da vida cultural francesa. Por exemplo, enten deu que a Igreja católica representava uma força política 38
UM MESTRE, DOIS E N C O N T R O S
maior e quis encontrar o papa, em 1953. No mesmo ano, entregou também o relatório de Roma a Maurice Thorez, que dirigia o Partido Comunista Francês. Ele próprio não era comunista, longe disso; mas, como eu havia aderido — de 1971 a 1979 — , ele regularmente me convocava para perguntar a respeito das evoluções e dos debates in ternos do Partido. A fase de desestalinização havia come çado, e Lacan a acompanhava com atenção. Pressentia, tanto na Igreja como no PCF, viveiros em potencial de recrutas para o seu próprio movimento. Como analista, ele não recusava ninguém. Chegou a seguir e, inclusive, a defender personagens bastante extravagantes, às vezes pouco recomendáveis ou até fora da lei. Mas acho que, comportando-se dessa maneira — e eu não era a única a tentar questionar, em particular, seus apoios esdrúxulos — , ele evitou que alguns pacientes e alunos da minha geração caíssem no extremismo. Lacan foi uma verda deira muralha contra o terrorismo que se propagava, na época, na Alemanha e na Itália. Soube neutralizar tais aspirações, fiando-se apenas na prática psicanalítica e rejeitando firmemente ser utilizado para fins políticos. Assumiu a função simbólica de barreira de proteção, adotando a seguinte postura: venha comigo, é melhor do que a Revolução e melhor do que o ativismo extremado. É bem verdade que determinada extrema esquerda e 39
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
alguns maoistas em particular se reivindicavam lacanianos. Mas Lacan, propriamente, mesmo se interessando por Mao Zedong como grande figura significante da época, não tinha simpatia alguma pelo maoismo, ao con trário. Quando leio, às vezes, que ele foi maoista, fico pasmo... Já os lacanianos maoistas, frequentemente se converteram ao liberalismo de direita, isso é notório. P.M.: Alain Badiou não poderia se autodefinir assim? A.B.: Pode-se, hoje, apenas dizer que Mao faz parte da grande história revolucionária, assim como Robespierre, Saint-Just, Blanqui, Trótski, Lênin e tantos outros. Dito isso, deve-se explicar por que a glande maioria dos jo vens intelectuais lacanianos dos anos 1960 foi maoista nos anos 1970. Seria por acaso? Com certeza, não! Tem precisamente a ver com o conceito lacaniano de sujeito, ao qual não apenas é necessário, como é totalmente coe rente, conferir uma dimensão política subversiva, pela fi losofia. Entre Lacan, que dizia “não ceda quanto ao seu desejo”, e Mao, que dizia “temos razão de nos revoltar”, a passagem, para nós, era evidente. E.R.: Mas ele não era um chefe revolucionário ou au toritário, estando mais para o monarca constitucional, 40
UM MEST RE, D OIS E N C O N T R O S
identificando-se muito, não devemos esquecer, com o modelo político inglês. A EFP era um lugar de liber dade, e não um partido ou uma seita. E claro que Lacan exercia um poder transferencial sobre pacientes e alu nos. Mas quem se submetia o fazia por vontade própria. Livremente se tornavam discípulos, pois era o desejo de les. É ridículo apresentar Lacan como uma figura autori tária. Ainda mais porque, mesmo incitando a submissão, Lacan nunca respeitava os epígonos e, ao mesmo tempo, valorizava quem resistia à sua sedução. No fundo, sempre tive reservas quanto às tentativas de dar significado político à radicalidade lacaniana. O que é radical em Lacan é a visão sombria que ele tinha com relação às trocas entre as pessoas. Para ele, o único lugar em que o malefício da pluralidade humana podia parcial mente ceder era no tratamento. Não vejo como fundar uma política revolucionária sobre semelhante base. Resumindo, é evidente que Lacan não era um progres sista, no sentido clássico, inclusive em termos políticos. Mas, também, não era um pensador reacionário, como às vezes querem nos fazer acreditar. Alguns psicanalistas assim o consideravam por ele se opor ao casamento ho mossexual e à homoparentalidade — com o argumento de que tais medidas abalam a função simbólica do pai. 41
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
Trata-se de um grave contrassenso. Para começar, Lacan foi um dos primeiros a aceitar homossexuais em análise, sem querer mudar sua orientação sexual e autorizando-os a se tornar psicanalistas. Além disso, a chamada função simbólica do pai pode ser assumida tanto por um homem quanto por uma mulher: num casal homossexual, por um dos dois parceiros. São muitas as maneiras possíveis de se formar família e nenhuma deve ser excluída a priori! Quando consultaram Lévi-Strauss sobre a hipótese de le galização do casamento homossexual, ele, em suma, res pondeu existirem tantas formas de organização da família nas sociedades humanas que isso não o chocava. Lacan sempre se negou a imaginar a diferença dos se xos sob o exclusivo ângulo da determinação biológica. A questão da família o preocupou desde cedo. Num texto de 1938, Os complexos familiares, ele associou o nasci mento da psicanálise ao declínio da autoridade paterna. Sustentou então que a figura decaída do pai devia ser revalorizada. Mas nem por isso fazia apelo ao restabele cimento da onipotência patriarcal. Nesse assunto e em todos os demais, Lacan me parece, no plano político, um conservador esclarecido, assim como Freud. P.M.: E Alain Badiou, o que acha? Lacan era um pro gressista ou um conservador? 42
UM MEST RE, D O IS E N C O N T R O S
A.B.: Parte da genialidade de Lacan vem da ambigui dade constitutiva do seu pensamento. Coexistem nele inegáveis estratos conservadores e elementos de radicalidade extrema. De um lado, o animal humano se enraíza num terreno inalterável, é estruturado pela linguagem, assimilado a uma Lei imemorial em que o Nome do Pai é o significante organizador. Por outro lado, porém, ele eventualmente pode se libertar desse peso e inventar coisas. E.R.: A Lei é incontornável; mesmo assim, se oferece por si mesma ao jogo da transgressão. A.B.: É por aí. Se guardarmos apenas a Lei e a pres crição simbólica do pai, nesse caso, de fato, faremos de Lacan um reacionário — o que ele, na realidade, não é. Em contrapartida, se pusermos o foco na experiência do sujeito que consegue, apesar de atormentado por estru turas do inconsciente, não ceder quanto ao seu desejo, Lacan se revela um pensador da emancipação — é o uso que faço do seu ensino. Pois o que é a emancipação senão esse movimento de torção, de exceção com relação à Lei? Deve-se entender que é sempre numa figura localizada, numa exceção, numa espécie de falha quase invisível na ordem das coisas que a emancipação pode acontecer. 43
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE
A ideia de uma revolução abrupta do todo social nãc faz sentido. Desse ponto de vista, Lacan tem toda razão de ser um conservador que não acredita na revolução gene ralizada, na Grande Noite.* Mas é também quem critica totalmente a rejeição dogmática de uma liberação pra ticável do sujeito. Sabe-se que ele reformulou o Nome do Pai na máxima “les non-dupes errent”.** Os não tolos são os que acham conhecer o fundo negativo das coisas e negam com cinismo a possibilidade de emancipação. Erram nesse sentido e são, fundamentalmente, imposto res. Lacan não se engana com esses não tolos. É.R.: Falei de conservadorismo esclarecido, também, para realçar a dimensão crítica onipresente em Lacan. Era um pensador do Iluminismo sombrio, revelando sempre o avesso da razão e da modernidade. Não confiava nas ideologias do progresso ilimitado e da felicidade para * Grand Soir. ruptura revolucionária, por marxistas e anarquistas, com derrubada do poder estabelecido e instauração de uma nova sociedade. (N.T.) ** No Seminário 21, ainda não traduzido oficialmente em por tuguês. Literalmente, “os não tolos erram”, perdendo, porém, a homofonia original com “o nome do pai”. (N.T.)
