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ARJUN APPADURAI é professor de antropologia e de línguas e civilizações da Ásia meridional na Universidade de Chicago, cidade onde foi a'n teriormente director do Chicago Humanities Institute, Entre as suas muitas publicações contam-se: Worship a.nd Conflict under Colonial Rule (Cambridge, 1981), The Social Life of Things (director de edição na Cambridge University Press, 1986) e Gender, , Genre and Power (como co-editor da University of Pennsylvania Press, '1991). É director do Globalization Project na Universidade de Chicago e trabalha actualmente sobre a relação entre violência , étnica e representações do território nos modernos estados-nação.
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Dimensões Culturais da Globalização A modernidade sem pelas , Tradução de TeIma Costa Revisão científica Conceição Moreira
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O Q © 1996. Regents of the Uni versity of Minnesota Título originaI: Mode rnity at Large - Cultural Dimensions oJ Globalizacion Tradução: Telma Costa Revisão científica: Conceição Moreira Capa: Fernando Mateus ' Composição e paginação: Rui Miguens de Almeida lmpressão e Rainha & Neves. Ldao1 Santa Maria da Feira I;ste livro foi impresso no mês de Dezembro de 2004 :S BN : .972-695-612-9 Depósito legal no' 219595104
;\õdos os direitos reservados por ED ITORIAL TEOREMA. LDA o Padre Luís Aparício o 9 - la Frente I : 50-148 Li sboa 1 Portu gal "relef.: 213129131 - Fax:::1 352 14 80 t orn ail: mail @ed itorialteo re ma.pt
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Este livro foi escrito ao longo de um peqodo de seis anos e durante esse tempo, benefiCiei docontacto com muitas pessoas e instituições. A ideia do livro tomou formadurante 1989-90, os anos em que fui MacArthur FelIow no Instituto de Estudps Avançados, em Princeton. Partes dele foram escritas enquanto estive na Universidade da Pensilvânia como co-director do Centro de Estudos Culturais Transnacionais. Foi terminado na Universidade de Chicago, onde participei em um sem-número de conversas interdisciplina:res no Instituto'de Humanidades, em ChÍcago, e onde beneficiei das energias do Projecto Globalização. Ainda em Chicago e durante este período, as conversas e debates no Centro de Estudos Transculturais (antigo Centro , . de Estudos Psicossociais) foram fonte de frutuos.as perspectivas nacionais e internacionais. Recebi proveitosas críticas e sugestões sobre as várias partes e versões \ dos capítUlos deste livro das seguintes pessoas: Lila Abú-Lughod, Shahid Arriín, Tala! Asad, Fredrik Barth, Sanjiv Baruah, Lauren Berlant, John Brewer, Partha ChatteIjee, Fernando Coronil, Valentine Daniel, Micaela di Leonardo, Nic.holas Dirks, Virginia Dominguez, Richard Fardon, Michael Fischer, Richard.Fox, Sandria Freitag, S,:!san Gal, Clifford Geertz, Peter Geschiere, Michael Geyer, Akhil Gupta, Michael Hanchard, Miriam 7
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Hansen, Marilyn Ivy, Orvar Lofgren, David Ludden, John MacAloon, Achille Mberribe, Ashis Nandy, Gyanendra Pandey, Peter Pels,Roy Porter, Moishe Postone, Paul Rabinow,.Bruce Robbins, Roger Rouse, Marshall Sahlins, Lee Schlesiriger, . Terry Smith, Stanley J. Tambiah, Charles Taylor, Michel-Rolph Trouillot, Gieg Urban, Ashutosh Varshney, Toby - Volkman, Myron Weiner e Geoffrey White. Aos que inadvertidamente esqueci, as minhas sinceras desculpas. Um pequeno número de pessoas merece uma menção especial pelo seu apoio mais generalizado e O meu professor, amigo e colega Bernard S. Cohn deu-me, em 1970, o sinal de partida para uma viagem através da antropologia e da história e tem sido desde então uma inesgotável fonte de ideias, de amizade e de crítica realista. Nancy Farriss manteve-me sempre atento aos desafios da comparação histórica e , ao significado da fidelidade ao arquivo. Ulf Hannerz é o meu parceiro para o estudo da res global desde '1984, ano que passámos juntos no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Corriportamento (PaIo Alto). Peter van der Veer, em Filadélfia como em Amesterdão, é uma fonte inesgotável de amizade, humor e debate de ideias. John e Jean Comaroff, graças à sua cultura e à sua estimulante presença no departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, contribuíram de muitas formas para a elaboração deste livro. Sherry Ortner apoiou o projecto desde o princípio e proporcionou uma das duas cuidadosas e sugestivas leituras do manuscrito para a University of Minnesota Press. Estou igualmente grato ao seguIldo leitor, anónimo. Dilip Gaonkar e Benjamin Lee (os directores da colecção que inclui este 'livro) foram amigos, colegas e interlocutores sob muitas e variadas formas. Homi Bhabha, Jacqueline Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Steven Collins, PrasenjitDuara e Sheldon Pollock proporcionaram-me uma comunhão de ideias que, ao mesmo tempo que se ia formando, me ajudava a completar este livro a imaginar muitos outros para o futuro. Lisa directora da University of Minriesota Press, e Janaki Bakhle (àrHeriormente na Press) estiveram sempre ao meu lado, num misto de paciência e estímulo, sugestões críticas e saber editorial. ,
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Muitos foram os alunos que, tanto na Universidade da Pensilvânia como na de Chicago, constituíram uma fonte de inspiração e de énergia. , .1, Devo fazer menção espeéial daqueles cujo trabalho enriqueceu as ideias Ü l;I contidas neste livro: Brian Axel, William BisseU, Caroline Cleav.es, Nicholas De Genova, Victoria Farmer, Gautam Ghosh, Manu Goswami, O t Mark Liechty , Anne Lorimer, Caitrin Lynch, Jacqui McGibbon, Vy- ' J.ayanthi Rao, Frank RomaoO'osa, Philip Scher, Awadendhra Sharan, Sarah Ir..)" ,I Strauss, RacheI Tolen, Amy Trubek e Miklos Votos. Eve Darian-Smith, Ç) : Ritti Lukose e Janelle Taylor merecem menção especial, quer pelo con. 1 tributo intelectual dado a este livro, quer pela sua assistência Cai- , O i trin Lynch fez um esplêndido trabalho no índice. Entre outros, participa-: O, ram também no complexo processo de produção deste texto Namita Gupta O Wiggers e Lisa McNair. () A minha família viveu com este livro, sempre generosamente mas por Ü vezes sem saber que o fazia. A. minha mulher e colega; Carol A. Breckenridge, est'á de certo modo presente em tOdas as páginas: este livro é () mais um documento da aventura das nossas vidas. O meu filho Alok, a U quem este livro é tornou-se adulto com ele. A sUa capacidade de amare a sua paixão pela vida têm velado para que eu nunca esqueça que os livros não são o mundo: são sobre o mundo. ()
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A modernidade pertence a essa" pequena fariulia dé teorias que simultaneamente se declara e se deseja de aplicabilidade universal. O que tem de novo a modernidade (ou a ideia de que a sua novidade é um novo tipo de novidade) decorre desta dualidade. Para além de tudo o que criou, o projecto iluminista aspirou a criar pessoas que, postfestum, viessem a querer ser modernas. Esta ideia que em si própria se consuma e" se justifica provocou muitas críticas e muita resistência, tanto na teoria como na vida Nos meus tempos de juventude, em"Bombaim, o contacto com a modernidade enl uma experiência nitidamente sinestésica e largamente anteteórica. Via "e cheirava a modernidade lendo a Life e catálogos" de universidades americanas na biblioteca do United States Information Service, vendo filmes da série B (e alguns da série A) de Hollywood no Cinema Eros, a quinhentos metros do meu prédio. Pedi para Stanford, ao meu irmão (no princípio dos anos sessenta), que me trouxesse umasjeans e rei a América no que trazia a sua bagagem quando ele regressou. Grad; a1mente, fui perdendo a Inglaterra que antes assimilara a p'artir dos livros 11
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escolares vitorianos, do que diziam os meus colegas de faculdade que tinham bolsas Rhodes e dos livros de Billy Bunter e Biggles devorados indiscriminadamente, a par de outros de Richmal Crompton e Enid . Franny e·Zooey, Holden Caulfield e Rabbit Angstrom foram limando lentamente essa parte de mim que até então era só vivas à Inglaterra. São estas as pequenas derrotas que explicam como a Inglaterra perdeu o império . na Bombaim pós-colonial. . Não sabia então que estava a afastar-me de uma espécie de subjectivldade pós-colonial (dicção anglófona, pseudodebates na Oxford U nion umas espreitadelas à Encounter, um interesse patrício pelas humanidades) para outra: o Novo Mundo mais áspero, mais sedutor, mais viciante das reprises de Humphrey Bogart, de Harold Robbins, da Time e das ciências socjáis em estilo americano. Quarido mergulhei nos prazeres do cosmoP?litismo, no Elphinstone College, já ia equipado com tudo o que é pre. CISO: uma educação anglófona, um endereço da classe alta de Bombaim (emboracof9. o rendimento. de uma faffil1ia da classe média), relacionasocial .com manda-chuvas da academia, um irmão famoso Uá faque tinha sido lá aluno, uma irmã com amigas bonitas já na unitinha sido picado pelo bichinho americano. Estava já versidade. .entrado na VIagem que me levou à Universidade de Brandeis (em 1967, quando os estudantes eram uma categoria étnica irrequieta nos Estados Unidos) e depois até à Universidade de Chicago. Em 1970 ainda eu andava à deriva, a caminho de um encontro com as ciências sociais americanas, com os estudos de área e com essa forma triunfal de teoria da modernização que era. ainda produto certificado do americanismo num mundo bipolar. . . que se seguem podem ser vistos como um esforço para Os dar sentIdo a uma viagem que começou com modernidade como sen. sação materializada nos filmes de Bombaim e terminou num frente-a-frente com a modernidade-corno-teoria nas minhas aulas de ciências so- . ciais, na Universidade de Chicago, nos primeiros anos setenta. Nestes para excapítulos, procurei te matizar certos factos culturais e ·por ·a relação entre a modernização como facto e a modernização como
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teoria 1. Esta inversãÇl do p·rocesso que me deu a conhecer o serve para explicar algo que de outro modo poderia uma preferêndisciplinar e ,arbitrária pelo cultural como mera deformação profisslOnal do antropologo. . . .
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Todas as grandes forças sociais têm percursores, precedeI1tes, análogos . : e. fontes no passado. São estas as profundas e múltiplas gen'ealogias (ver ! capítulo 3) que têm frustrado a modernizadores inseridos em sociedades U " .muito diferentes a aspiração de ·sincronizar os seus relógios históricos. () \ Este livro defende também a presença de·Uma ruptura geral no teor das O . relações intersocietais destas últimas décadas. Há que explicar esta pers- O pectiva de mudança - melhor, de ruptura - e distingui-la de algumas O das anteriores teorias da transformação radical. Um dos mais problemáticos legados da ciência social do Oci- () dente (Auguste Comte, Karl Marx, Ferdinand TonÍ1ies, Max Weber, O Émile Durkheim) é nunca ter deixado de reforçar o sentido de um mo- O mento singular - chamemos-lhe o momento moderno - que pela sua C) aparência abre. uma brecha profunda é sem precedentes entre o passado O· e o presente. Reencarnada como o corte· entre tradição e modernidade e O tipificada comCa ·;;tre sõciedades ostensivamente fraCf0iopor demais demonstrado po- Ü nais e sociedades os sig1Ü.ficados da tiãn-:SJôrmação e da política do () \ No entanto, o mundo em que hoje vivemos - em que a modernidade.O \anda decididamente à solta, por vezes acanhada e sentida de· forma de- Q . sigual - implica seguramente um corte com todo o tipo· de passados . O ! Que espécie de corte é este, senão o identificado pel a teoria da moder1 nização (e criticado no capítulo 7)? . Implícita neste livro está uma teoria de ruptura que toma os meios O de comunicação social e a migração como os seus dois diacríticos prin- O cipais e interligados, e explora o seu efeito conjunto sobre a obra da C;
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como característica constitutivá da subjectividade moderna. pnmeIro passo o provar é que os meios de comunicação electrólllCOS mudaram decIsIvamente o campo mais ·vasto dos meios de comunicação de massas e outros meios de comunicação tradicionais. Isto não é uma fetichização monocausal da electrónica. Esses meios de comunio campo da mediatização de massas porque oferecem a construçao de eus imaginados e de mundos imaginados novos renovas disciplinas. É uma tese relaciona!. A comunicação marca. e um campo muito mais vasto em que a, escnta e outras formas de comunicação oral, visual e audItIva podem continuar a ser importantes. Através de processos c'o mo a ondensação de notícias em bytes audiovisuais, através da tensão entre s espaços públicos do cinema e os espaços mais exclusivos do vídeo través .imediatidade.da sua absorção no discurso público e d ten?enCIa para os associar a sedução, a cosmopolitismo e a novidade, . m.elOs electrónicos (estejam eles ligados a notícias, . Ifuca, vIda famIlIar ou diversão e espectáculos) tendem a interrogar, ubverter e transfo,rmar outras literacias contextuais. Nos capítulos que eguem vou atras dos modos como a comunicação electrónica transma mundos de comunicação e conduta preexistentes. A comunicação electrónica dá uma tessitura nova ao contexto em que oderno e o global aparecem como faces opostas da ma moeda. Sempre portadora do sentido da distância entre observa8.contecimento, provoca, não obstante, a transformação do discurso Ao mesmo tempo, fornece recursos para a espécie de de construção dó eu em todo o tipo de sociedades e para tIpO de pessoas. Permite enredos de vidas possíveis imbuídas da o das estrelas de Cinema e de fantásticos argumentos de filmes . u o seu caráctet de plausibilidade, como noticiários, ntários e outras formas de telemediatização informativa e de texto o. Graças à mera multiplicidade de formas que assume (cinema, o, computadores e telefones) e à maneira rápida como se move das rotinas da vida quotidiana, a comunicação electrónica é uma .
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ferramenta para que cada indivíduo se imagine como um projecto social em curso. Passa-se com o movimento o mesmo que se passa na mediatização. A questão das migrações de massas (voluntárias e forçadas) não é nada de novo na história humana: Mas se a colocarmos' em justaposição com o rápido fluxo de imagens, textos e sensações mediatizados, temos uma nova ordem de instabilidade na moderna produção de subjectividades, nos Quando os turcos que trabalham na Alemanha vêem filmes seus apartamentos alemães, os coreanos de Filadélfia vêem as Olimpíadas de Seul-1988 através de emissões satélite da .Coreia e em Chicago os taxistas paquistaneses ouvem cassetes de sermões ' gravados em mesquitas ou no Irão, vemos imagens que vão ter com "espectadores no desterritorializados. E estes criam esferas públicas de diáspora, fenómenos que invalidam as teorias ancoradas na hegemonia continuada do Estado-nação.como principal árbitro de importantes transformações sociais. ',' Em suma, a corn.unicação electrónica e as migrações marcam o mundo 'do presente, não 'como forças tecnicamente novas, mas como aquelas que . parecem impelir (e, por vezes, compelir) a obra da imaginação. Juntas, criam irregularidades específicas porque espectadores e imagens estão em circulação simultânef Nem as imagens nem os espectadores cabem em circuitos ou audiências que facilmente se confinam a espaços locais, nacionais ou regionais. Claro que muitos espectadores podem não emigr;rr. E muitos acontecimentos mediatizados são de alcance fortemente local, como a televisão por cabo em algumas partes dos Estados Unidos. Mas poucos são os filmes, notícias radiofónicas, ou espectáculos de televisão importantes que se mantêm üúeiramente incólumes a outros acontecimentos mediáticos vindos de longe. E, no .mundo de hoje,poucas são as pessoas que não têm um amigo, um parente, um çolega de trabalho que não esteja a caminho de qualquer outro lugar oujá de voita para casa, portador de histórias e de possibilidades. Neste sentido; tanto pés soas como imagens encontram-se muitas cordão sanitário de efeitos mevezes por acaso, forà' das certezas do ' . diáticos locais enácionais. Esta relação amovível e imprevisível entre acontecimentos e audiências migratórias define o âmago da liga-
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, ção entre a globalização e o modernolNos capítulos que seguem, mostro que a obra da neste contexto, nem é puramente emanci- , padora nem inteiramente disciplinada: é um espaço de contestação no qual indivípuos e grupos procuram anexar o global às suas próprias práticas do . -_ ...Obra da imaginação de Durkheim e do trabalho do grupo dos Années Sociologiques, os' antropólogos aprenderam à considerar as representações colectivas factos sociais, isto é, a vê-las transcender a volição individ.ual, carregadas com a força da moral social e como realidades sociais que eu quero sugerir é que houve nestas últimas décadas uma transformação com base nas transformações do século em que a imaginaçãose tornou um facto colectivo, social. E estaeY9lução está por sua , vez na base da pluralidade de mundos ' Nesta conformidade, absurdo âventar que há algo de novo no papel que a imaginação ocupa no mundo contemporâneo. Afinal, estamos habituados a pensar que todas as sociedades produziram ·as suas versões da arte, .do mito, da lenda, expressões que implicavam a potencial evanescência da vida social Nestas formas de todas as sociedades se mostraram capazes' de reenquadrar a,vida social corrente recorrendo a mitologias de \vários tipos em que a " ,vida social surgia imaginativamente deformada. E nos sonhús, os "víduos, mesmo os das sociedades mais simples, acharam o terreno onde reconfigurar a sua vida social, superar estados emocionais e sensações ,' iriterditos e ver coisas que. depois roram integrar no seu sentido da vida corrente. Além'disso, todas estas expressões estiveram na base de um diálogo complexo entre a imaginação e o ritual em muitas sociedades humanas, 'através do qual a força das normas sociais correntes de certo m do se aprofundou, pela inversão, pela ironia ou pela intensidade actu' nte e p I trabàlho de colaboração que muitos tipos de ritual exigem.
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Tudo isto é o mais seguro 49., que o melhor da antropologia nica do nos incu1cQu.. .\ Quando afirm? ,que a imaginaçãp ,no mundo pós-electrónico ten novo papel significativo, baseio-me em três ·distinções. Primeiro, a 1111 ginação saiu do particular espaço expressivo da arte, mito e ritual passar a fazer parte da actividade mental .quotidiana da gente vulg \J muitas sociedades. Entrou para a lógica da vida corrente de que con I sucesso tinha sido segregada. Clar-o que encontra preced I parar tal nas grandes revoluções, nos cultos de personalidade e nos m V , mentos messiânicos de outrora, em que chefes ferozes implantavam . 11 Rerspectiva na vida social'oriando assim enérgicos movimentos de trllJl formação.sqcial. . . Mas agora já ,.não se trata de indivíduos partiçtilarm 111 dotados (carismáticos) a injectar imaginação onde ela não cabe. A p , soas' vulgares começaram a dar prova$ de imaginação na sua prática quo tidiana vida. Exemplo deste facto é a mútua contextualização d mil vimento e mediatização. Nunca como agora tantas pessoas parecem imaginar rotineirament possibilidade de elas ou os seus filhos viverem e trabalharem em lug 11 diferentes daqude em que nasceram: é esta a fonte do aumento da t I de migrações a todos os níveis da vida social, nacional e global. OUlJ'll são arrastados para novos cenários, como nos recordam os campos d J fugiadosda Tailândia, Etiópia, TàInil Nadu e Palestina. É que estas p soas deslocam':'se e têm que arrastar consigo a imagi.nação para novas lTll neiras de viver. E depois há os que se deslocam em busca de trabalh I, , riqueza e oportunidades, muitas vezes porque as circunstâncias em qu encontram são intoleráveis. Transformando e alargando ligeiramente d termos importantes de Albert'Hirschman, lealdade e saída, podemos f II I! de diásporas de esperança, 'diásporas de terror e diásporas de desesp 1'( I Mas em todos os casos estas' diásporas trazem a força ' da imaginaç ( I como 'memória e como deseJb , para as vidas de muita gente vulgar, p \I mitografias diferentes das disciplinas e do ritual de tipo clássi 'o O cerne desta diferença é que estás novas rnitografias são atestados ,de no vos projectos sociais e não apenas contraponto das certezas da vida' qu I t
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DIMENSÕES CULTURAIS DA GL lJAUZ
tidiana. Para um grande de pessoas, levam a força glacial do hábito ao ritmo acelerado da improvisação. Aqui, as imagens, os textos, os modelos e as narrativas que chegam pelos meios de comunicação 'de massas (nos,- seus IpodoS realista e ficcional) traçam a diferença entre as migraçõescÍe h.oje eas do passado. Quem quer mudar-se, quemjá se mudou, quem já e quem preferiu ficar raramente formula os planos fora da esfera da rádio e da televisão, das cassetes 'e dos vídeos, dos jornais e do ,tel,efooe. Para os mjgrantes, tanto as fórmulas de adaptação à novos ambientes como o estímulo para sair ou voltar são profundamente afectados por um imaginário mediático que frequentemente o esp,ço nacional. . ' . , A segunda distinção é entre imaginação e fantasia. ,Existe' um vasto respeitável corpo de textos, nomeadamente dos críticos da cultura de assas pertencentes ã Escola de Frankfurt e já avançado na obra de Max Weber, que considera que o mundo moderno está em 'vias de se transformar numa jaúla de ferro por obra das' forças da nierdmtilização O capitalismo industrial e da regulamentação e secularização generalizadas do mundo. Entre os teó,ricos da modernização das ú1timas três d6cada's (de Weber, passando por Talcott Parsons e Edward Shils até aniel Lerner, Alex lnkeles e muitos e utros) teve larga aceitação a id ia de que o mundo moderno é um espaço de religiosidade decresnte (e maior cientismo), menos diversão (e lazer cada vez mais reulamentado) e de inibição a todos os níveis. Há linhas nesta ideia, linhas que unem teóricos tão diferentes com9 N rbert Elias e Robert Bell, mas há também nela algo de fundamen t lme nte errado. O erro funciona a dois níveis. Erinlellih.baseia:;sê...lli!!Pquiemprematuro à morte::da religião e à vItória Há novas ligiosidades de toda a espécie que Gemonstram que-ã-religião não nas não morreu como pode até ter mais consequências do que nunn s pol ítica; g'lobais de hoje, tão inJerligadas e dotadas de tão granmobilidade. 'A'um outro nível, é errado presumir que a comunicação ...... . . I o ópio Esta posIção, que apenas começa a ser rri gidà, na noção de que os processos mecânicos de repro-
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dução reprimem severamente a gente comum que busca trabalh industrial. É demasiado simplista.; vez há mais provas de que o consumo de comunicação de massas origina em todo o mundo resistência, ironia, selectividade e, em geral, impulso para a acção. Os terroristas que modelam a sua figura pela de Rambo (que já deu origem a uma porção de contrapartidas fora do Ocidente), as donas de casa para quem a leitura de romances e folhetins faz parte do seu esforço de construção de vida própria, famílias muçulmanas reunidas a ouvir dirigentes islâmicos gravados em cassete, as criadas do Sul fazem excursões organizadas a Caxemira, são exemplos do da Índia modo activo' como os meios de .comunicação são apropriados por gente de todo o T-shirts, o's cartazes publicitários, os grafitos,bem ' como a música rap, a dança de rua e os bairros de lata, tudo isso demonstra , que as . imagens dos meios de comunicação entram rapidamente para os . repertórios locais de ironia, ira, humor e resistência.J , E não-se traiá- apenas de gente do Terceiro Mundo que reage à comunicação de massas americana, pois o mesmo é verdadeiro para pessoas de todo o mundo como reacção à sua comunicação electrónica nacional. Tanto basta para que a teoria dos meios de comunicação como ópio do povo , tenha que ser encarada com grande cepticismo. Não se pretende"sugerir que os consumidores são sujeitos livres que vivem felizes num mundo de , .centros- comerciais seguros, refeições gratuitas e estimulantes rápidos. Como sugiro no capítulo 4, no mundo contemporâneo o consumo é muitas vezes uma forma de corveia, faz parte do processo civilizacional capitalista. Não obstante, onde há consumo há prazéi,e onde há prazer há acção. Por outro lado, a liberdade é uma mercadoria um tanto mais fugaz. Além disso, a ideia de fantasia traz consigo a inevitável conotação do pensamento divorciado dos projectos e das atções e tem também o seu quê de privado, de individualista. A imaginação, pelo contrário, tem em si um sentido projectivo, o sentido de ser o prelúdio a um qualquermQdo expressão, seja estético ou outro. A fantasia pode dispersar (porque a lógica é muitas vezes autotélica), mas a imaginação, especialmente quando colectiva, pode tomar-se carburante da acção. É a imaginação, nas
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suas formas colectivas, que cria ideias de comunidade de bairro e de nação, de economias morais e governos , injustos, de salários mais altos e perspectivas 'çle trabalho no IA imaginação é hoje um para a acção e não apenas para a evasã<0' ' A terceira distinção é entre o sentido individual e o. sentido colectivo da imaginação. Neste passo, é importante salientar que falo de imaginação como' colectivos e não apenas como uma faculdade do indivíduo dotado (que é o sentido em que tacitamente é tomada desde o florescimento do Romantismo europeu). Parte do que os meios de comunicação de massas tornam possível, por causa das condições de leitura, crítica e prazer colectivos, é o noutro lugar chamei «comunidade de sentimentos» (Appadurai, 1990), um grupo que começa a imaginar e a sentir coisas em conjunto. Como tão bem demonstrou Benedict Anderson (1983), o capitali smo impresso pode ser um meio muito importante de grupos que nunca se conheceram começarem a pensar-se como Indonésios, Indianos ou Malaios. Mas outras forinas de capitalismo electrónico podem terereitos semelhantes oU mesmo mais fortes , pois não operam apenas ao nível do Estado-nação.\A recepção colectiva dos meios de comunicação de massas, especialmente do cinema e do vídeo, pode criar confrarias de veneração e carisma, como as que se formaram regionalmente em torno da deusa indiana Santochi Ma, nos anos setenta e oitenta, , e internacionalmente em torno do aiatolá Khomeini mais ou menos pela mesma altura. Tais confrarias podem constituir-se a propósito do desporto e do internacionalismo, como tão claramente demonstram os efeitos nacionais dos Jogos Olímpicos. Os condomínios e os prédios albergam videoclubes em sítios como Catmandu ou Bombaim. Clubes de Ias, comissões de apoio político, emergem em culturas çomunicacionais provincianas ,. como no Sul da Índia,.:J " Estas confrarias assemelham-se ao que Diana Crane (1972) chamou «colectivos invisíveis» referindo-se ao mundo da ciência, mas são mais voláteis, menos profissionalizadas, menos sujeitas a critérios de prazer, gosto ou relevância mútua partilhados colectivamente. São comunidades em si, maS' sempre potencialmente comunidades por si capazes de transitar 20
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da imaginação partilhada para a acção colectiva. O mais importante, com I defenderei na conclusão deste capítulo, é que estas confrarias são muit , vezes transnacionais, até pós-nacionais, e operam frequentemente pa , além dos limites da nação. Estas confrarias mediatizadas ' pela comunic \ ção de massas acrescem ainda em complexidade porquanto nelas se en trecruzam diferentes experiênciÇls locais de gosto, prazer e política, cri n do assim a possibilidade de convergências na acção social translocal qu de outro modo seria difícil imaginar. Não há episódio que melhor capte estas realidades do que o caso, qu hoje nos deixa perplexos, Salman Rushdie, em que entra um livro proibido, uma sentença de morte de fundamento religioso e um autor empenh doem ter voz e liberdade estética. Os' Versículos Satânicos incitou muçulmanos (e outros) do mundo inteiro a debater as políticas de leitura, relevância cultural da censura, a "dignidade da religião e a liberdade de c , tos grupos para julgarem os autores sem um conhecimento independent do texto. O caso Rushdie é um caso de texto-em-movimento que uma tr • jectória mercantilizada fez sair do porto seguro das normas ocidentais s bre liberdade artística e direitos estéticos para o espaço da sanha rel igio e da autoridade dos teólogos nas suas próprias esferas transnacionai . Aqui, os mundos transnacionais da estética liberal e do islão radical entrechocaram-se nos cenários muito diferentes de Bradfàrd e CarachI, Nova Iorque e Nova Deli. Neste episódio, vemos também como é que O processos globais relativos a textos com mobilidade e públicos migrant , criam eventos implósivos que reduzem as pressões globais a diminuta arenas já politizadas (ver capo 7), produzindo 'localidade (cap. 9) segund novas formas globalizadas. Esta teoria de um corte - ou ruptura - que tem o seu vector mai saliente na comunicação electrónica e na migração de massas, é nece sariamente uma teoria do passado recente (ou do presente alargado), porque sÇ>mente nestas duas últimas décadas os meios de càmunicaçã e as rnlgrações foram tão largamente globalizados, ou seja, operaram em irregularmente transnacionais . Porque penso eu que esta teoria é algo mais que uma actualização das velhas teorias sociais da 21
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rupturas da modernizaçãoO Primeiro, a minha teoria não é teleológica, . receita que ensina como \ a modernização ha, de pro d ' umversa . Iuma UZlr mente racionalidade, pontualidade, democracia, mercados livres e um Produto Nacional Bruto maior. Segundo, o eixo da minha teoria não é . um projecto de engenharia social em larga escala (seja ele organizado por por instituições internacionais ou outras elites tecnocráticas), mas sim uma prática cultural de todos os dias através da qual se transforma a obra da imaginação. Terceiro, a minha abordagem deixa inteiramente em aberto a questão de saber se as experiências com a modernidade proporcionadas pela comunicação electrónica podem dominar em termos de nacionalismo, violência e justiça social. Por outras palavras, sou mais profundamente ambivalente quanto ao prognóstico do que qualquer variante da teoria clássica da modernização que conheça. Quarto e mais importante, a minha abordagem do corte causado pela força conjunta da comunicação e1ectrónica e das migrações de massas é ex- . plicitamente transnacional '- mesmo pós-nacional - , como sugiro na última parte do livro. Assim, afasta-se radicalmente da arquitectura da teoria clássica da modernização, que podemos classificar de fundamentalmente realista, na medida em que assume a supremacia, tanto metodológica como ética, do Estado-nação ..> Não podemos simplificar as coisas imaginando que o global está para o espaço como o moderno está para o tempo. Para muitas sociedades, a modernidade é urr:t alhures, tal como o global é uma vaga temporal que elas têm que conhecer no seu presente. A globalização estreitou a distância entre elites, deslocou relações essenciais entre produtores e consumidores, quebrou muitos laços entre o trabalho e a vida familiar, obsas linhagens entre locais temporários e vínculos nacionais imaginários. A modernidade parece agora mais prática e menos pedagógica, mais experimental e menos disciplinar do que nos anos cinquenta e sessenta, quando era sentida sobretudo (especialmente para quem não pertencesse à elite nacional) através dos aparelhos de propaganda dos Estados-nações que acabavam de adquirir a sua e dos seus ocrrandes diriaentes como Jawaharlal Nehru, Gamal Abdel Nasser, . o .
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Kwame Nkrumah e Sukarno. A mega-retórica modernização para o desenvolvimento (crescimento económico, alta tecnologia, agricultl,lra industrializada, ensino,militarizaç,ão) está ainda presente em muitos países. Mas é frequentemente pontuada, interrogada e domesticada pelas micronarrativas do cinema, da televisão, da música e de outras formas de expressão que permitem que a modernidade seja reescrita mais c
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e deslocados pela relações raciais no Uganda encaram as complexidades da raça no Sul dos Estados Unidos sem perderem um sentido de indianismo-em-movimento. Assistir a encontros de críquete entre a Índia e o Paquistão é, para os que emigraram desses países para os estados do Golfo (ver capo 5), algo que tem a ver com as peculiaridades do nacio'nalismo ,da diáspora 'numa política emergente no oceano Índico. Os debates intensos sobre língua inglesa e direitos dos imigrantes actualmente a acender-se (de novo) nos Estados Unidos não são apenas mais uma variante das políticas do pluralismo: são acerca da capacidade da política americana para conter as políticas de diáspora dos mexicanos no Sul da Califórnia, dos haitianos em Miami, dos colombianos em Nova Iorque , 'edos coreanos em Los Angeles. Na verdade, como proporei nas minhas observações conclusivas, é'a aparência largamente difundida de vários tipos de esferas públicas de diáspora que constitui um diacrítico especial do moderno global. . Basta por ora de global. Há também um aqui, nestes capítulos. De certo " modo, foram escritos a parti.r do encontro entre a minha equcação anglódo pós-guerra e as estórias de modernização na ciência social americana como teoria do verdadeiro, do bom e do inevitável. Foram também escritos de uma perspectiva profissional moldada essencialmente por duas formaturas americanas em investigação dentro das quais fiz o grosso da minha formação e em que passei grande parte da minha vida de académi. co: são elas a antropologia e os estudos de área. Embora seja sobre globalização, este livro é marcado e restringido pelas disputas das duas últimas décadas no seio de ambas estas formações académicas americanas. Por isso as suas ansiedades epistemológicas são decididamente locais, mesmo que a localidade já não seja o que era (cap. 9).
o olhar da antropologia A antropologia é o meu arquivo das realidades vividas, toda a espécie de etnografias sobre povos que viveram vidas muito diferentes
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da minha, hoje e no passado. O arquivo de antropologié!- é uma -sombra em todos os capítulos que se seguem. Mas não é por'çste ser in- ) t trinsecamente melhor do que qualquer outro arquivo disciplinar. Na \, lidade, nos últimos anos as, críticas a este arquivo até têm sidC) severas e incansáveis. E, porém, o que eu sei ler melhor. Como arquiv0 t,:' 0 tem também a vantagem de nos recordar que toda a similitude esconde", I mais que uma diferença e que similitudes e diferenças se escondem uma" L às outras sem cessar, por isso o último da fila ainda é uma questão de conr" ) veniência ou de garra metodológica. Este arquivo e a sen'sibilidade que elt:'J 't. favorece no antropólogo predIspõem-me fortemente para '1 ideia de que O,, \ globalização não é uma 'questão de homogeneização Esta últimq' \ noção é o mínimo que ,posso esperar que o leitor tire deste livrq. Mas antropologia traz consigo uma profissional para p,!ivilegiar á ) , cultural como diacrítico-chave em muitas práticas (que' a outros 1 parecer simplesmente humanas, estúpidas, calculistas, ou qual() ',. \ quer outra coisa). Como este livro se pretende acerca das dimensões cuia " " turais da globalização, deixem-me definir a especial força que este adjec"(.) , ,I tivo comporta na utilização que lhe dou. .... " I Muitas vezes me tem intrigado a palavra cultura comÇ> substantivb"",,,i eminentemente ligado à sua forma adjectiva, ou seja, cultural. Quandó:J é penso nas razões deste facto, entendo que 'grande parte do problema da-:J forma substantiva tem a ver com o facto implícito dea cultura ser uma.:,J de objecto, coisa ou substância, seja física ou A subs- : O tancIahzação parece remeter a cultura para o espaço dIscurSIVO da raça,( . \ !, precisamente a ideia que na origem ela se destinava a combater. Como,j \ implica substância mental, o substantivo' cultura favorece a partilha, aO " concordância e a vinculação que contrasta com factos, como a desigual , dade de conhecimentos e as diferenças de prestígio entre estilos de vida,Q . e retira atenção às visões do ,mundo e à acção dos marginalizados do-O' minados. Vista como substância física, cultura começa logo a cheIrar a . biologismos vários, raça inclusive, certamente já superados como cate-\J gorias científicas. Superorgânico, o termo de Alfred Kroeber, capta bemO ambos os lados deste substancialismo, coisa com que não simpatizo. Os O
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esforços das décadas mais recentes, nomeadamente na antropologia americana, de escapar a esta ratoeira encarando a cultura como uma forma em grande medida linguística (entendida sobretudo nos termos do estruturalismo saussuriano) só em parte evita os perigos de tal substancialização. . Se cultura como substantivo parece suscitar a associação com uma substância de um modo que esconde mais do que revela, cultural, o.adjectivo, transporta-nos para um reino de diferenças, contrastes e comparações bem mais útil. Este sentido adjectivo de cultura, que se forma no cerne de uma linguísticá. saussuriana sensível ao contexto e focada nos contrastes, parece-me ser uma das virtudes do estruturalismo que tendemos a esquecer na nossa pressa de o atacar pelas suas conotações a-his. tóricas, formais, binárias, intelectualistas e lextualistas. A característica mais valiosa do conceito de cultura é o conceito de diferença, uma propriedade de certas coisas mais contrastiva do que substantiva. Embora o termo diferença se tenha apropriado de um vastç> leque . de associações (principalmente por causa do Uso especial que Jacques Derrida e os seus seguidores lhe deram), a sua principal virtude é ser .uma heurística útil, capaz de destacar pontos de semelhança e contraste entre qualquer tipo de categorias: classes, géneros, papéis, grupos e nações. Assim, quando apontamos numa prática, distinção, concepção, objecto ou ideologia, uma dimensão cultural (note-se o uso adjectivo), estamos a sublinhar a ideia de diferença situada, isto é, diferença em relação a uma coisa local, com corpo e significado. Podemos resumir isto mesmo da seguinte forma: não vale a pena encarar a cultura como substância, é melhor encará-la como uma dimensão dos fenómenos, uma dimensão que releva da diferença situada e concretizada. Salientar este dimensionamento da cultura em vez da suasubstancialidade permite-nos pensar a cultura não tanto como propriedade de indivíduos e grupos, mas como um instrumento heurístico ao nosso alcance para falarmos de diferença. .. Contudo, há muitos tipos de diferença no mundo e apenas algumas delas são culturais. E ..'I introduzo uma segunda componente da minha proposta sobre a forma àdjectiva da palavra cultura. Sugiro que conside-
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remos culturais apenas as diferenças que exprimem, ou servem de fundamento, à mobilização de identidades de grupo. Esta qualifiáção proporciona um princípio bruto de selecção que incide sobre uma série de diferenças relacionadas com a identidade de grupo, dentro. e fora de qualquer t grupo social. Ao colocar a mobilização das identidades de grupo no ârtla- . li go doadjectivo cultural, faço na realidade um movimento que, à primeira vista, parece regressivo, pois é corrio se começasse a pôr a palavra cultura desconfortavelmente perto da ideia de etnicidade. E isso traz-me a novos . problemas que ·têm que ser destrinçados. Antes de ensaiar a destrinça que me permitirá avançar :para a ideia de vamos rever o caminho percorrido. Ao resistir à ideia de cultura que nos tenta a pensar grupos sociais existentes como culturas, resisti . também à forma substantiva cultura e sugeri uma abordagem adjectiva da cultura que reforça as suas dimensões contextual, heurística e comparativa e nos orienta para a ideia de cultura como diferença, diferença especialmente IJO domínio da identidade de grupo. Sugiro, portanto, que a cultura é uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a diferença · .para gerar diversas concepções da identidade de grupo. Depois de rumar para tão perto da ideia de etnia - a ideia de identidade de grupo natUralizada - , é importante que sejamos claros quanto à relação entre cultura e identidade de grupo que aqui procuro articular. Cultura, sem itálico, pode continuar a usar-se para referir ·a pletora de diferenças que caracterizam o mundo actual, diferenças a vários níveis, com valências diversas e maior ou menor grau de consequências sociais. Proponho, porém, restringirmos o termo cultura em itálico ao su.bconjunto destas diferenças, que foi mobilizado para articular os limites da ça. Como questão definidora de limites, cultura torna-se então uma questão de identidade de grupo enquanto constituída por certas diferenças entre outras. Mas não será isto simplesmente uma maneira de tornar etnia equivalente a cultura? Sim e não. Sim, porque nesta acepção cultura não destaca simplesmente a posse de determinados atributos (materi ais, linguísticos ou territoriais), mas a consciência desses atributos e a sua naturalização 27
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U I como essenciais à identidade de grupo (ver capo 7). Ou seja, em vez de cair no pressuposto, pelo menos tão velho como Weber, de que a etnia assenta numa espécie de extensão da ideia primordial de parentesco (que, por sua vez, é biológica e genealógica), a ideiaode etnia que proponho gira em tomo de um centro que é a construção e mobilização conscientes e imaginativas das diferenças. Cultura 1, constituindo um arquivo de diferenças em aberto, molda-se conscientemente em Cultura 2, o subconjunto dessas diferenças que constitui o diacrítico da identidade de grupo. Mas este processo de mobilizar certas diferenças e de as ligar à identidade de grupo é também diferente da etnia, pelo menos no sentido mais antigo, porque não depende da extensão dos sentimentos primordiais a unidades cada vez maiores, numa espécie de processo unidireccional, nem comete o erro de supor que unidades sociais maiores simplesmente vão buscar os sentimentos de família e parentesco para dar força emocional às identidades de grupo em larga escala. Assim, demonstrarei no capítulo ·5 que o críquete na Índia, longe de ir buscar o repertório de emoções existente e o deslocar para um terreno mais vasto, é uma forma em larga escala que acaba por se inscrever no corpo através de uma série de práticas de escala progressivamente menor. Esta lógica é apenas o reverso da velha ideia primordialista (ou extensionista) de identidade étnica. A ideia de cultura, enquanto extensiva à organização naturalizada de certas diferenças nos interesses da identidade de grupo através e dentro do processo histórico, e através e dentro das tensões entre agentes e estruturas, aproxima-se do que já se chamou concepção instru°mental de etnia por oposição à concepção primordial. Tenho duas qualificações a faozer quanto a esta convergência, qualificações que conduzem à análise do culturalismo. Uma, é que os fins para que se formam as concepções instrumentais de identidade étnica podem ser já de si respostas contra-estruturais a valorizações existentes da diferença: podem ser, portanto, da ordem da razão-valor e não da razão-instrumental, no sen- . tido weberiano. Podem ter uma instrumentalidade puramente voltada instrumentalidade que, como tantas vepara a identidade em vez de zes tem sido sugerido, seja extracultural (económica, política ou emo28
cional). Por outras palavras, a mobilização dos marcadores das ças de grupo pode fazer parte de uma contestação de valores relátivo' à diferença, independentemente das consequências da diferença para "0 riqueza, a segurança ou o poder. A minha segunda qualificação quanto . a explicações mais instrumentais é que elas não esclarecem o processoU pelo qual certos critérios de diferença mobilizados .para a idé'ntidade de:) grupo (por sua vez instrumental para outros objectivos) são (re)inscritos.J em sujeitos corpóreos para assim serem sentidos ao mesmo tempo como ' naturais e profundamente incendiários. U Demos agora mais um passo, da cultura como a cultura como dimensão da diferença, para a cultura como identidade de grupo ba-u. seada na diferença, para a cultura como processo de naturalizar um sub-:J conjunto de diferenças que foram mobilizadas ao serviço da articulação -l da identidade de grupo. Neste ponto, estamos em posição de avançar para,,) a questão do culturalismo. . . o . o . o' . U Raramente encontramos a palavra culturalismosozinha: surge normal-, mente acoplada como substantivo com certos prefixos como "bi, eU inter, para citar apenas os mais frequentes. Mas pode ser útil começar aU _ usar culturalismo para designar uma característica dos movimentos que'J envolvam identidades em construção consciente. Estes movimentos, nos j Estados Unidos ou noutros lugares, vão normalmente na direcção de Es- ..J tados-nações modernos que distribuem vários direitos, por mesmo de vida e de morte, de acordo com "classificações e políticas relativas à".J identidade de grupo. Em todo o mundo, perante as actividades de ...J interessados em enquadrar as suas diversidades étnicas em conjuntos fixos .J e fechados de categorias culturais a que os indívíduos são muitas vezeos '--J consignados à força, há muitos grupos a mobilizarem-se conscientemente IJ segundo critérios identitários. Em termos simples, culturalismo é política 'J de identidade mobilizadá ao nível do Estado-nação. Este culturalismo é o meu tema princi pai no capítulo 7, onde procedo IJ a uma crítica fundamentada da visão primordialista da violência étnica na 'J década de 1980. Aquilo .que parece um renascimento mundial dos nacio- IJ nalismos e separatismos étnicos não é na realidade o mesmo a que os jor- J 0-.> 29 [ \ --'
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nalistas e os panditas com demasiada frequência chamam «tribalismo» e que implica histórias antigas, rivalidades locais e ódios profundos. Não, a violência étnica que vemos em muitos sítios faz parte de uma transformação, mais vasta: a que o termo culturalismo sugere. O culturalismo, como já referi, é a mobilização consciente das diferenças culturais ao serviço de uma política nacional ou transnacional mais ampla. Anda muitas vezes associado a histórias e memórias extraterritoriais, por vezes ao estatuto de refugiado e ao exílio e quase sempre a lutas por um melhqr reconhecimento por parte de Estados-nações existentes ou .de váriosorganismos transnacionais. Os movimentos culturalistas (pois são quase sempre esforços -de mobilização) são a forma mais geral da obra da imaginação e radicam muitas vezes no facto ou na possibilidade de migração ou secessão. O mais importante' é que são tímidos quanto a identidade, cultura e herança, tudo noções que tendem a integrar o vocabulário deliberado dos movimentos culturalistas quando lutam com Estados e outros focos e grupos ,culturalistas. É esta mobilização deliberada, estratégica e populista do material cultural que justifica chamar culturalistas a esses movimentos, embora possam ter muitas variantes. Os movimentos culturalistas, quer envolvam afro-americanos; paquistaneses na Grã-Bretanha, argelinos em França, havaianos nativos, siques ou francófonos do Canadá, tendem a ser antinacionais e metaculturais. No sentido mais lato, como defenderei na última parte deste livro, O culturalismo é a forma que as diferenças culturais tendem a assumir na era da comunicação de massas, da migração e da globalização.
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!i Como se processam os estudos de área O realce antropológico do cultural, que é a principal inflexão que quero dar ao debate sobre globalização, é, no meu caso, reforçado pela minha formação e prática em estudos de área, especificamente estudos da Ásia Meridional nos Estados Unidos. Não está ainda feita uma análise funda30
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me'ntada da relação entre a emergência da ideia de áreas culturais em antropologia, nos Estados Unidos, entre as Grandes Guerras e a formação plena, após a Segunda Guerra Mundial, dos estudos de área como um meio importante de olhar ' as partes estrategicamente significativas do mundo em desenvolvimento. Contudo, não r:estam dúvidas de que ambas as perspectivas nos inclinam para' Um tipo particular de em que os grupos e o tipo de vida que têm são marcados por diferenças de cultura; e na formação de estudos de área estas diferenças transitam para uma topografia de diferenças culturais nacionais. Portanto, as divisões geográficas, diferenças culturais e fronteiras nacionais tendem a t0I11fI'-se isomórficas e desenvolveu-se uma forte corrente que refracta os processos mundiais através desta espécie de mapa nacional-cultural do mundo. Os estudos de área trazem para este imaginário espacial um sentido forte, emda informação adquirida bora por vezes tácito, da importância nesta perspectiva. É esta a razão para as ligações tantas vezes apontadas entre Guerra Fria financiamento caovernativo e expansão universitária na " , organização dos centros de estudos de área após a Segunda Guerra MundiaL Não obstante, dos estudos de área veio o maior contraponto à ilusão que' é ver sem ponto de vista, subjacente a muita da ciência social canónica. Foi este aspecto da minha formação que me impeliu a situar a minha genealogia do presente global na área que melhor conheço: a Índia. ' Uma especial ansiedade rodeia agora as estruturas e ideologias dos es, tudos de área nos Estados Unidos. Reconhecendo que os estudos de área ligados a um quadro mundial estraandam de certo modo teaicamente submetido às necessidades de política externa dos Estados c , Unidos entre 1945 e 1989, figuras de proa do mundo das universidades, fundações, painéis de sábios e mesmo do governo tornaram claro que a velha maneira de realizar estudos de área não faz sentido no mundo posterior a 1989. Assim, aos 'críticos de esquerda dos estudos de área, muito influenciados pelos trabalhos de Edward Said sobre orientalismo, juntaram-se os liberalistas e advogados da liberalização, impacientes com o que, pejorativamente, designam por estreiteza e fetichismo histórico dos especialistas de estudos de área_, É costume considerar os es'pecialistas em 31
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estudos de área obstáculos a todos os estudos, sejam eles comparativos ou da contemporaneidade, versem a sociedade civil ou o mercado livre. Claro que uma crítica tão demolidora e tão súbita não pode ser inteiramente justa e a estranha miscelânea dos seus críticos sugere que a formação em estudos de área pode estar a ser vítima de uma falha mais importante da academia americana: a incapacidade de mostrar uma imagem mais alargada e mais presciente do mundo após 1989. Em estudos de área, a tradição é uma espada de dois gumes. Numa sociedade que notoriamente a excepção e uma infinita preocupação com a «América», esta tradição tem sido parco refúgio para um estudo sério das línguas estrangeiras, de visões do mundo alternativas e de perspectivas das grandes transformações socioculturais fora da Europa e dos Estados Unidos. pemonizados por uma certa tendência para a filologia (no sentido restrito, lexical) e para um excesso de identificação com as regiões da sua especialidade, os estudos de área, não obstante, têm sido um dos poucos contrapesos sérios à incansável tendência para marginalizar partes substanciais do mundo na academia americana e na sociedade americana em geral. Contudo, talvez os estudos de área tenham por tradição instalar-se demasiado confortavelmente nos seus mapas do mundo, sempre seguros das suas práticas especializadas, insensíveis aos processos transnacionais, tanto hoje como no passado. Por isso, impõem-se semdúvida a crítica e a reforma, mas como podem os estudos de área contribuir para melhorar o modo como normalmente se geram as imagens do mundo nos Estados Unidos? Da perspectiva avançada aqui e no resto deste livro, os estudos de área são uma maneira salutar de nos lembrarmos de que a globalização é em si um processo profundamente histórico, desigual e mesmo localizador. Globalização não implica necessariamente ou sequer frequentemente homogeneização ou americanização e, na medida em que sociedades diferentes têm modos diferentes de apropriar os materiais da modernidade, é. amplo o espaço para o estudo aprofundado de geografias, histórias e línguas específicas. A minha análise, nos capítulos 3 e 4, da relação entre , - história e genealogia não pode ser feita sem um forte sentido das realida32
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des da longue durée que sempre produzem geografiás esp:cíficas: tanto , reais como imaginárias. Se a genealogia das formas culturaiS trata da s'ua' O \ circulação nas regiões, a história destas formas trata da () as vai integrando nas práticas locais. A própria interacção de formas hiStóricas e genealógicas é desigual, 'diversíficada e contingent.e. Neste O, tido, a história, a impiedosa disciplina do contexto (na O' de E. P. Thômpson) é tudo. Mas reconhecê-lo não é uma garantia 0 de localismo do tipo que por vezes se 'associa aos estudos de área .. Seja () como for, os estudos de área são uma técnica de investigação especlfica() mente ocidental, dificilmente poderão assumir-se como simpÍ'es espelho do Outro civilizacional. O que é preciso reconhecer, se quisermOS revi ta() , lizar a tradição dos estudos de área, é que a própria' localidade éum proO histórico e que as histórias que permitem a emergência de localidades U acabam por ficar sujeitas à dinâmica do global. Desta te.se, cujo ponto,cul- "() ' minanteé recordar que o local em nada é simples, se encarrega o capItulo final deste 'livro. A revisão múltipla dos estudos de uma tradição em que tenho esü tado mergulhado nos últimos vinte e cinco anos, está subjacente à presença de dois capítulos sobre a Índia na parte central deste livro. Estes capítulos sobre o censo e sobre o críquete, servem de contraponto a esses outr;s que de outro modo pod,eriam parecer, .bem ... globais. Mas apresso-me a rogar que a lndia - neste lIvro - nao seja como um mero caso, exemplo ou modelo de algo mais lato do que ela. E antes um sítio para examinarmos como emerge a localidade num mundo gloQv balizado, como os processos coloniais subscrevem as políticas contemporâneas, como a história e a genealo§ia se mutuamen,te e como , factos globais assumem forma local . Nesse sentido, estes capItulos - e " as frequentes invocações da .Índia ao longo do livro - não são sobre. a (J Índia (tomada como facto natural), são sobre os processos de que emergIU a Índia contemporânea. Estou ciente da ironia (até contradição) de usar O um Estado-nação como âncora de referência num livro dedicado à " !ização e 'animado pelo sentido do fim da era do Mas aqUi a minha competência e as minhas limitações são dOIS lados da mesma I
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e agora. Os Estados-nações, enquanto unidades num complexo sistema interactivo, não têm granqes .hipóteses de servir de árbitros a lan'go prazo da relação entre globalidade e modernidade. Por isso insinuo, no meu título, que a modernidade não tem peias. . A ideia de que alguns Estados-nações,.estão em crise é um cavalo-de-batalhà nó campo da política comparada e foi, em certo sentido, a justificação de muita teoria da modernização, especialmente nos anos sessenta. A ideia de que há Estàdos fracos, doentes, corruptos ou moles anda no ar há várias décadas (lembram-se de Gunnar Myrdahl?). Mais recentemente, tem tido aceitação geral a ideia do nacionalismo como uma doenr ça, em particular quando se trata do nacionalismo alheio. A ideia de que todos ,os Estados-nações foram de algum modo demonizados por movi- , mentos globais de armas, dinheiros, doenças e ideologias também não é novidade nenhuma mi era das multinacionais. Mas a ideia de que o próprio sistema de Estado-nação está em risco não é lá muito popular. Neste livro, a minha atenção permanente ao hífen que liga Estado a nação integra-se na construção da: tese do fim próximo do Estado-nação. Esta ideia, que se situa algures entre um diagnóstico e um prognóstico, entre uma intuição . e uma convicção, precisa de ser clarificada. Primeiro, tenho que distinguir entre as componentes ética e analítica da minha tese. Na frente ética, sinto-me cada vez mais inclinado a ver nos modernos aparelhos governamentais uma propensão. para se perpetuarem, se empolarem·, para se tomarem violentos e corruptos. Aqui, tenho companhia, à esquerda e à direita.(A questão ética com que muitas vezes me confronto é: se o Estado-nação desaparece, que mecanismo irá assegurar a protecçãodas minorias, a distribuição mínima de direitos democráticos e as razoáveis possibilidades de um crescimento da sociedade civil? Res- . pOI1do que não sei, mas admiti-lo não é bem recomendar eticamente um sistema que enferma de doença crónica. Quanto às formas e possibilidades sociais alternativas, existem hoje formas e combinações sociais que poderiam conter a de formas mais dispersas e cttxersas de fidelidade e filiação transnacional) Esta ideia faz parte da tese do" capítulo 8, embora ' eu esteja pronto a admitir que Ocaminho que levam os diversos movimen-
moeda e convido o leitor a ver a Índia como uma ópúca, e não' como uJ ' facto social reificado ou um reflexo nacionalista em bruto, ! Fiz esta digressão em do facto de que qualquer livro so-' bre globalização é um suave exercício de megalomania, em especial quando produzido nas circunstâncias relativamente privilegiadas da investigação universitária americana. Afigura-se importante identificar as formas de cocaso, nhecimento que permitem que essa megalomaniase articule. No estas formas - a antropologia e os estudos de área - predispõem-me, por hábito, a fixar práticas, espaços e paises num mapa de diferenças estáticas. Isto é, à revelia da intuição, um perigo, mesmo num livro como este, conscientemente concebido dentro do interesse pela diáspora, a desterritorialização e a irregularidade das relações entre nações, ideologias e movimentos . . . 1 sociais. \
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Ciências sociais depois do patriotismo · A parte final do aqui e agora é um facto do mundo moderno que tem ' desafiado alguns dos melhores pensadores contemporâneos das ciências sociais e humanas: a questão do Estado-nação, a sua história, a sua crise ' actual, as suas prospectivas. Não comecei a escrever este livro com a cri- ' se do Estado-nação como preocupação principal. Mas nos ·seis anos em que foram escritos os seus capítulos, fui-me convencendo de que o Estado-nação, como forma política moderna complexa, está a dar as últimas. Não é de modo algum uma evidência nem se colhem daí os frutos. Sei que . nem todos os Estados-nações são iguais no que respeita ao imaoinário D nacIOnal, aos aparelhos de Estado ou à solidez do hífen entre os dois. Mas hájustificação para o que pode parecer uma visão ·reificada deste Estado-nação neste livro. Os com todas as suas importantes diferenças (e só um louco misturaria o Sri Lanka com a Grã-Bretanha), só fazem sentido se fizerem parte de um sistema. Este sistema se considerado um sistema de diferenças) mostra-se mal ,equipado para lidar com as diásporas combinadas de pessoas e imagens que marcam o aqui 34
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tos transnacionais em direcção a formas sustentadas de governação transnacional não é muito claro. Prefiro, porém, o exercício de procurar - ou melhor, imaginar - estas possibilidades alternativas a uma estratégia que considere uns Estados-nações mais saudáveis do que outros, assim sugerindo diversos mecanismos de transferência de ideologia. Esta última estratégia repõe a política de modernização-e-desenvolvimento, com o mesmo triunfalismo subjacente e as mesmas perspectivas nadasaudáyeis. . Se a frente ética da minha tese é necessariamente difusa, a frente analítica é um tanto mais nítida. Um exame, mesmo apressado, das relações dentro e entre os mais de 150 Estados-nações'que são membros actuais das Nações Unidas as guerras fronteiriças, as guerras culturais, a inflação galopante, a imigraçãoem massa de populações ou as fugas graves de capital ameaçam a soberania em muitas delas. Mesmo onde a soberania do Estado está aparentemente intacta" a legitimidade do Estado é, muitas vezes, incerta. E mesmo em Estados-nações tão aparentemente seguros como os Estados Unidos, o Japão e a Alemanha, as discussões sobre raça e direitos, nacionalidade e lealdade, cidadania eautoridade já não são culturalmente periféricas. Enquanto o argumento da longevidade da forma Estado-nação se baseia nestes casos aparentemente sólidos e legítimos, o outro argumento é inverso e baseia-se nos novosetnonacionalismos do mundo, nomeadamente os da Europa de Leste. Nos Estados Unidos, a Bósnia-Herzegovina é quase sempre apontada como o principal sintoma do facto de o nacionalismo estar vivo e doente, embora se invoquem ao mesmo tempo as democracias ricas para mostrar que o Estado-nação está vivo e de saúde. Dada a frequência com que se usa a Europa Ocidental para demonstrar que o tribalismo é profundamente humano, que o nacionalismo dos outros povos é tribalismo com maiúsculas e que a soberania territorial continua a ser o grande objectivo dos grupos étnicos, deixem-me propor uma interPretação alternativa. A meu ver, a Europa de Leste tem sido singular. mente distorcida em populares análises do nacionalismo na imprensa e na . academia nos Estados Unidos . Em vez de caso modal das complexidades de todos os etnonacionalismos contemporâneos, a Europa de Leste, e a sua
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face sérvia em particular, têm sido usadas para demonstrar o contiI}uado u t viaor-dos nacionalismos em que terra, língua, religião, história e sangue O I. i conaruentes, um exemplo de antologia do que é o nacionalismo. Claro 0 \ que o é fascinante na Europa de Leste, é que alguns dos seus ideól.ogos ' O ' I de direita convencera'm os jornais do Ocidente liberal de que o naCIOna,I O ,: lismo é política dos primórdios, quando' a verdadeira questão é porque o fizeram parecer isso mesmo. Assim, a Europa de t?rna-.se por O certo um caso fascinante e urgente de muitos pontos de VIsta, mclumdo Ü facto de precisarmos de ser cépticos quando os especialistas aqrmam ter Co) encontrado tipos ideais em casos reais. O Na maior parte dos casos de antinacionalismo, secessão, supranacionalismo ou revivalismo étnÍco em larga escala, ofactor comum é mais a CP ' autodeterminação doque a soberania territorial propriamente dita. Mesmo O nos casos em que o parece ser um factor fundamental, como a _ O ', Palestina, poder-se-ia afirmar que as discussões sobre terra e território são O de facto motes para teses que substancialmente se ocupam do poder, da 0_ justi,ça e da autodeterminação. Num mundo de gente em de mercantilização global e Estados incapazes de outorgar dIreItos baslcos O ,íf"b. . até às suas populaçÕes de maioria étnica (ver capo 2), a soberania territo;...J rial é uma justificação cada vez mais difícil para esses Estados-nações que cada vez mais dependem da mão-de-obra, dos cérebros, ,das armas e dos O ,soldados estrangeiros. É que, para os movimentos contranacionalistas, a O soberania territorial é o idioma plausível das suas aspirações, mas não po() demos confundi-la com uma lógica fundadora ou com a sua inquietação última. Fazê-lo é cometer o que chamarei a Falácia Bósnia, um erro que O (a) tomar as lutas ,étnicas da Europa de Leste por tribalistas.e pri() : mordiais, erro que o New York Times é campeão, e (b) consolIdar o _ ", erro tomando o caso da Europa de Leste por caso modal de todos os nacionalismos emergentes. Sair da Falácia Bósnia requer du as concessões difíceis: primeiro, que os sistemas políticos das nações ricas do ,Norte esü tivessem também em crise; segundo, que os nacionalismos em muitas partes.do mundo tivessem por base patriotismos que nãó sejam exclusiva nem fundamentalmente territoriais. Os argumentos a favor destas .