44
UM MEST RE, DOIS E N C O N T R O S
todos. Sentia-se consciente demais do fato de o mundo ocidental poder, a qualquer momento, cair no horror, na deserdação, no niilismo. Já no fim da vida, ele anunciou explicitamente a expansão dos flagelos atuais: o racismo, os comunitarismos, que são uma variante do racismo, o individualismo feroz e, sobretudo, a estupidez que carac teriza a demagogia de massa, o reino da opinião pública. Era o seu lado Tocqueville. Resumindo, diferentemente de Freud, judeu vienense da velha Europa, Lacan tinha suas referências no século XVIII francês, na cultura cató lica barroca, na filosofia alemã, na modernidade literária do século XX, na lógica formal, no estruturalismo, na poesia de Mallarmé. A.B.: É verdade, era um visionário, um personagem anterior ao mundo desfeito de hoje. Sempre achei simbó lico que ele morresse no início dos anos 1980, isto é, no momento em que o mundo inepto que é o nosso come çava a se desenvolver: o mundo do capitalismo moderno, da globalização selvagem, da financeirização ilimitada, do neoconservadorismo generalizado. P.M.: Chegamos, então, à atualidade de Lacan. Em quais áreas e quais assuntos o pensamento dele lhes parece mais 45
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
pertinente hoje? Se estivesse entre nós, contra quais fenôme nos ainda se levantaria? É.R.: O século XXI desde já é lacaniano. As derivas são as que ele previu, e o seu pensamento nos ajuda a combatê-las. Mesmo sendo alguém voltado para os prazeres, Lacan não preconizava o hedonismo cego que subs titui a ilusão na busca da verdade do desejo. Opunha-se a todos os tipos de fechamentos identitários, que negam sermos constituídos pela alteridade, opunha-se ao comportamentalismo e ao cognitivismo, que rebaixam o ho mem à sua naturalidade, reduzem-no ao ser biológico, ao corpo e ao cérebro. Mesmo adorando animais, Lacan sempre achou ridícula a ideia de um continuum absoluto entre homem e animal, como fazem hoje os adeptos da ecologia profunda e da etologia. Com a teoria do sujeito e do significante (a linguagem, a palavra), ele guardou uma cesura necessária entre o humano e o não humano, mesmo se mantendo darwiniano, é claro. Se ocultarmos no homem o próprio da linguagem e da subjetividade psíquica, abriremos caminho para o cientificismo fas cista: acha-se compreender o homem pela observação dos neurônios, tratam-se seus sofrimentos sem dar aten ção à sua palavra, enchendo-o de remédios de maneira 46
UM MESTRE, DOIS E N C O N T R O S
puramente mecânica. Onde se encontra o sujeito nisso tudo? O que se torna sua singularidade? É achincalhada, jogada de lado. A.B.: Lacan teria, efetivamente, criticado as terapias cognitivo-comportamentais debilóides, que fazem parte da própria doença. Teria se colocado contra a medicalização generalizada dos sintomas e contra o avanço da psicologia de feira que nos apresentam como o fino do fino do conhecimento do sujeito. Teria ridicularizado a onipotência da comunicação midiatizada em detrimento do saber. Teria visto o declínio inexorável do discurso universitário, pelo qual, aliás, já não tinha mesmo muito respeito. O nivelamento do sentido e a proliferação do semblant lhe causariam horror. Assim como a fetichização além dos limites, miserável, da segurança por aqueles que nos governam. Como disse Élisabeth, Lacan me parece um antídoto vital contra a estupidez angustiante que dia riamente nos invade. É.R.: Teria certamente alfinetado a volta dos programas ideológicos mais rasteiros: o populismo, o psicologismo, as recriminações baseadas na vitimização, a avaliação ge neralizada etc. 47
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NT E
P.M.: Não teria também ironizado a reativação do co munismo, pregado por alguns filósofos, entre os quais você, Alain Badiou? A.B.: Bem suspeita, essa ironia! Os que negam o comu nismo são típicos não tolos que erram a serviço dos pode rosos do momento. O comunismo é o contrário exato de uma utopia, é o verdadeiro nome do real como impossí vel. Ceder quanto ao comunismo ou quanto a qualquer outro nome possível de exceções emancipadoras é ceder quanto a qualquer outra forma de verdadeiro desejo po lítico. Lacan, sendo de fato um conservador esclarecido, achava melhor ceder do que se arriscar ao Terror. Mas se convenceria da miserabilidade do mundo contemporâ neo, achando que ele merecia... E.R.: ... uma boa palmada!
48
2
Pensar a desordem2
Trinta anos depois de sua morte, Lacan nunca esteve tão vivo. No mundo inteiro, seu pensa mento e a língua que o sustenta permitem avanços que não se limitam ao exclusivo campo da prática psicanalítica. Ele fabricou conceitos operatórios que ajudam a analisar a crise contemporânea e o mal-estar que se abatem sobre a civiliza ção ocidental. Antes de abordar essa modernidade de Lacan, vocês, Elisabeth Roudinesco e Alain Badiou, poderiam esbo çar um retrato pessoal dele? C h r i s t í n e G o êm É :
A l a in B a d io u : Evocar a figura de Lacan não se limita a
traçar o retrato de um grande pensador, significa também
2 Transcrição do debate na Bibliothèque Nationale de France, em 4 de outubro de 2011, com o tema “Lacan, 30 anos depois”, or ganizado por Jean-Louis Graton e dirigido por Christine Goémé, em parceria com a rádio France Culture e a revista Philosophie Magazine. Transcrição de Martin Duru, inteiramente revista e corrigida pelos autores.
49
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
voltar a um momento excepcional do pensamento e da ação no século XX. Desse ponto de vista, Lacan foi sem dúvida, um mestre. Sua palavra e seus escritos singulares tiveram uma espécie de ressonância, de eco extraordinaria mente extenso que vai muito além das fronteiras da psi canálise e do ato analítico como tal. Lacan foi igualmente um mestre, no sentido de ter sido imediata e violenta mente discutido. E foi, dessa forma, atacado porque a no vidade do que trazia se impunha de maneira brilhante e peremptória, bem como por ter criado escolas e se cercado de discípulos. Como se sabe, um discípulo, por definição, em geral se sente tentado a trair o mestre. Sempre achará ter meios para isso. O próprio Lacan era perfeitamente consciente desse fato: para ele, a prova ética fundamental que deve, necessariamente, enfrentar quem se encontra na posição de mestre é a de, um dia, ter de sofrer trai ção. De fato, ele foi abundantemente caluniado e traído, mais do que qualquer outro, no seu período histórico. E ainda hoje o é como também continuará sendo ama nhã. Nisso, ele pura e simplesmente se inscreve na li nhagem de Freud, que foi também bastante criticado e caluniado enquanto vivo. Para entender os ataques contra Lacan, é preciso re lembrar o contexto intelectual em que se enraizava seu 50
PENSAR A D ES OR DE M
pensamento. Na passagem dos anos 1950 para 1960, a conjuntura filosófica era dominada pelo conflito entre a fenomenología em declínio (Sartre, Merleau-Ponty) e o estruturalismo em plena ascensão (Lévi-Strauss, Althusser, Foucault e muitos mais). Entre essas duas correntes, Lacan definiu uma posição teórica absolutamente sin gular. De um lado, esclarecido pela experiência clínica e guiado pelo modelo da certeza científica, ele renovou o conceito de inconsciente como sistema de determina ção da experiência subjetiva. Por outro, porém, manteve, mesmo se dispondo a renová-la em profundidade, a no ção de sujeito, que era central na fenomenología — em Sartre, principalmente, que relaciona o sujeito a uma teoria da consciência e da liberdade. Lacan seguiu um caminho entre as duas vertentes, uma trilha bem particu lar: captou e adaptou a herança estruturalista, mostrando que o inconsciente, estruturado “como uma linguagem”, determina a constituição do sujeito; e, ao mesmo tempo, novamente estendeu o conceito de sujeito em toda a sua radicalidade, afirmando a possibilidade, para cada um, de se engajar num risco livre, de natureza ética. Um dos principais seminários de Lacan se intitula, não por acaso, A ética da psicanálise (1959-1960). Essa dimensão ética re cupera a afirmação, a reivindicação, pelo próprio sujeito, 51
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
da estrutura do seu desejo. O imperativo, retomando a célebre expressão lacaniana, é “não ceder de seu desejo”, expressão que ele dizia frequentemente, não devemos es quecer, que significa “cumprir o seu dever”. Assim, eu diria que Lacan foi um mestre, na medida em que se situou num ponto de convergência entre duas exigências: em primeiro lugar, por ter endossado, como homem do Iluminismo, a exigência de racionalidade, o ideal de cientificidade que nele se confunde com a sobe rania da estrutura e a busca, nunca desmentida, de for malização da experiência subjetiva. Em segundo lugar, por assumir a irredutibilidade do sujeito que configura seu próprio destino. E uma visão ao mesmo tempo re belde e dramática, bastante alimentada pelo teatro e, mais particularmente, pela tragédia grega, a que ele sempre se referia. É este, então, o retrato de Lacan que proponho, na parte que me toca: um homem do Iluminismo que encontrou a força do teatro. Lacan é evidentemente um mestre, pois estabeleceu uma ampla e nova funda mentação do pensamento freudiano, que interessa a toda a cultura, muito além da psicanálise. Mas o fato de ter sido psicanalista complica singularmente as coisas. É l is a b e t h
R o u d in e s c o :
52
PENSAR A D ES OR DEM
Seu pensamento e sua concepção do tratamento são hoje veiculados por clínicos que não o conheceram, alunos de uma geração de clínicos analisados por ele, que se dispersa ram depois da sua morte. De forma que herdaram, de ma neira transferencial, menos o pensamento de Lacan e mais a rivalidade que impera entre os diferentes intérpretes. E essa situação não deixa de ser perigosa. O risco consiste numa apropriação sectária do ensinamento. E a ameaça que pesa sobre a psicanálise de hoje, sobretudo para quem nada quer saber da história da disciplina e herda “de segunda mão” o ensinamento a que nos referi mos. Entre os filósofos e os pesquisadores em ciências hu manas também existem mestres, é claro, mas, no campo da psicanálise, a problemática da identificação e da trans ferência com relação à pessoa do mestre é essencial. Lacan analisou muitos clínicos que o têm como referência e se dispersaram em grupos rivais. A transmissão da herança se torna então muito complexa, para não dizer truncada. Colocando-se numa posição soberana, os psicanalistas assumiram um direito de visão e de propriedade exclu sivista sobre a obra dos fundadores — como se fossem os únicos capazes de compreender os textos canônicos e repercuti-los na prática. 53