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concessões inspiram muitos dos capítulos deste livro. Ao defendê-los, nem sempre achei fácil manter a distinção entre as perspectivas analítica e ética do futuro do Estado-nação, embora o tenha tentado. No momento em que o Estado-nação entra numa crise terminal (se os meus prognósticos se revelarem correctos), por certo seria de esperar que os materiais para um imaginário pós-nacional estivessem já presentes. Neste ponto, penso que devemos prestar particular atenção à relação entre comunicação de massas' e migração, dois factos na base do sentido que dou à política cultural do moderno global. Precisamos, em particular, de ter em atenção tudo o que tem emergido como esfera pública de diáspora. Benedict Anderson fez-nos um favor ao identificar o modo como certas formas de comunicação de massas, nomeadamente as que se referem a jor- . nais, romances e demais comunicação impressa, desempenharam o papel capital de imaginar a nação e facilitar a difusão desta forma de mundo colonial na Ásia e noutros pontos. A minha tese geral é que há uma relação semelhante a descobrir entre a obra da imaginação e a emergência de um mundo político pós-nadonal. Sem o benefício da reflexão a posteriori (que temos para o percurso global da ideia de nação), é difícil equacionar com eficácia o papel da imaginação numa ordem pós-nacional. Mas como os meios de comunicação de massas estão cada vez mais dominados pela comunicação electrónica (e assim desligados da capacidade de ler e escrever) e como esses meios cada vez mais ligam entre si produtores e pú-blicos para além das fronteiras nacionais, como os próprios públicos dão início a novas conversas entre os que se deslocam e os que ficam, descobrimos um número crescente de esferas-públicas de diáspora. Estas esferas da diáspora andam muitas vezes ligadas a estudantes e outros intelectuais interessados no nacionalismo longínquo (como os ac:" tivistas da República Popular da China). A instauração da maioria negra na África do Sul abre um novo tipo de discurso de democraCia racial em bem como nos Estados Unidos e nas Caraíbas. O mundo islâmico é o exemplo mais conhecido de todo um leque de debates e projectos que pouco têm a ver com fronteiras nacionais. Religiões que no passado foram resolutamente nacionais servem agora com vigor missões glObais e clien- 38
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telas de diáspora: o hinduísmo global da década de oitenta é o melhor _exemplo isolado deste processo. Os movimentos activistas em torn"o do ambiente, das questões femininas e dos direitos humanos, na sua generalidade, criaram uma esfera de discurso transnacional, muitas vezes assente ria autoridade_ moral de refugiados, exilados e outros deslocados. Grandes movimentos separatistas transnacionais, como os. siques, os curdos e os tâmiles do Sri Lanka constroem a imagem de si em sítios de todo o mundo, onde quer que tenham membros suficientes para que aPareçam múltiplas células numa esfera pública de diáspora maior. A onda de debates sobre multiculturalismo que tem percorrido os Estados Unidos e a Europa é seguramente testemunha da !ncapacidade de impedir as suas populações minoritárias de relacionarem com círculos mais amplos de filiação religiosa ou étnica. Estes e outros exemplos sugerem que a era em que podíamos supor que as esferas públicas viáveis são típica, exclusiva ou necessariamente nacionais pode estar a chegar ao fim. As esferas públicas de diáspora, cheias de diversidade entre si, são os cadinhos de uma ordem política pós-nacional. O motor do seu discurso são os meios da comunicação de massas (tanto interactiva como expressiva) e o movimento dos refugiados, activistas, estudantes e trabalhadores. Pode muito bem ser que a ordem pós-nacional emergente se revele não um sistema de unidades homogéneas (como o actual sistema de -EstadosI -nações), mas um sistema baseado nas relações entre unidades heterogéneas (certos movimentos sociais, certos grupos de interesses, certos I grupos profissionais, certas organizações não governamentais, certas colecti vidades armadas, certos corpos judiciais). O desafio que se põe a esta ordem emergente é saber se essa heterogeneidade é coerente com conven"" " ções mínimas de norma e de valor, o que não requer uma adesãO estrita . ao contrato social liberal do Ocidente moderno. A resposta a esta questão I fatal não virá de um fiat académico, mas de negociações (tanto ordeiras imaginados por esses diferentes interescomo violentas) entre I ses e mo vimentos. A curt6- prazo, como já podemos ver, é provável que I seja um mundo de incivilidade e violência cada vez maiores , A longo pra-
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livres dos constrangimentos da forma nação, podemos vir a descobrir que a liberdade cultural e a justiça fundamentada no mundo não pressupõem a existência uniforme e generalizada do Estado-nação. Esta possibilidade inquietante poderá ser o' mais estimulante dividendo .de viver a modernidade sem peias.
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1963). As duas princip·ais forças de interacção cultural duradoura antes deste século foram a guerra (e os grandes sistemas políticos que por . vezes a geraram) e as religiões de conversão que por vezes tiveram como . foi ,0. caso do islão, a guerra como um dos seus instrumentos de legItImos. Portanto, entre viajantes e mercadores, peregrinos e conquistadores, o mundo tem visto muito tráfego cultural de longo (e longo- I prazo). Até aqui, é tudo evidente. . I poucos negarão que, dados os problemas de ·tempo e de distância tecnologias para a gestão de recursos em espaços muito vase as tos, os tramItes culturais entre grupos socialmente e espacialmente sepa- I rados foram efectuados com grande custo e só com muito esforço se prolongaram no tempo. As forças de gravidade cultural parecem puxar para longe da formação de ecúmenos em larga escala, sejam eles rehgIosos, comerciais ou políticos, para atreções de intimidade e interesse de escala menor. .Algures nos séculos transactos, parece rer mudado a natureza deste camEmpartepor causa da expansão dos interesses marítimos . . po. OCIdentaIS a seguir a 1500, em parte por causa do" desenvolvimento relativamente autónomo de formações sociais vastas e agressivas nas Américas . (como os Astecas e os Incas), na Eurásia (como os Mongóis os seus desos Mogóis e os ,Otomanos), no Sueste Asiático insular (como os e nos r.einos da Africa pré-colonial (como o Daomé), começa a um de ecúmenos sobrepostos, em que conglomerados de conquista e migração se mo·stram capazes de criar vínmtersocletais duradouros. Este processo foi aceleradO pelas transferencIas de tecnologia e pelas inovações do fim do século XVIII e século XIX (e. .Bayly, 1989), que criaram ordens coloniais complexas com base em europeus se difundiram no mundo extra-europeu. Este conjunto de mundos eurocoloniais (primeiro espanhóis e mtrIncado e portugueses, maiS tarde sobretudo ingleses, franceses e holandeses) esteve base de um permanente tráfego das ideias de povo e indivíduo, as quais cnaram por sua vez as comunidades imaginadas (Anderson, 1983) dos recentes nacionalismos em todo o mundo.
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U Com aquilo a que Benedict Anderson chamou «capitalismo impresso», U lançou-se no mundo um novo poder, o poder da literacia de massas e da respectiva produção em -larga escala de projectos de afinidade étnica isen- l ) tos, o que é notável, da necessidade de comunicação presencial ou mesmo de comunicação indirectaentre pessoas e grupos. acto de ler coisas em U conjunto dispôs o cenário para movimentos baseados num paradoxo: o pa- U radoxo do primordialismo construído. Claro que há muito mais coisas contidas no percurso do colonialismo e nos nacionalismos que ele gerou dialecticamente (Chatterjee, 1986), mas a questão das etnicidades construídas é sem dúvida uma fase crucial deste percurso. A revolução do impresso e as afinidades culturais e diá- () logos por ela desepcadeados foram, porém, apenas modestos precursores () do mundo em que hoje vivemos; Com efeito, no século que passou· veriCJ ficou-se uma explosão tecnológica, dominada em grande medida pelos transportes e pela inforniação que faz com que as interacções de um mun- O do dominado pela imprensa pareçam tão duras de ganhar e tão fáceis de · U eliminar como pareciam :as formas anteriores de tráfego cultural à luz da (J revolução da imprensa. É que, com o advento do navio a vapor, do auto- · 0 móvel, do avião, da fotografia, do computador e do telefone, entrámos numa fase inteiramente nova das relações de vizinhança, mesmo daqueles que estão muito distantes de nós. Marshall McLuhan, entre outros, procurou teorizar este mundo como «aldeia global», mas as teorias ·como esta parecem ter sobrestimado as implicações comunitárias da nova ordem da comunicação (McLuhan e Powers, 1989). Sabemos agora que, quando se , trata de meios de comunicação, de cada vez que queremos falar de aldeia global, há que não esquecer que eles criam comunidades «sem sentido do lugar» (Meyrowitz, 1985). mundo em que hoje viVemos é rizomático 'o,., (Deleuze e Guattari, 1987) ou mesmoesquizofrénico; requer teorias dO "desenraizamento, da alienação e da distância psicológica entre indivíduos e grupos por um lado, das fantasias (ou pesadelos) da contiguidade elec. trónica por outro. E aqui aproximamo-nos da problemática central dos ·'''\'processos culturais no mundo actual. Portanto, a curiosidade pela Ásia que Pico Iyer despertou recentemente
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(1988) é de certo modo produto de uma confusão entre uma inefável mcdonaldização do mundo e o jogo muito mais subtil das trajectórias indígenas do desejo e do medo com fluxos globais de pessoas e coisas. Com · efeito, as próprias impressões de Iyer testemunham que, se é certo que está a emergir um sistema cultural global, ele está porém cheio de ironias e resistências, por vezes camufladas de passividade e de um apetite insaciável ' do mundo as-iático pelas coisas do Ocidente. A própria explicação de Iyer para a estranha afinidade filipina pela música popular americana é um rico testemunho do culto global do hicanções popuper-realista, pois, de certo modo, as versões filipinas lares americanas não só são as mais ouvidas nas Filipinas como .são mais perturbadoramente fiéis às suas origens do que o são hoje nos Estados Unidos. Toda uma nação parece ter aprendido a mima·r Kenny Rogers e as irmãs Lennon, como um grande coro Motown asiático . Mas americanização é por certo um pálido termo para aplicar a esta situação, pois não só são mais filipinos do que americanos a cantar versões perfeitas . de algumas canções americanas (muitas vezes do passado americano), como também se verifica, evidentemente, que o resto das suas vidas não está em completa sincronia com o mundo de referência de onde são ori· ginárias as canções. I
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Em mais um passo para a globalização no que Frederic Jameson chamou recentemente «nostalgia do presente» (1989), estes filipinos contem. pIam um mundo·passado que nunca perderam. Aqui reside uma das grandes ironias da política dos fluxos culturais globais, especialmente no campo do entretenimento e diversão. Faz um jogo demolidor com a hegemonia da eurocronologia. A nostalgia americana alimenta o desejo filipino representado como reprodução hipercompetente. Trata-se de nostalgia sem memória. É evidente que o paradoxo tem as suas explicações, ·e são históricas; intactas, elas põem a nua questão da missionação americana e da violação política das Filipinas de que resultou, entre outras coisas, a criação de uma nação de americanos a fingir que aturaram durante tanto tempo uma primeii'\ dama que tocava piano enquanto os bairros da lata se expandiam e degffldavam em Manila . .os mais radicais dos pós-
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-modernos talvez achem que não é para ádmirar, porquanto na crónica das. peculiaridades do capitalismo tardio, o pastiche e a nostalgia sã.o modos essenciais de produção e recepção de imagens. Os próprios Americanos já não estão bem no presente quando tropeçam nas megatecnologias do século XXI com roupagens defilm no ir dos anos sessenta, de jantares dos anos cinquenta, de moda dos anos quarenta, de dos anos trinta, de danças dos anos vinte e assim por diante, ad úzfinitum. No que respeita aos Estados Unidos, poder-se-ia sugerir que a ql1estão já não é nostalgia, ma.s um imaginaire social amplamente construído sobre reposições . Jamesonnão hesitou em relacionar a política da Jnostalgia com a sensibilidade mercantil pós-moderna, e por certo tem razao (1983). As guerras da droga na Colômbia recapitulam os suores do Vietname, com Ollie.North e a sua sucessão de máscaras Jimmy Stewart esconde John Wayne que esconde Spiro Agnew e todos eles se transfiguram em Sylvester Stallone, que ganha no Afeganistão .- , satisfazendo ao mesmo tempo a secreta inveja que a América tem do imperialismo soviético e a . reposição (desta vez com happy ending) da guerra do Vietname. Os Rolling Stones, quinquagenários, circulam entre rapaziada de dezoito anos que parece não precisar do mecanismo de nostalgia para embarcar nos he- . róis dos seus pais. Paul McCartney vende os Beatles a novos públicos colando a sua nostalgia oblíqua ao desejo deles de novidade a cheirar a velho. Dragnet regressa travestido de anos noventa, bem com9 Adam-12, para não falar de Batman e de Missão: Impossível, tudo em roupagem tecnológica, mas notavelmente fiel à atmosfera dos originais. O passado deixou de ser uma pátria a que regressar numa simpies operação de memória. Tornou-se um armazém ·sincrónico de enredos cultUrais, uma espécie de central de ccisting temporal a que recorrer apropriadamente, conforme o filme a realiúr, a peça a encenar, os reféns a salvar. Tudo isto está em forma para corrida, se seguirmos Jean Baudrillard ou Jean-François Lyotard ao interior de um mundo de signos totalmen te desatracados do seu significado social (todo o mundo é uma Disneylândia). Mas oaostaria de suaerir que a possibilidade aparentemente crescente de o . substituir todo um período ou postura por outros nos estilos culturais do
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globalmente definidos. Este desatar da imaginação liga o jogo do pastiI che (em certos cenários) ao terror e à coerção dos Estados e doS' seus -,'----J \ lJ \ competidores. A imaginação está agora no centro de todas as formas de acção, é em si um facto social e é o componente-chave da nova ordem ' global. Mas, para o podermos afirmar com sentido, temos que abordar U outras questões.
capitalismo avançado está ligada a forças globais mais vastas que muito fizeram para mostrar aos Americanos que o passado é normalmente outro país. Se o teu presente for o futuro deles (como em tanta teoria de modernização 'e em muitas fantasias turísticas gratificantes), se o futuro deles for o teu passado (como no caso dos virtuosi filipinos da música popular americana), então o teu passado pode apresentar-se como uma simples modalidade normalizada dõ teu presente. Assim, embora alguns antropólogos continuem a relegar os seus Outros para espaços temporais que eles próprios não ocupem (Fabian, 1983), as produções culturais pós-industriais entraram numa fase pós-nostálgica. ' O ponto crucial, porém, é que já não são os Estados Unidos quem puxa os cordelinhos de um sistema mundial de imagens, pois não passam de um elo de ,uma complexa construção transnacional de paisagens imaginárias. O mundo em que hoje vivemos caracteriza-se por um novo papel da imaginação na vida social. Para o compreendermos, precisamos de recuperar a velha ideia de imagem, em especial as imagens produzidas mecanicamente (no sentido da Escola de Frankfurt); a ideia da comunidade imaginada (no sentido de Anderson); e a ideia francesa do imaginário (imaginaire) como paisagem construída de aspirações colectivas, que não é mais nem menos real do que as representações colectivas de Émile Durkheim, agora mediatizadas pelo prisma compleXo dos meios de comunicação modernos. Imagem, imaginado, imaginário: são tudo termos que nos orientam para algo de fundamental e de novo nos processos culturais globais: a imaginação como prática social. Já não é mera fantasia (ópio do povo cuja verdadeira função está alhures), já não é simples fuga (de um mun.:. do definido principalmente por objectivos e estruturas mais concretos), já não é passatempo de elites (portanto, irrelevante para as vidas da gente comum), já não é mera contemplação (irrelevante para novas formas de desejo e de subjectividade), a imaginação tornou-se um campo orga-. nizado de práticas sociais, uma maneira de trabalhar (tanto no sentido do labor como no de prática cultllfalmente organizada) e uma forma de negociação entre sedes de acção (fl\divíduos) e campos de possibilidade 48
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Homogeneização e heterogen.eização
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o problema no centro das interacções globais de hoje é a tensão entre
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homogeneização cultural e heterogeneização cultural. Poder-se-ia invocar toda uma série de factos empíricos a favor dq lado da homogeneização e muitos deles vieram do lado -esquerdo do espectro dos estudos sobre comunicação (Hamelink, 1983; Mattelart, 1983; Schiller, 1976), alguns de outras perspectivas (Gans, 1985; Iyer, 1988). Atese da ramifica-se quase sempre, quer na- tese da americanização, quer na tese da mercantilização e quase sempre as duas andam intimamente ligadas. O que estas posições não consideram é que pelo menos tão rapidamente quanto são trazidas para as novas sociedades, as forças de várias metró- , poles tomam-se indígenas de uma maneira ou de outra; isto é verdade para a música e para os tipos de habitação como o é para a ciência e o terrorismo, os espectáculos e as constituições. A dinâmica desta indigenização mal começou a ser explorada sistematicamente (Barber, 1987; Feld, 1988; 1987, 1989; Ivy, 1988; Nicoll, 1989; Yoshimoto, 1989) e muito mais há a fazer. Mas há que notar-que para o povo de Irian Jaya a indonesianização pode ser mais preocupante dó que a americanização, comO o pode ser aniponização para os Coreanos: a indianização para os galeses, a vietnamização para os Cambojanos e a russificação para 6 povo da Arménia soviética e para as repúblicas bálticas. Esta lista de medos al- , ternativos à americanização poderia ser muito maior, mas não é um inhá sempre o medo ventário amorfo: para comunidades de menor da absorção cultural por comunidades de maior escala, sobretudo pelos vi-
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zinhos. Uma comunidade imaginada pelo homem é mais uma prisão política para o homem. . Esta dinâmica escalar, que tem difundido manifestações globais; está também ligada à relação entre Estados e nações, a que voltarei mais tarde. De momento, .notemos que a simplificação destas muitas forças (e medos) de homogeneização pode também ser explorada por Estados-nações relativamente às suas próprias minorias mediante apresentarem a mercantilização (ou o capitalismo, ou qualquer outro inimigo externo) como mais real do que a ameaça das suas próprias estratégias hegemónicas. . A nova economia cultural global tem que ser considerada uma ordem complexa, estratificante, disjuntiva, que já não podemos compreender nos termos dos modelos preeXistentes (mesmo os que podem explicar centros ' e 'periferias múltiplos). Também não é susceptível de modelos simples de promoção-retracção (em termos de teoria das migrações), ou de excedentes e défices (como nos modelos tradicionais de balança comercial), ou de consumidores e produtores (como na maior parte das teorias neomarxistas do desenvolvimento). Mesmo as teorias mais complexas e flexíveis do desenvolvimento global surgidas da tradição marxista (Amin, 1980; MandeI, 1978; Wallerstein, 1974; \Volf, 1982) são inadequadamente rebuscadas e não conseguiram entender-se como que Scott Lash e John Urry chamaram capitalismo qesorganizado (1987). A complexidade da economia global actual tem a 'ver com certas disjunturas fundamentais entre economia, cultura e política , ., . 1 que começamos Ja a teonzar . Proponho um esquema elementar para explorar essas disjunturas: ver a relação entre cinco dimensões de fluxos culturais globais a que podemos chamar (a) etnopaisagens, (b) mediafaisagens, (c) teenopaisagens,. (d) financiopaisagens e Ce) ideopaisagens . Paisagem como sufixo pemute-nos apontar a forma fluida, irregular destes horizontes, formas que caracterizam o capital internacional tão profundamente como a moda internacional do vestuário. termos com paisagem como sufixo comum indicam tarn-' bém que estas não são relações objectivamente dadas que parecem o mesmo de todos os ângulos de visão, são construções profundamente perspectiva50
das, inflectidas pela localização histórica, linguística e política de diferentes tipos de actores: Estados-nações, empresas multinacionais, comunidades da diáspora, bem como grupos e movimentos subnacionais (sejam religiosos, políticos ou económicos); e mesmo' de grupos íntimos e próximos,. como aldeias, bairros e famílias. Com efeito, o indivíquó actuante é o último loeus deste conjunto perspectivado de paisagens, pois estas acabam por ser percorridas por agentes que vivem e constituem formações maiores, em parte à custa do seu próprio sentido do que essas paisagens oferecem . Estas paisagens são portarito o material de construção do qU? (por extensão de Benedict Anderson) chamarei mundos imaginados, isto é, os . múltiplos universos que são constituídos por imaginações historicamente situadas de pessoas e grupos espalhados pelo globo (cap. 1). Um facto importante no mundo em que hoje vivemos é que em t?do o globo muitas . pessoas vivem nesses mundos imaginados (e não apenas em comunidades ' imaginadas), sendo portanto capazes de contestar e por vezes até. de sub- . verter os mundos imaginados ria mente oficial e na mentalidade empre:" sarial que as rodeia. Por etnopaisagem designo a paisagem de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, traba.lhadores convidados e outros grupos e indivíduos em movimento constituem um aspectQ essencial do mundo e afectar a política das nações (e entre as nações) a um grau sem precedentes. Não quero com isto dizer que não haja. comunidades e redes de parentesco, amizade, trabalho e lazer; bem como de nascimento, residência e' outras formas de filiação relativamente estáveis. Quero' dizer qUe por toda a parte o tecido destas estabilidades é feito no tear dos movimentos humanos, à -----, rried{da que aumenta o número de pessoas e grupos que têm que enfrentar a realidade de terem que se deslocar ou as fantasias de quererem deslocar-se. Além disso, estas realidades e estas fantasias funcionam agora em maior escala, pois os homens e mulheres das aldeias da Índia não pensam apenas em deslocar-se a Poone ou Madrasta, mas sim em m.udarem-se para o Dubai e para Houston, os refugiados do Sri Lanka encontram-se 51
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tanto no Sul da Índia como na Suíça, tal como os Hmong vão para Londres ou para Filadélfia. E como o capital internacional desloca as suas necessidades, como a produção e a tecnologia vão gerando necessidades diferentes, como os Estados-nações alteram a sua política para populações refugiadas, estes grupos em movimento podem nunca conseguir deixar descansar por muito tempo a: sua imaginação. Por tecnopaisagem refiro-me à configuração global, sempre tão fluida, da tecnologia e ao facto de a tecnologia, tanto a alta como a baixa, a mecânica e a informacional, transpor agora a grande velocidade diversos tipos de fronteiras antes impenetráveis. Hoje, são muitos os ·paÍses onde a empresa multinacional tem raízes: um grande complexo siderúrgico na Líbia pode implicar interesses da Índia, China, Rússia e Japão, fornecedores de diferentes componentes de novas configurações tecnológicas. A distribuição desigual das tecnologias, logo, as peculiaridades destas sagens são cada vez menos determinadas por uma óbvia economia de escala, controlo político ou racionalidade dO$ mercados, e mais pelas relações de complexidade crescente entre fluxos monetários, possibilidades políticas e pela disponibilidade de mão-de-obra, qualificada e indiferenciada . Portanto, a Índia, ao mesmo tempo que exporta criados de mesa e motoristas para o Dubai e para Sharjah, exporta também engenheiros para os Estados Unidos - contratados por pouco tempo para a Tata-Burroughs ou para o Banco Mundial, depois branqueados pelo Departamento de Estado para se tomarem abastados estrangeiros residentes que são por sua vez objecto de mensagens sedutoras no sentido de investirem o seu dinheiro e competência em projectos federais e estatais na Índia. Continuamos a poder referir-nos à economia' global nos termos dos indicadores tradicionais (como faz o Banco Mundial) e estudá-la rios termos das comparações tradicionais (como no Projecto Link, da Universidade da Pensil:vânia), mas as complicadas tecnopaisagens (e as etnopaisagens em transiçã-o) subjacentes a estes iridicadores e comparações estão mais longe d9 alcance da rainha das ciências sociais do que nunca. Como é que se há-de uma comparação significativa dos salários do Japão com os dos Estàdos Unidos ou . do preço do imobiliário em Nova Iorque e em Tóquio
sem ter em grande atenção os fluxos fiscais e 'de investimento, extrema- ' mente complexos, que ligam as duas economias através de uma .grelha global de especulação monetária e transferência de capitais? Portanto, é-nos também útil falar de financiopaisagem, pois a dispo- (j. ii:f r, sição do capital global é hoje uma paisagem mais misteri.osa, rápida e diO fícil de seguir do que n:\lnca, já que os mercadós de capitais, as bolsas na( \ t } cionais e a especulação' comercial se movem nas placas ' giratórias i nacionais a uma velocidade estonteante, com implicações vastas e abso- C.J 1 í lutas para as pequenas diferenças de pontos percentuais e unidades de W tempo. Mas a questão fulcral é que a relação global entre etn9paisagens, tecnopaisagens e financiopaisagens é profundamente disjuntiva e ' totalmente imprevisível, porque cada uma dessas paisagens está sujeita aos seus próprios constrangimentos e incentivos (uns políticos, outros informacionais, outros técnico-ambientais) ao mesmo tempo que cada uma delas actuacomo constrangimento e parâmetro dos movimentos das outras. () ("" ) Assim, mesmo um modelo elementar de economia política global tem que '-<.d1 ter em linha de conta as relações profundamente disjuntivas entre' movimento humano, fluxo tecnológico e transferências financeiras : lJ Em refracção destas disjunturas (que aliás não chegam a formar uma O infra-estrutura mecânica global simples) estão o que chamarei mediapaisagens ou ideopaisagens, que são paisagens iconográficas intimamente ' relacionadas. Mediapaisagem refere-se à distribuição da capacidade elecC) trónica para produzir e disseminar informação Uornais, revistas: estações O de televisão e estúdios de produção de filmes) que estão agora ao dispor ü de um número crescente de interesses privados e públicos em todo o mun() do e das imagens do mundo criadas por esses meios de comuriiçação. Estas imagens encerram muitas inflexões complicadas; conforme o seu géÜ .... nero (docUmentário ou diversão), as suas ferramentas (electrónicas ou ... O pré-electrónicas), os seus públicos (local, nacional, transnacional) e os in() . teresses daqueles que as detêm e controlam. O aspecto mais importante destas mediapaisagens é que fornecem (especialmente sob a sua forma de televisão, cin
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profundamente misturados o mundo da mercadoria e o mundo das notícias e da política. O que isto significa é que para muitos públicos em todo o mundo os próprios meios de comunicação são um repertório complicado e interligado de imprensa, celulóide, ecrãs electrónicos e painéis de rua. As linhas qivisórias entre as paisagens realistas e ficcionais que vêem estão esbatidas, de modo que, quanto mais longe estes públicos estão da experiência directa da vida metropolitana, maior a probabilidade ,de construírem mundos imaginados que serão objectos quiméricos, estéticos, até fantásticos, particularmente se avaliados pelos critérios de outra perspectiva, de outro mundo imaginado. As mediapaisagens, 'sejam elas_ produzidas por interesses privados ou , públicos, tendem a ser explicações centradas na imagem, com base narrativa, de pedaços da realidade, e o que oferecem aos que as vivem e as transformam é uma série de elementos (como personagens, enredos e formas textuais) a partir dos quais podem fomar vidas imaginadas, as deles próprios e as daqueles que vivem noutros lugares. Estes enredos podem . desagregar-se, e desagregam-se, em complexos conjuntos de metáforas em que as pessoas vivem (Lakoff e Johnson, 1980), pois ajudam a constituir narrativas do Outro e protonarrativas de vidas possíveis, fantasias que podem tornar-se prolegómenos ao desejo de aquisição e movimento. As ideopaisagens são também concatenações de imagens, mas são muitas vezes directamente políticas e com frequência têm a ver com lagias de Estados e contra-ideologias de movimentos explicitamente orientados para a tomada do poder de Estado ou de um bocado dele. Estas são compostas por elementos da visão do mundo iluminista que consiste num encadeado de ideias, termos e imagens, entre os quais liberdade, prosperidade, direitos, soberania, representação e o termo dominante, democracia . A narrativa dominante do Iluminismo Ce das suas muitas variantes no Reino Unido, França e Estados Unidos) foi construída com uma certa lógica interna e pressupunha uma certa relação entre leitura, representação e esfera pública. (Sobre a dinâmica deste processo nà história inicial dos Estados Unidos, ver Warner, 1990.) Mas a diáspora destes termos e imagens por todo o mundo, especialmente a partir do sé54
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culo XIX, aligeirou a coesão interna que os mantinha unidos numa narrativa dominante euro-americana, substituindo-a por uma sinóptica da política pouco estruturada em que diferentes Estados-nações, no processo da sua evolução, organizaram a sua cultura política e que gira em torno de diferentes palavras-chave (e. g., Williams, 1976). _ ' Em resultado das diferentes diásporas destas palavras-chave, as narrativas políticas que regem a comúnicação entre elites e apoiantes em diferentes partes do mundo comportam probiemas de natureza semântica e pragmática: semântica, na medida em que as palavras (e os seus equivalentes 1exicais) requerem, nos seus movimentos globais, cuidadosa tradll;Ção de contexto para contexto; e pragmática, na medida em que o uso dessas palavras por agentes políticos e seus públicos pode estar sujeito a conjuntos muito diferentes de con\'enções contextuais que mediatizam a sua traaução para a política oficial. Essas convenções não são apenas questões de retórica política: por exemp10, o que querem os vetustos dirigentes chineses dizer quando se referem aos perigos do hooliganismo? O que querem os dirigen- . tes sul-coreanos dizer quàndo falam de disciplina como chave par:a o crescimento industrial democrático? , . Estas convenções implicam tarribém uma questão muito mais subtil: que conjuntos de géneros comunicacionais são valorizados e de que modo Uornais contra cinema, por exemplo) e que espécie de convenções de género pragmático regem as leituras colectivas de diferentes tipos de textos. Assim, enquanto na Índia o público pode estar atento às ressonâncias de um discurso político em termos de certas palavras-chave e frases reminis'centes do cinema hindu, um público coreano pode reagir aos códigos subtis da retórica budista ou neoconfuciana encriptada num documento político; A própria relação de ler com ouvir e ver pode variar em importantes aspectos que determinam a morfologia destas diferentes ideopaisagens . quando tomam forma em diferentes contextos nacionais e transnacionais. Quase ninguém ' reparou nesta sinestesia globalmente variável, mas impõe-se uma análise urgente. Portanto, democracia um termo dominante, com poderosos ecos desde o HaItl e a''froloma ate à antiga União Soviética e à China, rrias está no centro de uma série de 55
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ideopaisagens, apostas de diferentes configurações pragmáticas de traduções toscas de outros termos centrais do vocabulário do Iluminismo. E por isso se criam continuamente novos caleidoscópios terminológicos, pois os Estados (e os grupos que os querem conquistar) procuram pacificar populações cujas etnopaisagens estão em movimento e cujas mediapaisagens podem criar graves problemas às ideopaisagens que se lhes deparam. A fluidez das ideopaisagens complica-se em particular por causa da creScente diáspora (voluntária e involuntária) de intelectuais que continuamente injectam novas correntes de significado no discurso da democracia, em diferentes partes do mundo. . . Esta longa análise terminológica dos .cinco termos que criei serve de base para uma tentativa de formulação das condições em que ocorrem os actu:üs fluxos globais: ocorrem dentro e através da crescente disjuntura das etnopaisagens, tecnopaisagens; mediapaisagens e ideopaisagens. Esta formulação, que é o cerne do meu modelo de fluxo cultural global, requer algumas explicações. Primeiro, povo, maquInaria, dinheiro, imagens e ideias seguem hoje caminhos cada vez mais anisomórficos; claro que em todos os períodos da história humana houvedisjunturas no fluxo destas coisas, mas a mera velocidade, a escala e o volume de cada um desses fluxos são agora tão grandes, que as disjunturas se tornaram fulcrais para as políticas da cultura global. Os Japoneses são particularmente receptivos a ideias e sao estereotipados como propensos a exportar (todas) e a importar (algumas) mercadorias, mas estão também notoriamente próximos da imigração, como os Suíços, os Suecos e os Sauditas. No entanto, os Suíços e os Sauditas aceitam populações de trabalhadores convidados, assim criando diásporas laborais de turcos, italianos e outros grupos circum-mediterrânicos. Alguns desses grupos de trabalhadores convidados mantêm contacto continuado com as suas nações de ori. gem, como os turcos, mas outros, como os migrantes sul7asiáticos de alto nível, tendem a desejar viver nas suas novas pátrias, levantando de raiz o problema da reprodução num contexto desterritorializado. A destenitorialização, em geral, é uma das forças fulcrais do mundo moderno porque traz as classes trabalhadoras para os sectores da classe ..
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baixa e pa;ao espaço de sociedades relativamente abastadas, ao. mesmo I-J I tempo que cria, por vezes, um sentido exagerado e intensificado da crítica ,., ou do apego à política na pátria de acolhimento. A destenitorialização, seja de hin·dus, de siques, de palestinianos. ou de ucranianos, está agora O ,\ no' âmago de uma série·de fundamentalismos globais, incluindo o funda- C) islâmico e o hindu: NÇ> caso hindu, por exemplo, é evidente O ,i que o deslocamento transoceânico inoianos explora?o por va- O riados interesses, dentro e fora da India, para cnar uma complIcada rede () de identificações financeiras e religiosas através das quais o problema da reprodução cultural dos hindus no estrangeiro ficou ligado ãpolítica interna hindu do fundamentalismo. . O Ao mesmo tempo, a desterntorialização cria novos mercados para as O . produtoras de filmes, empresários das artes e agências ?e que O . apostam na contacto da população com O o país de origem. Naturalmente, estas pátrias inventadas, constituem as mediapaisagens de grupos desterritorializados, podem mUltas vezes tor- · nar-se fantásticas e unilaterais o bastante para fornecerem material para O novas "ideopaisagens em que podem começar a irromper conflitos étnicos. A criação de Calistão, uma pátria inventada para a população sique des- O territorializada de Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, é um exemplo do O potencial sanguinário dessas mediapaisagens quando interagem com os (e. g., Hechter, 1975). A Margem () colonialismos internos do Ocidental [do Jordão], a Namíbia e a Eritreia são outros teatros onde se O encen.a a negociação sanguinária entre Estados-nações existentes e vários C) grupos destenitorializados. ., (J É no terreno fértil da destenitorialização, em que dmheuo, merca,, \ ' dorias e pessoas Sé dedicam a caçar-se mútua e incessantemente à roda ;:. do mundo, que as mediapaisagens e ideopaisagens do mundo moderno . """ encontram a sua contrapartida fracturada e fragmentada. É que as ideias C e as imagens produzidas pelos meios' de comunicação de massas são muitas vezes apenas guias parciais para os bens e experiências as populações desterritorializadas transferem umas para as outras. No brilhante fil!ile de Mira Nair, lndia Cabaret, vemos as inúmeras voltas des-
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ta desterritorialização forçada quando jovens mulheres, quase sem con- : corrência na boémia metropolitana de Bombaim, vêm para a cidade em i busca de fortuna como dançari.nas e prostitutas de cabaré, atender os homens em clubes com números de dança inteiramente derivados das es- . caldantes sequências dançadas dos filmes indianos. Estas cenas, por sua : vez, veiculam ideias sobre as mulheres ocidentais e estrangeiras e sua liberalidade, ao mesmo tempo que fornecem a essas mulheres simulacros de carreiras como álibi. Algumas dessas mulheres são de Kerala, onde floresceram os cabarés e a indústria dos filmes pornográficos, em parte em função da bolsa e dos gostos de autóctones retornados do dia Oriente, onde a vida de diáspora longe das mulheres distorceu neles o próprio sentido do que possam ser as relações entre homens e mulheres. Estas tragédias de deslocamento por certo poderiam ser revistas numa análise mais atenta das relações entre as excursões sexuais japonesas e alemãs à Tailândia e as tragédias do comércio de sexo em Ban:. guecoque e outros elos semelhantes que encadeiam fantasias sobre o Outro, as conveniências e seduções da viagem, a economia do comércio global e as brutais fantasias de mobilidade que dominam as políticas sexuais em muitos pontos da Ásia e no mundo em geral . . Embora muito mais se pudesse dizer sobre a política cultural da desterritorialização e a sociologia mais ampla do deslocamento que ela exprime, será apropriado, neste passo, aduzirmos o papel do Estado-nação na economia global disjuntiva da cultura actual. A relação entre Estados e 'nações é conflituosa em toda a parte. É possível dizer que em muitas sociedades a nação e o Estado tornaram-se projectos um do outro. Ou seja, enqmnto as nações (ou, mais propriamente, grupos com ideias sobre nacionalidade) procuram captar ou obter Estados e poder de Estado, aomesmo tempo os Estados procuram captar e monopolizarideias de nação (Baruah, 1986; Chatterjee, 1986; Nandy, 1989a).Em geral, os movirnentos separatistas transnacionais, incluindo os que contam com o terror nos seus métodos, são exemplos de nações em busca de Estado.Siques, tâmÍles cingaleses, bascos , mouros, quebequenses - cada qual representa comunidades imaginadas que procuram criar Estados próprios ou talhar um boI
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cado de Estados existentes. Os Estados, por outro lado, procuram por toda a parte monopolizar os recursos morais da comunidade, seja afirmando-se abertamente coevos da nação, seja museificando e representando sistematicamente todos os grupos no seu seio mediante diversas políticas sucessórias que se afiguram notavelmente· uniformes em todo o mundo (Handler, 1988; Herzfeld, 1982; McQueen, 1988). Assim, as mediapaisagens nacionais e internacionais são exploradas pelos Estados-nações para pacificar separatistas ou mesmo a potencialfissiparidade de quaisquer ideias de diferença. Normalmente, os Estàdos-nações contemporâneos conseguem-no exercendo controlo táxonómico sobre a diferença, criando vários tipos de espectáculo internacional para domesticar a diferença e seduzindo pequenos grupos com a fé).ntasia de se apresentarem numa espécie de palco global ou cosmopolita. Um novo aspecto da política cultural global, ligado às relações entre as várias .paisagens aqui tratadas, é que Estado e nação se agridem mutuamente e o hífen que os une é hoje menos um ícone de conjuntura e mais um indício de disjuntura. Esta relação disjuntiva entre nação e Estado tem dois níveis: ao nível de um dado Estado-nação, significa que há uma luta da Ímaginação, com Estado e nação procurando devorar-se um ao outro. É este o alfobre de separatismos brutais - maioritarismos que parecem ter surgido do nada e mi.cro-identidades que se tornaram projectos políticos dentro do Estado-nação. A um outro nível, esta relação disjuntiva está profundamente enredada nas disjunturas globais de que vimos tratando em todo este capítulo: ide ias de nacionalidade parecem aumentar vamente de escala e cruzam regularmente . fronteiras estatais existentes, por vezes, como entre os Curdos, porque identidades anteriores se estenderam por vastos espaços nacionais ou, como entre os tâmiles do Sri Lanka, as linhas dormentes. de uma diáspora transnacional foram activadas para inflamar a micropolítica de um Estado-nação . . Numa análise da política cultural que subverteu o hífen de união entre nação e Estado, é part1Sularmente importante não essas políticas radicam nas irregularidades que hoje caractenzam o capItal desorganizado (Kothari, 1989c; Lash e Urry, 1987). Como trabalho, finan 59
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ças e tecnologia estão agora muito separados, as volatilidades subjacentes aos movimentos pela nacionalidade (tão vastos como o islão transnacional, por um ládo, tão pequenos como o dos Gurkas por um Estado separado no Nordeste da Índia, por embatem nas vulnerabilidades que caracterizam as relações entre Estados. Os Estados são instados a manterem-se abertos pela pressão dos meios de comunicação, da tecnologia e das viagens, que alimentaram o consumismo em todo o mundo e aumentaram e fomentaram o anseio, fora do mundo ocidental , pelos novos bens e espectáculos. Por outro lado, estes mesmos a'n seios podem ficar retidos 'nas novas etnopaisagens, mediapaisagens e, por fim, ideopaisagens, como a democracia na China, que o Estado não pode tolerar como ameaças ao seu próprio controlo sobre as ideias de nação e povo. Há em todo o mundo Estados sitiados, especialmente onde as lutas por ideopaisagens como a democracia são ferozes e fundamentais e onde há disjilnturas radicais entre ideopaisagens e tecnopaisagens (como no caso de países muito pequenos a que faltam. tecnologias de produção e informação); ou entre ideopiüsagens é financiopaisagens (por exemplo, em países como o Méxicó ou o Brasil, onde os empréstimos internacionais influenciam em muito alto grau a política nacional); ou entre ideopaisagens e etnopaisagens (como em Beirute, onde as filiações da diáspora local e translocal travam um combate suicida); ou entre ideopaisagens e mediapaisagens (como em muitos países do Médio Oriente 'da Ásia) onde os estilos de vida.representados nas televis'ões e no cinema nacionais e internacionais dominam completamente, e minam, a retórica da política nacional. No caso indiano, emergiu o mito do herói que infringe a lei para mediatizar esta luta sem tréguas entre as crenças e as realidades da política indiana, que se foi tomando cada vez mais brutal e corrupta (Vachani, 1989}. , O movimento transnacional das . artes marciais, particularmente na Asia, mediatizado pelas indústrias cinematográficas de Hollywood e Hong Kong (Zarilli, 1995) é uma boa ilustração do modo como as tra-' dições ancestrais dessas artes, reformuladas para satisfazerem as fantasias da populaç ão jovem contemporânea (por vezes lúmpen), criam no-
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vas culturas de masculinidade e violência que por sua vez alimentam a violência na política nacional e internacional. Essa violência é por 'sua vez incen'tivo para um comércio de armamento mais rápido e' amoral, que penetra no mundo inteiro. A difusão mundial da AK-47 e da Uzi nos filmes, na segurança priva?a e pública, no terrorismo e na actividade policial e militar, ler.nbra-nos que as uniformidades técnicas aparentemente simples ocultam muitas vezes um conjunto de elos cada vez mais complexo, a ligar imagens de violência às aspirações de comunidade num mundo imaginado. . por onde comecei, o central Voltando então às etnopaisagens . r da política étnica no mundo actual é que os factores primordiais de linguagem, de cor da pele, de vizinhança ou de pare?tesco) se globalizaram. Ou seja, os sentimentos, cuja maior força está na sua capacidade de fazer da intimidade um estado político e da localidade um palco para a identidade, vão-se espalhando por espaços vastos e irregulares à medida que os grupos se deslocam, mas mantendo-se ligados entre si atra- .. vés de sofisticados processos de comunicação. Não quero com isto negar que esses factores primordiais são muitas vezes produto de tradições inventadas (Hobsbawm e Ranger, 1983) ou de filiações retrospectivas, mas salientar que, devido à interacção disjuntiva e instável dO comércio, meios . de comunicação, políticas nacionais e fantasias dos consumidores, a etnicidade, outrora um génio metido na garrafa de uma qualquer localidade . (por mais lata), tornou-se hoje uma força global eternamente a resvalar entre e através das brechas entre Estados e fronteiras. ' Mas a relação entre os níveis económico e cultural deste novo conjunto de disjunturas globais não é uma simples via de sentido único em que os . termos da política cultural global ganham coesão, ou são coesamente con"-'" finados dentro das vicissitudes dos fluxos internacionais de tecnologia, e finanças, requerendo apenas uma modesta modificação dos modelos neomarxistas existentes de desenvolvimento desigual e formação de Estados. Há uma mudança mais prQ[unda, acarretada pelas disjunturas entre as paisagens de que falei, constíh&las pela su a interacção continuamente fluida e insegura e que incide na relação entre produção ti consumo . 61
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na ecoriomia global actuaL Introduzo aqui a famosa (e muitas vezes desvirtuada) tese de Marx sobre o fetichismo da mercadoria sugerindo que esse fetichismo foi substituído no mundo em sentido lato '(e 'vemos agora ó mundo como um vasto sistema interactivo composto por muitos subsistemas complexos) por dois descendentes ,que se apoiam mutuamente, o primeiro dos quais designarei por fetichi,smo da produção e o segundo por fetichismo do consumidor. Por fetichismo da produção entendo uma ilusão criada pelos Zoei da produção transnacional contemporânea que mascara o capital translocal, os fluxos de lucrotransnacionais, a gestão global e muitas vezes trabalhadores distantes (empregues em diversos tipos de operações de produção de alta tecnologia) com o idioma e o espectáculo do controlo local (por vezes até operário), produtividade nacional e soberania territoriaL Na medida em que vários tipos de zonas de comércio livre se tornaram modelos de produção transversal, em especial de mercadorias de alta tecnologia, a própria produção tornou-se um fetiche, obscurecendo não as relações so.. ciais enquanto tais, mas as relações de produção, que são cada vez mais transnacionais. A localidade (quer no sentido da fábrica ou posto de produção local, quer no sentido mais lato de Estado-nação) toma-se um fe. tiche que disfarça as forças globalmente dispersas e rege efectivamente o processo de produção. Isto gera alienação (no sentido marxista) c0rI! dupla intensidade, pois o seu sentido social é agora composto por uma complicada dinâmica espacial cada vez mais globaL ' Quanto ao fetichismo do consumidor, pretendo por tal indicar que o consumidor foi transformado pelos fluxos mercantis (e pelas mediapaisagens, especialmente da publicidade, que os acompanham) em signo, tanto no sentido de Baudrillard, um simulacro que · só assintomaticamente se aproxima da forma de um verdadeiro agente social, como no sentido de uma máscara da verdadeira sede ' da acção, que não é o consumidor ' mas o produtor e as muitas forças que constituem a produção. A global é a tecnologia-chave para a disseminação mundial de uma pletora de ideias criativas e culturalmente seleccionadas de promoção do consumo. Estas imagens promocionais ,são cada vez mais distorções de um
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mundo de comercialização tão subtil, que equivale a convidar o consumidor a acreditar que é quem age quando de facto é, no máximo, quem escolhe. A globalização da cultura não é o mesmo que a sua homogeneização, mas a alobalização requer o uso de Uma série de instrumentos de homoaeneiz;ção (armamentos, técnicas publicitárias, hegemonias linguísticas ; maneiras de vestir) que são absorvidos pelas economias políticas e culturais locais apenas para serem repatriadas como diálogos heterogéneos de soberania nacional, livre iniciativa e fundamentalismo em que o Estado desempenha um papel cada vez mais delicado:, demasiadU abertura · aos fluxos globais, e o Estado-nação é ameaçado pela revolta, como na síndrome da pouca abertura, e o Estado sai da cena internacional, como aconteceu de' diferentes modos com a Birmânia, a Albânia e a .Coreia do Norte. No geral, o Estado tornou-se o árbitro desta repatn'ação da diferença (sob a forma de mercadorias, anúncios, frases e modas). Mas esta repatriação ou exportação das modas e mercadonas da diferença exacerba continuamente a política interna do maioritarismo e da homogeneização que, as mais das vezes, se esgota em discussões sucessórias. Portanto, a principal característica da política global de hoje é a política do mútuo esforço da semelhança e da diferença para se canibalizarem reciprocamente, assim proclamando o saque vitorioso das ideias gémeas do Iluminismo, o universal triunfalista e o particular resiliente. Esta mútua canibalização mostra o seu lado feio nos motins, fluxos de refugiados, tortura promovida pelo Estado e etnocídio (com ou sem apoio estatal). O seu lado melhor é a expansão de muitos horizontes individuais de esperança e de fantasia, na difusão global da terapia de re-hidratação e outrOS ins' " trumentos de prosperidade de pouca exigência tecnológica, na suscepti?ilidade, mesmo da África do Sul, à força da opinião pública global, na lll capacidade do Estado polaco para reprimir a sua própria ,) e no desenvolvimento vasto leque de alianças proc'-"\rressistas. Podemos multIplIcar os exemplos de ambos os tIPQS. O ponto é que os lados da moeda do processo cultural global são hoje
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produtos da contestação mútua infinitamente variada de semelhança e diferença num cenário caracterizado por disjunturas radicais entre diferentes tipos fluxos globais e as paisagens incertas criadas dentro e atràvés destas disjunturas.
-A obra da reprodução numa era de artes mecânicas Inverti os termos principais do título do famoso ensaio de Walter Benjamin (1969) para trazer esta análise dos seus voos um tanto altos para um nível mais acessível. um problema humano clássico que não desaparecerá por mais que os processos culturais globais. alterem a sua dinâmica, que é o problema que hoje é normal'mente tratado sob a rubrica reprodução (tradicionalmente referido em termos de transmissão de cultura). Em qualquer dos casos, a questão é: como é·que os pequenos grupos, - em especial as famílias, os Zoei Clássicos da socialização, encaram estas novas realidades globais quando procuram reproduzir-se e, nesse processo, reproduzem acidentalmente ·formas culturais? Nos termos da antropologia tradic ional, isto podia enunciar-se como problema de enculturação num período de rápida transformação cultural. Portanto, o problema nem é novo. Mas assume dimensões novas nas condições globais de que temos falado neste capítulo. -. Primeiro, essa espécie de estabilidade transgeracional do conhecimento, pressuposta na maior parte das teorias da enculturação (ou, em termos ligeiramente mais latos, de socialização), já não colhe. Quando as famílias se mudam p::.ra novos locais ou os filhos se mudam antes das gerações . mais velhas, ou os filhos mais velhos de temporadas passadas noutros lugares do mundo, as relações familiares podem tornar-se voláteis; negaceiam-se novos padrões de comodidade, calibram-se dívidas e obrigações e os rumores e fantasias sobre o novo cenário, fazendo deles efectivos repertórios de saber e prática. Muitas vezes, as diásporas laborais globais implicam pressões imensas sobre os casais em geral e as mulheres em particular, pois o casal torna-se o ponto de encon-
tro de padrões históricos de socialização e novas ideias de comportamento correcto. As gerações dividem-se facilmente quando as ideias 'procolectivo se rendem ao assédio da distância e priedade, decência e do tempo. Mais importante do que isso é que o trabalho de reprodução cultural em novos -ambientes torna-se profundamente complicado porcauuma representação de normalidade . sa da política que quer dar da (em especial dos jovens) aos vizinhos e pares do sítio novo. Claro que nada dis to é novo para o estudo cultural da imigração. O que é novo é que este é um mundo em que tanto os pontos de partida como os pontos de chegada estão em fluxo cultural e por isso busca de pontos de referência estáveis quando são feitas as opções de vida pode ser muito difícil. É nesta atmosfera que inventar a tradição (e. a etnia, o parentesco e outros marcadores de identidade) pode ser uma tarefa esquiva, pois a busca de certezas vai sendo frustrada pela fluidez da comunicação transnacional. À medida que o passado dos grupos vai começando a figu- . rar em museus, exposições e colecções, no espectáculo nacional e no internacional, a cultura vai sendo menos o que Pierre Bourdieu chamaria um hábito (um domínio tácito de práticas e disposições reprodutíveis) e mais uma arena de escolha,justificação e representação consciente, esta última muitas vezes para públicos especialmente deslocados. A tarefa da reprodução cultural, mesmo nas suas arenas mais íntimas, como as relações marido-mulher e pais-filhos, torna-:-se politizada e expos-:ta aos traumas da desterritorialização quando os membros da família combinam e negoceiamos seus acordos e aspirações em configurações espaciais por vezes fracturadas . A níveis mais amplos, como a comunidade, o bairro e o território, esta politização é muitas vezes o carburante emocional para políticas de identidade mais explicitamente violentas, precisa- : "-" mente porque estas políticas mais ambiciosas penetram por vezes no go. vemo doméstico e inflamam-no. Por exemplo, quando dois descendentes de uma prole discordam do pai numa questão fundamental de identifica-:ção num cenário transnacional, as normas localizadas preexistentes pOdem ter pouca força. Assim, um filho que entrou para o grupo Hezbollah no Líbano pode deixar de se dar com os pais ou irmãos fil iados no
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AmaI ou em qualquer outro ramo da identidade política xiita do Líbano. ' É particularmente sobre as mulheres que recai o mais aceso deste tipo de fricções, pois tornam-se ·peões na política sucessória do lar e são muitas vezes sujeitas aos abusos e violência dos homens, estes por sua vez divididos quanto à relação entre sucessão e oportunidade em formações espaciais, e 'políticas em transformação, As dores da reprqdução cultural num mundo global disjuntivo, como é I evidente, não são aliviadas pelos efeitos das artes mecânicas (ou meios de comunicação de massas), pois estas dispõem de poderosos recursos em contranódulos identitários que a juventude pode projectar como óbice à vontade e aos desejos parentais. A níveis mais amplos de organização, pode haver muitas formas de política cultural no seio de populações deslocadas (sejam elas de refugiados ou de imigrantes voluntários) que os meios de comuni - ' cação (bem como as mediapaisagens e ideopaisagens que oferecem) inflectem em ir:nportantes aspectos. Um elo fundamental entre as fragilidades da reprodução cultural e.o papel dos meios de comunicação de massas no mundo de hoje é a política de género e violência. Corrio são as fantasias de violência sexualizada que dominam a indústria dos filmes de série B que pu- .. lulam no mundo, ambas reflectem e refinam a violência sexualizada em casa e na rua, pois os jovens (em particular) são arrastados por políticas machistas de afirmação pessoal em contextos onde muitas vezes lhes é negado agir, e as mulheres, por um lado, são forçadas a integrar a mão-de-obra de . formas novas, .por outro têm que continuar a preservar a herança familiar. Assim, a honra das mulheres torna-se não apenas uma armadura dos sistemas estáveis (ainda que desumanos) de reprodução cultural, mas também uma no va arena para a formação de identidade sexual e políticas familiares quando homens e mulheres enfrentam novas pressões no trabalho e novas fantasias de lazer. Como trabalho e lazer nada perderam do seu carácter sexualizado nesta nova ordem global, antes foram adquirindo representações fetichizadas ainda mais subtis, a honra das mulheres é cada vez mais um da identidade de comunidades conflituosas de ao mesmo tempo que, na realidade, as mulheres deles têm que lidar com condições cada vez
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mais duras no trabalho de casa e fora de casa. Em suma, as comúnidades desterritorializadas e as populações deslocadas, por 'mais que gozem dos . frutos de no,vas maneiras de ganhar a vida e de novas vias de acesso ao capital e à tecnologia, têm que esgotar os desejos e fantasias destas novas etnopaisage"ns ao mesmo tempo que se esforçam por reproduzir a farrulia como microcosmos de cultura. À medida que a forma das culturas se vai tornando menos delimitada e tácita, mais fluida e politizada, o trabalho de reprodução cultural passa a ser um risco quotidiano. Muito mais podia, . e devia, dizer-se sobre o trabalho de· reprodução na era das artes mecânicas: esta análise destina-se' a indicar os con.tornos dos problemas que uma nova teoria da reprodução cultural, globalmente informada, terá que en. frentar.
Contornos e processo das formações culturais globais As deliberações das propostas que até agora desenvolvi constituem o esqueleto de uma abordagem a uma teoria geral dos processos cl;llturais globais. Em torno das disjunturas, empreguei um de termos (einopaisagem, financiopaisagem, tecnopaisagem, mediapaisagem e ideopaisagem) para sublinhar as diferentes correntes ao longo das quais vemos o fluxo de material cultural cruzar as fronteiras nacionais. também exemplificar o modo como estes vários fluxos (ou paisagens, da perspectiva estabilizadora de um dado mundo imaginado) se encontram em disjuntura fundamental uns em relação aos outros. Quais os passos seguintes em direcção a uma teoria geral dos processos culturais globais baseada nestas propostas? " ". O primeiro é notar que os nossos próprios modelos de contorno cultural terão que ser alterados: pois as configurações de povo; lugar e herança perdem toda a aparência de isomorfismo. Trabalhos recentes em antropologia têm feito muito para nos libertar das grilhetas de imagens de forma e substância cultural altamente localizadas, delimitadoras, ·holísticas, primordialistas (Hannerz, 1989; Marcus e Fischer, 1986; Thorn67
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ton, 1988). Mas não se pôs grande coisa no seu lugar, excepto versões maiores, se bem que menos mecânicas, destas imagens, como na obra "de Eric Wolf sobre a relação da Europa com o resto do mundo (1982). O que gostaria de propor seria começarmos por pensar a configuração das' formas culturais no mundo actual como basicamente fractais, ou seja, como se· tivessem fronteiras, estruturas OU regularidades nãoeuclidiarias. Em segundo lugar, gostaria de sugerir que estas formas culturais, essas que deveríamos esforçar,-nos por considerar absolutamente fractais, são também estratificadas segundo modelos que andamos a examinar à luz da pura matemática (teoria dos conjuntos, por exemplo) e da biologia (na linguagem das classificações politéticas). Portanto, precisamos de combinar uma metáfora fractal para os contornos das culturas (no plural) com uma ' explicação politética das sobreposições e semelhanças. Sem este último passo, vamos atolar-nos no trabalho comparativo assente na .separação nítida das entidades a comparar antes de iniciar uma efectiva comparação. Como poderemos comparar formas culturais de contornos.fractais que são também politeticamente estratificadas na sua cobertura do espaço terrestre? Enfim, para que a teoria das interacções culturais globais assente nos fluxos disjuntivos tenha mais força do que uma teoria da metáfora mecânica, teremos que avançar para qualquer coisa como uma versão humana da teoria a que alguns cientistas chamam do caos. Ou seja, não precisamos de perguntar como é que estas figuras complexas, estratificadas, fractais, constituem um sistema simples, estável (ainda que em larga escala), mas sim qual a sua dinâmica: porque ocorrem motins étnicos, quando e onde? Porque é que os Estados enfraquecem a um ritmo maior em certos lugares e tempos e não noutros? Porque é que certos países se descartam de convenções sobre pagamento da dívida internacional com muito maior despreocupação aparente do que outros? Como é que o fluxo de armamento internacional induz conflitos étnicos e genocídios? Porque é que certos Estados saem da cena internacional ao passo que outros clamam por entrar nela? Porque é que os acontecimentos-chave têm lugar a altura e em . dado lugar e não noutros? Claro que se trata das mesmas perguntas tradi-
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cionais, causalidade, contingência e previsão, que as ciênçias humanas sempre fizeram, mas num mundo de fluxos globais disjuntivos talvez seja importante começar por fazê-las a partir de imagens de fluxo e incerteza, logo, de caos, e não das velhas imagens de ordem, estabilidade e sistemática. De outro modo, teremos ido demasiado longe na direcção de uma ,teoria dos sistemas culturais globais, mas descartado os processos pelo ca':' minho. O que faria destas notas etapas de um caminho para uma espécie de ilusão de ordem que já não podemos dar-nos ao luxo d.e impor num , ,. mundó tão declaradamente volátil. . . Seja qual for a direcção para que levemos estas macrometáforás (fractais, classificações politéticas e caos), precisamos de fazer mais uma pergunta batida, tirada do paradigma marxista. Há alguma ordem prévia à força relativa que determina estes fluxos globais? Porque .postulei que a dinâmica dos sistemas culturais globais é ditada pelas relações entre fluxos de pessoas, t,e cnologias, finanças, informação e ideologia, poderemos . falar de uma ordem estrutural-causal a ligar estes fluxos por analogia com o papel da ordem económica numa versão do paradigma marxista? mos dizer que alguns destes fluxos, por razões prioritariamente estruturaiS ou históricas, são sempre prévios e formadores de outros fluxos? A minha hipótese, que neste passo é apenas experimental, é que a relação destes vários fluxos entre si, quando se congregam em determinados eventos e formas sociais, será radicalmente dependente do contexto. Assim, enquan- . . to os fluxos laborais e os seus elos de fluxo financeiro entre Kerala e o Médio Oriente podem explicar os contornos dos fluxos mediáticos e das ideopaisagens em Kerala, o inverso poderá ser verdade para SiIicon Va!ley, na Califórnia, onde a especialização intensa num só sector tecnoIogico (computadores) e especiais fluxos de capital podem muito bem de-" " - - terminar em profundidade O' contorno assumido por etnopaisagens, ideopaisaoens e mediapaisagens. ' . isto dizer que a relação histórico-causal entre estes vários fluNão xos seja aleatória ou de insignificante contingência, mas sim que as nossas teorias correntes de caos cultural não se desenvolveram o suficiente para serem ao menos modelos parcimonioscis, qU:lOtO mais para serem teorias
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preditivas, o velo de ouro de certa ciência social. O que procurei dar neste capítul-o foi um vocabulário técnico razoavelmente económico e um delo rudimentar de fluxos disjuntivQs de onde· se possa tirar uma análise global decente. Sem uma análise dessas, será difícil construir o que J ohn Hinks0n.. chama «uma teoria social da pós-modernidade» que seja adequa.damente global (1990, p. 84).
3 Etnopaisagens globais: notas e perguntas para uma antropologia transnacional
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No capítulo 2 uso o termo etnopaisagem. Este neologismo tem certas ambiguidades nele integradas deliberadamente. Começa por referir os dilemas de perspectiva e representação com que se confrontam inevitavelmente todos os etnógrafos e admite que as tradições de percepção e perspectiva (como as paisagens nas artes visuais), bem como as variações na posição do observador, podem afectar o processo e o produto da representação. Mas quis também que este termo indicasse que há alguns factos brutos do mundo do século xx com que todos os etnógrafos têm. que confrontar-se. No centro desses factos está a reprodução social, territorial ; e cultural da identidade de grupo em mudança. Como os grupos migram, ' ···refazem em novos locais, reconstroem, a sua história e reconfiguram os . seus projectos étnicos, o etno 'de etnografia assume um carácter esquivo, não localizado, a que as práticas descritivas da antropologia terão que responder. As paisagens da identidade de grupo - as etnopaisagens - de todo o mundo já não são objectos antropológicos familiares, na medida em que os grupos já não são rigorosamente territonalizados, delimitados
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espacialmente, historicamente assumidos ou culturalmente homogéneos. Temos menos culturas no mundo e mais debates culturais internos (Par'kin, 1978)1. Neste capítulo, através de uma série notas, enunciados e vinhetas, procuro repor algumas das noss'as .convenções disciplinares, ao mesmo tempo que tento mostrar que as etnopaisagens do mundo actual são profundamente interactivas.