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
Freud já foi objeto de tais apropriações ao longo do tempo. Para que seus arquivos fossem abertos ao público, depois de sua morte, foram necessários quase trinta anos. Atualmente, o mesmo problema se apresenta com relação a Lacan, mas com ainda maior intensidade, pelo fato de não haver uma comunidade verdadeiramente lacaniana, enquanto os herdeiros de Freud, através da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), de um jeito ou de outro conseguiram, depois do nazismo, se entender para consti tuir arquivos (Biblioteca do Congresso de Washington) e locais de memória (Museu Freud de Londres). O mesmo não se passa com Lacan: tudo está avulso e disperso. Por isso, parece-me indispensável que seu ensino seja laici zado, isto é, difundido fora dos exclusivos círculos psicanalíticos, da mesma maneira que Freud passou a ser estudado fora das exclusivas associações de psicanálise. Resumindo, Lacan deve deixar de ser preemptado pelos lacanianos. Reagindo agora ao que Alain disse, concordo total mente com a junção do pensamento racional e a reflexão sobre o teatro. Acrescento que, em Lacan, a orienta ção ou a aspiração ao trágico é uma forma de retorno a Freud, por ele reivindicada e efetuada. A referência aos gregos é sempre central na filosofia, mas, na psicanálise, 54
PENSAR A D ES OR DE M
é incontornável e se cristaliza em torno da tragédia. É impossível para quem trabalha sobre ou com a psica nálise não se confrontar incansavelmente com o trágico. O importante não é essa psicologia de balcão que é o complexo de Édipo, mas a reflexão sobre o trágico grego. Se Freud não houvesse tido a ideia genial, no fim do sé culo XIX, de remeter os pequenos negócios da família burguesa ocidental à tragédia grega — isto é, a um des tino inconsciente — , ele teria permanecido um psicó logo da neurose, o mesmo título que Pierre Janet. Desde então, cada verdadeiro pensador da psicanálise é obrigado a refazer esse mesmo gesto, assim como os filósofos são sempre obrigados, para pensar o presente, a rever as ori gens da filosofia. Com relação a isso, há uma diferença decisiva entre Freud e Lacan. Na genealogia dos Labdácidas, a famí lia mais trágica das dinastias gregas e que tanto inspirou Sófocles, Freud privilegiou Édipo rei, isto é, a história de um soberano convencido de seu esplendor e de sua in vulnerabilidade, tendo chegado ao ápice da glória e da sabedoria, até se tornar vítima da própria impetuosidade e húbris. E o que fez Lacan? Deu preferência a Edipo em Colono. Interessou-se pelos últimos momentos de Édipo, pela figura do velho despossuído de todo esplendor, já 55
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NT E
moribundo e que amaldiçoa sua descendência. O sen tido do trágico, então, difere, quando se vai de Freud a Lacan. Freud teorizou sobre o fracasso da onipotência da au toridade patriarcal. Ao se interessar por Moisés, em 1909, partindo da famosa estátua esculpida por Michelangelo para o túmulo de Júlio II, na igreja romana de San Pietro in Vincoli, ele ficou impressionado pela maneira como o profeta sublima a raiva e deixa de lançar as Tábuas dos Mandamentos contra o povo que voltara, durante a sua ausência, a adorar ídolos. Em seguida, valorizou a ideia de que o que fez a grandeza do primeiro monoteísmo, cuja origem ele atribuiu ao Egito, não foi o judaísmo (identitário), e sim a judeidade (universalizável), a capacidade de pensar, de se rebelar e de se abstrair da representação, da afetividade e da submissão: sem ídolo, sem imagem, com domínio de si e racionalidade. Para ele, isso era o contrário do cristianismo que veio depois, religião das massas e da emoção. Já Lacan se interessou pela autoridade irremediavel mente fragmentada. E se sentia mais fascinado pela re ligião católica romana, da qual conservou apenas duas figuras sempre conflitantes: o poder político, de um lado (poder da Igreja e dos papas), e o conhecimento místico, 56
PENSAR A D ES O R D E M
de outro (a fé pura e sem objeto até a autodestruição, en carnada pelas mulheres). Édipo em Colono, então, não é Edipo rei nem Moisés, mas a versão última do soberano aniquilado, que não conserva mais importância alguma. Nada mais tem de sublime em sua desgraça: não que es teja desfeito, ele nada é, já está morto. É este o trágico, segundo Lacan. De Antígona, entretanto, Freud nada fala, exceto para designar sua filha Anna, que aceitou o celibato para ser sua herdeira e seu ponto de apoio. Uma Antígona bem diferente ronda o pensamento lacaniano. Marcado pela leitura que Hegel fez desse personagem de Sófocles, Lacan enuncia o preceito de que nunca se deve ceder de seu desejo. Antígona, segundo Lacan, é uma mística: encarna essa obstinação, essa irredutibilidade do sujeito disposto a tudo para seguir suas próprias inclinações. A famosa oposição entre as leis do Estado e as leis não es critas da família — em nome das quais Antígona afronta os decretos do tio Creonte, para dar sepultura a seu irmão — não é o tema central que interessou Lacan. Para ele, Antígona é a própria instância do trágico. Companheira do soberano aniquilado, ela é a inscrição do impulso do sujeito em direção à morte, o que quer dizer o nome 57
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
do desejo inalienável. Ela exige um rito mortuário (dos funerais) para além de qualquer sepultura. É também mulher, o que mostra a pregnância, para náo dizer a pree minência, em Lacan, do polo feminino, enquanto o uni verso referencial de Freud é mais masculino. Uma última observação sobre o teatro: pessoalmente, Lacan era também um ator prodigioso, um intérprete excepcional. Seu seminário era puro teatro. Bem mais do que as aulas dadas, na mesma época, por Barthes ou Foucault. Lacan representava a todo tempo. Para ele, tudo é palavra e tinha muita dificuldade de passar para o escrito, que o aterrorizava. Todos que assistiram aos seus seminários passaram por uma experiência inesquecível. E pena, aliás, que não se tenha filmado tudo, para que as novas gerações possam se dar conta do seu talento, ence nando a si mesmo. C.G.: Tinha um humor extraordinário... É.R.: Com certeza, mas, insisto, não se deve esquecer a dimensão do trágico. Quando se lê ou se assiste aos poucos vídeos gravados, um grande sofrimento transpa rece. Lacan sofria da dificuldade de transmitir seu pen samento. Aquele homem do Iluminismo temia o tempo 58
PENSAR A D ES OR DE M
todo não estar sendo claro o bastante, não ser compreen dido. É verdade que a sua obra, que é difícil, pareceu her mética a alguns. Para finalizar esse momento lacaniano, minha desco berta do seu ensino foi posterior à de Alain. Pessoalmente, tenho uma admiração particular pelo Lacan estruturalista dos anos 1950-1965: do relatório de Roma e da Instância da letra, da teoria do significante, da aposta no cientifi cismo, seguindo as pegadas de Alexandre Koyré. Gosto também, como já disse, do Lacan do entreguerras, o fenomenólogo que frequentava Bataille e os surrealistas e começava a desconstruir os significantes da família oci dental. Em meu último livro, Lacan: a despeito de tudo e de todos, evoco o último Lacan, dos anos 1970, que segue até o fim na aventura da linguagem: um Lacan noturno, assombrado pela morte, pela transmissão de sua obra e que inverte sua tópica (simbólico, imaginário, real — SIR), colocando o real em posição mais importante para dar a entender o heterogêneo, o que escapa à simbolização, algo muito sombrio. Um vacilo da razão. C.G.: Para esquematizar, pode-se dizer que Lacan coloca, ao contrário de Freud, a absoluta primazia da linguagem como condição e trama do inconsciente. E Lacan se apresenta 59
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE
como aquele que leu Freud e fez um retorno à sua obra. 0 aparente paradoxo encobre urna clara diferença: entre o fundador da psicanálise, burguês vienense convencional', e Lacan, parisiense cosmopolita e provocador, há também uma diferença de estilo. Como vocês avaliam? A.B.: A questão do estilo literário de Lacan é, de fato, fundamental e entra, de maneira crucial, em sua identi dade. A prosa de Freud, escrita em bela língua clássica, é ao mesmo tempo densa e clara, em busca de uma ordem de exposição que siga o movimento real do pensamento. A estilística de Lacan, no entanto, por vários aspectos, pa rece mais próxima dos meandros do inconsciente: capta no enunciado o que, justamente, escapa a qualquer ordem reflexiva consciente. Existe urna magia na escrita lacaniana que sempre me impressionou e que tem a ver, pelo efeito que causa, com o fascínio exercido por certos poe tas modernos, como Mallarmé. A linguagem de Lacan se utiliza da seguinte astúcia: a escrita dá sempre mais o que pensar do que achamos ter compreendido — como se cada frase tivesse um resto, que escapa da compreensão unívoca. A coisa dita é tomada num dizer que ultrapassa seu imediatismo e não se esgota na captação teórica inicial. Lacan muitas vezes foi acusado, aliás, de cair na retórica, tanto 60
PENSAR A D ES OR DEM
para seduzir quanto para frustrar seus ouvintes e leitores. Na realidade, seu estilo mistura, de maneira notável, o labirinto sintáxico da língua e o elemento bem francês da sentença. De fato, Lacan engendrou fórmulas que se tornaram célebres: “Não há relação sexual”, “A mulher não existe”, “Os não tolos erram”, “Ali onde isso pensa, não estou” etc. Tais enunciados, que inscrevem seu autor na linhagem dos grandes moralistas franceses, estão en caixados num devir sinuoso que nos leva às aporias e às surpresas do sonho. A língua de Lacan é o lugar de um encontro, de uma fusão difícil e quase angustiante entre a narrativa onírica e toda a agudeza de expressão de que a língua francesa é capaz. Com genialidade, Lacan explo rou suas duas vertentes possíveis: de um lado, apresenta o brilho das sentenças claras que facilmente se fixam, sem demora, na memória; de outro, assume caminhos turvos de uma língua inapreensível, que se difrata com ecos in finitos e enigmáticos. Resumindo, é uma língua de psi canalista e mais até: uma língua que se confunde com o próprio movimento da psicanálise como tal. Na verdade, sem “patriotada” nem nacionalismo ufanista, é uma lín gua, acho, profundamente francesa. A distância com re lação a Freud, cujos pensamento e escrita são inseparáveis das fontes próprias do alemão, é visível. 61