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0 terra. Mas esta terra é em parte inventada, existe apenas na i,•. ) dos grupos desterritorializados e pode por tornar-se tão fantástica e unilateral, que serve de alimento a novos conflitos étnicos. U A ideia de desterritorialização pode também aplicar-se ao dinheiro e finanças, pois quem gere dinheiro procura para os seus investimentos os ' melhores mercados, independentes de fronteiras nacionais. Por sua vez, estes movimentos do dinheiro são a base de novos conflitos, como a preocupação dos naturais de Los Angeles pelos Japoneses andarem a comprar a sua cidade, a de Bombaim com os árabes ricos dos estados do Golfo, u ' que não só preço das mangas em Bombaim cpmo alteraram substancialmente o perfil de hotéis, restaurantes e outros serviços , U r iI aos olhos da população local - tal como fizeram em Londres. Contudo, a maior parte dos residentes de Bombaim é ambivalente quanto à presença U dos árabes, pois o verso da sua presença é a ausência de amigos e parentes (J que estão a ganhar bom dinheiro no Médio Oriente e trazem dinheiro e · artigos de luxo para Bombaim e outras cidades da Índia. Essesaitigos O transformam o gosto do consumidor dessa's cidades. Acabam muitas ve:?es () por ser contrabandeados através dos portos e aeroportos e passados nos () mercados cinzentos das ruas de Bombaim. 'Nestes mercados cinzentos iJ (adjectivo que me permite captar a natureza paralegal desses cenários) al() : guns membros da classe média de Bombaim 8 o seu lúmpen-proletariado podem comprar coisas que vão desde volumes de cigarros Marlboro a cre:..J me de barbear Old Spice e discos de Madonna. Outras vias igualmente U ' cinzentas, muitas vezes com o apoio de marinheiros, diplomatas e hospe', ] deiras do ar com outra actividade paralela, gente que entra e sai do país , O regularmente, mantêm os mercados cinzentos de Bombaim, Madrasta e , Calcutá alimentados em mercadorias não apenas do Ocidente mas tam() . bém do Médio Oriente, Kong e Singapura. São também esses viaU jantes profissionais que estão cada vez mais implicados na difusão trans'" () nacional de doenças, a menor das quais não é a sida. A visão dos estudos de cultura transnacional que a análise sugere parece até aqui, à primeira vista, requerer apenas modestos da abordagem tradicional da antropologia à A meu ver, porém, uma
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Modernidades alternativas e cosmopolitismo etnográfico Um importante desafio que se coloca à antropologia actual é o estudo das formas culturais cosmopolitas (Rabinow, 1986) do mundo contemporâneo sem pressupor lógica ou cronologicamente a autoridade da experiência ocidental ou os modelos derivados dessa experiência, Parece im- I possível estudar estes novos cosmopolitismos proveitosamente sem analisar os fluxos culturais transnacionais no seio dos quais progridem, I competem e se alimentam reciprocamente de um modo que derrota e confunde muitas verdades das ciências humanas de hoje. Uma dessas verdades refere-se à relação entre espaço, estabilidade e reprodução cultural. Há uma necessidade urgente de nos debruçarmos sobre a dinâmica cultural do que agora se chama desterritorialização. Este termo aplica-se não só a exemplos óbvios., como as multinacionais e os mercados monetários, mas ' também a grupos étnicos, movimentos separatistas e formações políticas que cada vez mais operam de uma maneira que transcende limites e identidades territoriais específicos. A desterritorialização (da qual dou alguns perfis etnogr:íficos no capo 2) afecta as lealdades de grupo (especialmente no contexto de diásporas complexas), a sua manipulação transnacional da moeda e outras formas de riqueza e investimento, e as estratégias dos Estados. O desatar dos laços entre povo, riqueza e território altera fundamentalmente a base da reprodução cultural. Ao mesmo tempo, a desterritorialização cria novos mercados para a indústria empresários e as agências de viagens que apostam na necessidade de contacto das populações deslocadas com a sua 72
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No epicentro dos debates actuais sobre e dentro da cultura, muitas e diversas correntes afluem a um único rio, assaz turbulento, o dÇ)s ,muitos pós-estruturalismos (sobretudo franceses) de Jacques Lacan, Jacqués Derrida, Michel Foucault, Pierre Bourdieu e suas muitas subescolas. Algumas destas correntes são tímidas relativamente à linguagem como seu objecto e seu modelo, outras menos. A actilal multiplIcidade de usos que rodeia as trê.s palavras' significado, discurso e texto deveria bastar para indicar que não estamos apenas numa época de indefinição de géneros (como profeticamente disse Geertz [1980J há mais de uma década), mas numa fase peculiar a que gostaria de chamar «pós-indefinição», em que o ecumenismo deu lugar - afortunadamente, a meu ver - a debates ace§os sobre a palavra, o mundo e a relação entre eles. Nesta indefinição pós-indefinição, é cruéial ver que o nível superior foi tomado pela literatura inglesa (como disciplina), em particular, e pelos estudos literários, em geral. É este o nexo em que a palavra teoriCL, ,um termo algo prosaico em muitos campos e por muitos séculos, entra de repente para o sedutor círculo das modas. Hoje, para uni antropólogo dos Estados Unidos, o mais impressionante da década de oitenta na academia é o ataque à cultura desferido pelos estudos literários - embora já não tenhamos um olhar arnoldiano unilateral, mas um assalto multifacetado (onde florescem cem Blooms) com muitos debates internos sobre textos e antitextos, referência e teoria e prática. Aqueles que trabalham em ciências sociais vêem com fascínio os seus colegas de literatura inglesa e literatura comparada falar (e brigar) de matérias que, até há muito pouco tempo, uns quinze anos, pareciam tão relevantes para os departamentos de Inglês como, digamos, a mecânica quântica. Na generalidade, podemos presumir que o tema dos estudos culturais é a relação entre a palavra e o mundo. Entendo estes dois termos no seu ' sentido mais lato, por forma :a que palavrapossa abranger todas as formas de expressão textualizada e mundo signifique tudo, desde os meios de produção e de organização das vidas-mundos até às relações globalizadas de reprodução cultural de que já falámos. Os estudos culturais assim concebidos poderiam constituir a base de
prática etnográfica genuinamente cosmopolita exige uma interpretação do terreno dos estudos culturais nos Estados Unidos de hoje e do estatuto da antropologia nesse terren0 2 . .
Estudos culturais em terreno global
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. Como este livro trata de antropol.ogias do presente, pode ser importan- \ te do estat.uto da antropologIa no presente e em .particular do hoje , monopólio o estudo da «cultura» (doravante sem aspas). i A analIse que se segue cna o cenário para a crítica da etnográfia contida ! nas secções subsequentes. tópico, a cultura tem muitas histórias, umas disciplinares, outras a funcIOnar fora da academia. Dentro da academia há certas diveraências entre disciplinas quanto a saber em que medida a cultura tem sidobum tópico explícito de investigação e em que medida tem sido tacitamente entendida. Entre as ciências sociais, a antropologia (especialmente nos Estados Unidos, mas menos em Inglaterra) fez da cultura o seu conceito central; definindo-a como uma espécie de substância humana embora as idei as sobre esta substância se tenham deslocado, ao longo de' um século, das ideias. de um modo geral, de E. B. Tylor sobre costume para as ideias d.e Geertz sobre significado. Alguns antropólogos temem que os dados a cultura sejam demasiado variados para um termo técnICO, encontram virtude nessa diversidade. Ao mesmo tempo, as outras CIenClas sociais não se têm desinteressado da cultura: na socioloaia I o sentido de verstehen de Max Weber e as várias ideias de Georae medio.ram entre as ideias alemãs neokantianas do fim do século XIX e a sociologia como disciplina das ciências soCiais. Como' em muitos outros . casos. a cultura é agora um subcampo dentro da socioloina e a American SociologicalAssociation legitimou esta segregação ao criar uma subunina. da cultura em que pessoas interessadas na produção e dlst.nbUlça.o de cultura, especialmente em cenários ocidentais, podem aslI vremente umas com as outras.
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uma etnografia cosmopolita (global?, macro?, translocal?). Traduzir a tensão entre palavra e inundoIJ.uma estratégia etnográfica produtiva requer um novo entendimento do mundo desterritorializado que muitas pessoas habitam e das vidas possíveis que muitas pessoas são hoje capazes de vislumbrar. Os termos da negociação entre vidas imaginadas e mundos dessão complexos e por certo não podem ser captados somente pelas estratégias de localização da etnografia tradicional. O ' que uma nova espécie de etnografia pode fazer é captar o impacto da desterritorialização sobre os recursos imaginativos das experiências locais vividas. Por outras palavras; a tarefa da etnografia passa agora a ser resolver um enigma: qual a natureza da localidade como experiência vivida -num mundo globalizado, desterritorializado? Corno irei sugerir na próxima secção, o princípio de 'uma resposta a esta charada está numa nova abordagem do papel da imaginação na vida social. Todas as narrativas dominantes que normalmente guiam a maior parte da etnografia têm raízes iluministas e todas foram seriamente postas em questão. A acerba crítica de Foucault ao humanismo ocidental e às suas epistemologias ocultas tomou difícil manter a fé na ideia de progresso, com as suas m)litas manifestações, velhas e novas. A narrativa dominante da evolução, fundamental para a antropologia nos Estados Unidos, enferma da profunda distância entre as suas versões restritas, voltadas para a cultura (como na obra de Marvin Harris), e as versões alargadas, mais atraentes mas menos antropológicas, como nas fábulas biogeológicas de Stephen Jay Gould. O aparecimento do indivíduo como narrativa domienferma não apenas dos contra-exemplos das principais experiências de totalitarismo do século xx como também de muitas desconstruções da ideia de eu, pessoa e sujeito actuante na filosofia, sociologia e antropologia (Parfit, 1986; Giddens, 1979; Carrithers, Collins e L)lkes, 1985). As narrativas dominantes da jaula de ferro e da marcha da racionalidade burocrática são constantemente refutadas pelas irracionalidades, contradi - ' ções e pura brutalidade cada vez mais notórias corno patologias do moderno Estado-nação (Nandy, 1987). Finalmente, a maior parte das versões da narrativa marxista dominante entram em conflito à medida que o ca-
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pitalismo assumindo um aspecto mais desorganizado e desterritor:ia, lizado (Lash e Urry, 1987) e que a expressão cultural vergar-se aos, requisitos sequer da menos facciosa marxIsta. (Por ex.emplo, veja-se a polémica entre Frederic Jameson e AIJaz Ahm,ad em Soczal Text [Jameson, 1986; Ahmad, 1987].) , " ' " A etnografia cosmopolita, ou o que podéremos chamar fia, ganha particular urgência por destas narrativas dominantes pós-iluministas. E. dIÍlcrlIr alem do exploratono quanto ao que esta macroetnografia (e suas etnopaisagens) poderá ser, mas as sec. ções seguintes procuram elUCIdar os seus contornos. '
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Imaginação e etnografia Vivemos num mundo com muitas espécies de realismos, uns mágicos, outros socialistas, outros capitalistas e outros que ainda não Es- , tes realismos genéricos têm as suas províncias de origem: realIsm? gico na ficção latino-americana das décadas 1970-80, o socIahs!a na União Soviética dos anos de 1930 e o realismo capItalrsta, expressa0 achada por Michael Schudson (1984), na retórica visual e_verbal publicidade americana contemporânea. Em muito da expressa0 estétIca' actual, as fronteiras entre estes vários realismos esbateram-se. vérsia em torno de Os Versículos Satânicos, de Salman Rushdle, d.a exposição de fotografias de Robert M.applethorpe en: Cincinnati e de mUltas outras obras de arte noutras partes do mundo velO lembrar-nos os artistas cada vez mais desejam subir a fasquia do seu sentido,das fronteIras entre a sua arte e o teor da opinião públiCa. "'-" M3.is consequente para os nossos objectivos é o facto d.e a . ter hoje adquirido uma foiça nova e singular na vida SOCIaL A Imagmação - expressa em sonhos, canções, fantasias, mitos e. contos - sempre constou do repertório de qualquer sociedade que esteja modo organizada culturalmente. Mas na vida social hoje a ImagIQaçao tem uma força nova e singular. Mais pessoas em maIS partes do mundo con-
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sideram possível um conjunto de vidas mais vasto do que nunca. Uma fonte importante para esta mudança está na comunicação de massas, que apresenta um sortido rico e sempre variado de vidas algumas das quais entram na imaginação vivida da gente comum melhor do que outras. São também importantes os contactos, as notícias e os rumores sobre outros que habitam o ambiente social daqueles que se tomaram habitantes desses mundos longínquos. A importância dos meios de comunicação não é muita como fontes directas de novas imagens e enredos para as vidas possíveis, mas sim como diacríticos semióticos fortes que inflectem também o contacto social com o mundo metropolitano facilitado por outros canais . . Uma das principais alterações da ordem cultural global, criada pelas tecnologias do cinema, televisão e vídeo (e pelo modo como elas enquadram e estimulam outros meios de comunicação mais antigos) tem a ver com o papel da imaginação na vida social. Até há pouco tempo, fosse qual fosse o poder da mudança social, podia-se afirmar que a vida social sofria . em geral de inércia, que as tradições ofereciam um conjunto relativamente finito de vidas possíveis e que a fantasia e a imaginação eram práticas residuais, confinadas a pessoas ou domínios especiais, restringidas a momentos ou· lugares especiais. Em geral, imaginação e fantasia eram antídotos para a finitude da experiência social. Nas últimas duas décadas, à medida que a desterritorialização de pessoas, imagens e ideias foi ganhando nova força, o fiel da balança foi-se deslocando imperceptivelmente. Mais pessoas em todo o mundo vêem as suas vidas pelo prisma das vidas possíveis oferecidas peros meios de comunicação de massas sob todas as suas formas. Ou seja, a fantasia é agora uma prática social; entra, de infinitos. modos, no fabrico de vidas sociais para muitas pessoas em muitas sociedades. Apresso-me a notar que observar isso não traz alegria, nem se pretende implicar que o mundo é agora um lugar mais feliz e com mais opções (nO sentido utilitário) para mais pessoas, com mais mobilidade e mais finais felizes. Pelo contrário, o que está implícito é que mesmo a mais ruim e mais desesperançada das vidas, a mais brutal e desumanizadora das cir-
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cunstâncias,as mais duras desigualdades vividas estão agora abertas ao jogo da imaginação. Presos políticos, crianças operárias, mulheres .a trabalhar nos campos e nas fábrIcas do mundo, e outras cuja sorte é dura, já . não vêem nas suas vidas o mero resultado que as coisas dão, mas um compromisso irónico entre o que podiam imaginar e o que a vida social-per- . mire. Portartto,as bio"grafias da gente comum- são construções (ou fabricações) em que a imaginação desempenha um papel importante. Mas este papel também não é uma simples via de escape (mantendo firmes as convenções que regem o resto da vida social), pois na mó das engrenagens entre a vida que se leva e a sua contrapartida imaginada uma série de comunidades (Anderson, 1983) que geram novas políticas, ·novas formas de expressão colectiva e novas necessidades de disciplin'a social e vigilânci"a por parte das elites. . Tudo isto tem muitos contextos e implicações que não podemos examinar aqui. Mas o que implica para a etnografia? Implica que-os etnógra- . fos já não podem contentar-se simplesmente com a densidade que trazem para o local e o particular nem presumir que quando abordam o local abordam uma coi sa mais elementar, mais contingente e por isso mais real do que a vida tomada de uma perspectiva ampla. E que o que é real nas vidas normais é agora real de muitas maneiras, que vão da pura contingência das vidas individuais e dos caprichos da competência e do talento que distinguem as pessoas em todas as sociedades até aàs realismos a que os indivíduos estão expostos e que arrastam para a sua vida quotidiana. Estas vidas complexas, em parte imaginadas, devem passar a formar o veio principal da etnografia, pelo menos de uma etnografia que queira fazer ouvir a sua voz num mundo transnacional,desterritorializado. É que o novo .Poder da imaginação no fabrico de vidas sociais está inelutavelmente ligado a imagens, ideias e oportunidades que vêm de alhures e são muitas vezes transportadas no veículo que são os meios de comunicação de massas. Assim, a reprodução cultural padrão (como o inglês padrão) é aaora uma actividade em perigo que só vinga através desígnio consciente e da vontade política, onde vinga. Na verdade, orillb parece ter-se afirmado a separação do mundo mais vasto e onde o papel da imaginação /
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global é recusado à gente comum (lugares como a Albânia, a Corei a do Norte e a Birmânia), parece surgir no seu lugar Um bizarro realismo de iniciativa estatal que contém sempre a possibilidade da demência genocida e totalitária de um PolPot ou do desejo longamente reprimido de crítica ou saída, como está a acontecer na Albânia e em Myanmar (Birmânia). A questão, portanto, não é como pode a escrita etnográfica tratar um leque mais vasto de modelos literários, modelos propensos a elidir a distinção entre vida de ficção e ficcionação da vida, mas como tratar o papel da imaginação na vida social num nOvo tipode etnografia que não seja , tão resolutamente localizadora. Claro que há-muito a dizer sobre o local, o particular e o contingente, que sempre foram o forte da melhor escrita ' etnográfica. Mas quando as vidas estão a ser imaginadas de certo modo dentro dos realismos e através de realismos que devem ser, de uma maneira ou de outra, de inspiração oficial ou em larga escala, aí o etnógrafoprecisa de encontrar novos meios de representar, as relações entre, a imaainab ,ção e a vida social. Este problema de representação não é bem o mesmo que o conhecido problema do micro e do macro, da pequena e grande escala, embora tenha importantes pontos comuns com ele. A relação entre o problema de representar etnograficamente vidas imaginadas e a dificuldade de transitar das realidades locais para grandes estruturas está implícita no artigo de Sherry Ortner, «Reading America» (1991) . Em conjunto, a tese de Ortner e a minha apontam para a importância de inserir as grandes realidades nos mundos-vidas concretos, mas abrem também a possibilidade de interpretações divergentes do que está implícito em localidade. A ligação entre imaginação e vida social, diria, é cada vez mais global e desterritorializada. Assim, os que representam vidas reais ou banais têm que resistir a reivindicar o privilégio epistémico relativo às particularidades vividas da vida social. Melhor será a etnografia redefinir-se como prática da representação que ilumina0 poder na sua,dimensão mais lata, as possibilidades de vida imaginada segundo trajectórias de vida específicas. É uIJ)a ' densidade, mas diferente, porque está dotada de uma nova atenção ao facto de as vidas banais de hoje já não serem potenciadas por aquilo em que dão as coisas, mas pelas possibilidades que os meios de comunicaç-ão (directa 80
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ou indírectarnente) sugerem. Por outras palavras, pode-se reter alguma da (1977), mas o destaque vai parÇ). a sua força da ide ia de hábito, de ideia de improvisação, porque a improvisação já não ocorre dentro de um conjunto relativamente delimitado de posturas pensáveis, está sempre a _vaIar e a partir, potenciada pelo visionarhento imagin,ado de narrativas dominantes dos meios de comunicação de massas. Houve uma transformação geral das condições globais das -vidas-mundos: em termos simples, onde a improvisação era outrora furtada ao refluxo glacial do hábito, tem o hábito que ser agora penosamente reforçado perante vidas-mundos que estão quase sempre em fluxo. , Três exemplos servirão para mostrar o que tenho em mente. Em Ja-neiro de 1988, a minha mulher (que é uma americana branca, historiadora da Índia) e eu (um brâmane tilmil criado em Bombaim e feito homo academicus nos Estados Unidos), jUntamente com o nosso filho, três membros da família do meu irmão mais velho e uma comitiva dos seus colegas e empregados, decidimos visitar o templo Meenaksi, 'e m Madurai, um dos , grandes centros de peregrinaçao do Sul da Índia. A minha mulher tinha estado por lá várias vezes em trabalho de investigação nas duas décadas
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anteriores. Os nossos objectivos nessa viagem enlm vários. O meu irmão e a mu' lher andavam preocupados com o casamento da sua filha mais velha e pretendiam obter as bênçãos de tantas divindades poderosas quantopossÍvel, na sua busca de uma boa aliança. Para o meu irmão, Madurai era um lugar especial, pois passara aí os seus primeiros vinte anos, com a família alargada da minha mãe. Tinha, portanto, velhos amigos e memórias em todas as ruas das cercanias do templo. Ia agora a Madurai como funcionário sucom negócios a tratar com diversos empreperior dos " _, sários privados que pretendiam persuadi-lo da qualidade das suas ofertas. E um desses potenciais clie-ntes providenciara acomodações para nós num colorido hotel moderno de Madurai, a dois passos do templo, e andou com ele de Mercedes, enquanto o resto de nós fomos para a O nosso filho de onze anos, acabado de chegar de que , \ . " . estava na presença de práticas da herança e, se lhe pedIssem, atIrar-se-Ia 81
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virilmente ao chão, no gesto hindu da prostração perante· os mais velhos e as Aguentou bem o barulho incrível, a multidão e a irritação dos sentidos típicos de um grande templo hindu. Por mim, estava ali para adornar o séquito do meu irmão, para acrescentar alguma vaga força moral aos seus desejos de um casamento feliz para a filha, para reabsorver a. cidade onde cresceu a minha mãe Uá lá tinha estado várias v.ezes), para partilhar do entusiasmo da mi9ha mulher por voltar a uma cidade e a um templo que são provavelmente elementos maiores da sua imaginação e para captar o cosmopolita em bruto. Entrámos, pois, no complexo religioso de. quinhentos metros quadragrupo importante, embora um entre muitos, e em breve os didos versos sacerdotes que ali oficiam nos abordaram, um a um. Um deles reconheceu a minha mulher, que lhe perguntou onde estava Thangam Bhattar. Thangam Bhattar era o sacerdote com quem ela tinha trabalhado mais de perto. A resposta foi: «O Tharigam Bhattar está em Houston.»-Levámos todos algum tempo a absorver a piada e depois tudo se percebeu num instante. A comunidade indiana de Houstoh, como muitas comunidades de indianos nos Estados Unidos, tinha construído um templo hindu, sendo este dedicado a Meenaksi, a principal divindade de Madurai. Ti. nham convencido Thangam Bhattar a ir para lá, deixando ficar a sua família. Leva uma vida solitária em Houston, cooperando na complexa política cultqral de reprodução nUma comunidade indiana além-mar, provavelmente auferindo um rendimento modesto, enquanto a sua mulher · e filhos continuam na sua casinha perto do templo. Na manhã seguinte, a minha mulher e a nossa sobrinha foram a casa de Thangam Bhattar e ali lhes falaram das dificuldades que ele passava em Houston, e elas contaram à família como tinham sido para nós os anos decorridos. Há aqui uma · ironia transnacional,como é evidente. Carol Breckenridge, historiadora americana, chega a Madurai ansiando por ver o seu mais próximo informante e amigo, um sacerdote, e descobre que ele está lá longe, em Houston, que é longe mesmo da distante Filadélfia. Mas esta ironia transnacional é uma meada com muitos fios que se desenrolam para trás e para diante no tempo segundo estruturas longas e flui82
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das de significado e comunicação. Entre esses fios estão as esperanças do meu irmão para a filha, que depois casou com um doutorando em Química . Orgânica numa universidade do estado çe Nova Iorque e recentemente veio ela própria para Syracuse; a oportunidade de a minha mulher recontextualizar a sua experiência em Madurai num mundo que, pelo menos para alguns dos seus actores principais, passa a incluir Houston; e, para mim, uma ocasião de compreender que o cosmopolitismo histórico de · Madurai adquiriu uma nova dimensão global e que algumas das principais vidas situadas no centro das práticas rituais do templo coritam agora Houston nas suas biografias imaginadas. É possível e necessário destrinçar . cada um destes fios, pois conduzem a um entendimento da globalização do hinduísmo, da transformação de «nativos» em cosmopolitas a seu modo e o facto deo templo agora não só atraír pessoas de todo-o mundo, mas também se expandir. A deusa Meenaksi tem uma presença viva em Houston. Entretanto, o nosso filho passou a ter no seu repertório de experiênci"as uma jornada do tipo Raizes. Pode lembrar-se disso enquanto constrói a sua vida de americano de ascendência meio indiana. Mas também pode ser ·que se lembre mais nitidamente da súbita necessidade de ir aos sanitários enquanto andávamos de santuário em santuário, numa visita a outro gran- . de templo, em Janeiro de 1989, e do quarto de banho da pousada de uma fundação de caridade em que encontrou abençoado alívio. Mas também aqui há uma história inacabada que encerra dinâmica familiar, memória e turismo para um americano com hífen de onze anos, que tem que ir periodicamente à Índia, quer goste quer não, e enfrentar as muitas redes de biografia em mudança que ali encontra. Este relato, como os que se seguem, não apenas precisa de ganhar densidade como deve servir, por agora, de vislumbre de uma etnografia que se ocupe de libertar a imaginação ·do lugai. .
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A minha segunda vinheta vem de uma colectânea de textos de uma espécie de realismo um livro de Julio Cortázar chamado Um Certo Lucas (1984). Como ultirllamente a antropologia tem ido buscar à literatura muitos modelos e metáforas mas há reIativ·amente pouca antropologia
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na literatura, parece apropriada uma palavra sobre esta colectânea. A ficção, como o mito, faz parte.do repertório conceptual nas sociedades contemporâneas.'Os leitores de romances e poemas comovem-se com a acção intensa (como em Os Versículos Sátânicos, de Salman Rushdie) e os seus autores contribuem muitas vezes para a construção dos mapas sociais e morais dos seus leitores. Mais relevante ainda para os meus objectivos, a ' prosa ficcional é o terreno e'xemplar d,a imaginação pós-renascentista e, neste sentido, é fundamental para uma etnografia mais geral da imaginação. Mesmo os pequenos fragmentos de fantasia, como a que Cortázar constrói num ,breve conto, mostram como opera a imaginação contemporânea. o realismo mágico é interessante não apenas corno género literário mas também como representação do modo como o mundo aparece a algumas pessoas que nele vivem. (Para um interessante comentário a um aspecto desta abordagem da narrativa literária, ver Felman, 1989.) Cortázar é sem dúvida único e nem toda a gente imagina o mundo à sua maneira, mas a sua visão seguramente comprova que Qglobo começou a girar de um modo novo. Como os mitos da pequena socied.ade mostrados nos clássicos da antropologia do passado, as fantasias da literatura contemporânea contam-nos alguma coisa sobre deslocamento, desorienta- , ção e acção no mundo contemporâneo. (Para um excelente exemplo recente desta abordagem no contexto dos estudos culturais, ver Rosaldo, 1989, capo 7.) , ,Como agora já sabemos muito sobre a escrita da etnografia (Clifford e Marcus, 1986; Marcus e Fischer, 1986; Geertz, 1988), estamos em boa posição para avançar para uma antropologia da representação que tem muito a ganhar com.as nossas recentes descobertas sobre a política e a poética de cultura» . Sendo assim, podemos devolver às críticas recentes da prática etnográfica as lições de anteriores críticas à antropologia como campo de práticas a operar dentro de um mundo mais vasto de políticas institucionais e poder (Hymes, 1969). Este conto de Cortázar, de estrita mais ligeira mas também mais certeiro do que alguns outros nacos mais extensos de realismo mágico,
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chama-se «Nadando numa piscina de calhaus cinzentos». Refere-se à descoberta, em 1964, pelo Professor Migueletes, de uma piscina que tinha calhaus cinzentos em vez de água., A descoberta é rapidamente noticiada pelo mundo do desporto e nos, Jogos Ecológicos de Bagdade o carnpeão japonês Akiro Tashuma bate o recorde mundial «nadando cinco metros em um minuto e quatro (Cortázar, , 1984, p. 80). O texto de Cortázar prossegue falando da maneira como Tashuma resolveu o problema técnico de respirar naquele meio semi-sólido. Entram então em cena os jornalistas, nas palavras ' extremamente económicas de Cortázar:
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Interrogado sobre a tendência crescente de muitos atletas internacionais para nadar em calhaus, Tashuma apenas respondeu que ao cabo de alguns milénios se provou enfim que há uma certa monotonia acto de saltar para a água e sair dela todo molhado sem que nada tenha mudado muito esse desporto. Deu a entender que a imaginação está lentamente a chegar ao poder e que é agora tempo de aplicar formas revolucionári'as aos velhos desportos cujo único incentivo é baixai os recordes em algumas fracções de segundo quando tal é possível, o que é raro. Modestamente, declarou-se incapaz de sugerir descobertas equivalentes para o futebol e o ténis, mas fez uma referência oblíqua a uma nova evolução do desporto, uma bola de vidro usada num jogo de 'basquetebol em Naga: se a bola se quebrasse acidentalmente, o que é sempre possível, toda a equipa responsável deveria cometer haraquiri. Há tudo a esperar da cultura japonesa, em especial quando trata de imitar os Mexicanos. Mas, para nos ao Ocidente e a calhaus, estes últimos começaram a subir de preço, para particular deleite dos países que os produzem, todos eles do Terceiro Mundo. A morte por asfixia de sete crianças australianas que tentaram praticar mergulhos na nova piscina de Camberra demonstra, porém, as limitaçÕes deste interessante produto, cujo uso não deve ser levado demasiado longe tratando-se de amadores (pp, 82-83).
Ora aqui está uma divertida parábola que pode bem ser lida a muitos níveis, de muitos pontos de..."vista. Para o que me interessa, começo por observar que foi escrita potihn argentino nascido em Bruxelas , que viveu em Paris de 1952 até à sua morte, em 1984.' A figaçã'o entre o i
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· , . o e ·o exíll'o voluntário em Paris de muitas. das suas merea I lsmo maglc o 'lhores vozes merece um exame mais atento, mas que maIS tem esta VInheta para ao estudo das novas d_o mundo contemporâneo? O conto é, em parte, acerca de uma lnvençao que capta a imaginação distante de Tashuma, uma pe?soa que cre que «a imaginação está lentamente a chegar ao poder». E também _do percurso transnacional de ideias que podem cOmO humorísticas e acabar em bizarras realidades teCnlcas susceptIveIs de causar a morte. Aqui, somos forçados a pensar na trajectória de Os Versículos Satânicos, que começa como uma meditação satírica sobre o bem, o mal e o islão e termina como arma da violência de grupo em muitas partes do mundo. A vinheta é também acerca da internacionalização do desporto e da exaustão espiritual que vem da: obsessão técnica com pequenas ças de actuação. Diferentes actores podem levar a sua imaginação a ahmentar-se do problema do desperto de diversas maneiras. Os Jogos Olímpicos do passa:do estão cheios de incidentes complexas de os indivíduos, situados dentro de traJectonas naCIOnaIS e culturais específicas, imporem a sua imaginação a públicos globais. Em Seul, em 1988, por exemplo, o pugilista coreano derrotado que se sentou no ringue durante várias horas para proclamar publicamente a sua verGonha de coreano e os funcionários coreanos que invadiram o rinque ;ara atacar o árbitro neo-zelandês por o que pensaram ser uma injusta leva vO a m as suas vidas imaginadas a alimentar-se das narrativas olímpicas de comportamento correcto, desportivismo e jogo Toda a questão dos esteróides, incluindo o caso do corredor canadlano ·Ben Johnson (ver MacAloon, 1990) também não anda longe do absurdo técnico do conto de Cortázar, em que o· corpo é manipulado para dar novos resultados num mundo dOe espectáculo competitivo e mercantilizado. A ideia de sete crianças australianas mergulhando numa piscina de calhaus onde morrem merece também ser comparada com as muitas his,. tórias de abnegação individual e excesso físico que por vezes alimentam o desporto global.
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Cortázar reflecte também sobre os problemas da imitação e da transferência cultural e sugere que eles podem levar a inovações violentas e culturalmente O adjectivo cultural surge aqui gratuitamente e requer certa justificação. Que Tóquio Camberra, Bagdade °e Cidade do Méxic'o entrem na história não significa que se tenham tornado bocados fungíveis de um mundo arbitrariamente mudado, deslocalizado. Cada um destes lugares tem realidades locais complexas, de forma que a morte numa piscina tem um certo significado em Camberra, como o têm o acolhimento de ograndes espectáculos no Iraque e a tealizàção de . inovações técnicas bizarras no Japão. Fosse qual fosse a ideia'que Cortázar fazia destas diferenças, das continuam a ser culturais, mas já não no modo inerte que a palavra implicava anteriormente. Culturaoimplica diferença, mas as diferenças, agora, já não são taxonómicas, . são interactivas e refractivas, de forma que entrar num campeonato de natação só ganh.a o peso peculiar que tem em Camberra por causa da maneira como certas forças transnacioriais se·viram configuradas na imaginação dos seus habitantes. A cultura deixa portailto de ser uma espécie de substância inerte, local, para se tornar uma forma de diferença algo mais volátil. Esta é uma parte importante dos motivos para se escrever contra a cultura, como tem sugerido Lila Abu-Lughod (1991). Claro que há outras macronarrativas que brotam deste peqUeno texto de re;üismo mágico, mas todas elas nos recordam que as vidas são hoje tanto actos de projecção e imaginação como encenações de enredos co- . nhecidos de resultados previsíveis. Neste sentido, todas as vidas têm algo em comum com o espectáculoo atlético internacional; num tempo em que os trabalhadores convidados se esforçam por corresponder aos padrões de eficiência em novos cenários nacionais e as noivas que casam muito longe \', da sua terra se esforçam por corresponder aós critérios de hipercompetên' cia que estes novos contextos inuitas vezes exigem. O mundo desterrito'" rializado em que muitas pessoas agora vivem - algumas movendo-se activamente nele, outras vivendo com as suas ausências ou retornos repentinos - é como a piscina de calhaus de Cortázar, cada vez,mais sedento de competência e muitas vezes duro para quem não estiver prepa-
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rado. A vinheta de Cortázar é em si uma parábola etnográfica condensada e, ao tosquiar as histórias possíveis dos seus protagonistas e os seus futuros possíveis, as nossas etnografias da literatura podem ,tornar-se exercí, cios de interpretação do novo papel da imaginação na vida social. Inscreve-se nesses esforços uma vertigem reflexiva quando contemplamos o Tashuma inventado por Cortázar, mas dessa reflexividade resultam não apenas reflexões sobre as nossas próprias práticas .representacibnais enquanto autores, como também uma complexa incubação de apropriações imaginativas relativas à 'construção de capacidade actuante num mundo desterri torializado. Mas nem toda a desterritorialização é de âmbito global, nem todas as vidas imacrinadas abarcam vastos panoramas internacionais. O . mundo em movimento afecta até pequenos espaços ,geográficos e culturais. O cinema contemporâneo representa de diversos modos estes pequenos mundos do deslocamento. Os filmes de Mira Nair a textura destas pequenas seus fildeslocações. cujas rev,erberações nunca a.ndam por longe. mes, lndia Cabare.t, e o que eu chamana um etnodrama . RealIzado em 1984, fala de um pequeno grupo de mulheres que abandonaram vilas e aldeias, em geral na parte sul da Índia, para ' irem para Bombaim trabalhar como dançarinas de cabaré num decadente bar e nightclub chamado Meghraj. O filme contém (ao estilo do primeiro Jean-Luc Oodard) longas conversas entre o realizador e algumas dessas mulheres, que são apresentadas de frente para a câmara, como se falassem COql o espectador do filme. Estes segmentos de entrevista, ricos como narrativa, são intercalados de sequências de dança de cabaré e cenas dos tristes paradoxos da vida de alguns dos homens que sãO clientes habituais. O filme segue também uma das mulheres até à sua aldeia natal, onde nos é mostrada a dor do seu ostracismo, pois toda a gente sabe como se' ocupa'em Bombaim. Consta que essa cena foi montada a pedido do realizador, mas ao menos a encenação revela a estranheZae a dor da sequência. O filme não tem a ver com finais felizes e xa-nos com várias soluções para a vida daquelas mulheres, todas elas ao mesmo tempo orgulhosas e envergonhadas, na realidade prostitutas honestas e pertinazes que fabricaram uma identidade de artistas.
Para os nossos objectivos, o mais importante neste filme é a maneira como mostra que o cabaré não é simplesmente um mercado de desejo fias também um lugar onde, se negoceiam vidas imaginadas: as dançarinas'actuam graças 'ao sentido precário da imagem de dançarinas que têm de si próprias; a orquestra de segunda ordem tenta dar largas às suas paixões . musicais, alimentadas pelas aspirações da comunidade. católica de Ooa (Índia Ocidental) de tocar bem música instrumental europeia e americana. Os clientes qus lá vão sentem-se claramente participantes de uma coisa maior que a vida e comportam-se exactamente como os clientes das cenas de cabaré em muitos filmes comerciais indianos. Na realidade,p esquel1).a que elabora o terreno de encontro de todos esses personagens vem das sequências de cabaré do cinema indiano comercial. Em muitas dessas cenas habituais, um espalhafatoso quarteto de nightclub toca uma melodia sensual deprimente que associa instrumentos harmonias ocidentais e indianos enquanto o vilão e os seus mem bebidas alcoólicas obviamente ordinárias e assistem a um número de dança dolorosamente explícito executado por uma estrela vamp. O rói é normalmente introduzido na acção de uma maneira que acentue a sua virilidade e ao mesmo tempo superioridade moral sobre o ambiente sór-' dido. Normalmente, essas cenas estão cheias de figurantes do estúdio que se esforçam por manter a expressão sofisticada de pessoas habituadas à alta-roda. São cenas de um provincianismo estereotipado na sua abordagem ao acto de beber, à dança e ao som e resultam algo deprimentes. Os clientes, as dançarinas e a orquestra do Meghraj parecem representar uma versão algo desafinada, sonâmbula l dessas sequências clássicas dos filmes indianos.
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A vida no Meghraj por certo é comandada por imagens do cinema co"'\ mercial, mas a sua força é inadequada para cobrir ansiedades, degradação pessoal e o drama angustian'te do ócio ' a que todos os personagens se entregam, No entanto, os personagens deste etnodrama têm imagens e ideiàs próprias que não são simples resultados contingentes das suas vidas correntes (ou simples fuga a elas), mas sim fabricações baseadas numa subtil obediência às convenções discursivas e representacionais do' cinema in-
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diano. Portanto, embora este filme seja um documentário nos termos convencionais, é també m um etnodrama, no sentido em que nos a estrutura dramática e os personagens que animam um a faixa particular dos Bombaim. Estes actores são também -não estilos de vida' tanto por terem idiossincrasias óbvias a eles ligad as, porque são fa - bricações negociadas no encon!ro entre os esforços do cmema sentar o cabaré e os dos cabarés verdadeiros para captarem a excltaçao do cinema. É nesta negociação, não apenas negociação de corpos, que se enquadra a verdadeira ordeI11 de negócios do Meghraj. mulhe!es que trabalham no cabaré são desterritorializadas e com moblhdade: sao trabalha- doras convidadas em Bombaim. É difícil vê-las no discurso da resistência (embora sejam cínicas em relação aos homens , como são em toda a parte as prostitutas), se bem que a própria postura física, a agressividilde su.a linguagem, o jogo obsceno, quase lésbico, de umas com as outras, Imphquem uma espécie de contracultura cortante e en:,ergonhada: O que nos fica é uma sensação de que estão a arrumar as VIdas, a fabncar os seus próprios personagens usando os materiais cinematográficos e sociais de que dispõem. - Há aqui indivíduos, sem dúvida, e actuantes, também, mas o que comanda estes indivíduos e a sua acção são os realismos complexos que os animam: um realismo boçal sobre os homens e as suas motivações; uma espécie de realismo capitalista que inspira o seu discurso sobre riqueza e dinheiro; um curioso realismo socialista que subjaz às caracterizações que fazem de si próprias como honestas trabalhadoras no comércio da carne (não muito diferentes das donas de casa de Bombaim). Consti tuem um impressionante exemplo etnográfico para este capítulo porque o próprio deslocamento que está na base dos seus problemas (embora o arranque de partida seja normalmente uma reacção a horrores domésyco.s. ainda piores) é também o motor dos seus sonhos de riqueza, respeltablhdade e autonomia. Portamo, nestas vidas construídas o passado é tão importante como o futuro e quanto mais descobrimos esses mais nos de mundos que são cada vez menos cosmtipolItas, cada vez mais locaI s.
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Contudo, mesmo os mais localizados desses mundos, pelo menos em sociedades como a indiana, foram inflectidos -até afligidos por enredos cosmopolitas que regem as políticas das famílias, as frustrações dos trabalhadores, os sonhos dos dirigentes locais. Uma vez mais, temos que ser cautelosos e não supor que ao andarmos para trás nestas vidas imaginadas chegamos ao berço local, cultural, feito de um conjunto fechado de práticas reprodutivas e isento dos rumores do vasto mundo. (Para um ângulo diferente mas complementar destes factos, ver Hannerz, 1989.) lndia Cabaret, de Mira Nair, é um modelo gritante de como a etnografia num mundo desterritorializado pode os p'r bblemas de e actor, pois mostra como opera na realidade o fabrico de si num mundo de tipos e de tipificação. Preserva a tensão entre global e local que rege hoje em dia a reprodução cultural. As vinhetas que aqui usei têm duas finalidades. A é sugerir tipos de situações em que se pode detectar a obra da imaginação num mundo desterritorializado. A segunda é sugerir que muitas vidas estão hoje inextricavelmente ligadas a representações e que por isso precisamos de incorporar as complexidades da representação expressiva (cinema, romances, relatos de viagem) nas nossas etnografias, não apenas como auxiliares técnicos mas como matéria-prima com que construir e interrogar as nossas próprias representações. -
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Conclusão: convites e exortações Embora os cosmopolitisfIJ,os emergentes rio mundÇ> tenham complexas histórias locais e o seu diálogo translocal tenha uma ,história complexa também (a peregrinação islâmica é apenas um exemplo), parece aconselhável tratar o presente como momento histórico e usar a nossa compreen- ' , são dele para iluminar e guiar a formulação dos problemas históricos. Isto não é conservadorismo perverso, é, sim, a resposta a um problema prático: em muitos casos, simplesmente não claro como ou onde uma linha básica cronológica para o fenómeno que pretendemos estudar. A es-
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tratégia de começar pelo princípio torna-se ainda mais ineficaz quando queremos esclarecer as relações vividas entre as vidas imaginadas e as redes de cosmopolitismo em que se desenrolam. Assim, para não esmiuçarmos muito a questão, precisamos de uma etnografia que seja sensível à natureza histórica do que vemos .hoje (o que implica também a comparação cuidadosa, como sabe todo o bom historiador), mas sugiro que entremos no problema através do presente histórico. Embora muito tenham escrito sobre a relação entre história e antropologia os praticantes de ambas as disciplinas na década de oitenta, poucos dedicaram uma reflexão cuidadosa ao que significa construir genealogias do presente. Em especial no que respeita aos muitos cosmopolitismos alternativos que caracterizam o mundo actual e aos complexos fluxos culturais transnacionais que os ligam, não há uma maneira fácil de começar pelo princípio. Os cosmopolitismos actuais combinam experiências de vários de comunicação com várias formas de experiência - cinema, vídeo, restaurantes, espectáculos desportivos e turismo, para citar apenas algumas - que têm diferentes genealogias naCionais e transnacionais. Algumas destas formas podem começar por ser extremamente globais e aca. bar muito locais - a rác;iio seria um exemplo - , enquanto outras, como o cinema, podem seguir a trajectória inversa. Em determinada etnopaisagem (termo que poderemos querer substituir por entidades anteriores como aldeias, comunidades e localidades), as genealogias do cosmopolitismo possivelmente não serão iguais às suas histórias: enquanto as genealogias revelam os espaços culturais em que novas formas podem tornar-se indígenas (por exemplo, da forma como o turismo vem habitar o espaço da peregrinação na Índia), as histórias destas formas permitem sair para fontes e estruturas transnacionais. Assim, as etnopaisagens mais apropriadas para o mundo de hoje, com as suas modernidades alternativas, ,interactivas, deviam habilitar a genealogia e a história a confrontar-se, deixando o terreno aberto a interpretações da forma como as trajectórias his.tóricas locais passam a complicadas estruturas transnacionais. Claro que este diálogo entre histórias e genealogias tem a mas para esta história posterior de certeza que não possuímos ainda uma narrativa do-
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minante. Para aqueles de nós que possam desejar propor uma nova narrativa dominante, seja qual for a sua forma, as novas bais têm que ser sólidos materiais de construção. Michel-Rolph TrouiUot (1991) sugere que o papel histórico da antropologia seria colmatar a «brecha selvagem» num diálogo ocidental interno sobre utopia. Uma antropologia recuperada deve reconhecer que o génio já saiu da garrafa e qúe está , ao alcance de todos especular sobre utopia: A antropologia por certo 'pode contribuir com o seu dote especial de experiência vivida para um estudo transdisciplinar mais vasto dos processos culturais globais. Mas, para o fazer, terá primeiro que sair do frio e o desafio de para os estudos culturais sem o benefício da sua principal alavanca anterior: os panoramas do selvagem.
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4 Consumo, duração e história
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Consumo é um tópico que vem sempre equiPado com uma ilúsão de óptica. Esta' ilusão, promovida em especial pela economia neoclássica do século XIX, é que o consumo é o fim do caminho das mercadorias e serviços, término da sua v{da social, a conclusão de uma espécie de Ciclo material. A minha prlncipal intenção neste capítulo é demonstrar que se trata realmente de uma ilusão e que, para nos livrarmos dela, temos que devolver o consumo .ao tempo - tempo concebido como múftiplo como história, periodicidade e processo. Daqui se tira uma série de conclusões metodológicas e uma proposta preliminar sobre a maneira de conceptualizar o que é novo no consumismo após o advento da comunicação electrónica ..
Repetição e regulação Como respirar, o consumo é um hábito imperceptível de que só se dá conta quando contextualmente ostentatório. Mas só na ostentação nos
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apercebemos do consumo e esta é a primeira das ratoeiras metodológicas que precisamos de evitar, ratoeira que pertence também a muitos outros tópicos. Ou seja, precisamos de resistir à tentação de construir uma teoria geral do consumo em torno do que Neil McKendrick e colegas chamaram «efeito Veblen» (McKendrick, Brewer e Plumb, 1982; Veblen, 1912), nomeadamente a tendência para padrões de mobilidade organiem torno da imitação dos superiores sociais . O facto de o consumo poder por vezes ser notório e imitativo não deve levar-nos a pensar que I foi sempre assim, sobretudo por causa das várias formas de abstinência que também podem ser notórias e ter consequências sociais (Appadurai, 1986). Como característica geral da economia cultural, o consumo tem que cair, e cai, no modo repetitivo, na habituação. À esta luz, a observação de Frederic Jameson (1990), apoiado Jean Baudrillard, Sigmund Freud, I Sy)ren Kierkegaard e outros, que a repetição caracteriza a mercadoria cultura do capitalismo consumidor, pode situar-se numa antropologia mais alar- I gada da relação entreconsumo e repetição. Mesmo nos contextos mais li- i bertos da moda, como sugiro na secção seguinte deste capítulo, o consumo tende para a habituação através da repetição. O principal motivo para isso I é que o consumo, em todos os contextos sociais, gira em torno do que Marcel Mauss chamou «técnicas do corpo» (Mauss, 1973) e o corpo pede disciplinas que são repetitivas ou pelo menos periódicas. Mas não é por o corpo ser em todá a parte o mesmo facto biológico que por isso exige as mesmas disciplinas. Pelo contrário, como arena íntima das práticas de reprodução, o corpo é o sítio ideal para a inscrição de disciplinas sociais e estas podem ser muito variadas. Jogando com uma' das raízes etimológicas da palavra consumo, vale a pena notar que comer - ao contrário de, digamos, tatuar - induz habituação, mesmo nos círculos do topo da escala em que a comida passou a estar largamente dominada por ideias de beleza física e comportamento em vez de ideias de energia e suficiência (Bourdieu, 1984). Mas onde as práticas de consumo hedonistas e antinómicas penetraram prhlundamente, permanece, naquelas que estão mais próxi-
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mas do corpo, a tendência para ganharem uniformidade através da habituação: comidas, roupas, penteados. Saliento a força da ' habitljação pois é frequente vê..:la ignorada a favor das forças de imitação ou oposição. Estas últimas podem muitas vezes ser importantes, mas deparam sempre com a inércia social das técnicas corporais. Portanto, mesmo entre monges, vegetarianos, bocas esquisitas anticonsumidores de toda . . a espécie, é extremamente difícil manter um regime de consumo anárquico. As técnicas do corpo, por mais peculiares, inovadoras e anti-sociai s que sejam, precisam de se tornar disciplinas sociais (Asad, 1987), de fazer parte de um hábito, livre de artifícios ou de coerção, externa, para poderem assumir toda a sua força. Como o centro das p{áticas de consumo é o corpo, a habituação que precisa das disciplinas físicas para triunfar implica padrões de consumo que hão-de sempre tender para a repetição, pelo menos em certos aspectos. É este o paradoxo interno do hedonismo, especialmente nas suas dimensões anárquicas: até o consumo hedonista requer as suas disciplinas corporais, e estas . disciplinas pela sua própria natureza, estimulam a repetição e dissuadem a inventiva (Campbell, 1987). MesmO uma barba desgrenhada tem que ser tratada. Naturalmente, nem todo o consumo tem que ser repetitivo ou habitual, mas um sistema de consumo que se esforce por se libertar do hábito é empurrado para uma estética do efémero, .como veremos ao longo deste capítulo. Assim se explicam algumas das características importantes da relação entre consumo, moda prazer, que abordo na minha conclusão. Todas as práticas de consumo que resistem têm que pagar o_seu tributo à inércia corporal, ainda que essa inércia afecte áreas muito diferentes e se insira em ideologias' radicalmente diferentes no tempo e no espaço. Com base nesta inércia é possível construir toda uma série de periodiCidades -e '. \ . ritmos temporais diferentes, inCluindo os que são induzidos pelo consumo . notório de que fala Thorstein Veblen. Em qualquer conjunto socialmente regulado de práticas de consumo, as que giram em torno do corpo, em particular em torno da alimentaç ão do corpo, assumem a função de o ritmo temporal, de determinação do compasso temporal mínimo (por analogia com a actividade mu-
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sical) que permita construir padrões muito mais complexos e caóticos. Dando mais um passo na analogia, os pequenos hábitos de consumo, nor- ' malmente os hábitos alimentares diários, podem desempenhar o papel da ' " I percj.lssão na organização dos padrões de consumo em larga e estes podem ser feitos de ordens de repetição e improvisação muitq mais com- I plexas. A moral metodológica inerente pode ser enunciada do seguinte i ,modo: onde a imitação parece dominar, a repetição espreita. Uma lógica de inércia na repetição é um recurso que serve às sociedades e às suas classes dirigentes para edificar regimes de maior periodicidade, normalmente em torno de formas de sazonalidade'. A nossa experiência do "frenesim de presentes de Natal, nos Unidos exemplifica muito bem este tipo de regime. Em muitas sociedades, importantes ritos de passagem têm marcadores de consumo, muitas vezes agregados obrigatoriamente, ou quase obrigat.oriamente, em tomo da oferta de presentes, no geral entre categorias predefinidas de pessoas ligadas socialmente, sobretudo parentes. Mas tal não implica um casamento mecânico de Arnold ván Gennep com Marcel Mauss (Van Gennep, 1965; Mauss, 1976). Com efeito, as sazonalidades que organizam o consumo são mais complicadas e menos mecânicas do que à primeira vista parece. Os actos de consumo que rodeiam as rotinas dos ritos de passagem são muitas vezes menos mecanicamente prescritivos do que possa parecer. Pierre Bourdieu demonstrou-o muito bem no seu estudo dos presentes entre afins nos casamentos cabilas, na Argélia (1977). O que Bourdieu consegue mostrar, como exemplo do que ele chama improvisações regulamentadas do hábito, é que algo que parece ser um conjunto fixo de prescrições a"reger a troca de presentes entre afins é determinado por um conjunto extremamente complexo de interacções estratégicas cuja sequência, por ser improvisatória, é imprevisível, embora a sua morfologia : social geral seja conhecida dos agentes logo desde o prinCípio. Uma fonte crucial de incerteza, que pode ser tratada como recurso estratégico pelos principais agentes, é o intervàlo de tempo entre vários actos de presentear. Bronislaw Malinowski já notara este papel essencial do calendário dos presentes (1922) e também Mauss, e Marshall Sahlins deu-lhe força tipo1
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lógica (Mauss, 1976; Sahlins, 1972). Para o que nos interessa, sugere que os ritmos de acumulação e despojamento que geram estados de riqueza material em muitas sociedades são produto, não da distribuição mecânica de bens ou de padrões de oferta previsíveis, mas de complexas sequências de cálculo, baseadas, como outras formas agonísticas, em acordos partilhados quanto ao estilo; mas com considerável latitude estratégica. Esta dimensão calculista de dar presentes confere uma perspectiva mais complexa à relação entre consumo e ritos de passagem. Os actos de troca de presentes, com as suas implicações concomitantes de consumo e , produção, são muitas vezes vistos no contexto dos ritos de passagem como marcadores altamente convencionados (na terminologia de Charles Pierce, ícones) destes Mas será mais útil considerar estas estratégias de consumo indexadas aos ritos de passagem, isto é, criadoras do significado desses ritos pelo modo como apontam para a sua intenção. Expliquemo- " -nos. O pacote básico de ritos de que fala Van Gennep (1965), osque têm a ver com nascimento, iniciação, casamento e morte, são normalmente considerados regularidades culturais com um grau notável de universalidade devido, segundo Van Germep, às uniformidades fi"siológicas e cosmológicas em que se baseiam. Usando as ideias de Mauss sobre técnicas do corpo (1973) para inverter o sentido de Van Gennep, sugiro que as pe"riodicidades do consumo, mediatizadas por estratégias de acumulação e despojamento, constituem muitas vezes à principal significado destes acontecimentos «naturais», não se limitam a marcá-los de um modo superficial, «simbólico». Isto é muito claro na iniciação e no casamento, em que as questões de tempo e oportunidade são "obviamente importantes dado o grau de intervenção de que dispõem os agentes principais para de- "\ terminarem quando e quem esses eventos afectarão. Com o nascimeritoe a morte, o relógio biológico parece primário e, no entanto, mesmo aqui sabemos que O ritual que marca estes acontecimentos, que podem ser demorados, discutidos e altamente idiossincráticos, define a sua rele'vância social (Geertz, 1973). O que afecta a relevância social é a natureza, oportunidade, escala e visibilidade social das transacções materiais 'que cons-
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tituem o processo ritual destes ritos. A questão seria mais simples no caso de outros ritos de passagem analisados por Van Gennep, ritos que. envolvem transições no espaço, território, grupo de pertença, agricultura e similares .. Numa palavra, as periodicidades de consumo socialmente organizadas e as estratégias calculistas que lhes conferem acção e amplitude são constitutivas dos significados sociais dos ritos de passagem e não meros marcadores simbólicos desses significados. Portanto, na escala sazodas estações, biografias e histórias de grupo analisadas por nal Van Gennep e outros, o consumo rege as periodicidades mais dos ritos temporais de passagem. Neste sentido, o consumo cria tempo, não se limita a reagir a ele. Para tornar mais clara esta máxima, voltemos ao Natal. Nos Estados Unidos, à medida que aumenta o leque de mercadorias, que as famílias se vêem com listas mais extensas de bens e serviços que podem os desejos dos seus membros e que as modas, em especial paraos mais novos, mudam como o vento, os que fazem o papel crucial de Pai Natal dão consigo a fazer as compras de Natal mais cedo. A oportunidade é um problema delicado, pois toda a gente quer fazer as suas compras antes dos apertos e o ideal seria comprar tudo durante o calor de Junho ou Julho. Por absurdo que pareça, isso torna-se duplamente difícil pelo facto de, só em Setembro ou Outubro o ciclo da moda, em especial para coisas como brinquedos de criança, começar a emitir sinais claros. Portanto, é preciso saber quanto tempo se deve esperar antes de decidir que os favoritos do ano já estão definidos, mas não tanto que se tenham esgotado nas lojas. Na outra ponta do processo, todas as grandes lojas fazem saldos a seguir ao Natal, mas é frequente, por causa da pouca afluência de compradores em algumas partes do país, haver saldos antes do Natal, o que distorce ainda mais a periodicidade de preços e sentimentos a gerir pelas famílias americanas. O comprador astuto sempre soube que a melhor altura para comprar presentes de Natal (em especial, se não estiver preocupado com artigos sujeitos aos curtos ciclos da moda) está nos potlatches que se seguem imediatamente ao Natal nos grandes armazéns. Por isso o Natal, é óbvio, não é um mero facto sazonal. De certo ponto de vista, pode
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uma festa de todo o ano, com períodos mais ou menos frenéticos de actividade consciente. Neste caso, é muito mais como o cultivo da 'batata-doce de Trobriand do que como o parto por cesariana. A diferença reside na maior lógica social de aquisição e despojamento coorde;, nada para que determinado rito de obtenha sucesso. A máxima metodológica, aqui, complica a' anterior: quando a no con'sumo parece ser determinada por sazonalidades de passagem ou universais, considere-se sempre a cadeia causal inversa, em que as sazonalidades do consumo possam determinar o estilo e significado das passagens «naturais».