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
Lacan se situa ora na altura do século XVII (La Fontaine, La Rochefoucauld), ora na altura do século XVIII e do barroco. A escrita romântica e positivista do século XIX permanece estranha a ele que, de fato, reata com certa ideia do espírito literário francês. Está por in teiro na história de sua língua materna e, aliás, não falava nenhuma outra. Mas ouvir ou ler Lacan é igualmente escutar de perto o inconsciente, muito mais do que em Freud. Lacan é o mímico, o ventríloquo do inconsciente. E isso se acentua nos últimos anos, quando ele inverte sua tópica (RSI em vez de SIR), tendo como referência Finnegans Wake de Joyce. Freud, por sua vez, é um romântico bem século XIX. Seus gostos literários são os dos eruditos letrados da época. Impermeável às vanguardas, ele se aproximava, em sua obra, da estética do romance, enquanto as senten ças dos moralistas franceses, de que Lacan gostava tanto, nada têm de romanesco. Para encontrar o romanesco à maneira do século XIX em Lacan, é preciso retornar não a seus escritos, mas à sua vida, tão cheia de peripécias tu multuadas. Que contraste com a existência relativamente banal de Freud! Note-se que ambos passaram pelo estado de guerra na Europa: Freud viu desabar o mundo antigo dos impérios centrais, em que ele próprio tinha origem, É .R .:
62
PENSAR A DESO RDEM
e Lacan vivenciou como devastação da Europa o triunfo do nazismo. No entanto, os dois pensadores mantiveram uma relação extremamente diferente com a escrita. Freud se assemelhava a Victor Hugo: escrevia diariamente, com desconcertante facilidade. Foi um incansável epistológrafo, tendo redigido mais de 20 mil cartas, das quais a metade foi preservada. Não se pode mais seriamente estudar a sua obra sem dar atenção a essa volumosa cor respondência. Em Lacan, ao contrário, a escrita era so frimento. Para ele, escrever sempre foi uma experiência trágica. Consequentemente, são dois homens que em nada se parecem. Mesmo assim, foi Lacan quem deu início na França, a partir dos anos 1950, a um tão fecundo re torno a Freud. O paradoxo impressiona. Lacan vinha da psiquiatria, tinha sido aluno de Gaétan Gatian de Clérambault e se interessava pela psicose e por tudo de que não gostava Freud. Mas, precisamente por estar tão longe do fundador da psicanálise — e totalmente infiel no plano intelectual — , pôde voltar à letra da sua obra, recusando-se a encontrá-lo pessoalmente, apesar de ter havido a possibilidade. Lacan fez esse retorno a Freud em um contexto his tórico nada favorável. Nos anos 1950, a comunidade 63
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
psicanalítica procurava “ultrapassar” e abandonar o Freud vienense, considerado obsoleto. Aliás, tal abandono era desejado por aqueles mesmos que haviam conhecido Freud e tinham sido obrigados a deixar a Europa por causa do nazismo, por serem judeus e conservarem a me mória de um mundo naufragado, pelo qual não se in teressavam mais, depois da difícil integração no mundo anglo-americano. O católico Lacan, de “cepa do chão francês”, rompido com a fé e com toda forma de patriotismo exagerado, entrou então em cena, proclamando o retorno à Viena. Mas que Viena era essa? Não a dos emigrados, mas uma Viena sonhada, reinventada pela estrutura e pelo signifi cante. E em Viena, aliás, numa conferência de 1955 (“A coisa freudiana”), Lacan inventou a ideia de a psicaná lise ser o equivalente a uma epidemia (a peste), capaz de subverter as consciências. Lacan não conheceu a Europa dos impérios centrais: é francês e parisiense de coração. E essa a proeza: aquele que efetuou uma refundição sem precedentes da obra freudiana, que levou adiante o que chamei “a tomada ortodoxa do freudismo”, não era um homem do serralho nem um emigrado da Viena histó rica. Era alguém de fora, um sujeito quase excluído da saga freudiana. Ninguém esperava Lacan — Freud muito 64
PENSAR A D ES OR DEM
menos. Entende-se, então, por que Lacan muito rapida mente provocou os ataques das instâncias psicanalíticas internacionais, até ser excluído. Era visto como um estra nho ameaçador, um herético em potencial. Não aparecia em lugar algum na genealogia oficial do freudismo, não se incluía nas origens vienenses nem nas do continente norte-americano. C.G.: Você, Alain Badiou, concorda com o que acaba de dizer Elisabetb Roudinesco? Lacan conseguiu serfiel a Freud justamente por nada se parecer com ele? A.B.: É inegável. Mas essa fidelidade infiel de Lacan com relação a Freud não é um caso único na história do pensamento. Com frequência, uma invenção intelectual pode ser bruscamente desdobrada e enaltecida por al guma intervenção externa. Pessoalmente, observaria que, dentre os elementos “estranhos” que Lacan utilizou para refundir a psicanálise freudiana, coube à filosofia um pa pel capital — e isso, naturalmente, me toca de perto... A filosofia foi um dos maiores instrumentos da renova ção lacaniana. Ao longo dos seus seminários, de fato, o que encontramos? Platão, Spinoza, Hegel, Kierkegaard, Heidegger, Wittgenstein e muitos outros. O psicanalista 65
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
incessantemente convocou filósofos, e quase seria pos sível escrever uma história da filosofia segundo Lacan. Uma história, sem dúvida, estranha e muito interessante. A cada vez, os filósofos foram de certa maneira infiltra dos, retraduzidos e submetidos a uma disciplina que não era exatamente a deles. Aliás, tornaram-se possíveis per sonagens conceituais da própria cadeia analítica. Vê-se isso particularmente com Sócrates, um dos interlocutores fa voritos de Lacan. C.G.: Pode-se dizer o mesmo com relação a Platão, que Lacan chegou a dizer que era lacaniano... A.B.: De fato! Ele retrospectivamente “lacanizou” mui tos filósofos! Mas fez isso com um talento particular. Ao contrário do que se pode pensar, Lacan foi sempre bastante literal, fiel aos textos que percorria. Suas inter pretações, às vezes ousadas, de forma nenhuma eram fantasistas ou abusivamente manipuladas a seu favor. Ele caminhava livre pelo corpus filosófico, oscilando entre a incorporação plena e a exclusão radical. Visto que Lacan muitas vezes também se disse antifilósofo. Peguemos sua leitura de Platão: ele às vezes retomou totalmente por conta própria dispositivos platônicos. Por exemplo, 66
PENSAR A DESOR DE M
em ...ou pior, integrou em seu pensamento pessoal par tes inteiras do diálogo Parmênides. Em outras ocasiões, zombou duramente de Platão, como quando reduziu o projeto filosófico e político de A república a uma criação de cavalos obedientes... Lacan nem sempre foi simpático com os filósofos, com ataques eventualmente violentos ao extremo. Lendo esse estranho antifilósofo atraído por tantos filósofos, acabei achando que os filósofos da minha ge ração não podiam deixar de aceitar um confronto real com Lacan. Não se trata de apenas apreciar a relação de exterioridade da filosofia frente à psicanálise, mas sim de um questionamento mais íntimo e secreto: como nós, filósofos, podemos e devemos nos situar com relação a esse uso lacaniano da filosofia e do tema da antifilosofia? Em que medida nossas concepções da disciplina filosófica foram afetadas, abaladas pela convocação ambivalente de Lacan? Para mim, sem dúvida, filósofo contemporâneo nenhum pode ser considerado importante se não se con frontou, num momento ou noutro de sua trajetória, à intepretação lacaniana da filosofia. Em todo caso, é altamente significativo que a filosofia te nha a tal ponto servido a Lacan para reorganizar e até mu dar o rumo do modelo freudiano, vienense, da psicanálise. 67
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
Ao mesmo tempo, isso também criou e estimulou uma forma de rivalidade velada entre as duas disciplinas. Lacan carregava em si esse conflito ora latente ora manifesto: às vezes era personagem do cenário filosófico, outras vezes o abandonava, decompondo a filosofia num espaço intei ramente novo, que era o da análise, da forma como ele a concebia. Como um mágico, Lacan realçava apenas um ou outro fragmento da história da filosofia para fazê-lo desaparecer sob a capa de sua criação psicanalítica. É.R.: É um novo paradoxo. Lacan fez esse gesto muito forte que consistiu em levar a filosofia para o campo da psicanálise. No entanto, sua relação com a filosofia era a de um embate de morte. Alimentava-se de filosofia para mais facilmente entrar em conflito com ela, num per manente corpo a corpo. Freud de forma alguma tinha essa posição com relação à filosofia. E isso tem sua im portância: na França, vários intelectuais dos anos 1960 liam Freud depois de terem lido Lacan. Liam Freud à luz da refundição lacaniana. Quando me dediquei à História da psicanálise na França, precisei me “deslacanizar” para redescobrir um Freud original. Fora da França, conheço muitos psicanalistas freudianos e muitos comentadores da obra freudiana que têm enorme dificuldade para ler 68
PENSAR A D ES OR DE M
a obra de Lacan: é o caso, por exemplo, de Yoseg Hayim Yerushalmi e de Cari Schorske. No mundo anglo-saxão, de fato, estuda-se Lacan sobretudo nos departamentos de letras e de antropologia (estudos culturais e de gênero). Nesse mundo, Lacan é visto como um filósofo, como um antropólogo da cultura ou, ainda, como um teórico da literatura, e pouquíssimo como psicanalista! C.G.: Como qualificariam, em seguida, as relações dele com os escritores? Sua obra é repleta de referências literárias, que vão de Sade a Joyce. Temos o mesmo esquema que com os filósofos, uma relação de apropriação e, ao mesmo tempo, de rejeição? E.R.: Qualquer que fosse o autor de que falasse, Lacan punha em ação um processo de incorporação: achava que o outro enunciava o mesmo que ele, ao mesmo tempo. Com frequência, achou que os pensadores ou escrito res que o antecederam anteciparam suas próprias refle xões. Como vimos, chegou a afirmar, não sem humor, que Platão era já lacaniano. Essa assimilação ocasionou, em alguns seguidores, discursos cômicos. Acharam, por exemplo, que Freud era lacaniano por antecipação e que os conceitos de Lacan já se encontravam em sua obra.
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
Com relação a seus contemporâneos, Lacan se sen tia “plagiado”. Essa marca podia se tornar patológica: em cartas, o tempo todo se dizia enganado, que tinha suas ideias roubadas, enquanto ele próprio comentava longamente e se apropriava de desenvolvimentos intei ros da obra de alguns filósofos. Tal atitude só podia gerar conflitos. Evoquemos, por exemplo, suas relações com Jacques Derrida, leitor atento, escrupuloso e implacável da obra lacaniana. Pois bem, Lacan não o suportava: dizia que Derrida roubava suas ideias. Ou, então, estimava que certos escritores, como Marguerite Duras, por exemplo, apresentavam uma ideia que se intercambiava com a dele, pelo modo “eu é o outro”, “o outro sou eu”, “ele ou ela faz como eu” etc. No que diz respeito aos escritores que o marcaram, Lacan mencionava, na verdade, muito pouco os surrea listas, com os quais teve relações bem próximas. É claro que o gosto pessoal o encaminhava mais na direção das experiências poéticas e literárias de Mallarmé e de Joyce. Ele se sentiu realmente fascinado pela novidade da língua de Ulisses e de Finnegans Wake e a incorporou, como já mencionei. A meu ver, no entanto, as relações dele com a filosofia e com o teatro — os trágicos gregos, mas tam bém Shakespeare e Claudel — foram mais fecundas. 70
PENSAR A DESOR DE M
A.B.: Falamos de filosofia, de literatura e de teatro, mas não se deve esquecer o papel essencial que tiveram para Lacan as ciências formais e as figuras lógicas da for malização contemporânea. Num primeiro momento, ele se apoiou na linguística estrutural de Roman Jakobson. Num segundo momento, voltou-se para a lógica matematizada de Boole e de Frege. Num terceiro momento, enfim, que corresponde ao dos seminários dos anos 1970, integrou a seu dispositivo a teoria matemática dos conjun tos e, com a exploração dos nós borromeanos, a topologia e a álgebra geornetrizada. Existe, consequentemente, uma história muito rica de convívio do Lacan com os tipos mais modernos de formalização no sentido estrito. Ele não se limitou, o que já seria digno de elogio, a incorpo rar a dramaturgia trágica, a grande poesia mallarmeana, a explosão joyceana da linguagem e a herança conceituai vienense. Os ramos do saber lacaniano atingiram tam bém as mais áridas disciplinas formais. Para que precisaria delas? Acho que o ponto-chave é o seguinte: como sublinhei, Lacan foi quem tentou tornar compatíveis a tragédia subjetiva — na trilha do romantismo e do existencialismo sartriano — e o estruturalismo. E isso com um duplo objetivo: de um lado, afirmar a irredutibilidade do sujeito (com a figura, ao 71
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENTE
mesmo tempo, dramática e ética de Antígona), e, de ou tro, dispor essa mesma irredutibiíidade num universo es trutural transmissível. O último Lacan se virou para a matemática e a topologia para criar seu conceito de “ma terna”. E o materna é precisamente esse espaço formal em que se pode projetar e transmitir a experiência subjetiva do tratamento, que se remete então a uma matriz racio nal, científica, passível de transmissão sem resto. No en tanto, tal transmissão não pode, na realidade, recobrir a totalidade da experiência subjetiva, pois o sujeito, como vimos, é e permanecerá irredutível. Do sujeito, há sem pre algo que escapa à sua formalização, à sua captação lógico-matemática, in fine, à sua transmissão pelo saber formal. Em que sentido? Pelo fato de o sujeito, para o último Lacan, estar inextricavelmente ligado ao real. O real, em seu teor conceituai lacaniano, é o que resiste absolutamente à simbolização, que pode se efetuar por meio da matemática, da lógica e da topologia. Esse tema é recorrente: o ponto real do sujeito é não simbolizável. Lacan, por conseguinte, foi o mais longe possível na for malização para experimentar o impasse fundamental. Em determinado momento, a formalização integral deve se interromper, por não funcionar mais sobre aquilo que 72
PENSAR A D ES OR DE M
pretendia apreender. É o momento em que se atinge o ponto real do sujeito. Para mim, esta é uma das ações mais vigorosas do pen samento lacaniano, que igualmente repercute em sua es crita: empurrar, estender a formalização até que surja algo que a desmonte, que a desate. Donde a figura magnífica do nó, no Lacan tardio: o nó é aquilo que é apertado e, igualmente, se desfaz. E esse ponto real em que o fazer e o desfazer são praticamente indiscerníveis, idênticos. Para mim, com o uso que fez da teoria dos nós, Lacan ofereceu a seu público já desnorteado a última metáfora do seu pensamento inteiro Nesse ponto, porém, sei que Élisabeth e eu não concordamos... É.R.: Considero a última etapa do percurso dele edi ficante. Nos últimos seminários, Lacan caiu em certo delírio especulativo, obstinando-se a atar e desatar seus nós. Os matemáticos com quem trabalhou, Pierre Soury, Michel Thomé ou ainda Jean-Michel Vappereau, parti ciparam dessa aventura, que deixou muitos traços: dese nhos coloridos com anéis e referências. Em Lacan, essa aventura acompanhou o desaparecimento progressivo da palavra e do dizer. No fim da vida, ele se tornou não afásico, mas praticamente mudo, apesar de multiplicar 73
jA CQ UES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
ao infinito os neologismos. Era fascinante ver aquele homem desfazer seu pensamento em público. Foi um gesto inaudito, fundamentalmente subversivo, como uma última provocação, um pontapé final na suposta onipotência teórica. Lacan se debateu com suas aporias e afundou no desespero: temia a morte mas, ao mesmo tempo, a afrontava. Pessoalmente, não creio que possa ser imitado nesse ponto, como alguns dos seus epígonos o fa zem. A formalização excessiva e seus impasses trazem algo para a prática analítica? Digamos que não acredito, pois consistiram sobretudo em dissolver o tempo das sessões, em nome de um formalismo cruel e brutal, com que não concordo e que tende a desumanizar o tratamento. Mas deixemos a questão em aberto. Não nego que o último Lacan tenha sido heroico até em sua aflição final, muito pelo contrário. Mas não acho que essa busca final tenha trazido uma renovação da clínica. C.G.: A atitude lacaniana não foi importante, também, por ter barrado o caminho à psicologização do sujeito? E.R.: Sim. A rejeição da psicologia foi uma constante em Lacan, que tinha um sacrossanto horror a essa disci plina. Na época, não era o único. Essa aversão era muito 74
PENSAR A D ES OR DEM
comum na minha geração, o que foi bom. Mas continua atual a célebre crítica de Georges Canguilhem, em 1956, na conferência “O que é a psicologia?”: “Quando saímos da Sorbonne pela Rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer; se subirmos, nos aproximaremos do Panthéon, onde se conservam alguns grandes homens, mas se des cermos, com certeza nos encaminharemos à policia de Paris.”* E até mais atual do que à época, já que quase todos os psicanalistas da nova geração foram obrigados a seguir faculdade de psicologia, pois é o que dá acesso às instituições oficiais de tratamento. E isso é muito proble mático, por causa da exterioridade crítica da psicanálise, com relação à psicologia — o que não é o caso, diga-se de passagem, com a psiquiatria. A formação dos psicanalis tas é o ponto sensível decisivo para o futuro. O retorno de Lacan a Freud serve aqui de guia: para ele, a psicanálise era precisamente uma antipsicologia. Lacan desprezava a escola americana da Psicologia do Ego, polarizada no ego. Queria que se desse mais atenção ao * A frase inteira, que termina de maneira bem-humorada a confe rência, como informação que a filosofia poderia dar à psicologia, é: “Diga a sua tendência para que eu saiba quem você é [...]. Quando saímos da Rua Saint-Jacques [...].” (N.T.)