Periodicidades e histórias Mas as próprias sazonalidades do consumo são forjadas por processos temporais mais abertos, mais circunstanciais, contingentes. Em todas as sociedades, independentemente de serem quentes ou frias, le' tradas ou não, história é por definição o decurso da Zangue durée, saibamos ou não o suficiente sobre todas as histórias que encontramos. Em relação ao consumo, as estruturas passadas não têm sido tão elaboradamente estudadas em termos do mundo fora do Ocidente como o foram na Europa e no mundo que a Europa descobriu 4epoisde 1500. Mas co-:nhecemos o suficiente sobre, pelo menos, algumas das histórias do resto do mundo relativas a gral!des períodos do tempo (Curtin, 1984; Hodgson, 1974; Perlin,1983; Schafer, 1963; Wolf. 1982) par"a sabermos que, em vez de um processo espacÍotemporal de unid,ades definidas, o mundo foi durante muito tempo constituído por agregados sobrepostos de ecú- , ' \. menos culturais. Fundamental para a economia cultural da distância tem" . sido a força condutora das trocas, do comércio e das merca:dorias, 'especialmente na variedade de luxo (Curtin, 1984; Helms, 1988; Mintz, 1985; Schafer, 1963). Não obstante, nem todas as estruturas do passado , se caracterizam pelos mesmos pendores, ou contingências, em retrospectiva assumem a aparê[lcia de necessidade. A literacia não apare-
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ceu em toda a parte, tal como a peste bubónica ou a ideia de direitos democráticos. Por isso é preciso considerar os padrões da Zongue durée, em primeiro lugar, localmente, ou seja, dentro de esferas de interacção mui(ü bem observadas e documentadas. Em relação ao consumo, a transformaçao a longo prazo não foi igualmente rápida em toda a parte, embora pareça cada vez mais tolo opor sociedades estáticas a sociedades em mutação. A questão parece ser o ritmo e, a intensidade da mudança, bem como a alacridade com que é acolhida. O que sabemos da Eurqpa permite-nos observar uma sociedade de leis sumptuárias a lentamente numa sociedade de modas. Em geral, todas as formas de consumo socialmente organizadas parecem girar em torno de alguma combinação destes três padrões: proibição, lei sumptuária e moda. O primeiro padrão, típico das sociedades em pequena cab, com baixo índice de tecnologia, ritualistas, organiza o consumo atra- I vés de uma lista assaz longa de actos , e omissões, muitos dos quais associam cosmologia e etiqueta de um modo especial. Nestas sociedades, o que uma antropologia mais antiga chamava tabus regula muitas vezes i o consumo de certas categorias sociais, certos contextos temporais, certos artigos (Douglas e Isherwood, 1981). A vida social das coi sas em sociedades de pequena escala parece ser em grande medida regida pela força da proibição. No entanto, depois de aprendermos mais com o registo ar- ! queológico, as pequenas sociedades em lugares a Melanésia parecem caracterizar-se há muito tempo pOr" fluxos de longe, quer marítimos I quer terrestres, de pelo menos alguns tipos de mercadoria. Nessas sociedades, estruturas de interdição de vários tipos parecem ter consegu'ido acomodar novas mercadorias às estruturas de troca e de gestão existentes, ' em parte porque a explosão quantitativa associada ao mundo mercantil ainda não emergiu. Mesmo nessas sociedades de baixa tecnologia, fluem determinadas conjunturas mercantis e o comércio pode criar alterações ! imprevistas das estruturas de valor (Sahlins, 1981). . Neste ponto, é tentador colocar a versão de Colin Campbell da per- I 7 gunta weberiana relativa às condições his.tóricas da ascensão do capita- \ ': lismo. ou seja, fazê-la de modo a destacar o lado do consumo. Num pon- i f: I
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to parece haver pleno acordo entre historiadores e sociólogos a trabalhar na Europa ,e nos Estados Unidos: a maior transformação do lado da procura terá tido lugar na Europa pouco depois do século xv (Campbell, . 1987; Mukerji, 1983; McKendrick et aI., 1982; McCracken, 1988; Williarns, 1982). Não há, 'porém, quanto à natUreza das condições que permitiram a revolução do consumidor, excepto o sentido generalizado de 'que esteve associada às relações entre as aristocracias tradicionais e as burguesias ascendentes no princípio da era moderna. Mas será mais incisivo perguntar: quando e em que tipo de condições se deu a revolução do consumidor? Virei ainda a sugerir que a ideia de revolução do consumidor em certos aspectos inadequada para o presente electrónico. Mas pode ter algum valor preliminar definir revolução do consumidor de um modo sufi'cientemente restrito para suscitar a comparação e de um modo suficientemente lato para evitar a pergunta tautológica, a saber, porque é que a história da Europa (ou da Inglaterra) aconteceu só na Europa (ou na Inglaterra). Sugiro que se defina revoZúção do consumidor como um conjunto de acontecimentos cuja característica principal é uma passagem generalizada do reinado da lei sumptuiria para o reinado da moda. Desligamos deste modo as revoluções do consumidor de qualquer sequência temporal que tenha a ver com sociedade em movimento, comér"cio sofisticado, segundo o modelo de Josiah Wedgwood, aumento de salários, comércio de massas e conflitos de classe. Desliga também as revoluções do consumidor de sequências e conjunturas históricas específicas de literacia, numéracia, saber especializado, comércio livreiro e outras formas de informação mercantilizadado tipo relevante em Inglaterra, França e nos Estados Unidos dos . , últimos três séculos. Pelo contrário, esta definição abre a possibilidade de ".'" associar as transformações do consumo em larga escala às várias sequên" cias e conjunturas destes factares. Assim, na Índia, os grandes armazéns são uma evolução muito tardia, chegam depois de a publicidade já ser uma prática comercial estabelecida há pelo menos anos, ao contrário da França, onde os grandes armazéns (Miller, 1; Williams, 1982) parecem ter precedido a forma moderna da indústria publicitária: em con-
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junção com exposições nacionais e outros fenómenos de lazer e espectáculo, A própria relação de conjuntura e sequência entre as revoluções do consumidor inglesa e francesa parece ser contestáveL No J apão, a seguir à Segunda Guerra Mundial, verifica-se que o consumo de massas emergiu substancialmente quando estas começaram a ver (em especial, séries de comédia americanas) e que a publicidade veio a seguir, como comentário pós-moderno a esse consumo e não como factor causal primário (Ivy, 1989), Essas diferenças, como é óbvio, são de certo modo produto de complexidades do fluxo cultural após 1800, através do qual muitos países desenvolveram sofisticadas técnicas de comercialização antes de se econoínias industriais ·fortes. Portanto, se pararmos a Inglaterra isabelina com a Índia, a comparação certa devia ser ' com a Índia do fim do século quando já se iniciara a disponibilidade ! . sumptuáriado soberanó mogol, imitada e ao mesmo tempo contestada por : toda a espécie grupos come'rciais e políticos do Norte da Índia (Bayly, , 1986). Do mesmo modo, o papel dos conflitos de classe e das lutas sump- . tuárias entre velhas e novas aristocracias pode ter pesos muito diferentes I se compararmos o Japão e a Índia; onde a dissolução das ideias monárquicas e o ascenso do capitalismo industrial têm relações causais e temporais internas muito diferentes. Poderíamos multiplicar estes exemplos. A ideia metodológica geral é clára: assim como aprendemos, em par- " te pela polémica dá proto-industrialização, a não pressupor as ligações entre as formas comerciais europeias e a ascensão do modo de produção e troca capitalistas, o mesmo se passa com o consumo: o que temos que evitar é ir à procura de sequências preestabelecidas de mudança institucional, axiomaticamente definida como constitutiva da revolução do ,consumidor. Isso poderia promover uma mllltiplicação dos cenários em . que emerge a sociedade de consumo, considerando-se que o resto do mundo não é apenas um repetidor ou imitador dos precedentes conjunturais de Inglaterra ou Françà. Exploradas estas variações conjunturais nas ligações entre classe, produção, comercialização e política em'longos sectores de determinada história, poderemos estar em melhor posição para con struir modelos de interacção globa-l no domínio do consu-
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mo, tanto antes como depois da grande expansão marítima da Europa no. t. O --século XVI. ® Comparando deste modo revoluções do consumidor, podemos man.Q) ter a tensão entre a Zongue durée das localidades e a duração variávei dos vários processos mundiaIs operando uma distinção que já se revelou ® útil noutro contexto (cap. 3), a distinção entre história e genealogia. Ten(9 :1 do cada uma destas palavras um ror de sentidos (conforme o jargão de () cada um), o meu é o seguinte: a história leva-nos para fora, a ligar paO drões de mudança a universos de interacção cada vez mais vastos; a genealogia leva-nos para dentro, para disposições e estilos culrprais que O possam estar teimosamente inseridos nas instituições locais e na história O dos hábitos locais .. Assim, a história da relação ascética do Mahatma . 10 Gandhi com o mundo da mercadoria pode levar tão longe quanto John . ·, . O Ruskin, Henry David Thoreau e outros que, no Ocidente, articularam uma visãó pastoral, anti-industriaL Mas a genealogia da hostilidade de Gandhi para com a mercadoria e o individualismo possessivo, em geral, O leva provavelmente para dentro, para um prolongado desconforto índico O com ligações ao vasto campo das experiências sensoriais. Além disso, O relativamente a determinadas práticas ou instituições, história e geneaQ logia podem reforçar-se ao ponto de uma poder disfarçar a outra ou de O se contradizerem mutuamerite, como no exemplo seguinte, tambem da .,-\ Índia: quando os Indianos começaram a entrar no mundo britânico oi\...;;1 tocentista do v'estuário, adquiriram uma história que as elites indígenas acharam atraente, mas uma genealogia que foi mais perturbadora. Para ( :) "i.jJ as elites brâmanes, por exemplo, a história do uso do chapéu ligava-as . a uma narrativa do seu próprio passado cosmopolita, colonial, mas a sua genealogia talvez fosse menos confortável, pois justapunha ideias muito diferentes sobre cabelos e como os cobrir, também crucial para os há- o .,.. bitos brâmanes. No geral, em qualquer situação social e temporal IOca- . ... lizada, o estudo da Zongue durée relativamente ao consumo deve ser acompanhado pela exp!oração simultânea das genealogias de práticas particulares. E provável que esta dupla historicizac;:ão revele ('" múltiplos fluxos processuais subjacentes a uma dada conjuntura e simul-
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taneamente torne possível comparar sem sacrificar o contraste, no que : " ..\ se refere ao estudo das revoluções do De volta.à relação entre os pequenos cIclos dete,n:nmados pelas tecnIi cas do corpo, que constituem o cerne de todas as pratIcas de consumo dUi radouras, e pelas sequências mais abertas em que eles se inset · rem, é importante notar que o andamento destas periodicidades d 1 pequena escala se pode situar em mais que a langue durée, com' os cessos implícitos na história e genealogia a criarem múltiplas dades para determinada prática (Halbwachs, 1980). Resulta ainda que, estudar as práticas de consumo de diferentes sociedades, devemos estai preparados para encontrar uma de diferentes histórias e genealogias l presentes no mesmo momento. Assim, em França o consumo de perfume ' em 1880 (Corb in, 1986) pode apontar-se como um tipo de história da disciplina e estética física, ao passo que o consumo de carne corresponderá a histórias e genealogias completamente diferentes. Quanto mais diversificada for uma sociedade; mais complexo será o conteúdo das suas interacções com outras sociedades, mais fragmentada a história das suas prá- ' ticas de consumo, embora seja possível distinguir estilos, tendências e padrões alargados. O movimento dos ritmos temporais de consumo curtOs ' para os longos é um movimento de mais para menos I drão. Escrever a história da «distinção» no sentido de Bourdieu (1984) I exige abertura ' a essa Nas secções que se seguem confinar-me-ei às sociedades em que a moda, pelo menos para algumas classes, I se tornou um mecanismo dominante do consumo e em que a mercantilização é. uma característica marcante da vida sociaL II
Jfoda e nostalgia
Embora já muito se tenha dito sobre a moda (McCracken, 1988;. Miller, 1987; Simmel, 1957), ela ainda não está plenamente compreendida como aspecto dos ritmos temporais das sociedades industriais e pós-industriais . E 'apesar de toda a gente saber que a rrioda é um elo crucial entre
produção, comercialização e consumo nas sociedades capitalistas, a relação da moda com aquilo a que Grant McCracken chamou «pá tina» ainda não foi plenamente explorada. O problema da pátina, que McCracken propõe como termo geral p'ara tratar a propriedade de coisas cuja idade se torna um indicador-chave de estatuto elevado, eI}cobre um dilema mais fundo: o diiema de distinguir usar de gastar. Ou seja, se em muitos casos usar é um sinal do tipo Certo de duração da vida das coisas, o mero desmazelo ou decrepitude não o é. Enquanto propriedade de objectos materiais, o uso é pois em si uma propriedade muito complicada que requer considerável manutenção. Polir velhas pratas, }ímpar mobílias antigas, remendar velhas roupas, envernizar soalhos antigos, tudo isso entra nas práticas das classes altas em muitas sociedades ou, mais exactamente, dos seus criados. Poderíamos dizer, parafraseando o conhecido aforismo, «quanto à pátina, os criados dela». uma pátina mal conservada torna-se por sua vez um sinal, ou de antecedentes pobres, patente contrafacção social (Goffman, 1951) ou, pior ainda, de completa penúria. Em suma, a pátina é uma propriedade traiçoeira da vida material, sempre aberta a falsificações e a maus tratos. A pátina dos objectos só assume o seu pleno significado num contexto adequado, tanto de objectos e espaços para esses grupos de objectos como de pessoas que saibam como indicar, com as suas práticas corporais, as suas relações com esses objectos: vêm-nos ao espírito as casas rurais inglesas bom exemplo deste complexo conjunto de relações. Quando todas estas condições estão reunidas, então a transposição da temporalidade, a subtil pasrealiza-se e a prósagem da pátina do objecto para o seu dono ou pria pessoa (ou família, ou grupo social) reveste-se da pátina invisjvel da reprodução bem gerida, da continuidade temporal intacta. Mas a pátina, a beleza da idade, não pode por si só gerar as associações temporais cor- ' '. rectas paIa os seres humanos. Aqui, como em muitas outras matérias que envolvam vida material, o contexto é tudo. A distinção entre antiguidade e sucata não é a pátina enquanto tal, mas a boa gestão sernióticado coritambém que cuidar de um ritmo temporal delicado,. em texto especial quando a integraçãO nas elites se consegue de certo modo graças 107
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à pátina. Como todas as coisas têm uma «biografia cultural» (Kopytoff, 1986), mesmo os objectos que possuem a mais Ímutável pátina têm hiso tórias possíveis, algumas das quais incluem roubo, venda ou outros modos impr6prios de aquisição. Como sabem os novos-ricos, o importante é regular o ritmo a que se reúnem objectos com pátina. Se for demasiado lento, apenas os descendentes conhecerão os prazeres do esplendor que convém, se for demasiado veloz, vai ao encontrei odo de Georrre o Babbitt, mesmo rodeado das coisas necessárias. Portanto, a gestão dos mos temporais é essencial para a exploração da pátina. Como chave da vida material das aristocracias (e aspirantes a aristocracias), a pátina alimenta uma corrente mais profunda da vida social das coisas, que é a capacidade de certas coisas despertarem nostalgia, uma sintomatologia imortalizada por Marcel Proust. Os objectos com pátina são perpétuas lembranças da passagem do tempoocomo uma lâmina de dois gumes, credenciais da «gente bem», mas também ameaça à maneira como vivem. Sempre que a maneira aristocrática' de viver se .vê ameaçada, a pátina adquire um duplo significado: indica o estatuto especial do seu dono e a relação especial do dono com uma maneir°:J. de viver que já não é possível. É essa maneira de viver que faz d:l pátina um recurso verdadeiramente escasso, pois sempre indica que certa maneira de viver desapareceu para sempre. Contudo, este mesmo facto serve de garantia contra os recém-chegados, pois eles podem adquirir objectos com pátina, mas nunca a dos que têm legitimidade para chorar a perda de uma maneira de viver. Naturalmente, os bons tores podem prC'::urar mimar esta postura nostálgica, mas aí tanto o comportamento como a sua revisão são uma questão mais rigorosamente reO gulamentada. É mais difícil fingir ter perdido lima coisa do que perdê-la realmente ou afirmar tê-la encontrado. Aqui, o uso material não pode disfarçar a ruptura social. O esforço para inculcar nostalgia é lima característica esscnci'11 das modernas técnicas de mercado, como se vêpelos gráficos e textos 1:1.0s· catálogos de prendas nos Estados Unidos. Estes catálogos recorrem a um:J série de dispositivos retóricos, mas particularmente no que toca a roupa,
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mobília e design, jogam com muitos tipos de nostalgia, nostalgia de estilos u de vida passados, conjuntos materiais, fases da vida (como ainfãncia), O 't paisagens (do tipo Currier e Ives), cenários (dó tipo cidade de província(0 'I -NormanRockwell), etc. Muito se tem escrito sobre estas questões e dispomos de excelentes trabalhos sobre as relações entre nostalgia e autenticidade e colecções, brinquedos e panoramas (Breckenridge, 1989; O( Stewart, 1984). Mas o que não foi explorado foi o facto de essa nostalgia, O ; no que toca às técnicas de mercado de massas, nãorecorrer em primeira O mão à evocação de um sentimento a que reagem os consumidores que perderam realmente qualquer coisa. Não, estas formas de para as o O massas ensinam os consumidores a ter saudades de coisas que nunca perO deram (Halbwachs, 1980). Ou seja, criamOexperiências de duração, O sagem e perda que reescrevem as histórias vividas de indivíduos, famílias, O grupos étnicos e classes. Criando experiências de perdas que nunca houve, O estes anúncios engendram o que poderemos chamar «nostalgia imaginaC) da», a saudade de coisas que nunca foram . Esta nostalgia imaginada inverte portanto a lógica temporal da fantasia (que orienta o sujeito para que O imagine o que teria ou poderia ter aconteCido) e cria desejos muito mais O profundos do que a simples inveja, imitação ou cobiça poderiam suscitar. t''\ '<;:.} A torção final na lógica peculiar da nostalgia em políticas do consumo de massas ir:nplica o que Frederic Jameson chamou «nostalgia do presente», expressão que usa para estudar certos filmes recentes que projectam um futuro de cuja perspectiva o presente não só foi historicizado como O também confundido com algo que o espectador já perdeu (1989). A ideia O de Jameson, esclarecedora no que toca a certas faixas do dnema e da literatura populares de hoje, pode-se alargar ao mundo do comércio de mas- . : sas. A nostalgia do presente, a apresentação estilizada do presente como " , se já se tivesse desvanecido, caracteriza um vasto número de anúncios de televisão, em particular os que se dirigem ao mercado juvenil. Surgiu toda uma nova estética do vídeo, de um modo mais notável nas campanhas P_eP:i, je.ans Levi Ralph Lauren, em que cenas contemporâneas sao llummadas, coreÕgrafadas e filmadas de modo a criar uma espécie de ética de regresso ao futuro: frugal, surreal, com aspectos de ficção cien-
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tífica, eem outros inequivocamente evocativo dos anos sessenta (ou cinquenta) . Poderíamos considerar que muito desta estética se baseia numa espécie de «histoire noire» . Pôr assim o presente entre aspas torna-o já objecto de uma sensibilidade histórica e assim estas imagens situam o consumidor num presente já periodizado, .logo, presa ainda mais pronta para a velocidade da. moda. Compra já, não porque fiques fora de moda se não o fizeres, mas porque o teu tempo em breve vai ficar fora de moda. Portanto, nostalgia e moda arrastam-se mutuamente ainda que não queiram, não só por a nostalgia ser um instrumento astuto saído da caixa de ferramentas da comercialização, como também por causa da contínua . alteração de traços mínimos (que está no âmago da moda) que já adquiriu a dimensão da reciclagem, especialmente nos Estados Unidos, o que é notável. Vasculhar na -história tornou-se uma técnica corrente da publicida. de, em particular dos anúncios visuais e electrónicos, como modo de apelar à nostalgia genuína. dos grupos etários por passados que na realidade conhecem pelas experiências alheias, mas ta:mbém como meio de sublinhar a fugacidade intrínseca dQ presente. Os catálogos que exploram a experiência colonial para efeitos comerciais são um excelente exemplo desta técnica (Smith, 1988). O sentimento inculcado, calculado para intensificar o tempo da compra jogando com a versão publicitária do fim da história, é a novidade mais recente do pacote de nostalgia e fantasia nas técnicas .de mercado modernas. Em vez de contar com o consumidor para fornecer recordações enquanto o anunciante fornece o lubrificante da nos tal o-ja '" , agora o espectador apenas tem que trazer a faculdade da nostalgia para uma i.magem que abasteça a memória de uma perda que ele não sofreu. Esta relação poderia chamar-se nostalgia de sofá, nostalgia sem experiência vivida ou memória histórica colectiva. Uma questão metodológica que aqui se põe é deOíridole interpretativa: quando pensamos nestas imagens a que os consumidores modernos reagem,temos que distinguir entre si diferentes texturas de temporalidade. Precisamos de discriminar entre a força da nostalgia na sua forma primária e a nostalgia sucedânea, de a publicidade de massas cada vez mais se serve, e esperar que as sam relacionar-se nos padrões de consumo de diferentes grupos. A outra 110
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questão metodológica é simplesmente prestar atenção à regularidade paradoxal com que, nas sociedades com consumo de massas, pátina é .moda se alimentam e reforçam mutuamente. As técnicas de mercado não só çonstroem o tempo, como já referimos, como influenciam a periodização enquanto experiência de massas nas sociedades contemporâneas. Regressemos brevemente à questão darepetição relativamente ao consumo,já aflorada na análise anterior. Como podemos ligar o problema da repetição às questões da fantasia, da nostalgia e do consumo nas sociedades de consumo contemporâneas? Na medida em que o consumo -é cada vez mais levado a vasculhar histórias imagimidas, a repetição qão ·se baseia simplesmente no funcionamento de simulacros no tempo, mas também na força -dos simulacros do tempo. Não apenas o consumo cria tempo através das suas periodicidades como o funcionamento da nostalgia sucedânea cria simulacros de períodos que constituem o fluxo do tempo, concebido como perdido, ausente ou distante. Assim, a habituação ansiosa de estilos, formas e géneros previsíveis, que fomenta o consumo como actividade multiplicadora em aberto é potenciada por uma construção do tempo implosiva, retrospectiva, em que a própria repetição é um artefacto de nostalgia sucedânea e momentos de percurso imaginados . .
A mercantilização do tempo O consumo não se limita a criar tempo, as revoluções do consumidor são também responsáveis pela mercantilização do tempo sob várias formas . A ideia geral nesta área deve-se, evidentemente, a E. P. Thompson que, partindo de Karl Marx, demonstrou que as disciplinas do local de tra"-__: balho operário criam necessidades de regulamentação do trabalho pela prévia reestruturação do próprio tempo. Dilatando a transformação do. trabalho em mercadoria, o tempo de trabalho torna-se uma dimensão abstracta do tempo vivido como fundamentalmente produtivo e industrial. Thompson identifica a lógica que há-de levar depois às ideias taylorianas sobre corpo, movimento e produtividade (Thompson, 1967). À moderna 111
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ideia de produção tem pois no seu centro o tempo como entidade vendável, glosando a homilia de Benjamin Franklin, «tempo é dinheiro». Mas temos menos reflexões fundamentais sobre a mercantilização do tempo do ponto de vista do consumidor. Nas primeiras sociedades industriais, em que o tempo industrial marca o ritmo do ciclo laboral, a produção define o trabalho e o c;ohsumo é tido por residual a par do lazer, que vem a ser reconhecido logicamente como recompensa pelo tempo de produção bem empregado. O consumo evolui para marcador fenomenológico do tempo que o trabalho deixa de fora, que o trabalho produz, que o trabalho justifica. As actividades de lazer transformam-se na própria definição de consumo discricionário (Rojek, 1987), o consumo no processo que cria as condições para mais trabalho ou para a energia empresarial que a produção requer. Assim,. o consumo é. visto como o intervalo necessário entre períodos de produção. Mas, uma vez mercantilizado, o tempo afecta o consumo de uma maneira nova. Primeiro, a porção de tempo sobre o qual se tem controlo discricionário toma-se um indicador classificar e distinguir vários tipos de trabalho, classe e profissão. O tempo «livre», seja para operários, profissões liberais ou estudantes, é considerado acima de tudo tempo de consumo; e como o consumo discricionário requer tempo livre (tempo liberto de restrições mercantilizadas) e dinheiro livre, pelo menos em certo grau, ,o consumo toma-se um marcador temporal do lazer, do tempo fora do trabalho. Transformado o consumo em formas contemporâneas de lazer em que tanto o espaço como o tempo marcam a distância em relação ao trabalho, entramos no mundo do cruzeiro de luxo e dos pacotes de férias, mercantilizados como «tempo fora do tempo». Mas quem quer que tenha tirado férias dentro das circunstâncias altamente restritivas de uma sociedade industrial, sabe que o relógio mercantil do tempo produtivo nunca pára. Isto leva por ao paradoxo cada vez mais característico do lazer industrial: as férias frenéticas, tão atulhadas de actividades, cenários e o.pções, com o propósito de criar um hipertempo de lazer, que acabam por se tomar uma forma de trabalho - trabalho sempre ciente do seu seguinte com o tempo de trabalho. 112
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Com efeito, há pouco por onde fugir aos ritmos da produção .inçlustrial, pois sempre que o lazer é efectivamente acessível e sociálmente ® aceitável, Q que é preciso não é apenas tempo livre, mas rendimento dispOJ?ível. Para consumir, seja por subsistência seja por lazer, temos que aprender a poupar dinheiro, esse valor fluido mais que Como sa- I;:) lientou Mary Douglas, o dinheiro ameaça sempre escoar-se pelas frinchas das ' estruturas que construímos para barrar, poupar e restringir os t seus erráticos fluxos (1967). Nas sociedades industriais em que a dívida t:.::..,;1 tf do consumidor se tomou monstruosamente grande, as instituições finan- @ ' ceiras exploraram a propensão dos consumidores para gastaf em de poupar. Do ponto de vista do consumidor, não são meras vítimas de um () ,I sistema explorador de empréstimos financeiros. A economia do crédito . O I é também uma maneira de aumentar o poder de compra face a grandes diferenças salariais, um crescimento explosivo do que é comprável, O grande intensificação na velocidade com que mudam as modas, etc. Dí- Q vida é expansão do lucro por outros meios. Claro que, de certas pers- ' €i) pectivas, pagar grandes quantias em juros para honrar dívidas de consumo .não é saudável. Mas para quem? O consumidor pode travar as suas compras, as instituições financeiras fazem uma razia e há derramamento. O de sangue periódico sob a forma de grandes colapsos, como a recente O catástrofe das caixas económicas nos Estados Unidos ou os brutais aumentos das t'a xas de juro que asfixiam temporariamente as despesas do O consumidor. O Com efeito, como atesta a imensa popularidade de revistas como MoO ney, nos Estados Unidos, o consumo nas sociedades industriais complexas é agora um exercício muito complicado que requer o conhecimento de uma vasta série de mistérios fiscais e económicos, desde as volatilidades do mercado bolsista até ao crédito para habitáção e à circulação monetáO "'-'" ria. Na década passada, m<;i.is consumidores americanos do que nunca O verain que se tomar versados nos mistérios da macroeconomia, pelo menos . na medida em que são forçados a entrar para o labirinto · dos empréstimos ao consumidor. Claro que há um grupo crescente na base, nomeadamente os sem-abrigo, que já gastaram as fichas todas e agora têm
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que ficar a ver, ou morrer, nas filas laterais enquanto os seus amigos e colegas se debatem na roleta da gestão das dívidas de consumo. A relevância deste processo para o nosso estudo é que, em sociedades como os Estados Unidos, há uma luta emergente gigantesca, embora silencio·sa, entre consumidores e emprestadores, em que se defrontam entendimentos ri vais do futuro como mercadoria. Sempre que os bancos e outros financiadores estão ansiosos por estimular o empréstimo (o seu maior desafio é minimizar os maus empréstimos), o consumidor tem que definir um horizonte aberto no qual descontar o futuro é obra extremamente traiçoeira. As p.o lémicas recentes, nos Estados Unidos, sobre reduções nas contribuições para a Segurança Social revelam que a maior parte dos consumidores americanos estão presos numa espécie de percepção dístorcida dos impostQs ?- que es. tão sujeitos. Boa parte desta confusão radica na deformação da sensação do tempo operada pelas estruturas que normalmente organizam a dívida do consumo. De notar entre elas é o tipo de linha de crédito baseada na equidade interna, através da qual os consumidores podem simplesmente assinar cheques de uma grande soma especificada que define a opinião do banco sobre a sua capacidade para pagar. Isto implica pegar nas pequenas periodicidades do cartão de crédito corrente e transforiná-las num sedutor panorama de poder de compra flexível que em última análise aproveita ao banco e ao comércio retalhista, ao mesmo tempo que condiciona cada vez mais os rendimentos familiares ao serviço desses empréstimos. Este aspecto da criação de disciplina temporal pelo lado do consumo nas sociedades industriais avançadas não é um simples reflexo, ou inversão, da lógica da produção industrial. A mercantilização do futuro, que está no âmago da actual dívida do consumidor, está intimamerite liaada à estrutura das técnicas de mercado, moda e fantasia de que falárnos na"" seccão anterior. Este consumo industrial mais recente assenta numa peculiar entre fantasia e nostalgia que dá substância (e sustentação) à incerteza do consumidor quanto às mercadorias, ao dinheiro e à relação entre trabalho e lazer. Não se trata simplesmente de o consumo desempenhar o principal papel em onde outrora ele foi da produção, como afirmou Baudrillard (197SJ;'mais propriamente, o consumo tornou114
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-se a função civilizadora da sociedade pós-industrial (Elias, 1978). Falar de sociedades industriais contemporâneas como sociedades de consumo é criar a de que elas são meras extensões dás anteriores revoluções do consumidor. Mas hoje o consumo transforma a sensação do tempo de uma maneira que o distingue fundamentalmente dos seus predecessores dos séculos XVIII e XIX. As grandes inovações em matéria de empréstimos tiveram portanto um notável efeito cultural. Criaram um clima de circuito aberto em vez de cíclico para os empréstimos ao· consumidor e com isso ligaram o empréstimo ao longo sentido linear de uma vida inteira de ganhos potenciais e ao sentido, igualmente· em aberto, do aumento do valor de ·bens como casas, em vez de o manter ligado aos ciclos curtos intrinsecamente restritivos do rendimento mensal ou anual. Nas modernas sociedades industriais, 6 consumo tornou-se portanto, para um grande número de consumidores, o motor e não o horizonte do rendimento. Para um antropólogo, o mais ímpressionante (à parte as muitas implicações para a poupança, á produtividade, o investimento, a legitimidade geracional, etc.) é que as pequenas periodicidades (normalmente diárias) do consumo ficaram subtilmente contextualizadas num sentido linear, aberto, do próprio ritmo da vida do consumidor. O equivalente da disciplina do tempo de Thompson reina agora não apenas no domínio da produ·ção, mas também no domínio do consumo. Mas, estando o consumo atado a irregulares, compleXas e muitas vezes longas, estas disciplinas temporais do consumo têm mais força porque são menos transparentes do que as disciplinas da produção. Quem tiver tentado percebera exacta lógica da carga financeira numa factura mensal do MasterCard saberá a que incerteza me refiro. Mas não se trata simplesmente de o consumo se ter tomado a força mo" . triz da sociedade industrial. O facto é que consumo é agora a prática social que leva as pessoas para aobra da fantasia (caps. 1 e 2). É a prática . diária que traz fantasia e nostalgia juntas para um mundo de objectos mercantilizados. Na análise anterior, afirmei que uma espécie de nostalgia sucedânea - nostalgia sem memória - está cada vez mais n? centro dos mercados de massas e que o jogo da pátina e da moda é por isso paradoxal. 115
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Sugiro agora que a mercantili:zação do tempo por parte do consumo implica mais do que a simples expansão dos desejos, estilos, objectos e opções testemunhada em anteriores revoluções do consumidor. Temos agora algo que está para além de uma revolução do consumidor, algo a que podemos chamar «revolução do consumo» em que o. consumo se tornou a principal função da sociedade industrial tardia. Não quero com isto dizer que não tenha havido importantes mudanças na produção ou nos locais, métodos, tecnologias e organizações do fabrico de mercadorias. O consumo tornou-se actualmente uma fonna séria de trabalho, mas só se por trabalho entendermos a produção disciplinada (especializada e semiespecializada) dos meios de subsistência do consumidor. O coração deste trabalho é a disciplina social da imaginação, a disciplina de aprender a ligar fantasia e nostalgia com o desejo de novos montões de mercadorias. Não estou a reduzir o trabalho a uma pálida metáfora, mero reflexo da sua forte ligação à produção. Estou a sugerir que aprender a navegar nos flu;<.os temporais abertos do crédito e compra, numa paisagem em que a nostalgia se divorciou da memória, implica uma nova forma de trabalho: . o trabalho de ler mensagens de moda em pennanente mutação, o trabalho de pagar dívidas, o trabalho de aprender a bem gerir finanças domésticas de uma nova complexidade e o trabalho de adquirir conhecimentos nas complexidades da gestão do dinheiro . Este trabalho não visa sobretudo a produção de mercadorias, visa .produzir as condições de consciência em que pode ocorrer a compra. Agora, qualquer dona de casa sabe que governar a casa é trabalho, tão real como qualquer outro. Agora, somos todos donas de casa, trabalhamos todos os dias para praticar as disciplinas da compra numa paisagem em que as estruturas temporais se tornaram radicalmente polirrítmicas. Aprender todos estes ritmos (de corpos, produtos, modas, taxas de juro, prendas e estilos) e integrá-los não é apenas trabalho - é o mais duro dos trabalhos, éa obra da imaginação. Voltamos a Durkheim e a Mauss e à natureza da consciênciacolectiva, mas agora com uma diferença. O trabalho de consumir é tão social como simbólico e não é menos trabalho por implicar a da imaginação. Mas, cada vez mais liberto das técnicas do corpo, o trabalho de consumir está por isso
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-· mais em aberto, situado em histórias e genealogias cuja conjuntura tem U que ser examinada, infelizmente, caso a caso. O estudo do consumo terá que atender condições históricas, sociais e culturais em que se desenrola esse trabalho como preocupação central de sociedades contemporâneas, aliás muito diferentes.
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,Duas direcções muito diferentes, 'uma que vai beber a MafC Weber, a O outra a Norbert Elias, ColiÍl Campbell (1987) e Chris Rojek (1987), suO gerem que a chave das modernas formas de consumismoé o prazer, não (J . o lazer (a alternativa crucial para Rojek) ou a satisfação (a alternativa crucial para Campbell). Esta opção pelo prazer como princípio organizador O do consumo moderno converge com a minha tese das duas secções ante- . O riores deste capítulo, mas resta demonstrar como é que o tipo de prazer O em que penso se relaciona cOm os meus. argumentos de tempo, trabalho () e corpo. No que toca à sensação do tempo, o prazer que está no centro do con'J sumo moderno não é o prazer da tensão entre fantasia e utilidade (como sugere Camp,bell) nem as tensões entre desejo individual e disciplinas coO lectivas (proposta de Rojek), embora estes contrastes sejam relevantes () para uma explicação mais ampla do consumismo móderno. O prazer que () tem sido inculcado nos indivíduos que agem como consumidores modernos, vamos encontrá-lo na tensão entre nostalgia e fantasia, em que o preU sente é representado como se fosse já passado: Esta inculcação do prazer " O do efêmero é o que disciplina o consumidor moderno. A 'valorização do -J efémero exprime-se a vários níveis sociais e a: curta vida de praI'J" teleira dos produtos e estilos de VIda; a velocidactecom que muda a moda; a velocidade dos gastos; os polirritmos do crédito, da aquisição e da oferta; a transitoriedade das imagens dos produtos na televisão; a aura de peO riodização que paira sobre os produtos e os estilos de vida na iconografia Ü dos meios de comunicação de massas. O mais louvado aspecto do consuI
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mo moderno - a saber, a busca de novidade - é apenas um sintoma de uma disciplina de consumo mais profunda em que o desejo se organiza em torno da estética do efémero. Há bolsas de resistência em toda a parte, enquanto os aristocratas deitam abaixo as suas tocas sumptuárias, as classes operárias e outros grupos submetidos se apropriam e resistem à estética de massas e enquanto os Estados de todo o mundo procuram a imortalidade travando a cultural. Mas a força dominante que circula no seio das classes consumidoras do mundo parece ser a prática ética, estética e material do efémero. ·Se. a valorização do efémero for realmente a chave para o consumo moderno, então as técnicas do corpo diferem onde antes contrastavam. como regimes sumptuários e de moda: Nos regimessumptuários, o corpo I é o sítio onde se inscreve uma série de sinais e valores de identidade e diferença, bem como de duração (através dos ritos de passagem). Nos re- ' gimes de moda, o corpo é o sítio onde se inscreve um desejo generalizado . i de consumir no contexto da estética do efémero. As técnicas do corpo apropriadas para este regime moderno de consumo pressupõem o que Laura Mulvey chamou escopofilia (gostar de olhar) (1975); uma série de técnicas (que vão das dietas às operações de mudança de sexo) para mudar o corpo que tornem o próprio corpo do consumidor potencialmente efémero e manipulável; e um sistema de práticas de moda ligadas ao corpo em que a personificação (de outros sexos, classes, papéis e profissões), . não a indexação, é a chave da distinção (Sawchuk, 1988). A noção de manipulação do corpo, bem como a minha tese geral sobre o consumo como trabalho, levanta essa outra de saber como é que a estética do efémero, o prazer de olhar (particularmente em relação aos anúncios de relevisão) e a manipulabilidade do corpo correspondem a uma coisa essencialmente nova; afinal, o consumo, em especial o consumo no lar, implica sempre sacrifício, o prazer visual não é uma prerrogativa moderna e manipular corpo é tão velho como a ginástica em Esparta e as práticas ióguicas na Índia antiga. O que é novo é a ligação sistemática egene'ra.'\ liz.ada destes três factores num conjunto de práticas que envolvem uma radicalmente nova entre desejar, recordar, ser e comprar. As his-
e genealogias que se cruzam (no mundo do presente) para constitmrem esta nova relação são profundamente variáveis, embora tra;am em sia valorização do efémero. O consumo cria tempo, mas o moderno procura substituir a estética da duração pela estética do efémero. Embora o exame completo da relação entre corpos, moda e temporalidade no capüalismo tardio esteja fora do âmbito deste capítulo, vale a pena faze'r uma sugestão, a concluir. No seu recente ensaio sobre a iconografia do sistema imunitário no discurso científico e popular contemporâneo nos Estados Unidos, Emily Martin (1992) inspirou-se na obra de David Harvey (1989) e outros para mostrar que, no contexto da flexibilidade que o capitalismo global actual exige, houve muita compressão de tempo e espaço e o corpo acaba a ser visto como um sítio caótico; hiperflexível, pleno de contradições e conflitos. A tese que defendi neste capítulo sugere que esta situação também pode ser encarada do ponto de vista da lógica do consumo .num capitalismo tardio altamente calobalizado e . . Desta perspectiva, a estétiça do efémero torna-se a contrapartida da acumulação flexível e a obra da imaginação é ligar o efémero dos bens com os prazeres dos sentidos. O consumo torna-se assim o elo-chave entre nostalgia do capiralismo e nostalgia capitalista.
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Para uma ex-coI6nia, a descolonização é um diálogo com o passado colonial e não o mero desmantelar dos hábitos e maneira de viver coloniais. Nunca as complexidades e ambiguidades deste diálogo foram mais evidentes do que nas vicissitudes do críquete naqueles países que fizeram parte.do Império Britânico. No da Índia, os aspectos culturais da descolonização afectam profundamente todos os domínios da vida pública, desde a língua e as artes até às ideias de representação política e justiça Em todos os grandes debatés públicos havidos na Índia contemporânea, há sempre um nível subjacente, qu'e é a questão de saber o que fazer corri os farrapos e remendos da herança coloniaL Alguns desses " " remendos são institucionais, outros são ideológicos e estéticos. ' Malcolm Muggeridge .disse uma vez, por piada, que «os Indianos são ' os últimos Ingleses vivos», assim captando o facto - verídico, pelo menos para as elites urbanizadas e ocidentalizadas da Índia - de haver, ' quanto a Ingl aterra se ia progressivamente des naturando à medi da que perdia o império. aspectos da sua herança que foram ganhando raízes fun-
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das nas colónias. Nas áreas política e económica, a relação especial entre a Índia e a Inglaterra já quase não tem significado, pois a Inglaterra procura vencer o desastre económico e os Indianos cada vez se voltam mais para os Estados Unidos, o Médio Oriente e o resto do mundo asiático. Mas há urna parte da cultura indiana actual que parece para sempre inglesa: é o críquete. Vale pois a pena examinar a dinâmica da descolonização nesta esfera em que a necessidade de cortar as amarras com o passado colonial parece mais fraca. , O processo que foi gradualmente dando ao críquete ,a qualidade indígena na Índia colonial é mais acessível se distinguirmos entre formas culturais «duras» e «brandas». As formas culturais duras são as que chegam c0!ll um conjunto de ligações entre valor, significado e prática incorporada, difíceis de quebrare renitentes à transformação. As formas culturais brandas, pelo contrário, são as que permitem separar com relativa facilidade a execução incorporada do significado e do valor e um relativo sucesso na sua transformação a todos os níveis. Nos termos desta distinção, " direi que o críquete éuma forma cultural dura que muda quem estiver nele socializado mais depressa do que muda ele próprio. ' Urna razão para que o críquete não seja facilmente susceptível çie reinterpretação quando transpõe barreiras sociais é que os valores que representa S.10, no fundo, valores puritanos em que a rígida adesão a códigos " externos faz parte da disciplina da evolução moral inte'rna (James, 1963, capo 2). Um pouco corno os princípios do desenho da Bauhaus, daqui decorre directamente a função (moral). Em certa medida, todos os desportos com regras têm esta mesma dureza, mas podemos afirmar que ela está mais prese nte nas formas competitivas que alcançam integrar os valores morais da sociedade em que nasceram . Assim, o críquete, como forma cultural dura, devia resistir à indigenização. E, com efeito, aO contrário do que seria de esperar, foi profundamente indigenizado e descolonizado e muitas vezes se diz que a Índia.sofre de uma autêntica «febre» do críquete (Puri, 1'982). Há duas maneiras de explicar este enigma. A primeira, recentemente sugerida por Ashis Nandy (l989b) , é que há no desporto estruturas míticas, logo abaixo 124
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o t?d' profundamente indiano, a despeito das suas origens lstoncaS ,OCl entms. A abordagem alternativa (embora não séja inteiramente i,ncompatível com muitas das perspectivas de Nandy sobre o "críquete na India) é que ocríquete foi indigenizado mediante um conjunto de processos complexos e contraditórios presentes quando emergiu do Império Britânico uma indiana. A tese desenvolvida neste capítulo , é que a indigenização é muitas vezes produto de experiências colectivas e espectaculares com a modernidade e não necessariamente da afinidade subcutânea de novas formas culturais com padrões existentes no repertório cultural. , A indigenização de um desporto como o críquete tem muitas dimensões: tem algo a ver com a corno um desporto é gerido, apoiado e publicitado; tem algo a ver com a origem de classe dos jogadores indianos, logo, com a sua capacidade de mimar os valores da elite vitoriana' tem algo a ver com a dialécticà entre espírito de equipa e sentimento cional que é inerente ao desporto e implicitamente corrosiva dos laços do império; tem algo a ver com a maneira'como se cria e alimenta um reservatório de talentos fora das elites urbanas, de tal forma que o desporto pode tomar-se internamente sustentável; tem alg'o a ver com a maneira como os meios de comunicação e a linguagem contribuem para libertar o críquete da sua britanidade; e tem algo a ver coma construção pós-colonial de um público masculino capaz de conferir ao críquete o peso da com- , petição física e do nacionalismo viríl. Estes processos interagem entre si ' e indigenizam o críquete ,na Índia de um modo distinto do processo paralelo noutras tolónias britânicas. (Para certo sentido da diáspora no conjunto do império, ver Allen, 1985.) Como é óbvio, a história do críquete depende do ponto de vista que a conta. As notáveis implicaç,ões da história do críquete nasCaràíbas estão imortalizadas na obra de C. L. R. James (1963; ver também Diawara, 1990, e Birbalsingh, 1986). Os Australianos travaram um longo combate - eo:polado críquete - para se libertareI? maneira beata e paternallsta como sao olhados pelos Ingleses. A Afnca do Sul encontra .o críquete maIs uma foma conflituosa de conciliar as suas genealog ia;, 125
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bóeres e inglesa. Mas é nas colónias ocupadas por pessoas negras e morenas que a história do críquete é mais dramática e 'subtil: nas Caraíbas, Paquistão, Índia Sri Lanka (sobre último, ver Roberts, 1985). Não pretendo afirmar que o que o críquete implica em matéria de descolonização, visto da perspectiva indiana, serve para todas as mas é seguramente uma parte de uma história maior, a da construção de um enquadramento cultural global para desporto de equipas.
do campo de jogos podiam aceder a uma intimidade limitada com os seus superiores. O preço da admissão era a total dedicação ao desporto e, normalmO ente, um grande talento em campo. Na Inglaterra vitoriana, o críquete foi uma via.limitada para a mobilidade social. Claro que, por muito que jogasse críquete com ele, nunca um inglês iria confundir um OJ...jord Blue com um jogador profissional operário do Yorkshire. Mas no campo (onde a cooperação era necessária), ficava de certo modo suspensa a brutalidade de classe inglesa. Houve também quem observasse que a presença desses jogadores das classes baixas permitia à vitoriana incorporar as técnicas de dureza necessárias para sem prescindir da ideia de que o desportivismo exige um distanciamento patrício da competitividade. Os jogadores profissionais de classe baixa faziam portanto o trabalho sujo subalterno de ganhar para que os superiores de classe pudessem preservar a ilusão de um desporto fidalgo, não competitivo (Nandy, 1989b, pp. 19-20). Este panidoxo intrÍnsecoum desporto de elite cujo código de correcção ditava uma abertura aoo talento e vocação de pessoas com origens humildes - é a chave da história dos primórdios do críquete na Índia. ?urante quase todo o século XIX, o críquete foi um desporto segregado na India, com ingleses e indianos a jogar em equipas opostas se acaso jogassem juntos. O críquete estava associado aos clubes, as principais insO tituições sociais britânicas na Índia. Os clubes indianos de críquete (e as . equipas a eles associadas) foram em grande medida um produto do último quartel do século XIX, embora houvesse já desde os anos de 1840 alguns clubes parses sediados em Bombaim. Nesta como em outras matérias, os Parses foram a comunidade que serviu de ponte entre os gostos culturais . indianos e ingleses. As equipas parses da Índia fizeram digressões em In\ oglaterra n,os anos de1880 e, em 1888-89, a primeira equipa inglesa perocorreu a India (emb"ora a maioria dos jogos tenham sido contra equipas compostas exclusivamente por ingleses, poucos foram contra equipas de e continua-a ter indianos). Bombaim foi o berço do um papel de destaque na cultura do cnquete mdIano. Embora nunca tenha havido uma política consciente de °apolo durante
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Não é exagero afirmar que o críquete esteve mais perto que qualquer outra forma pública da tarefa de destilar, constituir e comunicar os valores das classes altas vitorianas em Inglaterra aos cavalheiros ingleses no âmbito das suas práticas físicas e a outros como meio de apreender os códigos de classe da época. A sua história em Inglaterra remonta ao período pré-colonial e é seguro que o desporto é de origem inglesa. Na segunda metade do século XIX, altura em que adquiriu muito da sua morfologia moderna, o críquete configurou-se também como a mais poderosa condensação de valores de elite vitorianos. Estes valores, sobre os quais muito se tem escrito, podem resumir-se do seguinte modo. O críquete era um a actividade essencialmente masculina e exprimia os códiogos que deviam reger todo o comportamento masculino: desportivismo, um sentido de jogo limpo, pleno controlo da expressão de sentimentos fortes dos jogadores no terreno, subordinação de sentimentos e interesses pessoais aos do grupo, lealdade inabalável à equipa. Embora se tenha tornado um instrumento fundamental de socialização para a elite vitoriana, o críquete encerra desde o início um paradoxo social. Foi incensado como instrumento de formação da elite, mas, como o todos os jogos complexos e fortes, confirmava e criava confrarias que otranscendiam a classe. Por isso estava sempre aberto à entrada dos membros mais talentosos (e úteis) das classes média e baixa. Aqueles plebeus da Inglaterra vitoriana capazes de se submeter à disciplina social e moral >
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o regime colonial da Índia, o críquete desenvolveu-se como instrumento oficioso da política cultural do Estado. Isso ficou a dever-se em grande medida ao empenhamento cultural dos jl1embros da elite vitoriana que ocupavam postos-chave na administração, educação e jornalismo indianos e que viam no críquete o meio óptimo para transmitir os ideais vitorianos de carácter e cultura física à colónia. Lorde Harris, governador de Bombaim de 1890 a 1893, foi talvez a figura crucial do patrocínio semioficial do críquete na Índia e atrás dele veio uma sucessão de governadores, tanto em Bombaim como nas outras circunscrições, que consideraram o eríquete apto para desempenhar as seguintes funções: consolidar os vínculos do império; lubrificar os negócios de Estado entre várias «comunidades» indianas, que de outro modo poderiam degenerar em rebeliões comunitárias (hindu-muçu'lmanas); e implantar o ideal inglês de masculinidade, carácter e .vigor nos grupos indianos considerados preguiçosos, irrequietos e amaneirados. Nesté aspecto, o críquete foi um dos muitos campos em que se edificou e reificou uma sociologia colonial. Nesta sociologia, a: Índia era considerada um agregado de comunidades antagônicas, povoadas por homens Ce mulheres) com uma série de defeitos psicológicos. O críquete foi tido como ideal para socializar os nativos em novos modos de conduta entre grupos e novos padrões de comportamento público. Ostensivamente conotado com diversão e competição, o seu manual oficioso subjacente era moral e político. Esta contradição subjacente entre equipas organizadas por «comunidades» e o ideal de criar vínculos cívicos mais amplos influenciou o desenvolvimento do críquete do princípio até ao presente e dela trataremos com mais pormenor na secção seguinte deste capítulo. No geral, entre 1870. e 1930, no auge do período do Raj, não há dúvidas que, para os Indianos, jogar críquete era entrar nos mistérios davida da classe alta inglesa. Orapor jogar com equipas de Inglaterra, constituídas por homens que se tinham conhecido ora em Eton e Harrow, Oxford e Cambridge, ora nas viagens a Inglaterra, um pequeno segmento da população indiana dada ao desporto foi iniciado nos mistérios morais e sociais e nos rituais do críquete vitoriano (Cashman, 1980; Docker, 1976). 128
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As biografias e autobiografias dos melhores jogadores indianos ,desta época, como.Vijay Hazare (1976; 1981), L. P. Jai (Raiji, 1976) e Mushtaq Ali (1981), todos com carreiras no críquete nos anos de· 1940, mo'stram claramente qüe estiveram expostos (a despeito das suas várias inserções sociais) às opções de valores ligadas ao críquete vitoriano -:- desportivismo, recusa do individualismo, espírito de esquipa - bem como à hagioarafia e lituraia do críquete de todo o império, mas especialmente de Ine c . glaterra. Mas classe e raça conspiram de modos muito complexos no vitoriano» CBreckenridge, 1986, p.196) e nas estruturas eduardinas que se seguiram. Afirmei já que o críquete vitoriano acarretava importantes distin-:ções de classe em Inglaterra, distinções que ainda hoje afectam as relações entre cavalheiros e jogadores profissionais, treinadores e jogadores, críquete de província e de campeonato. Juntos, homens brancos de todas as classes contribuíram para criar e dar corpo a um código desportivo cujas dimensões de moral patrícia eram fundamentais para as classes altas e em que a perícia «operária» apontava o papel das classes trabalhadoras no desporto. (Clarke e Clarke, 1982, pp. 82-83, dá um interessante tratamento das peculiares inflexões da ideia de masculinidade na ideologia desportiva inglesa.) A com-o plexidade deste modelo específico de discurso colonial ilustra também uma variante do num contexto diferente, foi considerado ambivalência do discurso colonial CBhabha, 1994), . Como em muitos outros sectores, entre os quais a arte, a a língua e a conduta, é hoje bem claro que, durante o apogeu do colonia:' lismo moderno, se desenvolveu um complexo -sistema de hegemonização e hierarquização de valores e práticas, conjuntamente nas metrópolé!s e nas suas colónias (Cooper e Stoler, 1989). No caso do críquete na :, \ Índia, a chave para os fluxos complexos que ligavam críquete, classe e raça no ecúmeno colonial foi a questão do patrocínio e do treino. Ambas as biografias atrás referidas e uma excelente explicação sintética (Cashman, 1980, capo 2) tornam claro que-1\o período entre 1870 e 1930 o envolvimento britânico no críquete indiài\ü foi muito complexo: ?ficiais do exército estacionados na Índia, homens de negócios de Inglaterra e 129
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funcionáfios públicos superiores, todos eles contribuíram para implantar I a ideia do críquete em cenários indianos. Ao mesmo tempo, po- : ré!ll' os príncipes indianos chamaram à Índia jogadores profissionais ingleses e australianos para treinarem as suas equipas. A fase do patrocínio dQS príncipes no críquete indiano é em certos aspectos a mais importante na análise da indigenização deste desporto. Primeiro, o críquete, enquanto desporto de elite, exigia tempo e dinheiro de que as elites burguesas da Índia colonial não dispunham. Os príncipes, por outro lado, depressa viram no críquete uma extensão da sua tradição real e integraram despOI:tos como o pólo, o tiro Com carabina, o golfe e o críquete nos seus repertórios aristocráticos tradicionais. Isso permitia-lhes oferecer aos súbditos um novo tipo de espectáculos (Docker, 1976, p. 27) e ligar-se à aristocracia inglesa de uma forma potencialmente nova e proveitosa, além de os deixar bem vistos junto das autoridades coloniais da Índia (comO Lorde Harris) que favoreciam o críquete como meio de disciplinar moralmente os orientais. Os príncipes que apoiavam o eríquete eram muitas vezes membros menores da aristocracia indiana, pois era um . desporto um tanto mais barato do que outras formas de patrocínio e es- , pectó.culo real. O críquete tinha três atractivos como acessório do estilo de vida e da ética da pequena nobreza indiana: (a) o seu papel , em especial ' no Norte, como arte viril da cultura aristocrática do lazer; (b) as credenciais 'vitorianas, que abriam em Inglaterra portas que de outro modo estariam menos oleadas (como no caso de Ranjitsinhji); e (c) o seu papel de extensão utilitária de outros espectáculos públicos reais que eram uma parte importante dos deveres e da mística da realeza na Índia. Assim, ao lon?o de todo esse século, pequenos e grandes príncipes de muitas partes I da India importaram tre.inadores de Inglaterra, organizaram torneios e prémios, subsidiaram equipas e treinadores, instalaram terrenos e campos, . importaram equipamentos ecompetêrtcias e receberam equipas inglesas. Mais importante do que isso, os príncipes apoiaram directa e indirectamente muitos jogadores (ou as suas famílias) de origens humildes 'que acabavam por conseguir vencer em cidades maiores, em equipas mais importantes e, por vezes, obter visibilidade nacional e internacional. Para I
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muitos jogadores indianos fora das grandes cidades coloniais no período anterior à Segunda Guerra Mundial, uma ou outra forma de subsíqio das casas principescas foi a chave da sua entrada no mundo cosmopolita do críquete de grande A esses jogadores foi pois possível conseguir, através do críquete, uma certa mobilidade e introduzir um grau considerável de complexidade de classe no críquete indiano, complexidade . que ainda hoje persiste. . Os alicerces da indianização do críquete foram pois assentados mediante o cruzamento complexo, hierárquico, de cavalheiros britânicos na Índia, príncipes indianos, indianos com mobilidade à função pública e ao exército e, acima de tudo, profissionais brancos do críquete' (sobretudo de Inglaterra e da Austrália) que efectivamente treinaram os grandes jogadores indianos das primeiras décadas do .§.éculo xx. Estes 'pro- . fissionais, dos quais se 'destacaram Frank Tarrant, Eill Hitch e . Grimmett, bem como alguns militares ingleses mais inseridos na sociedade, reitores universitários e homens de negócios 'que treinaram promessas indianas, parecem ter sido os elos cruciais entre estrelato, aristocracia e capacidade técnica no mundo do críquete indiano em geral. O que estes treinadores profissionais conseguiram foi desenvolver as capacidades técnicas cruciais para que as fantasias promotoras dos príncipes indianos (que por sua, vez estavam presos às suas próprias fantasias de um ideal · monárquico e aristocrático de império) se traduzissem em equipas indianas competitivas efectivamente compostas por Índianos. Embora não haja prova irrefutável da interpretação que proponho, é altamente provável que rapazes da província, como Mushtaq Ali. Vijay Hazare e LaIa Amarnath, teriam tido grandes dificuldades em entrar para 'o mundo selectivo do críquete mundial (ainda dominado pelos códigos desportivos ingleses e vitorianos) sem a tradução do críquete numa prática de técnica física pores- . tes profissionais brancos das classes baixas. Não se trata, portanto, da mera reprodução na Índia de um enredo de classe anglófono, mas de, na reitores circulação de príncipes, treinadores, oficiais do exército, ejhgadores com uma origem de classe humilde, entre a Índia, a Inglaterra e a Austrália, se ter formado um complexo regime imperi al de classe em 131
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que as hierarquias sociais ' indiana e inglesa interligadas se aliaram produzir, na década de 1930, um quadro não elitista de indianos que sentiam tão genuinamente jogadores de críquete como «indianos»'. . \ A esta luz, o grande batedor nobre Ranjitsinhji (1872-1933) é velmente uma triste excepção, pois paú ele o críquete e o garam-se tão profundamente que nunca pôde aceitar a sério a ideia de ? críquete ser umjogo indiano. Era ojamsaheb de Nawanagar, um pequeno reino em Saurastra na costa ocidental da Índia. RanJ'i ocupa um lugar rico nos anais do críquete e ainda hoje é considerado (a par de um punhado de outros, como W. G. Grace, Don Bradman e Gary Sobers) um dos res batedores de todos os tempos. Vale a pena passarmos uns momentos com Ranji, pois ele exemplifica bem o que é o críquete colonial. Por ir:oJ, nia, talvez sido precisamente esta identificação profunda com o im- \ pério e com a coroa que permitiu a Ranji tornar-se o supra-sumo, metáfora viva da forma «oriental» de excelência no Ranji não foi simplesmente um grande batedor. Os círculos do críquete viam nele um ericanto oriental peculiar. Sobre ele, disse o grande C. B. Fry: «Mexe-Se como se não tivesse ossos; não seria de admirar vermos curvas castanhas queimar a relva onde tivesse passado um dos seus cortes ou chamas azuis tremulando em torno do seu bastão no momento da batida.» Neville Cardus dizia: «Quando lhe tocou bater, viu-se pela primeira vez uma estranha luz nos campos ingleses.» Clem Hill, o internacional australiano, dizia simplesmente: «Ele é mais que um batedor, ele é um malabarista!» Bill Hitch, o rápido lançador do Surrey e da selecção inglesa, referia-se-lhe como «o mestre, o .mágico» (todas as citações em Mellow, 1979, capo 9). Ranji trouxe umgénio indiano especial à arte do batedor, donde a referência magia e malabarismo, a luzes estranhas e chamas azuis. Com . ele representava o belo inverso do efeminado, do preguiçoso e falta de vigor que os Indianos representavam para muitos teóricos coloniais (Hutchins, 1967, capo 3; Nandy, 1983). Em Ranji, a malandrice era astúcia, o truque, magia, a fraqueza, subtileza e a efeminação transformara-se em garbo. É claro que este encanto oriental teve muito a ver com as ,
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credenciais impecáveis de Ranji na sociedade, a sua total devoção às instituições inglesas (desde a escola até à coroa) e a sua inabalável lealdade ao império. Assim, não apenas revolucionou o críquete e oferecia às multidões uma iguaria extraordinária sempre que jogava, como permitiu que os públicos ingleses lessem nas suas actuações uma oferenda leal do Oriente misterioso aos campos de jogos de Eton. Ranji era o modelo consumado do inalês de cor. Mas não restam dúvidas de que RarUi pertenceu b àquela geração de príncipes indianos para quem a lealdade à coroa era uma extensão do orgulho de serem Indianos e vice-versa, embora .uma análise recente sugira que os empenhamentos de Ranji podiam ser expre$sões de profundas dúvidas e conflitos (Nandy, 1989b). A história de Ranji é apenas um caso e>stremo de uma ironia mais geral: é que os . príncipes indianos que fomentavam o críquete como maneira de entrarem para o mundo patrício vitoriano, e que se opunham frontalmente ao movimento nacionalista, foram quem de facto lançou as bases da mestria dos .. indianos plebeus nesse desporto que nos anos trinta viria a florescer num orgulho empolado pela competência indiana no jogo. f
Críquete, império e nação Hoje, a e'xtraordinária popularidade do críquete na Índia está claramente ligada ao sentimento .nacionalista. Mas no princípio desta história, como já observámos, o críquete fomentou dois outros tipos de lealdade. O primeiro foi (e é ainda) para com as identidades religiosas (comunitárias). O segundo tipo de lealdade, um tanto mais abstractamente' instituído . . no desporto, foi a lealdade ao império. A questão interessante aqui é saber ",-- como emergiu a ideia de nação indiana da ideia de entidade desportiva de destaque. Já no tempo em que os Parses organizaram os primeiros clubes, nos século XIX, a inserção nas comu.nidades religiosas tomou.-se o meados princípio <1btacado em torno do qual os IndIanos se agrupavam para Jogar críquete. E este princípio organi zador permaneceu até ser desa loj:H.lo na
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. década de 1930. Hindus, parses, muçulmanos, europeus e, por fim, «o resto» (um rótulo para os grupos sem marca comunitária reunidos pelas equipas de críquete) organizaram-se em clubes de críquete. Desde o início que houve grande polémica sobre os prós e contras desta organização comunitária do críquete. Embora noutras zonas da Índia os grandes patronos do . desporto f-ossem os príncipes, que não queriám saber de princípios comu'nitários quando recrutavam jogadores, nas circunscrições da Índia Britânica os jogadores dividiam-se em grupos religiosos e étnicos, alguns dos quais eram antagonistas em aspectos mais gerais da vida pública. O críquete foi pois um domínio importante em que tanto os jogadores como as multidões aprendiam a pensar-se como hindus, muçulmanos e parses, por contraposição aos europeus. Tem-se feito ITlUito bom trabalho em história que mostra que estas categorias sociais foram criação e instrumento de uma sociologia colonial do poder (Appadurai, 1981; Cohn, 1987; Dirks, 1987; Freitag, 1989; Pandey, 1990; Prakash, 1990). Mas o facto é que elas penetraram profundamente na concepção que os Indianos tinham de si próprios e na vida política e cultural indiana. Embora seja verdade que as classificaçõesdemográficas, o controlo das oferendas religiosas e a questão dos eleitorados separados eram os principais domínios oficiais em que as matérias de identidade comunitária se reificavam no âmbito de uma sociologia colonial da Índia, há que não subestimar o papel do críquete . neste processo. Pelo menos na Índia Ocidental, os funcionários britânicos. como o governador Harris, olhavam o críquete com complacência, como válvula de escape da hostilidade comunitária e como meio de ensinar os Indianos a viverem amistosamente com a diversidade comunitária. Mas, profundamente mergulhados . nas suas próprias ficções de fragmentação da sociedade indiana, o que não perceberam foi que no campo de jogos (como noutro qualquer sítio) perpetuavam as concepções comunitárias de identidade que nas cidades indianas poderiam t.er-se mais É assim ?aradoxo de Bombmm, talvez a maIs cosmopolita das cIdades ver o seu principal desporto de elite organizar-se segundo linh as comunitárias.
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o princípio comunitário estava condenado a tornar-se ocioso à medida que aumentavam a seriedade e a qualidade do críquete na india. O críquete inglês, pelo contrário, organizava-se em torno de um sistema em que a nação era a unidade exemplar e os condados, não as comunidades, as suas circunscrições básicas. Por outras palavras, território e nação para Inglaterra, comunidade e diferenciação cultural para a Índia (ver capo 6). Portanto, quando as equipas inglesas começam a percorrer a Índia, a questão foi construir uma equipa «indiana» que fosse um adversário à altura. Nas primeiras digressões, nos anos de 1890, estas equipas indianas contavam com uma maioria de' ingleses, mas à medida que mais indianos começaram a jogar e mais patrorios e empresários a organizar equipas e torneios, era inevitável que fossem buscar o talento indiano para construir uma equipa indiana de primeira categoria. Este processo, que levou a que o críquete na Índia fosse sendo cada vez mais representado por indianos, segue a história da evolução do indiano como um movimento de massas, o que não é de admirar. No contexto da Índia colonial, o críquete lança pois uma luz inesperada sobre a relação entre nação e império. Na medida em que Inglaterra não era exactamente o mesmo que império', teria que haver outras entidades paralelas nas colónias contra as quais .o Estado-nação inglês pudesse jogar: logo, foi preciso inventar a «Índia», pelo menos para efeitos de críquete colonial. . Contudo, e surpreendentemente, houve pouca comunicação explícita entre os responsáveis pela organização do críquete na Índia numa base pan-indiana e o Partido do Congresso pan-indiano Ce outros) que (a partir da década de 1880) se empenharam profissionalmente na ideia de uma. na; ção indiana livre. A ideia de talento indiano, equipa indiana e ' . . indiana no críquete internaci()nal surgiu de um modo relativame.nte independente, graças ao estímulo oficioso dos seus patronos é divulgadores. Portanto, o nacionalismo do críqueteemerge como uma excrescência pa- ' radoxal, ainda que lógica, do desenvolvimento do críquete em Inglaterra: Em vez de ser o desfiar da comunidade imaginada de políticos nacionalistas na Índia, o críquete de sentimento nacional foi oferta interna da em- o
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presa colonial, e por isso criou a necessidade de empresas cognatas nae protonacionais nas \ . Nao obstante, quando o cnquete se tornou mais popular, nas três primeiras décadas do século xx, e o movimento nacionalista, em particular com o Mahatma Gandhi e o Congresso Nacional Indiano, ganhou imp6r- . tâncianesse mesmo período, o nacionalismo do críquete e explicitamerite a política nacionalista tal entraram em contacto com a vida cdrrente dos jovens indianos. Assim, N. K. P. Salve, um importante pOlítido e empresário de críquete indiano, recorda como, nos primeiros anos trinth, ele e os seus amigos foram intimidados impedidos de jogar num bel'o terreno de críquete em Nagpur por um tal Mr. Thomas, um sargento an,glo-indiano do campo que «parecia um búfalo africano do Cabo, maciço e corpulento; aliás, possuía características ofensivas, rudes e grosseiras» (1987, p. 5). Após diversos episódios assustadores e tuosos com (a figura clássica do subalterno que mantinha dos dos espaços sacrossantos do exercício imperial os moços nativos), 0, pai e os amigos de Salve,. todos influentes seguidores locais de Gandhi, '! intervieram a favor dos rapazes junto de um funcionário superior britânico 'i de Nagpur e conquistaram-lhes o direito de usarem o campo quando não estivesse em uso oficial. De toda a narrativa que Salve faz desta história desprende-se um forte sentido do medo que ele tem do subalterno anglo-indiano, a atracção sensual de jogar num campo oficial, a ofensa por os Indianos não terem ace$SO a um espaço público e o sabor nacionalista do ressentimento. É provável que o nacionalismo do críquete e a política nac.ionalista oficial raramente andassem juntos nos debates ou movimentos· públicos conscientes,mas afectassem a experiência vivida do jogo, técnica, espaço e direitos de muitos jovens indianos nas pequenas cidades e .. campos de jogos da Índia anterior à independênCia. Contudo, o aumento de uma consciência e de um entusiasmo pelo críquete não pode ser compreendido sem uma referência ao papel da língua e dos meios de comunicação.
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Vernacularização e meios de comunicação Os meios· de comunicação desempenharam um papel crucial na indigenização do críquete, desde logo através dos comentários desportivos em língua inglesa emitidos pela All-India Radio a partir de 1933. Quase sempre em inglês durante os anos trinta, quarenta e cinquenta (Cashman, 1980, pp. 145-146), a partir dos anos sessenta o relato radiof6nico começa a ser cada vez mais' em hindi, tâmil e bengali, a par do ingfês. O comentário radiof6nico multilingue é provavelmente o instrumento decisivo da socialização do público indiano nas ' subtilezas do de.sporto. Einbora a cobertura dos jogos internacionais (em que entram a Índia e outros países) . se limite ao inglês, hindi, tâmil e bengali, outros encontros de primeira classe eram acompanhados por comentários radiofónicos em todas as principais línguas do subcontinente. Não foi feito qualquer estudo sistemático do papel do comentário vernacular do críquete na socialização dos indianos não urbanos na cultura cosmopolita deste desporto, ·mas ·é .evidente que se tratou de um factor decisivo na sua indigenização. Através das rádios, que são acessíveis de todo o lado e atraem grandes multidões nas estações de caminho-de-ferro, cafés e outros lugares públicos, os Indianos absorveram a terminologia inglesa do críquete, especialmente a estrutura dos substantivos, numa série de padrões vernaculares sintácticos. Esta espécie de gíria desportiva é crucial para a indigenização deste desporto, pois permite contactar com uma forma de arcano ao mesmo tempo que a forma é linguisticamente domesticada. Assim, o vocabulário elementar. dos termos do críquete em inglês é conhecido em toda a . Índia (e cada vez mais até aldeias). . As complexas experiências linguísticas que emergem no contexto das ;"'\ emissões radiofónicas vernaculares estão exemplificadas na narrativa de Richard Cashrrian que se segue. Durante o campeonato de 1972-73, depois de Ajit Wadekar ter afastado Pocock da linha da frente por quatro, teve lugar uma conversa entre Laia Amarnath, o especialista, e o comentador em hindi. O diálogo ilustra esta linguagem híbrida e alguns dos ri scos do seu uso:
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Comentador hindi: Lalaj i, aap wo back foot straight drive ke bare me kya ka- i hena chahte hain? I
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Amamath: back foot dri ve thi ... badi. sunder thi ... wristy thi. : Comentador. Han Badl nsky thl. Wadekar ko alsa nah m khelna chahiye . Amarnath: Commentator sahíb, rí sky nahín wristy. Wri st se mari hui ... [Tradução] Comentador: LaIa, what would you like to say abo ut that straight drive offthe back foot ?
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Amarn ath: That was a fron't and not a back foot drive ... it was beautiful... was wristy . Comentador: So that was risky. Wadekar shouldn'thave played like that. Amarnath: Mr. Commentator, risky is not wristy . It was hit with the wrist... Com entador: Laia, que gostaria de dizer so bre o lanç amento vertical com apoio do pé atrás? Arnarnath: Do pé à frente, não atrás ... Foi lindo ... foi pulsado [wristy, soa rÚty] ... Com.entador: Com que então foi arriscado [risky ]. O Wadekar não devia ter jog;tdo. assim. Amarnath: Senhor comentador, risky não é wristy. Foi batida com o pul so ... (Cashman, 1980, p. 147). ..
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Embora a.tradução de Cashmannão seja inteiramente fiel, mostra muito claramente que a vcrnacularização do críquete comporta as suasrasteiras linguísticas. O que Cashman não refere; porém, é que através da análise desses erros os locutores em hindi domesticam um termo esotérico do críquete como wristy. A hegemonia jornalística do críquete (muitas vezes objecto de queida tele vixas de adeptos de outros desportos) aumentou com a cheaada . b são. Tendo um início muito modesto, com audiências reduzidas, no final dos anos sessenta; hoje a televisãojá transformou por completo a cultura do críquete na India. Como já salientaram diversos comenta'doadequado para televis ão, com as suas res , o críquete é . muitas pausas , a concentração espacial da acção e o formato alongado .
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Tanto para os espectadores como para os anunciantes, é o desporto televisivo perfeito. . A televisão está na charneira da privatização do lazer na Índia contemporânea (como em toda a parte). À medida que o espaço público se vai tornando mais violento, desordeiro e desconfortável,' os que podem comprar um televisor consomem os espectáculos na companhia da família e dos amigos. E isto aplica-se a du as grandes paixões das massas: o desporto e o cinema. Num caso através da cobertura em directo e no outro através de reposições e videocassetes, o estádio e a sala de cinema estão a ser substituídos pela sala de estar como sala, de espectáculos. O's jogos internacionais ainda têm muito público, m'as as multidões que aparecem são mais voláteis. Desapareceu a complexa experiência partilhada entre ricoS e pobres, o espectáculo do estádio é uma experiência mais polarizada e irregular que muitos não preferem ao frio, omnisciente,ecrã de televisão privado. Como em qualquer parte do mundo no que tOca aespectáculos com escala de massas, o público dos desafieis ao vivo faz ·parte do cenário numa exibição grandiosa encenada em benefício dos espectadores de televisão. A multidão não está lá para gozar a vitalidade do espectáculo, mas para dar dele testemunho aos espectadores de televisão. O público de um espectáculo, do seu próprio ponto de vista, faz parte do espectáculo para os que ficam em casa'. Também isto entra no processo de indigenização e descolonização. A televisão reduz as equipas e as estrelas estrangeiras a um aceitável, domestica visualmente a natureza exótica do desporto, em especial para aqueles que' antes só ouviam os relatos pela rádio. E, 'para um país que tem nas estrelas de cinema as suas maiores celebridades, a televisão confere autoridade cinemática aos desportos de espectáculo. Numa civilização em que -ver (darsan) é o instrumento sagrado da comunhão, a televisão inten sificou o estatuto de estrelas dos grandes jogadores indianos de críque te. Os intern acionais indianos nunca foram objecto de maior adulação do que ,na década de 1980, com intensas transmissões dos grandes jogos pela televisão. A televisão aprofundou 139
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a paixão nacional pelo críquete que a rádio alimentara, mas tanto o cocomo a transmissão televisiva foram reforçados, mentário do ponto de vista da recepção e participação do público, com um arande aumento do número de livros, cobertura nos jornais e consumo ode revistas desportivas, não apenas em inglês como também nas línauas ver.
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A proliferação de notícias, biografias das estrelas, comentários e literatura e.ducativa, especialmente nas zonas onde se joga mais, cons· titui um importantíssimo pano de fundo para a força especial da televisão. Enquanto este material vernacular é lido e ouvido por aqueles que não lêem pessoalmente, a rádio é ouvida e imaginada ao vivo e a cobertura pela televisão faz a transição para o espectácl,llo. Estas formas mediatizadas criaram um público extrerpamente vasto, instruído nas subtilezas do desporto em muitos e diferentes aspectos e pode trazer para o críquete paixões geradas na leitura, na audição e no visionamento. . .0 papel da literatura popular vernácula é crucial neste processo, pOIS o que esses livros, revistas e panfletos fazem é criar uma ponte as línguas vernáculas e a língua inglesa, 'dar imagens e nomes de Jogadores estrangeiros na escrita e na sintaxe índicas e reforçar o corpo de termos de contacto (os termos ingleses transcritos para hindi, marata ou tâmil) ouvidos na rádio. Algum desse material é também ins· e elaborados diagramas e textos verbais a acompanhar essas Ilustraçoes que explicam os vários lançamentos, estilos rearas e lógica do críquete aos leitores que possam não saber inglês. Est; processo de vernacularização, que analisei com grande pormenor num d . . 1 co.rpo e matenaIs em marata , fornece um repertório verbal que permIte que um grande número de indianos sintam o críquete como uma familiar, libertando assim este desporto da pró· p.na bntamdade que de início lhe conferira autoridade moral e misténo.
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rád!o (e mais na televisão) constido vocabulano do críquete porque
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fornece não apenas um contacto vocabular como também uma ligação ." v ouvido ou vÍstodo entre este vocabulário e o entusiasmo do jogo, os lançamentos, o ritmo, a excitação física. A britanidáde da ter- O minologia do críquete é levada para os mundos do hiridi, tâmil . O e bengali, mas simultaneamente posta em contacto íntimo com a prática . ,() real do jogo nas ruas, recreios e pátios dos Índia urbana e tam- O bém nos terrenos livres de muitas aldeias. Por isso a aquisição da terQ minologia do nas línguas vernaculares reforça o sentido de competência física no desporto que, por sua vez, recebe um impulso vi- O goroso das transmissões regulares em televisão. Imita-se as grandes es- O trelas do críquete, dá-se aos filhos os seus diminutivos e a terminologia O do críquete, as jogadas e as estrelas, as regras e os ritmos, passam a fazer O parte da ' pragmática vernacularcom um sentido de competência física "O vivida. ' . () O vasto corpo de impresso em línguas vernáculas reforça esta ligação entre controlo terminológico e excitação e excelência físicas' Q Q porque fornece uma grande quantidade de informações, estatísticas e liturgias que estendem o apoio à competência linguística e iconográfica O daqueles indianos que não se sentem inteiramente confortáveis no munO do anglófono. Em muitos livros, revistas e panfletos em vernáculo, as () regras, jogadas e terminologia do críquete (quase sempre transcritos diO rectamente do inglês por forma a que . continuem a fazer part'e 'do ecúme no linguístico internacional do críquete) trazem muitas vezes diagra\...J mas esquemáticos. Estudando maduramente as vidas e estilos 'dos G jogadores, tanto indianos como estrangeiros, e integrando esse estudo \3 em minuciosas discussões e diálogos .sobre questões de arbitragem e re- . .. rp . gulamentação (como a arbitragem neutral), estes materiais prendem a ""' r:.... "'-" terminologia do críquete ao corpo como lugar do uso e sentimento da r" língua. Além disso; ao situarem estes materiais instrutivos nas notícias, :.
nas conversas, nas estrelas e nos acontecimentos de sensação que rodeiam o críquete, dão-lhe entrada num mundo mai s vasto de celebridades, controvérsias e contextos exteriores ao desporto, o que o integra ainda mais no terreno linguisticamente familiar.
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A revista em língua hindi Kriket-Kriket é um excelente exemplo do do leitor vernáculo (ver Appadurai e Breckenridge, mundo 1991b), pOlS esta revista contém anúncios de literatura popular em hindi, de banda.s des'enhadas hindis, de vários produtos para o corpo, como lentes ' de cootacto e loções indígenas, e álbuns fotográficos de estrelas do críque te. Há também anúncios de vários manuais de conselhos práticos em formato de bolso, muitos a explicar técnicas como as de electricidade ou estenografia, mas também sobre estranhos temas, como métodos para fazer óleo lubrificante para máquinas. Finalmente, uma profusão de fotos a cores de estrelas do críquete e muitas notícias de desafios e torneios peciais dão a sutura textual para uma colagem muito mais variada de materiais que têm a vex com os estilos de vida e as fantasias modernas. Sendo as revistas como a Kriket-Kriket relativamente baratas no custo de produção e no preço, a qualidade gráfica e do papel é má e podsso não é nada fácil distinguir os vários tipos de notícias e artigos de opinião dos anúncios de outros tipos de literatura e serviços. O efeito total é o de uma rede contínua de impressões verbais e visuais de cosmopolitismo em que ocríquete é o tecido de ligação. Outras revistas vernáculas são mais castas e menos interoculares do que esta, mas, tomadas em conjunto com outro material impresso e especialmente com as experiências adjacentes da rádio, televisão e documentários cinematográficos dos jogos de críquete, não restam dúvidas de que a cultura do críquete consumida por leitores semianglófonos é decididamente pós-colonial e poliglota. , Talvez mais importantes ainda sejam as histórias em jornais e revistas, bem como em livros, que contam as biografias desportivas de várias estrelas novas e velhas. O que estaS histórias vernaculares fazem é situar a técnica o entusiasmo do desporto em narrativas linguisticamente acessíveis, tornando. assim compreensíveis não apenas as estrelas, mas vidaS desportivas tangíII ,velS. Estas vidas para ler tornam':'se então a base de uma renovada intimidade na recepção de rádio e na cobertura de televisão dos eventos desportivos e a I magia física do mais rústico rapaz, a jogar com fraco equipamento e em terra I maninha, fica ligada, ao nível da língua e do corpo, ao mundo dos espectáculos de críquete. O facto de muitos destes livros e serem fei142
tos por um escriba de serviço ou com a assistência de redactores profissionais não diminui a força que têm como instrumentos de compreensão do críquetc para muitos leitores exteriores ao mundo anglófono. Ligando a vida de uma estrela a lugares, acontecimentos, escolas, professores, treinadores e outros jogadores conhecidos, cria-se uma estrutura em que o críquete ganha vida e as suas estrelas se tornam' palpáveis (para um excelente exemplo disso mesmo, ver Shastri e Patil, 1982). . A força geral do acesso aos meios de comunicação é portanto poderosamente sinestética. O críquete é lido, ouvido e visto e a força das experiências de uma vida de críquete, de assistir de vez em quanpo a jogos ao vivo e ver as estrelas e da eventualidade, mais previsível, do espectácuIa do críquete em televisão, tudo isso não apenas para vem aculizar o críquete como também para injectar os termos-chave' e os tropos-chave do críquete nas práticas físicas e nas fantasias relacionadas com ' o ,corpo de muitos rapazes indianos. Imprensa, rádio e televisão refor9am-se mutuamente e criam um ambiente em que o críquete é ao mesmo,tempo maior que a vida (por causa das suas estrelas, dos espectáculos e da associação ao faSCÍnio dos campeonatos do mundo e da vivência internacional) e próximo da vida, por ser transmitido, em biografias, manuais e noticiários que já não são mediatizados pelo inglês. Quando os, indianos das várias regiões linguísticas da Índia vêem e ouvem os relatos de crí- ' quete na televisão e na rádio, não são neófitos a por entender uma forma inglesa, mas sim espectadores culturalmente instruídos para quem o críquete foi prof1:mdamente vernaculizado. Assim se instala um conjunto complexo de elos vivenciais e pedagógicos através do qual a recepção do críquete se torna um instrumento essencial de subjectividade e acção no processo de descolonização. '
o império
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,Do lado da recepção, a descolonização implica a aquisição de literacia cultural em críquete pelas massas e este lado da descolonização implica 143
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o tipo de apropriação da competência que todos nos dispomos a aplaudir. Mas há também uma dimensão produtiva na descolonização e aqui entramos no mundo complexo do empresariato e do espectáculo, do apoio estatal e dos grandes lucros privados. . Sendo embora verdade que os indianos mais pobres e menos urbanos puderam entrar no mundo cosmopolita do críquete graças ao apoio real ou oficial no período anterior à Segunda Guerra Mundial, a base de classe relativamente ampla, mesmo das melhores equipas indianas, não teria durado após a guerra se não fosse o modelo, fascinante e assaz raro, do patrocínio do críquete por parte das'grandes empresas, particularmente em Bombaim, mas também no resto da Índia. O patrocínio empresarial do críquete é um facto intrigaI1te na sociologia do' desporto indiano. Os aspectos essenciais são os seguintes: muita's empresas de prestígio optaram por contratar jogadores excepcionais no princípio das suas carreiras, dar-lhes considerável liberdade de manterem horários de treino rigorosos (<
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grande,s lucros e,m termos, de sentimento o patrocInlOdo cnquete apos a Segunda Guerra MundIal tenha SIdo em grande. uma iniciativa comercial por parte das grandes empresas (integrada nos seus orçamentos de relações públicas e publicidade), o Estado indiano foi generoso com a suaextensão do' apoio mediático ao jogo. A aliança entre investimentos controlados pelo Estado - , através dos meios de comunicação e da presença das forças de segurança,. dos interesses comerciais privados que garantem aos jogadores segurança na carreira ede um complexo corpo público (embora não governamental) chamado Comissão de Controlo - forneceu as infra-estruturas da transformação do críquete numa grande paixão nacional ao longo das quatro décadas que se seguiram à independência da Índia, em 1947'., A fase da televisão na história do críquete indiano integra-se, evidentemente, na intensa comercialização recente do críq!lete e na respectiva mercantilização das suas estrelas. Como outras figuras do desporto no mundo capitalista, as estrelas m,ais famosas do críquete indiano são hoje metamercadorias, à venda enquanto promovem a circulação de outras mercadorias. O desporto está cada vez mais nas mãos dos publicitário.s, promotores e empresários, com a televisão, a rádio ea imprensa a alimentarem a paixão nacional pelo desporto e pelas suas estrelas. Essa mercan.: tilização dos. espectáculos públicos parece à primeira vista ser simplesmente a expressão indiana de um processo mundial e por isso representar, não a descolonização ou a indigenização, mas a recolonização pelas forças do capital internacional. Mas sobretudo a intenção agressiva dos capitalistas indianos de agarrarem opotencial do críquete para fins comerciais. Transformado em paixão nacional pelos processos do espectáculo, o etiquete tomou-se, nas décadas de setenta e oitenta, uma questão de entretenimento de massas e de mobilidade para algumas pessoas e assim se revestiu de atractivos (Nandy, 1989b). As multidões de indianos vão mostrando cada vez mais avidez de vitórias indianas nos jogos internacionais e subind.o o tom dos vitupérios nas derrotas , no país e no estrangeiro. Jogadores, treinadores e dirigentes caminbam, pois, sobre o arame, mais ten145
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so do que nunca. Vão colhendo os lucros do estrelato e da'comercializa- I ção, mas têm que ser cada vez mais solícitos para os críticos e as multi- II dões, que não toleram reveses mesmo temporários. E isso sign.ifica um aumento regular da pressão pela excelência técnica. A seguir a uma quebra acentuada desde os meados dos anos cinquenta até ao fim dos anos sessenta, o críquete indiano aIcançoualgumas vitórias extraordinárias em 1971 sobre as Índias Ocidentais ea ambas nos campos do adversário. Embora a equipa de 1971 tenha sido aplaudida tanto pelas multidões como pelos críticos, houve quem sugerisse que as vitórias deveram muito à sorte e à baixa de forma das equipas adversárias. Não obstante, 1971 marcou um ponto de viragem do críquete indiano sob a direcção de Ajit Wadekar. Depois disso houve alguns reveses, no entanto os. jogadores indianos demonstraram que podiam bater os seus antigos senhores coloniaisI1os seus campos e os formidáveis jogadores caribenhos nos deles. Estas vitórias de 1971 assinalam a inauguração psicológica de uma nova ousadia no cnquete indiano. . Os anos setenta foram um período em que todas as egúipas internacionais foram humilhadas pelas Índias Ocidentais, que pareciam demasiado fortes para serem vencidas, com os seus batedores brilhantes, os seus lançadores extraordinariamente rápidos (e medonhos) e a sua velocidade no campo. O críquete tomara-se o desporto do Caribe, com todos os outros a esforçarem-se por também ficarem na Neste contexto, o mo. mento mais agradável do críquete indiano foi a vitória sobre uma forte equipa das Índias Ocidentais, no campeonato de 1983. Com a vitória, a Índia confirmou-se como uma força mundial do críquete internacional, cuja verdadeira competição estava nas Índias Ocidentais e no Paquistão e não na.Inglaterra nem na Austrália. África do Sul, Nova Zelândia e Sri Lanka estiveram sempre muito longe dos primeiros em críquete internacional. Em 1983, a Inglaterra surgiu como uma força do passado no críquete intem
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com um período em que o impacto dos meios de comunicação, da comer. 'cialização e da paixão nacional consumiram quase por completo os"'Velhos modos vitorianos associados ao críquete. O críquete é hoje agressivo, espectacular e muitas vezes pouco desportivo, com públicos sedentos de vitórias nacionais'e jogadores e promotores à caça-clos patacos. É difícil não coricluir que teria havido descolonização do críquete se o desporto não se tivesse libertado do seu tegumento moral vitoriano. E este processo não se restrincre às colónias: verificou-se que o thatcherismo, em Ingla. o terra, fez muito para apagar a ideologia do
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Hoje, o críquete indiano representa uma complexa configuração de cada uma destas transformações históricas. A estrutura de regras do jogo e os códigos de comportamento no campo ainda são nominalmente 'regidos pelos valores vitorianos clássicos de contenção, desportivismo e ama. dorismo. Ao mesmo tempo, a lealdade nacional é um poderoso contraponto destes ideais e a vüória a qualquer preço é a exigência das multidões e dos espectadores de televisão, Mas do ponto de vista dos jogadores e promotores, o código vitoriano e as preocupações nacionalistas subordinam-se ao fluxo transnacional de talento, celebridade e dinheiro. A nova ética examina-se bem na r,ecentemente criada Taça da Australásia, acolhida pelo minúsculo emirado árabe de Sharjah, que tem uma população considerável de imigrantes indianos e paquistaneses, Esta taça revela a lógica comercial e nacionalista do críquete contemporâneo, Numa sequência final extremamente emocionante dojogo decisivo de 1986, visto por quinze milhões de espectadores de televisão, o Paquistão precisava de quatro runs para ganhar e realizou-as com uma batida da última bola da partida. No público que assistiu ao vivo havia estrelas de cinema e outras celebridades da Índia e do Paquistão, bem como imigrantes do Sul da Ásia que ganham a vida no Golfo. A taça Sharjah está muito longe do campo de jogos de Eton. O patrocínio do dinheiro do petróleo, o público semiproletário de trabalhadores da Índia e do Paquistão emigrados no Golfo Pérsico, as de cinema do subcontinente instaladas num campo de desportos criado com a riqueza islâmica do petróleo, uma imensa audiência de televisão no subcontinente, dinheiro de prémios e receitas de publicidade com abundância, críquete sedento de sangue - eis, enfim, o golpe de misericórdia nos códigos vitorianos do críquete das classes altas e um outro ecúmeno giqbal. Depois de Sharjah, todo o críquete é cnquete à Trobriand, não por causa da radical alteração das regras associada a essa famosa forma de cliquete; mas por causa do assalto consumado a uma forma ritual subtraída à sua hegemoriia prática inglesa de origem e ao seu tegumento moral vitoriano. Da perspectiva de Sharjah, são os de Eton que hoje-parecem de Trobriand. Faz parte da descolonização do críquete a corrosão do mito da Com148
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monwealth, a fraternidade fluida de nações unidas pelo seu estatuto anterior de partes do Império Britânico. A Commonwealth tornou-se 'em grande medida uma comunidade de desportos (como a lvy League Leste dos Estados _Unidos). Politicamente, representa uma débil sombra das amenidades do império: No comércio, na política, na diplomacia, tornou-se uma farsa: nas Fiji, os imigrantes indianos são excluídos da vida local' os Cingaleses e Tâmiles matam-se uns aos outros no Sri Lanka as e9uipas de críquete cingalesas fazem digressões pela Índia; o Paquistão e a lndia estão continuamente à beira da guerra; os novos países africanos travam uma série de guerras intestinas. -No entanto, os Jogos da Commonwealth são uma grande e séria realização internacional e o críqüete global, a essa luz, ainda é Commoné úma wealth, Mas a Commonwealth hoje constituída pelo críquete ordeira comunidade de colónias que uma adesão comum ao código vitoriano e colonial mantém unidas. É uma realidade agonística em que uflla série de patologias (e sonhos) pós-coloniais se desenrolam na paisa- gem de uma herança colonial comum. Deixou de ser um instrumento para socializar homens negros e morenos na etiqueta pública do império e é agora um instrumento de mobilização do sentimento nacional ao serviço do espectáculo e da mercantilização transnacionais. A tensão peculiar entre nacionalismo e descolonização observa-se bem na diplomacia do entre a Índia e o Paquistão, que -e nvolve competição e cooperação a muitos níveis. O melhor exemplo de cooperação !lo espírito da descolonização talvez seja o próprio processo com7" plexo através do qual os políticos e burocratas ao mais alto nível das duas nações antagonistas cooperaram, nos meados dos anos oitenta, para desviar de Inglaterra para o subcontinente a sede da prestigiada Taça do ' -" \ Mundo, em 1987, com o apoio financeiro do Reliance Group -of lndustries (uma das maiores e mais agressivas firmas de negócios da Índ-ia contemporânea) e o estímulo dos dirigentes dos dois países (Salve, 1987). Mas em Sharjah, bem como em todas as idas à Índia, ao P*lÍstão ou a outro sítio desde a partilha, as partidas de críquete entre a Índia e o Paqui,stão são mal disfarçadas guerras nacionais. O críquete não é 149
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bem uma válvula de escape da hostilidade popular entreas duas populações, é mais uma complexa arena onde se reencena a curiosa de animosidade e fraternidade que caracteriza as relações entre os dois Estados-nações anteriormente unidos . Seja como for, a Inglaterra não l faz parte da equação, quer na política tensa de Caxemira, nos camlpos de críquete de Sharjah. . I A recente cobertura jornalística' da Taça da Australásia em Sharjah I (Tripathi, 1990) mostra que os países do Golfo trataram de aumentar a sua proem.inência como autoridades no críquete internacional e a nacional entre a Índia e o Paquistão foi deliberadamente destacada e con L tida para criar um simulacro da tensão corrente em torno de Caxemira. quanto os exércitos se defrontam dos dois lados da fronteira de as equipas de críquete proporcionam um simulacro de guerra guarnecido ' de estrelas no campo de jogos.
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Conclusão: os recursos da modernidade
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Resta agora voltarmos às questões gerais enunciadas no início capítulo. O exemplo do críquete sugere um pouco do que custa descolo: nizar a produção de cultura relativamente ao que antes qualifiquei de mas culturais duras. Neste caso, e do ponto de vista india, no, as principais forças que desgastaram a moral vitoriana e a didáctica do críquete foram a indigenização do patrocínio, tanto no sentido de se encontrarem patronos indígenas cujos estilos pudessem acomoi dar a fórmula como no de encontrar públicos que se deixassem atrair o espectáculo; apoio estatal através de vultosos subsídios aos meios de municação; e interesse comercial, quer nas normais possibilidades contemporâneas das formas de mercantilização, quer sob a forma, algo mais rara, do patrocínio empresarial aos jogadores. No caso indiano, só vigorosa aliança de forças permitiu arrancar gradualmente o críquete ao quadro de valores vitoriano e animá-lo com as novas forças da comercialização e do espectáculo. 150
Contudo, estes factores não bastam para nos levar ao coração do pro. b1ema: porque é que o críquete é uma paixão nacional? Porque é' que ele não foi meramente indigenizado e é o próprio símbolo 'de uma prática desportiva que parece personificar a Índia? Porque é ele visto com enlevada atenção em estádios de Sharjah a Madrasta, bem como no contexto de todos os ,meios de comunicação? Porque são as estrelas do críquete adoradas, talvez ainda mais do que as suas homólogas do cinema? . Parte da resposta a estas perguntas reside sem dúvida nos elos profundos entre as ideias de jogo na vida humana (Huizinga, 1950), de desporto organizado mobilizador simultaneamente de fortes sentimentns de nação e de humanidade (MacAloon, 1984; 1990) e de desporto agonístico calibrador da relação entre lazer e prazer nas modernâs sociedades industriais (Elias e Dunning, 1986; Hargreaves, 1982): Desta perspectiva; o críquete pode considerar-se uma forma agonística de jogo que captou decisivamente a imaginação indiana. Mas para explicar o lugar central que o crí... quete ocupa na imaginação indiana temos que compreender como é que ele liga género, nação, fantasia e excitação física. É certo que nas classes altas indianas, em particular na medida em qúé consigam isolar-se das massas (seja em casa, seja em sítios especiais onde se vê críquete), as mulheres se tomaram jogadoras e aficionadas do críquete. Contudo, para o grosso da nação, o críquete é uma actividade dominada por homens em matéria de jogadores, directores, comentadores, adeptos e públicos de estádio. Os espectadores masculinos, mesmo quando não dominam as audiências nos jogos ao vivo ou na televisão, são os preferidos do jogo porque, nos espectáculos determinantes, jogos , internacionais ou grandes jogos de um dia, entram apenas homens. O olhar feminino indiano está duas vezes longe, pois não só as mulheres vêem quase sempre homens a jogar como os espectadores masculinos também só vêem outros homens a jogar. Para o homem, ver críquete é uma actividade profundamente ábsorvente, ao nível do arrebatamento físico (Bourdieu, 1977), pois a maior parte dos indianos com meJlOs de quarenta anos ou viram jogos de críque\ te, ou eles próprios entraram em alguma versão local do jogo, ou leram sobre ele e viram praticá-lo. Por isso, para o homem indiano, o prazer de ,
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ver ctiquete está, como em talvez nenhum outro desporto, enraizado no prazer físico de jogar, ou d·e se imaginar a jogar críquete. Mas como o críquete, graças à convergência entre Estado, meios de comunicação e interesses do sector privado, acabou por se identificar com «Índia», com saber «indiano», com bravura «indiana», com espírito de equipa «indiano» e com vitórias «indianas», o prazer físico que · está no âmago da experiência sensorial do homem faz também parte da erótica nacionalista. Esta erótica, em especial para a juventude masculina da classe operária e do lúmpen de toda a Índia, está profundamente ligada à violência, não só·porque todos os desportos agonísticos despertam a propensão agressiva, mas porque as exigências divisoras de classe, etnia, língua e região fazem da nação uma comunidade profundamente contestada. O prazer erótico de ver críquete é para os súbditos indianos homens o prazer .de agir numa comunidade imaginada que em muitas outras áreas lhe é violentamente negado. (Ver Mitra, 1986, para um ângulo ligeiramente diferente deste processo.) Este prazer nem é inteiramente catártico nem delegado, porque o críquete está perto ou faz parte da experiência de muitos homens indianos. Mas é ampliado, politizado e espectacularizado sem perder o que o liga à experiência vivida da competência física e aos vín- . culos combativos. Este conjunto de ligações entre género, fantasia, nação e excitação não ocorre sem um grupo complexo de contingências históri·cas que incluem império, patrocínio, meios de comunicação e comércio .- contingências que montam o cenário para o entusiasmo· corporalizado que se verifica na Índia pelo críquete. . Podemos agora voltar ao enigma com que começámos. Como foi que o críquete, uma forma çultural dura fortemente agregadora de valores,significado e prática física, se indianizou t.ão profundamente, ou, de um outro ponto de vista, desvitorianizou?Porque no processo da sua vernaculari- · zação (através de livros, jornais, rádio e televisão) se tomou um emblema da nacionaiidadeindiana, ao mesmo tempo que Se inscrevia, como prática, no corpo (masculino) dos indianos. Neste caso, a descolonização envolve não apenas a criação de comunidades imaginadas por obra do capitalismo . impresso, como sugeriu Anderson (-1983), como também a apropriação de 152
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técnicas corporais agonísticas capazes de conferir mais paixão ·e ·intenção à comuni?ade assim imaginada. Pode ser este o contributo especial do desporto de espectadores (por oposição às muitas outras formas de cultura pública) para a dinâmi.ca da descolonização. Como género, corpo erótica nacionalista podem entrar em forte conjuntura atravé.s de outros desportos (como o futebol e o hóquei, que ainda hoje são muito populares na Índia), podemos ainda perguntar: porquê o críquete? Aqui, devo dar um salto especulativo e sugerir que o çrÍquete é um foco ideal de atenção nacional e paixão nacionalista porque oferece a oportunidade de aceder ao que poderemos chamar «recursos da modernidade» a uma grande variedade de grupos no seio da s.o ciedade indiana. Para esses grupos que constituem o EstadQ,em especial através do controlo da televisão, é um meio de se sentirem capazes de manipular o sentimento nacionalista. Aos tecnocratas, publicistas, jore editores que controlam directamente··os meios de comunicação · na India, dá um sentido de competência nó uso das técnicas de transmitir . espectáculos desportivos por televisão, da manipulação da publicidade no sector privado, de captar a atenção do público e, em geral, de serem eles a dominar os meios de comunicação. Ao sector privado, o críquete fornece um meiá de associar lazer, estrelato e nacionalismo, conferindo assim um sentido de mestria nas técnicas de comercialização e promoção. Para o público espectador, o críquete tem um sentido de literacia ·cultural num desporto mundial (assOciado à noção de superioridade tecnológica do Ocidente que ainda não desapareceu) e o prazer mais difuso de se associar ao brilho social, cosmopolitismo e competitividade nacional. Para o espectador de classe média-alta, traz o prazer privado de in·tegrar o estrelato e o sentimento nacionalista no ambiente seguro e sadio .. da sala de estar. Par
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da modernidade possam ser entendidos (e contestados) diversamente como paZ mundial, qtpacidades nacionais, fama individual e virilidade ou mobilidade de equipa, os recursos da modernidade · contidos n.o críquete implicam uma confluência de interesses vividos em que produtores e cOnsumidores de críquete partilham o entusiasmo pela indianidade sem as suas muitas cicatrizes divisoras. Finalmente, embora. talvez me. nos conscientemente, o críquete dá a todos estes ·grupos e agentes a sensação de terem libertado o jogo dos hábitos ingleses levados para as colónias ao nível da língüa, do corpo e da acção, bem como da competição, da economia e do espectáculo. Se não houvesse críquete na Índia, teria sido preciso inventar outra coisa qualquer para que o público experimentasse os recursos da modernidade.
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No fim de 1990, nos últimos meses do regime de V. P. Singh e na bulenta transição para um país governado por S. Chandrasekhar, a Índia (especialmente o Norte de língua hindi) foi abalada por duas grandes ex- · plosões. A primeira, ligada ao Relatório da Comissão MandaI, lançou membros de diferentes castas uns contra os outros, de tal maneira que muitos temeram pela derrocada da administração pública. A segunda, associada à cidade santa de Ayodhya, opôs hindus e muçulmanos pelo controlo de um local sagrado. Estas questões entrecruzadas, cujas relações têm sido muito notadas e analisadas, envolvem problemas de legitimidade (quais são os teus direitos?) e de classificação que grupo pertences e em que paisagem política se inscreve o teu grupo?). Este capítulo explora as raízes coloniais de uma dimensão da volátil política decomurüdade e classificação na Índia contemporânea. Ao fazê-lo, segue na esteira de muitos autores recentes que relacionaram as políticas de casta e comunitária com a política da representatividade de grupo no século xx (Kothari, 1989a, 1989b; Shah, 1989) e com o papel dos censos coloniais (Thapar, 1989). Mas as ligações precisas e distintivas entre enumeração e classifi-
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da escola subalterna, como Ranajit Guha (1983), David Arnold Dipesh Chakrabarty (1983). Este elemento sob forma resI;dual num grande estudo da imaginação orienta!Ista na IndIa 1990)i O interesse de Cohn pelos censos prolonga-se .numa Importani te colectânea de textos (Barrier, 1981). Todos estes hIstonadore? traram de diversas formas que, coloniai.s o ef:Ito\ de reorientar importantes pratIcas mdIgenas segundo novas atribuindo pesos e valores diferentes às concepções de identidade de gru I po, de físicas e de produtividade agrária existentes. Mas tou-se menos atenção à questão dos números, da mensuração e quantlfi-\ cação desta iniciativa. . . \ O vasto oceano de números à terr:, .aos colheItas, !. florestas, castas, tribos, etc., colIgIdos sob dorrumo colomal desde cedo, \ no século XIX, não foi uma iniciativa utilitária de feição refe- \ rencial. O seu utilitarismo integrava-se num complexo de tecmcas mformacionais, justificativas e pedagógicas. em \ determinados níveis do sistema, preenchendo formulanos burocratlcos i destinados a fornecer dados quantitativos em bruto, consideravam a sua : tarefa utilitária num sentido corrente, burocrático. Os números oficiais fo- i ram muitas vezes utilizados para importantes fins pragmáticos, como estabelecer os impostos na agricultura, resolver conflitos com terrenos, decidir diversas opções militares e, mais para o fim do século, tentar adjudicar reivindicações indígenas de e de ções Os números foram sem duvld,a para ISSO. Mas o que é menos óbvio é que foram geradas estatIstIcas em tai s que ultrapassavam de longe quaisquer finalidades UnIficadas. As estatísticas agrárias, por exemplo , não só estavam cheIas .de erros técnicos e de classificação como também estimulavam novas formas de nrática agrária e de auto-representação (Smith, 1985). . embora as primeiras políticas coloniais de quantificação se tenham pretendido utilitárias, diria que os núrrieros foram mente assumindo um lugar cada vez ma.is na de controlo burocrático, tornando-se uma chave do lmaglI:l...'lpo colOnIal em que as abs-
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tracções contabilísticas de pessoas e recursos, a todos os níveis imaginá- . veis e para todos os fins conceptíveis, criáram a sensação de haver controlo sobre a realidade indígena. Os números integravam-se recente experiência histórica da literacia para a elite colonial (Money, 1989; Thomas, 1987), que assim começou a acreditar que as quantificações são socialmente úteis . Fácil é provar que o significado destes n4meros era" . muitas vezes inexistente ou auto-suficiente, sem se tornar um referente principal para uma realidade complexa, exterior às actividades do Estado colonial. A longo prazo, estas estratégias enilmerativas contrihuíram para inflamar identidades e nacioriaJistas que na realidade minaram o domínio colonial. Temos pois que saber como é que a ideia de número, enquanto instrumento do controlo colonial, terá podido entrar na imaginação do Estado .. Relativamente à Inglaterra, para resporider a esta pergunta há que remontar à história da numeracia, líteracia, fiscalismo público é pensamento actuário nos séculos XVII e XVIII (Hacking, 1975, capo 12; r"982,1986; Brewer, 1989). É na realidade uma história muito complexa, mas no fim do século XVIII, número, tal como paisagem, herança e povo, a fazer parte do léxico da imaginação política britânica (Ludden, 1993) e implantou-se firmemente a ideia de que um Estado poderoso não pode sobreviver sem fazer da enumeração uma técnica essencial de controlo social. Assim, em Inglaterra o censo deu rápidos passos técnicos ao longo de todo o século XIX e sem dúvida forneceu o esquema geral dos censos do final do século XIX na Índia. Um panqrama do material dos censos britânicos do século XIX (Lawton, 1978) sugere que, operando num quadro de classificações simples que os serviços partilhavam como povo, os censos ingleses iüo tiveram os efeitos refractivos e generativos que tiveram na Índia. ' . Embora não possa provar aqui, sem sombra de dúvida, que as opera- . ções metropolitanas do censo britânico foram diferentes das levadas a cabo na Índia, há três boas razões para supor que houve diferenças importantes. Primeiro, a base do censo britânico foi esmagadoramente territorial e ocupacional e não étnica ou racial 1. Segundo, na medida em que
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os seus objectivos eram sociológicos, em Inglaterra, os censos ligavam-se' directamente às políticas .de representação, como na questão das zonas degradadas. Finalmente,. é .muito importante que tanto os planos de ingleses como franceses (bem como as ciências sociais embrionárias a que estavam associados) tendessem a reservar as suas investigações mais in. tromissoras para as suas margens soc1ais: os pobres, os depravados, os loucos e os criminosos. Nas colónias, pelo contrário, toda a população era considerada diferente de um modo problemático e essa diferença reside no próprio coração dei orientalismo (Nigam, 1990, p. 287). Além disso, para ir .ao sua l na Índia, esta propensão orientalista foi ?a \ contrapartida indígena na .aparente cardmalIdade da dIferença ideologia indígena de casta tal como esta aparece aos olhos oCIdentais. Neste sentido, as similitudes e diferenças entre os projectos coloniais britânicos e estão ainda por discernir, mas é evidente que a i cupação interna com os comportamentos desviantes e a marginalidade se \ no (Armstrong, i estendeu à administração de populações 1990; Rabinow, 1989). Embora houvesse llgaçoes claras e Importantes en- '· tre acções de ·classificação, ciência, fotografia, criminologia, etc., na me- : trópole e nas colónias, não parece que. as actividades enumerativas assu!I , • • missem a mesma forma cultural em Inglaterra e na IndJa, quanto maIS nao ' edifício de comuni- I fosse porque os Ingleses não se viam com.o dades exóticas desprovidas de uma orgamzaçao dIgna desse nome. I Num cenário colonial como a Índia, encontro com um conjunto de I, . grupos altámente diferenciado, religiosamente Outro, assentado I na preocupação metropolitana da ocupação, classe e rehgIao, tudo ele- I mentos proeminentes dos censos britânicos do século XIX. Criou-se assim I uma situação em que a recolha de informação e de arquivos para essa in- ; . formação assumiu proporções enormes e os dados numéricos se tomaram i . cruciais para esta tendência empirista.Por essa altura, o pensamento es- I tatístico era aliado do proje,cto d: cívico, em Inglaterr.a em França, em projectos de saude publIca, planeamento urbano, dIreIto penal [ e demografia (Canguilheim, 1989; Ewald, Hacking, 1975, 1982, 1 1986). Terá pois sido tentador para os imaginar que .
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bons dados numéricos tornariam mais fácil o arranque de projectos de controlo social ou de reforma nas colónias. Esta hipótese levanta duas questões diferentes mas relacionadas entre () si. Seria a Índia um caso especial ou limite relativamente ao papel da enu- O meração, exoticização e dominação nas técnicas do moderno Estado-na- O ção? Diria que foi um caso especial, porque o olhar orientalista defrontou-se na Índia com um sistema indígena de classificação que parecia O virtualmente inventado por uma qualquer forma anterior e indígena de O orientalismo. Não subscrevo a opinião de que os textos hindus constituem uma mera variação sobre textos orientalistas tardios, assim jus.;tificando as tendências de exo.ticização, por exempfo, dos códigos de leis coloniais. · Defender bem .esta posição levar-me-ia muito para fora deste contexto, mas quero simplesmente observar que também o essencialismo uma . questão de contexto e que a relação entre o estereotipismo hindu e o essencialismo britânico em rnatéria de casta não se. pode considerar fora de · O uma comparação exaustiva das formações estatais e religiosas em contex- . tos históricos muito diferentes. . Não obstante, não seria acertado pretender que o orientalismo britânico não deparou, na Índia, com um imaginário social indígena que parecia valorizar de forma notável a diferença de grupo. Na Índia, a casta, embora fosse em si uma parte muito complicada do imaginário social indiano e . tivesse sido refractada e reificada de muitas formas através das técnicas britânicas de observação e controlo, não foi, porém, uma invenção da imaV ginação política dos Ingleses. Neste sentido, a depuração orientalista da O Índia trazia consigo uma força social que só pode ocorrer quando duas teo() rias' diferentes partilham um princípio essencütl: que os corpos de certos grupos são portadores de diferença social e de estatuto moral. E por isso a Índia é um caso especial. Mas, vistado ângulo do presente, pode () também ser considerada o 'caso liÍnite da tendência do moderno Estado-nação para ir buscar ideias existentes de diferença linguística, religiosa e territorial para «produzir povo» (Balibar, 1990)2. O papel dos números nos aparelhos complexos de recolha de informa(...... ções, como o aparelho colonial na Índia, tinha dois lados que, em retros·- ·
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pectiva, há que distinguir. Um deles, podemos qualificá-lo de justificativo, o outro, de disciplinar. Uma parte muito grande da informação estatística reunida pelos funcionários britânicos na Índia não servía apenas para tornar mais fácil aprender ou descobrir como governar os territórios indianos. Estes dados estatísticos contribuíam também para analisar e enno contexto do discurso e da prática burocráticos, primeiro entre a Compa I1 hia das Índias Orientais e o, parlamento inglês, mais tarde entre os funcionários da coroa na Índia e os seus patrões em Londres. (Smith, 1985, é uma exposição clássica da lógica geral que interliga relatórios, manuais e registosda Índia no século XIX.) OS números eram uma parte fundamental do discurso do Estado colonial porque os seus interlocutores metropolitanos se tinham tomado dependentes dos dados numéricos, por mais duvidoso que fosse o seu rigor e relevância para as grandes iniciativas administrativas relativas a recursos. A dimensão justificativa do uso dos números na administração colonial, como é óbvio, está também relacionada com os diferentes níveis do Estado britânico na Índia, onde os números alimentavam uma série de conflitos instalados entre funcionários indianos dos níveis inferiores da burocracia, percorrendo o sistema até ao governador-geral da Índia, através de uma série de comissões, direcções-gerais concorrentes e titulares de cargos que travavam um debate interno constante sobre a plausibilidade e relevância de várias classificações e dos números a elas ligados (Dirks, 1987, caps. 10 e 11; Hutchins, 1967, p. 181; . . Presler, ' 1987, capo 2). Os números relativos a castas, aldeias, grupos religiosos, produtos, distâncias e poços entravam numa linguagem de debate político em que o estatuto de referência rapidamente se tornou muito menos importante neste do que era no seu papel discursivo de apoio ou subversão dos vários gestos cbssificativos e das teses organizativas neles baseadas. É importante notar que os números permitiam uma comparação entre tipos de lugares e pessoas com outras diferenças, que eram formas concisas de transmitir grandes corpos de informação e que serviam como forma sumária de captar e apropriarC\l-racterísticas de outro modo recalcitrantes da paisagem humana e sociaCaa Índia. Não que os não servissem um objectivo refe-
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rencial directo na pragmática colonial, 'pois indicavam características do mundo social indiano aos burocratas e aos políticos, mas este' objectivo referencial tinha muitas vezes importância que o objectivo retÓrico. E isso deve-se em parte ao facto de a mera vastidão dos números envolvidos nos principais debates políticos do século XIX tornar intratável a sua. dimensão estritamente referencial ou informacional. . Contudo, as destas estratégias numéricas parecem não ter sido mais importantes do que as suas funções pedaoóoicas e disciplinares. Relativamente a esta última, as ideias de Foucault biopolítica são' sem dúvida extremamente relevantes,. pois o Estado colonial parte integrante do corpo político indiano ao mesmo temp? que se empenhava em reinscrever a política do corpo indiano, espeCIalmente no seu envolvimento com o sari, a prática de suspender o corpo ' de ganchos, os ritos de possessão e outras formas de manipulação do cor- , po (Dirks, 1989; Mani, 1990). Voltarei mais tarde a este ponto. Mas a. questão numérica complica de certo modo as coisas. É que não se trata aqui simplesmente das necessidades logísticas do Estado, mas também das suas necessi"dades discursivas construídas fundamentalmente como necessidades estatísticas. . . Além disso, não se tratou apenas de fornecer o óleo numérico 'à engrenagem administrativa cuja forma discursiva fora construída através de um complexo desenvolvimento europeu que incluía pensamento probabilístico e prática cívica. Foi também uma questão de disciplinai o vasto funcionalismo do Estado colonial (ver também Smith, 1985, e Cohn, controlar 1987), bem como a população que estes funcionários e reformar, de maneira a que os números pudessem tornar-se indispensáveis nas práticas e no estilo burocráticos. " ,
Número e política cadastral O ponto de ruptura entre os momentos empirista e disciplinar da numerologia colonial observa-se nos muitos documentos técnicQs produzi-
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dos nos meados do século XIX. Há muitas maneiras de conceptualizar mudança , incluindo a que nela vê «uma transformação do censo de msR. trumento fiscal em instrumento de conhecimento», nas palavras de 1chard Smith (1985, p. 166), que identifica a ocorrência desta alteração no uso documento Punjab, por volta de 1850. Na análise, que se mais ou menos do mesmo período, da lndia OCIdental, para Ilustrar a formação do novo olhar numérico do Estado colo,nial nos meados do século XIX
Este documento, publicado com o título Relatório Conjunto de 1847, foi na verdade publicado em livro em 1975 pelo Departamento de Registo Fundiário do Estado de Maharashtra, na Índia Ocidental (Governo de Maharashtra, 1975). O subtítulo é Nonnas para a Mensuração e Classificação para as Inspecções do Decão, Gujarate, Konkan"e a uma classe de documentos que mostram que a CompanhIa das IndIas Orientais procura normalizar as suas práticas de exploração de terrenos em toda a extensão dos seus territórios e racionalizar práticas geradas no "último quartel do século XVIII e primeira parte do século XIX, no calor da conquista. É, por excelência, um documento de racionalizaçã? burocrática, na sua intenção de criar e estandardizaras normas do rendImento fundiário para toda a terra sujeita à jurisdição da na regi.ão Decão. Mas contém também uma série de cartas e relatonos do pnncIplO da década de 1840 que revelam uma discussão séria entre o funcionalisI?o , local e centràl sobre as minúcias da cartografia do terreno agrícola na lndia Ocidental e os seus objectivos mais vastos, como tributação e resolução de conflitos. É um documento basilar da política cadastral. Na esteira da caracterização que Ranajit Guha fez da «prosa de contra-insurreição» (Guha, 1983), podemos qualificar o Conjunto de exemplo clássico da prosa de dominação cadastral. E uma prosa composta em parte por regras, em parte por ordens, em parte por apêndices e em parte por cartas e petições, a ler como um todo. Nesta prosa, os debates internos da burocracia fisc'al, a pragmática da formação de normas e a·retórica da utilidade açompanhavam sempre as recomendações finais das autoridades aos das novas técnicas. São documentos cuja re-
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tórica manifesta é técnica (isto é, positfvista, transparente e neutral) mas cujo subtexto é contestatário (relativamente aos superiores) e disciQlinar . . (relativamente aos inferiores). O grosso do documento, como muitos outros do seu género, é verdadeiramente borgesiano, esforçando-se por encontrar métodos · e representações textuais próprios para captar a generalidade e as minúcias do terreno agrícola indiano. A analogia como clássico'de Jorge Luis Borges, a história do mapa que tinha que ser tão grande como o terreno que representava, não é faqtasiosa, como demonstra esta queixa de um funcionário sobre uma técnica cartográfica anterior: Por altura do levantamento do Decão por Mr. Pringle, prepararam-se uns registos muito pormenorizados. e intrincados, chamados kaifiats, que; também ach,ámos bem pôr de parte por serem inúteis e por, dado o seu comprimento e complexidade exagerados, se tornarem mais obscuros que dos assuntos de que tratam; e ainda por o seu volume tornar impossível a detecção de ' erros (nota de rodapé de 1975: os kaifiatspreparados para muitas das aldeias inspeccionadas por Mr. Pringle tinham para cima de 300 jardas de compI:imento) (Relatório Conjunto, p. 55).