75
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
inconsciente, ao real, para evitar os obstáculos da psicologização da existência, que não é melhor do que a do mesticação comportamentalista das consciências. Não por acaso, ele cuidadosamente evitou dissertar sobre o complexo de Édipo, que podia também gerar rasas con siderações sobre os conflitos familiares. Nesse ponto, Deleuze tinha razão em sua crítica da edipização da sub jetividade. C.G.: Insistindo ainda no último Lacan, sente-se que ele o agrada muito, Alain Badiou... A.B.: De fato. Mas não apenas por ele ter recorrido às ciências formais, apoiando-se sobretudo na lógica e na topologia, como mencionei, mas também por não po der deixar de ver nele, como Elisabeth, aliás, Édipo em Colono. É preciso voltar e insistir nesse ponto: Édipo rei não agradava tanto a Lacan, que não se reconhecia na fi gura do soberano iludido. Em contrapartida, era possível imaginar-se como Édipo em Colono, isto é, na situação de um homem que desata por conta própria o nó de sua existência e impõe a quem quiser ouvir esse desenlace fi nal. É claro, sob muitos aspectos, é uma postura obscura, espectral. Mas que realça e condensa a tragédia do sujeito. 76
PENSAR A D ES OR DEM
Nunca ceder quanto ao seu desejo é também poder e sa ber desfazer o que se achava ter feito e firmado de forma certeira. O último Lacan é a evidência de uma aborda gem difícil, mas que, com isso, adquire uma envergadura, uma estatura excepcional. É um dos motivos pelo qual a morte dele me abalou como um acontecimento totalmente particular. Que os mestres devam um dia morrer todos sabemos. No entanto, à morte de Lacan se acrescenta uma aura singular, por esta ressoar sobre sua obra. É uma morte à imagem do seu pensamento tardio, que se apresenta sob os auspícios de Édipo em Colono, com a figura de um velho que desapa rece e lega ao conjunto do mundo o enigma insolúvel do seu desaparecimento. Lacan, se posso dizer assim, conse guiu esta façanha: o mutismo dos últimos anos e a morte são parte de seu legado enigmático. Trinta anos depois, o mistério Lacan permanece. A relação com sua obra não consegue se estabilizar, mesmo que se reconheça nele um mestre. Nunca deixaremos de nos interrogar sobre esse homem, esse pensamento. De que realmente se tratava, no fundo? De psicanálise? Evidentemente. De filosofia? Em certo sentido. De escrita contemporânea, de aven tura da linguagem? É claro. De dramaturgia subjetiva? Também. De que mais? Não sobra ainda algo insondável? 77
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
Lacan foi, é e continuará sendo sempre um enigma, um autor impossível de se catalogar, de se decifrar integral mente. Sua multiplicidade imanente desconcerta de ma neira inexorável, tanto ontem quanto hoje. E.R.: Concordo plenamente. No fim da vida, Lacan se transformou, fisicamente, em Edipo em Colono, pela maneira de andar e pelos gestos. Entrou num gigantesco processo de desiquilíbrio: deterioração das faculdades fí sicas e do seu raciocínio, dissolução também da Ecole que ele fundou e mantinha viva. Lembro-me perfeitamente das sessões do seminário em que ele parou de falar. Foram momentos comoventes, dos quais certas pessoas, mais tarde, zombaram de forma detestável. Fíavia, naquela ló gica de manifestação, algo de surrealista. Lacan não falava mais, apenas mostrava e se revelava na decomposição da sua própria linguagem. A.B.: O gesto é surrealista, de fato, mas também muito próximo de Wittgenstein — outra incorporação filosófica. Todos conhecem o célebre aforisma que fecha Tractatus logico-philosophicus\ “O que não se pode dizer, deve-se calar.” Se o real for não simbolizável, ele é, no fim das contas, aquilo de que não se pode falar, devendo 78
PENSAR A DES OR DE M
ser calado. Porém, ainda numa perspectiva wittgensteiniana, calar implica também ser preciso, antes, indicar. Deve-se apontar aquilo sobre o qual é preciso manter si lêncio. Imagino o último Lacan como alguém que conti nua indicando com o dedo um real indizível. Só que, no Hm, não se podia mais saber o que esse gesto designava e no que implicava realmente. Legou-nos uma espécie de enigma, como a própria morte. C.G.: Em setembro de 2011, saiu pela Editions du Seuil o Seminário 19, do período 1971-1972, que se intitula ... ou pior. Lacan abre o texto comentando o título, com essa marca de humor que chama a atenção do leitor: “Talvez alguns de vocês tenham entendido. ...o u pior é, em suma, o que se pode fazer. ”No fim da introdução, ele acrescenta: “Meu título sublinha a importância desse lugar vazio e de monstra igualmente ser a única maneira de se dizer algo com a ajuda da linguagem. ”Algum comentário sobre esse título e esse Seminário em particular, Alain Badiou? A.B.: Esse título estranho, ... ou pior, introduz um claro suspense com essa pontuação. Mas a suspensão também implica o que vem como real. O sintagma com pleto, a sentença inteira é: “não há relação sexual... ou 79
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
pior.” Trata-se, então, do que é pior do que a negativa. É interessante, pois Lacan, desde o começo, sempre pro curou desentocar as figuras, as manifestações imaginárias da realidade. De certa maneira, o pior sobrevêm quando, no lugar e em vez de um vazio, de um não ser fundamen tal, impõe-se pela força a presença de um ídolo. Também aprecio muito os primeiros seminários de Lacan, por motivos ao mesmo tempo teóricos e estilísticos — ele demonstra neles uma serenidade que será genialmente de sarrumada em seguida. No Seminário inaugural, Os escritos técnicos de Freud, há essa interrogação que chama a aten ção: os tratamentos não deviam se concluir com enun ciados sobre justiça e coragem, no melhor estilo antigo? É como uma espécie de declaração inicial, um conden sado da missão que Lacan apontava para a psicanálise e, indo mais além, para qualquer esforço intelectual: nunca o vazio original deve ser preenchido por um ícone; nunca o abismo primordial deve ser fechado por uma criação do imaginário. Com a maneira cortante de sempre, Lacan certa vez disse que a filosofia nada fez além de tapar o furo da política. Não é muito simpático para os filóso fos! Mas entendo perfeitamente o que ele quis dizer. De modo geral, mais vale cavar no pensamento um novo furo do que tapar outro com um edredom. Nos dias de 80
PENSAR A DESOR DE M
hoje, a chamada moral dos direitos humanos e a palavra de ordem do retorno a Kant são esses tais edredons. Se o que, estranhamente, foi chamado “nova filosofia” fosse realmente filosofia, coisa de que duvido, a sentença de Lacan se justificaria plenamente. E o exemplo preciso de uma escola de pretensos filósofos que, de maneira entu siasmada, se dedicou a tapar o furo da política! É.R.: A frase mostra a violência com que ele eventual mente ia contra a filosofia ou a política em geral. ... ou pior é, de fato, um estranho seminário, pois Lacan fala da abjeção, do UM, da impossibilidade de relação sexual, sempre jogando com a língua: ou pior se escreve também sus...piro.* Há um capítulo que remete às formulações sobre o amor: “Peço que recuse o que ofereço, pois não é isso.” O que faz lembrar o famoso “amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. Ou seja, Lacan com isso se dedica a novas construções lógicas, subver tendo a ordem simbólica para avançar em direção ao real. Entende-se aí, como disse Alain, essa ideia que é muito forte nele de fazer com que apareça um vazio que não se * ou pire s’écrit aussi s’...oupir. Homófonos em francês. (N.T.)