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() A despeito desta queixa de 1840 sobre os absurdosborgesi anos dos esforços cartográficos anteriores, a tensão entre economia Tepresentativa e pormenorização não desaparece. Ao longo de toda a década de 1840, prossegue a luta entre as autoridades fiscais do Decão e as Finanças, que têm aspirações algo mais sinópticas e panópticas nas suas inspecções. Primeiro, há a relação entre mensuração e classificação, que é por sua vez objecto explícito de análise em muitas das cartas e relatórios que conduzem ao Relatório 'Conjunto, onde foram fixadas '\., as regras básicasde inspecçãp' paiá: esta região e para as décadas sub'sequentes. No que toca à medição, os funcionários britânicos directamente responsáveis pela tributação entendiam-na como um problema de adaptar os métodos trigonométricos, topográficos e agrimensórios para criar mapas que consideravam exactos e funcionais. Pretendiam «multiplicar as cópias destes mapas de maneira económica e 'rigorosa,
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bem como precaver-se de futuras tentativas fraudulentas de alteração», e portanto estes funcionários sugeriram que «deviam ser litografados» (Relatório Conjunto, pp. 9-10). A sua de rigor nas medições incorporava já as ideias estatísticas existentes sobre percentagens de ·erro e «margem de erro», que queriam reduzir. Estes funcionários reconheciam que a classificação é uma questão muito mais ingrata do que a mensuração; mas no respeitante à mensuração, eram ingenuamente positivistas: «Estes resultados têm um carácter absoluto e invariável e podem ser atingidos de muitas maneiras com segurança» (p.l O). A classificação de campos com vista a uma tributação justa levantava um ror de problemas quanto à tipificação da' variação para fins de classificação, de modo que a ciassificação podia ser suficientemente para se aplicar a uma vasta região mas suficientemente específica para albergar importantes variações de terreno. A solução resultante implicava uma classificação dos solos em nove fases, um complexo sistema de notação para os inspectores no terreno e um intrincado algoritmo para a tradução desta variação qmilitativa em valores quantitativos relevantes , para a tributação do rendimento . Por outras palavras, as disciplinas detalhadas de mensuração e classificação (uma com base nas práticas icónicas de trigonometria e inspecção, em geral, a outra nas ideias numéricas e estatísticas de margem e percentagem de erro) foram as técnicas gémeas através das quais se concebeu uma política fiscal equitativa, assente em princípios de aplicabilidade geral que fossem simultaneamente tão sensíveis quanto possível às variantes locais. Esta mentalidade - generalidade da aplicação e sensibilidade a ' variações mínimas - ' correspondia à principal tensão não só nas inspec-, ções cadastrais como em todas as aspirações informacionais do Estado colonial. Como explicarei adiante, esta mentalidade é também o elo crucial entre a Lógica cadastral da primeira metade do século e' os censos demográficos da segunda, em termos de enumeração e exoticização. As discussões que rodearam o relatório de 1847 revelam também a tensão emergente entre as variedades de conhecimento que constituíam o empirismo orientalista. Não é de admirar que os funcionários mais pró166
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ximos das variações locais e do rigor e justiça no terreno levassem a mal as obsessivasnecessidadespanóp'ticas dos níveis mais elevados oa burocracia. Ilustrando literalmente a força do «suplemento» textual (à maneira desconstrucionista), as tabelas miméricas, valores e mapas permitiam que a contingênci q - a pura confusão narrativa das descri'ções em prosa da paisagem colonial - fosse domestitada no idioma abstracto completo e frio do número. Claro que os núrrieros podiam se; contestados, mas esta luta tinha qualidade instrumental, mUlto longe do calor da novidade, da luz da fotografia e do realismo colonial das etnografias administrativas. Estaspropriedades eram de particular valor para aqueles que procura- ' vam domar as próprias di versidades do terreno e das pessoas que outros aspectos do episteme oriental corno a fotografia, os diários de viagem, as gravuras e exposições muito fizeram por criar. Em 1840, o tenente Wingate, superior responsável pela tradução das ' necessidades tributárias do , Estado colonial em práticas técnicas e burocrátiCas 10caÚnente exequíveis ' para o Decão, escreveu ao comissário do fisco de Poona, s'eu superior imediato, exprimindo claramente a sua frustração ante a volubilidade dos interesses da burocracia central: «A presente inspecção, além do ' mais, foi instituída com objectivos puramente fiscais ' e a questão de a subordinar aos da Geografia e Topografia foi agora levantada pela primeira vez. Por-' tanto, não se poderá com justiça objectar, quanto ao plano de operações, que não inclui o cumprimento de objectivos não contemplados ao tempo da sua formação» (p. 69). O funcionário do nível superior seguinte da burocracia fiscal, embora menos directo do que Wingate, torna também claro que está confuso com a relação entre as necessidades fiscais e,as necessidades «científicas» dos superiores. Colocado entre dois níveis importantes da burocracia, "acrescenta, ao concluir urna importante carta, que «sejam quais forem os motivos que levem um funcionário do Fisco a desejar um mapa, os que foram já fornecidos na última inspecção sob as ordens do Major Jopp e os que estão agora a sair da Inspecção Fiscal do Decão, de que anexo um exemplar, parecem-me amplamente suficientes; e se for necess'árió algo 167
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mais preciso ou detalhado, deve ser, concluo, para alguma espécie de ciência especulativa, sobre cuja necessidade não me compete fornecer opinião» (pp. 81-82). Documentos como o Relatório Conjunto foram cruciais para disciplinar os nív.eis inferiores, especialmente os funcionários nativos, nas práticas empiristas do governo colonial. Na colecção de mapas, medidas e estatísticas de tod,a a espécie, estes documentos e as regras neles contidas e debatidas mostram que os funcionários europeus mais novos se preocupavam sobretudo em garantir que os padrões da prática administrativa colonial fossem respeitados até às mais minuciosas técnicas corporais dos agrimensores. Estas técnicas podem considerar-se técnicas disciplinares aplicadas tanto ao funcionalismo europeu inferior como aos seus subordi nados indianos. Mas' havia uma diferença importante. Enquanto os pri.meiros podiam não reconhecer a sua sujeição ao regime do número nos idiomas da' ciência, do patriotismo e da hegemonia imperial (com que se identificavam racialmente), para os funcionários indianos estas práticas eram uma inscrição directa no seu corpoe no seu espírito de práticas associadas ao poder estrangeiro dos seus dirigentes. Neste como noutros aspectos do controlo da mão-de-obra e recursos coloniais, nem todas as subalternidades eram idênticas. Na realidade, o vasto aparelho de inspecção fiscal fazia parte de um sistema complexo de disciplina e vigilância mediante o qual era instilada nos funcionários nativos toda uma série de hábitos numéricos (ligados a hábitos de descrição, iconografia e distinção); estes hábitos, por sua vez, implicavam o número através de um grupo complexo de papéis, incluindo os de classificação, ordenação, aproximação e identificação. A aritmética política do colonialismo era ensinada muito literalmente no terreno e traduzida para algoritmos capazes de tornar habituais futuras actividades numéricas e de instilar a descrição burocrática com uma fra-estrutura numero lógica. Em cada uma destas importantes vias, a prosa do controlo cadastral lançou as bases e constituiu um ensaio para o discurso posterior relativo às comunidades humanas e sua enumeração. Este ensaio teve três com-
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ponentes: montou o cenário para o usó generalizado de técnicas enumerativas padronizadoras para controlar as variações materiais no te)Teno; tratou as características físicas da paisagem, bem como a sua produtividade e variabilidade ecológica enquanto separável (em certa medida) dos u complexos direitos sociais implícitos no seu uso e significado para os fn (j dianos rurais; e constituiu uma preparação pedag'ógiCa para o tipo de regime dis,ciplinar que mais tarde seria necessário aos inspectorés dos cen() sos demográficos e a colectores de dados de todos os níveis. O númerO (e a ideologia estatística subjacente ao número) concatenou O estes textos cadastrais e forneceu os elos essenciais entre estes fextos e os O· debates que eles relatam, as práticas que se destinavam a disciplinar. As() sim, através de uma leitura atenta destes documentos técnicos aparentemente simples, podemos destrinçar as tensões e fracturas ideológicas, bem ' .' ). \:...,1 como as práticas de ensino e vigilância, em que não se trata apenas de «a terra é para mandar» (Neale, 1969). O governo colonial tinha uma função · O pedagógica disciplinar, de modo que «a terra é pata ensinaf»: medir e O c1assificàr aterra foi a base educativa da cultura do número em que a esG tatística se tomou o discurso legitimador do apêndice (conferindo peso inO directo à porção verbal do texto) ao mesmo tempo que deu aos funcionários superiores um sentido pedagógico e disciplinar do controlo não apenas sobre o território onde procuravam governar, mas também sobre os funcionários nativos necessários para levar a cabo essa governação. Pelo que respeita aos nativos, 'o regime do número, como ressalta de todas as páginas desses documentos, existe de certo modo para contrariar o hábito de mentir que a maior parte dos nativos, tanto agricultores como agrimensores, consideram constitucionaL . Temos portanto parte da resposta à pergunta com que começámos, a . "-,saber, que papel especial tem a enumeração dos corpos no domínio colonial? Sugeri que os números eram um aspecto volúvel do imaginário e função colonial de um modo justificativo e pedagógico , bem como de um modo mais restritamente referencial. A história do domínio britânico no século XIX pode ler-se, de certo modo, como um deslocamento do uso mais funcional do número no que foi chamado mil itarismo fi scal do
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tado britânico nos assuntos internos (Brewer, 1989) para um papel mais pedagógico e disciplinar. Os corpos indianos não só foram sendo gradúalmente categorizados como lhes foram atribuídos valores quantitativos (Bayly, 1988, pp. 88-89), cada vez mais associados ao' que lan Hacking chamou <
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Contagem colonial de corpos
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Estas práticas enumerativas, no cenário de uma sociedade largamente agrícola que o Estado mogol tinha praticamente já preparado, em medida, para o controlo cadastral, teve outra importante consequência. Não foram um mero ensaio de práticas de contagem para os censos nacionais indianos após 1870. Realizaram também uma importante tarefa, até hoje quase ignorada. O enorme aparelho de disposições fiscais, inspecções agrárias e mudanças jurídicas e burocráticas da primeira metade do século XIX fez mais do que mercantilizar a terra (Cohn, 1969): transformou «senhores em senhorios» e camponeses em agrários '(Prakash, 1990); e transformou as estruturas recíprocas de dádiva e de honra em títulos vendáveis, semioticamente comercializáveis, que fo- ' ram postos no mercado sem deixarem de possuir a força metonímica que os ligava .às pessoas nomeadas. Arrancou também os grupos sociais às suas complexas estruturas de grupo localizadas e às práticas agrícolas em que tinham estado inseridos, fosse no contexto dO «colonato silencioso» dos inams do Sul da Índia (Frykenberg, 1977; Dirks, 1987), dos inams de Maharashtra (Preston, 1989), dos jornaleiros escravos de Bihar (Prakash, 1990) ou dos lulahas de Uttar Pradesh (Pandey, 1990). A imensa diversidade de castas, seitas, tribos e outros agrupamentos práticos da paisagem indiana transformou-se numa vasta paisagem categorial liberta das especificidades do .campo. Esta alteração em duas fases principais, uma associada ao período anterior a 1870, durante o qual as questões de ocupação e tributação da terra são projectos coloniais dominantes, outra no período entre 1870 e 1931, época do grande Censo Pan-Indiano, cujo projecto dominan. te é' a enumeração das comunidades humanas . Os anos que vão de cerca . . . . '\ de 1840 a 1870 assinalam a transição de uma para outra destas orientações principais. O primeiro período instala as condições para0 segundo, pois é dominado por uma preocupação pela base física e ecológica da produtividade e rendimento da terra; como já afirmei, a época liberta em certa medida esta variabilidade do mundo social e humano a el a as-
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saciado, no contexto dos esforços para travar uma batalha pela estandardização contra a variação no terreno. No segundo período, tão bem explorado por Rashmi Pant (1987) no contexto das Províncias do Noroeste e de Oudh, ocorre o movimento inverso e os grupos humanos (castas) são tratados em grande medida abstraindo dos contextos regionais e territoriais em que funcionam. Claro que é importante notar que estes projectos coloniais eram concomitantemente afectados pelas contradições internas (a pressão para a especificidade e generalização dos nomes -das castas no Censo Pan-Indiano, por exemplo), por incoerências entre os diferentes projectos coloniais e, acima de tudo, pelo facto de as operações burocráticas coloniais não transformarem necessariamente as práticas ou as mentalidades no terreno. Voltarei a este tema no final do capítulo, numa análise do súbdito colonial. O ensaio fundamental de Pant analisa o modo como a casta se torna uma sede crucial de actividades do censo nacional após 1870, ao contrário de outras sedes. A par do ensaio de Smith (1985), a tese dePant permite-nos ver que a prática burocrática colonial, como lugar de acção e historicamente configurado por direito próprio, contribuiu para criar uma relação especial e forte entre essencialização, disciplina, vigilância, objectificação e consciência de grupo nas últimas décadas do século XIX. Os números desempenharam um papel crucial nesta conjuntura e o primeiro panorama estatístico foi um factor determinante na gravitação do censo para a casta como sede-chave da classificação social, pois a casta surge como a chave da variabilidade social indiana, bem como da mentalidade indiana. Pant, que parte da obra anterior de Smith, salienta que o uso da casta para «diferenciar uma corrente de dados» começou por ser aplicado ao domínio das estatísticas de género nesta região (1987, p. 148). Especificamente, defende-se, no relatório de 1872 do CensoPan-Indiano para as Províncias do Noroeste e de Oudh que certas hipóteses sobre a taxa dos sexos relativamenteaoinfanticídio feminino só se podia explicarpor -referência à casta. Este intuito de explicar e controlar comportament05 exóticos é uma prova crucial de que empirismo e exoticização não eram ligação das esaspectos desligados do imaginário colonial na Índia. 172
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tatísticas empíricas à gestão do exótico esteve na base de uma orientação -política mais geral, a saber, muito do que era preciso conhecer a população indiana só poderia tornar-se inteligível mediante a enumeração detalhada da população em termos de_casta. Embora a história subsequente do Censo Pan.-Indiano mostre que houvena prática' enormes dificuldades e anomalias no esforço de construir para toda a Índia uma grelha de castas nomeadas e enumeradas, o princípio só nos anos de 1930 foi abandonado. Como demonstra Pant, «pelo virar do século, o estatuto epistemológico de casta como sede do reconhecimento de unidades qualificadas e socialmente eficazes da pOpulação indiana já estava instaurado, assim o confirmam os Relatórios dos Censos de 1911-1931» (p. 149). Mas há também que notar que, como a recolha de dados sobre casta criou um fluxo de informação enorme e difícil de processar, já na década de 1860 apenas as «maiorias numéricas» tiveram destaque nos re"latórios dos censos. A preocupação com as maiorias numéricas nasceu pois como princípio para organizar a informação dos censos. Este princípio burocrático aparentemente inócuo é, como é óbvio, a base lógica das ideias de grupos majoritários e minoritários que mais tarde a política hindu-muçulmaria na Índia colonial e a política de castas na lndia durante todo o século XX e até hoje. Embora seja certo que a casta enquanto tropo e.ssencial para taxono-mizar a paisagem indiana é um produto relativamente tardio do domínio colonial (Pant, 1987), a essencialização mais generalizadados grupos in- _ dianos remonta pelo menos ao início do século XIX. quando não antes, como demonstrou Gyan Pandey com as castas dos tecelões de Uttar Pradesh (Pandey, 1990). Até às últimas décadas do século XIX, porém, a essencialização dos grupos no discurso orientalista e administrativo esteve muito separada das práticas e!lumerativas do Estado, excepto na medida em que se ligavam directamente a objectivos fiscais localizados. Uma análise do censo colonial de 1823 no Sul da Índia (Ludden, 1988) mostra que o interesse do final do século XIX pela classificação e en'Umeração social vem muito de trás. Mas este primeiro censo, no geral,'pàrece pragmático, localista e relacional no seu tratamento dos grupos e não de aspi173
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rações abstractas, uniforrriistas ou enciclopédicas. Foi um censo ainda orientado para o fisco e não para o conhecimento, para usar os termos de Smith. Depois de 1870: porém, não só os números passaram a fazer parte integrante do imaginário colonial e das ideologias práticas dos seus funcionários inferiores como os grupos sociais indianos ficaram funcional e discursivamente libertos das paisagens agrárias locais, à deriva numa vasta enciclopédia social pan-indiana. Esta libertação ficou a dever-se ao sentido crescente de que a morfologia social de casta poderia fornecer, atra. vés do censo, uma grelha geral para .organizar o conhecimento da popu. ·lação indiana. São estas as condições da força especial do censo indiano a seguir a '1870, que se destinava a quantificar classificações anteriormente estabelecidas, mas que na realidade teve apenas o efeito c.ontrário: estimular a auto mobilização destes grupos para uma série de formas políticas translocais mais vastas. . É também este o lugar para notar a diferença fundamental entre os Britânicos e os seus predecessores mogóis: se se esforçaram por cartografar e medir a terra sob o seu controlo para efeitos fiscais (Habib, 1963), gerando assim uma grande parte do vocabulário tributário ainda hoje vigente na Índia e no Paquistão, os Mogóis não realizaram porém, que se saiba, qualquer censo de pessoas, facto apontado por Irfan Habib como a principal razão da dificuldade em calcular a população da Índia mogol (Habib, ·1982, p. 163): A enumeração de várias coisas por certo fazia parte do imaginário do Estado mogol, bem como o reconhecimento das identidades de grupo, mas não a enumeração das identidades de grupo. Quanto às outras . grandes formações políticas pré-coloniais do subcontinente, como o reino de Vijayanagara, parecem não ter seguido os processos lineares, centralizadores, arquivistas dos Mogóis e estar orientadas no sentido do número enquanto cosmopolítica de nomes, territórios, honras, quotas e relações, muito mais subtil (Breckenridge, 1983). Neste sentido, os Estados não mogóis do subcontinente indiano anteriores ao domínio colonial, incluindo aqueles que. como os Maratas, geriram domínios políticos elaboradamente monet::lrizados (Perlin, 1987), parecem não se ter interessado pelo
número como instrumento directo do controlo social. Nestes regimes pré-coloniais, as actividades enumerativas andavam ligadas à tributação,contabilidade e rendimento fundiário, mas o elo que liga enumeração identidade de grupo parece na verdade fl1:uito débil. Quando o havia, sempre pareceu ligado a formações sociais muito específicas, como as akharas (associ-ações de luta e ginástica), e não à enumeração da população em geral (Freitag, 1990). Para que este último esforço totalizadór entrasse no imaginário do Estado, o passo crucial intermédio foi essencializar e taxonomizar o anterior orientalismo (de tipo europeu), a que se seguiu o hábito aplicado à terra na primeira metade do século XIX e por fim a ideiJ de representação política, ligada não a cidadãos e indivíduos essencialmente sememas a comunidades concebidas como i.ntrinsecamente especiais. Na India, nos séculos XVIII e XIX, o olhar orientalista que essencializa e exoticiza estabelece o elo crucial entre classificações demográficas e políticas de casta e de comunidade. E aqui chegamos finalmente ao coração da tese, tanto no que respeita às diferenças entre o regime colonial da Índia (e suas contrapartidas metropolitanas, bem como OS seus predecessores indígenas) como ao elo que liga políticas classificativas coloniais e políticas democrá- . ticas contemporâneas. A enumeração do corpo social, concebido como agregados de indivíduos cujos corpos eram intrinsecamente colectivos e exóticos, cria o cenário em que a diferença de grupo é o princípio central da política. Ligara ideia de representação à ideia de comunidades· caracterizadas por comunalismos bio-raciais (internamente) e diferenças bio-raciais (externamente) surge como o marcador basilcu;- da IT:ludança colonial de política no moderno Estado-nação. , . O que ocorreu na colónia foi uma conjuntura que nunca se verificou . ", na metrópole: a ideia de que as técnicas de mensuração são um modo cru- . ': cial de normaiizar a variação .no solo e no território, a par da ideia de que a representação numérica é a chave para normalizar a patologia da diferença que representava o corpo social indiano. Assim, a ideia de «homem médio» (o de Quetelet) insinuou-se através da estatística (como calcanhar de Aquiles epistemológico) e transitou para o domínio
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da diferença de grupo. Instala-se assim uma extensão.orientalista da ideia metropolitana de representação numérica de grupos (entendidos como sendo compostos por indivíduos médios) e da ideia de eleitorados separados, que é uma evolução natural dessa outra, a de a Índia ser uma terra de grupos (tanto para fins civis como políticos) e de os agrupamentos sociais indianos serem intrinsecamente especiais. Assim, sob o do.mínio colonial, pelo menos na Índia britânica, a dimensão nuÍnérica da classificação traz em si semente de uma contradição especial, pois foi levada a existir num mundo concebido como uma das incomensuráveis diferenças de grupo.
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Nacionalismo, representação e número A abordagem comunitarista, que mais tarde (na primeira do século xx) terá a sua mais importante manifestação nos eleitorados separados para hindus e muçulmanos (Hasan, 1979; Pandey, 1990; Robinson,. 1974), de modo algum se restringiu a estes. Assentava nas ideias anteriores da casta como princípio básico de uma morfologia geral da população indiana (conhecida pelos censos) e outras ainda mais antigas sobre a capacidade da enumeração para captar a natureza variável e tratável da terra e dos recursos da Índia. Esta abordagem comunitarista foi também crucial para a definição da dinâmica de ideias de maioria e minoria como termos culturalmente codificados para os grupos dominantes e submetidos do Sul da Índia (Frykenberg, 1987; Saraswathi, 1974; Washbrook, 1976, capo 6) e noutros pontos. É portanto plausível afirmar, como Rajni Kothari (1989a , 1989b) e outros, que o próprio tecido da democracia indiana continua a ser adversamente afectado pela ideia da votação em bloco numericamente dortlÍnada, por oposição às ideias mais clássicas do voto individual de cada burguês como cidadão democrático. Embora saia do âmbito deste capítulo demonstrar em pormenor de que modo a importância cognitiva da casta nos censos indianos dos anos de 1870 antecipa a comunitária deste século, há que notar que, mes-
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mo depois de 1931 ,quando a casta deixou de ser uma preocupação central dos censos na Índia, a ideia de política como contrário das comu.!1idades essencializadas e enumeradas (este último é um conceito que devo a Kaviraj, 1994) já se tinha apoderado da organização regional e local e passava portanto a dispensar o estímulo do censo para continuar a dominar a política indiana. Como observou Shah (1989), houve um esforço regular (e resultante) nestas décadas passadas para inverter a política pós-1931 de eliminação da contagem de castas para os censos. Hannah Pitkin (1967) e outros escreveram eloquentementesobre as relações complexas entre representação nos seus sentidos moral, estético e político. Não preciso repetir aq ui esta genealogia ocidental, ekcepto para notar que muito cedo na história do Iluminismo a ideià de democracia ficou ligada a uma ideia de soberania represéntativa dos súbditos. Portanto, como salientou Robert Frykenberg (1987) para o contexto indiano, a política eleitoral tornou-se simultaneamente uma política de representação (do povo para o povo - um jogo de espelhos em que o Estado se torna . virtualmente invisível) e uma política de representatividade, ou seja, uma política de estatísticas em que alguns corpos podem valer por outros corpos por causa do princípio numérico da metonímia, em vez dos variados princípios cosmopolíticos de representação que caracterizavam as ideias de direito divino em muitas organizações sociais pré-modernas. No século ·XIX e princípio do século xx, o Estado colonial da Índia achou-se numa interessante contradição por procurar usar as ideias de representação e de representatividade nos níveis inferiores da ordem política indiana, com princípios paternalistas, monárquicos e qualitativ
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fomando na ideia de representação dos próprios Indianos (governo próprio) .à medida que o nacionalismo se tomava u.m de massas. Claro que, em retrospectiva, como Partha ChatteIJee nos ajudou a ver, o nacionalismo sofreu por partilhar a temática de base do pensamento colonialista, não podendo por isso gerar uma críticaplena do mesmo (Chatterjee, 1986). Portanto, a dos números, especialmente no a casta e comunidade, não só é a morte da política -democrática na lndia como estas identidades mais antigas se tomaram politizadas de uma forma radicalmente diferente de outras concepções locais da relação entre a ordem dos jatis e a lógica do Estado. O processo que permitiu que identidades hinduse muçulmanas separadas se construíssem ao nível mais amplo, e que as transformou não apenas em comunidades imaginadas mas também em mais não é que a patologia mais visível da transcomunidades ferência da política de representação numérica numa sociedade em que a representação e a identidade de grupo não tinham uma relação numérica especial com a administração.' . Mas dizer que o governo colonial, fosse dos Ingleses na Índia ou de outros regimes europeus noutros pontos do mundo, não foi o único a gerar comunidades enumeradas. Grandes estados extra-europeus, como os Otomanos, os Mogóis e várias dinastias chinesas, tiveram preocupações numéricas. Onde está a diferença colonial? Para o Estado colonial avançado, os números faziam parte de um imaginário complexo no qual as necessidades utilitárias do militarismo fiscal no sistema mundial, a ló aica classificativa da etnologia orientalista, a presença-sombra das idei:s democráticas ocidentais de representação numérica e a passagem de uma biopolítica classificativa a outra numérica criaram uma lóaica evolutiva que atinoiu b o - um ponto crítico conjuntural nas últimas três décadas do séculD -XIX e nas primeiras duas do século xx. O líquido foi algo de fundamentalmente diferehte .de todos os outros complexos aparelhos de Estado relativamente à política do corpo e à construção das comunidades como corpos. Em palavras simples, outros re2:imes podem ter tido preocupações numéricas e podem tê-las também cl:lssificativas. Mas as duas estiveram sempre separadas e somen':
te na conjuntura complexa das variáveis que constituiu o projecto do Estado colonial avançado estas duas formas de nominalismo dinâru.ico se juntaram para criar uma organização centrada em tomo de comunidades enumeradas conscientes. Quando estas comunidades se integraram também num discurso oficial mais amplo de espaço, tempo, recursos e relações que era também extremamente numérico, gerou-se uma aritmética política colonial em que as actividades de essencializar e enumerar comunidades humanas se tornaram não só concorrentes como inimagináveis uma sem a outra. (pelo -meEsta aritmética é uma parte in;portante da biopolítica nos em termos de Britânicos na India)e não só por ter tido a ver com abstracções numéricas enquanto outros regimes estatais tinham objectivos nu- . méricos mais concretos (como impostos, corveias .e similàres). O moderno Estado colonial junta a visão exoticizante do orientalismo com o discurso farniliarizante das estatísticas. Neste processo, corpo do súbdito colonial toma-se simultaneamente estranho e dócil. A sua estranheza reside no facto de passar a ser visto como sede de práticas cruéis e insólitas e de subjectividades bizarras. Mas as contagens do corpo colonial criam não só tipos e classes (indo os primeiros no sentido das diferenças domesticadoras) como também corpos homogéneos (dentro de categorias) porque o número, pela sua natureza, aplana idiossincrasias e cria limites em tomo destes corpos homogéneos, já que cerceia performativamente a sua extensão. Neste sentido, as estatísticas estão para os corpos e tipos sociais como os mapas para os territórios: aplanam e delimitam. O vÍnculo .entre colonialismo e orientalismo sai portanto muito reforçado, não nas sedes de classificação e tipificação (como tantas vezes se tem sugerido), mas nas sedes de enumeração, onde os corpos são contados, homogeneizados e cerceados na sua extensão. As'\ sim, o corpo rebelde do súbdito colonial (o corpo dojejum, do festim, do faquirismo, das abluções, das-piras e das sangraduras) é recuperado através da linguagem dos números que permite restituir esses mesmos corpos, já contados e contabilizados, aos projectos áridos do fisco , higiene, educação, serviço militar e lealdade. Até aqui pode ler-se na minha tese que o projecto colonial de es;;en-
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, cialização, enumeração e apropriação da paisagem social foi um completo sucesso, Mas na realidade não é assim e há uma quantidade de fontes que comprovam que 'os projectos do Estado colonial de modo algum foram completamente eficazes, em especial no que respeita à colonização da consciência indiana. Em vários tipos de revolta camponesa e urbana, em vários tipos 'de escrita autobiográfica e ficcional, em muitos tipos diferentes de formação e expressão doméstica e em vários modos de prática corporal e religiosa, os indianos de muitas classes prosseguiram práticas e reproduziram entendimentos altamente predadores do governo colonial. Além disso, indianos e indianas remodelam deliberadamente as suas concepções do corpo, da sociedade, do país e do destino em movimentos de protesto, de crítica interna e clara revolta contra as autoridades coloniais, Na verdade, é a estas várias fontes que a resistência local vai buscar energias - energias e espaços (que vão desde os grupos de oração e associaçÕes atléticas às ordens ascéticas, e mercantis) para constituir a base social do movimento nacionalista. Estas energias permitiram a uma pessoa cOmo Gandhi e a muitas outras figuras menos conhecidas reconquistar a base social e moral aos Ingleses (e ao discurso do próprio orientalismo). Estas reflexões trazem-nos de volta a um problema já levantado, a saber, o do súbdito colonial relativamente aos projectos enumerativos e classificativos do Estado. Claro não se pode fazer uma generalização fácil do grau em que o esforço de organizar o projecto colonial em torno da ideia de comunidades essencializadas e enumeradas abriu caminho à consciência prática dos súbditos coloniais na Índia. Mas é bastante fácil dizer que os result
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ti vos dos discursos da identidade de grupo, outras, como as relativas a educação, direito e reforma moral, foram responsáveis pela criação do que se pode chamar um súbdito colonial burguês, concebido como indivíduo. Este problema não se pode resolver aqui, mas é preciso registá-Io cómo uma questão importante que toda a interpretação das comunidades enumeradas acabará por ter que enfrentar. Mesmo nos vários espaços da panóptica colonial que permaneceram livres (fossem sob a acção dos súbditos coloniais resistentes ou das incapacidades e contradições do fanatismo colonial), é um facto que o olhar colonial e as técnicas a ele associadas deixaram um a marca indelével na consciência política indiana. Parte desta herança indelével vê-sd ná questão dos números. É a enumeração, associada a novas formas de categorização, que cria o vínculo entre o esforço orientalizante do Estado co, que via a Índia como um museu ou jardim zoológico da 'diferença e das diferenças, e o projecto de reforma que implicava a limpeza dos corpara pos nativos preguiçosos, indolentes, frágeis, femininos, fazer deles corpos viris, musculados, morais e leais que fosse possível deslocar para as subjectividades próprias do colonialismo (Arnold, 1988). Com Gandhi, temos uma revolta do corpo indiano, um redespertar do eu indiano e uma reconstituição do corpo leal no corpo rebelde e leitor de sinais do protesto nacionalista de massas (Amin, 1984; Bondurant, 1958). Mas 'o facto de Gandhi ter que morrer depois de ter visto queimar e aviltar-se mutuamente corpos definidos como «hindu» e «muçUlmano» recorda-nos que o seu êxito contr
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sidade que hoje vemos se não fosse o contacto com as técnicas do Estado-nação moderno, em especial as que têm a ver com o número. O tipo de subjectividade que os Indianos devem às contradições do colonialismo permanece, pois, obscuro e perigoso.
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TERCEIRA PARTE Locais pós-nacionais
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A vida depois do primordialismo
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. o mundo contemporâneo está cheio de exemplos de consciência étnica estreitamente ligados ao nacionalismo e à violência 1. Já não serve ver a etnia apenas como mai s um princípio de identidade de grupo, mais um dispositivo cultural para a prossecução dos interesses de grupo ou uma combinação dialéctica das duas coisas. Precisamos de explicar a etnicidade 2 que explora a sua modernidade . Talvez o indicador mais claro da etnicidade moderna seja o facto de ela reunir os grupos que, por mera difusão espacial e força numérica, são muito mais vastos do que os grupos étnicos da antropología tradicional. Tâmiles, Sérvios, Malaios, Bascos e outros, todos são grupos muito grandes; todos reivindicam categoria nacional e todos se encontram envolvidos em confrontos violentos com es; truturas estatais existentes e outros grandes agrupamentos étnicos. Esta 'o, matriz - '- grandes dimensões"aspiração nacionalista e violência - carac. teriza estas novas etnicidades. É a essa matriz que este cap ítulO é dedicado, embora eu reconheça que o termo pode ser relevante para agrupamentos mais pequenos, menos .voláteis e mais instrumentalmente.
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A caixa negra do primordialismo A tese primordialista, sob quase todas as suas formas (Apter, 1965; I Isaacs, 1975; Shils,.1957), de pouco serve para explicar as etnicidades do II século XX. Esta tese distrai-nos de certos factos importantes, especialmente os relativos às novas etnicidades da Ásia e da Europa na década de oitenta. Para descamar esta afirmação, proponho o esqueleto de uma nova abordagem dos movimentos étnicos, em particular nos seus momentos violentos e destrutivos. Sem dúxar de defender que a tese primordiaTista tem falhas profundas e vendo na etnia uma forma historicamente constituída de classificação social normalmente mal entendida e naturalizada como motor primordial da vida ·social, parto de um importante trabalho anterior de antropologia (Comaroff e Comaroff, 1992b; Barth, 1969; Geertz, 1963l O primeiro passo a dar é enunciara tese primordialista. Essencialmente, diz o seguinte: todos os sentimentos de grupo que implicam um forte .\ sentido de identidade de grupo, o sentido nós, suscitam esses laços que unem as pequenas colectividades íntimas, normalmente baseadas no pa- I rentesco ou nas suas extensões. As ideias de identidade colectiva baseadas \ na afirmação do sangue, do solo ou da língua retiram a sua força afecti va de sentimentos que cegam os grupos pequenos. Esta tese enganosamente . . simples tem certas qualidades especiais que merecem ser notadas. Costuma ser citada para explicar certos aspectos da política, nomeadamente os que mostram os grupos apostados em determinadas formas de comportamento que, nos termos do modelo, são consideradas irracionais. Temos aqui o colapso de dois pólos de irracionalidade muito diferentes. Um pólo, o que mais apela ao nosso bom-senso, é o pólo da violência de grupo, do etnocídio e do terror. O outro pólo é constituído pelas formas de portamento que parecem antimodernas, quer se trate de uma participação indolente nas eleições, de corrupção na burocracia, de resistência às modernas . -,écnicas de educação ou da recusa em acatar medidas do Estado moderno, Cbde o controlo de nascimentos ao monolinguismo. A teoria da moderI
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nização, em especiàl quando aplicada às nOvas naç6es pós-coloniais pelos politólogos americanos, é em grande medida responsável pela definição deste sintoma antimodemo de primordialismo. Nos esforços recentes para explicar a violência étnica, os dois alvos explicativos da teoria primordialista fundiram-se subtilmente, de modo que o primordialismo da resistência à modernização e o primordialismo da violência étnica se acharam vagamente identificados. A ligação de certos fundamentalismos religiosos a actos de violência política emprestou renovada credibilidade a estes dois sintomas tão diferentes de primordialismo. As bombas no World Trade Center, em Nova I()rque, despoletaram com toda a força várias formas populares de (teorização primordialista. A perspectiva primordialista sobre questões de mobiliza,ção de grupo assoCia ideias ontogenéticas e filogenéticas do desenvolvimento humano. .Ou seja, assim como a psicologia ocidental considera que o indivíduo traz no fundo de si um núcleo afectivo que raramente se transforma e pode . sempre inflamar-se, também as colectividades sociais possuiriam uma consciência colectiva cujas raízes históricas se encontram num passa·do distante e não mudam facilmente, estando potencialmente abertas à ignição por novas contingências históricas e políticas. Não é de admirar que se faça muito calmamente esta ligação da infância dos indivíduos e da imaturidade dos grupos às na9ões do mundo extra-ocidental, embora a explosão dos conflitos étnicos na Europa de Leste (e até no ocidente euro- . peu) esteja a esbater a linha que separa o Ocidente na tese . O facto de a velha linguagem da modernização ter sido substituída por um novo discurso sobre os obstáculos à sociedade civil e à democracia sustentada não deve obscurecer a persistência da teseprimordialista. A rápida procura de palavras como tribo e tribalismo na imprensa americana põe ponto final no assunto. Que tem de errado a tese primordialista? Um dos problemas é lógico e jaz enterrado nos pressupostos universalistas do primordialismo, em particular nas suas formas mais radicais, derivadas do Iluminismo. Se todas as sociedades e nações são compostas por unidades mais pequenas baseadas em vínculos primordiais e se há animosidades étnicas enterra187
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das em todas as esferas nacionais, porque é que somente algumas explodem em fúria primordialista explícita? É uma pergunta comparativa e grande parte da literatura de política comparativa das três últimas décadas tentou responder-lhe, umas vezes reportando-se a factores estruturais, outras a factores culturais. Estas respostas têm-se revelado geralmente falhadas porque é cada vez mais visível que o problema e a solução são desconfortavelmente cúmplices. Sejamos mais concretos: há cada vez mais indícios de que os modelos ocidentais de participação política, educação, mobilização e económico, calculados I, para distanciar as novas nações dos seus mais retrógrados primordialismos, tiveram precisamente o efeito oposto. São remédios que cada vez I mais parecem criar distúrbios iatrogénicos. Este argumento, que tem I todo o mérito, assumiu algumas formas moderadas (Brass, 1994; Tambiah, 1986), mas também formas radicais (Kothari, 1989c; N andy, I 1989a). Mas, por mais que queiramos culpar o contexto político das falhas do que já se chamou desenvolvimento político (isto é, maturação longe dos perigos do pr1!TIordialismo), há demasiados indícios de que é difícil desagregar a cura-da doença. O melhor exemplo disso talvez seja a maneira como as forças armadas em todo o Terceiro Mundo são brutais, corruptas, incivis e em constante expansão. Para os teóricos afectos (ainda que implicitamente) à tese primordialista, uma maneira de sair deste embaraço é a teoria do período-de-dureza (defendida por vários economistas americanos durante a primeira vaga de liberalização da antiga União Soviética). É também evidente no discurso que Václav HaveI pronunciou no fim do primeiro ano da sua presidência da então Checoslováquia, em que se sugeria que as sociedades da Europa de Leste terão que passar por um doloroso período de desintoxicação que I pode trazer a recorrência das febres primordialistas. Esta afirmação com- ' i porta curiosas afinidades com as posições marxistas sobre a ditadura do proletariado, o período anterior à dissolução do Estado, passado o qual a humanidade socialista passa a governar-se a si própria. A tese compara..: encontra dificuldades, porque as explosões étnicas caractoda uma série de comunidades, por exemplo, Índia, Checos188
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Indonésia, França, Estados Unidos, Egipto, África do Sul. Que \) teona comparativa nos mostrará o que há de comum a tão diferentes casos O • de turbulênCia étnica? () Uma variante da resposta comparativista é histórica e adequa-se ao esO forço desenvolvimentista da causa primordialista. Esta versão da tese diz O que os países que tiveram tempo para processar o projecto ilumin'ista' de O' política - baseado na' ideia do indivíduo instruído, pós-étnICO, preVIdente, a viver em função do mercado livre .e participando numa genuína sociedade civil- são realmente capazes de prevenir os males do primordialismo. São, par excellance, as sociedades que desbravaram mais profundamente e durarite mais tempo diferentes ,versões do modelo da soU ciedade civil, as sociedades da Europa Ocidental (sociedades da OTAN anteriores a 1989) e os Estados Unidos. Membros potenciais deste Clube ' O são as sociedades agressivamente pró-capitalistas da Ásia e da América O Latina, como o Japão, Singapura, Taiwan, Coreia, Chile, Argentina, B'rasil O e umas quaI1tas mais. Claro que uma mirada rápida a este grupo nas duas O últimas décadas do século sugere que a experiência dificilmente saiu O ilesa do envolvimento activo dos Estados Unidos em várias formas de subsídio económico, político e ideológico a essas sociedádes, de modo q.ue as suas experiências de superação do primordialismo não podem conSIderar-se um sucesso da vitalidade endógena do programa iluminista. Seja como for, em muitas destas sociedades parece haver a necessidade a famosa e dis- . de uma forte dose de 'autoritarismo estatal tinção de Jeanne Kirkp,atrick entre Estados autoritários e Estados totalitários). se não for possível instruir aS sociedades para saírem do primordlahsmo, poder-se-á sempre tirar-lho à força. Neste ponto, o caminho para a democracia fica pejado de corpos de democratas. Não podemos' "- apresentar os Estados duros para mostruário do caminho que .vai do pri" mofdialismo paia a modernidade. " " , ( Mesmo as sociedades que atravessaram os mais longos períodos de harmonia étnica, ou, por outras palavras, que conseguiram o plu.. ralismo cultural, parece que, de uma maneira ou de outra, abriram pelas costuras: considere-se a "Índia, a ex-Uni ão Soviética, o Sri Lanka, o Reino ( r"
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conflito étnico'-pois a tese assenta basicamente em considerar infantis certas populações e comunidades e baseia-se.implicitamente numa e.5Pécie de teoria bacteriana do conflito étnico nas democracias ocidentais. Ou seja, considera-se que estas democracias são fundamentalmente adultas , . . mas se. encontram agora em risco porque acolheram popula
Unido e o Egipto. São sociedades que diferem em muitos aspectos. Cada uma delas tem gravadas linhas de clivagem étnica, mas todas se encontram hoje fracturadas, não apenas ao longo destas linhas previsíveis mas também ao longo de outras. Em Inglaterra, os esforços para promover o multiculturalismo e melhorar as chamadas relações de raça falharam claramente, em parte no contexto do que hoje parece uma caricatura de uma economia do Terceiro Mundo. Na Índia, a divisão hindu-muçulmana é acrora um dos vários movimentos étnicos e separatistas, atravessado pelos r:aiores conflitos de casta jamais vistos na história do sub continente e que foram desencadeados pelo Relatório da Comissão Mandai nos primeiros anos da década de 1990. No sii Lanka, (Y.) conflitos entre Tâmiles e Cin- I vão produúndo uma colheita crescente de outras linhas de gem entre porta-vozes cingaleses e tâmiles que parecem gerar novos pnmordialismos (mouriscos, crioulos, budistas e outros). No momento em que termino este livro, monges budistas de todo o Sri Lanka desfilam pelas ruas de Colombo em protesto contra os novos e ousados planos de des. centralização do novo presidente do país, Chandrika Kumaratunga. . . De tudo isto restam umas quantas democracias capitalistas europeias (como a Alemanha e a França), os Estados Unidos e o Japão como Estados que parecem não estar ameaçados por conflitos étnicos .. Contudo, mesmo nestes casos, as perspectivas não são claras: veja-se o problema dos co- . I reanos no Japão, dos afro-americanos e hispano-americanos nos Estados . Unidos, dos iranianos, turcos e outras populações de trabalhadores convidados em França e na Alemanha. Isto sugere que mesmo as mais estanques democracias capitálistas não estão eternamente a salvo do que pode con siderar-se o vírus primordialista. Movimentos racistas, fascistas e fun- . damcntaJistas de direita na Europa e nos Estados Unidos por certo se :lÍlguram mai s primordiais nos seus comportamentos do que as minorias raciais que abertamente abominam. De qualquer modo, os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão e a França diferem enormemente na sua história de Estados-nacões modernos e no seu empenho pela pluralidade política como princípio fundamental da participação política. Estes factos tornam cruci al que se identifiquem os limites da abordagem primordialista ao . 190
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A política do afecto
Subjacentes à maioria dos modelos primordialistas não estão os pressupostos que enunciei atrás, mas também uma teoria do afecto que temos hoje várias exCelentes razões para pôr em causa. O primeiro con-
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junto de razões, que já expus e não irei aqui desenvolver tem sido identificado por muitos críticos marxistas e naclOnallstas do desenvolvimento capitalista. Consiste em considerar que o projecto de de. senvolvimento tal como foi imposto .ao mundo extra-ocidental tem normalmente suscitado a criação de novas elites e novos fossos entre castas e classes que poderiam não ter surgido, à parte os vários projectos neo- I colonialistas nos novos Estados. A modernização é tida por responsável das várias fricçõe s nas expectativas emergentes e das contradições básicas entre participação económica e política. Estas contradições alimentam a frustração das massas, que é traduzida por de toda subsa espécie em discurso e acção etniciZados. De _u ma manelra crevo este argumento, embora pense que não tem a finura suficiente para eXplicar as conjunturas específicas que fazem eclod.ir a em determinadas sociedades. Além de que estas teonas nao estao mtelramente livres da ideia de que há sempre um substrato real de afecto primordialista que é um rastilho perpetuamente à espera de ser explorado pe-los interesses políticos específicos num dado momento da de·l ·
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qualquer Estado-nação . . . . . I O segundo conjunto de razões para duvidar da perspectiva lista sobre o papel do afectona política vem de um vasto corpo de tura derivado da teoria política continental e de algumas das suas vanantes americanas nas duas últimas décadas: Trata-se da literatura que versa não , o funcionamento mecânico do homúnculo primordial que dita a polítiça da teoria sode grupo, especialmente no Terceiro Mundo, mas a cial e política que salienta o papel da imaginação em polítlca_ Esta tendência, larQ:amente associada à obra de Benedict Anderson (1983), tem as suas também na venerável tradição das obras que destacam a autonomia da ideolooia na vida política (remontando a outra das tendências do pensamento ;roteiformede Max Weber por oposição às . suas ideias evolucionistas, primordialistasY Está também associada ao trabalho. de Cornelius Castoriadis sobre o imaginário (1987), de Claude Lefort sobre ideologia (1986), de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe sobre (1985)_ Estes trabalhos, por sua vez, vão beber às obras de AntonIo · 192
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Gramsci, Raymond Williams e outros que se interessaram pela transformação das ideologias em senso prático, e Destaquei '0 valor desta perspectiva e a minha confiança nela no capítulo 1. Salientando a negociação e a contestação em todas as organizações sociais complexas, estes pensadores (bem como os seus pares da Escola de Birmingham, em Inglaterra, e a escola subalterna de historiadores na Índia) mostraram-nos uma nova via para a consciência subalterna. Nesta perspectiva, enriquecida por trabalhos recentes sobre as estratégias do quotidiano (De Certeau, 1984), demonstra-se que a consciência popular não é tanto um sintoma reflexo de ideologias da identidade enterradas e semiconscientes, como uma estratégia conscientemente elaborada de ironia e de sátira capaz de criticar a ordem estabelecida sem deixar de ensaiar estilos de política identitária (Hebdige, .1979). Ao mesmo tempo, a obra algo diferente de James Scott (1985) sobre as «armas dos fracos», que vai beber à obra anterior de economia: moral de E. P. Thom·psori e outros, começou a mostrar que essas ordens eagru- . pamentos sociais, aparentemente vítimas · passivas de forças maiores de controlo e dominação, foram não obstante capazes de formas subtis de resistência e de «saída» (nos termos de Albert Hirschrrian [1970]) que aparentavam ser, de todo o modo, primordialistas. Comum a muitos destes trabalhos, que divergem noutros aspectos, é a ideia de que as· do futuro desempenham uni papel muito maior do que as ideias .do passado nas acniais políticas de grupo, embora as projecções primordialistas para o passado não sejam irrelevantes para a política contemporânea da . imaginação. Reconhecendo que imaginação eacção são muito mais vitais para a mobilização de grupo do que até agora imaginávamos, mais facilmente ..... podemos interpor a invenção tradição crítica de Eric Hobsbawm e Te- . . rence Ranger (1983), que meteu mais um prego no caixão da perspectiva primordialista. Embora tenha havido críticas sérias a esta influente tese (sobretudo à tendência para tomar certas tradições por «autênticas» e outras por «inventadas»), ela alertou-nos para a ideia de que , entre o panorama de discursos sobre tradi ção e as sensibilid ades e motivações dos ac, 193
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tores está um discurso histórico que não sai das profundezas do psiquismo individual ou das brumas .venerandas da tradição, mas sim do jogo específico, historicamente situado, das opiniões pública e de grupo acerca do passado. Um contributo importante deste trabalho é apontar o facto de muitos dos grupos nacionais e políticos no mundo contemporâneo terem a ver não com o mecanismo do sentimento primordial, mas com o que venho chamando «a obra da imaginação». Voltarei adiante ao tema da imaginação. . A grande ironia de muito deste trabalho é que mostra, sem sombra de dúvida, que muitas' vezes a criação de sentimentos primordiais, longe de constitu.ir um obstáculo ao Estado modernizador, está bem perto do âmago de um projecto de Estado-nação moderno. Assim, muitos fundamentalismos raciais, religiosos e culturais são deliberadamente fomentados por vários Estados-nações, ou seus partidos, num esforço para suprimir dissenções internas, para formar súbditos homogéneos do Estado e para maximizar a vigilância e o controlo das diversas populações sob a sua alçada. Neste contexto, os Estados-nações modernos inspirarn-se muitas vezes nos aparelhos c1assificativos e disciplinares que herdaram dos dirigente s coloniais e que, no contexto pós-colonial, têm efeitos substanci almente inrl3.matórios. Um exemplo excelente disto mesmo é a política do número na Índia colonial e a política de casta na recente controvérsia sobre o Relató riO da Comissão MandaI na Índia (ver capo 6). Do mesmo modo, trabalhos recentes sobre política cultural no Japão (Kelly, 1990; Ivy, 1995) mostram que o Estado e os grandes interesses comerciais muito fizeram por construir e potenciar um discurso de niponidade e de tradição (jurusaro ), num es forço para explorar a ideia de um Japão repositório de uma forma única, hombgénea, de diferença cultural. Em Inglaterra, a indústria sucessória tem trabalhado no sentido de criar uma paisagem de herança, ' de conservação, dos monumentos e do espaço histórico inglês à medida ' que o papel britânico de potência mundial se desvanecia consideravelmente . Este discurso da britanidade é apenas a fase mais recente do «colonialismo interno» (Hechter, 1975) que serviu para criar uma ideia hegemónic::l de britanidade. Esta ideia, ainda reinante, toma o discurso do 194
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multiculturalismo em Inglaterra estranhamente oco e sustenta os implícitos e explícitos que Margaret Thatcher pôde encenar nas Maldivas, John Major na Guerra do Golfo, bem como os grupos de ódio faséista e racista em Inglaterra. . Foi este tipo de rnobilização que caracterizei no capítulo 1 como culturalista, isto é, que envolve etnicidades mobilizadas por, ou em relação com, práticas do Estado-nação moderno. Culturalismo sugere 'algo mais que etnicidade ou cultura, termos que partilham um mesmo sentido do natural, do inconsciente 'e do tácito na identidade de grupo. Mas quandó se produzem num campo de classificação, de mediatização de massas, de mobilização e de legitimidade dominado pela política ao nívef do Estado-nação, as identidades adaptam as diferenças culturais como seu objecto consciente. Estes movimentos podem assu.[O.Ír várias forrÍlas: pódem di- . rigir-se prioritariamente para a expressão, autonomia e esforços de sobrevivência cultural ou podem ter forma principalmente negativa, caracterizada em grande medida pelo ódio, pelo racismo e pelo desejo de dominar ou eliminar outros grupos. É uma distinção fundamental , porque os movimentos culturalistas pela autonomia e pela dignidade que implicam grupos muito tempo dominados (como os afro-americanos nos Estados Unidos e os dalitas na Índia) usam muitas vezes as mesmas cores da paleta daqueles a que se opõem, pois são de certo modo racistas ou antidemocráticos . . Embora a etnicidade moderna seja, neste sentido, e esteja intimamente ligada às práticas do Estado-nação, vale também a pena notar que um importante grupo de movimentos culturalistas é hoje transnacional, dado que muitas etnias nacionais, por causa das migrações internacionais, operam fora dos confins de um só Estado-nação. Estes movimentos culturalistas transnacionais estão intimamente ligados ao que chamo . '. esferas públicas da diáspora. O último e talvez menos óbvio dos recentes que torna difícil defender a tese primordialista aplicada à política étnica é a noção, muito desenvolvida na' passada pela antropologia cultural, de que as emoções não são materiais pré-culturais em bruto qúe constituem 195
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um substrato universal, trans-social. Embora não seja possível, dentro, dOI âmbito deste capítulo, definir os contornos desta posição, o seu .ângulo principal é que o afecto é, em muitos e importantes aspectos, aprendido: o que entristece ou alegra, como exprimi-lo em diferentes contextos e se a expressão dos afectos é ou não um simples escoamento de sentimentos, Íntimos (muitas vezes tidos por universais), são tudo questõe's que foram: , I ricamente problematizadas (Lutze Abu-Lughod, 1990). Este corpo de trabalhos foi longe na demonstração de qüe as emoções são culturalment< construídas e socialmente situadas e que os aspectos universais doafecto , não,nos dizem nada, de muito revelador. ' Este labor assenta muito bem numa outra tendência que opera na re- ' cente antropologia cultural (Asad, 1983; Van der Veer, 1989) e que mostra que várias formas de experiência sensorial e de técnica corporal emergem em regimes de conhecimento e poder historicamente constituídos. Esta tendência, que também foi influenciada pelas opi- , niões de Michel Foucault sobre as relações historicamente constituídas entre conhecimento e poder, baseia-se na obra clássica de Marcel Mauss i (1973) sobre as técnicas do corpo e nas sugestões de Pierre Bourdieu 'I (1977) e outros sobre a experiência corporizada e sua emergência dentro I de estrutur:lS culturais específicas de hábito e experiência. O que este , trab:llho propõe é que, longe de representarem a projecção dos estados e experiências corporais sobre grandes telas de acção e representação, as técnicas corporais e as disposições afectivas representam precisamente o oposto, a saber, a inscrição nos hábitos e disciplinas físicos do autocontrolo e práticas de disciplina de grupo, muitas vezes ligadas ao Estado e seus interesses. A análise do críquete indiano no capítulo 5 cabe directamente nesta tradição. Por outro lado, este trabalho recebe apoio não apenas das perspectivas de Foucault e outros sobre o processo histórico através do qual o corpo é transformado, apropriado e mobilizado, mas também da obra de Norbert Elias e seus discípulos, que mostra que certos e poderosos sentidos do comportamento físico e da civilidade são produto directo das ideias corteses e burguesas de dignidade e distinção. Esta orientação geral não é de 196
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todo isenta de problemas: a questão de saber como os esquemas culturais O e políticos inserem na experiência física, motivando assim fortemente U "": os sujeitos, está ainda em estudo. O que parece claro é que é pouco 'compensador separar o mundo da emoção e do afecto do mundo da linguagem O e da representação de si e estes, pelo contrário, reagem notoriamente O a macroconcepções de civilidade e dignidade enquanto construídas por in- O teresses e ideólogos que exercem o poder sobre ordens sociais inteiras. O A cadeia causal, se não fica invertida, fica pelo menos problematizada. Em vez de seguir de sentimentos íntimos para demonstrações externas que Y se agregam um nível acima em formas de acção e representaçã
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psíquica e corporalizada, como da intuição de que os sentimentos de violência étnica (como quaisquer outros sentimentos) só fazem sentido . dentro de grandes formações de ideologia, imaginação e disciplina. Parece 'uma missão impossível, mas na secção seguinte sugiro que o tropo da implosão é uma tentativa de sair da ratoeira primordialista.
Implosões étnicas Já que a perspectiva primordialista é tantas vezes enganadora, será importante encontrar uma perspectiva igualmente geral que nos permita ir para além dela. A alternativa é um modelo de implosão étnica, um trapo delibe. radamente proposto contra as conotações de explosão, tantas vezes associada à posição primordialista. Tanto quanto sei, a ideia de implosão só recentemente está a ser usada no contexto dos movimentos sociais, um tanto no contexto da violência de Estado e das formações de refugiados nos Estados fracos (Zolberg et al., 1989? pp. 256-257). Ligando ide ias de James Scott e AlbertHirschman, Aristide Zolberg e colegas afirmam que os camponeses que tentam abrigar-se das acções predatórias do . Estado podem ver-se encurralados pelo Estado e assim forçados à violência: «Deste modo, a retirada do Estado pode desencadear uma violenta implosão, uma divisão entre governantes e governados que dá origem a grupos de solidariedade primária competindo entre si numa busca desesperada de segurança» (p. 257). Este uso críptico da imagem da implosão é sugestivo e relacion::l-se com a utilização mais deliberada que farei do termo, Antes de passar a especificar com precisão como é que o modelo da implosão proporciona uma abordagem mais l,Ítil dos confrontos étnicos do que o modelo primordialista, tenho que montar mais amplamente o cenário para esta abordagem. No geral, aceito a ideia de que o mundo em que hoje vivemos é global e transnacional num sentido não previsto pelos modelos anteriores de estudo da política internacional, como já'esclareci n::! primeira parte deste livro. Não só estou convencido das virtudes do neo-realismo de Robert Keohane e outros e da sua crítica enér193
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gica das anteriores posições realistas centradas no Estado (Keohane, 1986), como também o estou de que mesmo as posições neo'-realistas não vão tão longe que possam abranger os muitos processos, eventos e operar quase sempre fora das interacções estraestruturas que tégicas dos.Estados-nações. Por isso simpatizo com a abordagem arejada de James Rosenau (1990), que apela a uma visão inteiramente' nova da política global e destaca 'a imagem da turbulência, em especial a que foi · desenvolvida por físicos e matemáticos. Com base na ideia de bifurcação e nas ideias correlatas de complexidade, caos e nos 'sistemas complexos, Rosehau defende que a dinâmica da políticq. mundial contemporânea só se explica se virmos que há na moderna política mUI1dial dois sistemas em jogo bifurcado: o sistema multicêntrico e o sistema estatocêntrico. A grande mensagem de Rosenau é que estrutura e processo na política actual são artefactos da interacção turbulenta destes doi s sistemas bifurcados, cada um dos quais afecta o outro de muitas maneiras, a muitos níveis e de formas que tornam os acontecimentos extremamente difíceis de prever. Paraexplicar as estruturas eventualistas no mundo multicêntrico de que fala, Rosenau sugere que substituamos a ideia de evento pela imagem da «cascata», sequências de acção no mundo mul- . ticêntrico que «criam aceleração, paragem, inversão de marcha .e nova aceleração quando as suas repercussões alastram a todo o sistema. e aos subsistemas» (p. 299), A lista de cascatas que Rosenau identifica é uma componente crucial do que poderíamos chamar estrutura das exterioridades, em parte responsáveis pela forma e data de determinadas conflagrações étnicas, Como nem todos os micro-eventos ·associados à vida quotidiana em localidades etnicamente sensíveis levam a violência ét\ _ nica, o conceito de cascata torna:-se útil para compreendermos porque é ' que certo acto de profanação religiosa, certo atentado terrorista, certo discúrso inflamatório acende a violência étnica em larga escala. Aideia de turbulência global como modelo, da política mundial parece também a urna série de outros modelos, como a ideia de Lash e Urry de «capitalismo desorg anizado» (Lash e Urry, 1987), os recentes ens aios 199
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de Robertsoi1 e Arnasón sobre glopalização (Robertson, 1990; Arnason, 1990) e os meus próprios esforços para re-situar a política da diferença cultural num quadro de disjurituras dentro da economia cultural global (ver capo 2). Mas parece longa a jornada, desde as ideias de turbulência global e de· da violência étnica a à bruimacrens de cascata e fluxo até à actualidade, c " talidade humana concreta. Para encurtar essa distância, vou buscar dois termos recentemente propostos por Tambiah (1990) num esforço para identificar a dinâmica do comportamento das multidões no contexto da violência étnica: focalização e reavaliação. Tambiah desenvolveu estes termos no contexto de uma leitura atenta dos motins de Carachi, em 1985, entre pataries e mohajires (Biaris), sendo estes últimos paquistaneses emigrados oriundos da Índia Oriental: Por focalização entendo o processo de progressivo desnudamento de incidentes e disputas locais na sua especificidade de contexto, 'agregando-os e assim estreitan. do a sua riqueza concreta. Reavaliação refere-se ao processo paralelo de assimilar . especificidades a uma ou interesse mais lato, colectivci, mais resistente e por- · tanto menos preso ao contexto. Os processos de focalização e reavaliação contribuem portanto para uma progressiva polarização e dicotomização das questões e dos militantes, de forma que os actos extremos de violência de grupos e bandos se tornam em pouco tempo manifestações fechadas, encarnações e reencarnações de visões alegadamente irresolúveis entre patanes e biaris, siques e hindus, cingaleses e tâmiles ou malaios ecnineses (Tambiah, 1990, p, 750).