81
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
pode preencher. E isso aconteceu no momento em que ele se tornou uma espécie de ídolo para seus discípulos. Ele desmanchou o que havia construído para se dirigir ao pior, buscando mostrar que o homem moderno, o ho mem da Ciência, pode tender ao pior, de tanto que é impossível a relação entre dois sujeitos. Em oposição ao simbólico, Lacan coloca o real; opondo-se ao desejo, o gozo; e contra qualquer relação que se pretenda fusionai, a impossibilidade de relação: oferece-se o que não se tem e que o outro não quer etc. A existência, então, é em si uma tragédia. Há nesse pessimismo terrível do último Lacan algo que evoca o pior da história do século XX: a ruptura de Auschwitz. Lacan realmente viu, no extermínio dos judeus da Europa, o “pior”. Interpretou-o pelo ângulo do desencadeamento da pulsão de morte. Mas não reto mou a tese desse acontecimento ter marcado uma cesura impensável para a filosofia. Também não disse se tratar de um horror não humano que ninguém poderia inter pretar. Pelo contrário, afirmou que apenas a psicanálise poderia contribuir para pensar esse acontecimento, gra ças à leitura do último Freud. Por duas vezes ele mobili zou o significante do extermínio maior como elemento 82
PENSAR A DESOR DE M
fundador de uma nova abordagem do inconsciente. A primeira vez em 1964, no momento da fundação da Ecole Freudienne de París (EFP), quando, no seminário Os quatro conceitosfundamentais da psicanálise, ele evocou “o Holocausto”, propondo tornar sua escola o lugar de renovação do pensamento freudiano, diante da esclerose das sociedades psicanalíticas. A segunda vez em 1967, na “Proposição de 9 de outubro” (primeira versão), quando procurou introduzir o procedimento do passe na forma ção dos psicanalistas. Naquela ocasião, ele sustentou que a ÍPA serviu de refúgio para psicanalistas perseguidos pelo nazismo, logo acrescentando que ela se tornara, de pois, um império segregante. E afirmou que, frente a um mundo bárbaro — do cientificismo e da normalização dos sujeitos pela sociedade de massa — , os valores do universalismo freudiano deveriam ser relançados. Lembremos que a noção de pulsão de morte gerou in tensos debates na história do movimento psicanalítico, entre detratores (americanos, na maioria) e simpatizantes (europeus). Freud a introduziu em 1920, a título de hi pótese, em Além do princípio do prazer, texto especulativo dos mais surpreendentes e que o levou a certo pessimismo, na medida, aliás, em que a Europa estava sendo devastada 83
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
pela chamada peste brune. O “mundo de ontem”, o mundo da velha Europa freudiana, progressivamente se turvava. E em Moisés e o monoteísmo (1939), verdadeiro testamento deixado à posteridade, Freud se pôs em busca da essência do mal e afirmou, como hipótese surpreen dente, que o sentimento de judeidade se transmite no in consciente, sendo, dessa forma, insubmersível, para além do próprio judaísmo. Logo, segundo ele, nunca se dará cabo do antissemitismo, que é seu corolário, inclusive no ódio judeu por si mesmo. Que audácia! Compreende-se que alguns psicanalistas tenham se sentido pouco à vontade com esse último Freud e preferido voltar para as obras mais clínicas. Justamente esse Freud interessa muito os filósofos, os antropólogos e os historiadores hoje em dia. E serviu como modelo lógico para Lacan, que, também, acabou lançando um desafio especulativo ao mundo moderno, com RSI. No último Lacan, o real se afirma e se emancipa: é o indizível, o ino minável, a loucura. Tomando seriamente essa reviravolta revela-se a progressão de Lacan rumo à dissolução de si mesmo e de sua escola. Esse último Lacan não acredita em progresso, em mudança ou em Revolução. Ele, ho mem da ciência, suntuoso racionalista, foi se tornando, 84
PENSAR A DES OR DE M
ao longo dos anos, um cético assumido. E a sua herança, com isso, ficando ainda mais indecidível... A.B.: Talvez houvesse nele, também, certa forma de romantismo disfarçado, que surge em todo clássico deca dente. E.R.: Concordo, e por isso comparei esse último Lacan a Balthazar Claès, o personagem de Balzac que, nO fim da vida, sacrifica tudo por paixão pela alquimia e, na hora de morrer, tem uma iluminação que ele não con segue legar à ciência. E deixa a vida sem ter podido dar resposta à pergunta que o atormentava: “Sou obstinado, desapareço”, disse Lacan, lúcido a seu próprio respeito, até o fim, após meses de obscurecimento. Mas não é um testamento. Ao contrário de Freud, Lacan nada deixou de herança. Desfez o que edificou enlaçando seus nós e pedaços de barbante. E por isso a herança lacaniana está em perigo, muito mais do que a de Freud: os psica nalistas do primeiro círculo lacaniano receberam de he rança apenas o nada, receberam a dissolução... Aliás, eles constantemente reivindicam o “trabalho da dissolução”, como se fosse um conceito maior. Tenho a impressão de 85
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
ser necessário retomar a obra de Lacan fora da psicanálise: é a única maneira de ela sobreviver. C.G.: Para concluir, gostaria de saber em que medida, segundo vocês, Lacan é um pensador útilpara a compreensão de nossa época. A.B.: Ele continua sendo um mestre decisivo por moti vos da mais alta importância: a incerteza, a desorientação e o espectro da crise permanente assombram o mundo contemporâneo. E Lacan é um grande pensador da de sordem. De modo mais amplo, pode-se até definir a psi canálise como um entendimento ordenado da desordem subjetiva. Nesse ponto, ela se situa na proximidade do marxismo, que igualmente visa a inteligibilidade de uma existência coletiva fundada na anarquia violenta e nas não apaziguáveis e vorazes contradições que constituem a desordem do capitalismo. Se pensarmos na crise atual, Lacan permanecerá essencial, pois tenta retomar, dentro da desordem, uma ordem imanente, um enquadramento referencial que se remete ao horizonte do simbólico. Se extrapolarmos a partir do pensamento lacaniano, pode remos dizer que a crise do mundo contemporâneo é uma crise (do) simbólica(o). Com isso, as categorias lacanianas 86
PENSAR A D ES OR DE M
podem ser mobilizadas para a compreensão, a partir de novas bases, de toda uma série de fenômenos: o declínio das hierarquias herdadas, a onipresença do dinheiro, a circulação constantemente forçada e vã de todas as coi sas etc. Ao mesmo tempo, o imperativo ético que consiste em não ceder de seu desejo mantém impressionante atuali dade. De fato, numa configuração de crise, podemos nos sentir arrastados, presos à inexorabilidade de um imediatismo confuso. Se quisermos resistir, no sentido forte do termo, a essa errância, precisaremos ter a firme vontade de não nos deixar submergir, de não nos entregar cega mente à deriva — de não ceder de nosso desejo. O que Lacan traz hoje em dia é, por conseguinte, duplamente fundamental: de um lado, permite que se adquira uma compreensão estrutural nítida da crise en quanto crise (do) simbólica(o); por outro, serve para afir mar a irredutibilidade do sujeito desejante enquanto tal. É.R.: Na linha do que Alain acaba de dizer, pessoal mente vejo em Lacan uma arma de subversão contra o sistema capitalista atual: esse capitalismo financeiro, desumanizado, sem nação nem sujeito, numa deriva incontrolável. Inspirar-se em Lacan contra essa loucura pode 87
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
propagar a desordem na ordem. A leitura de “Kant com Sade” (1963), texto paradigmático que é um ponto de virada na historia, comprova isso. Associar o imperativo categórico ao imperativo do gozo, para mostrar que sao duas faces da mesma problemática, é algo que permite a indignação inteligente contra as duas faces da sociedade contemporânea: o cientificismo e o obscurantismo. No mundo anglófono, filósofos como Slavoj Zizek ou Judith Butler se referem a um Lacan quase “feminista” ou anticapitalista. Na França, bom número de psicana listas — não todos, felizmente — tende a limitar Lacan a alguns jogos de palavras, num jargão repetitivo, e ob servam o mundo a partir das suas poltronas e dos casos clínicos de que tratam: narram, de certa maneira, casos bem “lacanianos” e isso, na maioria das vezes, gera li teratura ruim. Além disso, fazem de Lacan o arauto de valores passadistas. Instituem, dessa forma, o “Nome do pai” como slogan parado no tempo, encarnação de uma “lei simbólica” que serve para proteger a sociedade contra a proliferação de “mães malvadas”, acusadas de fusionar com os filhos, desrespeitando o “complexo de Edipo”. Criticam a sociedade moderna, mas querem se manter politicamente “neutros”. Nem de direita, nem de esquerda, nem de centro.
PEN SAR A DESOR DE M
Condenam, com isso, não o cientificismo, mas a ciência — as reproduções medicamente assistidas, por exemplo — , e também os casais homossexuais, as mães solteiras, as mães de crianças autistas, consideradas ex cessivamente “fusionais” etc. Por que não imaginar, ama nhã, psicanalistas criticando o divórcio ou o adultério, em nome do “bem dos filhos” e do equilíbrio necessário no seio de uma fratría? E estranho, no fim das contas, essa tentação de transformar Lacan — pensador barroco e libertino, conservador esclarecido — numa espécie de grande senhor de costumes um pouco canalhas, dotado de bengala fálica. Não é o Lacan que prefiro. Creio ser necessária uma revolução na França para mudar essa vi são. Resumindo: não ao Lacan reacionário e sim ao Lacan subversivo! C.G.: Agradeço as análises e as tomadas de posição. A plateia deseja dizer alguma coisa, fazer alguma observa ção ou perguntas a Alain Badiou e Elisabeth Roudinesco? Alguém na sala: Gostaria de saber qual é, para vocês, a contribuição de Lacan à questão da existência. Em que ele pode, hoje, ajudar na compreensão das nossas existências con cretas e, mais geralmente, no sentido da vida? Concordo que 89
JA CQ UES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
os conceitos de Lacan sejam subversivos, mas, para se ter uma ideia a respeito, é preciso entrar em seu sistema e nessa lin guagem fechada em si mesma. Pode ser que, ¿lado essefecha mento, o ensinamento dele de nada sirva, do ponto de vista da existência. A.B.: O ponto que me parece problemático na sua pergunta é o de saber o que exatamente você entende por existência. Durante o debate, falou-se da tensão que existe, em Lacan, entre a ordem simbólica, de um lado, e o prin cípio da irredutibilidade subjetiva, de outro. Quando se evoca essa questão, de que se fala senão da existência pro priamente? Além disso, de forma alguma concordo com o que você disse: a linguagem de Lacan absolutamente se apresenta fechada em si mesma. Muito pelo contrário, é furada, repleta de pontos e de linhas de fuga. E como um labirinto que inclui suas próprias portas de saída, suas possibilidades de evasão. No que me concerne, nunca li Lacan com essa sensação de fechamento. E menos ainda se deve falar de sistema, com relação a ele. É um pen samento em camadas, em estratos com ordenação nada sistêmica. Lacan põe em circulação e torna manuseável — essa é a sua utilidade — toda uma série de noções ao mesmo tempo complexas e singulares, ora dispersas ora 90
PENSAR A D ES OR DEM
conectadas. Quem lê está livre para tomá-las como tais ou para uni-las. Tem liberdade de passar de um estrato a outro. Lacan autorizou uma liberdade de uso em relação ao que inventou. Élisabeth e eu mostramos as maneiras como nos servimos do ensino dele. Lacan nos foi útil por sua compreensão do ser, do sujeito, do que existe. E não vejo diferença entre o pensamento do que existe e a exis tência. No fundo, sua pergunta tem com fundamento fi losófico uma oposição entre o pensamento (fechado, em Lacan, pelo que sugeriu) e a existência. Tal oposição me parece totalmente artificial. Alguém na sala: Lacan fez a psicanálise freudiana evo luir. Vocês diriam que, desde que morreu, a psicanálisefran cesa continuou a progredir? Modernizou-se, no sentido nobre do termo? E.R.: Acho que a situação atual do movimento psicanalítico na França confirma o fim da exceção francesa. Lacan encarnou essa exceção e, hoje, os psicanalistas — não apenas os lacanianos — estão num momento difícil: o do luto da figura de um mestre. A prática da psicaná lise não é mais a mesma de antigamente: tornou-se uma profissão enquadrada por regulamentação e por cursos 91
JACQUES LACAN, PASSADO PR ES ENT E
penosos. É preciso ter um diploma de psicologia para tra balhar como psicanalista nas instituições. E os psiquiatras não se orientam mais pela psicanálise, pois a psiquiatria passou a focalizar na biologia, dominada pelos tratamen tos químicos. A escola francesa de psicanálise, misturadas todas as tendências, se ajustou às regras e não tem mais grandes especificidades a oferecer, em escala mundial. Está tomada por lutas internas, e isso está longe de ser original. Em Moscou, pelo contrário, a psicanálise está em expansão, com dezenas de grupos diferentes. Em Buenos Aires, os grupos são também bastante numerosos. No Brasil, é ensinada nas universidades, em vez da psicologia. Além disso, existem quatro grandes associações internacionais que federam dezenas de associações. Mas faltam hoje em dia a todas essas poderosas sociedades alma, engajamento intelectual e político, uma paixão. Ou seja, faltam a es sas associações criatividade, espírito de aventura, pensa mento. Tornando-se trabalhadores do psiquismo, os psicana listas deixaram de ser intelectuais: tornaram-se psicoterapeutas, bons médicos do sofrimento psíquico. O drama é que a psicanálise em lugar nenhum é considerada disci plina autônoma, como a antropologia, a história, as letras 92
PENSAR A D ES OR DE M
ou a filosofia. E como também não é uma ciência — no sentido da biologia ou da física — , ela de certa maneira se tornou um ramo da psicologia. Tudo se passa, então, como se fosse uma disciplina privada, da qual os herdeiros dos pais fundadores se sentem proprietários: os freudianos acham que a obra de Freud pertence a eles, os kleinianos que a de Melanie Klein é coisa deles e os lacanianos acredi tam ser donos da verdade e da palavra do mestre. Ou seja, no espaço público e na Universidade, a psicanálise não conseguiu identidade própria. Não é o caso de outras dis ciplinas, que não são — ou não mais — propriedade dos fundadores. A sociologia não pertence a Émile Durkheim nem a seus herdeiros. Ela se laicizou. Estariam os psicanalistas destinados a se tornar psicó logos, técnicos da alma ou psicoterapeutas, isto é, sim ples clínicos desligados das pesquisas científicas? Estariam destinados a substituir os psiquiatras, cuja disciplina está em vias de se reintegrar à neurologia? É claro que é possível se apoiar em Lacan, pensador da desordem, para criticar essa transformação do movi mento psicanalítico e da “profissão” de psicanalista. A re valorização do pensamento psicanalítico não passa mais exclusivamente pelos clínicos, mas também por trabalhos externos ao campo clínico. Como podem, os clínicos, se 93
JACQUES LACAN, PASSADO PRESENTE
formar com a ajuda de pesquisas criativas de alto nivel, se forem obrigados, para o exercício da profissão em ins tituições de tratamento, a obter diplomas de psicologia, ao mesmo tempo que seguem tratamento didático em escolas de psicanálise? A.B.: Juntando-me ao que disse Élisabeth, gostaria de concluir com um apelo — por que não, afinal? Nos últimos tempos, na França, vimos abundar ataques violentíssimos e particularmente ineptos contra a psica nálise. Tais ataques representam um perigo generalizado para a intelectualidade. Como se sabe, não é somente à psicanálise que se visa. Marx também sofre fortes ataques, comprometido que está, segundo nossos moralistas, com a desumanidade do “totalitarismo”. Até Darwin vem sendo lançado às gemônias pelos reacionários americanos. Paira igualmente a tentação de se questionarem as descobertas de Einstem. São ataques cuja ambição, tácita ou explí cita, é destruir as figuras da intelectualidade moderna, substituindo-as por subprodutos técnicos, de uso rápido e cômodo, acrescidos de tempero moralizador que serve a todos os fins. Insisto ser necessário nos firmarmos contra essa vontade de depreciação e de domesticação do pen samento, tanto político quanto científico e psicanalítico. 94
PENSAR A DESOR DE M
O perigo é real, extremamente sério. E, parafraseando um dito bem conhecido de Clemenceau, não podemos deixar a defesa da psicanálise nas mãos apenas dos psicanalistas.* A luta tem que ser mais ampla. É claro, os psicanalistas estão na linha de frente desse combate pelo reconhecimento da disciplina e de sua prá tica. Mas a profissionalização mencionada por Elisabeth constitui uma ameaça de autodomesticação. Não deve mos abandonar a psicanálise a esse destino funesto e, nesse sentido, apoios externos são bem-vindos. Os ata ques contemporâneos contra a psicanálise, me parecem, é verdade, ainda mais graves do que os que se fazem contra o marxismo. No fundo, as polêmicas internas e externas fazem parte do próprio marxismo. As contradições e os antagonismos se sentem nelas como num elemento na tural. O marxismo pressupõe e implica brigas! O que se passa hoje com a psicanálise é bem mais perigoso — é alerta máximo. Afinal, querer erradicar Freud ou Lacan é atacar a concepção moderna de sujeito. Caso seja abolida, * Clemenceau foi primeiro-ministro da França, acumulando também o Ministério da Guerra em 1917 (em plena Primeira Guerra). Declarou que a guerra era importante demais para ficar nas mãos dos militares. (N.T.)
95
JACQUES LACAN, PASSADO PR ESE NTE
a porta estará aberta a ideologias reacionárias da pior espécie. Por isso, solenemente lanço o apelo: Ergam-se todos em defesa da psicanálise... como puderem. E.R.: Como não assinar embaixo deste apelo? E ainda com mais veemência, por várias vezes ter constatado que os psicanalistas defendem pouco ou mal a disciplina. Não é uma provocação que estou lançando, mas uma simples constatação. Eles têm muita dificuldade para analisar e combater o antifreudismo primário e, em geral, se man têm “neutros” frente à diversidade, desdenhosos, seja por esperarem dias melhores, seja por terem nostalgia do pas sado: “No meu tempo, era melhor.” Hoje, os ataques con tra Freud continuam tão desonestos quanto antigamente, embora mais amplamente divulgados, graças à internet. O contra-ataque é necessário e urgente. Concordo, preci samos nos mobilizar em defesa da psicanálise. E isso será possível somente se unirmos nossas forças bem além do círculo dos psicanalistas. Todos devem se sentir concerni dos: é uma questão da civilização.
96