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Os processos de focalização e reavaliação que Tambiah identifica são ainda mais reveladores quando colocados dentro do que podemos considerar as cascatas de eventos (no sentido de Rosenau) que ligavam Carachi e os seus arrabaldes a desenvolvimentOs da política regional e nacional no Paquistão e na política mundial tal como os Paquistaneses a entendiam; Entre essas cascatas inclui-se a vitória de Benazir Bhutto nas eleições para primeiro-ministro, a leitura desta vitória em Carachi e noutros lugares como uma vitória do Sinde sobre o Punjab em política regional, a projecção, por vários partidos pró-Zia, da fraqueza de Bhutto como mulher e
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descendente corrupta do seu pai e a emergência paralela doMQM (Mo. hajir Qaumi Movement) como principal partido da formação daidentidade mohajir. Estas leituras, por sU,a vez, puderam inflamar a força social e económica patane em Carachi e alimentar uma hostilidade crescente contra o partido de Bhutto nà cidade, especialmente entre aqueles que, como os Patanes, não dispunham de uma voz política forte na política regional do Sinde. Assim, a delicada e mortal interpretação Ce interpenetração) de eventos nas ruas de Carachi, que se desenrolou num drama rapidamente lido em termos empolados, poderia não ter tido as várias feições que assumiu se não 'fossem os efeitos implosivos de sequências de acção mais vastas na política de rua de Carachi. Claro que estes mesmos têm reverberações para fora e para cima, através de outras cascatas de acon;. . tecimentos que criaram a sensação de Bhutt
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Muito se poderia dizer sobre a história de violência em Carachi nessa década com relevância para as teses gerais deste livro e os interesses específicos deste capítulo .. Como cidade, Carachi é um exemplo tremendamente deprimente do tipo de conflito urbano de que falo no capítulo 9, que produz localidade em condições de terror e luta armada quotidianas. Desde os meados dos anos de 1980 o MQM, que começou por ser fruto do sentimento de ofensa partilhado pelos errúgrantes vindos do Paquistão para a Índia' Oriental, tem estado profundamente dividido e a sua direcção funciona agora no exílio, em Inglaterra. É portanto um excelente exemplo de um movimento de diáspora, transnacional e anti-Estado que não exige autonomia nacional. A própria Benazir Bhutto usou da linguagem do terrorismo e dajihad contra o MQM, esfumando assim a fronteira entre a políticasubcontinental (o MQM é muitas vezes considerado liaado , . . b . à India,terra natal dos Mohajires) ea política nacional do Paquistão. Todos os bdos do conflito - o Estado, as diferentes facções do MQM e o partido no poder, o Partid.o Popular Paquistanês - passaram do uso , das pequenas armas para o de lança-morteiros, tanques e ninhos de metralhadoras. Não há indicação mais clara da implosão da política global e nacional no mundo urbano de Carachi do que esta citação de um senhor da guerra local, dirigente de uma facção dissidente do MQM no bairro de Landhi: «Eles que façam uma província ou um país separado, ou o que p. 40). quiserem. Esta zona continuará a ser o meu Estado» (Hanif, A guerra urbana de Carachi está ligada à política regional, estatal, nacional e global através do tráfico de droga, da política crirrúnosa, dos esforços estatais para enumerar as grandes populações étnicas (ver capo 6) e do meio milhão de ' emigrantes que todos os anos chegam a esta cidade já sobrepovoada por doze milhões de almas . . Mas este não é o lugar para um estudo pormenorizado da violência étnica em Carachi. O principal é que a focalização e a reavaliação vão buscar a sua energia aos macro-eventos e processos (cascatas) que ligam a política global à rrúcropolítica das ruas e dos bairros. Sincronicamente,.estas fornec.e m o material os de focalização e reavalJaçao. Ou seja, fornecem matenal a lmagmaçao' de agentes a v fui o s,
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níveis para a leitura de significados gerais em eventos locais e contingentes, assim como fornecem o álibi para a inscrição em manipulações étnicas e conspirações, de enredos de longa data tirados de acontecimentos, de rua aparentemente triviais. Mas esta ligação tem também uma dimensão diacrónica. Afinal, a perspectiva primordialista era a mais forte (embora a mais errónea) para explicar a política do afecto, logo, a violenta intensidade dos confrontos étnicos. Uma nova perspectiva do tipo que aqui propomos há-de proporcionar uma etiologia alternativa do que Raymond Williams chamaria «esétnica. Os macro-'eventos , truturado sentimento» na violência . . . ". ' ou cascatas , penetram em estruturas altamente localizadas de sentimentos p,or serem . arrastados para o diséurso e para as narrativas da localidade em casuais e comentários à boca pequena do tipo que muitas vezes acompanha a leitura 'colectiva de jornais em muitos b'airros e em muitas soleiras de porta do mundo. Ao mesmo tempo, as narrativas e enredos locais em cujos termos a vida corrente e os seus conflitos são lidos e interpretados são atravessadas por um subtexto de possibilidades interpretativas que é produto directo do trabalho de imaginar localmente eventos maiores,regionais, nacionais e globais. O problema destas leituras locais é que são muitas vezes silenciosas e literalmente inobserváveis, excepto nos mínimos comentários de passagem sobre acontecimentos mundiais ou nacionais que ocorrem nas conversas de casas de chá, cinemas e locais urbanos de reunião. Integram o incessante murmúrio do discurso político urbano e as suas cadências constantes e monótonas. Mas as pessoas e os grupos a este nível muito local geram essas estruturas de sentimento que, com o tempo, fornecem o campo discursivo de que se apoderam os rumores eXplosivos, os dramas e os , discursos da revolta . ""'\. Esta perspectiva não requer um pressupostoprimordialista para explicar as estruturas locais de seÍltimentos que conferem aos motins étnicos e à acção colectiva a sua força brutal e inexplicável. Estes sentimentos locais são produto de interacções, a longo prazo, de cascatas dos acontecimentos locais e globais que erguem estruturas de sentimentos sociaIs e . 203
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históricos e que fazem parte do ambiente em que, gradualmente, torna possível encarar um vizinho como inimigo, um traIdor e:trariaeiro e um comerciante local como explorador capitalIsta sem escruvez activada esta imiologia de imagens, o processo de que fala Tambiah avança e podemos ter a certeza de que haverá novos episódios recordação, interpretação e sofrimento depois de aplacada a revolta, abrirão de novo o caminho para novas estruturas locais de sentimentos. Mas não se pode negar que conceitos como cascata, reavaliação, focalização e implosão parecem demasiado abstractos, demasiado mecanicistas, demasiado gerais para captarem a contingência bruta, a violência crua, a sede electrizante de sangue, o instinto para a degradação que parecem acompanhar o terror étnico em lugares como o Ruanda e a Bósnia, . Carachi e Colombo. Quando a violação, a tortura, o canibalismo e o uso brutal de sangue, fezes e partes do corpo entram para o cenário da limpeza étnica, defrontamo-nos com os limites não apenas da ciência social mas da própria linguagem. Será possível dizer algo de útil sobre este género de violência no mundo globalizado que este livro descreve? Avento uma hipótese contra a minha própria paralisia interpretativa quando posto perante a horrenda violência de grupo das guerras étnicas .. 1 actuais 4 . O pior tipo de violência nestas guerras parece ter algo a ver com a relação distorcida entre as relações quotidianas cara a cara e as identidades em larga escala produzidas pelos Estados-n'ações modernos e complicadas pelas grandes diásporas. Mais exactamente, o que há de mais horrível nas violações, degradação, tortura e morticínio das novas guerras étnicas é que ocorrem, em muitos casos, entre sujeitos que se conheciam, mera intimidade ou julgavam conhecer-se. O nosso horror é suscitado que frequentemente enquadra a nova violência étnica. E horror perante o vizinho que se tornou assassino/torcionário/violador. Que tem esta intimi.dade a ver com os meios de comunicação, a política estatal e os macro-eventos globais? A raiva dos que matam, mutilam e violam parece ligada a uma profunda sensação de traição que aponta para as esta traição 204
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está ligada à relação entre aparência e realidade. Quando o vizinho comerciante revela ser, no seu coração, um croata, quando o mestre-.escola afinal é simpatizante dos Rutus, quando se descobre que o melhor amigo afinal é muçulmano e não sérvio, quando o vizinho do meu tio até é um O latifundiário odiado, o que daí decorre parece ser uma sensação de pro- C) fundo embuste categorial, isto é, a mentira sobre a identidade de grupo () tal como a definem os Estados, os censos, os meios de comunicação e O outras grandes forças. No fundo, esta sensação de traição gira em torno da identidade trocada O num mundo em que a aposta associada a estas identidades . Ü alta. A raiva que essa traição parece inspirar pode, evidentemente, estenO der-se a multidões de pessoas que podem não ter sido íntimas e as.sim se ,. O vai tornando cada vez mais mecânica e impessoal, mas eu diria que se manO tém animada por um sentimento de violação da ideia de ter conhecido o Outro e de raiva contra quem ele revela realmente ser. A sensação de mentira, ü ou de traição, logo, de confiança violada, raiva e ódio, tem tudo a ver com '0 um mundo em que as identidades em larga escala forçosamente" entram na O imaginação local e se tornam locutoras dominantes nos trâmites da vida cor'0 rente. A literatura primária mais próxima dos mais brutais episódios da violência étnica contemporânea é emitida na língua do impostor, do agente secreto, da pessoa falsa. Este discurso traz consigo a incerteza quanto às categorias e à intimidade entre as pessoas - característica fundamental da ( , nova violência. I... . Rá muitos exemplos de violência política contemporânea que confirmam este ponto de vista. Tem a sua genealogia nos casos famosos da mar( ... cação dos judeus alemães .como impostores pelos nazis (Anderson. 1983, p. 149). Se examinarmos os .dados dos momentos reais de maior brutali.., " dade nos episódios recentes de violência. de grupo (Das, 1995; Malkki, ( " 1995; Sutton, 1995), vemos 'que a revelação das odiadas e odiosas identidades oficiais para além das máscaras físicas das pessoas reais (e conhecidas) parece crucial para a perpetração das piores formas de mutilação e maus tratos. Inversamente, a exposição dos nomes, histórias e memórias individuais de pessoas específicas por trás dos cadáveres das 'vítimas de
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categorização adversa é usada para provocar os mais fortes sentimentos. Estes processos recíprocos - expor impostores e restituir as pessoas reais através de comemorações personalizadas - parecem estar no cerne da violência física das batalhas étnicas actuais . Recordar e esquecer é vital para o naCionalismo (Anderson, 1983), mas .ainda mais vital para a sua brutal política corporalizada. Esta visão da peculiar e espantosa brutalidade da guerra étnica e racial não exclui outros factores que normalmente figuram nas teorias da violência étnica: frustração económica, manipulação pelos políticos, receios de mudança religiosa, .aspirações a autodeterminação étnica, bodes expiatórios para tempos de crise e similares. Todos estes factores por certo explicam a dinâmica geral do conflito étnico em muitos cenários sociais e históricos. Mas parecem incapazes de explicar a pura brutalidade do etnocídio e da guerra étnica modernos e o seu sentido contingencial de fuga. Esta hipótese sobre violência relacionada com mentira, intimidade e identidade pretende explicar a transformação de pessoas comuns em assassinos, torCionários e violadores e a representação de amigos, vizinhos e colegas de trabalho como objectos do mais fundo ódio e rai va. Se a hipótese da mentira é plausível; ela tem muito a ver com as identidades em larga escala criadas, transformadas e reificadas pelos modernos aparelhos de Estado (muitas vezes num campo transnacional de diáspora) e difundidas pelos meios de comunicação. Quando estas identidades são convincentemente retratadas como lealdades primárias (em boa verdade primordiais) por políticos, chefes religiosos e meios de comunicação, então a gente comum toma o gosto por agir corno se apenas este tipo de identidade interessasse e estivessem rodeados por um' mundo de fingidores. Estas representações da identidade (e da identificação) parecem ainda mais plausíveis num mundo de migrantes e meios de comunicação de maSS:lS capaz de subverter as certezas de todos os dias que vêm do conhecimento pessoal do Outro étnicoS, Nem todos os movimentos culturalistas levam à violência entre grupos - na medida em que envolve identidades moétnicos, mas o bilizadas ao Estado-nação- está sujeito às exterioridades da mi206
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gração e dos meios de comunicação' de massas . Ess?-s exterioridades não aumentam necessariamente o potencial de violência. Excepto 'por mais urna contradição que aJecta todos os. Estados-nações em princípió e a maior parte deles na prática. Trata-se da contradição entre a ideia de que cada Estado-nação pode verdadeiramente representar apenas urna etnia e, a realidade que os Estados-nações historicamente implicam, que é · uma amálgama de muitas identidades. Mesmo quando as identidades de lonaa data foram esquecidas ou enterradas, a combinação entre migrações e diatização de massas assegura a sua reconstrução numa nova escala e em níveis mais alargados. Já agora, é por isso que a política 'de recordar e esquecer (.logo, da história e da historiografia) .é tão importante pará os conflitos étnicos ligados ao nacionalismo (Van der Veer, 1994). Os movimentos culturalistas entre minorias e grupos historicamente dominados tendem a entrar num diálogo consciente com das maiorias numéricas. Quando competem por um bocado da nação (e dos recursos do Estado), estes culturalismos entram 'inevitavelmente no espaço da violência potencial. . . . "' . Esta proposta difere fundament'llmente da perspectiva primordiaIlsta. Não vê o substrato de sentimento étnico como o alicerce da explicação das explosões étnicas. Pelo contrário, sugere que as estruturas do sentimento étnico são elas próprias produtos complexos da imaginação local (mediatizando uma variedade fascinante de cascatas à medida que se deslocam pela localidade). Os episódios de violência étnica podem portanto ser considerados implosivos em dois sentidos: no sentido estrutural representando a retracção para políticas locais de pressão e agitação arenas políticas cada vez maiores; e no sentido hjstórico, em que a Ímaginação política local está cada vez mais sujeita ao fluxo de grandes'acon; tecimentos (cascatas) ao longo do tempo, acontecimentos que influenciam . interpretação das ocorrênCias mundanas e vão criando gradualmente um ' . sentimentos podem parepertório de sentimentos étnicos adversos. recer primordiais à primeira vista, mas são por certo produto de processos de acção, comunicação, interpretação e comentário de há muito tempo. Uma vez ocorridos estes eventos, é muito mais fácil ver as suas dimensões'
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explosivas à ' medida que 'se expandem, inflamando outros sectores e arrastando outras questões para o vórtice da fúria étnica. Mas esta dimensão explosiva, potenciada e potericiadora dos processos de focalização e reavaliação, não deve ocultar-nos as suas condições iniciais. Estas condições explicam-se melhor nos termos da ideia de.implosão proposta neste capítulo do que pelas muitas versões da perspectiva primordialista que satisfazem a nossa sede de explicações definitivas , em especial do aparentemente irracional.
to familiar ao controlo sanitário e do controlo da imigração à política da língua, ligaram práticas corporais concretas (fala, higiene, movimento, saúde) a identidades de grupo em grande escala, aumentando assim o alcance potencial das experiências corporalizadas de afinidade de grupo. Finalmente, tanto nos quadros estatais democráticos como nos não democráticos, a linguagem dos direitos e garantias, na generalidade, ficou · ligada inextricavelmente a estas identidade,s em larga' escala. Os projectos étnicos actuais definem-se cada vez mais por estas três característica? da cultura do Est
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Quero sublinhar, ainda que cripticamente, o que há de moderno (na minha acepção, de culturalista) nestes movimentos étnicos contemporâneos. Os grandes movimentos étnicos actuais, muitas vezes violentos, requerem uma nova compreensão das relações entre história e acção, afecto e política, factores de largo espectro e factores locais. , Venho sugerindo ao longo deste capítulo que uma maneira de satisfazer estes requisitos é resistir à dialéctica exterior-interior que a maneira de pensar primordialista nos impõe e pensar antes em termos de uma dialéctica da implosão e da explosão no tempo como chave da dinâmica peculiar da etnicidade moderna. Vistos deste' ângulo, os movimentos étnicos modernos (culturalismos) podem ser relacionados com a crise do Estado-nação através de toda uma série de interessantes pontos de contacto. Primeiro, todos os Estados-nações modernos adoptaram e conceberam a ideia de que uma organização social legítima tem que ser resultante de afinidades naturais de algum tipo. Assim, no momento em que muitos Estados-nações entram numa crise de legitimação e. enfrentam as exigências de grupos migrantes, elas continuam à operar no quadro de um legado em que a autodeterminação. na- ' cional tem que assentar numa qualquer tradição de afinidades naturais. (por mais resultantes) do EsEm segundo lugar, os tado-nação moderno, da saudepubhca aos censos, do planeamen-
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. Precisamos de nos pensar para além da nação 1. Isto não é sugerir que só o pensamento nos levará para além da nação ou que a nação é em grande medida uma coisa pensada ou imaginada. Pelo contrário, é sugerir que o papel das práticas intelectuais .é identificar a corrente crise da nação e, identificando-a, providenciar parte do aparelho de reconhecimento para formas sociais pós-nacionais. Embora a ideia de estarmos a entrar num mundo pós-nacional pareça ter recebido o seu primeiro alento dos estudos literários, é agora um tema recorrente (embora hesitante) nos estudos de pós-colonialismo, de política global e de política providencialista internacional. Mas a maior parte dos autores que afirmaram ou advogaram que precisamos de pensar pós-nacionalmente não perguntaram exactamente quais as formas sociais emergentes que nos obrigam a fazê-lo ou de que maneira. Esta última tarefa é o ponto cipaI deste capítulo.
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Colónias pós-discursivas I
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Para aqueles de nós que se criaram varões nos sectores de elite do mundo .pós-colonial, o nacionalismo foi a nossa razão e principal justificação das.nossas ambições, estratégias e sentido de bem-estar moral. Agora, quase meio século depois de muitas novas nações terem alcançado a independência, .a forma nação é atacada, e de muitos pontos de vista. Como álibi ideológico do Estado territorial, é o último refúgio do totalitarismo étnico. Em críticas importantes do pós-colonialismo (Mbembe, 1992), o discurso revéla-se profundamente implicado . nos discursos do - 'i próprio colonialismo. Tem servido muitas vezes de veículo para as dúvidas encenadas dos heróis das novas nações ' - Sukamo, Jomo Kenyatta, Jawaharlal Nehru, Gainal AbdeI Nasser - que brincavam aos nacionalismos enquanto a esfera pública das suas sociedades começ.ava a arder. Portanto, para intelectuais pós-coloniais como eu, a questão é: o patriotismo tem futuro? E a que raças e sexos pertence esse futuro? Responder a esta pergunta não exige somente um compromisso com a problemática da forma nação, da comunidade imaginada (Anderson, 1991), da produção de povo (Balibar, 1991), da narratividade das nações (Bhabha, 1990) e da lógica colonial do discurso nacionalista (Chatterjee, 1986). Requer também um exame atento dos discursos do e dos discursos contidos no hífen que liga Estado a nação (cap. 2; Mbembe et al., 1992). O que se segue é uma exploração de uma das dimensões deste hífen. Há hoje no Ocidente académico uma perturbadora tendência para divorciar o estudo das formas discursivas do estudo de outras formas insti- . tucionais e o estudo dos discursos literários· dos discursos mundanos das burocracias, exércitos, empresas privadas e organizações não governamentais . Este capítulo pugna, de certo modo, pelo alargamento do campo dos estudos do discurso: se a formação pós-colonial é em parte uma formação discursiva, é também verdade que a discursividade se tomou demasiado exclusivamente o signo e o espaço da colónia e da pós-colónia nos esruóos culturais contemporâneos. Alargar o sentido do que conta 212
como discurso requer um alargamento'correspondente da esfera da pós-colónia, .estendendo-apara além . .dos espaços geooráficos do anterior o . . mundo coJonial. Ao levantar a questão do pós-nacional, pretendo sugerir que a viagem do espaço da antiga colónia (um espaço colorido, um espaço de cor) para o espaço da pós-colónia é uma viagem que nos leva ao co- ' ração da branquitude. Ou seja, leva-nos para a Ainérica, um espaço pósnacional marcado pela sua branquitude, mas marcado também 'p elo compromisso incómodo com os povos da diáspora, as tecnologias móveis e as nacionalidades extravagantes. .
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A despeito das provas em contrário, os tempos vão maus para o patriotismo. Corpos mutilados e arame farpado na Europa de Leste, violên- . cia xenófoba em França, acenar de bandeiras nos rituais políticos dos anos de eleições áqui, nos Estados Unidos - tudo isso parece' sugerir que vontade de morrer pela pátria ainda é uma moda global. Mas o patriotismo é um sentimento instável que só avança ao nível do Estado-nação. Abaixo desse nível é facilmente suplantado por lealdades Íntimas, acima desse nível dá origem a palavras de ordem vazias, raras vezes confirmadas pelo desejo de se Sacrificar ou de matar. Portanto, para pensarmos Q futuro do patriotismo temos que indagar primeiro da saúde do Estado-nação. As minhas dúvidas sobre patriotismo estão ligadas à biografia do meu pai, em que patriotismo e nacionaHsmo eram já termOs divergentes. Como correspondente de guerra da Reuters em Banguecoque, em 1940, conheceu um nacionalista indiano exilado, Subhas Chandr'a Bose, que cindiu de " e. po: da da Bose escapara à vigilancla bntamca na Indla com o apOlO actlvo dos Japoneses e fundara, no . Sueste Asiático, urri governo-no-exílio. O exército que Bose formou com oficiais e recrutas indianos que os Japoneses tinham feito prisioneiros chamava-se Exército Nacional Indiano. Este exército indiano foi redondamente desfeiteado pelo Exército Britânico da Índia em Assam (em solo '
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indiano, como o meu pai nunca se cansava de notar), em 1944 e ô governo provisório da Azad Hind (Índia Livre) em que o meu pai foi ministro da Publicidade e Propaganda em breve ruiu com a derrota potências do I Eixo. o meu pai regressou à Índia em 1945, ele e os seus camaradas, parentes pobres da história da luta nacionalista pela independência indiana, não foram heróis bem-vindos. Eram patriotas, mas o sentimento anti- ' britânico de Bose e as suas ligações às potências do Eixo" tomaram-no em- , baraçoso, tanto para a não-violência de Gandhi como para a anglofilia fabiana de Nehru. No final das suas vidas, o meu pai e os seus camaradas foram patriotas párias, nacjonalistas"reles. A minha irmã, irmãos e eu crescemos em Bombaim entalados entre o antigo patriotismo, estilo Bose, e o nacionalismo burguês, estilo Nehru. Anossa Índia, com as suas ligações japonesas e os seus modos antiocidentais, tinha o aroma inorninável da . I traição relativamente' à confortável aliança dos Nehru com os ten e ao acordo burguês entre a não-violência gandhiana e o socialismo nehruviano. A desconfiança que o meu pai votava à dinastia Nehru predispôs-nos a imaginar uma estranha Índia desterritorializada, inventada em Taiwan e Singapura, Banguecoque e Kuala Lumpur, assaz independente de Nova Deli e dos Nehru, do Partido do Congresso e dos nacionalismos em voga. Por isso tem para mim um atractivo especial a hipótese de o casamento entre nações e Estados ter sido sempre um casamento de conveniência e de o patriotismo precisar de encontrar novos objectos de desejo. Um facto importante que explica as tensões da união entre nação e Estado é que a índole nacionalista, que nunca cabe bem no gargalo do Estado territorial, esti hoje também em diáspora. Transportada nos repertórios de popul ações de refugiados, turistas, trabalhadores convidados, intelectuais transnacionais, cientistas e estrangeiros ilegais com crescente mobilidade, cada vez mais se liberta das ideias de fronteira espacial e soberania territorial. Esta revolução dos fundamentos do nacionalismo entrou em nós praticamente' sem darmos por isso. Onde o solo e o lugar foram a chave da ligação entre filiação territorial e monopólio do Estado s obre os meios
da violência, as identidades e identificações fundamentais · giram agora apenas parcialmente em torno das realidades e das imagens de lugar. Na reivindicação sique do Calistão, nos sentimentos franco-canadianos pelo Quebeque, na exigência palestianiana de autodeterminação, as imagens da terra natal são apenas uma parte da da soberania popular 'e não [eflectem necessariamente uma meta territorial. A violência e o terror que rodeiam o colapso de muitos Estados-n.ações existentes não são sinais da inversão de algo de biológico ou inato, obscuro ou primordial (Comaroff e Comaroff, 1992b). Que faremos então desta renovada sede de sangue em nome da nação? , Os nacionalismos modernos implicam comunidades de cidadãos no Estado-nação definido territorialmente, que partilham a experiência colectiva, não' do 'contactocara a cara ou da subordinação comum a um monarca, mas da leitUra em conjunto de livros; panfletos, jornais, mapas e outros textos modernos (Habermas, 1989; Calhoun, 1992). Dentro e vés destas experiências colectivas do que Benedict Anderson (l991)chama «capitalismo impresso» e qu'e outros vêem cada vez mais como «capitalismo electrónico», como a televisão e o cinema (Warner, 1992; Lee, 1993), os cidadãos imaginam 'q ue pertencem a uma sociedade nacionaL Nesta perspectiva, o Estado-nação moderno não nasce de factos naturais - como língua, sangue, solo e raça - ; mas sim de um produto cultural essencial, um produto da imaginação colectiva: Esta perspectiva distancia-se, mas não o' suficiente, da teoria dominante do nacionalismo, das de J. G. Herder e Giuseppe Mazzini e, assim sendo, de toda a espécie de nacionalismos de direita que vêem nas nações produtos do destino natural dos povos, quer radiquem na língua, na raça, no solo ou na religião. Em muitas destas teorias da nação imaginada há sempre a sugestão de que o . '" sangue, o parentesco, a raça e o solo são de certo modo menos imaginados e mais naturais do que a imaginação do interesse colectivoou da solidariedade. O tropo da tribo reactiva este biologismo oculto, em grande medida porque falta ainda articular alternativas forçosas ele. As conjunturas históricas relativas à leitura e à publicidade, textos e su as mediações linguísticas, às nações e suas narrativas só agora estão a ser jus215
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tapostas para formular o diacrítico especial e específico do imaginário nacional e das suas esferas públicas (Lee, 1993). Os dirigentes das novas nações que se fórmaram na Ásia e África após a Segunda Guerra Mundial - Nasser, Nehru, Sukarno - ficariam muito desgostosos se vissem com que frequência as ideias de tribalismo e nacionalismo surgem juntas no discurso público recente do Ocidente. Estes dirigentes gastaram grande parte da sua energia retórica in stando os seus súbditos a que abandonassem o que consideravam lealdades primordiais - à família, tribo, casta e região - no interesse de frágeis abstracções a que chamavam «Egipto», «Índia» e «Indonésia». Compreenderam que as novas nações precisavam de subverter e anexar as lealdades pri. márias ligadas a colectividades mais íntimas. Assentaram as suas ideias sobre novas nações no fio de um paradoxo, o de que as nações modernas se destinam a ser de aloum modo abertas, universais e emancipadoras em o , virtude do seu empenho especial nas virtudes cívicas, sendo as suas nações, não obstante, e em aspectos diferentes e até melhores que outras nações. Em muitas coisas estes dirigentes sabiam o que tendemos a esquecer, isto é, que as nações, em especial as' de quadro multiétnico, são projectos colectivos ténues, não factos naturais eternos. Contudo, contribuíram também para criar uma falsa divisão entre a artificialidade da nação e os factos que falsamente projectaram como primordiais: tribo, fa. mília, região'. Na sua preocupação de controlo, classificação e vigilância dos súbditos, o Estado-nação muitas vezes criou, revitalizou ou fracturou identidades étnicas que antes eram fluidas, negociáveis ou nascentes. Claro que os termos usados para mobilizar a violência étnica hoje podem ter uma longa história. Mas as realidades a que se referem -. língua servo-croata, costumes bascos, cozinha lituana - foram sobret)Jdo cristalizadas no século XIX é princípio do século XX. Nacionalismo e etnicidade alimentam-se portanto mutuamente quando os nacionalistas categorias étnicas que, por sua vez, levam outros a construir contra-etnicidades e então, em tempos de crise política, estas requerem contra-Estados baseados nos contranacionalismos acabados de descobrir. Por
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cada nacionalismo que parece ter um destino natural há um outro que é um .subproduto reacti vo. Se a violência em nome de sérvios e molucanos, khmeres e lituanos, alemães e judeus nos leva a pensar que todas essas identidades correm fundo nas trevas, bas.ta-nos voltar-nos ' para os motins na Índia ocasionados pelo relatório de uma comissão governamental que recomendava que se reservasse uma grande percentagem de empregos públicos para certas castas definidas pelo censo e pela constituição como «atrasaHouve agitação e carnificina e não poucas mortes e suicídios no Norte da Índia por causa de rótulos como «mais uma casta atrasada» saf. dos das distinções terminológicas do censo indiano e seus protocolos e calões especializados. É espantoso que alguém morra ou mate por títulos assoCiados a ser 'membro de mais uma casta atrasada. Contudo, este caso não é uma excepção: na sua macabra banalidade burocrática, mostra como as necessidades técnicas dos censos e da legislação da Segurança Social, combinadas com as tácticas cínicas da política eleitoral, podem arrastar . os grupos para identificações e medos quase raciais. A questão não é tão diferente como possa ·parecer para rótulos aparentemente tão naturais como judeu, árabe, alemão e hindu, todos ligados a pessoas que escolhem estes rótulos, a outras que são forçadas a eles e a outras ainda que, através da sua erudição filológica, mantêm de pé a história destes nomes ou arranjam maneiras hábeis de branquear problemas turvos de língua e história, raça e crença. Claro que nem todos os Estados-nações são hegemónicos, nem todas as formas subalternas de acção impotentes para resistir a estas pressões e seduções. Mas parece justo afirmar que há poucas formas de consciência popular e acção subalterna isentas, face à mobilização étnica, de formas pensadas e campos políticos produzidos pelas acções e \ discursos dos Estados-nações. . , ," '. ' Por isso as minorias, em muitas partes do mundo, são tão artificiais como as maiorias que parecem ameaçadas por elas. Os brancos nos Estatudo dos Unidos, os hindus na Índia. os ingleses na exemplos de como o qualificativo político e administrativo de 'bünorias dado a alguns grupos (negros e hispânicos nos Estados Unidos, celtas e
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paquistaneses no Reino Unido,' muçulmanos e cristãos na Índia) serve para empurrar as maiorias (silenciosas ou vocais) ao abrigo de rótulos com vida' curta mas história longa. Muitas vezes, as novas etnias não são mais velhas do que os Estados-nações a que começaram a resistir. Os muçulmanos da Bósnia estão a ser relutantemente guetizados, embora tanto sérvios como croatas temam a possibilidade de um Estado islâmico na Europa. Muitas vezes as minorias fazem-se à nascença. Os movimentos étnicos recentes envolvem milhares, por vezes milhões de pessoas espalhadas por vastos territórios ' e com frequência separadas por grandes distâncias. Quer consideremos os vínculos dos sérvios divididos por grandes porções da Bósnia-Herzegovina, ou os curdos dispersos pelo Irão, Iraque Turquia, ou os siques espalhados por Londres, Vancouver e Califórnia, bem como no Punjab indiano, ·os novos etnonacionalismos são acções de mobilização complexas, em grande escala, altamente coordenadas, com base em novos fluxos logístico? e em propaganda que passa as fronteiras dos Estados. Não podem ser considerados tribais se por tal entendermos que .são levantamentos espontâ- . neos de grupos fortemente coesos, espacialmente segregados, naturalmente aliados . No caso que hoje mais nos assusta, o · que poderia chamar-se tribalismo sérvio não é uma coisa nada simples, dado que há pelo menos 2,8 milhões de famílias jugoslavas que produziram cerca de 1,4 milhões ·de casamentos mistos entre sérvios e croatas (Hobsbawm, . 1992). A que tribose pode dizer que pertencem estas ·famílias? Na nossa preocupação horrorizada perante as tropas de choque do etnonacionalismo, perdemos de vista os sentimentos confusos dos civis, as lealdades rompidas das famílias 'que têm dentro da mesma casa membros de grupos antagonistas e os anseios dos que sustentam que não há inimizade de base entre séryios, muçulmanos e croatas na Bósnia-Herzegovina. É mai s difícil explicar como é que os princípios de filiação étnica, por mais duvidosa que seja a sua proveniência e frágil a sua genealogia, podem rapidamente mobilizar grandes grupos para a acção violenta. O que parece claro é que o modelo tribal, na medida em que sugere pJ.ixões precor:cebidas à espera de explodir, dá uma bofetada na cara das
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contingências que incendeiam a paixão étnica. Os siques, até há pouco tempo baluarte do exército indiano e, historicamente, a arma com, que a Índia hindu combateu o regime muçulmano, sentem-se hoje ameaçados pelo hinduísmo e parecem querer aceitar auxílio e socorro do Paquistão. Os muçulmanos da Bósnia-Herzegovina foram relutantemente forçados a revitalizar -as suas filiações islâmicas. Longe activarem sentimentos tribais de longa data, os muçulmanos bósnios estão divididos entre a concepção de muçulmanos europeus (expressão recentemente usada por Ejub Ganic,vice-presidente da .Bósnia) e uma ideia de si como parte integrante de um islão transnacional, já activamente envolvido ,na guerra bósnia. Os bósnios ricos que vivem no estrangeiro, em paísés como a Turquia, andam já a comprar armas para a defesa dos' muçulmanos da Bósnia. Para: nos libertarmos do tropo da tribo como fonte primordi al desses nacionalismos que nós, nos Estados Unidos, achamos menos cívicos do que o nosso, precisamos de construir uma teoria da mobilização étnica em larga escala que reconheça explicitamente e interprete as suas propriedades pós-nacionais.
Formações pós-nacionais Muitos etnonacionalismos recentes e violentos são mais implosivos do que explosivos. Ou seja, em vez de radicarem no substrato ou afecto primordial que há no fundo de cada um de nós e que é trazido à superfície para entrar em compromissos sociais e acções de grupo de maior alcance, o que se passa é muitas vezes o inverso. Os ·efeitos das interacções em larga escala entre e no seio dos Estados-nações, muitas vezes estimulados " por notícias de eventos em locais ainda mais distantes, serve para desen"' cadear em cascata (Rosenau,1990) as complexidades da política regional, local e de ba.irro até estas potenciarem questões locais e implodirem em i.ncluindo O antes era identidade etmcafrza (slque·i!lhmdu, armem a e aZerbeIja, servIa e croata) torna-se quente quando as localidades implodem sob a pressão de aconteci 219
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mentos e processos distantes,-no espaço e no tempo, do sítio da implosão. Entre os muçulmanos da Bósnia, a temperatura destas identidades muda à nossa vista quando eles se afastados de uma ideia de si secular, europeísta, p'ara uma postura mais fundamentalista. São empurrados não só pelas ameaças sérvias à sua sobrevivência, mas também pela pressão. de outros muçulmanos na Arábia Saudita, Egipto e Sudão, que afirmam que os muçulmanos da Bósnia estão agora a pagar o preço de terem renunciado à sua identidade islâmica sob o domínio comunista. Os dirigentes dos muçulmanos da Bósnia começaram por declarar explicitamente que, se não receberem rapidamente auxílio das potências ocidentais, po- · dem ter qúe se voltar para os modelos palestinianosde terror e extremismo. Uma maneira importante de explicar os casos em que as identidades frias aquecem e as implosões num lugar geram explosões noutros é recordar que o Estado-nação de modo algum é a única equipa em jogo no que se refere à lealdades translocais. A violência que hoje rodeia a identidade política em todo o mundo reflectea ansiedade acessória da busca de princípios de solidariedade não territorial. Os movimentos que agora vemos na Sérvia e no Sri Lanka, nos montes Karavakh e na Namíbia, no Punjab e nO Quebeque, são o que poderíamos chamar «nacionalismos de Tróia>; . Estes nacionalismos contêm na verdade ligações transnacionais, subna.. cionais e, mais generalizadamente, identidades e aspirações não nacionais. Como são muitas vezes produto da diáspora, tanto forçada como voluntária, de intelectuais com mobilidade e de trabalhadores, de diálogos com Estados inimigos e Estados de acolhimento, muito ·poucos dos novos nacionalismos podem separar-se da angústia do deslocamento, da nostalgia do exílio, das remessas de fundos ou da brutalidade dos pediçios de asilo. Haitianos em Miami, tâmiles em Boston, marroquinos em França, molucanos na Holanda, s'ão os portadores destas novas lealdades transnacionais e pós.,.nacionais. O nacionalismo territorial é o álibi destes movimentos e não necessariamente a sua motivação básica ou o seu objectivo final. Pelo contrário, estas motivações e objectivos básicos podem ser muito mais negros do 220
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que tudo o que tenha a ver com soberania nacional, como quando parecem motivados por razões de purificação étnica e genocídio; por exemPlo, miciónalismo sérvio parece operar no medo e no ódio ao seu Outro étnico O muito mais do que no sentido de um património territorial sagrado. Ou po- O dem ser simplesme_nte idiomas e símbolos em torno dos quais muitos gru- Ü pos conseguem articular o seu desejo de fugir ao regime estatal específico O considerado ameaçador para a sua sobrevivência. Os Palestinianos estão mais preocupados em tirar Israel de cima das costas do que com a especial . magia geográfica da Margem Ocidental. . Embora haja no mundo actual muitos movimentos - bascos, tâmiles, quebequenses, sérvios - que parecem determinados a enO cerrar nação Estado juntos sob a mesma rubrica étnica, mais ·impressio!J nante ainda é o caso das muitas minorias que sofreram o deslocamento e a diáspora forçada sem articularem um desejo forte de um Estado-nação seu: os arménios na Turquia. os refugiados hutus do Burundi que vivem na Tanzânia .e os hindus de Caxemira no exílio em Deli são () uns quantos exemplos de que o deslocamento nem sempre gera a fantasia 'O da construção do Estado. Embora muitos movimentos anti-Estado girem () em torno de imagens da terra, solo e lugar natal e do retorno do exílio; ,,....)' estas imagens reflectem a pobreza da sua (e nossa) linguagem política, I<..J mais do que a hegemonia do nacionalismo territorial. Por outras palavras, não emergiu ainda um idioma que capte os interesses colectivos de muitos grupos em solidariedades tninslocais, mobilizações transfronteiriças e mobilizações pós-nacionais. Esses interesses são muitos e têm voz, mas estão ainda presos no imaginário linguístico do Estado territorial. E essa incapacidade de muitos grupos desterritorializados para pensarem numa maneira de sair do imaginário do Estado-nação é por si só a causa de muita \ violência global, porque muitos movimentos de emancipação e identidade ( são forçados, na sua luta contra Os Estados-nações existentes, a adoptar ( precisamente aquele imaginário a que procuram fugir. Os movimentos ( pós-nacionais e não nacionais. forçados, pela própria lógica dos Estar dos-nações efectivamente existé?ttes, a tornar-se antinacionais ou anti-Es" ( tado e assim inspirar o próprio poder de Estado· que ·os força a
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'na língua do contranacionalismo, A este círculo vicioso só se escapa quando for encontrada uma linguagem que capte as formas de fidelidade complexas, não territoriais, pós-nacionais . . Muito se 'tem dito em anos recentes sobre a velocidade com que a informação viaja pelo rriundo, a intensidade com que as notícias de uma cidade brilham' nos ecrãs de televisão de uma outra, o modo como as manipulações financeiras numa bolsa afectam os ministros das Finanças de outro continente. Muito se tem dito também sobre a necessidade de atacar os problemas globais como a sida, a poluição e o terrorismo com formas concertadas de acção internacional. A vaga democrática e a pandemia da sida são em certa medida causadas pelo mesmo tipo de contacto intersocietal e de tráfego humano transnacional. Da perspectiva da Guerra Fria, o mu'rido pode ter-se tornado bipolar. Mas também se tornou multicêntrico, para usar a expressão de James Ro- i senau (1990). Adaptando metáforas da teoria do caos, Rosenau demons- I trou que a legitimidade dos Estados-nações tem vindo a decrescer, que as .. \ organizações internacionais e transnacionais de todos os tipos têm ferado e que as políticas locais e os processos globais se afectam recIprocamente de um modo caótico mas não imprevisível, muitas vezes fora das interacções dos Estados-nações . . Para apreciar estas complexidades, precisamos de fazer mais do que .aqeilo que ciências sociais se chama comparação, pondo um país ou cul rura ao lado do outro como se tivessem vida e pensamento independentes:?. Precisamos de lançar um novo olhar a toda uma série de organiz:J.ções, movimentos, ideologias e redes de que a multinacional clássica é apen as um . exemplo. Consideremos movimentos filantrópicos transnacionais como o Habitat for Humanity (cujos voluntários procuram construir novos ambientes com outros voluntários em locais muito di stantes). Tomemos as várias organizações terroristas internaci onais que mobi lizam homens (e por vezes mulheres), dinheiro, equipamentos, campos de treino e paixão num desconcertante cruzamento de combinações iéleolÓ2:icas e étnicas. Veja-se a moda internacional, que não é apenas de mercados globais e canibalismo de estilos internacionais, mas
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cada vez mais uma questão de linhas de produção sistemáticas transnacionais, de transferência de gostos, preços e exposição. Tome-se a-variedade de movimentos verdes que começaram a organizar-se transnacionalmente em tomo de biopolíticas específicas. Considere-se o mundo dos refugiados . Durante muito tempo tomámos as questões e organizações de refugiados como parte da babugem e dos destroços da vida política, flutuando entre as certezas e as est
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bilidades de ope'rar dentro e, através de estruturas nacionais, explorando sempre a sua legitimidade. As novas formas de organização são mais di. versificadas, mais fluidas, mais ad hoc, mais provisórias, menos coeren' tes , menos o e simplesmente menos implicadas nas vantagens . relativas do Estado-nação. Muitas delas constituíram-se explicitamente para monitorizar as actividades do Estado-nação: a Amnistia Intemacionat \ é um exe'mplo excelente. Outras, em geral associadas às Nações Unidas, , trabalham para conter os excessos dos Estados-nações, por exemplo;prestando assistência aos refugiados, vigiando acordos de paz, organizando programas contra a fome e realizando o desagradável trabalho associado ' aos oceanos e às tarifas, à saúde pública e ao trabalho. Outras ainda, como a Oxfam, são exemplos de organizações globais que operam fora da rede para-oficial· das Nações Unidas e dependem do , crescimento das organizações não governamentais (ONG) em muitos pontos do mundo desenvolvido. Estas ONG"a operar numa série de áreas que I vão da tecnoloaia e ambiente até à saúde e às artes, passaram de menos o de em 1909 para mais de duas mil nos primeiros anos setenta. Constituem muitas vezes importantes alfobres de auto-ajuda que crescem I a partir de um sentido da limitada capacidade dos para aarantir as coisas básicas da vida em sociedades como a India, ao mesmo o tempo que contribuem para formar essa mesma percepção. , E outras organizações há, a que costumamos chamar fundamentalistas, como a Fraternidade Muçulmana no Médio Oriente, a Igreja da Unificação e toda uma série de organizações cristãs, hindus e muçulmanas, que constituem movimentos globais para todo o serviço com o fito de aliviar o sofrimento Dara além das fronteiras nacionais, ao mesmo tempo que mo- . ' bilizam 1eald;des de primeira ordem para além das fronteiras do Estado. , Alguns destes movimentos evangellcos (como o grupo radical hindu Co- . nhecido comoAnanda Marg, que foi tido por responsável do assaSsinato de diplom3.tas indianos no estrangeiro) opõem-se agressivamente a minados Estados-nações e são muitas vezes tr3.tados como sediciosos. Outros, como a Igreja da Unificação, limitam-se a trabalhar em redor do Est3.do-n3.ção sem porem directamente em questão a sua jurisdição. Estes 224
exemplos, que continuamos a ver como formas de organização excepcionais ou párias, são simultaneamente exemplos e incubadoras de mna ordem global pós:-nacional.,
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A expressão pós-nacional, usada até aqui sem comentários, tem diversas implicações que podem agora ser examinadas mais atentamente. A primeira é temporal e histórica e sugere que estamos em via;> de avançar para uma ordem global em que o Estado-nação se tornou obsoleto e outras forrna.ções delealdad'e e identidade tomaram o seu lugar. A segunda é a ideia de que o que está a emergir são formas alternativas para a organização do tráfego global de recursos, imagens e ideias formas que ou contestam activamente o Estado-nação, ou constituem alternativas pacíficas de lealdades políticas em larga escala. A terceira implicação é ti possibilidade de que, enquanto as nações puderem continuar a existir, a erosão regular das capacidades do Estado-nação para monopolizar a lealdade estimula a difusão de formas nacionais plenamente divorciadas dos Estados territoriais. São sentidos relevantes do termo pós-nacional, mas nenhum deles implica que o Estado-nação na sua fOrIDa territorial clássica está já fora de jogo. É certo que está em crise e que parte desta crise é uma relação cada vez mais violenta entre o Estado-nação e os Outros pós-nacionais. Os Estados Unidos são um lugar particularmente notório para considerarmos estas afirmações porquanto, perante os factos, conseguiram , manter com grande sucesso a imagem de uma ordem nacional que é si. "-" multaneamente civil, plural e próspera. Parecem nutrir um conjunto vi- . brante e complexo de esferas' públicas, entre as quais que foram qualificadas como públicos «alternativos», «parciais» ou «contra» (Ber, lant e Freeman, 1992; Fraser, 1992;-Hansen, 1993; Robbins, 1993; CoBlack Public Sphere, 1995). Continuam a ser imensamente ricos pelos padrões globais e,embora as suas formas de violência pública 225 '
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lonial, académica e de diáspora (com a vantagem do perfil do exílio e do espaço de deslocamento) e as feias realidades de ser racializado, minoritarizado e tribalizado nos meus encontros quotidianos, a teoria colide com a prática.
jam muitas e preocupantes, o seu aparelho de Estado não é, na generaliÇlade, dependente de formas de tortura, prisão e repressão violenta. I Acrescentando o-facto de, nos Estados Unidos, o multiculturalismoparecer assumir formas predominantemente não violentas, perante I uma grande potência incontestada que domina a nova ordem mundial, " -que recebe imigrantes aos milhares e que surge como um exemplo triun- ! fante de Estado-nação' territorial clássico. Qualquer análise da emergên- I cia de uma ordem global-pós-nacional terá que contemplar a sua maior falsificação aparente: os Estados Unidos. Esta última secção lança as ba.ses para essa reflexão . Até há poucos anos, gostava de viver nesse espaço particular concedido aos «estrangeiros», em especial anglófonos, instruídos, como eu prio, com leves vestígios de pronúncia britânica. Como uma vez me disse abonatoriamente uma negra numa paragem de autocarro em Chicago, eu era das Índias Orientais. Foi em 1972. Mas desde essa boa conversa de ' há três décadas, foi-se-me tornando cada vez mais difícil considerar-me, ' armado com o meu passaporte indiano e os meus modos anglófonos, de certo modo imune à política de identidade racial dos Estados Unidos. Apes::!r de quase três décadas de estrangeiro residente nos Estados Unidos, casado com uma americana anglo-saxónica e pai de um adolescente bicultural, o meu' passaporte indiano afigura-se um cartão de identidade um tanto frouxo. A rede das políticas -raciais est'ende-se agora mais longe do que nunca nos Estados Unidos urbanos. A cor da minha pele e o seu papel na política das minorias. bem como encontros de rua com o ódio racial prepararam-me para reabrir os laços entre e os Estados Unidos, entre biculturali smo e patriotismo, entre as iden ti dades da diáspora e as (in)stabilidades decorrentes dos passaportes e C3.rtas verdes . As lealdades pós-nacionais não são irrelevantes p::!ra o problema da diversidade dos Estados Unidos. Com efeito, se está a formar-se uma ordem pós-nacional e a americanidade mUda de sentido, todo o problema da diversidade da vida americana terá que ser repens·ado. Não é apenas a força de certas deduções me suscita esta recomendação. Enquanto oscilo entre o distanciamento de uma identidade pós-co-
Um livro recentemente publicado pela Random House é Tribes: How Race, Religion, and Identity Determine Success in the New Global Eco" nomy (Kotkin, 1993). Escrito por Joel Kotkin, «autoridade internacionalmente reconhecida em tendências globais, económicas, políticas e sociais», como proclama a sobrecapa, traça as· conexões entre etnia e sucesso .. As cinco tribos de. Kotkin -' " judeus, chineses, japoneses, mgleses e mdlanos - são um estranho grupo, mas representam o primordialismo com rosto high-tech. São os capitalistas párias de MaxWeber na corrida do fim do século xx. Livros como este recordam que os naturais das Indias Orientais ainda são lima tribo, como os judeus e ou- . tros, a explorar o filão 'primordial para abrirem caminho para a dominação ' global. Portanto, o tropo da tribo pode alterar as suas premissas e ter grandes tribos globais, uma imagem que procura abarcar os dois lados, a intimidade primordial e as estratégias da alta tecnologia. Por mais diásporas que passem, como passaram os judeus, os sul-asiáticos estão condenados a permanecer uma tribo, para sempre fornecedores e negociantes num mundo de mercados abertos, contratos justos e oportunidades para todos. Para aqueles de nós que se mudaram das antigas colónias para a «fantasia nacional» (Berlant, 1991) da América há portanto a sedução da dupla pertença, de nos tornarmos americanos sem deixarmos de pertencer à diáspora, de uma ligação expansiva a um espáço ilimitado de fantasia. fazêMas, se podemos construir a nossa identidade, não \., -lo exactamente como nos convém. À medida que muitos de nós vão sendo, racializados, biologizados, minoritarizados tribalizados'de aI aum _ . b modo reduzidos em vez de capacitados pelo nosso corpo e pela nossa história, o nosso particular di acrítico torna-se a nossa prisão e o tropa da tri bo separa-nos de uma outra América inespecífica, longe do cl amor da tribo, pudica, cívica e branca, uma terra onde não somos bem-vindos.
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E assim estamos de volta ao idioma e à imagem absorvente do triba- : lismo. Aplicado a Nova Iorque, Miami, Los Angeles (por oposição a Sarajevo, Sowe,to ou Colombo), o tropo do tribalismo esconde e propicia um I racismo difuso para com esses Outros (por exemplo, hispânicos; iranianos i e afro-americanos) que se insinuaram no corpo político da América. Per- I mite-nos manter a ideia de uma ameri.canidade que precede Ce subsiste, de tudo) os hífenes que contribuem para ele e manter uma distinção entre americanos tribais (os negros, morenos e amarelos) e outros americanos. Este tropo facilita a fantasia de que a sociedade civil nos Estados Unidos tem um destino especial no que toca ao multiculturillismo pacífico - multiculturalismo inteligente para nós, etnicidade sanguinária ou tribalismo acéfalo para eles. Desenvolveu-se um conjunto especial de laços entre democracia, e prosperidade no pensamento social americano. Com base num complexo diálogo entré ciência política (a única ciência social genuinamente made in America sem contrapartidas ou antecedentes europeus óbvios) e constitucionalismo vernáculo, estabeleceu-se um confortável equilíbrio entre as ideias de di v·ersidade cultural e uma ou outra versão do melting pot. Oscilando entre a National Geographic e o Reader's Digest, esta anódina polaridade revelou-se notavelmente duradoura e gratificante. Alberga, por vezes na mesma página e na mesma respiração, um sentido de que a pluralidade é a índole americana e que há uma americanidade que de certo modo contém e transcende a pluralidade. Este segundo acordo pós-Guerra Civil com a diferença está agora nas últimas e o debate sobre multiculturalismo do politicamente correcto é o seu peculiar Waterloo de pacotilha. De pacotilha porque recusa insistentemente reconhecer que o desafio do pluralismo da diáspora é aO'ora o oO'lobal. e que as soluções americanas não podem ser tidas por isoladas. Peculiar porque n5.o houve reconhecimento sistemático de que a política do multiculturalismo está agora inteiramente integrada no nacionalismo extraterritorial de populações que amam a América, mas não estão necessariamente ligadas aos Estados Unidos. A verdade crua é que nem o pensamento popular nem o pensamento acadéinico deste país a diferença entre ser uma têlTa de imigrantes e ser um 'nó da rede de diásporas. . 228
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No mundo pós-nacional que vemos emergir, a diáspora vai a favor, não contra, a corrente da identidade. do movimento e da reprodução. Toda Çt gente tem parentes a trabalhar fora. Muitas pessoas encontram exílios sem sequer se mexerem para muito longe - croatas na Bósnia, hindus em Caxemira, muçulmanos na Índia. Mas outros vêm-se inscritos em padrões de migração repetida. Os indianos que foram para a África Oriental no XIX e princípio do século XX viram-se expulsos do U ganda, Quénia e Tanzânia na década de 1980, foram encontrar novos empregos e novas possibilidades em Inglaterra e nos Estados Unidos e estão agora a reconsidechineses rar a hipótese de voltar à África OrientaL Do mesmo modo, de Hong Kong que estão a comprar propriedades em Vancouver, os co. merciantes gujarates do Uganda que abrem motéis em Nova Jérsia e quiosques de jornais em Nova Iorque e os motoristas de táxi siques de Chicago e Filadélfia, são todos exemplos de um novo mundo em que a diáspora é a ordem das coisas eé difícil encontrar vidas assentes. Os Estados Unidos, que continuam a considerar-se uma terra de imigrante's, vêem-se varridos por estas diásporas globais, deixaram de ser um espaço fechado onde o melting pot opere a sua magia, são mais uma encruzilhada da diáspora. As pessoas vêm para cá em busca de fortuna, mas já não gostam de deixar a sua terra. A febre da democracia global e a queda do império soviético significam que a maior parte dos grupos que desejam renegociar os seus laços com a identidade da diáspora a partir das suas posições americanas são agora livres de o fazer: por isso os judeus americanos de origem polaca fazem excursões à Europa de Leste subordinadas ao tema do Holocausto, os médicos indianos do Michigan abrem clínicas de oftalmologia em Nova Deli, os palestinianos de Detroit participam na política da Margem Ocidental.
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reito do hífen tem dificuldade em conter a rebeldia do lado esquerdo. Num: momento em que a legitimidade dos Estados-nações no seu próprio con J texto territorial está cada vez mais ameaçada, a ideia de nação floresce transnacionalmente. A salvo das depredações dos seus Estados natais, as comunidades da diáspora tornam-se duplamente leais às suas nações de _ origem, logo, ambivalentes quanto à sua lealdade à América. A política de identidade étnica dos Estados Unidos está inseparavelmente ligada à difusão global de identidades nacionais originariamente locais. Para cada Estado-nação que exportou um número significativo dos seus nacionais para os Estados Unidos como refugiados, turistas ou estudantes, há uma transnação deslocalizada que retém um vínculo ideológico especial com um lugar de origem putativo, mas que pOl; outro lado pertence co1ectiva- 1\ " mente à diáspora 3. Nenhuma cQn"cepção de americanidade é capaz de con- I ter esta grande variedade de transnações. Neste cenário, o americano hifenizado pode passar a ser duas vezes I fenizado (asiático-americano-japonês ou nativo-ameriçano-iroquês, ou afro-americano-jamaicano, ou hispano-americano-boli viano) à medida que as identidades da diáspora ganham mobilidade e se tornam mais proteiformes. Ou talvez seja precisO inverter os lados do hífen e passemos a uma federação de diásporas: americano-italianos, americano-haitianos, I americano-irlandeses, americano-africanos. A dupla cidadania pode aumentar se as sociedadeS de onde viemos permanecerem abertas ou se se abrirem mais. Podemos reconhecer que a diversidade da diáspora coloca I efectivamente a lealdape a uma transmição não territorial em primeiro, embora reconheça que há uma maneira americana especial de se relacio- I nar co m estas diásporas globais. Enquanto espaço cultural, a América não preci sará de competir com toda uma série de identidades globàis e leal- I bdes d:l diás pora. Po?e chegara ser vista como um modelo de disposição d e um dado locLls territorial (entre outros) de cruzamento de comunidades ' d:l diáspora. Neste sentido, o problema americano assemelha-se ao de outras democracias industriais ricas, como a Suécia, a Alemanha, a Holanda enfrentam o desafio de enquadrar os universalismos do e :l o pluralismo da diáspora. t
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A questão é: pode construir-se uma política pós-nacional em't omo deste facto cultural? Muitas sociedades enfrentam agora influxos de imigrantes e refugiados, desejados e indesejados. Outras expulsam grupos em acções de limpeza étnica destinadas a produzir os próprios povos cuja preexistência a nação deveria ratificar. Mas a América pode ser a única·a ter-se organizado em torno de uma ideologia política moderna em que o pluralismo é fundamental para'a condução da vida democrática. Por uma outra via da sua experiência, esta sociedade gerou também uma poderosa fábula de si, como terra de imigrantes. No mundo da diáspora pós-nacional " de hoje, a América é convidada a fundir estas duas doutrinas, a ;enfrentar as necessidades do pluralismo e da imigração, a construir a sociedade em tomo da diversidade da diáspora. Mas imagens como mosaico, arco-íris, manta de retalhos e outros tropos da complexidade-na-diversidade não dão os recursos imaginativos. para esta tarefa, em especial se se multiplicam os receios de tribalismo. As tribos não fazem mantas de retalhos, embora por vezes façam confederações. Na di scussão, seja ela sobre imigração, educação bilingue, cânone académico ou desfavorecidos, estas imagens liberais procuraram conter a tensão entre o impulso centrípeto da americanidade e o impulso centrífugo da diversidade da diáspora na vida americana. O combate pela "discriminação positiva, quotas, Segurança Social e aborto na América de do mosaico é incapaz de conter a contradição hoje sugere que a entre identidades de grupo que os Americanos tolerarão (até certo pon\o) na vida cultural e as identidades individuais que continuam a ser o princípio não negociável subjacente às ideias americanas de sucesso, mobilidade e j u s t i ç a . , , Que fazer? Poderá haver lugar especial para a América na' nova "'-, ordem pós'-nacional, ,um lugar que não parta do isolacionismo nem da dobase aiternativa. Os Unidos têm tod:as as minação condições para serem uma espécie de laboratório e uma zona de comércio livre de geração, circulação, importação e experimentação de materiais para um mundo organizado em torno da diversidade da diáspora.,Em certo sentido, é uma experiência que está já a decorrer. Os Estados Unidos são
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já uma enorme e fascinante feira da ladra para o resto do mundo. Dão aos japoneses férias de golfe e imobiliário; ideologias e técnicas de gestão à Europa e à Índia; ideias para telenovelas ao Brasil e ao Médio Oriente; primeiros-ministros à Jugoslávia; economias 'do lado da oferta à Polónia, Rússia e a quem mais quiser tentar; fundamentalismo cristão à Coreia; e arquite.ctura pós-moderna a Hong Kong. Fornecendo também um conjunto de imagens - Rambo no Afeganistão, «We Are the World», George Bernard Shaw em Bagdade, Coke goes to Barcelona, Perot goes to Washington - que ligam direitos humanos, consumismo, antiestatismo e visibilidade mediática, podemos dizer que os Estados Unidos são em parte responsáveis pelas idiossincrasias que servem lutas por autodeterminação em muitas e diferentes partes do mundo. Por isso .é que uma camisola da Universidade do Iowa não é apenas um símbolo pateta nas selvas de Moçambique ou nas barricadas de Beirute: é que ela capta um anseio de viver à americana que paira no ar, mesmo nos mais intensos contextos de oposição aos Estados Unidos. A política cultural da nacionalidade. extravagante é um exemplo deste anseio contraditório nos Estados Unidos (Berlant e Freeman, 1992). O resto deste anseio é provocado por políticas estatais autoritárias, por grandes indústrias de armamento, pelo olho in- . sistentemente esfomeado da comunicação electrónica e pelo desespero das economias falidas. Claro .que estes produtos e ideias não são concepções imaculadas de um misterioso saber americano, são justamente o resultado de um ambiente complexo em que ideias e intelectuais se encontram numa série de cenários especiais (como laboratórios, bibliotecas, salas de aula, estúdios de música, seminários de. gestão e campanhas políticas) para gerar, reformular e pôr de novo em circulação formas culturais de diáspora fundamentalmente pós-nacionais. O papel dos músicos, estúdios de som ' e produtoras discográficas americanos na criação do ritmo para o mundo é um excelente exemplo deste tipo de mentalidade empresarial de doméstica e vocação exterior. Os Americanos detestam admitir esta maneira parcelar, aleatória, flexível e oportunista como os produtos c reprodutos 'americanos circulam por todo o mundo . Os Ameri-
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canos gostam de pensar que os Ch(neses simplesmente as virtudes da livre-iniciativa; os Polacos, a economia do lado da oferta; os Haitianos e Filipinos, a democracia; e toda a gente, os direitos humanos. Raramente prestamos atenção aos complicados termos, tradições e estilos culturais em que estas ideias são vertidas e depois transformadas · até se tomarem irreconhecíveis. Por isso, durante os acontecimentos 'históricos da Praça Tiananmen, em 1989, quando pareceu que os Chineses se tinham tornado democráticos da noite .para o dia, não faltaram provas de que na China os diferentes grupos compreendiam que os seus problemas eram internamente variados e ligados a diversas especificidades ' da histófÍa e do estilo cultural chinês. Quando os Americanos vêem transformações e complicações culturais do seu vocabulário e estilo democrático, .se por acaso as notam, ficam aborrecidos, desiludidos. Como lêem maIo modo como outros tratam o que para nós continua a ser a receita nacional do sucesso, os Americanos . cometem mais um acto de distorção .narcisista: imaginamos que estas invenções pecUliarmente americanas (democracia, capitalismo, livre-iniciativa, direitos humanos) estão automática e instrinsecamente interligadas . e que a nossa saga nacional detém a chave do segredo. Na migração das nossas palavras vemos a vitória dos nossos mitos. Cremos na conversão terminal. A «vitória» americana na Guerra Fria não tem necessariamente que se tomar pirrónica. O facto é que os Estados Unidos, de um ponto de vista cultural, são já uma vasta zona de comércio livre, cheia de ideias, tecnologias, estilos e idiomas (da McDonald's à HarvardBusiness 'School, à Dream Team e à anticrese) que o resto do mundo acha fascinantes. Esta zona de comércio livre assenta numa economia volátil; as principais cidades da faixa fronteiriça americana (Los Angeles, Miami, Nova Iorque, , Derroit) estão agora fortemente militarizadas. Mas estes factos têm pouca relevância para os que chegam, por breve ou muito tempo, a esta zona de comércio livre. Alguns, vêm em fuga de muito maior violência urbana, perseguições do Estado e dificuldaqes económicas, vêm como migrantes . . definitivos, legais ou ilegais. Outros vêm por pouco tempo, compr?r ves-
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tuário, entretenimento, empréstimos, armas ou lições rápidas de economiia de mercado I'ivre ou de administração da sociedade civil. A própria I dia, a básica imprevisibilidade, a inventiva dinâmica, a mera vitalidade cultural desta zona de comércio livre é oque atrai aos Estados Unidos todk a espécie de diásporas. \ Para os Estados Unidos, desempenhar um papel de relevo na política cultural de um mundo pós-nacional tem escolhos internos muito . xos. Pode significar dar espaço à legitimidade dos direitos culturais, rei tos para manter a diferença cultural com protecção e garantias oficiais: Pode significar urna dolorosa cisão com uma concepção .da economia americana fundamentalmente fordiana, industrial, .como sabemos que são os agentes da informação global, os fornecedores de serviços, os médicos da moda. Pode significar adoptar e integrar na vida pessoal o que até aqui I se confinava ao mundo da Broadway, de Hollywood e da Disneylândia: de iden J a importação de experiências, a produção de fantasias, o tidades, a exportação de modas, a cunhagem de pluralidades. Pode signi-: . ficar distinguir a nossa ligação à América da nossa vontade de morrer pe-; los Estados Unidos. Esta ideia converge com a seguinte proposta de' LlUren Berlant:
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o indi víduo que quiser evitar a loucura melancólica da abstracção de si que , é a cidadania e resistir à tentação de vencer sozinho o contexto político material e m que vive tem que desenvolver tácticas de recusa da sua interarticulação, velha ' j ;í de qu atrocentos anos, entre os Estados Unidos e a América, a nação e a utopia (i 991, p. 217). Ou sej::t, pode ser tempo. de repensar o monopatriotismo, o patriotismo dirigido exclusivamente ao hífen entre nação e Estado, e permitir ". que os problemas materiais que enfrentamos -::- défice, .ambiente, aborto , racismo, drogas e emprego - definam os grupos sociais e ideias pelas quais estamos dispostos a viver - e a morrer. A nação extravagante i pode ser apenas o primeiro de uma série de novos patriotismos de que outros podem ser os reformados, os desempregados e os deficientes, I •
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bem corno os cientistas; as mulheres, e os hispânicos. Alguns de nós continuarão ainda a .querer viver - e morrer - pelos. Estados Vnidos. Mas muitas destas novas soberanias são intrinsecamente pós-nacionais. É certo que representam mais motivos humanos de filiação do que a filiação estatal, ou partidária, e bases de debate e interalianças mais interessantes. Os voluntários de Ross Perot, em 1992, deram-nos um breve e intenso vislumbre da força do patriotismo totalmente divor:ciado de partidos, governo ou Estado. A América ainda pode construir outra rativa de significado duradouro, uma narrativa dos usos da lealdade depois do fim do Estado-nação. Nesta narrativa, os territórios c/elimitados poderiam dar lugar a redes de diáspora, as nações a transnaçõ'es, e o próprio patriotismo poderia tornar-se plural, serial, contextual e móvel. Temos aqu i urn a direcção para o futuro do patriotismo num mundo pós-colonial. Não é provável queo patriotismo - cOmo a históriá- acabe, . mas o seu objecto pode ser susceptível de transformação, em teoria e na ' prática . Resta agora perguntar o que é que transnações e transnacionalismo têm a ver com a pós-nacionalidade e as suas possibilidades. Esta relação exige, por direito próprio, um tratamento minucioso, mas impõem-se umas quantas observações. Quando as populações são destenitorializadas e incompletamente nacionalizadas, quando as nações cindem e voltam combi-. . nar-se, quando ?S Estados enfrentam dificuldades insuperáveis. na tarefa de produzir «o povo», as transnações são os mais importantes palcos sociais para encenar a crise do patriotismo. . Os resultados são seguramente contraditórios: Deslocamento e exílio, migração e terror criam fortes apegos a ideias de terra natal que parecem mais territoriais do que. nunca. Mas também é possível detectar em muitas dessas transnações(umas étnicas, outras religiosas, .umas fi lantrópicas, outras militaristas) os elementos de um imaginário pós-nacional. Estes elementos, para quem quiser apressar a falênc ia do Estado-nação, com todas as suas contradições, requerem estímul o e crítici1 . Deste modo, as formas sociais transn,bonais podem não só gerar anseios pós-nacionais como, daí- existênci a a movimentos, organizações , 235
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espaços, pós-nacionais. Nestes espaços pós-nacionais, a incapacidade do I Estado-nação para tolerar a diversidade (pois procura a homogeneidade ! dos seus cidadãos, a simultaneidade da sua presença, a consensual idade I da sua narrativa e a esta.bilidade dos seus cidadãos) talvez possa ser ven- i cida. !
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Este capítulo trata de algumas interrogações que surgiram' durante · a elaboração de uma série de textos sobre fluxos culturais globais. Começo por três dessas perguntas. Qual o lugar da localidade nos esquemas em torno dos fluxos culturais globais? A antropologia detém algum privilégio retórico especial num mundo em que a localidade parece ter perdido as suas amarras ontológicas? Pode a relaçã9 mutuamente constitutiva entre antropologia e localidade sobreviver num mundo extremamente deslocalizado? A minha posição não radica directamente num interesse'pela produção do espaço (Lefebvre, 1991) ou pelas ansied,ades ,disciplinares da antropologia enquanto tal, embora ambas as coisas informem grandemente a minha resposta a estas per, guntas. Prefiro travar um debate continuado sobre o futuro d, o Estado- . "\ -nação (cap. 8). O que pretendo saber éo que pode significar localidade numa situação em que o Estado-nação enfrente determinado tipo de desestabilização transnacional. Considero a localidade mais relacional e contextual do que escalar ou , espacial. Vejo-a como uma qualidade fenomenológica complexa consti236
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Um dos grarides clichés da teoria social (que remonta a Tónnies, Weber e Durkheim) é que, nas sociedades modernas, a localidade enqu'a nto ou diacrítico da vida social está sitiada. Mas a localidade é um facto social intrinsecamente frágil. Mesmo nas situações mais íntimas; espaci almente confinadas, geogr'l-ficamente isoladas, a localidade tem que ser com cuidado c0I1tra diversos tipos de riscos. Estes riscos têm . sido conceptu3.lizados de formas diferentes conforme as épocas e os lugares. Em muitas sociedades, as fronteiras são zonas de perigo que requerem particular manutenção ritual; noutras sociedades, as relações sociais são intri nsecamente físseis, criando uma tendência persistente para a dissolução dos b irros . Noutras situações ainda, a ecologia e a tecnologia dit3m que as casas e os espaços habitados estejam sempre a mudar, contri23 8
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buindo assim para o sentimento endémico de ansiedade e instabilidade da vida social. Muito do chamàdó registo etnográfico pode ser reescrito e deste ponto de vista. No primeiro caso, uma grande parte dos chamados ritos de passagem está relacionada com a produção do que poderemos chamar sujeitos locais, agentes que-pertencem efectivamente a uma comunidade situada de paren'tes, vizinhos, amigos e inimigos. As nias de bapti,smo e tonsura, sacrifício e segregação, circuncisão e privação são técnicas sociais complexas para a inscrição da localidade nos corpos . Vendo-as de maneira um tanto diferente, são modos de incorporar a localidade, bem como de localizar os corpos em definidas social e espacialmente. O simbolismo espacial dos ritos , de passagem tem talvez recebido menos atenção do que o seu simbolIsmo físico e social. Esses ritos não são simples técnicas mecânicas de agregação social, são técnicas sociais de produção de «nativos», categoria . que analisei noutra sede (Appadurai, 1988). O que é verdade para a produção de sujeitos locais no registo etnográfico . é-o para o processo que produz materialmente a localidade. A construção de casas, a organização de caminhos e passagens, a feitura e refeitura de campos e hortas, a cartografia e negociação de espaços trans-humahos e terrenos de caça-recolecção é a preocupação incessante, muitas vezes monótona, de muitas pequenas comunidades estudadas pelos antropólogos. Estas técnicas de produção espacial de localidade estao copiosamente documentadas. Mas normalmente não são consideradas casos de produção de localidade, quer como propriedade geral da vida social, quer como validação particular dessa propriedade. Divididos descritivamente em tecnologias de construção de habitação, horticultura e similares, estes resultados materiais . têm sido tomados como fins em si e não como momentos de uma tecnologia ,. (e teleologia) geral de localização. A produção de localidade nas sociedades historicamente estudadas pelos (em ilhas e aldei.as e de caça) nã,o e SImplesmente uma q\lestao de produzlI bem como os pro-' prios bairros que contextualizam estas subjectividades. Como amplarriente 239
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tuída por uma ·série de vínculos entre o sentido da imediatidade social, a tecnologia da interactividade e a relatividade dos contextos. Esta qualidade fenomenológica, que se exprime em certos tipos de acção, socia1idade e reprodutibilidade, é o principal predicado da localidade como cateGoria . (ou obJecto) que procuro explorar. Pelo contrário, uso o termo bairro para referir as formas sociais efectivamente existentes em que a localidade enquanto dimensão ou valor se realiza de vários ,modos . Os bairros, nesta acepção, são comunidades situadas caracterizadas pela sua realidade, espacial ou virtual, e pelo seu potencial para a reprodução social!. . No âmbito desta reflexãó; faço mais duas perguntas: como é que a localidade, enquanto aspecto da vida social, se relaciona com os bairros enquanto formas sociais substantivas? Terá a história rece nte, e em especial a crise global do Estado-nação, alterado substancialmente a relação da localidade com os bairros? Um modo mais simples de caracterizar estes num múltiplos objectivos é perguntar: que pode significar a mundo em que a localização espacial, a ·interacção quotidiana e a escala social nem sempre são isomórficas?
Locali::.ar o sujeito . Um dos grandes clichés da teoria social (que remonta a Tonnies, Weber e Durkheim) é que, üas sociedades modernas, a localidade enqu·anto propriedade ou diacrítico da vida social está sitiada. Mas a localidade é um facto social intrinsecamente frágil. Mesmo nas situações mais íntimas; espaci:::lmenre confinadas, geograficamente isoladas, a focalidade tem que ser m:lntida com cuidado contra diversos tipos de riscos. Estes riscos têm . sido conceptu:llizados de formas diferentes conforme as épocas e os lugares. Em muitas sociedades, as fronteiras são zonas de perigo que requerem particul::J.r manutenção ritual; noutras sociedades, as relações sociais são intrinsecamente físseis, criando uma tendência persistente para a dis solução dos birros. Noutras situações ainda, a ecologia e a tecnologia di t3m que as c:::sas e os espaços habitados estejam sempre a mudar, contri-
DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO buindo assim para o sentimento endémico de ansiedade e instabilidade da vida social. Muito do chamàdci registo etnográfico pode ser reescrito e relido deste ponto de vista. No primeiro caso, uma grande parte dos chamados ritos de passagem está relacionada com a produção do que poderemos chamar sujeitos locais, agentes que- pertencem efectivamente a uma co:munidade situada de parentes, vizinhos, amigos e inimigos . As cerimónias de bapti.smo e tonsura, sacrifício e segregação, circuncisão e privação são técnicas sociais complexas para a inscrição da localidade nos corpos . Vendo-as de maneira um tanto diferente, são modos de incorporar a localidade, bem como de localizar os corpos em definidas social e espacialmente. O simbolismo espacial dos ritos · de passagem tem talvez recebido menos atenção do que o seu simbolIsmo físico e social. Esses ritos não são simples técnicas mecânicas de agregação social, são técnicas sociais de produção de «nativos», categoria . que analisei noutra sede {Appadurai, 1988). O que é verdade para a produção de sujeitos locais no registo etnográfico . é-o para o processo que produz materialmente a localidade. A construção de casas, a organização de caminhos e passagens, a feitura e refeitura de campos e hortas, a cartografia e negociação de espaços trans-humanos e terrenos de caça-recolecção é a preocupação incessante, muitas vezes monótona, de muitas pequenas comunidades estudadas pelos antropólogos. Estas técnicas de produção espacial de localidade estao copiosamente documentadas. Mas normalmente não são consideradas casos de produção de localidade, quer como propriedade geral da vida social, quer como validação particular dessa propriedade. Divididos descritivamente em tecnologias de construção de habitação, horticultura e similares, estes resultados materiais . têm sido tomados como fins em si e não como momentos de uma tecnologia '... ' . (e teleologia) geral de localização. . . . . A produção de localidade nas sociedades historicamente estudadas pelos (em ilhas e aldei.as e de caça) e SImplesmente uma qpestao de prodUZIr bem como os pro-· prios bairros que contextualizam estas subjectividades. Como amplamente
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de, IO.gO., a etnO.grafia tem sido. invO.luntariamente cúmplice desta acti - \ vidade. É uma cO.isa que se refere a saber e representação. e não. a culpa O.uviO.lência. O prO.jectO. etnO.gráficO. é peculiarmente isO.mórficO. dO.S r própriO.s saberes que prO.cura descO.brir e dO.cumentar, pO.is tan to' O. prO.- \ jectO. etnO.aráficO. cO.mO. O.sprO.jectO.s sO.ciais qUe prO.cura descrever têm 2 a de IO.c alidade cO.mO. seu ·fim O.rientadO.r . NãO rec O.nhecer que estv facto em ambO.s o.s prO.jectO.s implica apen.as a:ções e mais mO.nótO.nO.s e discretO.s (cO.nstruçãO. de habItaçaO., baptlsmO. de crianças, rituais de balizagem, rituais de saudação., purificação. espiritu al) é não. recO.nhecer cO.nstitutivamente as garantias de adequação. pecial da etnO.grafia a determinados tipO.s de e sua falta de reflexividade cO.mO. projectO. de cO.nhecImentO. e reprO.duçaO.. Arrastadas para a própria IO.calizaçãO. que prO.curam dO.cumentar, a mai O. r parte das descrições etnO.gráficas tO.maram a IO.calidade cO.m O. I base, não. cómO. fig ura, sem recO.nhecerem a sua fragiliqade O.U a sua ética como propriedade da vida social. Surge assim um a cO.l abO. raç ãO. não. prO.blem atizada cO.m a sensação. de inérci a em que a IO.c alid ade, cO.mO. estrutura de sentimento., sO.bretudO. assenta. O valO.r decO.nceber de nO.vO. a etnO.grafia (e de reler a etnO.grafia anteriO.r) desta perspectiva é triplo.: (1) a história da etnO.grafia deixa de ser lima história dO.s bairrO.s e passa a ser uma história das técnicas de prO.duçãO. de IO.calidade; (2) abre uma nO.va maneira de pensar. a. cO.mplexa . . -produção. de categO.rias indígenas por intelectuais, admlDIstraqores, lmguistas, missiO.náriO.s e etnólO.gO.s O.rgânicO.s que rO.deia grandes pO.rções da história mO.nO.gráfica da antrO.pO.lO.gia; (3).permite que a etnO.grafia do. mO.demo. e da prO.duçãO. de IO.calidade em cO.ndições modernas faça parte do. cO.ntributO. mais geral do. registO. etnO.gráficO. tout cour!o JuntO.s, estes três efeitos pO.der5.O. proteger do. usO. fácil de váriO.s trO.pO.s ·antagónicO.s (O.utrO.ra e hO.je, antes e depois, pequeno. e grande, cO.nfinadO. O.U não. cO.nfinadO., estável fluido., quente e fri p) que implicitamente O.põem etnO.grafias do e . no presente a etnO.grafias do e no. passado..
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Os contextos da localidade FO.quei até agora a IO.cal idade como prO.priedade fenO.menO.lógica da vida social, urna estrutura de sentimento. produzida pO.r determinadas formas de activi-dade intenciO.nal e que produz certos tipO.s de efeito material. Mas' este aspecto' dimensiO.nal da IO.caliqade não se pode separar dos cenáriO.s reais O.nde e através dos quais a vida sO.cial se reprO.duz. Para fazer . a ligação. entre localidade como propriedade da vida social e O.S bairros cO.mo formas sO.ciais, temos que fazer urna exposição. mais cuidadO.sa do problema do. cO.ntexto. A produção de bairros tem sempre bape e por isso cO.ntextual. Ou seja, O.S bairros intrinsecamente O. que são pO.rque se O.põem a O.utra cO.i sa e deri vam de O.utros bairrO.s já prO.duzidO.s. Na cO.nsciência prática de muitas cO.munidades humanas, essa O.utra cO.i sa é muitas vezes conceptualizada ecologicamente cO.mO. flO.resta O.U estepe, oceano O.U deserto., pântano O.U rio.. Estes sinais eCO.lógicO.s marcam muitas vezes limites que ao mesmo. tempo assinalam o cO.meçO. das fO.rças e categO.rias não. humanas ou das forças que se recO.nhece cO.mO. humanas mas são. bárbaras O.U demO.níacas. Estes cO.ntextO.s, contra O.S quais se produzem e se figuram O.S bairrO.s, são frequentemente cO.nsiderados terrenO.s eCO.lógicos, sociais e cO.smO.lógicO.s. Será indicado. dar aqui uma nO.ta sobre O. lado sO.cial do. cO.ntextO. dos bairros '- O.U seja, a existência de O.utrO.s bairrO.s - que evO.ca a ideia de etnopaisagem (cap. 3), termo. que usei para afastar a ideia de que as identidades de grupO. implicam necessariamente que as culturas têm que ser · cO.nsideradas fO.rmas espacialmente delimitadas, histO.ricamente inocentes ou etnicamente hO.mogéneas . Na acepção que empreguei estava implícita a ideia de que a etnO.paisagem ganha destaque especialmente no. fim do. século. Xx, quando O. mO.vimentO. humano., a vO.latilidade das imagens e a . identidade cO.nsciente prO.dutO.ra de actividades dO.s EstadO.s-nações emprestam uma característica fundamentalmente instável e perspectivada à vida sO.cial. . '\ E no. entant6>és bairros são sempre, em certa medida, etnO.paisagens, porquanto implicam os projectosétnicO.s de OutrO.s e a cO.nsciência desses 243
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projectos. Ou seja, determinados bairros reconhecem por vezes que a sua lócrica é uma lógica geral com que Outros constroem também vidas-muno . . dos reconhecíveis, sociais, humanas, situadas. Este saber pode codificar-se na pragmática dos rituais associados à limpeza de matas, ao arranjo de hortas, à construção de casas, coisas que trazem sempre implícito um sentido da teleologia da construção de localidade" Em sociedades mais complexas que geralmente associamos a literacia, classes sacerdotais e ordens superiores de controlo e disseminação de ideias fortes, esses conhecimentos estão codificados, como no caso do ritual associado à coloniza' . _ ção de novas aldeias pelos brâmanes na Índia pré-colonial. ' . A construcão de localidade tem sempre um momento de colomzaçao, um momento> histórico cfonotípico em que há um reconhecimento formal de que a produção de um bairro requer acção deliberada, .arriscáda, até violenta, 'relativamente ao solo, às florestas, aos animais e aos outros 'seres humanos. Muita da violência associada aos rituais de, fundação (Bloch, 1986) é o reconhecimento da força necessária para arrancar uma localidade a povos e lugares anteriormente' descontrolados. Por outras palavras'(De Certeau, 1984), a transformação espaços em lugares requer um momento consciente que pode depois ser recordado como relativamente rotineiro. A produção de bairros é intrinsecamente colonizadora, no sentido em que implica a afirmação do poder socialmente (muitas vezes ritualmente) organizado 'sobre os lugares e cenários considerados poten- . cialmente caóticos ou rebeldes. A ansiedade que caracteriza muitos rituais de habitação, ou instalação é um reconhecimento da violência implícita nesses actos de colonização. Alguma desta ansiedade perdura na , repetição ritual desses momentos muito depois do evento fundador de colonização. Neste sentido, a produção de um bairro é intrinsecamente um exercício de poder sobre um qualquer ambiente hostil ou recalcitrante, que '' " pode assumir a forma de um outro bairro. . . Muito do material narrativo descoberto por etnógrafos a trabalhar em pequenas comunidades, e muito das suas descrições de rituais de agricultura, construção de casas e transição social, salienta a pura fragilidade material que acompanha a produção e manutenção de localidade. Não obs-
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f,; tante, por mais fundo que vá nas particularidades do lugar, solo e técnica ritual, a descrição invariavelmente contém ou implica uma teoria do con- 0 " texto - uma teoria, por outras palavras, daquilo que, contra quê, apesar O Ir do que, e em relação a que se produz um bairro. O problema da relação entre bairro e contexto requer muito mais atenção do que aqui podemos l.J \' dar-lhe. Passo a esboçar as dimensões gerais ,deste problema. O principal ! dilema é que os bairros são contextos e ao mesmo tempo requerem e pro- U " " duzem contextos. Os bairros são contextos no sentido em que fornecem o quadro ou cenário onde várias formas de acção humana (produtiva, reinterpretativa, performativa) podem iniciar-se e reavzar-se sig- , O mficatIvamente. Como as vidas-mundos significativas requerem padrões O !! de acção legíveis e reprodutíveis, são como textos por isso exigem um' f ) i ou muitos contextos. De um outro ponto cÍe vista, um bairro é um contexto, () ou um conjunto de contextos, em que uma acção social significativa pode , ser gerada e interpretada. Neste sentido, os bairros são contextos e os con- (.'-.' )' .''J , textos são bairros. Um bairro é um centro de interpretação multípÍice. , (), Na medida em que os bairros são imaginados, produzidos e mantidos (- ' ) .' v,:; " contra uma qualquer base (social, material, ambiental), requerem e proI "'), , ',;,...;1 duzem também contextos contra os quais toma forma a sua inteligibilidat ... ) .: . de. A dimensão geradora de contextos dos bairros é uma imporrY" tante porque. permite arrancar com uma perspectiva teorétieq sobre a relação entre realidades locais e globais. Como? A maneira comq os bairO ros são produzidos reproduzidos requer a construção contínua, tanto prá() tica como discursiva, de uma etnopaisagem' (necessariamente não local) em que se imagina que decorrem as práticas e os projectos: Em uma dimensão, em um momento e de 'urna perspectiva, os bair- ' ' Oi) ros, enquanto contextos existentes, são pressupostos para a produção' de " , sujeitos locais . .ou seja, são necessários lugares e espaços existentes dentro de um bairro espaciotemporal historicamente produzido e com uma série de rituais, categorias sociais, profissionais qualificados e pú0, blicos informados para os novos membros (?ebés,. estranhos, escravos, convIdados, parentes afins) sejam feItos O temporária ou permanentemente sujeitos iocais. Vemos aqui' a localidaI.)
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de na sua dimensão de dado, de normalidade, de hábito. Nesta dimensão, um bairro parece ser simplesmente um conjunto de contextos mente récebidos, materialmente integrados, socialmente apropriados, naturalmente sem problemas: os pais dão filhos, as hortas dão legumes, bruxedo dá doença, caça dá carne, mulheresdãobebés, sangue dá sémen, xamãs dão visões, epor aí fora. Estes contextos concertados parecem fornecer à produção técnica de sujeitos locais um cenário sem problemas de um modo regular e regulado. Mas à medida que estes sujeitos locais entram nas actividades sociais de produção, representação e reprodução (bem como na obra da cultura), contribuem, em geral involuntariamente, para a criação de contextos que podem exceder os limites materiais e conceptuais existentes no bairro. As aspirações de afinidade estendem as redes matrimoniais a novas aldeias; as expedições de pesca produzem melhoramentos do que é entendido como águas navegáveis .e ricas em peixe, as expedições de caça alargam o sentido de floresta como quadro ecológico reactivo; os conflitos sociais forçam novas estratégias de saída e recolonização;as actividades de comércio .produzem novos mundos-mercadoria, logo, novas parcerias com agrupamentos regionais ainda desconhecidos; a guerra traz novas alianças diplomáticas com vizinhos anteriormente hostis. E todas estas possibilidades contribuem para subtis alterações de língua, visão do mundo, práticaritual e ideia de si colectiva. Resumindo: à medida que os sujeitos 10'cais vão desenvolvendo a tarefa continuada de reproduzir o seu bairro, as continoências da história, ambiente e imaginação contêm o potencial de . novos . contextos (materiais, sociais . e imaginativos) a produzir. Deste modo, atr:J.vés dos caprichos da acção social dos sujeitos locais, o bairro enquanto contexto produz o .contexto de bairro. Com o tempo, esta dialéctica altera as condições de produção da localidade enquanto tal. Por outraspalavras, é assim que os sujeitos da história se tornam sujeitos histó. ricos para que nenhuma comunidade humana, por mais estável, estática, confinada ou" isolada na aparência, possa ser proveitosamente considerada história fria ou marginal. Esta observação converge com a de Marshall Sahlins sobre a dinâmica da mudança conjuntural (1985). 246
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Considere-se a relação geral entre vários grupos de lanomâmis das florestas húmidas do Brasil e Venezuela. A relação entre ções populacionais, guerra predatória e competição sexual pode ser vista um processo em que determinadas aldeias ianomâmis (bairros), nas e pelas suas acções, preocupações e estratégias, produzem efectivamente um conjunto mais vasto de contextos para si e para outros. Cria-se assim um terntório geral de movimento, interacção e colonização ianomâmi em que determinada aldeia reage a um contexto material mais amplo do que ela própria, ao mesmo tempo que contribui para a criação desse cóntexto espaço e mais vasto. Numa perspectiva de larga ·esca!iJ., a rede geral tempo em que os lanbmâmis produzem e geram contextos recíprocos para actos espeCíficos de localização (construção de aldeias) produz também alguns dos contextos em que o conjunto dos Ianomâmis enfrenta os Estados-nações Brasil e Venezuela. Neste sentido, as actividades iariomanis de produção de localidade são não apenas determinadas pelo contexto como geradoras de contexto. E isto aplica-se a todas as actividades de produção de localidade. . .' Portanto, os bairros parecem paradoxais porque tanto constituem como requerem contextos. Enquanto etnopaisagens, os bairros implicam inevitavelmente uma consciência relacional de outros bairros, mas ao mesmo tempo actuam como bairros com autonomia de interpretação, valor e prática material. Assím, a localidade enquanto facto relacional não é o mesmo que a localidade como valor prático na produção quotidiana de sujeitos e na colonização do espaço. A produção de localidi:lde é inevitavelmente e até certo ponto geradora de contexto. O que define esta medida é muito substancialmente uma questão de relações entre os contextos que os bairros criam e os que encontram. É uma questão de poder social e das diferentes escalas de organização e controlo em que se integram determinados espaços (e lugares) . Embora as práticas' e projectos dos lanomâmis sejam produtoras de contexto para o Estado brasileiro, é ainda mais verdade que estas práticas do Estado-nação brasileiro implicam forças , de intervenção duras, esmagadoras, mesmo, exploração ambiental em larga escala e migração 247
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pecíficas. Os sociolinguistas, especialmente os que vêm da etnografia da U fala (Hymes, 1974), são a melhor fonte para esta abordagem Ll A estrutura do contexto não pode nem deve ser tirada inteiramente da e da morfologia dos textos . A produção de texto e a produção , de contexto têm lógicas diferentes e características metapragmátícas. Os contextos são produzidos na imbricação complexa das práticas discursivas e não discursivas e, por isso, o sentido em que contextos implicam U outros contextos, de forma a que cada um deles implique uma rede glo-, . . bal de contextos, é diferente do sentido em que os textos implicam ou,. , tros textos e por fim todos os textos. Não é provável que as reiações in- ""'" tertextuais, de que sabemos já bastante, operem do mesmo modo que as relações intercontextuaís. Por fim, e para nosso temor, prevê-se que teremos que encontrar maneiras de lioO'ar as teorias daintertextualidade às U teorias de intercontextualidade. Uma teoria da globalização forte,de UITl ',('"' ponto de vista sociocultural, talvez exija uma coisa que de certeza não · U temos: uma teoria das relações intercontextuais que integramo ' nosso ' sentido actual dos intertextos. Mas esse é verdadeiramente outro projecto. A relação entre bairro como contexto e o contexto de bairro, zada pelas acções dos sujeitos locais históricos, exige novas complexidades no tipo de mundo em que agora vivemos. Neste novo tipo de mundo, a produção de bairros ocorre cada vez mais em condições em que o sistema dos Estados-nações é a charneira normativa para a produção de actividades locais e translocais. Esta situação, em que as relações de poder que afectam a produção de ,localidade são fundamentalmente translocais, é o tema central da próxima secção. (
e colonização promovidas pelo Estado com que os Ianomâmis se confrontamem termos de enorme desigualdade. Neste sentido, a que voltarei na secção seguinte' sobre as condições da produção de localidade na era do Estado-nação, os Ianomâmis estão a ser regularmente localizados no sentido de fixados, explorados, talvez mesmo depurados ,no contexto da orO'anização social brasileira. Assim, enquanto ainda estão em posição de o . ' , . ,gerar contextos à medida que produzem e, reproduzem os seus propnos bairros, são cada vez mais prisioneiros das actividades produtoras de contexto do Estado-nação, que vai fazendo com que os seus esforços por produzir localidade pareçam débeis ou mesmo condenados. Este exemplo tem aplicabilidade geral. A capacidade dos bairros para produzirem contextos (dentro dos quais as suas actividades localizadoras adquirem significado e potencial histórico) e de produzir sujeitos locais é profundamente afectada pelas capacidades produtoras de localidade das formações sociais de maior (Estados-nações, reinos, impérios missionários e cartéis comerciais) de determinar a forma geral de todos os bairros-ao alcance do seu poder. Assim, o poder é sempre uma característica-chave das relações contextuais dos bairros, e mesmo o «primeiro contacto» implica sempre narrativas diferentes de pioneirismo para os dois lados envolvidos. A economia política que liga os bairros aos contextos é portanto metodolóO'icae historicamente complexa. As nossas ideias de contexto de. o rivam em, grande medida da linguística. Até há pouco tempo, o contexto · era definido de um modo oportunista para dar sentido a determinadas frases, rituais) actuações e outros tipos de texto. Embora a produção de textos tenha sido cuidadosamente estudada de diferentes pontos de vista (Bauman e Briggs, 1990; Hanks, 1989), a estrutura e morfologia dos contextos só ultimamente' se tornou alvo de uma atenção sistemática (Duranti e Goodwin, 1992). Para além da linguística antropologica, o coritexto continua a ser uma ideia mal definida, um conceito inerte dicador de um ambiente inerte. Quando os antropólogos sociais apelam ao contexto, é geralmente num sentido mal compreendido do quadro sociaI em que é possível entender plenamente acções ou representações es-
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Tudo o que analisámos até agora como conjunto de problemas estru- . turais (localidade e bairros, texto e contexto, etnopai sagens e vidas-mundos) tem que ser agora explicitamente historicizado. Indiquei já que a re249
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lação de localidade (e de bairro) com os contextos é histórica e dialéctica e que a dimensão geradora de contextos dos lugares (na sua qualidade de etnopaisagens) é distinta das características provedoras de contexto (na sua qualidade de bairros). Como é que estas afirmações ajudam a compreender o que acontece ' à produção de localidade no ' mundo contemporâneo? ,O entendimento contemporâneo da globalização (Balibar e Wallerstein, 1991; Featherstone, 1990; King, 1991; Robertson, 1992; Rosenau, 1990) parece indicar a passagem do realce dado às viagens globais da maneira de pensar e da organização do capitalismo para 'algo diferente, a difusão da forma nação, em especial se ditada pela concomitante difusão do colonialismo e do capitalismo impresso. Se há problema que parece agora dominar as ciências humanas, é o do nacionalismo e do Estado-nação-(Anderson, 1991; Bhabha, 1990; Chatteijee, 1986, 1993; Gellner, 1983; Hobsbawm, 1990). Na realidade, só o tempo dirá se as nossas preocupações actuais com o Estado-nação se justificam, mas os primórdios de um tratamento antropo- 'I[ , lógico desta questão são evidentes no contributo crescente dado pelos antropólogos à problemática do Estado-nação (Borneman, 1992; Moore, 1993; Handler, 1988; Herzfeld, 1982; Kapferer, 1988; Tambiah, 1986; Urbao e Sherzer, 1991; Van der Veer, 1994). Alguns destes trabalhos consideram explicitamente o contexto global das formações nacionais culturais (Hannerz, 1992; Basch et aI., 1994; Foster, 1991; Friedman, 1990; Gupta, e Ferguson, 1992; Rouse, 1991; Sahlins, 1992). Mas falta ainda aparecer uma estrutura que relacione o global, o nacional e o local. Nesta secção, espero alargar as minhas ideias sobre sujeitos locais e contextos localizados e esboçar os contornos de uma tese sobre os problemas especiais que assaltam a produção de localidade num mundo de diáspora, desterritorializado e transnacional (Deleuze e Guattari, 1987). É um mundo em que a comunicação electrónica está a transformar as re lo.ções entre informação e mediatização e em gueos Estados-nações lut:lm por manter o controlo sobre as suas populações perante uma série de movimentos e organizações e transnacionais. Um bom exame do s desafios à produção de localidade neste mundo exigiria um 250
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tratamento alargado que está para além do âmbito deste capítulo: Mas podemos delinear alguns elementos de uma abordagem a este problema. Em termos simples, a tarefa de produzir localidadé (como uma estrutura de sentimento, uma propriedade da vida social e uma ideologia de comunidade situada) é cada vez mais uma luta. É uma luta com muitas dimensões de que destacarei três: (1) o aumento regular dos esforços do moderno Estado-nação para definir todos os bairros sob o signo das suas formas de lealdade e filiação; (2) a crescente disjuntura entre território, subjectividade e movimento social colectivo; e (3) a progressiva erosão, devida principalmente força e à forma da mediatização eleqtrónica, da relação entre bairros espaciais e virtuais . Para tornaras coisas ainda mais complexas, estas três dimensões são por sua vez interactivas. O assenta a sua legitimidade na intensidade da sua presença significativa 'num corpo contínuo de território delimitado. Opera policiando as fronteiras, produzindo povo (Balibar, 1991), construindo cidadãos, definindo capitais, monumentos, Cidades, águaS e solos e construindo ,,' os seus locais de memória e comemoração, como cemitérios e cenotáfios, mausoléus e museus. O Estado-nação leva a todo o seu território o projecto bizarramente contraditório de criar um espaço liso, contíguo e homogéneo de nacionalidade e simultaneamente um conjunto de lugares e espaços (prisões, quartéis, aeroportos, estações de rádio, repartições públicas, parques, paradas, vias processionais) calculados para distinções e divisões in- . temas necessárias à cerimónia, vigilância, disciplina e mobilização do Estado. Estes são também os espaços e lugares que criam e perpetuam as distinções entre governantes e governados, criminosos e agentes da ordem, multidões e líderes, actores e observadores. ' Mediante aparelhos tão diversos como museus e centros de saúde, cor'-, reios e esquadras, cabinas de portagem e de telefone, o Estado-nação cria uma vasta rede de técnicas formais ÍIlformais de nacionalização de todo o espaço con siderado sob a sua autoridade soberana. Claro que os Estados variam quanto à forma de penetrar nos recessos da vida quotidiana. Subversão, evasão e resistência, por vezes escatológica (Mbembc, 1992), outras irónica (Comaroff e Comaroff, 1992a), outras ainda c'!andestinas 251
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(Scott, 1990), umas vezes espontâneas e outras planeadas, são muito 1· rentes. Com efeito, a incapacidade do Estado-nação para conter e defimr as vidas dos seus cidadãos está escrita a letras gordas no crescimento. das economias paralelas, nos exércitos e polícias privados e semiprivados, nos nacionalismos secessionistas e numa série de organizações n'ão governa. mentais que proporcionam alternativas ao controlo nacional dos meios de subsistência e justiça'Os Estados variam também quanto à natureza e à extensão dos seus I interesses vida local e nas formas culturais em que investem as suas . I mais profundas paranóias de soberania e controlo. Cuspir na rua é muito perigoso em Singapura e na Papua-Nova Guiné; os ajuntamentos são um problema no Haiti e nos Camarões; desrespeitar o imperador n,ão é bom , no Japão; e incitar sentimentos pró-muçulmanos é mal visto na-India con- I temporânea. A lista poderia continuar: os Estados-nações têm os seus locais próprios de sacralidade, os seus testes especiais de lealdade e traição, as suas medidas especiais de submissão e desordem. Estão ligados a problemas reais e detectados de ilegalidade, de ideologias reinantes de liberalização ou o seu oposto, de compromisso relativo com a respeitabilidade internacional , de repulsas de profundidade variável pelos regimes antecessores imediatos e de certas histórias de antagonismo ou colaboração étnicos. No mundo posterior a 1989, seja ele como for, não parece haver laços muito fiáveis entre ideologias de Estado-providência, economia de mercado, poderio militar e pureza étnica. Contudo, quer pensemos nas turbulentas socied:ldes pós-comunistas da Europa de Leste, nas agressivas cidades-Estados do Extremo Oriente (como Taiwan, Singapura e Hong Kong), nas complexas organizações da América Latina, nas economias de Estado falidas da maior parte da Africa Subsariana ou nos turbulentos Estados fundamentalistas de quase todo o Médio Oriente e Sul da Ásia, todos o mesmo tipo de desafios à produção de bairros por sujeitos locais. . Do ponto de vista do nacionalismo moderno, os bairros existem principalmente para incubar e reproduzir nacionais - e não para a produção de sujeitos locais. Para o Estado-nação mocterno,a localida252
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de é um sítio de nostalgias, celebrações e comemorações apropriadas naOs Ü cionalmente ou uma condição necessária da produção de ,bairros enquanto formações sociais representam ansiedade :para os Es- \......-. tados-nações, pois contêm normalmente espaços grandes ou residuáis onde as técnicas pró-nação (controlo de nascimentos, uniformidade linguística, disciplina económica, eficiência nas comunicações e lealdade política) serão provavelmente fracas ou contestadas. Ao mesmo tempo, os bairros são fonte de trabalhadores políticos e funcionários de partido, professores e soldados,técnicos de televisão e produtores agrícolas . Os () bairros não são dispensáveis, ,mesmo sendo potencialmente t raiçoeiros. Para o projecto do Estado-nação, os bairros representam uma fonte perene de entropia e vazio de poder. Têm que ser quase tão bem policiados O como as fronteiras. . · . A tarefa de produzir báirros - vidas'-mundos constituídas por associa- O Q ções relativamente estáveis, por histórias relativamente conhecidas e partilhadas e POI; espaços e lugares colectivamenté atravessados e legíveis () vê-se muitas vezes a braços com os projectos do Estado-naçã0 3. E isto em parte por causa de os compromissos e apegos (por vezes incorrectamente classificados como «primordiais») que caracterizam as subjectividades locais serem mais prementes, mais continuados e por vezes mais distractivos do que o Estado-nação pode permitir-se. É também porque as memólocais têm aos seus letreirQs de loja e nomes rias e apegos que os de ruas, caminhos e enfiadas de ruas favoritos, tempos e lugares de ajuntamento e fuga são muitas vezes incompatíveis com as necessidades do Estado-nação para a vida pública regulamentada. Além disso, é inerente .() à naturez,a da vida local desenvolver-se de certo modo ao invés dos outros bairros, produzindo os seus próprios contextos de alteridade (espacial, soü "'-'" cial e técnica), contextosque podem não satisfazer as necessidades de es. tandardização espacial e social que são requisito prévio do cidadão nacional disciplinado. Os bairros são cenários ideais para a sua própria reprod ução, processo fundamentalmente oposto ao imaginário do Estado-nação em que os bairO ros se destinam a ser instâncias e exemplares de um modo generalizável
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de pertença a um imaginário territorial mais vasto. Os modos de localização mais próprios do Estado-nação têm características disciplinares: na saúde pública e limpeza de ruas, nas prisões e regeneração de bairros da lata, nos campos de refugiados e repartições de todo o tipo, o Estado-nação localiza por ordem, por decreto e por vezes com recurso ao uso declarado da força. Esta espécie de localização cria graves constrangimentos ou mesmo obstáculos directos à sobrevivência da localidade geradora de contexto e não à localidade determinada pelo contexto. Mas o isomorfismo de pessoas, território e soberania legítima que constitui a carta normativa do Estado-nação moderno está por sua vez ameaçado pelas formas de circulação de pessoas características do mundo contemporâneo. É hoje geralmente aceite que o movimento humano, no mundo contemporâneo; é mais vezes definidor da vida social do que é excepcional. O trabalho, tanto o mais sofisticado trabalho intelectual como o mais humilde trabalho proletário, leva as pessoas a migrar, frequente- I mente mais que uma vez ao longo da vida. As medidas dos Estados-nações, particularmente as relativas a populações consideradas potencialmente subversivas, criam uma máquina de movimento perpétuo em que os refugiados de uma nação se mudam para outra dando origem a novas instabilid:ldes que podem causar mais desassossego social e mais saídas. Assim, as necessidades de produção de povo de um Estado-nação podem . significar agitação étnica e social para os seus vizinhos, criando círculos . intermináveis de limpeza étnica, migração forçada, xenofobia, paranóia de Estado e nova limpeza étnica. A Europa de Leste em geral e a Bósnia-Herzegovi na em particular são talvez os exemplos mais trágicos e complexos des te processo de dominó dos refugiados estatais. Em muitos destes casos, pessoas e comunidades inteiras são metidas -em guetos, campos de refugiados, campos de concentração ou reservas, por vezes sem que I gué m sequer Se desloque. Outras fonnas de movimento humano são as criadas pela realidade ou ilusão da oportunidade económica, o que se aplica a muita da migração àsiá-1i.ca para as zonas ricas em petróleo do Médio Oriente. Mas outras form as movimento são criadas por grupos permanentemente instáveis de traba254
lhadores especializados (soldados das Nações Unidas, tecnólogos do petró-leo, especialistas em desenvolvimento e trabalhadores agrícolas). E ainda outras formas de movimento, particularmente na África Subsariana, implicam grandes secas e fomes, muitas vezes ligadas a alianças desastrosas entre Estados corruptos e entidades internaciónais e globais oportunistas. Noutras comunidades ainda, a lógica do movimento vem das indústrias do lazer, . que criam sítios e locais turísticos em todo o mundo. A etnografia destes locais turísticos começa agora a ser escrita com pormenor, mas o pouco que sabemos sugere que muitos desses locais criam condições complexas de -produção e reprodução de localidade em que laços de casamento, trabalho, negócios e lazer juntam várias populações circulantes com outras locais criando bairros que, em certo sentido, pertencem a determinados Estádos-nações, mas são de outro ponto de vista o que podemos chamar translo- calidades. O desafio de produzir um bairro nestes ambientes da ins- tabilidade inerente das relações sociais, da forte tendência para a própria subjectividade local sermercantilizada eda tendência dos Estados-nações, que por vezes obtêm importantes rendimentos desses sítios, para obliterar a dinâmica interna local mediante modos de credenciação e produção de imagens impostos de fora. Uma versão muito mais negra do problema de produzir um bairro observa-se nos campos de refugiados quase permanentes que hoje caracterizam muitas zonas de conflito no mundo, como os Territórios Ocupados na Palestina, os campos na fronteira cambojano-tailandesa, os muitos campos organizados pelas Nações Unidas na, Somália e os campos de refugiados afegãos no Noroeste do Paquistão. Combinando as piores características dos bairros de lata urbanos, campos de concentração, prisões e guetos, há lug_ares onde, não obstante, se contratam e celebram casamen" , tos, começam e terminam vidas, se fazem e horiram contratos, se lançam e interrompem carreiras, se faz e gastá dinheiro, se produz e troca mercadoria. Esses campos de refugiados são os exemplos mais duros de condições de incerteza, pobreza, deslocamento e desespero em que pode ser produzida localidade. Há os exemplos extremos de bairros produzidos pelo contexto em vez de geradores de contexto .. S50 bairros cujas vidas255
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-mundos são produzidas nas' mais negras circunstâncias, sendo as prisões i I e os campos de concentração os seus exemplos mais bárbaros, I Mas mesmo estes exemplos brutais apenas levam ao extremo o moral quotidiano de muitas cidades. Nas condições de agitação étnica e conflito I urbano que caracterizam cidades como Belfast e Los Angeles, Ahmeda- I bad e Sarajevo, ' Mogadíscio e Joanesburgo, as zonas urbanas transfor- : mam-se em campos armados e são inteiramente determinadas por forças , implosivas (cap. 7) que introduzem nos bairros as mais violentas e pro- ' blemáticas repercussões dos processQs regionais, nacionais e globais mais : vastos. Claro que há muitas diferenças importantes entre estas cidades, as suas histórias, as suas populações e a sua cultura política. Mas, juntas, representam umá nova fase da vida das ,cidades, onde a concentração de populações étnicas, o acesso armamento pesado e as condições de sobre- , população na vida cívica criam formas de guerra futuristas (que fazem lembrar filmes como Road Warrior, Blade Runner e muitos outros) e onde I a desolação geral da paisagem nacional e global transpôs muitas e bizarras inimizades raciais, religiosas e linguísticas para cenários de constante terror humano. Estes novos conflitos urbanos estão em certa medida divorciados das suas ecologias regionais e nacionais e voltados para guerras com impulso próprio, implosivas, entre forças criminosas, paramilitares, e milícias civis com ligações obscuras a forças transnacionais religiosas, económicas e políticas. Há, evidentemente, muitas causas para estas formas de colapso urbano no Primeiro e no Terceiro Mundo, mas elas devem-se em parte à erosão regular da capacidade dessas cidades para controlar os meios da sua própria reprodução. É difícil não associàr uma parte significativa destes problemas à mera circulação de pessoas, muitas vezes em resultado , de guerras, fome e limpeza étnica, que foi o que atirou essas pessoas para I essas cidades. A produção de localidade nestas formações urbanas enfren- ' ta os respectivos problemas de populações deslocadas e ' das, de políticas oficiais que restringem os bairros como produtores de e de sujeitos locais que não podem ser outra coisa senão cidadãos nacio-';;'ais. Nos casos mais severos, esses bairros quase não merecem o
nome, pois não são mais que palcos, quintas, sítios e casernas para popu1ações com um empenho perigosamente diminuto na produçãode-localidade.
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Não vá esta visão parecer demasiado negra, há que 'n otar que a própria natureza destes dramas urbanos desagradáveis leva indivídu'os e grupos a locais mais pacíficos para onde desejam transportar a sua energia, habilitações e paixão pela paz. Os melhores momentos da vida urbana nos Estados Unidos e na Europa devem-se aos migrantesque fogem de lugares muito piores do que Chicago, Detroit, Los Angeles e Miami. Contudo, sabemos que a produção de localidade na Los Angeles Sul e Centro, no lado ocidental de Chicago e em zonas semelhantes das grandes cidades americanas é um processo altamente conflituoso. . O terceiro e último factor a tratar aqui é o papel dos meios de nicação de massas, especialmente na sua forma electrónica, na criação de novos tipos de disjuntura entre , bairros espaciais e bairros virtuais. , Esta disjuntura tem potencial utópico e distópico e não há uma maneira fácil de dizer como vão actuar esses factores relativamente ao futuro da produção de localidade. Çom efeito, os próprios meios de comunicação electrónicos variam hoje internamente e constituem uma família complexa de 'meios tecnológicos de produção e disseminação de ,notícias e diversão. Os filmes tendem a ser dominados pelos grandes interesses co, merciais de uns poucos centros mundiais (Hollywood, Nova Iorque, embora vão aparecendo em outras partes da EuHong !
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de barracas que são dos mais pobres do mundo, como os do Rio de Janeiro e São Paulo. A relação entre ver cinema numa sala videocassetes no ambiente doméstico cria por Si só importantes mudanças, já apontadas como sinal do fim do cinema corrio forma clássica de espectáculo (Hansen, 1991). Ao mesmo tempo, o acesso de pequenas comunidades, por vezes no Quarto Mundo, a tecnologias de produção de vídeo tornou possível a essas comunidades criar estratégias nacionais e globais mais eficazes de auto-representação e sobrevivência cultural (Ginsburg, 1993; Turner, 1992). Máquinas de fax, correio electrónico e outras formas de comunicação mediatizada por computador 'criaram novas possibilidades para formas transnacionais de comunicação, passando muitas vezes à margem da vigilância intermédÍa do Estado-nação e de outros grandes conglomerados mediáticos. Claro que cada um destes progressos interage com os outros, criando novas e complicadas conexões entre produtores, audiências e públicos - locais e nacionais, na estabilidade e na diáspora. É impossível singrar no meio desta confusa de mudanças nos ambientes mediáticos que rodeiam a produção de bairros. Mas há muitas formas novas de comunidade e de comunicação que hoje afectam a capacidade dos bairros para serem produtores de contexto em vez de predominantemente determinados pelo contexto. O muito falado impacto das notícias da CNN e de idênticas formas globais e instantâneas de mediatização, bem como o papel das tecnologias de fax nos levantamentos democráticos na China, Europa de Leste e União Soviética em 1989 (e depois), tornaram possível aos dirigentes e aos Estados-nações, bem como às várias forças de oposição, comunicar muito rapidamente pelas linhas locais e mesmo nacionais. A velocidade dessa comunicação complica-se ainda mais com as comunidades de painel electrónico, como as que a Internet possibilita e que permitem o debate, o diálogo e a construção de relações entre vários indivíduos separados territorialmente que, apesar disso, estão a formar comunidades de imaginação e interesses dirigidos às posições e às vozes da diáspora. Estas novas formas de comunicação electronicamente mediatizada começam a criar bairros virtuais, já não limitados por território, passapórtes" 258
impostos, eleições e outros diacríticos políticos convencionais, mas pelo ao e ao hardware necessários para ligar as grandes redes de computadores. Assim o acesso a estes bairrós virtuaI.s (electrónicos) tende a confinar-se a membros da intelligentsia interque, mediante o açesso a tecnologias de computador nas univerSIdades, laboratórios e bibliotecas, podem basear ,os projectos sociais e ?olíticos em tecnologias construídas para resolver problemas de fluxo de Informação. Informação e opinião fluem concomitantemente através dese, .embora a morfologia social destes bairros electrónicos seja drfIcIl de claSSIficar e a sua 'longevidade difícil de prever, são claramente que .trocam informação e vínculos construtivos afectam mUltas areas da Vida, da filantropia ao casamento. bai,:r0s virtuais parecem representar, de tudo, apenas a ausenCIa de VInculos frontais, contiguidade espacial e interacções sociais múltiplas que a ideia de bairro essencialmente implicaria. Mas não devemos apressar-nos a opor bairros altamente espacúllizados aos bairros virtuais da comunicação electrónica internacional. A relação entre estas duas é c.onsideravelmente mais complexa. Numa primeira formas de,. fase, os vlrtuals.são capazes de mobilizar ideias, opiniões, capitais e laços SOClaIS que mUltas vezes voltam aos bairros vividos sob a forma d.e monetário, armas para nacionalismos locais e apoio a várias posIçoes em esferas públicas altamente localizadas. Por exemplo, nó contexto da destruição do Babri Masid, em Ayodhya, por extremistas hindus, a 6 de Dezembro de 1992, houve uma intensa mobilização por computador, fax e redes electrónicas que muito rapidamente criou círculos de debate e troca de informações entre pessoas interessadas nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterrae várias partes da Índia. Estes círculos electrónicos \.foram explorados por indianos nos Estados Unidos em defesa 'cios dOls do grande debate sobre fundamentalismo e harmonia comunitária na India contemporânea. Ao mesmo tempo, prosseguindo com o exemplo da comunidade marina de indi anos , tanto os grupos progressistas, secularistas, como 'tclsuas contrapartidas do lado revivalista hindu (membros do Vishwa Hindu ,
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Parishad e simpatizantes dos partidos Bharatiya Janata e Bajrang Dal, por vezes referenciados como parivar ou família Sangh), mobilizam estes bairros virtuais no interesse de projectos políticos intensamente localizadores na Índia. Os motins que abalaram muitas cidades indianas após o 6 de Dezembro de 1992 já não podem ser vistos fora da mobilização electrónica da diáspora indiana, cujos membros podem agora envolver-se directamente nos acontecimentos da Índia por meios electrónicos. Não se trata inteiramente de uma questão de nacionalismo à distância do género recentemente criticado por Benedict Anderson (Anderson, 1994). Faz tudo parte das novas relações, tantas vezes conflituosas, entre bairros, fidelidades translocais e a lógica do Estado-nação. Estes «novos patriotismos» (cap. 8) não são apenas um prolongamento das d·iscussões nacionalistas e antinacionalistas por outros meios, embora haja muito de nacionalismo prostético e política de nostalgia no relacionamento dos exilados com o seu país de origem. Envolvem também várias formas novas e confusas de ligação entre nacionalismos da diáspora, comunicações políticàs deslocalizadas é compromissos políticos revitalizados de ambos os lados do processo da diáspora. Este último factor reflecte o modo como as diásporas vão mudando à luz das formas novas da comunicação electrónica. Os indianos nos Estados Unidos estão em contacto directo com acontecimentos na Índia que implicam violência étnica, legitimidade do Estado e política partidária, e estes mesmos diálogos criam novas formas de associação, de conversa e de mobilização napolítica «minoritária» que eles prosseguem nos Estados Unidos. Assim, muitos daqueles que mais agressivamente vivem a política indiana por meios electrónicos são também os que mais esforços desenvolvem para reorganizar vários tipos de políticas de ·diáspora nas cidades e regiões dos Estados Unidos. Além disso, a mobilização de mulheres indianas contra a violência doméstica e acolaboração de grupos indianos progressistas com os seus homólogos empenhados na Palestina e na África do Sul sugerem que estes bairros virtuais electrónicos oferecem aos indianos formas novas de participar ·na produção de localidade nas cidades e subúrbios onde residem como professores, taxistas, engenheiros e empresários, americanos. . 260
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Os indianos dos Estados Unidos estão hoje empenhados de diversas maneiras na política do multiculturalismo nos Estados Unidos (Bqattacharjee, 1992). Este empenhamento é profundamente inflectido e afectado pelo seu envolvimento na política incendiária nas suascasas,cidades e parentes na Índia e também noutros sítios onde vivem e tr.ab.alham amigos e parentes indianos - inglaterra, África, Hong Kong e Médio Oriente. Por isso a política da diáspora, pelo menos na década de oitenta, foi decisivamente. afectada pelas transformações electrónicas globais. Mais do que simples oposição entre bairros espaciais e virtuais, o que emergiu foi um novo e significativo elemento da produção de,localidade. O fluxo global de imagens, notícias e opinião pública fornece parte da literacia cultural e política militante ·que as pessoas da diáspora trazem para os seus bairros espaciais. Em certos aspectos, estes fluxos globais potenciam a força intensa e explosiva que produz os bairros espaciais. Ao contrário das pressões muito negativas que o Estado-naç.ão exerce · sobre a produção de contexto por sujeitos locais, a mediatização electr6nica da comunidade no mundo da diáspora cria um sentido mais complicado, disjunto, híbrido da subjectividade local. Como estas electrónicas costumam inteO'raros membros mais cultos da elitê. das coo munidades de diáspora, não afectam directamente as preocupações dos migrantes menos instruídos e menos privilegiados. Migrantes menos favorecidos preocupam-se geralmente com os aspectos práticos do empre0'0 e da residência nos novos ambientes, mas não ficam isolados destes b .. fluxos globais. Um motorista de táxi sique em Chicago pode ser incapaz de participar na política do Punjab Internet; mas pode ouvir cassetes das fogosas canções e sermões devotos pronunciados no Templo Doura" , do, no Punjab. Os seus homólogos no Haiti, Paquistão e Irão podem usar o rádio e o leitor de cassetes para ouvir o que quiserem escolher do imenso fluxo global de audiocassetes especialmente dedicadas à música e aos discursos de carácter popular e devoto. Os diferentes grupos indianos nos Estados Unidos ouvem também discursos e sermões de toda uma série de políticos, académicos, homens
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santos e empresários itinerantes do subcontin'ente quando se encontram em digressão pelos Estados Unidos. Também lêem lndia West, lndia Abroad e outros grandes jornais que notícias da política americana e da indiana nas mesmas páginas. Participam, através da televisão por cabo, do vídeo e de outras tecnologias no ruído corrente do entretenimento à indiana produzido nos, e para os, Estados Unidos. Assim, a obra . da imaginação (cap. 1) que produz e alimenta a subjectividade local é um confuso palimpsesto de considerações ' altamente locais e altamente translocais. . Os três factores que mais directamente afectam a produção de localidade no mundo aCtual - o os fluxos da diáspora e as comunidades electrónicas e virtuais - articulam-se por sua vez de formas variáveis, confusas, por vezes contraditórias, que dependem do cenário cultural, histórico, ecológico e de classe em que se encontrarem. Por sua vez, esta variabilidade é em parte produto do modo como as etnopaisaoens . . o actUaIS mteragerri irregularmente com as finanças, os meios de comunicação e os imaginários tecnológicos (cap: 2). O modo como estas forças se articulam em Port Moresby é diferente da sua articulação em Peshawar, e este, por sua vez, é diferente em Berlim ou em Los Ange1es. Mas estes ' são todos lugares onde o combate enrre os imaginários do Estado-nação, das comunidades instáveis e dos meios de comunicação electrónicos globais estão em pleno progresso. O resultado, com todas estas variações conjunturais, é um 'novo e imenso conjunto de desafios à produção de localidade em todos os sentidos de que fala este capítulo. Os problemas da reprodução cultUral num mundo alobalizado somente em parte podem referir-se em lermos de problemas raça e classe , género e poder, embora tudo isso tenha uma importância crucial. Um bcto ainda mais importante éque a produção de localidade - sempre, como já defendi, um resultado frágil e difícil- é mais do que nunca atravessada por contradições, desestabilizada pelo movimento humano e desIoc3da pela formação de novos tipos de bairro virtual. A localidade é portanto frágil em dois sentidos. O primeiro, com que comecei este capítulo, decorre do' facto de a reprodução material dos 262
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bairro.s reais deparar invariavelmente com a corrosão do contexto, quanmaIS não seja na tendência do mundo material para resistir desígnIOS normais da acção humana. O segundo sentido surge quando os bairros são submetidos airhpulsos de produção de contexto de organizações hierárquicas mais complexas, especialmente as do Estado-nação. A relação entre estas distintas formas de fragilidade é em si hist6rica, pois é a interacção a longo prazo dos bairros que cria essas relações hierárquicas complexas, processo que normalmente é estudado sob rubricas como a formação do Estado. Esta dialéctica histórica recorda-nos que a localidade como dimensão da vida social e como valor articulado de determinados bairros não é um padrão transcendente que certas sociedades perdem ou de que se desviam. Pelo contrário, a localidade é sempre emergente de práticas de sujeitos locais em bàirros específicos. As pos- . sibilidades da sua realização como estrutura de sentimentos são pois tão variáveis e incompletas como as relações entre os bairros que constituem casos práticos . . As muitas populações deslocadas, desterritorializadas e em trânsito que constituem as etnopaisagens actuais estão empenhadas na construção da localidade como estrutura de sentimentos, muitas vezes perante a erosão, dispersão e implosão dos bairros enquanto formações sociais coesas. Esta disjuntura entre bairros como formações sociais e localidade como ,propriedade da vida social não é isenta de precedentes históricos, uma vez que o comércio longínquo, as migrações forçadas e as partidas por motivos políticos abundam no registo histórico. O que é novo é a disjuntura entre estes processos e os discursos e práticas mediatizadospelos meios .de comunicação de massas (incluindo os da liberalização económica, do \ multiculturalismo, dos direitos humanos e das reivindicações dos refugia" ' dos) que hoje rodeiam o Estado-nação. Esta disjuntura, como qualquer outra, aponta para algo de conjuntural. A tarefa de teorizar a reiação entre estas disjunturas (cap. 2) e conjunturas que'explicam a produção global izada da diferença parece agora mais e mais temível. Em tal teoria, não é provável que haja algo de me;amente local. .
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1. Aqui e agora
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1 A ausência de citações específicas no texto deste ensaio'não deve dar a impressão de que foí imaculadamente concebido. Este capítulo introdutório, como o livro que se lhe segue, parte de muitas correntes das ciências sociais e humanas ao longo dos últimos vinte anos. Muitas dessas dívidas ficarão patentes nas notas aos capítulos que se seguem. 2 Para um tratamento mais completo desta ideia, ver o ensaio introdutório de Appadurai e Breckenridge sobre «Modernidade Pública na Índia» em Consuming Modemity: Public Culture in a South Asian World, ed. Caro I A. Breckenridge (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1995), pp. 1-20. Esta colectânea de ensaios exemplifica uma estratégia para o estudo do moderno global num sítio específico.
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2. Disjuntura e diferença na economia cultural global
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Uma grande excepção é Frederic Jameson, cuja obra sobre a rebção entre pós-modernismo e , capitalismo tardio inspirou este ensaio em muitos aspectos. Contudo, o debate entre JamesCin e Aijaz Ahmaó em Social Tat mostra que a criação de uma narraúva marxista globalizante sobre questões culturais é território verdadeiramente difícil (Jameson, 1986; Ahmad, 1987). Os meus esforços neste contexto vão no senúdo de iniciar uma reestrunmição da riarrativa marxista (deslacando desfasamento e,', , , disjunturas) que muitos marxistas podérão achar detestável. Tal reestruturação tem {jue evitar os peri- ' gos da diferença obliterante no seio do Terceiro Mundo, elidindo o referente social (como certos pós-modernos franceses parecem inclinados a fazer) e mantendo a autoridade narrativa da tradição marxise diferença globais. ta, para favorecer uma maior atenção à fragmentação, 3. ' 2 A ideia de emopaisagem é tratada com mais relevo
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3. Etnopaisa·gens globais: notas e .perguntas para uma antropologia transnacional 1 I::stas ideias sobre a economia cultural de um mundo em movimento, bem como a lógica de termos como elnopaisagem, estão mais desenvolvidas no capítulo 2. 2 Não é este o lugar para uma revisão alargada do campo emergente que são os estudos culturais .. A sua linhagem britânica foi cuidadosamente explorada por Hall (1986) e Johnson (1986). Mas é claro que esta tradição brilãnica, tão associada à Escolil de Birmingliam, agora em d iáspora, está a assumir novas formas n OS Estados Unidos ao entrar em contacto com a antropo logia cultural americana, o novo hi storicismo e os estudos de linguagem e meios de comunicação na tradi ção americana .. 3 A análi se que se seg ue vai beber em muito a Appadurai e Breckenridge (199Ia).
S. Jogar com a modernidade: a descolonização indiano do 1 Estes materiais incluem as revi stas em língua marata Chaukar. Ashlapailu. Krikel Bharali e Shatka r. que têm as suas homólogas em tâm;l, hindu e bengali. Estas revi stas contêm mexericos sobre as do críquete, recensões a livros em inglês sobre críquete, notícias e análi ses do críquete em In glate rra e noutros pontos da Commonwealth e por vezes de outros desportos, bem c.omo d
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6. O número na imaginação colonial I Por lerritorial re firo-me ao interesse do ce nso nos bairros. distritos e regiões (Luddcn . 1991). 2 D,;vo este contraste entre casos especiais e limitati vos a Dipesh Chakrabarty. a quem devo também ter-me que este problema é fundamental para a minha te se. I
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7. A vida depois doprimordialismo _ l'_,Versões anteriores deste foram· apresentidas no Centro de Assuntos Internacionais da ' Uni versidad(;! l:Íe Harvard, no programa para o Estudo Comparado das Transformações Sociais na Uni- . doMic higan e no Ct;:ntro de Estud.os Asiáticos da Universidade dt;: Amestercüo. Agradeço aos pres<}ntes em cada uma destas ocasiões as suas perguntas pertinentes e críticas úteis. 2 Aqui. leriho o prazer de atender uma chamada de Fredrik Barth. cujo trabalho sobre grupos étnicos e fronteiras (19.69) continua a ser um estudo clássico do contexto social dos processos étllicos, para mais estuda s sobre as rel:!çÕ
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3 Em muitos aspectos, este capítulo é um diálogo com ia importante colectâpea çlirigida ford Geertz. Old Socielies and New Stales: The Questfor iloaemity in Asia AFica 0%3). zido sob os auspícios da Comissão para o Estudo Comparado das NovaS Nações. da:,pniversidade Chicago. este volume ensaios de sociólogos. antropólogos e politólogos e repreúnta um mo-' mento importante de trabalho sobre o tema da modernizaçao. Profundamente ciado pela herança de Max Weber e subsequentes esforços de Edward Shils e Talcott Parsons parain-, terpretar Weber nos· Estados Unidos, os ensaios da colectânea represe ntam em geral .um positivo pela moderni zação que eu não partilho. Alguns dos ensaios adoptam também üin sentido "de' substrato nas sociedades asiáticas e africanas que é o alvo directo minhas obserVações críticas neste capítulo. Outros contributos. nomeadamente o de Clifford Geertz. têm o cuidado de referir que o que parecem primórdios da vida social - língua. raça. parentesco - n'ã o passam disso mesmo. aparências. Geertz considera-as integraaas na retórica da natureza. da históna e das raízes'a que muitos políticos dos novos Estados fazem apelo. A posição primordialistatem aiW:la grande aceitação. Um exemplo entre muitos. mais de duas décadas após o ap_a recimento do volume de Geertz. é The Primordial Cha/lenge: Elhnicity in lhe Contemporary .World (1986), dirigido por JohnStack. Mostra a persistência da ideia do primordial como fac (o, não apenas como aparência ou tropo, na vida social dos grupos étnicos. . . 4 Esta teoria da extrema violência hoje frequentemente' associada aos choques étnicos é aqui es- . boçada no seu formato mais preliminar. Ao desenvolvê-Ia. baseei-me numa série de forites e interpretações. Notáveis entre estas foram as formulações específicas de Benedict Anderson sobre racismo e violência em lmagined Communities (983). O trabalho de Ashis Nandy e Veena violência comunitária no Sul da Ásia na década de oitenta (Das, 1990) e o trabalho mais recente de Das sobre o discurso militante sique na Índia a partir do fim dos anós setenta (1995) deram-me valiosas perspectivas sobre o modo como a violência é localizada, narrativizada e personalizada. Finalmente, um refrescante ensaio de Donald Sutton (995) sobre o canibalismo entre os camponeses contra-pcvolucionários na China. em 1968. abre um vislumbre poderoso sobre o modo como as formas mais extremas de violência política podem li gar-se à política e administração ao nível do Est ado. A brilhante etnografia de Liisa Malkki sobre os refugioldos hUlUS na Tanzânia (995) foi uma dolorosa inspiraç'ão. No seu conjunto. estes trabalhos (e muitos outros) deram corpo à ideia de que causar danos brutais no Outro' incorporado (por exemp lo. no corpo dos Outros) está estreitamente li gado à relação entre identidades individuais c rótulos e categorias extralocais. O desenvolvimento completo desta tese sobre raiva. traição. categorias promovidas .pelo Estado e conhecimento íntimo entre as pessoas tem que -'e sperar por outra ocasião. Foi Sherry Ortner que me persuadiu de que este capítulo, bem como este li vro,"'p recisava de um tratamento sério do tema da violência étnica. 5 Há que observar aqui que a minha opinião não deve ser estritamente identificada com uma perspectiva da violência étnica contemporãnea centrada no Estado. Simpatizo com a tese, geral de Robert Desjarlais e Albert Kleinman (1994). segundo os quais nem toda a violência contemporâ nea se pode atribuir às técnicas di sciplinares do Estado-naçã.o moderno. É sem dúvida uma grande incerteza e anomia o que alimenta as piores cenas de violência étniéado mundo. A nOção de incerteza. em vez de conhecimento. corrio característica da economia moral da violê ncia. precisa na realidade de uma exploração sistemática. De momento. vale a pena notar que me smo nas situações em que distúrbio' moral ocolapso epistemológico e incerteza social são galopantes. os factos violentos mostram muitas vezes o relevo das técnicas estatais de identificação e dos dramas politicamente encenados cujos pernão vêem nem -denunciam e arranjam bodes expiatórios (ver. por exemplo·, \Vaal. 1994 , sobre o genoc íd io no Ruanda).
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